Paul Connerton Como as Sociedades Recordam (1)

September 22, 2017 | Author: Ligiane Meira | Category: Crusades, Sociology, Fashion & Beauty, Clothing, Time
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O PASSADO NO PRESENTE Cotecção coordenada por José Manuel Sobral

OUTROS TÍTULOS Carole Fink, Marc Bhch: Uma Vida na História Jack Goody, Cozinha, Culinária e Classes ]ack Goody, Família e Casamento na Europa Robert Rowland, População, Família, Sociedade Augusto Santos Silva, Palavras para Um País

PAUL CONNERTON

COMO AS SOCIEDADES RECORDAM TRADUÇÃO DE MARIA MANUELA ROCHA REVISÃO TÉCNICA DE JOSÉ MANUEL SOBRAL

SEGUNDA EDIÇÃO

CELTA EDITORA OEIRAS / 1999

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Título original: How Societies Remember © 1989, Cambridge University Press

Paul Connerton Como as Sociedades Recordam Primeira edição portuguesa: Abril de 1993 Tiragem: 1000 exemplares Segunda edição portuguesa: Janeiro de 1999 Tiragem: 1000 exemplares

Tradução de ingês: Maria Manuela Rocha Revisão técnica: José Manuel Sobral Revisão de texto: G. Ayala Monteiro • ISBN: 972-774-020-0 Edição original: ISBN 0-521-27093-6, Cambridge University Press, Cambridge Depósito legal: 129806/98 . Composição: Celta Editora, em caracteres Palatino, corpo 10 Capa: Mário Vaz / Celta Editora Fotólitos, impresssão e acabamentos: Tipografia Lousanense, Lda.

Reservados todos os direitos para Portugal, de acordo com a legislação em vigor, por Celta Editora, Lda., Apartado 151, 2780 Oeiras

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ÍNDICE

Agradecimentos

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Introdução

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A memória social

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Cerimônias comemorativas

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Práticas corporais

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AGRADECIMENTOS

Desejo agradecer ao director e ao director-adjunto do Centro de Investigação de Humanidades da Universidade Nacional da Austrália pelo convite de professor visitante e pela disponibilização de condições indispensáveis à realização de parte do trabalho que conduziu a este livro. Devo um agradecimento muito especial a Geoffrey Hawthorn, pelo incansável apoio a este 2 projecto desde o seu início, com objectivos bastante diferentes do resultado final, até à sua publicação, e a Russell Keat, com quem discuti os pormenores do trabalho na maioria das fases por que este passou. O livro que agora se publica beneficiou dos comentários críticos que ambos fizeram a uma versão anterior, e também dos de Gregory Blue, Nicholas Boyle, Peter Edwards, Ritchie Robertson e Elisabeth Stopp. Estou profundamente grato a todos eles . por me ajudarem a dizer o que queria com um pouco mais de clareza. Finalmente, desejo agradecer a Bobbie Coe e a Joyce Leverett, que, com alegria e eficiência, prepararam este manuscrito para publicação.

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INTRODUÇÃO

Pensamos geralmente na memória como uma faculdade individual. Há, todavia, um certo número de pensadores que coincidem em acreditar que existe algo como uma memória colectiva ou social.1 Eu partilho essa suposição, mas discordo quanto a saber onde é que este fenômeno, a memória »social, se pode mostrar mais crucialmente operativo. 2 Por isso, a questão a que se dedica este livro é a seguinte: como se transmite e conserva a memória dos grupos? O termo grupo é aqui utilizado num sentido generosamente lato e com alguma flexibilidade de significado, de forma a incluir tanto as pequenas sociedades, em que todos se conhecem (tais como as aldeias e os clubes), como as sociedades territorialmente extensas, em que a maior parte dos seus membros não se pode conhecer pessoalmente (tais como os estados-nação e as religiões mundiais). Os leitores poderiam esperar, com alguma razão, que a questão assim colocada — como é que a memória dos grupos é transmitida e conservada? — pudesse levar à consideração quer da memória social como dimensão do poder político, quer dos elementos inconscientes existentes na memória social, ou de ambas as coisas. Nas páginas seguintes esses temas são ocasionalmente referidos, mas evita-se propositadamente a sua abordagem de uma forma explícita e sistemática. A importância do estudo dessas questões, 1

Em especial na obra de Maurice Halbwachs. Ver M. Halbwachs, Les cadres sociaux de Ia mémoire (Paris, 1925); La mémoire collective (Paris, 1950); La topographie légendaire dcs Evangiles cn Terre Sainte (Paris, 1941); "La mémoire collective chez les musiciens", Rroue Philosophique, 127 (1939), pp. 136-65. Uma série de estudos mais recentes deve ser mencionada, em relação com isto: E. Shils, Tradition (Londres, 1981); Z. Bauman, Memories of Class (Londres, 1982); E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The Jnvention of Tradition ("Cambridge, 1983); P. Nora, Les lieux de k mémoire {Paris, 1984); R. Boyers, Atroáty and Amnésia. The Political Novel since 1945 (Oxford, 1985); B. A. Smith, Politics and Rcmembrance (Prínceton, 1985); P Wright, On Living in an Old Country (Londres, 1985); D. Lowenthal, The Pasi is a Foreign Country (Cambridge, 1985); F. Haug, Female Sexitalization: A Collective Work of Memory (trad. E. Carter, Londres, 1987). 1

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quanto a mim, diticilmente pode ser posta em causa, porque não há dúvida de que o controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia do poder. De tal modo que o armazenamento permitido pelas actuais tecnologias da informação e, em conseqüência, a organização da memória colectiva através da utilização de máquinas de processamento de dados, por exemplo, não é apenas uma questão técnica, mas antes uma questão que se relaciona directamente com a da legitimação, sendo o controlo e a propriedade da informação um problema político decisivo.2 Mais uma vez, o facto de já não acreditarmos nos grandes "sujeitos" da história — o proletariado, o partido, o Ocidente — significa não o desaparecimento destas grandes metanarrativas, mas antes a sua duradoura eficácia inconsciente, como formas de pensar e de agir na nossa realidade contemporânea: a sua persistência, por outras palavras, como memórias colectivas inconscientes.3 Se nem a dimensão política da memória, nem a do inconsciente são explicitamente abordadas neste livro, tal não é devido, portanto, a quaisquer dúvidas que o autor alimente quanto à sua importância, mas porque se avança aqui uma proposta diferente, que não é incompatível com a manutenção das posições atrás expostas, antes é susceptível de investigação independente. O objectivo dessa investigação pode, talvez, explicar-se melhor registando, à partida, dois pontos que são considerados axiomáticos. Um diz respeito à memória em geral, o outro à memória social em particular. \"o que se refere à memória em geral, podemos observar que a nossa experiência do presente depende em grande medida do nosso conhecimento do passado. Entendemos o mundo presente num contexto que se liga causalmente a acontecimentos e a objectos do passado e que, portanto, toma como referência acontecimentos e objectos que não estamos a viver no presente. E viveremos o nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que podemos relacioná-lo. Daí a dificuldade de extrair o nosso passado do nosso presente: não só porque os factores presentes tendem a influenciar — alguns diriam mesmo distorcer — as nossas recordações do passado, mas também porque os factores passados tendem a influenciar, ou a distorcer, a nossa vivência do presente. Este processo, deve sublinhar-se, penetra nos mais ínfimos e quotidianos pormenores das nossas vidas. E assim que Proust nos mostra como as recordações que Mareei tinha do rosto de Swann estavam sobrecarregadas de memórias adicionais, pois o Swann que, na juventude de Mareei, se tornara uma figura familiar em todos os 2

L"ma importante correcção do discurso politicamente depurador do pós-industrialismo pode encontrar-se, por exemplo, nas obras de H. Schiller, Xiass Media and American Empire [Sova Iorque, 1969); The Mind Managers (Boston, 1973); Communkaiion and Cultural D^iinaticn í"\ova Iorque, 1977); Informal icm and the Crisis Economy (Oxford, 1986). Ver também a obra de A. Mattel art, Multinaiional Corporations and the Centrei ofdilture (trad. M Chanan, Bríghton, 1979). Ver F, Jameson, The PcHticaí Unconsãous (ítaca, 1981).

INTRODUÇÃO

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clubes então na moda, era muito diferente do Swann inventado pela tia-avó de Mareei — e assim ''visto", portanto, por Mareei — quando aparecia, à noite, em Combray. Swann, nessa época tão desejado em qualquer outro lugar, era tratado pela tia-avó de Mareei com a rude simplicidade de uma criança que brinca com uma peça de coleccionador sem maior circunspecção do que se se tratasse de um objecto de pouco valor. Do Swann que construíram para si próprios, os familiares de Mareei haviam excluído, na sua ignorância, muitos pormenores da vida que então levava no mundo elegante, pormenores esses que faziam com que outras pessoas, quando o encontravam, vissem todos os encantos entesourados no seu rosto. Neste rosto, despojado de todo o fascínio, a família de Mareei implantou um resíduo duradouro construído a partir das horas de convívio e de lazer que haviam passado juntos. O rosto de Swann, "o seu invólucro corporal", fora tão bem preenchido com este resíduo de reminiscência que "o seu Swann especial" se havia tornado, para a família de Mareei, numa "criatura viva e perfeita". Deste modo, mesmo um acto aparentemente tão simples como o que atrás descrevemos — "ver alguém conhecido" — é, em certa medida, e como nos lembra Proust, um processo intelectual, pois guarnecemos o contorno físico . ( da pessoa que olhamos com todas as idéias que já formámos a seu respeito 2 e, no retrato global que dela compomos nos nossos espíritos, essas idéias assumem o lugar mais importante. Por fim, "elas acabam por preencher tão completamente a curva das suas faces, por seguir de forma tão exacta a linha do seu nariz, misturam-se tão harmoniosamente com o som da sua voz, como se esta não fosse mais do que um invólucro transparente, que, cada vez que vemos o rosto ou ouvimos a voz, são essas idéias que nós reconhecemos e ouvimos". 4 No que diz respeito, em particular, à memória social, constatamos que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente. É uma regra implícita pressupor uma memória partilhada entre os participantes em qualquer ordem social. Se as memórias que têm do passado da sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar experiências ou opiniões. Esse efeito observa-se, talvez de forma mais evidente, quando a comunicação entre gerações é dificultada por diferentes conjuntos de memórias. De geração em geração, conjuntos diversos de memórias, freqüentemente sob a forma de narrativas de fundo implícitas, opor-se-ão uns aos outros, de tal modo que, embora as diferentes gerações estejam fisicamente presentes, umas perante as outras, num determinado cenário, podem permanecer mental e emocionalmente isoladas, como se as memórias de uma geração estivessem, por assim dizer, irremediavelmente encerradas nos cérebros e nos corpos dos indivíduos dessa geração. Proust mostra-nos o desconcertan4

M. Proust, Remcmbrnmy o/Tíiings Pnst (trad. C. K. ScottMoncrieíf oT. Kilmnriin, Londres, m\),Vo\\.,p. 20.

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te efeito de alienação, a sensação de choque mental, que resulta da intersecção de memórias incomensuráveis. Mostra-o na experiência de Mareei, quando este regressa à sociedade elegante após uma longa ausência e tenta, através da duquesa de Guermantes, estabelecer conversa com uma jovem americana que ouvira falar muito dele e era considerada uma das mulheres mais elegantes de então, mas cujo nome Mareei desconhecia inteiramente. Conversar com ela foi agradável, mas tornou-se difícil, para Mareei, pela novidade dos nomes da maior parte das pessoas de quem ela falava, embora fossem exactamente aquelas que na altura formavam o núcleo da sociedade elegante. E o contrário era igualmente verdade: a seu pedido Mareei contou muitas historietas do passado, mas muitos dos nomes por ele pronunciados nada significavam para ela, jamais ouvira falar neles. Isto não se devia apenas ao facto de ela ser jovem. Como não estava há muito tempo em França, onde, quando chegara, não conhecia ninguém, só começara a mover-se na sociedade elegante alguns anos depois de Mareei se haver retirado dela. A conversa era ininteligível porque havia um intervalo de vinte e cinco anos entre a vivência dos dois no mesmo mundo social. Por isso, embora no seu discurso normal ela e Mareei utilizassem a mesma linguagem, quando se tratava de nomes — ou seja, quando se tratava de efectuar uma tentativa de permuta de memórias socialmente legitimada — os seus vocabulários nada tinham em comum. 5 Podemos afirmar, deste modo, que as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens desse passado servem normalmente para legitimar a ordem social presente. E, contudo, estas questões, ainda que verdadeiras, são insuficientes quando colocadas desta forma. É que as imagens do passado e o conhecimento dele recolhido são, conforme pretendo demonstrar, transmitidos e conservados através de performances (mais ou menos rituais).6 - Procurando demonstrar aquela asserção, começarei por considerar um exemplo paradoxal: o da Revolução Francesa. É um caso paradoxal porque, se há momento em que não se esperaria encontrar a memória social em acção, esse deve ser seguramente o das grandes revoluções. Mas uma coisa que tende a ser esquecida a respeito da Revolução Francesa é que, como todos os começos, envolveu recordação. Outra é o ter envolvido também uma decapitação e uma alteração no vestuário usado pelas pessoas. Creio que estes factos estão relacionadas e que aquilo que podemos dizer sobre essa relação é generalizável. Creio, além disso, que a resposta para a questão acima colocada — como é transmitida e conservada a memória dos grupos — exige 5 6

M. Proust, Remembrance ofThings Past, vol. III, pp. 1007-9. Optou-se pelo uso de "performance", em lugar do vocábulo "desempenho", para não se perder a relação daquele primeiro termo com os de "performativo" e "performatividade", estrangeirismos que não têm equivalente aceitável na língua portuguesa. {N. do E.)

INTRODUÇÃO

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que se reúnam essas duas coisas (recordação e corpos) de uma maneira em que poderíamos não ter pensado antes. Poderíamos não o ter pensado porque a recordação, ao ser tratada como actividade cultural e não individual, tendeu a ser olhada como a lembrança de uma tradição cultural, e tal tradição, por sua vez, tendeu a ser pensada como algo inscrito. Mais de dois milênios — na realidade, toda a história da actividade hermenêutica explícita — pesam a favor deste pressuposto. E verdade que, há já muito tempo, a unidade da hermanêutica tem sido vista como residindo na unidade dum procedimento que é, em princípio, aplicável a qualquer objecto e a qtialquer prática capaz de transportar sentido. Textos legais e teológicos, obras de arte, actos rituais, expressões corporais — todos eles são objectos passíveis de uma actividade interpretativa. Contudo, embora as práticas corporais estejam, em princípio, incluídas como objectos possíveis da investigação hermenêutica, na prática a hermenêutica tomou a inscrição como seu objecto privilegiado. Nasceu a partir dela e, ao longo da sua história, regressou constantemente à relação com a tradição que se focaliza na transmissão do que ficou inscrito nos textos, ou, pelo menos, nos testemunhos documentais que se considera terem um estatuto comparável ao dos textos por serem constituídos à imagem e semelhança de um texto. 2 É contra este contexto antitético que vou procurar explicar como as práticas de tipo não inscrito são transmitidas na tradição e como tradição. O leitor deve, talvez, ser esclarecido acerca do método de abordagem utilizado para este fim. Aquilo que se segue é exposto menos sob a forma de tratado do que na de uma investigação analítica. O método é cumulativo. Apesar da variedade dos tópicos em discussão, existe entre eles uma relação lógica estreita, que implicou um estreitar progressivo da focalização. Argumentarei que, se a memória social existe, é provável que a encontremos nas cerimônias comemorativas, mas estas provam sê-lo apenas na medida em que são performativas. A performatividade não pode ser pensada sem um conceito de hábito, e este não pode ser pensado sem uma noção de automatismos corporais. Deste modo, procurarei mostrar que existe uma inércia nas estruturas sociais que não é explicada de forma adequada por qualquer das ortodoxias correntes sobre o que é uma estrutura social.

Capítulo 1 A MEMÓRIA SOCIAL

1 Todos os inícios contêm um elemento de recordação, e isto acontece principalmente quando um grupo social faz um esforço concertado para começar . , de um ponto de partida inteiramente novo. Existe algo de completamente 2 arbitrário na própria natureza de qualquer início assim intentado. O início não tem absolutamente nada a que agarrar-se, é como se saísse do nada. Por um momento, o momento do início, tudo se passa como se os iniciadores tivessem abolido a própria seqüência da temporalidade e houvessem sido expulsos da continuidade da ordem temporal. Na verdade, os protagonistas registam muitas vezes o sentimento que têm deste facto, inaugurando um novo calendário. Mas o que é totalmente novo é inconcebível. Não é só por ser muito difícil começar de um ponto de partida inteiramente novo, por existirem inúmeros hábitos velhos e lealdades que inibem a substituição de um empreendimento antigo e já estabelecido por um novo. Mais importante ainda é o facto de, em todas as formas de conhecimento, fundamentarmos sempre as nossas experiências particulares num contexto anterior para garantirmos que são de todo inteligíveis, e que, antes de qualquer experiência isolada, a nossa mente se encontra já predisposta com uma estrutura de contornos, de formas conhecidas de objectos já experimentados. Compreender um objecto ou agir sobre ele é localizá-lo neste sistema de expectativas. O mundo do inteligível, definido em termos de experiência temporal, é um corpo organizado de expectativas baseadas na recordação. A\O tentar conceber como seria um início histórico, a imaginação moderna tem regressado sistematicamente aos acontecimentos da Revolução Francesa. Esta ruptura histórica, mais do que qualquer outra, assumiu para nós o estatuto de mito moderno, apossando-se desse estatuto muito rapidamente. Toda a reflexão sobre a história, no continente europeu, durante o século XIX, olha para trás, para o momento dessa revolução em que o próprio 7

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significado de revolução se transformou — ao seu uso para designar u m movimento circular substituiu-se o da identificação com o advento do novo.1 Aqueles que vieram depois olhavam o presente como um tempo de queda na nostalgia de uma era pós-heróica, ou como um estado de crise permanente — a antecipação, por uns esperada e por outros temida, de uma insurreição recorrente.2 O imaginário revolucionário estendeu-se para além do coração da Europa. Vivemos o mito da Revolução desde finais do século XIX, muito à semelhança da forma como as primeiras gerações cristãs viveram o mito do fim do mundo. Já em 1798, Kant comentava que um fenômeno desta espécie jamais poderia ser esquecido. Contudo, este início, que nos proporciona o nosso mito de um início histórico, serve também, e de forma ainda mais completa, para pôr em relevo o momento de recordação que existe em todos os começos aparentes. O trabalho de recolecção operava de muitas formas, explícita e implicitamente, e a níveis muito diferentes de conhecimento. Mas o que tenciono destacar aqui, para um comentário específico, é o modo como a recordação actuou em duas áreas distintas da actividade social: nas cerimônias comemorativas e nas práticas corporais.

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0 início que se buscava no julgamento e execução de Luís XVI de França ilustra este processo de uma forma particularmente dramática. Os líderes da Revolução que julgaram Luís enfrentavam um problema que não se colocava apenas a eles. Era um problema com que se defronta qualquer regime — o que foi inaugurado pelos julgamentos de Nuremberga, por exemplo — que procure estabelecer, de forma definitiva, a instauração total e completa de uma nova ordem social. O regicídio de 1793 pode ser visto como exemplo de um fenômeno mais geral: o julgamento por decreto feito por um regime substituto, julgamento esse que é diferente de qualquer outro. Pertence a uma espécie diversa dos que têm lugar sob a autoridade de um regime há muito estabelecido. Não é como aqueles actos de justiça que reforçam um sistema de retribuição aplicando uma vez mais os seus princípios fundamentais, ou modificando os pormenores da sua aplicação. Não é um elo mais numa seqüência de determinações através das quais um regime adquire maior solidez ou avança para a desintegração final. Aqueles que aderem mais 1 2

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Os termos desta transformação são expostos no artigo de R. Koselleck, "Der neuzeitliche Revolutionsbegriff ais geschichtliche Kategorie", Studium Generale, 22 (1969), pp. 825-38. Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19. Jahrhundert", Historische Zeitschrift, 170 (1950), pp. 233-71; G. Steiner, "The Great Ennui", in In Bluebeard's Castle: Some Notes Towards the Redcfinitkm ofCulture (Londres, 1971), pp. 11-27. í. Kant, "Der Streít der Fakultãten" (1778), Philosophische Bibliothek, 252, p. 87.

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resolutamente aos princípios do novo regime e os que sofreram mais severamente às mãos do velho não desejam apenas a vingança de ofensas particut lares e uma rectificação de Lniquidades específicas — o que buscam é algo de decisivo, em que a luta persistente entre a nova ordem e a antiga acabou definitivamente, porque a legitimidade dos vencedores ficará validada de uma vez por todas. É necessário erguer-se uma barreira contra a transgressão futura. O presente deve ser separado daquilo que o precedeu por um acto de demarcação inequívoco. O julgamento feito por um regime substituto é semelhante à construção de um muro, indiscutível e permanente, entre os novos começos e a velha tirania. Julgar as práticas do regime anterior é o acto . constitutivo da nova ordem. 4 O julgamento e a execução de Luís XVI não foram o assassínio de um governante, mas a revogação de um princípio de governo: o princípio segundo o qual o poder dinástico era o único sistema político imaginável. Na verdade, anteriormente fora possível enquadrar o regicídio nos parâmetros desse sistema. Durante séculos, os reis haviam sido mortos por candidatos a reis, por assassinos privados a soldo de candidatos a reis, ou, mais raramente, por fanáticos religiosos como os que assassinaram Henrique III e Henrique IV da França. Mas, fosse qual fosse o destino que pudesse atingir os reis como ^ indivíduos, o princípio da sucessão dinástica permanecia intacto. Quer se devessem a causas naturais, quer fossem o resultado de assassínios, a morte dos reis e a coroação dos seus sucessores eram episódios compreensíveis no continuum da linhagem. Por que razão o assassínio dos reis deixava a instituição da realeza intacta? Porque, como Camus afirmou sucintamente, nenhum dos assassinos imaginou alguma vez que o trono pudesse ficar vazio. 5 Nenhum dos novos governantes, por outras palavras, pensara jamais ser do seu interesse pôr a instituição da monarquia em causa. Uma vez coroados, procuravam preservar para si próprios a autoridade real da pessoa cuja morte haviam instigado. Esta forma de regicídio deixava o sistema dinástico incontestado: os marcos temporais eram ainda as fases da ordem dinástica. A morte de um rei registava uma quebra nesse tempo público: entre um rei e o seguinte o tempo parava. Havia um hiato — um interregno — que as pessoas procuravam fosse o mais breve possível. Quando Luís XVIII de França datou a sua ascensão ao trono a partir da execução do seu predecessor, permanecia fiel a este princípio dinástico. Concebia o regicídio tal como este sempre foi concebível, no contexto da soberania dinástica, um contexto em que os assassínios podiam sempre ajustar-se como episódios na narrativa da continuidade dinástica. Um contexto, na verdade, em que o assassínio não

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Sobre o julgamento por decreto realizado pelos regimes substitutos, ver O. Kirchhoimer, Political justice: The lhe of Legal Procedure for Política! Ends (Prínceton, 1961), pp. 304 e seguintes. A. Camus, The Rebel (trad. A. Bower, Londres, 1953), p. 112.

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era tanto uma ameaça ao poder da dinastia, como uma homenagem implícita a este. O assassínio deixava intacto o princípio da soberania dinástica, porque deixava o rei inviolado, enquanto pessoa pública. Toda a essência do julgamento e da execução de Luís residiu na sua publicidade cerimonial. Foi isso que o matou na sua capacidade pública, ao recusar-lhe o seu estatuto de rei. O princípio dinástico foi destruído não por assassínio, nem por prisão ou desterro, mas sim pela condenação à morte de Luís, como encarnação da realeza, feita de tal maneira que a rejeição pública oficial da instituição da monarquia ficou expressa e testemunhada de forma indubitável. b Os revolucionários precisavam de encontrar um qualquer processo ritual através do qual a aura de inviolabilidade que cercava a realeza pudesse ser explicitamente repudiada. Deste modo, aquilo que repudiavam não era só uma instituição,-mas a teologia política que a legitimava. 7 Essa teologia política, a crença de que o rei unia na sua pessoa um corpo natural, como indivíduo, e um corpo representativo, como rei, era expressa muito claramente na cerimônia da coroação. Exprimia-se não só no acto da coroação, mas também na unção realizada por um bispo da Igreja coma frase, de suprema importância, que anunciava que o rei ungido governava "pela graça de Deus", dupla componente que conferia ao ritual da coroação o seu caracter % quase sacramentai. Durante mil anos os reis da França haviam recebido nas cabeças, no acto da coroação, não só as coroas como o óleo sagrado, à maneira dos sucessores dos apóstolos. Tal acto transformava os inimigos da realeza em pessoas abertamente sacrílegas. Foi este o efeito que o regicídio público de Luís procurou contrariar. Residia aqui o elemento oximorónico deste regicídio: a Luís seria feito um funeral régio para acabar com todos os funerais régios. A cerimônia do seu julgamento e execução destinava-se a exorcizar a memória de uma cerimônia anterior. A cabeça ungida foi decapitada e o ritual da coroação cerimonialmente revogado. Não foi só o corpo natural do rei que foi morto, mas também — e sobretudo — o seu corpo político. Neste processo, os actos dos revolucionários apropriaram-se da linguagem do sagrado que, durante tanto tempo, o poder dinástico tinha usurpado como sua. A vítima compreendeu claramente que este era um acontecimento decisivo para a morte da teologia política. Luís XVI, à semelhança de Carlos I de Inglaterra, identificou-se explicitamente com o Deus morto ao falar da sua derrota como Paixão.8 Os procedimentos usados no 6 7

Sobre a distinção entre o significado do assassínio privado.e o da execução pública dos reis, ver M. Walzer, Regiáde and Rroolution (Cambridge, 1974). Sobre a teologia política da realeza, ver, em especial, E. H. Kantorowicz, The Kings Two Bodies: A Study in Medieval Política} Tfieologx/ (Prínceton, 1957); M. Bloch, The Royal Tonch: Sacred Monarchy and Scrofula in England and Trance (trad. J. E. Anderson, Londres, 1973); L. Hunt, Politics, Culturc, and Class in the Prench Rcvolution (Berkeley, 1984). Ver também F. Kern, Kingship and Lazv in the Middle Ages (Nova Iorque, 1970); M. Waker, Regiáde and Revoluiion (Cambridge, 1974).

A MEMÓRIA

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julgamento e execução destruíram cerimonialmente o sentimento de sacrilé. gio que havia rodeado o assassínio dos reis. Um rito revogou o outro. Um rito que revoga uma instituição só faz sentido se evocar, de forma invertida, os outros ritos que até então a confirmavam. O fim ritual da realeza era um ajuste de contas e uma exposição daquilo que se repudiava. A rejeição do princípio do poder dinástico — neste caso a encenação ritual dessa rejeição — continuava a ser uma exposição e uma evocação do poder dinástico agora inútil. Este problema é semelhante ao que se levanta quanto à questão da instituição da propriedade. Algumas pessoas roubam as outras, defraudam-nas, ou apoderam-se da sua produção. Podem adquirir de todas . estas maneiras haveres por meios que não são sancionados pelos princípios de justiça dominantes, no que diz respeito à propriedade. A existência de uma injustiça passada e a memória duradoura dessa injustiça levantam a questão da rectificação das injustiças. Na verdade, se a injustiça passada configurou a estrutura das disposições actuais de uma sociedade quanto à posse da propriedade nas suas várias formas — ou, analogamente, se se considera que a injustiça passada configurava a estrutura das disposições que fundamentam a soberania duma sociedade —, coloca-se a questão de se saber o que se deveria fazer, se é que alguma coisa deveria ser feita, para rectificar as 2 injustiças. Que espécie de responsabilidade criminal e que obrigações têm os autores da injustiça passada para com aqueles cuja posição é pior do que teria sido se a injustiça não tivesse sido perpetrada? Até onde se deve recuar no levantamento da memória da injustiça passada, na limpeza do registo histórico das acções ilegítimas? Construir uma barreira entre o novo começo e a velha tirania é recordar a velha tirania. Os estilos de vestuário característicos do período revolucionário celebravam, se não definitivamente um começo, pelo menos uma libertação temporária das práticas da ordem estabelecida, marcaram a tentativa de estabelecer um novo conjunto de práticas corporais típicas. Os participantes na revolução exibiam uma forma de comportamento que não era um seu exclusivo. Esse comportamento encontra-se em todos os carnavais que marcam a suspensão da posição hierárquica, dos privilégios, das normas e das proibições. 0 Durante o período revolucionário, os estilos de vestuário, em Paris, passaram por duas fases. Na primeira, que dominou os anos de 1791-94, as roupas transformaram-se em uniformes. A culotte de corte simples e a ausência de adornos simbolizavam o desejo de eliminar barreiras sociais na luta pela igualdade: ao tornarem o corpo neutro, os cidadãos deviam ficar üvres para se relacionar uns com os outros sem a intromissão das diferenças

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Ver Walzer, Regicitlr mui Rcvolution, p. 1S. Sobre o Carnaval, ver M. Bakhtin, Rtibelmz mui his Worírf (trad. H. Iswolsky, Camhrid^o, Mass., 1%8), pp- 196-277; e, para uma exploração mais recente dos temas sugeridos por Bakhtin, R Stailybrasse A. White, Hie Politirsmul PacticsofTmiwcwoii (Londres, 1086).

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de condição social. Durante a segunda fase, que dominou os anos do Termidor, a partir de 1795, a liberdade no vestir veio a significar livre movimento corporal. As pessoas começaram, então, a vestir-se como que para exibir o corpo uns aos outros, na rua, e para expor os movimentos do corpo. A merveilleuse, a mulher da moda, usava panos de musselina leve, que revelavam generosamente a forma dos seios e não cobriam nem os braços nem as pernas abaixo dos joelhos, enquanto a musselina permitia ver o movimento dos membros quando o corpo mudava de posição. O seu correspondente masculino, o incroycible, usava um fato em forma de cone com a extremidade virada para o chão; calças muito justas encimadas por casacos curtos que terminavam em colarinhos altos e exagerados, gravatas vistosamente coloridas e cabelo desgrenhado ou cortado rente ao modo dos escravos romanos. Enquanto o estilo da merveilleuse significava uma libertação da moda, o do incroycible pretendia ser uma paródia ao alfaiate. O incroyable parodiava os Macaronis, alfaiates da moda na década de 1750, usando lornhões e andando com passos amaneirados. Este foi um momento na história de Paris em que as regras inibitórias estiveram suspensas, em que, tal como em qualquer Carnaval, as pessoas agiam em conformidade com a sua percepção de que a autoridade estabelecida era, na realidade, uma questão de prescrição local.10 Se os revolucionários rejeitavam as práticas de comportamento corporal dominantes sob o Antigo Regime, era porque sabiam que existe um hábito de servidão incorporado no comportamento do grupo servil através dos seus próprios hábitos de comportamento corporal. Era isto que queriam dizer os representantes do Terceiro Estado quando protestaram, em Maio de 1789, primeiro contra o seu humilhante traje oficial e depois, quando isso já fora alterado, contra a própria idéia de um traje que os distinguisse dos representantes da nobreza. Num panfleto datado de 2 de Maio de 1789, atacaram a convenção que exigia que os deputados usassem trajes diferentes, de acordo com o estado a que pertenciam. Uma tal prática, declararam, perpetuava uma desigualdade inaceitável que destruía a própria essência da Assembléia. O que ela perpetuava era a desigualdade, sob uma forma incorporada. Essa tradição de prática corporal, de acordo com a qual os estratos mais altos da sociedade saíam à rua com trajes requintados que, além de os destacar dos estratos inferiores, lhes permitiam dominar a rua, era ainda reforçada pelas leis sumptuárias que estipulavam, para cada estrato social da hierarquia, um conjunto de trajes adequados e proibiam que alguém usasse o vestuário oficial e publicamente declarado como conveniente para outro estrato social. Os representantes do Terceiro Estado exigiam uma transgressão autorizada, um acto transgressor cujo objectivo não entroncava simplesmente no início premeditado de uma actividade política futura, mas também no exercício de 10

A respeito das modas de vestuário durante a Revolução Francesa, ver Sennett, The Fali of Public Man (Cambridge, 1975), pp. 183 e seguintes.

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imaginação retrospectiva que recordava uma época e uma ordem social em que as saídas à rua eram indicadores precisos da hierarquia social.11 Tem-se argumentado — Burke é o porta-voz proeminente de um tal ponto de vista e Oakeshott um seu representante recente e exemplar — que a ideologia política "não [deve ser] entendida como um princípio, independentemente premeditado, para a actividade política", mas sim como conhecimento, sob uma forma abstracta e indefinida, "de uma maneira concreta de lidar com as configurações da sociedade"; que as ideologias, tal como são expressas, sob a forma de programas políticos ou dç princípios oficiais, nunca podem ser mais do que compêndios de alguma forma de comportamento concreto e que uma tradição de comportamento consiste inevitavelmente num conhecimento detalhado, pois "o que tem de ser aprendido não é uma idéia abstracta, ou um conjunto de competências, nem mesmo um ritual, mas um modo concreto e coerente de vida em toda a sua complexidade". 12 Uma tal compreensão, diz-se freqüentemente, é apanágio dos verdadeiros conservadores, mas os representantes do Terceiro Estado, ao atribuírem uma tal importância aos pormenores do vestuário quotidiano, mostraram-se tão conscientes como os seus opositores de que o vestuário tinha a função de dizer algo sobre a condição da pessoa que o usava e, o que é igualmente importante, de tornar i essa informação habitual. Interpretar ou usar roupas é, num aspecto significativo, semelhante a ler ou a compor um texto literário. Ler ou compor um texto literário e um texto pertencente a um gênero particular de literatura não significa abordá-lo sem uma idéia preconcebida. É necessário empregar uma compreensão implícita das operações do discurso literário que nos informa sobre aquilo que devemos procurar, ou como iniciar a composição. Só os detentores da competência literária necessária seriam capazes de dar sentido a um novo encadeamento de frases, ao lê-las como literatura de um determinado gênero. Analogamente, só aqueles que possuíssem a competência social necessária seriam capazes de entender o vestuário do incroyable como uma paródia aos Macaroni. Tal como um grupo interiorizou a gramática da literatura, que lhe permite converter frases lingüísticas em estruturas e significados literários, assim outro interiorizou a gramática do vestuário, que lhe possibilita converter peças de vestuário em estruturas e significados de vestuário. Alguém que não possua tais competências, alguém não familiarizado com as convenções que orientam a leitura das obras de ficção ou a forma de vestir das pessoas, ficaria, por exemplo, assaz perplexo se fosse confrontado com um poema lírico ou com uma pessoa vestida ao estilo de um incroyable. Ao ler literatura, atribui-se um gênero ao objecto em questão, ao interpretar o vestuário procede-se de maneira semelhante. Uma característica literária individual, 11 12

Ver Sennett, The Fali of Public Man (Cambridge, 1975), pp. 64-72. M. Oakeshott Rationalism in Politic? (Londres, 1962), p. 119.

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ou uma característica de vestuário individual, tem significado porque é apreendida como parte de um conjunto global de significados e, em cada caso, este tipo de conjunto deve constituir uma indicação mais ou menos explícita sobre a espécie de afirmação ou de vestuário que está a ser interpretada. A menos que os intérpretes possam conjecturar sobre o tipo de significado que está perante si, não têm qualquer meio para unificar os seus encontros passageiros com os pormenores. E esta subordinação da experiência particular a um tipo ou gênero não é, pura e simplesmente, um processo de identificar certas características específicas. Envolve também um conjunto de expectativas em virtude das quais se acredita que muitas das características não examinadas na nova experiência serão idênticas às que são próprias de experiências anteriores, ou, não sendo idênticas, que serão descritíveis em termos do seu grau de divergência relativamente a esse conjunto de expectativas. Esta estrutura de expectativas implícitas é sempre componente de um tipo — um tipo de literatura, ou um tipo de vestuário — porque é em virtude delas que se pode classificar um novo exemplo antes de este ser completamente conhecido. 13 Nos dois casos que acabámos de observar — o do julgamento e execução cerimoniais e o das novas práticas de vestuário desenvolvidas — encontramos um traço comum — a tentativa de romper definitivamente com uma ordem social mais antiga enfrenta uma espécie de sedimento histórico e ameaça afundar-se nele. Quanto mais absolutas são as aspirações do novo regime, mais imperiosamente este procurará introduzir uma era de esquecimento forçado. Dizer que as sociedades são comunidades que se auto-interp r e t a m é m o s t r a r a natureza desse sedimento, mas é importante acrescentar-se que entre as mais poderosas destas auto-interpretações estão as imagens que as sociedades criam e preservam de si próprias como sendo continuamente existentes. É que a consciência individual do tempo é, em grande medida, uma percepção da continuidade da sociedade ou, mais exactamente, da imagem dessa continuidade que a sociedade cria. Sugeri, a respeito da Revolução Francesa, que pelo menos uma parte deste sedimento se encontra nos repetidos actos comemorativos e pelo menos parcialmente em práticas corporais culturalmente específicas. Esse sedimento era composto, como o mostra a cerimônia do regicídio, por sentimentos para com o rei, ou melhor, para com a sua condição real, que traziam a marca de crenças passadas enraizadas nas religiões e em formas de pensamento antigas que deixaram atrás de si um sentido do inviolado e inviolável. E por isso que a execução pública de Luís foi sentida por todos os seus contemporâneos como 13

Para um debate sobre expectativas e estilos, ver, em especial, E. D. Hirsch, Vaüdity in Interprctation (New Ha ven, 1967). Pode encontrar-se um tratamento sintético destes temas em G. Buck, "The Structure of Hermeneutic Experience and the Problem of Tradition", Neiv Literary History, 10 (1978), pp. 31-48.

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um acontecimento tão terrível. Era também composto, como o ilustram as práticas de vestuário do primeiro período revolucionário e do Termidor, pelos preceitos hierárquicos incorporados nas práticas corporais habituais. Foi por isso que os novos modelos da década de 1790 foram sentidos pelos participantes como uma libertação tão inebriante. O regicídio foi uma revogação ritual, a licenciosidade do vestuário uma libertação carnavalesca. Em ambos os tipos de acção vemos as pessoas tentarem demarcar as fronteiras de um começo radical e, em nenhum dos casos, esse início, essa nova imagem da continuidade da sociedade, é sequer imaginável sem o seu elemento de recordação —- uma recordação tanto explícita como implícita. A tentativa de estabelecer um ponto de partida toma inexoravelmente como referência um padrão de memórias sociais.

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É necessário distinguirmos a memória social de uma prática mais específica, a que é preferível chamar actividade de reconstituição histórica. O conhecimento de todas as actividades humanas passadas só é possível através do conhecimento dos seus vestígios. Sejam os ossos sepultados em fortificações romanas, um monte de pedras que é tudo o que resta duma torre normanda, uma palavra numa inscrição grega cuja utilização ou forma revelam um costume, ou ainda uma narrativa escrita pela testemunha de uma cena qualquer, aquilo com que o historiador trabalha são vestígios — isto é, as marcas, perceptíveis pelos sentidos, deixadas por um fenômeno qualquer em si inacessível. O simples facto de se apreenderem tais marcas como vestígios de alguma coisa, como testemunhos, significa que já se ultrapassou o estádio da sua mera descrição. Considerar algo como testemunho é fazer uma afirmação acerca de outra coisa, nomeadamente daquilo que se considera testemunhar. Tal significa que os historiadores agem dedutivamente, investigam os testemunhos de forma muito semelhante à dos advogados, quando estes contra-interrogam as testemunhas na sala de um tribunal, extraindo do testemunho informação que este não contém explicitamente, ou que contradiz as próprias afirmações manifestadas. Essas partes do testemunho constituídas por declarações prévias não são privilegiadas em sentido algum. Uma afirmação prévia que reclama ser verdadeira tem, para o historiador, a mesma importância que qualquer outro tipo de testemunho. Os historiadores são capazes de rejeitar algo que lhes é dito explicitamente nos seus testemunhos e substituí-lo pela sua própria interpretação dos acontecimentos. E mesmo que aceitem, de facto, aquilo que lhes diz uma afirmação prévia, fazem-no não por essa afirmação existir e se considerar que tem autoridade, mas sim porque é julgada de forma a satisfazer os critérios de verdade

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histórica do historiador. Longe de confiarem noutras autoridades que não eles próprios, e a cujas afirmações deveriam ajustar o seu pensamento, os i historiadores são a sua própria autoridade. O seu pensamento é autônomo perante o testemunho no sentido em que possuem critérios de referência nos quais assenta a crítica do testemunho. 14 A reconstituição histórica não está, pois, dependente da memória social. Mesmo quando não chegou ao historiador qualquer afirmação sobre um acontecimento ou um costume, através de uma tradição ininterrupta ou a partir de testemunhas oculares, continua a ser-lhe possível redescobrir aquilo que fora completamente esquecido. Os historiadores podem fazê-lo, em parte, pela análise crítica das afirmações contidas nas suas fontes escritas — entendendo-se por fontes escritas aquelas que contêm declarações que sustentam, ou sugerem, alegados factos respeitantes ao assunto em que o historiador está interessado — e em parte pela utilização daquilo a que se chama fontes não escritas, por ' exemplo, o material arqueológico ligado ao mesmo assunto — designando-se ) estas últimas como fontes não escritas com o fim de se indicar que, dado não serem textos, não contêm declarações já feitas. Mas a reconstrução histórica continua a ser necessária mesmo quando a memória social preserva o testemunho directo de um acontecimento, pois se um historiador está a trabalhar num problema da história recente e recebe,% em primeira mão, uma resposta imediata à própria questão que está a colocar aos testemunhos terá, então, necessidade de questionar essa afirmação para que esta possa ser considerada como testemunho. E isto sucede mesmo quando a resposta que o historiador recebe lhe é dada por uma testemunha ocular, ou pelo autor daquilo que está a investigar. Os historiadores não continuam a questionar as declarações dos seus informantes por pensarem que estes os querem enganar, ou foram eles próprios induzidos em erro. Os historiadores continuam a questionar as declarações dos seus informantes porque, se as aceitassem pelo seu valor facial, isso eqüivaleria a prescidirem da sua autonomia como historiadores no exercício da sua profissão. Teriam, então, renunciado à sua independência relativamente à memória social. Uma independência baseada na reivindicação do direito de decidir por si próprios, através dos métodos próprios da sua ciência, quanto à solução correcta dos problemas que surgem no decurso dessa prática científica. Apesar desta independência relativamente à memória social, a prática de reconstituição histórica pode receber, de formas importantes, um impulso orientador da memória dos grupos sociais e, por sua vez, dar-lhe um contorno significativo. Um caso particularmente extremo de uma tal interacção ocorre quando um aparelho de Estado é utilizado, de forma sistemática, para 14

Ver R. Collingwood, The Idea ofHistory (Oxford, 1946), especialmente as pp. 266 e seguintes; e J. Goldstein, Historical Knowkdge (Austin, Texas, 1976), especialmente pp. 13-16 e 52-9.

