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September 8, 2017 | Author: Pati Caldeira | Category: Poverty & Homelessness, Poverty, State (Polity), Schools, Neoliberalism
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Pedagogia da exclusão....

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PEDAGOGIA DA EXCLUSÃO CRÍTICA AO LIBERALISMO EM EDUCAÇÃO EDITORA VOZES 6ª EDIÇÃO PABLO GENTILI (ORGANIZADOR) Este volume pretende contribuir para um diagnóstico e uma interpretação das políticas educacionais do neoliberalismo. Discutem-se aqui questões tais como a problemática da pobreza e a educação nos países do capitalismo central (capítulo 1); os enfoques educacionais neo-reformadores e sua articulação com as concepções e as estratégias conservadoras no campo das políticas sociais (capítulo 2); a especificidade e a lógica da crítica formulada pelos neoliberais em relação à educação (capítulo 3); o impacto dos processos de reforma do Estado nas políticas educacionais (capítulo 4); a configuração dos sistemas escolares enquanto mercados educacionais (capítulos 5 e 7); as políticas “educacionais” do Banco Mundial (capítulo 6); o caráter assumido pelas políticas da nova direita enquanto programa de reforma cultural e seu impacto sobre um questionamento radical do direito à educação e à escola pública como es paço institucional onde esse o e se conquista socialmente (capítulos 8 e 9) e, por último, a formação dos movimentos conservadores nas esferas educacionais (capítulo 10). Neste livro se ampliam e rediscutem algumas das questões abordadas no livro Neoliberalismo, qualidade total e educação, organiza do por Tomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili, também publicado pela VOZES.

O organizador Pablo Gentili é bolsista pesquisador do DAAD (Alemanha) com sede na Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros Poder económico, ideología y educación (Miño y Dávila, Buenos Aires) e Proyecto neoconservador y crisis educativa (Centro Editor de América Latina, Buenos Aires). Organizou também Neoliberalismo, qualidade total e educação (com Tomaz Tadeu da Silva - VOZES e Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o Estado: democrático (com Emir Sader - Paz e Terra). Coleção ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO Coordenadores: Tomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili 1. Alienígenas na sala de aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação Tomaz Tadeu da Silva (Org.) 2. Pedagogia da exclusão: O neoliberalismo e a crise da escola pública Pablo Gentili (Org.)

3. Territórios contestados: O currículo e os novos mapas políticos e culturais Tomaz Tadeu da Silva e Antonio Flávio Moreira (Orgs.) 4. Identidades terminais: As transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política Tomaz Tadeu da Silva 5. Educação e crise do trabalho: Perspectivas de final de século Gaudêncio Frigotto (Org.) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil).

PABLO GENTILI Organizador MICHAEL W. APPLE / STEPHEN J. BALL ROBERT W. CONNELL / MÁRCIO DA COSTA ROGER DALE / MARÍLIA FONSECA GAUDÊNCIO FRIGOTTO PABLO GENTILI / ANITA OLIVER DANIEL H. SUÁREZ CARLOS ALBERTO TORRES

PEDAGOGIA DA EXCLUSÃO

Crítica ao neoliberalismo em educação 6ª Edição Tradução de Vânia Paganini Thurler e Tomaz Tadeu da Silva

EDITORA VOZES Petrópolis 2000

SUMÁRIO NOTA PRELIMINAR 9 1 POBREZA E EDUCAÇÃO 11 R. W. Connell 2 A EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CONSERVADORISMO 43 Márcio da Costa 3 Os DELÍRIOS DA RAZÃO 77 CRISE DO CAPITAL E METAMORFOSE CONCEITUAL NO CAMPO EDUCACIONAL

Gaudêncio Frigotto 4 ESTADO, PRIVATIZAÇÃO E POLÍTICA EDUCACIONAL 109 ELEMENTOS PARA UMA CRÍTICA DO NEOLIBERALISMO

Carlos Alberto Torres 5

O MARKETING DO MERCADO EDUCACIONAL E A POLARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO 137 Roger Dalle 6 O BANCO MUNDIAL E A EDUCAÇÃO 169 REFLEXÕES SOBRE O CASO BRASILEIRO

Marília Fonseca 7 MERCADOS EDUCACIONAIS, ESCOLHA E CLASSE SOCIAL 196 O MERCADO COMO UMA ESTRATÉGIA DE CLASSE

Stephen J. Ball 8 ADEUS À ESCOLA PÚBLICA 228 A DESORDEM NEOLIBERAL, A VIOLÊNCIA DO MERCADO E O DESTINO DA EDUCAÇÃO DAS MAIORIAS

Pablo Gentilli 9 O PRINCÍPIO EDUCATIVO DA NOVA DIREITA 253 NEOLIBERALISMO , É TICA E ESCOLA PÚBLICA

Daniel Suárez 10 INDO PARA A DIREITA 271 A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DE MOVIMENTOS CONSERVADORES

MMichael W. Apple ε Anita Oliver ... qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório. Este é um movimento ainda inacabado. Por enquanto, porém, é possível dar um veredito acerca de sua atualidade durante quase 15 anos nos países mais ricos do mundo, a única área onde seus frutos parecem, podemos dizer assim, maduros. Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm que adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o inicio do século como o neoliberalismo hoje. Este

fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes. Apenas não há como prever quando ou onde vão surgir. Historicamente, o momento de virada de uma onda é uma surpresa. Perry Anderson* * “Balanço do Neoliberalismo”. In: Emir Sader & Pablo Gentili (Orgs.). PósNeoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995.

NOTA PRELIMINAR Este livro é, em certo sentido, a continuação do anterior, Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação, que organizei, juntamente com Tomaz Tadeu da Silva, para esta editora. Da mesma forma que aquele volume, este pretende contribuir para um diagnóstico e uma interpretação crítica das políticas educacionais do neoliberalismo. Entretanto, enquanto aquele livro estava orientado pela discussão de uma das estratégias centrais utilizadas pelo neoliberalismo para a reestruturação dos contextos públicos da educação (a gestão empresarial da qualidade total), o presente trabalho aborda alguns aspectos mais gerais, que permitem caracterizar a ofensiva neoliberal como uma nova pedagogia da exclusão. Discutem-se aqui questões tais como a configuração dos sistemas escolares enquanto mercados educacionais (Ball, Dale); o impacto dos processos de reforma do Estado e dos programas de privatização sobre as políticas educacionais (Torres); a problemática da pobreza e da educação (Connell); a formação dos movimentos conservadores nas esferas educacionais (Apple & Oliver); as políticas do Banco Mundial relativas ao setor educacional (Fonseca); os enfoques neo-reformadores defendidos por certos intelectuais e sua articulação com as concepções e as estratégias conservadoras no campo das políticas sociais (Costa); a especificidade e a lógica da crítica formulada pelos neoliberais em relação à educação (Frigotto) e o caráter assumido pelas políticas da Nova Direita enquanto programa de reforma cultural e seu impacto sobre um questionamento radical do direito à educação e à escola pública como espaço institucional onde esse direito se materializa e se conquista socialmente (Gentilli, Suárez). Este livro é coletivo não apenas porque reúne artigos e ensaios de origens e perspectivas diversas. E coletivo porque surgiu da troca e dos debates que temos realizado com vários colegas e PG.9 companheiros que desenvolvem suas tarefas de reflexão e luta contra as políticas de exclusão, tanto no plano universitário quanto no sindical, tanto no trabalho militante cotidiano dentro da sala de aula quanto no interior dos movimentos sociais que lutam pela defesa e pela transformação da escola pública.

Agradeço aos autores dos diferentes capítulos por sua valiosa contribuição ao presente livro. Agradeço também à Professora Guacira Lopes Louro, por seus comentários, suas sugestões e seu apoio. Por último, devo destacar minha dívida de gratidão para com Tomaz Tadeu da Silva. Além de propor e indicar alguns dos ensaios aqui incluídos, ele é um interlocutor permanente para discutir e repensar novas e velhas dimensões das políticas de exclusão. Sem sua extraordinária capacidade de trabalho e também, claro, sem seu estimulante incentivo à crítica e à reflexão, este livro não teria sido possível. A Carmen McRae, Cesaria Evora e Elis Regina devo o calor que nos brindaram naquelas frias manhãs de Teresópolis, Porto Alegre, local no qual este livro foi adquirindo sua forma final. Pablo Gentili Rio de Janeiro, junho de 1995 PG. 10

1 R. W. Connell POBREZA E EDUCAÇÃO A maneira como a escola trata a pobreza constitui uma avaliação importante do êxito de um sistema educacional¹. Crianças vindas de famílias pobres são, em geral, as que têm menos êxito, se avaliadas através dos procedimentos convencionais de medida e as mais difíceis de serem ensinadas através dos métodos tradicionais. Elas são as que têm menos poder na escola, são as menos capazes de fazer valer suas reinvidicações ou de insistir para que suas necessidades sejam satisfeitas, mas são, por outro lado, as que mais dependem da escola para obter sua educação. O fato de os sistemas educacionais modernos causarem, efetiva e persistentemente, o fracasso das crianças pobres, faz com que um sentimento de indignação percorra muitos dos estudos sobre a questão da desvantagem na área de educação. Autores recentes acrescentam um certo tom de urgência a essa indignação. Natrielio, McDill e Pallas (1990), por exemplo, dão a seu panorama da prática educacional americana o subtítulo de “Correndo contra a Catástrofe”. O quadro descrito por Kozol (1991) no livro Savage Inequalities (Desigualdades Selvagens) é ainda mais sombrio, no seu retrato de negligência deliberada e de profunda tragédia. Este tom tem sido ouvido também fora da educação, em discussões sobre a “subclasse” urbana, sobre a violência em Los Angeles e sobre a ascensão do neofascismo na Europa.

Minha opinião sobre estas questões tem sido profundamente influenciada por meus/minhas colegas do estudo nacional do Programa de Escolas em Situação de Desvantagem na Austrália, Ken Johnston e Viv White, e por outros/as colaboradores/as deste projeto. 1

PG.11 A administração Clinton, em seu primeiro ano, não assinalou nenhuma grande ruptura em relação à política educacional dos anos 80. Entretanto, a eleição de Clinton criou um espaço político nos Estados Unidos para se reconsiderar programas como Head Start e Chapter 1, que já estavam recebendo um renovado apoio após um período de ceticismo e horizontes estreitos. Há agora oportunidade para uma discussão mais aprofundada do que vinha ocorrendo a partir dos anos 60, quando se iniciaram os programas de educação compensatória. Neste capítulo, argumentarei em favor de uma reavaliação abrangente dessa questão e esboçarei alguns dos caminhos que ela poderá tomar. Vou me valer de dois recursos que não estavam disponíveis nos anos 60. O primeiro deles é a experiência prática acumulada por professores/as, pais e mães com programas compensatórios. Boa parte dessa experiência é encontrada fora dos Estados Unidos (documentada em uma vasta “bibliografia mundial” compilada por Weinberg, 198 1-1986), mas as discussões americanas raramente levam essa experiência em consideração. Uma perspectiva mais internacional nos ajudará a ver as raízes mais profundas dos problemas e também fornecerá uma maior gama de respostas. O segundo recurso é uma compreensão sócio-científica muito mais sofisticada da educação e da produção de desigualdades. A atenção tem sido gradualmente deslocada das características das pessoas em situação de desvantagem para o caráter institucional dos sistemas educacionais e para os processos culturais que neles ocorrem. Meu argumento é de que tais questões devem ser centrais para se repensar a educação das crianças pobres. A educação já foi vista como uma panacéia para a pobreza, mas já não o é mais — e os/as professores/as são gratos/as por essa mudança. Mas a educação dos pobres ainda constitui uma arena para confiantes pronunciamentos de economistas e homens de negócios, especialistas em serviços sociais e empreendedores políticos e culturais de convicções diversas — alguns deles surpreendentemente ingênuos sobre os efeitos educacionais de suas propostas. Espero mostrar que a experiência dos/as professo res/as, bem como sua visão educacional, são centrais para essa questão. PG.12 É importante ter uma visão ampla da questão, para fugir de suposições cujas bases intelectuais são agora bastante duvidosas. Sendo assim, começarei mostrando como surgiram os programas compensatórios e quais eram seus pressupostos, antes de explorar a teoria e a prática mais recentes.

POBREZAS E PROGRAMAS A principal conclusão das pesquisas sociais é que as pobrezas não são todas iguais. Harrington, no livro The Other America (A Outra América) (1962) já destacava os idosos, as minorias, os trabalha dores rurais e os subempregados industriais como constituindo diferentes “subculturas da pobreza”. Essa distinção é enfatizada em estudo mais recentes e sistemáticos (p. ex. Devine e Wright, 1993). Em escala mundial, as diferenças entre os diversos tipos de pobreza são ainda mais evidentes. MacPherson (1987) fala em “quinhentos milhões de crianças” em estado de pobreza no Terceiro Mundo, a maioria em áreas rurais. A qualidade do ensino que chega até eles é duvidosa; Avalos (1992) argumenta que a pedagogia formal utilizada em suas escolas é profundamente inapropriada. A pobreza nos povoados rurais é diferente da pobreza nas cidades de crescimento explosivo, do México a Porto Moresby, um modelo de crescimento que agora domina as políticas dos países em desenvolvimento. Foi no cenário urbano que a idéia de uma “cultura da pobreza” foi desenvolvida, idéia essa que teve um efeito profundo sobre o conceito de educação compensatória em países ricos. Focalizo, neste ensaio, a pobreza que resulta da disparidade nas economias de alta renda da América do Norte, da Europa Ocidental, da Australásia e do Japão. Desde 1964, têm sido feitas estatísticas oficiais sobre as pessoas nessa situação, usando-se uma conservadora “linha de pobreza”, baseadas em cálculos, feitos pelo governo dos Estados Unidos, de necessidades alimentares mínimas das famílias. (Este critério tem sido igualmente utilizado em outros países.) Nesses termos, os Estados Unidos computaram 14 milhões de crianças pobres em 1991, isto é, uma criança em cada cinco (Departamento do Censo dos Estados Unidos, 1992). Extrapolando para os países capitalistas industrializados como um PG.13 todo, poderíamos estimar que eles têm cerca de 35 milhões de crianças atingidas pela pobreza. É para essas crianças e suas necessidades educacionais que é dirigida a educação compensatória — embora nem todas sejam alcançadas e evidentemente nem todos os fundos sejam destinados aos pobres. O ensino destinado aos pobres remonta às escolas de caridade do século XVIII e às escolas “populares” do século XIX; mas os modernos programas datam basicamente dos anos 60 e têm uma história específica. No início do século XX, os sistemas educacionais eram, em sua maioria, nítida e deliberadamente estratificados: segregados por raça, gênero e classe social, divididos entre escolas acadêmicas e técnicas, públicas e privadas, protestantes e católicas. Uma série de movimentos sociais envolveu-se na luta para dessegregar escolas, para estabelecer uma escola secundária abrangente e para abrir as universidades para grupos excluídos. Os sistemas educacionais de meados do século, como resultado desta pressão, tornaram-se mais acessíveis. O direito à educação materializado na Declaração dos Direitos da Criança

pelas Nações Unidas em 1959 foi a internacionalmente (com notáveis exceções como a África do Sul) como significando igualdade de acesso para todos. Contudo, esse acesso igual representou apenas uma meia vitória. No interior das instituições formalmente igualitárias, crianças proletárias, pobres e pertencentes a minorias étnicas continuavam a ter desempenho inferior, em testes e exames, ao de crianças advindas de famílias ricas ou da classe média, estavam mais sujeitas a reprovações e a evasão escolar e tinham muito menos chances de entrar para a universidade. Descrever essa segregação informal constituiu a principal preocupação da Sociologia da Educação dos anos 50 e 60. Acumulou-se uma quantidade enorme de evidências, abrangendo desde levantamentos oficiais como o Relatório Coleman, em 1966, nos Estados Unidos (veja-se a avaliação retrospectiva do autor em Coleman, 1990) até estudos como a Classe Social e a Escola Inclusiva (Ford, 1969), Este termo tem sido corretamente criticado por sua associação com a idéia de déficit com o qual se procura caracterizar as pessoas pobres. Trata-se, entretanto, do único termo de uso comum utilizado para se referir aos programas específicos que são o foco da discussão dessas políticas, e continua sendo usado oficialmente, de modo que irei também usá-lo. 2

PG.14 na Grã-Bretanha. As evidências que apontam para resultados socialmente desiguais continuam a aumentar; é um dos fatos mais concretamente estabelecidos sobre os sistemas educacionais do tipo ocidental em todas as partes do mundo. Os programas de educação compensatória foram uma resposta a esta situação histórica especifica o fracasso da expansão educacional do pós-guerra e do acesso formalmente igualitário para oferecer uma igualdade efetiva. E importante reconhecer que tais programas foram criados em um contexto de reforma social. Nos Estados Unidos, o movimento dos Direitos Civis, a redescoberta da pobreza por parte dos intelectuais e as estratégias políticas da administração Kennedy/Johnson levaram ao programa da Guerra Contra a Pobreza. Seus principais idealizadores foram economistas ligados à previdência social e seu principal êxito foi a redução da pobreza entre as pessoas mais velhas — não entre crianças (Katz, 1989). A educação foi trazida para o contexto da assistência social através da correlação entre níveis mais baixos de educação, de um lado, e índices de desemprego mais altos e salários mais baixos, de outro. Surgiu de um “ciclo de pobreza” auto-alimentado, no qual baixas aspirações e carências no cuidado com a criança levavam a um baixo rendimento na escola, que por sua vez levava ao fracasso no mercado de trabalho e à pobreza na próxima geração A educação compensatória foi vista, então, como um meio de romper este ciclo e de interromper a herança da pobreza. (Narrativas úteis sobre a educação compensatória foram escritas por Jeffey, 1978; Silver e Silver, 1991.) Assim, o fracasso do acesso igualitário foi transferido das instituições para as famílias a quem elas serviam. Famílias e crianças transformaram-se em portadoras de um déficit para o qual as instituições deveriam oferecer uma compensação. Esta manobra protegeu as crenças convencionais sobre educação; de fato, uma onda de otimismo sobre o

poder da escola e sobre a intervenção na primeira infância acompanhou o nascimento da educação compensatória. Seguindo essa lógica, programas financiados com fundos públicos foram estabelecidos nos anos 60 e 70 em alguns países ricos, começando com os Estados Unidos e incluindo Grã-Bretanha, PG. 15 Países Baixos e Austrália. (Para sua descrição, vejam-se Peterson, Rabe e Wong, 1988; Halsey, 1972; Scheerens, 1987; Gonnel, White e Jonhston, 1991). Os detalhes desses programas variam de um país para outro, mas eles têm em comum alguns importantes elementos de concepção. Eles têm como “alvo” uma minoria de crianças. Na Austrália, particularmente explícita nesse ponto, a cifra tem sido de cerca de 15%. Nos Estados Unidos, se a linha de pobreza oficial fosse equiparada, o programa Chapter 1 atingiria hoje 22% das crianças; na prática, ele atinge uma porcentagem maior de escolas e uma porcentagem menor de crianças. As crianças ou suas escolas são selecionadas através de uma linha de pobreza estimada. Os programas são planejados para compensar as desvantagens da criança pobre, enriquecendo seu ambiente educacional. Isso é feito através do acréscimo de alguma coisa ao sistema escolar e pré-escolar existente e os programas são geralmente administra dos separadamente do orçamento convencional da escola. O FALSO MAPA DO PROBLEMA As circunstâncias do surgimento desses programas compensatórios e os meios políticos pelos quais eles têm sobrevivido — e nem todos vingaram — produziram um falso mapa do problema. Designo com isso urna série de pressupostos que regem a política governamental e a opinião pública, mas que são factualmente incorretos, duvidosos ou profundamente enganadores. Os pressupostos centrais são três: que o problema diz respeito somente a uma minoria em desvantagem; que o pobre é diferente da maioria em termos de cultura ou atitudes; e que a correção da desvantagem na educação é um problema técnico, exigindo acima de tudo, a aplicação de um conhecimento especializado, baseado em pesquisa. A imagem de uma minoria em desvantagem está embutida na idéia da educação compensatória através da linha de pobreza pela qual os grupos-alvo são identificados. Sejam quais forem os detalhes das estimativas (estes variam dependendo do país, do estado e também da época, havendo sempre alguma controvérsia sobre o método), o procedimento sempre envolve o traçado de PG.16 uma linha divisória, em algum ponto, para separar as pessoas em situação de desvantagem daquelas em situação de vantagem.

Determinar onde esta divisão se dá é uma decisão fundamentalmente arbitrária. Este é um problema familiar no traçado de linhas de pobreza. Em programas compensatórios isso leva a uma infindável discussão sobre quais as crianças ou escolas devem fazer parte da lista para recebimento de fundos. O procedimento pode definir 50% da população como estando em situação de “desvantagem” tão logicamente quanto pode definir essa porcentagem como sendo de 10% ou 20%. Contudo, na prática, o ponto é sempre estimado de modo a estipular uma pequena porcentagem. Isto é acreditável em virtude da imagem já existente sobre a pobreza. A implicação disso é que os outros 80% ou 90%, ou seja, a maioria, estão todos numa mesma condição. Mas não é isso o que mostram as evidências. Independentemente das medidas usadas para estabelecer a desigualdade social ou os resultados educacionais, graus de vantagem e desvantagem atravessam, de modo típico, a população escolar como um todo (para um, entre uma centena de exemplos, veja-se Williams, 1987). Podemos identificar uma minoria excepcional mente favorecida, como também uma excepcionalmente desfavorecida, mas o foco em qualquer dos extremos é insuficiente. O ponto fundamental é que a desigualdade de classe é um problema que atravessa todo o sistema escolar As crianças pobres não estão diante de um problema isolado. Estão diante dos efeitos mais perversos de um padrão mais amplo. É tradicional a crença de que o indivíduo pobre não é como o restante de nós. Tal crença afetou a elaboração dos programas de educação compensatória, sobretudo através da tese da “cultura da pobreza”, na qual a reprodução da pobreza de uma geração: ara outra era atribuída às adaptações culturais do indivíduo sobre às suas circunstâncias (Lewis, 1968, p. 47-59). Embora vazada na linguagem da teoria cultural do etnógrafo, tal idéia adquiriu imediatamente uma versão psicológica. Diferenças culturais no grupo significavam déficit psicológico no plano individual, uma carência nas características necessárias para se obter sucesso na escola. Com essa “ampliação” do conceito, ilma gama bastante ampla de pesquisas, incluindo estudos sobre PG.17 códigos lingüísticos, sobre expectativas ocupacionais, sobre rendimento escolar, sobre quociente intelectual, entre outros, podia ser interpretada como demonstração de privação cultural. Nos anos 60 e 70, a idéia de déficit cultural tinha se tornado parte do estoque estabelecido de conhecimento de professores/as, assim como de formuladores de políticas públicas. Foi essa redução à idéia de déficit que Bernstein (1974) contestou em uma famosa crítica à educação compensatória. As idéias baseadas na noção de cultura da pobreza foram fortemente criticadas por antropólogos, lingüistas e professores/as, para não mencionar as críticas da própria população pobre. Entretanto, elas têm demonstrado uma enorme tenacidade, persistindo através de duas décadas de retórica cambiante — como Griffin (1993) recentemente mostrou em um detalhado estudo a respeito das pesquisas sobre a juventude. Elas sobrevivem, em parte, porque se transformaram na ideologia orgânica dos programas compensatórios. A existência mesma dos programas evoca a lógica do déficit, como demonstra Casanova (1990), em um comovente estudo de caso de duas crianças rotuladas dessa forma até por autoridades escolares de inclinação progressista. Deve-se

também mencionar que as idéias baseadas na noção de déficit sobrevivem porque se encaixam confortavelmente em ideologias mais amplas sobre diferenças de raça e de classe. Entretanto, a evidência dos fatos aponta, de forma esmagadora, para a semelhança cultural entre os grupos mais pobres e os menos pobres. As pesquisas sobre atitudes, por exemplo, produzem pouca evidência de que os pobres não têm o mesmo interesse das outras pessoas para com a educação ou as crianças (para um exemplo recente, focalizado no caso da Inglaterra, veja-se Heath, 1992). Essa conclusão seria de se esperar, dadas as evidências sobre a demografia da pobreza, uma informação que é pouco conhecida dos educadores. Estudos tais como a Pesquisa Americano sobre a Dinâmica da Renda, que seguiu as mesmas famílias desde 1968, mostra um grande número de famílias entrando e saindo do estado de pobreza. Num período de mais de vinte anos, cerca de 40% das famílias estudadas passaram algum tempo na pobreza, quando o índice de pobreza em qualquer período de doze meses era de apenas 11% a 15% (Devine e Wright, 1993). Deveríamos então esperar que tais pessoas tivessem, em qualquer PG.18 ocasião, muito em comum com o resto da classe trabalhadora, incluindo suas relações com a escola. Nos Estados Unidos, o tema tem sofrido uma mudança de foco através do conceito de “subclasse”, usado para designar os habitantes afro-americanos dos centros urbanos marcados por um enorme índice de desemprego, degradação ambiental, alto índice de natalidade entre mães solteiras, violência entre os membros da própria comunidade e tráfico de drogas. E evidente que as mais severas concentrações de pobreza terão, sem dúvida, as mais severas conseqüência na educação desses grupos (para obtenção de dados estatísticos, veja-se Orland, 1990). Etnografias feitas em locais urbanos (Anderson, 1991) e em comunidades rurais pobres (Heath, 1990) mostram, efetivamente, modos de vida que se mesclam de forma negativa com as práticas do sistema escolar predominante, O argumento de Ogbu (1988) de que esta má mistura tem raízes na história do imperialismo, com “minorias involuntárias”, tais como povos indígenas conquistados e trabalhadores escravos, resistindo às instituições da supremacia branca, é atraente. Entretanto, a etnografia como método pressupõe a coerência e a diferença, precisamente as características que estou questionando; devemos ser cautelosos para não fazer uma hiper- interpretação desse tipo de evidência. A inventividade cultural das pessoas pobres (incluindo os americanos da chamada “subclasse”) e sua interação com a cultura popular mais ampla não podem, de forma alguma, ser negadas — do jazz ao rap, ao new wave, à moda punk, aos estilos urbanos contemporâneos, e assim por diante. A pesquisa etnográfica na escola registra um forte desejo de educação por parte da população pobre e das minorias étnicas (p. ex. Wexler, 1992, dos Estados Unidos; Angus, 1993, da Austrália). Apesar disso existe um enorme fracasso educacional. Alguma coisa não está funcionando bem; mas, com certeza, dificilmente será a cultura das pessoas pobres. A crença de que a reforma educacional é, acima de tudo, uma questão técnica, uma questão de reunir as pesquisas e delas deduzir quais as melhores intervenções, está bem firmada no universo educacional. A hierarquia de instituições de ensino culmina nas universidades, elas próprias produtoras de pesquisa sobre educação. A ideologia dominante nos estudos educacionais é positivista, O relatório Coleman foi um monumento da pesquisa

PG.19 tecnocrática. A chamadas “escolas eficazes” e os movimentos nacionais de testes dão continuidade à convicção de que a pesquisa quantitativa gerará uma política pública de forma mais ou menos automática. Os/as professores/as são definidos/as, nessa perspectiva, como receptadores/as passivos da ciência educacional e não como produtores/as, eles/as próprios/as de conhecimento funda mental. A estrutura de financiamento da educação dos sistemas federais, onde unidades locais fornecem financiamentos do tipo “feijão-comarroz”, enquanto unidades hierarquicamente superiores financiam inovações estruturais, encorajam ainda mais uma visão da reforma educacional baseada no conhecimento especializado externo. Embora essas sejam as condições gerais do processo de elaboração de políticas educacionais, seu efeito sobre as políticas públicas relacionadas à pobreza é particularmente forte. Os pobres são precisamente o grupo com os menores recursos e com pouco poder para contestar as visões das elites elaboradoras de políticas públicas. Os movimentos sociais dos grupos pobres podem obter algumas concessões, mas somente através de uma vasta mobilização e da agitação social, como mostra o clássico estudo de Piven e Cloward (1979). Não é isso o que normalmente acontece na educação. Como Wexler (1987) observa, o movimento social principal, com efeitos sobre a educação, recentemente, nos Estados Unidos (e o mesmo se aplica a outros países industrializados) tem sido o da Nova Direita. Como conseqüência, as discussões sobre políticas educacionais e pobreza têm sido freqüentemente conduzidas sem os dois grupos mais aptos a compreender as questões envolvidas: as próprias pessoas pobres e os/as professores/as de suas escolas. (Um exemplo notável é a conferência de 1986, instaurada pela Secre taria de Educação dos Estados Unidos, para reavaliar os programas do Chapter 1, inteiramente composta por acadêmicos, administradores e analistas políticos — Doyle e Cooper, 1988). Dos/as professores/as espera-se que implementem as políticas públicas, não que as formulem. As pessoas pobres são definidas como os objetos dessas políticas, não como autoras da transformação social. PG.20 O efeito amplo desse mapa das questões tem sido o de localizar o problema nas cabeças dos indivíduos pobres e nos erros das escolas que os servem. As virtudes das outras escolas são simplesmente tomadas como dadas. A conseqüência, como Natriello e seus colegas (1990) mostraram, de modo perceptivo, para o caso dos Estados Unidos, tem sido uma oscilação entre estratégias de intervenção — a maioria de ordem tecnocrática, todas estreitamente enfocadas e dentro de um contexto de maciça insuficiência de fundos e nenhuma delas fazendo grande diferença na situação. REMAPEANDO AS QUESTÕES

Que podemos oferecer no lugar disso? (O “nós” é formado por pesquisadores/as, pedagogos/as, estudantes, administradores/as e os/as leitores/as de publicações como esta). Não podemos continuar oferecendo o que costumeiramente oferecemos: propostas para realizar novas intervenções conduzidas por especialistas e para fazer mais pesquisas para lhes dar suporte teórico. O estudo exemplar de Snow e seus colaboradores (1991) mostra os limites a que se tem chegado. Esse cuidadoso estudo, realizado nos Estados Unidos, buscava lições práticas para o ensino da alfabetização, através da comparação de bons e maus leitores entre crianças pobres. Ao retornar quatro anos depois, esses pesquisadores descobriram que as esperançosas diferenças obtidas como resultado de sua interação tinham sido anuladas por algo que só podemos interpretar como sendo as conseqüências estruturais da pobreza. As melhorias que esses pesquisadores propuseram eram certamente importante para melhorar a qualidade de vida das crianças. Mas elas não foram capazes de alterar as forças que moldavam seus destinos educacionais. Não há grandes surpresas na pesquisa sobre pobreza e educação e não há portas secretas que levem à solução. Se há um mistério, é do tipo que Sartre denominou “mistério à plena luz do dia”, um desconhecimento criado pelo modo como estrutura mos e utilizamos nosso conhecimento. Estudos descritivos de crianças pobres realizados por psicólogos, sociólogos e educadores certamente continuarão a ser feitos — temperados por declarações ocasionais de biólogos, dizendo terem encontrado o gene PG.21 responsável pelo fracasso escolar. Entretanto, esse tipo de pesquisa não é mais decisivo, O que precisamos sobretudo é re-pensar o padrão que estrutura a formulação de políticas públicas e o modo como as questões têm sido configuradas. Isso deveria começar com o tema que surge insistentemente quando as pessoas pobres falam sobre educação: a questão do poder. Essa questão leva à forma institucional da educação de massa, à política do currículo e à natureza do trabalho do/a professor/a. PODER Os/as educadores/as sentem-se desconfortáveis com a linguagem do poder; falar em “desvantagem” é mais fácil. Mas as escolas são instituições literalmente poderosas. As escolas públicas exercem o poder tanto através da obrigatoriedade de frequentá-las quanto através das decisões específicas que tomam. As notas escolares, por exemplo, não são meros pontos de apoio do ensino. Elas são também minúsculas decisões jurídicas, com status legal, que culminam em grandes e legitimadas decisões sobre as vidas das pessoas — o avanço na escola, a seleção para um nível mais alto de instrução, as expectativas de emprego. As pessoas pobres, de modo geral, compreendem essa característica da escola. Ela está centralmente presente em suas mais desagradáveis experiências de educação. A experiência vivida pelos estudantes pobres de hoje não é, contudo, única. Os sistemas de educação de massa foram criados no século XIX como uma forma de intervenção do estado na vida da classe trabalhadora, para regular e em parte assumir a educação das crianças. A obrigatoriedade legal era necessária porque tal intervenção era amplamente rejeitada.

Por causa dessa história, as escolas públicas e sua clientela proletária têm uma relação profundamente ambivalente. Por um lado, a escola corporifica o poder do estado; daí a queixa mais comum de pais e estudantes: de professores/as que “não se importam”, mas que não podem ser obrigados/as a mudar. Por outro lado, a escola transformou-se na principal portadora de esperanças para um futuro melhor para a classe trabalhadora, especialmente onde as esperanças do sindicalismo ou do socialismo PG. 22 se extinguiram. Daí o dilema, pungentemente mostrado por Lareau (1987), de pais proletários que desejam o avanço educacional para seus filhos, mas que não têm as técnicas ou os recursos que a escola exige. Lidar com instituições poderosas requer poder. Alguns dos recursos de que as famílias necessitam para lidar com as escolas atuais constituem os objetos preferidos das pesquisas positivistas sobre criança: alimentação adequada, segurança física, atenção de adultos sempre disponíveis, livros em casa, experiência escolar na família, e assim por diante. Estão geralmente ausentes da pesquisa positivista (por serem difíceis de quantificar como atributos de uma pessoa) os recursos coletivos que produzem o tipo de escola que depende, para o seu êxito, de um ambiente doméstico particular. Tais recursos são acionados quando empresários e proprietários complementam, através de doações, o financiamento da escola pública freqüentada por seus filhos; quando os professores universitários dominam as comissões curriculares e grandes em presas criam livros didáticos; ou quando a intervenção por parte de pais da classe média profissional é recebida, como rotina, de forma positiva pela direção e pelos professores/as. No falso mapa já discutido, a pobreza é constantemente tomada como indício de algo mais — diferença cultural, déficit psicológico ou genético. Os/as educadores/as precisam ser mais diretos e ver a pobreza como pobreza. As pessoas pobres têm poucos recursos, individual e coletivamente, incluindo muitos dos que são empregados na educação. A extensão das carências materiais é facilmente demonstrável. Por exemplo, um estudo feito na Austrália, sobre gastos domésticos de famílias com crianças, encontrou casais de alta renda gastando em torno de 8,82 dólares por semana em livros e periódicos, enquanto mães ou pais solteiros de baixa renda gastavam 2,06 dólares (Whiteford, Bradbury e Saunders, 1989). Tais diferenças em renda e gastos (a disparidade em relação aos bens é ainda maior) significam falta de recursos domésticos e também vulnerabilidade em relação ao poder institucional, como, por exemplo, rotulação discriminatória no sistema público de assistência social e colocação em turmas separadas na escola. Não PG. 23 há mistério sobre os indivíduos pobres. Para tomar um exemplo canadense:

A colocação de crianças pobres imigrantes em turmas separadas na escola é um fato óbvio. Pais mais bem situados certificam-se de que seus filhos estão indo na direção certa e que têm um envolvimento muito mais ativo com o sistema escolar. As famílias proletárias não têm tempo ou os recursos para lutar (Curtis, Livingstone e Smaller, 1992, p. 23).

Pobreza e alienação provavelmente significam condições mate riais de vida problemáticas. Este é um dos pontos da discussão sobre o conceito de “subclasse”, mas também pode ser visto fora dos Estados Unidos: veja-se o livro Knuckle Sandwich (1978) de Robins e Cohen, sobre juventude e violência na Inglaterra, e o livro Fragmented Lives (1986), de Embling sobre a Austrália. Para compreender isso não precisamos supor a existência de diferenças culturais. Mas precisamos considerar cuidadosamente a questão do poder para que possamos compreender a violência que tem estado há muito subjacente nas escolas freqüentadas por pessoas pobres dos centros urbanos, e que tem assumido um curso dramático com o aparecimento de armas nas escolas americanas de primeiro e segundo graus. O poder é urna questão de gênero bem corno de classe ou raça. A violência é mais comum em meninos que em meninas, não por uma questão de hormônios, mas porque as noções ocidentais de masculinidade são socialmente construídas em torno de reivindicações de poder. Nas situações nas quais essa reinvidicação é feita com recursos que não vão além da força física e nas quais os meninos têm sido habitualmente disciplinados pela força, é altamente provável que o “problema” se expresse em forma de violência. As escolas não funcionarão bem a menos que sejam seguras, para professores/as e alunos/as. Torná-las seguras significa discutir a política da masculinidade, um tema ausente da maioria das discussões sobre a escola, mas talvez agora começando a ganhar algum foco (Waiker, 1988; Connell, 1989). PG.24 A ESCOLA COMO INSTITUIÇÃO Os meninos que brigam na escola e são jogados na rua estão encontrando mais do que a raiva de certos professores e diretores. Estão enfrentando a lógica de uma instituição que representa o poder do estado e a autoridade cultural da classe dominante. O estudo de Fine (1991) sobre uma escola de gueto em Nova York mostra a cega racionalidade burocrática que incentiva o aluno à evasão. Em uma escola sob pressão e sem nenhuma perspectiva e obtenção dos recursos de que necessita ou de uma mudança em seus métodos de trabalho, “livrar-se” de um aluno transforma-se em solução rotineira para uma ampla gama de problemas. O papel do poder institucional em moldar a interação professor-aluno tem aparecido claramente nas etnografias que têm sido feitas em escolas. Esse papel foi nitidamente retratado no estudo de Corrigan (1979) sobre a luta pelo controle em duas escolas de uma área industrial decadente da Inglaterra.

O que as etnografias da escola não podem mostrar é a forma institucional do sistema de ensino como um todo. A seletividade dos níveis mais altos significa uma oferta limitada de educação, que força desempenhos desiguais, esforce-se ou não o sistema para oferecer oportunidades iguais. Se um sistema universitário forma apenas um em dez de um grupo da mesma geração (média atual para países industriais, segundo o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, 1992), então nove devem ficar sem se formar. Se existe uma pressão por desempenhos desiguais, então dá também uma luta por resultados vantajosos, bem como pelos recursos políticos e econômicos que podem ser mobilizados nessa luta. Os pobres são precisamente os que têm menos recursos. Medidas para acirrar a competição dentro do sistema escola — incluindo testes obrigatórios, planos de escolha por parte dos cais, programas dirigidos aos “dotados e talentosos” — têm um nítido significado de classe, ratificando as vantagens dos privilegiados e confirmando a exclusão dos pobres. Isto não é novidade. Observações similares sobre o caráter de classe dos programas de testagem têm sido feitas por meio século (Davis, 1948). Entretanto, parece ser um fato que tem de ser constantemente redescoberto. PG.25 A legitimidade da competição educacional depende da existência de alguma crença na possibilidade de se nivelar as condições com as quais as pessoas entram nesse jogo. Os fatos econômicos têm sido bastante marginais em discussões sobre a desigualdade no campo educacional, embora os educadores justifiquem periodicamente os programas compensatórios como contribuindo para uma força de trabalho bem treinada. Recentemente, nos Estados Unidos, Kozol (1991) colocou em questão as diferenças nas verbas destinadas às escolas. Taylor e Piche (1991), estudando os gastos por aluno, mostraram uma média de 11.752 dólares nas escolas para os mais ricos e 1.324 nas dos mais pobres, com razões de 2 1/2 para 1 ou de 3 para 1 entre grupos com altos e grupos com baixos gastos, em vários estados. Os gastos per capita atuais tendem a subestimar as diferenças, visto que o orçamento geral tem sido também desigual e além do financiamento público, como já se sabe, há fortes desigualdades no que pode ser gasto, de forma privada, em recursos educacionais. Outros países ricos têm verbas para educação mais centralizadas e, conseqüentemente, mais uniformes que os Estados Unidos, mas uma seleção mais rigorosa para níveis mais altos (que, sendo mais dispendiosos, pesam no total geral dos gastos em favor dos grupos abastados, os quais têm acesso, em maior proporção, aos níveis educacionais mais altos). Face a isto, parece haver diferenças no investimento social em educação de crianças ricas e pobres, diferenças que são muito maiores do que qualquer efeito redistributivo dos fundos de educação compensatória. CURRÍCULO A importância do currículo para as questões de desigualdade educacional vem sendo há muito tempo enfatizada por Apple (1992, 1993). O tema do currículo é altamente relevante para qualquer estratégia dirigida à questão da relação entre pobreza e educação. Os

programas compensatórios foram planejados para reinserir as crianças em desvantagem no caminho da escola regular. O sucesso de tais programas é convencionalmente medido através do progresso do aluno no currículo estabelecido. Procura-se, especialmente, verificar se os programas contribuíram para diminuir a distância entre os resultados obtidos e as normas do sistema, sobretudo em forma de notas. Esta lógica foi levada ao PG.26 extremo em um programa de Cleveland (Estados Unidos), no qual se premiavam os alunos com 40 dólares por cada conceito “A”, 20 dólares por cada “B” e 10 por cada “C” (Natriello et alli, 1990, p. 103). Quando o progresso no currículo oficial é tomado como o objetivo da intervenção, esse currículo deixa de ser criticado. Mas a experiência de professores/as em escolas em desvantagem os/as tem levado, persistentemente, a questioná-lo. Tópicos e textos convencionais, métodos de ensino e de avaliação tradicionais tornam-se fontes de dificuldades sistemáticas. Eles produzem um tédio constante. Impô-los faz aumentar o problema da disciplina e, a partir do momento em que eles efetivamente se fazem cumprir, dividem os alunos entre uma minoria academicamente bem sucedida e uma maioria academicamente desacreditada. Ensinar bem em escolas em desvantagem requer urna mudança na maneira como conteúdo é determinado e na pedagogia. Uma mudança em direção a um currículo mais negociado e a uma prática de sala de aula mais participativa, como a do Programa de Escolas em Desvantagem, da Austrália, pode ser vista como uma tendência geral e não apenas como uma iniciativa isolada (Connell, White e Johnston, 1991). A eficácia de práticas similares na escola elementar americana é demonstrada por Kapp, Sheilds e Turnbull (1992). Mas essa não parece ser a tendência principal nos Estados Unidos. O levantamento das escolas médias feito por Maclver e Epstein (1990) sugere que existe uma maior tendência à utilização de uma pedagogia mais convencional, menos compro metida com métodos ativos de aprendizagem e currículos experimentais em escolas freqüentadas por crianças pobres do que em escolas freqüentadas por crianças com mais recursos. Isto é, sem dúvida, afetado pela pressão por “padrões” de “excelência” e pela obrigatoriedade de se ensinar “habilidades básicas” e de se adotar métodos de ensino. Ver o currículo tradicional (mainstream) como um componente chave do problema levanta a questão da origem desse currículo. Começamos a obter algumas respostas a essa questão através da nova história social do currículo produzida por Goodson (1985, 1988) e outros. O próprio conceito de mainstream deve ser posto em questão, na medida em que sugere a existência PG.27 de um consenso negociado. O que existe na verdade, é um currículo dominante ou hegemônico, historicamente derivado das práticas educacionais de homens europeus de classe alta. Ele tornou-se dominante nos sistemas de educação de massa durante os últimos cento e cinqüenta anos, na medida em que os representantes políticos dos poderosos conseguiram marginalizar ou trás experiências e outras formas de organizar o

conhecimento. A batalha atual, nos Estados Unidos, para estabelecer um currículo multicultural é parte de uma longa história de luta em torno de definições de conhecimento. A aparentemente remota disciplina de história do currículo contribuiu de maneira decisiva para se repensar as questões sobre pobreza e educação Ela desmistificou o currículo hegemônico, mostrando como ele constitui apenas um dentre vários modos pelos quais o conhecimento poderia ter sido organizado para transmissão nas escolas. Sem essa perspectiva histórica, propostas de currículos alternativos são facilmente desacreditadas, com o argumento de que estão abandonando o real conhecimento e a qualidade da educação. (Versões diferentes desse argumento foram apresentadas, por sua vez, pelos relatórios educacionais neoconservadores na Inglaterra dos anos 60 e 70, pelos defensores americanos de uma alfabetização “básica” nos anos 80, pelos professores universitários contestadores à reforma do sistema de avaliação na Austrália dos anos 90.) Podemos ver agora que o trabalho de professores/as em escolas em desvantagem implica não apenas uma mudança para conteúdos diferentes (embora se saiba que haverá um pouco disto) mas, mais decisivamente, uma organização diferente do campo do conhecimento como um todo. O TRABALHO DOCENTE Os/as professores/as estão surpreendentemente ausentes de boa parte do debate a respeito das políticas públicas centradas na questão das relações entre escola e pobreza. (Em tal proporção que um livro recente sobre esse tema sequer lista professores/as em seu índice.) Essa ausência é uma conseqüência importante da interpretação baseada na noção de déficít e do estilo tecnocrático da elaboração de políticas públicas. PG.28 Mas os/as professores/as constituem a linha de frente das escolas. Se a exclusão é realizada pelas escolas, ela, certamente, ocorre, bem boa parte, através daquilo que os/as professores/as fazem. Podemos não querer culpar os/as professores/as, mas não podemos ignorá-los/as. A educação como um empreendimento cultural constitui-se em e através de seu trabalho. Esse trabalho é a arena onde se condensam as grandes contradições em torno da educação e da justiça social. O trabalho dos/as professores/as tem sido estudado em uma literatura de âmbito internacional (Apple, 1986; Lawn e Grace, 1987), a qual, assim como a da história do currículo, tem sido pouco utilizada em discussões sobre a pobreza. Entretanto, sua importância é clara. Lawn (1993), por exemplo, mostra a complexidade das relações dos/as professores/as com o poder do estado e a importância do profissionalismo docente como um sistema de controle indireto, O profissionalismo é um fator importante de ligação entre os/as professores/as e o currículo hegemônico. A questão da desqualificação docente através de um controle administrativo mais estrito e de currículos pré-empacotados é altamente relevante para a prática de um bom ensino em escolas em desvantagem, uma vez que essas necessitam de máxima flexibilidade e imaginação.

Essa é uma razão importante para examinarmos seriamente as diferentes atividades reunidas sob o nome de “educação compensatória”. Algumas expandem as opções dos/as professores/as e exigem níveis mais altos de qualificação. Outras, estabelecidas como uma condição para a obtenção de recursos, estreitam os métodos e desqualificam os/as professores/as, empurrando-os/as geralmente, em direção a estilos mais autoritários de ensino. Nos casos em que programas compensatórios são acompanhados por um programa ativo de testes, estabelece-se uma pressão já conhecida para se ensinar objetivando a aprovação nos testes, estreitando-se, assim, o currículo. Aulas destinadas a esse tipo de treinamento tendem a romper a dinâmica de apoio afetivo que os/as bons/as professores/as tentam estabelecer na sala de aula. O modelo todo de intervenção baseada no conhecimento de especialistas externos tende a retirar o poder do/a professor/a. Em vista de todos esses efeitos, é provável que algumas intervenções compensatórias tenham piorado a situação educacional em escolas PG.29 carentes, ao invés de melhorá-la. Para uma escola problemática, é quase impossível resistir às ofertas de recursos; mas as conseqüências nem sempre são boas. Olhando as condições do trabalho docente, podemos também começar a entender o paradoxo das avaliações da educação compensatória (veja-se Glazer, 1986). Resumindo: a maioria dos projetos de intervenção produz pouca mudança quando são ava liados através de formas convencionais; e os que realmente pare cem produzir mudanças não seguem um padrão definido. A abordagem tecnocrática de elaboração de políticas públicas deve ficar profundamente perturbada por essa situação, embora a reação habitual seja apelar em favor de mais pesquisas. Suspeito que esses fatos nos estão alertando sobre a existência de efeitos do tipo Hawthorne nos programas dirigidos à pobreza. A prática dos/as professores/as é governada principal mente pelas determinações institucionais da escola como um local de trabalho. As intervenções compensatórias geralmente são demasiadamente pequenas para mudar esses fatores, um fato que tem sido destacado através de sua história (vejam-se Halsey, 1972; Natrielio et alii, 1990). Deste modo, a maior parte da prática educacional em escolas carentes possui a mesma rotina da de outras escolas (para a esse respeito, veja-se Gonnell, 1991) e produz os efeitos socialmente seletivos de sempre. Ocorre que aqueles programas que realmente produzem mudanças encontra ram uma variedade de maneiras — que podem ser situacionais e temporárias — de fortalecer a ação dos/as professores/as, sua capacidade de driblar os fatores determinantes e de lidar com as contradições da relação entre as crianças pobres e a escola. PENSAMENTO ESTRATÉGICO Dado esse remapeamento das questões, nosso conceito do que constitui uma solução deve também mudar. As soluções não podem consistir de intervenções baseadas no conhecimento de

Este nome faz referência à fábrica onde um famoso experimento constatou aumento de produção dos operários independentemente de como seu trabalho era organizado pelos experimentadores. Os pesquisadores finalmente perceberam que era o experimento em si, não as manipulações realizadas nele, que estava criando um grupo de apoio afetivo e levantando o moral dos trabalhadores. 3

PG.30 especialistas a partir de um ponto central. Ao contrário, devem envolver o conhecimento disperso, cuja utilização é atualmente impedida. Isto significa que os/as acadêmicos/as fariam melhor se simplesmente saíssem do caminho? Há muito a dizer em favor de se romper as rotinas pelas quais o prestígio da ciência legitima intromissões nas vidas dos indivíduos pobres. Mas nenhum de creto de autonegação fará tal coisa, dada a influência do pensamento tecnocrático em círculos ligados às políticas públicas e em estudos educacionais. Deve-se também dizer que os/as acadêmicos/as têm efetivamente recursos e habilidades que os pobres e seus professores podem utilizar. A primeira necessidade é deslocar a elaboração tecnocrática de políticas públicas e colocar em seu lugar um pensamento estratégico. As pessoas nas escolas —alunos/as e suas famílias, professores/as e outros/as funcionários — já estão pensando sobre como superar obstáculos e vencer a injustiça. Tais pessoas não têm de ser aconselhadas a fazer isto! Os/as intelectuais profissionais podem ajudar a circular, orientar, criticar e melhorar esse pensa mento. Com o projeto de se apoiar o pensamento estratégico já existente nas escolas, ao invés de substituí-lo, têm-se todas as razões para justificar o envolvimento mais ativo possível dos/as acadêmicos/as com toda a gama de questões existentes. Se quisermos usar a oportunidade que agora existe de realizar mudanças, o pensamento estratégico sobre a pobreza deve reconsiderar os objetivos de ação, a substância da mudança, os meios e ainda as condições políticas para que essa mudança ocorra. FORMULANDO OBJETIVOS A maioria das declarações de objetivos para a reforma educacional trata a justiça em termos distributivos. Isto é, elas tratam a educação, em grande parte, do modo como as discussões sobre a justiça econômica tratam o dinheiro — como um bem social de caráter padrão que precisa ser distribuído de forma mais justa. Mesmo se os critérios para uma distribuição justa variam de uma esfera de política pública para outra, como no sofisticado modelo de justiça de Walzer, a abordagem distribucional governa a discussão da educação (Walzer, 1983, cap. 8). PG.31

Se aprendemos algo com o estudo da interação entre currículo e contexto social é que os processos educacionais não constituem um padrão neste sentido. Distribuir as mesmas quantidades de currículo hegemônico, para meninas e meninos, para crianças pobres e crianças ricas, crianças negras e crianças brancas, imigrantes e nativas não produzirá os mesmos resultados para eles — ou a eles. Em educação, o significado de “quanto” e de “quem” não pode ser e do “quê”. O conceito de justiça distributiva certamente se aplica a recursos materiais para educação tais como fundos e equipamentos para a escola. Mas precisamos de algo mais, um conceito de justiça curricular, para o conteúdo e o processo da educação. A justiça curricular diz respeito às maneiras pelas quais o currículo concede e retira o poder, autoriza e desautoriza, reconhece e desconhece diferentes grupos de pessoas e seus conhecimentos e identidades. Deste modo, ele diz respeito à justiça das relações sociais produzidas nos processos educacionais e através deles. (Para uma definição mais completa, veja-se Connell, 1993.). Não há nada de exótico nessa idéia. Ela está implícita em grande parte da prática de ensino nas escolas carentes, uma prática que contesta os efeitos incapacitantes do currículo hegemônico e autoriza o conhecimento localmente produzido. Este é o tipo de “bom ensino” que Haberman (1991) contrastou recentemente com a “pedagogia da pobreza”; segundo observa, o problema é como institucionalizá-lo em escolas carentes. Tais iniciativas permanecem marginais e são facilmente demonstradas, a menos que elas possam ser conectadas a objetivos mais amplos. Creio que um conceito de justiça curricular torna isto possível e deveria estar no centro do pensamento estratégico sobre educação e desvantagem. Ele requer que pensemos no processo de elaboração de um currículo do ponto de vista dos menos avantajados, não do ponto de vista do que é atualmente permitido. Ele requer que pensemos como generalizar o ponto de vista dos menos avantajados, um ponto de vista que deve ser usado como um programa para a organização e a produção do conhecimento em geral. Assumir urna visão educacional sobre as relações entre pobreza e educação nos leva, a além do objetivo de “compensação”, PG.32 em direção à meta da reorganização do conteúdo cultural da educação como um todo. Esta é uma conclusão intimidadora dadas as dificuldades que já temos com objetivos muito mais limitados. Mas ela pode ajudar a colocar as iniciativas locais na perspectiva da pauta mais ampla que elas implicam. A SUBSTÂNCIA DA MUDANÇA Os programas compensatórios têm, sobretudo, complementado o currículo hegemônico, adicionando atividades extras ou o ensino em pequenos grupos a áreas

centrais do conhecimento convencional — principalmente Matemática e Língua. Programas de acréscimo não mudam os de ensino e aprendizagem na escola. Uma estratégia que levasse a mudança curricular a sério deveria estar baseada em outra abordagem encontrada em programas compensatórios, a abordagem da mudança global da escola, que usa os fundos compensatórios para reformular as atividades principais da escola. Para entender a mudança curricular é preciso considerar quais são os efeitos sociais básicos da educação. Wexler (1992) considera que seu efeito principal é a formação discursiva de identidades. Isto enfocaria estratégias de justiça no respeito à diversidade e na produção de identidades ricas e sólidas — não muito longe, de fato, dos interesses de uma educação multicultural. Eu argumentaria, entretanto, em favor de uma concepção mais ampla de efeitos educacionais: como o desenvolvimento de capacidades para a prática social, incluindo o ganhar seu sustento - (Wilson e Wyn, 1987), o desenvolvimento corporal (Messner, 1992) e a mobilização do poder. Este último é um tema conhecido na área de alfabetização de adultos (Lankshear, 1987), talvez o exemplo mais claro de como a aprendizagem pode abrir formas de transformar a situação do pobre. O mesmo argumento foi feito pela Comissão Australiana (1985, p. 98), como um objetivo para seu programa nacional de educação compensatória: Assegurar que os alunos tenham acesso sistemático a programas que lhes fornecerão uma compreensão política e econômica de modo que eles possam agir individualmente ou coletivamente para melhorar suas condições.

PG.33 A idéia de ajudar o pobre a “agir coletivamente” para mudar as coisas é diretamente oposta aos efeitos divisivos de um sistema de avaliação competitivo. O vínculo entre os currículos excludentes e a avaliação competitiva é muito estreito. Não foi por acaso que o relatório Blackburn sobre educação pós-compensatória em Victoria, que buscou aplicar o princípio de um currículo socialmente inclusivo, tenha também estabelecido as bases de uma importante e democrática reforma do sistema de avaliação na escola secundária (Ministerial Review, 1985). Essa reforma tirou proveito da experiência de escolas carentes para formular uma política para o sistema educacional como um todo. Reformas no currículo e no sistema de avaliação custam caro, principalmente no que diz respeito ao tempo e à energia humana que exigem. O nível de recursos materiais destinados às escolas para grupos pobres ainda faz diferença, mesmo que concordemos que a qualidade da educação não depende da pintura nova das paredes do prédio onde funcionam. As medidas de gastos per capita são, como já havia sugerido, medidas inadequadas do investimento social total para a educação dos diferentes grupos de crianças. Dadas as importantes desigualdades nos recursos destinados às escolas, existe um forte argumento de justiça distributiva a ser feito, em favor de níveis muito mais altos de fundos para as escolas destinadas aos pobres e fundos mais altos para as escolas proletárias em geral. O fato de se colocar o foco no currículo, da mesma forma, não anula questões sobre a escola como instituição. O currículo tal como ensinado-e-aprendido e não apenas o

currículo tal como existe nos papéis é constituído pelo processo de trabalho de alunos/as e professores/as e, tal como outras formas de trabalho, é fortemente afetado pelas relações sociais circundantes. Expandir o campo de ação dos/as professores/as significa nos movermos em direção à democracia trabalhista no âmbito da escola. Isto não é facilmente alcançável, como os sindicatos docentes já sabem; para uma situação como a da GrãBretanha, após uma década de governo da Nova Direita, pode soar utópica. Mas, se pretender mos ser sérios a respeito do enriquecimento educacional, precisamos produzir as condições de trabalho para formas mais ricas de ensino. PG.34 Os/as alunos/as também trabalham e não apenas num sentido meramente metafórico. Democratizar significa expandir a possibilidade de ação daquelas pessoas que são normalmente esmagadas pela ação de outras ou imobilizadas pela atuais estruturas. O ensino realiza isso de um modo local e imediato — tal como vividamente mostrado na educação de adultos dirigida ao fortalecimento do poder (empowerment) descrito por Shor (1992). A agenda para a mudança deve se preocupar com a forma como efeito local pode ser generalizado. OS MEIOS Dadas as forças institucionais que tendem a produzir a desigualdade em educação, é possível argumentar que podem ser feitas mais coisas fora da escola que dentro dela. Isto parece ser uma imp1icação de leituras pós-modernistas sobre política educacional feita por autores como Giroux (1992). Reconhecendo as mudanças culturais que inspiram as leituras desses autores, eu argumentaria, no entanto, que a relação profundamente ambivalente entre classe trabalhadora e as instituições educacionais é central à política cultural contemporânea nos países industrializados. Esta ação fez-se mais importante com o peso crescente da educação na economia e na cultura. Os/as professores/as nas escolas são os trabalhadores/as mais estrategicamente colocados/as para mudá-la. Já argumentei em favor de se trazer o trabalho docente para centro das discussões sobre o problema da desvantagem. Se quisermos que haja uma mudança na educação das crianças em situação de pobreza, temos que ver os/as professores/as como força de trabalho da mudança. Isto tem dois importantes corolários. Em primeiro lugar, os/a sso devem estar centralmente envolvidos/as com o projeto de estratégias de reforma. Giroux (1988) já tinha chamado nossa atenção para a idéia de que as professores/as são intelectuais. Existe, certamente, capacidade para o pensamento estratégico entre os/as professores/as que trabalham com as crianças pobres. O Programa de Escolas em Desvantagem na Austrália, em parte devido a seu projeto descentralizados, encorajou o crescimento de uma rede ativista que incluía sindicatos de professores e um grupo de professores/as experiências de trabalho em áreas pobres. Essa rede informal, PG.35

mais do que qualquer instituição formal, serviu para a transmissão da experiência e proporcionou o fórum para um intenso debate sobre políticas públicas (White e Johnston, 1993). Tais grupos também existem em outros países. Um exemplo notável é o grupo da revista Our School/Our Selves, que tem levado os/as professores/as de todo Canadá a uma série de debates sobre reforma educacional. Uma abordagem inteligente de elaboração de políticas públicas consideraria tais grupos de professores/as como uma peça-chave. A segunda inferência é que uma agenda de reforma deve ocupar-se da configuração desta força de trabalho: o recrutamento, o treinamento, o aperfeiçoamento em serviço e os planos de carreira dos/as professores/as de escolas carentes. O relatório Coleman, deve-se dizer isso a seu favor, levantou essa questão e colheu dados sobre treinamento de professores/as, mas a questão quase desapareceu em discussões posteriores sobre grupos carentes. Em uma situação de recessão, na qual os orçamentos para a educação sofrem pressões, os fundos para preparação de professores/as, especialmente para o treinamento em serviço serão provavelmente cortados. Até certo ponto, os próprios programas compensatórios funcionam como educadores dos/as professores/as. Expandir sistematicamente sua capacidade de treinamento, sua capacidade para circular informação, para produzir conheci mento cooperativo e para transmitir um conhecimento especializado, constitui uma reforma relativamente barata, com efeitos potencialmente amplos. A força de trabalho não é estática. Famílias entram e saem do estado de pobreza e os/as professores/as entram e saem de escolas carentes. Por ambas as razões, as questões sobre pobreza atingem professores/as em outras partes do sistema educacional. Meu argumento é de que essas questões devem ser o tema principal nos treinamentos de professores principiantes e que a competência no trabalho com grupos carentes deve ser central à idéia de profissionalismo no ensino. OS POBRES E OS MENOS POBRES Os programas de educação compensatória direcionados baseiam-se em que são sempre, ate certo ponto, PG.36 arbitrárias e podem ser estigmatizantes— especialmente onde, como nos Estados Unidos, questões sobre a pobreza estão entre laçadas com uma volátil política racial. Programas especiais para grupos carentes são aceitos com maior facilidade onde as desigualdades podem ser vistas como acidentais ou como conseqüência da negligência. Não são aceitos tão facilmente onde as desigualdades são intencionais. Um recente caso judicial enfocou, nos Estados Unidos, o sistema escolar de Rockford como tendo uma forma velada de segregação racial — através de turmas e cronogramas segregados e de programas especiais — que subvertia os programas oficiais de dessegregação em um grau surpreendente (San Francisco Chronicle, 9 de novembro de 1993). Este é um exemplo óbvio, mas o racismo institucional não é, evidentemente, incomum (para um exemplo recente, ver Tomlinson, 1992). A questão vai além do racismo.

A desvantagem é sempre produzida através de mecanismos que também produzem vantagem. As instituições que fazem isso são geralmente defendidas por seus beneficiários. Os beneficiários da ordem educacional vigente são, numa perspectiva geral, os grupos com maior poder econômico e institucional, maior acesso aos meios de persuasão e melhor representação no governo e nas categorias profissionais. Ninguém deve imaginar que a mudança da educação em favor dos interesses do pobre possa estar livre de conflitos. O fato de que alguma mudança acabe ocorrendo se deve a dois fatores. Em primeiro lugar, os grupos em situação de vantagem estão longe de ser monolíticos. São divididos internamente (p. ex. profissionais versus capitalistas, elites regionais versus elites multinacionais, novos grupos versus grupos velhos). Estas divisões afetam as instâncias educacionais, como por exemplo, no apoio para gastos públicos em educação. Membros de grupos favorecidos diferem em seus julgamentos sobre interesses a curto e longo prazo e em sua disposição a assumir posições baseadas em alguma noção de bem comum. Suas visões de interesses a longo prazo são afetadas pelas pressões vindas de baixo. As elites dos Estados Unidos, como argumenta Domhoff (1990), concordaram com as reformas nos anos 60 e começo dos 70 —incluindo a educação compensatória — sob pressão de perturbações sociais vindas do PG.37 movimento dos Direitos Civis e de outros movimentos sociais. A atual reafirmação do conservadorismo nas políticas públicas americanos é uma conseqüência da diminuição dessa pressão. Em segundo lugar, os interesses dos pobres não estão isolados. Enfatizei anteriormente as evidências estatísticas de que os grupos em situação mais extrema de desvantagem fazem parte de um padrão mais amplo de exclusão de classe. Os mais pobres partilham um interesse na reforma educacional com um grupo mais amplo da classe trabalhadora mesmo de países muito ricos. Mas esse interesse comum não é automaticamente transformável em alguma espécie de aliança prática. O racismo, o regionalismo, o enfraquecimento do movimento sindical e o impacto da política educacional da Nova Direita, todas essas coisas, constituem um obstáculo. Programas com um alvo específico, não importa quão bem projetados e cheios de vitalidade, têm pouca perspectiva de obter maiores efeitos a menos que sejam parte de uma agenda mais ampla visando a justiça social na educação. Somente desse modo terão possibilidades de obter um sólido apoio político em favor de mudanças institucionais. O problema dos benefícios com alvo específico versus benefícios universais é bastante conhecido em debates sobre os pro gramas sociais (veja-se Skocpol, 1991). Os programas com alvo específicos estão sujeitos, não necessariamente à abolição, mas certamente a um nível de hostilidade tal que os mantém sem força. Em educação, a alternativa para os programas com um alvo específico não é o benefício universal — já temos isso na educação compulsória — mas sim uma reconstrução do programa universal para reverter os mecanismos de privilégios que operam dentro dela. A realização dessas mudanças institucionais exige forças sociais maiores do que as que geram os programas dirigidos à questão da pobreza. Afinal de contas, problemas

educacionais da educação compensatória são problemas políticos. Sua solução a longo prazo envolve alianças sociais, cujos contornos, na melhor das hipóteses, estão ainda emergindo. Contudo, o trabalho na educação pode ser uma das formas pelas quais essas alianças podem ser criadas. PG.38

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Sempre que me candidato a um financiamento governamental para pesquisa, exige-se de mim que assine um compromisso de que não farei experiências com seres humanos. Gostaria que os governos tivessem que fazer o mesmo.

Adam Przeworski, A Falácia Neoliberal

Em artigo recente (Costa, 1994), pude desenvolver uma avaliação de propostas que denominei “neo-reformadoras” para a educação, à luz de reflexões sobre o estado e sua crise contemporânea. No presente trabalho proponho-me a acrescentar algumas reflexões trazidas de leituras sobre as proposições em voga de ajuste econômico, reformas estruturais e arranjos políticos, para o mundo subdesenvolvido, em particular a América Latina. Não e trata, assim, de um trabalho completamente original. Observações que podem ser encontradas nele estão contidas no artigo acima mencionado. No entanto, parece-me que reflete uma busca de compreensão mais precisa do ponto. No intervalo de oito meses entre a produção dos artigos, o Brasil teve um novo governo eleito, reformas de peso têm sido anunciadas ou mesmo desencadeadas e fatos novos no campo internacional — como a bancarrota mexicana — levantaram novos aspectos do problema. Entre outros, estes elementos contribuíram para tornar o assunto mais emergente. Infelizmente, as questões relacionadas à educação continuam a ocupar lugar absolutamente secundário na produção dos campos da sociologia e da política. Assim, o raciocínio de cunho econômico tem encontrado terreno fértil para imperar tranqüilo nas pautas de discussão a cerca da política educacional. PG.43 Conforme pretendo desfiar mais adiante, este raciocínio tem como característica contemporânea a forte influência que recebe de um modelo geral de análise gerado em alguns grandes centros intelectuais. Tal modelo tem como que sufocado alternativas de pensar respostas globais para as dificuldades dos países mais pobres. Sob a couraça de um forte determinismo, um consenso tem se forjado em setores acadêmicos e, principalmente, entre policy makers: as reformas são óbvias e indispensáveis, sobretudo óbvias. A questão é avaliar suas diferenças de ritmo e alcance, suas conseqüências no terreno da política institucional, os processos políticos e sociais que as permitem ser desencadeadas, ou antepõem óbices a que se desenvolvam. O que rodeia as reformas/ajustes está no centro das atenções. Bem menos se discute acerca da natureza destas reformas e, principalmente, de suas alternativas possíveis. As forças que têm se oposto às reformas propostas — ou impostas — a partir dos organismos financeiros internacionais estão numa defensiva não apenas política, mas, também, intelectual. Esta situação parece estar associada a uma importante migração de pensadores não conservadores para posições, no mínimo, simpáticas a abordagens que podem ser classificadas como “neoliberais”. Parte deste movimento talvez possa ser compreendido, do ponto de vista de suas motivações estritamente teóricas, como decorrência de modelos gerais de pensamento pregressos, já fortemente marcados pelo que denomino economicismo.

Com efeito, as análises e propostas que serão aqui criticadas são articuladas em torno de concepções onde as noções de estado e de sociedade têm evidente afinidade com o ideário econômico liberal. Destaco o “econômico”, pois esta abordagem é sensívelmente diferenciada de um liberalismo de corte mais político ou filosófico e, de meu ponto de vista, algumas vezes até mesmo contraposta a este último. É reconhecida a existência de uma certa afinidade de fundo Penso haver uma distinção importante no interior de concepções genericamente enquadradas como liberais. Apenas para citar dois pensadores contemporâneos, Popper e Hayek podem ser colocados em posições bem distintas no interior do liberalismo. No primeiro, a ênfase na liberdade, na garantia dos direitos individuais contra a capacidade opressiva do monopólio organizado da força, não passa pelo endeusamento do mercado e suas relações competitivas, como no segundo. 1

PG.44 entre os pensamentos marxista e liberal, no que diz respeito à compreensão da esfera das relações econômicas como preponderante na humanidade, expressa na idéia do indivíduo maximiza dor que constitui a matriz destes pensamentos. Também a noção do estado como ameaça permanente está presente em ambas as correntes². Numa, é tido como instrumento de dominação de classe. Na outra, como ameaça latente à realização plena das relações mercantis, que seriam da natureza do ser humano. Talvez, nesta proximidade original resida a atração exercida sobre alguns ‘pensadores que anteriormente se contrapunham, por exemplo, à idéia de que o funcionamento de um sistema educacional pudesse ser otimizado com o estado assumindo um papel bem mais secundário que o atual, deixando ao jogo do mercado a incumbência de alcançar realizações para as quais a gestão estatal não tem sido efetiva. O ponto de partida e, em parte, a força desta corrente neo-reformista estão na calamidade em que os sistemas escolares públicos encontram-se em países como o Brasil. A argumentação poderosa: após décadas de gestão estatal, o que se encontra é um sistema escolar sofrível em todos os termos, espelho de uma sociedade absurdamente desigual, onde nichos de razoável qualidade canalizam recursos públicos desproporcionais para o atendimento de estratos já bem aquinhoados da sociedade. Além disso, farta politicagem deforma o caráter presumivelmente democrático do serviço público, beneficiando setores intermediários do sistema educacional (burocratas), em conluio com o uso político menor de um sistema gigantesco e tão fundamental para as famílias em geral. Em suma, inépcia, corrupção, clientelismo, favorecimento, mau uso de recursos públicos, refração a controles democráticos, eis o quadro presente da escola no Brasil, a grosso modo. Por que, então, insistir na receita? Melhor não seria experimentar uma estrutura alternativa a um sistema educacional unanimemente reconhecido como fracassado? 2

Para uma muito interessante fábula liberal sobre a origem do estado, ver Olson (1993).

O Brasil é um caso exemplar, pois a discrepância entre o desenvolvimento alcançado em algumas áreas e a ruína do sistema escolar, refletida nos padrões de escolaridade vergonhosos encontrados na população, seria um exemplo gritante 9

da incapacidade do estado responder minimamente a anseios e necessidades educacionais.

