Pascal

January 12, 2018 | Author: Aguinaldo José de Oliveira | Category: Faith, Jesus, God, Catholic Church, Saint
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HUBERTOROHDEN

PASCAL O HOMEM QUE APELOU DA RAZÃO PARA O CORAÇÃO E DE ROMA PARA DEUS

SEGUNDA EDIÇÃO

UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA. S. PAULO 1956

Terceira Edição Alvorada Editora e Livraria Ltda 1981

MEMÓRIA ROHDEN

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"Minhas Cartas foram condenadas em Roma, mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" Pascal

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Índice Advertência 05

Vida e Obra de Huberto Rohden 06 Prefácio para a Terceira Edição 08 Tomando Perspectiva 10 Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18 Lampejos de Gênio 19 Os Eremitas de Port-Royal 21 Encontro Pessoal com Deus 23 Conflito Entre Duas Humanidades 28 Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32 Em Torno das "Lettres Provinciales" 34 Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37 Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40 Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49 A Casuística em Nossos Dias 52 "Meu Reino não é Deste Mundo" 55 Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58 As Razões do Coração que a Razão Ignora 63 Tragédia Metafísica do Homem 65 Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70 Diluindo-se em Deus 74 Texto da orelha da 2ª edição 80 Relação das Obras de Huberto Rohden 81

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Advertência A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição de uma existência para outra existência. O poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.

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Huberto Rohden, Vida e Obra Nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em Universidades da Europa — Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 60 (sessenta) obras sobre ciência, filosofia e religião, editadas pela Editora Vozes (Petrópolis), União Cultural (São Paulo), Editora Globo (Porto Alegre), Livraria Freitas Bastos (Rio de Janeiro), Fundação Alvorada e outras editoras. Vários livros de Huberto Rohden foram traduzidos em outras línguas, inclusive o Esperanto; alguns existem em Braille, para institutos de cegos. Um registro de suas brilhantes palestras foi preservado por alguns de seus alunos em forma de gravações – muitas delas estão à disposição na internet. Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo. De 1945 a 1946 teve uma Bolsa de estudos para Pesquisas Científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística. Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos. Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos, sendo então, seu presidente honorário, o senhor Nereu Ramos. Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram. Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova Universidade Internacional Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, devido à guerra na Coreia, a Universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse. Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, com a finalidade de manter cursos permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil. Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia. Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de Autorrealização Alvorada.

7 Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo. Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente, a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração e orientação cultural. Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se em quatro grandes segmentos: 1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em São Paulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação; 2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados, periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos; 3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros e cassetes, a Filosofia Univérsica; 4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham na consolidação e continuação da sua obra educacional. A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em estado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”. Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.

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Prefácio para a Terceira Edição Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-se mesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico que parece superado em nosso tempo. Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17. Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um católico de pura catolicidade, como poucos. E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - para não dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus? Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confunde catolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católicoclerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando na realidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê a continuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 de novembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defende o seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desse ideal pela teologia clerical. Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida na austeridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madre superiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento da mensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamente ascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidade contra o catolicismo liberal que dominava a época. Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica venerava Pascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer que ele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavam repletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro. Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viu nos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelho do Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e a sátira da sua luta... Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continua desde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O Mestre disse a Pilatos que o reino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que são discípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhuma espécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencial entre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela política financeira de certa teologia.

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De maneira que a polêmica de Pascal não é uma atitude anacrônica fora de época. Hoje, mais do que nunca, a mensagem do Cristo está ameaçada pela deturpação dos homens, na política, no cinema, na literatura, na arte, em toda a vida social da cristandade. Pode a maneira dessa deturpação ser mudada, mas a deturpação continua a ser a mesma e é cada vez mais perversa e sorrateira. Hoje o Cristo é mais atraiçoado pelo beijo de Judas do que pela violência das palavras — “Aquele a quem eu beijar, esse é o tal, prendei-o!” Tornamos, pois, a reeditar este livro, na intenção de alertar os leitores sinceros contra o perigo perene de falsificações da mensagem do Cristo — seja por Judas Iscariotes, seja por Caifás ou Pilatos. Todos os nossos livros, algumas dezenas, têm a mesma finalidade, reconhecida ou combatida. Neste ocaso do século 20, em que vivemos, é de imperiosa necessidade distinguir o trigo do joio, por mais que eles se pareçam, externa-mente; a cinza de Babel da camuflagem se discrimina cada vez mais nitidamente, em puros brancos ou puros pretos. Se for necessário apelar do intelecto para a razão, ou de Roma para Deus, façamo-lo com a coragem e honestidade de Pascal.

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Tomando Perspectiva O racionalismo agnóstico nunca perdoará a um dos maiores vultos da ciência o "crime" de ter apelado da razão para a fé; de ter declarado em público e raso a falência da filosofia intelectualista em face dos problemas centrais da vida humana. Se um espírito medíocre tivesse assumido semelhante atitude, lançá-la-iam os agnósticos à conta de "fraqueza intelectual"; mas, quando essa atitude é a de um espírito que assombrou o mundo com a potência do seu gênio, é enorme a perplexidade dos que não crêem na existência de realidades espirituais. Na impossibilidade de negar a grandeza intelectual do autor dos "Pensées", resolveram muitos dos seus inimigos tachá-lo de "anormal c patológico". É possível que eles tenham razão; resta apenas saber o que é que se entende por "homem normal". Mais ou menos todos os grandes gênios da humanidade foram considerados loucos pelos "homens normais" do seu tempo; e o maior de todos foi por seus contemporâneos chamado "louco", "aliado de Belzebu", "possesso do demônio"... Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de outras terras onde não reinavam esses costumes, andando normalmente com as duas pernas. Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse "homem anormal". E, quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o modo de andar dele era natural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a vaia, porque, além de não saber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem anormal" deu-se pressa em abandonar a ilha dos "homens normais", porque tinha amor à sua vida... Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal: aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único — ou aquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual? (1)

Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos "inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé.

*** "Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente. É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrou Pascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidade de Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grande descrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosa da época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardente discípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja — vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele, sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua a amar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem o Cristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse

11 Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens que casualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele uma realidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Ele sabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementos humanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e

subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidade divina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, para além das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis e organizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedade eclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja. É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascal escreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios de Pascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1). (1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual da humanidade".

*** Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor do que nós. Ele é, a bem dizer um crente descrente... Um dogmático cético... Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade... Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões do coração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece... Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma perene agonia metafísica... Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do Infinito... Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o intelecto e a liberdade na ara da graça divina... Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça. Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior, porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitem a entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza e humildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, no entanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, mas uma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... As belezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser as longínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna, muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?

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Discípulo devotado de Agostinho, herdou Pascal toda a inquietude metafísica do grande pensador e místico africano, mas não lhe herdou, na mesma medida, a paz de espírito que o filho de Mônica gozou depois da sua conversão. Tão intensa era a sua fé que pediu a Deus dez anos de saúde para poder escrever uma grande apologia do Cristianismo; mas Deus como ele diz resignadamente, só lhe deu quatro anos de enfermidade; e, assim, só temos da planejada obra um esboço, que, mesmo nessa forma fragmentária, é um dos maiores monumentos da literatura cristã de todos os séculos.

*** Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que não chegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade? Não o sabemos — nem ele o sabia... Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades do mundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de uma certeza espiritual? "Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardente desejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio, Senhor - ajuda a minha incredulidade!" Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal de contas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer do que não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no "descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perda eterna. Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coração adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menos razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ou suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eterno litígio em torno dos problemas centrais da vida humana. (1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vive como se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea que não pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é pagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Esse totalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres Provinciales".

O intelecto é um aspecto parcial do ser humano - o coração é a totalidade panorâmica do nosso ser. Como poderia Deus, a plenitude infinita, ser objeto de uma faculdade tão finita como é a nossa inteligência?

13 Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva do coração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deus incompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coração e Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode romper e revelar Deus face a face.

Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilha estradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Natureza externa e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário, escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrás do misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade... A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que a inteligência não entende, e, não raro, entende às avessas... Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem, porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências, os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumes se perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios o caráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para o coração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa deste véu... A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chega invariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não consegue transpor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão para atravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é um movimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elos concatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha; chegou a um "ponto morto". O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está do outro lado, não se sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo de chegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como... A inteligência é analítica — o coração é intuitivo... Aquela marcha — este voa... A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima no mundo da mística...

*** Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões do coração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a

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ciência das matemáticas e um apuradíssimo senso da objetividade imediata, não podia deixar de sofrer acerbamente a sua fé, preciosamente porque a vivia profundamente. Uma grande realidade espiritual vivida é por força um grande sofrimento. Quem não sofre a sua fé não a vive. Só uma fé dolorosamente sofrida é uma fé realmente vivida. A fé não é um teorema matemático que possa ser integralmente demonstrado, sem deixar margem para o contrário. Se das coisas espirituais tivéssemos evidência matemática — que mérito haveria em crer? Por que teria Jesus dito: "Quem crer será salvo — quem não crer será condenado"? Se do crer ao não crer vai um abismo tão profundo como a distância entre o céu e o inferno, não é isto prova de que a fé não pode ser um simples ato da inteligência, como as verdades da física ou matemática? Para que haja fé é necessário que haja margem para o contrário. O crer supõe a possibilidade do não-crer. Eu não creio que duas vezes dois é igual a quatro - isto eu sei. O que, em última análise, leva o homem a crer, ou a não crer é a sua vontade, e não a inteligência. Esta prepara apenas o caminho, mas não dá o passo último e decisivo para a fé. Em última análise, o homem crê porque quer crer. Este seu querer não é ulteriormente analisável. O querer é, por assim dizer, um ato hermeticamente fechado em si mesmo, indevassável, inescrutável. Não tem explicação fora de si mesmo. Gira sobre seu próprio eixo. É independente, autônomo. Quero — porque quero! É certo que há motivos externos para esse querer, motivos que atuam sobre a minha decisão e escolha; mas não há motivos rigorosamente determinantes. Sejam quais e quantos forem os motivos externos que sobre mim atuem, em última análise, nenhum deles, nem a soma de todos eles determina o caráter do meu ato volitivo. E, em face de todos os motivos pró e contra, tenho a consciência nítida de poder responder com um sim ou com um não a toda essa ofensiva dos motivos externos. Eu é que sou o dono e árbitro único do meu ato volitivo. Sou o único possuidor da chave para abrir e fechar a porta da minha vontade. E isto não é ilusão da minha parte, como querem os deterministas. Se a consciência me ilude — quem me pode desiludir? A consciência é a última instância, o Supremo Tribunal; mia sentença é inapelável! Se não posso confiar na minha consciência — em quem é que hei de confiar? Se quisermos viver e pensar, temos de pensar, temos de admitir necessariamente que a nossa consciência seja condutora, e não sedutora — a não ser que queiramos arvorar a desordem, o caos e a mentira, em supremos fatores do Universo e fazer de Deus o rei dos tira-nos e impostores! A minha consciência me diz que sou livre nos atos volitivos do Eu — logo, sou livre! Falou a suprema instância! Sentença inapelável! O livre-arbítrio é a quintessência do ser humano. É o homem mesmo no mais profundo quê da sua natureza. A liberdade do querer nos faz propriamente homens; exime-nos, liberta-nos dessa mesma cadeia de casualidades férreas que entretece todos os fenômenos do Universo, sem excetuar a nossa própria inteligência. No livrearbítrio está a Carta-Magna da minha nobreza humana, a minha maior semelhança com Deus.

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Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O ato livre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe. Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele o autor responsável por sua fé. É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer! Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismo bastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que nele existe. Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) do Cristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau. Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é livre. Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que o crer é bom, e o descrer é mau? É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coração que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que o descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar o todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem e retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade, caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça, violência, crueldade, exploração, desassossego.

*** Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ou santo. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingirlhe apenas as faculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo, apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central do seu Eu, do íntimo quê do seu espírito. O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é. A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial. O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna — o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não se distrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escura as cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente: viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada mais o interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como ele sabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus são o culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista e anti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos do intelecto pela mística.

16 Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornava ele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa "cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem que empreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu... A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tido vida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi do mundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxo das coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas correm ao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elas nos abandonam, porque não creem em nós. .

Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam os espíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - o heliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer obstáculo...

*** Tão pouco interessava a Pascal a celebridade, que nem mesmo sistematizou, nem deu nome à estupenda obra que os pósteros, depois de sua morte, compilaram de mais de um miIheiro de farrapos de papel, a que puseram o nome de "Pensées". Essa obra fragmentária é um alimento e uma medicina para os incrédulos e cépticos do nome espiritual. No fundo, tanto os "Pensées" como as "Lettres Providenciales" são uma tremenda ofensiva do homem-cristal contra o homem-argila, possivelmente uma ofensiva do "Pascal convertido" contra o "Pascal não convertido". Nada combatemos tanto nos outros como aquilo que nós mesmos fomos um dia e cuja infelicidade sentimos dolorosamente. Nos casuístas e nos incrédulos vê Pascal o seu próprio Eu antigo, profano, amorfo, sua falta de forma de atitude espiritual definida e vibrou tremendos golpes contra seu pseudo-Eu, que, nesse tempo, felizmente, já era um ex-Eu... Pascal não tolera em si nem nos outros o homem-argila, o homem-molusco, o homem-mingau, o homem-furtacor, penumbrista, acomodatício, político, esses seres neutros e incolores que Dante descreveu no 3º cântico do "Inferno" e dos quais diz o seu mentor Virgílio: "Não são anjos nem demônios esses homens; não os acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho, e não os engoliu o inferno, por que não eram dignos dele"... Por esta mesma razão também se revoltou Pascal contra toda e qualquer espécie de autorredenção pelagiana, por mais bem camuflada que ela se apresentasse e por mais poderosos que fossem os seus "piedosos" defensores... Para Pascal só existe uma teorredenção, uma Cristo-redenção.

*** Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada, sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de

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Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luz divina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência, não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a que se acham e fraquíssima a luz que os atinge... Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra... Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão todas as sombras... Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, a descrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e último tormento dos santos... Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um doloroso cepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração que a razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente. Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, só se conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirme que o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde o intelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição do coração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto, a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer. Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência. Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para os melhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismo deprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta, profunda e panorâmica espiritualidade cristã. A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho. A espiritualidade do próprio Cristo.

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Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 1623 - 19 de junho — Nascimento de Blaise Pascal. 1633 — Pascal, aos 10 anos, estuda geometria por conta própria e escreve "Traité des sons" (tratado sobre os sons). 1638/39 — Aos 15 e 16 anos, Pascal elabora o "Traité dês sections coniques" (tratado sobre as secções cênicas) e publica, com espanto do mundo científico, os "Essais pour lês coniques" (ensaios para os cones). 1640/42 — Pascal trabalha na construção da sua máquina aritmética. Primeiro abalo grave de sua saúde. 1644 — Pascal faz presente de um exemplar da sua máquina aritmética ao "Grande Conde" (Luiz II). 1646 — Primeira "conversão" de Pascal pelos jansenistas, La Bouteillerie e Deslandes. Pascal "converte" sua genial irmã Jacqueline. 1647- 23 de setembro — Pascal tem, em Paris, uma entrevista com o célebre filósofo Descartes. 1647 - 4 de outubro — Pascal publica o seu tratado sobre o vácuo "Nouvelles éxperiences touchant lê vide". 1647 — Polêmica com o Jesuíta Noel sobre a teoria do vácuo. 1647/51 — Pascal elabora o "Tratado sobre o vácuo". 1648 - janeiro - Primeiras relações diretas de Pascal com Port-Royal. 1648 - setembro — Pascal publica o célebre esboço sobre o equilíbrio dos líquidos "Récit de Ia grande éxperience de 1'équilibre dês liqueurs". 1649 - 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética. 1651 — Princípio das relações de amizade de Pascal com o duque Roannez. 1651 - 24 de setembro — Morte do pai de Pascal. 1651 - 17 de setembro — Pascal escreve a célebre "Lettre sur Ia mort". 1652 - 14 de março — Pascal oferece à rainha Cristina da Suécia um exemplar da sua máquina de somar, acompanhado de uma carta dedicatória. 1652, - 8 de julho — Pascal fabrica o modelo definitivo da sua máquina aritmética, que se acha atualmente no Conservatório de Artes e Ofícios, de Paris. 1652 ou 1653 — Pascal escreve os célebres pensamentos sobre o amor "Discours sur les passions de 1'amour". 1653 - 6 de junho — Pascal escreve os tratados sobre os líquidos e sobre o peso da massa atmosférica, "Traité dês liqueurs", "Traité de Ia pesanteur de Ia masse de l'air". 1654 — Pascal escreve os tratados sobre o triângulo aritmético e sobre a ordem numérica, "Traité du triangle arithmetique", "Traité dês ordres numériques". Escreveu ao mesmo tempo uma série de pequenos trabalhos matemáticos e geométricos, em latim. 1654 - junho-outubro — Correspondência de Pascal com o célebre físico Fermat. 1654 — Acidente na ponte de Neuilly. 1654 - 23 a 24 de novembro — Profunda experiência religiosa de Pascal, início da sua "conversão" definitiva à vida espiritual. 1654/55 — Pascal escreve um tratado sobre o espírito da geometria, "Traité de 1'esprit géometrique". 1655 — Pascal associa-se aos eremitas de Port-Royal dês Champs. 1655 - 19 de janeiro — Carta de Jacqueline a seu irmão Blaise sobre a conversão dele. 1655 - dezembro — Pascal em Paris. 1655 — Pascal entretém-se com o grande M. de Sacy sobre a vida cristã 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética. 1656 - 23 de janeiro — Pascal publica a primeira das suas famosas "lettres Provinciales". 1656 — Correspondência de Pascal com Mlle. Roannez, irmã do duque Roannez, sobre a vida espiritual. 1657 - 24 de março — Pascal publica a sua última (18ª) "Lettre Provinciale". 1657 - 6 de setembro — A Congregação Romana do Index condena as "Lettres Provinciales". 1657/62 — Pascal trabalha na sua Apologia da Religião, intitulada, mais tarde, pelos editores, "Pensées". 1658 - 11 de junho — Pascal institui o concurso sobre a "roulette" ou a ciclóide (1). 1658 - 25 de novembro — Apuração do concurso sobre a ciclóide. 1658/59 — Diversos trabalhos de Pascal sobre matemática e geometria. ' 1658 ou 1659 — Pascal expõe, numa conferência, o plano da sua Apologia da Religião ("Pensées"). 1656, fevereiro — Expulsão das monjas e dos eremitas de Port-Royal. 1661 - 6 de outubro — Morte de Jaqueline, irmã e conselheira espiritual de Pascal. 1662 - janeiro — Pascal estabelece a primeira empresa de omnibus em Paris e obtém para a mesma carta patente da autoridade pública. 1662 - 3 de agosto — Testamento espiritual de Pascal. 1662 - 19 de agosto — Morte piedosa de Blaise Pascal, com 39 anos de idade. (1) Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avanço progressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A solução final do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.

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Lampejos de Gênio Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colher num prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar, cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato. Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas só este, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — e escreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons". _________ (1) Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão) Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline, em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não me desampare, Senhor!"

Certo dia, encontrou o pai ao pequeno Blaise sentado no soalho do quarto a riscar com um pedaço do giz "rodas e barras" (ronds et barres),como ele chamava, lá na sua linguagem infantil, os círculos e as linhas retas da geometria; e passou a explicar ao pai estupefato as relações que descobrira entre essas "rodas" e as respectivas "barras". Estranho divertimento para uma criança!... Por esse mesmo tempo, provou Blaise que a soma dos ângulos de um triângulo perfaz dois retos, solvendo assim, por passatempo, o 32º teorema de Euclides, cujo nome ignorava. Adolescente de 16 anos, escreveu um tratado sobre as secções dos cones, "Traté des sections coniques", problema de alta geometria, que assombrou o mundo profissional da época. Descartes, o grande filósofo, recusou-se por muito tempo a crer que semelhante trabalho fosse feito por um jovem dessa idade.

*** De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinha Jacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assunto que ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana da Áustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a sua capacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talento precoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica da família Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro de Estado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amour tyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que se conduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e a família da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e, para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa

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filhinha, foi chamado a Paris, onde Richelieu o nomeou Prefeito de Rouen, prometendo, outrossim, interessar-se pela carreira dos jovens Pascal. Não foi necessária esta proteção do Ministro. Os jovens Pascal, sobretudo Blaise, fizeram a sua grandeza, independente de favores públicos, graças aos extraordinários cabedais que a Divina Providência lhes outorgara.

*** Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, uma máquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com as finanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerosos exemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios da aritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuas logarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França. Na carta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genial matemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístola não refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramos nas "Pensées". De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos de Física, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiences touchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo não resistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais se restabeleceu completamente. Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, por nome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candente sátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maiores sensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logo depois, traduzidas em todas as línguas. Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nos meandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ou inconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundos ignotos... Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamente belos...