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despojar os cidadãos da sua memória. Todos os totalitarismos agem deste modo. Aescravização mental dos súbditos de um regime totalitário inicia-se quando as suas recordações lhes são retiradas. Quando uma grande potência quer despojar um pequeno país da sua consciência nacional, utiliza o método do esquecimento organizado. Só na história checa este olvido organizado foi instituído por duas vezes, depois de 1618 e posteriormente a 1948. Os escritores contemporâneos são proscritos, os historiadores são demitidos das suas funções e as pessoas, silenciadas e despedidas dos seus empregos, tornam-se invisíveis e são esquecidas. O que horroriza nos regimes totalitários é não só a violação da dignidade humana, mas também o medo de que não fique ninguém que possa, algum dia, testemunhar correctamente sobre o passado. A evocação por Orwell de uma tal forma de governo não é menos perspicaz na sua compreensão deste estado de amnésia colectiva. Contudo, verificou-se mais tarde — na realidade, não no Mil Novecentos e Oitenta e Quatro — que existiam pessoas que compreenderam que a luta dos cidadãos contra o poder de Estado é a luta da sua memória contra o esquecimento compulsivo e que fizeram sempre desta luta o seu objectivo não só para se salvarem a si próprias, mas também para sobreviverem como testemunhas para as gerações vindouras, tornando-se incansáveis arquivadores: os nomes de Soljenitzine Wiesel são um exemplo entre muitos outros. Em tais circunstâncias, a escrita de histórias da oposição não é a única prática de uma reconstrução histórica documentada, mas, precisamente por o ser deste modo, preserva a memória dos grupos sociais cuja voz teria, de outra maneira, sido silenciada. A historiografia das Cruzadas é também um testemunho eloqüente quanto ao papel dos escritos históricos na formação da identidade política. Os historiadores medievais muçulmanos não partilhavam com os cristãos europeus medievais o sentimento de estarem a assistir a uma grande luta entre o islão e a cristandade pelo controlo da Terra Santa. Na vasta historiografia muçulmana dessa época, as palavras "cruzada" e "cruzados" nunca aparecem. Os historiadores muçulmanos coevos referiam-se aos cruzados chamando-lhes infiéis ou francos e viam os ataques que eles desencadeavam na Síria, no Egípto e na Mesopotâmia, entre os finais do século XI e o termo do século XIII, como sendo, em geral, fundamentalmente semelhantes às anteriores guerras travadas entre o islão e os infiéis: na própria Síria, no século X; no Andaluz, durante a Reconquista cristã; e na Sicília, contra os Normandos. Não é possível encontrar uma história das Cruzadas nos escritos históricos muçulmanos dessa época, estes contêm apenas, no máximo, fragmentos daquilo que uma tal história poderia ser incrustados em tratados sobre outros assuntos. A historiografia muçulmana medieval só acidentalmente é uma história das Cruzadas. Porém, depois de 1945 um corpo crescente de escritos históricos árabes tomou as Cruzadas como tema, as Cruzadas tornaram-se achialmente uma palavra de código para designar as

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intenções malignas dos poderes ocidentais. Os historiadores muçulmanos passaram a ver um certo paralelismo entre o período dos séculos XII e XIII e os últimos cem anos. Em ambos os casos, o Médio Oriente islâmico foi ' atacado por forças européias que conseguiram impor o seu controlo sobre uma grande parte da região. De um ponto de vista muçulmano, as Cruzadas passaram a ser consideradas como a primeira fase da colonização européia, a prefiguração de um movimento de longa duração que incluiria a expedição de Bonaparte, a conquista britânica do Egipto e o sistema de mandato no Levante. Consideram que esse movimento culminou na fundação do Estado de Israel e, em cada luta seguinte — a Guerra Israelo-Árabe de 1948, a Guerra do Suez, a Guerra dos Seis Dias — o estudo muçulmano das Cruzadas ganhou ímpeto. Os historiadores muçulmanos vêem agora paralelismos entre a ascensão e queda dos principados dos Cruzados e os acontecimentos ' contemporâneos. Os Cruzados, que atravessaram o mar e estabeleceram um Estado independente na Palestina, tornaram-se proto-sionistas. 15 > Um caso ainda mais paradoxal é o apresentado pela transformação da escrita histórica no século XIX. O paradoxo reside em dois aspectos antitéticos, se bem que igualmente essenciais, deste processo, tal como foi interpretado por aqueles que nele estiveram envolvidos. Insiste-se, por um lado, no estatuto privilegiado das ciências históricas, que resultaria do isolamento da * prática da compreensão metódica que nas ciências históricas ocorre face aos processos de interpretação que decorrem de forma implícita e generalizada no decurso da vida de todos os dias. Tal conduz ao sentimento de que a prática da pesquisa histórica permite criar uma nova distância relativamente ao passado, libertando as pessoas da tradição — a qual, de outro modo, poderia ter orientado as suas opiniões e o seu comportamento. Uma memória historicamente controlada opõe-se a uma memória tradicional não reflexiva.16 E, todavia, reconhece-se também que este mesmo projecto é impensável fora do seu enquadramento no contexto mais vasto de uma luta pela identidade política. Faz parte da história do nacionalismo, pois a transformação da escrita da história foi, em grande medida, obra dos grandes eruditos alemães Niebuhr e Savigny, Ranke e Mommsen, Troeltsch e Meinecke, todos eles ultimamente envolvidos na vida da sociedade política a que pertenciam. Aqueles autores rejeitaram qualquer forma de universalismo político e, em particular, os princípios de 1789, que reivindicavam o estabelecimento de regras de vida comunitária e de participação nas actividades do Estado, em 15

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Ver F. Gabrieli, "The Arabic Historiography of the Crusades", in B. Lewis e P. M. Holt (orgs.), Historians ofthe Middle East (Londres, 1962), pp. 98-107; B. Lewis, Histoiy: Remembered, Recorded, Invented (Prínceton, 1975); E. Sivan, "Modem Arab Historiography of the Crusades", Asian and Áfrican Studies, 8 (1972), pp. 102-49. Ver, por exemplo, A. Kohii-Kunz, Eritmerti und Vergessen (Berlim, 1972) e J. Ritter, "Die Aufgabe der Geisteswissenschaften in der modernen Geseílschaft", Schriften der Geseílschaft zar Forderung der Westfalischen Wilhelms-Universitat zu Münster, Heft 51 (Munique, 1961).

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princípio válidas para todos os povos. Afirmavam, em oposição àqueles princípios, a necessidade de tratar a lei não como uma maquinaria socialmente construída, mas como personificação e expressão da continuidade de uma nação. Quer escrevessem sobre a sua própria época, quer sobre culturas distantes, é o comprometimento político destas figuras proeminentes da escola histórica que introduz na sua obra o sentimento de que, ao construírem um cânone de pesquisa histórica, participavam simultaneamente na formação de uma identidade política e davam forma à memória duma cultura particular. 17 Nestes casos, a actividade de reconstrução histórica, quer seja sistematicamente reprimida, quer floresça expansivamente, leva à produção de histórias escritas, formais. Existe, contudo, um fenômeno mais informal processualmente e mais difundido culturalmente do que a actividade de produzir histórias deste tipo. A produção de histórias narrativas, contadas mais ou menos informalmente, revela-se como uma actividade básica para a caracterização das acções humanas, é um traço comum a toda a memória comunal. Consideremos o exemplo da vida na aldeia. Aquilo que falta num cenário aldeão não é apenas o espaço físico, mas também o espaço de actividade que enfrentamos habitualmente num contexto urbano. Estamos acostumados a mover-nos num meio de estranhos, onde muitas das pessoas que testemunham os actos e as declarações dos outros têm habitualmente pouco ou nenhum conhecimento da sua história, e escassa ou nula experiência de actos e declarações semelhantes no seu passado. É isto que torna difícil ajuizar se se pode acreditar numa dada pessoa e até que ponto o podemos fazer numa dada situação. Se queremos desempenhar um papel credível perante uma audiência de gente relativamente estranha, devemos produzir, ou pelo menos sugerir, uma história de nós próprios: um relato informal que indique algo sobre as nossas origens e que justifique, ou talvez desculpe, a nossa posição e acções presentes relativamente a essa audiência. 18 Mas esta representação do eu na vida quotidiana é desnecessária quando, como acontece com a vida numa aldeia, as falhas na memória partilhada são muito menos numerosas e mais pequenas. Em Combray, a aldeia de Proust, uma pessoa cuja história ''não se conhecia de todo" era um ser tão incrível como uma divindade mitológica. Nas várias ocasiões em que uma dessas espantosas aparições havia ocorrido na Rua de Saint-Esprit, ou na Praça, ninguém se lembrava de as inquirições exaustivas que se seguiam não terem, alguma vez, conseguido reduzir a fabulosa criatura às proporções duma pessoa a 17

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Ver, em especial, F. Meinecke, Histomw: Tfw Riwofa Nav Historiai! Outlook (trad. J. E. Anderson, Londres, 1972) e P. H. Reill, The Gerrnan Enlighhmmont and the Riseof Historie ism (Berkelev, 1975). Ver também I. Berlin, Viço and Herder (Londres, 1976) e P. Rossi "The Ideológica! Valeneies of Twenrieth-Cenrury Historiásm", Hfcton/and Tfuvty, Beiheft 14 (1975). Sobre o desempenho de papéis num grupo de estranhos, ver R. Sennett, pawm.

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quem "na verdade se conhecia", se não pessoalmente pelo menos de um modo abstracto, como sendo aparentada, de forma mais ou menos estreita, ; com alguma família de Combray.19 O Regresso de Martin Guerre mostra essa * mesma característica de um ângulo oposto. A espantosa aparição do princi- ; pai protagonista, que não pode fazer outra coisa senão fingir pertencer, é a = última anomalia num cenário onde a fraude é rara e jamais praticada em larga escala, porque o espaço entre aquilo que todos sabem sobre uma pessoa e aquilo que desconhecem a seu respeito é demasiado estreito para que o egoísmo e a perfídia possam levar à representação de um papel. O que mantém esse espaço unido é a bisbilhotice. A maior parte daquilo que acontece numa aldeia durante o dia será contado por alguém antes que o dia acabe, sendo esses relatos baseados na observação directa ou em informações em primeira mão. A bisbilhotice aldeã compõe-se destes relatos diários, combinados com as familiaridades mútuas de toda uma vida. Uma aldeia constrói, por este meio informal, uma história comunal contínua de si pró- > pria: uma história em que todos retratam, em que todos são retratados, e na qual o acto de retratar nunca tem fim. Isto deixa pouco ou nenhum espaço para a representação do eu na vida quotidiana, porque em grande medida os indivíduos recordam em comum. 20 Mais uma vez, se considerarmos a educação política dos grupos diri-* gentes, não podemos deixar de ficar surpreendidos com a diferença existente entre os seus arquivos políticos e as suas memórias políticas. O grupo dirigente utilizará o conhecimento que tem do passado de uma forma directa e activa.21 O seu comportamento e decisões políticas basear-se-ão numa investigação do passado, em especial do passado recente, conduzida pela sua polícia, pelos seus departamentos de pesquisa e pelos seus serviços administrativos, e estas investigações serão levadas a cabo com uma eficiência que é v revelada mais tarde, ocasionalmente, àqueles a quem diziam respeito, quando os documentos vêm à luz do dia após uma guerraA uma revolução, ou um escândalo público. Mas uma das limitações das provas documentais é a de 19 20

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M. Proust, Remembrance ofThings Past (trad. C. K. Scott Moncrieff e T. Kilmartin, Harmondsworth, 1981) vol. I, p. 62. Sobre a bisbilhotice na vida da aldeia, ver J. Berger, Pig Earth (Londres, 1979). Deve notar-se, todavia, que vários estudos recentes assumiram como tarefa sua,enquadrar a vida nas aldeias num contexto mais vasto e nacional, o "exterior" econômico e político, tendo esta abordagem histórica como resultado passarem as aldeias a ser menos olhadas como entidades estáticas e isoladas. Ver C. Bell e H. Newby, Community Studies: An Introduction to the Sociology ofthe Local Community (Londres, 1971); J. Boissevain e J. Friedl (eds.), Beyond Community: Social Process in Europe (Haia, 1975); J. Ennew, The Western Isles Today (Cambridge, 1980); S. H. Frajiklin, Rural Societies (Londres, 1971); A. Macfarlane, com S. Harrison e C. Jardine, Reconstructing Historical Communities (Cambridge, 1977), sobre o "mito da comunidade"; R. Schulte, "Village Life in Europe", Comparative Studies in Society and History, 27 (1985), pp. 195-206. Sobre a manipulação da memória política através do controlo dos registos, ver J. Chesneaux, Pasts and Futures, ort WJmt is History For? (Londres, 1978).

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que poucas pessoas se dão ao trabalho de pôr no papel aquilo que consideram óbvio. E, no entanto, muita actividade política terá sido alicerçada "naquilo que é óbvio", tacitamente aceite, o que pode observar-se de forma particularmente fácil numa esfera bastante técnica como a da diplomacia ou nos negócios de uma classe governante muito fechada. Neste sentido, e é um sentido importante, os arquivos políticos do grupo dirigente estão longe de esgotar a sua memória política. A distinção torna-se particularmente evidente quando os seus líderes necessitam de tomar decisões em crises que não conseguem entender globalmente e em que é impossível prever a conseqüência das suas acções. E então que terão' de recorrer a certas regras e crenças assentes, sendo as suas acções dirigidas por uma narrativa de fundo implícita que consideram óbvia. Deste modo, durante todo o século XVIII os homens de Estado continuaram a acreditar que, acima de todas as coisas, deviam impedir que qualquer outro poder ganhasse alguma vez um ascendente similar ao de Luís XIV, e relembravam a si próprios que não se deveria permitir que algo de semelhante às antigas guerras religiosas voltasse a suceder.22 Durante o século XIX era habitual interpretarem-se todas as insurreições violentas como sendo a continuação do movimento iniciado em 1789, de tal forma que as épocas de restauração surgiam como pausas durante as quais a corrente revolucionária se havia tornado subterrânea apenas para irromper de novo à superfície. Na altura de cada insurreição — em 1830 e 1832, em 1848 e 1851, ou em 1871 —, tanto os apoiantes como os opositores da revolução viam os acontecimentos como conseqüências directas de 1789.23 Mais uma vez, se queremos compreender as convicções de 1914, precisamos de avaliar as ligações entre os valores e as crenças inculcadas na escola e os pressupostos em que os políticos se basearam para actuar mais tarde na vida. São as idéias da geração anterior que devemos tomar em consideração para avaliarmos quão literalmente a doutrina da luta pela existência e da sobrevivência do mais forte era aceite por muitos líderes europeus em vésperas da Primeira Guerra Mundial. 24 Consideremos, por outro lado, o caso das histórias de vida. Afinal a maioria das pessoas não pertence às elites dirigentes, nem vive a história das suas próprias vidas principalmente no contexto de vida dessas mesmas elites. Há algum tempo, uma geração de historiadores, nomeadamente socialistas, viram na prática da história oral a possibilidade de salvarem do silêncio a história e a cultura dos grupos subordinados. As histórias orais procuram dar voz àquilo que, de outro modo, permaneceria mudo, ainda que não ficasse sem vestígios através da reconstituição das histórias de vida

22 23 24

Ver H. Butterfield, Tlw Discoiüitutities Between tlw Generatians m Histary (Cambridge, \972). Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19. Jahrhundert", Historiscíic Zcitschrift, 170 (1950), pp. 233-71. Ver J. Joll, 1914: The Unspoken Assumptions (Londres, 1968).

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individuais. Mas pensar o conceito de história de vida é já abordar a matéria com um quadro mental prévio e, assim, sucede que, por vezes, a linha de inquirição adoptada pelos historiadores orais estorva a concretização dos seus intuitos. Os historiadores orais relatam freqüentemente a ocorrência de um tipo característico de dificuldade no início das suas conversas. O entrevistado hesita e fica silencioso, protesta que nada há a contar que o entrevistador já não saiba. O historiador só irá exacerbar a dificuldade se encorajar o entrevistado a envolver-se numa forma de narrativa cronológica, pois isto introduz no material um tipo de modelo narrativo e, com ele, um padrão de recordação que é estranho a esse material. Ao fazer tal sugestão, o entrevistador está a ajustar inconscientemente a história de vida do entrevistado a um modelo preconcebido e alheio, modelo que tem a sua origem na cultura do grupo dirigente — é derivado da prática dos cidadãos mais ou menos famosos escreverem livros de memórias no final da vida. Esses escritores de memórias consideram as suas vidas dignas de serem recordadas porque são, a seus próprios olhos, pessoas que tomaram decisões e que exerceram, ou se presume que tenham exercido, uma influência mais ou menos vasta, e que mudaram, de forma evidente, parte do seu mundo social. A história "pessoal" do escritor de memórias confronta-se com uma história "objectiva" incorporada nas instituições ou na modificação, transformação, ou m e s m o ' no derrube de instituições: um programa de formação educativa, um modelo de administração civil, um sistema legal, uma organização particular da divisão do trabalho. Foram inseridos na estrutura de instituições dominantes e foram capazes de mudar essa estrutura para os seus próprios fins. É esta capacidade comprovada de fazer uma intervenção pessoal que permite aos escritores de memórias conceberem a sua vida retrospectivamente e, muitas vezes, encará-la prospectivamente como uma seqüência narrativa na qual , conseguem conjugar a sua história de vida individual com o sentido, que possuem, do decurso de uma história objectiva. Mas aquilo que falta nas histórias de vida dos que pertencem aos grupos subordinados são precisamente esses termos de referência que consolidam este sentimento de uma trajectória linear e o conduzem a uma forma narrativa seqüencial: acima de tudo, em relação ao passado, a noção de origens legitimadoras e, face ao futuro, o sentido de acumulação em termos de poder, dinheiro ou influência. A história oral dos grupos subordinados irá produzir um outro tipo de história, no qual não só a maioria dos pormenores será diferente, mas em que também a própria construção de formas com sentido obedecerá a um princípio diferenciado. Irão surgir pormenores diferentes, porque estes estão incrustados, por assim dizer, numa espécie também diferente de ambiente narrativo. Para se reconhecer a existência de uma cultura dos grupos subordinados é essencial vermos que se trata de uma cultura em que as histórias de vida dos seus membros têm um ritmo diferente, não sendo esse ritmo estabelecido pela intervenção individual no funcionamento dás instituições

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dominantes. Quando os historiadores orais ouvem com atenção aquilo que os seus informantes têm para dizer descobrem uma percepção do tempo que não é linear, mas cíclica. A vida do entrevistado não é um curriculum vitae, mas uma série de ciclos. O ciclo básico é o dia, depois a semana, o mês, a estação, o ano, a geração. O sucesso notável que a obra Working, de Studs Terkei, teve nos Estados Unidos deve-se, sem dúvida, ao facto de fazer justiça a esta forma cíclica alternativa, podendo ser lida simultaneamente como epopéia popular e como pesquisa social. Eis aqui uma forma narrativa diferente, uma estruturação diferente de memórias socialmente determinadas. 25 Mesmo uma questão tão fundamental como a da configuração do século XX dependerá crucialmente do grupo social a que pertencemos. Para muitas pessoas, mas especialmente para os europeus, a narrativa deste século é impensável sem a memória da Grande Guerra. A imagem das trincheiras, desde o Canal à fronteira suíça, está gravada na memória contemporânea. Enquanto na Segunda Guerra Mundial a experiência comum dos soldados era o exílio terrível e prolongado a uma inultrapassável distância de casa, aquilo que torna única a experiência da Grande Guerra, e o que lhe confere uma carga especial de ironia, é a proximidade absurda das trincheiras em relação ao lar. Esta experiência das trincheiras, de que o primeiro dia no Somme é emblemático, permanece como um arquétipo narrativo. Paul Fussell evocou vividamente esta cena primordial e sugeriu que é a sua estrutura particular e irônica, a sua dinâmica de esperança cerceada, que a faz assediar a memória. 26 Contudo — e este é o facto notável — é possível imaginar-se que os membros de dois grupos bastante diferentes podem participar em idêntico acontecimento, mesmo tão catastrófico e devorador como uma grande guerra e, ainda assim, serem a tal ponto diferentes entre si que mal se pode considerar que as suas recordações posteriores desse acontecimento, as memórias que transmitem aos filhos, digam respeito ao "mesmo" acontecimento. Cario Levi deu uma perspectiva notável deste fenômeno.27 Em 1935, foi exilado como prisioneiro político para a remota aldeia de Gagliano, no Sul da Itália. No muro da câmara municipal havia uma pedra de mármore onde estavam inscritos os nomes de todos os aldeãos de Gagliano que tinham morrido na Grande Guerra. Eram quase cinqüenta nomes e, directamente ou por laços de parentesco entre primos ou de compadrio, nem uma só família fora poupada. Havia ainda aqueles que regressaram feridos da guerra e os que voltaram sãos e salvos. Como médico, Levi teve ocasião de falar com todos os aldeãos e sentia curiosidade em saber como viam o cataclismo de 1914-18. Contudo, em todas as suas conversas com os camponeses de Gaglia25 26 27

S. Terkei, Wnrkhig: People Talk Ahout ivhaf theif Do ali Dayand Hoxr lhey Feel About xehnl thcu DÍJ (Londres, 1975). P Fussel, The Great Wnr and Modem Memory (Nova Iorque, 1975). C. Levi, Chmt Stopped at FJmli (trad. F. Frenaye, Londres, 1963), especialmente as pp. 130 e seguintes.

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no, nunca ninguém mencionava a guerra para referir feitos realizados, lugares vistos ou sofrimentos suportados. Não que esse assunto fosse tabu: quando interrogados sobre ele respondiam não só com brevidade, mas também com indiferença. Não recordavam a guerra como um acontecimento memorável, nem falavam dos seus mortos. Mas havia uma guerra de que falavam constantemente — era a guerra dos salteadores. O bandoleirismo terminara em 1865, setenta anos atrás, e muito poucos aldeãos eram suficientemente velhos para se recordarem dela como participantes ou testemunhas oculares. Contudo, toda a gente, tanto os jovens como os velhos, as mulheres como os homens, falavam dela como se tivesse acontecido no dia anterior. As aventuras dos bandoleiros entravam facilmente no seu discurso de todos os dias e eram comemoradas nos nomes de muitos locais no interior e nos arredores da aldeia. As únicas guerras de que os camponeses de Gagliano • falavam com animação e coerência mítica eram as esporádicas explosões de revolta em que os salteadores combatiam contra o exército e o governo do ) Norte. Mas mal tinham consciência dos motivos e interesses em jogo na Primeira Guerra Mundial, a Grande Guerra não fazia parte da sua memória. Podemos dizer assim, de forma mais geral, que todos nos conhecemos uns aos outros pedindo explicações, fazendo relatos, acreditando, ou não, nas histórias sobre os passados e identidades uns dos outros.28 Ao identificar- * mos e compreendermos com êxito o que outra pessoa está a fazer, enquadramos um acontecimento particular, um episódio, ou comportamento, no contexto de várias histórias narrativas. Identificamos, deste modo, uma determinada acção recordando, pelo menos, dois tipos de contexto para essa acção. Situamos o comportamento dos agentes por referência ao seu lugar nas suas histórias de vida e situamos também esse comportamento pela referência ao seu lugar na história dos contextos sociais a que pertencem. Anarrativa de uma vida faz parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada na história dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade.

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Existe uma disparidade chocante entre a omnipresença da memória social na conduta da vida quotidiana e a atenção relativamente limitada, pêlo menos no que diz respeito a um tratamento explícito e sistemático e não a um tratamento implícito e disperso, que tem sido prestada especificamente à memória social na moderna teoria social e cultural.29 Porque será? 28 29

Para um debate sobre as narrativas incrustadas no discurso quotidiano, ver A. Macintyre, After Virtue (Londres, 1981), pp. 190-201. Deve fazer-se menção, todavia, a uma série de trabalhos recentes dedicados à questão da memória social: E. Shils, Tradition (Londres, 1981); Z. Bauman, Memories ofClass: Pre-History and After Life ofClass (Londres, 1982); S. Nora, Les lieux de Ia ménfoire (Paris, 1984);

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A resposta é bastante complicada e devemos começar por registar que uma das principais dificuldades no desenvolvimento de uma teoria da memória como forma de conhecimento tem a ver com a variedade de tipos de memória que accionamos e reconhecemos. O verbo"recordar" entra numa diversidade de construções gramaticais e as coisas recordadas pertencem a muitas espécies diferentes. E se a memória como fenômeno especificamente social tem sido relativamente negligenciada, isso sucede, pelo menos em parte, porque certos tipos de memória têm sido privilegiados como foco de determinadas formas de atenção duradoura. Será, portanto, útil distinguir, em particular, entre três tipos distintosde memória. Há, em primeiro lugar, a memória pessoal, a qual diz respeito àqueles actos de recordação que tomam como objecto a história de vida de cada um. Falamos delas como memórias pessoais porque se localizam num passado pessoal e a ele se referem. As minhas memórias pessoais podem exprimir-se desta forma: eu fiz isto e aquilo, em tal e tal altura, em tal e tal lugar. Assim, ao recordar um acontecimento estou também preocupado comigo próprio. Quando digo "cheguei a Roma há três anos", estou, num certo sentido, a reflectir sobre mim mesmo. Ao fazer essa afirmação estou consciente do meu presente real, reflectindo sobre mim próprio como a pessoa que fez isto e aquilo no passado. Ao recordar que fiz isto e aquilo vejo-me a mim próprio, por assim dizer, de uma certa distância. Há uma espécie de duplicação: eu, aquele que fala agora, e eu, aquele que chegou a Roma há três anos, somos idênticos em alguns aspectos, mas noutros somos diferentes. Estas manifestações cia memória figuram significativamente nas descrições que fazemos de nós próprios, porque a nossa história passada é uma fonte importante da idéia que fazemos de nós próprios. O autoconhecimento, a concepção do nosso próprio caracter e potencialidades, é determinado, em grande medida, pela maneira como vemos as nossas acções passadas. Existe, pois, uma ligação importante entre o conceito de identidade pessoal e diversos estados mentais retrospectivos. Os objectos de remorso ou de culpa apropriados são as acções ou omissões passadas realizadas pela pessoa que se sente com remorsos ou culpada. Através de recordações desta espécie, as pessoas têm um acesso especial a factos sobre as suas histórias e as suas identidades passadas, uma espécie de acesso que, em princípio, não podem ter às histórias e identidades de outras pessoas e coisas.' 0 Um segundo tipo de memórias — as memórias cognitivas — abrange as utilizações do verbo "recordar" em que se pode dizer que recordamos o significado de palavras, de linhas de um poema, de anedotas, de histórias,

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R. A, Smith, Politics and Rememfawice íPrínceton, 198?); P. Wright, On Living in an Olá Couninf (Londres, 1985); F. Hdug, female Sexutiliztition: A Coilective Work of Memory (trad. E. Carter, Londres, 1987). Sobre a memória pessoal, ver R. Wollheim, The Tliremí of Life (Cambridge, 1984) e S. Shoemaker, "Persons and Their Past", Ameriam Philosnphiail Quarterly, 7 (1970), 269-K!\

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do traçado de uma cidade, de equações matemáticas, de princípios da lógica, ou de factos sobre o futuro. Para existir uma memória deste tipo o nosso conhecimento pressupõe, de algum modo, a ocorrência anterior de um estado pessoal cognitivo ou sensorial.31 Mas, ao contrário do primeiro tipo de memória, não necessitamos de possuir qualquer informação sobre o contexto ou episódio da aprendizagem para sermos capazes de reter e utilizar este tipo de recordações. Aquilo que esta forma de recordar exige não é que o objecto da recordação seja algo pertencente ao passado, mas sim que a pessoa que o recorda o tenha encontrado, sentido, ou ouvido falar dele no passado. Um terceiro tipo de memória consiste pura e simplesmente na nossa capacidade de reproduzir uma determinada acção. Deste modo, recordar como se lê, escreve ou anda de bicicleta é, em cada um dos casos, uma questão de sermos capazes de fazer estas coisas, de forma mais ou menos eficiente, quando tal necessidade surge. Tal como sucede com as manifestações da memória empírica e cognitiva, faz parte do significado de "recordar" que o que é lembrado pertence ao passado. "Recorda", poderíamos dizê-lo, é um termo que se refere ao passado, mas, no que diz respeito a este terceiro tipo de memórias, não nos lembramos, freqüentemente, de como, quando ou onde adquirimos o saber em questão. Muitas vezes é apenas pela própria acçãp que somos capazes de reconhecer e demonstrar aos outros que de facto nos lembramos. A recordação de como se lê, escreve, ou se anda de bicicleta é como o significado de uma lição cuidadosamente aprendida. Tem todas as marcas de um hábito e, quanto melhor recordamos este tipo de memórias, menos provável é lembrarmo-nos de uma ocasião anterior em que tenhamos executado o acto em questão. Só quando nos encontramos em dificuldades é que podemos socorrer-nos das nossas recordações como guia. Os filósofos constataram a existência deste tipo de manifestações da memória e agruparam-nas sob o título de memória-hábito, em contraste com a memória cognitiva e pessoal. Porém, normalmente têm prestado pouca atenção à memória deste tipo. Defenderam ou assumiram muitas vezes que, na "verdadeira" memória, o próprio acto de recordar, bem como aquilo que se recorda, é sempre um acontecimento de alguma espécie. O acto de "recordar" é freqüentemente referido como sendo um "acto mental", ou uma "ocorrência mental". Deste modo, Bergson distingue duas espécies de memória: a que consiste no hábito e aquela que consiste em recordação. Dá como exemplo a aprendizagem de uma lição de cor. Quando sei a lição de cor diz-se que me "lembro" dela, mas isto só significa que adquiri certos hábitos. Por outro lado, a minha lembrança da primeira vez que li a lição, quando estava a aprendê-la, é a recordação de um acontecimento único que só ocorreu uma 31

Ver C. B. Martin e M. Deutscher, "Remembering", The PWosophkal Review, 75 (1966), pp. 161-96, e D. Wiggins, lâentityand Spatio-Temporal Continuity (Oxford, 1967), especialmente as pp. 50 e seguintes

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vez — e a recordação de um acontecimento único não pode ser inteiramente constituída pelo hábito, sendo radicalmente diferente da memória, que é um hábito. Isto leva Bergson a concluir que a memória de como fazer alguma coisa é apenas a retenção de um "mecanismo automático" e de que esta "memória-hábito" é radicalmente diferente da recordação de acontecimentos únicos, a qual constitui a "memória par excellence". Só este tipo de recordação é considerado como verdadeira memória.32 Russell segue Bergson na distinção entre "memória-hábito" e "verdadeira memória", sendo a última cognitiva, enquanto a primeira o não é. Ele reconhece, na verdade, que é mais difícil aplicar esta distinção na prática do que formulá-la na teoria e isto acontece porque o hábito é uma característica intrusa da nossa vida mental, que está muitas vezes presente onde, à primeira vista, não parece estar. Deste modo, pode existir um hábito de recordar um acontecimento único. Depois de termos descrito esse acontecimento uma vez, as palavras que utilizámos para » o fazer podem facilmente tornar-se habituais. Contudo, Russell faz questão em insistir que a característica distintiva da memória é ela ser um tipo especial de crença. Aquilo que constitui a "memória-conhecimento", diz ele, é a "nossa crença" de que "as imagens de acontecimentos passados dizem respeito a acontecimentos passados". Refere-se a isto como memória "verda'. deira" para a distinguir do simples hábito adquirido através da experiência passada." Também neste caso, "recordar" é entendido no sentido em que a recordação é um acto cognitivo que se considera ter importância filosófica. É talvez mais fácil avaliar a importância do âmbito de comportamento geralmente atribuído ao tipo de memórias-hábito através do exame de casos de amnésia, em que essas capacidades da memória já não funcionam eficazmente, do que pela observação do funcionamento mais ou menos regular dessas capacidades na vida quotidiana. Temos a sorte de possuir um estudo, feito pelo eminente neurofisiologista Luria, que relata um caso notável desse tipo de amnésia e que, ao documentá-lo, demonstra como a memória-hábito é extensa e vital.' 4 Narra a história do ferimento que um soldado russo, de nome Zazetskv, sofreu no cérebro, do estado de desordem psicológica em que se viu obrigado a viver após o dano irreparável causado por uma bala que lhe penetrou no cérebro e da sua luta por reconstituir uma explicação para o seu estado de confusão psicológica e o combater. Zazetskv sofreu uma perda devastadora da memória pessoal. Nas semanas imediatamente a seguir ao ferimento era incapaz de se lembrar do nome próprio, do apelido, dos nomes dos seus parentes próximos, ou do da cidade onde nascera, e tinha muita dificuldade em recordar fosse o que fosse do seu passado recente — incluindo a vida na frente de combate. 32 33 34

Ver H. Bergson, Matter a mi Memon/ ítrad. N. \L Pau! e VV. S. Paimer, Londres, 1%2). B. Russel, The Arwliph of Mimi (Londres, 1921), pp. 166 e seguintes. A. R. Luria, The Man with a SJmttercd Worhi ítrad. L. Solotaroff, Londres, 1973).

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A sua perda da memória cognitiva era igualmente devastadora. Tinha dificuldade em identificar as coisas à sua volta e, quando via ou imaginava coisas — objectos materiais, plantas, animais, aves, pessoas —, não conseguia recordar de imediato as palavras que as designavam. E vice-versa: quando ouvia uma palavra não conseguia lembrar-se imediatamente do seu significado. Esta perda cognitiva era tanto sintáctica como semântica. Exprimimos os relacionamentos através de certas partes do discurso — preposições, conjunções, advérbios, etc. — de forma a que frases simples como "o cesto debaixo da mesa" e "a cruz sobre o círculo" sejam perfeitamente óbvias para nós, porque utilizamos a faculdade necessária para dominar essas formas: a capacidade para recordar elementos gramaticais e entender, rápida e simultaneamente, as relações de palavras e as imagens individuais que evocam. Mas Zazetsky já não tinha a capacidade desse domínio instantâneo de padrões e havia alguns padrões gramaticais — por exemplo, inversões como a que se encontra na distinção entre ''irmão da mãe" e "mãe do irmão", ou genitivos como em "irmão do pai" — que ele já não conseguia entender de todo. Uma terceira área de perda tinha a ver com padrões habituais de comportamento. Enquanto estava no hospital descobriu que tinha de reaprender aquilo que antes era banal: acenar ou dizer adeus a alguém. Estava deitado na cama e precisava da enfermeira. Como conseguir que ela se acercasse? De repente lembrou-se de que se pode acenar a uma pessoa e tentou acenar à enfermeira, isto é, tentou mover ligeiramente a mão esquerda para trás e para a frente. Mas ela passou por ele, sem prestar atenção aos gestos que estava a fazer. Percebeu, então, que havia esquecido completamente como se acena a alguém. Era manifesto que tinha até esquecido como fazer gestos com as mãos de forma a que alguém entendesse o que queria dizer. Quando um médico lhe quis dar um aperto de mão não sabia qual das mãos devia estender. Quando um instrutor lhe deu uma agulha, um rolo de linha e um pedaço de tecido estampado, e lhe pediu que tentasse alinhavar o desenho, limitou-se a ficar sentado com a agulha, a linha e o tecido na mão, interrogando-se para que é que lhe teriam sido dados. Quando o instrutor voltou, mais tarde, e lhe disse que enfiasse a agulha, agarrou na agulha com uma mão e a linha com a outra, mas não conseguia perceber o que devia fazer com elas. Quando foi para uma oficina aprender a fazer sapatos, o instrutor explicou-lhe tudo com grande pormenor, mas só conseguiu aprender a pregar cavilhas de madeira numa tábua e a arrancá-las de novo. Mais tarde, se queria fazer qualquer tarefa simples em casa, e lhe pediam que cortasse lenha, consertasse a cerca, ou fosse buscar leite à despensa, descobria que não sabia como o fazer. Se queremos dar um nome a esta drástica área de perda, que lhe poderemos chamar senão memória-hábito?

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Dos três tipos de memória que distingui, os dois primeiros, a memória pessoal e a cognitiva, têm sido estudados em pormenor, embora por métodos bastante diferentes, enquanto o terceiro, a memória-hábito, tem sido, por razões importantes, largamente ignorado. Para o estudo da memória, tal como esta é entendida na psicanálise, é fulcral a distinção entre duas formas contrastantes de trazer o passado ao presente: representar e recordar.35 Representar consiste numa espécie de acçào, em que o sujeito, tomado por desejos e fantasias inconscientes, os revive no presente com uma impressão de proximidade que é intensificada pela recusa, ou incapacidade, do analisando em reconhecer a sua origem e o seu caracter repetitivo. O comportamento de representação revela geralmente um aspecto compulsivo que se encontra em conflito com os restantes padrões de comportamento do analisando. Muitas vezes assume a forma de um comportamento agressivo que tanto pode ser dirigido contra os outros como contra si próprio. Do ponto de vista explicativo, a questão crucial é que a representação, seja violenta ou reprimida, dirigida contra os outros ou contra si próprio, e quer ocorra fora ou no interior da relação entre o analista 'e o analisando, testemunha a existência de uma compulsão repetitiva. E em resultado desta compulsão que os analisandos se colocam deliberadamente em situações penosas, repetindo, desta forma, uma velha experiência. Porém, na repetição compulsiva os agentes não conseguem recordar o protótipo das suas acções presentes. Pelo contrário, têm a impressão clara de que as situações em que são "apanhados" são totalmente determinadas pelas circunstâncias do momento. A compulsão para repetir substituiu a capacidade de recordar. "O paciente repete em vez de recordar, e repete resistindo": esta fórmula surge num texto crucial para a técnica analítica, o ensaio de Freud, datado de 1914, sobre "Recordar, repetir e tratar".36 Freud introduz então, nesse ensaio de 1914, o tópico da transferência: um fenômeno que discute principalmente em termos da relação entre o analista e o analisando porque, embora não esteja confinado certamente a esta relação, o comportamento da representação pode ser observado directamente, e com grande pormenor, no interior do espaço analítico. Descreve a transferência como sendo o principal instrumento para "dominar a compulsão do paciente para a repetição e transformá-la num motivo para recordar". Porque é que a transferência deveria ter este efeito? Se recordar é permitir que ocorra livremente, tal acontece, diz Freud, porque a transferência cons-

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Ver J. Laplanche e J. ES. Pontalis, The Language of Psychoanalysis (trad. D. Nicholson-Smith, Londres, 1973). S. Freud, "Remembering, Repeating and Working Through" (1914), Standard Edition, XII, pp. 147-56.