PG.45 Responder a estas perguntas não é simples, pois implica tratá-las de um ponto de vista histórico, buscando remontar os processos pelos quais chegamos ao ponto atual. Porém, este recuperar histórico necessita das ferramentas da sociologia, para que possa identificar a trajetória dos atores envolvidos. Também, não basta tratar a educação isoladamente. E necessário reconhecer sua imbricação com o conjunto das políticas do estado, em particular sua intervenção na chamada área social. REFRESCANDO A MEMÓRIA Os ventos da democratização, do início dos anos 80, alimentaram insondáveis esperanças. Algumas figuras expressivas do pensamento educacional progressista dedicaram-se a experiências de gestão de redes escolares em várias partes do país e alarmaram-se com o que encontraram internamente. O resultado que se seguiu foi sem dúvida desanimador. Tendências anteriores não foram revertidas e mesmo, em alguns casos, agravaram-se. A década de 80 e o início dos anos 90 não foram floridos, especial mente para a educação brasileira. Não apenas para o setor educacional, mas o desmantelamento das máquinas estatais que deveriam gerir políticas de saúde, habitação, assistência, foi alarmante. Ainda que os indicadores censitários não tenham, ainda, apontado decréscimo em padrões de qualidade de vida, isto é francamente esperado para levanta mentos que retratem os efeitos da virada da década de 80 para a de 90. Inúmeros autores que se dedicam ao estudo do Terceiro Mundo neste período observam uma tendência quase uniforme à piora nos indicadores relativos a uma parcela considerável da população — seus estratos inferiores. Também são expressivos desse momento indícios de processos dolorosos de desagregação social, em como, por exemplo, a Colômbia e alguns países africanos, e de descrença crescente no jogo democrático institucional, como, por exemplo, o apoio ao golpe de Fujimori, no Peru, faz supor. Em suma, não são pequenas as frustrações acumuladas com O Brasil não deve ser excluído deste rol, ao menos em algumas regiões e alguns setores sociais longamente penalizados pela decadência econômica e concentração de riqueza. 4

PG.46 as experiências de redemocratização que varreram o mundo subdesenvolvido nos tempos recentes. Na educação, em particular, as políticas de esvaziamento das máquinas públicas e a grave crise de financiamento de algumas atividades estatais tiveram conseqüências severas e, por sua concomitância com a redemocratização, são difíceis de terem seus processos percebidos separadamente. Para uma considerável parcela de pessoas, o período de passagem para ordens institucionais mais democráticas foi sinônimo de empobrecimento e dificuldades de toda sorte. Em especial, para os que dependem dos sistemas públicos de

ensino a situação é mais dramática e um mercado de trabalho reduzido pela recessão tende a ser mais seletivo, demandando maiores credenciais escolares. Assim, enquanto aumentam potencialmente as aspirações por mais e melhor escolaridade, a escola pública sofre os efeitos das escolhas pelo esvaziamento do estado, ou da simples crise de financiamento de suas atividades. Frente a isso, a necessidade de mudar profundamente torna-se imperativa. Portanto, o cenário para clamores pró-reforma está dado. Não é à toa que, em períodos eleitorais, a educação assume papel de grande destaque (Costa, 1993). Há portanto, uma conjugação de fatores que fortalecem discursos como os aqui criticados. A NEO-REFORMA EDUCACIONAL E SUA SUSTENTAÇÃO TEÓRICA Na verdade, denúncias e anseios por reformas no sistema escolar nada têm de novo. A novidade vem da rejeição de abordagens que tinham como princípio o caráter público do ensino, como único caminho de fato democrático e solução ampla para os grandes problemas educacionais do país. Enquanto alguns insistiam em apontar a continuidade de mecanismos e grupos no poder herdados do período autoritário como fonte principal da degeneração das máquinas de políticas sociais, outros passaram a considerar este discurso anacrônico e desgastado, passando a assinalar o próprio modelo de gestão estatal como incorrigível. A influência das experiências de alguns setores, antes marginalizados, na gestão de redes escolares não pode ter seu papel minimizado. No entanto, o que, via de regra, não se põe a claro PG.47 é que raramente alguma destas experiências foi desenvolvida no interior de governos que estivessem, no conjunto, comprometidos com mudanças mais profundas na gestão e condução das políticas públicas. De maneira geral, o que se passou no processo de redemocratização foi um reflexo daquilo que se convencionou chamar transição sem ruptura: ascensão ao poder de grupos oposicionistas associados a outros oriundos dos esquemas de poder anteriores, que terminaram por herdar-lhes também boa parte de seus métodos eivados de favorecimentos e relações fisiológicas, clientelistas e corruptas de toda sorte. O fato de não ter havido ruptura com o passado recente, consubstanciado essencialmente na avalanche de vitórias de coligações peemedebistas que varreu o país pós82 (principalmente em 86), tem vínculos explicativos possíveis com a “desilusão” de alguns com as possibilidades do estado. Uma breve olhada em trabalhos que resgatam nossa história educacional recente (Cunha, 1991, por exemplo) mostra claramente como a educação foi objeto de políticas que não romperam substancialmente com seus processos anteriores. As políticas educacionais dos governos oposicionistas foram, de fato, frustrantes. Mas daí a associá-las com uma incapacidade em geral do estado vai uma distância considerável. Talvez, na própria natureza das coligações no poder, encontrem-se

explicações mais sólidas que a simples demonização do estado. Parte dos desiludidos com a estrutura estatal, de hoje, é formada por aqueles que acreditaram na virtude de coligações no interior das quais ocuparam papéis pouco mais que decorativos. Ou não conhecemos a história de deixar a educação e, às vezes, a saúde para a esquerda, concentrando em mãos conservadoras e continuístas os núcleos de decisão política e de gestão financeira do governo? Optar por estas coligações não pode ser condenado por princípio5 . Ninguém é capaz de afirmar que nosso presente seria muito melhor se este modelo de transição não fosse adotado. Afinal, a condicional “se tivesse sido diferente” só tem valor hipotético, jamais passível de verificação. Um caminho de embates mais acirrados seria uma possibilidade histórica que, no entanto, É necessário tomar cuidado para não dar a impressão que rejeito coligações políticas por princípio, o que de fato não faço. 5

PG.48 não se efetuou. O que pretendo aqui refutar são as conseqüências políticas e teóricas derivadas destas opções pregressas. Deve-se, porém, seguir com cautela. A experiência de atores sociais não pode ser absolutizada como fonte explicativa. Diversos autores chamam a atenção para o caráter mundial da crise que se abate, principalmente, sobre os países menos desenvolvidos ao I e na continuidade dos anos 80. Este é um processo que constrange fortemente as políticas nacionais) reduzindo consideravelmente o leque de opções disponíveis. E, também, um fator que, por sua força, deve temperar a argumentação anterior, muito centrada na responsabilidade das coligações no poder e nas políticas de mudança/ continuidade que adotaram. Não creio ser possível, em qualquer modelo compreensivo, atribuir peso mo nocausal a algum dos fatores. Por isso, parece-me mais razoável buscar na conjugação das opções de políticas adotadas com as restrições e pressões advindas da crise internacional, elementos múltiplos que nos permitam compreender a situação presente. É possível que os proponentes das reformas inspiradas no neoliberalismo, para o setor educacional, compartilhem de uma abordagem desenvolvida por diversos autores (Haggard e Kaufman, Nelson, Kahler). Segundo este enfoque, a onda de redemocratização (ou simplesmente democratização) que se alastra pelo Terceiro Mundo a partir do início da década de 80 corre mais ou menos em paralelo com o acirramento de uma crise mundial de contornos bastantes graves e que já se manifestava em meados dos anos 70. Tendo construído seus processos de desenvolvimento recente ancorados na fartura de capitais disponíveis no mercado internacional num momento anterior, o que lhes permitiu passar por surtos de crescimento e modernização conduzidos pelo estado, os países endividados sentiram fortemente quando mudanças internas no primeiro mundo elevaram acentuadamente a taxa de juros real e, simultaneamente, produziram, pelo caminho recessivo adotado, uma forte desvalorização nos preços internacionais das commoditties com as quais procuravam equilibrar suas balanças de pagamentos. A conseqüência foi o endividamento galopante, a inadimplência, em suma, a incapacidade de saldar as Deve-se excluir deste modelo genérico os países do 3° mundo exportadores da commoditty que realmente se valorizou, o petróleo. 6

PG.49 dívidas contraídas. Cresce, assim, a força com que os organismos financeiros internacionais, essencialmente dispositivos sob controle dos credores, passam a traçar diretrizes ou mesmo intervir na política interna dos países endividados. Banco Mundial e FMI assumem lugar de destaque das manchetes de jornais cotidianas. Grosseiramente resumida, a crise da virada 70/80 é identificada, no primeiro mundo, como uma crise dos Welfare States, no lado de baixo da linha do Equador, como derrocada do modelo de estado desenvolvimentista, condutor de políticas de industrialização/substituição de importações. Acuados em seus limites de ação, os governos passam a adotar estratégias que variam da implantação literal de planos de ajuste econômico “sugeridos” pelos credores e seus representantes (Chile, por exemplo), a uma frontal rejeição das imposições e ingerências externas, bem como da própria dívida em si (a moratória mexicana de 1982). A gama de variações entre esses dois pólos é interminável em suas nuanças. O importante é que qualquer análise que se faça tem de levar em consideração o peso dos constrangimentos externos na deliberação das políticas internas. O poder dos centros financeiros sobre os devedores amplia-se na razão direta da deterioração dos termos de troca para estes últimos e da dependência cada vez mais acentuada de “favores” frente a débitos que não podem ser honrados. Simultaneamente, por razões que estão longe das pretensões deste artigo explicar, os governos de países sede das instituições financeiras passam aceleradamente a mãos de coligações conservadoras, fundamentalmente críticas dos arranjos compensatórios dos Welfare States. As respostas para a crise consubstanciadas em políticas econômicas ortodoxas assumem preponderância cada vez maior. Acompanha este processo o avanço da corrente teórica posteriormente identificada como neoliberal — cujo prefixo neo vem do paradoxo entre a preconização de esvaziamento da esfera de ingerência do estado sobre o mercado e a necessidade de que um estado forte, altamente interventor, desencadeie tal processo. É básica a atribuição de um peso considerável a este fator imaterial — a ascensão do pensamento neoliberal —nos movi mentos de reforma do estado/ajuste econômico que entram em pauta nos anos 80. Ele ajuda a compreender algumas propostas PG.50 de reforma educacional em voga. Não se trata exatamente de um programa, por mais que algumas medidas centrais do receituário sejam bem padronizadas. Antes, é um conjunto de princípios oriundos do pressuposto básico de que os mecanismos de freio das energias do mercado tendem a produzir efeitos nefastos sobre a sociedade, deteriorando sua capacidade de seguir crescendo e tolhendo a iniciativa dos agentes econômicos, subjugados aos procedimentos monopolísticos que o estado necessariamente produz. As compensações aos resultados do livre jogo da sociedade mercado) tenderiam a inibir as iniciativas empreendedoras dos indivíduos e a forjar máquinas estatais descoladas de suas finalidades precípuas. As conseqüências de tal arranjo seriam inversas aos objetivos iniciais: estagnação, monopólios, desigualdade cristalizada. Também as estratégias de crescimento

econômico calcadas na atividade estatal, por sua característica fortemente imbricada com a política, padeceriam da ausência da racionalidade de econômica que caracteriza a ação no jogo de mercado. O caminho, portanto, para a superação da crise é reduzir a esfera de influência estatal, por meio da desregulamentação, privatização de empresas públicas, terceirização de serviços prestados. No que diz respeito aos países que sofrem a crise da dívida externa, os remédios devem ter um sabor inicial mais amargo, associados à necessidade de estabilizar moedas corroídas por desequilíbrios financeiros prolongados. Com este pano de fundo, constrói-se paulatinamente uma v hegemonia que faz com que, mesmo para autores reticentes quanto aos ajustes desencadeados, se forme uma quase unanimidade em torno do jargão composto de termos tais como: enxugamento, crise, recessão, medidas duras, privatização, desregulamentação, e outras de significado quase sempre sombrio. Uma Breve passada por trabalhos baseados em pesquisas e levantamento: empíricos sobre o tema, mostra a força de tal enfoque. Há uma ofensiva de um pensamento conservador, impregnando formas e visões de mundo que não poderiam ser a ele associadas num passado recente. Este fato é sobejamente reconhecido, por exemplo na teoria econômica, com repercussões acentuadas na definição das policies desenvolvidas em diferentes partes do mundo. Assim, autores como Haggard e Kaufman, bem como Nelson, Kahler, Stallings e outros são unânimes ao apontar que a PG.51 crítica aos arranjos consolidados no que se definiu genericamente no pós-guerra como Welfare State teve um papel poderoso na virada dos anos 70 para os 80. As alcunhas são várias: neo-ortodoxia, conservadorismo, neoliberalismo, ortodoxia econômica, aproximação de monetarismo e teoria econômica neoclássica. Em suma, há inúmeras tentativas de “amarrar o bicho”. Muitas, porém, esbarram em dificuldades oriundas da própria situação que apontam: a ascendência do pensamento conservador. Vários trabalhos de destaque, que se debruçam sobre a avalanche neo- conservadora, também se apóiam em argumentos empunhados por seus supostos antagonistas. Não tenho intenção, nem mesmo condições, de polemizar com grandes estudos comparativos cross-national que constroem-se sobre farta e impressionante documentação levantada nas últimas décadas. Via de regra, os que tive acesso, demonstram esforços absolutamente indispensáveis para compreender o qua dro atual. No entanto, o que me chamou atenção foi algo que já havia apontado no artigo anterior e que ficou mais claro agora. Trata-se do quase alijamento do tema da desigualdade, como problema maior e raiz possível para muitas de nossas mazelas. Este é, em meu ponto de vista, o principal elemento que caracteriza o avanço de uma vaga conservadora, oriunda do pensamento econômico, que se espraia também por propostas de política educacional. Além disso, as medidas de estabilização, com seu decorrente “vale recessivo”, as reformas, que implicam em redução acentuada do papel do estado, são tomadas como dados, necessidades objetivas, não como objeto de avaliação. De forma diferente do passado, não necessariamente as pro postas são trazidas por personagens reconhecidas como “reacionárias”. Muito pelo contrário, um elemento de novidade está na busca de caracterizar como conservadores os projetos e discursos que defendam políticas conduzidas por um estado preocupado em corrigir as desigualdades sociais. A ofensiva se dá sob condições sócio-políticas consideravelmente adversas para os

defensores de que a desigualdade é o problema central de nossas sociedades. As próprias bases culturais sobre as quais tal pensa mento se estabeleceu parecem esvanecer, num mundo cada vez mais bombardeado pelas idéias de competitividade, soberania do mercado e esvaziamento da intervenção dos estados nacionais. PG.52 Por detrás desta “novidade”, no entanto, há princípios e idéias que nada têm de novo Porem, esta constatação não e suficiente para desconsiderá-los e, sobretudo, as condições originais nas quais operam. A arrumação dos argumentos, a fraseologia na qual e apresentam, os protagonistas que os defendem, as coalizões políticas que os sustentam, são elementos realmente novos. Uma farta bibliografia recente tem procurado refletir a fundo sobre a questão. Uma distinção no interior desta discussão pode ser útil. Enquanto as posições mais influenciadas pelo ideário econômico procuram tratar das reformas/ ajustes como se fossem opções análises da sociologia e da ciência política buscam ressaltar o caráter essencialmente político das opções realizadas. Obviamente, creio que esta última é uma melhor forma de abordagem. Porém, no corpo das disputas que se estabelecem, joga um papel importante na retórica neoliberal o ataque aos conflitos característicos da atividade política, como um elemento irracional que perturba as opções técnicas corretas a serem adotadas. Não é gratuita a observação de Haggard e Kaufman (1992), que destacam —uma unanimidade observada em sua coletânea — o “sucesso” na implantação das reformas como associado à presteza, firmeza, mesmo inflexibilidade, com que foram desencadeadas aos primeiros sintomas detectados. Uma característica importante associada a este comportamento é o isolamento de um segmento tecnocrático, protegido das disputas políticas pela adesão do núcleo decisório as propostas de ajuste Tal grupo de funcionários especiais” é oriundo de escolas de formação, freqüentemente nos EUA, onde a doutrina neoliberal dispõe de grande influência. Esta pretensa isenção das decisões interessadas, e caracterizam a escolha política, reflete-se na presunção de que medidas “técnicas” corresponderiam a interesses universais, contrariando os particularismos dos grupos organizados. A idéia é basicamente, que há um problema de ação coletiva: as reformas beneficiam a todos, mas o problema é desencadeá-las, contornando problema da carona. O isolamento7 de um grupo tecnocrático 7

Aí residem, por exemplo, as propostas de independência dos bancos centrais aos: governos de seus países. Com esta estratégia, o que se pretende é assegurar a continuidade da gestão financeira neo-reformista, independente de: rejeições que recebam nas urnas.

PG. 53 é fundamental para isto. Conforme veremos adiante, este — a perniciosidade da política — é um dos principais argumentos antiestatistas dos proponentes da neoreforma educacional.

É, por outro lado, um tanto desconcertante observar como a educação tem ocupado papel de destaque nos discursos de atores tão pouco afeitos ao tema, principalmente pela característica de que esta ocupa um papel instrumental em suas argumentações. Freqüentemente podem ser encontrados, em periódicos da grande imprensa, declarações e artigos de destacados empresários, economistas, “técnicos” em geral, afirmando da necessidade premente de uma reviravolta de nosso quadro escolar. O PENSAMENTO EDUCACIONAL E AS REFORMAS 8 Conforme tentarei demonstrar mais adiante, algumas posições “neo-reformadoras” da educação acreditam poder justificar e orientar a atividade educacional, a partir de requisitos e justificativas econômicas e de estratégias consoantes a supostas tendências inexoráveis do mundo contemporâneo. Uma característica marcante desta argumentação reside na defesa de que dilemas e confrontos históricos sobre política educacional estariam superados pela nova ordem internacional, a nova configuração da produção e dos mercados globalizados, pelos novos requisitos emanados da sociedade pós-moderna emergente. Assim, o título de um dos livros centralmente analisados aqui — Cidadania e competitividade: os desafios educacionais do terceiro milênio (Melio, 1993) sintetiza uma corrente que, de maneira resumida, dá como encerrado (teoricamente) o divórcio entre aspirações educacionais de grandes massas e os interesses cumulativos e reprodutivos das classes dominantes sob o capitalismo, tão característico das críticas aos modelos educacionais do passado recente. Agora, em consonância com uma nova era que se inaugura, empresas e seus potenciais empregados, governantes A partir daqui, alguns trechos são reproduzidos do artigo anterior que mencione (Costa, 1994). Há, porem, algumas mudanças de conteúdo e forma introduzidas. 8

Adoto este termo — pós-moderno — sem que isto signifique adesão aos conceitos e análises que implica. Trata-se apenas de uma expressão que representa uma determinada situação pouco clara, como o próprio termo “pós’ exprime, que atravessa o mundo contemporâneo. 9

PG.54 e eleitores, elites e massas estariam — do ponto de vista lógico — alinhados no que diz respeito à necessidade de uma rede escolar universalmente acessível, eficiente, democratizante. Há interpretações neste sentido que destacam aspectos políticos e sociológicos, mas, principalmente, justificativas com base em razões econômicas prevalecem. Freqüentemente, as bases econômicas para as propostas neo-reformadoras da educação são tomadas como dadas, como única alternativa disponível, refletindo um universo intelectual já mencionado anteriormente. Por tratar exatamente, de forma bem explícita, das demandas que se apresentam sobre os sistemas educacionais a partir da nova configuração na esfera econômica — ainda que não esteja necessariamente alinhado com as propostas de política educacional neo-reformadoras — o trabalho de Paiva (1990) é uma boa porta e entrada na discussão. NOVA ORDEM E REFORMA ESCOLAR

Por se tratar de um trabalho centrado em alterações que se operam na esfera da organização do trabalho, as inferências para o campo da política devem ser feitas com cautela. Entretanto, tal não pode deixar de ser feito, pois a própria autora deriva conseqüências políticas de seu raciocínio essencialmente econômico, numa abordagem claramente influenciada pelo pensamento marxista. Tratando com bastante apuro a temática das “novas tecnologias”, da nova ordem social concomitante a elas e as transformações que se operam na esfera educacional, Paiva recoloca dilemas, perplexidades e possíveis alternativas para o c educacional. Retrata o ímpeto e a abrangência com que as alterações na organização do trabalho vem se tornando um objeto especial de atenção, ajudando-nos a compreender porque o discurso que propõe reformas educacionais atreladas à modernização 10 Mais adiante procurarei tratar do sentido atribuído ao termo “democratizante”, para esta corrente. 11 Em trabalho posterior (“O novo paradigma de desenvolvimento: educação, cidadania e trabalho”, Educação e Sociedade, 45, 1993), Paiva parece deixar claro seu desconforto quanto às perspectivas apontadas pelas práticas neoliberais. Mantém, contudo, o enfoque central sobre a lógica econômica da educação.

PG.55 econômica ganha tanto peso e serve de justificativa a tantas sugestões de políticas para a educação. Segundo a autora, a partir dos anos 70, manifestam-se quatro teses principais sobre as tendências de formação da mão de obra, sob o capitalismo. A primeira afirma existir uma tendência genérica à desqualificação progressiva em termos absolutos e relativos. A segunda aponta a requalificação média da força de trabalho enquanto processo em marcha. Em terceiro lugar, surge a tese da polarização das qualificações, que identifica a existência de maior qualificação de um pequeno contingente da força de trabalho, ficando a grande massa alijada deste processo. Por fim, aparece a tese da qualificação absoluta e da desqualificação relativa, segundo a qual a elevação da qualificação média encobriria um processo de desqualificação relativa, tomando em conta o cresci mento mais acelerado dos conhecimentos socialmente disponíveis. As tendências claras que hoje se apresentam já estariam sendo percebidas em pesquisas de alguns anos atrás: flexibilização, ênfase na melhor qualidade de produtos, produção em séries menores e menos standartizadas, são rumos apontados por essas pesquisas que implicam em mudanças nos requisitos de qualificação da força de trabalho. A tendência de enfraquecimento dos métodos de produção em massa, característicos do fordismo, implicam em novas formas de conhecimento necessárias para a força de trabalho. Resumidamente, ao invés do trabalho cada vez mais especializado e restrito, os requisitos agora estariam voltados para uma qualificação mais universal, conversível, flexível. De manda-se um trabalhador com maior capacidade de iniciativa, mais integrado e apto a trabalhar em grupo. Tais constatações compõem um quadro prospectivo onde concentrar-se-ão as atividades num conjunto menor de profissionais, que dependem, por sua vez, de conhecimentos simultaneamente específicos e genéricos, no que diz respeito às capacidades interativas e abstratas, como o uso de linguagem matemática. Esta seria uma capacidade de trabalho mais flexível, ou adaptativa. No outro extremo, estão os ex-trabalhadores substituídos pela automação e pelas novas formas de organização do trabalho. O sentido

geral das mudanças observadas é, contudo, positivo. Aos “formuladores da política educacional”, a nova situação ajudaria a alertar PG.56 e somar forças “na direção da formação básica única, geral, abrangente e abstrata.” É interessante anotar o otimismo com que a autora avalia as transformações observadas. Os efeitos previsivelmente tenebrosos de um padrão de desenvolvimento liberador de mão de obra, dadas as relações sociais constituídas, não são desconsiderados. Porém, em nenhum momento a política educacional é pensada como passível de ser articulada a outro projeto de desenvolvimento social. A razão de tal otimismo encontra-se em um raciocínio que vê na revolução tecnológica em curso o alvorecer da profecia marxiana da superação do reino da necessidade. As mudanças profundas na base técnica e na organização da esfera produtiva proporcionariam, assim, o vislumbrar de uma nova era, preparada em grande parte pela difusão de capacidades cognitivas qualitativamente superiores entre os cidadãos. Tais considerações sintetizam o que podemos classificar como retorno do pensamento educacional — ou de parte considerável dele — a um eixo economicista ¹³, trazendo de volta temáticas consagradas sob a denominação genérica de teoria do capital humano, mas que encontravam-se marginalizadas nos últimos 20 anos. Conforme anotado anteriormente, o discurso o pode ser imediatamente associado a posições conservadoras. Afinal, tem como defensores personagens tradicionalmente associadas a preocupações democratizantes. Piore e Sabel (1984) corroboram, a grosso modo, as perspectivas apontadas por Paiva O que chamam “modo craft” de produção enquadra-se perfeitamente nos resultados de pesquisas mencionados por ela. Atentam, ainda para uma dimensão que pode ser traduzida em algumas críticas aos sistemas escolares a inadequação dos aparatos institucionais gestados para o sistema de produção de massas, frente ao modelo emergente. Trilham este caminho, em parte, autores o Tedesco (1990) e Barreto (1990). Barreto, numa avaliação da trajetória relativamente recente ¹²Ver Abramo (1990) para uma idéia de como o processo estaria se dando no em seu início. Ela menciona pesquisas que demonstram como as novas tecnologias valorizam algumas atividades, mas dispensam outras altamente como os ferramenteiros na indústria automobilística. ¹³A questão da oscilação da sociologia da educação entre um polo culturalista e outro economicista, ver Dandurand e Ollivier (1991).

PG.57 que ampliou e deu formato ao atual sistema educacional brasileiro, aponta mazelas profundas do modelo implantado. Basicamente, a autora aponta um processo de polarização do sistema escolar que foi capaz de forjar elites razoavelmente atualizadas em termos internacionais, em algumas áreas de conhecimento, paralelamente a uma profunda exclusão dos que já ocupavam as posições inferiores na estratificação social. A ação estatal seria capaz de, concentrando recursos, distribuí-los de maneira desigual, beneficiando “sobretudo as classes médias e alguns segmentos dos trabalhadores assalariados que, incorporados de forma subordinada ao projeto hegemônico, ofereceram sustentação política ao governo.” Este padrão, contudo, estaria superado, posto que não mais condiz com os formatos de

competitividade globalizada. Tal retrato, com possíveis retoques, expressivo de nossa trajetória recente, enquadra-se na insatisfação generalizada com a condução estatal da política educacional brasileira. Tedesco faz uma análise que desenvolve aspectos levantados por Barreto: a apropriação dos benefícios produzidos a partir aparatos educacionais públicos por alguns grupos sociais “privilegiados”. E notável a semelhança com a tese de Simon (1981, apud Draibe, 1988) ao atacar as políticas sociais desencadeadas pelo estado-protetor. E o chamado “efeito perverso”. A perversidade estaria em que os setores sociais menos organizados e influentes terminariam por arcar com a sustentação de políticas sociais voltadas para aqueles que não necessitariam delas. Esta tese não está ausente também nos trabalhos de avaliação das reformas neoliberais no terceiro mundo, especialmente quando se trata da implantação de políticas voltadas para minorar os sofrimentos causados pelo choque “inicial” das medidas. O raciocínio básico diz que os setores com maior capacidade de pressão política (i.e. trabalhadores organizados) tendem a se apropriar de benefícios que seriam destinados aos menos influentes. Isto dificultaria, ou mesmo impediria a implementação de tais políticas, pois, se ampliadas em seu alcance social, subverteriam os princípios restritivos dos ajustes. Na educação esta tese manifesta-se sempre que entra em discussão o financiamento do ensino superior. Por não ser objeto deste artigo, deixo de apresentar algumas divergências d interpretação histórica quanto ao trabalho citado. 14

PG.58 Tedesco expressa posições que têm grande passagem numa perspectiva “realista” de análise da política educacional. A política de redução de investimentos na educação ou na área social é tomada como algo dado, irremovível. Assim, funciona uma lógica do “cobertor curto” onde o fundamental é definir que parte do corpo deixar descoberta de forma a suportar melhor o frio. A colocação das pretensas dicotomias reais com que se depara a educação implica numa aceitação tácita da lógica que as produziu. Universidade X escola básica, ou salários X investimentos em modernização, são, sob esta ótica, escolhas bipolares, a partir da consideração de que o atendimento a ambos os termos da contra posição implica numa contradição lógica e financeira, dado que a experiência já teria demonstrado não haver recursos para tal. A escassez de recursos constrangeria, também, a educação a escolhas trágicas, pelas características particulares das estruturas estatais que esta atividade demanda. O peso das agências educacionais públicas seria tão grande — numericamente falando — que qualquer alteração para mais em seus dispêndios tende a abalar as finanças já combalidas do estado. Este fator reduz a capacidade das agências educacionais na disputa intra-governamental por recursos públicos. Adentrando o terreno das discussões sobre as perspectivas futuras de nossa complicada situação educacional, Tedesco retorna à questão do Estado, para afirmar que o problema atual não é mais garantir maior ou menor atividade estatal, mas deslocar o eixo das atenções para os resultados do sistema escolar. Obvia mente, entre os “resultados” encontra-se a preocupação com a adequação aos novos requisitos que emanam do mundo do trabalho. Para Tedesco, a crítica à teoria do capital humano, sistemática durante os últimos anos, esvazia lamentavelmente o poder de convencimento desta posição. Nos países do Primeiro Mundo, contudo, generaliza-se a convicção de que há uma relação

positiva entre educação e desenvolvimento, frente às novas formas de trabalho e a um mercado internacional crescentemente competitivo. O setor privado, inclusive, investiria maciçamente na produção de conhecimentos. As demandas sobre o Estado estariam mais colocadas em uma educação básica formativa que permita posteriores desempenhos melhores na produção e no consumo de bens e serviços. Nestes países, as orientações seriam no sentido da PG.59 descentralização e da flexibilização. Sua posição é de que não se devem descartar como inválidas as articulações teóricas entre educação e desenvolvimento, da mesma forma que não se deve deixar de questionar as convicções intransigentes em defesa da escola pública. Dando continuidade à perspectiva até aqui exposta, uma vertente de abordagem da problemática educacional se destaca a partir de meados de 1990, no Brasil. Com destacada repercussão em órgãos de imprensa, a argumentação baseia-se também em aspectos econômicos. Segundo esses pensadores, haveria um esgotamento do modelo de desenvolvimento que vigiu no país até os anos 80, com a conseqüente impossibilidade de sobrevivência dos padrões educacionais brasileiros, frente a novos requisitos colocados pela ordem econômica mundial. Ribeiro e Schwartzman (1990), desdobrando evidências apontadas por Moura Castro, advertem: O desenvolvimento brasileiro até hoje se sustentou nas vantagens relativas de nossa mãode-obra barata e não-qualificada e da abundância de matérias-primas, o que era compatível com uma população ignorante e uma pequena elite educada. Isto terminou. A competitividade, a eficiência e a criatividade da população como um todo são agora indispensáveis em um mundo onde a universalização da economia e da tecnologia é inevitável. No lançamento do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade, em novembro de 1991, o próprio Presidente da República (Collor de Mello) afirmava a urgência de uma “revolução educacional” que permitisse ao país atingir patamares de competitividade mais elevados no mercado internacional. Imersas nessa onda, as denúncias quanto à falência do sistema de ensino básico no país passaram a ancorar-se nos imperativos da modernidade a se perseguir conforme os ditames da nova ordem econômica. Além de Ribeiro e Schwartzman, para exemplificar, também Castro (1990), Oliveira (1990) e Serra (1991) obtiveram espaço para suas reflexões (na grande imprensa), que associam fortemente a necessidade de grandes transformações no PG.60 quadro educacional brasileiro com requisitos gerados por um c econômico desejável, ou inevitável. As comparações com os chamados “tigres asiáticos” se sucedem. Nelas, é ressaltado o grande incremento da escolaridade básica e média, de tal forma que fica implícita a atribuição dos saltos econômicos aos “saltos educacionais” operados nesses países. A suposta iniqüidade de uma situação em que o governo Federal conduz a maior parte de seus dispêndios educacionais para 3ºgrau também é ressaltada, fortalecendo o coro dos que

propugnam uma retirada parcial do poder público do ensino superior. Posteriormente, Ribeiro (1993) e Schwartzman (1991) continuam desenvolvendo estas concepções. Contudo, é no trabalho de Mello (1993 e 1992) que uma síntese programática se desenha de forma instigante, indo bem além das reflexões até aqui resenhadas. Exatamente por estar construída de forma sistemática, com fins programáticos, esta construção será tomada aqui como modelo geral das proposições neo-reformadoras da educação brasileira. Deve-se ressaltar, entretanto, que não pretendo afirmar uma identidade de posições entre Mello e os demais autores mencionados, quanto às propostas apresentadas por esta. Pode ser que isto ocorra, mas nada autoriza ir além da identificação de similitudes em pressupostos teóricos comuns. A argumentação, deste e de outros trabalhos, começa-se referindo a experiências internacionais, para afirmar que há uma tendência de ponta a promover reformas em sistemas educacionais, orientadas pela conjugação da busca de eficiência e eqüidade. Cidadania e revolução tecnológica, seriam assim solidárias na nova sociedade que se forma. Os países industrializados mais adiantados deslocam, assim, as prioridades de investimento em infraestrutura e equipa mentos, para a formação de habilidades cognitivas e competências sociais para a população ... No Terceiro Mundo, sobretudo na América Latina, essa agenda possui os mesmos componentes, mas requer estratégias apropriadas às suas peculiaridades: torna-se, neste caso, ainda mais imperativo que a transformação produtiva e a inserção

PG.61 competitiva nos mercados mundiais não sejam dissociadas da promoção da eqüidade (1993, p. 26). Para a autora, os projetos educacionais nos países latino-americanos precisam estar adequados a contingências como a fragilidade da tradição democrática, os patamares de desigualdade elevados, mas, sobretudo, a políticas de ajuste econômico: Diante deste cenário, a educação é convocada, talvez prioritariamente, para expressar uma nova relação entre desenvolvimento e democracia, como um dos fatores que podem contribuir para associar o crescimento econômico à melhoria da qualidade de vida e à consolidação dos valores democráticos (1993 p.27). Concordando com o quadro desenhado pelas análises que identificam a perda de eficiência do modelo de desenvolvimento brasileiro, Mello afirma que a preparação para a incorporação de novos padrões tecnológicos seria um instrumento para evitar que novos processos de seletividade e desigualdade social se estabeleçam. A partir de estudos como o de Paiva (1990), o raciocínio construído estabelece que, no novo quadro econômico, a reunificação das tarefas, em oposição aos procedimentos do taylorismo, aponta não para a substituição do homem pela máquina, mas para uma nova exigência de qualificação da força de trabalho. Esta não tenderia mais a ser repetidora mecânica de tarefas simples, mas controladora de processos mais complexos, o que exigiria habilidades intelectuais mais apuradas.

Também o exercício da cidadania estaria a exigir mais qualificação, pois as formas tradicionais de organização política — os partidos — e os movimentos sociais estariam em xeque por novos tipos de participação mais descentralizados e autônomos, menos intermediados por estruturas centrais. A educação entra, aí, como peça-chave, pois o conhecimento seria “o único elemento capaz de unir modernização e desenvolvimento humano”. A rapidez e diversidade de informações, na sociedade da microeletrônica, compõem a estrutura que cobra da educação respostas formativas básicas. Por fim, a educação deve “contribuir para recuperar/construir a dimensão social e ética do desenvolvimento humano”. Como é óbvio, não são poucas as esperanças e as responsabilidades PG. 62 atribuídas à educação (entendida como escolarização). Neste mundo conturbado, os mecanismos operados pela escola surgem como saída para problemas centrais. Deve-se destacar que, se não há o “otimismo pedagógico” ingênuo de outras épocas, não está completamente afastada a visão redentora da educação —mesmo que centrada em aspectos cognitivos e não nos dispositivos assistenciais da “educação compensatória” do passado. Tal visão é impulsionada pela incorporação de elementos-chave do pensamento liberal, os quais ficam mais explícitos quando a atenção se dirige para a gestão dos sistemas escolares. A princípio, as fontes principais do quadro educacional caótico a que chegamos residem no estado, em sua burocracia, seu modelo de intervenção padronizador e centralizado. Porém, surgem também como empecilhos ao desenvolvimento educacional: os políticos e seus partidos e os grupos profissionais organizados (as corporações). e deixar de ser presa fácil dos políticos de plantão e suas insaciáveis clientelas, dos partidos e suas ideologias intransigentes e redentoras, das corporações e seus interesses estreitos e imediatistas, dos intelectuais e educadores e seus modismos doutrinários e pedagógicos (p.21). O caminho é, portanto, a descentralização da gestão e o imbricamento maior com instâncias fora do estado, ONG’s, associações em geral, empresas, etc. Descentralização que não significa o simples desmanche dos aparatos centrais, mas seu confinamento a atividades de planejamento, redistribuição e, uma proposta inovadora, avaliação centralizada. A questão básica é o estabelecimento de mecanismos de controle que atuem diretamente sobre as escolas, como forma de pressão, através da competição. Em suma, na gestão dos sistemas escolares, há um excesso de centro, excesso de política, excesso de estado. A idéia, já apontada por Tedesco, de que a distinção fundamental não se dá entre público/privado, mas entre padrões de gestão mais ou menos eficazes, está aqui presente. A CRÍTICA AO NEO-REFORMISMO EDUCACIONAL A questão inicial é a já colocada anteriormente: por que insistir PG.63

num modelo que já deu errado? É indubitavelmente atraente a análise realizada. Para quem vive há décadas sob gestões estatais ineptas, descompromissadas com problemas os mais elementares na área das políticas sociais, para quem observa a degeneração acelerada da escola pública, é difícil rejeitar a idéia de que o estado é um vilão irrecuperável. O melhor a fazer seria reduzir ao mínimo necessário a capacidade executora das instâncias centrais, repassando parte crescente de suas atribuições às pontas do sistema, ou à própria sociedade. Dessa forma, o que se apresenta não são mais as dicotomias anacrônicas entre escola pública e escola privada, mas entre padrões de gestão tecnicamente diferenciados. Tal programa, exposto de maneira muito resumida e inevitavelmente empobrecedora, em nenhum momento deixa de enfatizar a preocupação democratizante, a intenção da eqüidade, a ênfase nos setores mais desfavorecidos da sociedade. Diferente mente de tantos discursos tecnocráticos, não se manifesta aqui uma certa desconsideração com setores sociais profundamente penalizados no chamado “vale recessivo” das reformas neoliberais. Pelo contrário, a preocupação é exatamente com a produção de mecanismos que não permitam acréscimos de desigualdade. Mas será que bastam intenções? Em que tais diagnósticos e propostas referendam o receituário neoliberal? Onde as falhas do raciocínio? Quais as identidades analíticas com os pressupostos do ajuste? Sinteticamente, as críticas aqui traçadas estão concentradas nos seguintes pontos: a) as propostas da “neoreforma” educacional consideram o padrão de reformas neoliberal como única alternativa disponível; b) a associação entre educação e desenvolvimento (econômico ou “social”) é característica da visão funcional-liberal; c) a idéia de eqüidade é construída sob o enfoque estrito do desempenho individual, o que significa endosso à lógica da competição e uma concepção do homo economicus forjada no liberalismo; d) os princípios de eqüidade e democracia são considerados como dependentes da ordem econômica (diga-se: de mercado); e) os atores sociais mais solidamente organizados são tratados como empecilhos à materialização da reforma, assim como nas concepções neoliberais; f) a noção de estado incorporada nos diagnósticos para a crise é estática e atribui-lhe PG.64 características universais, dissociadas das orientações concretas a que está submetido e, finalmente, g) não se manifesta nenhum tipo de inquietação com os efeitos perversos, já evidentes, da ordem mundial centralizada no binômio globalização econômica/localismo na política. Em suma, de meu ponto de vista, há uma salada mal digerida de intenções progressistas com argumentos marcadamente conservadores. Passo, agora, a tratar brevemente de cada um desses pontos em separado. a) Na trajetória dos anos 80, a avassaladora ascensão do neoliberalismo, o desmantelamento da quase totalidade dos regimes socialistas, as derrotas de partidos identificados com a construção dos Welfare States, ou a busca por estes mesmos partidos de políticas mais restritivas ou francamente hostis àquelas até então implementadas, conduziram à imagem da supremacia inequívoca dos arranjos políticos baseados na menor restrição possível à “mão invisível do mercado”. A ofensiva por reformas institucionais, que libertassem os mercados dos freios antepostos pela política organizada, assumiu dimensões até então impensadas. Consolidou-se, então, a imagem de que reformas imperativas, impulsionadas

pelas grandes instituições financeiras internacionais, deveriam se desencadear por todo o mundo, seguindo os ditames da globalização do mercado, da desregulamentação e encolhimento estatal (destinado principalmente à garantia dos contratos) e do reconhecimento da falência dos esquemas compensatórios. Um mundo virtuoso se oferecia para os que fossem capazes de obter sucesso e competitividade em suas relações mercantis internacionais. A busca desta competitividade informa, então, discursos e políticas que consideram qualquer alternativa fadada ao fracasso, condenada ao limbo do Quarto Mundo. Obviamente, o reflexo desta concepção na educação não se fez esperar, e foi aqui resenhada. Alguns anos após a euforia do boom liberal, o quadro em nada fornece tranqüilidade Ajustamentos brutais foram promovidos, cortes drásticos na intervenção estatal foram operados, economias foram reorientadas, gastos em políticas sociais foram reduzidos, milhões de postos de trabalho foram aniquilados, barreiras alfandegárias foram pulverizadas. Em suma, o novo mercado, restaurado, forte, dinâmico, pôde florescer e forma impensada até alguns anos atrás. Para alguns, as Pg.65 medidas não foram suficientemente levadas adiante, com o grau de abrangência necessário. No entanto, algumas explosões sociais (México e Argentina, por exemplo); o fortalecimento de posições políticas francamente antidemocráticas em toda a Europa; o recrudescimento de conflitos étnicos e nacionais em boa parte do ex-mundo socialista; a piora de alguns indicadores sociais impor tantes, flagrada em várias partes do mundo por relatórios de organismos internacionais; a inegável ampliação das desigualdades sociais em boa parte do planeta, deveriam servir de alerta para os entusiastas da adequação da educação aos novos tempos. Se as justificativas centrais para nosso modelo educacional baseiam-se em tais premissas, é difícil dissociar as propostas educacionais em si da imagem de mundo que projetam como desejável, ou inevitável. Não há necessariamente uma associação direta, no sentido de endosso, entre o que chamo aqui de neoreforma educacional e as medidas neoliberais. No entanto, o mundo para o qual nossos neoreformistas clamam maior adequação dos padrões educacio nais é exatamente este desenhado pelos programas de ajuste econômico. Seus pressupostos também são semelhantes: compe titividade, desestatização, mercantilização. b) Porém, as justificativas para a ênfase no investimento educacional, oriundas do raciocínio economicista, pecam por outra deficiência, além da imprudência apontada no item anterior. Há, inegavelmente, nelas, um ressuscitar da teoria do capital humano tal qual construída nos anos 60. A idéia de que a educação possa se constituir em motor fundamental do novo padrão de desenvolvimento econômico conduz a isso. A afirmativa de que os países desenvolvidos estão deslocando secursos da aplicação em capital, para formação genérica da população não é acompanhada de nenhuma pesquisa empírica comprobatória. Tal concepção incorre numa falha lógica: as tendências das novas tecnologias são intensificadoras em capital e liberadoras de mão de obra. Como é possível ser intensivo em capital, com tendências à oligopolização crescente em vários ramos e, ao mesmo tempo, estar deslocando recursos de infraes trutura e equipamentos para áreas mais light?

Claro que para alguns liberais, como Von Mises já defendia no início do século, a plenitude do mercado, infelizmente, para eles, nunca foi alcançada. 15

PG.66 Outra questão pode ser expressa da seguinte maneira: o que a ver a necessidade de reforma educacional com a integração mercados globalizados? A primeira vista, a relação é obvia: novas tecnologias e formas organizacionais do trabalho promovem mais produtividade e demandam uma qualificação superior da força de trabalho. No entanto, isto tende a ser feito com a e dos já incluídos nas relações formais de trabalho e que dispoõem de condições para um aprimoramento técnico, em si ou em seus descendentes. As tendências político-sociais associadas à inclusão ordem econômica são exatamente contrapostas à inclusão. Portanto, o discurso da necessidade premente de elevar-se o padrão de escolaridade das massas, devido a requisitos econômicos modernizantes não faz sentido. Seu sentido só pode ser construído a partir de uma perspectiva política bastante diferente da “integração” aos ventos predominantes no cenário internacional. Tedesco lamenta o bombardeio de que foi alvo a teoria do humano, nos anos 70. No entanto, os trabalhos que procuram resgatá-la mantêm o mesmo esquema anterior: a observação da existência freqüente de uma associação estatística entre escolaridade e crescimento econômico. Falta muito, porém, para o estabelecimento teórico convincente de uma relação causal entre ambos. Aos exemplos dos tigres asiáticos, podem ser contra postos os casos latino-americanos de completa dissociação e altas taxas de escolaridade e crescimento econômico vigoso. c) A própria idéia de um sentido democratizante que legitime a atividade educacional só se sustenta se for entendida enquanto a velha igualdade de oportunidades do liberalismo clássico. Quando afirmam a educação como instrumento de redução (ou impemento de ampliação) da desigualdade, os neoreformadores estão lidando com o princípio da mobilidade social, baseada nos desempenhos individuais. Entretanto, os problemas para os quais buscam soluções não parecem ser individualmente solucionáveis. A menos que construam uma teoria consistente para resultados agregados de mobilidade individual, que produzam — no caso de países com patamares de desigualdade tão elevada —redução global da desigualdade, estão apenas repetindo falácias do mercado como solução universal. Se não se pretende repetir tal falácia, PG.67 é fundamental que se incorporem as reflexões contemporâneas da necessidade da democracia dispor de alguma forma de com pensação contra resultados repetidamente adversos do “jogo do mercado”, e não apenas como a garantia das regras do jogo (Costa, 1994). A idéia da educação equalizadora não se sustenta, nem pelas análises econômicas do capital humano, nem pelo enfoque mais político da distribuição de cidadania. A lógica instrumental, típica do economicismo, tem dificuldade de lidar com a educação como um direito substantivo e não como meio para se atingir algum objetivo de engenharia social.16

d) A abordagem liberal econômica impregna fortemente a associação entre democracia/eqüidade, por um lado, e competiti vidade (mercado), por outro. Não é sem razões que o trabalho de Melio (op. cit.) trata os dois pólos como solidariamente comple mentares.17 No entanto, inúmeros trabalhos muito consistentes (destaque para EspingAndersen, 1985) buscam na cidadania (política) um contraponto para a competitividade (mercado). Segundo esta formulação, a redução de desigualdades, ao longo da história, foi tarefa realizada pela intermediação da política nas relações mercantis, não como resultado de um laissez-faire. E possível que não sejamos capazes de construir coalizões fortes o suficiente para produzir redução de desigualdades como valor primeiro e não como dependente de crescimento econômico. Mas é doloroso que não consigamos pensar distribuição (de riqueza e direitos) como algo autônomo do crescimento. Afinal nossos exemplos recentes, dos quais o Brasil é um dos mais destacados, demonstram claramente que, sob relações capitalistas, padrões de desigualdade podem se ampliar em processos de crescimento econômico. Para algumas reflexões sérias sobre possíveis alternativas para o Brasil, a própria distribuição é condição para uma nova fase de crescimento. A quase ausência do tema da desigualdade no ideário neoliberal, ou a pressuposição de que maior equanimidade se produz por meros mecanismos de mercado, parecem estar na raiz das argumentações que tomam as políticas Sobre a democracia como garantia de regras, há clássicos liberais (Popper, Hayek, por exemplo), mas também interessantes análises de não-liberais contemporâneos, como Przeworski. 16

17

A tese da convergência entre mercado e democracia encontra-se em Schumpeter (1950).

PG.68 recessivas como um mal inicial absolutamente indispensável. Como o estado, que é a possível instância compensatória, passa a ser tomado como capaz de apenas promover mais desigualdade mecanismos de monopólio), fica a pergunta como impedir - inclusive na escola, os mecanismos excludentes e seletivos se aacentuem com o estado tomando um papel ainda menor que o atual? A noção de democracia intra-escolar desenvolvida pela neo-reforma também e problemática. A proposta da descentralização antes da noção de “público não-estatal”, baseiam-se na imagem uma democracia onde os atores solidamente constituídos são transformados em inimigos. Esta concepção é parente daquela exposta inicialmente, que trata da necessidade do isolamento de a parcela especial da burocracia, para que não se deixe contaminar pelos conflitos inerentes à política. Partidos, burocracia e corporações devem ser alijados na realização da escola verdadeiramente pública, assim como da condução das reformas necessários no estado e na ordem econômica. Mas surge então a pergunta, pública de quem, sem as possíveis intermediações reais, sem os atores que têm nome, história, objetivos razoavelmente explícitos. O sonho de uma escola sem a política transforma a interessante questão de formas de gestão mais participativas em um devaneio autoritário: uma escola pasteurizada. Mais uma vez manifesta-se a imagem liberal de um mundo organizado pela lógica dos atores atomizados, as vontades individuais das “massas dos “descamisados”, tornados voz ativa magicamente pela descentraIização. Parecem desconhecer nossos autores que o Brasil já dispõe de uma considerável experiência da gestão “pública não-estatal”: as grandes redes de escolas comunitárias que proliferam em alguns estados, principalmente no pré-escolar. Terrenos Férteis para toda sorte de

clientelismo e politicagem, tais estabelecimentos deveriam servir de alerta para os que defendem o estado como simples financiador e avaliador distante da atividade escolar. Provavelmente na compreensão do estado reside a fonte dos equívocos na proposta de gestão neoreformadora. f) Parece-me suficientemente desgastada a imagem do estado como mero representante, como reflexo de tensões e relações na sociedade. A própria percepção do estado enquanto contraposto sociedade, numa balança metafórica, padece de bases empíricas PG. 69 mais sólidas. Nettl (1968) retrata bem a necessidade de reflexões sobre o estado que se refiram a categorias genéricas (soberania, autonomia, eficácia, etc.), mas que estejam fundamentalmente amarradas a trajetórias empíricas singulares. Também Skoopol (1985) contribui para uma conceituação menos universalista (funcional), ao trabalhar com a idéia de estado como ator que produz atores. Ou seja, ao executar políticas, o estado — por ser uma estrutura de oportunidades — estimula a formação de atores políticos. Ele age, reage e provoca ações e reações. Por outro lado, numa perspectiva analítica, é necessário observar as relações entre a esfera estatal e a sociedade mais geral. Sob este prisma, a literatura sobre burocracia é de grande ajuda. Uma breve passada por autores que têm trabalhado com este tema18 revela que a unidade da máquina estatal — pensada em parte do marxismo, no funcional-estruturalismo e nas tentativas de generalização do tipo ideal de burocracia alemã traçado por Weber — não resiste a um estudo mais profundo. O que ressalta desta literatura é a necessidade de busca de modelos teóricos que consigam dar conta de uma realidade bastante complexa. Se o estado “comitê central da burguesia” é frágil enquanto conceito, por outro lado a visão de um estado ator quase independente, um bandido sedentário (Olson, 1993), ou um permanente concentrador de ineficácia e desperdício, também não suporta uma avaliação mais rigorosa. A forma de escapar de adjetivações genéricas sobre o estado é trazer as discussões para um terreno que procure combinar suas características “estruturais”, isto é, esquemas duradouros que antepõem constrangimentos de peso a mudanças, com a dinâmica dos atores sociais que são capazes de produzir estas alterações, ou que buscam manter as fórmulas estabelecidas. Neste sentido, é necessário pensar em estado, mas também em governos, em policies, mas também em politics. A endemonização do estado, desenvolvida pelos liberais e incorporada pelos neo-reformadores educacionais, concentra-se numa visão ahistórica, estrutural, do estado e, talvez por isso, não consegue vislumbrar possibilidades de que novas orientações sobre ele emanadas produzam resultados substantivamente diferentes daqueles que se vêm repetindo. Assim, o 18

Ver sobre burocracia: Rourke (1979), Mouzelis (1992), Crozier (1982) e Meyer (1987).

PG.70 quadro caótico dos sistemas escolares — ou de toda a máquina voltada para as políticas sociais — é desvinculado das coalizões que o produziram e atribuído a características congênitas do estado em abstrato. Ao proceder desta forma, nossos neo-reformadores não se percebem em companhia exatamente daqueles setores que montaram e se alimentaram da estrutura estatal existente. Com efeito, entre os entusiastas das reformas neoliberais do estado encontram-se, destacadamente, personagens que dirigiram os processos de

formatação do molde de estado anterior, e dele se beneficiaram muito. O deslocamento da discussão público/privado, para a questão do padrão de gerência e da avaliação de qualidade, é a versão educacional da máxima do estado mínimo. g) O “otimismo pedagógico”, também já batizado de “educação redentora” (Soares, 1988), ou identificado como “reconstrução social no pensamento pedagógico” (Cunha, 1975) tem sido persistentemente associado à visão liberal-funcional da escola. Parece que esta caracterização é útil para compreender o papel atribuído à educação pela corrente aqui criticada. Se, por um lado, a ação educacional, conforme já visto acima, ocupa uma área fronteiriça entre o “econômico” e o “social”, por outro, é, no mínimo, precipitado conferir atribuições tão centrais à educação o processo que hoje vivenciamos. A função de passaporte para a modernidade pode ser compreendida não pelo que afirma, mas pelo que omite. Conforme já pude desenvolver anteriormente, a educação desfruta de uma unanimidade (no plano da cultura) que lhe permite ocupar o locus privilegiado de coalizões pratica mente universais, em torno de sua pretensa prioridade. No entanto, parece-me que esta prioridade unânime no discurso — que é raduzida na idéia da congruência geral de interesses defendida elos neoreformadores — demonstra sua face de dissimulação quando confrontada com as políticas que são efetivamente desenvolvidas pelos grupos no poder. A própria associação simples entre incremento educacional e maior eqüidade não resiste ‘a uma mvestigação empírica que demonstra momentos de expansão educacional com concentração de renda (Brasil), ou mesmo aumento Este é o objeto de minha dissertação de mestrado, defendida em 1992, na PUC-RJ, “A educação como um refúgio”, que desdobrou-se na publicação de Costa, 1993. 19

PG.71 de concentração em países muito escolarizados e que haviam alcançado patamares de eqüidade importantes (Argentina). A idéia da esfera educacional como materialização de coliga ções supra-classistas muito amplas (já apontada por Bendix) talvez não seja minimamente eficaz em tempos de crise. Talvez tenha sido razoavelmente efetiva em momentos de expansão, onde o conflito distributivo fica apascentado, mas em momentos de acirramento, como o atual, é difícil aceitar que os pretensos imperativos de enxugamento nos gastos públicos convivam pacificamente com atividade tão dispendiosa como a sustentação de redes escolares. E verdade que, em nenhum momento, os neo-reformadores afirmam ser necessário ampliar os gastos públicos com educação, pelo contrário, sua defesa restringe-se a uma melhor gestão dos dispêndios já existentes — ou até mesmo redução (conforme a resignação de Tedesco indica). Mesmo considerando que a educação seja capaz de desempe nhar o papel heróico que dela se espera, é estarrecedor não encontrar um único sinal de dúvida quanto aos rumos que a combinação liberalização, ajuste econômico, redução da capaci dade de intervenção dos estados nacionais e descentralização vem produzindo. Przeworski (1993) é especialmente lúcido quando aponta as imensas mazelas que a nova ordem internacional tem provocado ou aprofundado. Pensar que a educação deve se ajustar e será, além disso, beneficiada por demandas que se impõem a partir deste novo quadro, é sufocar aquilo que o pensamento educacional teve de mais rico em toda sua existência: a inquietação e a recusa quanto à produção da desigualdade.

Para finalizar, a referência a Gourevitch (1986), Esping-Andersen (1991) e Skocpol (1985 e 1992) é relevante. Para eles, ainda que de formas diferentes, os estados-previdência e suas crises devem ser entendidos principalmente a partir das coalizões nacionais que os engendraram. Ou seja, o espaço da política, das opções realizadas, a condução histórica dos processos, conduz a uma rejeição do determinismo econômico. Ressalta-se a interpretação de que as respostas para as crises não são necessárias, imperativas, mas foram as escolhas de coalizões dentro de um leque possível de alternativas. Pensar a política num jogo de PG.72 escolha / constrangimentos, onde nenhum dos lados é absoluto ajuda bastante a combater o determinismo da inevitabilidade de percorrermos tal ou qual caminho. Sob este enfoque, o referendo por princípio à descentralização, o esvaziamento da capacidade de intervenção estatal conduz exatamente à dificuldade de que atores coletivos promovam, por meios democráticos, a limitação dos resultados da ação na esfera privada. As propostas de descentralização, da forma como vem sendo defendidas e pelos atores que o fazem, inserem-se na marcha da internacionalização da economia, onde os estados nacionais podem ser obstáculos, pois que neles se materializam oportunidades de resistência por parte dos perdedores, dos excluídos, dos relegados no jogo “livre” das forças de mercado. O estado, ao invés do vilão desenhado, pode ser pensado como defesa possível contra externalidades negativas da esfera privada, uma forma de proteção aos mais frágeis no plano individual. Infelizmente, não é isso que nossa história nos mostra. Porém, é sintomático que, justamente quando os ares de democratização abrem espaço para que coalizões comprometidas com a redução das desigualdades, com possibilidades de poder a setores historicamente relegados a segundo plano, sejam reforçadas, as camadas sobre a limitação da capacidade de intervenção estatal. Ainda que a reflexão sintonizada com os arranjos genericamente denominados social-democratas tenha dificuldade em explicar as razões pelas quais seus modelos entraram em declínio, por que coalizões aparentemente tão sólidas e virtuosas perderam força, a crítica liberal aos Welfare States, em particular, e ao estado, em geral, bem como seu programa derivado, não conseguem apontar alternativas melhores, do ponto de vista da eqüidade e da democracia. Na tradição dos welfare social-democratas, há uma perspectiva de trato das políticas sociais como realização de direitos, bem mais atraente que o amesquinhamento das justifica tivas amarradas à lógica da rentabilidade econômica, típica dos Welfare meritocráticos. Esta lógica tem conseguido produzir sustentação política aos governos que as tem impiementado. A razão do apoio observado às reformas está vinculada à gravidade da situação anterior. Conforme apontam autores mencionados, surpreendentemente, PG.73 até mesmo medidas extremamente duras, recessivas, vêm obtendo consentimento de amplos setores sociais. Há uma previsão, incluída nos planos de ajustamento, de que, o problema seria reunir sustentação na passagem pelo “vale recessivo” que acompanha as medidas de estabilização e reforma econômica iniciais. No entanto, em países em que a

situação chegou a um quadro persistentemente grave, as resistências não têm sido significativas. O mesmo não se pode afirmar na sequência a médio prazo dos ajustes. O México, que chegou a uma situação extremamente grave em 1982, foi um dos primeiros países latino-americanos a dobrar-se às exigências internacionais. No entanto, o deslumbramento com o Nafta, a “prosperidade” aparente dos anos iniciais, parecem estar desmoronando, juntamente com o confisco da soberania nacional sobre suas reservas. As perspectivas argentinas também não são nada tranquilizadoras, bem como, por outro ângulo, a revogação da democracia por um presidente identificado com o neoliberalismo no Peru. Passados alguns anos, estabilizações foram obtidas em economias que estavam com seus cálculos econômicos abalados pela inflação, o que tranqüiliza os investimentos e, principalmente, as previsões de retorno e administração dos capitais. Porém, não há resultados equivalentes no plano da melhoria das condições de vida de parcelas muito grandes das populações. Esta constatação nos faz retornar a Przeworski: estarão os governos “reformadores” experimentando com a vida de milhões de pessoas? Podemos simplesmente afirmar que a educação deve se inspirar nos “requisitos da modernidade”? A equação dos problemas da educação, ao menos no caso brasileiro, pode ser pensada como dependente de uma reorien tação de toda a direção adotada pelo estado. Isto significa a busca de caminhos desafinados com o receituário internacionalmente hegemônico, mas sem desconsiderar a necessidade de reformas profundas no plano do estado. Aumento e redistribuição de recursos sociais, retomada de desenvolvimento em novos padrões, etc., são possibilidades que não podem ser descartadas pela adesão pouco refletida ao determinismo econômico e ao fatalismo daí decorrente. Isto não significa desconsiderar as especificidades do sistema educacional, mas que talvez necessitemos voltar a olhar para fora e ver que não há alternativas simplesmente pedagógicas ou administrativas para muitos de nossos problemas. PG.74 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, L. “Novas tecnologias, difusão cultural, emprego e trabalho no Brasil: um balanço”, BIB, 30, 1990. ACUNA, C. H. & W C. SMITH. “The Political Economy of Structural Adjustment: the logic of suport and opposition to neoliberal reform”, In: Smith, Acufia & Gamarra (Eds.). Latin American Political Economy in the Age of Neoliberal Reform. New Brunswick/Londres, Transaction Publishers, 1994. BARRETO, E. 5. de Sã. “O Ensino Básico no Brasil Visto pelo Angulo das Políticas Públicas”. In: M. L. Franco & D. Zibas (Orgs.). Final do Século: desafios da educação na América Latina. São Paulo, Cortez, 1990. BENDIX, R. Estado Nacional e Ciudadania. Buenos Aires, Amorrortu, sld, (edição original de 1964, Nation Building and Citizenship — studies of our changing social order, John Wiley & Sons) CASTRO, C. M. Entrevista concedida a O Globo, em 5/8/90, Rio de Janeiro.

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Este artigo foi escrito especialmente para o presente livro ♦ Márcio da Costa é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ♦

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3 Gaudêncio Frigotto _______________________ OS DELÍRIOS DA RAZÃO: CRISE DO CAPITAL E METAMORFOSE CONCEITUAL NO CAMPO EDUCACIONAL Este texto busca evidenciar como a avalanche de conceitos e categorias, que se metamorfoseiam ou se re-significam, operam no campo ideológico¹ de sorte a dificultar a compreensão da profundidade e perversidade da crise econômico-social, ideológia e éticopolítica do capitalismo real neste fim de século. A queda 1

Estamos trabalhando o conceito de ideologia na acepção que Bobbio et alii (1992, pp. 58587) dão do seu sentido forte. Tomamos, sobretudo a compreensão e desdobramentos, no terreno marxista, que Antonio Gramsci (1978) dá a esse conceito. A ideologia em seu significado forte é entendida como falsa consciência, mistificação, falseamento da realidade nas relações de domínio entre as classes sociais, historicamente. Este é o significado que originariamente Marx e Engels deram a este conceito ao fazer a crítica à burguesia, enquanto classe dominante do sistema capitalista, que busca veicular seus interesses, valores, sentimentos, visão de mundo e de realidade particular de classe como sendo naturais e universais. Para o campo educativo especialmente, mas não só, penso que o significado gramsciano de ideologia é particularmente fecundo. Reafirmando a perspectiva de Marx, mostra-nos este autor, todavia, o caráter não puramente reflexo e mecânico da inculcação e, portanto, a existência de contradições e, sobretudo, o papel das classes subalternas que lutam para fazer valer sua visão de mundo, valores e interesses. Trata-se de um embate contra-hegemônico. Indica-nos Gramsci a existência de ideologias nãoorgânicas ou arbitrárias e ideologias orgânicas necessárias. A ideologia não-orgânica ou arbitrária é a que busca ocultar, falsear, mistificar e conciliar interesses historicamente antagônicos entre as classes com objetivo de garantir o domínio da classe dominante, através do consentimento das classes subalternas. Ideologia orgânica ou historicamente necessária é constituída pelos valores, concepções e visão de mundo, modos de pensar e sentir das classes subalternas a partir das quais se movimentam, adquirem consciência de sua posição e lutam por determinados objetivos. Trata-se de classes cujo objetivo é o de superar a forma capitalista de produção da existência e, com ela, a própria existência da

humanidade cindida em classes. Cisão mediante a qual o humano se atrofia, dilacera e se perde.

PG.77 do muro de Berlim e o colapso do socialismo real constituem-se em marcos para apologetas e intelectuais conservadores proclamarem o fim da história (Fukuyama, 1992), o surgimento da sociedade do conhecimento, o desaparecimento do proletariado e a emergência do cognitariado (Toffler, 1985). São, todavia, também marcos para intelectuais de tradição de esquerda, que emigram de suas posições teóricas e políticas para as teses do pós-modernismo e vaticinam: o fim das classes sociais, dos paradigmas calcados na razão, da utopia de uma mudança estrutural das relações capitalistas, o fim do trabalho como categoria fundamental para entender a produção do ser humano como espécie e como evolução histórica. Trata-se de apreender o que, de velho e de novo, revela esta metamorfose. Num primeiro momento, buscaremos explicitar, ainda que esquematicamente, o significado da crise teórica e suas implicações para compreendermos a crise no plano econômico-social, ideológico, ético-político e educacional do capitalismo neste final de século. Assinalaremos, também, as implicações nas atuais políticas educacionais do Brasil. Para especificar o significado das metamorfoses mostraremos, no segundo item, qual a materialidade histórica das relações capitalistas que demandaram a teoria do capital humano nos anos 60/70 e sua redefinição, face a uma materialidade diversa, com a tese da sociedade do conhecimento e da qualidade total, nos anos 80/90. A metamorfose conceitual que se opera hoje, no campo educacional aparentemente distante do chão da escola, é, na realidade, orientadora de políticas ao nível gerencial, organizativo e nos processos de conhecimento. Por serem expressões superestruturais de relações sociais cuja base é marcada pela exclusão, contraditoriamente, estas mudanças conceituais funcionam com uma leitura invertida da realidade. Anunciam qualidade total, autonomia, flexibilidade e reeditam formas renovadas de exclusão, atomização do sistema educacional e dos processos de conhecimento e políticas autoritárias de descentralização. O CAMPO EDUCATIVO E A CRISE DO CAPITALISMO REAL Buscar entender adequadamente os dilemas e impasses do campo ducativo hoje é, inicialmente, dispor-se a entender que a crise da PG.78 educação somente é possível de ser compreendida no escopo mais amplo da crise do capitalismo real deste final de século, no plano internacional e com especificidades em nosso país. Trata-se de uma crise que está demarcada por uma especificidade que se explicita nos planos econômico-social, ideológico, ético-político e educacional, cuja análise fica mutilada pela crise teórica.

Nesta breve exposição, vou apenas demarcar estes planos e, em seguida, ater-me a uma caracterização das formas como o ideário neoliberal, sob as categorias de qualidade total, formação abstrata e polivalente, flexibilidade, participação, autonomia e descentralização está impondo uma atomização e fragmentação do sistema educacional e do processo de conhecimento escolar. Este processo, na forma que assume no Brasil desde o golpe militar e com mais ênfase nos anos 90, se potencializa, de um lado, pela cultura de caráter escravocrata, colonialista e feudal das elites, fundamentalmente dos homens de negócio, que são coetâneos no discurso mas não na historia da burguesia interna cional e, de outro lado, pelo avanço do pós-modernismo, ideologia específica do neoliberalismo (Chauí, 1993), no campo da esquerda. A literatura disponível que efetiva um balanço crítico da investida neoliberal nos dá a compreensão histórica da gênese e da anatomia superestrutural do neoliberalismo, nas dimensões apresentadas por Anderson, Therborn, Salama, Oliveira, Boron, Sader e outros (Sader e Gentili, 1995) nos âmbitos econômico, político e ético. Em síntese, o neoliberalismo se põe como uma alternativa teórica, econômica, ideológica, ético-política e educativa à crise do capitalismo deste final de século. Uma alternativa que deriva do “delírio de uma razão cínica”, que prognostica o im da história. Vejamos, sucinta e indicativamente, como este delírio” se apresenta em diferentes planos. No âmbito teórico, a crise traduz-se, na visão de Marilena Chauí, pela crise da razão instalada, sobretudo, pelo pós-mod ernismo. Para esta autora, a crise teórica se manifesta, fundamen talmente, pela negação de quatro aspectos básicos: que haja uma ²Para uma análise crítica das teses do pós-moderno na interface com as análises marxistas de realidade histórica, ver o enfoque de Frederic Jameson no livro Espaço e imagem — teorias do pós-moderno e outros ensaios (1994).

PG.79 esfera da objetividade e, em seu lugar, o surgimento do subjetivismo narcísico; que a razão possa captar uma certa continuidade temporal e o sentido da história, surgindo em seu lugar a perspectiva do descontínuo, do contingente e do local; a existência de uma estrutura de poder que se materializa através de instituições fundadas, tanto na lógica da dominação quanto da liberdade e, em seu lugar, o surgimento de micro-poderes que disciplinam o social; e, por fim, a negação de categorias gerais, como universalidade, objetividade, ideologia, verdade, tidos como mitos de uma razão etnocêntrica e totalitária, surgindo em seu lugar a ênfase na diferença, alteridade, subjetividade, contingência, descontinuida de, privado sobre o público (Chauí, 1993, pp. 22-3). Nenhuma concepção teórica tenha, talvez, merecido tanta contestação do que a análise marxista tomando-se suas dificulda des históricas e reais como puro e simples fracasso e, portanto, uma perspectiva superada. Juntam-se no combate ao materialismo histórico, por mais paradoxal que nos possa parecer, a perspectiva neoliberal que dá a força absoluta de regulação das relações sociais, à fragmentação e atomização do mercado e à perspectiva do pós-modernismo centrada na diferença, alteridade, subjetividade, particularidade e localismo. Isto não surpreende no caso da perspectiva atual, que afirma consistentemente a identidade do pós-modernismo com o próprio capitalismo em sua última mutação sistêmica (Jameson, 1994, p. 45).

Esta forma fragmentária, capilar, individualista de apreender a realidade nos conduz a uma melancólica zombaria de historicidade em geral (Jameson, op. cit., p. 36) e acaba instaurando um profundo pessimismo que constrói a crença de que é impossível qualquer mudança mais global ou sistêmica da sociedade. O resultado é uma crença instintiva na futilidade de todas as formas de ação ou de práxis, e um desencorajamento milenar que pode explicar a adesão apaixonada a uma variedade de substitutos e soluções alternativas: mais claramente ao fundamentalismo religioso e ao nacionalismo, mas também a todas as possibilidades de envolvimento apaixonado em iniciativas e ações locais (e políticas monocórdias), bem como a aceitação do inevitável que está implícito na euforia histérica de visões de um pluralismo delirante do capitalismo tardio com sua PG.80 suposta autorização da diferença social (Jameson, op. cit., pp. 63-4). Na busca de se apreender as questões que efetivamente a teoria r enfrenta, cabe, inicialmente, não confundir as dificuldades e até mesmo equívocos interpretativos ou fracassos políticos de sua aplicação, com a superação e obsolescência da teoria pura e simples. Os referenciais, ou os paradigmas teóricos, não estão superados quando enfrentam problemas decorrentes da complexificação da realidade que buscam compreender, mas quando se tornam incapazes de explicá-los. Neste particular, parece-nos decisiva a indicação de Jameson sobre a teoria marxista em particular e para o debate da crise dos paradigmas. As crises do paradigma marxista, então, sempre ocorreram exatamente nos momentos em que seu objeto de estudo fundamental — o capitalismo como sistema — parecia estar mudando de aparência, ou passando por mutações imprevis tas e imprevisíveis. Uma vez que a antiga articulação da problemática já não corresponde a essa nova configuração de realidades, há uma grande tentação de se concluir que o próprio paradigma — seguindo a moda Kuhniana nas ciências— foi derrubado e ultrapassado. A implicação disso é que se torna necessário formular um novo paradigma, se ele não estiver já delineado (Jameson, op. cit., pp. 66-7).