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Os Eremitas de Port-Royal

Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que por largo tempo o reteve de cama. Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo de Ypres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea que restituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para as alturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas da graça divina. Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade de Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo. Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismo tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo, em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispo de Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmente depauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares de almas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante, suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral dentro do seio da Igreja. Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassem diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias de Jansênio. O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistente brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seu tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábil Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. No intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cinco Bispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez, continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero. Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. SaintCyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vasta correspondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidade cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, no velho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royal dês Champs". Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebre Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores das ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como que cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que, em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana. Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia e as tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,

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mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles mesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade e prolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam. O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas". Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da Co mpanhia de Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus. Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa "casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma do povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprio espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitor depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de alguns desses livros impugnados. Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que, na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Mais amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual AristótelesTomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um "condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte da liberdade humana. Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempre insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdade humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmonia entre dois fatores aparentemente antagônicos.

*** Enquanto os dois piedosos samaritanos pensavam os ferimentos de Etienne Pascal, escutava o jovem Blaise com grande atenção o que eles diziam do misterioso poder da graça de Deus. E a mensagem divina calou fundo na alma do cientista, cuja sede espiritual era muito maior que sua fome de ciência. Terminada a cura do acidentado, despediram-se os dois Jansenistas, deixando toda a família Pascal profundamente impressionada com o ideal religioso. Na alma do jovem Blaise estava lançada a semente, que, todavia, só mais tarde, ia brotar, Não estava ainda preparado o terreno. Pascal cria ainda por demais no poder da vontade humana. Teria de passar primeiro por uma série de dolorosas experiências e derrotas íntimas para descrer de sua amiga "vontade" e capitular incondicionalmente ante a graça de Deus... Que um homem como Pascal, de extraordinária potência intelectiva e volitiva, acabasse, dentro de poucos anos, por apelar da razão para a f é — isto é um dos mais impressionantes mistérios do poder de Deus, que derrota a vontade, sem lhe ofender a liberdade. A mesma força divina que dum Saulo fariseu fez um Paulo apóstolo, e do estudante pagão de Cartago fez o grande místico cristão de Hipona, faria também do exímio cultor da ciência um devotado discípulo da "loucura da cruz"...

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Encontro Pessoal com Deus A impressão que as doutrinas dos dois enfermeiros Jansenistas causaram na alma de Blaise Pascal levou-o ao que ele chama a sua "primeira conversão". Começou a se ocupar seriamente com assuntos religiosos, quando, até essa data, se interessava, de preferência, pelas ciências naturais. Não se compara, todavia, esta primeira conversão com a segunda e definitiva, que ocorreu anos mais tarde e fez do grande matemático um ardente discípulo do Cristo e apóstolo do Evangelho. Mudança mais radical que no espírito de Blaise havia as doutrinas dos dois enfermeiros produzido na alma de Jacqueline, mudança que lhe cortou cerce a brilhante carreira literária iniciada — com grande pesar de seu amigo e admirador, o célebre poeta Corneille, que vivia em Rouen. A jovem poetisa, que teria sido provavelmente, uma das maiores glórias literárias da França, resolveu renunciar a tudo que o mundo lhe prometia e entregar-se inteiramente às humildes grandezas da vida espiritual. E com isto começou o seu longo Calvário, como acontece sempre àqueles que entram numa zona de intensa espiritualidade. Existe indissolúvel vínculo, ou talvez uma misteriosa afinidade e interdependência entre o amor e o sofrimento, como, aliás, prova a vida do próprio Cristo e de todos os seus verdadeiros discípulos. E este sofrimento nos é causado, em geral, por aqueles que mais de perto deviam acompanhar o nosso caminho ascensional. Numa viagem a Paris, entrou Jacqueline em contato com as religiosas de Port-Royal — e convenceu-se de que só na solidão do mosteiro é que poderia realizar o seu grande desejo de vida intensamente espiritual. O pai, todavia, se opôs terminantemente aos planos da talentosa filha. Também Blaise procurou dissuadi-la do seu intento, e isto por uma espécie de egoísmo espiritual. Jacqueline era, nesse tempo, a única alma que compreendia os anseios íntimos do irmão. Com ela se abria Pascal e dela recebia grandes luzes. A ideia de ter de separar-se da irmã afigurava-se-lhe como que um eclipse religioso em plena alvorada. Entrementes, casara Gilbert, a irmã mais velha, com um senhor por nome Périer. Em 1649 visitaram os três Pascal, Etienne, Blaise e Jacqueline, a Madame Gilbert Périer, em cuja casa se demoraram algum tempo. Querem alguns biógrafos que Blaise se tenha, nesta ocasião, enamorado de uma jovem da Auvergne apelidada "Safo". Parece, todavia, tratar-se de outro cavalheiro com o sobrenome Pascal. O certo é que o nosso matemático, que contava então 26 anos, frequentou sociedade e se tornou grande amigo de alguns homens de destaque, entre eles o duque de Roannez, como também de um cavalheiro elegante por nome Jorge Méré. Este, apesar de espírito medíocre e apaixonado jogador, veio a ter notável influência sobre Pascal, não tanto sobre o seu caráter como sobre sua vida externa e seu traque j o social. Pascal vivera até então para a sua querida matemática e física e sabia melhor como resolver cálculos infinitesimais do que como portar-se em um salão elegante no meio de damas e cavalheiros. Méré julgou de seu dever fazer do solitário pensador um autêntico homem da sociedade, um "honnête homme", como se dizia naquele tempo. E, por alguns anos, pareceu ter sorte com a sua tentativa civilizadora.

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Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em torno de uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa". O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da sua atitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamento remonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo da haute-volée contemporânea. Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline no mosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queria ver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua. Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida da dileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubrações científicas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levou vida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nem abismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade. Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado por Cousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentido profundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sensação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente — isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso e enigmático. Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã do duque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntos essencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica. Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal era homem não menos afetivo que intelectivo.

*** Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, na carruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista.

Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse chamado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,

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confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo da graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista. Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse chamado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline, confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é uma realidade muito superior a todas as chamadas visões. Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre a vida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintes palavras, do punho do agraciado: "L'an de grâce 1654. Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres au martyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres. Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie.

Feu. Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu de Jacob, non dês philosophes et dês

savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie.

Paix. Deum meum et Deum vestrum. Ton Dieu será mon Dieu." Tradução: "Ano da graça de 1654. Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de São Crisógono, mártir, e outros. Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia. Fogo. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.

26 Deum meum et Deum vestrum. Teu Deus será meu Deus."

Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das 10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã de Pascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora da morte. Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas lá estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebre Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele por todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas: quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor de Deus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas. A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando absoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a Deus a natureza. Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram o nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto e Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos, um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza do homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está o Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ou seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelo despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo. Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os mais luminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda? Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção? M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos que são as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com o espírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, como também os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana. Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dado ocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebre filho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuito de fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontra abundantíssimo material para seu jardim ou seu museu espiritual — tão panorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hipona podem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; basta colecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outros coloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde, vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta ou daquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens, porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só um espírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender e interpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de

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Jesus Cristo é o que há de mais inclusivista e panorâmico que se possa imaginar — e dele precisamente têm os espíritos estreitos e exclusivistas feito a mais horripilante caricatura que já apareceu na face da terra. Todas as polêmicas teológicas e todas as guerras de religião nasceram desse exclusivismo, destruindo a harmonia espiritual da humanidade que o vasto inclusivismo de Jesus estabeleceu entre os homens. Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino, conquistou Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidade panorâmica e integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Rei imortal dos séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãos dos nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus "Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado pela tempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As perseguições de que a Igreja é alvo oferecem esta satisfação." A exemplo de sua grande patrícia, Joana d'Arc, tão cristã quão analfabeta, não identifica o genial filósofo a Igreja de Cristo com esta ou aquela organização eclesiástica, menos ainda com os homens que, neste ou naquele período, representam casualmente a Igreja. Se assim fosse, seria tão mal-segura a sua fé como falíveis são os homens. Daí a pouco, teria ele ensejo para ver a enorme diferença que vai entre a alma divina da Igreja, que ele amava apaixonadamente, e o corpo humano dessa mesma Igreja, que nem sempre espelha a pureza e perfeição da alma. Católicos menos esclarecidos em sua fé se têm escandalizado com a atitude de Pascal no meio do conflito religioso do seu tempo — e esquecem-se de que ele foi obrigado a essa atitude precisamente pela fé firme e pelo ardente amor que votava à Igreja de Cristo. Outra atitude não podia Pascal assumir, depois da sua grande experiência espiritual de 23 a 24 de novembro de 1654, em que ele se encontrou, como diz, não com o "deus dos cientistas e dos filósofos, mas com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó".

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Conflito Entre Duas Humanidades

Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim, pelas direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a humanidade de todos os tempos. Se solveram algum problema ou definiram algum pensamento, é isto precisamente o limite da sua grandeza e o princípio da sua pequenez. A sua verdadeira grandeza está nas orientações que deram, porque essas orientações vão para o Infinito. Quanto menos diferenciado é um ser tanto mais susceptível de evolução, tanto mais fecundo de direções várias, de possibilidades vitais e evolutivas. Um ser altamente diferenciado tem poucas possibilidades evolutivas: está colocado sobre trilhos fixos, rigorosamente determinados, e daí não pode sair; só pode correr na direção desses trilhos, e não enveredar pelas mil e uma estradas do ser não diferenciado. É o que se dá também no mundo dos pensamentos e das ideias. Poderosa matéria-prima repleta de energias vitais são as ideias dos grandes homens. Matéria-prima cósmica — e não artefato humano! Milhares e milhões de pensamentos podem ser plasmados dessa enorme idéia cósmica, fundamental, prenhe de ilimitada fecundidade. Lançar ao mundo dos homens essas ideias fundamentais é obra do gênio, não do simples talento, menos ainda do homem erudito. Destacar desse gigantesco bloco partículas maiores ou menores, modelá-las em pensamentos, fazer desse minério geral pequenas moedas correntes para o comércio espiritual da humanidade — é tarefa dos pequenos operários da inteligência. O gênio não fabrica pensamentos — crea ideias. Arranca das profundezas do cosmos enormes blocos amorfos, verdadeiras montanhas de minério bruto — e segue o seu caminho. O gênio é um estranho emissário do cosmos superconsciente. Causa terror, estupefação. É geralmente combatido pelos pequenos mercadores da inteligência e da moral, como algo de absurdo e monstruoso, como um ser de outros mundos que venha perturbar o tépido sossego do nosso planeta. E têm razão esses mercadores — lá do seu ponto de vista. Tempestades e terremotos são fenômenos que incutem pavor... Segundo a concepção do citado filósofo germânico não parece Pascal pertencer aos grandes gênios da humanidade. A sua obra imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar. E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cósmico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses maravilhosos imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem

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acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar. E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espírito genuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas é necessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cósmico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram esses maravilhosos cristais de pensamentos rigorosamente delineados. Quem lê Pascal, longe de ver solvidos os eternos problemas da humanidade, mais inebriado se sente desses problemas. Sente-se por eles empolgado e já não pode viver sem eles. Não é possível continuar a vegetar no marasmo habitual da sua indiferença... Entra-lhe no sangue uma febre metafísica, um fogo sagrado que não o deixa em paz. Pois, o que forma o fundo, o background, de toda a atividade literária, polêmica e espiritual do eremita de Port-Royal é o que há de mais vasto, antigo e obscuro no seio da humanidade. Pascal não vale pelos problemas que, porventura, tenha solvido - vale pela inquietude metafísica que lançou nos espíritos estagnados e pela sede de espiritualidade que acendeu. E isto vale também das "Lettres Provinciales" do grande pensador. Em Pascal e nos "casuístas" que ele impugna, defrontam-se dois mundos tão antigos como a própria humanidade. Entram em conflito duas humanidades — a humanidade da superconsciência intuitiva e a humanidade da consciência intelectiva. Que é o homem? É o homem apenas aquilo que ele faz intelectual, livre e conscientemente — ou também aquilo que ele é no vasto subsolo da sua individualidade inconsciente e involuntária? É o homem apenas o seu ser consciente - ou é ele também o seu ser superconsciente? Em torno desse tremendo dilema gira, em última análise, toda a luta de Pascal e dos seus adversários. Pascal entende o homem na sua totalidade, consciente e superconsciente — ao passo que seus impugnadores consideram o homem apenas segundo a sua zona consciente e livre. A França tem sido, desde tempos remotos, a terra clássica dessas duas ideologias contrárias e insolúveis, ideologias que se concretizam em dois dos seus maiores poetas: Racine e Corneille. Racine pinta o homem assim como ele é, de fato, em sua generalidade, com todos os seus claros e escuros, e não assim como poderia ou deveria ser. Corneille descreve os seus heróis assim como deviam ser à luz da consciência cristã, mas como os homens não são geralmente. Para os moralistas intelectualistas que Pascal combate, só é moralmente imputável ao homem o que ele pensa, diz e faz na zona diurna da sua consciência vígil, e não o que acontece na zona noturna da sua sub ou superconsciência incontrolável. Para Pascal e seus amigos de Port-Royal, de orientação platônícaintuitiva, é o homem responsável, não só pela parte diurna, mas, até certo ponto, também pela parte noturna do seu ser e agir. O homem é um indivíduo, sim, mas é também uma síntese da humanidade, e os pecados da humanidade são, em certo sentido, os pecados do homem. Há um "pecado original" que é da humanidade e é do homem, porque houve uma "queda" do homem na "queda" da humanidade. Como poderia a célula ficar indene da contaminação do organismo? Como poderia o indivíduo ser puro, quando impura é a

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espécie? Do homem é a culpa consciente que ele contraiu, do homem é também a culpa inconsciente que a humanidade nele contraiu. Se da culpa consciente houvesse ego-redenção, para a culpa inconsciente só basta unia teo-redenção. Só a Divindade é que pode cancelar a culpa da humanidade (1). É certo que a teologia dá razão aos moralistas, e não a Pascal — mas resta saber se a nossa teologia intelectualista é a expressão da verdade integral. Pascal é um grande visionário que adivinha ou pressente o que nenhum silogismo pode provar; ele não reconhece a inteligência como suprema instância da vida humana. (1) Sobre a natureza dessa "queda", ver "Metafísica do Cristianismo" do autor.

Em última análise, os dois mundos que nesta luta se defrontam são a filosofia individualista e a intuição universalista. Aqueles apregoam uma ântropo-redenção - - estes ensinam uma teo-redenção. Aqueles crêem na potência redentora da inteligência humana -- estes descreem da impotência do pequeno Eu humano e clamam pela onipotência do grande Tu divino. Inteligência humana - - ou sapiência divina? É este o sentido último dessa tremenda conflagração de espíritos, no século 17. Os séculos subseqüentes tentaram uma conciliação desses paradoxos. Em Deus deve ser possível harmonizá-los; mas os homens não o conseguiram — e a questão continua aberta sem solução...

*** Se seguirmos, rumo acima, o fio da corrente e investigarmos a última origem desse dualismo de concepção, toparemos com as primeiras páginas do Gênesis, onde se fala de uma "queda" do homem e da promessa de um "redentor". Em que consiste essa "queda"? Discordam os homens. Jesus Cristo, que poderia dar solução plena do enigma secular, nunca se referiu a uma "queda" da humanidade. Parece supor a bondade natural do homem, não só do homem do Éden, mas do homem de hoje. Mais de uma vez propõe ele uma criança - isto é, um homem plenamente natural - como modelo de pureza e de retitude espiritual, alvo da complacência divina; exige de seus discípulos que sejam puros e bons como as crianças; diz que os anjos do céu são protetores desses pequenos; identifica-se com as crianças, considerando feito a ele o que a elas fizermos; comina terrível castigo ao homem que, pelo pecado, destruir, na alma da criança a natural bondade e pureza. Nem uma palavra sobre "pecado original", sobre uma "culpa hereditária" saiu dos lábios do Nazareno. Nenhuma referência à necessidade de redenção para essas almas naturalmente puras e boas encontramos nos ensinos de Jesus. A redenção de que o Nazareno fala parece ser necessária unicamente para os que, pessoal e livremente, abandonaram os caminhos de Deus. Do outro lado, porém, temos o apóstolo Paulo, que é o grande confessor do pecado original, e afirma ter recebido diretamente de Jesus o seu Evangelho. Ensina ele, com grande insistência, que por um só homem, Adão, entrou o pecado no mundo e passou a todos os homens - e por um só homem, Cristo, entrou no mundo a redenção do pecado. Num só chefe humano pecaram todos os homens, e nenhum só chefe divino são justificados todos os homens. Mais tarde, Agostinho, calcando os vestígios de Paulo de Tarso, constituiu-se estrênuo defensor da culpa original da humanidade. Desde então, é a teologia cristã

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essencialmente paulino-agostiniana. O homem, em consequência da queda, se tornou tão fraco que não se pode levantar, só pode ser levantado, como aquele malferido viajor à beira da estrada Jerusalém-Jericó. Em todos os tempos houve, no seio da humanidade cristã, adeptos da ideologia paulino-agostiniana em sua forma mais rígida, e houve adeptos de uma concepção mais suave, mais evangélica que teológica, mais de Jesus que de Paulo, se assim se pode dizer. Os Jansenistas de Port-Royal e seu grande porta-voz, Pascal, professam uma ideologia nitidamente paulino-agostiniana — ao passo que seus adversários dizem advogar a mentalidade de Jesus Cristo, assim como aparece nas páginas lapidares do Evangelho. É inegável que tanto uns como outros tenham levado ao extremo as suas idéias, uns em defesa da graça divina, outros a favor da liberdade humana. Resta saber em que extremo está o maior dos males, para o homem cristão - e quem o poderia dizer? A única atitude razoável é a da humildade e da caridade. Ninguém, se arvore em único sábio entre ignorantes, em único ortodoxo entre heterodoxos. Praticamente, faça cada um da sua liberdade um uso tal que a graça de Deus possa nele trabalhar com toda a plenitude. E siga cada qual a esplêndida máxima de Agostinho: “In dubüs libertas, in necessariis unitas - in omnibus charitas”- “Haja nas coisas duvidosas liberdade, nas necessárias, unidade — e em todas, caridade!"

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Defendendo Jesus Contra os Jesuítas

As famosas "Lettres Provinciales" fazem, hoje em dia, parte da literatura mundial, tanto pelo espírito que as ditou como pela forma literária que revestem. Raras vezes terá um homem defendido, com tamanho ardor, com tão arrasadora sátira e com tão ofuscante brilho intelectual, as suas convicções religiosas como o autor dessas 18 cartas. Ao lê-las, é necessário ter sempre presente que, por detrás de tudo aquilo, está a vastíssima zona noturna do subconsciente (1) pascalino. Não é, em última análise, contra os Jesuítas que Pascal se revolta, mas, sim, contra um elemento visceralmente contrário às profundas experiências religiosas do solitário eremita de Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas da Companhia de Jesus. Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas da Companhia de Jesus. As "Lettres Provinciales" são, na sua essência, o brado de uma ingente paixão religiosa. Pascal luta pela suprema razão-de-ser da sua existência, luta pela sua fé cristã, luta por seu Deus e pela Eternidade. Pascal luta, a bem dizer contra um pseudo — ou ex-Pascal, isto é, contra aquilo que ele mesmo fora, contra uma ideologia, que ele mesmo, em tempos idos, já professara, em parte, e da qual se libertara definitivamente, na memorável noite do seu encontro pessoal com Deus. (1) O que, por via de regra, se chama subconsciente espiritual é, na realidade, um superconsciente.

Nunca luta o homem com maior convicção e veemência do que quando toma a ofensiva de um Eu contra um ex-Eu. Os adversários de Pascal, percebendo o fraco da sua defensiva, passaram também à ofensiva, cobrindo-o seu agressor de impropérios, atribuindo-lhe as intenções mais infames, acusando-o de falsário, ridicularizando-o como palhaço, tachando-o de herege, mas sem conseguirem destruir o ponto central da controvérsia. Pascal servia-se de armas forjadas pelos seus próprios adversários, de livros deles estampados em dezenas de edições, e ainda que, na tradução do latim para o francês, incorresse em uma ou outra inexatidão insignificante, qualquer pessoa sincera poderá verificar, à luz dos próprios originais latinos, que o verdadeiro alvo das acusações não é afetado por nenhuma dessas pequenas divergências de tradução e citação. Mesmo que coássemos os "mosquitos", sempre ficariam os "camelos"... Pode um homem mudar de ideias puramente intelectuais, mas não pode discordar da sua íntima experiência. Essa experiência íntima é, para ele, o Supremo Tribunal, a última instância, da qual não há apelação. O que o homem viveu e sofreu nas mais profundas profundezas do seu Eu espiritual, isto a tal ponto se consubstanciou e identificou com ele que chega a ser ele mesmo, o seu próprio Ser personal. E, como ninguém pode divorciar-se de si mesmo, assim também não pode o homem renunciar à sua íntima experiência espiritual. Um homem desses está disposto a sacrificar tudo - forças, tempo, mocidade, carreira, amigos, saúde, seu bom nome, a própria vida - em defesa do seu supremo ideal. Tudo o mais lhe parece secundário; a própria morte se lhe afigura sem importância em face da estupenda realidade interior que domina a sua vida.