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titui algo parecido com um "recreio" no qual a compulsão do paciente para repetir "é autorizada a expandir-se numa liberdade quase total". Alargando esta analogia do recreio, afirma que a transferência cria "um território intermédio entre a doença e a vida real através do qual se faz a transição de uma para a outra". Este território intermédio consiste, em larga medida, numa actividade narrativa: os analisandos falam do seu passado, da sua vida presente fora da análise, da sua vida no âmbito da análise. Freud nunca debateu explicitamente este caracter narrativo da experiência analítica, mas autores posteriores, como por exemplo Sherwood e Spence, chamaram a atenção para a sua importância fulcral e mostraram as formas como o diálogo psicanalítico procura pôr a descoberto os esforços do analisando para manter viva uma espécie particular de descontinuidade narrativa. 37 O objectivo desta é bloquear partes de um passado pessoal e, desse modo, não só de um passado pessoal, mas também de aspectos significativos das acções presentes. Para contrariar esta descontinuidade radical, a psicanálise actua num círculo temporal: analista e analisando recuam, a partir daquilo que é dito sobre o presente autobiográfico, de modo a reconstruírem um relato coerente do passado, enquanto simultaneamente avançam a partir de diversas afirmações sobre o passado autobiográfico, de forma a reconstituírem o relato do presente que se procura compreender e explicar. Existe, pois, uma regra empírica nos escritos técnicos de Freud, que aconselha o analista a dirigir a atenção para o passado quando o analisando insistir no presente, e para procurar material presente quando o analisando quiser permanecer no passado. Revela-se um conjunto de narrativas para gerar questões sobre outro conjunto de narrativas. Recordar é, então, precisamente não lembrar acontecimentos de forma isolada. É ser capaz de formar seqüências narrativas com sentido. Em nome de um determinado compromisso narrativo tenta-se integrar fenômenos isolados, ou estranhos, num único processo unificado. É neste sentido que a psicanálise se atribui a si própria a tarefa de reconstituir as histórias de vida individuais. Para o estudo da memória cognitiva, isto é, da memória tal como era entendida pelos psicólogos experimentais, é fulcral a noção de codificação.38 Eles mostraram que a recordação literal é muito rara e destituída de importância, sendo o acto de recordar não uma questão de reprodução, mas de construção. É a construção de um "esquema", de uma codificação, que nos permite discernir e, por isso, recordar. Actualmente, os psicólogos experimentais conhecem três dimensões principais da codificação mnemónica. O 37

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Sobre o papel da narrativa na psicanálise, ver M. Sherwood, The Logic of Explanation in Psychoanalysis (Nova Iorque, 1969) e D. R Spence, Histórica! Truth and Narrative Truth: Meaning and Intcrpretation in Psychoanalysis (Nova Iorque, 1982). Ver, em especial, R C. Bartlett, Remembering (Cambridge, 1932); J. Piaget e B. Inhelder, Memory and Intelligence (trad. A. J. Pomerans, Londres, 1973); A. Lieury, La mêmoire, résultats et théories (Bruxelas, 1975).

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código semântico é a dimensão dominante e, tal como um código de biblioteca, está organizado hierarquicamente, por tópicos, e integrado num único sistema, de acordo com uma visão global do mundo e das relações lógicas que nele se observam. O código verbal é a segunda dimensão e contém toda a informação e os programas que permitem a preparação de expressão verbal. O código visual é a terceira dimensão. Itens concretos, facilmente traduzidos em imagens, retêm-se muito melhor na memória do que itens abstractos, porque esses itens concretos sofrem uma dupla codificação, tanto em termos visuais como de expressão verbal. Os psicólogos experimentais explicam as falhas de memória em termos do funcionamento de tais processos de codificação, sendo esta explicação válida tanto para os casos patológicos como para os normais. Como exemplo do esquecimento normal, poderíamos considerar aqueles casos em que os acontecimentos e as situações de natureza repetitiva não são facilmente lembrados. Cada vez que vou ' comprar pão é como da última vez, excepto no que diz respeito ao dia. Em tais situações, só a primeira e a última experiências serão recordadas, de maneira que a capacidade de recordar um dado exemplo assume tipicamente a forma de uma curva em U: todas as ocasiões intermédias serão esquecidas porque as suas marcas são praticamente idênticas. Como exemplo de esque1 cimento patológico, poderíamos considerar o caso dos pacientes que sofrem de amnésia relativamente ao nome das cores.39 O facto de aqueles que sofrem deste tipo de amnésia serem incapazes de 'Ver num relance" quais são as amostras de cor apresentadas que "combinam" é uma manifestação específica de uma perturbação mais geral: é sinal de que perderam a capacidade global para classificar um dado dos sentidos sob uma categoria, pois dar nome a uma coisa é vê-la como representativa de uma categoria. Por esse motivo, seria errado dizer que as pessoas que manifestam amnésia das cores vão de um princípio de classificação a outro, porque são incapazes de aderir a um dado princípio de classificação — na realidade, nunca adoptam qualquer princípio desse tipo. Os psicólogos experimentais têm procurado compreender os fenômenos da lembrança e do esquecimento como parte de uma abordagem deliberadamente científica: a busca de uma compreensão fundamental do cérebro e do aparelho sensorial, concebido como um sistema capaz de seleccionar, organizar, armazenar e reconstituir informação. Defendem o ponto de vista de que os fundamentos de uma tal compreensão devem ser estabelecidos através de experiências rigorosamente concebidas e realizadas em condições altamente controladas e, por isso, em geral altamente artificiais. Deste modo, no decurso de experiências sobre a memória, o sujeito da experiência é normalmente confrontado com dados pertencentes a dois grupos principais: 39

Sobre a amnésia das cores, ver M. Merleau-Ponty, Phenomennlogy of Perccption (trad. C. Smith, Londres, 1962).

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verbais e não verbais. Os dados verbais incluirão séries de nomes, adjectivos, verbos, passagens em prosa, poemas e contos. Os dados não verbais incluirão formas geométricas, tais como círculos, quadrados e rectângulos, assim como desenhos, pinturas e fotografias de pessoas, objectos e paisagens. Para poderem descrever e classificar os desempenhos dos seus sujeitos, os psicólogos cognitivos colocarão esses sujeitos em situações experimentais, previamente esvaziadas, tanto quanto possível, de um conteúdo cultural específico. Os psicólogos cognitivos podem admitir, na verdade, sem prejuízo para as suas premissas, que as recordações das pessoas de culturas diferentes variam porque os seus mapas mentais são diferentes. O código semântico, que constitui a chave para o funcionamento da memória no seu todo, é um mapa mental adquirido na infância e, como tal, um código partilhado colectivamente. Pode admitir-se, assim, sem esforço que, na maior parte das culturas, as recordações dos homens e das mulheres variarão por a sua educação e ocupações serem diferentes, e pode conceder-se também facilmente que testemunhas pertencentes a culturas fortemente divergentes divergirão inevitavelmente nas suas recordações do mesmo acontecimento, em particular se ele for complexo como é a maior parte daqueles a que as tradições orais fazem alusão. Ao fazerem tais constatações os psicólogos experimentais estão a admitir a possível aplicação das suas descobertas a objectos-domínios socialmente variáveis, mas aquilo que a sua pesquisa se tem basicamente preocupado em explorar é a existência e a universalidade das estruturas cognitivas básicas. Aquilo que procuram identificar são "estruturas fundamentais", "processos primários", "universais", faculdades mentais essenciais à natureza humana. Temos então, aqui, dois territórios fortemente colonizados. Os psicanalistas estudaram a memória pessoal enquanto investigavam as histórias de vida de indivíduos; os psicólogos estudaram a memória cognitiva ao investigarem as operações das faculdades mentais universais. Amemória-hábito, pelo contrário, parece ser um espaço desocupado, ou mesmo inexistente, ou talvez fosse preferível dizer que o espaço intelectual que poderia ser ocupado por uma teoria do hábito já se encontra preenchido. O terreno que ela poderia cobrir parece estar já ocupado pelo convencionalismo contemporâneo, pois, se em pouco mais existe acordo na actualidade, todos concordam que ps mundos sociais são definidos pelas suas convenções dominantes. Com a idéia de convenção explicamos a nós próprios a noção de uma ordem de regras objectivas, em cuja base existe uma dimensão social tácita, um mundo que se aceita ser como é porque as regras que o fazem assim são acordadas intersubjectivamente. A linguagem tornou-se para nós o modelo arquetípico para todas as outras formas de intersubjectividade, porque a linguagem tem as suas raízes, por um lado, na natureza da ordem formal e, por outro, naquele entendimento implícito comum que subjaz à possibilidade de toda e qualquer comunicação.

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A questão que é preciso reter para os propósitos da presente investigação é que a maior parte das formas do convencionalismo contemporâneo tem-se desenvolvido de modo a eliminar o hábito como objecto isolável de pesquisa. Aquilo que os hermeneutas têm tentado normalmente recuperar e interpretar, é uma certa combinação da memória pessoal com a cognitiva, enquanto a memória-hábito é aquilo que se têm inclinado a ignorar. Posso, talvez, exemplificar melhor o que quero dizer, referindo dois textos particulares. São eles A Idéia de Uma Ciência Social, de Winch, e o ensaio de Sahlins "O Pensamento Burguês: o Sistema de Vestuário Americano". Poderia ter escolhido um número considerável de outros textos em vez destes, como é evidente, mas preferi estes dois porque são culturalmente sintomáticos. As abordagens que exemplificam podem considerar-se representativas de estilos de pensamento que têm sido largamente adoptados na moderna teoria social e cultural. A eliminação explícita da noção de hábito é evidente na abordagem da teoria social que vê os exemplos particulares de comportamento como a aplicação de normas sociais. É bem conhecido que Winch toma como ponto de partida, em A Idéia de Uma Ciência Social,40 a asserção de John Stuart Mill de que a ciência social deveria tomar como modelo a ciência natural. O que é menos vezes notado, mas mais pertinente para este debate, é que, no • decurso do seu raciocínio, Winch entra claramente em discordância com a distinção de Oakeshott entre duas formas de moralidade. 41 Oakeshott faz a distinção entre um tipo de moralidade que é "uma aplicação reflexiva de um critério moral" e outro que é "um hábito de afecto e de comportamento". 42 A primeira forma, a aplicação reflexiva de um critério moral, pode surgir como "a busca autoconsciente de ideais morais", ou como "a observância reflexiva de normas morais". Em qualquer dos casos, é uma forma de vida moral em que se atribui um valor especial à "consciência de si próprio" quer esta seja individual, quer social. Não só a norma ou o ideal são produto do pensamento reflexivo, mas também a aplicação da norma ou do ideal a qualquer situação particular é igualmente uma actividade reflexiva. Esta forma de vida moral implica, por conseqüência, um tipo determinado de aprendizagem, exige uma aprendizagem na avaliação das próprias idéias morais, uma aprendizagem "na qual os ideais são separados e desligados da expressão necessariamente imperfeita que encontram nas acções particulares". Exige também uma aprendizagem "na aplicação dos ideais às situações concretas" e na arte de seleccionar "meios apropriados para atingir os fins que a nossa educação nos inculcou". Oakeshott contrapõe a isto a forma de vida moral a que chama "um hábito de afecto e de conduta". Neste tipo de vida moral, diz-se que a resposta 40 41 42

P. Winch, The idea ofa Social Science (Londres, 1958). fbidem, pp. 57 e seguintes. Ver M. Oakeshott, Rationnlism in Poíitics (Londres, 1962), especialmente pp. 61 -li c 119-29.

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às situações do quotidiano é feita não por uma "conduta reconhecida como expressão de um ideal moral", nem pela "aplicação conscienciosa de uma regra de comportamento a nós próprios", mas sim "agindo em concordância com um certo hábito de comportamento". Uma tal forma de vida moral não resulta da consciência de modos alternativos possíveis de comportamento nem de uma escolha determinada por um ideal, uma norma, ou uma opinião, entre as alternativas observadas. A conduta, neste caso, "é tanto quanto possível isenta de reflexão". Deste modo, na maioria das situações correntes da vida não há uma avaliação das alternativas, nem uma reflexão sobre as possíveis conseqüências da acção. Em nenhuma ocasião particular existe "mais do que o seguimento não reflexivo de uma tradição de comportamento em que fomos educados". É que estes hábitos de afecto e de comportamento não se aprendem por imposição, mas apenas "vivendo com pessoas que agem habitualmente de uma certa maneira". Adquirimos esses hábitos da mesma maneira que adquirimos a nossa língua materna. Tal como não existe na vida de uma criança uma altura em que se lhe possa dizer para aprender a língua que ouve habitualmente falar, da mesma forma não há uma altura na sua vida em que se lhe possa dizer para começar a aprender os hábitos de comportamento das pessoas que estão constantemente em seu redor. Mesmo que aquilo que é aprendido, ou pelo menos uma parte, possa ser formulado em termos de normas e preceitos, em nenhum dos casos nós, neste tipo de educação, "aprendemos pela aprendizagem de normas e preceitos". Aquilo que aprendemos, adquirindo hábitos de conduta tal como adquirimos uma língua, pode ser aprendido sem a formulação de normas. E, na verdade, insiste Oakeshott, um tal conhecimento prático de normas, como o que está implicado no controlo da linguagem ou do comportamento é impossível até que as tenhamos esquecido como normas e já não sejamos tentados a transformar a fala e a acção na aplicação de normas a uma dada situação. Em suma, Oakeshott quer dizer que a linha divisória entre o comportamento habitual e o comportamento orientado por normas depende de se aplicar ou não uma regra de forma consciente, e insiste que uma parte substancial do comportamento humano pode descrever-se em termos da noção de hábito, de tal modo que nem a idéia de norma, nem a idéia de reflexividade são para ele essenciais. Contra isto, Winch argumenta que o teste que mostra se as ácções de uma pessoa são a aplicação de uma regra não é ela conseguir formular a regra, mas se faz sentido distinguir entre uma maneira certa e outra errada de fazer as coisas que ela faz. E quando isso faz sentido, "deve também fazer sentido dizer que a pessoa está a utilizar um critério naquilo que faz, mesmo que não formule, nem possa talvez formular, esse critério".43 Winch conclui, a partir daqui, que Oakeshott tem razão quando diz que aprender uma forma de 43

P. Winch, Idea ofa Social Science, p. 58.

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conduta é como aprender a falar uma língua, mas que retira uma inferência errada dessa analogia. Aprender a falar uma língua implica ser-se capaz de se continuar a dizer frases que ainda não foram ditas. Num certo sentido, esta actividade implica, evidentemente, que se faça algo diferente daquilo que já se sabe. Todavia, no que diz respeito às normas lingüísticas que se está a seguir, é ainda como "continuar-se pelo mesmo caminho" que foi previamente ensinado. E isto traz à luz o que se quer dizer, neste caso, quando falamos em continuar pelo mesmo caminho. Num certo sentido, adquirir um hábito é ganhar uma propensão para fazer sempre o mesmo tipo de coisas, mas há outro sentido em que isto se aplica à aprendizagem de uma norma. Estes dois sentidos, sublinha Winch, são diferentes, e muita coisa depende dessa diferença.44 Se se tratasse apenas de uma questão de hábitos, diz ele, então o nosso comportamento corrente poderia certamente ser influenciado pelo modo como havíamos agido no passado, mas tratar-se-ia apenas de uma influência causai. O cão reage, neste momento, de uma certa maneira às ordens de fulano por causa daquilo que lhe aconteceu no passado. Se me mandarem continuar a seqüência dos números naturais depois do cem, eu faço-o de uma certa maneira por causa da minha aprendizagem passada. A frase "por causa de" é utilizada de forma diversa nestas duas situações. O cão foi condicionado a reagir de uma certa maneira, ao passo que eu sei a maneira correcta de proceder com base naquilo que me ensinaram. O que Winch quer dizer é que pode afirmar-se que eu aprendi uma norma, e não um hábito, porque eu compreendo o que quer dizer "fazer a mesma coisa, no mesmo tipo de ocasião". A noção de norma de conduta e a noção de acção com sentido estão intimamente ligadas. Para identificarmos as acções como acções — e não como meros acontecimentos corporais ou fisiológicos — é indispensável que as vejamos como acções com sentido. A categoria mais importante para a nossa compreensão da vida social não será, então, a de causa e efeito, mas sim a de sentido. Com esta atitude Winch deixa a noção de hábito sem qualquer papel significativo na teoria social. Ao fazer esta distinção entre hábitos e normas, Winch pode defender que as formas de actividade que Oakeshott descreve como "hábitos de afecto e de conduta" se podem descrever correctamente como um comportamento orientado por normas, do qual Winch refere vários exemplos. Vou citar um que ele não dá, mas que capta aquilo que quer dizer Um termo como "vergonha" remete-nos para um certo tipo de situação, vergonhosa, e para uma determinada maneira de reagir relativamente a ela: escondermo-nos ou procurarmos apagar a nódoa. Escondermo-nos, neste contexto, tem o objectivo de ocultar a vergonha. Só podemos entender o significado de nos escondermos, neste caso, se compreendermos de que tipo de situação e de sentimento se está falar. Um termo como vergonha só pode então ser expli44

Ibith-m, pp. 59-60.

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cado por referência a uma linguagem específica de interacção na qual nos culpamos, exortamos, admiramos e apreciamos uns aos outros. No caso das situações consideradas vergonhosas pode não existir uma formulação sistemática das normas e da concepção dos homens e da sociedade que lhes subjaz, mas a compreensão destas normas e dessa concepção está, todavia, implícita na nossa capacidade de aplicar as descrições adequadas a acções e situações particulares. Estas práticas exigem a possibilidade de certas autodescrições dos participantes e tais autodescrições são constitutivas dessas práticas. 45 Sahlins chega a uma posição análoga à que Winch propõe, mas por um caminho diferente: isto é, através da aplicação dos métodos da lingüística estrutural à "linguagem" do vestuário. No seu estudo sobre o sistema de vestuário americano, Sahlins prescinde de qualquer noção de hábito, não de forma explícita mas por inferência.46 Aquilo que se preocupa em rejeitar explicitamente é a suposição de que o significado social do vestuário tenha necessariamente qualquer relação com as suas propriedades físicas. Contra isto argumenta que o significado social dos objectos de adorno, que os torna úteis para certas categorias de pessoas, é simbólico e arbitrário. Ao fazer esta asserção, Sahlins aplica deliberadamente a premissa de Saussure relativa à distinção entre a língua e a fala, a qual afasta, à partida, aquilo a que chamava "o aspecto físico da comunicação". 47 Isto significa que aquilo que importa não é como se produz um som, mas sim a forma como ele é distinguido dos outros sons. O som p, por exemplo, é estudado não como um som que resulta de se fecharem os lábios e da ausência de qualquer vibração das cordas vocais, mas como um som que se opõe ao grupo do v e / c o m o oclusivas, ao grupo do b, g e d como consoantes mudas, e ao grupo do t e k como labiais. Torna-se, assim, possível caracterizar uma língua não por referência aos pormenores fisiológicos da sua articulação, pelo papel que impõe às cordas vocais e ao palato mole, mas por referência à forma, como cada som se distingue de todos os outros, num sistema de opostos. Esta independência da língua relativamente ao substrato fonético é o elemento mais importante do estruturalismo: a fonologia é estrutural porque se interessa por sons na medida em que os vários sons de uma língua são definidos unicamente pela relação que têm uns com os outros. Tendo assim afastado à partida o aspecto físico da comunicação, Saussure isola então aquilo a que chama "o lado executivo". Aquilo que é dado como inteligível é a língua como organização sistemática de combinações potenciais, com base nas quais um determinado falante produz um discurso com uma determinada mensagem. A fala não 45 46 47

Este exemplo é discutido por C. Taylor, "Interpretation and the Sciences of Man", in Philosophy and the Human Sciences, Vol. ÍI (Cambridge, 1985), pp. 23 e seguintes. Ver M. Sahlins, "La Pensée Bourgeoise: Western Society as Culture", in Culture and Practical Reason (Chicago, 1976), pp. 166-204. Ver A. Martinet, Eléments de linguistiquegénérale (Paris, 1960).

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pode constituir, portanto, o objecto único de uma disciplina específica, mas encontra-se dispersa por domínios diferentes. Mesmo podendo ser descrita cientificamente, esta descrição cabe a muitas ciências, incluindo a acústica, a fisiologia, a sociologia e a história das evoluções semânticas. O objectivismo de Saussure é, pois, incapaz de conceber a fala e, de forma mais geral, a prática senão como execução no âmbito de uma lógica que é a do código que está a ser utilizado. Sahlins parte destas premissas para defender que o sistema de vestuário é como a estrutura de uma língua. O esquema do vestuário é "uma espécie de sintaxe geral", uma "gramática generativa" e um conjunto de "oposições semânticas". O esquema funciona como um conjunto de regras para a declinação e a combinação de classes de vestuário, de modo a cartografar o universo cultural. Ao produzir-se vestuário de corte, desenho e cor distintos, torna-se uma peça de roupa apropriada para homens ou mulheres, para a noite ou para o dia, para andar por casa ou em público, para adultos ou para adolescentes. Aquilo que se produz são classes de tempo e de lugar que indicam situações, actividades e categorias de stahis, para as quais todas as pessoas são remetidas. Ao expor contrastes binários entre pesado/leve, áspero/suave, duro/macio, qualquer peça de tecido se torna numa combi• nação particular de qualidades texturais. Aquilo que aqui se produz é, mais uma vez, um conjunto de proposições respeitantes à idade, ao sexo, à actividade, à classe, ao tempo e ao lugar. Deste modo, um sistema de vestuário com regras de combinação comparáveis a uma sintaxe pode desenvolver uma série de proposições, as quais constituem outros tantos enunciados sobre as relações entre as pessoas e as situações, no sistema cultural. Como materialização das coordenadas principais, da pessoa e da ocasião, o vestuário torna-se um esquema complexo das categorias culturais e das relações entre elas. O código é descodificável num relance porque funciona a um nível inconsciente, sendo a concepção integrada na própria percepção visual. Deveria reparar-se que a linguagem do vestuário é aqui descrita a partir do ponto de vista daquele que vê, não daquele que a usa. Não pode haver qualquer dúvida sobre a vantagem analítica que tal atitude proporciona. O vestuário do século XIX, por exemplo, oferece um óptimo campo de pesquisa para um taxonomista em busca de oposições binárias. As roupas informavam o mundo sobre o papel que as pessoas que as usavam deviam desempenhar e lembravam a estas as responsabilidades e constrangimentos do seu papel. O papel dos homens era serem sérios (usavam cores escuras, com poucos adornos), activos (as roupas facilitavam-lhes o movimento), fortes (as roupas realçavam o peito e os ombros largos) e agressivos (as roupas tinham linhas pronunciadas e uma silhueta claramente definida). O papel das mulheres era serem frívolas (usavam suaves cores pastel, fitas, rendas e laços), inactivas (as roupas inibiam o movimento), delicadas (as roupas acentuavam as cinturas estreitas e os ombros inclinados) e submissas (as roupas eram constri-

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tivas). Mas agora mudemos a perspectiva daquele que vê o vestuário para aquele que o usa. O vestuário usado pelas mulheres vitorianas não se limitava a transmitir mensagens descodificáveis, ajudava também a moldar o comportamento feminino. As roupas eram signos, constrangiam também. "Ninguém senão uma mulher", escrevia Mrs. Oliphant em 1879, "sabe como o vestido se enrola em volta dos joelhos, duplica a sua fadiga e prende as suas capacidades de locomoção." 48 Saias e mangas apertadas, crinolinas e caudas, saiotes até ao chão — tudo isso lhes inibia a capacidade de movimento. Mas nenhum estorvo era mais claramente constritivo do que o espartilho fortemente apertado, usado de forma quase universal, na Inglaterra e na América, durante o século XIX. Tanto os seus defensores como os seus opositores estavam de acordo sobre muitos dos seus efeitos. Os defensores do espartilho falavam em "disciplina", "submissão", "sujeição" e "reclusão". O epíteto "espartilhada" sobrevive como lembrança de uma época em que usar espartilho era um imperativo moral. Os opositores do espartilho comparavam essa prática com o enfaixamento dos pés praticado na China e insistiam em que causava deformidade. Preocupavam-se com a compressão dos órgãos vitais na região macia e sem ossos da cintura, a deslocação das costelas e as queixas de fraqueza geral — debilidade, fadiga, baixa vitalidade — que era assim provocada. Tanto os opositores como os defensores do espartilho estavam de acordo, num certo sentido: ele era concebido para apertar o diafragma e modificar a configuração do corpo. O resultado, por outras palavras, começa a parecer-se bastante menos com a "oposição semântica" de Sahlins e bastante mais com "os hábitos de afecto e de comportamento" de Oakeshott. Isto levanta toda a questão do que queremos dizer, quando falamos da constituição de categorias sociais, ao pormos a descoberto o duplo significado do termo "constituição". Na verdade, o sistema de vestuário vitoriano não só assinalava a existência de categorias de comportamento, mas produzia também a existência dessas categorias de comportamento, mantendo-lhes uma existência habitual ao moldar a configuração e o movimento do corpo. Existe, portanto, um paralelo surpreendente entre as linhas de pesquisa sugeridas por Sahlins e por Winch — em ambos os casos, a idéia de hábito foi eliminada. Winch abandona o conceito de hábito a favor da idéia de norma social, enquanto Sahlins não vê necessidade do conceito de hábito numa ciência dos signos cujo objectivo é descodificar uma estrutura de possibilidades gramaticais. O hábito ou é explicitamente abandonado, ou implicitamente ignorado. É explicitamente rejeitado numa forma de investigação que separa a norma da sua aplicação e é implicitamente rejeitado num método de pesquisa que separa o código da sua execução. Mas é na vertente executiva, na vertente da aplicação, que reside uma fraqueza destes modelos, pois, 48

Ver H. E. Roberts, "The Exquisite Slave: The Role of Clothes in the Making of the Victorian Woman", Signs, 2 (1977), pp. 554-69.

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logo que se desvia a atenção da estrutura de uma língua para os usos que os agentes fazem dela na prática, constata-se que o mero conhecimento da língua, um conhecimento da norma ou do código, dá apenas um domínio imperfeito daquelas práticas que foram classificadas sob os termos paralelos de aplicação e de execução. Num tal quadro, quer seja o de uma língua, quer seja o dos conjuntos de práticas entendidos em analogia com a língua, não se atribui qualquer lugar, e logo qualquer significado, à prática cumulativa do mesmo, na qual reside a destreza do hábito. Há, por assim dizer, um vazio entre os dois termos que são aqui empregues de forma análoga: um vazio entre norma e aplicação e um vazio entre código e execução, vazio que deve ser reclamado, como irei sugerir, por uma teoria da prática usual e, portanto, da memória-hábito. O objectivo, ao insistir-se na existência deste vazio, é mostrar que há qualquer coisa que se pode distinguir como memória-hábito social, ficando assim numa posição que nos permite começar a olhar mais de perto para a forma como ela funciona. Os hábitos sociais, como tais, têm um significado bastante distinto dos hábitos individuais. Não faz parte do meu objectivo, como não fazia das abordagens que Winch e Sahlins representam, inquirir sobre o funcionamento dos hábitos distintivamente individuais, visto que '• um hábito desse tipo apenas tem significado, para os outros, por estar baseado nas expectativas convencionais desses outros no contexto de um sistema de significados partilhados. Claro que um hábito puramente pessoal ou individual, de maior ou menor trivialidade, pode ser interpretado pelos outros como tendo significado. Um indivíduo pode ter o hábito de garatujar durante as palestras e os outros interpretarem esse comportamento como significativo, quer considerando-o sintomático, mas não intencional, do temperamento de uma pessoa, quer pensando que transmite intencionalmente o facto de o espírito desse indivíduo não estar totalmente ocupado pelo objecto ostensivo da atenção de toda a gente. Mas isto não satisfaz o critério de um hábito social, pois o seu significado baseia-se nas expectativas convencionais dos outros de forma a ser interpretável como uma performance socialmente legítima (ou ilegítima). Os hábitos sociais são essencialmente performances legitimadoras e, se a memória-hábito é inerentemente performativa, então a memória-hábito social deve ser também socialmente performativa num plano específico. Se passarmos em revista os três tipos de memória que distingui — pessoal, cognitiva e memória-hábito — descobrimos que cada um deles tem sido estudado, ou pode ser estudado, de modo a elucidar a natureza de um tipo particular de esquecimento por parte da pessoa cuja capacidade de recordar esta a ser investigada, sendo a natureza do esquecimento própria do tipo de domínio da memória evocada em cada caso. A memória pessoal tem sido estudada pelos psicanalistas como parte das suas investigações sobre as histórias de vida individuais. Uma falha de

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memória significativa, neste caso, levaria à incapacidade de os pacienteis recordarem o protótipo das suas acções presentes em situações em que se colocam de forma deliberada, mas inconsciente, em circunstâncias penosas e, dessa forma, repetem ou representam compulsivamente uma experiência anterior e causalmente determinante. A memória cognitiva tem sido estudada pelos psicólogos enquanto componente de uma investigação sobre as faculdades mentais universais. Uma falha de memória significativa, neste caso, quer fosse de tipo patológico, quer normal, levaria, à incapacidade de os pacientes adop tarem um esquema ou princípio de classificação, ou à aplicação errada desse esquema ou classificação em situações particulares. Mas que espécie de esquecimento implicaria a perda de uma memória-hábito social? A forma como a maioria dos adeptos do convencionalismo contemporâneo responderia a esta questão não é inteiramente clara. Enquanto os psicanalistas se têm interessado explicitamente pelas maneiras como os sujeitos esquecem situações prototípicas nas suas histórias de vida, e os psicólogos se preocupam explicitamente com as formas como os sujeitos se esquecem de empregar, ou empregam erradamente, um esquema ou categoria, os adeptos do convencionalismo não se têm interessado explicitamente pelos actos de recordação ou de esquecimento enquanto tais. Porém, uma perspectiva convencionalista implica necessariamente uma abordagem do esquecimento e aquilo que tem sido normalmente sugerido é que nos encontramos perante uma forma de memória cognitiva. Quer dizer, a partir do acto de aplicar a norma ou código, ou a partir do fracasso na sua aplicação, inferimos que uma norma ou código particulares foram lembrados ou esquecidos. Quero, contudo, sustentar que, para além disto, há mais alguma coisa envolvida, e que se trata de uma forma diferente de recordação. Amemória-hábito — mais precisamente, a memória-hábito social — do sujeito não é idêntica à sua memória cognitiva de normas e de códigos. E também não se trata, pura e simplesmente, de um aspecto adicional ou suplementar. E um ingrediente essencial para o desempenho bem sucedido e convincente dos códigos e normas. 6 O único cientista social que não só reconheceu a importância da memória social, como dedicou também uma atenção constante e sistemática às formas pelas quais ela é socialmente construída foi Maurice Halbwachs, particularmente nos seus dois importantes trabalhos Les cadres sociaux de Ia mémoire e La mémoire collective.Aq Neles defendia que é através da pertença a um grupo 49

Ver M. Halbwachs, Les cadres sociaux de Ia mémoire (Paris, 1925); Halbwachs, La mémoire

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social — nomeadamente o parentesco, as filiações de classe e de religião — que os indivíduos são capazes de adquirir, localizar e evocar as suas memórias. Devíamos tentar a experiência, sugeria, de passarmos em revista a quantidade de recordações que lembramos, ou nos são lembradas, durante um dia pelas nossas relações directas ou indirectas com as outras pessoas. Repararíamos então que, muito vulgarmente, apelamos à nossa memória para responder às questões que os outros nos colocam, ou que imaginamos que eles nos podem colocar, e, para lhes respondermos, vêmo-nos a nós próprios como fazendo parte do mesmo grupo, ou grupos, que eles. Com freqüência, se eu me lembro de alguma coisa é porque os outros me incitam a lembrá-la, porque a memória deles vem em auxílio da minha e a minha encontra apoio na deles. Toda a recordação, por muito pessoal que possa ser, mesmo a de acontecimentos que só nós presenciámos, ou a de pensamentos e sentimentos que ficaram por exprimir, existe em relação com todo um conjunto de idéias que muitos outros possuem: com. pessoas, lugares, datas, palavras, formas de linguagem, isto é, com toda a vida material e moral das sociedades de que fazemos parte, ou das quais fizemos parte. Isto aplica-se, diz Halbwachs, tanto às memórias recentes como às • distantes, pois aquilo que une as primeiras não é o facto de serem contíguas no tempo, mas antes o fazerem parte de um conjunto de pensamentos comuns a um grupo, aos grupos com os quais nos relacionamos, actualmente, ou com os quais tivemos alguma ligação, no passado recente. Quando queremos evocar essas memórias basta-nos dirigir a nossa atenção para os interesses prevalecentes do grupo e seguir o curso da reflexão que lhe é habitual, o mesmo se aplicando exactamente quando queremos recordar memórias mais distantes. Para evocar essas memórias é suficiente, mais uma vez, orientarmos a nossa atenção para as recordações que ocupam um lugar principal nos pensamentos do grupo. Não há diferença, a este respeito, entre as memórias recentes e as distantes. Está tão fora de questão falar-se de uma associação por semelhança, no caso das memórias distantes, como de uma associação por contiguidade, no caso das memórias recentes, visto que a associação que permite a retenção na memória não é tanto de parecença ou de contiguidade, como de uma comunidade de interesses e de pensamentos. Não é por os pensamentos serem semelhantes que os podemos evocar, é antes por o mesmo grupo estar interessado nessas memórias, e ser capaz de as evocar, que elas se conjugam nos nossos espíritos. Os grupos dotam os indivíduos de quadros mentais no interior dos quais as suas memórias se localizam, e as memórias são localizadas por uma collective (Paris, 1950); ver também, do mesmo autor, La topographic légendahr Jes jíiwitf/7í*s cn Tem* Sainic: Étudetk mc.moirc collective (Paris, 1941); "La mémoire collective chez ies musiciens", Rcvuc Philosophiquc, 127 (1939), pp. 136-65.

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espécie de cartografia. Situamos aquilo que recordamos no interior dos espaços mentais que o grupo fornece, mas estes espaços mentais, insistia Halbwachs, recebem sempre apoio dos espaços materiais que os grupos sociais específicos ocupam, e reportam-se a esses espaços. Halbwachs citava a observação de Comte de que o nosso equilíbrio mental é, primeiro e antes do mais, devido ao facto de os objectos físicos com os quais estamos em contacto diário mudarem pouco, ou nada, proporcionando-nos assim uma imagem de permanência e de estabilidade. E prosseguia demonstrando como nenhuma memória colectiva pode existir sem referência a um quadro espacial socialmente específico. Isto quer dizer que as nossas imagens dos espaços sociais, devido à sua estabilidade relativa, dão-nos a ilusão de não mudarem e de redescobrirem o passado no presente. Conservamos as nossas recordações através da referência ao.meio material que nos cerca. É para os nossos espaços sociais — aqueles que ocupamos, aqueles que freqüentemente retraçamos com os nossos passos, a que temos sempre acesso e que, a todo o momento, somos capazes de reconstruir mentalmente — que devemos voltar a atenção, se queremos que as nossas recordações ressurjam. As nossas memórias estão localizadas no interior dos espaços materiais e mentais do grupo. Deste modo, Halbwachs rejeitava explicitamente a separação das duas questões: como é que o indivíduo preserva e redescobre as memórias? Como é que as sociedades preservam e redescobrem as memórias? Com uma lucidez exemplar demonstrou que a idéia de uma memória individual, separada em absoluto da memória social, é uma abstracção quase destituída de sentido. Mostrou como segmentos sociais diferentes, cada qual com um passado diferente, terão memórias diferentes, ligadas aos diferentes pontos mentais de referência característicos do grupo em questão. E assinala, para ilustrar a sua tese geral, os casos particulares de memória que operam no interior dos grupos de parentesco, dos grupos religiosos e das classes. Todavia, Halbwachs, embora destacasse nas suas pesquisas a idéia de memória colectiva, não via que as imagens do passado e o conhecimento recordado do passado são transmitidos e conservados por performances (mais ou menos) rituais. Se seguirmos o fio da argumentação de Halbwachs somos inevitavelmente conduzidos à seguinte questão: dado que grupos diferentes têm memórias diferentes, que lhes são próprias, como é que essas memórias colectivas são transmitidas, no interior do mesmo grupo social, de uma geração para a outra? Halbwachs pouco mais faz do que sugerir respostas para esta pergunta, circunscrevendo-se, no essencial, a sugestões que são simultaneamente redutoras e antropomórficas, Afirma, assim, que "a sociedade tende a eliminar da sua memória tudo o que possa desunir os indivíduos", 50 ou que, em certos momentos, "a sociedade é obrigada a ligar-se a novos valores, isto é, a confiar noutras tradições que estão mais de acordo

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com as suas necessidades e tendências actuais". Tais formulações, coexistindo de forma tão incongruente com a exactidão e clareza das suas muitas percepções sagazes, derivam evidentemente de certos hábitos de linguagem e de método, em particular de um vocabulário durkheimiano caracterizado pelo emprego, com o epíteto "colectivo", de termos pedidos de empréstimo à psicologia individual. Isto não é um defeito ou lacuna menor, pois para dizermos que um grupo social, cuja duração excede o tempo de vida de qualquer indivíduo, é capaz de "recordar" em conjunto não basta que os vários membros que compõem esse grupo, num dado momento, sejam capazes de reter as representações mentais que dizem respeito ao passado do grupo. É necessário também que os membros mais velhos do grupo não negligenciem a transmissão dessas representações aos membros mais jovens. Se queremos continuar a falar, seguindo Halbwachs, de memória colectiva, devemos reconhecer que muito daquilo que está a ser subsumido sob esse termo se refere, muito simplesmente, a factos de comunicação entre indivíduos. Pode, na verdade, inferir-se daquilo que Halbwachs diz que os membros de diferentes grupos sociais comunicam de facto uns com os outros, no interior do grupo, de formas que são características desse grupo em particular, mas é uma questão de inferência, porque ele não nos deixa nenhuma indicação explícita de que os grupos sociais são constituídos por um sistema, ou sistemas, de comunicação. Esta dificuldade pode ser ilustrada por um exemplo que o próprio Halbwachs cita. Ao debater a memória familiar refere brevemente o papel dos avós. "É de forma fragmentária", escreve, "e, por assim dizer, através dos interstícios da família actual, que eles comunicam as suas próprias memórias aos netos. "n2 Mas como é que devemos pensar esses "interstícios"? Aquilo que esta observação demonstra é uma incapacidade para apontar com precisão os actos característicos da transferência e, desse modo, contextualizar correctamente as formas pelas quais as memórias dos avós, como grupo social, são transferidas para os netos, como grupo social. Esta é uma insuficiência nos termos da sua própria pesquisa e, na medida em que é também uma insuficiência geral, vale a pena ir mais longe. Marc Bloch chamou a atenção para o facto de nas antigas sociedades rurais, antes do aparecimento do jornal, da escola primária e do serviço militar, a educação da geração mais jovem estar geralmente a cargo da geração mais velha."3 Em tais sociedades aldeãs, dado as condições de trabalho manterem a mãe e o pai afastados quase todo o dia, especialmente 50 5! 32 53

M. Halbwachs, Lcs cadrcs soàaux de Ia mémoire (Paris, 1925), p. 392. lbidcm,p. 358. Iludem, pp. 233-4. Ver M. Bloch, The Historian'$ Craft (trad. R. Putnam, Manchester, 1954), pp. 40-1; para uma recensão de Halbwachs (1925), ver M. Bloch, ''Mémoire coliective, tradition et coutume", Revue de Synthèw Historitjue, 40 (1925), pp. 73-83.

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durante o período do Verão, as crianças eram criadas principalmente pelos avós. Por isso, era a partir dos membros mais velhos da família, tanto se não mais que dos seus próprios pais, que a memória do grupo lhes era transmitida. Este processo iniciava-se muito cedo na vida da criança. Após a primeira fase da infância, dominada pelo aleitamento e pela relação com a mãe, a criança juntava-se ao grupo de parentes e de outras crianças que viviam na casa familiar e, a partir desta altura, a sua educação era, a maior parte das vezes, supervisionada pela avó. Até à introdução das primeiras máquinas, a avó era a senhora da casa, era ela quem preparava as refeições e quem se ocupava, sozinha, das crianças. Era tarefa sua ensinar a linguagem do grupo. Quando os Gregos antigos chamavam às histórias geroia, quando Cícero lhes chamavãfabulae aniles e quando a gravura que ilustrava os Contes de Perrault representava uma velha a contar uma história a um círculo de crianças, eles limitavam-se a registar até que ponto a avó se encarregava da actividade narrativa do grupo. Num tal contexto, não deveríamos encarar a comunicação entre as gerações como sendo conduzida, por assim dizer, em "fila indiana", com as crianças a terem contacto com os seus antepassados apenas através da mediação dos pais. Pelo contrário, com a moldagem de cada novo espírito dá-se, ao mesmo tempo, um passo atrás, unindo a mentalidade mais maleável à mais inflexível, saltando a geração que poderia patrocinar a mudança. E esta forma de transmitir a memória, sugere Bloch, deve ter contribuído seguramente, em grau muito substancial, para o tradicionalismo inerente a tantas sociedades camponesas. 54 O meu propósito ao focar este exemplo, em particular, é salientar o facto de que estudar a formação social da memória é estudar os actos de transferência que tornam possível recordar em conjunto. Tenciono isolar e considerar com mais pormenor certos actos de transferência que se encontram tanto nas sociedades tradicionais como nas modernas e, ao fazê-lo, desejo salientar certos tipos particulares de repetição. Enquanto algumas tendências dominantes na teoria social contemporânea são muitas vezes criticadas por não tratarem, ou fazerem-no de forma inadequada, a mudança social, eu procurarei focar de que modo essas teorias são muitas vezes deficientes por não serem capazes de tratar de forma adequada a permanência social. Foi com este fim que destaquei, como actos de transferência de importância crucial, as cerimônias comemorativas e as práticas corporais. Como vimos, estes não são de forma alguma os únicos componentes da memória comunal, pois a produção de histórias narrativas contadas informalmente é não só uma actividade básica para a nossa caracterização quotidiana das acções humanas, mas também uma característica de toda a memória social Abordei, 54

Para comentários corroborativos desta sugestão, com particular referência ao papel das avós nas sociedades tradicionais, ver D. FabreeJ. Lacroix, La tradition oralçdu conte occitan (Paris, 1974), Vol. I, especialmente as pp. 111-15.