Não obstante a globalização do capitalismo atual significar, no plano histórico, uma exacerbação dos processos de exploração e alienação e de todas as formas de exclusão e violência, produção de desertos econômicos e humanos, os conceitos de pós-indus trial, pós-classista, pós-moderno, sociedade do conhecimento, surgimento do cognitariado, dão a entender que a estrutura de exploração capitalista foi superada, sem que se tenha superado as relações capitalistas. Jameson nos convida a pensar que a mudança, na forma que assume hoje o capitalismo, não significa o desaparecimentô das relações capitalistas, da existência de classes, da alienação e exploração. Partindo desta constatação argumenta que o marxismo, como teoria que se constrói na análise crítica das relações sociais capitalistas não pode estar morto simplesmente porque seu PG.81

objeto — as relações capitalistas — continua vivo. Ao contrário, a teoria marxista, que não é isenta de reducionismos, continua sendo a única teoria capaz de pensar adequadamente o capitalis mo tardio dentro de uma perspectiva histórica e dialética, evitando celebrações e repúdios redutores (Jameson, op. cit. p. 21). No plano econômico, a crise que vivenciamos hoje é, em sua essência, a crise do padrão de acumulação e de regulação social que sustentou a exploração capitalista nos últimos 50 anos. Trata-se de um capitalismo denominado de bem-estar social, Estado previdenciário ou simplesmente modelo fordista, que incorporou algumas das teses socialistas, como nos lembram Hobsbawm (1992) e Oliveira (1988): direitos sociais de educação, saúde, transporte, moradia, garantias de emprego e seguro desem prego. Com a transnacionalização do capital e a hegemonia do capital financeiro, este padrão de acumulação foi sendo implodido juntamente com a referência do “EstadoNação” como regulador e organizador da atividade econômica (Hobsbawm, 1992). Os próprios mecanismos das instituições supranacionais, como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc., uma espécie de ministérios econômico-políticos do capital transnacional, tornam-se frágeis para conter as nuvens do capital especulativo que, como um volátil gira na órbita do lucro maximizado e rápido. O colapso do México, uma espécie de tipo ideal, exemplo de ajuste bem sucedido apresentado ao Terceiro Mundo para ser imitado, exemplifica a natureza e gravidade da crise do capitalis mo real hoje. Os custos humanos, materializados pela fome, desemprego, desagregação social, erupções violentas e contínuas que se dão a nível planetário, são ética e politicamente inaceitá A recomposição econômica do capitalismo, isto é, recompo sição das taxas de lucro, dá-se mediante a radicalização do neo conservadorismo onde o mercado se constitui no “deus” regulador das relações sociais. Esta volta, no contexto do capitalismo dos anos 90 e de sua crise, como mostram inúmeras análises, só pode dar-se mediante a exclusão das maiorias do direito à vida digna pela ampliação do desemprego estrutural, pela criação de desertos econômicos e do retorno aos processos de marginalização, dentro do denominado Primeiro Mundo, como nos mostra Chomsky (1993), entre outros. No plano ideológico, a investida neoliberal busca criar a crença de que a crise do capitalismo é passageira e conjuntural. Mais profundamente, busca levar à conclusão de que a única forma de relações sociais historicamente possíveis são as relações capitalistas. Crença que, face ao colapso do socialismo real, recebe um impulso letal A tese do fim da historia de Fukuyama e a expressão exacerbada do delírio desta razão cínica. O conceito neoliberal, que imediatamente nos da a idéia de que se trata do retorno às teses do liberalismo econômico-social que fundamentou a doutrina da emergência da sociedade capitalista, carrega consigo brutais falseamentos. O mais geral, do qual emanam os demais, e de que se trata de uma volta a algo que deu certo no passado e que foi sendo desviado. E, o que deu certo no passado? O mercado como o instrumento eficaz para regular os interesses e as relações sociais de forma “livre, equánime, equilibrada e justa”. A tese básica de Hayek (1987) não é outra, senão, de que o princípio e a busca da igualdade social levam à servidão. Não e casual que esta tese, defendida no início dos anos 40, seja hoje a base teórico-ideológica do neoliberalismo. Porém, a livre concorrência, numa sociedade de classes, é ma falácia. A história mostrou que a desigualdade brutal que o mercado produziu, entre nações e dentro de cada

nação, pôs em risco até mesmo o sistema capitalista. A superação da crise, nos anos 30, deu-se mediante mecanismos de intervenção pesada do Estado na economia e na sociedade Os regimes social-democratas são expressão desta saída do capitalismo, mas que dentro de uma uva forma de sociabilidade do capital (Giannotti, 1982) — capital transnacional — entra em profunda crise 3. A idéia-força balizadora do ideário neoliberal é a de que o setor público (o Estado) é responsável pela crise, pela ineficiência, pelo privilégio, e que o mercado e o privado são sinônimos de ciência, qualidade e equidade. Desta idéia-chave advém a tese k Estado mínimo e da necessidade de zerar todas as conquistas sociais, como o direito a estabilidade de emprego, o direito à ³Ver a esse respeito Francisco de Oliveira (1988), Offe (1984, 1989). PG. 83 saúde, educação, transportes públicos, etc. Tudo isto passa a ser comprado e regido pela férrea lógica das leis do mercado. Na realidade, a idéia de Estado mínimo significa o Estado suficiente e necessário unicamente para os interesses da reprodução do capital. Este ideário vem sendo sistematicamente trabalhado pela mídia, cujo monopólio a torna o grande poder fascista desta segunda metade do século XX (Pasolini, 1990), ou o instrumento que, pela manipulação da verdade, “deixa cicatrizes no cérebro” (Chomsky, 1994). A privatização da informação, desta forma, constitui-se em permanente ameaça à possibilidade de construir uma democracia efetiva e o instrumento, por excelência, de legitimação da exclusão social. A violência do monopólio da informação e de sua manipulação, no Brasil, é brutal e inaceitável. No plano ético, todavia, é que a letalidade do neoliberalismo é crucial, situando o mercado como o definidor fundamental das relações humanas, sob a idéia de que a igualdade e a democracia são elementos nocivos à eficiência econômica. Como nos lembra Francisco de Oliveira, no caso brasileiro, esta letalidade dá-se, sobretudo, pelo atrofiamento da esperança, da utopia e da resistência social popular organizada. O dado mais perverso, neste plano, é o processo de naturalização da exclusão, das diferentes formas de violência, inclusive o puro e simples extermínio de grupos e populações. São indícios claros deste malthusianismo anacrônico: as frias análises custobenefício da poluição, feitas por técnicos do Banco Mundial que, ao constatarem os custos da mesma serem até cinco vezes maior nos países desenvolvidos, recomendam despoluí-los enviando o lixo industrial para os países onde cada morte tem um custo menor; as pregações de dirigentes do Fundo Monetário Internacional que, face ao colapso econômico do México, afirmam que os investidores internacionais somente voltarão a ter confiança para novamente investir naquele país se o governo exterminar os rebeldes de Chiapas; na mesma lógica, encontramos as justificativas do apressamento da morte ou simples e puro não atendimento de crianças pobres e subnutridas porque há falta de aparelhos, remédios, etc., e, por isso, a atenção deve ser dada às crianças cujas chances de cura são mais elevadas. PG.84

No campo da educação, sedimentam-se as crises no plano teórico, ideológico, éticopolítico e econômico. No caso brasileiro, tanto as análises e concepções educativas fundadas numa expectativa marxista, quanto as políticas de democratização e equalização têm se desenvolvido permanentemente na con tramão. Aos movimentos da sociedade brasileira dos anos 50/60, que postulavam reformas de base e democratização no campo social e educacional, respondeu-se com o golpe civil-militar de 64. E sob a égide do economicismo, incorporado na educação pela teoria do capital humano, que se efetiva a reforma universitária de 68 e completa-se, com a reforma do ensino de primeiro e segundo graus, em 1971. Esta lei perfaz o conjunto de medidas para adequar a educação ao projeto conservador e autoritário das elites brasileiras. No processo de transição inconclusa — década de 15 anos, como se refere ironicamente Francisco de Oliveira —ao contrário de um salto qualitativo na perspectiva das teses da democratização e equalização efetivas apontadas na Constituição de 88, fomos surpreendidos pela onda neoliberal que avassala, sobretudo, a América Latina. A reforma constitucional em curso, na realidade, a promulgação de uma “nova-velha” Constituição. A lei diretrizes e Bases da Educação, após cinco anos de intenso debate e negociação, volta ao ponto inicial com uma proposta feita pelo alto na base de retalhos, que acobertam os velhos interesses e vícios das elites conservadoras. No plano teórico e filosófico, a perspectiva neoliberal é de ma educação regulada pelo caráter unidimensional do mercado. Este constitui-se no sujeito educador. A inversão conceitual de publicização” da universidade, candidamente exposta pelo Ministro de Administração, L. C. Bresser Pereira, para significar a subordinção da mesma às regras do jogo do mercado, explicita melancólico cinismo que orienta, teórica e politicamente, o campo educativo no centro do poder vigente. Daí resulta uma filosofia utilitarista e imediatista e uma concepção fragmentária do conhecimento, concebido como um dado, uma mercadoria e como uma construção, um processo. O sistema de avaliação atualmente proposto pelo Ministério da Educação, além de confundir e reduzir esta questão a técnicas PG.85 de mensuração, vai revelar o óbvio. A aplicação de um teste padrão, partindo de qualquer escolha arbitrária, no caso feita com assessoria de técnicos adestrados nos organismos internacionais, que definem a qualidade (total) esperada, vai mostrar uma brutal desigualdade que as pesquisas vêm apontando há décadas, no desempenho de acordo com a materialidade de condições sociais (extra-escolares) e das condições institucionais (intraescolares). No plano social, basta tomar os dados da disparidade de distribuição de renda no Brasil para saber que vamos encontrar alunos com condições de educabilidade profundamente desiguais. No plano institucional da escola, a diversidade de formação, salários e condições de trabalho dos professores, técnicos e funcionários, nos oferecem elementos inequívocos para esperar desempenhos e resultados diferenciados. A dimensão cínica da proposta imperativa de avaliação — sem que se busque processos de equalização efetiva das condições em que se dá o ensino e das mínimas

condições econômico-sociais da maioria dos alunos — se escancara quando se promete prêmios às escolas que forem melhor sucedidas. E preciso perguntar: que critérios definem o que é uma escola bem sucedida cognitiva, social, política, culturalmente? Quem define os critérios e medi ante que métodos tais critérios são definidos? Seria, por acaso, a rede de escolas do Banco Bradesco, que na última campanha eleitoral aparecia nos horários nobres de televisão como escolas modelo? Que controle democrático tem este tipo de experiência? À perspectiva fragmentária do mercado, como analisamos acima, particularmente no campo educacional, junta-se o estilha çamento dos processos educativos é de conhecimento veiculados pelas posturas pós-modernistas que reificam a particularidade, o subjetivismo, o local, o dialeto, o capilar, o fortuito, o acaso. Nega-se não só a força do estrutural, mas a possibilidade de espaços de construção de universalidade, no conhecimento, na cultura, na política, etc. No caso específico do processo de conhecimento, confunde se a forma mediante a qual ele se constrói que, necessariamente, sempre parte de uma situação concreta dada e diversa, como resultado deste processo que, para ser democrático, tem que atingir o patamar historicamente possível de universalidade e PG.86 unitariedade. A concepção gramsciana de escola histórico concreta, é sem dúvida, a base teórica e politicamente mais avançada para entender-se que a autêntica pluralidade e diferença pressupõe a democratização e igualdade das condições. O resultado da atomização do mercado e das perspectivas pós-modernistas, no plano político prático, não poderia ser mais. Sob os conceitos de autonomia, descentralização, flexibilidade, individualização, pluralidade, poder local, efetiva-se uma brutal fragmentação do sistema educacional e dos processos de conhecimento. Isto traduz-se, como vimos em outro texto Frigotto, 1994), por políticas que envolvem: — subsídio do Estado ao capital privado, mediante incentivos de diferentes formas, no limite para que grandes empresas tenham seu sistema escolar particular ou em parceria: escola do Bradesco, da Rede Globo, das empreiteiras, etc.; — escolas comunitárias e escolas organizadas por centros populacionais — (CONFAZ) — massa de manobra e de barganha de recursos públicos em troca de favores (Cedraz, 1992). — escolas cooperativas do tipo adotado pela Prefeitura Municipal de Maringá - PR, que são uma adaptação das teses de um dos pais do neoliberalismo para o campo educativo, Milton Friedman. A idéia de Friedman é a de que a educação é um negócio como qualquer outro e que, portanto, deve ser regulada pelo mercado. O que o Estado deve fazer é dar um montante de dinheiro para cada aluno pobre (cupon) e deixar a ele, ou à sua família, a decisão de comprar no mercado o tipo de educação e de instrução que quiser; — adoção de escolas públicas por empresas, onde a filantro a é elevada à política do Estado e onde a palavra da moda — pirceria — que dá entender troca de iguais, esconde o caráter antidemocrático deste tipo de política; — surgimento de centenas de Organizações Não-Governamentais — ONGs, que disputam o fundo público, em sua grande maioria, para auto-pagamento. Esta pulverização de ONGs tem

Além das obras clássicas de Gramsci (1978, 1979) sobre esta questao o livro A escola de Gramsci de Paolo Noselia (1992), nos permite uma compreensão profunda e adequada desta concepção. 4

Pg.87 um duplo efeito perverso: ofusca e compromete as tradicionais ONGs que têm, efetivamente, um trabalho social comprovado e passam a falsa idéia que se constituem em alternativa democrática e eficiente ao Estado. Esta tese vem sendo difundida pelos organismos internacionais que emprestam recursos ao Brasil, como, por exemplo, o Banco Mundial. Em síntese, vale ressaltar que não é casual o processo atual de abandono das teses da democratização e da igualdade no campo social e educacional. Na realidade, este abandono tem a persistência de quase meio século de defesa da tese básica do teórico mais importante da ideologia neoliberal, Friedrich Hayek que postula, como vimos anteriormente, que a democratização e a igualdade levam à servidão. O princípio fundamental é a liberdade do mercado, pois este é único justiceiro que premia, de acordo com o esforço individual, os mais capazes e aptos. Parecem-nos imprescindíveis as indicações que Anderson nos traz ao discutir o tema de como combater o neo liberalismo e que, no contexto desta análise, vale para as teses pós-modernistas. Após assinalar que não se deve ter nenhum medo de estar abso lutamente contra a corrente e de apreendermos dos conservadores neoliberais a não transigirmos teoricamente, Anderson realça que a luta primeira é no campo dos princípios. Primeiro, temos que contra-atacar robusta e agressivamente sobre o terreno dos valores, ressaltando o princípio da igual dade como critério central de qualquer sociedade verdadei ramente livre. Igualdade não quer dizer uniformidade, como crê o neoliberalismo. Ao contrário, é a única autêntica diver sidade. O lema de Marx conserva hoje toda a suficiência pluralista: a cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas capacidades. A diferença entre requisitos, os temperamentos e os talentos está expressamente gravada nesta concepção clássica de uma sociedade igualitária justa.O que isto significa hoje em dia é uma igualização das possibilidades reais de cada cidadão de viver uma vida plena, segundo o padrão que escolher, sem carências ou desvantagens devido ao privilégio de outros. Começando, bem entendido, com chances iguais de saúde, de educação, de vida e de trabalho. Em cada uma destas áreas não há nenhuma possibilidade que

PG.88 o mercado possa prover, nem sequer o mínimo requisito de acesso aos bens imprescindíveis em questão (Anderson, 1995, p. 199).

A seguir, tomaremos dois conceitos gerais —capital humano — que representou o constructo ideológico básico do economicismo na educação nos anos 60/70, sobretudo no Brasil e América Latina, e sociedade do conhecimento, que se constitui numa metamorfose do primeiro e expressa a base ideológica da forma que assumem as relações do capitalismo globalizado sob uma nova base técnico-científica. Neste item, objetivamos analisar a materialidade político-econômica e social do contexto histórico dentro do qual se constroem os conceitos de capital humano e de sociedade do conhecimento, níveis mais abstratos de um conjunto de conceitos que embasam as concepções e políticas de qualificação na ótica dos homens de negócio. Vinculados ao conceito de capital humano, a literatura nos permite rastrear conceitos mais

operativos como: custo-benefício, taxa de retorno, mampower aproach, custo-eficiência, custo-qualidade, determinantes da educabilidade. Os conceitos, hoje mais qualitativos, de formação para a competitividade, qualificação e formação flexível, abstrata e polivalente, qualidade total, explicitam também, a nível mais operativo, a categoria de sociedade do conhecimento. Buscamos, igualmente, evidenciar que a categoria sociedade do conhecimento, e seus desdobramentos, expressa, na sua for mulação ideológica, uma efetiva mudança da materialidade da crise e das contradições da sociedade capitalista neste final de século. Trata-se, todavia, ao contrário do que postulam os apoio getas do fim da história e das classes sociais e da sociedade pós-industrial, de uma mudança secundária, derivada, incapaz de modificar a essência excludente da ordem social capitalista. Cabe, entretanto, destacar que a materialidade das contradições que assume a forma capital hoje, em sua negatividade de exclusão mais perversa, engendra possibilidades de rupturas com uma nova Esta parte do texto reproduz, com alguns acréscimos, o texto “Capital humano e sociedade do conhecimento: concepção neoconservadora de qualidade na educação”, Revista Contexto & Educação, Editora UNIJUI, ano 9, n. 34, abr./jun., 1994, pp. 7-28. 5

PG. 89 qualidade. Esta ruptura de nova qualidade, no caso brasileiro, tem como exigência a incorporação efetiva nos processos políticos dos novos sujeitos sociais que emergiram nestas duas últimas décadas. Trata-se de romper com os esquemas das classes dominantes brasileiras acostumadas historicamente a definir a “democracia para poucos”, pelo alto, e construí-la com estes novos sujeitos coletivos organicamente vinculados às lutas pelos direitos, não apenas políticos, mas sociais, das classes populares. O CONTEXTO HISTÓRICO SOERE O QUAL SE CONSTRÓI A CATEGORIA ANALÍTICA DE CAPITAL HUMANO A teoria do capital humano, que constitui o corpus ideológico e “teórico” de uma disciplina específica — Economia da Educação — que surge inicialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, nos anos 60 e no Brasil, nos anos 70 — se estrutura no contexto das teorias do desenvolvimento ou ideologia desenvolvimentista do após II Guerra Mundial. A teoria do desenvolvimento é, na verdade, mais uma teoria da modernização do que a explicação das bases e determinações materiais contraditórias em que se assenta o processo de produção e reprodução capitalista. Resulta de uma forma de apreender a realidade presa à condição de classe social. Na sociedade burguesa as relações de produção tendem a configurarem-se em idéias, conceitos e doutrinas ou teorias que evadem seus fundamentos reais.

As teorias de desenvolvimento/modernização, da qual o capital humano passa a ser um elemento básico, na perspectiva das pesquisas do grupo de estudos do desenvolvimento, coordenados Nada mais complexo e, contraditor necessário, que discutir-se, atualmente, o conceito de classe social. A literatura liberal e neoclássica que in limine ignoraeste conceito, acrescese, uma vasta literatura pós ou pós-moderfla, que vai dos apologetas da sociedade do conhecimento, fim do cognitariado (Toffler, 1977 e 1985), aos neo (Offe, 1989) e outros autores ligados à tradição marxista como Schaff (1990) e Kurz (1992), que defendem a tese do fim da sociedade do trabalho e com ela das classes sociais”. Entendemos, todavia, como situa Francisco de Oliveira (1988, 1993) que quanto mais avançado é o desenvolvimento capitalista mais difícil de apreender a natureza e estrutura das classes sociais fundamentais. A dificuldade de aprender as relações de classe, como o capitalismo não acabou e a relação capital comanda o conjunto das relações sociais, não elide a sua existência rea e efetiva. 6

PG.90 por Theodore Schultz, assume, de forma cada vez mais clara, uma função ideológica e, por esta via, como parte da estratégia de estruturação da hegemonia americana no contexto do após II Guerra Mundial. O desenvolvimento transforma-se numa espécie de fetiche — idéia motriz capaz de vacinar as nações (livres) subdesenvolvidas da ameaça do inimigo: o comunismo. Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado, USA, não podia ser mais explícito (em 1965) — só o será outro assessor deste departamento, Fukuyama em 1992 com a tese do fim da história — sobre o caráter de preocupação em proteger e estender os domínios da “sociedade livre e democrática” sob a hegemonia americana: “sabemos que não podemos mais encontrar segurança e bem-estar numa política e numa defesa confinadas apenas na América do Norte. Este planeta tornou-se pequeno, devemos cuidar dele todo — com toda a sua terra, água, atmosfera e espaço circundante”. Nesta estratégia, na década de 50, desenvolve-se o New Deal do governo Truman. Nele, elabora-se o Programa de Cooperação Técnica, cujo objetivo declarado é a ajuda ao desenvolvimento. Por ele foram feitos vários acordos no campo da formação e da qualificação técnica e profissional. Na década de 60, com o governo J. F. Kennedy, a idéia desenvolvimentista é mais forte como estratégia de melhoria das condições de vida dos países subdesenvolvidos. Esta idéia tem como escopo o surgimento da Aliança para o Progresso, assinada em Punta Del Leste, em 1961. O próprio conceito de progresso sinaliza a concepção de desenvolvimento. Os instrumentos deste midado” foram sendo construídos no pós II Guerra — ONU, OTAN, FMI, BID, UNESCO, OIT — organismos supranacionais que, como nos aponta Noam Chomsky (1993), são os novos senhores do mundo ou o poder no mundo de fato. E dentro do ideário da Carta de Punta del Leste que explicitamente se assenta idéia de recursos humanos, de investimento em educação e treinamento — em capital humano — como fator chave de desenvolvimento. Para compreendermos porque as teses da qualidade total, formação flexível e polivalente e a categoria sociedade do conhecimento são apenas expressões de uma nova materialidade da crise PG.91

e contradição do capitalismo (hoje) e que, portanto, denotam a continuidade da subordinação da educação à lógica da exclusão, é didaticamente importante responder algumas questões: a) Qual o enigma que se busca decifrar e que conceito de capital humano é posto como a chave deste deciframento? O enigma que se busca decifrar é entender porque certas nações acumulam capital, riqueza, e outras não. E a velha questão de Adam Smith, que resulta em seu livro sobre A Riqueza das Nações. Que fatores produzem esta diferença? (não são relações, sempre a idéia é de fator). Theodore Schultz (prêmio Nobel de economia em 1968) e sua equipe, no Centro de Estudos de Desenvolvimento, perseguem a resposta para decifrar este enigma. De acordo com eles, após longos anos de pesquisa, o fator H (capital humano) é responsável por mais de 50% destas diferenças entre nações e indivíduos. b) O que constitui o capital humano e o que se diz gerar em termos de desenvolvimento no plano inter e intranações e no plano individual? O capital humano é função de saúde, conhecimento e atitudes, comportamentos, hábitos, disciplina, ou seja, é expressão de um conjunto de elementos adquiridos, produzidos e que, uma vez adquiridos, geram a ampliação da capacidade de trabalho e, portanto, de maior produtividade, O que se fixou como componentes básicos do capital humano foram os traços cognitivos e comportamentais. Elementos que assumem uma ênfase especial hoje nas teses sobre sociedade do conhecimento e qualidade total, como veremos a seguir. Chegouse a fazer uma escala — para os cursos de formação profissional — de quanto de cada elemento, conhecimentos e atitudes, eram necessários de acordo com o tipo de ocupação e tarefa. CEPAL, OREALC, CINTERFOR, entre outras, foram as agências representantes dos organismos internacionais na América Latina para disseminar as estratégias de produzir capital humano. O resultado ésperado era que nações subdesenvolvidas, que investissem pesadamente em capital humano, entrariam em Para uma análise crítica da origem e desdobramento da teoria do capital humano, ver: Arapiraca (1982), Frigotto (1984) e Finkel (1977). 7

PG.92 desenvolvimento e, em seguida, se desenvolveriam. Os indivíduos, por sua vez, que investissem neles mesmos em educação e treinamento, sairiam de um patamar e ascenderiam para outro na escala social. Mário H. Simonsen (1969) foi o mais notável representante zeoclássico a propalar a tese do capital humano no Brasil. Foi ele, ambém, o principal idealizador do MOBRAL. O pressuposto, dentro da perspectiva da teoria econômica neoclássica ou marginalista, era de que com uma margem maior de instrução ter-se-ia zecessariamente uma margem maior de produtividade e, como conseqüência, maiores ganhos, já que, dentro desta visão, o capital remunera os fatores de produção de acordo com sua contribuição produção. c) O que este constructo — capital humano — não leva em conta e qual é, portanto, sua debilidade teórica e político-prática?

Por ser uma formulação que olha a relação capitalista dentro e o sistema como um dado resultante da perspectiva liberal e neoclássica de compreensão da realidade social, não leva em conta as relações de poder, as relações de força, os interesses antagônicos e conflitantes e, portanto, as relações de classe. A entidade da tese do capital humano de gerar política e socialmente o que prometia em termos das nações e dos indivíduos resulta pois, da forma invertida de apreender a materialidade histórica das relações econômicas, que são relações de poder e de força e não uma equação matemática como querem os neoclássico ou neoconservadores. Alguns elementos histórico-empíricos, a título de exemplificação, nos ajudam a elucidar esta debilidade. Celso Furtado 1992) mostra-nos que “durante 50 anos o Brasil cresceu mais do que qualquer país do mundo, alcançou uma das taxas de crecimento mais altas, 7% ao ano — a cada 10 anos o PIB dobrava. L o país fez isso acumulando miséria” (Furtado, Jornal do Brasil, -10-1993, p. 13). Os dados publicados pelo IBGE na última PNAD (1994), traduzem esta miséria em termos de desemprego, fome e miséria. O Brasil tem 10 milhões e meio desempregados absolutos e mais de 20 milhões, se contarmos o emprego. O produto industrial cresceu 11% em 93 e o em 1%. PG.93 Tomando os países da América Latina no seu conjunto, C. Vilas (1991) mostra-nos que o número de miseráveis absolutos aumentou nas décadas de 70/80 em 70 milhões. Isto eqüivale, aproximadamente, a duas vezes a população da Argentina. Em estudos de Goran Therborn — Por que en algunos paises ai mais paro que en otros? (1988) e Competitividad, Economia y Estado de Bienestar (1993) indica-nos a crise de desemprego e subemprego dos países centrais. Os países do Mercado Comum Europeu têm taxas médias de 12% de desemprego. A Espanha, todavia, tem 22%. Nos últimos 20 anos a Espanha teve um crescimento econômico de 100% e crescimento negativo de 2% no emprego. A debilidade deste conceito e sucedâneos, bem como das políticas que dele derivam, explicita-se por: — um acelerado processo de implosão dos “Estados-Nações”, a partir dos anos 60; — uma nova divisão internacional do trabalho; — uma nova regionalização do mundo e concentração sem precedente de capital e do conhecimento técnico-científico. Até mesmo nações que prosperaram dentro da social democracia e do Estado de Bem-Estar Social — e que estabilizariam suas economias dando não só ganhos políticos, mas sociais aos trabalhadores iniciaram, na década de 70, uma crise que explodiria no fim dos anos 80. No plano do processo de trabalho e divisão internacional do trabalho, a teoria do capital humano assenta sobre a perspectiva do “fordismo” que se caracteriza pela organização de grandes fábricas, tecnologia pesada e de base fixa, decomposição das tarefas, ênfase na gerência do trabalho, treinamento para o posto, ganhos de produtividade e estabilidade no emprego, justamente quando o modo de regulação fordista também entrava em crise.

É dentro da nova materialidade das relações intercapitalistas — implosão dos “Estados-Nações”, desenvolvimento das corporações transnacionais, reorganização de novos blocos econômicos e de poder político e da mudança da base técnico-científica do processo e conteúdo do trabalho, mediante, sobretudo, uma 8

Para uma análise da crise do fordismo, ver Alliez (1988), Palloix (1982), Coriat (1979 e 1989).

PG.94 crescente recomposição orgânica do capital, substituição de tecnologia fixa por tecnologia flexível e acelerado aumento do capital morto em detrimento da força de trabalho, capital vivo — que emerge de uma nova categoria geral, sociedade do conhecimento e novos conceitos operativos de: qualidade total, flexibilidade, trabalho participativo em equipe, formação flexível, abstrata e polivalente.

A NOVA MATERIALIDADE DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E A CATEGORIA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO Em recente análise, Eric J. Hobsbawm (1992) faz um rigoroso inventário do conceito de nação e da constituição das nações e dos nacionalismos, mostrando que seu apogeu começa a declinar na década de 60. Hobsbawm conclui que não é que as nações e o nacionalismo desapareceram e não tenham importância. Apenas que as lutas nacionalistas hoje são de caráter reacionário e que, para o que nos interessa sobretudo nesta análise, do ponto de vista econômico a nação não é mais o principal centro de referência. A ‘nação’ hoje, visivelmente, está em vias de perder uma parte importante de suas velhas funções, nominalmente aquela de constituição de uma economia nacional.(...) especialmente desde os anos 60 o papel das economias nacionais tem sido corroído ou mesmo colocado em questão pelas principais transformações na divisão internacional do trabalho, cujas unidades básicas são organizações de todos os tamanhos, multinacionais ou transnacionais e redes de transações econômicas, que estão para fins práticos fora do controle dos governos e estados (Hobsbawm, 1992).

De acordo com este autor, o número de organizações transnacionais e intergovernamentais cresceu de 123 em 1951 para 365 em 1984. Na mesma perspectiva de análise, a crise fiscal dos “Estados-Nações”, as taxas crescentes de inflação, a implosão do fundo público, condição crucial, e insubstituível do capitalismo contemporâneo, são para Francisco de Oliveira (1988), expressão da forma transnacional de organização econômica, cujos novos senhores do mundo são FMI, BIRD. PG.95 No plano político e econômico, indica-nos Oliveira, a crise se dá nos processos de internacionalização produtiva e financeira da economia capitalista. A regulação keynesiana funcionou enquanto a reprodução do capital, os aumentos de produtividade, a elevação do salário real se circunscreveram aos limites — relativos por certo — da territorialidade nacional dos processos de interação daqueles componentes de renda e do produto (Oliveira, 1988, pp. 12-3).

Mostra-nos este autor que o processo de internacionalização tirou parte dos ganhos fiscais sem, todavia, liberar o fundo público de financiar a reprodução do capital e da força de trabalho. Um elemento que engendra uma espécie de sobredeterminação às visões apologética das relações capitalistas hoje é o colapso do socialismo real. Não cabe aqui este debate, apenas vale registrar que os apologetas tomam a crise do socialismo como prova da verdade das leis de mercado — fim das classes sociais e fim da história. Esta reorganização econômico-política internacional desenvolve-se conjuntamente com um verdadeiro revoluciona mento da base técnica do processo produtivo, resultado, em grande parte, do financiamento direto ao capital privado e indireto, pelo fundo público, na reprodução da força de trabalho. A microeletrônica associada à informatização, a microbiologia e engenharia genética, que permitem a criação de novos materiais e as novas fontes de energia, são a base da substituição de uma tecnologia rígida por uma tecnologia flexível no processo produtivo. Esta mudança qualitativa da base técnica do processo produtivo, que a literatura qualifica como sendo uma nova revolução tecnológica e industrial¹° de forma sem preceden tes, acelerar o aumento da incorporação de capital morto e a Autores como Bell (1973), Toffler (1973, 1977 e 1980) e Fukuyama (1989), para destacar os mais notáveis, caem em delírio e vêm suas teses do fim das classes, fim da sociedade do trabalho e da história como definitivas. A sociedade do conhecimento e o mercado aparecem, enfim, como os construtores da “nova harmonia”. Para uma crítica a esta perspectiva ver: Anderson (1992), Blackburn (1992). 9

Para uma análise crítica da compreensão que se vulgarizou de revolução tecnológica e revolução industrial, ver Williams (1984). 10

PG.96 diminuição crucial, em termos absolutos, do capital vivo no processo produtivo. Vale registrar que a mudança para uma base técnica flexível, informatizada, embora se dê em grau e velocidade diferenciados, é uma tendência do sistema. O impacto sobre o conteúdo do trabalho, a divisão do trabalho, a quantidade de trabalho e a qualificação é crucial. Ao mesmo tempo que se demanda uma elevada qualificação e capacidade de abstração para o grupo de trabalhadores estáveis (um número cada vez mais reduzido que, de acordo com vários estudos, não ultrapassa a 30% da população economicamente ativa) cuja exigência é cada vez mais de supervisionar o sistema de máquinas informatizadas (inteligentes!) e a capacidade de resolver, rapidamente, problemas, para a grande massa de trabalhadores “precarizados”, temporários ou simplesmente excedente de mão-de-obra, a questão da qualificação e, no nosso caso, de escolarização, não se coloca como problema para o mercado. Dentre as várias estratégias que o capital se utiliza para tetomar uma nova base de acumulação destacam-se os processos de reestruturação capitalista que incluem: reconversão tecnológica, organização empresarial, combinação das forças de trabalho e estruturas financeiras. De outra parte, as empresas deslocam-se de Lima região para outra saindo dos espaços onde a “classe trabalhadora” é mais organizada e, historicamente, vem acumulando a conquista de direitos.

É no chão desta nova (des)ordem mundial —globalização, internacionalização, colapso do socialismo real e reestruturação econômica de um lado e mudança da base técnica do trabalho, do outro, sem mudança das relações sociais capitalistas — que emerge, a partir dos anos 70 uma literatura apologética sobre: sociedade pós-industrial, sociedade do conhecimento e os conceitos ligados ao processo de qualificação e formação humana: qualidade total, trabalho participativo, formação flexível, abstrata e polivalente. As organizações supranacionais FMJ, BIRD, UNESCO, OIT, são as mesmas dos anos 60, somente mais poderosas, e suas filiais latino-americanas CEPAL, OREALC, etc. que têm a tarefa de substituir o conceito de capital humano e seus desdobramentos — taxa de retorno, custo-eficiência, custo-qualidade, formação PG.97 de atitudes e valores — pelos novos conceitos anteriormente indicados, O documento da CEPAL/UNESCO: Educación y conocimiento: eje de la transformación productiva con equidad (1992) é emblemático para entender-se esta nova lógica. No Brasil, vários documentos buscam divulgar este novo conjunto de conceitos como base de políticas neoconservadoras no campo educativo, O documento do Instituto Herbert Levy — Ensino fundamental & competitividade empresarial—, elaborado com a participação de intelectuais e técnicos conhecidos, segue a mesma linha dos trabalhos da CEPAL. Mais próximo aos interesses dos homens de negócios, o Instituto Euvaldo Lodi (IEL), uma espécie de intelectual coletivo do empresariado, em consórcio com o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, igualmente promove a divulgação destes novos conceitos através de seminários, cursos e documentos. Os processos crescentes de exclusão social que se dão hoje no Primeiro Mundo e, de forma brutal e mais perversa entre nós, levam-nos a examinar com mais cuidado a súbita valorização do trabalhador, sua qualificação, sua participação e o sentido da qualidade total, da participação, da qualificação flexível, abstrata e polivalente. Os novos conceitos relacionados ao processo produtivo, organização do trabalho e à qualificação do trabalhador aparecem justamente no processo de reestruturação econômica, num contexto de crise acirrada de competitividade intercapitalista e de obstáculos sociais e políticos às tradicionais formas de organização da produção. A integração, a qualidade e flexibilidade, os conhecimentos gerais e capacidade de abstração rápida constituem-se nos elementos chaves para dar saltos de produtividade e compe titividade. O que deespecífico, efetivamente, traz a nova base técnico-científica que faculta mudanças profundas na produção, organi zação e divisão do trabalho e que, efetivamente, demanda uma “nova qualidade dos trabalhadores”? A base mecânica e eletro-mecânica caracterizam-se por um conjunto de máquinas fixas, com rigidez de programação de seqüência e movimentos para produtos padronizados e em grande escala. Sob esta base, característica de taylorismo e fordismo, os PG.98 custos de mudança são elevadíssimos e, por isso, ficam evidentes os limites para uma automação flexível.

As mudanças da tecnologia com base microeletrônica, mediante a informatização e robotização, permitem ampliar a capacidade intelectual associada à produção e mesmo substituir, por autômatos, grande parte das tarefas do trabalhador. Como nos mostra Castro: As novas tecnologias (microeletrônicas, informáticas, químicas e genéticas) se diferenciam das anteriores pelo predomínio da informação sobre a energia (Castro, 1993, p. 6). A informação é a “terceira dimensão da matéria, sendo as outras duas energia e massa” (Rubin, 1993, apud Castro, ibid).

A tradução destes conceitos pontes ou jargões — globalização, qualidade total, flexibilidade, integração, trabalho enriquecido, ciclos de controle de qualidade — em termos concretos dá-se mediante métodos que buscam otimizar tempo, espaço, energia, materiais, trabalho vivo, aumentar a produtividade, a qualidade dos produtos e, conseqüentemente, o nível de competitividade e da taxa de lucro. Dentre estes métodos, como nos indica Salerno (1991 e 1992), a literatura destaca: Just in time e Kan Ban que objetivam, mediante a integração e flexibilização, redução do tempo e dos custos de produção e circulação, programando a produção de acordo com a demanda; por métodos ou sistemas vinculados ao processo de produção como CAD (computer aided design) e CAN (computer aided manufacturing) e a vinculação de ambos, ensejando a integração do projeto com a manufatura; ou, por outras estratégias menos enfatizadas mas importantes, de estruturação e organização das empresas ou entre empresas que concorrem para os objetivos anteriores. Ao depurarmos o discurso ideológico que envolve as teses da “valorização humana do trabalhador”, a defesa ardorosa da educação básica que possibilita a formação do cidadão e de um trabalhador polivalente, participativo, flexível e, portanto, com elevada capacidade de abstração e decisão, percebemos que isto decorre da própria vulnerabilidade que o novo padrão produtivo, altamente integrado, apresenta. PG.99 Dois aspectos nos ajudam a entender porque o capital depende de trabalhadores com capacidade de abstração e de trabalho em equipe: a) O novo padrão tecnológico calcado em sistemas informatizados projeta o processo de produção “com modelos de representação do real e não com o real”. Estes modelos, quando operam, entre outros intervenientes, face uma matéria-prima que não é homogênea, podem apresentar problemas que comprome tem todo o processo. A intervenção direta um trabalhador com capacidade de análise torna-se crucial para a “gestão da variabilidade e dos imprevistos produtivos” (Salerno, 1992, p 7). b) Por serem sistemas altamente integrados e, portanto, os imprevistos, os problemas não atingirem apenas um setor do processo produtivo mas o conjunto, o trabalhador parcelar do taylorismo constitui-se em entrave. Não basta, pois, que o trabalhador de “novo tipo” seja capaz de identificar e de resolver os problemas e os imprevistos, mas de resolvê-los em equipe: O capital, forçado pela vulnerabilidade e complexidade de sua base tecno-organizacional passou a se interessar mais pela apropriação de qualidade sócio-psicológicas do trabalhador coletivo através dos chamados sistemas sócio-técnicos de trabalho em equipes, dos círculos de qualidade, etc. Trata-se de novas

formas de gestão da força de trabalho que visam a garantir a integração do trabalhador aos objetivos da empresa (Castro, 1992, p. 8).

A estratégia mais geral de subordinação dá-se mediante o mecanismo de exclusão social, materializado no desemprego estrutural crescente e no emprego precário, também crescente, na contrata ção de serviços e enfraquecimento do poder sindica. O estudo feito por um grupo de pesquisadores americanos, com a participação de pesquisadores de dezenove outros países, para examinar o sistema de produção da Toyota (toyotismo), considerado pelà literatura como sendo o sistema que origina os processos de “qualidade total”, flexibilização, trabalho participativo, do qual resultou o livro The Machine that Changed the World (1990), ao mesmo tempo que expõe uma perspectiva apologética deste sistema, sintetiza sua lógica excludente. Trabalhadores em excesso têm PG.100 que ser expulsos rápida e completamente da fábrica para garantir que as inovações dêem certo. Esta realidade, todavia, indica-nos que as organizações polícas e sindicais que se articulam com os interesses da classe trabalhadora necessitam entender, cada vez mais, que o conhecimento científico e a informação crítica e algo fundamental para suas lutas. No campo da educação e formação, os novos conceitos que tentam dar conta desta nova materialidade são: formação para a qualidade total, formação abstrata, policognição e qualificação Flexível e polivalente. Rezende Pinto (1992), numa revisão internacional e nacional de literatura e a partir de trabalho de campo em empresas que estão em processo de reconversão tecnológica, decodifica com detalhes os componentes básicos do que constitui o conceito de policognição ou de qualificação polivalente: a) o domínio dos fundamentos científicos-intelectuais subjacentes às diferentes técnicas que caracterizam o processo produtivo moderno, associado ao desempenho de um especialista em um ramo profissional específico; b) compreensão de um fenômeno em processo no que se refere tanto à lógica funcional das máquinas inteligentes como à organização produtiva como um todo; c) responsabilidade, lealdade, criatividade, sensualismo; d) disposição do trabalhador para colocar seu potencial cognitivo e comportamental a serviço da produtividade da empresa Pinto, 1992, p. 3). A inúmeras receitas dos “consultores de recursos humanos”, que anunciam “o que se espera do profissional do ano dois mil”, convergem para as seguintes características: flexibilidade, versatilidade, liderança, princípios de moral, orientação global, hora de decisão, comunicação, habilidade de discernir, equilíbrio físico emocional Jornal O Globo, 11-0793, p. 42). Pablo Gentili, numa análise sobre Poder econômico, ideología educación — un estudio sobre los empresarios, las empresas y discriminación educativa en la Argentina de los años 90 (1994), detalha, numa perspectiva crítica, as estratégias empresariais para

PG.101 adaptar a educação e a qualificação aos seus interesses. Do mesmo autor, o texto O discurso da “qualidade” como nova retórica conservadora no campo educacional (1994) aborda de forma densa e crítica os aspectos centrais da qualidade na ótica do “mundo dos negócios” e as estratégias no âmbito da gestão do campo educativo. O balanço que fazemos desta análise da gênese dos novos conceitos articulados à categoria mais geral sociedade do conhecimento nos leva a indagar: o que alteram substantivamente estes conceitos dos elementos constitutivos da função capital humano? Os novos conceitos que se relacionam à qualificação reduzem-se fundamentalmente aos elementos básicos do capital humano: dimensões cognitivas (conhecimento abstrato) e valores, atitudes, comportamento. Hoje, apenas por necessidades do capital com uma base de características psicossociais e de participação subordinada maior e, pelo menos para os que têm emprego fixo e atuando num esquema de reconversão tecnológica, um nível melhor de escolaridade. E onde se situa a debilidade histórico-concreta deste conceito mais abstrato e geral — sociedade do conhecimento e seus desdobramentos? A explicação desta debilidade mantém-se a mesma no plano teórico e político e se materializa pela regressão neoliberal modelada por Thatcher e Reagan, cujos mentores básicos são Hayek (1985 e 1987) e Friedman (1977 e 1980).11 De forma mais dissimulada, os conceitos de “sociedade do conhecimento”, qualidade total, flexibilidade e participação, elidem as relações de classe e de poder. E, como indicamos anteriormente, com um reforço conjuntural enorme, determina do pelo colapso de uma forma histórica de socialismo, posta como sendo a única e que provou-se inviável e, por ela, qualquer outra possibilidade. No plano político-social a regressão neoliberal ou neoconser vadora consiste nos processos de recomposição da crise do capital, 11 Para uma análise das raízes do modelo neoliberal e sua influência nas políticas educacionais, veja-se Bianchetti (1992) e Finkel (1990).

PG.102 suas contradições mediante a exclusão econômico-social a sacri fício da maioria. O ideário básico defende a idéia da volta do Estado mínimo que é, como nos indica F. de Oliveira (1988), reduzir o fundo público como pressuposto apenas do capital. Pressupõe, ainda, este ideário o zeramento de conquistas sociais, de ganhos de produtividade e direitos sociais. Postula-se a volta às leis puras de mercado como as únicas democráticas e justas na definição do conjunto de relações sociais. As políticas que se vêm implementando no plano social e educacional na Argentina, Chile, e Brasil elucidam esta regressão. Trata-se de sociedades que reservam a possibilidade de vida digna apenas para menos de um terço da sua população. No campo especificamente educativo a regressão neoliberal manifesta-se pelo aniquilamento da escola pública mediante os mais diversos subterfúgios: escolas cooperativas; sistemas escola res de empresas (Bradesco, Xerox, Rede Globo de TV);

adoção da idéia do bônus educacional de Friedman; adoção por empresas de escolas públicas; escolas organizadas por “comunidades ou centros habitacionais populares”. A TÍTULO DE CONCLUSÃO No debate aqui exposto, preocupamo-nos menos com o caráter exaustivo da análise e mais com o horizonte da mesma. Vários estudos apontam nesta direção, os textos desta coletânea são indicativos. Parece-nos importante salientar que a possibilidade de construção de alternativas democráticas e socialistas implica, necessariamente, um esforço sistemático de compreensão crítica da crise do capitalismo hoje realmente existente e o embate no plano teórico, ideológico e ético-político. Neste sentido, há que se fazer um esforço para qualificar a crise teórica, a crise econômico-social, ideológica e ético-política, para além das aparências. O exame dos conceitos de capital humano, de sociedade de conhecimento e de suas derivações, tentando apreendê-los nas 12

Para uma análise crítica destas estratégias, ver Frigotto (1994).

PG.103 determinações históricas que os constituem, alinham-se neste esforço. Fica claro, em nosso entender, que a mudança dos conceitos mais abstratos — capital humano para sociedade do conhecimento — expressam a forma mediante a qual ideologicamente se apreende a crise e as contradições do desenvolvimento capitalista e se encobre os mecanismos efetivos de recomposição dos interesses do capital e de seus mecanismos de exclusão. Esta mudança de conceitos exprime, também, uma materia lidade mais complexa e perversa da contradição capital trabalho. O que não mudou é a natureza da relação capital e a forma de subordinar a vida humana aos desígnios do lucro. Pelo contrário, exacerbou-se a exclusão de muitos, evidenciada pela elevação do desemprego e subemprego, inclusive nos países do capitalismo central e os índices de miséria absoluta. Neste quadro, a “revolução tecnológica” fantástica, pela re lação social de exclusão que a comanda, esteriliza sua imensa virtualidade de aumento da qualidade de vida, diminuição de esforço e sofrimento humano. Paradoxalmente, transforma-se de possibiitadora de vida em alienadora da mesma, mediante o desemprego e subemprego de enormes contingentes de pessoas. A luta histórica dos trabalhadores para libertar-se da condição de “mercadoria força de trabalho” perversamente torna-se hoje uma disputa dos trabalhadores para manter o emprego, ainda que sob condições alienantes. Há que se atentar, todavia, para uma nova qualidade de contradição. O capitalismo — mesmo no Brasil —experimentou nestes últimos 50 anos, um imenso avanço em suas forças produtivas. Dilatou-se a capacidade de produção. O que está intacta, é preciso remover, é a apropriação social deste imenso avanço.

A alternativa, pois, não é a regressão neoliberal. Seus limite estão postos no sentido mesmo das necessidades do capital. A alternativas, tampouco, passam por caminhos do quanto pior melhor ou por esquemas de natureza apocalíptica. O Estado de Bem-Estar Social — entre nós, com nos indica Eduardo Galeano, Estado de mal-estar social — ao produzir formas mais avançadas de reprodução da força de trabalho e de direitos sociais, mediante o fundo público, sinaliza que o caminho não é a regressão, de face à crise, mas é o salto para novas formas PG.104 sociais, que vários autores denominam de socialismo com democracia. O socialismo, como nos indica Hobsbawm (1992), ainda está no programa. Neste programa reside a alternativa às relações sociais de exclusão e um projeto educativo que desenvolva as múltiplas dimensões do humano — educação omnilateral e, por tanto, politécnica. Ao contrário da tese do Estado mínimo, esta direção implica perceber que “o manejo e controle do fundo público”, como nos indica Oliveira (1988), é o nec plus ultra destas novas formas sociais. Para o campo social e especificamente educacional, o que devemos postular é o Estado máximo democrático no conteúdo, na forma e no método. Este embate, contraditoriamente, implica trabalhar de dentro das contradições, na sua virtualidade e negatividade. Embate, cujo pressuposto implica perceber a formação e qualificação humana como atividades e práticas sociais não-neutras. São práticas que se definem no bojo da luta hegemônica, sendo elas mesmas seus elementos constituintes. A análise anteriormente exposta, ao contrário de emprestar às relações capitalistas vida eterna, indica-nos crises e contradições. Ao nível material a forma de manutenção do privilégio de poucos demanda a exclusão de muitos. Até mesmo no primeiro mundo surge um terceiro mundo de subclasses. Neste sentido, no plano da luta contra-hegemônica, as organizações políticas e sindicais que se articulam com os interesses da classe trabalhadora necessitam entender, cada vez mais, que o conhecimento científico e a informação crítica são algo fundamental para suas lutas. O senso comum e a opinião (doxa) ou a experiência acumulada por longo tempo de prática (sofia), são elementos importantes, mas, insuficientes. A nova realidade histórica demanda conhecimentos calcados na episteme — conhecimento crítico. A escola pública, unitária, numa perspectiva de formação omnilateral e politécnica, levando em conta as múltiplas necessidades do ser humano é o horizonte adequado, ao nosso vér, do papel da educação na alternativa democrática ao neoliberalismo. PG.105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLIEZ, E.. Estilhaços do capital. In: Contratempo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. ANDERSON, P. Além do Neoliberalismo. In: Sader & Gentili. Pós-Neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995.

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vinculaçõeS dos estados- nações entre si (Held, 1983; 1989; 1991; Sonntag e Valecilios, 1977; Vincent, 1987). Dentro das perspectivas críticas do liberalismo, e especial mente as que encontram suas fontes nas teorias da democracia — o neo e a sociologia política —, a discussão do estado adquire novas perspectivas. Em uma primeira aproximação da noção de estado, este aparece como um instrumento heurístico, um conceito que difere radicalmente das noções clássicas de regime político, de governo ou de poder público. Enquanto instrumento heurístico, a noção de estado reflete a imagem de condensação de poder e força na sociedade. O exercício do poder do estado faz-se mediante o exercício de atos de força e coerção sobre a sociedade civil através de aparatos de força especializados do estado. Por sua vez, esta noção de condensação de forças remete a outro aspecto central do estado, a noção de que o estado exerce poder; às vezes é um exercício do poder que é inde pendente dos grandes atores sociais, às vezes é exercido em função de interesses específicos representados na sociedade. Assim, o poder do estado pode refletir um projeto político específico, uma aliança de classes e, portanto, interesses econômicos, sociais, culturais até morais e éticos específicos. O estado aparece como uma aliança ou pacto de dominação social. Nestes termos, há um aspecto fundamental destas perspecti vas de dominação onde o estado é também uma arena de confron tação de projetos políticos. Como arena de confrontação, não somente expressa as vicissitudes das lutas sociais, as tensões dos acordos e desacordos de forças sociais, mas também as con tradições e dificuldades de estabelecer uma ação unificada, coer ente e marcada pelos parâmetros centrais de um projeto político específico. Toda política pública, ainda que parte de um projeto de dominação, reflete, como arena de luta e como caixa de ressonância da sociedade civil, tensões, contradições, acordos e desacordos políticos, às vezes de grande magnitude. Entender o estado única e exclusivamente como um agente na luta de classes tira de foco outras variantes importantes da ação PG.110 social. As distinções de classe e outros aspectos de raça e etnia, gênero, localização geográfica ou mesmo diferenças ético-morais ou religiosas entre indivíduos geram relações sociais e ações sociais nas quais o estado se vê obrigado a intervir em seu papel de legislador sancionador e executor das leis sociais, supervisionando sua aplicação e estabelecendo as práticas de punição. Claus Offe, tomando o que considera a questão central da prática estatal a contradição entre promover o acúmulo de capital e, simultaneamente, promover a legitimidade do sistema capitalista como um todo —, propõe um aspecto analítico, baseado na teoria dos sistemas, que complementa e estende a análise gramsciana e a interpretação de Poulantzas. Para Offe, o estado é um mediador nas crises do capitalismo, que adquire funções específicas ao servir de mediador na contradição básica do capitalismo — a crescente socialização da produção e a apropriação privada da mais-valia. Para poder ser mediador nesta contradição fundamental, o estado vê-se obrigado a expandir suas funções institucionais (Torres, 1989). Para Offe, o estado é um sistema administrativo autorregu lado. E a condensação de um conjunto de bases e dispositivos legais e de instituições formais que se cristalizaram

historicamente na sociedade capitalista. Enquanto estado capitalista, não responde necessariamente a quem exerce — transitoriamente — o governo de um regime político determinado, tampouco responde simplesmente aos ditames dos setores ou classes dominantes. Ainda que apareça como um pacto de dominação que medeia e trata de evitar que as crises recorrentes do sistema capitalista afetem as condições de produção e reprodução deste sistema, a perspectiva de classe do estado não se baseia em representar interesses setoriais específicos nem em refletir a política das classes dominantes ou de um determinado grupo político que esteja no controle das instituições governamentais (Carnoy, 1984). Em resumo, o estado, como pacto de dominação e como sistema administrativo autorregulado, exerce um papel central como mediador no contexto da crise do capitalismo, especialmente nas contradições entre acumulação e legitimação. A discussão sobre a teoria do estado tem importância fundamental para a educação, não somente porque as definições de quais são os problemas educacionais e suas soluções dependem em grande PG.111 parte das teorias do estado que justificam (e subjazem) ao diagnóstico e à solução, como também porque as novas modalidades de ação estatal, muitas vezes definidas como estado neoliberal, refletem uma mudança significativa na lógica da ação pública do estado na América Latina. Por sua vez, esta mudança no caráter do estado pode refletir também novas visóes da natureza e alcance do pacto democrático, e também das características que deve ter a educação e a política educacional na globalização mundial do capitalismo (Torres, 1994). As duas seções que se seguem discutirão duas visões e práticas antinômicas do estado, o estado de bem-estar social e o estado neoliberal. Visões e práticas que oferecem diferentes opções em matéria de política educacional. Em seguida, a partir da economia política da educação, a discussão do estado neoliberal será vinculada à globalização do capitalismo em escala mundial. Depois, apresenta-se uma discussão sobre as características da ciência normal no contexto das ciências sociais. Isto é importante porque as características da ciência normal determinam a lógica e o raciocínio do planejamento educacional dominante e, certamente, mostram as possibilidades mas também as limitações das políticas educacionais implementadas pelo neoliberalismo. E importante fazer esta pausa epistemológica para em seguida encerrar este trabalho com uma análise detalhada da lógica das políticas educacionais propugnadas pelo Banco Mundial, agente preponderante nas políticas de racionalização, estabilização e reestruturação econômica e educacional no capitalismo dependente. DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL AO ESTADO NEOLIBERAL O estado de bem-estar social representa um pacto social entre o trabalho e o capital, que remonta às reorganizações institucionais do capitalismo do início do século na Europa, especialmente nas origens da social-democracia européia, com as expressões mais vigorosas nas social-democracias escandinavas. Mais recente mente, o New Deal, concebido por Roosevelt nos Estados Unidos, constituiu uma formação de governo na qual

os cidadãos podem aspirar a níveis mínimos de bem-estar social, incluindo educação, saúde, seguridade social, salário e moradia, como um direito de PG.112 Cidadão, não como caridade (Wilensky, 1975 e 1976, Popkewitz, 1991) Outro aspecto central e que o modelo opera com noções de pleno uso em uma economia industrial de corte keynesiano Por diferentes razões, entre as quais estão o caráter populista de algumas experiências e a presença de uma distribuição da renda extremamente desigual na América Latina, as formações estatais com forte intervencionismo na sociedade civil têm pontos de contato com o modelo do estado de bem estar social, mas também contam com grandes divergências, especialmente a falta de um seguro-desemprego institucionalizado. Este estado, que desempenhou um papel muito importante como modernizador da sociedade e da cultura, e tambem um estado que exerceu ativi dades protecionistas na economia, apoia o crescimento do mercado interno e a substituição de importações como aspecto central do modelo de articulação entre estado e sociedade. E importante salientar que a expansão e diversificação da educação se deu sob estados equivalentes aos estados de bem-estar social, estados intervencionistas que consideraram o gasto em educação como um investimento, que expandiram as instituições educacionais (chegando inclusive à massificação da matrícula) e que expandiram enormemente os argumentos para a educação, assim como a contratação de professores. O papel e a função da educaçao publica foram expandidos, ainda que seguindo as premissas estatais do passado. Na medida em que a educação pública postulava a criação de um sujeito pedagógico disciplinado, o papel, a missão, a ideologia e o treinamento dos professores, assim como as noções fundamentais do currículo escolar e do conhecimento oficial, foram todos profundamente marcados pela filosofia predominante no estado, isto é, uma filosofia liberal, ainda que paradoxalmente estatizante (Puiggrós, 1990 e 1992). PREMISSAS DO ESTADO NEOLIBERAL Neoliberalismo, ou estado neoliberal, são termos empregados para designar um novo tipo de estado que surgiu na região nas últimas duas décadas. Vinculado às experiências de governos neo-conservadores como Margaret Thatcher, na Inglaterra, Ronald Reagan, nos Estados Unidos ou Brian Mulrony no Canadá, a primeira experiência de neoliberalismo econômico na América PG.113

Chile depois da queda de Aliende. Mais recentemente, o capita lismo popular de mercado propugnado pelo governo de Carlos Saul Menem na Argentina ou o modelo do Salinismo no México representam, com as peculiaridades dos casos argentino e mexicano, um modelo neoliberal. 1

Os governos neoliberais propõem noções de mercados abertos e tratados de livre comércio, redução do setor público e diminuição do intervencionismo estatal na economia e na regulação do mercado. Lomnitz e Melnick assinalam que, histórica e filosoficamente, o neoliberalismo está associado com os programas de ajuste estrutural (Lomnitz, 1991). O ajuste estrutural define-se como um conjunto de programas e políticas recomen dadas pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e outras organizações financeiras. Ainda que o Banco Mundial faça uma diferença entre estabilização, ajuste estrutural e políticas de ajuste, também reconhece que o uso destes termos “é impreciso e inconsistente” (Samoff, 1990, p. 21). Este modelo de estabilização e ajuste tem resultado em uma série de recomendações de política pública, incluindo a redução do gasto governamental, desvalorizações da moeda para promover a exportação, redução das tarifas para importações e um aumento das poupanças públicas e privadas. Um aspecto central deste modelo é a redução drástica do setor estatal, especialmente mediante a privatização das empresas parestatais, a liberalização de salários e preços e a reorientação da produção industrial e agrícola para exportação. O propósito deste pacote de política pública é, a curto prazo, a redução do tamanho do déficit fiscal e do gasto público, da inflação e das taxas de câmbio e tarifas. A médio prazo, o ajuste estrutural baseia-se nas exportações como um motor para o desenvolvimento. Neste sentido, as políticas de estabilização e ajuste estrutural buscam liberar o intercâmbio internacional, reduzir qualquer distorção na estrutura de preços, terminar com as políticas de protecionismo 1 Sem pretender fazer uma exposição teórica, conviria dizer desde o princípio que o neoconservadorismo e o neoliberalismo têm sido identificados por Michael Apple como duas vertentes de um mesmo movimento de direita (Apple, 1993). Temos discutido a posição de Apple, fazendo alguns ajustes teóricos para esclarecer as diferenças entre ambas as ideologias, ainda que sem disputar substancialmente a sua análise (Torres, 1995).

PG.114 e. conseqüentemente, facilitar o predomínio do mercado nas economias latino-americanas (Bitar, 1988). As premissas do estado neoliberal podem ser sintetizadas como a seguir. Em termos de racionalidade política, os estados neoliberais constituem um amálgama de teorias e grupos de interesses vinculados à economia da oferta (supply side economics) e monetaristas, setores culturais neo-conservadores, grupos que se opõem às políticas distributivas de bem estar social e setores com o déficit fiscal, a cuja superação subordinam a política econômica. Em outras palavras, trata-se de uma aliança contraditória. Estes modelos estatais respondem às crises e crises de legitimidade (reais ou percebidas) do estado. Deste modo, as crises de confiança na cidadania, expostas nos do Watergate ou do Irangate constituem crises importantes para o exercício da representação democrática e para confiança governantes. Para o modelo culturalmente neoconservador e economicamente neoliberal, o estado, o intervencionismo estatal as empresas parestatais são parte do problema, não parte da solução. Como tem sido assinalado em inúmeras ocasiões por sermos neoliberais, o melhor estado é o estado mínimo. As premissas da reestruturação econômica predominantes no capitalismo avançado ou as premissas do ajuste estrutural são amplamente compatíveis com os modelos neoliberais. Estas implicam redução do gasto público; redução dos programas que são os gasto público

e não investimento; venda das empresas estatais, parestatais ou de participação estatal; e mecanismos desregulamentação para evitar o intervencionismo estatal no dos negócios. Junto com isso, propõe-se a diminuição da financeira do estado no fornecimento de serviços (incluindo educação, saúde, pensões e aposentadorias, público e habitação populares) e sua subseqüente transferência ao setor privado (privatização). A noção de privado (e as privatizações) são glorificadas como parte de um mercado livre, com total confiança na eficiência da competição, onde as atividades do setor público ou estatal são vistas como ineficientes, improdutivas, anti-econômicas e como um desperdício social, enquanto o setor privado é visto como eficiente, efetivo, produtivo, podendo responder, por sua natureza menos burocrática, com maior rapidez e presteza às transformações que ocorrem no PG.115 mundo moderno. Acordos de livre intercâm (free trade deals’ como o Mercosul e o Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, México e Canadá, produção para exportação e diminuição das barreiras alfandegárias constituem elementos centrais para um estímulo da circulação do capital em escala global. Isto é assim porque, diferentemente do modelo de estado de bem estar social, onde o estado exercia um mandato de pacto social entre trabalho e capital, o estado neoliberal é decididamente pro-business, ou seja, apóia as demandas do mundo dos negócios. Entretanto, como argumenta acertadamente Schugurensky (1994), este aban dono do intervencionismo do setor estatal não é total mas diferencial. Não se pode abandonar, por motivos simbólicos mas também práticos, todos os programas assistencialistas do estado. Há necessidade de pacificar áreas conflitivas e explosivas em matéria de políticas públicas. E por isso que se iniciam programas de solidariedade social na Costa Rica e no México ou se desenvolve legislação para a proteção do menor (“os meninos e meninas de rua”) no Brasil e outros lugares da América Latina. Em outras palavras, a modificação dos esquemas de intervenção estatal não se faz indiscriminadamente senão em função do poder diferencial das clientelas, razão pela qual não só se levam a cabo políticas de solidariedade para os mais pobres como também se incrementam subsídios e transferências de recursos para os setores médios e as classes dominantes — inclusive indo contra o princípio que se opõe ao protecionismo. O Estado tampouco abandona os mecanismos de disciplina e coerção nem, especialmente durante as campanhas eleitorais, as táticas populistas de distribuição de renda (ou promessas neste sentido) para obter consenso eleitoral. Isto é, o desmonte das políticas públicas do Estado de Bem-Estar social não se faz indiscriminadamente mas seletivamente, dirigindo-se a alvos específicos. Um elemento central para entender o desenvolvimento do neoliberalismo é a globalização do capitalismo. O fenômeno da globalização está na base das transformações do capitalismo que consistem em alterar os princípios de funcionamento de um capitalismo de pequenos proprietários, ou sua ampliação em termos de imperialismo como fase superior do capitalismo (na visão de Lênin), ou da noção de capitalismo monopolista analisa do pelas correntes teóricas vinculadas à New Left nos Estados PG.116 Unidos (Paul Baran e Paul Sweezy), chegando em nossos dias o quew Clous Offe (1985) denominou capitalismo tardio ou capitalismo desorganizado. Da perspectiva da pós-

modernidade, Fredrick Jameson (1991) definiu as características desta como a lógica cultural do capitalismo tardio. O que temos que reter é que a categoria de globalização em um mundo econômico pós-fordista é fundamental para entender as transformações do capitalismo e as transformações do modelo estatal neoliberal. Antes de entrar no tema das vinculações e tensões entre glocbalização e estado, caberia insistir na contradição principal entre o modelo neoliberal e o neoconservador, que se refletirá em domínios diferentes. Por um lado, os modelos neoliberais (que promovem a autonomia individual (isto é, o individualismo possessivo) mas, por outro lado, promovem as obrigações públicas de todos os cidadãos, dificilmente conciliáveis com o individualismo possessivo. No campo econômico, um dilema similar existe ao se pretender promover as preferências concebidas individualmente e a busca de uma seleção de alternativas de política pública baseada na rational public social choice. Se, seguindo o paradoxo proposto por Arrow; os mercados agregam as preferências individuais de maneira totalmente independente de qualquer noção de bem público, como em qualquer agregado democrático, parafraseando Williams e Reuten, este mecanismo só funciona quando há uma considerável convergência nas ordens de preferência dos invidíduos. Este modelo de filosofia política não pode reconciliar facilmente indivíduos com preferências individuais autônomas e o estado como um lugar de negociação de tais referências. Além disso, é impossível avançar nesta reconciliação sem pressupor que haja um conjunto de normas de comportamento que são estáveis, apoiadas por uma estrutura estatal madura, uma política pública racional baseada cm um modelo legal-racional, e no contexto de bases consensuais amplamente aceitas na cultura política de uma sociedade, temas estes, obviamente, bastante afastados do cotidiano da maioria dos países (‘Williams e Reuten, 1993). PG.117 Unidos (Paul Baran e Paul Sweezy), chegando em nossos dias ao que Claus Offe (1985) denominou capitalismo tardio ou capital ismo desorganizado. Da perspectiva da pósmodernidade, Fre drick Jameson (1991) definiu as características desta como a lógica cultural do capitalismo tardio. O que temos que reter é que a categoria de globalização em um mundo econômico pós-fordista é fundamental para entender as transformações do capitalismo e as transformações do modelo estatal neoliberal. Antes de entrar no tema das vinculações e tensões entre globalização e estado, caberia insistir na contradição principal entre o modelo neoliberal e o neoconservador, que se refletirá em domínios diferentes. Por um lado, os modelos neoliberais (e neoconservadores) promovem a autonomia individual (isto é, o individualismo possessivo) mas, por outro lado, promovem as obrigações públicas de todos os cidadãos, dificilmente conciliáveis com o individualismo possessivo. No campo econômico, um dilema similar existe ao se pretender promover as preferências concebidas individualmente e a busca de uma seleção de alterna tivas de política pública baseada na rationai public social choice. Se, seguindo o paradoxo proposto por Arrow, os mercados agregam as preferências individuais de maneira totalmente independente de qualquer noção de bem público, como em qualquer agregado democrático, parafraseando Williams e Reuten, este mecanismo só funciona quando há uma considerável convergência nas ordens de preferência dos invidíduos. Este modelo de filosofia política não pode reconciliar facilmente indivíduos com preferências individuais autônomas e o estado como um lugar de negociação de tais referências. Além disso, é impossível avançar nesta reconciliação sem pressupor que haja um conjunto de normas de

comportamento que são estáveis, apoiadas por uma estrutura estatal madura, uma política pública racional baseada em um modelo legal-racional, e no contexto de bases consensuais amplamente aceitas na cultura política de uma sociedade, temas estes, obviamente, bastante afastados do cotidiano da maioria dos países (Williams e Reuten, 1993). GLOBALIZAÇÃO DO CAPITALISMO A globalização econômica responde a uma reestruturação da economia em escala planetária, supondo a globalização da economia da ciência e tecnologia e da cultura, no âmbito de uma transformação profunda da divisão internacional do trabalho (Harvey, 1989). Juntamente com esta modificação da divisão internacional do trabalho, dá-se uma readequação da integração econômica das nações, dos estados e das economias nacionais e regionais. Em grande parte, esta globalização se dá por mudanças na economia, na informática e nas comunicações, que aceleram a produtividade do trabalho, substituindo trabalho por capital e desenvolvendo novas áreas de alta produtividade (como, por exemplo, o software que permitiu a criação, relativamente em pouco tempo, de supermilionários como Bill Gates, com uma companhia de alcance mundial como a Microsoft). Estas mudanças que redefinem as relações entre as nações implicam em uma alta mobilidade do capital via intercâmbio internacional, mas também através da velocidade de realização de investimentos de curto prazo e alto risco. Há uma enorme concentração e centralização de capitais e produção em nível internacional (Carnoy et alii, 1993). Os mercados de trabalho no capitalismo contemporâneo não são homogêneos. A segmentação dos mercados de trabalho im plica em que haja, pelo menos, quatro grandes níveis de mercado: um respondendo às demandas do capitalismo monopolista, às vezes altamente transnacionalizado; um segundo respondendo às demandas de um capitalismo não monopolista, representando um mercado de trabalho secundário; um terceiro que corresponde ao setor público, um dos poucos mercados relativamente protegidos da competição internacional; e finalmente um mercado de trabalho marginal, subterrâneo, que inclui desde aspectos de transações ilegais (p. ex. o narcotráfico) até o trabalho por conta própria, o trabalho familiar, a pequena produção para subsistência e um sem-número de atividades econômicas denominadas produção marginal ou mercado informal — um mercado que cresce aceleradamente. Uma das características centrais deste capitalismo altamente globalizado é que os fatores de produção não estão localizados PG.118 em alta proximidade geográfica, e que se acentuam os processos de aumento das taxas de lucro, respondendo tanto ao aumento contínuo da produtividade per capita (cuja taxa de crescimento continua em ascensão no capitalismo avançado) quanto às reduções de custos (através da dispensa de mão-de-obra e intensifica ção da produção, substituição de mão-deobra mais cara por mais barata ou substituição de trabalho por capital). Neste contexto de crescente segmentação dos mercados de trabalho — onde os mercados primários oferecem maiores salários e maior estabilidade e mais vantagens extras do que os mercados secundários —, há uma substituição do pagamento por hora à força de trabalho (onde se

distingue claramente o salário nominal e real do trabalhador e o salário social através de vantagens indiretas e ações estatais) por um pagamento contra a prestação de um serviço ou por um produto produzido. Por sua vez, este conjunto de transformações implica em uma diminuição da classe operária e do poder dos sindicatos na negociação de políticas econômicas e na constituição do pacto de dominação estatal. Seguindo a tendência secular das últimas três ou quatro décadas, continua crescendo o setor de serviços e diminuindo em importância no produto nacional bruto o setor primário e manufatureiro. Estas mudanças na composição global do trabalho e do capital são realizadas quando há abundância de mão-de-obra e diminuem os conflitos entre trabalho e capital. O aumento do número de trabalhadores sem carteira assinada está associado também ao aumento da competição internacional e às convicções da classe trabalhadora e dos sindicatos de que não se pode pressionar excessivamente as empresas, buscando mais e melhores benefícios sociais e/ou salários, não só pela abundância de mão-de-obra mas também porque, se o nível de rentabilidade da empresa diminui no contexto altamente competitivo e transnacionalizado do capitalismo, perdem-se postos de trabalho e se acelera a migração de capital de mercados regionais dos países do capitalismo avançado para os mercados globais do capitalismo internacional com a finalidade de contratar a mão-de-obra de alta qualificação e baixos salários. A ameaça de tratados de livre comércio como o NAFTA ou as novas diretrizes do GATT marcam os limites das políticas protecionistas. O consagrado exemplo de engenheiros e experts em computação na India digitando e incorporando em bancos de PG.119 dados a informação da folha de pagamento de empresas norte- americanas por uma fração do custo de utilizar trabalhadores de colarinho branco norte-americanos, ou a produção em massa de baixo custo na China, às vezes mediante trabalhadores sujeitos a trabalhos forçados, tipificam este fenômeno. Para enfrentar a queda da taxa de lucro, o capitalismo transnacionalizado recorre não somente ao aumento da produtividade per capita ou à redução dos custos de produção em si mas também à localização de fábricas em áreas onde as indústrias obtenham isenção de impostos, tenham acesso a mão-de-obra altamente qualificada e barata, não enfrentem a interferência de sindicatos na negociação do preço da mão-de-obra e obtenham acesso rápido, eficiente e barato a recursos econômicos renováveis e não renováveis. Esta nova economia global é muito diferente da velha econo mia nacional. As velhas economias nacionais baseavam-se em produção de alto volume e eram padronizadas, com poucos gerentes (managers) controlando a produção e um grande número de trabalhadores seguindo ordens. Esta velha economia nacional era estável na medida em que reduzia Custos (incluindo o preço da força de trabalho) e podia transformar-se tão aceleradamente quanto necessário para ser competitiva em nível internacional. Com o avanço dos meios de transporte e das tecnologias de comunicação, assim como o crescimento da indústria de serviços, a produção foi fragmentada em escala planetária. A produção se transfere para as áreas do planeta onde a força de trabalho é mais barata, está melhor treinada, onde há condições políticas favorá veis, acesso a uma melhor infraestrutura e recursos nacionais, maiores mercados e/ou incentivos impositivos.