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Pascal, como foi dito, passou por essa grande experiência interior. Viveu a Deus. Teve o seu Damasco, o seu encontro pessoal com Cristo. Viu a malícia do pecado. Viveu a grandeza da redenção. Sentiu o terremoto da santidade de Deus. Viu-se colocado na linha divisória entre a grande treva e a grande luz. Por isto lhe parecia horripilante blasfêmia e sacrilégio qualquer compromisso covarde entre a luz e as trevas, entre a santidade de Deus e a miséria do pecador, como tentavam fazer os moralistas contra os quais ele vibrou o flamejante gládio do seu grande espírito e da sua arrasadora dialética. Nas "Lettres Provinciales" revela Pascal uma face do seu caráter que ninguém lhe conhecia e que também não aparece nos "Pensées": serve-se de um estilo irônico, esfuziante de chiste e genialidade, que, por vezes, faz lembrar o deslumbrante chispar de uma esguia chama de oxigênio a derreter duros metais. O seu gênio era antes melancólico do que colérico ou sanguíneo. O seu estilo é, por via de regra, calmo, ponderado, algumas vezes épico e trágico. Por que, pois, se serve Pascal, em sua polêmica, de um modo de escrever que parece não condizer com o seu caráter? Estamos aqui diante de um fenômeno psíquico dos mais notáveis. Por vezes é uma sonora risada a manifestação de uma profunda tristeza. Pode a maior comicidade revelar a mais sangrenta tragicidade de uma alma. Pessoas há que trazem a alma em chaga viva, dia e noite, mas que são tidas na sociedade por creaturas felizes e despreocupadas; o público ignora que essa aparente serenidade é a única defesa e válvula de segurança para conter e disfarçar o candente vulcão que estua nas ignotas profundezas dessas almas torturadas. Se um desses mártires é interrogado a respeito do seu bem-estar, afirma invariavelmente que vai às mil maravilhas, porque essa afirmação categórica é necessária para manter o status quo e impedir o impetuoso transbordamento da lava ígnea que arde nas profundezas dessa alma... Pois a sociedade, em geral, não permite ao homem ser o que é. . . Foi o que se deu com Pascal. O fundo melancólico e trágico de sua alma explodiu numa verdadeira tempestade de ironia e sátira, quando viu que homens tidos por muito religiosos desacreditavam o que para ele havia de mais querido e sagrado: o seu Cristianismo. E Pascal, o grande asceta que, apesar de fraco e doentio, cingia duro cilício sobre as carnes nuas; ele, o grande amigo da pobreza que se privava de tudo para acudir aos indigentes; ele, o solitário eremita que amava o silêncio e detestava o ruído — Pascal desce a mais ruidosa liça da época e desfere a seus adversários golpes tais que até ao presente dia não lhes cicatrizaram as chagas. Se se tratasse de uma ofensa pessoal, não teria o grande asceta escrito uma só palavra contra seus ofensores. Mas aqui estava em jogo a pureza da doutrina do Cristo, o Evangelho de seu divino Senhor e Mestre, pelo qual havia o eremita renunciado a todas as grandezas do mundo e escolhido a vida de solicitude e meditação. Quando, pouco antes da sua morte, perguntaram a Pascal se se arrependia de haver escrito as "Lettres Provinciales", respondeu que não, e que, se mais uma vez tivesse de escrevê-las, escrevê-las-ia com maior rigor ainda. Prova isto que as escreveu por convicção íntima, e não por algum sentimento de rancor ou inimizade. Escreveu-as com os lábios transbordantes de sátira - e com o coração afogado em lágrimas. Irrompeu o vulcão da sua grande dor em uma tempestade de risadas irônicas... Tão enigmático é esse homem secular...

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Em Torno das "Lettres Provinciales"

Tão árido e de tão limitado interesse para o grande público é o tema dessa polêmica entre Pascal e os Jesuítas, que é deveras para admirar levantasse tamanha celeuma na França, e muito além das suas fronteiras. Não fosse o grande talento do solitário eremita, provavelmente morreria o caso, circunscrito à esfera puramente escolástica e teológica da época. Conforme foi dito, agitava-se então entre os teólogos católicos a questão obscura, como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Nenhum dos contendores negava a ação da graça divina nem a existência da liberdade humana, mas discutiam a maneira como harmonizavam entre si esses dois fatores aparentemente inconciliáveis. Formaram-se dois partidos, aliás, já existentes, frisando um, com grande energia a atividade da graça, realçando o outro, com fervor, o papel da liberdade humana. Dessas concepções diversas nasceram, naturalmente, dois modos diferentes de encarar a vida humana e, sobretudo, a questão central da nossa salvação; numa palavra, duas modalidades de moral cristã. No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuos advogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a liberdade. E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a questão a seu favor, a tal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas que podiam andar de mãos dadas. Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" — eram adeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do mundo, dando a toda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência, abnegação. E não paravam em simples palavras e bons conselhos para os outros; eles mesmos davam com a pureza e austeridade da sua vida exemplo concreto da possibilidade de sua doutrina. Mère Angélique; a abadessa do mosteiro de Port-Royal, conseguira restabelecer entre as monjas cistercienses o antigo rigor do espírito do grande místico Bernardo de Clairvaux. E os eremitas que viviam a certa distância do convento, levavam a mesma vida de oração e austeridade. Neste ponto mostraram-se os Jansenistas irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de não levarem a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrina sobre a graça e a predestinação. Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie de Cristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da Judeia, do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e igualando-se aos outros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam eles que o Cristianismo não era apenas para um grupo de homens piedosos segregados do mundo, mas para toda e qualquer pessoa da sociedade que quisesse seguir a Cristo. E, na intenção paulina de "ganhar a todos para Cristo", reduziam ao mínimo as exigências da moral cristã, porque só assim lhes parecia possível a cristianização do mundo, pela qual trabalhavam incessantemente. Não queriam criar mosteiros cheios de ascetas, mas, sim, um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal e outros tenham dito contra os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de

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reta consciência, negará que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!), estivessem animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo, muito dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciência intensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo do espírito de Jesus Cristo. Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral que veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e diretores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes e as almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e circunstâncias da vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados que os homens cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou diretor de almas de ter uma norma que salvaguarde os princípios eternos da moral cristã, por um lado, e, por outro, respeite a liberdade do penitente e não o repila da igreja. Navegar entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa para o piloto espiritual... Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas. Cravam-se as balizas ou muito para a direita, ou muito para a esquerda, provocando colisão com uma de duas coisas que devem ser, ambas, intangíveis... Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo dos cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos deles, praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião dos adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os pecadores, negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios de um dos amigos de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens que tiram os pecados do mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando conhecido texto evangélico, reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora não sejam da sua descoberta. Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada cristãs.

*** O mundo católico da época não conhecia, geralmente, os livros de casuística escritos em latim; eram uma literatura quase privativa do clero; mas, como por estes princípios dirigia o clero os seus penitentes, compreende-se a indignação de Pascal, ao ter conhecimento de semelhantes normas de vida cristã. E, para prevenir do perigo o mundo leigo católico, resolveu divulgar em vernáculo o que havia de mais "escandaloso" nessa casuística. E com tanta eficiência se desincumbiu da tarefa que as "Lettres Provinciales" provocaram inaudita sensação em todas as camadas sociais, o que prova que a sociedade leiga não estava alheia aos princípios exarados nesses livros. Para que os nossos leitores possam julgar por si mesmos o caráter desses livros, passaremos a dar um resumo de alguns dos mais conhecidos. É fora de dúvida que os casuístas forjaram contra si mesmos armas terríveis, e não admira que um homem da tempera ética de Pascal, tomado de profunda indignação, levasse ao pelourinho do desprezo público certos moralistas do seu tempo. Acresce a agravante que não se tratava de opiniões pessoais e particulares deste ou daquele religioso, uma vez que todos esses livros vinham com permissão do Superior Provincial dos Jesuítas e de outras autoridades, recaindo, assim, esse

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laxismo moral não apenas sobre o autor do livro, mas sobre o próprio espírito da Ordem que tais coisas aprovava como sendo expressão do espírito do Cristo — ou melhor, esse laxismo ético afetava a própria igreja de que essa Ordem era parte integrante e que se mostrava solidária com essa orientação. Pascal, pois, combate, indiretamente, o espírito da própria hierarquia da igreja de Roma.

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Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas Em 1649 extraiu a Faculdade Teológica da Universidade de Paris, do livro "Augustinus", de Cornélio Jansênio, falecido Bispo de Ypres, cinco proposições que estariam em contradição com a doutrina da Igreja e enviou as mesmas à Roma. Os jansenistas reconheceram o caráter herético dessas sentenças, condenadas, em 1653, pelo Papa Inocêncio X, reconhecendo também à Santa Sé o direito de as reprovar, mas negaram que as ditas sentenças se encontrassem no livro"Augustinus". Pelo que, em 1654, o Papa declarou expressamente que essas proposições se encontravam no dito livro. Em consequência, Antônio Arnauld, lente da Faculdade e destemido Jansenista, foi demitido da sua cadeira. Estava assim o Jansenismo condenado em Roma e pelos Teólogos da Sorbonne. Arnauld, porém, não se conformou com a decisão pontifícia e teológica, e apelou para o bom senso do povo católico, para a "anima naturaliter christiana", como diria Tertuliano. Era necessário que alguém explicasse ao público, em língua vernácula e estilo acessível ao público, o ponto de controvérsia, para que todo o mundo visse até que ponto os teólogos adulteravam a doutrina do Cristo. Arnauld tinha certeza de que a alma cristã do povo não faria causa comum com os teólogos e jesuítas, mas defenderia a causa do Evangelho que os Jansenistas diziam ensinar em toda a pureza. É característico, nessa polêmica, o apelo do tribunal da aristocracia teológica para o da democracia popular, apelo esse que inclui a suposição tácita de que o catolicismo se encontra mais puro e incontaminado entre o simples povo cristão do que entre os eruditos profissionais da teologia. Mais tarde, Pascal foi além e "apelou de Roma para Deus", na certeza de que Roma, dando razão aos Jesuítas, não representava, nesse particular, o verdadeiro catolicismo, do qual não queria ele separar-se de forma alguma, nem jamais se separou. Tem-se dito que Pascal estava imbuído de ideias protestantes, tanto pelo fato de não ver nessa decisão do Papa a expressão pura do Cristianismo, como também por dar excessiva importância à Sagrada Escritura. Mais exato seria, talvez, compará-lo com um católico ortodoxo, como os da igreja grega, que não querem saber nem Romanismo nem Protestantismo, mas tão somente de Catolicismo, com todos os Sacramentos e todos os esplendores litúrgicos. Já dissemos em outra parte que Pascal, apesar de ser um homem inteligente e intelectual, é contudo, o tipo clássico do homem intuitivo — e a intuição das supremas realidades ultrapassa tudo que a filosofia ou teologia especulativa possam descobrir e ensinar. O apelo de Arnauld, da inteligência dos teólogos para a alma do povo, e o apelo que Pascal faz, da inteligência dos teólogos e do Papa para "o Senhor Jesus", simbolizam, em última linha, um apelo do intelecto para a intuição, do consciente intelectual para o superconsciente intuitivo. Por detrás dessa aparente rebeldia está a grande idéia cósmica — não o pensamento individual - de que o espírito da doutrina do Cristo é algo infinitamente além de tudo que a humana teologia possa atingir.

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Arnauld exigia, pois, que a decisão fosse entregue ao povo católico. Mas quem havia de elaborar essa exposição popular que vazasse em linguagem simples e diáfana as complicadas controvérsias dos teólogos da Sorbonne? Ninguém se sentiu com suficiente capacidade para essa empresa, pois é incomparavelmente mais fácil escrever de um modo obscuro e complicado do que de um modo simples e claro. Por fim, Pascal prometeu querer "tentar" uma exposição em vernáculo; ia dar apenas um ligeiro esboço que servisse de diretriz para outro homem mais competente. No dia seguinte apresentou esse esboço, em forma de urna carta, que leu diante da assembléia. Foi unânime a aprovação, e grandes os aplausos e entusiasmos que essa exposição mereceu. No dia 23 de janeiro de 1656, apareceu, impressa, essa carta com o título "Lettre à un Provincial par un de sés amis" (Carta a um homem da Província, por um de seus amigos). Vinha assinada com o pseudônimo "Louis de Montalte". Esse anonimato, que a um leitor dos nossos dias, talvez, cause estranheza, era medida de prudência naquele tempo, em que a Inquisição levava ao cárcere ou à fogueira milhares de "hereges". Se o autor tivesse dado o seu verdadeiro nome, é certo que as restantes dezessete cartas não teriam aparecido, nem mesmo a segunda. Por amor à causa sagrada em questão convinha, pois usar da máxima prudência. As 10 primeiras cartas são dirigidas a esse tal "homem da Província"; as 6 subsequentes, aos Jesuítas; e as duas últimas, ao Jesuíta P. Annat, confessor do rei de França. Apenas estava na rua a primeira carta, quando foi fechada, por ordem superior, a oficina gráfica em que fora impressa. Mas nem por isto deixaram de aparecer os outros números, estampados em oficinas clandestinas, que ninguém conseguiu localizar. De um a outro número cresciam a curiosidade e sensação despertadas por esses panfletos originais. Logo depois de publicar a primeira carta, deixou Pascal Port-Royal, onde, naturalmente, se suspeitava estar o autor da mesma, e retirou-se para Paris. Na metrópole montou o seu quartel-general no hotel "Rói David", por detrás da Sorbonne, bem defronte ao colégio dos Jesuítas. Ali, no coração da zona inimiga, ninguém o viria procurar, e Pascal teria todo o sossego para forjar as suas terríveis armas. Dezenas de homens foram detidos como sendo os autores das fulminantes "Lettres". Quase ninguém pensava em Pascal, que nesse tempo, não era conhecido como polemista nem como escritor tão brilhante e popular qual se revelava "Louis de Montalte". Por fim, condensaram-se quase todas as suspeitas na pessoa do abade de Haute-Fontaine, por nome Lê Rói, como também, da parte de alguns, no romancista Gomberville. Ambos, porém, negaram a sua paternidade literária, ainda que por motivos e de modos diversos: Gomberville queixou-se amargamente do mau juízo que dele formavam; Le Roi lamentou sinceramente não ser o autor... Depois da impressão da 6ª carta fora Pascal por um triz descoberto como autor dos panfletos, como ele mesmo insinua, com a devida cautela e discrição, no princípio da 8ª_carta. Nesse comenos viera a Paris seu cunhado Périer e se hospedara no mesmo hotel. Um jesuíta, amigo dele, veio visitá-lo e pediu-lhe prevenisse Pascal, porque as suspeitas se concentravam cada vez mais na pessoa dele como sendo o autor das "Lettres Provinciales". Périer estava sobre brasas durante essa visita, porque, na mesma ocasião, se achava sua cama coberta de exemplares da 7ª_ carta, que acabavam de chegar das oficinas gráficas; felizmente, porém, estavam corridas as cortinas diante da cama - e assim saiu o Jesuíta da caverna do leão sem nada suspeitar. E as terríveis folhas volantes continuaram a sair regularmente. No fim da 17ª_ carta, dirigindo-se aos Jesuítas, diz o autor: "É sabido que enganastes o Papa; mas isto já não causa escândalo porque agora todos vos conheceu."

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Os Jesuítas, como é natural, replicaram a essas cartas, procurando desmoralizar como falsário e herege o autor das mesmas. Citaram diversos textos dos moralistas de sua Ordem que Louis de Montalte teria falsificado no intuito de atacar o "laxismo moral" dos Jesuítas. Mas, em breve, essa arma foi provada ineficaz, porque ao menos 99% dos textos citados estavam rigorosamente certos; apenas uma ou outra citação é ligeiramente inexata, e isto por tê-las o autor das Cartas traduzido do latim para o francês. Nunca foi provada falsificação acintosa ou de importância substancial que mudasse o sentido. Queixaram-se ainda os Jesuítas do fato de citar Montalte exclusivamente textos em desabono deles, quando havia livros inteiros de doutrina evidentemente boa e sã. Qualquer pessoa vê que semelhante resposta não tem' cabimento. Pascal nunca afirmou que esses religiosos só ensinavam moral ambígua; mas, sendo os "casuístas" diretores de numerosas almas, uma única doutrina moralmente perniciosa redundava num mal enorme e seria capaz de contaminar gerações inteiras, quando considerada como genuína doutrina do Cristo, sobretudo porque vinha amparada pelo prestígio de uma grande Ordem religiosa.

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Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas Sendo que as acusações mais veementes de Pascal se dirigem contra o "laxismo moral" dos casuístas Jesuítas, passaremos a transcrever desses livros uma série de textos impugnados pelo indignado autor de "Lettres Provinciales". O leitor que quiser inteirar-se da razão ou sem-razão de Pascal ou dos seus adversários, poderá consultar por si mesmo as respectivas fontes, que passaremos a indicar. O livro mais violentamente impugnado por Pascal é um exaustivo tratado de Teologia Moral, da autoria do Jesuíta espanhol, Antônio de Escobar y Mendoza, de Valladolid, obra cujo título latino completo é o seguinte: Liber theologiae moralis, viginti-quatuor Societatis Jesu doctoribus reseratus: quem E. P. Antoinus Escobar et Mendoza, Vallisoletanus, ejusdem Societatis theologus, in examen confessariorum digessit. Post 32 editiones hispânicas et 3 lugdu-nenses editio novíssima auctior et correctior, additionobus illustrata. Bruxellae. 1651. Diz, pois, o subtítulo do citado livro que o mesmo é uma compilação da doutrina de 24 teólogos Jesuítas, para o uso dos confessores; que desta obra já foram feitas 32, edições na Espanha e 3 em Lyon, França, sendo esta 36ª impressa em Bruxelas, Bélgica, aumentada e melhorada, e acrescida de aditamentos. Ano da presente edição, 1651. No título diz que foi publicada a obra com as respectivas licenças dos Superiores da Ordem, etc. Este livro foi por Pascal submetido à mais terrível vivissecção por que já passou um livro da parte de um dos grandes gênios da humanidade.

*** Vejamos alguns tópicos impugnados. No "Segundo Exame", que trata do primeiro mandamento do Decálogo e da obrigação de amar a Deus, estabelece o autor diversos períodos em que parece ser de obrigação grave amar a Deus positivamente. Alguns moralistas, diz Escobar, julgam necessário amar a Deus expressamente em cada dia festivo; outros, uma vez por ano; um dos citados doutores da Companhia de Jesus acha que é permitido deixar de amar a Deus por mais de 3 a 4 anos. Quem conhece o caráter do célebre autor da frase "o coração tem razões de que a razão nada sabe", bem pode imaginar a revolta íntima que semelhante burocratismo teológico provocou na alma de Pascal; pois, para ele, o amor de Deus não era apenas o maior de todos os mandamentos, mas a mais querida necessidade de toda a alma cristã. No mesmo capítulo, tratando do culto prestado aos santos, diz Escobar, de acordo com seus patronos, que "homens santos, enquanto não forem canonizados, podem ser venerados e adorados com um culto privado, mas não público".

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Diz ainda que "Agnus Dei feitos de cera devem ser adorados da mesma forma que a imagem de Jesus; mas é proibido, sob pena de excomunhão, pintá-los com alvaiade, ouro ou outras tintas." Pascal, como católico, admitia a veneração dos santos, mas não a adoração; muito menos a adoração de uma figura de cera, uma vez que a adoração é devida a Deus somente. Escobar e seus patronos teológicos não vêem pecado na adoração de uma figura de cera, mas pecado gravíssimo, crime horrendo, em pintar esses ídolos, porque, neste caso, podia ser que fosse adorado o alvaiade, o ouro ou outra tinta profana, e não a cera sagrada.