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contudo, as cerimônias comemorativas e as práticas corporais em particular, porque é o estudo destas, segundo pretendo provar, que nos permite ver que as imagens do passado e o conhecimento recordado do passado são transmitidos e conservados por performances (mais ou menos) rituais.

Capítulo 2 CERIMONIAS COMEMORATIVAS

1 Entre a tomada do poder, em Janeiro de 1933, e a deflagração da guerra, em Setembro de 1939, os súbditos do Terceiro Reich foram constantemente lembrados do Partido Nacional-Socialista e da sua ideologia por uma série \ de cerimônias comemorativas. O número, a seqüência e a estrutura performativa destes festivais assumiram rapidamente uma forma canónica e mantiveram essa forma até ao desaparecimento do Terceiro Reich. O impacte desta seqüência canónica recém-inventada invadiu todas as esferas da vida, relacionando-se os festivais do Reich com as festas do calendário cristão de forma muito parecida àquela como este último fora relacionado com as celebrações sazonais da era paga. A liturgia calendarizada do Partido Nacional-Socialista era regulamentada e total.1 O ano litúrgico começava a 30 de Janeiro, com o aniversário da tomada de poder por Hitler, em 1933. Todos os anos, nesse dia, o discurso de Hitler ao Reichstag, transmitido pela rádio, presenteava "a nação" com uma relação daquilo que fizera com o poder que lhe havia sido confiado. A procissão dos archotes do dia 30 de Janeiro de 1933 repetia-se anualmente, terminando o dia com uma cerimônia, difundida pela rádio em todas as esquinas, na qual os jovens de dezoito anos, que tivessem demonstrado qualidades de liderança na Juventude Hitleriana, prestavam juramento como membros efectivos do partido. Todos os anos, no dia 24 de Fevereiro, uma cerimônia exclusivamente para a "velha guarda" comemorava a fundação do partido, o "anúncio" do programa "imutável" em vinte e cinco pontos, na Hofbráuhaus, em

1

Sobre os rituais nacionaLsociaHstas, ver H. T. Barden, The Nuremberg Party RaUies, 1929-39 (Londres, 1967); J. P. Stem, Hitler: The Führer and lhe People (Londres, 1975); K. Vondung, Magie und Manipuhtion, ídeologischer Kult und politische Religion de$ Nationateozialismus (Gottingen, 1971). 47

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RE C O R D A M

1920. O 16 de Março era um dia de luto nacional, adoptado da República de Weimar e dedicado à memória dos mortos da Grande Guerra. No último domingo de cada mês de Março, os jovens de catorze anos aderiam à Juventude Hitleriana num rito de passagem cujo centro, numa analogia clara com a profissão de fé em Cristo do Crisma, era o juramento de fidelidade ao Führer. O aniversário do Führer, a 20 de Abril, era celebrado com uma parada da Wehrmacht na porta de Brandeburgo. O festival nacional do povo germânico, que se realizava a 1 de Maio, sendo originariamente uma festa dos trabalhadores, foi despojado das suas implicações internacionalistas e reinterpretado como uma celebração da Volksgemeinschaft germânica. A 21 de Junho, o solstício de Verão era celebrado com paradas das SS e da Juventude Hitleriana. No princípio de Setembro, o partido exibia o seu poder no Reichsparteitag. De 1927 a, 1938, este comício, que durava uma semana, decorreu em Nuremberga, reunindo meio milhão de participantes, em média, e atingindo um recorde de quase um milhão em 1938. No início de Outubro, a antiga tradição do Festival das Colheitas foi transformada num festival nacional-socialista do campesinato alemão. Nenhum festival estava dotado de uma força de culto mais poderosa do que aquele que comemorava o Putsch, o "baptismo de sangue" de 1923. O seu tema era o sacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" do nacional-socialismo. Os sobreviventes do putsch, condecorados com a Ordem do Sangue, encontravam-se para a reunião tradicional na Burgerbraukeller de Munique, no dia 8 de Novembro, para ali ouvirem a alocução comemorativa de Hitler dedicada aos "dezasseis mártires do movimento nacional-socialista". No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam do Burgerbraukeller para o Feldherrnhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, ao longo de um caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de uma música fúnebre, do dobre dos sinos e da recitação lenta dos nomes de todos os que haviam sido mortos, desde 1919, ao serviço do partido. Estas cerimônias atingiram o aparato máximo em 1935. Nesse ano, os cadáveres exumados das dezasseis "testemunhas de sangue" foram colocados no Felherrnhalle, na véspera do dia das comemorações, e transferidos, a 9 de Novembro, em procissão solene, para o recém-construído Ehrentempel, na Konigplatz. O caminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada uma delas com o nome de um dos "caídos pelo movimento". À medida que a cabeça da procissão passava por cada coluna, o nome de um dos mortos era proclamado. Quando a procissão chegou ao Feldherrnhalle soaram dezasseis tiros de canhão, um por cada um dos dezasseis caídos de 1923. Enquanto os caixões eram colocados em carruagens para serem transportados para o Ehrentempel, Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. No Ehrentempel, os nomes das dezasseis "testemunhas de sangue" foram evocados, um por um, e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cada nome com o grito "presente!"

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Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era uma representação paga da Paixão, apresentada num vocabulário pedido de empréstimo à religião. A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos históricos transfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias inalteráveis e imutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história não é um jogo de forças contingentes — as constantes fundamentais são a luta, o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais do nacional-socialismo consubstanciadas, por assim dizer, nàs dezasseis "testemunhas de sangue", são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para o sacrifício até à morte. O fiasco político de 1923 não é, deste modo, reinterpretado e representado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortal daqueles que nele tombaram deve ser interpretado não como uma morte sem sentido, mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como um acontecimento sagrado, que aponta em frente, para um outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933, pois a tomada do poder não é interpretada como um mero êxito político, tal como o putsch de 1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esfera -das coisas mundanas. O acontecimento "sagrado" do putsch prefigurava a vitória, enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por fim, forma real ao conteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu-se uma concordância mítica e a data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 de Novembro. Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto encenado, era um rito estabelecido e representado. A sua história não era inequivocamente contada no pretérito, mas no tempo de um presente metafísico. Subestimaríamos o poder comemorativo do rito, minimizaríamos o seu poder mnemónico, se disséssemos que ele recordava acontecimentos míticos aos participantes. Deveríamos antes dizer que o acontecimento sagrado de 1923 era reapresentado; os que participavam no rito davam-lhe uma forma cerimoniaImente corporizada. A realidade transfigurada do mito era reapresentada uma e outra vez, quando aqueles que tomavam parte no culto se tornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimento mítico. Todos os anos, a marcha histórica de 1923 repetia-se; todos os anos, soavam os dezasseis tiros, repetindo os dezasseis disparos mortais de 1923; todos os anos, as bandeiras eram agitadas não como símbolos que se reportassem a um acontecimento acabado, mas como relíquias consubstanciais desse mesmo acontecimento. Acima de tudo, era através de actos representados num lugar sagrado que a ilusão do tempo mundano era suspensa. No Feldherrnhalle dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica. Neste local a diferença temporal era negada e a existência da mesma realidade, "verdadeira" e "autêntica", anualmente desvendada.

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O regime nacional-socialista era recente e as suas cerimonias recéminventadas, apesar de adoptarem deliberadamente alguns componentes cristãos — de calendário e de caracter intrínseco — da mesma maneira que as cerimônias cristãs primitivas adoptaram alguns elementos pagãos. Assim, o nazi estava para o cristão como o cristão estava para o pagão. Há uma traditio germânica muito antiga — assim identificada — e esta tem sido em parte mantida em funcionamento.

2 Acontecimentos da natureza dos que foram atrás referenciados fazem parte, claramente, de um fenômeno mais vasto, o da acção ritual. Existe um desacordo substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser utilizada, mas considero que uma das definições mais sucintas e funcionais à nossa disposição é aquela que Lukes propõe, sugerindo que empreguemos o termo ritual para designar "a actividade orientada por normas, com caracter simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de sentimento que estes pensam ter um significado especial". 2 As premissas contidas nesta definição podem ser reveladas através ' de três proposições interligadas, cada uma das quais se pode enunciar mais facilmente sob uma forma negativa. Os ritos não são meramente expressivos. É verdade que são actos com mais de expressivo do que de instrumental no sentido em que ou não são dirigidos para um fim específico, ou, se o são, como no caso dos ritos de fertilidade, não conseguem alcançar o seu objectivo estratégico. Mas os ritos só são actos expressivos em virtude da sua regularidade notória, são actos formalizados e tendem a ser estilizados, estereotipados e repetitivos. Dado serem deliberadamente estilizados, não estão sujeitos à variação espontânea, ou, pelo menos, só são susceptíveis de variação dentro de estritos limites. Não se realizam sob uma compulsão interior momentânea, mas são deliberadamente celebrados para simbolizar sentimentos. Libertam, na verdade, sentimentos expressivos, mas este não é o seu objectivo central. Os ritos não são meramente algo de formal. Exprimimos vulgarmente a nossa percepção do seu formalismo falando de tais actos como "meramente" rituais, ou como formas "vazias", e pomo-los freqüentemente em contraste com actos e declarações às quais nos referimos como "sinceras" ou "autênticas". Mas isto é enganador, pois aqueles que celebram os ritos sentem que estes são obrigatórios, mesmo que não incondicionalmente, sendo a interferência com actos dotados de valor ritual sempre sentida como uma 2

S. Lukes, "Political Ritual and Social Integration", Sociology, 9 (1975), pp. 289-308, especialmente a p. 291.

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injúria intolerável infligida por uma pessoa, ou grupo, a outro. Podemos achar que as crenças que outra pessoa qualquer considera sagradas são puramente fantásticas, mas nunca pode pedir-se de ânimo leve que a sua expressão efectiva seja violada. E, inversamente, as pessoas resistem à obrigação de fazer louvores a um conjunto de ritos alheios, incompatíveis com a sua própria visão da "verdade", porque encenar um rito é sempre, num certo sentido, estar de acordo com o seu significado. Obrigar os patriotas a insultarem a sua bandeira, ou forçar os pagãos a receber o baptismo, é violentá-los. O efeito dos ritos não está limitado à cerimônia ritual. E verdade que os rituais tendem a realizar-se em lugares especiais, em datas estabelecidas. E é um facto que muitos ritos assinalam momentos de início e termo tanto em cerimônias nas alturas críticas da vida dos indivíduos — por exemplo, o nascimento, a puberdade, o casamento e a morte —, como também nas cerimônias recorrentes do calendário, mas o que quer que os ritos demonstrem, impregna também o comportamento e a mentalidade não rituais. Embora delimitados no tempo e no espaço, os ritos são também, por assim dizer, porosos. Considera-se que fazem sentido, porque têm significado relativamente a um conjunto de outras acções não rituais, para toda a vida de uma comunidade. Os ritos têm a capacidade de conferir valor e sentido à 'vida daqueles que os executam. 3 Todos os ritos são repetitivos e a repetição subentende automaticamente, a continuidade com o passado, mas existe uma classe distintiva de ritos que têm um caracter calendarizado explicitamente virado para o passado. Os festivais nacional-socialistas pertencem a este tipo e é fácil pensar em mais exemplos. Assim, em muitas culturas, os festivais são realizados como a comemoração de mitos que lhes estão associados e como a recordação de um acontecimento que se pensa ter ocorrido numa data histórica determinada, ou num qualquer passado mítico; existem cerimoniais recorrentes no calendário, como o Dia de Ano Novo e os aniversários; as festas dos santos cristãos comemoram-se em certos dias do ano; no cenotáfio, celebram-se cerimônias de recordação; as bandeiras são colocadas a meia-haste; põem-se flores nas sepulturas; e existem actualmente mais de uma centena de embaixadas, em todas as capitais mundiais mais importantes, cada uma com, pelo menos, uma celebração nacional para a qual os funcionários devem ser convidados, todos os anos. Algumas destas comemorações são celebradas de bom grado, outras são um fardo e outras não provocam mais do que um bocejo moderadamente emocionado. Contudo, a característica que todas têm em comum, e que as afasta da categoria mais geral dos ritos, é que não implicam apenas a continuidade com o passado, mas reivindicam explicita3

Sobre os ritos terem significado para além da ocasião em que são praticados, ver C Gecrtz, "Reiigion as a Cultural System", in D. Ctitler (ed.), The Religious Situation (Nova Iorque. 1968), pp. 639-87.

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COMO

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mente essa mesma continuidade. E muitas delas, nas quais desejo agora fixar a atenção, fazem-no através da reencenação ritual de uma narrativa de acontecimentos que se julga terem decorrido num tempo passado, de modo suficientemente elaborado para incluírem a performance de seqüências mais ou menos invariáveis de actos e declarações formais. Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série anterior de acontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais amplamente expressa do que nas grandes religiões mundiais. Uma tal pretensão está nelas constantemente presente. A essência da identidade judaica é estabelecida pela referência a uma sucessão de acontecimentos históricos. Os dois livros mais populares na vida judaica, o Antigo Testamento e o livro judaico de orações, narram e celebram esta sucessão. O Antigo Testamento e, em particular, os seus livros históricos revelam uma identidade constituída pelas etapas de uma narrativa histórica: a vida de Abraão e a sua migração para o Egipto, o êxodo das tribos judaicas ) do Egipto, a revelação da Lei no monte Sinai, a entrada dos judeus na Terra Prometida e as aventuras subsequentes sob o domínio dos juizes e dos reis. O livro de orações, tal como o Antigo Testamento, exprime os ideais religiosos e éticos do judaísmo e reflecte simultaneamente a vida do judeu enquanto membro de um grupo histórico particular. Embora os seus elementos básicos x permanecem idênticos através da Diáspora, os pormenores do livro de orações trazem, em quase todos os países, a marca das condições locais a que a comunidade judaica está sujeita. Tanto no Antigo Testamento como no livro de orações, a "recordação" torna-se um termo técnico através do qual se dá expressão ao processo pelo qual os judeus praticantes lembram e recuperam, na sua vida presente, os principais acontecimentos formativos da história da sua comunidade. Em nenhum outro lugar esta teologia da memória é mais pronunciada do que no Deuterónimo. A prova de que a nova geração de Israel permanece ligada à tradição mosaica, que o Israel do presente não foi separado da sua história redentora, reside numa forma de vida em que recordar é tornar o passado presente, é formar uma solidariedade com os antepassados. Essa prova deverá ser feita nas demonstrações do culto. Israel celebra os festivais para recordar, e o que se recorda é a narrativa histórica de uma comunidade. A Páscoa, um dos festivais mais importantes do ano judaico, é explicitamente histórica, lembrando todos os anos ao povo o acontecimento central da antiga história judaica, o êxodo do Egipto tal como é contado no Exodus Doze. O Seder (a ceia ritual da Páscoa judaica) recorda anualmente aos judeus praticantes o momento mais formativo na vida da sua comunidade, o momento em que essa comunidade foi redimida do cativeiro e transformada num povo livre, e lembra-lhes esse momento sob a forma de uma celebração doméstica, na qual uma parte proeminente do culto cabe à criança. As gerações permanecem unidas na história através do culto. Também aos festivais das colheitas de Shevuoth e Sukkoth te"m sido dada

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uma referência histórica: o primeiro comemora a revelação da Lei, no monte Sinai, e o segundo alude ao êxodo. Dois festivais menores são explicitamente históricos, mantendo presentes acontecimentos relembrados anualmente: o Purim, que comemora os acontecimentos narrados no Livro de Ester e o Hanukka, que celebra a história da purificação do Templo, O próprio Sabbath é apresentado, no Pentateuco, em termos parcialmente históricos, como comemoração tanto da criação do mundo como do êxodo. Ao conservar o Sabbath sagrado, Israel recorda e participa na história redentora da sua comunidade. 4 O cristianismo permanece vinculado à sua origem histórica própria, tem a sua origem num momento histórico definido e em todas as ocasiões subsequentes da sua história reporta-se explícita e elaboradamente a esse momento, O cristianismo inicia-se com uma sucessão única de acontecimentos na história e, sobretudo, com o acontecimento central da crucificação. Não há dúvidas de relevo acerca da historicidade da crucificação e da data em que ela ocorreu. O cristianismo não é, portanto, nem a exposição de uma doutrina abstracta, nem a recapitulação de um mito. Ensina que a revelação divina assumiu uma forma histórica, que Deus interveio na história da humanidade e que a vocação do cristão é recordar e comemorar a ' história dessa intervenção. O período de tempo evocado pelos Evangelhos e recordado na liturgia não é, como nas religiões arcaicas, um tempo mítico, não se devendo pensar nos acontecimentos recapitulados anualmente, no calendário sagrado, como acontecimentos que ocorreram "no início", in Mo tempore. Os acontecimentos passaram-se numa história datável e num período histórico claramente definido, o período em que Pôncio Pilatos era governador da Judeia. Esses acontecimentos e esse período são comemorados anualmente nas festas da Sexta-Feira Santa e da Páscoa. Todo o ano cristão se articula em redor deste período pascal, que recapitula e reencena, na seqüência das cerimonias e no conteúdo das orações, as várias etapas da Paixão. Há uma periodicidade semanal incluída neste ciclo anual, pois a missa, na qual os fiéis participam, comemora, todos os domingos, a Ultima Ceia. Na verdade, não existe oração, nem acto de devoção, que não tome como referência, directa ou indirectamente, o Cristo histórico. A narrativa histórica chega aos pormenores mais diminutos. O factoda crucificação encontra-se simbolizado em cada sinalda-cruz: este é, em si próprio, uma comemoração condensada, uma nar4

Sobre a liturgia judaica, ver B. S. Childs, Memory and Tradüion in Israel (Londres, 1962); í. EIbogen, Der jihlischc Gottetdienst in tehier gesehichtlichen Fjitwicklun^ (Hildesheim, 1962); N. Ni. Glatzer íed.), The Pastover Ha^adah (Nova Iorque, 1960); A. / . ídelson, /rír/s/i Lihtrgy iwd its Deveíopment (Nova Iorque, 1967); B. Lewis, History: Remewbered, Kecorded, Invented (Frínceton, 1975), pp. 47-48; S. Mowinckol, Rcligion und Kitítus (Gõttingen, 1953); j . Pederson, Israel, ite Life und Culhtre (Oxford, 1940); J. Pehichovvski, Contrihntious to lhe Scirtitific Stndu nftíie \vwish Lititrgy (Nova Iorque, 1970).

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RECORDAM

rativa consubstanciada, uma evocação do facto histórico central e da crença religiosa fulcral da cristandade. 5 A fundação do islão como religião é uma seqüência de acontecimentos históricos ainda mais explicitamente definida do que sucede com o judaísmo ou o cristianismo; o fundador do islão tornou-se soberano enquanto era vivo, governou uma comunidade e comandou exércitos. É verdade que importantes motivações para o desenvolvimento de um ritual historicamente referenciado, presentes no judaísmo e no cristianismo, se encontravam ausentes no islamismo. Faltava à vida de Maomé a ambigüidade simbólica, o estímulo hermenêutico, como sucede na Última Ceia ou no Êxodo, onde os dois níveis de existência religiosa e terrena, do tempo sagrado e do profano, parecem misturar-se e apelar ao reordenamento ritual pelos crentes vindouros. A história da comunidade árabe não podia ser explorada como um rico veio de acontecimentos, ou de estádios dignos de comemoração religiosa, dado ter-se desenvolvido rapidamente uma comunidade muçulmana organizada ape- j nas uma década depois de Maomé ter começado a pregar. Além disso, a ausência de uma classe clerical restringiu o desenvolvimento da liturgia islâmica, tanto em extensão como em pormenor, e levou a que as manifestações exteriores da religião islâmica conservassem uma nota dominante de simplicidade. Em conseqüência, o calendário islâmico só continha inicial- l mente dois festivais: a peregrinação, com a festa que celebra a sua conclusão bem sucedida, e o jejum do Ramadão, com a festa que assinala o fim do período de abstinência. Mas ambos os festivais têm, pelo menos, alguma referência histórica ostensiva. A peregrinação anual a Meca contém algo de alusão histórica: evoca a memória de Maomé, assim como a de Abraão, a quem é atribuída, no Alcorão, a fundação do santuário e a instituição da peregrinação. Todo o muçulmano é obrigado a fazer a viagem aos lugares sagrados uma vez na vida e a tomar parte naqueles actos cerimoniais num dado momento e segundo uma dada seqüência. Contudo, embora os teólogos tenham dedicado muita atenção à definição da "capacidade" para fazer a peregrinação e às condições que isentam o crente da obrigação de a realizar, na prática, a decisão de ir ou não a Meca é mais ou menos deixada ao indivíduo, e em nenhuma época terá sido possível que mais do que uma pequena fracção da comunidade muçulmana nela tenha participado. Mas enquanto a obrigação de fazer a peregrinação só pode, na realidade, ter sido cumprida por um pequeno número de muçulmanos, a obrigação de jejuar durante o mês do Ramadão influencia profundamente a vida de todos os 5

Sobre a liturgia cristã, ver O. Casei, The Mistery ofChristian Worship (ed. B. Neunheuser, Londres, 1962); F. Clark, Eucharistic Sacrifice and the Reformation (Oxford, 1967); Y. M.-J. Congar, Tradition and Traditions (tr. M. Naseby e T. Rainborough, Londres, 1966); R. Guardini, The Church and the Catholic, and the Spirit of the Liturgy (tr. A. Lane, Londres, 1935); J. A. Jungmann, Liíurgische Erneuerung — Rückblick und Aushlick (Kevalaer, 1962); Jungmann, The Liturgy ofthe Word (tr. H. E Winstone, Londres, 1966). *

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crentes. O jejum veio a ser olhado por muitos como o acto religioso mais importante e é observado até pelos muçulmanos que negligenciam as suas orações diárias. E o Ramadão foi escolhido devido às suas referências históricas explícitas: foi neste mês, o quinto do ano muçulmano, que o Alcorão foi enviado à terra como um guia para o povo. 6

3

Nas religiões mundiais, mas também'nos ritos de muitos povos sem escrita e em diversos rituais políticos modernos, existe, pois, uma gama de cerimônias que partilham certas características comuns: não se limitam a sugerir a continuidade com o passado, em virtude do seu grau elevado de formalismo e rigidez; pelo contrário, um dos seus traços característicos é a reivindicação explícita de comemorarem uma tal continuidade. Não poderemos nós inferir então, a partir deste facto, que essas cerimônias comemorativas desempenham um papel significativo na configuração da memória comunitária? Tem-se expressado muitas vezes cepticismo a respeito desta inferência e esse cepticismo assumiu geralmente uma de três formas possíveis. A primeira linha de argumentação, a que chamarei a posição psicanalítica, consiste na perspectiva de que o comportamento ritual se compreende melhor como uma forma de representação simbólica. Afirma-se que os ritos são o enunciado sistematicamente indirecto, codificado no simbolismo do rito, de conflitos que esse rito disfarça e, nessa medida, nega. O processo primário, que se considera explicar o processo secundário da representação simbólica, está localizado na história de vida do indivíduo, embora as interpretações psicanalíticas particulares do ritual possam variar, conforme a fase edipiana ou pré-edipiana da infância, ou outro qualquer processo conflitual, seja, ou não, tomada como a gênese de tais representações. Aquilo que todas essas interpretações têm em comum é descodificarem o texto ritual como tendo uma carga de conflito e estando, por isso, de certo modo, carregado de estratégias de negação. É possível interpretar os rituais psicanaliticamente como representações simbólicas, explicando essas representações em termos da história de vida do indivíduo. Assim, o entendimento que Freud tem do ritual é baseado na suposta analogia entre a ontogenese e a filogénese, sendo o terreno da alegada analogia proporcionado pelo seu ponto de vista de que a luta edipiana entre filhos e pais, no contexto da autoridade patriarcal, é o processo primário/ Nesta base, Freud é levado a especular que na história 6 7

Sobre os festivais muçulmanos, ver G. E. von Grunebaum, Muhammadan Festivais (Nova Iorque, 1951) e B. Levvis, History: Rememhered, Recordai, ínvented (Príncelon, 1975), p. 49. Ver S. Freud, Totem and Taboo, in Standard Editian, Vol. XII (trad. J, Strachey, com A. Freud,

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de vida da espécie humana terá existido outrora uma horda primitiva constituída por um pai poderoso, os seus filhos e um grupo de fêmeas às quais o pai tinha acesso exclusivo; que os filhos, ressentindo-se da sua dominação, o mataram; que, depois, reconheceram que o amavam, para além de o odiarem, ficando dominados pelo remorso; e que, como reparação, restauraram a imagem do pai sob a forma substitutiva do animal totémico. Segundo esta interpretação, a refeição totémica que repetiam todos os anos devia então ser vista como a repetição solene não do acto de parricídio em si, mas da forma de encarar esse acto,. que aqueles que o haviam cometido vieram posteriormente a adoptar. Era um regresso da memória reprimida, no qual representavam e superavam o acto originário. Representavam a sua ambivalência para com o pai venerando e, devorando simultaneamente o animal totémico, superavam essa ambivalência identificando-se com o animal que comiam. A refeição totémica deve ser entendida como um acto de representação simbólica no sentido em que se tratava de uma repetição e de uma comemoração ) deste feito criminoso e memorável. Sem nos exigir que aceitemos a ontologia freudiana na globalidade, ou que aceitemos a sua projecção na história de vida da humanidade, Richard Wollheim propõe uma explicação psicanalítica alternativa do ritual como representação codificada.8 Começando por observar que muitos ritos exigem uma morte, geralmente a de um animal, embora % por vezes também a morte real ou simulada de um ser humano, sugere que tais actos são invariavelmente "exercícios de negação" e como tal pertencem à "patologia do ritual". O ritual nega, e aqueles que o executam negam, a realidade da agressão como impulso humano, a denegação é feita colocando "entre parêntisis" o seu sentido. O fim para o qual a agressão como impulso se dirige inerentemente, a destruição de uma vida, é isolado. Uma vez isolado, este fim é recomendado como algo que deveria ser repetido uma e outra vez, mas sempre, em cada repetição, o motivo pelo qual a vida deve ser tirada deve estar o mais afastado possível da agressão — deve ser em nome da piedade, da decência, ou da reverência pela autoridade. Aquilo que esses ritos se destinam a alcançar, sugere, é "a minimização ou a depreciação do sadismo", e este fim apenas se pode concretizar, tal como os ritos no cenário alternativo de Freud, pela representação quase textual codificada. Uma segunda linha de argumentação, a que chamarei a posição sociológica, consiste na opinião de que o comportamento ritual se corrípreende melhor como uma forma de representação quase textual. Este tipo de leitura desenvolve-se enfatizando as formas como o ritual funciona para comunicar valores partilhados no interior de um grupo e para reduzir a dissensão

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assistido por A. Strachey e A. Tyson, Londres, 1953-66). Sobre a interpretação freudiana do ritual, ver R Ricoeur, "Psychoanalysis and the Movement of Contemporary Culture", in R Rabinow e W. M. Sullivan (eds.), Interpretative Social Science (Berkeley, 1979), pp. 301-9. R. Wollheim, The Sheep and the Cercmony (Cambridge, 1979).

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interna. Segundo este ponto de vista, aquilo que os rituais nos dizem é como são constituídos a estabilidade e o equilíbrio sociais. Mostram-nos como o ethos de uma cultura e a sensibilidade moldada por esse ethos, quando soletrados para o exterior, são articulados no simbolismo de algo parecido com um texto colectivo único. Podem encontrar-se muitas variantes influentes desta linha de interpretação. Segundo Durkheim, o ritual"representa" a realidade social tornando-a inteligível, mesmo que o conteúdo cognitivo do rito esteja codificado sob uma forma metafórica e simbólica. Neste sentido, podemos considerar os rituais religiosos, por exemplo, como sistemas de idéias nos quais "os indivíduos representam para si próprios a sociedade de que são membros e as relações obscuras mas íntimas que têm com esta".9 Esta idéia — que resulta do realce da componente fortemente cognitiva da explicação de Durkheim — de que os ritos podem ser interpretados como representações simbólicas e, neste sentido, como possuindo conteúdo cognitivo, pode ser simultaneamente alargada e modificada. Pode ser alargada se considerarmos que o simbolismo dos rituais políticos representa conceitos particulares daquilo que é uma sociedade e de como ela funciona,10 e pode ser modificada se considerarmos que esses rituais políticos operam no âmbito de contextos 'políticos em que o poder é distribuído de modo sistematicamente desigual, o que nos permite interpretar os rituais como algo que possibilita um controlo cognitivo na medida em que proporciona uma versão oficial da estrutura política através de representações simbólicas, por exemplo, do "império", da "constituição", da "república", ou da "nação". 11 Esses rituais podem ler-se como uma espécie de texto colectivo simbólico, mas a possibilidade de interpretar os ritos como formas de representação simbólica pode ser levada ainda mais longe se, com Bakhtin, interpretarmos o Carnaval e, mais particularmente, as festividades populares que floresceram durante o Renascimento como representações antecipatórias. 12 Segundo esta explicação, as inversões da ordem hierárquica características do Carnaval não devem continuar a ser interpretadas como uma forma encoberta de reafirmar a hierarquia, mas, pelo contrário, como um mecanismo de libertação social, no qual o expediente da representação simbólica é utilizado como alavanca. O Carc

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E. Durkheim, The Elementan/ Forms o/Religious Life (trad. j . W. Svvain, Londres, 1915), p. 225. Para a extensão do estudo do simbolismo aos rituais políticos, ver E. Shils e M. Young, "Tbe Meaning of the Coronation", Sociológica! Revira*, n.s. 1 (1953), pp, 63 -81; L. Warner, The Living and the Dead: A Study of the Symhoíic Life of Americans (New Haven, 1959). Para o uso do ritual político como controlo cognitivo, ver N. Birnbaum, "Monarchiesand Socioiogists: A Reply to Professor Shils and Mr. Young", Sociológica! Revieio, n.s. 3 (1955), pp. 5-23; C. Geertz, "Centers, Kings, and Charisma: Reflections on the Symbolism o\ Power", in J. Ben-David e T. N\ Clark (eds.), Culture and its Creators, Estaifs in Honour of Edtvard Shils (Chicago, 1977), pp. 150-71; S. Lukes, "Political Ritual and Social íntegration", Sociology, 9 (1975), pp. 289-308. M Bakhtin, Rabelais and his World (trad. H. íswolsky, Cambridge, Mass., 1968), pp. 196-277.

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naval é assim visto como um acto em que "os indivíduos" se organizam "à sua maneira", como uma colectividade onde os membros individuais se tornam parte inseparável da massa humana, de tal forma que "as pessoas" se apercebem da sua unidade corporal sensual-material. Pode então dizer-se que as formas populares-festivas, ao permitirem a aglutinação de um tal corpo colectivo, oferecem às pessoas uma representação simbólica não das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro no qual se concretiza a "vitória da abundância material de todo o povo, a liberdade, a igualdade e a fraternidade". Os ritos do Carnaval representam e prefiguram os direitos do povo. Como forma de interpretar os ritos, esta argumentação oferece-nos uma espécie diferente de codificação simbólica, em que aquilo que de outro modo seria calado e indizível é expresso e a dimensão do tempo futuro implicitamente revelada. Como interpretação da acção ritual, pertence, todavia, ao mesmo gênero que o seu correspondente durkheimiano, o da representação simbólica numa espécie de texto colectivo. Uma terceira linha de argumentação, à qual chamarei a posição histórica, consiste no parecer de que os ritos não se podem compreender de forma satisfatória apenas em termos da sua estrutura interna, pois todos os rituais, não importa quão venerável seja a ancestralidade que lhes é atribuída, têm de ser inventados em alguma altura e, durante o período histórico em que permanecem vivos, o seu significado é susceptível de mudança. Esta explicação levou à tentativa de redescobrir o significado dos cerimoniais, reenquadrando-os no seu contexto histórico. Segundo este ponto de vista, situar um rito no seu contexto não constitui um mero passo auxiliar, mas um ingrediente essencial ao acto da sua interpretação. Investigar o contexto de u m rito não é estudar apenas informação adicional a seu respeito, mas sim colocarmo-nos em posição de obter maior compreensão do seu significado do que aquela que seria acessível a "alguém que o interpretasse como um texto simbólico independente". 13 Seguindo esta linha de pensamento, muitos historiadores têm demonstrado que, se quisermos redescobrir o significado dos rituais da realeza no início do período moderno, temos de relacioná-los inteligivelmente com as circunstâncias em que foram realizados.14 Outros 13

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Para uma elaboração desta posição, ver D. Cannadine, "The Context, Performance and Meaning of Ritual: The Bristish Monarchy and the Tnvention of Tradition', c. 1820-1977", in E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The Invention of Tradition (Cambridge, 1983), pp. 10164, especialmente 104-8. Para os estudos do ritual político no início da Idade Moderna, ver, entre outros, S. Anglo, Speciacle, Pageantry and Early Tndor Policy (Oxford, 1969); D. M. Bergeron, English Civic Pagcantry, 1558-1642 (Londres, 1971); P. Burke, Popular Ctdture in Early Modem Europe (Londres, 1978); R. E. Giesey, The Royal Funeral Qeremony in Renaissance Trance (Genebra,, 1960); E. Muir, Civic Ritual in Renaissance Venice (Prínceton, 1981); S. Orgel, The lllusion of Poiver: Political Theater in the English Renaissance (Berkeley, 1975); R. Strong, Spkndour at Court: Renaissance Spectacíe and lllusion (Londres, 1973); F. A. Yates, T/;Í Valois Tapestries (Londres, 1959).

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historiadores, especializados num período posterior, mostraram que sempre que as instituições sociais, para as quais as "velhas" tradições foram concebidas, começam a mir sob o impacte de uma rápida evolução social, ocorre uma invenção imediata e muito difundida de novos rituais,15 a qual invenção do ritual acaba por ser simultaneamente um problema geral e um fenômeno de interesse particular nas sociedades pós-tradicionais. Deste modo, é agora muito claro que, no período moderno, as elites nacionais inventaram rituais que reclamam a continuidade com um passado histórico adequado, organizando cerimonias, paradas e reuniões de massas e construindo novos espaços rituais. Isto é verdade tanto para a Europa como para o Médio Oriente. Tanto a Terceira República como a Alemanha de Guilherme investiram capital simbólico em tradições inventadas. 16 Em França, o Dia da Bastilha tornou-se uma data histórica em 1880 e, na Alemanha, a Guerra Franco-Prussiana tornou-se um acontecimento histórico no seu vigésimo quinto aniversário, quando se instituiu uma cerimônia comemorativa, em 1896. Ambas comemoravam os actos fundadores do novo regime, diferindo apenas na maneira como o mito da fundação era interpretado. Nos dois casos, o contexto dos ritos demonstra a sua função ideológica. Em França, a burguesia republicana moderada inventou um rito como parte da sua estratégia para afastar a ameaça de inimigos políticos à esquerda. Conseguiram-no através de uma reafirmação anual da França como a nação de 1789, na qual os símbolos da bandeira tricolor e de A Marselhesa e a referência à liberdade, à igualdade e à fraternidade, lembrassem aos cidadãos da Terceira República o facto alegadamente unificador da pertença à nação 15

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Para os estudos do ritual político na Idade Moderna, ver, em especial, E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The Invention ofTradition (Cambridge, 1983); ver também M. Agulhon, "Esquisse pour une archéologie de Ia republique: 1'allégorie civique féminine", Annalcs, 28 (1973), pp. 5-34; Agulhon, Marianne into Battle: Republican hnagery and Symbolism in f rance, 1789-1880 (trad. J. Lloyd, Cambridge, 1981); R. Bocock, Ritual in industrial Society (Londres, 1974); G. Kernodle, From Art to Thcatre (Chicago, 1944); C. Lane, The Ritcs of Rulers: Ritual in Industrial Society — the Soviet Case (Cambridge, 1981); G. L. Mosse, "Caesarism, Circuses and Ivlonuments", Journal ofCoutemporaryHislory, 6 (1971), pp. 16782; Ci. L. Mosse, "Mass Politics and the Political Liturgy of Nationalism", in E. Kamenka (ed.), Nationalism: 1'heNatureand Evoluí ion ofan Ideal (Londres, 1976), pp. 39-54; M. Novak, Choosing our King (Nova Iorque, 1974); C. Rearick, "Festivais and Politics: The Michelet Centennial of 1898", /;/ W. Laqueur e G. L. Mosse (eds.), Historians in Politics (Londres, 1974), pp. 59-78; C. Rearick, "Festivais in Modem France: The Experience of the Third Repubíic", loumal of Contemporary History, 12 (1977), pp. 435-60; R, Samson, "La feto de jeanne d'Arc en 1894: controverse et célébration", Revi te d'Histoirc Moderne et Con temporaine, 20 (1973), pp. 444-63; L. Warner, The Living and the Dead: a Study of the Symbalic Life of Americans (NTew Haven, 1959). Sobre a invenção da tradição na Terceira República e na Alemanha do Kaiser Guilherme, ver E. Hobsbawm, "Mass-Producing Traditions: Europe, 1870-1914", in E. Hobsbawm e*. T. Ranger (eds.), Tlie Invention ofTradition (Cambridge, 1983), pp, 263-307, especialmente a 269 e seguintes e a 273 e seguintes, e T Nipperdey, "Nationalidee und Nationaldenkmal in Deutschland ím 19. Jahrhundert", Liistorisehe 7,eitsehrift, 208 (1968), 529-85.



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francesa. Na Alemanha, o regime de Guilherme II inventou cerimonias como parte da sua estratégia para garantir a um povo, o qual não possuía qualquer definição política anterior a 1871, que auferia, na verdade, de uma identidade nacional. Conseguiram-no através da celebração da unificação bismarckiana da Alemanha, como a única experiência histórica nacional partilhada por todos os cidadãos do novo império. Em épocas mais recentes, duas celebrações reinventaram ritualmente a história antiga, no Médio Oriente. 17 Uma foi a comemoração da heróica defesa e queda de Masada, na revolta judaica contra os Romanos/no ano 66 da era cristã. A outra foi a celebração, inaugurada pelo xá do Irão, dos dois mil e quinhentos anos da fundação do estado e da monarquia persas por Ciro, o Grande. Ambos os cultos, o de Masada e o de Ciro, reportam-se a temas há muito esquecidos e, na verdade, desconhecidos entre os povos respectivos, não dizendo a tradição rabínica coisa alguma sobre Masada e não tendo os Persas preservado qualquer registo de Ciro. Em ambos os casos, a memória foi recuperada a partir de fontes exteriores, recebeu patrocínio político e foi transformada no foco das festividades nacionais. Em Israel, os ossos encontrados nas ruínas de Masada foram de novo solenemente inumados, com uma cerimônia militar. No Irão, organizaram-se cerimônias junto à sepultura de Ciro. O culto de Masada destinava-se a restaurar a dimensão político-militar oculta da identidade judaica. O culto de Ciro tinha como fim dramatizar a transformação dos Persas, de uma comunidade religiosa com uma identidade centrada no islão, numa nação secular com uma identidade centrada no Irão. Ambos os conjuntos de ritos inventados celebravam o heroísmo nacional. Os tipos de explicação que acabei de passar em revista e aos quais, por uma questão de clareza, chamei explicação psicológica, sociológica e histórica da acção ritual, procuram, todos eles, penetrar além do propósito e significado ostensivos dos ritos, com o objectivo de atingirem o propósito e significado "reais" que se diz jazerem sob a superfície. E isto dá origem à questão de saber se poderemos ter um bom motivo para pensar que os rituais, que são representados como sendo explicitamente comemorativos, têm na verdade a importância, como meios de transmissão da memória social, que os seus participantes reivindicam para eles. Essa questão pode abordar-se melhor, segundo penso, em duas etapas: considerando, em primeiro lugar, as características da forma ritual que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros actos rituais de tipo duradouro e considerando, depois, as características que definem as cerimônias comemorativas como rituais de uma espécie diferente. Pretendo demonstrar que, ao procurarmos compreender as características que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros rituais elaborados, estamos sujeitos a ser embaraçados por uma tendência caracte17

Ver B. Lewis, History: Remembered, Recordeâ, Invented (Prínceton, 1975), pp. 3-41.