A nova economia global é mais fluida e flexível, com redes de poder múltiplo e mecanismos de tomada de decisões que se assemelham mais a uma teia de aranha que a uma pirâmide de poder estática que caracterizava a organização do sistema capitalista tradicional (Przeworski, 1991; Omae, 1990; Reich, 1991; Thurow, 1992). Enquanto o sistema de educação pública na velha ordem capitalista estava orientando para a produção de sujeitos disciplinados e para uma força de trabalho bem treinada e confiável, a nova economia reclama trabalhadores com grande capacidade de aprender á aprender, capazes de trabalhar em equipe, não só de maneira disciplinada mas criativa, daí que a força de trabalho PG.120 que Reich definiu como analistas simbólicos irão constituir o segmento mais produtivo e dinâmico da força de trabalho (Reich, 1991). Juntamente com a segmentação de mercados de trabalho, verifica-se uma forte transformação de trabalhadores de tempo mtegral em trabalhadores de tempo parcial (com uma redução substancial no custo da força de trabalho pela diminuição das contribuições patronais para saúde, educação, seguridade social, etc), um aumento da participação feminina nos mercados de trabalho, queda sistemática dos salários reais e portanto um contínuo aumento da distância que separa os trabalhadores assalariados dos setores dominantes da sociedade Um fenômeno similar, em nível internacional, verifica-se no crescimento da distância social e econômica entre as nações em desenvolvimento e as nações do capitalismo avançado A unica exceção e formada pelos países de industrialização tardia no Oriente, ou Newly Industrialized Countries. Vejamos agora o modelo de ciências sociais dominantes no planejamento educacional, como transição epistemológica para discutir em seguida políticas especificamente educacionais no modelo neoliberal. CIÊNCIAS SOCIAIS E PLANEJAMENTO A lógica do planejamento em educação está intimamente vinculada ao modelo de ciência social normal, dominada pelo paradigma epistemológico do positivismo O positivismo responde a um conjunto de preceitos de como se deve desenvolver um trabalho científico. Por um lado, existe um esforço para gerar um método científico social, separado de seus fundamentos teóricos e aplicável universalmente. Este método científico social busca um sentido de certeza e precisáo analítica no contexto de uma sociedade crescentemente imprevisível e imprecisa. O modelo parte de um sentido de acumulação linear e evolucionária do conhecimento, a partir do qual se possa organizar inferências deterministas e deduzir conclusões baseadas em fundamentos empíricos. Estes Dois textos são importantes para uma análise crítica do modelo positivista como ciência normal: Wallerstein (1991) e Morrow & Brown (1994). 2

PG.121

fundamentos se baseiam em uma distinção normativa entre juízos de valor e juízos empíricos. E importante assinalar, por sua vez, que o positivismo baseia-se na busca de padrões de regularidade e resultados reproduzíveis e universalizáveis. Como assinala Joel Samoff (1990), o positivismo representa uma tendência científica que constitui a versão oposta de um trabalho interdisciplinar e de um modelo construtivista que reflete, pelo contrário, uma forte visão alternativa onde a realidade aparece como produto de descontinuidades e aspectos imprevisíveis. Ou seja, o positivismo não reconhece a importância dos eventos não-lineares e as profundas descontinuidades dos fenômenos na vida real. Do mesmo modo, a subjetividade e singularidade do pesquisador é despreza da em função de uma suposta objetividade social, e as noções de ciência e ideologia são definidas não só como práticas antagônicas e irreconciliáveis mas também como práticas claramente discerníveis e diferenciáveis através da aplicação sistemática do método científico e decertos preceitos éticos e epistemológicos na separação dos juízos de valor dos juízos empíricos. Seguindo estes preceitos epistemológicos, os planejadores que se baseiam na ciência social positivista argumentam que há uma ordem social fundamental subjacente à dinâmica dos elementos em si. Tal ordem é discernível mediante a aplicação rigorosa e metódica de um método de ciências sociais. Este método deve refletir as premissas de todo método científico que segue o modelo das ciências naturais, isto é, um método baseado no fundacionalismo, no ob na busca do controle da manipulação das variáveis e no experimentalismo (ou quase experimentalismo), no universalismo e no racionalismo. Este método científico permite a descoberta de regularidades nas quais se podem realizar análises experimentais ou quase experimentais, que se podem medir, quantificar, estudar em suas correlações e causalidade e manipular (controlar) em seus comportamentos futuros. O objetivo desta ciência social é desenvolver um conjunto de argumentos que estudem relações de causalidade e, quando possível, estes padrões ou regularidades detectados Pode ser aplicados como leis ou regularidades empíricas. Estas leis, que podem ser condensadas em frases breves, concisas, simples, e podem até ser representada matematicamente, são então utilizadas mediante (prévio exame empírico e comprovação PG.122 sujeita à fausificabilidade das hipóteses) para manipular (planejar) a realidade. Análises mais complexas, de maior alcance ou, ao contrário, mais pontuais e baseadas em um semnúmero de ob servações que qualificam e problematizam a análise são rejeitadas como desnecessárias ou, se foram consideradas pertinentes em termos teóricos, são sem importância para o planejamento baseado em problemas delimitados, com um sentido de urgência e imediatismo, e motivado não tanto por razões teóricas mas, sim, por práticas de solução de problemas específicos, no lapso de tempo mais breve, e com uma relação otimizada de custo-benefício. A economia aparece como a ciência social modelo, particu larmente porque o tipo ideal usado pelos economistas é central na ciência social contemporânea. Como assinala oportunamente Samoff, a economia é considerada como a ciência social que tem as conseqüências mais práticas e importantes, visto que a economia manipula o dinheiro e o

poder do dinheiro define o sentido de bem estar. Não é em vão que a noção de desenvolvimento é entendida particularmente como crescimento econômico. É importante este comentário sobre as limitações da ciência normal porque a próxima seção discutirá a lógica do Banco Mundial em educação. O Banco Mundial reflete a perspectiva neoliberal, constitui uma instituição central na despolitização e positivização da política educacional, exerce um papel central no processo de globalização do capitalismo e sua agenda de pesquisa e experts empregam sistematicamente a ciência social positivista que denominamos de ciência normal nesta seção. A LÓGICA DO BANCO MUNDIAL: O NEOLIBERALISMO NA EDUCAÇÃO Comecemos por definir o papel do Banco Mundial no contexto do capitalismo internacional como uma agência de regulação. Isto é importante porque, como Banco, esta é uma agência de empréstimo, não uma agência que oferece doações. A distinção entre uma lending agency e um donor agency não é necessariamente habitual quando na literatura se fala de diferentes agências de cooperação e desenvolvimento internacional. Desde sua criação em 1962, o Banco Mundial tem-se interessado em promover o crescimento PG.123 econômico mediante o investimento de capital. O investimento em educação que nos preocupa neste ensaio não é a área de investimento mais importante do Banco, se a comparamos, por exemplo, com o investimento em infraestrutura. Um segundo aspecto da política de empréstimos do Banco Mundial é que ela não se limita a responder a pedidos de empréstimo, mas toma a iniciativa de estimulá-los. Ou seja, mas freqüentemente o Banco inicia os contatos para o projeto de empréstimo específico, contatos que refletem o vínculo entre conhecimento e expertise por um lado, e os orçamentos a: financiamento por outro. Ambos os aspectos são inseparáveis premissas do financiamento do Banco. Outro elemento a se levado em conta é que, como todo Banco, seu negócio é empretar capitais e receber juros pelos empréstimos, juros estes que são: geralmente (com poucas exceções) os de mercado. Entretanto, diferentemente dos bancos comerciais, os empréstimos estão garantidos (avalízados) pelos países. Do mesmo modo, há um mecanismo de funcionamento do Banco Mundial que se vincula ao Fundo Monetário Internacional muito claramente: sem o aval do Fundo, não há possibilidade de se estabelecer negociações com o Banco. Isto é importante porque muitos economistas têm falado no “consenso de Washington” como uma das forças que impõem a lógica do ajuste estrutural no mundo. A noção de consenso de Washington refere-se, em última instância, a um conjunto de instituições financeiras como o FMI, o Banco Mundial, o BID, o ExportImport Bank, etc., todas elas localizadas em Washington (às vezes a poucos quarteirões de distância entre si como o Banco Mundial e o BID) e que seguem a mesma lógica e economia política neoliberal, propugnando o modelo de ajuste estrutural e de estabilização (Boron, 1991; Pereira, 1991; Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel, 1990).

As premissas analíticas do Banco Mundial assemelham-se à escola racionalista da oferta (supply-side school), distinta da escola pragmática rádical neo-estrutural (CEPAL) ou do ajuste com face humana representado pela UNICEF e a Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID). Continuando com as premissas de funcionamento, encontramos as condicionalidades econômicas às quais tanto o FMI, o Banco Mundial e a maioria das instituições identificadas como parte do consenso de Washington PG.124 seguem ao pé da letra. Dois elementos condicionam radicalmente a formulação da política pública: a privatização e a redução do gasto público, políticas claramente compatíveis, das quais a primeira pode-se considerar, se não exclusivamente, importante ao menos como parte estratégica importante da segunda. A política de privatização requer uma explicação adicional. As políticas de privatização são importantes nas reformas orientadas a impulsionar o mercado, e portanto constituem uma preferência de política do neoliberalismo. Por um lado, mediante a privatização de empresas do setor público, reduz-se a pressão sobre o gasto fiscal. Por outro, a privatização constitui um instrumento muito apropriado para despolitizar as práticas regulatórias do estado nas áreas de formação de políticas públicas. Ou seja, a privatização exerce um papel central nos modelos neoconservadores e neoliberais porque “a compra de serviços contratados privadamente é um mecanismo administrativo para solucionar questões específicas da legitimidade social do estado vinculada à produção de serviços sociais e também uma maneira de tomar emprestado do ethos empresarial da empresa privada, os sistemas de custo-beneficio e a administração por objetivos” (Culpitt, 1992). Neoliberais e neoconservadores têm argumentado que o estado e o mercado são dois sistemas sociais diametralmente opostos, e ambos são considerados claras opções para o desempenho de serviços específicos (Moran e Wright, 1991). Por que, então, essa preferência em favorecer o mercado sobre o estado? Neoliberais e neoconservadores consideram, por uma série de razões, que os mercados são mais versáteis e eficazes que as estruturas burocráticas do estado. Os mercados respondem mais rapidamente às mudanças em tecnologia e em demanda social que o estado. São vistos como mais eficientes e econômicos em relação aos custos no fornecimento de serviços do que o setor público. Finalmente, a competição do mercado produzirá uma maior possibilidade de cobrança de responsabilidade (accountability) nos investimentos sociais que as políticas burocráticas. Juntamente com estas preferências de política, encontra-se o fato de que o pensamento neoliberal vincula a privatização de empresas públicas à solução do problema da dívida externa. A PG.125 final, em certas versões do ideário neoliberal em economia, são as empresas estatais as “responsáveis pela criação do problema da dívida externa latino-americana e —mais importante — sua pri vatização pode ajudar a resolver o problema” (Ramamurti, 1992). E importante assinalar, contudo, que o processo de privatização náo está isento de conflitos e contradições. Como exemplo, Ramamurty (1992, p. 168) cita que “não é claro que se ganhe uma eficiência substancial a longo prazo privatizando-se empresas estatais com grande

poder de mercado”. Uma segunda fonte de conflito tem a ver com os mecanismos de regulação, considerando o recorde tão pobre de regulação governamen tal na América Latina e a carência de procedimentos estabelecidos para resolver disputas sobre regulação, é difícil ser otimista acerca da qualidade da regulação depois da privatização. Os governos talvez devam re-nacionalizar algumas de suas indústrias no futuro, por razões de opção ou necessidade. Quando isto acontecer, os investidores estrangeiros deverão ser compensados por seus investimentos com taxas muito mais altas do que as recebidas no momento da privatização, criando assim a possibilidade de uma saída de capital muito grande no futuro. Tais conflitos poderão afetar as relações com os investidores privados, causando uma recorrência de saídas de capital na pior das hipóteses (Ramamurti, 1992, p. 169).

Um último comentário sobre a filosofia de privatização é que muitos de seus proponentes postulam uma perspectiva anti-estatal mais que privatizadora, já que desprezam a possibilidade de gerar verdadeira competição nos mercados — muitos dos modelos de privatização de empresas estatais substituem o monopólio de uma empresa estatal de serviços em certas áreas, por um monopólio similar outorgado a uma empresa privada. Em termos de políticas educacionais específicas, o Banco Mundial tem impulsionado políticas de democratização do ensino, apoiando decididamente a educação da mulher (na melhor tradição liberal), a educação básica e a qualidade da educação. A recente iniciativa de um número de organismos internacionais, com o Banco Mundial como arquiteto principal, mas também com o apoio da UNICEF, da UNESCO e do PNUD, instaurou com a PG.126 conferência da Tailândia, o modelo de educação para todos sobre o qual discorro detalhadamente em outro texto (Torres, 1991). Pode-se perguntar, entretanto, se é possível que o Banco, basean do-se nas premissas de expansão educacional com melhora na qualidade da educação e da igualdade de oportunidades, substituirá as alianças domésticas que, na sua visão, não apoiem as políticas educacionais de equalização tal como ele as define. Uma preocupação similar é expressa por José Luis Coraggio quando menciona que, devido ao fato de o Banco Mundial ser composto primordialmente por economistas e não educadores, o objetivo final seja a eficiência econômica, a liberdade de mercados e a globalização do capital, com o qual um dos resultados é a supervalorização das medidas quantitativas do “êxito” de uma política. Usando critérios estritamente econômicos, como por exemplo taxas de retorno baseadas em renda pessoal, sugere-se que um ano adicional de educação primária nos níveis mais baixos do sistema produz aumentos maiores da renda que em níveis mais altos de educação. Disto conclui-se, argumenta Coraggio, que o investimento em níveis de educação primária ou básica apresen tará os melhores resultados em termos de aumento do produto interno bruto. Contudo, como aguçadamente assinala Coraggio, se tal argumento na renda presume que o principal recurso de um país em desenvolvimento é um pool ou reservatório de trabalhadores baratos e flexíveis, produzindo bens e serviços para exportação, o verdadeiro aumento da renda será realizado não nos países em vias de desenvolvimento mas pelos consumidores de tais bens [localizados nos países industrializados] (Coraggio, 1994, p. 168).

Eu havia expressado uma preocupação similar ao analisar as premissas postuladas nos documentos preparatórios para a conferência de Jontiem e suas graves implicações para as políticas de educação superior na América Latina (Torres, 1991; Morales Gómez e Torres, 1990). Há um forte componente político no Banco Mundial, já que este iniciou suas tarefas durante a guerra fria, dominado na sua diretoria por representantes dos Estados Unidos e sujeito, em grande parte, às políticas da diplomacia americana. Neste sentido PG.127 e historicamente, o Banco tem refletido as ameaças (reais ou aparentes) do governo americano por parte de ideologias políticas adversárias; e os desejos da comunidade de negócios dos Estados Unidos, incluindo suas preferências pelos programas como Head Start e os programas de comunicação de massa (Bujazan, et alii, 1987). O Banco Mundial tem priorizado diferentes políticas educacionais desde sua criação, incluindo, em ordem relativamente cronológica, a construção de escolas, o apoio ao desenvolvimento da escola secundária, a educação vocacional e técnica, a educação informal e, mais recentemente, a educação básica 3 e a qualidade educacional (definida em termos de aproveitamento e desempenho escolar). Alguns dos indicadores que os experts do Banco Mundial projetaram para medir a qualidade da educação incluem o gasto por aluno, os materiais de instrução (livros didáticos), a duração do ano e da jornada escolar e a classe social do professor (Fuller 1986). COMENTÁRIOS FINAIS Joel Samoff, um dos críticos mais agudos e informados das políticas neoliberais na educação, definiu o Banco Mundial como um “complexo financeiro e intelectual”, caracterizando sua prá tica científica como propiciando a nsnacionalização do conhe cimento (expertise), mediante uma comunidade de experts prontos para serem contratados (intelectuais), onde há uma forte confluência de pesquisa e financiamento. Este complexo intelec tual e financeiro aponta em direção a definir o papel central que exerce o Banco Mundial nas redes de podar e nas tomadas de decisão em nível mundial. Devido a sua posição nos circuitos de pesquisa e financiamento, os trabalhos e experts do Banco Mundial influenciam o discurso internacional. Assim, o Banco comissiona pesquisas de longo alcance influindo na seleção dos tópicos destas investigações (por exemplo, qualidade da educação, livros didáticos); na definição operacional das variáveis; na terminologia (por exemplo, desperdício escolar ou drop out versus push out ); O Banco Mundial foi um participante que se destacou na reunião de Educação para Todos, celebrada em março de 1990 em Jontiem, Tailândia, junto com a UNICEF, a UNESCO e oPNUD. 3

PG.128 e na legitimação dos temas, propostas analíticas e hipóteses ue são consideradas úteis e razoáveis para o investimento e o desenvolvimento educacional. Outro aspecto central do funcionamento do Banco Mundial e, presumo, verificável na maioria das agências internacionais de nnanciamento é um enorme cinismo, visto que as questões morais e éticas ocupam um segundo plano quando o que está em jogo são salários insuperáveis, tanto para experts internacionais quanto, e sobretudo, para os locais. Por exemplo, havia um rumor em Moçambique de que, enquanto o salário anual médio de um trabalha moçambicano era de 80 dólares anuais em 1991, alguns consultores locais do Banco cobravam até 8.000 dólares mensais por seus serviços. Este rumor em termos de quanto ganha um consultor local do Banco Mundial pode ser infundado. Entre tanto, qualquer análise de custos e salários mostraria que os consultores de organismos internacionais têm rendimentos totalmente impensáveis no contexto dos níveis salariais de países em desenvolvimento. Frente a estes determinantes econômicos, perguntas morais e éticas podem dar lugar ao cinismo como mecanismo de acomodação à realidade das coisas, recordando e parafraseando Hegel quando este dizia que todo real é racional. Outro elemento central é a contemplação das teorias aceitas por organismos como o Banco Mundial para o planejamento educacional - por exemplo as diferentes versões da teoria do capital humano. A questão que tem preocupado os pesquisadores é se na realidade estes organismos neoliberais como o Banco Mundial refletem, em suas pesquisas, os resultados da evidência empírica ou as preferências teóricas e operacionais do organismo. Neste sentido, David Plank mostra que as preferências teóricas do Banco levam a determinar o seguinte: 1) crescente investimento na educação primária e na saúde, baseado no argumento de que as taxas de retorno em educação primária excedem às dos demais níveis educacionais; 2) descentralização administrativa, com o pressuposto de que os programas administrados localmente são mais econômicos que os centralizados; 3) investir na educação geral ao invés de na educação vocacional, baseando-se na evidência empírica de que, a longo prazo, a educação geral é mais produtiva; 4) recuperação de custos de investimento e eficiência no manejo dos recursos. Plank conclui que estes quatro princípios PG.129 parecem ter vida própria, independentemente da evidência empí rica em que ostensivamente se baseiam (Plank, 1991). Se assim for, então, a razão instrumental do Banco Mundial e de muitos, senão todos os organismos internacionais de financiamento, pode estar exercendo um papel neocolonial, especial mente quando dirige as políticas educacionais não tanto em direção ao aperfeiçoamento do valor de uso da força de trabalho mas ao aperfeiçoamento do valor de troca, sob políticas de desenvolvimento claramente prescritas (por exemplo ajuste estru tural, estabilização e crescimento através de exportações) e, especialmente, quando pressiona seus parceiros nacionais na adoção de normas e políticas específicas que podem resultar não tanto da adaptação de condições locais às necessidades de desenvolvimento,

mas, sim das preferências de política educacional, aplicadas de modo relativamente homogêneo e universal, por uma instituição que controla recursos, toma a iniciativa e não apenas reage às solicitações externas, e gera as definições dos problemas e as soluções viáveis e legítimas no contexto da internacionalização e globalização do capitalismo. A presença de um forte componente positivista nas ciências sociais que guia o planejamento deste tipo de instituições reguladoras do capitalismo faz com que a lógica predominante seja a da razão instrumental, na qual os meios ajustam-se a fins préestabelecidos e onde se ignora qualquer sugestão para produzir recomendações de política que respondam ao jogo de forças de um país, região ou município específicos ou que trate de levar em conta, com um sentido histórico aguçado e estrutural, as transformações do passado. Samoff (1991 e 1993), entre outros, apontadiversas opções frente ao positivismo como paradigma científico predominante no planejamento educacional. Um sem-número de análises da educação podem surgir sem a necessidade de cairem no positivis mo, incluindo o feminismo, o pós-modernismo, a teoria crítica da sociedade, os estudos culturais ou o neo-marxismo. E importante aceitar-se, com humildade, as limitações do conhecimento nas ciências histórico-sociais e o caráter parcial e condicional das “descobertas”. E mister descartar-se noções de conhecimento que se obtêm mediante uma acumulação crescente de dados para PG.130 passar a uma percepção de um mundo caracterizado por descontinuidades e pequenos resultados com conseqüências graduais. Afinal, as transformações do conhecimento em humanidades e ciências sociais refletem a historicidade dos sujeitos. Outro aspecto a debater é a noção de propriedade do conhecimento que resulta de pesquisas feitas mediante subsídios comissionadas por organismos (nacionais e internacionais) que retêm o controle sobre os resultados. Sem dúvida, há opções metodológicas como a pesquisa participativa ou a pesquisa-ação que oferecem alternativas práticas ao positivismo. Do mesmo modo, um sem-número de pesquisas baseadas em perspectivas dialéticas e no pluralismo metodológico constituem opções muito diferentes ao monismo metodológico do positivismo. Finalmente, é preciso aceitar e proteger a crítica na academia como um recurso para confrontar o autoritarismo do cientificismo. Duas questões finais devem ser discutidas pelos que estão encarregados das políticas educacionais e que confrontam a filosofia da privatização como panacéia para ajustar a educação ao mercado. Pode-se e deve-se evitar os intercâmbios com o Banco? Em qualquer instância que se promova uma reforma educacional de envergadura, o Banco Mundial, como instituição ativamente envolvida na tomada de iniciativas chegará, indefectivelmente, a oferecer seus serviços e modelos de análise, assim como seus empréstimos. Mesmo no contexto de um partido político socialista como o Partido dos Trabalhadores, o PT, que ganhou as eleições e controlou a prefeitura de São Paulo entre 1990-1992 e desenvolveu uma política educacional inovadora conduzida por um educador radical como Paulo Freire, o Banco enviou uma delegação a São Paulo para convencer Freire a aceitar o financia mento do Banco para levar adiante seus projetos de reforma curricular e de treinamento do magistério (Torres, 1994). Freire, pessoalmente, confiou-nos

que se indignou com as sugestões feitas pela delegação do Banco, sugerindo a essa que retornasse aos Estados Unidos e, quando estivesse em condições de resolver os problemas da educação norte-americana, voltasse a falar com ele sobre a situação de São Paulo. Depois de tal reunião, Freire comunicou explicitamente à prefeita de São Paulo, Luíza Erundi na que, se o empréstimo do Banco fosse aceito, ele renunciaria ao cargo. Freire permaneceu em seu posto e, durante a administração PG.131 educacional do PT em São Paulo, nenhum empréstimo do Banco para a área de educação foi efetivado. Obviamente, a questão sobre a decisão de se aceitar ou não empréstimos ou tratar com o Banco Mundial em matéría de educação não pode ser respondida abstratamente. Há, entretanto, duas questões fundamentais que se devem incorporar à análise destas políticas neoliberais como as propostas pelo Banco. A primeira diz respeito ao tema da democracia e da accountability, isto é, a prestação de contas democráticas pelos que respondem a um governo democraticamente eleito e como devem os países relacionar-se com experts mundiais cuja legitimidade não é dada através de eleições. Este tema é central e deve ser continuamente reiterado nas discussões sobre accountability, reiterando algumas das premissas críticas que Herbert Marcuse apontou já nos anos 60, criticando o fetichismo da tecnologia, a unidimensionalização e positivização da política, e ainda o que Marcuse chamou estrei tamento da razão negativa através da despolitização da razão. Há diferentes níveis legais de contratação de recursos para o investimento em educação, dependendo do nível que os está pleiteando (federal, estadual ou municipal). A realidade é que quaisquer empréstimos obtidos através de gestões com estes or ganismos internacionais são garantidos pelo país e, portanto, adminjstrações políticas que podem não estar no poder quando se tenha que iniciar o pagamento destes empréstimos pensam que a “prestação de contas” não lhes diz respeito. Isto é extremamente perigoso quando se observa que, do lado dos experts internacionais, dá-se exatamente o mesmo: estes não prestam contas ao países mas simplesmente à organização que representam; alén disso, nem sequer são possíveis de cobrança em termos de seguir a racionalidade formal que advém de resultados de pesquisa que eles mesmos promoveram como parte do processo de planejamento. Parece, antes, que o critério de desempenho mais importante é a possibilidade de que o Conselho Diretor do Banco ratifique assinatura de um empréstimo. A avaliação dos impâctos de tal empréstimo, de se seus objetivos foram alcançados, da relação custo/benefício no projeto e do desempenho da contraparte local que o executou são pouco relevantes, uma vez que os projeto sejam garantidos pelo país, aprovados pelo Conselho Diretor do Banco e assinados pelas partes contratantes locais. PG.132 No contexto, cada dia mais necessário, de pensar uma nova ordem internacional, talvez se deva pensar em alternativas dife rentes para o funcionamento destes convênios país - Banco Mun dial. Uma delas é compartilhar os riscos de investimento, sujeito a uma avaliação de terceiros independentes sobre a racionalidade ex-ante e ex-post factum de um

empréstimo, seus resultados objetivos e a transparência da gestão de ambos, as equipes técnicas e operacionais do Banco e a contraparte executora nacional. Outro aspecto é criar um pool de recursos resultantes dos interesses pagos sobre os empréstimos que podem ser revertidos através de mecanismos multilaterais, não para os cofres do Banco Mundial, que vão incrementar a pressão de seus “banqueiros” para continuar expandindo seus empréstimos, mas para empréstimos sociais, com uma taxa de juros substancialmente inferior à taxa de mercado e cuja taxa de retorno, uma vez implementado um empréstimo, não retorne tampouco ao Banco mas sim retorne ao país para programas sociais como o combate à pobreza e à indigência, ou programas específicos de saúde frente a possíveis epidemias (p. ex. AIDS, cólera, peste bubônica, etc.) que, não sem surpresa, dados os avanços da ciênca, começamos a experimentar até fins do século. A segunda questão é tratar de pensar em mecanismos de planejamento da educação que sigam lógicas não positivistas, com qualidade teórica e capacidade analítica e empírica dentro de esquemas de pensamento institucionalizados (ou seja, a organiza ção de Think Thanks) que possam projetar modelos de investimento e pesquisa educacional alternativos, com o controle democrático em nível local (municipal, estadual ou federal) e que, com competência técnica e liberdade de ação — aspectos mais facilmente encontráveis nos países de alto desenvolvimento relativo na região do que nos países mais pobres — e salários competitivos em nível local, regional e internacional, possam criar novos horizontes que difiram dos horizontes prescritos a partir dos organismos internacionais neoliberais. É mister que estes Think Thanks possam imaginar novos mecanismos de implementação e controle democrático dos projetos, tenham condições técnicas (bom nível de qualidade técnica mas também contando com o respeito internacional da gestão) e que se encontrem também em condições políticas para dialogar, PG.133 negociar, até enfrentar e confrontar as equipes técnicas de instituições como o Banco Mundial, em geral altamente quantificadas, trabalando em um só lugar e não como intelectuais latino-americanos, itinerantes de um trabalho de tempo integral a outro — e bem pagos, na negociação de empréstimos e análises de opções. Sem contar com um grupo de profissionais altamente qualificado, relativamente independente, bem pago e com novas idéias que vão além do pensamento positivista, é impossível imaginar e elaborar alternativas aos modelos neoliberais que, certamente, estão começando a mostrar, em sua aplicação prática, as deficiências de sua formação teórica. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS APPLE, M. Official Knowledge. Democratic Education in a Conservative Age. New York and London, Routiedge, 1993.

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PG.136 5 Roger Dale __________________ O MARKETING DO MERCADO EDUCACIONAL E A POLARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO Defende-se, neste artigo, que as disparidades inevitáveis entre escolas, em termos de financiamento, recursos e oportunida des são suscetíveis de ser muito ampliadas sob o tipo de liberalização dos sistemas educacionais agora em consideração em muitos países. Como mostra o exemplo da Nova Zelândia, as conseqüências da promoção de um mercado em educação podem ser produzidas sem qualquer recurso à “privatização”. Sob tais sistemas liberalizados, a diferenciação, aparentemente inevitável, inter e intra-escolas parece suscetível de transformar-se em forte polarização. O resultado global é passível de ser não uma maior diversidade de fornecimento, em resposta a diferentes necessidades e preferências, mas uma acrescida uniformidade de educação escolar, baseada em critérios de exclusão cada vez mais homogêneos em termos de classe, gênero e etnia. PROMOVENDO O MERCADO (MARKETING THE MARKET) Em termos muito gerais, os principais objetivos das políticas da Nova Direita em educaçãdsão retirar custos e responsabilidades cR Estado e, ao mesmo tempo, aumentar a eficiência e capacidade Esta é uma publicação revista de uma comunicação apresentada no primeiro Seminário de Política Comparada, “Novos Contextos Políticos para Educação: Suécia e Reino Unido”, Universidade de Upsala, abril de 1993. Estou grato a todos os participantes deste seminário por seus comentários construtivos à comunicação e àqueles que comentaram partes da comunicação apresentadas em seminários nas Universidades de Auckland, Monash e Melbourne. 1

PG.137 de resposta — e conseqüentemente a qualidade — do sistema educacional. A forma mais freqüentemente utilizada para atingir ambos os objetivos parece envolver a colocação da educação numa base mais comercial. Desta forma, aos pais será dado acesso a um leque mais vasto de escolhas em educação em vez de ter de aceitar tudo o que lhes é atribuído, e as escolas tornar-se-ão mais eficientes, quer em respostas à situação competitiva em que irão se encontrar, quer através da adoção de práticas reputadamente mais eficazes do setor privado. Neste trabalho irei concentrar-me na primeira destas duas ênfases, o encorajamento das escolhas dos pais. Isto combina bem com o empenho ideológico na ampliação da “escolha” individual sempre que for possível. A suposição mais habitual acerca de como esse objetivo será alcançado é a de que isto incluirá algum grau de “privatização” dos sistemas educacionais públicos existentes. E isso será realizado capacitando, encorajando ou mesmo exigindo que as pessoas façam escolhas econômicas

individuais em educação, em lugar da determinação do sistema por decisões políticas coletivas; o alvo é a substituição de mecanismos burocráticos por mecanismos de mercado. Contudo, dado que pretendo dedicar a maior parte deste trabalho à discussão da natureza e das conseqüências dos mercados educacionais, desejo antes tornar claro que a “privatização” está longe de ser o único processo de realização das aspirações da Nova Direita em educação. De fato, a distinção público/privado parece-me absolutamente inadequada para captar as complexidades das mudanças a que os sistemas educacionais vêm sendo submetidos. Embora não seja possível tratar aqui esta questão mais detalhadamente, é importante mencionar a variedade de meios alternativos capazes de provocar essas mudanças. Essencialmente o que quero sugerir é que o que está em jogo não é tanto unideslocamento direto do público para o privado, mas um conjuntc muito mais complexo de mudanças nos mecanismos institucionai através dos quais são regulados o que continua a ser essencialmen te sistemas educacionais estatais. Isto pode incluir um papel maio e/ou modificado para o Estado (e não necessária ou automa ticamente um papel menor — veja-se por exemplo Dale & Jesson, PG.138 1993) e um papel diferente para a comunidade, assim como uma mudança para o mercado. O que está em questão são novas formas e combinações de financiamento, fornecimento e regulamentação da educação. Tradicionalmente, pelo menos na maior parte das sociedades “oci dentais”, todos esses aspectos da administração da educação foram ass como séndo da responsabilidade do Estado. As perspectivas e expectativas neoliberais acerca da educação, con tudo, obrigam à alteração, se não à transformação, deste pressuposto “estadista”. O Estado pode retirar-se completamente quer do finamento quer do fornecimento da educação, mantendo, contudo, a autoridade reguladora que somente ele pode exercer e, com ela, o controle último do sistema. As numerosas combinações possíveis de financiamento, fornecimento e regulamentação tornam possível a ampla série de mecanismos e “mesclas” de “mercado” na economia de política social responsável pela heterogeneidade e complexidade dos “mercados” educacionais que aparentemente estão proliferando por todo o mundo ocidental. Não é necessário mais do que listar algumas formas possíveis para confirmar esta idéia e para a idéia associada — já que essas formas são suscetíveis de ter uma série de conseqüências muito diferentes — ser inferida. Assim, pode ríamos encontrar concessão, concurso (para produzir um serviço completo ou especializado, p. ex. cursos para ensinar e aprimorar a leitura ou desenvolvimento curricular), autorização, vendas diretas (promoção de mercados especializados), cartelização ou controle de conglomerados, para mencionar apenas algumas das variações mais ou menos prováveis. Posto isto, é necessário examinar o conceito de privatização um pouco mais de perto. A idéia da educação ser comprada e vendida no mercado tem estado, intencionalmente ou não, asso2 Um exemplo interessante aqui é o das escolas “públicas (isto é, privadas) tradicionais inglesas que são financiadas por meio de uma combinação de mecanismos de mercado (gratificações), estatais (subsídios de tributação — veja-se Robson & Walford, 1989) e de rede de apoio (doações de

“amigos” da escola, especialmente antigos alunos — vivos e mortos através de testamentos). Até que ponto estas escolas, que antecedem a tentativa do ERA (Education Reform Act) para universalizar o mercado em educação, numa base de quase-mercado, se conformam de fato com os critérios de quase-mercados é uma questão intrigante.

PG.139 ciada ao “controle” dos sistemas educacionais estatais pela Nova Direita. Não é, todavia, uma questão de a educação ser comercializada para lucro; não é apenas a aceitabilidade política mas a possibilidade técnica de tal idéia que a torna insuscetível de ser até seriamente considerada como uma opção para além das margens mais extremas da Nova Direita. Por outro lado, não há uma associação necessária entre privatização e liberalização neste contexto. Enquanto privatização envolve a venda de bens do Estado, “liberalização” significa a redução do controle governamental através da abertura de uma área a pressões competitivas. E, assim como é possível haver privatização sem competição, também é possível haver liberalização sem privatização, introduzindo a competição no setor público sem transferir a propriedade. O que Starr (1989) refere como liberalização, então, parece ter sido a forma tomada pela maior parte das inovações comumente referidas como envolvendo a privatização da educação ou da sua promoção no mercado. Contudo, isto não encerra a questão. Há um conjunto de vias através das quais a liberalização pode ser produzida para ter efeitos muito diferentes. Uma boa parte deste trabalho tratará dessas alternativas e suas conseqüências; é necessário porém, em primeiro lugar, insistir numa idéia, simples, mas essencial, acerca de como qualquer forma de liberalização pode ser produzida. Isto é, como mencionado por Williams (1987, p. 20), que em “um sistema publicamente financiado, o efeito de um mercado nos serviços educacionais pode ser obtido por intermédio de uma variedade de mecanismos administrativos”. Deste modo, tornam-se claras duas idéias óbvias, mas ainda assim essenciais, sobre mercados. A primeira é que, em nenhum sentido, são “naturais”. Não se trata de que, despojada de todos os interesses hierárquicos do Estado e direitos adquiridos da comunidade, a sociedade “se renderia” a uma forma de coordenação social de mercado primitivo. Mais exatamente, os mercados são inteiramente dependentes de uma série de condições que só podem ser proporcionadas pelo Estado como o detentor do monopólio do controle e sanção legais, o que já é largamente reconhecido. Contudo, o que é menos freqüentemente admitido (talvez porque parece tão óbvio), e que é de interesse “local” especial para as discussões sobre educação, é que o termo “mer PG.140 cado” é muito mais conotativo que denotativo. Opera como uma metáfora ou slogan mais do que como um guia explícito e detalhado para ação. Isto significa que, dependendo da interpre tação particular do slogan, ele pode não usufruir de credibilidade automática como a forma de coordenação social mais apropriada para conduzir ao sucesso dos objetivos implícitos no projeto da Nova Direita para a educação. Mais ainda, em muitos sistemas educacionais, o slogan não é o mais adequado para provocar uma ampla e imediata aceitação, mesmo que pudesse obter tal credibilidade. Quer dizer, o mercado, ele próprio, tem de ser “promo vido”; o ideal tem de ser “vendido”, ou imposto a aqueles que nele estarão envolvidos. Há aqui dois fatores fundamentais. O primeiro, o econômico, envolve a criação de uma série de condições institucionais para que mercados educacionais sejam instala dos e possam florescer; o outro fator, o político, envolve o estabelecimento do nível

mínimo de credibilidade ou aceitabilidade — se não legitimidade —para os mercados numa área da qual, em muitos países, estiveram de modo geral totalmente ausentes. Estas considerações políticas são prévias e limitam as condições e perspectivas econômicas dos mercados educacionais mais do que o inverso. Isto porque as decisões para introduzir a disciplina de mercado em educação são, evidentemente, decisões políticas; a forma mais precisa desse mercado é menos relevante que a instalação do princípio. É importante insistir nestas questões, dado o papel central desempenhado pela introdução do mercado no projeto de “des politização” da educação, que, conforme argumentei anteriormente, é um componente essencial da estratégia da Nova Direita para a educação. Esta toma uma variedade de formas, todas destinadas a reduzir o fardo que a legitimação — para não mencionar o custo — do sistema educacional representa para o Estado. Aquelas incluem: (i) Submeter a um tratamento generalizado (“mainstreaming”) os departamentos de política social, como a educação, negando-lhes assim qualquer direito a tratamento especial (veja-se Dale & Jesson); (ii) introduzir “alvarás” para as escolas (school charters, isto é, cartas de direitos) que podem ter o efeito de colocar a educação fora, se não “acima”, da política; e (iii) devolver à “comunidade” (deliberadamente PG.141 construída como um grupo “politicamente neutro”) uma série de responsabilidades no fornecimento de educação. Neste caso, o que vemos é o mercado sendo usado para tornar individuais o que, antes, constituíam decisões coletivas, por exem pio acerca da distribuição da educação, e para favorecer o uso mecanismos privados para introduzir quase sub-repticiamente medidas cuja aceitabilidade política pode ser questionável. Vale a pena notar aqui o que foi referido por Richard Nelson. Escrever do sobre os Estados Unidos, constata: Antes de avançar, as ações governamentais que ameaçam c status quo são encaradas como sendo convenientemente com pelidas pelas exigências resultantes de um amplo consensc prévio. Já as iniciativas privadas são convenientemente menos compelidas... Uma questão interessante para os cientistas políticos é a base racional que permite que determinadas coisas sejam feitas através da iniciativa privada, enquanto as mesmas coisas seriam bloqueadas se a única forma de as realizar envolvesse o governo num papel ativo (1987, p. 547).

Uma questão similar, e mais diretamente relevante, foi colocada por Ruth Jonathan. Sugere que o trabalho de “persuasão” — ou promoção — pode ser minimizado pela adoção de mecanismos que levem elementos fundamentais da política a ser implantados como faits accomplis sem nunca terem sido formalmente considerados no foro político. Defende que o recurso a mecanismos de mercado para efetuar o tipo de mudanças na natureza e distribuição de educação, que provavelmente não conseguiriam a aceitação popular se fossem introduzidos através de projeto político, um aspecto da alteração do clima de elaboração da política educacional... A introdução de forças de mercado não deve ser vista apenas como um procedimento negativo de “fazer recuar o Estado” simplesmente de modo a devolver o poder às pessoas, com o governo procurando somente maximizar a liberdade indivi dual. Já que, delegando em decisões individuais que, em conjunto, têm efeitos políticos substanciais, os legisladores não diminuem a extensão em que dirigem a política, mas, às escondidas, mudam sua direção..., esta mudança de procedimentos

PG.142 no mecanismo da política provoca mudanças substanciais na natureza e distribuição da educação e na economia política em geral, eliminando (sic) tais mudanças do foro de debate apropriado (Jonathan, 1990, p. 119-125). Isto não significa que todas as políticas usadas para a liberalização do fornecimento da educação têm de ser introduzidas por meios relativamente indiretos. Por exemplo, o ERA, na Inglaterra, foi objeto de um autêntico debate público e político geral (ainda que sua implementação decorresse algo menos publicamente; veja-se Ball, 1991). Por outro lado, poderia ser enfatizado que a mais forte tentativa para tornar o fornecimento da educação mais competitivo na Nova Zelândia, a proposta de financiamento imediato e global de todas as escolas, não teve bons resultados em conseqüência de sua exposição pública, enquanto os dois mecanismos “administrativos” que, conforme defenderei, eram mais eficazes para realizar aquela finalidade, foram introduzidos com muito menos brilho e mais sucesso. Não obstante, mesmo se os enquadramentos podem ser esta belecidos subrepticiamente (uma estratégia em relação à qual há limites claros), seu sucesso dependerá de sua implementação, e isso é suscetível de requerer maior promoção política do mercado. Podemos então presumir que os fatores econômicos e políticos conjuntamente constituem os critérios para a seleção das formas de mercado a serem instalados e os enquadramentos no interior dos quais funcionarão (notar o uso do plural; como será adiante discutido, os mercados educacionais não são homogêneos). Como estes dois fatores são interpretados e implementados, constituem as características centrais, se não únicas, para estabelecer os tipos de mercado educacional que emergirão. Os detalhes e combinações das estratégias e mecanismos políticos e administrativos variarão consideravelmente através das diferentes sociedades com base em fatores como (i) a dimensão, a natureza e a representação de quaisquer escolas privadàs já existentes; (ii) a força da ligação da profissão docente à educação pública; (iii) a forma histórica do Estado de Bem-Estar e a força da vinculação geral de seus princípios; e (iv) a natureza e aceita bilidade, para fornecedores e clientes, das formas existentes de administração educacional. Serão também influenciados pela PG.143 combinação mais vasta de modos de coordenação social — isto é, pelos modos hierárquicos e comunitários – que conjuntamente produzem a política global para a educação. QUATRO CONSTRANGIMENTOS NA CONFIGURAÇÃO DE MERCADOS EDUCACIONAIS Mais genericamente, dados os objetivos políticos de avanço no sentido da introdução de mercados em educação, poderemos esperar encontrar pelo menos quatro constrangimentos e influências adicionais na configuração de mercados educacionais. O primeiro está associado à probabilidade de um fracasso do mercado educacional, como foi argumentado por um conjunto de economistas da educação (uma variação recente e interessante na argumentação usual e convincente acerca da propensão de os mercados de educação

“falharem” encontra-se em Brown, 1992). Em segundo lugar, não deveria haver custos significativos associados com o estabelecimento de mercados educacionais. O que teria como efeito eliminar, por exemplo, alguns dos esquemas radicais baseados na utilização do voucher (bônus educacionais). O terceiro constrangimento é que qualquer sistema de mercado deveria restringir tendências monopolizadoras, o que é uma questão aparentemente insolúvel para a Nova Direita na área da política social (para perspectivas diversas das referidas tendências, ver Bertram, 1988; Moe, 1984, p. 270; Le Grand, 1992, p. 435). Isto excluiria qualquer forma de promoção no mercado através de autorização, concessão, aquisição ou concurso que pudesse ser interpretado como o equivalente educacional para “apropriação” em larga escala. O último constrangimento, e talvez o mais importante, é a necessidade de manter o controle do Estado quer sobre “o produto” quer sobre o “serviço”. Por um lado, há suficientes benefícios de “bem-público” e “externalidades positivas”, derivados da educação estatal, para a legitimidade do Estado ficar em risco se fossem casual ou descuidadamente abandonados numa precipitação para a privatização. Por outro lado, o Estado deve manter o poder de verificar, controlar, alterar ou até abandonar o mercado educacional. Deve também continuar a deter pelo menos uma “vigilância” ou autoridade que mantenha uma inspeção sobre PG.144 todas as escolas; mesmo se tal não envolvesse a inspeção de níveis acadêmicos, deveria incluir a política dos direitos civis das crianças com relação, por exemplo, à agressão física ou ao abuso sexual. Finalmente, ainda que vasto o âmbito do mercado em educação, o Estado parece ser suscetível de ser mantido como responsável político em última instância para garantir que uma educação de alcance e qualidade mínimos esteja disponível para todas as crianças. Dada a tendência do mercado para “falhar” em tais situações, parece provável que essa responsabilidade terá de ser exercida permanentemente e com vigilância. Como salientei antes, países diferentes interpretarão este conjunto de variáveis de formas diferentes, em consonância com suas tradições de política social e educacional, conforme a força e orientação de quaisquer influências da Nova Direita em sua política e de acordo ainda com sua situação econômica mais ampla. Será útil ilustrar isto com dois exemplos. Na Nova Direita, havia um impulso muito poderoso, muito bem informado, relativamente às respostas do mercado que quase chegava a privatização total, com origem no Ministério das Finanças, que era um dos mais puros advogados do racionalismo econômico em todo o mundo (veja-se NZ Treasure, 1990, por exemplo; veja-se ainda Hood, 1991). Um certo número de comentaristas aceitou essa iniciativa do Ministério como um caso encerrado. Todavia, a posição do Tesouro não conduziu a que o mercado fosse estabelecido como o modo de coordenação social dominante em educação. Em vez disso, pode argumentar-se (veja-se Dale & Jesson, 1993) que, na agenda de “mainstreaming” do State Service Comission (o outro órgão de “controle” do governo central encarregado de supervisionar a eficiência e eficácia dos serviços do Governo como um todo), a educação era dominante e inibidora da agenda do Tesouro (porque fortalecia o controle central do sistema educacional de várias formas, reduzindo simultaneamente a autonomia de que as escolas necessitariam para implementar algo aproximado do nível de promoção no mercado considerados pelo Tesouro). E enquanto o SSC era o suporte mais importante — na verdade o promotor — da política de financiamento imediato e global (bulk funding), parece provável que esse apoio

fosse motivado pelo desejo de reforçar a responsabilização das escolas mais do que sua autonomia. Por outro lado, a devolução PG.145 às escolas de algumas responsabilidades operacionais de financiamento (sob a legislação Tomorrow’s Schools) estabeleceu uma base necessária de autonomia da escola, a partir da qual podia ser instaurado um sistema mais competitivo. Essa base foi consideravelmente fortalecida pela fórmula de financiamento das escolas de acordo com o número e tipo de alunos que matricularam. Essas duas medidas foram crucialmente ampliadas por dois “mecanismos administrativos”: a abolição das zonas escolares e a autoriza ção das escolas para decidir seus próprios esquemas de matrículas. Estes quatro componentes configuram o enquadramento essencial que tornou possível a introdução da “escolha” como uma característica fundamental subjacente à promoção de um mercado educacional na Nova Zelândia, que tomarei como exemplo na segunda parte deste trabalho. E útil como modelo porque está razoável e integralmente organizado e tem similaridades consideráveis com os modelos inglês e escocês que foram objeto de valioso trabalho de pesquisa. E útil também, em outro nível, porque, por um lado, não contém nenhum elemento de “privatização” no sentido literal e, por isso, não pode ser facilmente caracterizado como extremo e, por outro lado, porque se assemelha de forma significativa àquela que é provavelmente a mais conhecida alternativa “liberal” ao monopólio de Estado e à privatização, a estratégia da “escolha pública” de Levin (1987, 1992), que proporcionaria uma série de opções no interior do setor público. OS QUASE-MERCADOS Estas combinações assemelham-se ao que Julian Le Grand (1991) descreveu como “quasemercados”. Sustenta que “quase-mercados” são mercados porque substituem os fornecedores competitivos independentes. São “quase” porque diferem dos mercados convencionais num certo número de sentidos. As diferenças estão quer do lado da procura quer do lado da oferta. Do lado da oferta, como com os mercados convencionais, há competição entre empresas produtivas ou fornecedores de serviço. Assim, em todos os esquemas descritos, há instituições independentes (escolas, universidades, residências, associações de moradores, proprietários de terras privados) competindo por clientes. Contudo, em contraste com os mercados convencionais, essas organizações não PG.146 procuram necessariamente maximizar seus lucros, nem são necessariamente propriedade privada. Precisamente, náo é claro o que tais empresas maximizarão, ou se pode esperar que maximizem. Do outro lado, o da procura, o poder de aquisição do consumidor não é expresso em termos de dinheiro. Em vez disso, toma a forma de um orçamento reservado ou voucher, limitado à aquisição de um serviço específico. Ainda do lado da procura, em algumas das áreas a que diz respeito, como a saúde e os serviços sociais, o consumidor imediato não é o que realiza as escolhas referentes às decisões de aquisição; como alternativa, essas escolhas

são delegadas a uma terceira parte: um administrador, um médico de clínica geral ou uma autoridade de saúde. Estes quase-mercados de bem-estar, por conseguinte, diferem dos mercados convencionais em um ou mais dos três sentidos: organizações com fins não-lucrativos competindo por contratos públicos, por vezes em concorrência com organizações lucrativas; o poder de aquisição do consumidor mais sob a forma de vouchers que em dinheiro; e, em alguns casos, os consumidores representados no mercado por agentes em lugar de atuar por si mesmos. (Le Grand, 1991, p. 1259-60). Referindo-se especificamente à educação na Inglaterra e País de Gales, ele escreve: A Lei de Reforma Educacional de 1988 incluía quatro elemen tos de quase-mercado: matrícula livre, financiamento segun do o número e tipo de alunos matriculados, administração local das escolas e uma oportunidade para as escolas se “subtrairem” ao controle das autoridades locais. Conforme as propostas de matrícula livre, os pais são autorizados a inscrever os filhos em qualquer escola de sua escolha; segundo a fórmula de financiamento, as escolas receberão uma verba baseada no número de alunos inscritos, atribuição essa que, sob a gestão local dos fundos, podem despender conforme desejarem. A possibilidade de se subtrairem ao controle das autoridades locais permite às escolas optar por não depender do controle e financiamento diretos daquelas, recebendo subvenções diretamente do governo central. Todas estas mudanças em conjunto podem ser vistas como uma forma de voucher educacional financiado pelo governo central, com a

PG.147 instauração de escolas essencialmente “independentes” e com a atribuição de fundos do Estado às escolas, sendo determinadas pela escolha dos pais em vez de através do processo de planejamento burocrático (Le Grand, ibid., p. 1258).

Das condições necessárias para a implementação bem sucedida de um mercado, as que dizem respeito à oferta e procura e à escolha e competição são obviamente decisivas. A escolha do “consumidor” pode ser potencializada por uma série de combinações de fatores de oferta e procura. A natureza e importância da escolha podem ser influenciadas, por um lado, “ajustando” a oferta para elevar a competição entre escolas. Isto pode ser realizado através de instituições de financiamento, diretamente ou através de medidas legais e fiscais; na Inglaterra e País de Gales, tal foi conseguido através da criação de novas categorias de escolas — GMS (Grant-Maintained Schools), CTC (City Technology Coileges), etc. - e na Nova Zelândia pela supressão das regulamentações de zona escolar e a criação de esquemas de matrículas que conjuntamente aumentaram a “oferta” de escolas disponíveis para escolha. Por outro lado, a capacidade para atuar sobre a escolha pode ser incrementada “ajustando” a procura — financiando indivíduos, através de subsídio ou voucher. E muito importante notar que aumentar a intensidade da procura do consumidor não depende do fornecimento de um voucher efetivo negociável; tornar o financiamento da escola dependente de uma fórmula per capita coloca o consumidor numa posição muito mais forte face à escola, quase na posição “quase-voucher móvel”! Exatamente por que esse voucher seria usado preferencialmente num sentido e não em outro é uma questão fundamental em toda esta discussão. Le Grand argumenta que a distribuição de fundos do Estado, num quase-mercado, será determinada pelo padrão de

preferência dos pais, mas não é evidente em que é que seriam baseadas tais preferências. O que é que faz uma escola “melhor” ou, pelo menos, mais atraente para os pais? A respostas mais óbvia é que eles conhecem e estão satisfeitos com a educação oferecida por uma escola específica. Além disso, é também óbvio que nem todos os pais estão igualmente contentes com a escola que seu filho freqüenta (não obstante a oposição dos pais ao fechamento de qualquer escola, ainda que aparentemente impopular PG.148 ou inadequada) e que nem todos acolheram bem uma oportunidade para escolher qual a escola que seu filho freqüenta. Quero defender que a base mais importante de tal escolha é o número de credenciais com que a escola parece ser capaz de habilitar a criança em questão. A escolha pode ser baseada em “produtos” alternativos (p. ex. um leque de ofertas curriculares diferentes) ou na qualidade do “serviço” no fornecimento de um produto padronizado (p. ex. um currículo nacional). O que constitui exatamente o produto da educação já foi largamente debatido, mas sugeriria eu que o produto da educação que é mais amplamente reconhecido ou pressuposto, em discussões de mercados educacionais, é o certificado. A característica mais importante do diploma é a de ser um bem posicional (ver Hirsh, 1982). Quer dizer, um bem cuja posse eleva a posição de uma pessoa mais do que aumenta sua riqueza ou seja de valor instrumental direto para ela. A questão fundamental acerca dos bens posicionais, do ponto le vista desta discussão, é que nunca existem em quantidade suficiente; são, como se diz, um jogo de soma nula. Isto significa cue sua posse por alguém depende de quantos outros os possuem. Os diplomas escolares são o principal exemplo de bens posicionais apresentado por Hirsh, mas outro de seus exemplos pode ser útil. Hirsh sugere que aquilo que se pode chamar “esconderijos” de “férias” só tem valor enquanto nem toda a gente os tem; uma vez que o “esconderijo” é descoberto por mais e mais pessoas, a vantagem de o possuir em primeiro lugar desaparece. Acontece o mesmo com os diplomas escolares. A medida em que mais pessoas contêm um nível particular de diploma, seu valor cai e, para manter ma vantagem compatível à que inicialmente conferia, torna-se necessário obter mais diplomas ou diplomas “superiores”. A conseqüência disto é que os pais estão inevitavelmente colocados sob alguma pressão, empenhando-se em maximizar as oportunidades de seus filhos na aquisição de diplomas, sejam quais forem outras compensações menos palpáveis que eles possam receber na educação. Há argumentos sociológicos, filosóficos e econômicos que sustentam esta discussão. Sociologicamente, Randal Collins foi o principal representante do argumento credencialista. Seu arumento essencial é que a escolarização se expandiu não em resposta a necessidades de competências técnicas, mas devido a PG.149 pressões das populações no sentido da expansão de oportunidades de adquirir status (Collins, 1988, p. 178): A moderna educação de massas transformou-se largamente num sistema de formalidades burocráticas, preenchendo cur sos em conteúdos quase arbitrários para que as escalas e resultados dos testes possam ser fixados, os graus acadêmicos recebidos, e os estudantes possam prosseguir através de níveis suficientes de credenciamento para entrar no mercado dc trabalho (ibid, p. 179).

Em suma, a teoria de Collins propõe que o processo credencializador da educação tornou-se uma bas fundamental de estratificação: a realização profissional de un indivíduo depende de um grau considerável ... de qual o título acadêmico que obteve, e também do valor que tal título tem em relação a todos os outros que existem no mercado com petitivo por posições sociais (ibid., p. 180). Ruth Jonathan (1989, p. 333) chama a atenção para uma questão muito semelhante. Ela escreve: a educação do indivíduo assume dois tipos de valor: o valor próprio e o valor de troca. Seu valor de troca torna a educação um bem posicional; o tipo de bem cuja validade, para aque1e que o detêm, depende em boa parte tanto de seu valor genérico percebido como de outros que o possuem em menor grau. Seu valor de troca é, assim, sem sombra de dúvi socialmente relativo: o que conta para o indivíduo a esse respeito não é a quantidade absoluta desse bem de que dispõe, mas o fato de possuir mais do que outros, inpendentemente de quanto ou de quão pouco é exigido çi colocar nessa posição favorável de troca.

Brown reforça este ponto de uma perspectiva econômica. Der de que “há forças em ação que tendem a tornar as escolas — públicas e privadas — semelhantes em sua organização e currículo. A maior parte dessas forças surge face à incerteza acerca capacidade dos estudantes e de perspectivas de emprego futuro”. Ele distingue entre “serviços primários” que produzem as carac PG.150 terísticas dos estudantes para o mercado de trabalho e que todas as escolas proporcionam, e “serviços secundários” (como forma ção religiosa), que não produzem diretamente as opções dos estudantes para o mercado de trabalho. A uniformidade polivalente que surge em todas as escolas, proporcionando uma série completa de serviços primários, é comum a todas as escolas, porque permite que as pessoas diversifiquem suas escolhas de escolarização em confronto com a incerteza. Uma conseqüência disto, argumenta Brown, “...é que as escolas privadas terão dificuldade em encontrar um nicho vazio no mercado educacional, exceto por sua diferenciação em dimensões de serviço secundário, tais como a formação religiosa” (Brown, 1992, p. 288). Podemos argumentar que desenvolvimentos como as Magnet Schools e as City Technology Colleges representam uma exceção para esta discussão; poderíamos igualmente argumentar, talvez, que suas próprias carreiras tendem a prová-lo (veja-se, por exemplo, McNeill, 1987; Edwards, Fitz & Whitty, 1989). Acima de tudo, estes argumentos parecem demonstrar que, certamente desde que se trata de considerar o valor de mercado da educação, o diploma é o produto dominante em todo e qualquer tipo cfe escola Parece claro que a escolha das escolas pelos pais é provavelmente baseada mais no “produto” do que no “serviço” que elas oferecem. A combinação da base de competição — serviço ou produto — e a facilitação da escolha — orientada pela oferta ou pela procura — produz o quadro que veremos a seguir. Registrei o que me parece ser a posição pós-ERA na Inglaterra e no País de Gales.

Modo de Facilitação da Escolha

Base de competição

Oferta

Procura

Serviços

Escolas financiadas por Escolas Privadas subvenção (Grant Maintained Schools)

Produtos

City Technology Colleges

Fornecedores privados de formação, p. ex., Institutos Comerciais, Escolas de Língua

PG. 153 O VALOR DO CAPITAL SOCIAL COMO UM BEM POSICIONALIDADE Não deemos todavia, deixar a questão acerca do que conta conta com o produto ou serviço no mercado educacional meramente no nível das credenciais, sob a forma de certificados ou outras qualificação comprovadas, ainda que sejam importantes (veja-se Da/e & L mos Pires, 1984). Parece haver urna outra forma de bens posicionais em causa, o que Bourdieu chama “capital social”, pelo que ele designa coisas como relações, maneiras, atitudes, etc. (Bourdieu & Boltanski, 1977, p. 145). Isto torna-se evidente em pelo menos três sentidos: (i) maximizando o rendimento das qualificações educacionais; (ii) elevando seu valor; e (iii) compensando por sua ausência. No primeiro caso, é relevante referir a utilização do conceito por Bourdieu & Boltanski. Em seu trabalho, consideram o capital social como sendo usado para maximizar o benefício possível de ser obtido a partir das qualificações educacionais, as quais assumiam maior importância para as classes altas como mecanismo que justificariam sua dominação continuada numa época de mudança econômica; os diplomas como capital escolar tornam-se “capital cultural incorporado que recebeu ratificação da escola é assim juridicamente garantido” (ibid). Contudo, a mera possibilidade de um diploma escolar não garante que seu valor potencial seja realizado. Isto porque “... fora do mercado estritamente educacional, o título acadêmico vale o que seu possuidor valer econômicamente e socialmente..., sendo o rendimento do capital escolar uma função do capital econômico e social que pode ser dedicado à si exploração” (Bourdieu & Boltanski, 1978, p. 225); em particular “quanto mais lugar há para estratégias de blefe, mais... os possi dores de capital social... podem obter uma alta taxa de rendimen sobre seu capital escolar” (Bourdieu &

Boltanski, 1977, p. 145). Este argumento é corroborado pelo trabalho de Marshall & S acerca da influência da origem de classe na Grã-Bretanha. Na base de uma vasta pesquisa empírica, argumentam que “na moderna Grã-Bretanha, a origem de classe e sexo podem minar os princípios meritocráticos de igualdade de oportunidades... Pessoas com diferentes origens de classe têm desiguais oportunidades não de sucesso educacional mas de sucesso profissional, mesmo PG. 152 mando-se em consideração seu diplomas” (Marshall & Swift, 1993, p. 206). Podemos mostrar o segundo efeito do capital social, a potencialização das credenciais, observando que não somente o diploma não tem um valor constante ou imutável, mas que sua valia depende, também, decerto modo, das circunstâncias em que foi obtido. E importante não só que se tenha o diploma (e que os outros não), mas onde foi obtido. O capital social, numa certa medida, define o valor das credenciais antes de iniciar a multiplicação de seus efeitos. Não nos referimos meramente ao “valor snob” da educação escolar privada inglesa, se bem que seja importante. A melhor ilustração disto é a descoberta de Heath & Ridge de que, mesmo seguindo-se a um acréscimo significativo da importância das credenciais para conseguir empregos, os jovens da classe de serviços (isto é, classe média), sem qualificações, arranjavam-se melhor para obter colocações que seus parceiros de classe trabalhadora qualificados (Heath & Ridge, 1983). O que isto demonstra é que o capital social também contém um elemento de “posicionalidade”. Todos os “clubes”, formais ou informais, têm limites para seu número de associados. O efeito compensador do capital social é novamente evidente nos dados de Marshall & Swift que ...sugerem

que, na distribuição de recompensas profissionais para resultados escolares, pessoas iguais podem ser tratadas desigualmente. A origem de classe pode contrabalançar os fracassos e os homens tendem a ser favorecidos em relação às mulheres... Aqueles que... começaram a partir da origem da classe de serviços, apesar da falta de sucesso educacional..., são... funcionários públicos, diretores gerais e de serviços, que deixaram a escola aos 15 anos e sem terem obtido qualificações formais; nenhum sequer passou em algum exame ou obteve qualquer outro diploma reconhecido... Se as crianças de origens favorecidas fracassam na escola, sua posição de classe torna provável que elas sejam capazes de apelar a outros recursos, talvez mais decisivos, sob a forma de redes sociais de relações de classe que podem protegê-las das conseqüên cias (ibid, p. 207-211).

PG.153 Duas importantes conclusões podem ser retiradas a partir desta discussão sobre o valor do capital social como um bem posicional. A primeira é que o reconhecimento de seu valor, e a que aspectos das escolas ele é inerente, pôde levar os pais a escolherem as escolas tendo como base a contribuição detectada nestas escolas para o capital social de uma criança, bem como para o sucesso acadêmico; e isto não apenas quando se pretende a confirmação do capital econômico, mas também quando se considera que um capital social mais rico pode tornar-se disponível para aqueles que não o possuem. A segunda diz respeito ao impacto provável deste tipo de ênfase no processo de escolarização. E claro que tenderá a aumentar a uniformidade (possivelmente, de forma absoluta mente literal) mais que a diversidade, mas o que precisa também ser entendido é que a base desta uniformidade, o que lhe dá

coerência, é uma perspectiva muito tradicional da carreira profis sional, cujo traço mais relevante, deste ponto de vista, é sua associação restrita com um conjunto de características específicas de classe, gênero e etnia. Quer dizer, são assumidas e privilegiadas as “necessidades” educacionais dos rapazes brancos de classe média. Quanto mais se fizer este tipo de suposição acerca da profissão, mais conservadora será a orientação do processo de escolarização. Assim, esta ênfase na importância do capital social nos conduz a abordar a questão de quais pais estão escolhendo e quais as conseqüências disso para as escolas, de um ângulo ligeiramente diferente. Isto implica utilizar a distinção de Ralf Dahrendorf entre ter direito a (entitlement) e fornecimento de bens e serviços sociais. Essencialmente, uma política caracterizada por uma ênfase no entitlement procura maximizar a distribuição mais que a disponibilidade de bens e serviços, enquanto uma ênfase no fornecimento inverte estas prioridades. Em suma, fornecimento significa que mais coisas estão disponíveis para menos pessoas, e ter direito significa exatamente o oposto. Entitlement conota universalidade; fornecimento conota posicionalidade. As implicações desta conceitualização para a compreensão da natureza e conseqüências da escolha da escola pelos pais estão indicadas no quadro seguinte. PG.154

Serviço

-fiscalização da qualidade e -escolas de natureza mista eficácia (público e privado) -charters (cartas de direitos)

Produto e Capital

-capital comunitário

-currículo nacional e exames -criação, manutenção confirmação do social

e

Há duas questões fundamentais acerca deste quadro. Primeiro, o “produto” é diferenciado. Não consideramos a escolha dos pais limitada à dimensão única do diploma; o quadro sugere que escolas diferentes podem ser vistas oferecendo produtos diferentes mesmo no interior do sistema totalmente gerido e controlado pelo Estado. Segundo, isto está estritamente ligado ao que sabe mos sobre as razões dos pais que escolhem escolas, mesmo quando a base desta escola fica limitada aos diplomas escolares. O que está implícito acima é que esta avaliação será quantitativa mais que qualitativa, isto é, que o fundamental será o número de certificados, mais que qualquer outro critério mais abstrato de serviço. A evidência da Inglaterra (Bowe & Bail, 1992) e Escócia tende a confirmar isto. Willms & Echois, por exemplo, referem, a partir de seu trabalho na Escócia, que aqueles pais que “escolhem” escolas “tendem a escolher com nível sócio- econômico mais alto e níveis mais altos de êxito” (Wilims & Echols, 1992, p. 347). Devemos reconhecer a importância de ambos os fatores mencionados por estes autores, pois estão intimamente ligados e em sentidos que comprovam conseqüências cruciais da promoção de um mercado de educação. Isto aponta para uma dimensão

fundamental da escolha e da competição nos mercados educacionais. Isto é, que, ao contrário do mercado clássico, nem todos os clientes são de igüal valor; na verdade alguns são de valor nega: tivo. A qualidade dos “serviços” que uma escola é capaz de fornecer é tipicamente medida pela realização acadêmica de seus alunos. E sabido que diferentes grupos ou categorias de alunos dão contribuições distintas para essa reputação. Isto foi muito claramente documentado na análise dos desempenhos diferentes dos alunos nas escolas privadas e públicas, O estudo americano PG.155 mais conhecido, High School Achievernent, de Colleman et alii mostrou que os alunos de escolas privadas obtinham resultados ligeiramente melhores que os das escolas públicas. Contudo, quando esses dados foram re-analisados levando em conta o ambiente social da escola — ou, bem objetivamente, a qualidade de seus clientes —, essas diferenças desapareceram. Em outras palavras, o desempenho superior das escolas privadas era devido não à sua qualidade, organização, padrões, etc., mas às diferenças nos alunos que as freqüentavam (Anderson, 1992). Isto é provavelmente mais completamente compreendido em Wilims & Echols e na sua teoria dos efeitos contextuais, isto é, “os efeitos das características do grupo sobre os resultados individuais, que vão além dos efeitos das características no nível individual... Isto é, o desempenho das escolas é condicionado pelas categorias de alunos que as freqüentam” (Willms & Echois, 1992, p. 341-2). Isto levanta uma série de questões importantes que posso aqui apenas mencionar. Uma questão fundamental é aquela acerca da qualidade ou atributo que é definido como “negativo”. Por exemplo, o que é mais importante: a capacidade ou a origem social? Há referências explícitas à capacidade em esquemas de matrículas na Nova Zelândia, mas a origem social parece ser a “qualidade’ em que as escolas estão mais interessadas. Este problema foi recentemente considerado por John Roemer (1992). Ele defende que o “tipo de criança” é a variável crucial, mas que não é possível, por uma série de razões, avaliar rigorosamente o “tipo de criança”. Em vez disso, a renda dos pais torna-se um substituto bastante insatisfatório. Roemer sustenta que “quando a renda das famílias é utilizada para determinar o valor dos vouchers, nem a regulamentação conseguirá impedir as escolas que funcionam na base de vouchers de tentar discriminar na admissão de algumas categorias de crianças” (Roemer, 1992, p. 307). Os estudantes podem ser vistos como portadores de capital cultural, econômico e social, e as escolas têm uma idéia mais ou menos clara de onde, em tais cálculos, deve ser traçada a linha entre crédito e débito. Uma conseqüência disto é que o voucher de um pai não é tão bom como o de outro; alguns estudantes são mais problemáticos que valiosos. Esta é uma questão importante, como sugere Philip Brown: “... a resposta da Nova Direita à crise da educação gera uma ideologia que delega o poder aos pais [parentocracy] na qual a educação que uma criança recebe deve estar mais de acordo com a riqueza e desejos dos pais do que com as capacidades e esforços da própria criança” (Brown, 1990, p. 65). Além disso, evidencia- se, a partir da pesquisa sobre o esquema dos CTC, que o apoio e o empenho dos pais são critérios de seleção fundamentais. O que isto significa, acima de tudo, é que as escolas, numa situação de mercado competitivo, são suscetíveis de competir não apenas para poder aceitar algumas categorias

de alunos mas também para rejeitar outras. Exatamente como a competição no sistema de saúde é suscetível de ser mais feroz e categórica na área das disfunções físicas que constantemente atormentam os jovens ou adultos de meia-idade do que com os muitos jovens ou (principalmente) os velhos e cronicamente doentes, assim as escolas, numa situação competitiva, são pressionadas a realizar a seleção daqueles que são claramente capazes — ou, pelo menos, daqueles comprovadamente dóceis. Como Howard Glennester defende, “... qualquer empresário escolar atuando racionalmente procuraria excluir alunos que baixariam o nível de desempenho total da escola, seu principal argumento de venda para os pais” (1991, p. 1271). E continua: qualquer sistema educacional não seletivo seria então um equilíbrio instável. Seguir-se-ia um processo de ajustamento, avançando em direção a um equilíbrio no qual as escolas acolheriam as crianças de diferentes capacidades e origens sociais. Algumas aceitariam esta conseqüência, outras não. O que a teoria econômica sugere é que um autêntico mercado interno entre escolas não produziria um resultado neutro, [mas]... um sistema educacional seletivo, de acordo com os atributos que mais fortemente determinam o desempenho da escola, quer dizer, aptidão natural e classe social (ibid.).