*** Entretanto, a posição inimiga contra a qual o austero eremita assestou a artilharia pesada da sua arrasadora dialética e tremenda sátira foi a famosa "restrição mental" ensinada por quase todos os moralistas, e que equivale praticamente a uma verdadeira mentira; e, mesmo que não fosse pecado, seria em todo o caso o sepulcro da sinceridade e o assassino do caráter. "Seja o vosso falar um simples sim, um simples não, diz o divino Mestre, o que passa daí vem do mal." Escobar e seus 24 doutores da Companhia de Jesus arvoraram-se em estrênuos paladinos da "restrição mental", que é na realidade uma engenhosa iniciação na "arte de mentir". Para comprovação, vejamos alguns espécimes dos produtos dessa fábrica: l — No "Exame Terceiro" do referido livro, tratando do juramento e da blasfêmia, escreve o douto compilador das opiniões de duas dúzias de eminentes teólogos da Companhia de Jesus: "No juramento, não é mau em si mesmo dar às palavras um sentido diferente daquele que elas têm em si mesmas; muitas vezes, porém, pode ser pecado. É permitido, quando as palavras são ambíguas. Se a ambiguidade não está nas palavras, mas apenas no pensamento de quem jura, é sentença provável ser ilícito esse juramento; mas é sentença mais provável que seja lícito." Será isto Cristianismo'? "Ê permitido induzir alguém a jurar falso, quando ele, por ignorância, julga ser verdadeiro? O P. Hurtado (um dos 24 Jesuítas) responde que sim, porque o que jura não peca, ao passo que a matéria do juramento em si é, neste caso, antes boa que má; pois o juramento é um ato de religião pela glória de Deus." Não é fácil descobrir com que artes mágicas conseguiram Escobar e Hurtado harmonizar essa liceidade do juramento com aquilo que Jesus diz em MT. 5,22 ss: "Ouvistes que foi dito: Não jurarás falso!. .. Eu, porém, vos digo: Não jureis de forma alguma! seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não — o que passa daí vem do mal." "Sanchez (um dos 24 moralistas) afirma que se pode fazer um juramento que pelos circunstantes seja entendido no sentido comum, mas pelo que jura tenha secretamente outro sentido". E exemplifica: "Se o vendedor, segundo sentença provável, acha que o preço de uma mercadoria é injusto, pode vendê-la com peso falso, ou de outro modo conservar-se indene dessa injustiça; e se for sobre isto interrogado pelo juiz, pode negar tudo com juramento, pensando lá consigo mesmo que não agiu injustamente." "Uma mulher adúltera interrogada por seu marido se adulterou, pode negálo com juramento, subentendendo consigo mesma, por exemplo, que não o fez num dia diferente daquele que seus acusadores supõem."

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"Alguém que vem de um lugar tido como pestoso pode jurar que não vem desse lugar, subentendendo como sendo um lugar pestoso." Assim ensinaram Sanchez e outros — e chamam isto "moral cristã"... Pergunta-se se é pecado mortal jurar, por justa causa e com palavras ambíguas, por exemplo: "o príncipe está na corte", subentendendo consigo mesmo "em pintura”? O Jesuíta Lessius, citado por Escobar, acha que é ilícito; o Jesuíta Sanchez acha mais provável não ser pecado mortal, a não ser que daí resulte grave prejuízo para terceiros, ou o juramento seja exigido oficialmente pelo juiz; porquanto, 'diz Sanchez, "trata-se apenas de um erro de distinção; mas um juramento assim, onde há apenas um erro de distinção, não passa de pecado venial". 2 — No "Exame Sétimo" trata Escobar das leis, sobretudo em relação com o quinto mandamento e o pecado do homicídio. Pergunta: "Sabendo eu que uma falsa testemunha ou um acusador injusto pretende publicar, de encontro à justiça legal, um crime verdadeiro, mas oculto, éme lícito 'matá-lo, se da acusação receio sentença de morte ou grande prejuízo material?” Opina o Jesuíta Banez "que é lícito, no caso que o acusador, previamente admoestado, não desista do seu intento, e se para o culpado não há outra possibilidade de escapar ao castigo". Pergunta: "Posso matar alguém que quer apoderar-se dos meus bens?" Resposta: "Pode, com o fim de evitar notável prejuízo, uma vez que os bens materiais são meios para a conservação da vida, da honra e do estado de vida." O Jesuíta Molina estende esta permissão de matar também aos clérigos. Tanner inclui também os monges, embora estes não possuam propriedade senão em comum. Entretanto, não é lícito matar o ladrão por uma coisa de pouco valor, por exemplo, um florim, segundo diz Molina (Vol. I pg. 122, § 43, 44). Prossegue Escobar: "Uma vez que é permitida a todo homem, em defesa de sua honra e com a devida moderação, matar a outrem, pergunta-se se é lícito ao monge matar o caluniador que contra sua Ordem espalha graves acusações? Amicus, cujos oito volumes De Cursu Theologico só nos últimos tempos me chegaram às mãos — diz Escobar — não ousa aderir à sentença afirmativa, para não contrariar a opinião comum, mas reforça aquela com um argumento, dizendo: "Se a um leigo, para salvaguardar a sua honra e seu bom nome, é lícito matar, por maioria de razão parece ser lícito a um clérigo e monge; porquanto, os votos, a sabedoria e virtude, de que nasce a honra do clérigo, são bens maiores do que a habilidade no manejo das armas, em que se baseia a honra do leigo. De resto, uma vez que aos clérigos e monges, em defesa de sua fortuna, é lícito matar o ladrão, se não houver outro meio, o mesmo também será lícito em defesa da sua honra." (§ 46). "Quando um homem da nobreza recebe de alguém uma bofetada, pode matar o ofensor? O Jesuíta Lessius responde que sim, porque para algumas classes é considerado suprema vergonha receber bofetadas ou pauladas sem se vingar." "Entretanto — diz Escobar — eu por mim limito esta sentença aos nobres, porquanto, para os burgueses não é grande vergonha receberem bofetadas e pauladas." E acrescenta: "Muitos afirmam que é lícito perseguir e matar o homem que, depois de dar bofetada, foge, a não ser que disto se receie, para o Estado, excessivo

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derramamento de sangue. A honra, à guisa de um bem roubado, não pode ser recuperada, se o desonrado não der prova de maior excelência, e assim reconquistar o respeito perante os homens; pois, não é que um homem esbofeteado é tido por um homem sem honra, enquanto não matar a seu adversário ?" Será que Escobar e seus 24 Jesuítas leram alguma vez o que Jesus disse, segundo o Evangelho de São Mateus, 5,38 ss: "Tendes ouvido que foi dito, olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não vos oponhais ao malévolo! Mas, quando alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe também a outra... Se alguém pleitear contigo em juízo para te roubar a túnica, cede-lhe também a capa... Amai os vossos inimigos, e fazei bem aos que vos fazem mal, para serdes filhos do vosso Pai celeste"... Esses moralistas ensinam diametralmente o contrário, e fazem crer a seus penitentes que isto é "moral cristã". Se um homem "nobre", depois de ofendido, tem de provar a sua "maior excelência" vingando a injúria, ao ponto de matar o ofensor, não estará abolido radicalmente todo o espírito do Cristianismo? Não equivale isto a uma recaída aos tempos da primitiva ética de Israel, quando vigorava a "moral": "Olho por olho, dente por dente"? Que é "honra"? Que é "desonra'"? É o conceito variável e incerto que os homens têm de nós? — ou é aquilo que nós somos diante de Deus e da nossa própria consciência l.. Compreende-se a indignação de um intransigente discípulo do Evangelho como Pascal em face dessa imoralidade dos moralistas arvorados em mentores do povo católico. "Eis aí os homens que tiram os pecados do mundo!" Se Pascal, sabendo de tudo isto, sabendo que livros dessa natureza, aprovados pela competente autoridade eclesiástica, inundavam o país em dezenas de edições e serviam de guias espirituais para as almas, não abandonou o catolicismo nem se revoltou contra a Igreja como tal, é sinal de que ele tinha de Catolicismo e Igreja conceito incomparavelmente mais alto e puro do que o comum dos católicos, que identifica a Igreja com os seus eventuais representantes humanos.

*** Continuaremos a ler a grande obra do P. Antônio Escobar y Mendoza "Liber Theologiae Moralis". Onde ele trata do quinto mandamento e do homicídio, escreve: "Uma mulher está para cometer suicídio a fim de escapar à desonra da gravidez; é permitido sugerir-lhe o aborto? O cardeal De Lugo responde que sim, se de outra forma não for possível dissuadi-la do seu intento; pois isto não é induzi-la ao mal, mas apenas dar-lhe a escolha de um mal menor." Quer dizer que, segundo o conhecido teólogo cardeal De Lugo, pode-se aconselhar aborto e infanticídio para evitar suicídio — fantástica essa "moral"! Prossegue Escobar: "É permitido declarar guerra a um povo pagão, ou em geral, não-cristão, sobretudo quando este obsta à pregação do Evangelho." Foi o que Mussolini fez com a Etiópia, a fim de evangelizá-la — à força de canhões e metralhadoras, embora esse país não fosse pagão. Esse senhor Benito Mussolini deve ter sido um fervoroso católico, segundo Escobar e companhia. "É permitido ao nobre aceitar duelo para defender a sua nobreza e suas dignidades, como também para salvar bens materiais." 3 — "Exame Undécimo". Sobre as leis em particular, com relação ao primeiro mandamento da Igreja, de ouvir Missa.

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Neste capítulo ensina Escobar e seus patronos o seguinte: Para satisfazer à obrigação de ouvir Missa é necessária a presença corporal do sujeito, moralmente considerada, assim que ele possa ver o que acontece, e que tenha ao menos a intenção virtual de ouvir Missa. Não obsta que com esta intenção coexista outra, como seja, por exemplo, a de "olhar libidinosamente para as mulheres" (sic) contanto que não exclua a intenção dirigida para as coisas e atos sagrados. "A presença corporal é necessária, mas aconselha-se também a presença espiritual. Hurtado e Coninck afirmam que a presença corporal é suficiente, para satisfazer a obrigação de ouvir Missa, ainda que se esteja espiritualmente distraído." No intuito de facilitar o mais possível a "vida espiritual", dão esses moralistas as seguintes diretivas: "É permitido, para satisfazer essa obrigação, ouvir ao mesmo tempo duas metades de duas Missas, contanto que essas metades não sejam iguais; isto é, por exemplo, quando uma Missa está em princípio, e a outra está no meio. Se alguém tem obrigação de ouvir três Missas, pode ouvi-las todas ao mesmo tempo se três sacerdotes celebrarem simultaneamente." O Deus desses moralistas, como se vê, é muito camarada. Resta apenas saber se esse Deus é o Deus de que Jesus Cristo nos fala no Evangelho. . . Se esse Deus-camarada aceita duas metades de Missa diversas, para não debitar pecado mortal ao católico domingueiro, porque não aceitaria também três terços, quatro quartos, dez décimos, e outros inteiros fracionados — ele, que é perfeito matemático? Desconfio, porém, que a esse mesquinho regateio e a essa moral fragmentária corresponda também um céu em prestações fracionadas — se é que há céu para semelhante traficância... Continua Escobar, apoiando seu colega Filufius: "Se um sacerdote é pago por alguém para celebrar Missa, pode, contudo ceder a um terceiro, por dinheiro, a parte do sacrifício e seus méritos que tocaria ao celebrante; não pode, porém, ceder-lha como sacrifício inteiro, mas cerca de um terço." O mérito ex opere operato - diz alhures — pertence sempre integralmente àquele que pagou a Missa. Para que o leitor não formado em teologia compreenda essa traficância sagrada, patrocinada por Escobar e seus 24 insignes doutores, convém saber que, segundo a doutrina católica romana, há na celebração da Missa um mérito chamado ex opere operato, e outro denominado ex opere operantis. O primeiro, dizem os moralistas, cabe sempre, integralmente, ao dono da Missa (para usar de linguagem pitoresca e intuitiva do nosso povo), àquele que a encomendou e pagou; este valor é considerado como algo inteiriço e indivisível, razão por que deve ser cedido inteiramente a quem adquiriu direito sobre a Missa mediante pagamento. Do outro valor, porém, pode o celebrante dispor livremente, pode ficar com ele e pode também cedê-lo a outrem, gratuitamente, ou contra pagamento, isto é, pode vender esse quinhão sagrado que lhe toca. Para ilustrar e concretizar a idéia de Escobar e seus exímios moralistas, diríamos que eles consideram a Missa como constante de duas partes distintas: uma espécie de medula ou caroço (ex opere operato), e uma espécie de polpa ou casca (ex opere operantis). O caroço é sempre indivisível, ao passo que a casca pode ser dividida à vontade, e podem os seus fragmentos ser vendidos a fregueses diversos. Se lá em cima, no reino de Deus, é ratificada semelhante diplomacia comercial — isto é outra questão! Em todo o caso, cá embaixo ela é válida — e é o que interessa aos ditos moralistas. Pascal, como fervoroso católico, desencadeou sobre essa caricatura de catolicismo as vagas salgadas da mais tremenda sátira do seu grande Espírito.

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Prossegue Escobar: "Se a hóstia for devorada por um animal, deve ela, possivelmente, ser extraída do corpo dele e conservada; o animal, porém, deve ser queimado, e suas cinzas ser lançadas à piscina." 4 -"Décimo Terceiro Exame Sobre o quarto mandamento da igreja concernente ao jejum". "Tudo que é bebida não quebra o jejum, nem o vinho, mesmo quando condimentado com especiarias da índia. Quando tomado em excesso, é pecado contra a temperança (mas não quebra o jejum)." Chocolate, segundo Escobar, é bebida, podendo, pois, sem escrúpulos, ser tomado em qualquer quantidade pelo devoto jejuador, bem como vinho; não quebram o jejum (1). Assim, corno o leitor vê, é uma delícia jejuar, por tempo indefinido, sem possuir os segredos de Gandhi, e passar, ainda por cima, por um grande asceta. 5 — "Décimo Sexto Exame. Sobre a dispensa como privilégio". Segundo Hurtado, pode o Papa, por justo motivo, permitir o matrimônio entre irmão e irmã, embora seja isto proibido por lei divina. Assim por exemplo — expõe Escobar — se o rei da Espanha não tivesse possibilidade de contrair matrimônio digno dele senão com uma herege ou pessoa suspeita de heresia, de que resultasse perigo que o reino fosse contaminado, poderia o Papa conceder-lhe a devida dispensa para casar com sua própria irmã, sobretudo se ela não fosse filha da mesma mãe (Exame 16, § 44, pág. 238). (1)

Trata-se aqui do jejum quaresmal, e não eucarístico.

Segundo todos os moralistas da época é o cristão proibido de comprar mantimentos ou outras mercadorias aos turcos ou infiéis; só é permitido em tempo de grave carestia. Jesus Cristo, que comia "com publicanos e pecadores", como diz o Evangelho, e aceitava sem escrúpulos alimento dos pagãos da Decápole e dos hereges da Samaria, evidentemente ignorava a moral cristã que seus futuros discípulos iam descobrir, abolindo ao mesmo tempo uma boa dezena de pecados reais e gravíssimos... 6 — "Sexto Tratado. Exame quinto. Das indulgências". "Quem dá esmola à qual esteja anexa uma indulgência — diz Escobar — mesmo que o faça parcialmente por vangloria, não deixa por isso de lucrar a indulgência." "Quem morre imediatamente depois de lucrar penitência (indulgência) plenária, vai direto ao céu." "O purgatório é um lugar nas entranhas da terra. Também o inferno está situado no interior da terra. É esta a opinião geral dos doutores, e mesmo doutrina certa da Igreja, de maneira que é temerário negá-la. O lugar do purgatório fica acima do inferno, e o fogo é o mesmo que o do inferno." É pena que esses doutores não tenham sido convidados para chefiar uma expedição científica para o interior da terra - tanto mais que sua grande santidade os teria imunizado contra quaisquer surpresas diabólicas!... Semelhante teologia de jardim de infância é um dos melhores meios para atrair o ridículo sobre a religião c afugentar da Igreja todos os homens pensantes e sérios. "Para aplicar uma indulgência a um defunto, por meio de certa obra, não é necessário que se esteja em estado de graça, porque o efeito das indulgências vem

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das satisfações de Jesus Cristo e dos Santos; as obras impostas são apenas necessárias como condição. Por isto não importa que sejam feitas em estado de pecado. Lucra-se a indulgência, ainda que as boas obras a que estão anexas sejam obras más no respectivo indivíduo." (pág 849-50). 7 — "Tratado sexto. Exame nono. Do Matrimônio". "O pagão que se torna cristão pode abandonar sua esposa, se esta se negar a fazer o mesmo; e pode casar com outra. Se alguém se converte em Madrid e lhe é difícil buscar sua mulher na África ou na América, pode calar o fato e casar de novo." "Benigno, grande senhor feudal, casou com Isabel, filha de um dos seus colonos e vassalos, segundo o rito da Igreja, mas com intenção fraudulenta, isto é, sem consentimento interno. Depois de viver alguns dias maritalmente com Isabel, declara ao pároco que não teve intenção de a tomar por esposa, provando-o pelo conteúdo de uma carta que, em vésperas do casamento, entregara, fechada, ao pároco. Que deve fazer o pároco ? Resposta: Ainda que Benigno seja culpado diante de Deus pelo fato de ter enganado a Isabel e haver cometido sacrilégio, concordam contudo os teólogos em que, num caso desses, um homem de tão desigual posição e de tão superior condição social à da jovem, não pode em absoluto ser obrigado a renovar o seu consentimento e reparar a injustiça que lhe causou com o seu casamento fictício. Pois, não se pode dizer propriamente que Isabel tenha sido enganada, uma vez que ela conhecia essa desigualdade; mas que ela quis enganar-se a si mesma. Cabe apenas a Benigno declarar judicialmente a invalidade do matrimônio, fazer penitência e despedir Isabel com dinheiro, para que possa casar em outra parte. (Pontas, doutor em Direito Canônico na Faculdade Teológica de Paris, no "Dictionaire de cas de conscience", artigo Mariage, III, cas 5, 1724). Quem admira que, em face de semelhante imoralidade estampada como doutrina do Cristo, tenha Pascal invocado a divina pureza do Evangelho e exclamado: "Minhas Cartas foram condenadas em Roma, mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" Juan de Alloza, outro Jesuíta espanhol, em sua obra latina "Flores Summarum, seu Alphabetum Morale", publicada em Lyon, França, 166, Vol. L, escreve, com a competente aprovação eclesiástica, o seguinte: . "O homem que vir outro, inocente, punido pelo que ele (o primeiro) fez, e se conservar calado, não tem obrigação de compensar o prejudicado." "Um homem honesto que acharia demasiado duro mendigar, mas de outro modo não tem com que ganhar o necessário sustento, pode apoderar-se dele às ocultas." Isto é, em bom português, pode roubar! "Fulano, que abre cartas escritas de Roma a Sicrano, e chega a saber assim que vagou em Roma uma prebenda eclesiástica, e consegue para si essa prebenda, não tem obrigação de indenizar a Sicrano, pois não lhe tirou direito algum que este possuísse de fato." "É permitido a um homem da nobreza matar outrem para defender a sua honra. Doutores há que afirmam que ele não pode perseguir o ofensor, se este fugir. Outros, porém, afirmam, com não menor probabilidade, que ele o pode perseguir e matar, não no intuito de se vingar, mas na intenção de recuperar sua honra. Assim segundo Henriquez." Como se depreende claramente de diversos tópicos que extraímos dessas insignes obras teológicas, há dois padrões de moral, dois códigos éticos para as ações

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humanas: um para uso dos plebeus, e outro para uso (ou abuso) dos nobres. Fatalmente, deve haver também dois Cristos e dois Deuses para essas duas classes de homens e de cristãos católicos. O que para o nobre é virtude pode ser pecado gravíssimo para o plebeu. Sobre a base deste princípio, será fácil construir tantas espécies de moral ou ética quantos os indivíduos humanos dispostos a fugir ao espírito divino do Evangelho e entregar-se como escravos às suas paixões. "Pode ser até obra de caridade da minha parte matar alguém - é o exímio teólogo que fala — se este atacar a honra de um inocente; ruas não há obrigação para isto, se nisto houver perigo para meus próprios bens." Ó Nazareno! Que é feito do teu Evangelho de justiça, pureza e amor?... "O homicida, sabendo que outro, inocente, está no cárcere por causa dele, não tem obrigação de se denunciar a si mesmo com perigo da própria vida (Navarrez)". É claro que é preferível para esse cristão que o inocente morra em lugar do culpado — qualquer pagão faria o mesmo... Resumindo questões diversas, sintetiza Alloza a sua moral cristã nas seguintes frases: "Não está obrigado a indenização aquele que mata um ladrão para salvar os seus bens, ainda que pudesse reaver estes por meio do juiz; nem aquele que mata em defesa própria, ainda que, como clérigo, pudesse fugir sem desonra; nem o adúltero que, defendendo a si mesmo matar o marido da outra." (Ver "Homicidium" Sectio II).