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rística da maioria das interpretações modernas do ritual, que nos induz a focalizar a atenção no conteúdo e não na forma do ritual. E pretendo assim provar que, ao procurarmos compreender as características que distinguem as cerimônias comemorativas como rituais de um tipo particular, podemos ser estorvados por uma tendência, característica de muita da moderna auto- -interpretação, para desvalorizar ou ignorar a universalidade e a importância, em muitas culturas, de acções que se realizam explicitamente como reactivação de outras acções que são consideradas prototípicas. A nossa compreensão das cerimônias comemorativas encontra, assim, obstáculos em dois campos.

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Consideremos agora a primeira dificuldade: a tendência para focalizar a atenção sobre o conteúdo e não sobre a forma do ritual. Os três métodos de interpretação do ritual que acabei de descrever partilham um pressuposto comum. Todos explicam o ritual como uma forma de representação simbólica, todos procuram compreender a "questão" oculta que está "por detrás" l do simbolismo ritual, através de um acto de tradução pelo qual o texto codificado do ritual é descodificado para outra linguagem. Quando nos centramos no conteúdo simbólico oculto do ritual orientamos a atenção para as características que este partilha com algumas outras maneiras de articular o significado de uma forma estruturada, particularmente os mitos e os sonhos. Todavia, esta ênfase nas características comuns, presente nas três posições referenciadas, embora seja muitas vezes esclarecedora, nada nos diz, por definição, sobre as características que identificam o ritual. Voltarei, mais tarde, a este tópico. Vejamos primeiramente a analogia evidente com o mito e, depois, em que aspectos o mito e o ritual divergem. Tanto o ritual como o mito podem ser vistos, de forma bastante apropriada, como textos simbólicos colectivos. E, nesta base, podemos sugerir que as acções rituais deveriam considerar-se exemplificativas do tipo de valores culturais que são também expressos muitas vezes nos enunciados elaborados a que chamamos mitos — que exemplificam estes valores por um outro meio. Lévi-Strauss, por exemplo, demonstrou como um conjunto de mitos índios sul-americanos se refere constantemente ao contraste entre a carne crua e a carne cozinhada, por um lado, e ao contraste entre os vegetais frescos e os vegetais podres, por outro. Carne crua, carne cozinhada, vegetais frescos e vegetais podres são coisas concretas; porém, quando agrupadas de forma a definir um padrão, como acontece em muitos mitos índios da América do Sul, aquele número limitado de categorias permite sustentar a idéia abstracta de um contraste entre um modo cultural de transformação e um modo natural de transformação. Trabalhando com base nesta idéia, Edmund Leach

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observa que essa padronização em redor da oposição entre um processo cultural e um processo natural pode ser expressa por diferentes meios, pois pode exprimir-se tanto por palavras — cru, cozinhado, fresco, podre — e ser exposta sob a forma de uma narrativa mítica, como expressar-se por coisas, e revelar-se através da combinação ritual dos objectos apropriados. A padronização de um ritual ou de um mito pode servir igualmente como armazém complexo de informação. 18 O problema surge quando esta questão é excessivamente generalizada. O exemplo que acabei de citar parece conduzir naturalmente à sugestão de que se deveria considerar que as acções rituais exemplificam os valores culturais, freqüentemente expressos também nos enunciados míticos, que os exemplificam por outro meio. Mas muita coisa depende da expressão "por outro meio". Interpretar o ritual como um meio simbólico alternativo para exprimir aquilo que pode ser expresso por outros meios e, em particular, sob a forma de mito, é ignorar aquilo que o ritual tem, em si próprio, de diferente. Todavia, uma vez t que comecemos a considerar a forma do ritual como distinta da forma do mito, somos levados a ver que o ritual não é apenas uma maneira alternativa de exprimir certas crenças, mas que certas coisas só podem ser expressas através do ritual. Ver-se-á então que o ritual e o mito diferem estruturalmente, pelo * menos n u m aspecto fundamental. Um mito pode ser narrado por um cantor a uma audiência, como forma de divertimento, por um pai aos filhos, como lição, ou por um estruturalista a leitores implícitos, como um conjunto de opostos. Recitar um mito não é necessariamente aceitá-lo. Aquilo que a recitação de um mito não faz, e que a execução de um ritual faz essencialmente, é especificar a relação que prevalece entre os actores do ritual e aquilo que estes estão a executar, daqui resultando a existência de um elemento de invariância codificado na estrutura do ritual que não se encontra presente no mito. 19 Esta diferença estrutural é evidente na forma como alguns dos mitos primitivos da cultura ocidental têm sido remodelados e reinterpretados. As adaptações do mito na forma dramática, e os possíveis limites colocados a uma tal tarefa, foram objecto de um debate animado nas últimas décadas do século XIX. Nessa época expressava-se muitas vezes a opinião de que o material que proporcionava o tema de grandes obras dramáticas óu trágicas seria tratado de várias maneiras até que um grande dramaturgo encontrasse, finalmente, a forma completa e definitiva para esse material mítico, que ficaria então esgotado. Defendia-se, deste modo, que tinham sido feitas 18 19

E. Leach, "Ritualisation in Man in Relation to Conceptual and Social Development", in J. Huxley (ed.), Philosophkal Transactions of the Royal Society ofLondon, Série B, Vol. 251 (1966), em especial pp. 405-6. Ver R. A. Rappaport, "The Obvious Aspects of Ritual", Cambridge Anthropólogy, 2 (1974), p. 32.

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muitas readaptações dramáticas do mito de Don Juan até este ter recebido a materialízação perfeita na ópera de Mozart. O mesmo julgamento foi aplicado às versões dramáticas mais antigas do mito de Fausto até este ter recebido a forma definitiva no Fausto de Goethe. Por isso, prosseguia esta argumentação, não valia a pena querer ainda produzir um outro Don Juan, depois de Mozart, ou um outro Fausto, depois de Goethe. O objectivo destes argumentos era demonstrar que a reestruturação criativa do material mítico era um processo finito. Porém, este objectivo apenas era alcançado reconhecendo, em cada caso, que aquele processo constituía, na verdade, uma história de reinterpretações, um processo de readaptações substanciais e variadas até ser dada uma forma definitiva ao material mítico. É possível conceber uma variância criativa acrescida, que não se enquadre mais num esquema do tipo acima referido: uma pré-história das interpretações que é finalmente suplantada por uma interpretação definitiva. Tanto no caso do mito de Don Juan como no do mito de Fausto, pode ser apropriado falar-se de soluções para o trabalho de readaptação do material mítico que eram imperfeitas e preliminares, e de uma solução mais tardia e definitiva. Mas o mito de Orestes-Electra não pode ser ajustado a um tal padrão. Neste caso, o mesmo material mítico e a mesma situação trágica 1 básica são reestruturados dramaticamente pelos três grandes autores da tragédia grega e, mais tarde, novamente sob uma forma moderna, pelo maior de todos os dramaturgos modernos, em Hamlet. Deparamos com várias representações dramáticas do mesmo material mítico, bastante diferentes umas das outras. Mesmo se deixarmos de lado a versão de Eurípides, dado o estatuto de autoria desta ter sido posta em causa por vários críticos, incluindo Aristóteles, ficam ainda três peças que se contam entre as maiores de todas as tragédias, mas entre as quais é impossível escolher uma única e proclamar que essa representa, em comparação com as outras, a adaptação definitiva do material mítico. A adaptação dramática do mito por Esquilo e Sófocles gera, a partir do mesmo material, significados fundamentalmente diferentes. Esquilo leva ao extremo o elemento trágico do conflito existente no mito, mostrando o acto de matricídio como necessário e horrendo em igual medida. Neste aspecto, diverge dos tratamentos poéticos anteriores do mito feitos por Simónides, Estesícore e Píndaro. Nestes, o assassínio de uma mãe, às ordens de um deus, era representado como um acto heróico, ou, pelo menos, a obrigação de o filho reclamar vingança sobre a sua mãe recebia maior ênfase que o horror do seu matricídio. Esquilo leva-nos a ver o horror do acto. Mostra Orestes encurralado pela lógica de uma ordem social vingativa, cujos modos de funcionamento implicam necessariamente os deveres que lhe são exigidos. A proclamação da sua inocência, na parte final da trilogia, só se torna possível através do estabelecimento de um tribunal publicamente reconhecido como competente para emitir um veredicto sempre que surgissem disputas sobre

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a vingança e reconhecido, portanto, como uma forma de ordem cuja lógica substitui os modos de funcionamento do sistema da vingança de sangue. Mas Esquilo representa igualmente o matricídio perpetrado por Orestes como inteiramente necessário, no contexto em que tinha de ser executado. Na sua readaptação do mito, tudo é feito para mostrar que o matricídio perpetrado por Orestes é objectivamente necessário e que tudo se combina, assim, para o levar a esse acto: a ordem do deus e as ameaças do que sucederia se essa ordem fosse ignorada; a compreensão de Orestes, como herdeiro legítimo, da condição em que se encontra o seu reino; as exortações do coro, que incitam irmão e irmã a executarem a vingança quando eles vacilam; o comportamento de Clitemnestra, que procura fugir à lógica da desforra; e a recordação vivida que os filhos têm da desonra infligida ao pai pela sua esposa e assassina. Esquilo reconfigura o mito de forma a representar o acto do matricídio simultaneamente como necessário e horrível. O elemento de necessidade horrível desaparece da versão de Sofócles. ) Enquanto em Esquilo a ordem para exigir vingança é iniciada por um deus, e acompanhada de ameaças no caso de não ser executada, no drama de Sofócles Orestes conta como viajou até Delfos para perguntar ao oráculo como deveria vingar a morte do seu pai. As orientações do deus quanto à forma como o acto devia ser realizado são uma resposta à própria pergunta * de Orestes, e essa pergunta já pressupõe a decisão de executar o feito. Enquanto em Esquilo Electra cedo descobre vestígios da presença do irmão regressado, o reconhecimento mútuo de irmão e irmã se segue pouco depois e, subseqüentemente, os dois planeiam e agem em conjunto, em Sofócles, na altura em que Orestes regressa do exílio a maior parte da acção já decorreu. O drama centra-se largamente em Electra. Durante a maior parte da acção, ela encontra-se intimamente só. Não recebe qualquer ordem divina para executar a vingança sobre a sua mãe. Começa a duvidar de que o seu irmão regresse do exílio e nada sabe da orientação que Apolojhe havia dado. O coro avisa-a de que não vale a pena procurar tomar medidas contra aqueles que detêm agora o poder no país, que as suas queixas não servem de nada ao seu pai e só lhe podem fazer mal a ela. É também avisada, pela sua irmã Crisótemis, para desistir da vingança e para se adaptar a circunstâncias em que a possibilidade de rebelião efectiva já não existe. Todas as considerações que em Esquilo levam os protagonistas a perpetrar a vingança são retiradas do drama de Sofócles. Resta uma única motivação: o facto de todos os outros participantes na acção se terem adaptado às circunstâncias e, pelo menos exteriormente, haverem feito as pazes com aqueles que agora detêm o poder; o facto de mais ninguém experimentar, como ela experimenta, o sentimento esmagador de profanação; o facto de, também ela, se conseguisse convencer-se a si própria a fazê-lo, ter a opção de se acomodar às circunstâncias. É isto que a leva, e só a ela, a achar a sua existência espiritualmente intolerável. Em vez da acumulação esquiliana de considerações objectivas prementes, Sofó-

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cies realça a motivação que impulsiona a única excepção, o agente que sente mais intensamente do que todos os outros. Estas reconfigurações do material mítico revelam, de forma extrema, uma característica intrínseca ao mito como tal. O conteúdo simbólico do mito grego não fica esgotado em nenhuma combinação formal única. O material simbólico desses mitos não tem a invariância e a inércia de algo já preestabelecido e formalizado. Constitui, pelo contrário, algo mais semelhante a um reservatório de significados que está disponível para voltar a ser possivelmente usado noutras estruturas. O material mítico contém uma variedade de significados potenciais que excede significativamente o seu uso e função em qualquer combinação particular, em qualquer estrutura dramática singular. Tal como acontece também com muito do material do Antigo Testamento, por exemplo, embora ali mais sob a forma de repetição narrativa e comentário, uma rede de acontecimentos míticos goza de uma significativa historicidade, de um longo processo interpretativo de renovação e de variação. A reutilização dos mitos gregos, tanto na cultura da antiga Grécia como em contextos culturais posteriores, depende daquilo a que podemos chamar um excedente de significado — um excedente que pode ser realizado em combinações interpretativas variáveis, quando o material mítico é reestruturado noutras formas dramáticas. 20 Em comparação com os mitos, a estrutura dos rituais tem significativamente menos potencial de variação. É verdade que todos os rituais tiveram de ser inventados em algum momento, podendo os pormenores da sua articulação desenvolver-se ou variar em conteúdo e importância com a passagem do tempo. Todavia, continua a existir um potencial de invariância incorporado nos ritos, mas não nos mitos, em virtude do facto, intrínseco à natureza dos rituais — mas não dos mitos — de estes especificarem a relação que prevalece entre a execução do ritual e aquilo que os participantes estão a executar. Daí resulta que, se se quiser tomar precauções consideráveis para proteger a identidade do material simbólico de uma cultura, é aconselhável orientarem-se essas precauções para a protecção da identidade do seu ritual. E, na verdade, muitas sociedades tradicionais, nas quais o simbolismo parece ser imutável, agem como se tivessem visto o perigo de uma evolução excessivamente rápida: fazem tudo para impedir a mudança. Duas tradições, em particular, exemplificam, de forma impressionante e largamente documentada, este facto. A liturgia da missa persiste há quase dois milênios, durante 20

Sobre o tema do excedente de significado, ver P. Ricoeur, interpretai ion Theory; Discoursc and lhe Surplus of Memiing (Fort Worth, 1976). Para uma consideração das mudanças dramáticas no tratamento do mito de O e s t e s , ver K. von Fritz, Antike. und moderno Tragodie (Berlim, 1962), pp. 113 e seguintes; para o mito de Antígona, ver G. Steiner, Antigones (Oxford, 1984); para um tratamento geral detalhado da maneira como a cultura ocidental transformou os seus mitos, com referências particulares ao mito de Prometeu, ver H. Blumenberg, Work ou Mi//// (trad. R. M. Wallace, Cambridge, Mass., 1985).

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os quais só mudou muito lentamente. Os credos recitados na missa existem há muito tempo, na sua forma presente. 21 Mais uma vez, embora alguns aspectos das suas liturgias variem consideravelmente, respondendo talvez, neste aspecto, às diferenças de circunstância histórica, os rituais dos judeus asquenases do Norte da Europa, dos sefarditas do Mediterrâneo, dos falachas da Etiópia, dos benis da índia, dos caraítas da Crimeia conservam, numa posição fulcral, a profissão de fé a que chamam Shema.22 Esta tendência para a invariância resulta da forma particular como funciona a linguagem litúrgica. Podemos caracterizar este traço negativamente, dizendo que não emprega formas de comunicação que ten h a m força p r e p o s i c i o n a l , q u e n ã o c o n s i s t e n o r e l a t o d e acontecimentos, na descrição de objectos, no enunciado de descobertas experimentais, ou na formulação de hipóteses. Podemos caracterizá-lo positivamente, dizendo que a linguagem litúrgica é uma certa forma de acção que põe algo em prática. Não se trata de u m comentário verbal sobre uma acção exterior a si, pois, em si e por si própria, a linguagem litúrgica é uma ac!ção. A natureza desta acção pode ser dividida em d u a s propriedades distintas, cuja existência e eficácia explicam simultaneamente porque é que a linguagem ritual funciona tão poderosamente como instrumento mnemónico. 2 3 Em primeiro lugar, o ritual é uma linguagem performativa. Um enunciado performativo não fornece a descrição de uma determinada acção. O próprio enunciado da performance constitui uma acção de certo tipo, para além da acção obviamente necessária de produzir sons com sentido. E esta acção, uma promessa ou um voto, por exemplo, só pode ser executada pela enunciação de certas palavras prescritas. Uma liturgia é uma ordenação de 21

Ver A. Baumstark, "Das Gesetz der Erhaltung des Alten in liturgisch hochwertiger Zeit", Jahrbuchfur Liturgiewissenschaft, 7 (1927), pp. 1-23. 22 _ Ver A. Z. Idelson, Jewish Liturgy and its Development (Nova Iorque, 1932), p. 310; W. Leslav, Falasha Anthology. The Black ]ews ofEthiopia (Nova Iorque, 1951), p. 124; S. Strizower, The Children ofIsrael The Beni Israel ofBombay (Oxford, 1971), p. 14. 23 A minha abordagem das características formais da acção ritual deve muito a dois textos clássicos: M. Bloch, "Symbols, Song, Dance and Features of Articula ti on", Archives Européenes de Sociologie, 15 (1974), pp. 55-81; e R. A. Rappaport, "The Obvious Aspects of Ritual", Cambridge Anthropology, 2 (1974), pp. 3-68. Rappaport desenvolveu os seus pontos de vista sobre este assunto numa série de artigos: "Ritual, Sanctity and Cybernetics", American Anthropologist, 73 (1971), pp. 59-76; "The Sacred in Human Evolution", Annual Review of Ecology and Systematics, 2 (1971), pp. 23-44; "Liturgy and Lies", International Yearbookfor Soáology of Knowledge and Religion, 10 (1976), pp. 75-104; "Concluding Comments on Ritual and Reflexivity", Semiótica, 30 (1980), pp. 181-93. Para comentário sobre as características formais do ritual, ver também A. R C. Wallace, Religion: an Anthropological Viezv (Nova Iorque, 1966); V. Turner, The Forest of Symbols (Ithaca, 1967); Turner, Tlw Ritual Process (Chicago, 1969); Turner, Dramas, Fields and Metaphors (ítaca, 1974); J. Skorupski, Symbol and Theory: A Philosophical Study ofTheories ofReligion in Social Anthropology (Cambridge, 1976); S. J. Tambiah, "A Performative Approach to Ritual", Proceedings ofthe Bristish Academy, 65 (1979), pp. 113-69.

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actos discursivos que ocorre quando esses enunciados se concretizam, e só nessas alturas. Se não se realizarem, o ritual não existe. Em segundo lugar, o ritual é uma linguagem formalizada, os seus enunciados tendem a ser estilizados e estereotipados e a comporem-se de seqüências de actos discursivos mais ou menos invariáveis. Os enunciados não são produzidos pelos actores, mas encontram-se já codificados num cânone, podendo por isso ser repetidos com exactidão. Aquilo que é referido no enunciado canónico é referido em seqüências de palavras e de actos que, por definição, já foram realizados antes. A performatividade do ritual é, em parte, uma questão de enunciado: o enunciado recorrente de certos verbos e pronomes pessoais característicos.24 Entre os enunciados verbais que se encontram mais vulgarmente nos ritos estão as pragas, as bênçãos e os juramentos. Considera-se que, na verdade, muito, se não tudo, depende, em cada caso, da exactidão do próprio enunciado."^ Uma praga procura sujeitar o seu objecto à ascendência do seu poder. Uma vez pronunciada, uma praga continua a confiar o seu objecto ao destino que invocou e julga-se que continua em vigor até a sua potência se extinguir. Uma bênção não é um mero desejo piedoso, considera-se que ela confere dons da sorte através do emprego de palavras, e tal como a praga e a bênção, o juramento é uma expressão com poder, de efeito automático que, se a afirmação que o acompanha não puder ser confirmada, consagra aquele que presta juramento a este poder. O testemunho sob juramento é considerado determinante para se decidir sobre a culpa ou a inocência. As pragas, as bênçãos e os juramentos, bem como outras expressões verbais freqüentemente presentes na linguagem ritual, como, por exemplo, "pedir", "orar", ou "dar graças", pressupõem certas atitudes — de confiança e de veneração, de submissão, contrição e gratidão — que entram em vigor no momento em que, por meio da enunciação da frase, o acto correspondente ocorre. Ou melhor: esse acto realiza-se na e pela enunciação. Aquelas expressões verbais não descrevem nem indicam a existência de atitudes: elas trazem efectivamente essas atitudes à existência através do acto elocutivo. O mesmo resultado é conseguido, na linguagem ritual, por uma utilização característica dos pronomes pessoais. A linguagem litúrgica faz um uso especial do "nós" e do 24

Para um debate sobre a performatividade, ver J. L. Austin, Horo to do Thinga with Words (Oxford, 1962); Austin, "Performative Utterances", in Philosophical Papem, 2.'1 ed., J. O. ürmson e G. T. Warnock (eds.) (Oxford, 1970); J. R. Searle, Spcech Acts (Cambridge, 1969). Para um debate sobre a performatividade no rituai, ver R. Finnegan, "Hovv to do 7"hings with Words: Performative Utterances among the Limba of Sierra Leone", Man, 4 (1969), pp. 537-51; J. Ladrière, "The Performativity of Liturgical Language", Concilium, 2 (1973), pp. 50-62; H. Lavondes, "Magie et langage", UHommc, 3 (1963), pp. 109-17; S. ]. Tambiah, "A Performative Approach to Rituai", Proceedings of the Britith Academy, 65 (1979), pp. 113-69.

25

Ver G. van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (trad. J. E. Turner, Gloucester, Mass., 1967), em especial as pp. 405-11.

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"eles". A forma plural de "nós" e "nos" indica que, embora existam vários oradores, estes estão a agir colectivamente, como se fossem um único, uma espécie de personalidade colectiva. Anteriormente a essa elocução pronominal, existe um estado de preparação indiferenciado expresso pela presença de todos os participantes no local onde a liturgia vai ser celebrada. Ao proferir-se o "nós" constitui-se, dá-se forma definitiva, a uma disposição básica entre os membros da comunidade litúrgica. A comunidade é iniciada quando os pronomes da solidariedade são repetidamente pronunciados. Ao pronunciarem o "nós", os participantes reúnem-se não só num espaço exteriormente definível, mas também numa espécie de espaço ideal determinado pelos seus actos discursivos. O seu discurso não descreve o aspecto possível de tal comunidade, nem exprime uma comunidade constituída antes e separadamente dele. Os enunciados performativos são, por assim dizer, o lugar onde a comunidade é constituída e recorda a si própria o facto da sua constituição. Aperformatividade está também codificada nas atitudes do corpo, nos gestos e movimentos. Os recursos desta codificação são elementares. Nos ritos, dá-se ao corpo a postura e os movimentos apropriados através das acções prescritas. O corpo, quando de pé, mantém-se rígido e vigilante. As mãos são unidas e postas como que em oração. As pessoas curvam-se e * expressam a sua impotência ajoelhando-se, ou podem abandonar completamente a postura erecta na humilhação da prostração corporal. A relativa escassez destes repertórios é a origem da sua força. Os recursos da linguagem comum, a sua variedade semântica e flexibilidade de tom e de registo, a possibilidade de se produzirem enunciados que podem ser qualificados, ironizados e retratados, os modos condicional e conjuntivo dos verbos, a capacidade da linguagem para mentir, para ocultar e para dar expressão idealizada àquilo que não se encontra presente — todos estes recursos constituem, de um certo ponto de vista, uma deficiência de comunicação. A subtileza da linguagem vulgar é tal que pode sugerir ou indicar níveis finamente graduados de submissão, respeito, indiferença e desprezo. As interacções sociais podem ser negociadas através de um elemento lingüístico de ambigüidade, imprecisão e incerteza, mas os recursos limitados da postura, do gesto e do movimento rituais despojam completamente a comunicação de muitos pttzzles hermenêuticos. Uma pessoa ajoelha, ou nãó ajoelha, faz o movimento necessário para executar a saudação nazi, ou não faz. Ajoelhar em submissão não é o mesmo que declarar submissão, nem serve apenas para comunicar uma mensagem de submissão, é antes exibi-la através da substância visível e presente do nosso corpo. Os que se ajoelham identificam a posição do seu corpo com a sua predisposição para se submeterem. Estes actos performativos são maneiras particularmente eficazes de "dizer" por serem inequívocas e materialmente substancializadas. E a elementaridade do repertório, do qual estes "dizeres" são retirados, torna

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simultaneamerte possíveis o seu poder performativo e a sua eficácia como sistemas mnemónicos. 26 Oformalismo da linguagem ritual tem um efeito mnemónico ainda mais evidente. Podemos dizer que uma linguagem é formalizada quando é sistematicamente composta de forma a restringir o leque de escolhas lingüísticas disponíveis. Este é sobretudo o caso com os rituais em que muitas opções lingüísticas foram abandonadas para que a escolha das palavras, da sintaxe e do estilo seja vincadamente mais restrita do que na linguagem quotidiana. Claro que a economia da formalização não é exclusiva do ritual. O mecanismo do "paralelismo canónico", que figura largamente no discurso ritual, encontra-se também na poesia oral tradicional. Pode dizer-se que existe uma tradição do paralelismo canónico, segundo Jakobson, "quando certas semelhanças entre seqüências verbais sucessivas são compulsivas ou gozam de grande preferência" — daí a recorrência de um corpo estandardizado de "pares de palavras fixados convencionalmente". 27 A proeminência de tal paralelismo lingüístico em todas as literaturas orais do mundo, e a sua importância como dispositivo mnemónico, foi demonstrada por inúmeras pesquisas. 28 O caso clássico é o da poesia oral finlandesa, sendo os feitos épicos registados na Kalevala o exemplo de poesia paralelística mais freqüentemente citado depois do Antigo Testamento. Bloomfield defendia que a "estrutura em cadeia" dos textos védicos é também "análoga ao chamado paralelismo na poesia hebraica".29 Têm sido ainda documentadas tradições de paralelismo entre os Chineses antigos e os Gregos primitivos, em numerosas tradições "populares" no Sul da índia e no Sudeste asiático e entre os idiomas dos índios americanos, principalmente na literatura maia e asteca antiga e nas formas elaboradas de ritmo e de repetição dos cânticos navajos. O paralelismo canónico é, assim, uma característica comum à poesia oral e ao ritual. Porém, no ritual este dispositivo é combinado com outros tipos de formalização onde o discurso, o canto, o gesto e a dança são combinados num todo compósito. De facto, um acontecimento que não contivesse todos estes elementos aào seria provavelmente descrito pelos antropólogos como um ritual. São estas características que, em conjunto, constituem a marca distintiva do ritual. 26 27 28

29

VI. Bloche R. A. Rappaport fazem alguns comentários sobre a performatividade corporal. R. Jakobson, "Grammatical Parallelism and its Russian Facet", Ijwgiiage, 42 0 % 6 ) , p. 399. Sobre o paralelismo canónico, ver particularmente J. J. Fox, "On Binarv Categories and Primary Symbols", in R. WiJIis (ed.), The hüerpretation af Symholitm (Londres, 19751, pp. 99-132; Fo>, "Roman Jakobson and the Comparative Studv of Parallelism", w D. Àrmstrong e C. H. van Schooneveld feds.), Roman jakobson. Fxhoes ofhit Scholarship (L.isse, 1977), pp. 59-90; ver também L. I. Newman e W. Popper, Studies in Biblieal Parallelism fCaüfómia, 1918-23); 5. Gevirtz, PaUerns in the Early Poetty of Israel (Chicago, 1963); G. A. Reichard, Prayer: The Compuhire Word (Seattíe, 1944); W. Steinitz, Der Paralielismu^ w der fmmsch-kareliselien Volksdiehtung (Helsínquia, 1934). M. Bloomfield, Ri$~Veda Repetitions fCambridge, Mass., 1916), p. 5.

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Comparado com o discurso quotidiano, o discurso ritual caracteriza-se não só pelo paralelismo canónico, mas também por um vocabulário restrito, pela exclusão de algumas formas smtácticas, por uma rigidez na seqüência dos actos discursivos, por padrões fixos no volume das elocuções e por uma flexibilidade limitada da entoação. Todas estas características impelem os actos de discurso ritual na mesma direcção.30 Deste modo, uma qualquer elocução isolada, em vez de poder ser seguida por um grande número de elocuções potenciais, só é possível acompanhá-la por um conjunto limitado ou, na verdade, na maior parte dos casos, por uma elocução apenas. O fim de um acto discursivo é previsível desde o seu início porque, uma vez iniciado, existe uma única seqüência correcta para uma pessoa prosseguir. Além disso, tal como as articulações num único acto discursivo estão formalmente predeterminadas, também as articulações entre os actos discursivos dos diferentes participantes estão fixadas de antemão. A partir do acto discursivo de um participante pode predizer-se o do seguinte. Mais uma vez, no discurso ritual a escolha da entoação ou do ritmo da enunciação é limitada. Sempre que ocorre uma passagem do discurso entoado para o canto, é introduzida uma restrição ainda maior na escolha da entoação e do ritmo e adoptados uma entoação e um ritmo ainda mais afastados dos padrões variados do discurso quotidiano. Finalmente, a postura, o gesto e o movimento atualizados, em vez de se combinarem de forma flexível para conferirem variedade e ambigüidade de informação, como naquilo que descrevemos convencionalmente como situações do quotidiano, têm um padrão restritivo e são, por isso, facilmente predizíveis e repetíveis de um acto para o seguinte e de uma ocasião ritual para a seguinte.

5

Vejamos agora a segunda dificuldade: a tendência para ignorar a importância, existente em muitas culturas, de acções que são explicitamente representadas como reencenações de acções anteriores e prototípicas. As cerimônias comemorativas têm duas características em comum com todos os outros rituais: o formalismo e a performatividade. E, na medida em que funcionam efectivamente como dispositivos mnemónicos, são capazes de executar essa função em grande parte devido ao facto de possuírem essas características. Mas as cerimônias comemorativas podem distinguir-se de todos os outros rituais pelo facto de se referirem explicitamente a pessoas e a acontecimentos prototípicos, quer se considere que estes têm uma existência histórica ou mítica. Em virtude desse facto, os ritos deste gênero possuem 30

Para um debate sobre este aspecto do ritual, ver, em especial, M. Bloch/'Syrnbols, Song, Dance and Features of Articulation", Archives Européeimes de Soàologie, 15 (1974), pp. 55-81.

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uma outra característica que é lhes é distintivamente própria, que podemos descrever como a reencenação ritual. Esta característica é de importância fundamental na configuração da memória comunitária. Porém, o caracter da sociedade e da autocompreensão modernas torna singularmente difícil uma apreciação precisa da natureza da reencenação ritual. Podemos talvez apreender melhor esta característica das cerimônias comemorativas se a abordarmos pela justaposição de dois enunciados importantes, cada um dos quais procura delinear, esquematicamente, uma forma historicamente específica de vida e uma maneira de entender esse tipo de vida. O primeiro figura, em lugar de destaque, no ensaio de Paul de Man sobre "História Literária e Modernidade Literária'', o segundo é esboçado na conferência de Thomas Mann intitulada "Freud e o Futuro". Em "História Literária e Modernidade Literária", De Man fixa-se num tipo particular de esquecimento como parte da experiência essencial da modernidade. 31 Ele convida-nos a considerar "a idéia de modernidade" como consistindo num "desejo de apagar tudo o que veio antes, na esperança de atingir finalmente um ponto a que se chamaria presente verdadeiro, um ponto de origem que marcaria um novo começo. Esta combinação entre esquecimento deliberado e uma acção que é também um novo começo capta o essencial da idéia de modernidade". 32 A justificação para este esquecimento fundacionista é automaticamente ligada àquilo que esta nega: isto é, ao historicismo. De Man faz mais do que reconhecer este paradoxo, sublinha-o incisivamente: quanto mais radical é a rejeição de tudo o que veio antes, maior é a dependência relativamente ao passado. Podemos desenvolver a concepção de De Man distinguindo duas fases na estratégia da rejeição. Na avant-garde tomou a forma de uma retórica do esquecimento, no pós-modernismo surge como uma retórica do pastiche. O ataque da avant-garde dirigia-se principalmente contra o armazém da memória colectiva: os museus, as bibliotecas e as academias. O apelo ao esquecimento atingiu o ponto de intransigência mais estridente nos manifestos dos futuristas, que denunciavam os intelectuais como escravos de ritos antiquados, os museus como cemitérios e as bibliotecas como jazigos. Mas os futuristas não estavam sós, a idéia de tabula rasa tinha já recebido justificação em Nietzsche, reaparecendo, no primeiro terço deste século, no trabalho de arquitectos e urbanistas da avant-garde. No pós-modernismo, esta atitude é substituída pela omnipresença do pastiche, onde o passado é visto como uma vasta colecção de imagens, estando todos os estilos do passado potencialmente abertos ao jogo da alusão casual, muitas vezes humorística. Num mundo caracterizado por aquilo a que Henri Lefebvre chamou a primazia crescente do "neo", o passado é gradualmente apagado como referente.33 31 32

P. de Man, "Literary History and Literary Modernity", Daedalus, 99 (1970), pp. 384-404. Ibidem, pp. 388-9.

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Em "Freud e o Futuro", Thomas Mann induziu a sua audiência a considerar imaginativamente uma forma de vida, e uma maneira de pensar sobre essa vida, no pólo oposto da modernidade. 34 Deveríamos considerar o ego menos claramente definido e menos exclusivo do que o concebemos normalmente, como se fosse, por assim dizer, "aberto atrás": aberto aos recursos do mito, devendo entender-se que estes existem para o indivíduo não só como uma grelha de categorias, mas também como um conjunto de possibilidades que se podem tornar subjectivas, que podem ser vividas de forma consciente. Nesta atitude arcaizante, a vida do indivíduo é conscientemente vivida como uma "repetição sagrada", como a reanimação explícita de protótipos. Assim, Alexandre seguiu conscientemente as pisadas de Milcíades; assim, os biógrafos antigos de César estavam convencidos de que ele tomara Alexandre como modelo; e assim a vida de Cristo é representada nos Evangelhos como uma vida vivida para que aquilo que estava escrito pudesse ser cumprido. Assim também, no arcaísmo consciente moderno, o tema > fundamental de "José e seus Irmãos" é a idéia de vida individual como acto de identificação, de como seguir conscientemente as pisadas de outrem. Para o professor de José, Eliezer, o tempo é anulado quando todos os Eliezers do passado se reúnem para configurar o Eliezer do presente, de modo que este chega a falar, na primeira pessoa, do Eliezer que fora servo de Abraão, embora estivesse longe de ser o mesmo homem. No capítulo "O Grande Embuste", aquilo a que o autor chama "uma farsa mítica recorrente" é representada de forma trágico-cómica por um grupo de pessoas — Isaac, Esaú e Jacob — todas elas conhecendo bem as pisadas que seguiam. Mann fala do estilo e da estrutura de uma vida individual, evocada aqui como "uma espécie de celebração", como "a performance de um procedimento prescrito por um celebrante". Esta forma de encarar o padrão da vida de um indivíduo não é imediatamente compreensível para nós. Quando pensamos nos elementos da vida de um indivíduo como sendo recorrentes, é provável que sejamos levados a fazê-lo por uma de duas linhas de pensamento caracteristicamente modernas. Podemos pôr a variedade individual entre parêntesis, retirando-a da equação, porque vemos o significativamente recorrente como aquilo que é estatisticamente típico. Ou então podemos virar a nossa atenção para aquilo que é inconscientemente repetido, porque vemos o significativamente recorrente como aquilo que corrói o projecto de autonomia individual. Em qualquer dos casos, aquilo que perderemos caracteristicamente de vista é qualquer noção de que aquilo que é recorrente e típico na estrutura da vida 33

34

Ver H, Lefebvre, Everyday Life in the Modem World (trad. S. Rabinovitch, Londres, 1971). Para um debate sobre o pós-modernismo e as atitudes para com a história, ver F. Jameson, "The Cultural Logic of Capital", New Left Review, 146 (1984), pp. 53-93. T. Mann, "Freud and the Future", trad. H. T. Lowe-Porter, in P. Meisel (ed.), Freud (Englewood Cliffs, Nova Jérsia, 1981), pp. 45-60.

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de um indivíduo é significativo porque desenha um padrão que vai ser celebrado; que os indivíduos podem celebrar o seu papel e compreender o seu valor exclusivamente por saberem que se trata de uma nova encarnação do tradicional; que através da repetição consciente do passado uma vida individual volta a dar actualidade ao passado. O sentido deste facto era peculiarmente familiar na Antigüidade, mas só nos é acessível, na maioria dos casos, em segunda mão por referência a um exemplo da Antigüidade. Podemos referir-nos a esta autocompreensão pré-moderna como uma espécie de imitação, desde que nos recordemos que a imitação quer dizer, neste caso, muito mais do que o significado que damos à palavra nos dias de hoje, significa algo como identificação mítica. A idéia de uma forma de vida que retira o seu significado da performance, por celebrantes, de procedimentos prescritos, da reanimação de protótipos, pode ser fisicamente possível em todas as épocas, continuando a ser operativa nas condições contemporâneas. Os ritos modernamente inventados revelam os indícios desta possibilidade, as tentativas de ressuscitar o sentido da vida como reencenação ritual, num vocabulário secular. Entre 1870 e 1914, particularmente, os países europeus assistiram a um florescimento de ritos inventados. Jubileus reais, o Dia da Bastilha e a Internacional, : os Jogos Olímpicos, a final das Taças e a Volta à França: todos procuram restaurar, sob nova forma, a celebração do recorrente exemplar e essas celebrações não se confinaram ao período da sua invenção mais sistemática. Mesmo nos dias de hoje, a maior parte das ocasiões em que os cidadãos são chamados a actualizar a consciência da sua pertença aos estados, como nas eleições, permanecem associadas a práticas semi-rituais historicamente novas; ao mesmo tempo, novos tipos de espaços rituais formais destinados ao espectáculo semioficial, tais como os estádios desportivos, conservam a sua aura. Tanto nas ocasiões semioficiais como nas oficiais, persiste a elaboração de um idioma teatral de discurso público simbólico. E verdade que essas ocasiões já não põem à disposição da nossa imaginação o forte sentido da imitação como identificação mítica que Mann evoca de forma tão poderosa. Continuam, todavia, a produzir e a dar forma a um desejo de comunidade — o desejo de repetir conscientemente o passado, de encontrar sentido na recorrência celebrada. A celebração da recorrência não é monopólio das sociedades tradicionais, é antes um mecanismo de compensação. O capitalismo, segundo a famosa frase de Marx, arrasa toda a imobilidade social, toda a limitação ancestral e restrição feudal. E os ritos inventados, por mais envolvidos que estejam, muitas vezes, no próprio processo de modernização que o capitalismo prossegue, são medidas paliativas, fachadas que se erguem para ocultar as implicações totais desta imensa operação de limpeza à escala mundial. Os ritos recém-inventados brotam e são imediatamente formalizados, sublinhando a fractura histórica global, e é por isso que esses ritos, que envolvem

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séries de normas e de procedimentos estabelecidos, tais como os ritos de coroação modernos, se caracterizam pela sua inflexibilidade. Em virtude desta inflexibilidade processual, considera-se que representam, como nenhuns outros, a idéia do imutável perante uma sociedade de inovação institucionalizada. O seu intento é securizante, o estado de espírito nostálgico. Portanto, não é a experiência da imitação recapitulativa, da identificação mítica, mas a exibição de uma estrutura formal, aquilo que constitui a marca mais evidente de tais ritos. Nas condições, da modernidade, a celebração da recorrência não pode ser mais do que uma estratégia de compensação, porque o próprio princípio da modernidade nega a idéia da vida como uma estrutura de recorrência celebrada. Recusa-se a dar crédito à idéia de que a vida de um indivíduo, ou de uma comunidade, possa ou deva obter o seu merecimento de actos de recordação realizados conscientemente, do reviver do prototípico. Embora o processo de modernização dê origem a rituais inventados como mecanismos compensatórios, a lógica da modernização corrói as condições que tornam os actos de reencenação ritual, de imitação recapitulativa, imaginativamente possíveis e persuasivos, pois a essência da modernidade é o desenvolvimento econômico, a grande transformação da sociedade precipitada pela emergência do mercado capitalista mundial. A acumulação do capital, a expansão * incessante do modelo da mercadoria através do mercado, exige o revolucionar constante da produção, a transformação incessante do inovador em obsoleto. As roupas que as pessoas vestem, as máquinas com que trabalham, os trabalhadores que fazem a manutenção das máquinas, os bairros onde habitam — tudo é construído hoje para ser demolido amanhã, para ser substituído ou reciclado. A destruição intencional e repetida do ambiente construído é essencial para a acumulação do capital.35 E essencial é também a transformação de todos os sinais de coesão em modas de vestuário, de linguagem e de prática que mudem rapidamente. A temporalidade do mercado e das mercadorias que nele circulam gera uma vivência do tempo como se este fosse quantitativo e fluísse numa única direcção, uma vivência em que cada momento é diferente do outro em virtude do que vem a seguir e se situa numa sucessão cronológica de velho e novo, de antes e depois. A temporalidade do mercado nega, assim, a possibilidade da coexistência de tempos qualitativamente distinguíveis — um tempo profano e um tempo sagrado, nenhum deles redutível ao outro.36 O funcionamento deste sistema provoca uma maciça retracção da credibilidade atribuída à possibilidade da existência de formas de vida que sejam exemplares por serem prototípicas. A lógica 35 36

Ver S. Zukin, "Ten Years of the New Urban Sociology", Theory and Society, 9 (1980), pp. 575-601. Para uma investigação da experiência da modernidade que revela estas características, ver M. Berman, Ali that is Solid Melts into Air (Nova Iorque, 1982), e o debate deste livro in P Anderson, "Modernity and Revolution", New Left Review, 144 (1984), pp. 96-113.