Um elemento poderoso da discussão acerca da educação sugere que as escolas podiam ser compensadas por aceitar determinados alunos “conhecidos” como suscetíveis de serem “fracos realizadores”. Contudo, como Glennester aponta, tais estratégias compensatórias pouco fizeram para melhorar o desempenho (escolar) individual ou coletivo; além disso, pode haver conseqüências negativas para a imagem de uma escola, se for vista como tendo PG.157 que aceitar um grupo específico de alunos simplesmente porq eles vêm com uma etiqueta de preço mais alto (ibid, p. 1271-2). A POLARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR Há um conjunto de conseqüências do tipo de promoção de um mercado de educação realizado numa base de quase-mercado abrigo do ERA na Inglaterra. As que incluem o equilíbrio ententitlement e fornecimento, voice e exit 3, o dilema de “perspectiva educacional ou imagem da escola” e a polarização da educação escolar. Para os objetivos deste trabalho, posso abranger as duas primeiras dessas conseqüências por referência aos trabalhos e que já foram mais completamente desenvolvidas (no caso primeira em Dale, 1993; Dale & Ozga, 1993; no caso segunda, em Bowe & Ball, 1992 e Dale, 1993b). A última conseqüência do avanço no sentido da promoção um mercado em educação, contudo, requer elaboração adicional. Esta é o que parece ser uma propensão crônica dos mercados e educação para produzir uma polarização maciça do fornecimento em termos de classe. Observei, quando da publicação do Education Act, que uma conseqüência provável de suas suposições e a separação segundo as categorias “mínimas” e “de mercado (Dale, 1989), e nada do que ocorreu durante a implementação desta lei parece ter feito muito para conter esta tendência polarização. É essencial notar, no entanto, que esta polarização não apenas o efeito dos fatores que habilitam as pessoas da classe média a receber benefícios desproporcionais de todas as políticas sociais, devido à sua maior compreensão dos processos políticos e capacidade e

oportunidade para se organizarem em grupos pressão (veja-se Goodin & Le Grand, 1987). Não é mesmo somente conseqüência, no campo da educação, da experiência e relacionamento mais vastos com o sistema educacional, ou de capital cultural e social mais adequados, embora estes fatos continuem a ser importantes. 3 Estes últimos, termos utilizados por A. Hirschman (1970) para significa procura de resolução de problemas através da política (voice = voz) ou at da procura de novos mercados (exit = saída) (N. da T.).

PG.158 A polarização é encorajada pela própria estrutura e pressu postos do mercado erh, pelo menos, três sentidos, cujo impacto individual e coletivo é intensificado por um conjunto adicional de mecanismos a que chamarei os três M. Já me referi à primeira daquelas suposições fundamentais: diz respeito à “racionalidade” na decisão das escolas para selecionar alunos com base na classe social, aumentando desse modo seu capital cultural (e social) e colocando-os numa virtuosa espiral de sucesso sempre crescente no mercado educacional. O segundo fator relaciona-se com a distinção de Hirschman entre voice e exit. E claro que a liberalização da educação escolar encorajará mais uma resposta de exit do que uma de voice. Entretanto, isto não esgota o valor da distinção. Podemos verificá-lo considerando o papel dos pais (provavelmente a maioria deles) como membros dos conselhos diretivos das escolas. E sempre duvidoso até que ponto os pais representam um eleitorado cujos interesses comuns são mais poderosos do que os interesses individuais. Onde as escolas estão organizadas numa base competitiva, todavia, pode ser que os interesses coletivos dos pais no bem-estar da escola como um todo sejam mais suscetíveis de ser subordinados a seus interesses individuais no bem-estar de seus próprios filhos em concorrência com outras crianças. Isto poderia ter o efeito de alimentar o que Hirschman chama voz “traiçoeira” — quando diferentes consumidores têm idéias diversas acerca de que melhorias são necessárias e as idéias e gostos dos ativistas diferem sistematicamente das idéias e gostos dos não-ativistas, na medida em que tal seja bem sucedido, a voz do grupo ativista obrigará a qualidade do produto a variar de tal modo que as vantagens lhes sejam primária ou exclusivamente concedidas (Hirschman, 1982, p. 242). Os argumentos adiantados por Ruth Jonathan sugerem que, embora tal voz possa parecer traiçoeira, a traição resulta de fatores essencialmente estruturais, e pode esperar-se que ela seja a norma, mais que uma expressão de baixos padrões éticos individuais. A autora defende que, porque a educação — ou pelo menos os diplomas — é um bem posicional (e conseqüentemente de soma zero) e porque “os direitos dos pais como pais estão fundamentados em seus deveres de curadoria ou atuação no sentido de PG.159 proteger os interesses atuais ou futuros dos seus filhos” (op. cit. p. 122), quer eles gostem ou não, ...tendo (num mercado educacional) apenas a oportunidade de tentar garantir uma superioridade para aqueles cujos inte resses eles têm sob sua guarda, são pressionados para adotar uma atitude social conservadora e prudente. Num jogo estru turado como o dilema de um prisioneiro, os curadores, longe de poder escolher livremente, não têm opção razoável senão tomar atitudes individualistas e competitivas, mesmo que estas impliquem em resultado pior para alguns jovens — e podem eventualmente implicar em um efeito pior para todos eles do que um enquadramento menos competitivo da decisão teria resultado (Ibid, pp. 123-124).

E, ainda que os pais possam ser avessos a exercer os direitos que lhes foram dados buscando vantagens para seus próprios filhos, qualquer relutância é suscetível de ser agudamente testada pelo reconhecimento de que outorgar aqueles direitos exporá, como Jonathan propõe, “simultaneamente nossos filhos às conseqüências que advêm do exercício similar daqueles poderes por outros” (Ibid, p. 122). O terceiro fator, que contém a essência do princípio “o usuário paga”, está rigorosamente relacionado à questão. E claro que uma das atrações e motivações dos governos para o mercado de educação é que lhes permite largar uma boa parte da carga financeira e transferi-la para os consumidores individuais. Contudo, quanto mais o Estado se retira do financiamento da educação, mais polariza o fornecimento. Isto porque, quanto mais reduzida a base da educação “mínima” disponível para todos, financiada por impostos, mais desvalorizado e menos atrativo esse mínimo se torna para os pais. Ao mesmo tempo, como torna a aquisição da educação suplementar mais atrativa ou mesmo necessária, tal transferência de responsabilidade pelo financiamento disponibiliza mais investimento (através de menor tributação) que os pais podem gastar diretamente com seus próprios filhos e não com os dos outros. A redução do mínimo, que pode ser vista como uma pressão crônica nos governos, habilita e encoraja as escolas e os pais a diferenciarem-se uns dos outros pela aquisição de bens e serviços/acessórios, um processo que não é difícil ver avançar PG.160 rapidamente no sentido da polarização (um exemplo desta tendência insurgente vem de Auckland, onde as contribuições voluntárias que as escolas recebem dos pais oscilam de zero a mais de $100,00 — o suficiente para pagar a mais de quatro professores). Uma manifestação desta tendência é notória no que Galbraith chama a “cultura do contentamento”, que tem muito em comum com os argumentos de Hirsh em The Social Limits to Growth (veja-se Galbraith, 1991). Isto, até certo ponto, é baseado naqueles que chegaram a um nível de qualidade de vida com o qual estão satisfeitos, que tentam “parar o relógio”, retirar a ponte levadiça por detrás deles. Procuram consegui-lo em parte consolidando sua própria posição (e ao mesmo tempo restringindo o acesso dos que a ela aspiram) através da oposição ao aumento de impostos que pagariam a educação dos pobres. Este fenômeno atinge provavelmente seu apogeu na fuga da classe média das cidades nos Estados Unidos; ao mesmo tempo, isto diminui seus encargos tributários (não têm mais que pagar pela educação dos pobres e garantem que os pobres ficam menos capazes de desafiar ou manchar sua cultura de contentamento). Uma conclusão essencial a ser retirada das conseqüências da liberalização difornecimento de educação e que decisões indivi dualmente racionais se adicionam a politicas coletivamente irra cionais. Isto deve-se à condição de bens posicionais dos diplomas escolares. Tal fato foi bem exposto por Frank (1991). O autor defende que ... o mecanismo da mão invisível apóia-se na suposição do modelo de interesse pessoal de que o padrão de vida de uma pessoa confere satisfação independentemente do padrão de vida de outras. Mas, porque muitas metas econômicas são indiretamente posicionadas no seu caráter, temos que rejeitar essa suposição — e com ela a noção de que a busca do interesse pessoal está genericamente em harmonia com o bem-estar global da sociedade (p. 8 1-82).

Apenas um entre muitos exemplos desta irracionalidade vem do fornecimento de educação elementar em algumas áreas de Au ckland, onde, como uma conseqüência da reação

“racional” de escolas a escolhas “racionais” de escolas por pais, um certo número de crianças encontrou-se em “terra de ninguém”. Isto é, PG.161 foram excluídas de qualquer “área de residência” pelas políticas “racionais” de distribuição de zonas das escolas de sua área e podem ter que deslocar-se quilômetros, muitas vezes sem poder contar com transporte público (mesmo presumindo que seus pais podiam pagá-lo) antes de conseguir uma escola que esteja disposta a aceitá-las como alunos “fora de zona” (Dale & Jesson, 1993). OS TRÊS MECANISMOS DE POLARIZAÇÃO Quero agora voltar aos três M, três mecanismos que intensificam nitidamente a polarização potencial inerente à seleção diferencial, à voz traiçoeira e aos princípios do usuário pagante. O primeiro desses mecanismos é o efeito multiplicador. Já referi brevemente a tendência muito clara e aberta para as pessoas da classe média obterem benefícios desproporcionados do Estado de Previdência. Isto pode ser atribuído à sua maior compreensão do processo político, capacidade e oportunidade para se organizarem em grupos de pressão. No campo da educação, a experiência e relacionamentos mais extensos com o sistema, por parte daqueles que nele foram bem sucedidos, são de particular importância. Os efeitos diretos de tais diferenças de capital cultural, social e econômico nas oportunidades de êxito educacional dos alunos são tão significativos como bem conhecidos. Mas o que quero argumentar é que, no sistema educativo liberalizado, no qual as escolas são autônomas e estão em competição, o significado de tais diferenças de capital é ainda maior. Em resumo, quero sugerir que o sistema liberalizado permite, facilita até, que essas diferenças tenham um efeito multiplicador que habilita algumas escolas a obter, dos mesmos recursos, muitíssimo maior valor que outras. O melhor exemplo que posso dar vem da investigação de Liz Gordon acerca da composição do Conselho de Administração (CA) das escolas na Nova Zelândia. Os CAs. nas áreas de classe média podem realizar com facilidade mesmo as consideráveis funções administrativas básicas que lhes são impostas pelas reformas neozelandêsa. Aqueles CAs tipicamente incluirão (ou facilmente serão capazes de cooptar) contabilistas, advogados e outros profissionais para quem essas funções são banais. Isso deixa o Conselho livre para se dedicar a outras áreas de oportunidade. Mas não estão apenas disponíveis para o fazer; seu capital econô mico, PG.162 cultural e, especialmente, social — que em sua forma coletiva podemos referir como “o capital comunitário” da escola — habilita-os a explorar essas possibilidades muito mais completamente do que poderiam os CAs das escolas de classe trabalhadora, supondo-se que alguma vez conseguissem essa oportunidade. Para os CAs das escolas de classe trabalhadora, manter-se a par das exigências mínimas (muito vastas) que lhes são feitas é muito mais dispendioso do que para seus homólogos profissionais liberais de classe média. O resultado final é que, qualitativa e quantitativamente, nas escolas de classe média a disponibilidade, não somente de dólares, mas de mãos e vozes é muito maior que nas escolas de classe trabalhadora — o que significa que são capazes não apenas de obter mais

“massa” mas também “massa com mais consistência”. Para os pais profissionais liberais, pertencer ao CA — e mesmo às Associações de Pais — é uma oportunidade de exercer suas competências num novo campo e para o beneficio de seus próprios filhos. Nas escolas de classe trabalhadora, por outro lado, pertencer ao CA é mais passível de ser encarado como um fardo a ser suportado por causa dos filhos e das outras crianças da comunidade. A conseqüência, direta ou indiretamente (através do efeito multiplicador), é a polarização dos recursos disponíveis para diferentes escolas. O segundo mecanismo intensificador é o efeito “marginal”. Há três características da liberação da educaçáo que aumentam o efeito marginal da escolha dos pais na educação. O primeiro é que somente uma minoria de pais realmente deseja ou é capaz de exercer a escolha. No entanto, “tal como o eleitor flutuante”, aqueles que de fato tencionam escolher são suscetíveis de atrair muito mais atenção e serem muito mais notados em suas preferências do que aqueles cujas preferências estão estabelecidas ou que são incapazes de as efetivar. As escolas, numa situação de competição, são mais suscetíveis de tornar-se atrativas para os pais “flutuantes” (as estimativas do número de pais nesta categoria variam; Bowe & Ball com Gold, 1992, apontam para 5 a 10%; p. 29) que para os que estão comprometidos com elas ou lhes são leais, com o resultado de que as preferências dos pais “flutuantes” podem ter um impacto maior na escola que as dos pais “leais”. O segundo efeito marginal está associado com o fato de que os “investimentos” educacionais feitos nas margens, isto é, além do PG.163 financiamento básico, e não dependente dele, tendem a ter uma influência desmesurada no fornecimento da educação. Isto e evidente, por exemplo, no impacto do financiamento do Banco Mundial aos sistemas educacionais do Terceiro Mundo ou, mais perto de nós, no modo em que o programa TVEI (Technical and Vocational Education Initiative) foi capaz de ter maior impacto na orientação da educação secundária, através do investimento de somas relativamente pequenas “nas margens”, ou seja, como “extras suplementares”. Especialmente quando os recursos básicos são mínimos, e aproveitados ao máximo, tais suplementos marginais proporcionam as únicas fontes de novo financiamento e tornam-se os únicos focos de crescimento, determinando fortes diretrizes e direções para o desenvolvimento da instituição. O terceiro efeito marginal é análogo. Como é exposto por Rudolf Klein, “muito da atração do setor privado (podemos ler isto como escola orientada para o mercado?) depende de seu grau de marginalidade. Na medida em que o setor privado substitui o setor público, há um risco de que possa também reproduzir suas inflexibilidades, suas insensibilidades e seus custos administrati- vos — com a burocracia do regulamento tomando o lugar da burocracia de gestão” (citado em O’Higgins, 1989, grifado no original). Quer dizer, as escolas empresariais podem se beneficiar de sua iniciativa na medida em que, e desde que, sua empresa permaneça marginal. Para obter êxito, a iniciativa depende de sua própria condição marginal, ou seja, do fato de as atividades centrais da instituição serem realizadas através de outros meios. Acima de tudo, então, as compensações da seleção de alunos, voz traiçoeira e serviços acessórios da escola têm um impacto muito maior por causa de sua condição marginal, que evidentemente apenas aumenta a probabilidade de polarização do fornecimento.

O terceiro destes efeitos é o efeito de aceleração (este fenômeno foi detalhado numa excelente análise do caso australianc por Anderson, 1992). A promoção do mercado inevitavelmente altera o eqúilíbrio de prestígio entre as escolas públicas e privada em favor das últimas; quando o patrocinador e fornecedor de un produto faz publicamente a apologia de um rival, quem pode duvidar de que o rival é superior? Isto encoraja a decisão dos pais especialmente dos estudantes “mais desejáveis”, de abandonar sistema, enfraquecendo-o assim não apenas qualitativamente PG.164 como também quantitativamente. Como é exposto por Jonathan, “quando as condições de mercado são introduzidas por toda a parte no sistema estatal, o dilema da educação privada dos pais abastados, em áreas com poucos recursos públicos, torna-se generalizado a todos os pais” (op. cit p. 126, grifado no original). O efeito de aceleração pode também ser favorecido por elementos de “uma política de influência do consumidor”. Como Starr propõe, a qualidade reduzida do fornecimento público é uma característica auto-reforçadora. Já que os pobres são os beneficiários de muitos programas, a classe média opõe-se a gastos para produzir uma alta qualidade de serviço, visto que é obrigada a pagá-la por conta própria. E já que a qualidade permanece baixa, os pobres, bem como a classe média, desenvolvem um menosprezo pelo setor público e uma ansiedade por escapar dele. O movimento de privatização reflete e promove este desdém (e aí resjde parte de seu perigo político) (op. cit., p.43-44).

Pode-se objetar que introduzir esta questão como uma possibilidade no caso de sistemas educacionais que usufruem o nível de respeito de muitos sistemas “ocidentais” é um tanto alarmista; não tem havido nível de rebaixamento do sistema implícito na citação. Contudo, o resultado do processo de polarização pode não ser assim tão diferente; e, no caso da educação, seria a mais insidiosa e ultrajante evidência de que o movimento que observamos não é tanto no sentido de uma qualidade maior do produto, ou mesmo de um melhor serviço no fornecimento do mesmo produto. Em vez disso, como demonstramos acima, o principal estímulo para “influenciar a escolha do consumidor” no campo da educação escolar parece ser o desejo de afastar um tipo particular de clientela da escola; a aceleração assim encorajada é muito mais abertamente impelida por questões de classe e etnia. O fenômeno largamente observado de “fuga dos brancos” é um excelente exemplo deste efeito de aceleração conduzindo à polarização étnica. Isto pode colocar a escola pública numa espiral descendente de movimentos em queda livre, tendo como conseqüência uma oferta curricular reduzida, a diminuta atração sobre os pais que PG.165 permanecem, afastamentos crescentes, etc., numa aceleração contínua desta espiral, que termina muito rapidamente numa escola que inclui apenas aqueles sem motivação ou capacidade para a abandonar. Este efeito de aceleração adquire ainda mais peso quando os que optam por sair (ou nunca optam por entrar) do sistema educacional público são sustentáculos políticos. Seu exercício de escolha adiciona-se ao efeito de aceleração, confirmando a inferioridade comparativa da instituição ou do sistema de que se afastam e, dessa forma, retirando sua influência e prestígio, que poderiam ser meios fundamentais de travar a espiral descendente.

CONCLUSÃO Numa palavra, o que defendi é que as disparidades entre escolas, em termos de financiamento, recursos e oportunidade, são suscetíveis de ser bastante ampliadas sob o tipo de liberalização dos sistemas educacionais agora em consideração em muitos países. Como mostra o exemplo da Nova Zelândia, as conseqüências da promoção de um mercado em educação podem ser produzidas sem qualquer recurso à “privatização”. Sob tais sistemas liberalizados, a diferenciação inter e intra-escolas, aparentemente inevitável, parece passível de transformar-se em forte polarização. Isto baseia-se nas oportunidades, não apenas oferecidas mas encoraja das pela liberalização dos mecanismos de seleção diferencial, voz traiçoeira e o que os usuários pagam, mecanismos estes cujo potencial polarizador é excessivamente intensificado pelos efeitos multiplicador, marginal e de aceleração. E o resultado global, evidentemente, é suscetível de ser não uma maior diversidade de fornecimento, em resposta a diferentes necessidades e preferências, mas uma acrescida uniformidade de educação escolar, baseada em critérios de exclusão cada vez mais homogêneos em termos de classe, gênero e etnia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, D. “The interaction of Public and Private School Systems”. Australian Journal of Education, 36, 3, 1992, p. 213-236. BOURDIEU, P. & L. BOLTANSKI. “The Education System and the Economy: Tit1e and Jobs”. in: Lemert (Org.). French Sociology: Rupture and Renewal sina 1986. NewYork, Columbia University Press, 1977, p. 141-15 1. PG.166 BOURDIEU, E & BOLTANSKI, L. “Changes in Social Stucture and Changes in the Demand for Education”. In: Giner & Acher (orgs.). Contemporary Europe Social Structures and Cultural Patterns. Londres, Routledge, 1978, 197-227. BOWE, R. & 5. J. BALL com A. GOLD. Reforming Education and Changing Schools. London, Rout 1992. BROWN, B. W. “Why Governments Run Schools?”. Economics of Education Review, 11, 4. 1992, p. 287-300. BROWN, E “The ‘Third Wave’?: Education and the Ideology of Parentocracy”. BritishJournal o Sociology of Education, 11, 1990, p. 65-85. COLLINS, R. Theorettcal Sociology. San Diego, Harcourt, Brace, Jovanovich, 1988. DAHRENDORF, R. The Modern Social Conflict. Berkeley, Unive of Califonia Press, 1984. DALE, R. The State and Education Policy. Milton Keynes, Open U Press. 1989.

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6 Marília Fonseca _________________ O BANCO MUNDIAL E A EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O CASO BRASILEIRO Até a metade dos anos 60, o financiamento do Banco Mundial (BIRD) privilegiava os projetos de infra-estrutura fisica, tais como comunicação, transporte e energia, como medidas de base para o crescimento econômico. No final da década de 60, o Banco irá a somar as metas puramente quantitativas que caracterizavam os projetos econômicos alguns objetivos voltados para a igualdade e o bem-estar social. Nesta ótica, partia-se do princípio de que o desenvolvimento econômico por si só não garantia a participação das camadas mais pobres nos benefícios do desenvolvimento. Com base nesta conclusão, o Banco passa a financiar o setor social, como medida de alivio e de redução da pobreza no Terceiro Mundo. O setor educacional passa a ser considerado, ao lado da saúde e do desenvolvimento agrícola, entre os mais importantes no quadro dos financiamentos do Banco. Ainda na década de 60, o Banco define os princípios e as diretrizes de sua política de crédito e de assistência à educação do Terceiro Mundo. Estes princípios incorporam a promoção de igualdade de oportunidades, visando à participação de todos nos benefícios sociais e econômicos sem distinção social, étnica ou econômica. Para tanto, o Banco recomenda a extensão da oferta do ensino elementar a todas as crianças e adultos. A educação deveria ser integrada ao trabalho, com a finalidade de desenvolver as competências necessárias às necessidades do desenvolvimento. PG.169 Uma outra diretriz enfatizada nos documentos de política educacional do Banco dizia respeito à necessidade de criar padrões de eficiência nos sistemas de ensino e na gestão dos recursos financeiros, de forma a torná-los mais econômicos para os países. Neste sentido, propunha-se a utilização de métodos inovadores e pouco custosos com vistas a atender em maior escala a população à margem do sistema educacional. Em 1968, o presidente do Banco (Macnamara, 1968) exprime sua intenção de aumentar cerca de dez vezes o crédito para a educação na América Latina. No começo da década de 70, haviam sido aprovados 57 créditos aos programas educaionais de 42 países, totalizando 431 milhões de dólares, dos quais 21% em beneficio da América Latina. No período de 1987 a 1989, a América Latina contou com 14% dos créditos à educação (BIRD, 1990, p. 12). Embora os princípios aqui considerados constituam a base do discurso político do Banco, as diretrizes para os empréstimos têm variado segundo a evolução da política de desenvolvimento dessa agência e de seus desdobramentos para as políticas setoriais e para a concessão de créditos. Esta constatação pode ser observada no quadro geral dos financiamentos do Banco para a formação profissional de nível secundário.

A primeira referência a esta modalidade de ensino encontra-se em documento de política educacional elaborado pelo Banco em 1970,1 onde se assinala a importância do ensino profissional, referindo-se diretamente à formação de mão-de-obra qualificada, capaz de provocar efeitos a longo prazo sobre a economia, especialmente nos setores industriais e agrícolas mais modernos de forte utilização de capital e orientados para a exportação. O segundo documento do Banco, produzido em 1974, intro duz modificações referentes ao ensino profissional, enfatizando necessidade de privilegiar tanto os setores mais modernos d; economia quanto os mais tradicionais, este último comportand pequenas e médias empresas rurais e de periferias de grande centros urbanos. O ensino profissional é enfatizado como meio 1 As informações sobre o assunto encontram-se em quatro documentos de polít setorial produzidos pelo Banco em 1970, 1974, 1980 e 1990.

PG.170 indireto de prover a participação das massas ao desenvolvimento, através do aumento de sua produtividade. O documento de política educacional de 1974 reitera, ainda, a importância do desenvolvimento institucional, de forma a imprimir novos padrões de eficiência no desenvolvimento dos programas educacionais. O documento reforça igualmente a relevância da gestão e do planejamento educacional como base para as reformas dos sistemas de ensino. A repartição de empréstimos durante o período de 1963 a 1983 mostra um crescimento significativo do financiamento de programas de desenvolvimento da gestão: embora estes créditos fossem inexistentes em 1969, atingiram, em 1983, a taxa de 12% do total de recursos do Banco destinados à educação (BIRD, 1980, p. 88). O objetivo de desenvolvimento institucional é igualmente enfatizado no terceiro documento de política setorial do Banco na década de 80 (BIRD. 1980, p. 94), segundo o qual a eficácia educacional seria atingida através do desenvolvimento da gestão autônoma deste setor. No ano de 1990, o Banco passa a elaborar novas diretrizes políticas para as décadas futuras, com base nas conclusões da Conferência Internacional de Educação para Todos realizada na Tailândia no mesmo ano. Além da presença de 155 países, a 2 A Conferência de Nova Déli, realizada em 1993, dá continuidade ao debate sobre a proposta de educação para todos, desta vez congregando os nove países mais populosos do mundo: Brasil, China, India, Paquistão, Bangladesh, Egito, Nigéria ,Indonésia (BRASIL/MEC, 1994). A par da fixação de metas ambiciosas, como a universalização, com qualidade e eqüidade, de oportunidades para crianças, jovens e adultos, o exame do documento revela duas vertentes importantes: a primeira diz respeito à ênfase no nível primário de ensino; a segunda enfatiza a importância da escolaridade feminina, assim como sua participação crescente no mercado de trabalho. Em que pese a fundamentação de educação para todos no princípio da igualdade de oportunidades, cumpre explicitar que a motivação básica para a fixação desses dois objetivos explica-se, também, pelo imperativo de contenção demográfica, já explicitado em diversos documentos provenientes do Banco, a partir do começo dos anos 80. Nestes documentos, fica claro o papel da educação de nível primário para a “saúde familiar”, compreendida como a diminuição do número de filhos. A partir dessa constatação, o Banco passa a financiar projetos que privilegiam o nível primário de ensino, O Plano Decenal de Educação para Todos, produzido pelo Brasil em 1993 (Brasil!MEC, 1993), como apoio da UNESCO e da UNICEF, enfatiza a consonância entre seus objetivos e os princípios da Declaração de Educação para Todos, da Tailândia.

PG.171 conferência contou com a participação de outras agências internacionais, bilaterais e multilaterais, entre as quais e de se ressaltar o papel do Banco Mundial como um dos principais coordenadores do evento. Agumas diretrizes contidas na publicação do Banco (BIRD,1990) reiteram o objetivo da UNESCO de eliminar o analfabetismo até o final do século; assim também os programas da USAID para o desenvolvimento da educação de base e a preocupação do Banco com certas questões universais, como a proteção ao meio ambiente e o controle do crescimento demográfico. No que diz respeito ao ensino profissional, as diretrizes do Banco para as décadas futuras tratam de estreitar os vínculos entre este nível de ensino e as atividades econômicas, especialmente em relação às pequenas empresas do setor informal. O objetivo de desenvolvimento institucional ainda permanece como preocupação central, acrescentandose aí a colaboração entre o setor público e o privado como estratégia de base à meta de desenvolvimento de padrões de qualidade e de eficiência no treinamento profissional. Diferentemente dos primeiros documentos setoriais, a ênfase desloca-se do ensino técnico de nível secundário para a alfabetização e a educação geral. Os dados relativos ao financiamento do Banco para a educa ção mostram que, de 1963 a 1969, cerca de 44% dos créditos concedidos ao setor concentravam-se no ensino técnico. Na dé cada de 70, este percentual chega a alcançar o patamar de 55%. Durante a década de 80, a educação geral passa a absorver mais de 60% dos créditos do Banco, enquanto o ensino profissional conta com 31%. A educação primária, que até a metade dos anos 70 participava com apenas 1% dos créditos do Banco, passa 2 contar com 43% nos anos 80 (BIRD, 1980; BTRD, 1990). A ESTRUTURA POLÍTICO-FINANCEIRA DO BANCO MUNDIAL Como agência de fomento ao desenvolvimento internaciona vinculada ao FMJ, o BIRD atribui-se a finalidade precípua de participar do desenvolvimento econômico dos paísesmembro Enquanto ao FMI é confiado papel de coordenador das política de desenvolvimento e de promover a estabilidade da balança de PG. 172 Pagamentos dos países-membros, o BIRD deveria, em princípio, ser mais ativo que normativo, funcionando como um fundo capaz e catalizar financiamentos externos para o desenvolvimento de projetos prioritários junto a esses países (combinando seus próprios recursos com outros captados no mercado financeiro internacional). Ao intermediário no diálogo econômico entre os países doadores e beneficiários. Segundo as disposições estatutárias, todas a nações podem aderir ao BIRD, sendo também estabelecido que não compete ao Banco intervir nos negócios políticos dos Estados nem deixar-se influenciar por qualquer deles. No entanto, as exigências estabelecidas para a aceitação dos países-membros fundamentam-se em critérios políticos: a adesão prévia ao FMI, por exemplo, assim como a aceitação de seu código de conduta política.

No caso de empréstimos para ajustes estruturais, as medidas rota para a estabilidade ser definidas em estreita colaboração com o FMI e constitu conaição para a concessão de créditos do BIRD. Para tanto, os tomadores devem estabelecer objetivos consignados em declaração política de desenvolvimento. Atentando-se para as atribuições do Banco Mundial no curso de seus quarenta anos de existência, é perceptível a evolução de suas funções, no sentido de atuar cada vez mais como órgão político central, especialmente como coordenador do desenvolvimento sustentado interdependente. A interdependência pressu põe, em tese, a garantia de neutralidade nos critérios de adesão ao Banco, bem como a partipação igualitária no poder da organização, independentemente das diferenças econômicas e ideológicas dos Estadosmembros. No entanto, por força de seu próprio crescimento nos últimos anos, o BIRD conta com participação heterogênea, pela incorporação de numerosos países, cultural e economicamente diferenciados. Esta participação chega, atualmente, a mais de 160 países membros, entre eles o Brasil. Embora teoricamente a definição do modelo econômico e financeiro do Banco devesse resultar do consenso entre os diversos países-membros — o que fundamentaria a tese da interação dita “interdependente” —, a prática PG.173 mostra uma repartição de poder extremamente concentradora, onde os países mais ricos contribuem mais e, conseqüentemente, detêm maior poder de decisão. Este poder se refere à própria estrutura decisória no interior da organização, que define o poder de voto através da contribuição de recursos financeiros: aproximadamente 50% votos são controlados por cinco países, dos quais os Estados Unidos detêm cerca de 20% (além do poder de veto); a Inglaterra 8%; a Alemanha 5,5%; a França 5,5% e o Japão 7,5% (segundo dados referentes ao final dos anos 80). A principal instância de decisão é o conselho de governadores composto por representantes de diferentes países-me ralmente um ministro e um diretor do Banco Central. Pelo fato de que tais figuras públicas não podem consagrar muito de seu tempo à administração corrente do Banco, costumam delegar grande parte de seu poder à Assembléia Executiva. Esta Assembléia (ou Conselho) é composta de 21 representantes de paises, recaindo sobre ela grande pai poderde decisão quanto às diretrizes políticas do Banco. Acontece que os cinco principais países-membros contam com a prerrogativa de nomear seus administradores podendo, conseqüentemente, exercer o direito de voto individual. No que se refere aos outros dezesseis administradores, cada um deles é eleito por um grupo de países, segundo critério de proximidade geográfica, o que permite que um grupo de países tenha um só representante. Este fato pode gerar divergências políticas no seio do grupo, que terá seus diferentes interesses submetidos ao voto de um só país. A organização do poder no interior do órgão inclui também numeroso quadro de diretores regionais (por grupos de paises) e o quadro de dirigentes para assuntos políticos específicos. A estas instâncias administrativas são atribuídas as políticas e rotinas mais correntes do Banco, como as operações de crédito; a fixação de critérios e condições para a obtenção de recursos; a definição de

3 O poder de decisão dos governadores diz respeito aos seguintes aspectos: (a) à admissão de novos países-membros; (b) ao aumento ou redução do capital social; (c) à realização de acordos com outros organismos; (d) à suspensão das operações de crédito; (e) à repartição do orçamento anual do Banco; (f) à aprovação e interpretação dos estatutos elaborados pelos administradores (Bretandeau, 1986).

PG.174 modelos de gestão e de organização dos projetos de financiamento Na verdade, é este quadro dirigente que detém a totalidade das informações sobre a estrutura financeira do Banco bem como sobre sua interação com os diferentes países. CUSTOS DO FINANCIAMENTO No que diz respeito às condições de financiamento do BIRD cabe esclarecer que os créditos concedidos à Educação, como frações de créditos econômicos destinadas ao setor educacional, integram a dívida externa do País para com as instituições bilate rais, multilaterais e bancos privados. Embora a política de crédito do Banco se autodenomine “cooperação” ou “assistência técni ca” trata-se, na verdade, de emprestimos do tipo convencional, tendo em vista os pesados encargos que acarretam e também a rigidez das regras e as pré-condições financeiras e políticas ine rentes ao processo de financiamento comercial. Embora o BIRD adote diversas formas de empréstimos, o financiamento à educação brasileira, por exemplo, segue as mesmas regras fixadas para qualquer projeto comercial do tipo co-financiamento. Até 1980, os juros dos empréstimos eram cobrados a uma taxa fixa média de 8% a.a. A partir de 1980, o Banco introduz certas modificações na estrutura dos financiamentos. Entre outras, cita mos a criação de um fundo comum de moedas, com a finalidade de assegurar uma repartição dos custos do conjunto de moedas que integram o mercado internacional, entre os países tomadores 4 Embora, a partir da década de 80, o BIRD venha operando algumas modificações em sua estrutura administrativa, estas não chegam a afetar o quadro geral de seu poder decisório. 5 Com respeito à especificidade e aos custos do financiamento do BIRD, ver Lapa et alii (1990) e Lopes (1990). 6 Durante os anos 60, a USAID financiava projetos à taxa de 2.5% a.a. O Banco Mundial conta com outra instituição filiada, a Associção Internacional para o Desenvolvimento (IDA). Esta Associação foi fundada em 1960 para prestar assistência econômica aos países mais pobres, sob condições financeiras mais brandas, entre as quais a isenção de juros. De acordo com os critérios fixados para obter o apoio da IDA, o Brasil não se enquadra entre os clientes prioritários, em face dos altos indicadores de renda per capita que apresenta, segundo interpretação do BIRD. A comparação com os bancos privados mostra que, embora os juros cobrados pelo BIRD sejam menos altos que a média dos bancos privados, o preço do dinheiro cobrado pelo Banco será mais elevado em razão das taxas adicionais e comissôes referentes a seus serviços (Lapa et alii, 1990).

PG.175

de empréstimos. Como segunda medida, o Banco institui a taxa variável de juros, segundo o custo do dinheiro no mercado internacional, com vistas a neutralizar a diferença entre as taxas de)urospagaspelo Banco nesse mercado e aquelas cobradaspelo Banco aos países tom adores. A estas medidas, o Banco inclui aos serviços pagos pelos tomadores uma taxa de 0,5% relativa aos custos médios dos empréstimos tomados pelo Banco nesse mercado, e ue constituirão as reservas para empréstimo aos países receptores. Segundo Lopes (1990), as medidas estruturais introduzidas pelo Banco no sistema de financiamento poderão provocar algumas consequências tais como o aumento do custo dos encargos dos projetos em razão da variação do valor das diferentes moedas face ao dólar ou devido a variação da taxa interna de juros dos difererentes paises. Entre os encargos do financiamento, inclui-se tambem o pagamento de taxa de compromisso”, correspondente a cobrança de 0,75% a.a. sobre os recursos ainda não retirados pelo tomador7. Isto porque o credito do tipo co-financiamento não significa emprestimo direto a rigor, o pais deveria prover 50% dos recursos do projeto e o Banco os outros 50% Neste caso, o tomador tem o compromisso de gastar primeiro, sugundo cronograma anual pré-fixado, sendo gradativamente ressarcido pelo Banco mediante recursos depositados na conta do projeto, em Washington. Caso o executor do projeto (por exemplo, o Minis tério da Educação) não consiga gastar segundo o cronograma, pagará a taxa de compromisso sobre o total de recursos remanescentes na conta em Washington. Esta exigência traz uma conseqüência preocupante: qualquer atraso na execução financeira dos projetos resulta em aumento significativo deste encargo, para não falar do pagamento dos juros e dos ajustes cambiais. Em decorrência das rígidas condições financeiras, o bom desempenho de um projeto, em termos do ritmo de execução, representa fator indispensável para a contenção de despesas adi 7 Nos últimos anos, o Banco tem abrandado a cobrança da taxa de compromisso sob condições acordadas previamente com o tomador. No entanto, os cinco projetos desenvolvidos junto ao Ministério da Educação no Brasil, foram, até recentemente, financiados à taxa de 0,75% a.a.

PG.176 cionais. A morosidade na sua execução física e financeira significa a diminuição da captação de divisas externas (desembolso ou ressarcimento) bem como o aumento do custo do financiamento em termos da elevação dos encargos (juros e taxas). Vale lembrar que foram apontados apenas os custos diretos do financiamento do BIRD. A estes devem ser somados, ainda, os custos indiretos de um projeto internacional, que correspondem aos gastos adicionais de identificação e preparação dos projetos. Esta fase preparatória exige a elaboração, em nível estadual e municipal, de estudos e diagnósticos na área de atuação dos projetos, além da recepção a numerosas missões do Banco que podem ser centrais (no âmbito de um ministério) ou dirigidas aos diferentes Estados e localidades do país (BIRD, 1982).

Constitui também exigência para a realização dos acordos a organização de equipes especiais de execução dos projetos, o que implica o deslocamento de funcionários já existentes ou a contratação de funcionários adicionais, tanto no nível de administração central do projeto, como em nível local. Ainda em relação aos custos, cabe assinalar o pagamento de consultores locais e estrangeiros, cuja contratação deve realizar-se de acordo com diretrizes fixadas pelo Banco (BIRD, 1981). Embora seja fixada verba específica do próprio projeto para o atendimento dessas despesas, muitas vezes o Ministério, os Estados ou os municípios devem cobri-las com seus próprios recursos. MODALIDADES DE FINANCIAMENTO Os créditos do Banco Mundial são concedidos segundo diferentes tipos de financiamento. O primeiro, denominado crédito de investimento (Investment Loans) constitui o financiamento mais tradicional do Banco, que teve vigência até o final dos anos 70. Segundo esta modalidade, os juros eram cobrados a taxas fixas, e a participação do Banco limitava-se à definição das condições do financiamento, à supervisão da execução das ações pelas instituições locais e à avaliação dos benefícios econômicos e sociais dos projetos. Assim, o projeto de investimento caracteriza-se pela rigidez entre as regras préestabelecidas e a execução das ações, cabendo ao tomador assumir o compromisso de seguir as cláusulas dos contratos, sob supervisão direta do Banco. PG.177 A partir do início dos anos 80, o Banco adota o modelo denominado crédito de base política (Policy Based Loans), desti nado a promover políticas de ajustamento estrutural entre os países em desenvolvimento afetados pelo desequilíbrio econômico que caracterizou os anos 80. Estas políticas incluíam o controle do investimento do setor público, a realização de reformas administrativas, a estabilização fiscal e monetária, o reforço do setor privado, a redução do crédito interno e das barreiras do mercado. As medidas voltadas para a estabilização macroeconômica são definidas pelos países tomadores, em estreita colaboração com o FMI, e constituem condição prévia para a concessão de créditos de ajuste estrutural do BIRD. Para tanto, os tomadores devem estabelecer objetivos consignados em declaração política de des envolvimento. Contrariamente ao empréstimo convencional (ou crédito de investimento), o empréstimo de ajustamento pode estender-se a diversos setores econômicos e sociais. Assim, um crédito de reforma de finanças públicas pode estar associado a um outro referente ao setor de saúde, por exemplo. Os créditos voltados para o ajuste dos diferentes setores sócio-econômicos, denominados “créditos de ajustamento setorial” (Sector Loans) são submetidos às mesmas condições que os créditos de ajustamento estrutural. A diferença encontra-se sobre o prazo de execução dos projetos: os últimos são destinados aos projetos macroeconômicos e o financiamento deve ser executado a curto prazo. Os primeiros dirigem-se para os diferentes setores, tais que energia, agricultura, educação, etc. Por se tratarem de créditos de ajustamento, são submetidos igualmente às mesmas condições políticas do Banco; os recursos, porém, são empresta dos a longo prazo.

Uma outra modalidade de empréstimo combina os empréstimos convencionais (ou créditos de investimento) com os créditos de ajustamento, sendo destinados aos países necessitados de recursos para a infra-estrutura e o ajustamento econômico. Em alguns casos, os projetos de ajustamento estrutural e setorial constituem pré-condição para a obtenção de recursos convencionais. Neste caso, as duas modalidades devem funcionar de maneira integrada ou “híbrida”: é a proposta do Banco para assegurar a reestruturação política, econômica e institucional, mediante a PG.178 racionalização das despesas públicas, assim como a eliminação do desperdício público e dos projetos não-econômicos e não-eficazes. Essa nova modalidade de empréstimo tem sido apresentada pelo Banco como mais vantajosa para o tomador do ponto de vista técnico e financeiro, em relação aos financiamentos convencio nais. Do ponto de vista técnico, o projeto setorial permitiria maior participação do usuário na definição das ações e também maior flexibilidade na execução. Do ponto de vista financeiro, haveria a possibilidade de desembolso mais rápido e de maior captação dos recursos externos, em razão do abrandamento das exigências referentes à contrapartida nacional dos acordos. Ainda segundo o Banco (Lending for Adjustment: an Update, 1988), os empréstimos de ajustamento setorial são os mais apro priados para assegurar um gasto mais racional do setor social, qual seja o caso da educação. Os programas e ações são definidos de forma a promover a chamada recuperação de custos (cost recovery) com vistas a promover uma distribuição mais justa dos serviços educacionais, mediante adoção de medidas capazes de diminuir as despesas do setor público, entre elas, o reforço ao setor privado. Outra característica dos créditos setoriais é a possibilidade de estender ações específicas de um determinadado elemento educa cional, no limite de um projeto, ao conjunto do setor educativo. Em conseqüência, esta modalidade de empréstimos representa uma possibilidade de participação do Banco nas definições de objetivos políticos e institucionais para o setor como um todo. Esta participação de cunho político exige que o Banco se desembarasse das atividades tradicionalmente de sua responsabilidade (tais como identificação, preparação, supervisão e avaliação dos projetos), em proveito de uma participação mais efetiva nas diretrizes políticas setoriais a longo prazo. De acordo com estudo divulgado pelo Banco, o projeto setorial é mais conveniente para “influenciar e modificar os métodos do governo” (Johan son, 1985, p. 10). PG.179 O CASO BRASILEIRO A partir de 1971, o Banco Mundial vem prestando cooperação técnica à Educação Brasileira, por meio de projetos de co-finan ciamento desenvolvidos no âmbito do Ministério da Educação (além de outros dois junto ao Ministério do Trabalho). Dois

financiamentos destinaram-se ao ensino técnico de 2° Grau e os outros três ao ensino de 1° Grau e ao desenvolvimento de sistema de planejamento no nível estadual de ensino. Os três primeiros empréstimos tomados pelo Ministério da Educação sob financiamento do Banco inseriam-se na linha de créditos convencionais (ou de investimento) que se caracterizavam pela pré-definição de metas e pelo acompanhamento direto do Banco, em todas as fases da execução dos projetos e em todos os níveis da administração educacional. O quarto e o quinto projetos foram executados na década de 80, segundo uma concepção que conjugava características de financiamento convencional com alguns elementos da nova estrutura do BIRD, como se verá mais adiante na descrição dos projetos. A cooperação do Banco Mundial junto ao Ministério da Educação surge como alternativa à assistência de natureza bilateral, desenvolvida a partir dos anos 50, no âmbito de acordos econômicos entre os governos brasileiro e norte-americano. Em 1961, os fundos destinados à assistência técnica foram administrados pela USAID, a conhecida Agência para o Desenvolvimento Internacional, criada no quadro da Aliança para o Progresso, especialmente para prover assistência ao processo de desenvolvimento do Terceiro Mundo. A decisão de substituir a forma de cooperação bilateral pela modalidade multilateral, como a cooperação do BIRD e do BID, fundamentava-se, originalmente, na expectativa do próprio governo norte-americano de que as ações desenvolvidas no âmbito dessa segunda modalidade fossem mais propensas à neutralidade técnica, segundo exigências dos usuários da América Latina. PG.180 OS PROJETOS PARA O ENSINO TÉCNICO O Banco financiou, no Brasil, dois projetos de educação técnica ao Ministério da Educação, em 1971 e 1984. A decisão sobre o primeiro projeto resultou de uma missão integrada pelo BIRD/FAO/UNESCO/FORD, com vistas a à identificação de prioridades para investimento do Banco no país. O projeto foi executado no período de 1971 a 1978, no àmbito de sete escolas agrícolas federais de 2° grau (além de ter sido construída uma nova escola). Para o ensino industrial, o projeto previa a reforma de duas escolas técnicas de 2° grau e a construção de 6 centros de ensino. O financiamento incluia-se na modalidade de crédito de investimento. Quanto a seus objetivos, o projeto definia: (a) expansão da matrícula no ensino técnico de 2° grau (em 20 a 35%), através da construção e ampliação de instalações escolares; (b) aquisição de equipamentos e formação de professores para a melhoria do ensino prático; (c) implantação, nas escolas de 2° grau, de um modelo de ensino pós-secundário destinado à função de engenheiros, por meio da adição de um quarto ano complementar ao curso técnico. Este último objetivo resultou da recomendação do grupo internacional. O projeto deveria beneficiar cerca de cinco mil estudantes, ou 16% do total de alunos que freqüentavam cursos técnicos industriais e agrícolas.

Os resultados do primeiro projeto de financiamento do BIRD não corresponderam ao ideal de eficiência e de eficácia então preconizados pelo BIRD, tanto em relação ao cumprimento das metas físicas, quanto em relação ao tempo gasto para a execução das ações. Muitas dificuldades impediram o alcance das expectativas geradas pelo projeto. Primeiramente, em virtude da incompatibilidade entre as exigências internacionais e as condições econômi cas do país, determinadas principalmente pelo efeito da inflação e das oscilações do câmbio. Estas condições foram responsáveis pela falta de recursos para prover a contrapartida nacional do As informações sobre a concepção dos projetos para o ensino técnico encontram-se nos documentos: Brasil/MEC/PRODEM/BIRD, 1978; Brasil/MEC/BIRD, 1971; BIRD/Brasil, 1980; BRASIL/MEC/SENETE, 1990. 8

PG.181 financiamento, o que provocou a diminuição do desenbolso externo, o atraso na implantação do projeto e, consequentemente, o aumento dos custos. Outras dificuldades surgiram das condiçoes próprias do setor educacional, entre as quais destacamos: a)A descontinuidade na gestão do projeto, que contou com cinco dirigentes durante sua execução. b)A resistência do quadro técnico do Ministério em face da criação de uma equipe especial de gerência do projeto. c)As dificuldades de funcionamento da unidade especial de gerência devido às condições legais do país, especialmente quanto à restrição para contratação de novos funcionários. d)A falta de articulação entre as ações do projeto e as ativida des correntes do Ministério da Educação, o que permitiu a duplicação das ações do projeto em relação a outras iniciativas desenvolvidas através de outras modalidades e níveis de ensino. e)O artificialismo do planejamento que provocou, por exem plo, o abandono dos cursos pós-secundários, para os quais não havia demanda social. Por outro lado, modificações ocorridas nos objetivos do ensino profissionalizante, em decorrência da alteração do texto da Lei Educacional de 1971, exigiram modificações nos planos de construção e de reforma das escolas do projeto. Por esta razão as atividades de planejamento foram retardadas até 1975, prazo previsto para a conclusão do projeto. Os resultados referentes aos objetivos físicos (construção, reformas e aquisição de equipamentos) não foram dos mais animadores: enquanto no caso do ensino técnico agrícola as metas relativas à reforma de instalações era cumprida, o alcance da meta de construção para os cursos pós-secundários não passou de 50%. Tendo em vista que um dos objetivos do projeto era a expan são do ensino técnico, foi prevista uma oferta de 2.160 novas vagas, que seriam decorrentes da construção e da reforma de instalações escolares. No caso do ensino agrícola, o número de novas vagas chegou a 1.605, ou seja, a meta alcançou apenas 74% da previsão. No caso do ensino industrial secundário, embora os relatórios mencionem o cumprimento da meta de expansão de vagas, não são apresentados dados concretos sobre assunto. No

PG.182 ensino industrial pós-secundário, a criação de vagas não ocorreu segundo a previsão: das cerca de 3.320 vagas previstas, apenas 1.859 foram criadas, isto é, houve uma expansão de 56% em relação ao previsto. O objetivo da formação de técnicos também foi superestimado: de 700 técnicos previstos para o ensino agrícola, 500 (ou 1%) chegaram a ser diplomados. Nos cursos póssecundários, apenas 37% da previsão foi cumprida, isto é, de 1.000 técnicos previstos, 370 se diplomaram9 atividade de ac de ec sofreu também sérias dificuldades, oriundas da inadequação das especificações do projeto e também das limitações locais para a importação: daí decorreram atrasos na compra de equipamentos importados (que constituía uma das cláusulas do acordo). Por ocasião da conclusão do projeto, em 1978, apenas uma parte dos equipamentos havia sido instalada e poucos haviam sido utilizados, seja devido à inadequação dos itens em face da necessidade do ensino, seja devido à ausência de condições técnicas das escolas para manipulação dos equipamentos, especialmente em relação aos itens importados. O fraco resultado do projeto referente a estes componentes tem também, como causa, a centralização do planejamento deste projeto, cuja unidade principal de gerência localizava-se no Rio de Janeiro, onde se contratavam também as empresas executoras, certamente desconhecedoras das condições locais. A distância entre o planejamento e a realidade das escolas, situadas em diferentes regiões do país, resultaram em inadequação das instalações físicas (em relação às condições climáticas, por exemplo). Como resultado, uma parte significativa de recursos próprios do órgão executor do ensino agrícola (COAGRI) foi posteriormente utilizado para correção de distorções técnicas do projeto. Tendo em vista que um dos objetivos privilegiava a qualidade do ensino técnico, o projeto promoveu também a formação, no exteriot de pessoal das escolas envolvidas. Assim, 39 técnicos e 9 No caso do ensino industrial secundário não há dados disponíveis nos relatórios examinados.

PG.183 professores foram treinados na Universidade de Oklahoma e 131 em instituições locais. A avaliação sobre este componente mereceu comentários lacônicos nos relatórios do projeto. Do que se pode perceber, este componente sofreu atrasos devido, principalmente, à pouca capacidade técnica da Universidade americana. Segundo o testemunho de um dos diretores da unidade central do projeto, ele mesmo constatou, por ocasião de uma de suas visitas à Universidade, que a instituição não desenvolvia, ela mesma, cursos na área de competência definida para assistência técnica. O segundo financiamento para o ensino técnico destinava-se a 37 escolas industriais e 49 escolas agrícolas pertencentes à rede federal e estadual de ensino. As ações deveriam beneficiar cerca de 90.000 alunos. Segundo suas linhas de ação, este acordo entre o Brasil e o BIRD deu seqüência às ações desenvolvidas no primeiro projeto voltando-se,

prioritariamente, para a melhoria da qualidade do ensino técnico. Em virtude das modificações introduzidas na estrutura dos financiamento do BIRD o acordo contava, na fase de planejamento, com maior flexibilidade no tocante à participação do quadro local, assim como com condições mais brandas para a contrapartida, o que significa que esta nova modalidade de empréstimo deveria permitir o ressarcimento mais rápido do BIRD e, portanto, a captação mais substancial de recursos. Além dessa pretensa vantagem, o segundo projeto (ou EDUTEC) contava com maior flexibilidade para sua execução, em função da maior participação das equipes locais nas decisões. Assim, houve um abrandamento na composição da contrapar tida nacional, a qual poderia incluir recursos destinados à despesa de capital das escolas técnicas, o que não seria permitido no quadro dos projetos de investimento. Tecnicamente, o projeto gozava também de maior flexibilidade na destinação de recursos para os diferentes componentes (ou itens a serem financiados) do programa: foi permitida a utilização de maiores fundos para a formação de recursos humanos, diferentemente dos projetos 10 A nova estrutura definida pelo BIRD nos anos 80 inclui a modalidade setorial. Embora o setor educacional não tenha realizado acordos sob esta modalidade, algumas características foram incorporadas, como a flexibilidade na definição de metas físicas e financeiras, o estabelecimento de condicionalidades, entre outros.

PG.184 anteriores, nos quais os componentes construção e equipamentos carreavam a maior parte dos recursos. Desta forma, o projeto EDUTEC gozava de situação técnica e financeira favorável para o bom desempenho de seus objetivos. Sem considerar que dispunha-se da experiência de três financia mentos anteriores do BIRD¹¹. Não obstante, o projeto sofreu as mesmas pressões administrativas que o seu antecedente, provenientes da situação política e econômica que caracterizou os anos 80. Tendo sido prevista para período de 1980 a 1984, a execução do projeto estendeu-se até 1990, o que significa um atraso de quatro anos para sua conclusão. Acresce ainda o fato de que o crédito sofreu um cancelamento de cerca de 7 milhões de dólares, devido ao atraso na execução e também a outros fatores relativos ao fraco desempenho do projeto. No tocante à situação econômica, alguns fatores foram deter minantes, como a intensificação inflacionária do país, a desvalo rização da moeda nacional face ao dólar e, sobretudo, a implantação de recente reforma administrativa do setor público, que gerou maior complexidade do sistema de transferência de recursos no âmbito do Ministério. Estes fatores foram responsáveis pela fraca captação da parte externa do financiamento, bem como pelo atraso na execução do projeto, em relação à construção e aquisição de equipamentos e de material. A nova Lei Nacional de Importações (Decreto 95.523, de 2/12/8 7), através de seu anexo, restringia a destinação de recursos para a contrapartida nacional dos financiamentos, assim como para os bens de importação. Esta medida governamental provocou atrasos, especialmente para compra de itens importados, o que constituía uma das exigências do acordo. Outras razões de ordem política podem ser mencionados como co-responsáveis pelas dificuldades do projeto. A exemplo

11 Note-se que o segundo projeto para o ensino técnico é, na verdade, o quarto na ordem cronológica dos financiamentos do BIRD ao Ministério da Educação: o primeiro acordo destinou-se ao financiamento do ensino técnico; o segundo ao desenvolvimento de sistemas estaduais de planejamento em reforço à implantação da Lei n° 5692 de 1971; o terceiro ao desenvolvimento do ensino primário (quatro primeiras séries do 1° grau) no Nordeste; o quarto corresponde ao EDUTEC; o quinto voltou-se também para o ensino primário, nas regiões Norte e Centro-Oeste.

PG.185 do primeiro acordo, que sofreu as conseqüências das alterações da Lei Educacional de 1971, o segundo projeto sofreu a interferência de nova discussão legislativa sobre os rumos da educação nacional, no curso da segunda metade da década de 80. Ainda que esta discussão não tenha produzido medidas concretas até o momento, é certo que as oscilações no nível da política educacional tenham agido negativamente sobre as decisões afetas à execução dos acordos externos. A estas questóes somou-se também a descontinuidade admi nistrativa que caracterizou o Ministério durante os anos 80: nove ministros sucederam-se no decorrer da década. A conseqüência natural da alternância do poder decisório é o fato de que uma nova administração pode privilegiar ou relegar uma determinada ação, em detrimento de outra. Esta situação pode ser exemplificada pela criação, em 1986, de um programa nacional de impacto no âmbito do ensino técnico (PROTEC). Este programa definia objetivos semelhantes aos do projeto internacional, à diferença que dispunha de recursos pelo menos cinco vezes mais vultosos. Por esse motivo, o EDUTEC sofreu, durante sua execução, com a falta de interesse político. Esta dificuldade incidiu direta mente sobre a destinação de recursos de contrapartida e a conseqüente captação de divisas externas, o que explica em parte o fraco desempenho financeiro do acordo. Ainda em razão da oscilação administrativa, alguns orgãos do Ministério que participavam da execução do projeto foram extin tos. Entre eles, o CEDATE, encarregado do planejamento da rede escolar, e a GOAGRI, organismo criado na metade da década de 70 para reestruturar e dirigir o ensino agrícola no país. No fim de algum tempo, o segundo projeto seria submetido às mesmas exigências dos financiamentos tradicionais do BIRD, especialmente quanto às regras para a composição de recursos para a contrapartida nacional do acordo, fato que incidirá certa mente sobre a captação de desembolso do BIRD. Ainda que a execução do projeto tenha sido estendida para três anos além da previsão, este não logrou assegurar sua eficiência. Do total de recursos previstos (20 milhões de dólares) uma parte significativa, correspondente a 35% do crédito, será cancelada em 1991. Em relação à previsão, o custo total foi aumentado em cerca de 35%. PG.186 Dos 45,4 milhões de dólares estimados, o projeto custou 61.4 milhões ao país. Devido ainda às dificuldades e atrasos na execução do projeto e, conseqüentemente, na captação de recursos do BIRD, a participação do Banco limitou-se a 22% — quando a previsão era de 46% —, tendo o Brasil arcado com 78% dos custos do financiamento. A observação do

desempenho do segundo projeto para o ensino técnico mostra que as ações desenvolvidas não corresponderam às metas fixadas pelo planejamento De acordo com a estimativa, o objetivo de construção previa a realização de reformas e ampliações de 37 estabelecimentos de ensino industrial e de 49 do ensino agrícola, em benefício de, respectivamente, 70.736 e de 17.148 alunos de escolas federais e estaduais. Os resultados obtidos quanto aos componentes físicos mostram que o projeto não alcançou o desempenho esperado. Considerando-se as taxas médias para o ensino industrial e agrícola, o componente construção atingiu 76% de suas metas. Os itens aquisição de materiais e equipamentos chegaram a 60% das metas previstas. Uma outra questão evidenciada nos relatórios é a comparação entre o desempenho referente aos estabelecimentos estaduais e federais. Observando-se as taxas médias em relação à execução dos componentes físicos, vê-se que as escolas de administração federal alcançaram desempenho mais satisfatório do que aquelas sob tutela estadual. A comparação entre os componentes mostra o item aquisição de materiais como sendo o desempenho mais fraco, que não chegou a atingir o cumprimento de 50% das metas. Esta evidência constitui um indicador de dificuldades futuras para o desenvolvi mento do projeto, pelo fato de que os materiais são indispensáveis para a utilização de equipamentos destinados aos laboratórios e 12 O segundo projeto para o ensino técnico não conta ainda com a avaliação final, devido ao prazo de cinco anos estipulado pelo Banco para a realização dessa avaliação. Além do mais, o projeto não definiu ação de acompanhamento externo durante o processo de execução, como no caso de outros projetos para o ensino primário. Os dados que aqui apresentamos reportam-se aos relatórios elaborados, na fase final de execução, pela direção central do projeto, no Ministério (Brasil/MEC/SENETE, 1990), além de relatórios de execução financeira da Fazenda Nacional (MEFP/DTN/COATJD, 1990). Outras observações resultaram de acompanhamento pessoal junto à equipe central durante a fase de conclusão do projeto e também de entrevistas com dirigentes e outros participantes das diversas fases do projeto.

PG.187 ao trabalho de campo, especialmente no caso do ensino agrícola. Este fato torna-se ainda mais relevante se atentarmos para as diretrizes centrais do segundo projeto, cuja ênfase recaía mais sobre a qualidade do ensino técnico do que sobre o alcance de metas quantitativas. A este respeito, cabe observar, na Tabela 1, que a maior parte dos recursos destinava-se para os itens mais quantificáveis, o que mostra a persistência das metas mais convencionais do BIRD. Do total de recursos efetivamente empregados no projeto, até 1990, que totalizam 41,7 milhões de dólares, 47% foram destinados à construção e 38% à aquisição de equipamentos e materiais. Os recursos destinados aos objetivos mais qualitativos, como a for mação de pessoal e realização de estudos, representaram 9,0% das despesas. Tabela 1 Utilização de recursos por componentes do projeto, segundo a previsão e a utilizacão efetiva (1984-1990)

Componentes de Financiamento

Recursos Previstos

Recursos Utilizados

Diferenças Previsão

(mil USS)

(mil USS)

(%)

Construção

8.600

19.782

+130,0

Material e equip.

27.180

16.122

-40,7

Formação de Pessoal

1.800

3.385

+187,0

Estudos

390

262

-33,0

Administração do Projeto

1.470

2.204

+50,6

Reserva Técnica

6.540

____

____

Total

45.360

41.745

____

Fonte/MEC/Senete,1990; Mec/DNT/COAUD/,1990. O total dos recursos utilizados se refere a recursos já aplicados em 1990. Total gasto no projetp: USS 61,4 milhões.

PG.188 O quadro de distribuição de recursos mostra ainda que o item ampliação e reformas de instalações físicas, para o qual estava previsto um gasto de 8,6 milhões do orçamento, passa a receber 130% a mais da estimativa. Este fato pode ser explicado pela transferência provável da reserva técnica do projeto para este item, como também pela transferência de recursos não utilizados na aquisição de equipamentos, em razão das medidas restritivas à importação, como já foi mencionado anteriormente. A análise dos objetivos educacionais fixados para os projetos de ensino técnico indica a intenção de realizar intervenções de impacto no seio dos problemas estruturais desses cursos, por meio da expansão e da melhoria do ensino. O desenvolvimento institucional constituía também uma das prioridades a serem financiadas pelo crédito externo. Não obstante, as estratégias definidas no interior dos projetos mostram-se mais representativas de ações convencionais de um projeto de financiamento do BIRD do que propriamente de intervenção estrutural no sistema. Neste sentido, é de se assinalar a desproporção entre as propostas de impacto e a definição das ações, as quais foram limitadas a alguns fatores escolares e ao critério de eficiência gerencial. Considerando-se, por exemplo, apenas um dos componentes, como formação de pessoal técnico e docente, os resultados mostram que, do total de cursos previstos, apenas 43% foram executados; valendo lembrar que este item mereceu prioridade na concepção inicial do projeto. Nesta mesma linha de reflexão, torna-se evidente que a experiência do vivenciada no primeiro projeto do BIRD não contribuiu para o desempenho mais eficiente do segundo

projeto. Tomando-se por base a realização dos componentes físicos dos dois acordos, no que se refere à totalidade dos componentes tinanciáveis, vê-se que o segundo projeto não logrou alcançar mais impacto que o seu antecedente. O DESEMPENHO FINANCEIRO DOS PROJETOS Os financiamentos do BIRD à educação brasileira representaram um negócio caro pai o setor. Em primeiro lugar cabe mencionar que, para receber o crédito BIRD, o país tem que desembolsar um PG.189 montante muito maior, sem contar Com os custos referentes ao pagamento de juros e taxas de compromisso. Tendo-se emvista que os projetos educacionais têm exigido quase o dobro do tempo previsto para sua execução, esta última taxa pode representar um aumento considerável dos custos dos projetos. Acresce ainda a despesa com ajustes de câmbio, decorrentes de práticas internacionais relativas à cesta de moedas, que podem acarretar aumento considerável da dívida. Assinale-se, ainda, que estas despesas representam apenas os custos diretos do financiamento. E preciso também ter em conta os custos indiretos, decorrentes do próprio processo de negociação dos projetos, cujas fases de identificação, preparação e definição podem exigir um período de três a oito anos para serem cumpridas. As despesas inerentes a estas atividades correm por conta do Ministério, incluindo-se aí a realização de diagnósticos, utilização de consultorias, viagens de reconhecimento aos Estados, recepção às missões do Banco, entre outros. Considere-se também que a despesa dos projetos tem sido freqüentemente complementada com recursos dos Estados e dos municípios, além de absorver recursos de outros projetos especiais financiados pelo MEC. Uma outra questão financeira a ser mencionada diz respeito às possíveis vantagens atribuídas aos projetos desenvolvidos nos anos 80, devido a sua capacidade de captação de maior quantidade de recursos externos. A prática desses projetos (que incluíam elementos de projetos de investimento combinados com caracte rísticas mais brandas da nova estrutura do BIRD) mostrou que essa modalidade de financiamento não correspondeu às vantagens esperadas, em termos de maior facilidade para o acesso aos desembolsos do Banco. Esta conclusão pode ser evidenciada no demonstrativo a seguir (Tabela 2), onde se observa, na ordem cronológica dos dois projetos para a educação técnica, a participação financeira do Brasil e do Banco em relação ao total de recursos destinados aos acordos (crédito externo e contrapartida). PG.190 Tabela 2 Participação do Brasil e do BIRD de 1971 a 1990

Projeto

Período de execução

Total de Recursos Gastos (mil USS)

Crédito BIRD (%)

Participação nacional (%)

1° Projeto

71-78

24.300

34,5

65,5

2° Projeto

84-90

61.425

22,0

68,0

Fonte: MEC/BIRD/MEFP: Relatórios Financeiros dos Projetos O total de recursos refere-se aos preços originais, não tendo sido levada em conta a variação do preço do dólar no período observado. Em virtude do atraso na execução, o segundo projeto foi cancelado em cerca de 7 milhões de dólares.

De acordo com a tabela, a participação financeira do Banco tem sido bem menor que a do Brasil. Levando-se em conta as duas modalidades de financiamento, verifica-se que o primeiro projeto, do tipo convencional do BIRD, garantiu a participação de 34,5% do financiamento do Banco. A experiência dos anos 80, contra riamente à expectativa gerada pelas facilidades na definição do projeto, mostrou-se menos vantajosa: a participação do Banco limitou-se à taxa de 22,0% do total de recursos empregados nos projetos. CONCLUSÃO A realidade desses vinte anos vem mostrando que a experiência dos projetos internacionais não tem beneficiaddconvenientemen te o setor educacional . Vários estudos específicos foram realiza dos no âmbito do Banco Mundial, do Minjstério e de seus órgãos filiados, como o PREMEN e o PRODEM,¹³ os quais constituem 13 Unidades gerenciais criadas no MEC no início dos anos 70 para o desenvolvimento de projetos especiais em reforço ao ensino de 1° e 2° graus. Na primeira fase da cooperação técnica do BIRD, os projetos foram executados por esses órgãos. A partir dos anos 80, foram criadas unidades de gerência para sua administração, além da reestruturação de órgãos como o CEDATE, de apoio à rede física. Com o fim dos projetos, esses órgãos foram extintos.

PG.191 um conjunto de considerável aporte técnico para a compreensão t das dificuldades que impediram o bom desempenho dos projetos e também de indicações para superação das mesmas. No entanto, estes estudos não têm sido levados em conta para a correção de problemas ou para a decisão sobre futuros acordos. Por essa razão, o processo de negociação de novos projetos parte sempre de um recomeço, onde cada projeto constitui um fato isolado, sem conexão com as experiências anteriores.

O exame do desempenho dos projetos em relação ao alcance das metas estabelecidas, ao tempo despendido para a execução e às despesas decorrentes tem-se mostrado muito aquém do limite desejado. As próprias verificações realizadas pelo Banco admitem essa realidade. Assinale-se, ainda, que esse desempenho não vem melhorando ao longo dos vinte anos de experiencia, o que mostra que a cooperação técnica internacional não tem contribuído para o desenvolvimento da eficiência gerencial da educação, conforme as expectativas do setor. O exame dos efeitos dos projetos para além do limite de sua eficiência interna, isto é, a consideração do alcance de sua eficácia para a correção de problemas estruturais da educação brasileira, indica que estes apresentaram efeitos pouco significativos no que se refere à prática do desempenho escolar, especialmente com respeito às intervenções no nível primário. Com relação à intervenção dos projetos no âmbito do ensino técnico de 2° grau, vale lembrar que algumas inovações relevantes foram introduzidas, no começo dos anos 70, na estrutura das escolas industriais e agrotécnicas: essas inovações referem-se, respectivamente, à criação de cursos de curta duração de enge nheiros de operação (hoje integrando os Centros Tecnológicos) e à adoção do modelo escola-fazenda. Estes modelos não contaram com o devido trabalho de apre ciação ao longo dos vinte anos de experiência: primeiro como verificação da efetividade de seus resultados em relação aos objetivos sociais e econômicos que lhes foram atribuídos; segundo porque, sendo modelos experimentais, caberia considerar sua extensão para outros centros de ensino do sistema estadual e municipal. PG.192 A verificação de outro objetivo da cooperação técnica, refe rente ao aproveitamento da experiência dos projetos para a melhoria da educação como um todo, como modelos de raciona lidade técnica e de modernas gerências, mostra que o quadro brasileiro, tanto em nível central do Ministério quanto em nível da administração estadual, guardava grandes expectativas quanto ao benefício institucional que poderia advir da experiência do Banco, especialmente no que toca à prática de planejamento e de elaboração de projetos. No entanto, embora seja este um dos objetivos mais reiterados desde a formulação do primeiro projeto, o Ministério não conse guiu aproveitar-se das experiências para a melhoria de seu pro cesso de planejamento e de gestão. Fica, pois, a constatação de que apenas reduzidos segmentos técnicos e dirigentes que parti ciparam diretamente dos projetos beneficiaram-se do aperfeiçoa mento. A análise dos resultados financeiros suscita a indagação sobre a real necessidade do financiamento externo à educação brasileira, tendo-se em conta as despesas decorrentes dos empréstimos e a fraca captação de recursos para o setor. Este tema vem sendo questionado por determinados segmentos técnicos e dirigentes do MEC, segundo os quais algumas ações decorrentes dos acordos externos, especialmente no nível do ensino básico, poderiam perfeitamente ser desenvolvidas com a parte nacional dos recursos. Uma outra questão merece ser colocada quanto à adequação do financiamento do Banco ao setor educacional. Em decorrência da vinculação aos acordos comerciais, as ações de cooperação técnica à educação são caracterizadas pelo formalismo próprio aos

acordos econômicos e a seus corolários de inflexibilidade financeira e de condicionalidades políticas e econômicas. Por outro lado, os projetos do BIRD definem a priori uma racionali dade própria (modelos de gestão e de organização) que irá provocar incompatibilidades de ordem administrativa e financeira em seu confronto com a organização local. Entre outros problemas, incluem-se a questão dos prazos fixados para a execução das ações, a organização de equipes especiais de gerência no âmbito central e estadual, o sistema de PG.193 repasse de recursos do MEC para as instâncais executoras. Além desses fatores, cabe assinalar também a dificuldade do controle de ações disseminadas por inúmeros municípios, com diferenciada capacidade organizacional para execução das ações. Pelo que mostra a experiência durante duas décadas, o pro cesso de cooperação técnica do BIRD, desenvolvido na forma de co-financiamento, mostra-se financeiramente dispendioso e pouco relevante do ponto de vista dos seus resultados educacionais, segundo os dados levantados no âmbito deste estudo. Estes resultados permitem concluir que o ensino básico não parece ser o ambiente ideal para o desenvolvimento de projetos internacionais do tipo convencional do BIRD, em razão de argu mentações já explicitadas anteriormente. E possível que esta modalidade de financiamento seja mais adequada com as regras de desembolso do BIRD, qual possa ser o caso de certos segmentos da área tecnológica ou do ensino superior, por exemplo. Seria oportuno, também, que o setor educacional considerasse outras formas de cooperação internacional, cujas condições fossem financeiramente mais brandas e que não trouxessem a complexidade operacional própria dos projetos do BIRD. Finalmente, julgamos que os resultados aqui apresentados possam ter o mérito de suscitar a atenção para a necessidade de elaboração de estudos e avaliações capazes de fundamentar tecni camente a decisão sobre a continuidade do financiamento inter nacional. Este requisito será a garantia de que os benefícios dos projetos respondam menos aos interesses do BIRD e de determinados segmentos políticos locais e que voltem-se para o atendi mento das necessidades nacionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIRD. Cycle des projets. Washington D.C., 1982. BIRD. Directives pour l’emploi des consultantes par les emprunteurs de la Banque mondiale et par la Banque Mondiale en tant qu ‘agence d’éxecution. Washington D.C, The World Bank, 1981. BIRD. The dividends of Learning. Washington, The World Bank, 1990. BIRD. Education, politique sectorielle, 3ème édition. Washington, Banque Mondi ale, 1980. BIRD. Education, politique sectorielle. Washington, Banque Mondiale, 1974.