*** Com a reprodução desses tópicos, não temos a intenção de ofender a alguém ou desmoralizar unia classe de homens ou Ordem religiosa. Se há desmoralização, é uma autodesmoralização, uma vez que essas obras foram impressas em dezenas de edições, com expressa permissão de seus autores e das respectivas autoridades. Queremos apenas fazer ver como é perigoso e fatal afastar-se o homem das normas divinas e imutáveis do Evangelho de Jesus Cristo, e guiar-se por princípios de outra origem, por melhores que esses princípios pareçam à razão humana, ou ante ao coração do homem. Por outro lado, queremos também mostrar que a atitude de Pascal não nasceu de nenhum espírito de insubmissão ou revolta, mas, sim, da pureza e da sacralidade do seu Cristianismo. Como católico, foi Pascal de uma conduta exemplar e de grande fervor religioso, amigo da pobreza, da penitência, da caridade, da oração. E foi precisamente essa sua acendrada Catolicidade cristã que o lançou a tão tremendo conflito com numerosos representantes do Catolicismo romano. Pascal sofreu cruel perseguição por causa da sua atitude desassombrada, mas nunca revogou o que dissera nem modificou sua tempera espiritual. Muitas vezes se repetiu, através da história, essa tragédia espiritual dos grandes gênios religiosos da humanidade, postos em face do doloroso dilema: ou serem infiéis à própria consciência — ou incompatibilizar-se com a religiosidade da época! Pode Pascal ter exagerado as suas ideias no tocante à predestinação e à atividade da graça divina, mas na defesa dos princípios intangíveis da moral cristã, qualquer homem sério estaria disposto a lutar sob sua bandeira. Por vezes, manda Deus um Paulo para dizer a Pedro, como daquela vez em Antioquia: "Aberraste da verdade do Evangelho" (Gl. 2-14). E ainda que nem

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sempre os Pedros tenham a humildade de Simão Pedro, a voz dos Paulos nunca deixa de ser de grande utilidade para reavivar a consciência cristã do gênero humano. De resto, nem Pedro nem Paulo são a Igreja do Cristo. Para explicar a sua atitude, escreveu Pascal: "Se eu vivesse em uma cidade onde houvesse 12 fontes de água, e se eu soubesse com certeza que uma delas está envenenada, teria obrigação de prevenir todo O povo para não beber dessa água; e se alguém visse nisto apenas idiotice minha, teria eu obrigação de denunciar aquele que envenenou a fonte, a fim de não expor a cidade toda ao perigo de envenenamento." O abade Maynard(l) deu-se ao trabalho de querer "refutar" as "Lettres Provinciales", mas não se pode afirmar que tenha logrado algo de positivo, uma vez que os livros denunciados por Pascal existem realmente e o espírito que a eles preside é, em numerosos pontos, incompatível com o verdadeiro Cristianismo. O erro dos casuístas está em que eles considerem essas delicadas questões morais do ponto de vista puramente legal e jurídico, quando é certo que só a perspectiva espiritual e evangélica é que lhes pode dar solução satisfatória. Pascal é intransigente defensor dessa atitude espiritual-evangélica, ao passo que Escobar è' seus patronos desertaram evidentemente para os arraiais de um burocratismo jurídico-legal, como se as relações entre o homem e Deus pudessem ser aferidas pela bitola profana dos nossos códigos civis.

(1) Lês Lettres Provinciales de Louís de Montalte et leur rétufafion, par 1'abbé Maynard. Paris, 1851.

Queixaram-se amargamente os casuístas de ter Louis de Montalte (pseudônimo adotado por Pascal), em sua "Lettres", assoalhado na praça da mais larga publicidade certas diretivas morais destinadas exclusivamente ao uso dos sacerdotes e diretores espirituais, sendo por isto esses livros escritos em língua latina. A essa censura respondeu Pascal que diversos desses livros, ou derivados dos mesmos, já existiam em língua francesa e andavam nas mãos do povo(l). De resto, se tais idéias serviam de norma aos confessores e diretores espirituais, naturalmente orientavam a vida espiritual de milhares de católicos, contaminando as almas, solapando o verdadeiro espírito do Cristianismo e acarretando, assim, um mal imenso à sociedade. De fato, esse "laxismo moral" dos casuístas era largamente conhecido, e em parte também praticado em certas camadas religiosas do povo, com detrimento do verdadeiro espírito do Cristianismo.

*** Em 1700 condenou o célebre Bossuet, em nome da Igreja Galicana, a moral casuística dos Jesuítas e de outros moralistas como atentatória ao espírito do verdadeiro Cristianismo. Também em Roma foram, mais tarde, condenados diversos princípios ensinados por Escobar e seus amigos. Outros continuam em vigor. Entretanto, só Deus sabe quantas almas, por espaço de mais de um século, obediente a esses "diretores espirituais", foram ludibriados nos seus anseios espirituais e afastados do Cristo.

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Regulamentação Burocrática do Amor de Deus — Pró e Contra Pascal O que, acima de tudo, parece ter disposto os ânimos, dentro e fora dos arraiais católicos, contra certos teólogos e moralistas da Companhia de Jesus, foi a opinião que muitos destes tinham sobre o dever que temos de amar a Deus. Ninguém nega que, de um modo geral, vago, implícito, se deva sempre amar a Deus; mas o que esses "mestres da vida espiritual" escreveram sobre o amor explícito e consciente que o cristão deve ter para com o Bem Supremo — isto é sumamente vergonhoso. Paulo, Agostinho, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e todos os outros espíritos abrasados no amor de Deus, se tais opiniões tivessem lido, ter-se-iam levantado com santa indignação contra semelhante deturpação do Cristianismo. O cristão sincero, não contaminado de certa burocracia e sofisticação escolástica, não compreende que se possam estabelecer determinados períodos, certas horas de "expediente", em que a alma tenha "obrigação" de "amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com todas as suas forças". Não compreende que esse "mandamento máximo" do Mestre, possa sofrer qualquer diminuição ou cerceamento da parte daqueles que, deviam ser os primeiros a afirmar o amor de Deus em todas as circunstâncias da vida. Acha Escobar, de acordo com Hurtado de Mendoza e outros moralistas, que há obrigação de amar expressamente a Deus uma vez por ano. Outro teólogo, Coninck, é de parecer que basta cada 3 ou 4 anos. Henriquez, mais liberal, estabelece o período de 5 anos como obrigatório para fazer um ato explícito de amor a Deus. Filutius, porém, não concorda com isto; acha que não se pode obrigar nenhum cristão a amar a Deus de 5 em 5 anos. O Jesuíta Antônio Sirmond escreveu um manual de piedade intitulado "Défense de Ia vertue". Sob este belo título, "defesa da virtude", espera o leitor encontrar páginas edificantes sobre a vida cristã. Mas não é assim. "Tomás de Aquino - expõe o autor - acha que se deve amar a Deus, logo que se chegue ao uso da razão." Em vez de concordar com esta ideia, que é que faz o autor? Procura outros teólogos que o libertem desse dever ingrato de amar a Deus logo ao despontar da razão. "Isto parece muito cedo — diz ele, e prossegue: — Scotus opina que se deve amar a Deus cada domingo. Outros dizem, na hora da morte - e isto me parece meio tarde! Eu, por mim, nem creio que se deva amar a Deus por ocasião de cada recepção dos

sacramentos; porquanto, para essa recepção, basta a contrição imperfeita em união com a confissão, no caso que esta seja possível. Suarez diz que se deve amar a Deus em determinados tempos — mas em que tempo? Deixa-o à escolha de cada um; ele não o sabe; mas, o que esse teólogo não sabe, quem o poderia saber?" E assim é que, de tanto burocratismo teológico, esses "chefes espirituais" chegam, finalmente, à conclusão de que não há obrigação real de o homem amar a Deus, sacrificando assim o "primeiro e maior de todos os mandamentos" e a alma do Cristianismo ao arbítrio de uma infeliz teologia. E isto é impingido ao povo católico como "catolicismo", e até como "cristianismo"... É este, talvez, o maior e mais funesto dos males de certas épocas: apregoaremse como cristianismo doutrinas e ideias que de cristianismo têm apenas o nome, mas não a alma e realidade. É este um dos maiores crimes que se cometem contra o maior tesouro que o homem possui aqui na terra — o tesouro do Evangelho genuíno e integral.

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Não há meio mais seguro para perder a fé no Cristo do que ler as obras ou ouvir as doutrinas de certos teólogos e moralistas...

*** Em carta de 15 de janeiro de 1690 narra a escritora Madame de Sévigné que o poeta Boileau, convidado à casa de Lamoignon, onde também se achava o Jesuíta Bourdaloue, mostrara dar preferência aos escritores antigos sobre os modernos, excetuando apenas um desses últimos. O Jesuíta quis saber quem era esse único exceto. Boileau recusou-se a nomeá-lo. O reverendo insistiu. Ora, respondeu o poeta, vossa Reverência de certo o leu mais de uma vez. O Jesuíta não se contentou com essa evasiva, ao que Boileau lhe disse à queima-roupa": "Já que faz questão de o saber — é Pascal." "Pascal? — exclama Bourdaloue, furioso - Pascal é tão lindo como a mentira!”-"Como a mentira? — replica Boileau — acaso não é verdade que os vossos padres escreveram que não somos obrigados a amar a Deus?”- "Por favor, Senhor! — acode o Jesuíta - é necessário distinguir!"-"Como? — replica o poeta — Distinguir? Mas, por Deus, distinguir se temos de amar a Deus ou não?”Fora de si, o Jesuíta deixou a sala. É provável que esta cena tenha levado Boileau a escrever a sua 12ª_epístola.

*** O historiador Crétineau-Joly, amigos dos Jesuítas, na sua "Histoire de Ia Compagnie de Jesus, 1845, escreve: "Pascal tornou Deus inacessível, a fim de impossibilitar os Jesuítas. Estes, por seu turno, tentaram popularizar a religião, procurando conciliar a infinita perfeição (de Deus) com os vícios dos homens, adaptando certos pontos da moral, aos caprichos do mundo. Desde o início queixara-se o mundo do rigor de certos preceitos; os Jesuítas quiseram atender a essas queixas." O que o próprio Pascal pensa dessa tentativa de compromisso entre as trevas e a luz resume-o ele mesmo nas seguintes palavras: "Saibam todos que não é intenção dos Jesuítas corromper os costumes; tal não é o seu propósito. Por outro lado, também não têm por fim único o melhoramento dos costumes, o que seria péssima política. O seu pensamento é antes o seguinte: Eles têm de si mesmos tão boa opinião que se julgam, por assim dizer, necessários para o bem da religião; querem que sua influência abranja tudo e que possam dominar todas as consciências. Ora, uma vez que os princípios severos do Evangelho são próprios para dirigir certa classe de pessoas, servem-se eles desses princípios quando favorecem suas intenções. Mas como, por outro lado, esses princípios não agradam à maior parte dos homens, sacrificam os Jesuítas esses princípios em atenção a esses tais, a fim de contentar a todos, uma vez que têm de lidar com gente de todas as classes e de nações diversas. Necessitam, por isto, de casuístas que saibam adaptar-se inteiramente a essa massa heterogênea. Se eles tivessem apenas casuístas laxos,

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como é fácil de entender, faltariam à sua máxima fundamental de abranger todos os homens, uma vez que pessoas piedosas procuram direção espiritual rigorosa. Como, porém, são poucas as pessoas desta categoria, não necessitam os Jesuítas, para direção delas, de muitos diretores rigoristas. Têm poucos desses, para dirigir a esses poucos, ao passo que têm uma multidão de casuístas laxos, que estão à disposição dos muitos que amam a laxidão moral. Por meio dessa brandura condescendente, como diz Petau, estendem a mão a todos; pois, quando alguém vai ter com eles firmemente resolvido a restituir bens injustamente adquiridos, não é de recear que eles o impeçam de o fazer; pelo contrário, louvam-no e confirmam-no em seu santo propósito. Mas, quando vai ter com eles outro homem não disposto a restituir, muito mal andariam as coisas se os Jesuítas não tivessem meios e modos para esta alternativa, assumindo eles mesmos a responsabilidade do caso. Destarte, conseguem segurar seus amigos e defender-se contra seus inimigos. Pois, quando alguém lhes lança em rosto o seu laxismo, logo apontam ao público os seus curas de almas, rigorosos e alguns livros que estes escreveram sobre o rigor da lei cristã. E os homens simples, como todos os que não penetram mais profundamente a coisa, contentam-se com estas provas."

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A Casuística em Nossos Dias

Tem-se dito que a casuística ensinada no século 17, e tão tremendamente impugnada por Pascal, desapareceu dos tratados de teologia moral dos nossos dias. É fácil o leitor convencer-se da inverdade desta asserção. Basta abrir qualquer tratado, de teologia moral, de Génicot, Noldin, Gury, Ferreres, ou outros autores de nomeada, para verificar que mudou apenas o rótulo, mas não o conteúdo dessa doutrina. Em comprovação, passaremos a citar como pano de amostra, alguns exemplos que casualmente temos à mão, extraídos da conhecida obra de Gury "Casus conscientiae", Paris 1892, 8ª_ edição, vol. I, pág. 183. O caso em apreço é textualmente o seguinte: "Ana cometeu adultério. A princípio, interrogada por seu marido desconfiado, ela, responde a todas as perguntas que não violou o vínculo matrimonial. Interrogada pela segunda vez, e depois de ser absolvida do seu pecado (em confissão), diz: Não sou culpada desse crime! Quando interrogada pela terceira vez pelo marido, que continua a insistir, ela nega redondamente que tenha cometido adultério, dizendo: Não o cometi! subentendendo consigo mesma: um adultério que tenha obrigação de revelar a você." Pergunta Gury se Ana é condenável neste seu procedimento, e responde: "Ana pode ser absolvida de falsidade em todos os três casos acima mencionados. Porque, no primeiro caso, podia afirmar que não violou o vínculo matrimonial, porquanto este continuava ainda a subsistir. No segundo caso, podia afirmar que era inocente de adultério, uma vez que sua consciência estava livre do fardo, depois de se ter confessado e recebido absolvição; pois tinha a certeza moral de ter sido perdoada. Podia até fazer esta declaração sob juramento, consoante opinião geral dos teólogos, especialmente a de Santo Afonso de Ligório, Lessius, os Salmanticenses e Suarez. No terceiro caso podia, segundo opinião provável, negar ainda ter cometido adultério no sentido em que tivesse obrigação de o revelar ao marido." É esta a "moral cristã" que, segundo Gury, merece a aprovação de todos os moralistas católicos, e que foi devidamente aprovada pela competente autoridade eclesiástica. Poderão semelhantes doutrinas promover a grandeza moral e social de um povo? A respeito dessa perversidade moral escreve o conhecido teólogo católico Johann Adam Moehler: "A casuística é o atomismo da moral cristã... e tem exercido efeito venenoso sobre a íntima essência da vida cristã. Profundeza religiosa, austera e santa moralidade, disciplina eclesiástica — tudo isto foi por ela solapado. Era característico dos Jesuítas transformarem a íntima essência em meras aparências externas, de maneira que chegaram ao ponto de conceber a Igreja de preferência como um Estado." (Moehler: Symbolik). O abade Rancé, fundador da Ordem dos Trapistas, escreve no seu livro "Lettres", pág. 358: "A moral dos Jesuítas é tão corrupta, os seus princípios são tão contrários à santidade do Evangelho, que nada há mais doloroso para mim do

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que ver o meu nome usado para patrocinar semelhantes opiniões, que detesto de todo o coração." Com esses autores católicos concordam os escritores protestantes. Adolfo Harnack, então reitor da Universidade de Berlim, escreve, em seu livro "Dogmengeschichte": "Com a ajuda do Probabilismo, conseguiu a Ordem dos Jesuítas transformarem em pecado venial quase todos os pecados mortais. Por ele se aprende como revolver-se na lama, como desorientar a consciência, e, no confessionário, varrer um pecado com outro pecado. Os extensos manuais da ética dos Jesuítas são, em parte, monstruosidades de abominação e repositórios de execráveis pecados e hábitos imundos, descrições e tratados que provocam gritos de revolta. As coisas mais chocantes são neles tratadas com cara de bronze, e isto por padres solteiros... bastante vezes com o propósito de representar as coisas mais infames como perdoáveis, e para mostrar aos mais empedernidos prevaricadores um caminho para viverem em paz com a igreja. Aparece aqui a influência deletéria de um sistema religioso do qual esses homens são servidores, uma vez que esse sistema é capaz de produzir tão sutis licenciosidades e tão perversa avaliação dos princípios morais... E tudo isto em nome do Cristo. . . O interesse que preside a tudo isto está em manter e robustecer a força e o prestígio externo do eclesisticismo”(l). Essa mesma doutrina deletéria, explanada nos tratados de teologia moral, e contra a qual tanto se revoltou Pascal, aparece também nos Catecismos populares, embora em forma menos positiva. Tenho casualmente sobre a mesa um exemplar do "Catholic Manual of Christian Doctrine", usado nas escolas católicas dos Estados Unidos e devidamente aprovado pela autoridade diocesana. Na pergunta 41 vem explicado que uma pessoa convencida de que recebe de menos por seu trabalho ou mercadoria, pode, sem pecar, praticar "compensação oculta", isto é, em bom português, furtar o resto a que julga ter direito. Onde o empregado ou a empregada que não esteja convencido de receber de menos1? Na conhecida revista católica "The Ecclesiastical Review", publicada pela Universidade Católica de Washington. D. C., Estados Unidos escreve o Padre J. Francis Connel, C. SS. R. (isto é, da Congregação do Santíssimo Redentor), às páginas 68-9, número de janeiro de 1945, o seguinte: (1) Ver: Harnack: História do dogma, Vol. VIII pg. 102, Oxford 1899.

“Question: What would be regarded now-days as the absolute sum for grave theft? Answer: To lay down a genral norm, in view of actual conditions and the value of money, it would seem that the absolute sum for grave theft would be about $ 40." Em tradução: "Pergunta: Qual seria, hoje em dia, considerada como soma absoluta para constituir roubo grave? Resposta: Para estatuir norma geral, atentas as condições reais e o valor do dinheiro, parece que a soma absoluta para constituir roubo grave seria cerca de 40 dólares." Quarenta dólares equivalem mais ou menos a Cr$ 4.500,00 cruzeiros (ou 80 reais hoje) nossos. Quer dizer que, segundo as normas morais do padre Connel, aprovadas pela competente autoridade eclesiástica e reconhecidas pelos

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responsáveis da "Ecclesistical Review" da Universidade Católica de Washington, quem rouba menos de Cr$ 4.500,00 (80 reais hoje) não comete pecado mortal. Quem por exemplo, rouba Cr$ 500,00, certamente não incorre em culpa grave. E como, segundo a Teologia Moral, a soma dos pecados veniais, por mais numerosos que sejam, não chega nunca a perfazer pecado mortal, pode o adepto de semelhante moral rouba sucessivamente centenas de cruzeiros, sem cometer pecado mortal. Como se vê, persiste em nossos dias a mesma casuística funesta e anticristã contra a qual o autor das "Lettres Provinciales" vibrou a tremenda clava da sua esmagadora dialética.

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"Meu Reino não é Deste Mundo" O Cristianismo saiu da forja divina do Evangelho em estado incandescente, na mais intensa ignição espiritual. E esta divina incandescência continuou ainda por diversos séculos. O que os primeiros discípulos do Cristo praticavam, ou antes, viviam, era Cristianismo em estado puro, essência cristã — e isto os levou a tremendos conflitos com o mundo profano, porque "o seu reino não era deste mundo", assim como deste mundo não era o reino de seu divino Senhor e Mestre. Expulsos da sociedade, varridos da superfície da terra — onde, aliás, viviam apenas os seus corpos — refugiaram-se esses heróis para baixo da terra, enquanto seus espíritos viviam nas alturas do céu, onde era o seu verdadeiro reino, seu clima divino. Em princípios do 4º_ século apareceu um imperador que veio a tornar-se para o jovem cristianismo pavoroso desastre, desastre incomparavelmente maior do que haviam sido os Nero e Diocleciano, porque estes, alimentando a tempestade da perseguição, aumentavam cada vez mais a divina incandescência dos discípulos do Nazareno — assim como impetuosa rajada de vento faz redobrar o fogo de um vasto incêndio e comunicar maior ignição ao ferro lançado na forja. Apareceu no cenário, depois desses inimigos manifestos, um inimigo oculto, incomparavelmente pior que aqueles Constantino Magno. Quem apenas leu compêndios de história eclesiástica e livros com "Imprimatur" do clero, ficará espantado em face desta minha afirmação, porquanto está habituado a ver em Constantino Magno o "primeiro imperador cristão", o insigne benfeitor do Cristianismo primevo. Nem eu tenho intenção de negar ao filho de Santa Helena certo verniz de religiosidade — embora seja ele, aliás o tipo do político sagaz e do diplomata solerte que até com a protelação do batismo procura fazer negócios. Das suas intenções íntimas julgará Deus. Nós tratamos apenas dos fatos objetivos, históricos - - e é inegável que com as medidas governamentais de Constantino Magno começou a decadência do Cristianismo. Saiu da forja divina dos sofrimentos o ferro em brasa — e arrefeceu por falta de fogo... O "imperador cristão" concedeu ao Cristianismo plena liberdade, cumulou de honras os chefes espirituais da jovem igreja, confiou-lhes elevados cargos na política e na administração do império, entregou-lhes as chaves para grandes fortunas — e estava lançado o germe da corrupção interna, não do Cristianismo em si mesmo, que é incorruptível porque divino, mas de numerosos cristãos que tinham nas mãos os destinos históricos do Evangelho do Cristo. Os chefes da igreja trocaram a força do espírito pelo espírito da força. Diluíram em águas humanas a essência divina do Nazareno servindo ao mundo um cristianismo falsificado, afirmando ser aquilo o Cristianismo puro e integral... Há um grande mistério no seio do Cristianismo: quando tomado em estado puro, incompatibiliza o homem com o mundo profano e pecador. Por quê? Porque "o seu reino não é deste mundo"... Jesus Cristo foi de todos os homens o mais incompatível com o mundo, e, quanto mais cristão é um homem, tanto mais o mundo o considera corpo estranho e quisto inassimilável no meio do seu organismo profano. Bem sabemos que certos apologistas modernos, tentam provar, em livros e conferências, a perfeita compatibilidade entre Cristianismo e mundo; provam,