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do capital tende a negar a capacidade de se continuar a imaginar a vida como uma estrutura de recorrência exemplar. Quando, por outro lado, a vida de todos os dias é encarada como uma estrutura de recorrências exemplares, a persuasividade imaginativa de tal percepção é obtida através daquilo que podemos chamar uma retórica da reencenação. Esta retórica funciona através do emprego de, pelo menos, três modos discerníveis de articulação: podemos chamar-lhes reencenação calendarizada, verbal e gestual. A celebração da recorrência torna-se possível, no primeiro caso, pela repetição observada pelo calendário'. Os calendários permitem justapor à estrutura do tempo profano uma outra estrutura, qualitativamente distinta da primeira e irredutível a esta, em que os acontecimentos mais notáveis do tempo sagrado são reunidos e coordenados. 37 Cada dia é, deste modo, localizável em duas ordens de tempo bastante diferentes: existe o dia em que tais e tais acontecimentos ocorrem, no mundo, e o dia em que se celebra a memória deste ou daquele momento de uma história sagrada ou mítica. Embora a coexistência destas duas ordens temporais atravesse todo o ciclo do calendário, esse ciclo conterá normalmente pontos especiais em que a actividade de recapitulação se torna no foco especial da atenção da comuni' dade. O Ano Novo é celebrado na maior parte das religiões por cerimônias onde se faz referência a um mito cosmogónico. Em todo o mundo semita, em particular, os cerimoniais do Ano Novo são notavelmente parecidos. 38 Em todos estes sistemas, encontramos a mesma idéia básica de um retorno anual ao caos, seguido de uma nova criação. Em todos está expressa a concepção do fim e do princípio de um período temporal, baseada na observação de ritmos biocósmicos e celebrada numa sucessão de purificações periódicas — penitências, jejuns, confissões dos pecados — como preparação para a regeneração periódica da vida. Em todos, a encenação ritual de combates entre dois grupos de actores, a presença dos mortos e das saturnais, dá expressão ao sentimento de que o fim do ano velho e a espera do ano novo são simultaneamente uma repetição anual e a repetição de um momento primordial — o momento mítico da passagem do caos para o cosmo. Cada Ano Novo é interpretado como uma repetição calendarizada do acto cosmogónico. O cenário de Ano Novo de uma criação repetida é particularmente 37

38

Sobre a repetição calendarizada, ver H. Hubert e M. Mauss, "La representation du temps dàns Ia religion et Ia magie", Mcíatiges dlüstoire des religions (Paris, 1909), pp. 189-229; M. HÜade, The Mith of Eternal Retum (Nova Iorque, 1954); Eliade, The Saered and the Profane (Nova Iorque, 1959); Eliade, Myfh and Reafity (Nova Iorque, 1963); R. Caillois, Í/Hommr et ic sacré (Paris, 1950); G. Durnézil, "Temps et mvthes". Recherches Phihsophiques, 5 (1935-6), pp. 235-51; R. Marchai, "Le retour éternal", Archives Philotophiquct, 3 (1925), pp. 55-91. A. [. Wensinck, "The Semitic New Year and the Origin oi Eschatologv", Acia Orientalia, 1 (Lund, 1923), pp. 158-99.

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explícito em todas as culturas do Médio Oriente, na Babilônia e no Egipto, em Israel e no Irão. Mas a cristandade também nunca considerou a seqüência material do ciclo natural a não ser como o padrão e o símbolo de uma ordem oculta — só que a ênfase desloca-se, neste esquema, do protótipo da criação para o da salvação. Deste modo, uma das preocupações centrais do cristianismo primitivo era a determinação da data da Páscoa, a festa que perpetua anualmente, por um lado, a Páscoa judaica e o sacrifício pascal e, por outro, o sacrifício do Calvário e a Ressurreição de Cristo.39 Considerava-se imperativo que esta festa fosse celebrada exactamente no mesmo ponto temporal do ciclo anual que os acontecimentos que repetia e, nesta como noutras religiões, a certeza de que os acontecimentos particulares se inseriam numa estrutura recapitulativa beneficiava de uma espécie de efeito de eco relativamente à ordem observada de uma seqüência cósmica. Os calendários permitem fazer a distinção entre um tempo constituído por unidades quantitativamente equivalentes e um tempo composto por unidades que são qualitativamente idênticas. Para compreendermos a celebração comemorativa precisamos de ter presente esta distinção entre equivalência e identidade. A noção de tempo nos ritos comemorativos não é a de quantidade pura e simples. As parcelas de tempo não são concebidas como indefinidamente divisíveis em unidades sucessivas, numa seqüência linear l irreversível. Pelo contrário, os intervalos que estão enquadrados por certas datas críticas que ocupam anualmente a mesma posição relativa no calendário são considerados como qualitativamente semelhantes. Ahomogeneidade destas fases é demonstrada pelo facto de a semelhança cronológica implicar ou permitir a repetição das mesmas acções. As mesmas encenações e as mesmas representações estão ligadas a estes períodos rituais, de tal maneira que se pode fazer com que pareçam ser a reprodução exacta umas das outras. Os mesmos ritos mágicos ou religiosos são levados a cabo nas mesmas circunstâncias temporais, isto é, nos pontos simetricamente idênticos de um sistema, seja ele qual for, que divide o tempo. As mesmas festas são celebradas nas mesmas datas. Em cada festividade periódica os participantes como que se encontram, deste modo, no mesmo tempo: o mesmo que se manifestara nas festividades do ano anterior, oti do século anterior, ou de cinco séculos atrás. Estes intervalos críticos são organizados de forma aparecerem e serem vividos como qualitativamente idênticos. Pela sua própria natureza, o tempo ritual é, portanto, indefinidamente repetível. A retórica da reencenação também está codificada na repetição verbal. Nas cerimônias do judaísmo, do cristianismo e do islão, do budismo e do hinduísmo, pronunciam-se palavras sagradas na língua de um texto sagrado oficial. Em conseqüência, a maioria das religiões mundiais é marcada por 39

H. Hubert e M. Mauss, "La representation du temps dans Ia religion et Ia magie" ,Mélanges d'histoire des religions (Paris, 1909), p. 206.

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uma disjunção entre uma linguagem profana e outra religiosa.40 O latim, na Igreja Católica, o hebreu, para os judeus, o sânscrito védico, para os Hindus e o árabe, para os muçulmanos, são línguas sagradas, cuja diferença da linguagem vulgar deve ser acentuada. No interior desta área comum de pressuposição há lugar para alguma variação, no que diz respeito à natureza da autoridade atribuída à língua sagrada e aos graus da sua exclusividade lingüística. Uma posição extrema é representada pelos muçulmanos, para quem o corão só é eficaz no árabe original, e pelos judeus, para quem a palavra de Deus é em hebreu. Encontra-se uma posição mais flexível no cristianismo, que nunca reivindicou que qualquer parte da Bíblia fosse originalmente escrita em latim. Todavia, na prática, o latim havia suplantado o grego como língua de adoração desde finais do século III. A partir de então foi considerado como a língua sagrada da Igreja ocidental e, até 1967, a Igreja Católica manteve-se fiel ao ponto de vista de que os ritos religiosos deviam ser proferidos na língua da liturgia latina. Mas a fractura entre uma língua de recitação sagrada e uma língua profana menos formal não se confina às religiões mundiais. Muitos povos sem escrita, como os Trobriands e os Cachins, que recitam a sua mitologia religiosa em sagas, fazem-no numa forma de linguagem arcaica dificilmente compreensível para as pessoas que i falam o idioma contemporâneo. Nas sociedades sem escrita, assim como nas que a possuem, as linguagens sagradas contêm uma componente arcaica quer sob a forma de uma língua totalmente diferente, quer preservando parcialmente um outro idioma. Esta componente arcaica perdura desde que os ritos se reportem a um período de revelação e insistam na autoridade de textos verídicos, transmitidos de forma adequada tanto por via oral como escrita. A questão de se os que participam no rito compreendem as palavras é, portanto, secundária e não se considera que afecte a eficácia do ritual. O que interessa é que os ritos devem manifestar o dom das línguas. A recitação dos evangelhos e salmos, de orações e de sagas, tem o mesmo valor ritual — como elocuções repetíveis — que uma genuflexão ou uma oferenda, um gesto de bênção, ou uma dança cerimonial. Faz parte da essência das elocuções sagradas o facto de deverem ter sido submetidas a um mínimo de modificações desde a sua origem e a sua eficácia reside na repetição verbal. Quando ocorre como parte daquilo a que chamei a retórica da reencenação, a repetição verbal possui uma característica distintiva, a qual pode ser aprendida comparando estes modos de repetição verbal com outros exemplos de repetição aparentemente total. Há um certo tipo de repetição com o qual estamos familiarizados, quando, pela segunda vez, ou por várias vezes, vemos um filme, ouvimos uma música gravada, ou lemos um trabalho de literatura. A repetição de tais obras, as quais não necessitam, no âmbito da própria obra, da mediação de intérpretes, é em grande medida análoga â 40

Ver S. J. Tambiah, "The Magical Power of Words", Man, 3 (1968), pp. 175-208.

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repetição de palavras nas representações teatrais, por exemplo, onde a mediação desses intérpretes é necessária; pois, tal como a representação repetida da mesma peça, por actores diferentes e em alturas diferentes, acentua a natureza específica de cada representação e nos chama a atenção para as diferenças entre essas representações, assim também, ainda que de forma qualitativamente diferente, a percepção "repetida" do mesmo texto, disco ou filme desvenda o desenvolvimento da consciência do observador e faz salientar diferenças a cada leitura. Nestes casos a repetição total é só aparente. Porém, encontramos um fenômeno diferente quando, por exemplo, descobrimos que em algumas das suas partes a liturgia cristã repete textos que anunciam uma narrativa de salvação, como um acontecimento vindouro, ou como um acontecimento que já ocorreu na vida de Jesus Cristo. A relação entre as ocorrências isoladas de repetição verbal é, neste caso, diferente daquela que se aplica a uma-obra de arte cujas representações isoladas podem ser repetidas. Por outro lado, a relação entre os acontecimentos particulares do rito e o seu acto fundador não tem paralelo na relação entre as representações particulares da obra de arte e a sua primeira representação. A reencenação verbal é aqui um tipo especial de actualização, sendo no seu aspecto sacramentai que a linguagem litúrgica mostra a sua mais evidente qualidade de actualização. Ao repetir as palavras da Última Ceia, por exem- , pio, o celebrante deve, uma vez mais, repetir aquilo que Jesus Cristo fez, dando novamente às palavras que Cristo usou a mesma eficácia que ele lhes dera, conferindo de novo a essas palavras o poder de realizarem o seu significado. Existe, em primeiro lugar, a performatividade primitiva, pela qual Cristo conferiu a certas palavras poder para que cumprissem o seu significado. E existe, adicionalmente, aquilo a que podemos chamar uma performatividade secundária ou sacramentai, em virtude da qual o celebrante, ao repetir essas palavras no contexto da oração do cânone, lhes está supostamente a restituir a sua performatividade primitiva. Na reencenação verbal deste tipo corporizámos não a repetição total, mas a idéia da repetição total. .A retórica da reencenação está também codificada, numa corporização ainda mais directa, na repetição gestuaL Nos rituais arcaicos, em especial, este processo surge mais visivelmente em jogo na presença representada dos mortos. Entre os Luapalas, os anciãos usam a primeira pessoa do singular quando falam dos seus antepassados mortos, e esta identificação através da forma de dizer atinge o auge da corporização com a possessão, durante a qual o indivíduo ancião deixa de existir, por assim dizer, e é substituído por "outro". 41 Entre os índios Iumas do Colorado, os actores imitam os gestos e feitos heróicos dos antepassados utilizando máscaras que representam esses antepassados e, deste modo, os identificam com eles. E evocada a presença 41

M. Bloch, "Symboís, Song, Dance and Features of Articulation", Archives Européennes de Sociologia 15 (1974), pp. 77-8.

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activa de seres do período primordial da criação, pois pensa-se que só eles possuem a qualidade mágica que pode conferir ao rito a eficácia desejada. Caillois sublinha o alcance cognitivo dessa repetição gestual quando comenta que, nestes exemplos, não se pode fazer uma distinção inequívoca entre "a base mítica da cerimônia e a própria cerimônia". 42 Daryll Forde, por sua vez, mostrou a conseqüência de um tal fenômeno no caso dos Iumas, onde os seus informadores confundiam constantemente o rito, que estavam acostumados a celebrar, com o acto pelo qual os seus antepassados o tinham supostamente instituído originariamente. 43 Também no reino do Uganda se encontrou uma maneira de conservar o espírito do falecido rei entre os seus súbditos, de uma forma representativa. Após a sua morte nomeava-se um médium, ou mandara, e nele o espírito do rei falecido fazia a sua morada. Este médium reproduzia não só o aspecto exacto, mas também a fala e os gestos do rei falecido. Nos clãs responsáveis pelo fornecimento de manduras, as características de cada rei na altura da morte eram transmitidas oral e mimeticamente, para que, sempre que um mandura morresse, outro do mesmo clã assumisse o lugar e o espírito do rei nunca ficasse sem representante. Este representante não desempenhava continuamente o papel do rei falecido, mas, de tempos em tempos, o médium ficava possuído e personificava o rei em todos os pormenores. 44 De forma mais geral, em quase todas as danças cerimoniais os mascarados representam "espíritos", isto é, na maioria dos casos, as almas dos mortos. Lévy-Bruhl sublinhou que a palavra "representar" deve ser aqui entendida no seu sentido etimológico literal: reapresentar, fazer reaparecer aquilo que desapareceu. 45 Usar uma máscara é ter contacto directo e imediato com os seres do mundo invisível. Enquanto dura esse contacto directo, a individualidade do actor e a do espírito que representa são uma só. Enquanto os actores e os dançarinos usarem essas máscaras, e pelo facto de estas lhes cobrirem os rostos, não são apenas representantes dos mortos, "tornam-se" nos antepassados que essas máscaras retratam — "tornam-se", de facto e temporariamente, nos mortos e nos seus antepassados. Nesses rituais arcaicos a repetição gestual encena a idéia da bipresença. Os habitantes do outro mundo podem reaparecer neste sem abandonarem o seu, desde que se saiba como chamá-los. A idéia de representação como reapresentação, como fazendo reaparecer aquilo que desapareceu, não está confinada aos ritos dos povos sem escrita, exprime-se também em comemorações que noutros aspectos divergem na estrutura e no tom, como o festival Muharram dos xiitas e a liturgia do catolicismo: ambos reencenam uma narrativa sagrada através de repeti42 43 44 45

R. Caillois, Man, Play and Games (trad. M. Barash, Londres, 1962), pp. 108-9. D. Forde, The Ethnngrapfty ofthe. Viana huiums (Berkeley, 1931). Ver E. Canetti, Crowds and Power (trad. C. Stewart, Londres, 1962), pp. 313-14. L. Lévy-Bruhl, Primitives and the Supernaiural (trad. L. A. Clare, Nova Iorque, 1973), pp. 123-4.

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ções gestuais, no primeiro caso através da orquestração de um luto frenético, no segundo por meio de uma lenta coreografia de seqüência calma e ordenada. O festival Muharram dos xiitas reencena a ocasião em que Hussain e os seus homens, membros "da família do Profeta", foram atacados e mortos na planície de Kerbela, no ano de 680.46 Os xiitas mantêm o aniversário de Kerbela no décimo dia — Ashura — do mês de Muharram. Choram o destino de Hussain numa reencenação figurativa. Durante os primeiros nove dias desse mês, os funcionários vestem-se de negro ou de cinzento e os soldados e os condutores de mulas andam com as camisas pendentes e de peito nu, o que é considerado üm sinal de grande pesar. Vagueiam em grupos pelas ruas, ferindo-se a si próprios com espadas, arrastando correntes e executando danças frenéticas. No décimo dia do Muharram, o festival culmina numa procissão gigantesca concebida como um cortejo funerário para reencenar o funeral de Hussain. O seu caixão é carregado por oito homens e flanqueado de ambos os lados por outros que levam estandartes. Atrás do caixão seguem sessenta homens ensangüentados, entoando um cântico guerreiro, e atrás deles, vai ainda um grupo batendo ritmicamente com paus uns contra os outros. A dor que infligem a si próprios representa figurativamente a dor de Hussain. É difícil imaginar um conjunto de ritos mais afastados deste do que os da liturgia católica, caracterizada, como é, por um tom de calma solenida- % de. Contudo, também esta gira em redor do facto de a liturgia não ser um enunciado proposicional, mas sim uma acção sagrada. Estas acções transmitem convicção incorporando-a. O lugar privilegiado não é o púlpito, mas sim o altar. No púlpito, a narrativa sagrada recebe um comentário, no altar, a substância da narrativa é comunicada pelos sinais físicos que a contêm. Os ritos são tecidos a partir da alusão às escrituras e muitos gestos litúrgicos reproduzem aqueles que são mencionados na Bíblia.47 O comer do pão, na comunhão; a imersão na água, no baptismo; a imposição das mãos, na confirmação e na ordenação; o sinal-da-cruz — todos estes gestos são repetições figurativas. Estes movimentos rituais conservam: enquanto a existência física é puramente efêmera, os gestos rituais mantêm-se idênticos. Onde quer que sejam repetidos, referem-se a uma narrativa bíblica e, ainda mais especificamente, à Jerusalém da Páscoa: a liturgia é, por assim dizer, o permanente relembrar dessa situação temporal. Aquilo que aqui testemunhamos não é o abandono da idéia da bipresença, antes pelo contrário, a mimese gestual é, por assim dizer, traduzida de um modo realista para um modo simbólico — um tipo de reencenação mimética substitui outro. Nas páginas anteriores, analisei as características que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros rituais de tipo extensivo e elabo46 47

Sobre os festivais xiitas, ver E. Canetti, Croivds and Power, pp. 171-81. Sobre o gesto litúrgico e a referência bíblica, ver J. Daniélou, Jlie Bibíe and the Liturgx/ (Londres, 1956).

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rado. Nesta análise, abordei o ritual não como um tipo de representação simbólica, mas como uma espécie de performatividade, e, para esse efeito, pus em contraste os mitos, como reservatórios de possibilidades em que se podem fazer variações, com os rituais, em que uma tal variação não é permissível. Prossegui, então, considerando as características que distinguem as cerimônias comemorativas como performances de uma espécie diferente. Ao fazê-lo, sublinhei a permeabilidade cultural das performances que reencenam explicitamente outras acções, representadas como prototípicas. Com este objectivo, apresentei a retórica dessa reencenação como calendarizada, verbal e gestual. O que é então recordado nas cerimônias comemorativas? Parte da resposta é que uma comunidade é recordada da sua identidade, representando-a e contando-a numa metanarrativa. Esta é uma variante colectiva daquilo a que chamei anteriormente memória pessoal, ou seja, a atribuição de sentido ao passado como uma espécie de autobiografia colectiva, com algumas componentes explicitamente cognitivas. Os rituais não são, porém, apenas mais um exemplo da propensão da humanidade, actualmente muito falada, para explicar o mundo a si própria através de histórias. Um ritual não é um diário, ou uma biografia. A sua metanarrativa é mais do que uma , história que se conta e sobre a qual se reflecte, é um culto encenado. Uma imagem do passado, mesmo sob a forma de metanarrativa, é transmitida e conservada por performances rituais. E isto significa que aquilo que é recordado nas cerimônias comemorativas é algo mais do que uma variante colectivamente organizada da memória pessoal e cognitiva, pois, se as cerimônias devem funcionar para os que nelas participam, se devem ser persuasivas para eles, então esses participantes não devem ser apenas cognitivamente competentes para executarem a performance: devem estar a ela habituados, e esta habituação deve ser localizada — de formas que adiante desenvolverei — no substrato corporal da representação. Conduzi a análise das cerimônias comemorativas por forma a que fosse possível revelar a corporalidade que constitui o seu substrato. A minha tese é que, se a memória social existe, é provável que a encontremos nas cerimônias comemorativas, as quais mostram ser comemorativas (só) na medida em que são performativas. Mas a memória performativa encontra-se, de facto, muito mais difundida do que as cerimonias comemorativas, que são — embora a performance lhes seja necessária — altamente representacionais. A memória performativa é corporal, por isso, defendo que existe um aspecto da memória social que, tendo sido muito negligenciado, é, no entanto, absolutamente essencial: a memória social corporal.

Capítulo 3 PRÁTICAS CORPORAIS

1 Todos nós preservamos versões do passado, representando-o para nós próprios em palavras e imagens. As cerimônias comemorativas são disso um bom exemplo, mantêm o passado vivo através de uma representação descritiva de acontecimentos passados. Trata-se de reencenações do passado, do seu regresso sob uma forma representacional que inclui normalmente um simulacro da cena ou da situação recapturada. Muita da persuasividade retórica dessas reencenações depende, como vimos atrás, de um comportamento corporal prescrito, mas podemos também preservar deliberadamente o passado sem o representarmos explicitamente com palavras ou imagens. Os nossos corpos, que nas comemorações reencenam estilisticamente uma imagem do passado, conservam-no também de forma inteiramente efectiva na sua capacidade duradoura para o desempenho de certas acções especializadas. Podemos não nos lembrar de como nem de quando aprendemos inicialmente a nadar, mas podemos continuar a nadar com êxito — recordando como isso se faz — sem qualquer actividade representacional da nossa parte. Quando a nossa capacidade de executar espontaneamente os movimentos corporais em questão é deficiente, consultamos uma imagem mental daquilo que deveríamos fazer. Muitas formas de memória corrente especializada ilustram o relembrar constante do passado que, sem nunca aludir à sua origem histórica, reencena, todavia, esse passado na nossa conduta presente. Na memória corrente, ele está, por assim dizer, sedimentado no corpo. Ao sugerir, mais em particular, como a memória se encontra sedimentada, ou acumulada, no corpo, desejo destinguir entre dois tipos basicamente diferentes de prática social. Ao primeiro tipo chamarei prática de incorporação, Um sorriso, um aperto de mão, ou as palavras que se dizem perante alguém a quem nos 83

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dirigimos, são mensagens que um emissor, ou emissores, comunicam através da sua própria actividade corporal corrente, processando-se essa transmissão apenas durante o período em que os seus corpos estão presentes para apoiarem essa actividade particular. Quer a informação comunicada seja transmitida intencionalmente ou sem intenção, e quer a acção seja levada a cabo por u m indivíduo ou por um grupo, referir-me-ei a estas práticas como de incorporação. Ao segundo tipo chamarei prática de inscrição. Os nossos dispositivos actuais para o armazenamento e recuperação de informação — a imprensa, as enciclopédias, os índices, as fotografias, as cassetes áudio, os computadores — exigem que façamos algo que capte e conserve a informação muito depois de o organismo humano ter deixado de informar. Ocasionalmente, a comunicação pode ser involuntária, como no caso de termos o telefone sob escuta, mas na maior parte'das vezes é intencional. Falarei de todas essas acções como de inscrição. A memorização de posturas culturalmente específicas pode ser considerada como um exemplo de práticas de incorporação. Numa cultura em que as posturas características dos homens e das mulheres são praticamente idênticas, pode existir muito pouco ensino da postura e muito pouca aprendizagem consciente da mesma, 1 mas sempre que nela se introduzem diferen- * ças, como, por exemplo, entre as posturas apropriadas para as ocasiões cerimoniais e para as actividades de todos os dias, ou entre as formas de sentar adequadas para os homens e para as mulheres, é necessário algum conhecimento daquilo que é apropriado do ponto de vista da postura. Numa cultura, por exemplo, a postura correcta para uma mulher se sentar pode ser com as pernas dobradas sob o corpo para um dos lados, e a posição correcta para u m homem se sentar pode ser de pernas cruzadas. Os rapazinhos e rapariguinhas serão corrigidos, oralmente ou por gestos, mas a maioria das correcções tomará provavelmente a forma de observações como "as raparigas não se sentam assim", ou "senta-te como um homem!". A capacidade para reprovar deve encontrar-se entre as primeiras características de ensino, sempre que se procura estabelecer uma cultura transmissível; posteriormente, ela será complementada pela introdução de novas capacidades, como sejam a de nomear uma postura culturalmente correcta, com palavras para agachar, ajoelhar, curvar, ficar direito, etc, combinadas com o apontar de formas específicas de comportamento correcto e incorrecto. O comportamento postural pode ser, deste modo, altamente estruturado e completamente predizível, mesmo que não seja nem verbalizado, nem conscientemente ensinado, e pode ser tão automático que não seja sequer reconhecido como uma parte do comportamento passível de ser isolada. A presença de modelos 1

Ver M. Mead, Continuities In Cultural Evolution (New Haven, 1964), em especial as pp. 45-6.

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vivos, isto é, a presença de homens e de mulheres que, de facto, se sentam "correctamente", é essencial para a comunicação em questão. A importância das posturas para a memória comunal é evidente. O poder e a posição social exprimem-se normalmente através de certas posturas em relação aos outros. A partir da maneira como as pessoas se agrupam e da disposição dos seus corpos, relativamente aos corpos dos outros, podemos deduzir o grau de autoridade que se considera que cada um goza, ou que reivindica para si. Sabemos o que significa quando uma pessoa se senta numa posição elevada enquanto todos à sua volta ficam de pé; quando uma pessoa fica de pé e todas as outras se sentam; quando todos se levantam à entrada de alguém; quando alguém se inclina, faz vénias, ou, em circunstâncias extremas, cai de joelhos perante outra que permanece de pé. Estas são apenas algumas das muitas configurações da actividade comunal. Claro que existirão disparidades entre culturas quanto aos significados atribuídos a algumas posturas, mas, em todas as culturas, muita da coreografia da autoridade é exprimida através do corpo. Esta coreografia inclui uma série identificável de reportórios através dos quais muitas representações posturais adquirem sentido, assinalando inflexões significativas da postura erecta.2 Tais inflexões evocam um padrão de autoridade tanto aos actores como * aos observadores e são, por seu lado, recordadas em muitas das nossas convenções verbais. Isto é evidente nas nossas metáforas comuns. Quando nos referimos a alguém como "vertical", podemos utilizar a expressão de forma descritiva e literal para dizer que a pessoa está de pé, ou podemos utilizá-la avaliativa e metaforicamente para exprimir admiração e louvor por alguém que consideramos ser honesto e justo, leal para os amigos em dificuldades, que defende as suas convicções e que, em geral, não se submete a acções baixas ou indignas. Quando nos referimos a alguém que goza de uma posição social elevada, dizemos que tem status ou "posição". Quando falamos de infortúnios de toda a espécie, referimo-nos à mudança de circunstâncias como uma queda; caímos nas mãos do inimigo, caímos no infortúnio, caímos em desgraça. Estes ditos metafóricos não são ad hoc, recordam-nos padrões de autoridade porque não formam apenas ditos metafóricos, mas sistemas globais de expressão metafórica.3 Os nossos conceitos opostos de "para cima" e "para baixo" são oriundos da nossa experiência corporal de verticalidade. Quase todos os movimentos corporais que fazemos mudam a nossa orientação de cima para baixo, mantêm-na ou têm-na de algum modo em consideração. A direcção para cima, contrária à gravidade, estabelece a base postural, na nossa experiência do espaço vivido, para o sentido dicotó-

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Sobre a postura erecta, ver E. Straus, Essay* In Phawvienolagkal Pzycholagy (Londres, 1%6), pp. 137-65. Ver G. Lakoff e M. Johnson, Mrtaphors We Live Bu (Nova Iorque, 1980), em especial pp. 15-20 e 56-57.

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mico a que ligamos os valores, tais como aqueles que exprimimos nas oposiçoes entre alto e baixo, erguer-se e baixar-se, subir e cair, superior e inferior, olhar para cima e olhar para baixo. É através da natureza essencialmente corporizada da nossa existência social, e através das práticas incorporadas baseadas nestas corporizações, que estes termos opostos nos fornecem as metáforas pelas quais pensamos e vivemos. As performances posturais culturalmente específicas fornecem-nos uma mnemónica do corpo. O alfabeto pode ser citado, por contraste, como exemplo de uma prática de inscrição. É uma prática que existe em virtude de uma transferência sistemática das propriedades temporais da voz humana para as propriedades espaciais dos símbolos inscritos: isto é, para características repetíveis em termos de forma, posição, distância relativa, ordem e disposição linear.4 Outros sistemas de escrita — pictogramas, hieróglifos e ideogramas — exibem a mesma característica, mas os seus métodos de codificação espacial são radicalmente incompletos porque continuam a depender de uma inscrição directa dos significados. É por isso que os pictogramas, por exemplo, são tão deficientes como'sistemas mnemónicos: é necessário um grande número de símbolos para representar todos os objectos de uma cultura. A mais simples das frases exige uma série elaborada de símbolos, só podendo dizer-se um número limitado de coisas. É claro que sistemas de escrita limitados deste tipo, em que o símbolo representa directamente o referente, são capazes de extensão semântica; pode também fazer-se corresponder o mesmo símbolo a uma classe mais geral de objectos, ou a outros referentes associados ao símbolo original, por associação de sentido. Deste modo, nos hieróglifos egípcios o símbolo do escaravelho simbolizava não só esse insecto, mas também um referente distinto e mais abstracto: "porque". Mas, dado que todos esses métodos de elaboração inscricional permanecem arbitrários, a interpretação dos seus símbolos não é fácil nem explícita. Na escrita chinesa uma pessoa tem de aprender um mínimo de três mil caracteres antes de ser razoavelmente instruída, existindo, no total, um reportório de cinqüenta mil caracteres para ser dominado. O princípio fonético marca uma ruptura decisiva com todos esses procedimentos. Aquilo que o distingue de todos os outros sistemas de escrita é o facto de os seus vinte e dois elementos, a partir dos quais o sistema é construído, não terem em si próprios um sentido intrínseco. Os nomes das letras gregas, alfa, beta, gama, etc, constituem uma cantilena infantil destinada a gravar os sons das letras, numa seqüência fixa, no cérebro da criança, ao mesmo tempo que correlaciona firmemente esses sons com a visão que a criança tem de uma seqüência fixa de formas, para a qual olha enquanto produz os valores acústicos. Na sua forma semítica original, estes nomes eram os de objectos comuns, como "casa", "camelo", 4

Ver P Ricoeur, Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning (Fort Worth, 1976), pp. 42 c seguintes.

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etc. Em grego, esses nomes perderam o sentido. Quando as unidades que compõem o sistema foram, deste modo, esvaziadas de qualquer sentido independente, transformaram-se num dispositivo mecânico de memorização, dispositivo que impunha ao cérebro um hábito de reconhecimento na fase de desenvolvimento anterior à puberdade, enquanto o código de linguagem oral estava a ser adquirido. Os dois códigos necessários para falar, e posteriormente para escrever, combinam-se numa altura em que os recursos mentais são ainda extremamente maleáveis, de tal forma que os actos de leitura e de escrita se tornam um reflexo inconsciente. A ruptura cultural estabelecida pelo princípio fonético tem assim um significado ontogénico decisivo. Muito se tem escrito sobre o impacte da escrita na memória social, que é evidentemente imenso. 3 A transição de uma cultura oral para uma cultura escrita é uma transição de práticas de incorporação para práticas de inscrição. O impacte da escrita resulta do facto de qualquer relato transmitido através das inscrições ficar inalteravelmente fixado e o processo da sua composição definitivamente encerrado. A edição padronizada e a obra canónica são os emblemas desta condição, sendo esta fixidez a fonte que liberta a inovação. Quando as memórias de uma cultura começam a ser transmitidas principalmente através da reprodução das suas inscrições, e não pelas narrativas "ao * vivo", a improvisação torna-se cada vez mais difícil e a inovação é institucionalizada. A escrita fonética gera a inovação cultural ao promover dois processos: a economia e o cepticismo. Economia, porque a forma da memória comunal é libertada da sua dependência do ritmo, 6 cepticismo, porque o conteúdo da memória comunal é sujeito a uma crítica sistemática.7 No que diz respeito à economia, podemos reparar que, nas culturas orais, a maior parte da recordação formal dos acontecimentos assume a forma de performances recitadas repetidamente pelos guardiões da memória para aqueles que ouvem falar dela. Estas declarações performativas em larga escala têm 3

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Sobre o impacte da escrita na memória social ver, em especial, J. Goody, The Domcstication of the Sazmge Mind (Cambridge, 1977); J. Goody e I. P. Watt, "The Consequences of Literacy", Comparativa Studies in History and Society, 5 (1963), pp. 304-45; J. Goody, "Literacy and the Non-Literate", in R. Disch (ed.), The Future of Literacy (Englewood Cliffs, 1973); J. Goody, "Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec et sans écriture: Ia transmission du Bagre", UHomtiw, 17 (1977), pp. 29-52; mas ver também E. L Eisenstein, "Some Conjectures about the fmpact of Printing on Western Society and Thought", Journal of Modem History, 40 (1968), pp. 1-56; I. ]. Gelb, A Study ofWriting (Chicago, 1952); E. A. Havelock, Qrigins of Western Literacy (Toronto, 1976); Havelock, "The Preliteracy of the Greeks", òJexv Literary History, 8 (1977), pp. 369-92; Havelock, The Literato Revohttion w Greece and its Cultural Consequences (Prínceton, 1982). Para o efeito do ritmo sobre a memória, ver especialmente M. Jousse, "Études de psychologie linguistique. Le style orai rhythmique et mnémotechnique chez les verbo -moteurs", Archives de Philosophic, Vol. II, 4 (1924), pp. 1-240; mas ver também E. A. Havelock, Preface to Píato (Cambridge, Mass., 1963). Sobre o cepticismo literário e cultural, ver J. Goody e I. P. Watt, "The Consequences of Literacy", Comparative Studies in Histon/ and Socieiu, 5 (1963), pp. 304-45.

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de ser emitidas de uma forma estandardizada, para que haja alguma possibilidade de virem a ser repetidas por gerações sucessivas. Os ritmos da poesia oral são os mecanismos privilegiados de recordação, porque o ritmo inclui a cooperação de toda uma série de reflexos motores corporais no trabalho de recordação, mas o ritmo impõe limites drásticos à disposição verbal daquilo que pode ser dito e pensado. A escrita fonética derruba estas limitações, pois ao substituir u m registo acústico por um registo visual, o alfabeto liberta uma sociedade dos constrangimentos de uma mnemónica rítmica. Os enunciados particulares já não necessitam de ser memorizados, podendo existir como artefactos e ser consultados quando for preciso. Esta economia da memória liberta extensas energias mentais anteriormente investidas na construção e na preservação de sistemas mnemónicos. Por isso, encoraja a produção de enunciados não familiares e o pensamento de idéias originais. No que diz • respeito ao cepticismo, podemos ver que, nas culturas orais, muita da recordação informal dos acontecimentos toma a forma de conversação > face a face. Isto impede, necessariamente, a articulação de u m sentido de inconsistência; ou até de incoerência, na construção da herança cultural. E verdade que as sociedades orais fazem, muitas vezes, uma distinção entre o conto popular, o mito e a lenda histórica, mas mesmo que surja inconsistência entre, ou no interior de, tais gêneros é pouco • provável que o sentimento de inconsistência venha a gerar um impacte cultural permanente. O cepticismo é particular e não culturalmente acumulativo, gera disputas nominais, mas não uma reinterpretação deliberada da herança cultural. A distinção entre aquilo que era considerado mítico e o que se julgava ser histórico nasceu quando se tornou possível colocar u m a explicação fixa do m u n d o ao lado de outra, de forma a que as contradições internas, e entre elas, pudessem literalmente ser vistas. Quer através da crítica, quer através da economia, a substância da memória comunal é mudada pela transformação da tecnologia da comunicação. É provável que estas distinções nos coloquem algumas dúvidas, pois é certamente verdade que muitas práticas de inscrição contêm um elemento de incorporação e pode bem ser que nenhum tipo de inscrição seja de todo concebível sem algo de incorporação. É certamente verdade que a escrita, o exemplo mais óbvio dè'inscrição, tem uma componente corporal irredutível e temos tendência a esquecer isto. A escrita é um exercício habitual de inteligência e de vontade que escapa normalmente à atenção da pessoa que a exerce devido a esta familiaridade com o modo de proceder. Todos os que sabem escrever com proficiência sabem tão bem como dar forma a cada letra, e conhecem tão bem cada palavra a escrever, que deixaram de ter consciência desse conhecimento, ou de reparar nesses actos específicos da vontade. Cada um desses actos, no entanto, é acompanhado por uma acção muscular correspondente. 8 A maneira

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como aderimos geralmente ao mesmo método de formar o mesmo caracter da caligrafia demonstra que a escrita exige uma capacidade muscular mínima. Se começamos a escrever de uma maneira não familiar, como quando usamos letra de imprensa em vez de escrevermos de forma comum, tomamos consciência que cada caracter que formamos envolve uma acção corporal. Existe, todavia, uma boa razão para escolhermos o elemento inscricional da escrita como característica dominante, pois, quando aprendemos a escrever, os movimentos físicos que fazemos não têm significado próprio, mas são contingentemente exigidos para desenhar as formas que estão, elas próprias, relacionadas de uma maneira meramente arbitrária com o sentido. Esta contingência dos movimentos da mão envolvidos é bem demonstrada pelo uso da máquina de escrever, onde o registo dos mesmos símbolos exige movimentos corporais diferentes. Claro que podíamos considerar um caso bastante diferente, em que a prática de uma boa caligrafia é concebida como parte do treino de um corpo dócil. Aqui, o controlo disciplinador consiste na imposição da melhor relação entre um conjunto de gestos e a posição global do corpo, que é a sua condição de eficiência e de rapidez. Não se trata de um exemplo hipotético, mas sim histórico: no seu inventário dos modos de vigilância, Foucault cita o discipli,nador La Salle, que fala de um ensino da caligrafia em que um corpo disciplinado constitui um requisito prévio para um conjunto de gestos eficiente. Os alunos, diz ele, devem ter sempre "os corpos direitos, um pouco virados e soltos do lado esquerdo, levemente inclinados, para que, com o cotovelo sobre a mesa, o queixo possa descansar sobre a mão, a menos que isto interfira com a visão. A perna esquerda deve estar um pouco mais para a frente, sob a mesa, do que a direita. Deve deixar-se uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com maior vivacidade, como nada é mais prejudicial à saúde do que adquirir o hábito de se premir o estômago contra a mesa. O antebraço esquerdo e a mão devem estar pousados sobre a mesa. O braço direito deve estar a uma distância de cerca de três dedos do corpo e a cerca de cinco da mesa, sobre a qual deve repousar ligeiramente. O professor colocará os alunos na postura que eles devem conservar enquanto escrevem, e corrigi-los-á, por sinais ou de outro modo, quando alterarem essa posição". 9 La Salle propõe aqui um treino de docilidade rigorosa, uma espécie de ginástica minúscula. A questão essencial é que aquilo que se prescreve e aprende é uma prática de incorporação. Acontece que é também uma prática de inscrição, mas esta é uma característica contingente da prática em questão, pois aquilo que está a ser aprendido é fundamentalmente um acto de incorporação. 8 )

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Sobre a escrita e a memória-hábito, ver S. Butler, Life and Habit (Londres, 1878), pp. 6-7. M. Foucault, Discipline and Punish. The Birthof the Frisou (trad. de A. Sheridan, Londres, 1477), p. 152.

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A mesma questão se aplica de forma menos evidente, mas não menos certa, à instituição do cinema. Dizer que o cinema é uma prática de inscrição é sublinhar a característica que o distingue do teatro. 10 No teatro, os actores e os espectadores estão presentes ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Tudo o que a audiência vê e ouve está a ser activamente produzido na sua presença por seres humanos, ou por acessórios, que estão, eles próprios, presentes. No cinema, os actores estavam presentes quando os espectadores se encontravam ausentes (na rodagem) e os actores estão ausentes quando os espectadores estão presentes (na projecção). Não estou apenas longe do objecto, como no teatro: o que fica igualmente distante, no cinema, já não é o próprio objecto, que se encontra inacessível desde o princípio, mas sim, como Metz o afirma, um delegado que me foi enviado enquanto o objecto em si se retirava. Aquilo que define as regras do olhar específicas do cinema é a ausência do objecto que é visto. A ausência do objecto e os códigos através dos quais damos sentido a essa ausência são produzidos pelo processo da inscrição técnica. O cinema inscreve, mas não poderia ser uma prática de inscrição se não fosse, num sentido específico, uma prática de incorporação. Aquilo que se incorpora é uma convenção ocular: a identificação do objecto com a câmara. Durante a sessão de cinema, os espectadores duplicam a acção do projector, comportando-se os seus olhos, por assim dizer, como projecto- . res. Sem esta identificação com a câmara certos factos permaneceriam inintelegíveis: por exemplo, o facto de os espectadores não ficarem confusos quando as imagens do ecrã "rodam 7 ' num movimento panorâmico, sabendo qtie não viraram a cabeça. Os espectadores não necessitam de virar a cabeça, na verdade, pois já o fizeram na medida em que se identificaram, como sujeitos omnividentes, com o movimento da câmara. Se o olho que assim se move já não se encontra submetido às leis da matéria, se, neste sentido, já não está limitado ao corpo, tornando-se capaz de múltiplas deslocações, então o mundo, no cinema, não só será constituído pelo olho, no sentido em que o olho-sujeito constituía a base invisível da perspectiva do Quattrocento, mas o mundo será constituído para o olho. Isto marca um ponto de viragem na formação social do olho. No cinema, encontro-me simultaneamente na acção e fora dela, neste espaço e fora dele. Possuindo o dom da ubiqüidade, estou em todo o lado e em lado nenhum. A prática inscricional do cinema torna possível, e é, por sua vez, tornada possível, pela prática de incorporação do espectador do cinema. Muitas práticas de inscrição contêm um elemento de incorporação e pode até dar-se o caso de que nenhum tipo de inscrição seja de todo concebível sem uma tal componente irredutível de incorporação. Todavia, uso a distinção entre práticas de incorporação e de inscrição para servir o objectivo da minha argumentação, na medida em que é possível distinguir entre acções 10

Ver, em particular, C. Metz, Le signifiant imaginaire (Paris, 1977).