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de

acompanhamento

de

projetos

de

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7 Stephen J.Ball _______________ MERCADOS EDUCACIONAIS, ESCOLHA E CLASSE SOCIAL: O MERCADO COMO UMA ESTRAT DE CLASSE Este ensaio tem o objetivo de esclarecer algumas das dificuldades em torno da noção da alternativa de mercado na educação e de estabelecer uma agenda sociológica para a pesquisa e a teorização sobre o mercado educacional. 1. Mais especificamente, o ensaio coloca algumas questões sobre os efeitos das forças de mercado sobre as escolas e também sobre os efeitos que essas forças têm para — e sobre — os pais. O ensaio trata tanto da ideologia quanto das práticas do mercado educacional. O mercado, como uma alternativa de política pública à “educação como monopólio público”, caracteriza claramente o tom da política educacional dos últimos anos, em todo o mundo ocidental. Corremos o risco de vê-lo ser transformado em inevi tável. Existe atualmente, na política educacional, uma poderosa, bem-estabelecida e complexa ideologia do mercado e, relacionada a isso, uma cultura da escolha, as quais estão baseadas em perigo sas idealizações sobre o funcionamento dos mercados, sobre os efeitos da escolha por parte dos pais e sobre os incentivos dirigidos pelo “lucro”, na área da educação. 1 Sou agradecido a meus/minhas colegas Sharon Gewirtz, Richard Bowe, Alan Cribb, Barry Troyna, Manfred Weiss, assim como a dois avaliadores anônimos. Por suas contribuições a certos argumentos deste ensaio. Também contribuíram para os argumentos do ensaio as contínuas discussões com Richard Bowe e Sharon Gewirtz, relacionadas a dois projetos de pesquisa, um financiado pelo Strategic Research Fund do King’s College e o outro financiando pelo Ecoriomic and Social Research Council, Dotação n° 232858.

PG.196 Um aspecto do desenvolvimento e da permanência dessa ideologia tem sido a estratégia, adotada pelos intelectuais orgânicos do mercado, de evitar qualquer tipo de crítica reflexiva. Essa estratégia envolve: (1) a recusa em aplicar as críticas e os pressu postos feitos a respeito da “educação como monopólio público” aos sistemas educacionais de mercado ou dirigidos por um pro cesso de escolha; (2) o uso de idealizações dos mercados de bens, ao exaltar as possibilidades e as vantagens das forças de mercado na educação; (3) a recusa em desenvolver uma análise fundamentada das condições particulares do estabelecimento de um mercado na esfera dos serviços educacionais; (4) a recusa em explorar de forma plena as desigualdades potenciais e reais que advêm de um mercado educacional, mesmo quando essas são apontadas em seu próprio trabalho teórico; e (5) a recusa em aplicar certos pressupostos sobre o auto-interesse racional, feitos em relação aos “profissionais do monopólio público”, às idealizações que eles constroem a respeito dos “empresários educacionais”. Em outras palavras, suas caracterizações dos

profissionais públicos pintam um quadro sombrio a respeito do suposto comportamento “auto- interessado” desse grupo. Ao mesmo tempo, concedem pouca atenção ao possível compromisso dos profissionais públicos com a “prestação de um serviço”, enquanto suas caracterizações do “empresário educacional” tomam o comportamento auto-interessado como uma virtude necessária. O que eu quero fazer, pois, é considerar seriamente algumas dessas críticas da “educação como monopólio público” e aplicá-las aos sistemas de mercado ou dirigidos pela escolha e, na medida em que eu for capaz, começar a construir um modelo do mercado educacional. Para isso, utilizarei algumas evidências advindas de pesquisas e destacarei alguns elementos específicos da prática estadunidense e da política educacional britânica atuais. Termina rei com uma conclusão inegável: a implementação de reformas educacionais baseadas no mercado constitui essencialmente uma estratégia de classe que tem como um de seus principais efeitos a reprodução de vantagens e desvantagens ligadas à classe social (e à etnia). Não estou argumentando que essas conseqüências sejam desejadas pelos defensores do mercado, mas elas tampouco deveriam ser vistas como inteiramente inesperadas, dados os valores e os processos mercantis. A fim de compreender a forma como o PG.197 sistema de “ganhadores” e “perdedores”; e que os “perdedores são obrigados a aceitar e a ajudar a financiar essas políticas e estruturas, mesmo que não concordem com elas” (p. 28). (8) Um argumento relacionado com o anterior, é o de que num sistema de controle democrático, “os pais e os estudantes não estão suficientemente organizados para ter bastante força. Na luta para controlar a autoridade pública, eles tendem a ser dominados por sindicatos docentes, organizações profissionais e outros interesses estabelecidos...” (Chubb & Moe, 1990, p. 31). Esta crítica e suas implicações fornecem a base para certas medidas do Ato de Reforma Educacional do governo britânico, de 1988, e são leva das ainda mais adiante nas propostas esboçadas no documento governamental de 1992, Choice and Diversity (Departamento de Educação, 1992). O ARGUMENTO EM FAVOR DO MERCADO E DA ESCOLHA Em grande medida, o argumento em favor do mercado é simples mente o inverso do argumento anterior. Chubb & Moe (1990), por exemplo, listam três argumentos em favor do mercado educacional, utilizando como modelo o setor das escolas particulares nos Estados Unidos: (1) que os proprietários das escolas particulares têm um forte incentivo para satisfazer os pais e estudantes (toma-se como um dado inquestionável, aqui, que as mesmas coisas satisfarão a ambos), tornando, assim, as escolas sensíveis às suas demandas; (2) que a possibilidade de transferência de escola levará estudantes e recursos das escolas impopulares e com pouca capacidade de resposta às demandas dos pais para as escolas populares e com maior capacidade de resposta; e (3) isso fornecerá um mecanismo de seleção natural através do qual as escolas impopulares serão forçadas a fechar ou a mudar. Sob certos aspectos, Chubb & Moe são mais diretos e francos sobre os efeitos negativos da metáfora darwiniana que muitos outros defensores do mercado. Existe uma tendência (uma outra idealização), por parte dos políticos em particular, a falar sobre os mercados apenas

em termos de efeitos e resultados positivos: eles imaginam uma utopia de mercado, na qual todas as escolas se tornarão melhores (independentemente das diferenças em termos de recursos) e a Pg.199 mágica da competição assegura que todo consumidor seja feliz - uma combinação de Adam Smith com Walt Disney. As evidências são impressionantes e abundantes. Quase sem exceção, em todo lugar onde a estratégia da escolha for adotada — Minnesota, East Harlem, San Francisco, Los Angeles e em outra centena de lugares — ela funcionou Escolas ruins se tornam melhores. As boas se tornam ainda melhores e sistemas escolares inteiros recuperaram a confiaça pública ao implementar planos baseados na escolha. Famílias descontentes foram trazidas de volta das escolas particulares para a educação pública. Qualquer reforma escolar que possa proclamar um tal êxito, merece nossa atenção nossa ênfase e nossos esforços (Presidente George Bus citado em Paulu, 1989, pp. 25-26).

A National Governors Association partilha do mesmo entusiasmo ingênuo e idealista: Se implementarmos uma estratégia baseada na escolha, i verdadeira escolha entre escolas públicas, liberaremos valores da competição no mercado. As escolas que compete por estudantes, professores e dinheiro certamente farão, e virtude de seu ambiente, aquelas mudanças que permitir que elas tenham êxito (National Governors Association - Time for Results, 1986, citado em Paulu, 1989, p. 14).

Alguns políticos, entretanto, são menos emocionais. Keith Josep Ministro da Educação britânico, no período 1981-1986, e guru neoliberal de Margaret Thatcher, assim explicou seu compronisso com a estratégia da escolha: Penso que as agências nacionais tendem a produzir lobb: da mesma forma que as indústrias estatais. Uma das princip virtudes da privatização é a de introduzir a idéia da falência a possibilidade da falência. E por isso que sou a favor estratégia da escolha e dos bônus educacionais (voucher). Simplesmente porque, com isso, se transfere, de uma vez só o controle dos produtores para os consumidores... Naturalmente, não afirmo que todos os consumidores sejam sábios eles não são, mas alguns serão capazes de exercer o direito PG.200 escolha que hoje não é possível (Entrevista com Keith Joseph, citada em Bali, 1990a, p. 63). Também parece claro que o Governo Conservador no Reino Unido vê o mercado na educação como uma forma de reduzir o grande nível de capacidade ociosa no sistema escolar, ao permitir que o processo baseado na escolha feche algumas escolas. Os ministros diriam que ainda existe um grande excesso de acomodações escolares, em todo o país... e as autoridades não compreenderam ainda plenamente a possibilidade existente de desativar certos lugares e os ministros diriam que se os pontos de vista dos pais, tal como expresso através de sua escolha da escola, ajudar as autoridades a tomarem difíceis decisões sobre os fechamentos de escolas, então, mesmo que isso seja muito doloroso, será, na realidade, benéfico (Entrevista com funcionário do Ministério da Educação, citado em Ball, 1990a, p. 66).

No Reino Unido, a visão neoliberal, hayekiana do mercado, à qual Margaret Thatcher se converteu na metade dos anos 70, funda mentou tanto a revolução das pequenas empresas, das pessoas envolvidas em trabalho por contra própria, ocorrida na economia britânica da metade dos anos 80, quanto as reformas baseadas na noção de mercado que foram implementadas no sistema educaci onal e no serviço nacional de saúde. Trata-se, outra vez, de uma visão utópica de um mercado perfeito, constituído de numerosos pequenos fornecedores e da competição de todos contra todos — o paraíso do consumo. A realidade da revolução das pequenas empresas não é, entretanto, tão paradisíaca. No último trimestre de 1991, houve 5.500 falências comerciais no Reino Unido, isto é, 1 em cada 40 empresas, um aumento de 40% em relação ao mesmo período em 1990 (British Chambers of Commerce, 7 de fevereiro de 1992). O mercado é cruel! É importante também analisar, juntamente com essas justifi cativas econômicas para a reforma, os elementos de sua concomi tante visão política. A visão econômica de Margaret Thatcher está estreitamente relacionada à sua concepção fortemente individua lista da democracia. Trata-se de uma visão muito similar àquela que Barber (1984) chamaria de “democracia débil”, “uma visão PG.201 insensível àquela interdependência humana que subjaz a toda vida política” (p. 25); ou àquilo que Gutman (1987) chama de “um estado de famílias”, que coloca a “autoridade educacional e todas as outras autoridades sociais exclusivamente nas mãos dos pai permitindo, assim, que os pais escolham uma forma de vida que seja consistente com sua herança familiar” (p. 28). Ambos c aspectos são capturados em sua bastante citada observação de que “não existe nenhuma coisa chamada sociedade, apenas indivíduo e famílias”. Morrell (1989, p. 17) sugere que essa observação uma expressão da visão hayekiana, expressa de forma epigram tica”. E ela observa também que “Hayek está particularmeni preocupado em argumentar contra o envolvimento do governo na vida do cidadão”; e continua, dizendo que “Hayek e Friedma foram na realidade, os pais da Lei Educacional de Kenneth Bak (1988)” (p. 26). Um segundo elemento — estreitamente relacinado ao primeiro — é a eliminação ou redução na influência das instituições democráticas intermediárias, particularmente os governos locais e, dentro dos governos locais, as Autoridades Educacionais Locais (Local Education Authorities, LEAs). Aquelas agências que são vistas como distorcendo ou inibindo as relações do mercado estão sendo eliminadas. O que está sendo construído é uma democracia do consumo, em vez de uma democracia da cidadania (Ranson, 1990, p. 15). AUTO-INTERESSE E ESCOLHA De forma geral, na literatura sobre mercados sociais focalizada na questão das políticas públicas e, em particular, sobre o mercado educacional, a ênfase é colocada sobre o lado da demanda, sobre a escolha. Pouco é dito sobre o comportamento dos produtores no mercado que vá além de noções bastante abstratas sobre incentivo e espírito de empreendimento. O que fica pouco claro são os mecanismos de sobrevivência institucional no mercado — de

forma mais crucial, a competição. Embora se pressuponha que as estruturas, os processos e a dinâmica da empresa e dos mercados de bens farão com que sua mágica funcione sobre as instituições educacionais e esse seja um argumento sobre o qual se fala prontamente, o mesmo não ocorre com os valores da empresa da competição. Outra vez, supõe-se, de forma idealista, que valores educacionais permanecerão intocados pelas demandas da PG.202 competição e da sobrevivência — a evidência existente sugere que isso, na verdade, não ocorre (veja Bali, 1990b e Bali, 1992a). Não é nem claro nem lógico que as mudanças produzidas pelas reformas baseadas no mercado serão conduzidas de acordo com objetivos educacionais. Ao invés disso, elas serão conduzidas tendo em vista objetivos financeiros e estarão baseadas no auto-interesse dos empregados institucionais, que querem assegurar o futuro de seus empregos ou obter maiores recompensas (Boyd, 1982, p. 114). Essa realidade básica não é diretamente discutida, seja nas teorias da escolha pública, seja nas teorias do mercado. Em vez disso, ambas se concentram nas iniqüidades das organizações públicas, nas quais “se cria uma espécie de reciprocidade com os empregados e grupos importantes de interesse, a qual, juntamente com o auto-interesse do executivo, tende a reforçar a maximização dos orçamentos e não dos lucros (isto é, a satisfação do cliente ou do consumidor)” (Boyd, 1982, p. 115). Supõe-se o altruísmo está subordinado ao autointeresse na escola do monopólio público, mas que o auto-interesse está subordinado ao altruísmo na escola do mercado. Os valores e a ética dos dois sistemas indicam, de forma lógica, justamente o contrário. Existe toda a possibilidade de uma nova forma de conexão débil: isto é, a falta de conexão entre a gerência financeira e a maximização da renda, de um lado, e a produção da tecnologia da educação, de outro. E se, como parece evidente (Bowe & Bali, com Gold, 1992), os diretores se tornarem preocupados primariamente com a gerência financeira e com relações públicas no interior do mercado da educação, então a liderança educacional, que os pesquisadores consideram estar tão fortemente associada com uma escolarização eficaz, será mínima ou nula. Os teóricos da escolha pública e os teóricos do mercado podem muito bem argumentar que o que eles estão sugerindo é uma mudança na natureza do auto-interesse produzido pela 2 “Conexão débil” é a tradução de “loose coupling”, uma expressão utilizada na literatura em relação à tese de que não existe uma conexão direta entre as demandas externas e os resultados fornecidos pela educação. Em outras palavras, em contraste com aquilo que ocorre na relação entre uma indústria e o seu ambiente externo, os resultados educacionais obedecem mais a uma lógica interna do que a determinações externas. Daí o argumento de que a educação está ligada ao seu ambiente externo através de um “loose coupling”, ou seja, de uma conexão débil (Nota do Revisor da Tradução).

PG.203 mudança no ambiente de incentivo. Mas isso parece ter pouca sustentação nas pesquisas relacionadas às “teorias da firma”. Levacic (1992, p. 8) desenvolve este argumento de forma muito clara:

Uma firma, seja lá qual for sua forma organizacional, não é administrada de acordo com os interesses de seus clientes. Isso só é garantido através da regulação fornecida por uma pro dução competitiva e por mercados de capitais, com apoio em salvaguardas legais. Se esses elementos não funcionam ade quadamente para levar os interesses dos clientes em conside ração, então a firma pode obter lucros monopolistas para benefício de seus proprietários ou, então, ser administrad pelos gerentes de acordo com os seus interesses e com os interesses dos empregados, características que se refletirão em custos mais altos.

Parece válido presumir que o individualismo auto dc consumidores, dirigido à aximização de suas vantagens, se aplica, de igual forma, aos produtores. Podemos esperar, assim que eles buscarão atrair estudantes mais capazes, a fim de tornar a vida mais fácil para eles próprios e assegurar bons resultados desempenhos (veja Moore & Davenport, 1990); que eles rejeitarão estudantes com necessidades de aprendizagem que implique maiores custos, a fim de maximizar o efeito dos recursos sobre resultados; e que eles concentrarão recursos, internamente, naqueles estudantes com maior capacidade e/ou nos pais com mais voz ou com mais influência. Assim, o auto-intesresse dos empresários educacionais está vinculado ao auto-interesse daqueles pais que desejam e são capazes de buscar uma vantagem relativa mercado educacional. Moore & Davenport (1990), analisando quatro escolas americanas, descobriram, em relação aos sistemas baseados na “escolha”, que: “dada a liberdade exercida no recrutamento e na seleção, havia uma enorme tendência a se estabelecer procedimentos e padrões, em cada passo do processo de admissão que eliminavam estudantes “problemáticos” e permitiam admitir os “melhores” estudantes, sendo definidos como “melhor aqueles estudantes com bons registros acadêmicos, boa freqünência, bom comportamento, um bom domínio do inglês e nenhum problema especial de aprendizagem” (p. 201). As respostas PG.204 defensores do mercado a essas evidências — tipicamente, de que são necessárias diferentes estruturas de incentivos ou uma maior regulação — parecem levar, inevitavelmente, a uma posição na qual o mercado sempre funciona melhor, exceto quando não o faz. Basicamente, o papel dos incentivos na educação e a psicologia social do ensino não são coisas completamente compreendidas pelos defensores do mercado. Há uma dificuldade adicional no pensamento centrado na perspectiva da oferta (supply-side) dos teóricos do mercado em educação, que consiste em equacionar autonomia dos produtores (Chubb & Moe, 1990, p. 37) com capacidade de resposta às reivindicações dos clientes. A autonomia está vinculada a argu mentos sobre especialização e eficiência. A capacidade de resposta às reivindicações dos clientes está relacionada com noções sobre a soberania do consumidor. Toda essa conceptualização continua pouco teorizada e pouco fundamentada em pesquisas. Já observei o paradoxo de uma situação, como a do Reino Unido, que apresenta escolas em excesso, de um lado, e escolas com alunos excedentes. A medida que o mercado realiza seu trabalho — teórico — de seleção natural, com as escolas menos populares fechando e reduzindo o excesso, a pressão da competição por estudantes também se reduz, dado o número fixo de estudantes disponíveis em qualquer ponto no tempo. Sem a pressão

dos lugares em excesso, a duvidosa psicologia social da competição também pára de funcionar. Há a probabilidade de que cresçam os problemas de alunos excedentes, à medida que novas “escolhas” são introduzidas no sistema assim reduzido e que se torna mais fácil para as organizações bem-sucedidas defender sua posição através da seleção. De fato, a seleção é — e se tornará cada vez mais — um “argumento de venda”, isto é, a qualidade daquilo que compramos depende da qualidade daqueles que nos acompanham nessa compra. Em outras palavras, quanto mais seletiva uma escola, mais ela se tornará desejável. Algumas escolas no Reino Unido estão também usando a opção da exclusão mais prontamente, a fim de se livrarem de estudantes “difíceis” e demonstrar aos clientes potenciais que disciplina e segurança são levadas bastante a sério (Times Education Supplement, 3 de janeiro de 1992; 10 de fevereiro de 1992). PG.205 Os estudantes excluidos são privados da “escolha” e dificilmente serão recebidos por outras escolas, uma vez que sua “reputação” se torne conhecida. (Em Londres, os estudantes de minorias étnicas estão desproporcionalmente sujeitos a essas exclusões das escolas; [Bryant, 1991)]. Aqui, diferentemente da outra maioria dos outros mercados, é importante saber quem é o cliente — a qualidade e a reputação estão relacionadas em boa parte própria clientela e não apenas ao serviço fornecido. O que está sendo produzido, como consequência, e um sistema estratificado composto de escolas que podem se permitir rejeitar certos clientes e outras escolas que devem recrutar todos os que possam conseguir. A situação dos professores e administradores das primeiras não parece diferir significativamente daquela tão veementemente criticada por Hirschmann (1970) e outros autores a respeito do monopólio público da escola: “poupa-os dos custos psíquicos que sofreriam em lidar com esses clientes e lhes permite desfrutar do melhor de todos os lucros do monopólio.., uma vida tranqüila (Boyd, 1982, p. 120). O mecanismo do mercado leva o empresário público a atrair o consumidor eficaz e o cliente que represente a possibilidade um acréscimo menos custoso de valor³, afastandose de uma preocupação com o serviço e indo na direção de um compromisso com a sobrevivência. As teorias específicas desenvolvidas a partir da abordagem escolha pública deveriam, assim, ser avaliadas de acordo com a forma como elas predizem ou explicam o comportamento e não de acordo com uma consideração de quanto elas correspondem a noções humanísticas da complexidade dos seres humanos ou do comportamento social (Boyd, 1982, p.113-114). 3 Como se explica em nota mais adiante a argumentaçao do autor salienta o fato de que os resultados educacionais de uma escola são função não apenas de sua qualidade, mas também da capacidade inicial de seus alunos ao serem admitidos. Assim, nessa argumentação, as escolas produzem um “acréscimo de valor”, é, elas trabalham em cima de um “valor educacional” inicial que, evidentemente, varia de acordo com a classe social, entre outros fatores. Neste parágrafo o autor sublinha o fato de que o empresário educacional procurará atrair aquele estudantes que por causa de um valor inicial já alto facilitarão o trabalho de produção de um valor adicional, ou seja, a produção de um valor adicional com um custo menor (Nota do Revisor da Tradução).

PG.206

UM MERCADO POLÍTICO É claramente possível analisar os modelos de educação baseados no mercado considerandoos como uma coisa única, mas o lobby da escolha e do mercado constitui, certamente, uma confederação bastante descoordenada (Cookson, 1992) e não uma voz única e coerente. O que estou tentando fazer neste ensaio é discutir aquelas coisas que parecem constituir os elementos fundamentais e comuns da conceptualização e da seita do mercado. Mas, da mesma forma que a diversidade teórica, as relações entre a teoria e a retórica da política pública, de um lado, e a prática, de outro, também se expressam de forma diferente em diferentes contextos. Certamente, a geografia ideológica da escola de mercado nos Estados Unidos é diferente da existente no Reino Unido. O caminho que o Reino Unido adotou é muito mais radical em sua aplicação incondicional de políticas públicas ideologicamente concebidas. Mas quer em termos da “ciência” econômica neoliberal quer em termos do choeísmo (a visão de política pública de & Chubb & Moe), o sistema educacional britânico está, de fato, organizado como um mercado muito estranho. Isso serve para nos fazer lembrar que os mercados não são fenômenos neutros nem tão naturais; eles são social e politicamente construídos. No Reino Unido, os pais podem, mais ou menos, escolher a escola que eles querem (desde que não morem em áreas rurais e tenham, portanto, acesso a apenas uma escola, ou se não puderem arcar com os custos de transação envolvidos na escolha), se houver vagas disponíveis (veja adiante minha análise sobre a cultura da escolha), embora, como observado anteriormente, exista uma capacidade ociosa considerável no sistema. O financiamento das escolas corresponde, pois, à quantidade de estudantes — 85% do orçamento escolar local será, em breve, distribuído apenas com base na quantidade de alunos. Assim, as escolas populares prosperam e podem, normalmente, se permitir os melhores professores e especialistas em áreas disciplinares com escassez de pessoal. (Recordemos, entretanto, que os orçamentos educacionais globais são limitados e estão diminuindo em muitas áreas. Além disso, o financiamento disponível está sendo redistribuído de acordo com uma fórmula baseada num cálculo per capita: mais dinheiro para alguns estudantes significa menos dinheiro para outros). As esco las impopulares perderão receita e terão dificuldades em rivalizar PG.207 com as capacidades docentes e a riqueza curricular de suas rivais mais ricas. Assim, sob esse aspecto, existe um mercado real. Os pais podem expressar uma escolha em relação à escola que querer— para seu filho. (Mesmo que não consigam aquela escolha na competição com outros pais. No discurso público e no discurso acadêmico sobre o mercado educacional a importante distinção entre expressar uma escolha e escolher é freqüente e convenientemente esquecida. Os defensores do mercado jogam de forma descuidada e rápida com o verbo de fácil aceitação, “escolher”. Mas existe também um Currículo Nacional, com força legal, que toda escola deve ensinar. Os pais, no setor estatal, não podem escolher entre currículos diferentes. O Governo também inventou novos tipos de escolas os City Technology Colleges (CTCs modelados de acordo com as chamadas Escolas Magnet e patrocinados, em parte, pela indústria, e as Escolas Mantidas com

Dotações (escolas que resolveram sair do controle da autoridade educacional local e que recebem mais fundos diretamente do governo — não porque sejam populares, mas porque estão fora do controle local). Em nenhum desses casos, a natureza ou a forma da escolarização é oferecida como uma resposta específica alguma reivindicação por parte dos pais. Essas escolas são produto da intervenção governamental. O mercado é, assim, fortemente determinado e singularmente construído pelo Governo. Além disso, os indicadores de desempenho da escolarização são fixados pelo Governo, através de um sistema de Testagem Nacional e das exigências da Carta dos Pais (Parents Charter. 1991).É isso uma escolha “real”? É isso o mercado? Tem certamente o efeito de um mercado, ao criar a competição entre as escolas, mas as possibilidades de invenção e empreendimento ou as expressões dos interesses das minorias ou as preocupações dos pais ficam fortemente limitados pelo controle político do mercado. Ao compreender a construção e o funcionamento do mercadc político, precisamos prestar atenção ao controle exercido pele estado sobre os indicadores de desempenho — o sistema de informação que, supostamente, fornece a base da escolha. A importância disso fica ressaltada pelos recentes debates, no Reinc Unido, sobre os relatórios, para consumo público, a respeito dc desempenho dos professores e das escolas. O Governo do Reine PG.208 Unido continua comprometido com uma abordagem centrada em notas brutas, em vez de notas que levem em conta o valor acrescido, apesar das críticas da própria agência de controle do Governo, a National Audit Commission. Uma política baseada na nota bruta serve para reforçar a seletividade dos estudantes de acordo com a capacidade, em escolas muito procuradas, e subor dina a melhoria dos padrões educacionais à reprodução da van tagem relativa em relação a outras trocas de mercado — isto é, o mercado de trabalho. Aqui, as “melhores” escolas não são aquelas que conseguem o máximo em termos de aprendizagem discente, mas aquelas que são capazes de filtrar e selecionar sua clientela mais convenientemente. Daí a importância vital da questão sobre quem controla os indicadores, para qual objetivo os indicadores são usados e a quais interesses eles servem. No Reino Unido, podemos perguntar: se aumentar os padrões é um dos objetivos principais da reforma, por que, então, estão sendo usadas notas brutas para comparar as escolas? Questões sobre a eficácia e a adequação dos indicadores levam a outras questões sobre se os indicadores que estão sendo exigidos das escolas por parte do Governo são os elementos que os consumidores mais querem saber ao fazer suas escolhas. No Reino Unido, todas as evidências colhidas nas pesquisas sobre escolha por parte dos pais, indicam uma falta de correspondência entre os indicadores impostos pelo Governo e os pressupostos dos teóricos do mercado, de um lado, e as preferências reais dos pais, de outro. Adler et alii (1989, p. 134) concluem, a partir de sua pesquisa, que: “... a maioria dos pais que está exercendo sua escolha em favor dos filhos parece adotar uma perspectiva humanista e não tecnológica”. Ora, existe, neste caso, algum risco de estarmos sendo iludidos por manobras astuciosas. Alguns teóricos do mercado argumentam que a intervenção do estado significa que não temos um mercado “real” porque não se permite que as 4 A abordagem de avaliação baseada no “valor acrescido” leva em conta diferenças na capacidade inicial dos alunos, ou seja, para todos os efeítos, a capacidade inicial dos alunos é, matematicamente, igualada. Assim, notas brutas (finais) desiguais podem representar igual desempenho, nessa abordagem, se forem descontadas diferenças na capacidade inicial. Com isso, escolas com clientelas social, cultural e economicamente favorecidas não podem creditar seu possível melhor desempenho tão-somente à sua suposta melhor qualidade,

uma vez que, possivelmente, a “qualidade” inicial de seus alunos tem um importante papel nesse melhor desempenho final (Nota do Revisor da Tradução).

PG.209 forças do mercado tenham seu pleno efeito. Outros, quando questionados sobre os possíveis excessos e oportunismos do mercado, apontam para o papel regulador do estado em salvaguardar os interesses do consumidor. Esse parece ser um caso de “cara — eles ganham; coroa — nós perdemos”! A IDEOLOGIA DO MERCADO Deixem-me, agora, sem entrar em muitos detalhes, expressar algumas preocupações sobre algumas das críticas e alguns dos argumentos que fundamentam a defesa do mercado, mencionados acima. Algumas dessas preocupações estão focalizadas nos argu mentos apresentados, outras se focalizam nas concepções de escolarização pública monopolista e escolarização de mercado que são desenvolvidas nesses argumentos. Tentarei apresentar alguns dados relativos a esses argumentos. Como observado anteriormente, há um problema que atravessa grande parte desses escritos de defesa da noção de escolha: ao mesmo tempo que o modelo de mercado é idealizado, o sistema de monopólio é caricaturado. Por um lado, Chubb & Moe (1990) argumentam que o controle democrático das escolas leva a um sistema de - “ganhadores” e “perdedores”; por outro, há um reconhecimento de que os mercados são imperfeitos, de que “a distribuição desigual da renda na sociedade pode inclinar certos mercados em favor dos ricos e contra os pobres” (p. 31) e que “na medida em que essas e outras imperfeições são sérias, é menos provável que os mercados gerem a diversidade, a qualidade e os níveis de serviço que os consumidores desejam” (p. 32). Esses parecem ser pontos importantes. Parecem dizer respeito a “ganhadores” e “perdedores” no mercado — algo que Chubb & Moe apresentam como um defeito fundamental quando questionam a política democrática. Fica pouco claro por que esses efeitos são menos discutidos do que o princípio da escolha. Se, como certos autores argumentam, o sistema escolar de monopólio público tem prejudicado as crianças pobres em particular, não deveríamos conceder particular consideração às formas pelas quais a escola do mercado também as prejudica? Este é um argumento que tento discutir com algum detalhe mais adiante (veja também Ball, 1990c; Ball & Bowe, 1991). PG. 210 Por que se deveria pressupor que todas as necessidades serão satisfeitas no mercado, ou mesmo que mais necessidades serão satisfeitas? Essa é, em última análise, uma questão empírica. Os teóricos da escolha pública regularmente reconhecem a inevitabilidade das desigualdades no mercado (Tiebout, 1956), mas parece haver pouco interesse em buscar as implicações dessas desigualdades para aqueles que as vivem. Claramente, como os teóricos da escolha pública reconhecem, a escolha envolve custos. Para aquelas pessoas para as quais os custos são proibitivos, não existe nenhum mercado real na educação. O mercado só existe para alguns, mas os teóricos da escolha pública e os políticos do mercado parecem ter pouco interesse sociológico pelos outros — os desprotegidos. A exclusão de alguns das possibilidades da escolha é considerada como sendo tão-somente um probleminha técnico na utopia do mercado. E, entretanto, é evidente que a desigualdade assim gerada está relacionada com um conjunto de outras desigualdades de consumo (habitação, transporte,

recreação, etc.) que são vividas pelos mesmos grupos sociais (Boyd, 1982, p. 119). Os “alguns” e os “outros” são, respectivamente, os beneficiários e as vítimas do mercado. A falta sistemática de atenção à sorte dos perdedores no mercado sugere que as teorias do mercado estão orientadas fundamentalmente pelos valores, interesses e preocupações de certas classes e frações de classe. Jonathan (1990, p. 19) acrescenta uma questão-chave ao tema que acabamos de discutir: Uma vez que a educação tem um valor de troca, assim como um valor intrínseco, e uma vez que seu valor-na-troca, como o de qualquer outra moeda, depende não da quantidade do bem que um indivíduo possui em termos absolutos, mas, antes, da quantidade que possui em relação a outros, então uma experiência mais favorável — em termos de valor de troca — para uma criança implica uma experiência menos favorável para alguma outra criança ou para algumas outras crianças.

Chubb & Moe (1990) podem ser questionados também num outro aspecto. Em sua crítica da escola democrática, eles argu mentam que: “os perdedores têm a obrigação de aceitar e ajudar a financiar essas políticas públicas e essas estruturas mesmo que PG.211 se oponham a elas” (p. 28). Entretanto, a criação de um mercado de serviços educacionais certamente produzirá o mesmo resultado. Jonathan (1990, p. 20) argumenta que os pais que se vêem jogados num mercado educacional, sentindo-se incapazes de afetar a situação social global, que distribui fatias cada vez menos iguais, podendo tão-somente tentar assegurar, de forma individual, uma fatia vantajosa para aqueles cujos interesses lhes são confiados, acabam sendo pressionados a adotar uma posição social conservadora e prudente, contribuindo, assim, para mudanças sociais cumulativas que eles não escolheram de forma direta e podem muito bem não aprovar. O livro de Chubb & Moe é descrito como estando pleno de “implicações provocativas sobre políticas públicas” (Paul E. Peter son, na capa do livro). Devemos supor que ninguém se opõe ou se oporá a essas políticas ou que não se oporá em ajudar a financiá-las? A defesa que Chubb & Moe provavelmente fariam a respeito desse ponto estaria baseada na idéia de que o seu sistema é o que consegue a maior eficiência possível — o maior bem. Mas a questão sobre os “acréscimos de valores” efetuados pelas relações de mercado e as questões das desigualdades deixam de ser discutidas numa resposta desse tipo. Além disso, a pesquisa eco nômica fornece poucos indícios de que se obtém a eficiência máxima em outros tipos de mercado. Assim, o que é indicado por essa manobra não é necessariamente um defeito argumentativo (embora também possa ser isso), mas um outro aspecto da psicologia social implícita na qual se baseia grande parte da teoria do mercado, isto é, o pressuposto do auto-interesse individual e racional como uma qualidade universal da natureza humana (Jonathan, 1990, p. 17). Esse é mais um aspecto da “democracia débil” de Barber (1984), “uma política que concebe os homens e as mulheres através de seus piores aspectos” (p. 25). As determinações e as demandas do sistema de mercado exigirão daqueles que se lhe opõem que ajam como “bons” consumidores para minimizar as desvantagens para seus filhos.

Deixem-me voltar à questão das imperfeições do mercado. Um dos problemas da aplicação da teoria do mercado ao sistema educacional — além da tendência a idealizar o mercado — é que PG.212 tendemos a receber apenas uma versão da teoria do mercado, aquela versão que proclama a ideologia da soberania do consumidor, como já observado. Um outro grande problema em relação à visão neoclássica do mercado é “sua recusa metodológica em tratar de questões relativas a poder ou a estrutura política, ao explicar o funcionamento das instituições econômicas” (Gintis, 1989, p. 66). Os aspectos-chave dessa negligência, no que diz respeito às escolas, relacionam-se ao argumento de Gintis de que “sob condições competitivas, o poder numa economia capitalista está do lado daqueles agentes que têm a ofertar bens que são escassos no mercado, isto é, aqueles agentes que se vêem frente a uma quantidade de parceiros comerciais maior do que aquela que sua oferta pode satisfazer” (p. 69). Este não é apenas um aspecto empírico das relações entre pais e escolas em muitas partes do Reino Unido e dos Estados Unidos, mas uma característica básica da escola de mercado. Existe um elemento paradoxal nesse argumento. Em muitas partes do Reino Unido e em muitas cidades dos Estados Unidos, existe um excesso de vagas escolares e, por definição, uma quantidade fixa de alunos. Esse excesso de oferta de vagas é o que conduz o mercado e cria competição entre instituições (entretanto, à medida que as escolas “impopulares” do sistema são fechadas, a margem de competição no mercado será diminuída). Entretanto, tanto no Reino Unido quanto em muitas cidades dos Estados Unidos existem algumas escolas que têm uma demanda de matrículas maior do que a oferta de vagas. E elas que, de uma forma ou outra, se encontram na posição de escolher os alunos e não o contrário. Elas têm poder no mercado e podem levar o “preço” para cima, ao aumentar os requisitos de entrada, seja em termos de medidas de capacidade, seja em indicadores de capital cultural. A recente cobertura jornalística sobre questões do excesso de matrículas e sobre reivindicações por parte dos pais aponta tanto para os problemas da noção de soberania do consumidor quanto das demandas culturais da com petição de consumo. O Direito de Todos os Pais de Escolher e Perder (The Inde pendent, 18 de julho de 1991) Comunidade Dividida por Medo e Indignação: milhares de pais tiveram negadas sua primeira escolha para a escola de seus

PG.213 se oponham a elas” (p. 28). Entretanto, a criação de um mercado de serviços educacionais certamente produzirá o mesmo resulta do. Jonathan (1990, p. 20) argumenta que os pais que se veem jogados num mercado educacional, sentindo-se incapazes de afetar a situação social global, que distribui fatias cada vez menos iguais, podendo tão-somente tentar assegurar, de forma individual, uma fatia vantajosa para aqueles cujos interesses lhes são confiados, acabam sendo pressionados a adotar uma posição social conservadora e prudente, contribuindo, assim, para mudanças sociais cumulativas que eles não escolheram de forma direta e podem muito bem não aprovar.

O livro de Chubb & Moe é descrito como estando pleno de “implicações provocativas sobre políticas públicas” (Paul E. Peter son, na capa do livro). Devemos supor que ninguém se opõe ou se oporá a essas políticas ou que não se oporá em ajudar a financiá-las? A defesa que Chubb & Moe provavelmente fariam a respeito desse ponto estaria baseada na idéia de que o seu sistema é o que consegue a maior eficiência possível — o maior bem. Mas a questão sobre os “acréscimos de valores” efetuados pelas relações de mercado e as questões

das desigualdades deixam de ser discutidas numa resposta desse tipo. Além disso, a pesquisa econômica fornece poucos indícios de que se obtém a eficiência máxima em outros tipos de mercado. Assim, o que é indicado por essa manobra não é necessariamente um defeito argumentativo (embora também possa ser isso), mas um outro aspecto da psicologia social implícita na qual se baseia grande parte da teoria do mercado, isto é, o pressuposto do auto-interesse individual e racional como uma qualidade universal da natureza humana íJonathan, 1990, p. 17). Esse é mais um aspecto da “democracia débil” de Barber (1984), “uma política que concebe os homens e as mulheres através de seus piores aspectos” (p. 25). As determinações e as demandas do sistema de mercado exigirão daqueles que se lhe opõem que ajam como “bons” consumidores para minimizar as desvantagens para seus fiihos. Deixem-me voltar à questão das imperfeições do mercado. Um dos problemas da aplicação da teoria do mercado ao sistema educacional — além da tendência a idealizar o mercado — é que PG.212 tendemos a receber apenas uma versão da teoria do mercado, aquela versão que proclama a ideologia da soberania do consumidor, como já observado. Um outro grande problema em relação à visão neoclássica do mercado é “sua recusa metodológica em tratar de questões relativas a poder ou a estrutura política, ao explicar o funcionamento das instituições econômicas” (Gintis, 1989, p. 66). Os aspectos-chave dessa negligência, no que diz respeito às escolas, relacionam-se ao argumento de Gintis de que “sob condições competitivas, o poder numa economia capitalista está do lado daqueles agentes que têm a ofertar bens que são escassos no mercado, isto é, aqueles agentes que se vêem frente a uma quantidade de parceiros comerciais maior do que aquela que sua oferta pode satisfazer” (p. 69). Este não é apenas um aspecto empírico das relações entre pais e escolas em muitas partes do Reino Unido e dos Estados Unidos, mas uma característica básica da escola de mercado. Existe um elemento paradoxal nesse argumento. Em muitas partes do Reino Unido e em muitas cidades dos Estados Unidos, existe um excesso de vagas escolares e, por definição, uma quantidade fixa de alunos. Esse excesso de oferta de vagas é o que conduz o mercado e cria competição entre instituições (entretanto, à medida que as escolas “impopulares” do sistema são fechadas, a margem de competição no mercado será diminuída). Entretanto, tanto no Reino Unido quanto em muitas cidades dos Estados Unidos existem algumas escolas que têm uma demanda de matrículas maior do que a oferta de vagas. E elas que, de uma forma ou outra, se encontram na posição de escolher os alunos e não o contrário. Elas têm poder no mercado e podem levar o “preço” para cima, ao aumentar os requisitos de entrada, seja em termos de medidas de capacidade, seja em indicadores de capital cultural. A recente cobertura jornalística sobre questões do excesso de matrículas e sobre reivindicações por parte dos pais aponta tanto para os problemas da noção de soberania do consumidor quanto das demandas culturais da competição de consumo. O Direito de Todos os Pais de Escolher e Perder (The Inde pendent, 18 de julho de 1991). Comunidade Dividida por Medo e Indignação: milhares de pais tiveram negadas sua primeira escolha para a escola de seus

PG.213 Filhos ( The Independent,24 de junho de 1991)

Explodem as reclamações sobre as Escolhas de Escola ( TES,2 de agosto de 1991) Famílias Descobrem Que o MercadoAberto Não Satisfaz (The Guardiam, 22 de junho de 1991) Qualquer Escola Desde Que Não Esteja Cheia (The independent, 18 de Junho de 1991)

O poder aqui está do lado do produtor. Na medida em que iss possibilita uma seletividade, também possibilita que seja necessário fazer menos do esforço exigido para manter a superioridade sobre outras instituições — quando essa superioridade é medida em termos de desempenho bruto e não de “valor acrescido Existe, neste caso, pouco incentivo para a inovação ou para tentar melhorar o ambiente de aprendizagem. Gintis (1989), outra ve argumenta que “se pode mostrar que um estreitamento do mercado (isto é, uma diminuição no equilíbrio proporcionado pela oferta em excesso) implica preços maiores e uma qualidade inferior do produto” (p. 70). Além disso, em muitos casos, no mercado de bens de consumo, a troca entre produtor e consumidor não é bilateral: “um consumidor individual não pode afetar o comportamento dos produtores” (p. 69). Neste caso, a autonomia do produtor é alta, mas a capacidade de resposta às reivindicações do consumidor é baixa. Ora, os teóricos do mercado podem argumentar que o “si cesso” das escolas com excesso de matrículas levará inevitave mente à emulação e à competição por estudantes desejávei Claramente, existe algo nesse argumento, mas ele ignora o pap crucial exercido pela vantagem relativa no mercado educacion Para alguns consumidores, o importante da escolha é que ei “exigem” exclusividade e/ou vantagem no desempenho — um nivelamento dos padrões não satisfaz os seus interesses. A escola que eles valorizam é aquela cuja entrada é difícil e que produz resultados superiores em termos de desempenho. Se todas ou muitas escolas pudessem oferecer o mesmo serviço, então sistema de mercado lhes teria sido prejudicial — embora a singularidade total seja improvável. Mas o teórico do mercado poder querer argumentar que os efeitos da competição ainda assim elevariam o nível global de desempenho do sistema e, portanto, PG.214 talvez também exigisse o esforço máximo por parte daquelas escolas determinadas a manter sua superior posição — teórica — de mercado. Mas o meu argumento aqui é que a aplicação da teoria abstrata de mercado à educação está baseada numa representação parcial e inadequada dos processos e efeitos das forças de mercado na educação. Tendo estabelecido um terreno de preocupações e debates, relacionado ao mercado educacional, quero agora desenvolver o argumento, através do exame de alguns dados daqueles mercados e sistemas de escolha que já estão em funcionamento nos Estados Unidos e no Reino Unido. MERCADOS, ESCOLHA E DESIGUALDADE SOCIAL Existem evidências suficientes até mesmo nos períodos iniciais do mercado educacional para sugerir que os processos e os efeitos das forças do mercado estão relacionadas com diferenças étnicas e de classe no acesso às escolas e na distribuição entre elas. Argumento que no mercado da educação: (a) os processos estra tégicos de escolha colocam as famílias

operárias sistematicamente em situação de desvantagem; e (b) o vínculo entre escolhas e recursos (através do financiamento per capita) coloca as escolas e comunidades operárias em situação de desvantagem (refletindo e interagindo com outras desigualdades coletivas de consumo). Em outras palavras, o funcionamento e os efeitos de um mercado da educação beneficiam certas classes e frações de classe em detri mento de outras. Outra vez, o mercado não é neutro. Ele presume certas habilidades, competências e possibilidades materiais (tem po, transporte, creche, etc.), que estão desigualmente distribuídas entre a população. Os teóricos do mercado tendem a pressupor, de forma global, que a disposição a participar do processo de escolha é generalizada entre a população ou que as diferenças quanto a isso são insignificantes. (Seguindo a cultura da escolha, os políticos britânicos tendem a culpar a família — os que escolhem mal é porque são maus pais). Como Edwards & Whitty (1990) sugerem, a ideologia do mercado está baseada num mo delo do/a “pai/mãe ideal” e o/a pai/mãe “ideal” é tratado/a como o/a pai/mãe médio/a. Outra vez, este não é um efeito neutro; antes, ela expressa um valor particular e uma visão particular da condi ção paterna/materna, que está construída para servir à ideologia PG.215 do mercado e à cultura da escolha. Mesmo que deixemos de lado os valores da escolha, pode-se também argumentar que os defen sores do mercado deixam de considerar as implicações de importantes variações no acesso à escolha e o impacto dos custos da escolha, além das diferentes capacidades para participar ou se beneficiar da cultura da escolha — isto é, para “decifrar e manipular estruturas complexas” (Bourdieu & Passeron, 1990, p. 73). O mercado da educação pressupõe a “posse do código cultural exigido para decodificar os objetos exibidos” (Bourdieu & Passeron, 1990, pp. 5 1-52). O mercado na educação constitui um novo arbitrário cultural e estabelece um novo nexo entre o sistema educacional e as classes sociais — um novo modo de articulação (Connell et alii, 1982). Sob vários e interrelacionados aspectos, a ideologia do mercado, na verdade, funciona como um mecanismo de reprodução de classe. Em primeiro lugar, ela pressupõe que as habilidades e as predisposições para a escolha e o capital cultural que pode ser investido na escolha são características que existem de forma generalizada na população. “No mercado, todos são livres e iguais, diferenciados apenas por sua capacidade para calcular seu autointeresse” (Ranson, 1990, p. 15). Em segundo lugar, ela legitima as diferenças em relação àquelas capacidades e disposições, ao rotular os que não escolhem ou escolhem mal como “maus pais” — não se culpam nem as políticas nem os procedimentos, a culpa é de quem não escolhe ou escolhe mal, ocultando-se as discriminações inscritas no próprio sistema, pois “em matéria de cultura, a falta absoluta de sua posse exclui a consciência dessa falta” (Bourdieu & Passeron, 1990, p. 210). Ao “impor o não-reconhecimento do arbitrário dominante”, o mercado produz exclusão e desqualificação, através de uma retórica centrada na possibilidade de as pessoas fortalecerem seu poder de decisão. Em terceiro lugar, o mercado educacional coloca quem “escolhe mal” (em geral, alguém pertencente a um grupo mino ritário) numa dupla situação de desvantagem, ao vincular a distribuição dos recursos à distribuição das escolhas. Cria-se um sistema de exclusão e diferenciação que reforça e amplia as vantagens relativas das classes médias e superiores na educação estatal. O papel do capital cultural em relação à escolha é tanto geral quanto específico. Geral, no sentido de que são exigidos certo PG.216

tipos e quantidades de capital cultural para que a pessoa possa efetuar uma escolha ativa e estratégica. Por exemplo: conhecimento das escolas locais; acesso às informações relevantes e capacidade para lê-las e decifrá-las; capacidade para se envolver nas atividades “promocionais” das escolas (como festas, materiais impressos e vídeos) e para decifrá-las; capacidade para maximizar a escolha, ao “manipular o sistema” (como, p. ex., fazer múltiplas matrículas, solicitar bolsas, etc.) e capacidade para se envolver em atividades que envolvam uma apresentação positiva de si mesmo (p. ex., ao se encontrar com pessoaschave no processo de seleção). Específico, no sentido de que fazer escolhas “bemsucedidas” e conseguir a escola colocada como primeira preferência pode depender de um envolvimento direto, assim como de uma defesa e uma busca ativas da escolha estabelecida. Existem pontos-chave de articulação no processo de escolha nos quais certos tipos de capital cultural são cruciais. Por exemplo, no caso de escolas com excesso de procura de matrículas, a capacidade para abordar diretamente a escola ou para acompanhar “recursos” iniciados através de processos legais (construindo um argumento eficaz). Whitty et alii (1989), assim como Dale (1989), demonstram a mesma combinação de vantagem de classe e de oportunismo de classe em situações similares de escolha. Dale (1989, p. 14) argumenta que, no caso dos pedidos bem-sucedidos de matrícula nos City Technological Colleges, “a obtenção de uma vaga para o filho é uma recompensa a um compromisso dos pais com a família, com o auto-aperfeiçoamento, a capacidade de iniciativa e o merecimento”. A incapacidade ou a falta de inclinação para participar daqueles aspectos do processo de “escolha” ou a ignorância em relação àqueles aspectos, entre certos grupos de classe, representam uma forma daquilo que Bourdieu & Passeron (1990) chamam de “autoexclusão” — um processo baseado, talvez, na crença de que o sistema não funciona para eles. Existe, além disso, uma outra dimensão da auto-exclusão e dos efeitos discriminatórks da 5 Adler et alli (1989, pp. 144-154) descrevem, com detalhes impressionantes, as audiências de recursos conduzidas na Escócia. As capacidades sociais e lingüísticas exigidas são claras. Há paralelos entre isso e a análise que Moore & Davenport (1990) fazem dos pais “bem-sucedidos” como sendo “advogados e negociadores” (p. 197).

PG.217 cultura da escolha. O sistema de escolha pressupõe um conjunto de valores que concedem primazia à comparação, à mobilidade e ao planejamento de longo prazo, ignorando, por outro lado, aquelas culturas que dão prioridade aos valores da comunidade e da localidade. Os horizontes sociais e geográficos de comunidades estáveis podem ser limitados e a proximidade e a história da escola local podem ser aspectos valorizados em si mesmos (veja Bowe, Ball & Gold, 1992, e Ball et alii, 1992). À medida que a diversidade das escolas se torna mais complexa e à medida que os sistemas de inscrição e admissão se tornam mais intermediados e baseados num processo de delegação, aumentam as dificuldades envolvidas em lidar com o sistema, as possibilidades de “manipular o sistema” e as oportunidades de abuso. Tudo isso fica, outra vez, evidente na análise que Moore & Davenport (1990) fazem do desenvolvimento de nascentes sistemas de diversificação e escolha em Nova York, Chicago, Boston e Filadélfia. Eles concluem que: “embora os teóricos da escolha da escola pública imaginem sistemas de escolha nos quais estudantes com características diversificadas têm acesso igual

às escolas de sua escolha, esse ideal raramente corresponde aos fatos, nessas quatro cidades” (p. 192; veja também HMI, 1990a). E, de forma importante, à luz do argumento que venho desenvolvendo neste ensaio, eles assinalam que: Os estudantes acabavam em diversos tipos de escolas secun dárias e programas, como resultado de um complexo processo de admissão que incluía os seguintes passos, os quais, às vezes, se sobrepunham: (1) recrutamento e coleta de informações; (2) inscrição; (3) filtragem, (4) seleção das vagas, e (5) aceita ção final do estudante. Investigar cada passo nesse processo faz ressaltar os muitos pontos nos quais as exigências formais, as exigências informais, a liberdade de decisão do pessoal encarregado da seleção e a iniciativa dos pais e dos estudantes afetavam o resultado final, em geral em detrimento do pro cesso igualitário de admissão [194]... Uma pesquisa baseada em entrevistas realizadas em Nova York... confirmou uma observação que ouvimos consistentemente: a maioria dos estudantes e dos pais não compreendia o processo de admis são à escola secundária... Aquelas famílias que tiraram o tempo e tinham as conexões para dominar suas complexidades PG.218

estavam em situação de grande vantagem... Os consulto res da pesquisa caracterizaram o processo de admissão como um processo no qual os pais bem-sucedidos freqüentemente tiveram que atuar como “advogados e negociadores” (p. 197). OS ESTADOS UNIDOS E O REINO UNIDO É importante aqui registrar algumas das atuais diferenças que existem entre esses sistemas dos Estados Unidos e o sistema do Reino Unido. Em primeiro lugar, os sistemas dos Estados Unidos são mais fortes em termos de diversificação e mais fracos em termos de escolha que o sistema do Reino Unido. Mas, certamente, nos Estados Unidos, nos lugares em que existe um sistema de escolha, os pais de classe média tiram o maior proveito dele. (Halsey et alii, 1980, p. 217, sugere que esse é um elemento recorrente do processo de reforma educacional). Quanto à diversidade, a ausência de um currículo rigidamente imposto, como no caso de Chicago pós-1988, por exemplo, combinado com um processo de aumento do poder de decisão dos pais e com uma administração escolar descentralizada, possibilita uma variação curricular entre escolas, assim como uma variação no processo local de tomada de decisão em relação a questões curriculares. Em segundo lugar, o sistema do Reino Unido é fraco em termos de fortalecimento do poder de decisão dos pais e em termos de controle local. O sistema adotado no Reino Unido tem uma semelhança superficial com esses sistemas estadunidenses (p. ex., com os Conselhos Escolares Locais, em Chicago), mas se baseia num paradigma de controle empresarial e não num modelo popular/participativo. O sistema do Reino Unido é mais forte em termos de controle financeiro e mais fraco em termos de controle educacional que os seus correspondentes americanos e estão mais limitados a questões de avaliação do desempenho do que com a inovação e com a satisfação das necessidades dos estudantes. Tal como indicado, o

Governo Conservador, no Reino Unido, não confia na democracia local e favorece um processo baseado na relação consumidor-escola. Concomitantemente, o sistema do Reino Unido de Administração Local das Escolas (Local Management of Schools, LMS) está centrado na gerência financeira, isto é, os diretores das escolas se tornam, primariamente, voltados PG.219 para a administração do orçamento, do mercado e da renda (veja Bali, 1992b). Em terceiro lugar, o sistema de escola de mercado do Reino Unido não tem qualquer compromisso com objetivos sociais de igualdade ou justiça; o Governo Conservador está fortemente decidido contra essas noções. A maior parte dos sistemas metropolitanos dos Estados Unidos tem importantes compromissos com essas questões, como por exemplo, nos programas de dessegregação e no financiamento de programas especiais dirigidos aos estudantes de baixa renda (como no caso de Chicago). De fato, a direção da mudança nos processos de reforma é exatamente o oposto, nesse aspecto, nos dois casos. No Reino Unido, o sistema de financiamento, fortemente baseado na quantidade de matrícula, está reduzindo os fundos existentes destinados a programas especiais e, além disso, novos fundos não estão sendo destinados a esses programas. Em contraste, em Chicago, a reestruturação efetuada após 1988 teve o efeito de redirecionar os fundos estatais do programa Chapter 1 para atender as necessidades dos estudantes de baixa renda. “Começando no ano letivo de 1989-90, e durante três anos, 100% dos fundos do Chapter 1 continuarão com os estudantes aos quais foram inicialmente destinados” (Chicago School Reform Act, 1988). Isso realmente está ocorrendo (Hess, 1992). Em relação ao financiamento no Reino Unido, Lee (1991, pp. 24-25) registra: No sistema de Administração Local das Escolas (Local Management Schools — LMS), as escolas podem tentar limitar a matrícula de alunos que sejam potencialmente “custosos”, a menos que elas sejam específica e adequadamente financiadas pelas Autoridades Educacionais Locais (Evans & Lunt, 1990; HMI, 1990a). Entretanto, mesmo que a fórmula garanta fundos generosos para necessidades especiais, ela não garante que as necessidades particulares das crianças serão atendidas porque aqueles fundos não podem ser destinados — pelas Autoridades Educacionais Locais — para propósitos específicos.

Em outras palavras, os fundos para necessidades especiais estão sendo tanto reduzidos quanto desconectados daqueles que têm essas necessidades. As destinações reais de fundos para necessida PG.220 des especiais são limitadas pelo governo e variam muito entre as diferentes Autoridades Educacionais Locais. CONCLUSÕES

De que forma, pois, devemos entender o mercado, numa perspec tiva sociológica? Por que a alternativa do mercado tem atraído tanto apoio político tanto da esquerda quanto da direita? Existe uma charada básica a ser enfrentada pelos sociólogos da educação, em relação à análise das políticas baseadas na noção de escolha, uma charada que Orfield (1989, p. 123, v. 2) expressa da seguinte forma: “Por que algumas políticas são vistas como sucesso sem que haja evidências, enquanto outras são descartadas como fracasso mesmo quando existem evidências de seu sucesso?”. No debate sobre a escolha por parte dos pais, as questões relacionadas à definição dos objetivos sociais da escola pública ficam obscurecidas, para dizer o mínimo. A solução de mercado, de que a escolha satisfará tanto as famílias individuais quanto a nação, parece pouco mais que um ato de fé. E necessário conceder muito mais atenção às relações entre os desejos individuais e os interesses nacionais; assim como às relações entre eficiência e qualidade e, em geral, àquelas entre os propósitos econômicos e os propósitos sociais da educação. Boyd observou algum tempo atrás que: “as soluções são difíceis precisamente porque o público deseja que as escolas públicas sejam simultaneamente eficientes, eqüitativas e sejam capazes de responder prontamente às demandas dos consumidores” (1982, p. 122). O mercado não resolve essa charada política. Além disso, existe uma certa perversidade lógica nos argumentos que sugerem que as necessidades e as exigências econômicas nacionais serão mais bem atendidas por um sistema de escolha individual e desregulamentação que pelo planejamento estatal; a menos que aceitemos que essas necessida des e exigências são satisfeitas “automaticamente” como sub-produtos das “políticas públicas centradas na família”, ou seja, do “estado das famílias”. Entretanto, os lobbies do Currículo Nacional nos Estados Unidos e no Reino Unido indicam que existe uma falta de confiança política na tese do sub-produto. O que subjaz a essa tese é a suposição de que as “necessidades” individuais (e nacionais) e os “desejos” individuais são a mesma coisa. Mas não PG.221 existe nenhum argumento claro na teoria do mercado que po sustentar essa equação. Como vimos, no Reino Unido esse problema é resolvido com o Governo assumindo o papel de articudor dos desejos dos pais, ao exigir que as escolas apresentam informações sobre o mercado (Parents Charter, DES, 1991; 19 School Act). Já comentei a falta de correspondência, registra nas pesquisas entre as concepções que o Governo tem de desejos e os desejos tais como expressos pelos próprios pais. Se existe tão pouca evidência para sustentar os argumentos feitos em favor do mercado e se existe contra-evidências suficientes para que sejamos pelo menos moderamente céticos, por qu tese do mercado continua atraindo tanta atenção por parte dos responsáveis pelas políticas públicas? Clune (1990) argumer que:

a escolha pode servir como um poderoso meio de legitimação política, deslocando a responsabilidade dos resultados sistema para seus clientes (p. ex., os estudantes e os pais satisfazendo um dos clientes mais poderosos e exigentes educação, o empresariado americano, e apresentando o sisi ma sob a fantasia da poderosa Ideologia Americana da sob rania do consumidor e da competição empresarial (1990, 395, v. 2). Na verdade, a oscilação não-problematizada, na teoria do merc do em educação, entre necessidades e desejos propicia dois dif rentes modos de legitimação através do mercado:

uma mai liberdade e a elevação dos padrões nacionais. Além disso, como Weiss (1992) e Clune (1990) argumentam, a substituição c planejamento estatal pelas forças do mercado como o princípal organizador do sistema educacional propicia uma solução eficaz e higiênica para a existente crise de legitimação na educação. Acredito que essas constituem importantes razões, mas quero acrescentar o argumento de que a escolha e o mercado fornece às classes -médias uma forma de reafirmar as suas vantagens 6 Uma diferente solução para a charada das necessidades nacionais está r argumento de que a inserção do mercado na educação fornece a base para un nova “correspondência” (Bowies & Gintis, 1975) entre a escola e sub-estruturas da economia pós-fordista (veja Bali, 1990a, Cap. 5).

PG.222 reprodutivas na educação, vantagens que têm sido ameaçadas pelo crescente processo social democrático de homogeneização das escolas, pela reforma cultural do currículo (a eliminação desse arbitrário cultural) e a diversidade de recursos para aqueles estu dantes com maiores necessidades de aprendizagem e com maiores dificuldades. A escolha e o mercado reafirmam aqueles privilégios que conferem aos privilegiados “o supremo privilégio de não se verem como privilegiados” (Bourdieu & Passeron, 1990, p. 210). Além disso, os diferenciais de classe do mercado estão entre laçados e vinculados com uma divisáo que corre ao longo de eixos étnicos, religiosos e de gênero. Os dados de Moore & Davenport (1990) mostram, de forma clara, os efeitos de exclusão dos sistemas de seleção e de escolha, em termos de segregação e discriminação racial. Assim, o mercado fornece um mecanismo para a reinvenção e legitimação da hierarquia e da diferenciação através da ideologia da diversidade, da competição e da escolha. Moore & Davenport (1990, p. 221) concluem que: A estratégia da escolha na escolarização pública é uma forma de reforma cujos defensores, até agora, fracassaram em provar que ela pode trazer a melhoria escolar geral que é tão neces sária nas grandes cidades do país. A abordagem da escolha tem riscos certos e benefícios duvidosos para os estudantes em situação de desvantagem e, em geral, tem representado uma forma nova e mais sutil de seleção discriminatória...

Os efeitos disso são discutidos por Whitty (1991), que argumenta que no Reino Unido, “as atuais reformas parecem estar relacio nadas a uma versão da pós-modernidade que enfatiza a distinção e a hierarquia no interior de uma ordem social fragmentada, em vez de uma versão que positivamente exalte a diferença e a heterogeneidade” (p. 20). Whitty ainda acrescenta que “isto terá conseqüências particulares para as populações predominantemente negras e operárias que habitam as grandes cidades. Embora elas nunca tenham obtido uma fatia justa dos recursos educacionais em períodos dominados por uma política socialdemocrática, parece pouco provável que o abandono do planejamento, em favor do mercado, vá fornecer uma solução” (pp. 19-20). David (1992) chega à mesma conclusão numa cuidadosa revisão da literatura sobre pesquisas e sobre políticas públicas. Carlen et alii

PG.223 (1992) pintam um quadro sombrio da crescente desigualdade de classe na educação, num estudo sobre a escola e a assistência social nas Midlands, Reino Unido. De fato, temos que entender o mercado como um sistema de exclusão. Não estou sugerindo que todas as questões que levantei aqui são totalmente ignoradas pelos teóricos do mercado ou pelos teóricos da escolha pública (especialmente não pelos últimos), mas sugiro que, ao apresentar argumentos do tipo “ou isto... ou aquilo” em relação à questão “monopólio público vs. mercados”, se ressaltam as deficiências excessivamente generalizadas do pri meiro e, ao mesmo tempo, os idealizados pontos fortes dos segundos. Escrevendo em 1982, Bill Boyd mostrou qual é o aspecto crucial — e ele continua sendo crucial: parece provável, da perspectiva mais ampla da economia política, que depender unicamente das escolas privadas irá aumentar a segregação social e as desigualdades em nossa sociedade pluralista. O desafio atual é, pois, a invenção de arranjos sociais que evitem os perigos tanto das falhas do mercado quanto das falhas do não-mercado (isto é, as patologias dos monopólios públicos) (p. 123).

O perigo é que estamos indo em direção a um mercado deformado, marcado por discriminações de classe, mediado pelas demandas endógenas do capital cultural e pelos efeitos exógenos da desvantagem social e econômica. Existem evidências e um maior potencial, tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, de uma estratificação e de uma diferenciação sociais nos sistemas educacionais. E possível argumentar que já é possível no Reino Unido se observar uma redistribuição dos recursos em favor dos estudantes mais capazes. Certamente existem evidências de uma retirada de recursos daqueles estudantes com dificuldades de aprendizagem (Lee, 1991). Entretanto, as explicações que os defensores do mercado dão para resultados diferenciais como esses parecem mais dirigidas a problemas no comportamento dos próprios pais e famílias (uma nova forma de patologia social) em sua interação com a experiência do mercado do que para problemas da operação do mercado em si. Todos esses elementos se combinam para reproduzir desigualdades sociais e econômicas, O mercado funciona como uma estratégia de classe, ao criar um PG.224 mecanismo que pode ser explorado pelas classes médias como uma estratégia de reprodução em sua busca de uma situação de vantagem relativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADLER, M. PETCH, A. & TWEEDW, J. Parental Choice and Educational Policy Edinburgh, Edinburgh University Press, 1989. BALL, S. J. Politics and Policy-Making in Education. London, Routiedge, 1990(a).

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ADEUS À ESCOLA PÚBLICA A DESORDEM NEOLIBERAL, A VIOLÊNCIA DO MERCADO E O DESTLNO DA EDUCAÇÃO DAS MAIORIAS Alguns meses atrás tive a oportunidade de coordenar um semi nário denominado “A configuração do discurso neoconserva dor”, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Durante os primeiros encontros, havíamos discuti do algumas questões relativas ao desenvolvimento estrutural da sociedade de classes assinalando que, no capitalismo histórico, a acumulação de capital sempre implicou uma tendência generali zada e crescente à mercantilização de todas as coisas. Tal interpretação, derivada das contribuições formuladas por Immanuel Wallerstein, implica reconhecer que a expansão e generalização do universo mercantil causa impacto não apenas na realidade das “coisas materiais” como também na materialidade da consciência. É assim que os indivíduos, na medida que introjetam o valor mercantil e as relações mercantis como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, aceitam — e confiam— no mercado como o âmbito em que, “naturalmente”, podem — e devem — desenvolver-se como pessoas humanas. No capitalismo histórico, tudo se mercantiliza, tudo se transformam em valor mercantil. Discutir estas questões em um curso de graduação costuma criar algumas dificuldades de teor expositivo. E, em honra à verdade, o dia em que havíamos abordado estes assuntos, um alto grau de abstração em nossa exposição nos havia impedido de dedicar algum tempo à apresentação de certas referências empíricas que tornassem mais compreensível a forma em que esta PG.228 tendência estrutural se materializa na vida cotidiana de nossas sociedades. Uma semana mais tarde, ao voltarmos a nos reunir, Nora, participante do seminário, pediu para contar uma experiência. Relatou que havia estado pensando na pertinência daquele processo tendencial e progressivo de mercantilização de todas as coisas. Preocupada, chegou um dia na sala de aula (Nora trabalha como professora em uma escola pública) e perguntou a seus alunos de terceira série: “O que é que não se pode comprar com dinheiro?”. Os quase quarenta meninos e meninas a olharam surpresos, talvez suspeitando que se tratava de outra loucura típica de sua professora politicamente inquieta. Nora, insistente, voltou a perguntar: “O que é que não se pode comprar com dinheiro?”. Após intermináveis segundos de silêncio, uma das crianças ensaiou uma resposta: “Um transatlântico”. Confiante, outro arríscou: “jogar futebol com Maradona”. Outro disse: “uma casa com quadra de futebol e tênis”. Outra: “toda a coleção da Barbie”. “Passar um dia com a Xuxa”, sonhou outra ... As respostas começaram a se espalhar pela sala de aula. Nora, tentava em vão, organizá-las. Ninguém esperava sua vez para falar. De repente, todos queriam contar aquilo com que sonhavam e, provavelmente, jamais conseguiriam ter. Para eles, o que não se podia comprar com dinheiro era aquilo que nunca poderiam comprar com o dinheiro que imaginavam ter um dia.

Os participantes do seminário ouviam atentos o relato de Nora. Ela concluiu categórica: “Creio que, quando é difícil reconhecer algo que não seja comprável com dinheiro, ou seja, quando a relação mercantil invade tudo completamente, nossa própria tarefa de defesa da educação pública torna-se cada vez mais complexa. Acho que as pessoas — e isso se vê pelas crianças— estão dizendo adeus à escola pública, talvez sem se dar conta.” A experiência de Nora me impressionou profundamente, e creio que é apropriada para começar nosso trabalho. Com efeito, trataremos de desenvolver aqui algumas reflexões provisórias voltadas para duas direções. Vamos sustentar que a ofensiva neoliberal contra a escola pública se veicula através de um conjunto medianamente regular e estável de medidas políticas de caráter dualizante e, ao mesmo tempo, através de uma série de PG.229 estratégias culturais dirigidas a quebrar a lógica do sentido sobre o qual esta escola (ou este projeto de escola) adquire legibilidade para as maiorias. Nossa hipótese é a de que os regimes neoliberais atribuem a esta última dimensão mais ênfase do que em geral — se reconhece nas análises críticas. Isto é, o neoliberalismo só consegue impor suas políticas antidemocráticas na medida em que consegue desintegrar culturalmente a possibilidade mesma de existência do direito à educação (como direito social) e de um aparato institucional que tenda a garantir a concretização de tal direito: a escola pública. Não estamos ignorando aqui o valor e a importância que desempenham, na ofensiva neoliberal, as estratégias políticas que permitem redefinir o cenário ou os cenários sobre os quais este projeto efetivamente atua e realiza sua funcionalidade histórica. Pelo contrário, o que nos interessa ressaltar é que esta reestruturação do cenário político, econômico e social no capitalismo de fim de século é assegurado — ou tem maiores possibilidades de sê-lo — uma vez que se produza uma reconversão qualitativa das formas culturais e ideológicas a partir das quais se definem e interpretam as noções de “democracia” e “direito”. O neoliberalismo, para triunfar — e em muitos casos o está fazendo —, deve quebrar a lógica do senso comum mediante a qual se “lêem” estes princípios. Deve, em suma, criar um novo marco simbólico-cultural que exclua ou redefina tais princípios reduzindo-os a sua mera-formulação discursiva, vazia de qualquer referência de justiça e igualdade. A DESORDEM NEOLIBERAL Muito se tem escrito acerca do neoliberalismo e não é nossa intenção insistir em reiterações desnecessárias. De qualquer forma, interessa-nos destacar aqui um aspecto de fundamental importância para compreender a natureza e o sentido que este projeto assume no contexto mais amplo do sistema mundial: o neoliberalismo expressa uma saída política, econômica, jurídica e cultural especifica para a crise hegemônica que começa a através da economia do mundo capitalista como produto do esgotamento do regime de acumulação fordista iniciado a partir do fim dos anos 60 e começo dos 70. O(s) neoliberalismo(s) expressa(m) a necessidade

PG.230 de restabelecer a hegemonia burguesa no quadro desta nova configuração do capitalismo em um sentido global. A crise do fordismo — cenário a partir do qual se difunde e consolida esta alternativa — pode ser definida e explicada em certos níveis específicos que a caracterizam (Hirsch, 1992, pp. 27-35): 1. a crise da organização taylorista do trabalho; 2. a crise do Estado de Bem-Estar corporativista; 3. a crise do Estado intervencionista; 4. a crise ecológica; 5. a crise do “fordismo global”; 6. a crise do “indivíduo fordista”. O neoliberalismo surge como reação e alternativa histórica à crise destes níveis, cujo tratamento mais detalhado escapa aos limites deste trabalho. Este tipo de resolução ou saída para o esgotamento do regime de acumulação fordista definirá um especial processo de reestruturação do capitalismo em um sentido global e a conseqüente imposição de uma nova estrutura hegemônica político-ideológica, compatível com o ciclo que se inicia (Hirsch, 1992, p. 18). Situar o neoliberalismo neste contexto é importante em ter mos analíticos, e pressupõe o reconhecimento de algumas dimensões teórico-metodológicas com relação à noção de crise e ao caráter que ela possui em uma compreensão crítica do desenvolvimento capitalista. Com efeito, o capitalismo atravessa, ao longo de toda sua história, uma série de processos de mudança e ruptura qualitativos e quantitativos. Estes processos (também identifica dos como dinâmicas de crise) são permanentes e cíclicos, e envolvem todas as esferas da prática social (Gentili, 1994a). Toda dinâmica de crise, ao mesmo tempo em que expressa a necessidade dominante para resolver as contradições inerentes a este tipo de sociedades, constitui uma nova instância geradora de contradições — em graus diversos — que definirão a idiossincrasia do período que se inicia após cada ruptura. Tal processo não questiona a natureza e o caráter do modo de produção, mas, sim, imprime a este último uma renovada morfologia de sentido transitório e relativamente estável que se reproduzirá até o surgimento de uma PG.231 nova crise. Os períodos a que nos referimos se definem pela reformulação histórica da dinâmica que caracteriza a acumulação de capital e, conseqüentemente, pelo estabelecimento de un novo modo de dominação indissoluvelmente articulado a ela:

O caráter das diferentes formações que o capitalismo tem gerado no curso de seu desenvolvimento histórico está definido por uma dada estratégia de acumulação, um modelo de acumulação e uma estrutura hegemônica correspondente. Dizendo de um modo mais simples, as crises estruturais de capitalismo historicamente ocorrem quando, dentro do qua dro de um dado modelo de acumulação e uma dada estrutur hegemônica, já não é possível mobilizar suficientes contra tendências à queda da taxa de lucro e quando a conseqüenti valorização do capital requer uma transformação capitalista. As crises seculares são então as crises de formações social: integral, coerente e estruturalmente estabelecidas, crises de um “bloco histórico” no sentido gramsciano, e sua função consiste em “revolucionar” essa estrutura de tal modo que processo de acumulação possa de novo continuar sobre um base social (Hirsch, 1992, p. 19).