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com impecáveis silogismos, que o reino divino do Nazareno é, ou pelo menos pode ser "deste mundo". Têm razão, esses paladinos dum Cristianismo moderno, chique, granfino, aristocrático, elegante, up-to-date — lá do seu ponto de vista — tanta razão têm eles quanta aquele que tenta realizar um consórcio entre o fogo e a água. É possível esse consórcio, pois não — mas o que desaparece é o fogo, e o que fica é a água... Água morna... É o que provam os séculos, desde o tempo de Constantino Magno, esse solerte político e hábil congraçador do fogo do Evangelho e das águas do mundo... Quando o diabo, no deserto, mostrou a Jesus "todos os reinos do mundo e sua glória", afirmando que tudo aquilo era dele, não mentiu, por exceção, porque tudo aquilo era de fato dele, ele era o "príncipe do mundo", como Jesus reconhece explicitamente. O mundo sem o Cristo pertencia a Satanás — e pertence-lhe ainda onde o Cristo não domina. E esse mundo satanizado não é, sem mais nem menos, cristificável, se assim se pode dizer. Só um mundo "dessatanizado" é que pode ser cristificado, e só ele é compatível com o Cristo. Com o advento do Cristo tem o homem a possibilidade de se "dessatanizar" e cristificar. "Eu venci o mundo — diz Jesus — chegou a hora em que será expulso o príncipe deste mundo"... Essa "dessatanização" foi realizada solenemente entre Belém e o Gólgota, e todo o homem que viver o Cristo, em sua vida, morte e ressurreição, será "dessatanizado" e cristificado. Mas, viver o Cristo é nutrir-se de cristianismo puro, alimentar-se de puríssima essência cristã. Qualquer diluição, qualquer enfraquecimento desse divino elixir da suprema espiritualidade é ato de traição, beijo de Judas, porque assassínio da alma divina do Cristianismo. É este o crime máximo que certas igrejas cristãs estão cometendo, desde os primórdios do 4º_ século, quando Constantino Magno elaborou a fórmula diabólica de um consórcio entre Cristo e Satanás, um compromisso covarde entre o reino de Deus, que não é este mundo, e o reino deste mundo, que não é de Deus. Constantino e seus auxiliares conseguiram em poucos anos de paz o que Nero, Diocleciano e seus comparsas não haviam conseguido em três séculos de guerra: tirar da forja divina do Evangelho o ferro candente da alma cristã e fazê-la arrefecer ao contato das auras frígidas do mundo circunjacente. Desde esse tempo, a igreja cristã, livre e respeitada, ganhou imenso em organização jurídica e hierárquica, tornou-se uma potência política, diplomática, financeira e militar — ela, filha daquele homem que era mais pobre que as aves do céu e as raposas da terra, — a igreja do pobre Nazareno — acabou milionária! Na Idade Média chegou a igreja a ser a maior e quase a única potência mundial, nomeando reis, depondo monarcas, marchando à frente de formidáveis exércitos. Hoje em dia, é a hierarquia romana a maior potência financeira e política do globo. Dizem então os homens ignaros, deslumbrados com essa pasmosa organização política, diplomática e financeira da igreja, que o reino de Deus vai de triunfo em triunfo. Como se o espírito do Cristo fosse susceptível de organização burocrática! Como se catálogos, estatísticas e bitolas padronizadas pudessem dizer algo da grandeza espiritual, que é essencialmente anônima! Como se a essência divina do Evangelho pudesse ser rubricada, carimbada, manipulada à guisa de qualquer mercadoria venal do comércio ou da indústria humana! Nunca foi o cristianismo tão glorioso e tão ele mesmo como naquele momento tragicamente sublime em que o Cristo, chaga viva, ludíbrio do mundo inteiro,

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suspenso entre o céu e a terra, gemia: "Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito"... Nunca foi a igreja tão divinamente bela e vitoriosa como naqueles 300 anos em que vivia em extrema pobreza e suprema espiritualidade, no fundo das catacumbas ou ensangüentava a arena do Coliseu... "Estão por dentro todas as magnificências da filha do rei"... "O reino de Deus está dentro de vós"... Quem considera as organizações eclesiásticas como bitola do espírito do Cristo mostra que é analfabeto e tábua-rasa precisamente naquilo que é a essência do Evangelho. Leia o Sermão da Montanha, leia o colóquio noturno de Jesus com Nicodemos, e procure retificar o seu erro à luz desses relâmpagos divinos. Pode a organização eclesiástica atingir ao infinito — e o espírito do Cristo estar a zero. Pode a parte humana da igreja subir ao supremo zênite — e o elemento divino descer ao mais profundo nadir". .. "Quem não renascer pelo espírito não pode ver o reino de Deus"... "O meu reino não é deste mundo"... É necessário que a Divina Providência, para contrabalançar a obra nefasta dos Constantinos, nos mande alguns Neros, a fim de que a benéfica inimizade destes reconstrua o que a maléfica amizade daqueles destruiu, a fim de arrasar a orgulhosa torre de Babel do nosso cristianismo político-diplomático-financeiro e levantar o divino santuário dum cristianismo espiritual como o dos primeiros tempos... Uma vez que, segundo Tertuliano, toda alma é cristã por natureza, é certo que as almas sinceras se voltarão sempre, como plantas heliotrópicas, para lá onde sentem irradiar a "luz do mundo"... Foi por este Cristianismo que Pascal lutou a vida inteira, desde a sua conversão definitiva, defendendo-o contra todas as tentativas de adulteração ou mescla com elementos profanos. Está provado, através de quase vinte séculos, que só um Cristianismo puro, 100% genuíno e integral, é que possui a força de arrancar os homens da Sodoma da sua luxúria ou da Babel do seu orgulho. Os que advogam um cristianismo político, diplomático, moderno, elegante, tipo salão, ou outra espécie qualquer de cristianismo "condicionado" - são piores inimigos do Cristianismo do que os hereges e ateus manifestos. Ou aceitamos um Cristianismo em estado puro, assim como brotou dos lábios do Nazareno — ou não somos cristãos de forma alguma!... O reino de Deus está no mundo — mas "não é deste mundo". . . E precisamente por não ser deste mundo é que pode salvar o mundo.

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Pascal e a Humanidade — O seu Livro "Pensées"

Pascal é uma das poucas celebridades mundiais que não publicou livros. Verdade é que escreveu tratados sobre matemática e geometria; mas essas conquistas, há tempo, se divorciaram do nome do seu autor e se perderam no vasto anonimato da ciência como bem comum da humanidade. As "Lettres Provinciales", que escreveu quase por acaso, tornaram-no temido e admirado, mas não fizeram de seu autor, propriamente, uma celebridade mundial. O livro central e eterno a que esse homem, que morreu com 39 anos de idade, deve a sua imortalidade sobre a face da terra, não foi por ele publicado; dele foram encontrados, após sua morte, apenas os tijolos do edifício, ou antes as esplêndidas peças de alvenaria, mas o edifício mesmo, em sua forma atual, é de outros. E, no entanto, bastaram essas mil e tantas "pedras" para dar a Pascal um dos primeiros lugares na galeria dos grandes gênios da humanidade e do Cristianismo. Assim como Colombo morreu sem saber que descobrira um novo continente cheio de maravilhas e grandezas, assim deixou também Pascal este mundo sem suspeitar que aquele punhado de fragmentos de papel que deixara nas gavetas viria a ser para a humanidade do futuro uma verdadeira América de magnificências espirituais. O Pascal que a humanidade cristã conhece, admira e ama, não é o autor do "Essai sur les coniques", nem o hábil experimentador das "Experiences nouvelles touchant le vide", nem o Pascal do "Traité de l'équilibre dês liqueurs", embora tenham esses estudos rasgado novos horizontes à aerostática e hidrostática. Nem tão pouco nos curvamos ante o vibrante polemista das "Lettres Provinciales", ainda que essas 18 cartas sejam um dos maiores monumentos da literatura francesa e o atestado de uma grande sinceridade cristã. O Pascal que atravessa os séculos e empolga as almas de todos os tempos é o Pascal dos "Pensées", porque, por menos que os materialistas ou os intelectualistas queiram, o escol da humanidade é essencialmente espiritualista, e os melhores dentre os filhos dos homens têm os olhos voltados para os horizontes eternos da Divindade. Depois que o homem pensou, viveu, lutou e sofreu muito, está mais do que nunca disposto a crer num mundo sobre-material e ultraintelectual; ou, como dizia Pascal, "o último passo da razão (inteligência) está em admitir que há infinitas coisas que ultrapassar o seu alcance; se a isto não chegar, dá prova de grande fraqueza." É por causa dessa inextinguível sede do sobrenatural e por causa desse veemente heliotropismo metafísico que os "Pensées" são um livro sempre novo, atual e querido, e serão lidos e meditados, enquanto as "Confessiones" de Agostinho fizerem parte integrante da literatura cristã da humanidade.

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*** Mas, afinal de contas, que são os "Pensées”? O leitor comum e superficial não vê, talvez, neste livro senão algumas centenas de lindos cristais de pensamentos, idéias filosóficas, metafísicas, místicas, sobre a vida humana e o Cristianismo. Há tantos homens que coligiram belos pensamentos - Sêneca, Marco Aurélio, Rousseau; nem faltam entre os escritores cristãos coletâneas de lampejos altamente espirituais... Fossem os "Pensées" célebres apenas na França, atribuí-lo-íamos, talvez, à clássica beleza e diafaneidade de estilo, mas esse livro se tornou patrimônio espiritual da humanidade, como a "Imitação do Cristo" e as "Confessiones". Na última guerra mundial foi este livro encontrado, freqüentemente, na bagagem de soldados franceses mortos no campo de batalha. Não é possível solvermos o mistério dos "Pensées", sem remontarmos a uma zona que, possivelmente, é terra incógnita para muitos dos nossos leitores. Pascal é o grande representante de uma faculdade humana que poderíamos chamar ultraintelectiva, como já foi lembrado no início deste livro. E como, no fundo, essa faculdade existe e atua em todos os homens, por isto milhares de homens introspectivos encontram nos pensamentos claros e explícitos de Pascal o seu próprio pensar e sentir, embora esse seu sentir e pensar lhes seja apenas obscura e implicitamente consciente. Quando um livro nos diz o que nós mesmos quiséramos dizer, mas dizer não sabemos, então esse livro se nos torna amigo querido, confidente e conselheiro nas horas incertas e angustiosas da vida. Um livro realmente bom não tem que dizer coisas novas; tem que dizer as coisas mais antigas que existem, tão antigas como a humanidade, quase tão antigas como o próprio Deus, uma vez que todas essas coisas antigas e eternas estão dentro de nós, em estado dormente e potencial; o livro, quando realmente bom, é o misterioso condão, a varinha mágica, o divino talitha-cumi que do longo sono tia potencialidade inconsciente suscita esses elementos eternos para a luminosa vigília de uma atualidade consciente. Pascal é o locutor consciente do subconsciente da humanidade. Há certas realidades que o homem atinge, não com um dos cinco sentidos, nem com a inteligência, mas com uma faculdade que, por ignota, não tem nome próprio; uns lhe chamam "coração"; outros, "intuição" ou "razão"; Bérgson fala num certo "élan vital". No fundo, todas estas palavras tentam exprimir a mesma faculdade anônima e inominável que preside aos mais profundos conhecimentos do homem(1). O que se pode provar matemática ou analiticamente, por meio de cálculos ou silogismos, são realidades relativamente simples e primitivas, mais próximas do jardim de infância ou da escola primária do que da Universidade do nosso verdadeiro Eu humano. As mais altas realidades estão para a inteligência, assim como a luz solar está para o cego ou as vibrações sonoras estão para o surdo. O homem comum considera a inteligência consciente como o mais perfeito estado do ser humano, o que é, certamente, um grande erro, ou então uma filosofia fartamente infantil. Há um estado superconsciente, que é incomparavelmente mais perfeito do que o estado comumente chamado consciente. O gênio, nos seus momentos mais fecundos e dinâmicos, não age de um modo plenamente consciente; está "inspirado", dizemos, isto é, tomado de um "espírito", de uma força cósmica, que não coincide simplesmente com o Eu histórico desse homem, é algo que ultrapassa todas as barreiras da sua consciência intelectual. O verdadeiro gênio é antes "atuado" do que "atuante"; é empolgado e arrebatado por uma potência superconsciente e, quiçá, ultrapersonal.

60 (1) Pascal toma o termo “raison" (razão) como idêntico a "inteligência". Na realidade, a "Razão", o Logos dos pensadores helênicos, é o espírito. O 4° Evangelho identifica o Logos com Deus, a Razão cósmica, o Espírito Eterno.

Também o místico, nas suas visões e nos seus arroubos, é superconsciente. A palavra "êxtase" é uma das mais felizes e precisas que a língua humana possui. "Ec" ou "ex" quer dizer "fora"; "stasis" significa o "ato de estar". De maneira que "êxtase" diz literalmente o estado de um homem posto fora de si mesmo. Todo homem superconsciente acha-se "fora de si mesmo", porque seu verdadeiro Eu ultrapassou o âmbito dos sentidos e do intelecto consciente, e entrou numa zona ignota, anônima, vedada a essas faculdades diurnas; entrou na zona noturna que são o domínio da faculdade superconsciente. De per si, é essa zona noturna muito mais diurna e clara do que a zona diurna dos sentidos e do intelecto, mas para estas faculdades inferiores é ela noturna - assim como a luminosa claridade do dia é escuridão para as aves noturnas, ao passo que as trevas lhes parecem luminosas. A alma ou espírito humano, superando os sentidos e o intelecto, entra no reino da superconsciência. Devido ao caráter misterioso desse estado superconsciente, muitos o confundem com a subconsciência ou inconsciência — como se uma luz excessivamente forte fosse idêntica à treva, pelo simples fato de ultrapassar os limites da penumbra. A nossa atual consciência intelectiva é comparável à penumbra, ao passo que a superconsciência é luz integral.

*** Há aqui no mundo homens altamente superconscientes, ou, como se diz geralmente, intuitivos, visionários, videntes. Quase todos nós, em certos momentos da vida, somo videntes ou intuitivos. Atingimos, então, realidades inacessíveis à faculdade puramente intelectiva, ou aos sentidos corpóreos. O sofrimento contribui poderosamente para a intensificação da vidência ou intuição. Também o jejum e a oração dispõem a alma para esse estado superior, libertando-a, por assim dizer da tirania da matéria, que lhe veda ou cerceia o poder intuitivo. A intuição é como que uma antena ou um aparelho receptor dotado de extrema sensibilidade; apanha vibrações que não afetam o aparelho grosseiro da consciência puramente intelectiva. É fora de dúvida que a faculdade intuitiva é de uma finura e receptividade muito superior à faculdade intelectiva. Ora, sendo Deus e as coisas divinas algo essencialmente ultraintelectivo e superconsciente, é natural que essas supremas realidades sejam mais facilmente atingíveis por uma faculdade superconsciente, como é a intuição, do que por uma faculdade consciente, como é a inteligência. Pascal é um dos homens mais superconscientes da humanidade, no que revela grande afinidade com seu mestre Agostinho. E tanto mais estranho é isto, à primeira vista, quanto maior era o seu potencial consciente e intelectivo. De fato, porém, não há antagonismo entre o poder intelectivo e o poder intuitivo. Esse aparente antagonismo é devido à fragilidade da nossa compreensão. Deus é infinitamente inteligente e infinitamente intuitivo ou racional. Os "Pensées" movem-se essencialmente nesse ambiente superconsciente, por mais intelectualmente conscientes que pareçam. São de fato "um apelo da razão

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(inteligência) para o coração; um recurso do tribunal da inteligência para o Supremo Tribunal da intuição. Aliás, quem lê os Evangelhos verifica que estes se acham no mesmo plano. O homem puramente intelectual não compreende os Evangelhos, ou, como diz Paulo, "o homem intelectual não compreende as coisas que são do espírito de Deus, até lhe parecem estultícia; pois devem ser entendidas em sentido espiritual". Só num ambiente de intuição espiritual é que os livros divinos podem ser compreendidos. Toda teologia ou exegese puramente intelectual acaba em apostasia do Cristianismo. Os melhores dentre os homens creem mais na super-consciência do coração do que na consciência do intelecto - e por isto os "pensamentos" de Pascal lhes dão resposta clara ao que obscuramente lhes ia na alma. É este o segredo do fascínio de Pascal através dos séculos.

*** Pedira Pascal a Deus que lhe concedesse dez anos de saúde, a fim de escrever uma apologia do Cristianismo; Deus, porém, como ele diz, lhe deu apenas quatro anos de enfermidade. E, assim, não pôde terminar sua obra. O que dessa obra existe como dissemos, são mais de mil pensamentos avulsos, que, depois da morte de Pascal, foram encontrados no seu quarto, escritos em bilhetes de tamanhos diversos e enfiados em cordéis. Os testamenteiros espirituais do autor empreenderam o trabalho árduo de sistematizar esses pensamentos e reduzi-los, quanto possível, a um todo uniforme e lógico, o que só em parte conseguiram. Ao darmos crédito ao editor Léon Brunschvieg, tencionava o autor dialogar o seu livro, suposição esta que explica certas frases que parecem contradizer às idéias e convicções que Pascal tinha em matéria de religião; provavelmente, representavam esses tópicos ideias e objeções do adversário. As primeiras edições dos "Pensées" apareceram "expurgadas", isto é, com frases truncadas ou parcialmente modificadas, a fim de as tornar mais assimiláveis para certos leitores. Mais tarde, porém, prevaleceu o bom senso, e apareceram edições genuínas e autênticas, que reproduzem fielmente as idéias de Pascal.

*** Através de todo esse livro frisa o autor duas coisas: a grandeza e a pequenez do homem. Em face da imanência de Deus no homem, é este divinamente grande; em face da transcendência de Deus, é o homem indizivelmente pequeno. Ai do homem que só experimentar em si o Deus imanente! Acabará num panteísmo amorfo, em que pecado e santidade não o mesmo. Ai do homem que só crer no Deus transcendente! Acabará na frialdade polar do desânimo ou desespero. Feliz do homem que se sentir divinamente grande e humanamente pequeno! A tensão dinâmica entre esses dois polos lhe dará força e arrojo para se elevar às alturas do Cristo, do Deus-homem, do homem-Deus.

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*** Pascal pretende convencer os cépticos e ateus da verdade da revelação cristã e mostrar-lhes o absurdo da sua incredulidade. Embora nem sempre pareçam de todo convincentes os argumentos que aduz, a extraordinária firmeza e convicção do autor é, por vezes, argumento mais poderoso a favor da verdade do que os silogismos que forja. Pascal é, antes de tudo, um filho da graça divina, e como tal se sente ele, com toda a humildade e alegria. Esta sua disposição fundamental transparece de todas as palavras de sua obra, comunicando ao leitor incrédulo ou céptico algo da firmeza do autor. Tem-se dito — e não sem alguma razão — que falta ao autor dos "Penses" certo senso empírico, certa noção das realidades da vida, o que não admira, quando se conhece a vida eremítica que Pascal levou. As suas deduções são rigorosamente lógicas, cativando nas malhas de uma impecável coerência o intelecto do leitor; mas há também, uma "lógica da vida", quem nem sempre coincide com as conclusões retilíneas de um silogismo impecável. A lógica da vida real é, por vezes, tremendamente "ilógica". Quem leu "O Gênio do Cristianismo", de Chateaubriand, sabe com que "ignorância genial" desenvolve o autor certas verdades teóricas que, no plano da vida prática, assumem colorido bem diverso. Por vezes encontramos nos "Pensées" frases magníficas que lembram o idealismo abstrato de Chateaubriand. Mas... Quem deixaria de se deliciar aos raios benéficos do sol por saber, pelas aulas de física ou astronomia, que o grande astro tem suas manchas?... No meio de um mundo corroído de materialismo, indiferentismo ou cepticismo religioso, atua a obra de Pascal como um poderoso ímã que em sua misteriosa corrente empolga nossa alma e polariza todos os átomos do nosso ser, norteando-os rumo a Deus e às coisas divinas. E isto é de imensa necessidade, no meio desta humanidade rasgada de desarmonias.