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nas quais um ou outro dos aspectos predomina. Por outras palavras, a minha classificação é concebida como um dispositivo heurístico.

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As práticas de incorporação que tenho em mente caracterizam-se, em geral, por um menor grau de formalidade do que o que se encontra naqueles acontecimentos altamente invariáveis, como certas liturgias religiosas, nas quais a performance é previamente especificada na sua quase totalidade e onde as ocasiões de variação são poucas e rigorosamente definidas. Entre esta série de actividades existem, no entanto, tipos diferentes de práticas corporais culturalmente específicas que diferirão umas das outras no seu grau de formalidade característico. Claro que há alguma dificuldade na distinção das práticas corporais em termos do critério de formalidade. Os acontecimentos recorrentes nem sempre podem ser facilmente divididos naqueles que são formais e naqueles que o não são. Ocupam, antes, áreas móveis ao longo de um continuum. Existe uma seqüência de formalidade comportamental: desde as palavras e dos gestos formais presentes de forma dispersa na conversação * vulgar e nos acontecimentos quotidianos; passando pelas formalidades quotidianas do comportamento de saudação e pelas expressões formais de deferência e de conduta; pelos procedimentos bastante invariáveis, digamos, do tribunal, no interior do qual a substância variável de litígio é limitada pelos meios que a submetem a uma apresentação ordenada; até, finalmente, ocasiões como as coroações, em que os aspectos invariáveis do acontecimento começam a predominar sobre os seus aspectos variáveis. E, pois, impossível d i s t i n g u i r i n e q u i v o c a m e n t e e n t r e t i p o s de f o r m a l i d a d e qualitativamente diferentes e aquilo que aqui desejo sugerir é apenas um conjunto de distinções heurísticas entre cerimônias do corpo, convenções do corpo e técnicas do corpo. Como exemplo das técnicas do corpo poderíamos considerar a gestualidade. Particularmente esclarecedor é o estudo de David Efron, em que este autor se propôs averiguar se existiam algumas diferenças padronizadas c classificáveis no comportamento gestual dos grupos.11 Explorou esta questão relativamente a dois subgrupos de tipo "tradicional": judeus oriundos da Europa de Leste e italianos do Sul residentes em Nova Iorque. Com o termo "tradicional" referia-se tanto aos indivíduos estrangeiros como aos nascidos na América que tivessem conservado a língua e os costumes do grupo de que eram originários e que houvessem permanecido relativamente impermeáveis à influência do ambiente americano. Como método de investigação, rejeitou as experiências de laboratório a favor dos cenários naturais — todo 11

D. Efron, Gcsturc and Enriromticnt (Nova Iorque, 1941).

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o seu material foi obtido em situações espontâneas, no ambiente quotidiano das pessoas em causa, as quais desconheciam ser alvo de um estudo e — como objecto de investigação, excluiu qualquer consideração sobre a expressão facial, a postura, o modo de andar ou o movimento dos olhos. A sua atenção incidiu principalmente no movimento das mãos e, em menor grau, nos movimentos da cabeça. Este foco de atenção limitado justificava-se pela observação de senso comum de que ambos os grupos de imigrantes "falavam com as mãos" de modos que não estavam em consonância, de uma forma óbvia, com a sociedade circundante. Após um exame minucioso, verificou-se que essa dissonância tinha sentidos surpreendentemente diferentes e definíveis consoante o grupo em questão. A partir dos dados recolhidos no bairro italiano de Nova Iorque, Efron foi capaz de construir um inventário mais ou menos exaustivo do "pacote de imagens" que os italianos do Sul trazem nas mãos. Este era, com efeito, equivalente a um léxico, a um vocabulário gestual que compreendia pelo > menos cento e cinqüenta itens. Alguns destes movimentos formalizados podem encontrar-se também no reportório de outros grupos, mas outros são locais, sendo o seu significado compreensível apenas para um membro de uma comunidade italiana do Sul, ou para alguém que esteja familiarizado com o seu sistema de sinais corporais. Estes movimentos são, por assim dizer, "palavras" manuais que designam associações significativas mais ou menos definidas, ilustrando as próprias coisas referidas pelas palavras que os acompanham. O comportamento gestual dos italianos do Sul tem um caracter substantivo no sentido em que contém um grande número de réplicas espacio-visuais dos referentes do pensamento. A produção desses slides gestuais pode, quando levada até ao limite, concatenar-se numa "projecção de slides" completa que dispensa o acompanhamento verbal. O cardeal Manning já muito tempo antes ficara espantado com a capacidade dos Siçüianos para levarem a cabo uma conversação completa sem o auxílio de uma única palavra falada; e também Efron ficou surpreendido com a aparição de longas seqüências de gestos pantomímicos, quando vários actores italianos proeminentes de Nova Iorque não evidenciaram qualquer dificuldade em encenar uma série de "pantomimas" que eram inteiramente providas de sentido para quem estivesse familiarizado com o sistema de imagens e de símbolos gestuais utilizado pelo seu grupo. Mais impressionante ainda do que a auto-suficiência deste reportório lexical era a sua longevidade. Mais de um século antes, Andréa di Jorio havia produzido uma descrição exaustiva do vocabulário gestual dos napolitanos tradicionais, na sua Mimica degli antichi investigata nel gestire napoletano.12 Muitos dos gestos descritos por Di Jorio continuam a ser utilizados entre os napolitanos contemporâneos, tanto na Itália como nos Estados Unidos. E possível seguir a pista de alguns deles 12

A. di Jorio, Mimica degli antichi investigata nel gestire napoletano (Nápoles, 1832).

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até épocas tão remotas como a Grécia e a Roma antigas, como se pode verificar através da comparação das tabelas gestuais de Efron com as descrições e as reproduções pictóricas dos gestos gregos e romanos fornecidas por Di Jorio e por Karl Sittl.13 Vários dos movimentos de mãos incluídos na colecção de Efron são reconhecíveis na descrição dos gestos oratórios romanos de Quintiliano. Enquanto os italianos do Sul ilustram gestualmente os "objectos" dos seus actos mentais, os judeus oriundos dos guetos da Europa de Leste produzem uma notação gestual do "desenvolvimento" da sua actividade mental. Não se trata de uma espécie de representação visual, mas de uma espécie de orquestração musical. Os judeus tradicionais estudados por Efron empregavam muito raramente as mãos e os braços, à maneira de um lápis ou pincel, para descreverem as "coisas" a que se referiam. Utilizavam, antes, as mãos e os braços como uma batuta para ligar uma proposição a outra, para traçarem o caminho de uma viagem lógica e para orquestrarem o ritmo do seu movimento mental. Os gestos não podem ser especificados como "querendo dizer" alguma coisa. Só comunicam com alguém que compreenda as palavras que os acompanham, particularmente se estiver familiarizado com os significados de certas formas de entoação estereotipadas características do idiche. Em conseqüência, vários actores judeus proeminentes de Nova Iorque, que colaboravam com Efron nas suas investigações, não foram capazes, ao contrário dos seus colegas italianos, de criar qualquer pantomima com significado baseada nos gestos "judeus", pois aquilo que é produzido por estas formas gestuais não é uma representação pictórica do discurso, mas uma orquestração do mesmo. Quase todas as inflexões gestuais correspondem e realizam uma mudança na ênfase lógica, uma mudança de direcção, ou uma alteração no ritmo do pensamento. Estas inflexões são movimentos lógicos, mapeando o "alto" e o "baixo", os "desvios" e os "cruzamentos" de um percurso ideacional. Levado ao seu extremo, o caracter lógico deste tipo de gesto — que não é observável no comportamento dos italianos do Sul tradicionais — torna-se muito evidente naqueles momentos em que o movimento assume uma forma quase silogística, em que as inflexões do corpo correspondem e corporizam as duas premissas e a conclusão do padrão de pensamento. Efron pôde distinguir, assim, duas classes de gestos. Num dos tipos, o significado do gesto é referencial, podendo essa referencialidade concretiza r-se de diferentes maneiras. Os movimentos da mão, do braço e da cabeça podem referir-se, através de um sinal, a um objecto visualmente presente, apontando mesmo para ele...O movimento pode ilustrar a forma de um objecto visual, uma relação espacial, ou uma acção corporal, ou, por outro lado, o movimento pode representar quer um objecto visual, quer um objecto lógico através de uma forma pictórica ou não pictórica, sem relação morfo13

K. Sittl, Dic Geharden der Grhxhen urtd Ramcr (Leipzig, 1890).

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lógica com a coisa representada. Todos eles são variedades de um único tipo básico, o gesto referencial, e podem ser contrastados com um segundo tipo em que o significado do gesto é anotativo. Estes movimentos que têm significado devido à estruturação e à ênfase que conferem ao conteúdo do discurso verbal que os acompanha, encenam corporalmente as pausas, as intensidades e as inflexões da seqüência de discurso correspondente, traçando no ar as direcções tomadas por um voo do pensamento. Este tipo de movimento é um retrato gestual não do "pensamento" ou do "objecto" de referência, mas do curso seguido pelo processo ideacional. Estabelecida esta distinção, podemos dizer que tanto os italianos do Sul como os judeus do Leste europeu "falam com as mãos", mas isto é literalmente verdade no que toca aos primeiros e metaforicamente certo no que diz respeito aos segundos. Em primeiro lugar, a onomatopéia gestual (ilustrando a forma de um objecto, uma relação espacial, ou uma acção corporal) e os símbolos gestuais (representando um objecto visual ou lógico por um movimento pictórico ou não pictórico, que não está morfologicamente relacionado com o referente) encontram-se com freqüência no comportamento dos italianos do Sul e raramente no dos judeus do Leste. Por outro lado, os gestos de anotação (delineando o curso de um processo de pensamento) tão típicos dos judeus de Leste são virtualmente inobserváveis nos italianos do Sul. A * disponibilidade de reportórios gestuais particulares nos movimentos das mãos dos indivíduos de cada um dos grupos depende, em grande medida, da sua história, da sua pertença cultural, e a performance apropriada dos movimentos extraídos desse reportório depende tanto da memória-hábito dos seus membros, como evoca de forma tácita a sua memória daquela fidelidade comunal. Como exemplo das convenções do corpo podemos considerar as maneiras de estar à mesa. Este tema é tratado explícita e pormenorizadamente num famoso tratado de Erasmo, o De Civilitate Moram Piierilhim, de 1530.14 Este IÍVJO especifica máximas de conduta respeitantes àquilo a que Erasmo chama "o decoro corporal exterior", sendo as boas maneiras "exteriores", de atitude corporal, dos gestos, da postura, da expressão facial e do vestuário, vistas como a expressão da pessoa "interior". O impacte do tratado foi imediato, vasto e duradouro. Nos primeiros seis anos após a sua publicação conheceu mais de trinta reedições. Foi rapidamente traduzido para inglês,, francês e alemão e, no total, fizeram-se mais de cento e trinta edições, treze das quais já no século XVIII. As questões abordadas neste tratado, tal como as examinadas no // Cortegiano, de Castiglione, e no Galateo, de Delia Casa, conferiram uma nova precisão e centralidade ao conceito de civilitas, diversamente traduzido na civílité francesa, na civility inglesa e na civiltã italiana. Dado que o decoro e o comedimento eram atributos essenciais da civilidade, era natural 14

D. Erasmus, De Civilitate Mor um Puerilium (Basiléia, 1530).

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que se atribuísse uma importância crucial ao controlo cultural do apetite, no seu sentido mais literal, e, por isso, às maneiras de estar à mesa. Algumas pessoas, diz Erasmo devoram os alimentos, em vez de os comerem, comportam-se como se fossem ladrões a comer vorazmente a presa, ou prestes a serem levados para a cadeia. Metem as mãos nos pratos, mal se acabam de sentar, e enchem de tal maneira a boca que as bochechas lhes incham como foles. Comem e bebem sem fazerem qualquer pausa, não por terem fome ou sede, mas porque não conseguem controlar os seus movimentos de outra maneira. Cocam a cabeça, brincam com uma faca, são incapazes de se absterem de tossir, resfolegar e cuspir. Todos esses sinais de perturbação e de grosseria rústica devem ser evitados. Nunca devemos ser os primeiros a tirar comida da travessa. Não devemos remexer a travessa toda com a mão ou rodá-la para que um bocado melhor nos venha a caber, mas devemos tirar simplesmente o primeiro pedaço que se nos apresente. É má educação lamber os dedos engordurados ou molhar o pão no molho depois de o termos mordido. E indecoroso oferecer a outra pessoa um pedaço da carne que estamos a comer e mostra falta de elegância tirar-se comida mastigada da boca e voltar a pô-la no prato. E é bom que a conversa interrompa de vez em quando a refeição. Em O Processo Civilizacional, Norbert Elias analisa o texto de Erasmo, entre outros, quando procura demonstrar que nada nas modernas maneiras de estar à mesa é evidente em si mesmo, expressão de um sentimento "natural" de delicadeza, ou simplesmente "razoável". Se se tornaram tudo isso, é em virtude de serem um conjunto de práticas particulares construído lentamente, num processo histórico de longa duração. 15 Os utensílios usados à mesa, no Ocidente, não são para fins óbvios e usos evidentes. No decorrer dos séculos, e particularmente entre os séculos XVI e XVIII, as suas funções definiram-se gradualmente, as suas formas consolidaram-se e os valores ligados a essas funções e formas foram lentamente inculcados. A maneira como se segura na faca, no garfo e na colher estandardizou-se pouco a pouco. A prática do uso do garfo foi lentamente adquirida, assim como o hábito de tomar os líquidos apenas com uma colher. Nos finais do século XVIII, a ociosa classe superior francesa havia elaborado totalmente o padrão das maneiras de estar à mesa que veio gradualmente a ser considerado como evidente em toda a sociedade civilizada ocidental. As formas dos talheres não passam, desde então, de variações sobre temas acabados, permanecendo imutável o método de os manusear, desde essa época, nos seus aspectos essenciais, constituindo uma série de convenções corporais historicamente específicas. São capacidades técnicas imbuídas de valores morais e só serão "esquecidas" como máximas quando foram bem memorizadas como hábitos. 15

N". Elias, The Civilizing Process ftrad. E. Jephcott, Londres, 1978).

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COMO

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Aquilo que se recorda é um conjunto de normas para definir o comportamento "correcto". O controlo do apetite, no sentido mais literal, faz parte de u m processo muito mais vasto que, dependendo do nosso ponto de observação, surgirá ou como uma estrutura de sensibilidade, ou como um padrão de controlo institucional. Estes pontos de observação esclarecem-se reciprocamente, dado que o processo no seu todo deve ser entendido como ocorrendo a dois níveis que se interligam. Há a formação de um tipo de pessoa cuja sensibilidade é afinada para os mais exigentes e meticulosos incitamentos do decoro, e existe a formação de um tipo de sociedade cujo controlo sobre os seus membros é mais estratificado e mais centralizado. A um nível, existe um desenvolvimento do autocontrolo individual particularmente forte. As regras da etiqueta impõem constrangimentos interiorizados sobre qualquer exibição indiscriminada dos sentimentos e ensinam a dar atenção às nuances mais finas da compostura e às distinções entre a vida pública e a privada. A outro nível, existe um desenvolvimento particularmente acentuado do controlo social. As regras da sociedade cortesã impõem uma distância social bem regulamentada entre classes de pessoas que se podem distinguir por padrões publicamente observáveis de comportamento refinado. O controlo social, que é prerrogativa da sociedade cortesã, e o autocontrolo, que é o predicado de uma pessoa, "civilizada", definem-se ' mutuamente. A Elias coube o mérito de haver compreendido esta concomitância, de haver mostrado que aquilo que é analiticamente separável é historicamente inextricável. O corpo é o ponto de ligação entre estes dois níveis, é nas convenções corporais que as regras de etiqueta e as normas da corte são reproduzidas e recordadas. São recordadas como memórias-hábito, como regras de decoro habitualmente observadas. O decoro implica que o apetite deve ser satisfeito de forma apropriada, especialmente no que é o acto incorporador por excelência — o consumo. O domínio precário da cultura sobre a natureza é celebrado, fazendo-se da refeição uma ocasião em" que se demonstra o gosto. Este, como nos lembra Bourdieu, é um modo de se negar a função primária do consumo — a satisfação de uma necessidade básica —, tornando a refeição um momento de celebração do refinamento artístico e do valor ético. 16 Existe u m compromisso estudado com a estilização: na etiqueta que governa o uso dos talheres, na distribuição dos lugares à mesa, na seqüência da refeição, nos preceitos observados para se servir os outros e a si próprio, esperando até que a última pessoa a ser servida tenha começado a comer, tirando porções modestas, não parecendo excessivamente ávido, e na censura tácita do ruído e da pressa que iriam tornar as manifestações corporais do prazer de comer grosseiramente espalhafatosas. Este compromisso com a estilização desloca o centro da atenção da 16

Sobre o consumo estilizado, ver Pierre Bourdieu, Distinction (trad. R. Nice, Londres, 1984).

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substância e da função para a forma e a conduta e, ao fazê-lo, tende a negar a realidade cruamente material das coisas que são consumidas e do acto de comê-las. Tal como a classe capitalista iria ocultar o caracter socialmente organizado do sistema de produção, que sustentava e potenciava a circulação de mercadorias, assim a ociosa classe cortesã ocultava a realidade material do acto do consumo, que sustentava e potenciava a circulação da civilidade. Este disfarce exigia uma mnemónica do corpo. No que diz respeito às cerimônias do corpo, podemos considerar as práticas pelas quais a nobreza francesa do século XVII exibia o seu estatuto privilegiado. De forma sistematica, nos Projets de goiwernement du duc de Bourgogne, de 1714-15 e, anedoticamente, nas Mémoires, o conde de Saint-Simon retrata-nos a sociedade francesa da sua época.17 Esta era uma sociedade de "ordens" ou "estados" estritamente classificados, uma hierarquia de dignidades e de qualidades demarcada pela observância rigorosa de títulos, posições e símbolos. Saint-Simon apresenta-nos prescrições longas e minuciosas acerca do comportamento cerimonial: sobre quem devia ter a "mão", isto é, a direita, em certas situações, sobre os lugares de honra, o uso de carruagens, o porte de armas, a indumentária. Estas prescrições servem um fim polêmico. O objectivo dos Projets era confessadamente reaccionário. Na , sociedade de ordens e de estados, a maior honra, até ao século XVI, fora atribuída à profissão das armas. Gradualmente, contudo, pelo menos desde o reinado de Henrique IV, a profissão de magistrado tinha começado a receber tanta honra como a das armas. A toga tornou-se no equivalente social da espada. E, sob Luís XIV, muitos outros foram nobilitados pelo exercício da sua profissão: homens de letras, pintores, escultores, arquitectos, médicos, cirurgiões, químicos e botânicos, tendo até sido reconhecida a dignidade do comércio. Saint-Simon abominava este "reinado da vil burguesia" e o processo de "nobilitação mecânica". A nobilitação, defendia ele, só devia ser permitida para os feitos de armas e o serviço militar de longa duração. A idéia de honra, como princípio da classificação social, devia ser reafirmada através do restabelecimento do caracter essencialmente militar da nobreza. A estratificação social em "ordens", subdivididas em "estados", consistia numa hierarquia em que cada grau tinha características específicas e era organizado de acordo com a honra, a posição social e a estima atribuída a funções sociais sem qualquer ligação com a produção de bens materiais. 18 Todos os escritores concordam que a nobreza é um atributo da pessoa, e os escritores do século XVII, em particular, destacaram a transmissão hereditária desse atributo. Para ser-se apresentado na corte era necessário pertencer-

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Conde de Saint-Simon, Projets de gouvernement du Duc de Bourgogne (1714-15), ed. V. Mesnard (Paris, 1860), e Mémoires (Londres, 1788). Ver R. Mousnier, Social Hierarchies: 1450 to lhe Present (trad. R Evans, Londres, 1973); e R. Mousnier, Les Institutions de, In Fraticesous In monarchieabsolue, 1598-1789 (Paris, 1974).

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-se, em princípio, à antiga nobreza. A partir de 1732 era necessário provar-se trezentos anos de nobreza militar, sem início conhecido. Uma lei de 1760 exigia que, para tal privilégio, se devia pertencer a uma família identificável como nobre anteriormente a 1400. As genealogias, que mostravam a verdadeira posição social das pessoas, as razões pelas quais se tinham aparentado, bem ou mal, com esta ou aquela família, eram muito apreciadas. Saint-Simon, de forma um tudo nada desdenhosa, desejando mostrar que Luís XIV revelava uma ignorância que "por vezes o fazia cair, em público, nos disparates mais grosseiros", dá desta ignorância dois exemplos — o rei, não sabendo que Renel pertencia à família Clermont-Gallerande, ou que Saint-Herem pertencia à de Montmorin, havia tratado estes dois homens como se fossem de baixa extracção e, mesmo depois de esclarecido sobre o seu erro no respeitante a Saint-Herem, foi ainda necessário explicar-lhe "que casas eram essas, pois os nomes nada significavam para ele".19 La Roque, mais piedosamente, dizia que "todo o homem que descende de pessoas grandes e ilustres sente sempre, nas profundezas do seu coração, um certo impulso que o instiga a imitá-las, incitando-o a sua memória para a glória e os belos feitos".20 La Bruyère, de forma mais retorcida, afirmava que, se um homem deseja manter a credulidade da corte sobre a posição que reclamava ter "deve falar a todo mundo sobre 'a minha linhagem, a minha família, o meu nome, o meu * brasão'". 21 A genealogia pode ser fabricada, mas os privilégios da nobreza reportavam-se cerimonialmente a antepassados cujos feitos e méritos se supunha terem perdurado no sangue. Nada demonstra de forma mais evidente até que ponto era necessário reivindicar honra, numa sociedade de estados, não por referência à utilidade das funções desempenhadas, mas por referência explícita à memória, ou pelo menos à memória ostensiva, da sociedade. A minha linhagem, a minha família, o meu nome, o meu brasão: todos estes termos, ao mesmo tempo que se referem insistentemente às qualidades inatas do possuidor, exprimem essas qualidades de forma idealizada, aludem de u m modo um tanto sublimado a algo que é clara e directamente corporal: o sangue. O sangue tem o valor de um símbolo. Uma pessoa pode dizer dos seus antepassados que eles o derramaram de uma certa maneira e de si própria que pertence ao mesmo sangue. A diferenciação em ordens e estados, o sistema das alianças através do casamento, o valor de uma ascendência nobre — tudo mostra que a relação de sangue é crucial nos mecanismos e cerimônias do poder. Neste caso, como diz Foucault, o poder fala através do sangue, é uma realidade com uma função simbólica.22 A verdadeira 19 20 21 22

M. Proust, RemembranceofThings Past (trad. C. K. Scott Mortcrieff e T. Kilmartin, Londres, 1981), Vol. III, p. 1006. La Roque, Traité de Ia Noblesse (Paris, 1735), prefácio, citado em Mousnier (1974), p. 101. La Bruyere, Characters (trad. J. Stewart, Harmondsworth, 1970), p. 133. M. Foucault, Power/Knowkdge (entrevistas seleccionadas e outros escritos, ed. e trad. C. Gordon, Brighton, 1980), p. 147.

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nobreza é uma raça, mas se o sangue autentica a pertença a um grupo antigo, essa pertença deve ser exibida de forma visível através de privilégios cerimoniais e de diversões cerimoniais. A vida na corte francesa estava construída em torno das cerimonias de privilégio. A rotina diária seguia uma seqüência pública fixa.23 Esta começava com o lever real, durante o qual o rei dizia as suas orações em público; o rei era, em seguida, vestido em público, dirigia-se para a missa escoltado pelos cortesãos, jantava em público, permitia que certos cortesãos participassem nas suas actividades de lazer, na caça, ou visitando os estábulos e jardins, e recebia toda a corte para divertimentos nocturnos mais formais; o dia terminava publicamente com o concher real. Esta seqüência cerimonial diária era separada do trabalho directamente político do rei como governante, da sua participação nas reuniões do conselho e da sua discussão com cada um dos ministros. O grupo de cortesãos não aconselhava o rei como governante. A exibição formal da sua presença na corte dava testemunho cerimonial ao domínio de um laço de sangue que unia o seu direito a governar ao direito deles à proeminência social. A proeminência social excepcional de que gozavam era atestada por numerosos privilégios. Fazer parte da rotina diária do lever e do coucher do rei, servi-lo à mesa, jogar bilhar com ele, acompanhá-lo , na caça ou durante os passeios nos jardins de Versalhes eram honras altamente apreciadas. Era também uma honra assistir aos divertimentos do serão, os apartements, que se realizavam várias vezes por semana, com música, dança, jogos de cartas e bufetes. Maiores honras estavam ainda reservadas para um grupo de sangue ainda mais restrito da corte: os ducs e pairs. Só a eles era permitido entrar a cavalo e de carruagem nos pátios dos palácios reais. Tinham a precedência, imediatamente a seguir aos príncipes de sangue, em baptismos, casamentos, funerais e banquetes reais. Nos contratos de casamento entre filhos de reis, assinavam depois dos príncipes do sangue. O rei chamava-lhes "primos" e tinham o direito aos epítetos honrosos de monseigneur e votre grandeur. Só eles podiam usar a coroa e o manto ducais. Entravam no parlement usando espadas, sentavam-se em lugares elevados e eram os primeiros a obter autorização para falar. Estes privilégios cerimoniais constituíam uma mnemónica do corpo, uma lembrança constante da organização em estados. As diversões cerimoniais não são menos reveladoras da pertença a um grupo antigo do que os privilégios cerimoniais. Estas diversões representam um investimento de tempo e de habilidade num tipo particular de capita] simbólico: os objectos dotados de maior poder simbólico são aqueles que exibem a qualidade inata do seu possuidor, demonstrando claramente a qualidade necessária à sua apropriação. 24 Os objectos de capital simbólico, 23

Ver R. Hatton. "Louis XIV. At the Court of the Sun King", iti A. G. Dickens (ed.), The Courts ofEurope: Politics, Patronage and Royalty, 1400-1800 (Londres, 1977), pp. 233-62.

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que se distingue do financeiro, estão, por assim dizer, encerrados no interior da história de vida no seu conjunto e, logo, das memórias daqueles que os possuem, pois parte da importância daquilo que se possui é precisamente o não poder ser obtido vivendo-se uma vida independente das exigências específicas daquilo que se possui. E parte da importância daquilo que se possui é não ser independente do contexto passado em que foi adquirido. Os objectos que atestam a nobreza devem ser os que não podem ser obtidos nem por procuração, nem de forma rápida. Possuir um castelo, ou uma casa senhorial, não serve primordialmente para mostrar disponibilidade de dinheiro, é necessária também a apropriação da arte de engarrafar e provar bons vinhos, dos segredos da pesca, das habilidades da jardinagem, do conhecimento da caça. Todas essas competências são antigas, só podem ser aprendidas devagar, só podem ser apreciadas por aqueles que têm vagar e manifestam preocupação pelas coisas que duram. Estas exigem que uma pessoa ocupe o seu tempo não de forma econômica, mas cerimonial. As diversões cerimoniais, de maneira menos formal, mas não menos evidente que os privilégios cerimoniais, afirmam o princípio da transmissão hereditária. As cerimônias, as convenções e as técnicas do corpo existem ao longo de um espectro de possibilidades que vão do mais ou menos formal ao mais ou menos informal, todas elas envolvendo, em termos variáveis, a memória * cognitiva. Assim, as cerimonias do corpo, tal como estão exemplificadas na etiqueta da corte de Versalhes, recordam aos actores um sistema de honra e de transmissão hereditária, como princípio organizador de classificação social. As relações de sangue são símbolos conhecidos e recordados cognitivamente através da exibição visivelmente elaborada de privilégios e diversões que só fazem sentido através da referência constante àquele princípio. A exibição cerimonial da presença na corte estabelece uma relação entre a organização do espaço cortesão e a estratificação das relações sociais, sendo o comportamento no espaço cortesão, simultaneamente, uma forma de representação cultural e um sistema mnemónico. Mais uma vez, as convenções do corpo, tais como as que são ilustradas pelo desenvolvimento das maneiras de estar à mesa no dealbar da Europa moderna, recordam aos actores um conjunto de regras que definem o comportamento "correcto" e o controlo do apetite, onde a categoria apetite deve ser entendida tanto literalmente como, por extensão metafórica, referindo toda uma estrutura de sensibilidade individual e de controlo institucional. As normas de estilização negam a crua realidade material das coisas consumidas e do acto de consumi-las. Estas normas de estilo correcto exprimem, através da representação, uma distinção social e historicamente específica entre a civilização e a natureza. Finalmente, as técnicas do corpo, tais como as que são exemplificadas pelo 24

Sobre o conceito de capital simbólico, ver P. Bourdieu, Distinction: A Social Critique ofthe fudgement ofTaste (trad. R. Nice, Londres, 1984).

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c o m p o r t a m e n t o gestual dos italianos d o Sul, n ã o seriam possíveis sem a memória cognitiva q u e os actores têm d e u m léxico c o m u m . Este vocabulário gestual, q u e c o m p r e e n d e pelo m e n o s cento e cinqüenta itens, é u m sistema referencial. As p r ó p r i a s coisas e idéias a que as palavras q u e o a c o m p a n h a m se referem são ilustradas através d e u m reportório de m o v i m e n t o s automaticamenteexecutados. Em cada u m destes casos, os actores são recordados de algo com conteúdo cognitivo. Mas também, em cada caso, é através do acto de representação q u e o recordam. As práticas corporais d e u m a espécie culturalmente K"j específica envolvem uma combinação da memória cognitiva e da memóriahábito. A execução adequada dos movimentos contidos n o reportório d o grupo não só recorda aos actores os sistemas de classificação que o grupo considera importantes, como exige também o exercício da memória-hábito. Nas representações, as classificações e máximas explícitas tendem a ser tomadas como certas na medida em que forem recordadas como hábitos. Na verdade, é precisamente porque aquilo que é representado é algo a que os actores estão habituados que o conteúdo cognitivo daquilo que o grupo recorda em c o m u m exerce uma força tão persuasiva e persistente.

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N ã o basta demarcar o âmbito e discriminar os tipos d e comportamento que cabem na categoria das práticas incorporadas, precisamos também de verificar como essas práticas são incorporadas, isto é, precisamos de compreender a sua qualidade de hábito. Consideremos o comportamento do Saint-Loup, de Proust, tal como é observado por Mareei, o narrador: Por outro lado, havia momentos em que o meu espírito distinguia em Saint-Loup uma personalidade mais indefinida do que a sua, a qual movia os seus membros e ordenava os seus gestos e as suas acções como se fora um espírito residente: a personalidade do "fidalgo". Nessas alturas, então, ainda que estivesse na sua companhia, eu ficava só, tal como o estaria frente a uma paisagem cuja harmonia pudesse entender. Ele não era mais do que um objecto, cujas propriedades, no meu devaneio, eu procurava explorar. A descoberta que nele fizera deste ser preexistente, imemorial, deste aristocrata que era exactamente aquilo que Robert aspirava a não ser, deu-me intensa alegria, mas urna alegria mais do espírito óo que dos sentidos. Na agilidade moral e física que conferia tanto encanto à sua simpatia, na desenvoltura com que ofereceu a sua carruagem à minha avó e a ajudou a entrar, na alacridadecom que saltou da boleia, ao temer que eu estivesse com frio, para lançar a sua própria capa sobre os meus ombros, eu não senti apenas a flexibilidade herdada dos poderosos caçadores que eram, há várias

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gerações, os antepassados deste jovem que não tinha pretensões a não ser à intelectualidade, o seu desdém pela riqueza, que subsistia nele lado a lado com o deleite em possui-la simplesmente porque isso lhe permitia acolher mais prodigamente os amigos, levando-o a derramar tão descuidadamente os seus bens aos pés destes. Eu apercebia-me, sobretudo, da certeza, ou da ilusão, existente nos espíritos daqueles grandes senhores, de serem "melhores do que os outros", graças à qual não haviam sido capazes de transmitir a Saint-Loup essa ansiedade em mostrar-se que "se é tão bom como o vizinho do lado", estando ele, de facto, totalmente inocente do temor de fazer isso demasiadas vezes, o qual prejudica com tanta afectação e deselegância a civilidade plebéia por mais sincera que esta seja.25 Mesmo que subtraiamos mentalmente a esta descrição o snobismo social que a anima e a teoria das'características herdadas que nela se encontra incrustada e, relegando estes aspectos de encómio e de explicação, consideremos esta passagem tanto quanto possível estritamente como uma descrição, o leitor sentirá certamente que ela contém um elemento que é simultaneamente preciso e exacto. O aspecto da citação que eu desejo realçar é o caracter corporificado do objecto descrito. A maior parte dos itens de comportamento e das qualidades de caracter assinaladas em seu louvor são apresentadas quer directamente, como formas particulares de movimento e de expressão corporal, quer de maneiras que seriam normalmente identificadas, pelo menos em parte, por meio dessas expressões corporais. Deste modo, algo "como um espírito residente movia os seus membros" e "ordenava os seus gestos e as suas acções", revelando-se na "agilidade moral e física", na simpatia imbuída de "encanto", na ajuda oferecida com "desenvoltura" e "alacridade"; e essa total realização de "desenvoltura" e "flexibilidade" induz o espectador, Mareei, a contrastála com a "afectação" e a "deselegância" que observa naquilo a que chama "civilidade plebéia". As palavras e frases aqui reunidas são retiradas principalmente das impressões que Mareei forma de Saint-Loup no contexto da sua presença corporal. O comportamento de Saint-Loup não impressiona Mareei apenas em virtude das qualidades que deixa transparecer. Aquilo que o leva a reparar particularmente nessas qualidades é o facto de Saint-Loup desejar Conscientemente repudiar certas características da vida do aristocrata. Proust mostranos que este repúdio consciente é desmentido à primeira impressão. O caracter impressivo do efeito criado pelo comportamento de Saint-Loup reside, pelo menos em parte, no contraste entre uma idéia de comportamento ("o aristocrata que era exactamente aquilo que Robert aspirava a não ser") e 25

M. Proust, Remembrance ofThings Past (trad. C. K. Scott Moncrieff e T. Kilmartin, Londres, 1981), Vol.I,pp. 791-2.

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o comportamento em si (o "fidalgo" que, no interior de Saint-Loup, "como um espírito residente, movia os seus membros, ordenava os seus gestos e as suas acções"). Este contraste entre uma idéia e uma prática de comportamento surge sob a forma do contraste entre uma "desenvoltura" que é natural e uma "desenvoltura" que é "forçada". A que se chama natural é vista como tal devido à espontânea indiferença dos modos e ao fluxo regular da representação. A que se chama forçada é entendida como tal devido à presença evidente nesse comportamento, que pretende mostrar desenvoltura, de "notas em falso", meros sinais de uma maneira de se comportar: uma referência ansiosa àquilo que se considera como norma legítima, uma inquietação quanto ao modo correcto a adoptar, um respeito por um código cultural que é mais reconhecido do que conhecido. A observação do contraste entre uma desenvoltura de maneiras que se chama natural e uma outra que se chama forçada é importante porque esse contraste não pode ser apropriadamente expresso dizendo-se que os dois tipos de comportamento obedecem a dois códigos diferentes, ou dizendo-se que um tipo obedece a um código de comportamento elaborado, enquanto o outro obedece a um código restrito. A observação que Mareei faz do comportamento de Saint-Loup mostra-nos que nenhum conceito de código de performances corporais, por muito elaborado que se imagine ser esse código, pode englobar o objecto descrito quando este é uma prática de comportamento corporal, pois a distinção essencial que Proust aqui faz refere-se não à série de possibilidades que o código em questão tornou potencialmente disponíveis, mas antes ao contraste bastante diferente entre ser-se capaz de reconhecer um código e ser-se capaz de o incorporar.26 A descrição de Proust lembra-nos que nós avaliamos se um código de prática corporal é meramente reconhecido, ou, em alternativa, verdadeiramente incorporado, sobretudo pelas impressões que formamos das pessoas através da sua presença e acções corporais. As impressões criadas pela conformação física e o porte corporal são as manifestações do indivíduo menos susceptíveis de modificação deliberada, sendo este o motivo por que consideramos que elas se identificam com a "natureza" habitual do indivíduo. A desenvoltura de Saint-Simon resulta da sua confiança na capacidade de incorporar o corpo socialmente legítimo e, por conseqüência, da sua capacidade para impor as normas pelas quais o seu próprio corpo é visto e aceite pelos outros, é o corpo de alguém habituado a mandar. Por isso as 26

Sobre a distinção entre ''conhecer" e "reconhecer", ver ainda P. Bourdieu, "Remarques provisoíressur Ia perceptiondu corps"r Actcs de Ia Recherehe en Sciences Sociales, 14 (1977), pp. 51-4; Bourdieu, "Laproduction de Ia croyance:contributionà uneéconomiedcsbicns symboliques", Actcs de Ia Recherche en Sciences Sociales, 13 (1977), pp. 3-44; P. Bourdieu c J. C. Passeron, Reproduction in Education, Society and Cuíture (trad. R. Nice, Londres, 1977); Bourdieu, OutUneafa Theory of Prnetice (trad. R. Nice, Londres, 1977); Bourdieu, Dfctinctkm (trad. R. Nice, Londres, 1984).