A crise, neste sentido, é sempre uma crise global que causa impacto não somente sobre a vida econômica mas também sobre a política, as relações jurídicas, a cultura, etc. E no contexto mais ampi da crise do fordismo (e da necessidade estrutural de estabelecer construir um novo modo de dominação) que as estratégias políticas e culturais do neoliberalismo adquirem sentido. Longe de resultar na opção “natural” a tal processo de recomposição, neoliberalismo constitui sua expressão histórica dominante cuja funcionalidade consistirá, precisamente, em garantir o restabelicimento desta hegemonia Nossas referências às dinâmicas de reforma estrutural pressi põem o reconhecimento de que os períodos pós-crise implicam em numerosos desafios para a classe dominante ou para as frações dela que hegemonizam o processo. Trata-se não apenas de criar uma nova ordem econômica e política (tal como defendem altenativamente as versões economicistas ou politicistas), mas também da criação de uma nova ordem cultural. Assinalamos no início que os neoliberais atribuem a esta dimensão um papel fundamemental PG.232 A criação e recriação desta nova ordem cultural se sobrepõem a três traços característicos do pós-fordismo. Ao mesmo tempo que dão sentido e coerência ao período, eles ganham materialida de simbólica graças aos parâmetros interpretativo-ideológicos que o neoliberalismo trata de impor. Seguindo aqui também as con tribuições de Hirsch, os fatores que definem, em parte, a idiossin crasia do pós-fordismo são: 1. a organização pós-taylorista do trabalho; 2. o caráter estruturalmente dualizado da sociedade; e 3. o novo Estado autoritário pós-keynesiano. Sobre o primeiro fator, não nos deteremos muito, já que fizemos algumas referências a ele em outros estudos (Gentili, 1994a; Gentili, 1994b; veja-se também Frigotto, 1993). Simplesmente, digamos que a organização pós-taylorista do trabalho tem implicado uma mudança radical na estrutura de qualificações das empresas tanto como nas qualificações requeridas para o desempenho dos novas e velhas funções no mercado de trabalho; uma redefinição das formas produtivo-organizacionais vigentes; a mo dificação substancial dos padrões de disciplinamento da força de trabalho e de reordenamento hierárquico na própria empresa, etc. Em nossos estudos, indicamos que tais mudanças — ainda quando não

questionam os núcleos invariáveis que caracterizam a organização do trabalho nas sóciedades de classes (monopólio do conhe cimento, divisão do trabalho manual e intelectual, polarização e segmentação dos trabalhadores, etc.) — são de fundamental importância para a compreensão das mudanças morfológicas que o capitalismo atravessa em matéria produtiva no período atual (Gentili, 1994b). O pós-fordismo também se caracteriza pela cristalização de um modelo social fundado na dualização e na marginalidade crescente de setores cada vez mais amplos da população. Vale neste caso a mesma observação que no ponto anterior: não é que o pósfordismo origine um processo inédito e desconhecido nas sociedades capitalistas. Pelo contrário, nele potencializa-se o caráter estruturalmente dualizado que caracteriza historicamente este tipo de sociedades. E o faz com uma peculiaridade nada desprezível em matéria cultural: a transparência. As sociedades dualizadas — sociedades de “ganhadores” e “perdedores”, de PG.233 “insiders” e “outsiders”, de “integrados” e “excluídos” —, longe de apresentarem-se como um desvio patológico do aparentemente necessário processo de integração social que deveria caracterizar as sociedades modernas, constituem hoje uma evidência indisfarçável da normalidade que regula o desenvolvimento contemporâneo das sociedades “competitivas”. Embora seja certo que no Terceiro Mundo este caráter dualizado (e dualizante) expressa-se com inusitada selvageria, o apartheid social atravessa implacável a economia-mundo, muito além das diferenças particulares com que se manifesta em cada cenário regional. A sociedade pós-fordista é uma sociedade dividida. Na perspectiva conservadora, não é mau que seja assim — é, até mesmo, desejável. Para isso cumprem aqui um papel fundamental as ideologias meritocráticas e do individualismo competitivo, segundo as quais o que justifica e legitima a divisão hierarquizante e dualizada das modernas sociedades de mercado é o assim chamado princípio do mérito: ...este princípio sustenta que os velhos esquemas institucio nais premiavam os ineficientes, enquanto os novos, ao aumen tar a dependência de cada um do valor de troca no mercado de sua capacidade individual, farão com que as retribuições sejam de acordo com sua maior ou menor eficiência como participante do sistema de trabalho social (Lo Vuolo, 1993, p. 165).

Ainda quando ideologicamente costuma ser apresentado como norma de igualdade (já que, aparentemente, permite a mobilidade social em função de certos atributos que o indivíduo joga e conquista “livremente” no mercado), o princípio do mérito é fundamental e basicamente uma norma de desigualdade (Offe, 1976; Lo Vuolo, 1993). Como tal, consagra a divisão social dualizada, ao mesmo tempo em que a transforma em uma meta a ser conquistada. Semelhante esquema questiona a noção mesma de “cidadania” (ou melhor, dálhe novo significado, esvaziando-lhe o conteúdo democrático). Assim sendo, também descarta a necessidade de existência dos direitos sociais e políticos, os quais, no programa neoliberal e neoconservador, só serviram para difundir um certo clima social de

acomodação e desrespeito pelo esforço e pelo mérito individual. A sociedade dualizada, caracte rística do pós-fordismo, é uma sociedade sem cidadãos ou, se vale PG.234 aqui a ironia, com alguns membros mais “cidadanizados” que outros. O que, definitivamente, nega o sentido mesmo que a cidadania deveria possuir em uma sociedade democrática. Daí que, em seus discursos, neoconservadores e neoliberais tenham maior predileção pelas referências aos “consumidores” que aos “cidadãos”. Simplesmente porque “consumidor” remete, sem tanta retórica, a um universo naturalmente dualizado e segmen tado: o mercado. Mais adiante voltaremos a esta questão. Não menos evidente e conhecida é a crise que atravessa o Estado de Bem-Estar, como forma de ajustamento político idios sincrático do regime fordista. Vários autores têm destacado este processo (Offe, 1990; Picó, 1987; Lo Vuolo & Barbeito, 1993; Whitaker, 1992; Pfaller, Gough & Therborn, 1993). Claus Offe, ao assinalar que este tipo de Estado tem servido como “principal fórmula pacificadora das democracias capitalistas avançadas”, identifica os dois componentes estruturais que o caracterizam: ...a obrigação explícita que assume o aparato estatal de prover assistência e apoio (em dinheiro ou em mercadorias) aos cidadãos que sofrem necessidades e riscos específicos da sociedade mercantil e também o reconhecimento do papel formal dos sindicatos tanto na negociação coletiva como na formação dos projetos de governo (Offe, 1990, p. 35).

O neoliberalismo questiona com força ambos os componentes, como “solução política às contradições sociais” do período anterior. E por isso que, como afirma novamente Offe, “o próprio mecanismo do compromisso de classe tem se convertido [ mesmo] em objeto de conflito de classe” (1990, p. 137). Em certo sentido, torna-se evidente que o processo global de crise e reestruturação gerado como produto do esgotamento do regime de acumulação fordista causa impacto especificamente na própria estrutura organizacional e institucional do Estado e na funcionalidade histórica atribuída ao aparato estatal. Isto é inevitável, O que não tem nada de inevitável é a saída que os neoliberais propõem a tal processo de reestruturação política do Estado: Que forma de sistema político podemos esperar que siga o Estado keynesiano, que se baseava no pleno emprego, em um bem-estar material crescente, sindicatos fortes, um sistema de

PG.235 seguridade social desenvolvido, e que contava com um mc de regulação política centralizado e corporativista media essencialmente pelos partidos sociaisdemocratas? O Estado pós-fordista deverá basear-se nas estruturas sociais e econômicas, assim como nas divisões e fragmentações sociais estão se desenrolando como uma reação à crise do fordismo e deverá desenvolver formas de

regulação política que possibilitem, e até promovam, o estabelecimento de um no modelo de acumulação e de sociedade (Hirsch, 1992, p. 4).

É a lógica do mercado contra a do Estado. A subordinação política às regras mercantis como a única forma de regulaç homeostática da sociedade. Josep Picó sintetiza de forma eloqü te a reação conservadora frente ao caráter “intervencionista’ presumidamente ineficiente do Estado fordista: o Welfare State aumentou excessivamente a burocracia, que se converteu em uma pressão para os governos; os particulares converteram-se em ofertas eleitorais para o mercado de volta mais que em gestores pragmáticos da realidade; o Esta viu-se obrigado a suprir necessidades e provisões que estão fora de seu alcance e esta assistência tão generosa fomentou a preguiça e o absenteísmo. Os grupos de pressão, e em geral o corporativismo, cresceram de tal maneira que o Estado encontra sobrecarregado com demandas impossíveis de satisfazer. Estendeu-se o leque dos direitos sociais e a população espera que os governos se responsabilizem e intervenham setores cada vez mais amplos da sociedade, mas ao mesmo tempo pedem a redução dos impostos e a contenção de preços. Esta situação se torna ingovernável e a única saída um retorno paulatino às premissas do laisser faire que con nha o gasto público e estimule o investimento privado, renuciando a formas intervencionistas de Estado (Picó, 1987, 10).

O questionamento neoliberal ao Estado que, para efeitos puramente descritivos, denominamos “intervencionista” (já que Estado sempre “intervém”), não deve levar à confusão de suj que estes setores negam a necessidade de um Estado que partici fortemente em um sentido social amplo. O que os neoliberai conservadores combatem é a forma histórica específica que assume PG.236 a intervenção estatal no período fordista, propondo, junto com isto, um novo padrão de intervenção de caráter mais autoritário e antidemocrático. Claro que os discursos hegemônicos ocultam este processo, apelando para o eufemismo de um governo e um Estado mínimo. Entretanto, para destruir o modo de regulação política keynesiano e para desfazer-se do “bem-estar” que caracterizava aquele tipo de Estado, os neoliberais precisam recriar um tipo de intervenção estatal mais violenta tanto no plano material como no simbólico. Este exercício de força (que reco nhece antecedentes no Estado de vigilância e seguridade também idiossincráticos do regime de acumulação fordista) assume uma nova fisionomia orientada a garantir uma — também nova — estabilidade política e ideológica. O Estado neoliberal pós-fordista é um Estado forte, assim como são fortes seus governos “mínimos”. Estes três fatores conformam a fisionomia do todavia incipiente modo de regulação pós-fordista. Neles se exprime a necessidade de construir uma nova ordem cultural voltada para a geração de novas formas de consenso que assegurem e possibilitem a reprodução material e simbólica de sociedades profundamente dualizadas. A rigor, o neoliberalismo é a

expressão histórica dominante da luta para a construção desta no ordem, o que não implica em outra coisa que a construção de uma nova desordem. A VIOLÊNCIA DO MERCADO No capitalismo histórico, mercado (e não somente o Estado) supõe sempre diversos graus de violência e coação. Não existe sem a concomitante existência de mecanismos histórica variáveis de violência, tanto de cáráter material quanto simbólico. O desenvolvimento e ampliação crescente destes mecanismos é um dos atributos que traçam a direção assumida pelas políticas neoliberais neste fim de século. Assinalamos anteriormente que, além dos reducionismos interpretativos de presunção conspirativa, o neoliberalismo expressa a necessidade de restabelecer a hegernonia burguesa, apresentando-se como saída histórica para a crise da acumulação originada partir do começo dos anos 70. A dinâmica aberta neste fodo foi caracterizada por alguns autores como um processo PG.237 de despolitização do capitalismo (Barros de Castro, 1991), cujo eixo fundamental é a reimposição das regras mercantis sobre as da política. O que neoconservadores e neoliberais questionam é, não apenas a aparente “ineficiência” do Estado para atuar no terreno estritamente econômico (propondo desta forma as conhe cidas íórmulas privatistas e des-regulamentadas), mas também a pertinência mesma da política como campo e esfera de regulação do conflito social. Nada disto é possível, claro, sem violência. A Nova Direita, para restabelecer o ritmo da acumulação de capital (cuja queda evidente, tal como argumentamos, produz-se com a crise do fordismo), deve priorizar a coação em detrimentos dos mecanismos de legitimação que definiam a idiossincrasia mesma do Welfare State. A redistribuição no sentido keynesiano e do Estado de Bem- Estar não apenas se fazia em direção às classes menos favorecidas (ao menos em teoria) como um estímulo para a demanda, mas também era sobretudo um mecanismo político, levado à prática pelo estado e pelo processo político. A economia da oferta neoconservadora inverteu a lógica da redistribuição, e tentou inclusive eliminá-la de seu programa político, ao vender a nova redistribuição, feita em favor dos que estão em cima como um processo econômico “natural”, exigido pelas demandas de eficiência produtiva do mercado (...). Para realizar este programa de redistribuição dirigida em favor das classes mais favorecidas, é necessário deixar o âmbito do mercado livre da “política” (...). O mercado agressivo, livre da interferência do Estado (que é simplesmente a expressão, não podemos nos esquecer, de um ideal pelo qual os neoconservadores lutam, mas que nunca alcançaram) é um campo no qual os ricos podem aumentar suas fortunas enquanto os trabalhadores estão sujeitos à coação da necessida de sem a mediação de instituições de proteção nãomercantis ou de organismos públicos que cuidam, por mais imperfeitamente que seja, de suas necessidades (Whitaker, 1992, pp. 36, 37, 42).

As observações formuladas na seção anterior nos previnem de certas confusões analíticas em relação ao caráter que assume a PG.238 violência do mercado no capitalismo histórico. Com efeito, o exercício desta violência (e sua ampliação sob o predomínio dos programas de ajuste neoliberal) não se produzem “contra” o Estado, em um sentido abstrato. Este último atua como fator decisivo para garantir a acumulação de capital sob uma modalidade de regulação política já dominantemente mercantil. Ou seja, o Estado atua como um fator a mais no processo de despolitização. Daí que o neoliberalismo precisa de qualquer outra coisa, menos de um Estado débil. Precisa de um Estado que atue, ele mesmo, contra as funções de legitimação, projetando e operacionalizando novas formas de intervenção. Nada mais falso, então, que o discurso anti-intervencionista que fascina neoconservadores e neoliberais de todas as partes do mundo. O Estado exerce a violência para garantir a violência do mercado. Mas o Estado de Bem-Estar baseava-se (repetimos: ao menos em teoria e entre outros fatores) em um princípio subjacente de caráter democratizante em termos potenciais: a igualdade e a necessidade de realizar ações de caráter assistencial destinadas a mitigar as desigualdades. Este último constitui um dos fatores centrais que definem a reação neoliberal e conservadora contra o Welfare State. E aqui que a Nova Direita apela sem sutileza alguma ao mercado. Na perspectiva destes setores, a intervenção política voltada para garantir melhores níveis de igualdade (seja onde for) potencializa, mais que modera, os efeitos não-igualitários que possam existir em qualquer sistema social. Para a Nova Direita, somente a liberdade do mercado pode anular estes efeitos. A pretensão equalizadora do Estado de Bem-Estar tinha seu correlato, em uma certa concepção dos direitos sociais e da cidadania conservadores e liberais, e apenas uma simples ilusão de efeitos perversos A partir desta interpretação ...as políticas de bem-estar social têm como objetivo lidar com problemas que eram tratados por estruturas tradicionais como a família, a Igreja ou a comunidade local. Quando tais estruturas se desmoronam, o Estado intervém para assi suas funções. Neste processo, o Estado debilita ainda mais õ - que resta das estruturas tradicionais. Surge daí uma necessi dade maior de assistência pública do que havia sido prevista,

PG.239 e a situação piora, em vez de melhorar (Hirschman, 1992, 35). A observação anterior unifica duas tradições filosóficas que independentemente de suas coincidências, possuem especificid de própria: o conservadorismo e o liberalismo nãodemocrático. Isto possui não poucos efeitos concretos nas políticas realizada pela Nova Direita. Com efeito, enquanto na concepção feudal corporativa do conservadorismo, qualquer forma de intervenção política sobre as estruturas de autoridade tradicional supõe questionamento do caráter mesmo da ordem social vigente (Nis bet, 1987), para os liberais de velho e novo cunho, estas entidade são a expressão mais “pura” dos interesses individuais que devem ser livremente exercidos no mercado, sem o consabido perigo de uma intromissão (política) externa que desvirtue a natureza da instituições e a função que as

mesmas desempenham no nível social. Referindo-se à dogmática conservadora, Nisbet argumenta: Se alguma coisa [ela] destacou [suas origens] é a neces sidade imperiosa de que o Estado político evite tanto quant possível intrometer-se nos assuntos econômicos, sociais morais; e, ao contrário, fazer tudo que for possível par estender as funções da família, moradores e associações cooperativas voluntárias (Nisbet, 1987, p. 71).

Mas voltemos a nosso argumento original: o neoliberalismo, par impor sua lógica implacável, precisa de uma nova ordem cultural A violência do mercado adquire, neste contexto, uma extraordi nária materialidade. De uma perspectiva radicalmente democrática, o mercado o espaço do não-direito. “Consumir”, “trocar”, “comprar”, “vender” são ações que, ainda que amparadas em certos direito5 identificam ou apelam aos indivíduos em sua exclusiva condição de “consumidores”. Na retórica conservadora, ser “consumidor pressupõe um direito (em sentido estrito) e uma possibilidade d ação de amplitude variável. No primeiro caso, referimo-nos a direito de propriedade; no segundo, à possibilidade de comprar vender. PG.240 Embora, como assinala C. B. Macpherson, o conceito de propriedade (e, conseqüentemente, seu direito) tenha mudado ao (particularmente dentro das coordenadas histó ricas do capitalismo), nas sociedades modernas de mercado tal conceito remete ao estreito critério de um “direito individual exclusivo para usar e dispor de coisas materiais” (Macpherson, 1991, p. 102). Semelhante reducionismo implicou em quatro modos de estreitamento que definem o sentido que este conceito possui no capitalismo contemporâneo: 1. a propriedade reduzida à idéia de propriedade material; 2. a propriedade como direito a excluir a outros do usufruto de algo; 3. a propriedade como direito exclusivo de usar e dispor de algo, o direito de vendê-lo ou aliená-lo; 4. a propriedade como direito a coisas (inclusive aquelas que geram alguma renda). Seguindo a interpretação de Macpherson, torna-se evidente que tais estreitamentos conduzem, na sociedade de mercado, à produção e ao aprofundamento das desigualdades de riqueza e poder, sendo incoerente e antagônica com os princípios que devem regular uma sociedade democrática. Esta é a inevitável conseqüência de converter tudo em propriedade exclusiva e de jogar tudo no mercado. Isto é claramente incoerente com um dos princípios de uma sociedade democrática, que, a meu ver, é o da manutenção da igualdade de oportunidades para usar, desenvolver e desfrutar das ca pacidades que cada pessoa possui. Os que devem pagar o acesso aos meios para usar suas capacidades e exercer suas energias — e pagam transferindo a outros tanto o controle de suas capacidades como parte do produto — essas pessoas, digo, vêem recusada a igualdade no uso, desenvolvimento e desfrute de suas próprias capacidades. E, em uma moderna sociedade de mercado, a maioria pertence a essa categoria.

[Considerando] em seu sentido estritamente moderno, o direito de propriedâde contradiz os direitos humanos democráti cos (Macpherson, 1991, pp. 102-104).

PG.241 Ora, a possibilidade de “comprar e vender livremente no mercado” supõe o exercício do direito de propriedade no sentido anteriormente exposto. Ainda quando pareça muito óbvio, isto significa, em síntese, que toda possibilidade de cada parte de um suposto subjacente baseado na desigualdade. Na retórica neoliberal e neoconservadora, isto não há conotação negativa. Pelo contrário, e tal desigualdade que leva supostamente — os indivíduos a melhorar, a se esforçarem e a competir; em suma: é a precondição para o exercício do princípio do mérito a que nos referimos na seção anterior. Se o conceito de igualdade (e, conseqüentemente, as políticas voltadas para tal fim) irritam neoliberais e conservadores, não menos o fazem o próprio conceito de justiça e as políticas de justiça social. Na perspectivaena pragmática da Direita o Estado só serve para onservar e defender a propriedade desse direito. Em matéria educacional (e não somente nela), isto tem um efeito interessante. A desigualdade e a discriminação educaional, assim como a ausência de políticas democráticas voltadas para garantir o que aqui chamaríamos de justiça distributiva do bem “educação”, formam parte de uma esfera de ação que sociedade (isto é, o mercado) deve resolver sem interferência externa de nenhum tipo: a esfera da caridade. Para isso existem a Igreja, as organizações comunitárias, as associações de moradores e todo um conjunto de instituições descentralizadas (algumas delas de caráter especificamente educacional) que devem funcionar sem a ingerência perniciosa dos governos. A caridade, quando é realizada pelo Estado, denomina-se assistência social. E, na perspectiva neoconservadora e neoliberal, esse tipo de ação gera maior desigualdade. Existem grupos, começando pela família e incluindo os vizinhos e a Igreja,que estão devidamente constituídos para prestar assistência em forma de ajuda mútua, e não como caridade de alto nível proveniente de uma burocracia. Tais grupos são corpos mediadores por natureza: estão mais perto do indivíduo e, em sua própria força comum, são aliados naturais do indivíduo. O objetivo do governo é olhar primeiro as condições de força destes grupos, na medida em que, pela força de séculos de desenvolvimento histórico, eles estão mais

PG.242 aptos a tratar com a maioria dos problemas dos indivíduos. No entanto, passar por cima destes grupos por meio do auxílio social dirigido diretamente a uma determinada espécie de indivíduos é — argumenta o conservadorismo — um convite imediato à discriminação e à ineficiência, uma maneira implacável de destruir o significado desses grupos (Nisbet, 1987, p. 105-106).

Por outro lado, os que possuem educação (ou têm possibilidades de possuí-la), tampouco devem sentir a pressão do Estado sobre suas costas, já que isto questiona o sentido mesmo que a propriedade adquire nas sociedades de mercado. Nelas, a educação transforma-se — apenas para as minorias — em um tipo especifico de o que supõe direito a possuí-la materialmente, direito a usá-la e desfruta-la, direito a excluir outros de seu usufruto; direito de vendê-la ou aliená-la no mercado; e direito de possuí-la como fator gerador de renda. Em última instância, a opção pelo mercado formulada pela Nova Direita esconde, além disso, um brutal despreso pela democracia e pelas conquistas democráticas das maiorias. Para alguns autora, isto se reflete em novas formas de articulação política orientadas por um processo de “des-democratização da democracia” ou, em outras palavras, de constituição de democracias delegativas que encerram, em si mesmas, a negação de qualquer princípio democrático-participativo de caráter equalizador (O’Donnell, 1991; Weffort, 1992). Esta ofensiva antidemocrática revela o alto grau de despotismo político e de autoritarismo que caracteriza os regimes neoconservadores e neoliberais. Liberdade para a iniciativa privada; opressão para o manejo da coisa pública. O suposto “anti-estatismo” dos modernos cruzados do neoliberalismo é, em realidade, um ataque frontal à democracia que as classes e camadas populares souberam construir apesar da oposição e da sabotagem dos interesses capitalistas. O que em verdade os preocupa do moderno estado capitalista não é seu excessivo tamanho, nem o déficit fiscal, mas a intolerável “presença das massas”, saturando todos os seus interstícios (...). A restauração do “darwinismo social” e a declarada intenção de desmantelar o estado keynesiano — aguçando o sofrimento das vítimas do mercado e

PG.243 produzindo, além disso, o “esvaziamento” prático de suas instituições democráticas — expressam de modo gritante a vocação autoritária que se esconde em suas aparentemente inócuas idéias econômicas (Boron, 1991, pp. 139-140). A desordem neoliberal faz da violência do mercado uma das armas mais certeiras contra o bem-estar das maiorias. Isto impõe as regras de um implacável processo de “seleção natural” que, em sua macrovisão reacionária, expressa o grau mais perfeito de desenvolvimento da especie humana. O DESTINO DA EDUCAÇÃO DAS MAIORIAS No campo especificamente educacional, os regimes neoliberais e neoconservadores defendem um conjunto de estratégias e receitas políticas que, além dos matizes idiossincráticos que as caracterizam, possuem poucas diferenças inter-regionais. A análise destas propostas já foi abordada em numerosos trabalhos (Apple, 1993; Dale, 1994;

Paviglianiti, 1991 e 1994; Frigotto, 1993; Torres, 1994; Gentili, 1994a; Gentili & Da Silva, 1994). Independentemente do sentido particular que assume a concretização de tais políticas, nosso interesse é observar aqui que elas vão sempre acompanhadas de uma conseqüente mudança cultural. Ou seja, o neoliberalismo ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de um e, ao mesmo tempo, mediante uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico de nossas sociedades a possibilidade mesma de um educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias. Uma política de reforma cultural que, em suma, pretende negar e dissolver a existência mesma do direito à educação. Poderíamo inclusive ir mais além, aventando a hipótese de que esta ruptura do sentido atribuído ao direito à educação constitui uma precondição que garante (Ou, ao menos, possibilita) o êxito das políticas de cunho claramente antidemocrático e dualizante. Na medida em que o neoliberalismo realiza com êxito sua missão cultural pode também realizar com êxito a implementação de suas propostas políticas. Em outras palavras, o neoliberalismo precisa — em primeiro luga ainda que não educa çã novo signifi como mercadoria para PG.244 garantir, assim, o triunfo de suas estratégias mercantilizantes e o necessário consenso em torno delas. Tomaz Tadeu da Silva explicita este problema de forma sugestiva: A presente ofensiva neoliberal precisa ser vista não apenas como uma luta em torno da distribuição de recursos materiais e econômicos (que é), nem como uma luta entre visões alternativas de sociedade (que também é), mas sobretudo,como uma luta para criar as próprias categorias, noções e termos através dos quais se pode definir a sociedade e o mundo. Nesta perspectiva, não se trata somente de denunciar as distorções e falsidades do pensamento neoliberal, tarefa de uma crítica tradicional da ideologia (ainda que válida e necessária), mas de identificar e tornar visível o processo pelo qual o discurso neoliberal produz e cria uma “realidade” que acaba por tornar impossível a possibilidade de pensar outra (Silva, 1994, p. 9).

Mas, como se realiza este processo de recriação de um consenso baseado na aceitação explícita e cinicamente transparente do inevitável caráter mercantil da educação? Como o neoliberalismo garante a desintegração do caráter de direito que a educação possuía (repetimos: ao menos em teoria), impondo uma nova nuance interpretativa que a reduz à mera condição de mercadoria? Em suma, como triunfam culturalmente, no plano educacional, os regimes neoliberais? Sem que pretendamos aqui esgotar as várias respostas possíveis a tais perguntas, digamos que ouso e abuso de duas estratégias discursivas tem permitido a estes setores avançar e estender consideravelmente a modernização conservadora na esfera educacional: (a) o discurso da qualidade e o conteúdo específico atribuído à ela quando a remetemos à análise das políticas educativas e dos processos pedagógicos, (b) o exacerbado discurso

dominante de articulação do universo educacional e o do universo do trabalho que, defendido no plano teórico pelos que postulam uma neo—teoria do capital humano, se tem expandido como a única nuance a partir da qual se pode (e deve) avaliar os efeitos “práticos” da educação no mundo contemporâneo. PG.245 O tratamento por extenso destas duas dimensões merece um espaço de que não dispomos. Entretanto, faremos aqui algumas breves referências (de caráter estritamente enumerativo) de ambas as estratégias discursivas e das conseqüências políticas geradas por elas. a. A qualidade como propriedade. Em um trabalho anterior, desenvolvemos o argumento de que o renovado discurso da Nova Direita sobre a qualidade educacional surgiu como reação e resposta ao já desvalorizado discurso da democratização, generalizado na América Latina após os períodos de ditadura. Também enfatizamos que tal discurso tem-se caracterizado por adotar o conteúdo definido pelos debates sobre qualidade no universo produtivo. Identificamos este como um duplo processo de transposição, mostrando como sua aplicação, em alguns casos concre tos (p. ex. Chile, Brasil e Argentina), conduz ao aprofundamento das diferenças sociais instituídas na sociedade de classes, ao mesmo tempo em que intensifica o privilégio e as ações políticas dualizantes (Gentili, 1994a). Seguindo com a análise desenvolvida neste estudo, podemos acrescentar que, nos discursos dominantes, a qualidade da educação possui, também, o status de uma propriedade com atributos específicos. Com efeito, para neoconservadores e neoliberais, a qualidade não é algo que — inalienavelmente deve qualificar o direito à educação, mas um atributo potencialmente adquirível no mercado dos bens educacionais. A qualidade como propriedade supõe, em conseqüência, diferenciação interna no universo dos consumidores de educação (que em nossos países já não são todos), tanto como a legitimidade de excluir outros (as maiorias) de seu usufruto. A qualidade, como a propriedade em geral, não é algo universalizável. Na perspectiva conservadora, é bom que assim seja, já que critérios diferenciais de concessão (e formas também diferenciais de aproveitamento do bem educação) estimulam a competição, princípio fundamental na regulação de qualquer mercado. Levado a extremos (e alguns tecnocratas neoliberais o levam), este argumento reconhece que o Estado pouco ou nada pode fazer para melhorar a qualidade educacional sem produzir o efeito perverso contrário: nivelar por baixo. Realmente, assim como a intervenção político-estatal sobre o PG.246 direito de propriedade questiona o sentido que este possui no ideário da Nova Direita, toda intervenção externa que pretenda, em um sentido igualitário, “democratizar a qualidade” atentará inevitavelmente contra um atributo que define a propriedade (educacional) dos indivíduos. Que estes indivíduos sejam poucos ou, mais precisamente, que sejam só os integrados ao mercado é — já o sabemos —apenas um detalhe. A falta de qualidade (como a não disponibilidade de qualquer propriedade) não é um assunto do Estado, e sim dos mecanismos de correção que funcionam “naturalmente” em todo mercado; simplesmente porque o mercado é, ele mesmo, um mecanismo autocorretivo

(Ashford & Davies, 1992). A qualidade da educação como propriedade está sujeita a tais regras e só ela, enquanto “propriedade”, pode constituir-se em algo desejável e conquistável pelos indivíduos empreendedores. Ela se conquista no mercado e se define por sua condição de não-direito. b. A educação para o (des)emprego. A obsessão da Nova Direita pela integração do universo do trabalho e do universo educacional se deriva de alguns princípios associados à interpretação anterior. Na moderna sociedade de mercado, o emprego (como a educação de qualidade) não é um direito, nem deve sê-lo. Esta redução da relação educação-trabalho à fórmula “educação para o emprego” deriva-se quase logicamente tanto de uma série de formulações apologéticas acerca do funcionamento autocorretivo dos mercados (em termos gerais), como de uma particular interpretação acerca da dinâmica que caracteriza as novas formas de competição e intercâmbio comercial nas sociedades pós-fordistas. O tema, claro, é muito mais complexo e merece um tratamento detalhado que aqui não podemos desenvolver. Entre tanto, assinalamos duas questões fundamentais: 1. A educação como direito social remete inevitavelmente a um tipo de ação associada a um conjunto de direitos políticos e econômicos sem os quais a categoria de cidadania fica reduzida a uma mera formulação retórica sem conteúdo algum. Partindo de uma perspectiva democrática, a educação é um direito apenas quando existe um conjunto de instituições públicas que garantam a concretização e a materialização de tal direito. Defender “direitos” esquecendo-se de defender e ampliar as condições materiais PG.247 que os asseguram é pouco menos que um exercício de cinismo. Quando um “direito” é apenas um atributo do qual goza uma minoria (tal é o caso, em nossos países latinoamericanos, da educação, da saúde, da seguridade, da vida, etc.), a palavra mais correta para designá-lo é “privilégio”. Ora, a educação de qualidade como propriedade de (alguns) consumidores remete, pelo contrário, ao exercício de um direito específico (o direito de propriedade) que só o pode efetivar-se em um cenário caracterizado pela existência de mecanismos “livres” de regulação mercantil. A propriedade educacional se adquire (se compra e se vende) no mercado dos bens educacionais e “serve”, enquanto propriedade “possuída”, para competir no mercado dos postos de trabalho (que definem a renda das pessoas também enquanto direito de propriedade). Se isso não fosse logicamente assim, neoconservadores e neoliberais se veriam obrigados a aceitar que a educação é algo mais que uma propriedade e conseqüentemente, que poderiam — ou deveriam — ser aceitos mecanismos de intervenção externos ao próprio mercado para garantir o acesso à mesma. Embora seja esta a posição dominante, existem algumas nuances. Por exemplo certas produções acadêmicas recentes reconhecem o valor da educação como propriedade para competir no mercados flexíveis de trabalho mas, ao mesmo tempo, defendem — enfaticamente — que ela também serve para competir no mercados políticos. Estas posições dividem com as anteriores restrição do direito à educação como um simples direito de propriedade, mas o estendem ao exercício do jogo político caracterizado pelas normas reguladoras do funcionamento das democracias delegativas. Trata-se aqui da necessidade de possui educação para exercitar uma “cidadania responsável”, que contribua para a modernização da economia e oriente com eficiência a“compra” das melhores ofertas

eleitorais que, no mercado políti co, prometam realizar tal modernização (exemplo desta posiçã encontra-se em CEPAL, 1992; e Namo De Melio, 1993). Ainda quando, provavelmente, a segunda seja preferível à primeira ambas as posições tendem a intensificar e legitimar os privilégio e os mecanismos de diferenciação social que reproduzem un modelo que só beneficia os integrados, pondo à margem o excluídos. PG.248 2. Se o emprego se regula pelas “leis” do mercado, é logica mente aceitável que exista uma esfera de não-emprego. Por outro lado, se o direito de propriedade age (em suas diferentes formu lações) como um dos fatores fundamentais que regulam tal mer cado, uma conclusão, também lógica, deriva-se desta hipótese: os proprietários de educação de qualidade terão maiores opções de emprego no mercado de trabalho para ter acesso a propriedade de um salário; os não-proprietários, menos. Mas também cabe a possibilidade (não tanto pela eficácia lógica do argumento e sim pela crua realidade que devemos viver neste “vale de lágrimas”) de que exista quem “possua” educação de qualidade e não tenha acesso ao emprego, dada a escassa disponibilidade deste último. Neoconservadores, neoliberais e tecnocratas reconvertidos não se alarmam diante deste fato. Para eles, somente o mercado pode corrigir essas deficiências, devidas antes a uma expansão desme dida do mercado de bens educacionais do que a uma limitação estrutural das novas formas de competição no mercado mundial dirigidas a produzir e ampliar o desemprego. A distância entre quem tem e quem não tem acesso a melhores cargos no mercado de trabalho tende a ampliar-se e aprofundar-se (Therborn, 1989; Therborn, 1993). A educação para o emprego pregada pelos profetas neoliberais, quando aplicada ao conjunto das maiorias excluídas, não é outra coisa senão a educação para o desemprego e a marginalidade. Reduzir e confinar cinicamente a educação a uma propriedáde que só potencializa o acesso ao trabalho é nos resignarmos a sofrer uma nova forma de violência em nossas sociedades não-democráticas. A restauração conservadora sentencia a educação das maio rias ao mais perverso destino: transformar-se na caricatura de um passado que nunca chegou a efetivar suas promessas democrati zadoras, dentro de um modelo social já irreversivelmente marca do pela desigualdade e pela dualização. Nossa luta é, como enfatizamos em várias oportunidades, cada vez mais complexa. As observações aqui realizadas trataram de dar conta, não das políticas concretas que realiza a ofensiva reacionária da Nova Direita, mas de sua estratégia cultural que tende a transformar o senso comum sobre o qual se funda a potencial democratização da educação pública e a existência de 249 um modelo institucional voltado para a garantia da efetivação de tal direito: a escola pública das maiorias. Nosso desafio deve (não apenas, ainda que fundamentalmente) situarse também no terre no da disputa cultural. Devemos projetar e tratar de pôr em prática propostas políticas coerentes que defendam e ampliem o direito a uma educação publica de qualidade. Mas tambem deve mos criar novas condições culturais sobre as quais tais

propostas adquiram materialidade e sentido para os excluidos que, em nossas sociedades, são quase todos. Ambos os elementos sao fatores indissolúveis em nossa luta pela reconstrução de uma sociedade fundada nos direitos democráticos, na igualdade e na justiça. No momento de começar o projeto deste artigo, reuni-me com Daniel Suárez, amigo e crítico implacável. Comentei com ele que pensava em iniciar minha exposição fazendo alusão à expe riência do curso na Faculdade de Filosofia e Letras. Enquanto lhe relatava a história de Nora, seu filho Manuel, de cinco anos, desenhava a nosso lado fantásticos e heróicos jogadores de fute bol. Ao concluir meu relato, Daniel se manteve alguns segundos em silêncio. Depois, dirigiu-se a seu filho e perguntou-lhe: “Manu, existe alguma coisa que não se pode comprar com dinheiro?” Manuel deixou sua caneta, olhou para ele e, sem hesitar sequer um instante, respondeu: “as pessoas, papai”. Creio que sua resposta é uma boa forma de concluir estas reflexões provisórias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, M. Official Knowledge. Democratic education in a conservative age. New York, Routledge, 1993. ASHFORD, N. & 5. DAVIES (Eds.). Diccionario dei pensamiento conservador liberal. Buenos Aires, Nueva Visión, 1992. BARROS DE CASTRO, A. Política versus Economia: ontem e hoje. In: Weffort. Wolfe, De Oliveira et alii. A democracia como proposta. Rio de Janeiro, IBASE, 1991. BORON, A. Estado, Capitalismo y Democracia en América Latina. Buenos Aires Imago Mundi, 1991. ÍHá tradução para o português pela Editora Paz e Terra, 1994] CEPAL. Educación y Conocimiento: eje de la trans formación productiva co equidad. Santiago de Chile, Naciones Unidas, 1992. PG.250 DALE, R. “A promoçao do mercado educacional e a polarização da educação”. Capitulo 5 deste livro. FRIGOTTO, G. Trabalho e educação face a crise do capitalismo: ajuste neoconser vador e alternativa democrática. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1993. GENTILI, P. Proyecto neoconservador y crisis educativa. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1994(a). GENTILI, P. Poder económico, ideología y educación. Buenos Aires, FLACSO / Miño y Dávila Editores, 1994(b).

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“democracia” e “educação pública” e substituí-los por outros, produzidos no quadro da “ética do mercado do livre consumo”. Por sua vez, afirmo que esta substituição traz sérias conseqüências no que diz respeito à estruturação do currículo e à possibilidade de construir uma escola democrática e igualitária. Finalmente, esboço algumas proposições com o objetivo de contribuir para a elaboração de um discurso pedagógico alternativo e crítico que permita vincular o projeto e a prática política progressistas com valores democráticos radicalizados. A POLÍTICA EDUCACIONAL DA NOVA DIREITA COMO POLÍTICA CULTURAL Dentro do contexto teórico da tradição educacional crítica, existe um amplo acordo para se considerar as políticas educacionais neoliberais como parte do programa de reconversão econômica e social que certos grupos de poder têm empreendido no mundo capitalista contemporâneo. Na América Latina, alguns autores PG.253 têm realizado estudos destinados a explicar como, nos países região, as propostas de reforma e as práticas políticas da No Direita se conjugam com as exigências econômicas de qualificação-disciplinamento da força de trabalho nos processos produtivos flexibilizados (Coraggio, 1992; Frigotto, 1994; Genti 1994a; Gentili, 1994c). Outros têm investigado suas conseqüêcias político-institucionais e legal-administrativas sobre o aparato escolar (Saviani, 1991; Paviglianiti, 1991), assim como o significado regressivo e antidemocrático destas medidas sobre os processos de escolarização e educacionais em geral (Tamarit, 199. Sirvent, 1992). Todos têm contribuído com algumas análise significativas para mostrar o funcionamento silencioso e perverso do discurso da qualidade e da eficiência educacional sobre economia política e a função social e pedagógica da escola pública. Entretanto, muito poucos estudos têm estado voltados para compreensão da lógica destas práticas e discursos político-educativos como parte de uma política cultural de caráter global (Silv 1994b; Gentili, 1994b; Gentili, 1995). Ou seja, como sendo uma das estratégias que os grupos de poder dominantes realizam com o fim de legitimar e difundir uma seleção particular de conhecimentos, conceitos e valores próprios como se fossem os únic ou, pelo menos, os melhores. Somente vinculando esse congl merado de proposições e de fórmulas técnicas — em geral expressas num registro economicista e pretensamente asséptico — para “a melhoria da qualidade da educação” com a obra de refoma cultural e ideológica emprendida pela nova coalisão de direita possível visualisar seu sentido e coerência programática. E também seus efeitos potenciais sobre as formas de entender, julgar e operar no aparato escolar, sua administração, seus assunto processos pedagógicos e sociais. Apesar da advertência sobre a necessidade de articular a pesquisa dos processos, relaçõe práticas educacionais com categorias próprias dos estudos culturais críticos (Willis, 1993; Apple, 1994; Barbosa Moreira & Sil 1994), a agenda de temas dos educadores progressistas latinoamericanos tem incorporado só muito recentemente a seus questionamentos sobre o currículo a determinação da influência impacto desta “nova”

forma de entender o educacional sobre concepção e o desenvolvimento das práticas escolares. PG.254 Como recomenda Gentili (1995), para que as análises ganhem legibilidade, é necessário enfocar o programa educacional neoliberal como uma série mais ou menos orgânica de estratégias culturais orientadas a reverter certa base de consenso e de legitimidade acerca da consideração do espaço público como um cenário aberto à negociação-luta por direitos individuais, coletivos e sociais. O projeto intelectual e político de desintegração do quadro de direitos até há pouco garantido pelo Estado (de bem- estar, populista e outros híbridos latino-americanos), aludindo, a partir de perspectivas neoliberais, aos problemas “estruturais” de deficiência administrativa da gestão pública é, sem dúvida, sua expressão mais ambiciosa. A elaboração e concretização de medidas efetivas e pontuais, destinadas a transformar materialmente o aparato institucional da escola e sintonizá-lo com o “novo” ordenamento político e eco nômico, exigem uma mudança cultural. Têm como condição de possibilidade e como ferramenta a dissolução de representações ancoradas no imaginário social acerca das vantagens conquistadas, após anos de luta, pela democratização da vida social e política, e construídas historicamente em detrimento do interesse individualista, da competição selvagem e do lucro indiscriminado prometidos pelo mercado entregue à sua própria legalidade (ou seja, sem ajustamento e controle públicos). O horizonte da ofensiva neoliberal é, então, substituir a legitimidade e o consenso edificados sobre estes significados por outro consenso e outra legitimidade, que incorporem como centrais (e talvez únicos) os valores próprios da empresa, da competitividade, da mensurabilidade e do lucro. Torna-se imperativo substituir a ética pública, cunhada coletivamente pelo combate cívico e democrático, por uma ética do livre mercado, importada sem mediações do mundo empresarial e que supõe a supressão da política. Entretanto, esta substituição não é automática nem mecânica. Para tomar corpo, requer uma mudança profunda das formas culturais com que as maiorias começaram a ler e a atuar politicamente, ainda que de maneira interrompida e dificultosa, nas sociedades capitalistas latino-americanas, sob a margem de liber dade restringida e controlada que foi outorgada por modelos de dominação oligárquicos, liberais e populistas. Deve-se entender, assim, que esta transformação cultural e ideológica é estratégica. PG.255 Sobretudo se é levado em conta que os processos de luta e conquistas obtidas constituíram o fundamento e o cenário para formação de identidades e coletivos sociais que, em algumas ocasiões, chegaram a questionar o sistema de dominação política e, em outras, até o próprio ordenamento social e econômico evidenciando suas contradições, injustiças e arbitrariedades. Em outras palavras: para impor-se, a modernização conservadora precisa apagar da memória coletiva o conflitivo processo d construção social de noções como cidadania, bem comum, sol dariedade, igualdade, direitos sociais. Isto porque os conteúdos valores

associados a elas constituíram ancoragens simbólicas ef cazes para a conformação material de atores sociais com força de negociação (partidos políticos, sindicatos, movimentos cívicos) capacitados para produzir de maneira autônoma categorias conceitos mediante os quais pensar, nomear, julgar e atuar na sociedade e no mundo. Esta luta pelo sentido da representação do social adquire na atualidade maior dramaticidade (pode ser considerada, sem exagero, uma verdadeira guerra cultural), na medida em que aquelas noções — evidentemente ressignificada à luz dos novos tempos — são ainda instrumentos válidos para desafiar o poder e pensar alternativas políticas viáveis. A DUPLA LÓGICA DO PRINCÍPIO EDUCATIVO Pelo que foi anteriormente exposto, a tarefa cultural assumida realizada pela Nova Direita e por seus sócios (falo aqui fundamen taimente de muitos intelectuais-pedagogos reconvertidos é, 1 Com esta denominação pretendo dar conbta da combinação de elemento neoconservadores e neoliberais dos projetos políticos concebidos e realizadc pela coalizão de direita dominante em quase todos os países capitalista Resumindo, estes pretenderiam “liberar” os sujeitos para que possai desenvolver propósitos econômicos no quadro do livre mercado simultaneamente controlá-los para inibir o desenvolvimento de propósitt sociais, culturais e políticos. A conseqüência desta estranha articulação seria enfraquecimento do Estado em certas áreas (por exemplo, nas políticas d promoção social e educacional), e seu fortalecimento em outras (sobretudo n vinculadas com o controle e o disciplinamento social). Além disso, o termo adequado para manifestar o caráter transformador e criativo, e não s restaurador ou conservador, das políticas culturais da Nova Direita. 2 Talvez o êxito mais evidente do neoliberalismo tenha sido a cooptação e incorporação ativa, em suas fileiras, de muitos intelectuais e educador antigamente progressistas. Isto lhe permitiu maquiar e “renovar” seu discurso seu corpo doutrinário com uma máscara terminológica supostamente moderna

PG.256 simultaneamente, destrutiva (negativa) e produtiva (positiva). Des trutiva porque está empenhada em corroer e deslegitimar certos padrões culturais, axiológicos e de conduta social, assim como em desqualificar e marginalizar os agentes sociais que os possuem e fazem uso político deles. Produtiva porque supõe a criação, difusão e aceitação generalizada de um novo senso comum, mesmo quando, no processo de construção hegemônica, incorpo ra e dá novo significado aos conteúdos fragmentários do velho e coopte al dos sentidos e interesses dos atores sociais vinculados a ele. Atendendo a esta dupla lógica, pode-se afirmar que este projeto cultural constitui um processo de construção hegemônica orientado a formar novas identidades sociais e culturais que sejam funcionais com a ordem a instaurar. Os discursos e argumentos políticos são, sob esta ótica, geradores, fundadores da realidade social, e não somente sua descrição ou reflexo mais ou menos exato (Laclau & Mouffe, 1987). Os ditames e proposições neoliberais e neoconservadoras se estruturam, desta forma, em um processo de constituição simbólica do real, do desejado e do benigno que não apenas sustenta uma determinada ordem de coisas mas que também, além disso, nega a existência mesma de outras “realidades”, de outras possibilidades de representar o mundo, seus objetos e relações (Silva, 1994). A Nova Direita busca, em síntese, delinear seu

próprio horizonte mediante a criação de novas categorias, significados e valores; e, no mesmo movimento, apagar os traços de outros. No campo educacional, o conjunto de discursos, propostas e práticas da nova coalizão de poder — como momento estratégico da política cultural neoliberal — pode ser resumido no que denomino princípio educativo da Nova Direita. Este conglomera do mais ou menos orgânico de categorias, noções e valores institui uma série inédita de relações, regras e procedimentos razoáveis e legítimos para a formação de novos sujeitos sociais, políticos e, evidentemente, pedagógicos. Dispõe, além disso, de novos meios e dispositivos culturais pelos quais pode reconstruir (e também destruir) os recursos e materiais simbólicos a partir dos quais esses 3 A criativa articulação de elementos do populismo nacionalista com outros do neoliberalismo econômico são exemplos-chave para entender este fenômeno. Na América Latina, os casos de Menem, Colior, Fujimori ilustram com clareza o ecletismo pragmático da Nova Direita.

PG.257 sujeitos tendem a se conformar como agentes individuais e cole tivos capacitados e habilitados para representar-se, mover-se e avaliar sua posição e possibilidades no mundo. Por isto, a análise crítica de sua natureza e alcance, bem como dos processos ideológicos, culturais e pedagógicos que envolve, não deve se restringir tão-somente às iniciativas destinadas a intervir com exclusividade sobre a educação institucionalizada. Exige lançar o olhar para outras zonas e domínios culturais e educacionais que, tradicionalmente, os educadores progressistas e de esquerda têm minimizado ou desprezado em seus estudos, e que hoje adquirem uma relevância central para se compreender a dinâmica político-cultural da Nova Direita. Embora a escola pública — como espaço culturalmente dotado e densamente povoado — seja um dos cenários que esta tem privilegiado para ensaiar e operar as redefinições e as transformações implicadas em sua reforma cultural, os meios de comunicação de massa também têm sido constituídos como um âmbito e um instrumento estratégicos para realizá-las. Isto porque os ideólogos neoliberais e neoconservadores têm advertido que a ampla cobertura sócio-demográfica que garantem (chegam a todas as pessoas, em todo o território nacional, a baixo custo e com grande eficácia) e que a modalidade de interpelação que supõem (o fluxo da informação é unidirecional, sem possibilidade de resposta, e atinge individu almente sobre os indivíduos) os convertem em recursos técnicos mais que adequados para seus fins. Mas, sobretudo, porque se deram conta das potencialidades que apresentam para “fabricar” sentidos e significados sociais favoráveis a seu projeto, sem o perigo ou a obrigação de submetê-los, ao menos imediatamente, à discussão e ao controle públicos. Na medida em que a quase totalidade dos massa-media respondem à lógica “sempre benéfica” e “mais eficaz” da gestão privadaempresarial, as decisões e as medidas efetivas acerca dos conteúdos e valores a criar e a transmitir através delas a “ineficiência” e a “lentidão” da administração pública que, necessariamente (ao menos até agora), requer o consenso e a legitimação social e política das mudanças

4 Para uma análise mais pormenorizada acerca da necessidade de ampliar o alcance da teoria educacional crítica em direção a outros âmbitos culturais e pedagógicos, com influência decisiva sobre a constituição de identidades sociais, vejam-se Castelis (1994) e Willis (1994).

propostas. Neste sentido, ao mesmo tempo que “comunicam” sem conflitos, se convertem em poderosas tecnologias de manipulação do afeto, do desejo e da cognição (Silva, 1994) de amplos setores da sociedade que, por estarem total ou parcialmente marginaliza das (seja material ou culturalmente) da escolarização, escapam a sua influência pedagógicodisciplinadora. Utilizar na análise o constructo princípio educativo é provei toso, além disso, pelo fato de que não remete apenas à leitura crítica de propostas ou medidas políticoeducacionais concretas e isoladas, identificáveis por si, tais como as referentes à distribuição de recursos ou à chamada “descentralização administrativa” do sistema escolar. Pelo contrário, implica considerar global e pon tualmente esses emprendimentos, em consonância com um registro ideológico-cultural e axiológico dado, onde adquirem sentido e, portanto, legibilidade, como passos ou momentos estratégicos dentro de um programa de reforma mais abrangente. Através da análise desse princípio, torna-se possível entender a ofensiva neoliberal como uma luta para criar e impor uma determinada visão do educativo, de suas relações, práticas, sujeitos e espaços sociais e políticos, através do prisma de certas categorias, noções e valores por meio dos quais nomeá-los e avaliá-los. É ilustrativo, também, porque replica, em um âmbito específico, o educacional (em seu sentido amplo), a dupla faceta da tarefa cultural da Nova Direita: ao mesmo tempo que afirma, cria, recria e modela um novo sentido do educativo, nega, desqualifica e oculta outros significados divergentes, considerados disfuncio nais em relação à nova lógica que pretende impor como a única válida, razoável e legítima. A partir desse movimento simultâneo de produção e de crítica, apresenta-se como conjunto de critérios que permitem “modernizar a educação” e “ajustá-la às demandas colocadas pela sociedade” ou, o que dá no mesmo, pelas exigên cias de qualificação-disciplinamento ditadas pelo mercado de trabalho surgido de processos produtivos reconvertidos. Entre os questionamentos que desenvolve, talvez o mais preciso e com maiores implicações sobre a estruturação de uma nova “racionalidade educacional” seja o que pretende apagar do imaginário social a idéia da educação pública como direito social e como conquista democrática, parcialmente obtida após anos de PG.259 lutas sob o slogan da igualdade de oportunidades e histórica vinculada com o processo social de construção da cidadania. A tentatíva consiste em despojar a memória coletiva de suas ancoragens histórico e retirar do senso comum das maiorias o interesse político que atravessou as formas autogeradas de 0 de valores e conteúdos culturais referentes educação. As persistentes alusões à fórmula que postula o “fim da história e das ideologias” (ou a formatos discursivos semelhantes) adquire neste contexto específico um significado retrospectivo recoloca a educação e a escola como espaços sociais naturalizados (isto é, como dados agora e para sempre), neutros e imunes a toda política e/ou revisão histórica, o debate acerca de sua funcionalidade em relação a determinadas (e assimétria relações de

poder fica assim mistificado pela aparente ingenuidade de certo imperativo tecnológico que submete a ponderação dos fins à eficácia e ao rendimento dos meios. Ou, em outras palavras, uma nova versão da “racionalidade instrumental” — desvaloriza da por sua mimese direta e exclusiva de critérios e padrões econômicos — abre caminho e estabelece limites para à discussão simplesmente técnica de uma problemática que é — e tem sido — inerentemente política. A contra-face criativa deste movimento é a afirmação da educação como uma mercadoria a mais (ou melhor, a busca sistemática da expansão, de um campo específico do social às das relações mercantis próprias do capitalismo). A proposta apresen ta os serviços educacionais, livres de todo conteúdo e julgamen to políticos, como bens que se compram, se vendem, se possuem, se consomem no contexto de um mercado educacional. Desde que não seja regulado externamente e fique entregue à sua própria legalidade, este mercado garantiria uma vasta e oferta de qualidade variada e a liberdade de escolha de seus “usuários” ou “consumidores. Segundo seus mentores, as conseqüências benéficas desse deslocamento seria, em primeiro lugar, a possibilidade de combater eficazmente a “crise da escola” provocada por muitos anos de administração inoperante, a partir da j de critérios empresariais de organização e gestão. Em segundo lugar — e como o do anterior —, a ampliação e aprofundamento das condições de equidade e democracia que, até o momento, o Estado não pôde oferecer, apesar PG.260 de sua obstinada intervenção. Embora não seja possível identificar de forma direta o Estado com a gestão e o controle públicos, nesta operação estas últimas noções aparecem paradoxalmente contrastadas com as de bem comum, interesse coletivo e democracia. Além disso, o mercado é colocado semanticamente como antípoda do Estado e é despojado da coação e da violência supostas pelas relações assimétricas de poder econômico que se dão em seu interior (Gentili, 1994b). Deste modo, as relações mercantil-educacionais autorreguladas aparecem definidas como o terreno propício para modelar o interesse individual que, a partir de um ilusório somatório de unidades discretas, redundaria em benefício de todos. Ao mesmo tempo, são hipostasiadas como o âmbito ideal para fazerem reinvidicações racionais e viáveis em questões de serviços educacionais classificados e hierarquizados de acordo com índices de qualidade. ÉTICA DO CIDADÃO VERSUS ÉTICA DO MERCADO A partir desta ressignificação global do educacional, o princípio educativo da direita neoliberal e neoconservadora dirige-se à reformulação de outros conceitos e categorias centrais do discurso progressista e, até mesmo, do glossário liberal clássico. Em muitos casos, irá fazê-lo substituindo esses conceitos por novos termos, em geral retirados do vocabulário econômico neoliberal. Em outros, eliminando-os simplesmente da linguagem socialmente disponível. Deste modo, as noções de igualdade e igualdade de oportunidades — no início associadas ao imaginário democráti co-liberal e, depois, convertidas em palavras de ordem durante o itinerário das lutas para a democratização das instituições sociais e políticas — são deslocadas paulatinamente pela noção de eqüidade, mais vinculada à idéia de acordo (concertación) entre desiguais. Além disso, as noções econômicas e tecnocráticas de eficácia, produtividade, eficiência e êxito tomam o lugar de

outras, mais políticas, como a de participação democrática na tomada de decisões educacionais, ou relacionadas com problemáticas sociais, como a de expansão quantitativa da matrícula escolar. Esta transformação não só tende a tornar cada vez mais econômico e menos político o discurso educacional como também leva a traduzir valores próprios da ética pública e cívica na clave da ética PG.261 do livre mercado e do consumo: a solidariedade e a cooperação cedem lugar assim à competição e ao mérito individual como metas educacionais finais; ou, de qualquer forma, são reconsideradas meramente como estratégias metodológicas para obter maior rendimento e produtividade. Na realidade, toda esta transmutação está direcionada para consolidar uma mudança de sentido que envolve a função do aparato escolar com respeito à formação e reprodução dos sujeitos sociais. Trata-se de conduzir os esforços formativos da escola em direção à constituição de consurnidores (Santos, 1993), redefinindo sua antiga intencionalidade e tendência a formar cidadãos. Como se sabe, a escolaridade pública, obrigatória e gratuita, esteve, em seus fundamentos, associada à política cultural dos grupos de poder liberaloligárquicos que, a partir de fins do século passado, fizeram sua a missão de construir estados nacionais na América Latina. Através destes estados, tentaram civilizar, modernizar e normalizar as incipientes e dispersas soci edades civis dos países da regido, assim como integrar e homogeneizar seus princípios culturais e econômicos de acordo com critérios e padrões de conduta social próprios. Como apêndice do Estado, a escola foi convertida no instrumento privilegiado para introduzir (após o uso da violência física) as populações bárbaras a um até então inédito universo de significados e de valores. A partir desse princípio educativo que chamarei, apenas provisoriamente, de liberal-oligárquico, aparecia como clara e evidente a necessidade de disciplinar e qualificar as massas para que pudes sem participar da vida nacional (ou seja, para integrar cada um dos indivíduos que habitavam os territórios dos países em questão como membros das respectivas comunidades nacionais) e para incorporá-las, de forma controlada e restrita, a um sistema dado de dominação política (que, naquele tempo, excluía o voto uni versal, obrigatório e secreto). Não obstante, a construção social e histórica da noção de cidadania ultrapassou em muito os limites políticos e ideológicos 5 O estilo discursivo dos numerosos documentos e textos preparados por organismos de crédito e de cooperação internacional (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, CEPAL, etc.), orientados a promover e “recomendar” a “modernização” dos sistemas educacionais dos países em desenvolvimento, é um dos exemplos mais ilustrativos desta transformação terminológica.

PG.262 impostos pelos grupos de poder instalados no Estado. Pouco a pouco, ao longo do século XX — e sempre a partir das lutas democráticas dos setores sociais dominados — ela foi se tornando repleta de conteúdos e valores que, sob a rubrica de uma série de direitos, resguardaram os indivíduos e grupos desfavorecidos tanto da violência das relações econômicas assimétricas estrutu radas por um mercado puro, como da injustiça das relações

políticas estabelecidas pelo modelo de dominação oligárquica. Em primeiro lugar, a noção de cidadania foi marcada por um conjunto de direitos políticos individuais que, de maneira progressiva, foi dando novo significado à natureza e aos alcances democráticos do espaço público. Este processo, iniciado com declarações formais acerca da igualdade dos homens perante a lei, continuou com a conquista do sufrágio “universal” dos varões e se fechou com a incorporação das mulheres ao voto e, por meio dele, à vida política. Logo, foi anexado um conjunto de direitos coletivos mediante os quais os grupos sociais que constituíam as coletivida des nacionais foram autorizados a formar associações representativas legitimadas (partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e cívicos) para lutar pelos direitos de cada setor. Finalmente, outro grupo de direitos sociais encerrou a moderna designação de cidadania ao oferecer uma base legal que garantisse a vida digna de todos os habitantes do território e que minimizasse as conse qüências perversas e antidemocráticas (miséria, pobreza e marginalidade) das relações econômicas do capitalismo. Tenta-se destruir a imagem coletiva de uma sociedade de cidadãos que, em virtude de seus direitos, negocia e luta por seus interesses de grupo e pela democratização da vida econômica e social na arena política, em favor da imagem de uma sociedade sem cidadãos e de consumidores em competição. Ainda que a “ética do consumo” prometa um universo de livre escolha (de escolhas racionais e autônomas) para os indivíduos-consumidores, ao desconsiderar e ocultar as desigualdades e assimetrias envolvidas nas relações de poder e ao apagar o quadro que regula 6 Novamente, em alguns documentos amplamente difundidos de organismos internacionais, argumenta-se a favor das vantagens que supôe o que se denomina “moderna cidadania”. Entretanto, de “moderna” resta pouco, já que se suprime toda a consideração ao conflito e à política — temáticas prediletas da modernidade. Assim despojada, seria melhor chamá-la — ainda que soe paradoxal — “cidadania para o mercado”

PG.263 a política, o que em realidade garante e impõe é a reprodução a produção de sujeitos sociais com escassa autonomia na compre ensão e intervenção críticas no mundo social. Ainda que, a partir de suas próprias enunciações, os apologistas do mercado e consumo apareçam como militantes da “individualidade respon sável”, uma análise razoavelmente profunda das conseqüências implicações de suas propostas nos leva a afirmar sua vocação pan dissolver as subjetividades construídas historicamente pela maiorias e para produzir outras, caracterizadas por uma fort heteronomia e alienação (Santos, 1993). Em resumo: no contexto valorativo e ideológico definido pelo princípio educativo da Nova Direita, a escola é colocada — ainda que não exclusivamente — em um lugar estratégico e comc peça-chave: é receptora e ao mesmo tempo instrumento de uma patente política de reforma cultural de sinal regressivo e antide mocrático. Não obstante, superando as premissas redutivas de qualquer teoria da imposição (Apple, 1989), ainda é possível constatar certa força efetiva de tradições culturais, políticas e pedagógicas democratizadoras (aquelas levantadas pelas bandei ras do “bem comum” contra as do “interesse privado”) na cons tituição dos atores educacionais e materializada em suas lutas e resistências às pretensões dualízantes e marginalizantes dos neoconservadores e seus

aliados. Por isto, a escola ainda é um espaço social conflitivo e marcado por contraditórios processos de pro dução simbólica. A “crise da escola” pode ser entendida, deste modo, como parte de uma crise de sentido que, embora a através se, determinando as lutas que se dão em seu interior e em seu contexto imediato, também envolve a nomeação mais genérica do social, do possível e do desejável. PRINCÍPIO EDUCATIVO E CURRÍCULO OFICIAL Talvez um dos cenários educacionais onde a marca do princípio educativo neoliberal adquire maior densidade (e onde, portanto, a crise de sentido da escolaridade pública manifesta maior drama ticidade) seja o constituído pelo campo de definição, colocação em ação e atuação do currículo. E por este motivo que os educadores progressistas lhe devem atribuir um interesse particu lar em suas pesquisas e em suas lutas para a emocratização da PG.264 escola. Sobretudo a partir da constatação da tradição crítica de que o currículo pode ser considerado como um terreno de produção e criação simbólica e cultural que, conseqüentemente, atua como uma unidade geradora de sentidos, significados e sujeitos (Suárez, 1995; Barbosa Moreira & Silva, 1994). Em princípio, os projetos curriculares podem ser entendidos como objetos culturais, produzidos mediante a tradição seletiva (Williams, 1980) de um dado grupo social que, em função de relações de poder favoráveis, prioriza a inclusão hierarquizada de certos conteúdos e valores (próprios) como se fossem objetiva e universalmente válidos e legítimos, em detrimento de outros (alheios), aos quais desqualifica ou ignora: é aí que o princípio educativo opera, enquanto vontade cultural que se impõe em virtude de certa violência simbólica, de modo criativo e destruti vo. Por isso, o currículo também pode ser entendido como um instrumento de política pública e sua formulação pode ser vista como o resultado sintético de um (oculto) processo de debate ou de luta entre posicionamentos pedagógicos, sociais e políticos muitas vezes opostos e antagônicos. Pode-se compreender assim como a tradição seletiva que estrutura e organiza o currículo cumpre um papel central na tradução da política cio conhecimento oficial (Apple, 1994) nos contextos escolares. E a correia de transmissão da estratégia (de reforma) cultural dominante em direção a âmbitos microssociais específicos, destinados a materializar o processo de construção 7 Anthony Gidderis, em seu artigo “El estructuralismo, ei post-estructuralismo y la producción de la cultura” (1990) oferece uma minuciosa descriçáo das características fundamentais dos “objetos culturais”. Distinguindo-os das situações sociais de co-presença (interações face-a-face) ou da conversação informal, o autor os define como textos ou “artefatos que transcedem os contextos de estado/presença mas que são distintos dos objetos em geral, na medida em que incorporam formas de significação ‘ampliadas” (p. 280). Ao mesmo tempo, detalha os seguintes traços: a) implicam em um distanciamento entre o “produtor” e o “consumidor”; b) este último adquire uma importância significativa no processo de recepção e de interpretação dos conteúdos culturais do objeto em questão; e) são meios duradouros de transmissão através dos contextos e do tempo; d) supõem um meio de armazenamento e implicam modalidades de codificação específicas; e) estabelecem meios de

recuperação da informação armazenada; f) seu uso requer certa capacidade técnica para recuperar a informação armazenada. Finalmente, o autor acentua sua importância na sociedade moderna enquanto “introduzem novas mediaçóes entre a cultura, a linguagem e a comunicação” (p. 281). Embora o tratamento do currículo seja enriquecido mediante este panorama, por razões de pertinência e de espaço, deixo para outra oportunidade estender-me neste tema.

PG.265 hegemônica, mediante a conformação de subjetividades de acordo com os interesses e o projeto político global dos grupos de poder. Os conhecimentos, valores, regras, recursos e normas de compoi tamentos definidos pelo currículo oficial configuram, ainda qu sempre de maneira contraditória e conflitiva, um mandato soci lizador que, ao interpelar pedagógica e ideologicamente os suje tos, os constitui e os habilita instrumentalmente para perceber atuar em um dado universo significativo8. O mandato socializador do currículo representa, desta forma a versão escolarizada do princípio educativo dominante. Mas, po outro lado, a força socializadora do currículo nunca se afirma imprime impune e diretamente sobre os sujeitos. Esses opõer leituras diferenciadas e mediações a essa transmissão (e, em algun casos, inclusive resistências) fundadas em suas próprias forma culturais ativas de autoconstrução (Willis, 1993). O resultad deste processo (isto é, a constituição dos indivíduos) envolve compromete necessariamente a capacidade criativa e interpretativa dos agentes em formação como um dos momentos definido res da identidade coletiva e individual. As experiências da vida grupal (étnica, de classe, de gênero, de geração, etc.), as reminiscências de certos aspectos da própria biografia, fragmentos d memória social e histórica e, inclusive, certos conteúdos culturai incorporados sob a forma de capital cultural são elementos que consciente ou inconscientemente, exercem um papel significativ na representação e atuação do currículo. Não obstante, o currículo oficial constitui o script em relação ao qual os atores representarão seus papéis, delimitando o espaçc do possível e do desejável. Ou, em outras palavras: ainda que o desenvolvimento efetivo das práticas escolares (sociais, culturais. pedagógicas) prescritas pelo currículo oficial implique sempre a existência (paralela) de um currículo representado, atuado e vivido (Suárez, 1994) — que supõe a atuação criativa e relativamente autônoma dos atores escolares —, como instrumento da política cultural oficializada, é o mandato socializador dominante o que configura e regula o espaço social e pedagógico de co-presença 8 No excelente ensaio de Therborn (1987) há uma minuciosa descrição de interpelações ideológicas realizadas pelo Estado. Em Outro trabalho (Suárez, 1994), trabalhei as interpelações ideológicas desdobradas a partir da atuação do currículo, enquanto espaço e mandato socializador de sujeitos pedagógicos.