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As Razões do Coração que a Razão Ignora

Como dizíamos a princípio, à primeira vista não parece Pascal pertencer àqueles homens seculares a que Keyserling adjudica imortalidade, homens que enunciam idéias cósmicas, obscuras e amorfas, porém prenhes de fecundidades e ilimitadas perspectivas; pois as ideias de Pascal são de uma clareza diáfana, verdadeiros cristais de pensamentos, de uma precisão geométrica. E, no entanto, é o autor dos "Pensées" um dos grandes gênios da humanidade e pertence à categoria dos homens cósmicos descritos por Keyserling. É que, por detrás daquela cristalina nitidez de pensamentos, se alargam mundos de infinita grandeza e amplitude, universos em evolução, realidades ainda não plenamente diferenciadas e que, como células primitivas, têm as portas abertas para todos os lados, para todas as possibilidades evolutivas, para todos os horizontes de tempo e do espaço. Há homens cuja linguagem é obscura por falta de ideias claras — e há homens que usam palavras enigmáticas por excesso de ideias. O vocabulário comum da língua humana é instrumento paupérrimo, que, de forma alguma, pode atingir as culminâncias das supremas realidades do universo. Há homens que sabem exprimir com meridiana clareza as suas ideias, precisamente por serem poucas e quotidianas essas ideias; definido esse pouco, nada resta a definir. São como fachadas de casas sem fundo, esses homens; tudo que neles há está no frontispício, claramente visível à luz das lâmpadas da inteligência. São homens que, com palavras claras e precisas, partejam a totalidade do seu Eu, e por isto vivem satisfeitos com o que dizem e escrevem, uma vez que suas palavras e seus livros são, de fato, a manifestação cabal do que eles pensam e sentem. Por isto também estão satisfeitos com suas produções literárias e acariciam-nas com a afetuosa volúpia com que uma mãe afaga seu filhinho dileto, em que vê o seu Eu em miniatura. Há, porém, outra classe de homens, tipo agostiniano-pascalino, que, depois de darem à luz, em termos claros e nítidos, o que neles havia de dizível, continuam a gestar no seio da alma o indizível, prole eternamente nascitura; e este mundo vastíssimo, inédito, indito e indizível, é-lhes fonte perene de sofrimentos anônimos e projeta estranhos clarões de mistério e magia sobre as pobres palavras que esses homens souberam balbuciar em linguagem humana. A imensa reserva de palavras indizíveis exerce irresistível fascinação sobre as poucas palavras dizíveis. Onde há apenas fachada sem fundo, ali não há atração magnética. As palavras dos homens cósmicos não valem pelo que dizem — valem pelo que silenciam e fazem adivinhar. As suas reticências fazem suspeitar muito mais do que a sua eloqüência. O panorama que eles descortinam é belo e vasto — mas os ouvintes ou leitores sabem ou sentem que, para além da extrema linha do horizonte, se alargam mundos e universos incomparavelmente maiores e mais belos. O homem cósmico empolga e fascina mil vezes mais pelas invisíveis perspectivas que insinua do que pelos visíveis panoramas que descortina. É natural que o homem cósmico esteja sempre insatisfeito consigo mesmo, com suas palavras, com seus pobres escritos, com seus magros "triunfes". Também, como poderia ele estar contente com esses "triunfos" quando o que, por dizível, foi dito, não é a milésima parte daquilo que, por indizível, não foi dito. Nasceu a

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pequena realidade dizível, — continua em gestação a grande realidade indizível... A chamada "humildade" que nimba sempre os homens verdadeiramente grandes, não é senão o reflexo da realidade e o esplendor da verdade. Do seu saber pode o homem experiente duvidar — mas do seu não-saber tem ele plena certeza. O homem cósmico é "humilde" porque é sincero, conhece e reconhece a realidade objetiva. Só pode celebrar a plenitude da sua sapiência quem ignora a vacuidade da sua insipiência. A confissão da ignorância é porta aberta para a sabedoria... O homem genial mentiria a si mesmo se alardeasse sapiência. Pascal é o grande advogado do coração, porque sente intensamente os horizontes infinitos que se alargam para além das extremas barreiras da inteligência. Sabe que inteligência alguma, por mais poderosa e audaz, conseguirá jamais transpor certas fronteiras. Por isto, proclama ele a hegemonia do coração sobre o império do intelecto. O coração, em seu sentido mais panorâmico e integral, é o misterioso órgão pelo qual o Infinito se manifesta ao finito; é o "porto de invasão" da Divindade na vida humana; é a antena que apanha as ondas espirituais que percorrem o universo invisível. A inteligência é como a nossa visão natural, que percebe apenas determinada escala de vibrações etéreas, as que ficam entre o violeta e o vermelho; ao passo que o coração é comparável a uma faculdade visual que percebe as vibrações sutis e infinitesimais que ficam além da zona ultravioleta. Por essa razão proclama Pascal o coração como a mais alta faculdade cognoscitiva, como a síntese e quintessência de todo o conhecimento que o homem possa ter no mundo supra-sensível e ultraintelectivo. O coração é, para ele, o "organum Dei", o aparelho que revela a existência de Deus — e isto não por um tal ou qual ato de fé intelectual, mas mediante o amor que é a f é na mais alta potência. Os "Pensées" são o Cântico dos Cânticos da fé que se manifesta pelo amor. A serviço dessa fé e desse amor coloca Pascal todos os fulgores da sua poderosa inteligência, toda a dinâmica da sua dialética e todos os deslumbramentos da sua linguagem de beleza e harmonia. Nada mais comovente e encantador do que esse espetáculo, de ver um dos príncipes intelectuais da humanidade integrar o seu intelecto no x mundo do coração, a fim de encontrar a Deus, o Deus das suas grandes saudades... Se houve jamais cristão sincero que com todas as veras do seu ser procurasse conhecer e possuir a Deus, através do seu Cristo - então foi Blaise Pascal. O intelectualismo unilateral não lhe perdoará jamais haver proclamando a soberania do coração sobre o imperativo do intelecto; o dogmatismo teológico não lhe perdoará nunca ter apelado de Roma para Deus — mas todo cristão sincero vê em Pascal o arauto de um Cristianismo, que, nos séculos vindouros, como esperamos, virá a ser bem comum da humanidade espiritual. Os grandes gênios antecedem, por séculos e milênios, a história do grosso da humanidade; são como os excelsos píncaros das montanhas que apanham e refletem os raios solares muito antes que a claridade diurna se difunda pelos vales e pelas baixadas. É que "o coração tem razões de que a razão nada sabe"... Cremos que os "Pensées" serão lidos com maior gosto ainda pelos cristãos dos séculos futuros do que o são pelos homens do tempo presente.

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Tragédia Metafísica do Homem Três grandes lutas têm de sustentar o homem normal até chegar a uma relativa quietação interior: l — a luta entre a matéria e o espírito; 2 — a luta entre liberdade e autoridade; 3 — a luta entre o intelecto e a fé. A primeira dessas guerras é de duração limitada; atinge a sua maior veemência na juventude, quando as potências do corpo, em rápido avanço, pretendem tomar de assalto o espírito e proclamar sobre ele a sua tirânica ditadura. Mais tarde, equilibradas as duas forças e devidamente subordinadas uma à outra, estabelece-se, geralmente, uma paz relativa, ou, pelo menos um estado de "não-beligerância", como se diria modernamente, dando novo sentido a esta palavra. Muito mais intensa e prolongada é a segunda guerra, onde se digladiam a liberdade e a autoridade, ou seja, o princípio de autonomia individual e o da harmonia social. É inerente a todo ser vivo e, sobretudo, ao ser racional, a tendência de querer afirmar ao extremo o seu Eu individual. Esse amor-próprio, esse instinto egocêntrico é, de per si, necessário. É uma lei natural, e, por isto mesmo, a vontade do autor na natureza. Nenhum ser se realizaria devidamente a si mesmo, se não tivesse dentro de si esse veemente anseio de auto-afirmação. O desejo de progressivo aperfeiçoamento leva todo ser a empolgar e centralizar dentro de si tudo o que de valioso encontre em derredor. É o amor-próprio vital e existencial de todos os seres em evolução. Mas, como o indivíduo "A" não é o único ser da sua espécie, deve respeitar os direitos do indivíduo "B", como se fossem seus próprios. Na esfera humana, deve o Eu conceder ao não-Eu, ao Tu, ao Nós, o mesmo que reclama para si, ou, como diz o divino Mestre, deve "amar o próximo como a si mesmo". Afirmar o Eu à custa do Tu, é o grande pecado contra a ordem sagrada do Universo. É um delito cósmico. Respeitar os, direitos do Tu, segundo a bitola do Eu, é estabelecer a harmonia cósmica. "Amar a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a si mesmo — nisto consistem toda a lei e os profetas." (Jesus). O amor que o Eu deve a Deus vai, por assim dizer, na vertical. O amor que o Eu deve ao Tu vai na horizontal. Fazer isto é respeitar a ordem e harmonia do mundo, é "praticar o bem", é ser "homem bom". O homem bom traça a sua vontade paralela à de Deus manifestada na ordem natural. O homem mau traça a sua vontade em linha oblíqua à de Deus, acabando assim, fatalmente, por colidir com a reta eterna, num ângulo maior ou menor — e esse desajustamento de linhas é injustiça, é desordem, é pecado. Ora, a legítima autoridade humana tem por fim zelar por essa geometria vertical-horizontal; impedir que se desloquem estas linhas essenciais da vida humana: a linha do amor do Eu e a linha do amor do Tu e do Nós. Mas o indivíduo de Ego hipertrofiado não aceita de bom grado essa limitação à sua tendência, essa coação anti-egoística exercida pelo fator "autoridade". Procura, por isto, eliminar a autoridade, ou furtar-se à sua ação, a fim de poder invadir desimpedidamente a zona do Tu, cercear-lhe os direitos em benefício próprio, eliminá-lo por completo, se necessário for, para o completo triunfo do Eu. Nenhum Cain tolera de bom grado um Abel. A incorporação do Eu no plano do cosmos, divino e humano, exige notável potencial de compreensão e virtude.

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*** Entretanto, a luta suprema do homem chegado à sua maturidade espiritual é outra. É a luta titânica de harmonizar o intelecto com a fé. A luta entre matéria e espírito é individual. A luta entre liberdade e autoridade é social. A luta entre o intelecto e fé é metafísica. Atinge as últimas e mais profundas raízes do ser humano, lá onde corre a linha divisória entre Deus e o homem, entre o finito e o Infinito. Não sei se na vida presente, é possível um definitivo tratado de paz entre essas duas potências beligerantes. O único homem que até hoje, ao que sabemos, viveu num ambiente de perfeita paz entre o intelecto e a f é foi Jesus, o Cristo. Nele não aparece nenhum sintoma de angústia espiritual, de dolorosa problemática interior, de conflito entre o mundo visível e invisível. E isto pela simples razão de não existir nele a fé em sua forma especificamente humana, mas, sim, na forma sobre-humana ou divina da visão. Isto nos dá esperança, e até certeza, de que, um dia, também nós proclamaremos em nosso Eu a harmonia do intelecto e da fé. E esta visão longínqua de paz nos preserva do desespero no meio da luta atual. Para estabelecer unia relativa harmonia entre o intelecto e a f é, já na vida presente, não basta provar que a fé não é contrária ao intelecto, como fazem os bons apologistas. É uma tese verdadeira, porém negativa — e o homem não se satisfaz com teses negativas. Quanto mais o homem procura transformar em intuição o seu intelecto, tanto mais diminui ele a distância entre o intelecto e a fé; porque, sendo a fé uma espécie de botão ou germe da visão futura, tanto mais diminui a tensão hostil entre o intelecto e a fé, quanto mais aquele se assemelhar à intuição, e quanto mais esta se aproximar da visão. O homem primitivo passou do Éden do inconsciente para o mundo do semiinconsciente intelectual; o homem cristificado passa dessa semiconsciência intelectual para a pleniconsciência espiritual. A inteligência traça ziguezague, serpentinas, meandros, mil e mil caminhos labirínticos, rumo à verdade - ao passo que a fé não conhece propriamente caminho algum, só conhece o termo da jornada, atinge esse termo, sem nenhum espaço intermediário; não calcula, não analisa, não forja silogismos, não pondera argumentos pró e contra — a f é atinge o seu alvo de um jacto, pela simples, ingênua e corajosa reafirmação vital daquilo que Deus afirmou. A fé é por essência um ato de suprema audácia, quase uma temeridade metafísica. O herói da fé joga-se às ondas bravias do mar, de um mar ignoto e infinito. Não usa flutuadores nem salva-vidas. Não nada ao longo da praia, prudentemente agarrado aos arbustos, como fazem os nadadores incipientes e medrosos; perde de vista todos os litorais do continente dos sentidos e do intelecto, e tanto maior é o arrojo do herói da fé, quanto mais veementes são as tempestuosas vagas do oceano divino que o empolgam com sua irresistível sedução. Devido a essa sublime audácia é que a fé nos parece algo de irracional e antiintelectual. E ela é, de fato, o mais radical e veemente protesto contra certo burguesismo pseudo-espiritual cuja virtude máxima é a "prudência". A fé é, à luz dessa "prudência" burguesa, a maior "imprudência" que imaginar se possa. Por isto agradecia Jesus ao Pai eterno o fato de ter revelado essas coisas divinas ao "simples e pequeninos" e ocultado aos "doutos e entendidos". Estes últimos, por via de regra, obstruem a tal ponto o caminho que nada mais enxergam do termo da jornada; as montanhas dos seus argumentos intelectualistas lhes ocultam toda e

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qualquer realidade divina. O excesso do seu intelectualismo envolve em espessos nevoeiros o objetivo da intuição espiritual. Para que esses "doutos e entendidos" possam crer, é necessário que primeiro se desintoxiquem da sua filosofia intelectualista; que reduzam a uma ingênua e natural simplicidade o complexo artificialismo da sua vida interior; que se tornem como crianças, porque, segundo as palavras do Mestre, só assim é que entrarão no reino dos céus... O presente século, unilateralmente intelectualizado, tem de ser por força um século distanciado da fé. Há, todavia, alviçareiros indícios de que estamos preludiando um período de conquista espiritual. A intuição está ganhando terreno. O pleni-homem é intuitivo, e por isto nada sabe desse doloroso conflito metafísico entre o intelecto e o coração; o "segundo Adão” é o homem intuitivo por excelência.

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O homem que consegue harmonizar o intelecto e o coração, aproximando-os da intuição e da visão das supremas realidades, adquire um novo modo de conhecer, que não é nem ciência nem fé. Que é, então? É uma vivência, espécie de experiência íntima, profundamente vital, não científica nem religiosa (no sentido comum do termo), mas intensamente real, essencial, cósmica, divina. Temos, inegavelmente, dentro de nós, como já foi dito, uma faculdade com a qual aprendemos as supremas realidades, faculdade cuja íntima natureza é misteriosa. Essa faculdade é o reflexo do cosmos divino dentro do Eu, uma espécie de consciência cósmica, universal, divina. É uma base infinitamente ampla. Tudo que sobre ela construímos — a ciência, a fé, etc. — é sempre menos largo que essa base. Por meio dessa base profunda e vasta está o homem ligado ao cosmos, isto é, a todas as demais realidades, quer materiais, quer espirituais e divinas.

*** O homem, na vida presente, depois de harmonizar o intelecto e a f é pela vivência, chega a um ponto em que a "ex-sistência" (existência) (1) das coisas espirituais e divinas lhe parece antes uma "in-sistência". O que o convence dessas supremas realidades não é tanto aquilo que está "ex" (fora), mas, sim, aquilo que está "in" (dentro). Para esse homem, a "in-sistência" ou "imanência" é o fator primário e decisivo, ao passo que a "ex-sistência" (existência) ou "emanência" (transcendência) lhe é secundária e acidental. (1) A palavra "existência", ou primitivamente "exsistência", é formada da partícula "ec" ou "ex" (fora), e "sistere" (colocar) — isto é, "aquilo que está colocado para fora", ou seja, o que é visível e cognoscívelmente acessível. Sendo que o homem intuitivo se guia de preferência pela realidade interna

68 das coisas ou de seu próprio Eu, poderíamos designar esse modo de ser e conhecer pela palavra "insistência", no sentido de "realidade interna".

É este, aliás, o curso de toda a cultura superior da humanidade: do "ex" para o "in", de fora para dentro, da periferia para o centro, da transcendência para imanência. Se fosse possível, na vida presente, uma perfeita sintonização entre a ciência e a fé, ou seja, uma perfeita sublimação da ciência em intuição, e da fé em visão — estaria solucionada a tragédia metafísica do homem. Mas essa perfeita sintonização não é possível, por ora, porque é assaz precária a nossa potência intuitiva, e a visão, quando existe, se restringe a uns poucos momentos de vidência sobre-humana. Por isto, continua a tragédia metafísica do homem pensante que queira crer. Pascal dá a entender que o seu crer se resume num "querer-crer", o que é perfeitamente compreensível em um homem como ele, que possuía em alto grau a inteligência das matemáticas e um apurado senso de objetividade. Esse "querer-crer", esse sincero desejo de fé, é talvez a única modalidade de crer para muitos homens do presente século. E, como Deus é um Deus de bondade e indulgência, que "não quebra a cena fendida nem apaga a me dia fumegante", é de esperar que ele diga também a esses mártires da tragédia da fé o que disse àquele doutor da lei, que também era um desses crentes descrentes: "Não estás longe do reino de Deus"... Pensam os inexperientes que esse "querer-crer" seja falta de fé, ou uma fé vacilante, uma espécie de cepticismo ou dubitação universal de Deus e das coisas divinas. Estão muito enganados. Esse "querer-crer" é uma grande fé; mas, para o homem de intensa intuição espiritual, toda fé, por mais pujante, é tão deficiente que chega a parecer-lhe quase o contrário. Quem viu um foco de 1.000 graus, e tem nas mãos apenas uma lâmpada de 100 graus, quase que se arreceia de chamar "luz" a essa pobre lanterna, que, para outros, de experiência menos luminosa, representa, possivelmente, o mais deslumbrante foco que eles possam conceber. Provavelmente, esse modesto e doloroso "querer-crer" de Pascal é, na realidade, um "crer" mais firme e convicto do que o "crer" de muitos outros que nunca passaram por essas dores espirituais, e isto, não por terem uma fé mais firme, mas por não saberem avaliar a, enorme distância que vai da pequena realidade ao grande ideal. Quem crava à distância de mil metros a extrema baliza do seu ideal, sente-se muito satisfeito e seguro de si, quando atinge a oitocentos metros; a sua satisfação é, por assim dizer, quatro vezes maior do que a sua insatisfação (800 para 200!) — mas quem cravou a meta a um milhão de metros, mesmo que percorra mil, dez mil ou cem mil metros, tem sempre a dolorosa impressão de estar muito longe do seu ideal, uma vez que o espaço não percorrido é muito maior do que o caminho vencido. A distância que vai da realidade ao ideal é a bitola da nossa infelicidade! O "querer-crer" de um espírito penetrante e de uma alma vasta como Pascal só poderá ser ideal em toda a plenitude. Esta última hipótese é impossível na vida presente, ao passo que a primeira supõe um espírito medíocre e obtuso, incapaz de enxergar algo para além das acanhadas fronteiras de sua vida quotidiana. De maneira que não há, para o espírito clarividente, outra alternativa senão a de sofrer o martírio da sua própria espiritualidade, a incompreensão e, possivelmente, a pecha de incrédulo ou herege, por parte de outros homens mais satisfeitos com o pouco que enxergam e ignorantes de muito que ignoram.

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O "querer-crer" de um espírito penetrante de uma alma vasta como Pascal só poderá ser entendido e devidamente aquilatado por um homem de igual potencialidade e dinamismo espiritual. O tacteante "cepticismo" de muitos homens, aparentemente incrédulos ou indiferentes em matéria de religião carimbada, revela, não raro, maior potencial de fé do que o farto e intolerante dogmatismo de muitos outros que nunca adivinharam mundos de infinita grandeza, para além do horizonte do seu complacente burguesismo espiritual. Há muitos "descrentes" mais crentes que certos "crentes"...

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Cristianismo PolíticoHierárquico — Ou Cristianismo Espiritual Místico?

Na pessoa e obra de Pascal reviveu a humanidade dramaticamente o maior problema da sua história espiritual. O silencioso eremita de Port-Royal colocou a humanidade mais uma vez em face desse dilema secular e milenar: Cristianismo político-hierárquico — ou cristianismo espiritual-místico? Pascal nunca teve intenção de combater a igreja católica ou seus legítimos chefes. Se houve jamais, repetimos, um católico sincero, convicto, fervoroso, humilde, caridoso e desinteressado, então foi Pascal. Mas para ele, a verdadeira catolicidade, que é cristianismo, é algo infinitamente superior à forma externa e humana que a igreja possa assumir, neste ou naquele período, na pessoa deste ou daquele chefe hierárquico, nesta ou naquela orientação teológica ou exegética. Para além de todos os fenômenos religiosos existe a RELIGIÃO. Acima de todas as vicissitudes temporárias das igrejas cristãs existe o CRISTIANISMO. Pascal crê numa Catolicidade Cósmica, Eterna, Divina. Por amor a essa Igreja, que ele viveu numa profunda experiência pessoal, está disposto a trabalhar e sofrer, e, se necessário, entrar em luta, com todo e qualquer elemento que ouse amesquinhar a grandeza e formosura dessa Igreja de Deus. O título que encima esta página é o problema máximo que, durante séculos, agitou a igreja de Israel, culminando, no tempo de Jesus Cristo, na vitória da orientação político-hierárquica, que assinala a maior calamidade espiritual de Israel e marcou a ruína definitiva da sinagoga. Quem conhece a história espiritual de Israel sabe que vão através dela duas correntes paralelas, que poderíamos chamar o sacerdotismo e o profetismo (1}. O sacerdote concretiza o elemento hierárquico — o profeta, o elemento espiritual. Os sacerdotes clamavam, ante de tudo, por uma poderosa organização hierárquica, social, política, jurídica; e nesta organização, externa e humana, viam eles a salvação da religião. Era necessário que a religião impressionasse o mundo com a exibição de seu poder, com os esplendores do seu culto, da sua liturgia. Era também esta a principal forma "missionária" da religião sacerdotalista: impressionar os goim, os de fora, que visitassem Jerusalém, com o deslumbrante fenômeno do templo, dos sacrifícios e de um sacerdócio admiravelmente organizado. (1) Tomamos a palavra "profeta" em sua acepção primitiva de "intérprete" ou "locutor" de Deus — e não no sentido posterior, de alguém que prediz eventos futuros. O papel essencial dos vates de Israel era receber as mensagens divinas e transmiti-las ao povo, interpretando-as ao mesmo tempo, segundo o espírito de seu Autor.