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controvérsias políticas recorrem tão freqüentemente à caricatura visual, na qual a imagem corporal dos governantes é fisicamente distorcida. A caricatura deforma com o intuito de ridicularizar a imposição de uma autoridade corporizada. É uma versão dessa autoridade corporizada que Saint-Loup encarna não pela execução mecânica dos códigos ou pela aplicação meticulosa das regras, o que teria prejudicado o efeito exemplar, mas pela desenvoltura prestigiosa da sua performance experiente. O pólo oposto da desenvoltura de Saint-Loup é o constrangimento pequeno-burguês. Este é originado pelo sensação contínua de um fosso entre o corpo socialmente legítimo e o corpo que uma pessoa tem e é. Incapaz de incarnar um modelo reconhecido, tenta-se em vão compensar essa incapacidade através da proliferação de sinais de controlo corporal. É por isso que a vivência pequeno- -burguesa do mundo é caracterizada pela timidez e pelo embaraço: o embaraço daqueles que sentem que os seus corpos os traem, que vêem os seus corpos, por assim dizer, a partir de fora e através dos olhos avaliadores dos outros, vigiando e corrigindo as suas práticas. Também este é um hábito de performance, mas é uma experiência habitual do corpo como condição de embaraço, como fonte perpétua de falta de jeito, como a ocasião, por demais tangível, para se experimentar uma fissura entre o corpo que se desejaria ter e o que se vê quando se olha para o espelho: uma fissura da qual se é perpetuamente recordado tanto pelas reacções dos outros, como pelo processo de autocontrolo pelo qual se nota e tenta rectificar o fosso entre o corpo socialmente legítimo e aquele que se possui. Vejamos agora uma citação onde se descrevem as dificuldades de alguém que começa a aprender a tocar jazz ao piano: A música não era minha. Continuava a soar à minha volta. Encontrava-me no meio da música como um recém-chegado que se perdeu e dá repentinamente * consigo no meio de um cruzamento de ruas de sentido proibido, na Cidade do México, mas sem encontrar na situação um humor particular... Comecei por uma escala ascendente rápida, atabalhoada e nervosa; chegada a vez do acorde seguinte, tive de voltar a precipitar-me para baixo, para o meio do teclado, para conseguir fazer aquilo que sabia ser correcto, e depois veio o acorde seguinte. A minha mão saltava de um lado para o outro, como Chaplin dando estocadas ao acaso com as suas chaves-inglesas... Precisava ocasionalmente de utilizar a visão para manter o terreno debaixo de olho, para auxiliar os grandes saltos necessários para ir de uma parte para a outra, uma visão que sentia frenética, como se, com grande pressa, procurasse um lugar de estacionamento. A música estava, literalmente, fora de mão. 27

D. Sudnow, Wai/s of the Hand: The Organization of Improvised Conduct (Londres, 1978), pp. 30-3.

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Esta é uma das muitas passagens em que David Sudnow analisa as tentativas que fez, durante mais de cinco anos, para tocar jazz. Durante esse período teve muitas ocasiões para meditar sobre os fracassos daquilo a que chama, numa bela frase, o controlo da conduta improvisada. A minuciosa observação dos seus movimentos corporais permite-lhe mostrar como toda uma variedade de capacidades em expansão, de formas coordenadas de olhar, de mover, de tocar, de pensar, têm de ser desenvolvidas para uma pessoa conseguir executar seqüências de acordes correctas. Imaginemos apenas o seguinte item do reportório: a seqüência dos acordes A e B, situados em zonas opostas do teclado. Para tocar A é necessário ter a mão fortemente comprimida; para tocar B é preciso estender a mão com grande amplitude. Para tocar A tem de alinhar-se o corpo com o teclado, como se faz com uma máquina de escrever, de forma a estabelecer contacto com uma posição central; para tocar B é preciso ajustar o eixo da mão relativamente ao teclado, com o dedo mindinho a afastar-se mais do centro corporal do que o polegar. A distância entre A e B não pode simplesmente ser transposta, tem de ser percorrida, espontaneamente, de uma maneira específica. Para ir correctamente de A para B, a mão, na verdade o corpo todo, tem de ser direccionada, desde o início, não apenas para onde B se encontra — a mão tem de preparar-se, durante a viagem, para aterrar em B na forma adequada e no momento correcto. Enquanto a mão se move de A para B deve provocar-se uma pequena alteração na sua forma. Todo um conjunto de diminutos ajustamentos têm de ser realizados espontânea e simultaneamente, envolvendo a reconfiguração apropriada da mão e um leve reajustamento do corpo. Os principiantes vão de A para B de uma forma desconexa. Tocam A e partem para B sem se lançarem para ele da forma correcta, desde o princípio, sem se deslocarem para B, no seu todo, no tempo correcto. Antes de adquirirem destreza, os principiantes procuram e debicam no teclado, os seus dedos hesitam e perdem a posição. Sentem continuamente uma separação entre o "ele'' do piano e o "eu" do pianista. Um pianista mais experiente, ao tocar um trecho rápido e intrincadamente sinuoso, bem como a sua reiteração, aproximar-se-á muitas vezes da perfeição, mas falhará ligeiramente, terá a sensação de "lutar para fazer com que aconteça", "soará como alguém que se esforça duramente por dizer qualquer coisa". Sudnow sugere várias analogias para esta experiência de desconexão. As improvisações falhadas são arruinadas da mesma maneira que quando se apanha, pela primeira vez, o jeito de uma habilidade complexa, como andar de bicicleta ou esquiar; a tentativa de conservar um controlo fácil dessa habilidade falha, "luta-se por manter o equilíbrio, por não cair, e então, quase de repente, ocorrem várias rotações dos pedais, parece que a bicicleta arranca por si própria, tenta-se aguentá-la e ela desintegra-se". Estes improvisos ensaiados trazem à memória as confusões de Charlie Chaplin na linha de montagem de Tempos Modernos. A correia transportadora traz continuamente uma infindável colecção de

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porcas e de parafusos para serem apertados; ChapUn segura duas chaves -inglesas nas mãos, atrasa-se, corre para recuperar, aperta porcas e parafusos ainda mais depressa, esforçando-se por se adiantar, falha um ou dois porque ficou frenético, é projectado através de um corredor numa dança convulsiva. Ou, uma vez mais, a diferença entre tentar tocar jazz desconexamente e conseguir atingir a sensação de tocar com êxito é semelhante à diferença entre as tentativas "do afásico, do gago, de alguém com danos cerebrais, ou do estrangeiro" para construir uma frase.escorreita e "a elocução fluente da criança competente de três anos". O que significa conseguir-se esta elocução fluente? Significa que o processo de procurar as notas, a busca e a descoberta explícitas de lugares reconhecíveis e visualmente compreendidos lá fora, se tornou redundante. Significa que se adquiriu, a partir da posição habitual, a meio do piano, um sentido incorporado dos lugares, das distâncias e das pressões. Ser capaz de se sentar a um piano e obter uma orientação inicial através do mais leve toque "em qualquer lado" do teclado; levar o dedo com precisão a um lugar "dois pés à esquerda", em que meia polegada, ou uma pressão diferente à chegada, seriam u m erro; deslocar-se mais "dezassete polegadas" e tocar outra nota de forma igualmente precisa; andar mais "vinte e três polegadas" com a mesma precisão; executar todos estes movimentos tão rápida e espontaneamente como quando, recebendo ordem para tocar na orelha, ou no joelho, se move a mão em direcção à orelha, ou ao joelho, pelo caminho mais curto e sem se ter de pensar na posição inicial da mão, ou da orelha, ou do percurso entre eles; estar-se tão familiarizado com um terreno de mãos e teclado que as suas superfícies se tornam tão intimamente conhecidas como as superfícies respectivas da língua, dos dentes e do palato: fazer tudo isto, que significa dominar uma série de competências que qualquer músico de jazz competente tem sob o seu comando, é possuir um conhecimento habitual — poderia dizer-se igualmente uma recordação — nas mãos. É ter, como diz Sudnown, "uma maneira incorporada de vencer as distâncias" que só pode ser adquirida através de "um longo percurso de incorporação". 28 Aquilo que aprendemos com os exemplos descritos por Proust e Sudnow pode agora ser sintetizado em certas proposições gerais sobre a natureza do hábito, tal como este afecta a prática incorporada. Os hábitos são mais do que competências técnicas. Quando pensamos no comportamento habitual em termos de andar, nadar, tricotar e escrever à máquina, temos tendência para pensar nos hábitos como capacidades, competências técnicas de diversos graus de complexidade, que se encontram à nossa disposição mas que existem à margem dos nossos gostos ou aversões e carecem de qualquer qualidade de premência, de impulsão, ou de disposição afectiva marcada. Pensamos neles como capacidades que esperam ser 28

Ibidem, pp. 12-13.

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chamadas à acção na ocasião apropriada. Dewey sugere que, se quisermos apreciar o lugar peculiar e a força do hábito nas nossas actividades, deveremos considerar o caso dos maus hábitos: a dependência do álcool e das drogas, a compulsão para jogar e o mandriar. Quando reflectimos sobre esses hábitos ficamos impressionados pelo papel que o desejo desempenha no comportamento habitual, pois aquilo que podemos observar claramente, no caso dos maus hábitos, é o domínio que exercem sobre nós, a forma como nos impelem para certas acções. Estes hábitos implicam uma tendência interiorizada para agir de uma certa maneira, um impulso suficientemente forte para nos levar habitualmente a fazer coisas que dizemos a nós próprios preferir não fazer e a agir de maneiras que desmentem, ou atropelam, as nossas decisões conscientes e as nossas resoluções formais. Aquilo que Dewey defende é que estas características não são específicas de uma classe particular de maus hábitos e que são precisamente os aspectos mais instrutivos sobre todos os hábitos.29 Eles lembram-nos, tal como as reflexões de Mareei Proust e de David Sudnow sobre as competências habituais, que todos os hábitos são disposições afectivas, que uma disposição formada através da repetição freqüente de uma série de actos específicos é uma parte íntima e fundamental de nós próprios, que esses hábitos têm poder exactamente porque fazem intimamente parte de nós próprios. Um hábito é mais do que uma disposição. Melhor do que o termo disposição, a palavra hábito permite-nos referir aquele tipo de actividade em que um grupo de características estão reunidas para formar uma prática: uma actividade que é adquirida no sentido em que é influenciada por uma actividade anterior, que está pronta para se manifestar abertamente e que se conserva operativa, de uma forma mitigada, mesmo quando não é a actividade obviamente dominante. Poderíamos escolher a palavra disposição para expressar tudo isto, mas essa escolha seria um pouco enganadora. O termo disposição sugere algo latente ou potencial, algo que necessita de um estímulo positivo exterior a nós próprios para ficar activamente envolvido. O termo hábito transmite o sentido de operatividade de uma actividade continuamente praticada e também a realidade do exercício, o efeito consolidador dos actos que se repetem. Esta é a característica do hábito posta em evidência ao considerarem-se competências técnicas cujo exercício diminui a atenção consciente com que realizamos os nossos actos. Quando estamos a aprender a andar, nadar, andar de bicicleta, patinar ou cantar, interrompemo-nos freqüentemente com movimentos desnecessários, ou notas em falso. Quando nos tornamos peritos os resultados surgem com o mínimo de acção muscular, fluem a partir de uma única deixa. Através do exercício, o corpo passa a coordenar um número crescente de actividades musculares de forma cada 29

W. Dewey, Humon Nnturc am1 Conduct: An fntroduction to Social P*ycholo$v {Londres, lc)22).. pp. 24-5.

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vez mais automática, até que a consciência recua, o movimento flui ''involuntariamente" e ocorre uma seqüência firme e experimentada de actos que seguem o seu curso fluente. Os feitos dos acrobatas e dos malabaristas ilustram uma versão extrema deste facto, tal como o fazem as destrezas prestigiosas descritas por Proust e Sudnow. Mas o exercício automático pode ser simultaneamente banal e prestigioso e, em vez de suave e harmonioso, pode ser habitualmente desajeitado e desarmonioso. Os padrões de utilização do corpo tornam-se arreigados através da nossa interacção com os objectos. Há os movimentos aparentemente automáticos, duradouros e familiares dos artesãos, a forma como um carpinteiro maneja uma plaina e o tecelão usa um tear, tão habituais que, se lhes perguntassem, eles diriam que "sentiam" como operar adequadamente a ferramenta que tinham entre mãos. Há as maneiras impostas pelo trabalho realizado com uma máquina, ou numa secretária, que reforçam um conjunto de comportamentos, a nível da postura, que tendemos a encarar como "próprios" do operário fabril ou do sedentário empregado de escritório. As posturas e os movimentos que são memórias-hábito ficam sedimentados na conformação corporal. Os actores podem mimar as impressões, os médicos podem examinar os resultados. Acima de tudo, portanto, o hábito não é apenas um símbolo. A experiência corporizada, de que as práticas habituais constituem uma parte significativa, foi submetida recentemente a um imperialismo cognitivo e interpretada com base no modelo da significação lingüística. A sociedade, concebida à imagem e semelhança da linguagem, assumiria o papel de dotar de significado os corpos físicos e os comportamentos dos indivíduos. O corpo, reduzido ao estatuto de símbolo, transmitiria significado dado ser um veículo altamente adaptável à expressão de categorias mentais. Certas metáforas da actividade corporal, como "cair" em erro, são vistas como a expressão de um conceito em termos de uma imagem corporal. Isto corresponde a ver o entendimento como um processo em que um dado dos sentidos está subsumido a uma idéia, e a ver o corpo como um objecto que transporta significados de forma arbitrária. Porém, e como Marleau-Ponty notou correctamente, o fenômeno do hábito devia induzir-nos a rever a nossa noção de "compreender" e a nossa noção de corpo.30 Saber dactilografar, por exemplo, não significa conhecer o lugar de cada letra nas teclas, nem haver adquirido um reflexo condicionado para cada letra que seria desencadeado sempre que cada uma dessas letras surgisse perante os nossos olhos. Sabemos onde as letras se encontram na máquina de escrever do mesmo modo que sabemos onde estão os nossos membros e lembramo-nos disso através do conhecimento gerado pela familiaridade do espaço em que vivemos. O movimento dos dedos da dactilógrafa pode ser descritível, contudo não se lhe apresenta como uma trajectória no espaço que se possa 30

M. Merleau-Ponty, Phenomenology ofPerception (trad. C. Smith, Londres; 1962), p. 144.

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descrever, mas como um certo ajustamento da sua mobilidade. Neste exemplo, uma prática com significado não coincide com um símbolo. O significado não pode ser reduzido a um símbolo que existe num "nível" separado, exterior à esfera imediata das acções do corpo. O hábito é um conhecimento e uma memória existente nas mãos e no corpo. Ao cultivarmos o hábito, é o nosso corpo que "compreende".

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Há já muito tempo que é reconhecido que tanto as práticas de incorporação como as de inscrição podem ser objecto da nossa actividade interpretativa. Este reconhecimento remonta, pelo menos, à proposta de Schleiermacher de uma hermenêutica geral. Actualmente, a interpretação é vista como a compreensão explícita e consciente dos significados, em que já não se pode presumir que a compreensão desses significados seja um processo em si mesmo evidente, mas antes intrinsecamente problemático. Assume-se que os equívocos sobre aquilo que procuramos interpretar surgirão não de forma ocasional, mas sistemática. A nossa actividade interpretativa não está também amarrada a qualquer matéria em particular. A unidade da hermenêutica reside na unidade de um procedimento que é aplicável a qualquer objecto e a qualquer prática capazes de serem portadores de um significado. As obras de arte, as composições musicais, as representações teatrais, os actos rituais, as moedas, os monumentos e utensílios pré-históricos, as expressões corporais, os gestos, as posturas e os movimentos — a proposta de Schleiermacher torna-os explicitamente, todos eles, objectos possíveis de uma actividade interpretativa. 31 Todavia, embora as práticas incorporadas estejam em princípio incluídas como objectos possíveis da análise hermenêutica, na prática a hermenêutica tomou a inscrição como seu objecto privilegiado. A hermenêutica nasceu da filologia e, no decurso da sua história, tem regressado à filologia, isto é, ao tipo de relação com a tradição que se focaliza na transmissão do que ficou inscrito nos textos ou, no mínimo, na transmissão de documentos e de monumentos aos quais é atribuída autoridade porque se considera que têm um estatuto comparável ao dos textos, ou seja, que são constituídos à imagem e semelhança dos textos. Schleiermacher, que fundou uma teoria geral da interpretação, era o exegeta do Novo Testamento e o tradutor de Platão. Dilthey, autor de uma conhecida crítica da razão histórica, situava a especifici31

As abordagens clássicas deste ponto de viragem da história da hermenêutica encontram-se em H. G. Gadamer, Truth tmd Method (Londres, 1975);E. Bettí, "ZurGrundlegungeincr allgemeinen Auslegungsiehre", in Festschrift fur Ernst Rabel (Tubingen, 1954), Vol. H. pp. 79-168; E. Betti,, Allgemeine Auslegungsiehre ais Methodik der Geistesivissenschaften (Tubingen, 1%7).

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dade da interpretação (Auslegung), em contraste com a compreensão directa (Verstehen), no fenômeno da fixação pela escrita e, de forma mais geral, pela inscrição. Também Ricoeur, que insiste na centralidade da hermenêutica para as ciências humanas como um todo, comenta, a respeito do caracter peculiar da obra escrita, à qual a hermenêutica tradicional atribuía a autoridade de modelo, que aquele residia na capacidade de a escrita transcender as condições sociais da sua produção e recepção, abrindo-se assim a um número potencialmente ilimitado de leituras socialmente situadas. 32 As inscrições e, logo, os textos eram objectos privilegiados de interpretação porque a própria actividade de interpretação se tornou em objecto de reflexão, em vez de ser pura e simplesmente praticada num contexto particular. Como processo cumulativo, a reflexão sobre a prática da interpretação surgiu, na moderna cultura européia, em resultado da tentativa de compreender o que, nessa cultura, havia sido legado do passado. A actividade de interpretação só veio a surgir como problemática, secundária e subseqüentemente sob a forma de tentativas para compreender culturas não européias geograficamente distantes. Um reconhecimento específico de que só podemos transmitir uma tradição se conseguirmos interpretar essa tradição tomou forma quando a prática de transmitir a substância tradicional da cultura européia deixou de ser evidente por si mesma e se tornou numa questão de discórdia sistemática. Mas isso aconteceu porque essa substância tinha uma certa forma. Aquilo que é transmitido sob a forma de texto, dentro de uma única cultura, é transmitido como nenhuma outra coisa que nos chegue do passado dessa cultura. Desligado simultaneamente dos seus produtores e de quaisquer receptores específicos, um texto pode ter uma vida própria, goza de uma autonomia cultural relativa. É a idealidade da palavra que eleva os objectos lingüísticos para além da finitude e da transitoriedade dos vestígios da existência passada. Aquilo que ficou fixado pela escrita entra numa esfera de significados publicamente acessíveis, os quais podem potencialmente ser partilhados por todos os que a posteriori, puderem ler esse escrito. Este é principalmente o caso de dois tipos de texto. A jurisprudência e a teologia são no essencial procedimentos hermenêuticos, porque ambos dependem da exegese de enunciados escritos. A hermenêutica legal ocupa-se da interpretação de princípios de comportamento que têm de ser observados como critérios para a avaliação do comportamento social, no âmbito de uma ordem legal legítima. A hermenêutica teológica é uma forma de interpretação cujos princípios e limites estão prescritos por uma escritura sagrada e pela maneira como o intérprete dessa escritura está limitado pela adopção de um sistema de crenças religiosas. Em ambos os casos, tanto na interpretação legal 32

Ver P. Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences (trad. J. B. Thompson, Cambridge, 1981), p. 91.

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como na teológica, a aplicação é um elemento integrante da compreensão. Tanto na hermenêutica legal como na teológica, existe uma tensão entre, por um lado, o texto escrito, seja ele um regulamento legal ou uma proclamação religiosa, e, por outro, o significado a que se chega pela aplicação daquele texto no momento particular da interpretação presente, seja no julgamento legal ou na pregação e na liturgia. Nem um sistema legal nem uma proclamação religiosa podem ser meramente entendidos como documentos históricos. Um sistema legal tem de tornar-se concretamente válido no presente através da interpretação. Considera-se que uma proclamação religiosa, no próprio processo em que é proclamada, exerce um efeito salvador. Em ambos os casos, a acção de interpretação é, em princípio, normativa, assim como o processo de compreensão é um acto de aplicação.33 Mais especificamente ainda, dois textos têm figurado em lugar de destaque na história da hermenêutica — a Lei Romana e a Sagrada Escritura. O destino mutável da interpretação foi, em ambos os casos, surpreendentemente análogo. A Lei Romana, tal como ficou conhecida a partir do Código de Justiniano, teve autoridade como colecção vinculativa de proposições legais durante quase mil anos.34 Na Baixa Idade Média, em particular, a ciência legal secular estava quase totalmente focalizada na exegese da Lei Romana. Em Bolonha, os seus componentes foram cotejados e organizados num texto que permaneceu, até ao século XVI, como edição modelo do Corpus Júris, e foi através do estudo deste texto que os conceitos romanos foram adaptados às necessidades da Europa medieval. Mas este processo de assimilação dependia de premissas que nunca foram sistematicamente examinadas. Partia-se do princípio de que a Lei Romana do Baixo Império era um sistema perfeito, um todo auto-suficiente e internamente consistente cujas normas eram universalmente válidas. Partia-se igualmente do princípio de que a Lei Romana, tal como ensinada aos juristas medievais, era idêntica à lei de Roma, tal como Justiniano a entendia. Estas premissas baseavam-se, por seu lado, numa certa idéia de Roma. Os comentadores acreditavam que o Imperium Romanum de Justiniano nunca tinha desaparecido, pensava-se que a sua legislação permanecera directamente em existência no império cristão, continuando por isso a ser válida. Devido à suposta identidade metafísica do Corpus Christianum e do Império Romano, julgava-se que o mundo em que as pessoas viviam era ainda legalmente o mesmo que o do antigo império. 33

34

Sobre a analogia entre a hermenêutica legal e a hermenêutica teológica, ver E. Betti, "Zur Grundlegung einer allgemeinen Ausíegungslehre", in Festschrift für Enist Robcl (Tübingen, 1954), VoI.II, p. 145; J. Wach, Das Verstehen (Hildesheim, 1966), Vol.II, pp. 60-1, 183 e seguintes. Sobre as interpretações medievais da Lei Romana, ver R Koschaker, Europa und das Rõmische Recftt (Munique, 1966); Q. Skínner, The Foundations of Modem Polítical Thought (Cambridge, 1978), Vol. I, pp. 9-12.

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Estas suposições foram arruinadas pela obra dos juristas do humanismo. Impressionados pela autoridade da Lei Romana, queriam recuperar o significado original exacto dos seus textos legais e, para o fazerem, partiram à redescoberta dos significados precisos de todas as palavras técnicas e obscuras contidas nos textos através do estabelecimento dos diversos significados que essas palavras possuíam nos antigos textos legais e noutras obras da antigüidade. O texto original de Justiniano estava, segundo descobriram, eivado de acrescentos, havia-se tornado duplamente deformado, pois fora distorcido pelos compiladores bizantinos originais, que, sem o saberem, tinham resumido e alterado os textos clássicos. Fora também distorcido pelos posteriores comentadores escolásticos, que haviam obscurecido ainda mais a estrutura original do corptts com as suas glosas minuciosas. O efeito da purificação filológica foi o inverso da intenção que a animara e, querendo melhorar, no início, a jurisprudência da Lei Romana, os humanistas acabaram por destruir as premissas sobre as quais esta se alicerçava. Este resultado teve um aspecto negativo e outro positivo. Negativamente, levou os juristas do humanismo à conclusão de que o Código de Justiniano não era perfeito, nem completo, descobrindo, pelo contrário, que muita da prática jurídica romana fora nele omitida ou imperfeitamente registada, que aquilo que havia sido incluído era, muitas vezes, incoerente e que muitas dessas leis, reunidas sem rigor, diziam respeito a exigências específicas da Roma Antiga, tendo pouco a ver com as condições legais diversas da Europa da sua época. Positivamente, isto levou os juristas do humanismo a reconstruírem historicamente a civilização da Roma Antiga como uma cultura totalmente separada da deles próprios. O sistema da Lei Romana era suficientemente exaustivo para oferecer uma descrição pormenorizada e sistemática das instituições e idéias principais da sociedade da qual constituía parte tão significativa. Não era possível remeter a língua da Lei Romana aos seus significados originais sem reconstruir também uma imagem da sociedade da Roma imperial como um todo. A proximidade da atenção filológica que trouxeram para os seus textos aumentou o seu sentimento de distância histórica relativamente a esses textos. 35

A história da interpretação teológica percorreu uma trajectória paralela e também neste caso um texto canónico gozou de autoridade durante um longo período. 36 A tradução latina das Escrituras por Jerónimo, datada de 35

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Sobre os juristas do humanismo e o estudo da Lei Romana, ver D. R. Kelley, "Legal Humanism and the Sense of History", Studies in the Renaissance, 13 (1966), pp. 184-99; Kelley, Foundations ofModern Historical Scholarship: Language, Law and History in the French Renaissance (Nova Iorque, 1970); Kelley, "Vera Philosophia: The Philosophical Significance of Renaissance Jurisprudence", The Journal of the History of Philosophyf 14 (1976), pp. 267-79; Q. Skinner, The Foundations ofModern Political Tliought (Cambridge, 1978), I, pp. 105-6,11,269-72,290-3. Sobre a interpretação medieval da Bíblia, ver W. Schwarz, Principies and Problems ofBiblical

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cerca de 400, foi a Bíblia oficial da Igreja do Ocidente durante toda a Idade Média. Quase todos os comentários bíblicos se baseavam no texto latino, sem olhar à redacção nas línguas originais e, sempre que se fazia uma tradução para língua vernácula, era aquele texto que servia de original. A longevidade desta autoridade fundamentava-se na premissa de que se tratava de uma reprodução fiel, definitiva e santa da Sagrada Escritura, a qual não devia ser alterada. Esta versão oficial da Bíblia era respeitada pelo conhecimento de que os pais e os avós haviam lido e proferido as mesmas palavras que as gerações posteriores. As línguas vivas podiam mudar, mas a estabilidade da crença religiosa exigia que a redacção da Sagrada Escritura fosse permanente. A língua arcaica podia levar a que palavras isoladas, ou até passagens inteiras, não fossem já totalmente compreendidas, mas as pessoas sentiam-se tranqüilizadas pelo pensamento de que a vida era vivida, por assim dizer, como citação. A conseqüente hostilidade contra qualquer tentativa para mudar o texto da Vulgata foi reforçada pela maneira como a interpretação medieval era assimilada no estudo do texto. Grandes construções exegéticas puseram de acordo todas as declarações da Bíblia e todas as diferentes interpretações dos Pais da Igreja. A Bíblia Latina comentada, editada em Basiléia no ano de 1498 e reeditada em 1502, ilustra este procedimento. A própria disposição das suas páginas revela o princípio operativo. Ao centro de cada página fica o texto da Bíblia, impresso em letras grandes, e entre as linhas, em letras pequenas, encontra-se impressa a interpretação. Os comentários, que freqüentemente ocupam mais espaço do que as passagens que interpretam, estão impressos o mais próximo possível do texto bíblico, pois a intenção é que este seja lido de acordo com a tradição da exegese que acompanha a versão latina oficial da Bíblia. Esta premissa foi minada pela filologia dos humanistas, que procuravam reconstituir o contexto histórico exacto dos textos bíblicos realizando traduções novas e mais precisas dos antigos escritos gregos e hebraicos/ 7 Valia anunciou que os filólogos se podiam pronunciar sobre questões doutrinais, visto que ninguém tinha o direito de interpretar a Bíblia a não ser que a pudesse ler no grego ou no hebreu originais. Reuchlin discutiu as palavras da Escritura como gramático, propondo um método de leitura que investigava a origem do significado de cada palavra no hebreu original. Erasmo publicou uma versão da Bíblia na qual o texto grego se encontrava impresso lado a lado com a sua nova tradução, onde explicava, em anotações finais, onde e porquê, precisamente, a sua versão rejeitava o texto da Vulgata. O conhecimento mais detalhado do Novo Testamento, que surgiu a partir

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Translation (Cambridge, 1955); Q. Skinner, The Foundation^ af Modem Política! Thought (Cambridge, 1978), I, pp. 208-9. Sobre a interpretação humanista da Bíblia, ver W. Schwarz, Principies and Problems oi Bíblica! Translation (Cambridge, 1955); Q. Skinner, The Foundations of Modem Política! Vwught (Cambridge, 1978), í, pp. 209-12.

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de toda esta actividade, foi minando a autoridade da Vulgata e pôs em causa o papel da Igreja, A Vulgata começou a ser abalada a partir do momento em que foi revelado que muitas suposições anteriores sobre a história dos documentos das Escrituras, sobre a sua autoria, por exemplo, eram invenções, e desde essa altura os filólogos puderam demonstrar a inexactidão do texto sobre o qual se baseavam os comentários medievais. A Igreja foi questionada porque a visão bíblica do mundo se revelou muito diferente do m u n d o daqueles que a comentaram e porque a organização e as reivindicações contemporâneas do papado acabaram por ser encaradas como estando seriamente em desacordo com as instituições e os ideais originais da Igreja primitiva. Dois processos homólogos ocorreram no estudo da Lei Romana e da Bíblia, processos esses que nasceram de uma intenção semelhante e chegaram a um resultado comparável. Os intérpretes medievais e humanistas assemelhavam-se no reconhecimento da Antigüidade como modelo e norma ao aceitarem os seus ensinamentos e cânones como autoridade, diferindo, no entanto, quanto aos métodos escolhidos para a compreender. Os intérpretes medievais adoptavam um método de assimilação, síntese e alegoria. Não sentiam qualquer necessidade de distinguir o texto e o comentário, de investigar a maneira como a vida do passado diferia da do presente, ou de * estabelecer um método sistemático que os habilitasse a fazerem-no. Em vez disso, adoptaram aquilo a que Panofsky chamou "um princípio de disjunção": uma disjunção entre o emprego de formas clássicas e a insistência de que essas formas continham mensagens com significação contemporânea. 38 Isto levou a uma combinação imaginosa entre a vida da Antigüidade e a do mundo contemporâneo. Os intérpretes humanistas apelaram a um regresso ao texto genuíno e isto levou-os a confrontarem-se com uma série de problemas que jamais haviam sido considerados de forma sistemática. Surgiram questões relativas aos testes de autenticidade documental, à autoridade relativa de diferentes tipos de textos, às indicações da tendência de um autor e à base lógica das nossas crenças sobre o passado. Do tratamento destes problemas apareceu um método para o estabelecimento da autenticidade dos documentos, uma definição da classe das fontes e uma discriminação entre fontes originais e secundárias; u m conjunto de critérios para se decidir sobre a tendência de uma fonte e uma formulação da base lógica da crença histórica. Cumulativamente, estas questões foram relacionadas umas com as outras e levaram à formação de um método e de uma teoria da crítica histórica: um acto de leitura crítica.39 38 39

E. Panofsky, Renaissance and Renascences in Western Art (Estocolmo, 1960), pp. 110-11. Sobre o desenvolvimento da leitura crítica, ver, em especial, J. H. Franklin, Jean Bodin and the Sixteenth-Century Revolution in the Methodology ofLaw and History (Nova Iorque, 1963), e J. G. A. Pocock, "The Origins of Study of the Past", Comparative Studies in History and Society, 4 (1962), pp. 209-46.

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Este resultado foi paradoxal. O objectivo mais elevado dos humanistas não era originalmente "compreender" os seus modelos, mas sim imitá-los. Para eles, a palavra "clássico" exprimia uma consciência de algo duradouro, um sentimento de que a duração do poder de um texto para falar directamente às gerações vindouras era ilimitado. Também para nós a palavra "clássico" contém um resquício desse significado. Os humanistas estudaram os textos do mundo antigo porque esse mundo representava para eles um modelo, algo que devia ser copiado e imitado. Contudo, quanto maior era a precisão e a minúcia com que prosseguiam os seus estudos textuais, mais evidente se tornava que a cópia e a imitação eram impossíveis. Os textos antigos, se entendidos de forma literal, "tal como eram realmente", deviam ser vistos como pertencentes a um mundo antigo, inseparavelmente ligados a todo um contexto de significados que não podiam ser directamente assimilados pela cultura contemporânea. Invertendo a sua intenção original, os humanistas acabaram por questionar o estatuto normativo dos seus objectos privilegiados, mas podemos exprimir o mesmo processo ao contrário. O que os impeliu a estabelecerem os fundamentos da disciplina histórica — o sentimento de que eram necessárias técnicas especiais para investigar o passado, encarado como um terreno de estudo independente, sem reivindicações normativas sobre o investigador — foi a crença de que um certo passado era normativo. Esta foi a dialéctica da clarificação histórica: uma inversão irônica baseada nas possibilidades inerentes à inscrição. Na história da hermenêutica, as práticas de inscrição constituíram sempre a narrativa privilegiada e as práticas de incorporação a narrativa esquecida. Foi a ciência natural moderna que preparou o terreno para que as práticas corporais fossem relegadas para segundo plano. A mecanização da realidade física, nas ciências naturais exactas, levou a que o corpo fosse conceptualizado como um objecto entre outros num domínio-objecto constituído por corpos que se movem obedecendo a processos regulares. O corpo era olhado como uma coisa material: era materializado. As práticas corporais, como tais, são aqui perdidas de vista. Areacção à mecanização da realidade física, primeiro na Geisteszuissenschaften e, mais tarde, na "revolução lingüística", reforçaram este efeito em vez de o contrariarem. A comunicação de significados de acordo com normas, um objecto-domínio recém-constituído, podia, em princípio, incluir o corpo no seu âmbito de estudo, mas, na prática, só o fez perifericamente. O objecto-domínio da hermenêutica foi definido em termos daquilo que se considerava como a característica distintiva da espécie humana, primeiro a consciência e, mais tarde, a linguagem. Quando se considerou a consciência como característica definidora, reconheceu-se que a expressão de significados se conjugava com os organismos humanos, mas em tal conjugação não se viu mais do que um facto empírico. Os objectos primordiais são os textos canónicos, e a vida dos seres humanos, como vida histórica, é entendida como uma vida registada e narrada, não como uma

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existência física. Quando se considera a linguagem como a característica definidora da espécie humana, o corpo é "legível" como um texto ou um código, mas olhado como o contentor arbitrário de significados. As práticas corporais são reconhecidas, mas numa forma sublimada.411 Existe uma boa razão para que isto tenha acontecido. O facto de as práticas de incorporação terem sido, durante tanto tempo, relegadas para segundo plano, como objectos de uma atenção interpretativa explícita, deve-se não tanto a uma peculiaridade da hermenêutica como a uma característica definidora das próprias práticas de incorporação, pois estas práticas, como já referimos, não podem ser cabalmente realizadas sem uma diminuição da atenção consciente que lhes é prestada. O estudo do hábito ensina-nos isto. Qualquer prática corporal — nadar, dactilografar ou dançar — exige, para a sua execução correcta, toda uma cadeia de actos interligados e, nas execuções iniciais da acção, a vontade consciente tem de escolher cada um dos acontecimentos sucessivos que constituem a acção entre uma série de alternativas erradas. Contudo, o hábito acaba finalmente por fazer com que cada aconte- > cimento precipite um sucessor apropriado, sem que venha a colocar-se uma alternativa e sem referência à vontade consciente. Quando começamos a aprender a nadar, a dactilografar ou a dançar interrompemo-nos, a cada passo, com movimentos desnecessários. Quando nos tornamos experientes, ^ os resultados fluem com um mínimo de acção muscular necessária para os fazer surgir. Mesmo que os centros ideacionais continuem a estar envolvidos quando executamos com êxito a cadeia de actos que, em conjunto, constituem a prática, eles encontram-se envolvidos de forma mínima, como é evidente a partir do facto de a nossa atenção poder estar parcial ou quase completamente dirigida para outro lugar enquanto executamos essa prática. Os movimentos do corpo são acompanhados por sensações, mas por sensações em relação às quais estamos normalmente desatentos. A nossa atenção é atraída apenas quando algo corre mal. . As práticas de incorporação oferecem, por isso, um sistema de mnemónica particularmente eficaz. Neste facto existe um elemento de paradoxo, pois é verdade que tudo o que se encontra escrito e, de forma mais geral, tudo o que está inscrito, demonstra, por esse mesmo facto, uma vontade de ser recordado e alcança, por assim dizer, a sua efectivação na formação de um cânone. É igualmente verdade que, pelo contrário, as práticas de incorporação são, em grande medida, impossíveis de detectar e, como tal, incapazes de oferecer um meio pelo qual qualquer evidência de uma vontade de ser lembrado possa "permanecer". Em conseqüência consideramos geralmente que a inscrição é a forma privilegiada para a transmissão das memórias de 40

Sobre a dupla estratégia da sublimação e da materialização, ver R. Keat, ''The Human Body in Social Theory: Reich, Foucault and the Repressive Hypothesis", Radical Philoso/ % , 42 (1986), pp. 24-32

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uma sociedade e achamos que a difusão e a elaboração do sistema de inscrição dessa sociedade torna possível um desenvolvimento exponencial da sua capacidade de recordar. Contudo, seria enganador subestimarmos, nesta abordagem, a importância mnemónica e a persistência daquilo que é incorporado. As práticas de incorporação dependem, para o seu efeito mnemónico particular, de duas características distintivas: o seu modo de existência e o seu modo de aquisição, não existem "objectivamente", independentemente da sua execução. E são adquiridas de modo a dispensar uma reflexão explícita sobre a sua execução. É importante registar que-os conjuntos relativamente informais de acções, a que me referi como práticas corporais culturalmente específicas, têm aspectos significativos em comum com os conjuntos relativamente mais formais de acções, a que chamei cerimônias comemorativas, as quais também se preservam apenas através da sua realização; e, por causa da sua performatividade e da sua formalização, também elas não são facilmente susceptíveis de exame e de avaliação críticos por aqueles que estão habituados à sua execução. Tanto as cerimonias comemorativas como as práticas corporais contêm, portanto, uma certo grau de segurança contra o processo de questionamento cumulativo que todas as práticas discursivas acarretam. ' Esta é a fonte da sua importância e persistência como sistemas mnemónicos. Todos os grupos confiam, por isso, aos automatismos corporais os valores e as categorias que querem à viva força conservar. Eles saberão como o passado pode ser bem conservado na memória por uma memória habitual sedimentada no corpo. Existe, assim, uma inércia nas estruturas sociais que não pode ser explicada de forma adequada por qualquer das ortodoxias correntes sobre aquilo que é uma estrutura social, conclusão que tem implicações para os antropólogos sociais, para os historiadores e para os sociólogos e cientistas sociais em geral. De facto, tem implicações para os antropólogos sociais, pois não venho apenas sugerindo que a memória, ou tradição, é transmitida de maneiras não textuais e não cognitivas, sugiro igualmente que aqueles que reconheceram a importância da performance, isto é, os antropólogos sociais (principalmente), realçaram a sua importância para "explicitar" a estrutura social existente e não para sublinhar, marcar e definir uma continuidade com o passado. Os antropólogos sociais, desde Malinowski, e os antropólogos do simbólico, desde EHirkheim — vide Lévi-Strauss, no qual esta disposição foi reforçada pelo seu interesse pelas cognições intemporais —, têm sido avessos à diacronia. O próprio Durkheim constrói, na verdade, uma explicação não cognitiva, performativa, em As formas Elementares da Vida Religiosa, de como as sociedades se adoram a si próprias, isto é, de como celebram símbolos de si próprias em rituais cujo poder resulta dos efeitos emocionais da interacçâo social, argumentação que pode servir igualmente de explicação do que se passa em

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rituais mais distintivamente comemorativos. Este é um exemplo, entre muitos, do facto de alguns antropólogos terem vindo a caminhar na mesma direcção que o meu estudo, embora não hajam insistido na questão das comemorações por não se interessarem pela componente diacrónica da identidade colectiva. Existem implicações para aqueles que se interessam principalmente pela diacronia, isto é, para os historiadores. Actualmente estes tendem a insistir na invenção das tradições e, logo, na questão de até que ponto os rituais devem ser vistos como respostas intencionais a contextos sociais e políticos particulares e variáveis, mas por mais animador que este novo tema histórico seja, não pode expandir-se indefinida e inquestionadamente para explicar aquilo que se passa em todas as comemorações. É certamente possível imaginar um futuro em que já não tenham cabimento as cerimonias do Cenotáfio, por já não haver mais nenhuma geração vivente que transmita a memória viva que ele recorda. Podemos imaginar um dia em que tais comemorações se terão tornado tão sem significado como comemorar a batalha de Waterloo.o é hoje para nós, mas a forma como a memória pode operar na celebração comunal não se esgota pela extrapolação a partir deste tipo de exemplo. A Páscoa e a Última Ceia têm sido recordadas há muito tempo, sem que exista qualquer geração vivente que possa, no sentido acima implícito, recordar o seu contexto histórico original. A unilateralidade da abordagem que insiste na invenção das tradições resulta da incapacidade de ver a performatividade do ritual. O resultado é obscurecer a distinção entre a questão da invenção dos rituais e a questão da sua persistência. O historicista exige que passemos em revista as intenções dos criadores de um ritual, exigência que, em alguns casos, é pedida explicitamente de empréstimo a profissionais recentes da história das idéias. Esta exigência, porém, não só não é suficiente, mas também não é, muitas vezes, uma condição necessária para a compreensão de um ritual. Por isso, eu diria que a noção de "ler" um ritual é aqui tomada de forma demasiado literal. Em conseqüência, as características identificadoras e parcialmente constitutivas do ritual — tais como a formalidade e a performatividade — tendem a ser largamente ignoradas, na tentativa de se aproximar tanto quanto possível a interpretação do ritual da de um folheto político literário, por exemplo. Há também implicações para os sociólogos e os cientistas sociais em geral, pois o modo dominante de autocompreensão, representado pelo convencionalismo contemporâneo, impôs, pelo menos até há pouco tempo, uma tendência entre os cientistas sociais para perder de vista o corpo humano como objecto-domínio. Por isso, no caso de certas concepções recentes da teoria social, o objecto-domínio desta foi definido em termos daquilo que é considerado como característica distintiva da espécie humana — a linguagem, sedo esta conceptualizada pelas escolas wittgensteiniana, estruturalista e pós-estruturalista como um conjunto de normas sociais, um sistema de

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símbolos, ou um discurso de poder. O corpo humano pode ser incluído num objecto-domínio definido deste modo apenas como o portador de significados lingüísticos, ou de significados estruturados como uma linguagem, só pode ser incluído, por outras palavras, sob uma forma sublimada. É verdade que recentemente o corpo tem recebido atenção como portador de significados sociais e políticos, mas até esse reconhecimento é dado de forma sublimada. A questão é geralmente, se não sempre, abordada com um inclinação marcadamente cognitiva. Freqüentemente, aquilo de que se fala é do simbolismo do corpo, das atitudes para com o corpo, ou dos discursos sobre o corpo, e não tanto da forma como os corpos são diversamente constituídos, ou se comportam diversamente. Afirma-se que o corpo é socialmente constituído, mas a ambigüidade do termo "constituição" tende a passar despercebida. Quer isto dizer que o corpo é considerado socialmente constituído no sentido em que é construído como um objecto do conhecimento ou do discurso, mas ele não é encarado do mesmo modo, e de forma clara, como sendo socialmente constituído no sentido em que é culturalmente modelado nas suas práticas e comportamento concretos. As práticas e o comportamento são constantemente assimilados a um modelo cognitivo. A ambigüidade de significado das palavras "constituição" e "construção" tende a ser menosprezada, privilegiando-se um dos sentidos a expensas do • outro. Todavia, o corpo é socialmente constituído num duplo sentido, pelo que defender a importância das performances e, em particular, das performances habituais na transmissão e na conservação da memória é, entre outras coisas, insistir nessa ambigüidade e na importância do segundo termo do seu significado.

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