PG.266 (relações face-a-face) no qual intervêm com relativa eficácia e silenciosamente as determinações políticas e culturais hegemônicas das integrações maiores. A posição que ocupam os adultos qualificados (professores) para a reprodução e transmissão de uma seleção particular e arbitrária (social e histórica) de uma cultura, os modos considerados legítimos para fazê-lo e avaliá-lo, a posição das crianças-alunos no contexto de diversas situações de ensino (relativamente) controladas, as relações entre ambos, as relações destes

com o conhecimento válido e legítimo (oficial), com os valores, são apenas alguns dos aspectos da vida cotidiana escolar que aparecem marcados pelos sentidos contidos nesses artefatos normativos de regula ção política e moral. Pode-se dizer, então, que os movimentos dos indivíduos para constituir autonomamente sua identidade social e pedagógica dentro das margens institucionais da escola são direcionados e controlados pelas afirmações e sanções culturais, ideológicas e axiológicas que estabelecidas pelas definições curriculares oficiais. Na medida em que a ética do livre mercado e do consumo consiga penetrar o sentido do currículo, o fundamento mesmo das práticas escolares será transformada pela predominância das mercadorias culturais e pelas relações sociais e pedagógicas que estas determi nam. Por isso, a luta por uma definição coletiva do currículo — isto é, pela democratização dos critérios de seleção, classificação, hierarquização e organização de conhecimentos e de valores a incluir no currículo — é, antes de tudo, uma luta política e ética. NOTAS PARA A RECONSTRUÇÃO DO DISCURSO PEDAGÓGICO CRÍTICO O desafio enfrentado pelos educadores progressistas e de esquer da face ao ataque da escola pública é extremamente difícil. A situação hoje é ainda mais extrema e perigosa que aquela que aparecia definida pela tendência dualizante e antidemocrática impressa nos projetos dos grupos de poder dominantes que se moviam dentro de limites ideológicos, culturais e éticos próximos do liberalismo clássico. Sobretudo porque, então, a lógica que articulava os discursos e as práticas políticas e político-educativas dominantes respondia a uma racionalidade explorada, conhecida, cotidianamente combatida. A análise de tal realidade permitia PG.267 fazer uso de conceitos e categorias críticas cunhadas por uma longa tradição teórica acostumada a discutir e a lutar contra o capitalismo e seus ideólogos. Tratava-se, então, de revelar o caráter reprodutor de identidades sociais e de subjetividades a elas relacionadas, no aparato escolar. Mas a existência mesma da escola pública não era posta em dúvida. No fundamental (isto é, em sua funcionalidade para perpetuar relações de poder assimétricas), a direita também a defendia como um espaço próprio, adequado para cumprir com seus próprios propósitos ou, no máximo, plausível de ser encaminhada segundo seus próprios interesses e projetos. Frente às inéditas transformações do capitalismo de fim de século, à força ideológica das argumentações e propostas de seus novos intelectuais orgânicos e à queda de certos paradigmas teóricos próprios, os educadores críticos enfrentam hoje um duplo desafio. Por um lado, devem contestar com urgência o ímpeto arrasador da ofensiva neoconservadora e neoliberal, mediante a produção de um discurso pedagógico que expresse o questiona mento radical da política de reforma cultural condensada no que denominei princípio educativo da Nova Direita, bem como a delimitação conceitual e prática de espaços estratégicos para a luta e a resistência das maiorias e dos grupos subordinados. Por outro — ainda que constituindo uma condição de possibilidade do anterior —, devem (re)construir

novas categorias analíticas e interpretativas que permitam vincular a compreensão dos processos, relações e práticas educacionais institucionalizadas com os sentidos culturais (e também pedagógicos) que se constroem fora da escola, mas que a incluem e a determinam. As contribuções de uma teoria cultural crítica (como as realizadas já há vários anos pelos Estudos Culturais Britânicos) são imprescindíveis para esta empresa de reconstrução e ampliação teórica. Além disso, para que esse discurso pedagógico adquira urr caráter radicalmente democratizador e contribua para a elabora ção de uma plataf orma moral coletiva para a defesa e a luta pelo direitos cívicos, políticos e sociais dos grupos sociais (majoritários deslocados pela proeminência da ética do livre mercado e dc consumo, também é necessário redefinir a linguagem da éticc pública e da cidadania. Trata-se não apenas de estimular a memória social e histórica dos setores subordinados para recuperar PG.268 sentido democrático de velhas lutas e velhas conquistas, mas também de promover, ampliar e aprofundar o debate coletivo em torno de valores que priorizem e reivindiquem a igualdade, o respeito às diferenças, a solidariedade, o bem público, a justiça. Somente neste quadro, a luta para contestar a política do conhe cimento oficial moldada nas propostas curriculares e para impor critérios de seleção e organização de conteúdos de caráter mais democráticos começarão a ter um sentido político e não mera mente técnico. Finalmente, os educadores radicais também deverão estar atentos à emergência silenciosa de focos de resistência e de oposi ção inusitados. Assim como a lógica de conquista cultural da Nova Direita tem tido certo êxito ao transformar a arena de luta, é possível pensar (e a nova teoria educacional crítica terá que estar preparada para isto) que as forças sociais e políticas democráticas e progressistas encontrarão e percorrerão — como sempre o fizeram, em virtude de sua capacidade criativa e de ação relativa mente autônoma — novos caminhos para construir um presente e um futuro mais justos e dignos de serem vividos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, M. Maestros y Textos. Barcelona, Paidós, 1989. APPLE, M. A Política do Conhecimento Oficial: faz sentido a idéia de um currículo nacional? me Barbosa Moreira & Silva (Orgs.). Currículo, Cultura y Sociedade, São Paulo, Cortez, 1994. BARBOSA MOREIRA, A. F. & SILVA, T.T. da. Sociologia e Teoria Crítica do Currículo: uma introdução. me Barbosa Moreira & Silva (Orgs.). Currículo, Cultura y Sociedade. São Paulo, Cortez, 1994. CASTELLS M. Flujos, redes e identidades: un teoría crítica de la sociedade infor macional. In: VVAA. Nuevas perspectivas críticas eu educación, Barcelona. Paidos, 1994. CORAGGIO, J.L. Economía y educación eu América Latina. Papeles del CEEAAL, 4, 1992. FRIGOTTO, G. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. Inc Gentili & Silva, op. cit., 1994b.

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Tradução de Vânia Paganini Thurler. ♦ Daniel H. Suárez é professor da Universidade de Buenos Aires. PG.270 10 Micheael W. Apple & Annita Olliver INDO PARA A DIREITA A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DE MOVIMENTOS CONSERVADORES Por todo o país (Estados Unidos), os conservadores têm forma do organizações nacionais para lutar contra o “conhecimento oficial” das escolas. Essas organizações com freqüência alcançam grupos locais de “cidadãos preocupados” e oferecem assistência financeira e legal em suas batalhas contra os sistemas escolares, nos níveis estadual e local. Os grupos Citizens for Excelience in Education, Eagle Forum, Western Center for Law and Religious Freedom e Focus on the Family estão entre os mais ativos. Além disso, Mel e Norma Gabler desenvolveram um sistema de oposição que auxilia pais e grupos de direita em todo o país nas suas tentativas de desafiar as práticas e políticas educacionais e de mudar o conteúdo dos livros ou tirá-los das escolas. A “Direita Cristã” se tornou um movimento poderoso que cresce nos Estados Unidos, um movimento que tem conseqüências importantes para deliberações sobre política educacional, currículo e ensino (Del fattore, 1992). Pode ser tentador ver a marca dessas organizações em todos os lugares. Na verdade, este seria um erro grave, não apenas empiricamente, mas também conceitual e politicamente. Embora haja intenções em jogo, não podemos ver os movimentos direitis tas de forma apenas conspiratória. Se fizermos isso, não só reduziremos a complexidade que circunda a política de educação, mas nos refugiaremos em oposições binárias de bom e mau. Desse PG.271 modo, ignoraríamos os elementos de possível lucidez contidos ei ilgizns grupos de opos4ão (até mesmo os de direita) e ignoraríamos também os lugares onde poderiam ter sido tomadas decisões que não contribuíssem para o seu crescimento.

A questão básica desta pesquisa é: como a direita religiosa cresce? Sustentamos que isto só pode ser completamente com preendido quando enfocamos as interações, que muitas veze ocorrem num nível local, entre as instituições do estado e as vidas diárias de pessoas comuns. De forma alguma desejamos minimizar a implicações de crescimento dos movimentos sociais de direita. Na verdade, restauração conservadora está tendo influências verdadeiramente negativas nas vidas de milhões de pessoas em vários países (Apple 1993a; Katz, 1989; Kozol, 1991). Em vez disso, queremos da uma visão mais dinâmica de como e por que tais movimento realmente são vistos como atraentes. Com muita freqüência, a análises atuais não só tomam como dado precisamente aquilo que tem que ser explicado, mas colocam toda a culpa pelo crescimento das posições de direita sobre as pessoas que “se tornam direitistas”. Ninguém dá atenção aos conjuntos maiores de relações qu podem impelir as pessoas em direção a uma posição mais agressivamente de direita. E exatamente este nosso argumento. A pessoas muitas vezes “se tornam direitistas” devido às suas intera ções com instituições insensíveis e indiferentes. Desse modo, parte de nosso argumento é que há uma íntima ligação entre a forma como o estado está estruturado e age e a formação de movimento e identidades sociais. No que se segue, combinamos elementos de análises neo gramscianas com elementos de análises pós-estruturais. Nosso objetivo é, em parte, demonstrar como as primeiras —com sei foco no estado, na formação de blocos hegemônicos, em nova alianças sociais e na geração de consentimento — e as últimas — com seu foco no local, na formação da subjetividade e da identidade e na criação de posições-de-sujeito — podem ser utilizada de maneira criativa e conjunta para iluminar elementos crucial da política da educação (Curtis, 1992). Subjaz a essa análise uma posição particular sobre a direção que a pesquisa crítica deveria tomar. Em outras publicações, um de nós argumentou que em grande parte da literatura crítica atual “nossas palavras adquiriram asas”. Acrescentamos cada vez mais camadas teóricas, sem chegar nunca a tratar com seriedade as complexidades reais e existentes da escolarização. Isso não é um argumento contra a teoria. Na verdade, significa assumir a posição de que nossas eloqüentes abstrações ficam extremamente enfraquecidas se não tiverem como referência o suposto objeto dessas abstrações — a escolarização e suas condições econômicas, políticas e culturais de existência. Nesse sentido, é bom que nos deixemos tocar pelo cotidiano que envolve a política das instituições educacionais. Na ausência disso, muitos “teóricos críticos da educação” cunham certos neologismos que ficam em moda, mas permanecem por demais desligados das vidas e lutas de pessoas e instituições reais (Apple, 1988). Neste ensaio, esperamos superar essa tendência. FORMAÇÕES “ACIDENTAIS” Como afirmam Whitty, Edwards e Gewirtz, em sua análise do crescimento de iniciativas conservadoras tais como as faculdades locais de tecnologia na Inglaterra, as políticas direitistas e suas consequências nem sempre são o resultado de iniciativas cuidadosamente planejadas (Whitty, Edwards & Gewirtz, 1993). Muitas vezes elas têm um caráter acidental. Isso não significa dizer que não haja intencionalidade. O que queremos dizer é que as especi ficidades históricas das situações locais e as complexidades das múltiplas relações de

poder em cada local fazem com que as políticas conservadoras sejam altamente mediadas e tenham con sequências inesperadas. Se isto acontece em muitos casos de tentativas explícitas de levar a política e a prática educacionais para uma direção conservadora, é ainda mais verdadeiro quando examinamos a forma como sentimentos direitistas crescem entre atores locais. A maioria das análises sobre a “direita” pressupõem uma série de coisas. Com muita freqüência, elas pressupõem um movimento ideológico unitário, vendo-o como um grupo relati vamente sem contradições, ao invés de vê-lo como um conjunto complexo de diferentes tendências, muitas das quais estão numa relação tensa e instável umas com as outras. Muitas análises também consideram “a direita” como um “fato”, como algo dado. PG.273 Nessas perspectivas ela pré-existente como uma força de estrutura çâo compacta que é capaz de fazer incursões no cotidiano e em nossos discursos, de forma bem planejada. Essa forma de análises toma como dada precisamente a questão — uma das mais importantes — que precisa ser investigada como a direita se forma? Em um trabalho anterior, argumentamos que as política direitistas são feitas, muitas vezes, de compromissos tanto entre direita e outros grupos quanto entre as várias tendências dentro da aliança conservadora. Assim, os grupos religiosos fundamentalistas, os populistas os autoritários, os neoliberais, os neoconservadores e uma fração particular da nova classe médi encontrar todos, um lugar sob o guarda-chuva ideológico (fornecido pelas amplas tendências de direita. Também mostramos como os discursos conservadores agem de maneiras criativas par desarticular conexões anteriores e rearticular grupos de pessoas nesse movimento ideológico mais amplo, ao fazer conexões con as esperanças, medos e condições reais do cotidiano das pessoas e ao fornecer explicações aparentemente “sensatas” para os problemas atuais pelos quais as pessoas estão passando (Apple 1993a; Apple, 1993b). Entretanto, isto também dá a impressão de que o criativo projeto educacional no qual a direita est engajada — convencer um número considerável de pessoas assunirem à aliança mais ampla —abre seu caminho, no nível local a passos planejados e racionais. E possível que não seja bem assim. Queremos argumentar que, em muitos casos, experiências e acontec muito mais mundanos subjazem no nível local, à virada direitista. Embora a direita esteja realmente engajada em esforços planejados para levar nossos discursos e práticas para direções particulares seu êxito em convencer as pessoas depende daquilo que Whitty, EdwardS e Gewirtz chamaram de “acidentes”. Naturalmente, os “acidentes” muitas vezes obedecem a um padrão e são, eles próprios resultados de relações complexas de poder. Mas o argumento continua válido. A aceitação de tendências conservadoras nem sempre obedece a formas planejadas de convencimento e pode envolver tensões e sentimental contraditórios entre as pessoas que, ao fim acabam se tornando conservadoras. PG.274 Descreveremos, primeiramente, o conjunto de suposições, medos e tensões que subjazem à direita cultural e religiosa nos Estados Unidos. Então, que as formas pelas quais o estado burocrático têm-se desenvolvido estão idealmente feitas para confirmar esses medos e tensões. Em terceiro lugar, exem plificaremos esses argumentos focalizando um caso específico, no qual uma controvérsia sobre livros didáticos levou à formação de sentimentos direitistas numa comunidade local. Por fim, quere mos sugerir algumas

implicações importantes desta análise para a política da educação e para os esforços de oposição ao crescimento de movimentos de ultra-direita na educação. UM MUNDO PERIGOSO Há uma história contada por uma professora sobre uma discussão que surgiu em sua turma de escola primária. Alguns/algumas estudantes estavam conversando, de forma bastante agitada sobre algumas “palavras sujas” que tinham sido rabiscadas na parede de um prédio durante o Dia das Bruxas (Halloween). Mesmo depois de a professora ter pedido às crianças que se preparasem para sua lição de linguagem, a maioria delas continuou a falar sobre “aquelas palavras”. Como geralmente acontece, a professora percebeu que isto não poderia ser totalmente ignorado. Ela perguntou a seus/suas alunos/as o que tornava as palavras “sujas”. Isto provocou uma longa e produtiva discussão entre aquelas crianças de 2ª série sobre como certas palavras eram usadas para magoar as pessoas e como “isto não era muito correto”. Durante toda a discussão, um garoto não tinha dito nada, mas era evidente que estava profundamente envolvido em ouvir. Finalmente, ele levantou a mão e disse que conhecia “a palavra mais suja do mundo”. Estava constrangido demais para dizer a palavra em voz alta (e também sabia que seria inadequado até mesmo proferi-la na escola). A professora pediu-lhe que viesse mais tarde e sussurrasse a palavra em seu ouvido. Durante o 1 Essas suposições talvez não sejam totalmente as mesmas em outras nações, especialmente com respeito à força relativa do fundamentalismo religioso. Além disso, não há uma concordância absoluta entre todos os segmentos da direita cultural e religiosa. Para facilitar a apresentação aqui, entretanto, desconsideramos essas diferenças, ao menos por enquanto.

PG.275 intervalo, ele se aproximou da professora, colocou sua cabeça perto da dela e, silenciosamente, secretamente, disse “a palavra”. A professora esforçou-se para não romper em gargalhadas. A palavra suja, a palavra que jamais poderia ser proferida, era “estatística”. O pai do menino trabalhava para uma estação de rádio local e toda vez que as pesquisas de audiência eram divul gadas ele dizia com raiva: “Essas malditas estatísticas!” O que poderia ser mais sujo? Para um grande número de pais e ativistas conservadores, outras coisas são muito mais “sujas”. Discussões sobre o corpo, sobre a sexualidade, sobre a política e sobre valores pessoais ou sobre quaisquer das outras questões sociais em torno desses tópicos constituem uma zona de perigo. Trabalhar com elas numa escola, seja qual for a maneira, não é uma coisa sensata. Mas, se, de qualquer forma, vão ser trabalhadas, esses ativistas conservado res exigem que isso seja feito no contexto das relações tradicionais de relações de gênero, da família nuclear, da economia de” livre mercado “ e de acordo com textos sagrados como a Bíblia. Tomemos a educação sexual como exemplo. Para os conservadores culturais, a educação sexual é uma das formas extremas do “humanismo secular” nas escolas. Ela é atacada pela Nova Direita como uma forte ameaça ao controle que os pais possuem nas

escolas e também por ensinar valores que “não são tradicionais”. Para a coalizão de forças que compõem a Nova Direita, a educação sexual pode destruir a moralidade familiar e religiosa, “ao encorajar a masturbação, o sexo antes do casamento, o sexo em excesso, o sexo sem culpa, o sexo por prazer, o sexo homossexual, o sexo”(Hunter, 1988, p.63). Esses grupos a vêem como educação para o sexo e não sobre sexo, o que criará uma obsessão que pode anular a “moralidade cristã” e ameaçar os papéis sexuais determinados por Deus (Hunter, 1988). Estes foram elementos importantes na intensa controvérsia sobre o Rainbow Curriculum, na cidade de Nova Jorque, por exemplo, e certamente contribuíram para os bem sucedidos movimentos para demitir o secretário de educação da cidade. A visão dos papéis de gênero que há por detrás desses ataques é impressionamte. Allen Hunter, um dos observadores mais perceptivos da agenda conservadora, argumenta que a Nova Direita PG.276 vê a família como uma unidade orgânica e divina que “determina o egoísmo masculino e a abnegação feminina.”(Hunter, 1988, p.lS). Como ele diz: Uma vez que o sexo é divino e natural ... não há qualquer espaço para um conflito político legítimo... Dentro da família, mulheres homens — estabilidade e dinamismo —estão harmoniosamente fundidos desde que não sejam perturbados pelo modernismo, pelo liberalismo, pelo feminismo e pelo humanismo, que não só ameaçam a masculinidade e a feminilidade diretamente, mas também através de seus efeitos sobre as crianças e os jovens. ..“Mulheres verdadeiras’, isto é, mulheres que vêem a si mesmas como esposas e mães, não ameaçarão a santidade do lar buscando sua independência. Quando homens ou mulheres desafiam esses papéis sexuais, eles rompem com Deus e com a natureza; quando os liberais, as feministas e os humanistas impedem que eles cumpram esses papéis, estão enfraquecendo os alicerces divinos e naturais sobre os quais a sociedade se apóia. Tudo isso está relacionado com a sua visão conservadora de que a própria escolarização pública é um local de grande perigo (Apple, 1994). Nas palavras do ativista conservador Tim La Haye, “a educação pública moderna é a força mais perigosa na vida de uma criança: religiosamente, sexualmente, economicamente, patrioticamente e fisicamente”(La Haye, cit. in: Hunter, 1988, p.S7). Isso está ligado ao sentimento de perda que o conservador cultural tem em relação à escolarização e à comunidade. Até recentemente, na perspectiva da Nova Direita, as escolas eram extensões do lar e da moralidade tradicional. Os pais podiam confiar seus filhos às escolas públicas, uma vez que elas eram controladas localmente e refletiam valores bíblicos 2 É importante não ver tais posições como simplesmente “irracionais”. Para muitas mulheres da direita, por exemplo, tal opinião é totalmente sensata, dadas as condições em que vivem. Joan Sherron DeHart compreende isso de forma correta quando declara que “devemos ver os protestos de mulheres antifeministas como respostas racionais de pessoas que vivem num mundo intensamente classificado pelo gênero e profundamente precário — um mundo onde identidade, legitimidade social, viabilidade econômica e ordem moral estão profundamente enraizadas em categorias convencionais de gênero” (DeHart, 1991, p.26l).

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e paternos. Entretanto, tomadas por forças elitistas e aliení genas, as escolas agora se interpõem entre os pais e os filhos. Muitas pessoas sentem a fragmentação da unidade entre a família, a igreja e a escola como uma perda do controle da vida cotidiana, dos seus filhos e da América. Na verdade, a Nova Direita afirma que o controle da educação por parte dos pais é um princípio bíblico, pois “no plano divino, a responsabilidade básica de educar os jovens cabe ao lar e, diretamente, ao pai”. (Hunter, 1988, p.57).

Pode-se ver aqui claramente, por que, a educação sexual se tornou uma questão fundamental para os movimentos conservadores. Sua existência mesma, e especialmente seus impulsos mais pro gressistas e francos, ameaçam elementos cruciais da visão de mundo desses pais e ativistas. Naturalmente, questões sobre sexualidade, gênero e corpo não são o único foco de atenção dos conservadores culturais. Essas preocupações estão ligadas a uma gama muito maior de questões sobre o que constitui o conteúdo escolar “legítimo”. E nessa arena mais ampla de preocupações sobre o conhecimento escolar que os ativistas conservadores conseguiram algum êxito em pressionar os editores de livros didáticos e também alterar certos aspectos das políticas estaduais de educação. Isto é importante, uma vez que o livrodidático ainda continua sendo a definição dominante do currículo nas escolas, não só nos Estados Unidos, mas em muitas outras nações (Apple & Christian-Smith, 1991). Por exemplo, a força desses grupos pode ser vista na “auto- censura” adotada pelas editoras. Dessa forma, por exemplo, algumas editoras de antologias literárias para a escola secundária têm concordado em incluir o discurso 1 Have a Dream de Martin Luther King, mas só depois de retirar qualquer referência ao intenso racismo existente nos Estados Unidos (Dalfattore, 1992, p. 123). Um outro exemplo é dado pela lei do livro didático no Texas, a qual obriga a utilização de livros-didáticos que enfatizem o patriotismo e a autoridade e desestimulem a “contestação”. Como a maioria das editoras de livros didáticos planeja o conteúdo e organização de seus livros de acordo com o que é aprovado num pequeno número de estados populosos, que em essência aprovam PG.278 e compram seus textos em todo o estado, isto dá ao Texas (e à Califórnia) um imenso poder na determinação do que será considerado como conhecimento legítimo em todo o país (Apple, 1988; Apple, 1993a; Apple & Christian-Smith, 1991). Citando a legislação do Texas sobre livros didáticos, o autor de um recente estudo descreve essa controvérsia da seguinte forma: “O conteúdo do livro didático deve promover a cidadania e a compreensão das qualidades essenciais e das vantagens do sistema da livre empresa, enfatizando o patriotismo e o respeito pela autoridade constituída e promovendo o respeito pelos direitos individuais”. Os livros didáticos não devem “incluir extratos ou obras que encorajem ou aprovem a desobediência civil, a agitação social ou o desrespeito à lei”, nem devem “conter idéias que sirvam para enfraquecer a autoridade” ou “que possam causar situações constrangedoras ou interferência na atmosfera de aprendizado da sala de aula”. Por fim, os livros didáticos aprovados para uso no

Texas “não devem encorajar estilos de vida que se afastem dos padrões geralmente aceitos na sociedade”. O endosso dado pela lei do Texas à livre empresa e aos estilos de vida tradicionais e sua proibição da ilegalidade e da rebelião são regularmente citados pelos ativistas do livro didático para apoiar seus esforços para retirar materiais que, do seu ponto de vista, promovem o socialismo, a imoralidade ou a desobediência (Dalfattore, 1992, p.l39).

Fica claro aqui que a “família” é o bloco edificador da sociedade, “a base sobre a qual toda a cultura se sustenta”. Ela dá à civilização seu fundamento moral. A força e a estabilidade da família, em essência, determinam a vitalidade e a vida moral da sociedade mais ampla (Klatch, 1987, p. Uma das maneiras pela qual ela garante isso é através de seu papel central na transmissão de valores morais e traços de caráter adequados às crianças, valores considerados como capazes de constituir uma oposição à “decadência moral” vista ao nosso redor, em toda parte. Entretanto, não é apenas a posição da família como fonte de autoridade moral que é importante neste caso. A família e seus tradicionais papéis de gênero exigem que “as pessoas ajam em PG.279 favor do bem-estar geral”, ao moderar a busca do que é tão importante no (supostamente) mundo público masculino (Klatch, 1987, pp.28-9). Rebecca Klatch observa que: Está implícita nessa imagem da família a concepção conser vadora social da natureza humana. Os seres humanos são criaturas de apetites e j ilimitados. Deixados à sua própria vontade, eles transforma o mundo num caos de paíxõeS insaciáveis, assolado por um egoísmo estreito. Apenas a autoridade moral da família ou da igreja é capaz de limitar as paixõeS humanas, transformando 05 interesses egoístas em bem-estar geral. A sociedade ideal é aquela que integra os indivíduos numa comunidade moral, unidos pela fé, pelos valores morais comuns e pela obediência aos preceitos da família, da igreja e de Deus (Klatch, 1987).

Nesta forma de conceber o mundo, todos os problemas da nação são atribuídos à decadência moral. Os sinais da decadência estão em toda parte: “na promiscuidade sexual, na pornografia, no aborto legalizado e no deslocamento do casamento, da família e da maternidade” (Klatch, 1987, p. Mesmo a pobreza genera lizada é vista, nesta perspectiv como sendo, na origem, um problema moral, mas não da forma definida pelos progressistas, que vêem a pobreza como a conseqüência de políticas sociais com pouca preocupação ética pelos seus efeitos sobre os pobres e a classe trabalhadora. Em vez disso, como afirmou George Gilder num discurso por ocasião da 0 da derrota final da Emenda dos Direitos Iguais: “os problemas cruciaiS dos pobres nos Estados Unidos fl são materiais. Isto é algo que devemos compreender. Os pobres nos Estados Unidos têm sido mais ricos que os 20% mais ricos de toda a população, durante a maior parte da história do país. Eles são algumas das pessoas mais ricas no mundo. Os problemas cruciais dos pobres não são materiais, mas espirituais” (Gilder, citado em Klatch, 1987, pp. 28-9). Dada essa definição do problema a pobreza e outros aspectos da decadência moral, tão visíveis em nossas principais instituições, podem ser solucionados através da e moral, da

oração, do arrependimento e de um claro reconhecimento da centralidade da crença religiosa, da moralidade e da “decência” (Klatch, 1987, p.29). PG.280 Não devemos aceitar facilmente a visão de escolarização — e a idéia da realidade que está por trás dessa visão — que tais movimentos adotam. Talvez isto possa ser mais bem compreendido através de uma carta enviada aos pais e ativistas conservadores pelo EagleForum, um dos grupos de direita mais ativos, um grupo que está associado com Phyllis Schlafly. A seguinte carta é encontrada em todos os sistemas escolares nos Estados Unidos. Ela tem o formato de uma notificação formal sobre os direitos que os pais têm nos conselhos escolares. Para: Presidente do Conselho Escolar: Prezado Sr. Sou o pai (ou a mãe) de __________ que freqüenta a Escola ___________ De acordo com a legislação americana e as decisões dos tribunais, os pais têm a responsabilidade básica pela educação de seus filhos e os alunos possuem certos direitos que as escolas não podem negar. Os pais têm o direito de assegurar que as crenças e os valores morais de seus filhos não sejam enfraquecidos pelas escolas. Os alunos possuem o direito de ter e manter seus valores e padrões morais sem manipulação direta ou indireta pelas escolas, através dos currículos, livros didáticos, materiais audiovisuais ou tarefas suplementares. Portanto, por meio desta venho requerer que meu filho não seja envolvido em nenhuma das atividades ou materiais da escola lista dos abaixo, a não ser que primeiro eu tenha revisado esses materiais e tenha dado meu consentimento escrito para seu uso: exames, testes ou pesquisas psicológicas e psiquiátricas que sejam projetados para obter informações sobre atitudes, hábitos, traços, opiniões, crenças ou sentimentos de um indivíduo ou grupo; — tratamento psicológico e psiquiátrico que seja projetado para influenciar as características comportamentais, emocionais ou atitudinais de um indivíduo ou grupo; — clarificação de valores, uso de dilemas morais, discussão de padrões morais e religiosos, discussões livres ou com encenação de situações envolvendo assuntos morais e jogos de sobrevivência, incluindo exercícios de decisões entre vida/morte; ensino de temas que estimulem a morte, incluindo aborto, eutanásia, suicídio, uso de violência e discussões sobre a morte e sobre morrer; — currículos que tratem de álcool e drogas; PG.281 — instrução sobre guerra nuclear, política nuclear e jogos nucleares na classe; — currículos que promovam o anti o governo internacional ou o globalismo;

— discussão e avaliação sobre relações inter-pessoais, discussões das atitudes frente aos pais e à paternidade; — educação sobre sexualidade humana, incluindo sexo antes do casamento, adultério, contracepção, aborto, homossexualismo, sexo e casamentos em grupo, prostituição, incesto, masturbação, bestialismo, divórcio, controle da população e os papéis dos homens e das mulheres; comportamentos e atitudes sexuais do estudante e da família; — pornografia e quaisquer materiais contendo palavrões ou que sejam sexualmente explícitos; — técnicas de fantasias guiadas; técnicas hipnóticas; imagens e estudo da sugestão; — evolução orgânica, incluindo a idéia de que o homem se desenvolveu a partir de espécies de seres vivos anteriores ou inferiores; — discussões sobre a bruxaria e o oculto, o sobrenatural e o misticismo oriental; — filiações e opiniões políticas do estudante e da família; crenças e práticas religiosas pessoais; — problemas mentais e psicológicos e comportamentos de auto-incriminação potencialmente constrangedores para o estudante e para a família; — avaliações críticas de outros indivíduos com quem a criança tem relações familiares; — relações privilegiadas e análogas legalmente reconhecidas, como as dos advogados, médicos e ministros; — renda, incluindo o papel do estudante nas atividades e finanças da família; — testes de personalidade náo-acadêmicos; questionários sobre a vida e atitudes pessoais e da família; — tarefas autobiográficas, livros de registro e diários pessoais; — incidentes plane jados de auto-revelação; treino da sensibilidade sessões de grupos de encontro, debates, técnicas do círculo mágico auto-avaliação e autocrítica; estratégias projetadas de auto-revela ção (ex: zig-zag); — sociogramas; sociodrama; psicodrama; caminhadas com o olhos vendados; técnicas de isolamento. O propósito desta carta é preservar os direitos do meu filho, d acordo com a Emenda de Proteção dos Direitos do Aluno ( a PG.282 Emenda Hatch) ao Lei Geral de Diretrizes da Educação e de acordo com seus regulamentos publicados no Diário Oficial de 6 de setembro de 1984 e que entrou em vigor em 12 de novembro de 1984. Esses regulamentos fornecem um procedimento para entrar com processos judiciais, primeiramente em nível local e, depois junto ao Departamento Americano de Educação. Se a escola se recusar voluntariamente a colaborar pode ter seus fundos federais retirados. Respeitosamente, peço-lhe que me envie uma resposta a esta carta, anexando uma cópia de sua declaraçáo de procedimentos para requerimentos dos pais, que notifique todos os professores do meu filho, e mantenha uma cópia desta carta no arquivo permanente do meu filho. Muito obrigado pela sua cooperação. Atenciosamente... Fica claro nesta carta o quanto o estado é desacreditado. Aqui, a escola é realmente um local de imenso perigo. A gama de proibições tratadas demonstra o estado de alarme desses pais e ativistas e as razões pelas quais eles querem examinar com tanta minúcia aquilo que seus filhos estão supostamente vivenciando nas escolas. Nas mentes dos conservadores,

levantar essas objeções não constitui uma censura; significa proteger toda a gama de coisas que são o centro de sua essência. FORMAÇÃO DO ESTADO E CONTROLE BUROCRÁTICO É no conflito em torno dessas questões que novos segmentos do estado são formados. Freqüentemente empregamos uma visão reificada do estado. O estado é visto como uma coisa. Ele simples mente está lá. Entretanto, em todos os níveis, o estado está em formação. Além de ser uma arena onde diferentes grupos lutam para legitimar e instituir suas próprias idéias e discursos sobre suas necessidades, o estado é, ele próprio, (Fraser, 1989), formado e transformado tanto no seu conteúdo quanto na sua forma por essas lutas. Por todo o país, os distritos escolares estabeleceram mecanis mos para regular os conflitos em torno do conhecimento oficial. Como mostramos, os movimentos sociais populistas de direita, especialmente os fundamentalistas cristãos, criaram objeções fun damentais (sem intenção de trocadilho) a uma ampla gama de currículos, pedagogias e procedimentos de avaliação. Assim, por exemplo, os livros didáticos de leitura e literatura são questionaPG.283 dos por causa de seu humanísmo secular”, de seu favorecem do socialismo” do cultismo, por sua ênfase excessiva na cultura da minoria e até mesmo por seu suposto apoio ao vegetaria (Daifattore 1992). É importante focalizar as controvérsias em torno dos livros didáticos, por uma série de razões. Primeiramente, na ausência de um currículo nacional oficial e explícito UOS Estados Unidos, o livro didático padronizado que em parte é regulado e orientado por sua adoção pelos estados, fornece grande parte do quadro de referência para um currículo nacional oculto (Apple, 1993 a; Apple & Christia mith, 1991). Em segundo lugar, mesmo que muitos/as professores/as usem os livros didáticos como um ponto de partída em vez de algo que se deva seguir servilm acontece que os/as professores/as nos Estados Unidos realmente usam, de forma notável, o livro como o artefato fundamental da sala de aula. Em terceiro lugar, a ausência de um currículo nacional codificado e a história do sentimento populista aqui significa que muitos dos protestos mais poderosos sobre o que conta como conhecimento oficial nas escolas têm centrado no próprio livro didático. Ele fornece um ponto de apoio ideal para revelar a dinâmica que está por trás das políticas culturais da educação e dos movimentos sociais que as formam e que, ao mesmo tempo, são por elas formados. Dado o poder desses grupos muitos distritos escolares têm organismos e procedimentos padronizados para lidar “com eficiência e segurança” com esses repetidos questionamentos. Um dos efeitos de tais procedimentos é que, com freqüência, as instuições constroem os qustionamentos ao conhecimento oficial de uma forma muito particular — como censura e como se partissem dos novos grupos organizados de direita. Assim, o aparato educacional do estado se expande como um mecanismo defensivo para se proteger contra essa pressão populista. Isto tem implicações teóricas e políticas para a forma como vemos o papel do estado na política da educação, pois é no crescimento de tais procedimentos burocráticos e no conserquente lapso de tempo que ele leva para administrar

os questionamentos que a direita com freqüência encontra solo fértil. Para entender isso, preciso dizer mais algumas coisas sobre como deveríamos ver o estado. PG.284 “Uma forma melhor de estudar o estado é vê-lo como um processo” (Curtis, 1992, p.9). Nas palavras de Bruce Curtis, a formação do estado envolve “a centralização e a concentração de relações de força e autoridade econômicas e políticas na socieda de”. A formação do estado envolve, tipicamente, o surgimento ou a reorganização de monopólios dos meios de violência, da fixação de impostos, da administração e dos sistemas simbólicos (Curtis, 1992, p.5). Em essência, a formação do estado está relacionada com a criação, estabilização e normalização das relações de poder e autoridade (Curtis, 1992, p.3 A educação não está imune a este processo. Isso faz parte de uma história muito mais longa na qual o estado, através de sua administração burocrática, procura proteger os “interesses da educação” não apenas do controle das elites, mas também das influências dos impulsos populistas vindos de baixo (Curtis, 1992, p.32). Isto é crucíal para a história que estamos narrando aqui. Os sistemas burocráticos têm substância. Emile Durkheim reconheceu há um século atrás que a eficiência “é um constructo ético, cuja adoção envolve uma escolha moral e política”. A jnstitucionalização da eficiência como uma norma burocrática dominante não é um problema técnico e neutro. E, em profundi dade, uma instância de relações culturais de poder (Curtis, 1992, p. 175). Nenhuma burocracia consegue funcionar bem a menos que os que interagem com ela “adotem atitudes, hábitos, crenças ou opiniões e orientações específicos.” Atitudes “adequadas” frente à autoridade, crenças “apropriadas” sobre a legjtimação do co nhecimento especializado (expertise), disposição a seguir todas as regras e procedimentos “necessários” — são fatores cruciais para a manutenção do poder (Curtis, 1992, p. 174), mesmo quando se reconhece esse poder como aceitável. Este processo de deixar os interesses da educação resguarda dos do controle da elite e do controle popular foi e é um elemento, crucial na formação do estado (Curtis, 1992, p.l92 Apple, 1993a, pp. 64-92). O estado cresce para proteger a si mesmo — e aos interesses auto “democráticos” que ele representa — dessas tentativas de controle. No caso dos fundamentalistas cristãos, forças culturais rebeldes vindas de baixo — os PG.285 “censores” — criaram urna situação na qual o estado expande sua função de policiam do saber e estabelecer novos organismos e procedimentos burocráticos para dirigir a discordância para canais “legítimos. Curtis expressa isso de forma exata e correta quando declara que “a padronização e a centralização dos julgamentos tende a tornar implícito ao invés de explícito o caráter de classe da adminisstração educacional” (Curtis 1992, p. 197). Os procedimentos burocráticos que se têm estabelecido para promover o “interesse público” — e que, segundo algumas talvez o façam — estão aí para tentar for um consenso ao redor da

legitimação cultural e de sua aceitação que talvez possa estar enraizado em percepções notavelmente antagônicas do mundo. Entretanto, o que acontece quando essas crenças e respostas “adequadas” e apropriadas” se rompem? O que acontece quando o estado perde seu controle sobre a autoridade legítima quando seus clientes — em interação com ele durante algum tempo — começam a recusar seu monopólio daquilo que conta como autoridade simbólica legítima? Para poder responder essas perguntas queremos agora nos voltar para a forma como esta dinâmica funciona no mundo real, ao colocar o foco sobre o conflito em torno de uma série de livros didáticos, num distrito escolar local, no qual as partes em disputa tornaramse bastante polarizadas e na qual a pressão populista vinda de baixo tornou-se cada vez mais ativam conset Nesse processo mostraremos corno o funcionamento do estado burocrático fornece, de forma paradoxal um terreno fértil para que os pais se “tornem de direita”. PROFISSIONAIS E CENSORES³ local deste estudo, Citrus \Talley, é uma comunidade semirutal de aproximadamente 30.000 habitantes, agora relativamente próxima de várias cidades maiores devido ao crescimento do sistema interestadual de rodovias. Está no meio de um boom imobiliário que praticamente duplicará a população da área. Isso vai provavelmente mudar o aspecto do local, de uma calma comunidade 3 O material nesta seção é tirado de Oliver (1993)

PG.286 rural, quase estagnada, para o de uma cidade pequena, mas em rápido processo de crescimento. A maior parte de sua crescente população constituir-se-á, provavelmente, de pessoas que traba lham em cidades próximas. A renda familiar média em 1989, no início da controvérsia, era estimada em US$ 23.500. Os dados demográficos indicam que quase um quarto da população atual tem entre 65 e 79 anos de idade. A grande quantidade de pessoas da “terceira idade” e os aproximadamente 50 estacionamentos de reboques (trailers) sugerem que muitas pessoas também vêem Citrus Valley como um local atrativo para sua vida de aposentados. Não há grandes indústrias em Citrus Valley, mas a cidade com certeza gostaria que algumas se estabelecessem lá. De fato, o maior empregador é o distrito escolar, com cerca de 600 empregados, dos quais metade são professores/as. Em 1980, 72% dos adultos acima de 25 anos tinham educação secundária ou menos. Aproximadamente 10% eram formados numa faculdade. Uma parte significante dos habitantes com grau superior trabalhava para o distrito escolas. A população de Citrus Valley é 95% euro-americana, observando-se um lento crescimento da população latina. E basicamente uma comunidade de classe operária, mas também com uma crescente e cada vez mais visível classe média, formada de pessoas que trabalham em cidades próximas.

Mesmo com o crescimento da População que mora em Citrus Valley, mas trabalha em outra cidade, uma grande parte das pessoas da cidade mora aí durante toda sua vida. Alguém descreveu a comunidade da seguinte forma: “as pessoas aqui possuem uma ética de verdade. Elas acreditam em valores tradicionais, em responsabilidade e trabalham como uma comunidade.” Certas coisas são evidentes nesta breve descrição demográfica. Uma é a natureza cambiante das relações de classe na comunidade. As pessoas estão saindo da grande área metropolitana relativamente próxima de Citrus Valley. O medo da violência, uma procura por “melhores escolas”, aluguéis mais baixos e outros elementos estão produzindo uma situação na qual os membros da nova classe média estão se tornando acentuadamente visíveis na cidade. Esta fração de classe é conhecida por sua simpatia para com uma pedagogia centrada na criança e por aquilo que Basil PG.287 Bernstein chamou de currículo e ensino fracamente enquadrados e fracamente classificados. Em segundo lugar, a natureza cambiante da comunidade está ocorrendo num período de temores visíveis de mobilidade des cendente e de uma crise econômica bem real nos Estados Unidos, na qual muitos estados do oeste — e em particular aquele onde Citrus Valley se localiza — estão passando por uma mudança econômica, com suas conseqüentes apreensões sobre o futuro. E desnecessário dizer que as economias rurais certamente não estão imunes a esses temores e mudanças. Para muitos indivíduos, isto terá um profundo impacto na sua forma de ver a função da escolarização, no que deveria ou não ser ensinado e quem deveria controlá-la. E compreensivelmente bastante difícil, para muitos homens e mulheres da classe operária, fazer uma separação entre ansiedades econômicas e temores de colapso cultural. Colocado no meio dessas transformações e das possíveis tensões que subjazem à aparente tranqüilidade e à “tradição” da cidade, o distrito escolar decidiu seguir uma nova orientação no seu programa de linguagem. Essa orientação seguia as diretrizes e cronogramas planejados pelo Departamento de Educação do estado para todos os distritos escolares. As diretrizes do estado pressionavam fortemente os distritos escolares a usarem uma abordagem baseada na literatura para o ensino da linguagem e, na verdade, Citrus Valley já tinha começado antes a utilizar essa abordagem, elaborada com base num núcleo de livros escolhidos pelos/as próprios/as professores/as. Tanto os/as professores/as quanto os/as administradores/as estavam entusiasmados/as com o que eles/as percebiam como sendo o sucesso inicial de uma abordagem global, baseada na literatura. O caminho lógico para 4 Não queremos exagerar nossa leitura da dinâmica de classe dessa situação. A própria nova classe média está dividida. Nem todas as suas frações apóiam“pedagogias invisíveis” como as definidas por abordagens globais do ensino da língua. Basil Bernstein apresenta a hipótese de que esses membros da nova classe média que trabalham para o estado tendem mais a aprovar essas pedagogias fracamente classificadas e fracamente enquadradas do que aqueles que trabalham no setor privado. Isso, além das ideologias profissionais particulares, pode explicar, em parte, o fato de que a maioria dos/as professores/as, embora nem todos/as, em Citrus Valley, apoiou a ênfase no ensino globalizado da língua encontrada nas diretrizes do estado e em Impressions. Assim, a tensão entre as visões que o “campo” e a “cidade” têm da educação, assim como entre as visões das diferentes classes pode não ser visível.

eles/as era buscar uma série de livros didáticos que complemen tasse os objetivos e práticas que, em parte, eles/as já seguiam. Este estado em particular destina fundos para a compra dos materiais adotados — grande parte dos livros didáticos passou pelo complicado processo de exame político e educacional neces sário para a aprovação final como um livro-didático recomendado pelo Conselho Estadual. Setenta por cento desse orçamento deve ser gasto nesses textos recomendados, enquanto que a maior parte do dinheiro restante pode ser usado para comprar material suple mentar. Os distritos escolares também podem usar seus próprios fundos para comprar material não adotado, mas num período de crise fiscal isso é consideravelmente mais difícil. Assim, grande parte do dinheiro fica disponível para livros didáticos padroniza dos e comercialmente produzidos. A tarefa é encontrar os livros que mais se aproximam da abordagem na qual se acredita. Entretanto, existem muitos desses textos disponíveis. Para aumentar a probabilidade de que um livro didático em particular seja escolhido, as editoras com freqüência oferecem certos incen tivos. Muitas vezes, por exemplo, a quantidade de materiais “grátis” dados aos distritos escolares para uma editora é considerável. Esta é uma prática comum entre os editores, uma vez que a publicação de livros didáticos é um empreendimento altamente competitivo (Apple, 1988, pp.81-105). No caso de Citrus Valley, a “doação” desse material grátis pareceu ter influído na escolha. Citrus Valley começou o processo de escolha de uma nova série de livros didáticos de linguagem no ano letivo de 1988-89. Este era o ano para mudar os livros didáticos de linguagem e de leitura, visto que os distritos escolares procuravam se adaptar às diretrizes estaduais para novas séries. O resultado desse processo foi a escolha da série de leitura “Impressions” (Impressões), publicada por Holt, Rinehart e Winston. A série usa uma metodologia globalizada, baseada na literatura (urna metodologia enraizada numa orientação curricular fracamente classificada), a qual este estado em particular esforça-se para implementar em todas as escolas. Quando o ano escolar começou no Outono de 1989, não havia razão para suspeitar que haveria qualquer problema com Impressions, embora a série tivesse sido questionada em outros distritos, PG.289 nesse estado e também em outros estados. Afinal de contas, os passos para se avaliar e implementar uma nova série tinham sido cuidadosamente seguidos. O distrito tinha introduzido a nova série com confiança e entusiasmo. Os memorandos que circularam pelo distrito após a escolha de Impressions refletiam a satisfação de, após muito esforço, finalmente terem feito uma escolha que parecia estar de acordo com as metas do distrito. Em junho, após dizer aos/às professores/as que quase 150 caixas dos novos livros tinham chegado, uma administradora do djstrjto proferiu uma sentença profética. Ela escreveu: “tenham um verão maravilhoso! Temos um estimulante ano novo à nossa espera.” Nunca se falaram palavras tão verdadeiras. Nos dois primeiros meses do ano letivo, alguns pais e professores começaram a se queixar dos livros. Os pais começaram ficar preocupados com o conteúdo dos textos. Além

do fato de a estórias “assustarem”, havia preocupações sobre os valores contidos nelas e sobre os erros de ortografia e impressão. Os país se opunham a alguns dos extratos contídos nos livros didáticos qu o editor tinha enviado ao distrito. Por exemplo, um poema de um livro da 5ª série era sobre porcos num pântano perto de alguma casas. Os porcos “se alimentavam de peixes mortos e coisa podres, animais afogados, plástico e excrementos de vários tipos” O poema termina com os porcos consumindo toda a carne n lagoa e, tendo adquirido agora uma predileção por e alimento olham em direção à praia. O distrito explicou que o poema carregava uma mensagem ambiental. Para os pais, ele era violento e assustador, uma alegação que eles fizeram com vigor ainda mais a respeito de alguns dos outros materiais contidos até mesmo em livros para crianças mais novas. Os pais começaram a conversar entre si e pouco a pouco un sentimento mais organizado começou a surgir, à medida que o membros da comunidade participavam das reuniões do conselho escolar e encontrado nas igrejas locais. Finalmente, um grupo de pais formou o Concerned Citizens of Citrus Valley ou CCCV (Cidadãos preocupados de Citrus Valley), num esforço para con vencer o Conselho Escolar a retirar as séries. O Conselho e Diretoria da escola agiram de duas formas paradoxais. Eles trataram o desafio quase como se fosse um ato de agressão. Em essência, “prepararamse para a guerra”. Ao mesmo tempo, retardaram PG.290 o processo de questionamento, canalizando-o através dos procedimentos burocráticos que tinham sido desenvolvidos — muitas vezes, por razões muito boas — em vários distritos para que os/as professores/as e administradores/as pudessem se prote ger de ataques externos. Dessa forma, “atitudes adequadas”, de um lado, e procedimentos eficientes, de outro, acabam se juntan do na resposta do estado. Quase todo pai que era entrevistado e que se opunha aos livros declarava que seu primeiro contato com o conteúdo dos livros didáticos ocorreu quando seus filhos chegaram à casa perturbados por um trecho particular do livro didático. Os pais do CCVV à medida que se organizavam, não queriam ser identificados com grupos de fora. Eles achavam que sua inteligência estava sendo questionada quando os defensores dos livros acusavam o CCCV de estar sendo controlado por “forças externas”. De acordo com eles, quando seus filhos traziam para casa estórias que perturbavam porque, digamos, causavam pesadelos ou os assustavam, a primeira reação dos pais era de descrença. Os livros didáticos eram “inócuos”. Assim, eles ficaram mais do que um pouco surpresos e decepcionados por aquilo que eles consideraram como sendo uma reação demaisadamente “enérgica” do conselho e da diretoria.5 A medida que o conflito crescia, o CCCV começava a organizar uma campanha de destituição contra alguns membros do conselho. O sistema escolar fincou pé contra “os censores da extrema direita” e a própria comunidade ficou muito dividida. Para o conselho e para a diretoria da escola, o CCCV era um sintoma de um movimento nacional mais amplo de censura, organizado em torno da agenda da extrema direita. “Ceder” significava submeter o conhecimento profissional especializado às forças da reação política. Para o CCCV a questão se definia cada

5 Quase na mesma época que os pais se queixaram dos livros pela primeira vez, alguns/algumas professores/as também trouxeram queixas, mas de uma natureza diferente. Os/as professores/as relataram que algumas das estórías nos livros não correspondiam ao que estava no índice. Obviamente, havia uma clara possibilidade de que os livros errados tivessem sido distribuídos ou que tivesse havido erros de impressão. Contudo, à medida que o conflito se intensificou, o sindicato docente local apoiou energicamente a série Impressions e a administração do distrito escolar. De todos os grupos envolvidos neste estudo, os/as professores/as foram os/as mais relutantes a serem entrevistados/as. Isso é compreensível dados a tensão e o medo envolvidos nessa situação.

PG.291 vez mais em torno do confronto entre o poder dos pais e o poder de um conselho e de uma burocracia escolares que se recusavam a levar a sério as reclamações dos cidadãos. Eles consideravam essa atitude arrogante. É crucial para a compreensão dessa situação o fato de que a liderança do CCCV só começou a tentar formar alianças com direita religiosa após confrontar a administração do distrito conselho escolar durante um longo tempo. De fato, as alianças entre o CCCV e qualquer grupo externo nunca foram muito fortes. No final da controvérsia, uma pessoa acabou se tornar um elemento de contato entre grupos de direita e está firmemente consolidada dentro de uma organização nacional os “direitos religiosos” e nas campanhas políticas da direita. Entretanto, mesmo nesse caso deve-se considerar que antes da controvérsia essa pessoa não só era indiferente a tais causas como se opunha a elas. Quando os pais do CCCV foram repetidamente rejeitados pela liderança da escola local, eles foram levados para a retórica e as idéias da Nova Direita. Eles sentiram, de forma correta não, que suas preocupações foram desconsideradas e desprezadas desde o início pela administração e pelo conselho escolar distrito. Apenas quando já tinham sido bastante desconsideradas pelos detentores da autoridade educacional, e só então, começaram a procurar fora da comunidade grupos com quem pudessem dialogar e que possuíssem perspectivas semelhantes às suas se a natureza dos livros didáticos que haviam sido implementa nas escolas. Como organização, os pais do CCCV continua: sozinhos, mas a Nova Direita passou a ser vista como um conjuto mais atraente de crenças e como uma aliada ideológica. Assim, mesmo quando o distrito fez tentativas limitadas para convencer os que protestavam contra os benefícios educacional da nova pedagogia e dos novos currículos, esses esforços foram rejeitados. Nós tendemos a não aprovar as visões das autoridades que nos desconsideram. A reação imediata das escolas, então de tratar esses pais como ideólogos de extrema direita que estão simplesmente interessados em censurar livros e professores ajudou a criar as condições para o crescimento dos movimentos ideológicos que elas tanto temiam. PG.292 Vamos examinar isso um pouco mais de perto. É verdade que a maioria dos membros do CCCV era o que se poderia chamar de “tradicionalistas”. Eles na verdade, tinham medo da mudança. Gostavam de sua comunidade como era (ou pelo menos como eles a percebiam).

Em suas mentes, opunham-se à série de livros didáticos porque achavam que ela era violenta e negativa, capaz de assustar as crianças. A maioria da comunidade parecia estar inclinada nessa direção tradicional. Entretanto, a visão que os pais do CCCV tinham de si mesmos era a de quem tentava encontrar um meio termo entre a direita e o que eles consideravam a “esquerda liberal”. A maior parte deles ficou bastante surpresa ao se perceber caracterizada como fazendo parte da direita. Sua autopercepção era a de “cidadãos que trabalhavam duro”, que queriam manter posições que lhes permitissem levar suas vidas como vinham fazendo até agora. Em muitas ocasiões, eles reafir maram a posição de que eram apenas “pessoas comuns” que queriam o melhor para seus filhos. Os pais que originalmente se organizaram para fazer oposição aos livros didáticos eram pessoas de religiões e convicções políticas diversas. Eram católicos, judeus, protestantes tradicionais, protestantes evangélicos, fundamentalistas, mórmons, pessoas sem religião e agnósticos. Também é interessante o fato de que apenas alguns poucos líderes das igrejas envolveram-se na controvérsia, apoiando abertamente os pais do CCCV Havia pouca evidência de que se tratava de uma questão religiosa “fundamentalista”, inicialmente organizada a partir de força ou por líderes evangélicos ansiosos em atacar as escolas como baluartes do humanismo secular. Na verdade, por causa da diversidade religiosa e da relutância em serem identificados como Nova Direita, muitos pais do CCCV estavam bastante hesitantes em manter reuniões numa igreja. Entretanto, devido à escassez de prédios grandes o suficiente para manter reuniões com muitas pessoas, quando um pastor local ofereceu sua igreja para o uso do CCCV, ela foi escolhida como local de reuniões, não sem alguma hesitação. Havia outras características, entretanto, que pareciam dife renciar os membros do CCCV dos outros na comunidade. Embo ra fossem de variadas religiões, em geral eles não tinham cargos públicos oficiais e não se sentiam parte da rede de poder da PG.293 comunidade. Muitos expressavam sentimentos de estarem à margem do poder local. Tampouco eram economicamente homogêneos: o grupo incluía empresários e profissionais locais, bem como membros das classes operárias. No primeiro encontro do CCCV, cerca de 25-30 pessoas compareceram. No segundo encontro, havia 75. Quando o conflito se intensificou, 700 pessoas lotaram a igreja local que tinha sido oferecida para o encontro. A intensidade tornou-se evidentc no fato de que a polícia foi mobilizada para uma reunião de conselho escolar convocado para discutir os livros didáticos. Mais de 250 preocupados membros da comunidade lotaram a sala dc reunião. A tensão era visceral. Sob muitos aspectos, então, a maioria dos pais do CCCV era no início, o que se poderia chamar de “conservadores comuns”, sem filiações importantes com grupos ativistas de direita e sem uma agenda ideológica ou religiosa mais ampla que desejassem impingir aos outros. Certamente, eles não viam a si mesmos como censuradores ideológicos que desejavam transformar os EUA numa “nação cristã” e que desconfiavam de tudo que fosse público. Reduzir o conflito a um protesto de pais relativamente ignorantes ou fundamentalistas religiosos e simplórios que tentam usai a censura para promover as intenções de um movimento de direita mais amplo significa interpretar mal a forma como os atores comuns

se organizam ao redor das lutas locais, além de subestimar essas pessoas. Adotar uma tal posição significa ver essas pessoa como “idiotas” ou marionetes, simplificando-se radicalmente complexidade de tais situações. Sob muitos aspectos, tais ponto de vista simplificadores reproduzem em nossas próprias análise os estereótipos que estavam corporificados na reação da adminis tração e do conselho escolar às questões levantadas pelos pais. A rapidez com que o distrito reagiu tão energicamente, como se estivesse, em essência, se preparando para a guerra, pareceu sei o catalisador que realmente levou os pais na direção dos grupo de direita e fez com que os pais do CCCV formassem uma oposição maior do que poderiam ter formado se fossem vistos de outra forma. Assim que os pais do CCCV questionaram o distrito este imediatamente reduziu a questão a um problema de “censura”. Essa maneira de definir o problema reduziu a complexidade da situação a uma forma que era conhecida do discurso “profissional” dos/as professores/as e administradores/as da escola e permitiu que o distrito respondesse de modo a não possibilitar outras interpretações das motivações e preocupações dos pais. No início dessa controvérsia, as mulheres trocavam entre si informações em lugares públicos e em suas casas. As mães falavam umas para as outras sobre o conteúdo dos livros quando buscavam seus filhos na escola, quando se encontravam para almoçar e quando visitavam suas amigas. A medida que a controvérsia se desenvolvia, entretanto, mais homens se envolviam e exerciam mais liderança, assinalando dessa forma, uma vez mais, a relação entre gênero e esfera pública (Fraser, 1989, pp. 113-144; Apple, 1995). Para algumas das mulheres que trabalharam arduamente no grupo CCCV foi a desconsideração de suas preocupações que as levou a persistirem na busca de respostas às questões sobre os livros didáticos, sobre o processo envolvido em sua escolha e na organização de atividades contra os próprios livros. A resposta dessas mulheres à resistência da escola e à maneira como foram definidas pelo estado local, considerando-as como parcialmente irresponsáveis, tornou-as ainda mais determinadas em seus esforços de disseminar informações sobre os livros. Embora inicialmente não estivessem visivelmente iradas e desafiadoras, elas foram conduzidas à resistência por não terem sido levadas a sério. As mulheres envolvidas no CCCV tinham intuições políticas iniciais, mas sem qualquer sentido de oposição. Havia tanto conservadoras sócio-culturais quanto conservadoras laissez faire; as primeiras baseavam-se na crença da importância da religiosidade, da “família”, e da “tradição”, enquanto as segundas basea vam-se em idéias sobre “liberdade individual”, “patriotismo americano” e “livre mercado”, demonstrando assim a diversidade até mesmo no interior das posições conservadoras mais moderadas. Entretanto, os temas mais comuns das mulheres do CCCV eram a soberania da família e aquilo que percebiam como sendo um ataque a seu direito, como pais e mães, de controlar a educação de seus filhos. Aliada a isso estava a percepção de que Impressions não representava os Estados Unidos de forma precisa ou suficiente. Entretanto, essas mulheres não entraram na controvérsia com posições conscientes e previamente definidas de conservadorismo. PG. 295 Em vez disso, elas estavam surpresas em saber, no início, que havia um problema com os livros didáticos em sua comunidade. Com o passar dos meses de conflito, suas posturas

foram-se formando, ficando mais claras, como conseqüência do fato de terem de encontrar uma maneira de compreender a resposta da escola. Assim, à medida em que o conflito se aprofundava, uma das líderes do CCCV ficou bastante influenciada por Francis Schaeffer, um teólogo conservador que defendia a idéia da verdade absoluta. Como essa mãe buscava maneiras de compreender sua crescente aflição, ela achou as idéias de Schaeffer cada vez mais atrativas. Para Schaeffer, há “verdades reais”. Há valores básicos imutáveis que nos tornam capazes de saber com certeza que algumas coisas estão absolutamente certas e outras coisas estão absolutamente erradas. Sem isso, de acordo com Schaeffer, não há cristianismo (Schaeffer, 1990). Isso fica bem mais claro se tomamos outro exemplo, de uma pessoa profundamente envolvida no CCCV, mãe de uma criança de uma das escolas que estavam usando a série de livros didáticos. No início, ela não era uma pessoa profundamente religiosa. Raramente freqüentava a igreja, não era fiel a nenhuma organização e teria rejeitado o rótulo de “Nova Direita”. Seu conselho às outras pessoas envolvidas no início, era que trabalhassem direta mente com o distrito sem se organizarem formalmente. Quando suas opiniões foram diretamente confrontadas e contestadas pelo distrito e sua posição foi aparentemente vista de forma estereotipada, ela começou a prestar mais atenção àquelas posições polí ticas que ela sentia comõ tendo algo a ver com sua oposição aos livros. Suas opiniões eram repetidamente minimizadas e ela era acusada de ser de “direita”. Como conseqüência, ela não só participou da criação do CCCV mas no final da controvérsia estava profundamente envolvida com grupos femininos cristãos, centrados em questões políticas nacionais. O que começou como uma preocupação em relação ao conteúdo dos livros, terminou com indivíduos como ela tornando-se membros ativos de movi mentos nacionais de direita. No final do conflito, o distrito escolar anunciou uma “solução”. Continuaria a usar Impressions e seu programa centrado na PG.296 Literatura também permitiria (continuaria, na verdade) a prática de deixar que os pais solicitassem até duas tarefas alternativas por semestre, O distrito foi ainda mais longe: implementou turmas alternativas para os pais que fossem totalmente contrários a Impressions. Foi solicitado aos pais que respondessem uma carta onde lhes era perguntado se queriam que seus filhos ficassem numa turma especial, sem Impressions. Disseram-lhes que “isso podia resultar numa mudança de local de aula ou de escola para seu filho. No caso de ser necessária uma mudança, o sr. precisará providenciar o transporte”. Embora esta resposta realmente mostre uma flexibilidade por parte do sistema escolar, ela imediatamente criou uma situação difícil para os pais que trabalhavam fora de casa ou que eram incapazes de fornecer transporte para seus filhos. Os horários de trabalho, a falta de carro, a desvantagem econômica e outros elementos criaram uma situação na qual os pais, muitas vezes, não tinham outra alternativa a não ser manter seus filhos nas classes com Impressions. Dessa forma, plantavam-se as sementes de mais alienação. Quando começou o ano escolar seguinte, o distrito relatou que 82% dos pais tinham escolhido Colocar seus filhos nas aulas com Impressions Não está claro se isso é uma

evidência de escolha ou de falta de alternativas reais, devido às condições acima mencionadas. Contudo, quando quase 20% de pais escolhem ativamente experiências muito diferentes daqueles do ensino oficialmente definido para seus filhos, fica claro que a controvér sia continua a ser alimentada. Houve outras mudanças, no sentido de tornar o sistema escolar mais flexível em relação aos processos pelos quais o ensino oficial é determinado. Por exemplo, os pais agora são incluídos nas fases iniciais da seleção de livros didáticos. Os administradores do distrito e o conselho escolar estão agora bem mais Conscientes da complexidade política que cerca as preodupaçõ dos pais e das conseqüencias das decisões “profissionais” que eles tomam. Acima de tudo, entretanto, há uma tensa vigilância de todos os lados e uma polarização profundamente consolidada na comunidade. Existe agora uma direita ativa e, sob muitos aspectos, poderosa. PG.297 CONCLUSÃO Neste ensaio, além de discutir. O problema específico das razões pelas quais as pessoas se inclinam para a direita política tentamos também desenvolver uma perspectiva teórica. Com muita frequência as tradições, nos estudos educacionais críticos, tendem a ignorar mutuamente. As teorias neogranscianas, as teoria pós-modernas e as teorias pós-estruturais vistas como oposta. Rejeitamos essas divisões, em favor de uma abordagem ma integrada. Utilizamos instrumentos da tradição neo-gransciana — uma ênfase tanto no poder do estado quanto nas correntes presentes no senso comum e no poder dos movimetos culturais vindos de baixo, sem ignorar o contexto econômico da ação social. Complementamos essa análise com um foco nas políticas de identidade e no papel do estado nas posições de sujeito que são, então, reapropiadas por pessoas reais na complexa política do nível local. Por atrás disso está argumento de que o estudo dos movimentos sociais e das condições de sua formação, num período de ataques cada vez mais agressivos à escola pública e à própria idéia de “público” por part de grupos de direita, é essencial. Integrar essas várias perspectivas para compreender isso de uma forma mais plena constitui uma agenda ambiciosa. Mas a política da educação precisa ser tratado com a seriedade integrativa que sua complexidade merece. As implicações do que descrevemos aqui são de grande importâcia para qualquer análise da formação de movimentos de direita e do papel da escola na formação da identidade de muitos/as autores/as falam da escola como sendo um local produtivo. É um local de produção das identidades dos estudantes e de produção de uma política de formação de indentidade (Wexler, 1992). Entretanto, outras identidades são produzidas em consideração com as agências estataios como as escolas. Formam-se também identidades de oposição centradas em torno de uma política cultural conseservadora. Isso fica claro no exemplo — um dos muitos que podemos esperar — que investigamos aqui. As posições do sujeito tornadas disponíveis pelo estado era apenas aquelas de pais “responsáveis” e que basicamente apoiavam a “decisão tomada pelos profissionais de um lado, a censores “irresponsáveis da ala direita, de outro. A construção

PG.298 dessa Oposição binária criou uma situação na qual a única forma de os pais e outros membros da comunidade poderem ser ouvidos era ocupando os espaços fornecidos pelo estado. Naturalmente, esses espaços foram ampliados e, em parte, transformados. Mas a única forma que esses preocupados indivíduos tinham de receber atenção era tornando-se cada vez mais agressivos em seus argu mentos e cada vez mais organizados ao redor de temas culturais e religiosos conservadores. As identidades sociais formam-se dessa maneira. Assim, os membros “moderados” da comunidade os moderadamente os conservadores são lentamente transformados em algo bastante diferente. A direita transforma-se em direita através de um conjunto complexo e dinâmico de interações com o estado. (Saber como o estado local é, ele próprio, transformado por isso é, naturalmente, uma questão digna de pesquisa, mas isso terá de esperar até outra investigação.) No início dessa análise, utilizamos os argumentos de Whitty, Edwards e Gewirtz, de que a direita cresce através de “acidentes”. Ela cresce através de formas hesitantes, difusas e parcialmente indeterminadas, localizadas num complexo global de relações econômicas, políticas e culturais. Perdemos muito dessa complexidade dinâmica se centramos nossa análise apenas nos grupos conservadores externos às situações onde movimentos como o analisado neste ensaio são construídos. Sugerimos que um dos atores principais é o estado burocrático, que pode ter expandido suas funções de vigilância em relação ao conhecimento por boas razões, mas que reage de maneira a aumentar o potencial para que os movimentos de direita cresçam. Assim, uma coisa ficou clara durante este estudo. Os elos entre os pais que questionam os livros didáticos e os grupos “populistas autoritários” nacionais crescem durante uma controvérsia — como conseqüência dela e não por serem guiados por grupos de fora. No caso que relatamos aqui, é evidente que há uma impressionante mudança. Alguns pais do CCCV não só se tornaram parte de uma rede mais ampla de ativistas da Nova Direita como também sentem-se orgulhosos em fazerem essas conexões, as quais, antes lhes pareceriam impossíveis. Precisamos enfatizar aqui, outra vez, que esses são indivíduos que não tinham ligações anteriores com organizações da Nova Direita e que não desejavam ter quaisquer ligações com tais grupos conservadores, até ocorrer PG.299 a controvérsia com Impressions. Igualmente importante é c de que essas ligações recémformadas se reforçam à medida novas identidades políticas conservadoras — extensões das posições-de-sujeito oferecidas originalmente pelo estado local — assumidas por essas pessoas. O conservadorismo econômico e o populismo tornara vinculados ao fundamentalismo religioso através dessas forças locais. “Cidadãos interessados”, perturbados por aquilo que as escolas definiram como ensino oficial e que estão (corretamente) preocupados com a decrescente mobilidade econômica de filhos e com os valores que lhes estão sendo ensinados, reúnindo estas duas formas de conservadorismo não através de um processo natural qualquer, mas de uma maneira que coloca os aspectos estado no centro da formação das fidelidades e dos movimentos sociais.

Isso não significa dizer que cada pessoa tem “liberdade de ação”, que as pessoas “livremente escolhem” entrar para a direita (ou outra coisa qualquer), num vácuo. Na verdade, o que ocorre é exatamente o oposto. A acentuada predominância de posisições conservadoras numa gama ampla de temas, que envolvem educaçação, economia, sexualidade, saúde, “inteligência” e assim diante, nos meios de comunicação e nas discussões públicas significa que as pessoas em cidades como Citrus Valley e em outros lugares vivem num mundo onde os discursos de direita circulam constantemente. É, atualmente, bastante difícil não ouvir interpretações. E mais difícil ainda ouvir posições contrárias a elas. Entretanto, há múltiplas maneiras pelas quais tais discas podem ser ouvidos ou lidos. A aceitação é apenas uma delas (Apple, 1993a). Ficamos ainda com muitas interrogações. Mas em em nossa mente, a mais importante é esta: poderia ter sido diferente? Se as escolas tivessem ouvido mais atenciosamente e não tivessem 6 Veja, por exemplo, o livro amplamente divulgado e irremediaveini equivocado de Herrnstein & Murray (1994). O patrocínio desse livro e de autores por fundações conservadoras e a capacidade desses grupos de colocar os autores nos visíveis meios de comunicação, são fatos notáveis. Seria importante investigar o papel desses grupos conservadores no process patrocínio e circulação, contribuindo, dessa forma, para tornar publicam legítimas posições cientificamente desacreditadas.

PG.300 posicionado os pais como censores da direita, teria havido um resultado mais progressista? Esta não é “simplesmente” uma questão de pesquisa. Dados o projeto hegemônico da direita e o sucesso de suas transformações ideológicas, se a escola é um dos locais cruciais onde essas transformações ocorrem, então as interrupções do olhar burocrático da escola e as lutas concretas em nível local podem ser mais importantes do que nós percebemos, não só a curto prazo, mas também a longo prazo (Apple & Beane, 1995). De fato, é igualmente crucial que as escolas centrem seu olhar crítico sobre si mesmas e sobre como elas podem estar sendo responsáveis pela criação das condições nas quais cidadãos comuns “entram para a direita”. Temores sobre uma economia em declínio ou preocupações sobre o que é ensinado aos nossos filhos não precisam ser necessariamente interpretados como um ataque populista autoritário ao estado, nem precisam necessariamente estar ligados à gama de questões que a direita representa. Posições moderadas e moderadamente tradicionais podem não ser aquelas em que a maioria de nossos leitores talvez acredite, mas há uma enorme diferença entre tais posições e a campanha agressiva contra tudo que é público e sobre a própria idéia de uma escola verdadeiramente pública que vem da extrema direita. Os efeitos generalizados de tais grupos só podem ser contidos se o contingente mais amplo do público que tem preocupações populistas sobre as escolas não for levado para a direita. Há evidências de que uma resposta diferente à política do ensino oficial por parte das escolas pode ter resultados muito diferentes. Embora isso seja discutido com maiores detalhes no livro Democratic Schools (Apple & Beane, 1995), vale a pena registrar as experiências de escolas que lidam de forma mais aberta com essas situações possivelmente

polarizantes. Assim, para tomar apenas um exemplo, a Escola Fratney Street de Milwaukee, uma cidade que tem sofrido um declínio nos empregos fabris e antagonismos bem reais de classe e de raça, enfrentou uma situação na qual conflitos políticos em torno da dinâmica de classe e de raça poderia ter fornecido um terreno fértil para o crescimento de sentimentos direitistas. PG.301 Situada numa “área de fronteira”, com sua população estidantil constituída por um terço de euro-americanos/as de classe operária, um terço de afro-americanos/as e um terço de latinos/a as questões sobre qual conhecimento (e o conhecimento de quem estava representado nos textos, qual seria a pedagogia adequada e quais vozes seriam ouvidas dentro dessa tensa e variada composição que poderiam ter sido tão explosivas quanto aquelas que vieraram à tona em Citrus Valley. Essa situação poderia estar madura par o desenvolvimento de movimentos semelhantes aos encontrados no caso que analisamos aqui. Contudo, elas não levaram a tal desenvolvimento; na verdade, levaram à formação de uma coalizão que atravessava classes e raças, unidas em favor de currículo mais progressistas e de um apoio mais generalizado à escola. Em parte, isso deveu-se a um grupo de professores/as administradores/as que abriu a discussão do currículo e da pedagogia às múltiplas vozes que tinham algum interesse na escola incluindo pais, ativistas da comunidade e estudantes. Foi dada constante atenção a isso, não como uma forma de “relações públicas” como freqüentemente acontece em muitos distritos escolares, o que geralmente constitui uma forma de “engenharia do consenso”, mas como urna tentativa contínua e genuína de relacionar tanto o conteúdo do currículo como as decisões sobr ele às vidas das pessoas envolvidas. Em parte, foi o resultado de imensa quantidade de trabalho feito pelos/as educadores/as lá envolvidos para justificar publicamente aquilo que eles/as achavam que era melhor para os/as estudantes e por qual razão, em palavras e num estilo que não poderia ser interpretado como arrogante, elitista ou distante, e para escutar com simpatia e cuidado os temores, preocupações e esperanças das várias vozes na comunidade. E, finalmente, deveu-se a um conjunto de crenças decididamente não-hierárquicas, tanto sobre o que acontece dentro da escola como entre a escola e a comunidade maior da qual ela é parte. Nada disso garante que o projeto restauracionista da direita será transformado. As situações e suas causas são, realmente, em parte, “acidentais”. Contudo, as experiências na Escola Fratney Street e em outras escolas expressam uma articulação muito diferente entre o estado local e sua população e falam de uma possibilidade muito real de interromper algumas das condições PG.302 que levam ao crescimento dos movimentos sociais de direita. Há muito trabalho pela frente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, M. W. Teachers and Texts. NewYorlc, Routiedge, 1988.

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Michael W, Apple é professor da Universidade de Wisconsin, Madison, Estados Unidos. Anita Oliver é professora da Universidade de La Sierra, Estados Unidos. ♦ PG.303

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