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Os profetas, porém, esses incompreensíveis videntes e intransigentes arautos da Divindade, tinham outra idéia da religião. Verdade é que nem sempre impugnavam os esplendores externos da religião; reconheciam que a religião devia desentranhar-se também em atos externos e possuir a sua organização hierárquica, política e social — mas nenhum deles via nisto a alma e essência da religião. Para o profeta, religião era algo essencialmente espiritual, interno, divino; uma como que definitiva e incondicional rendição da creatura a seu Creador, uma completa, absoluta e irrestrita entrega do homem a Deus, entrega essa que se manifestava na vida quotidiana em forma de uma ética universal, no culto da justiça, da verdade, da sinceridade, da pureza, do amor sem limites. Os sacerdotes insistiam, antes de tudo, na teologia, liturgia e hierarquia — o profeta clamava por uma vida espiritual, por um renascimento em Deus. Por isto, muitos dos profetas da lei antiga foram hostilizados e mortos pelos adeptos do sacerdotismo. Quase todos os profetas, como, mais tarde, o maior deles, João Batista, eram homens espiritualmente solitários, que, na sua imensa solitude, "clamavam no deserto", ainda que ninguém os ouvisse, ou seus clamores des-

pertassem eco apenas em uma ou outra alma receptiva; eram como estranhos blocos erráticos, arrancados por mão invisível das montanhas eternas e arremessados à vasta planície da vida, muitas vezes ao meio de espíritos rasteiros e medíocres. Foram os profetas, e não os sacerdotes de Israel, que conservaram acesa na alma da nação as grandes revelações de Jeová e a suprema expectativa de um Messias vindouro. Quando, com Malaquias, expirou o último dos profetas da lei antiga, 400 anos antes da vinda do Cristo — começou a grande noite. .. O Sacerdócio, sem o contrapeso espiritual dos profetas, começou a dominar com irrestrito poder, e durante esses quatro séculos desabou sobre Israel a maior catástrofe espiritual da sua história: perdeu a noção de um Messias espiritual que viesse libertar o homem da escravidão do pecado, e começou a suspirar por um Messias político que restabelecesse o esplendor político de Israel e expulsasse o invasor estrangeiro. No tempo de Cristo, como sabemos pelos Evangelhos, essa decadência espiritual atingira o auge, e por isto, não realizando Jesus Cristo as aspirações políticas de Israel, a sinagoga em peso o rejeitou como não sendo o verdadeiro Messias que eles esperavam. João Batista, que tentou reatar a idéia espiritual dos profetas antigos, proclamando um redentor espiritual, foi perseguido pelos sacerdotes de Israel, que, como diz Jesus, "não quiseram andar aos fulgores da sua luz", que acabou por se extinguir no cárcere de Maqueronte. A rejeição e morte do Messias foram a consequência final do predomínio do sacerdotismo sobre o profetismo, a derrota do elemento espiritual e místico, e a vitória do elemento político e hierárquico. Os nossos dias revivem, em grande parte, os tempos trágicos da sinagoga decadente. Ninguém que tenha olhos para ver pode deixar de verificar que grande parte do catolicismo romano de hoje segue o mesmo caminho que levou à ruína a igreja de Israel: hipertrofia do elemento político-hierárquico - - e atrofia do elemento espiritual-místico. Por outro lado, temos o cristianismo evangélico cujo empenho máximo é fornecer ao homem um conhecimento completo do corpo da Bíblia, considerando o homem tanto mais religioso e cristão, quanto mais perfeito conhecedor for dos fatos da revelação do Antigo e do Novo Testamento. É bem verdade que o conhecimento das grandes revelações que Deus fez à humanidade através dos séculos é, em geral, um grande adjutório para uma vida profundamente cristã e espiritual, mas não é ainda essa vida. Pode alguém saber de cor a Bíblia toda e, contudo não ser um homem espiritual e cristão — como, por

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outro lado, também pode alguém cultivar com absoluta perfeição toda a liturgia da igreja católica, e não ser bom cristão. Cristianismo não é simplesmente ética, nem liturgia. O Cristianismo é antes e acima de tudo, uma grande realidade sacral, um fenômeno essencialmente divino que se projetou para dentro deste mundo, através da pessoa de Jesus Cristo. Este caráter ontológico e metafísico do Cristianismo e essencial à sua definição. Não é uma idéia, não é um símbolo, não é um sistema ético, não é um complexo litúrgico — é uma estupenda REALIDADE, uma infinita e divina SACRALIDADE. O que Jesus disse a Nicodemos naquela memorável noite em Jerusalém é a alma do Cristianismo: uma VIDA DIVINA. E o caminho para alcançarmos esta vida divina chama-se RENASCIMENTO PELO ESPIRITO. Nascer quer dizer receber a vida. Renascer significa nascer de novo, receber uma nova vida, diferente da vida natural que o homem recebeu através de seus pais. "O que nasce da carne é carne — mas o que nasce do espírito é espírito." O autor e a causa eficiente dessa vida nova é, pois, o espírito de Deus, Deus mesmo. O Espírito de Deus não pode dar senão vida espiritual e divina. Receber essa vida divina e desenvolvê-la - isto é que é Cristianismo. Assim como a criança nascitura nada pode contribuir para o seu nascimento, dependendo inteiramente dos pais — assim também não pode o homem dar a si mesmo essa vida espiritual e divina, que lhe é dada gratuitamente por Deus, como autor, causa e doador único dessa vida. O homem pode, porém, aumentar essa vida divina, assim como a criança, depois de nascer, pode aperfeiçoar a vida que os pais lhe deram. O homem não deve praticar "boas obras", para receber essa vida divina — que é absurdo - mas deve praticá-las, porque recebeu essa vida, gratuitamente. O Verbo eterno, Jesus Cristo, "veio ao mundo, e a todos os que o receberam deu-lhes ele o poder de se tornarem filhos de Deus, os que nasceram, não do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do varão, mas de Deus". Essa vida dada por Deus, vivida em Deus e para Deus - - é o que se chama Cristianismo. Pascal teve dessa vida divina uma profunda e inexplicável experiência pessoal, naquela noite de 23 a 24 de novembro de 1654, quando escreveu numa folha de papel, que levou consigo até a hora da morte, estas palavras: "Desde as dez e meia até cerca da meia-noite... FOGO... Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó... Não o Deus dos filósofos e dos cientistas... Certeza... Certeza... Emoção... Alegria... Paz... Teu Deus será meu Deus". Nunca revelou à pessoa alguma o que lhe aconteceu nessa noite luminosa, mas foi a noite da sua definitiva conversão ao Cristianismo. Nessa noite nasceu o Pascal cristão, quando o Pascal humano e intelectual já contava trinta anos. Desde então viveu Pascal unicamente para esta grande realidade espiritual, para esta infinita sacralidade divina. Desde então se tornou ele intransigente e não tolerava nenhuma outra concepção do Cristianismo, por mais bela que parecesse e por mais célebre que fossem os seus defensores. Para ele, ser cristão era ter nascido de Deus e viver essa nova vida em Deus. Por este seu cristianismo trabalhou, lutou e sofreu Pascal. Por amor dele arrostou os ódios de uma poderosa Ordem religiosa e aceitou todos os anátemas que lhe lançaram os que tinham outra ideia do cristianismo. Bem sabia Pascal que não podia comunicar a sua experiência íntima a quem não tivesse tido experiência igual; sabia que, teológica e hierarquicamente, seria

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derrotado — mas sabia também que da firme e sincera afirmação de uma grande experiência cristã resultaria maior benefício espiritual para a humanidade do que da elaboração de eruditas teses sobre Cristo e o Cristianismo. Experiência cristã — é disto que o mundo de hoje precisa. Não é a teologia que o pode cristianizar. Ninguém se converte, ninguém se cristianiza intimamente, ninguém renasce em Deus, pelo fato de ouvir belos sermões ou ler esplêndidos livros sobre as coisas divinas. Se o homem não tiver um encontro pessoal com Deus, uma experiência religiosa individual, íntima, profunda, incomunicável, mística — não é cristão, nem religioso, ainda que recite os mais ardentes atos de fé e acompanhe todos os atos culturais da sua religião. Não renasceu do espírito e para o espírito. A cristianização da humanidade é, em última análise, a cristificação do homem, e esta é uma questão de experiência individual. Não há conversão de massas — só há conversão de indivíduos. Mas um indivíduo realmente cristificado arrasta consigo milhões de outros; basta que possua suficiente "voltagem" espiritual. A maior energia do Universo não está na veemência da tempestade ou dos terremotos, não está em erupções vulcânicas ou na violência do raio — a maior energia do Universo está dentro de um átomo invisível. Quem conseguir penetrar dentro desse Nada infinito terá nas mãos a energia atômica, que excede toda e qualquer outra forma de energia. Quando o homem vive o seu encontro pessoal com Deus, quando Deus penetra no íntimo centro do Ego humano — então se dá a grande "explosão", uma espécie de "desintegração atômica". Então abre-se o homem, desfaz-se de si mesmo, "desegofica-se", diviniza-se, integra-se em Deus...E nesse processo de "desegoficação" e divinização libertam-se todas as energias latentes do homem. E, uma vez que esse homem deixou de pertencer ao Eu, passando a ser de Deus, passa a ser também de todos os filhos de Deus, e o mundo inteiro recebe das energias libertadas por essa explosão do átomo humano... Pascal é um excelente modelo para todo homem que queira, de fato, viver o seu cristianismo e encontrar-se pessoalmente com Deus...

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Diluindo-se em Deus...

O analfabeto ou principiante na espiritualidade considera a Deus como um ser longínquo, transcendente, que habita para além das nuvens e das estrelas do firmamento. A esse Deus longínquo envia ele, sobretudo quando em apuros, os seus clamores, as suas preces, que — não se sabe de que modo -chegam ao conhecimento desse Ser Misterioso e sempre distante, se é que chegam... E daí, desse ignoto além, vem auxílio, em alguns casos, ao passo que em outros casos está "perdido todo o trabalho". Assim pensa e age o homem inexperiente. E que admira, afinal de contas, que destarte proceda a maior parte dos homens? Da ideia de um Deus transcendente à experiência do Deus imanente vai tão enorme distância, medeiam tão profundos abismos, que milhares e milhões de homens não conseguem jamais realizar essa jornada da longínqua transcendência à propínqua imanência. E a principal dificuldade não vem da Religião, mas sim das religiões. Essa viagem, da periferia para o centro, parece mais difícil que uma subida ao Himalaia, um vôo estratosférico, uma expedição ao coração do Saara ou ao centro da terra. É verdade que Jesus disse, com absoluta clareza: "O reino de Deus está dentro de vós" — mas o homem, de tão desorientado, não cessa de buscar o seu Deus fora de si e fora do mundo. E, o que é mais estranho, muitos têm medo de admitir um Deus que esteja dentro deles. Não lhes parece bastante divino esse Deus. Receiam que seja um pseudo-deus por demais humano, talvez um Eu mascarado em Divindade... Outros, mais felizes, regressando de exaustivas peregrinações periféricas, encontram, enfim, no centro do Eu, o Deus imanente de que Jesus falava. E, por maior que seja a sua fome de divinização, julgam cometer um como que suicídio do seu Eu individual, se integrarem o seu Eu no oceano imenso da divindade, como uma pequena gota de água se desfaz e perde na imensidade do oceano... Fartos e nauseados do seu Ego, que tanta infelicidade lhes trouxe, anseiam por se "desegoficar" o mais depressa e o mais radicalmente possível. E esses sinceros bandeirantes da divindade, depois de convertidos da periferia para o centro, receiam que a vida espiritual, que é o início da visão beatífica e da eterna fruição de Deus, seja uma completa e irrevogável absorção do Eu por Deus, uma total despersonalização do próprio ser. Essa despersonalização, é claro, consistiria na extinção da consciência individual. O ser humano deixaria de existir como tal, como um indivíduo especificamente humano, consciente do seu Ego, embora continuassem a existir as suas partes integrantes, dissolvidas e dispersas na intérmina vastidão da consciência divina. O nirvana do Budismo parece (1) equivaler a essa desintegração da consciência humana. Só nessa integração do Eu em Deus é que o brâmane encontra paz, sossego e definitiva solução de todos os angustiantes problemas da vida terrestre.

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E, no entanto, essa integração em Deus não é uma extinção do Eu. Quem lê as obras dos grandes místicos do Cristianismo, encontra a cada passo expressões que parecem insinuar essa integração da consciência em Deus, embora os seus autores não tenham, certamente, propugnado ideias panteísticas. Mas, o que eles experimentam é um inefável "panenteísmo" — Deus em tudo e tudo em Deus... O certo é que a eterna e perfeita felicidade do homem não pode consistir na definitiva destruição daquilo que é precisamente o característico do seu ser, a sua consciência individual. (1) Dizemos "parece", porque a mais exata interpretação de "nirvana" não é extinção do indivíduo mas sim sua integração no Todo.

Esse foco do Eu não pode jamais desfocalizar-se, nem mesmo a favor do mais poderoso Tu que existe, o Tu divino. Uma alma inconsciente não seria, em caso algum, uma alma feliz, porquanto seria uma não-alma, um não-Eu humano. Ora para que um ser possa ser feliz, é necessário que exista especificamente com esse ser. O homem, essencialmente consciente, só pode ser feliz na suprema perfeição da sua consciência individual. Por outro lado, é realmente difícil ao nosso fraco intelecto conceber como possa o Eu humano entregar-se sem reserva ao Tu divino, "perder-se em Deus" sem perder o seu Eu. De fato, devemos "perder-nos em Deus". "Quem perder a sua alma por minha causa salvá-la-á — mas quem a quiser salvar perdê-la-á" — não foi assim que disse o Mestre dos mestres l O mais alto grau de salvação e beatitude humana consiste, pois, na sua "perdição em Deus". Oh, deliciosa e bendita — essa perdição!... Oh, morte querida - esse afogamento em Deus!... Oh, dulcíssima embriaguez — essa, da alma inebriada da Divindade!... Deve, pois, haver compatibilidade entre a retenção da consciência individual e sua integração em Deus. O que ao intelecto parece paradoxal e impossível, deve ser possível numa zona que ultrapassa as especulações da nossa matemática analítica. Assim como é possível um "corpo espiritual", conforme prova o fato da ressurreição do Cristo, assim deve ser possível também o espírito humano integrarse completamente na divindade sem perder a sua consciência individual, potencializando-a antes e elevando-a a uma verdadeira superconsciência.

*** Quando o homeopata dilui um grama de essência vegetal em dezenas, centenas ou milhares de litros de água ou outro líquido — que é que fica da primitiva seiva vegetal? Será possível afirmar que, numa determinada grama de água tirada desse enorme reservatório ainda exista algo da primitiva essência terapêutica? Praticamente, diríamos nada existe. Nem uma molécula, nem um átomo sequer. E, no entanto, é sabido que essa solução exerce poderosos efeitos. Existe mesmo o princípio: quanto mais se diluir a primeira essência vegetal, tanto mais poderoso é o seu efeito. O que nos faz suspeitar que não é propriamente a matéria que produz efeito curativo, mas algo imaterial, digamos, a energia, o elemento dinâmico que na matéria existe, ou que é, possivelmente a própria essência da chamada matéria. O que cura é a energia, dizem os homeopatas.

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Nem isto é bem exato. O que cura o corpo é unicamente a alma. Só pode reconstruir o corpo quem o construiu. Ora, desde o momento da concepção, é a alma que constrói o seu corpo. Nenhum outro fator é capaz disto. Por isto, é certo que também é a alma o único fator capaz de reconstruir o seu corpo, quando parcialmente destruído pela moléstia, ou mesmo quando totalmente destruído pela chamada morte. A ressurreição da carne, de que as religiões fazem um dogma — e de que os analfabetos do espírito fazem escárneo — é um simples postulado da harmonia do universo. Seria absurdo negar à alma, essencialmente construtora, o poder reconstrutor. Entretanto, não vamos tratar aqui desse assunto tão importante e sedutor. Limitemo-nos a encarar o fato inegável de que é a alma, e não o "remédio" que cura o corpo. O "remédio", é certo, tem a sua função, que é a de desobstruir o caminho para que a alma possa passar e desempenhar a sua atividade reconstrutora; pois, não raro, a insipiência do homo sapiens obstrui esse caminho, impedindo o livre trânsito da alma e provocando, assim, distúrbios orgânicos. Quanto menos material for o "remédio", quanto mais energético e dinâmico, tanto mais se aproxima ele da natureza da alma, e tanto mais seguramente pode agir e desempenhar o seu trabalho de precursor e desobstruidor. Mas, a que vem essa digressão terapêutica? Perdoe-se-nos essa alegoria, um tanto grosseira e ingênua, destinada a ilustrar tão elevado assunto como o que estamos versando. A essência duma seiva vegetal, diluindo-se num meio absorvente, não perde as suas propriedades características; pelo contrário, mais ainda acentua, pela diluição, essas propriedades. De modo análogo, não produz a diluição do pequeno Eu humano no oceano imenso do Tu divino uma destruição da consciência individual. Antes potencializa a consciência humana pela imersão na consciência divina. Quanto mais profunda e intensamente a alma se "perder" em Deus, tanto mais salvará e aumentará a sua consciência individual. Se assim não fosse, se o ingresso e a submersão na atmosfera divina não aumentasse e superpotencializasse a natural capacidade da alma consciente, como poderia o ser humano resistir a essa tempestade divina, sem sucumbir e ser aniquilada? Praticamente, não deve a alma humana, na sua contemplação espiritual, recear, de modo algum, que possa exceder dos limites, que possa diluir-se de fato e afogar-se em Deus, ao ponto de se tornar inconsciente e, portanto, inexistente como indivíduo humano. É impossível que tal coisa aconteça. Consciência será sempre consciência, e não chegará nunca a ser inconsciência. Onde começa a consciência começa a indissolubilidade, a imortalidade do ser. Ser que uma vez se focalizou em consciência nunca mais poderá desfocalizar-se em inconsciência. O estado do espírito humano integrado em Deus, longe de ser inconsciência, é antes superconsciente, representando um estado consciente na mais alta potência. Na vida atual, devido à nossa fraqueza de compreensão, o estado de consciência intelectual nos parece ser o estado mais perfeito do ser humano. A superconsciência, porém, se revelará, mais tarde, como o mais perfeito grau da consciência humana. Um Ego despersonalizado seria um não-Ego; mas um Ego divinizado ou integrado em Deus, bem merece o nome de super-Ego.

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Para que essa misteriosa integração em Deus atinja o máximo grau da sua intensidade, na vida presente, uma coisa é necessária e absolutamente indispensável: que a alma se reduza à expressão mais simples, que solva todos os seus complexos e todas as suas complicações mundanas e egoísticas; que revogue, neutralize e anule todas essas mil e uma ramificações através do mundo profano e antidivino; que desnasça, por assim dizer; que estabeleça dentro de si um grande e silencioso vácuo. Assim como aquela essência vegetal sã se integra plenamente na água circunfusa, depois de se dissolver e como que neutralizar a si mesma, parecendo aniquilar-se, assim também só poderá a alma fluir livremente para dentro do oceano divino depois de se "desegoficar" e revogar todos os seus compromissos egoísticos, uma vez que essa integração na divindade é uma espécie de recosmificação e um regresso à primeira fonte de todas as coisas. Sem amor não há redenção, porque sem amor não há integração em Deus. Todo egoísmo é desamor e antiamor — portanto, irredenção. O homem que atingiu o seu centro espiritual e ali encontrou a Deus e o reino dos céus, é o único homem que pode realmente fazer bem a seus semelhantes. Da periferia não se pode atuar eficazmente sobre a periferia; só do centro é possível uma atuação eficiente sobre a zona periférica. E assim resulta o estranho paradoxo, que o homem que se isolou temporariamente de seus semelhantes por amor a Deus é o único que pode realmente ajudar a seus semelhantes — porque age de dentro para fora, do centro para a periferia... Se é possível, entre o homem e Deus, uma união íntima só é ela possível, como dizíamos, sobre a base de uma absoluta vacuidade da parte do homem. Onde não existe essa vacuidade, não existe a necessária polaridade, sem a qual não é possível união alguma. Só se pode unir o que é unível; uníveis, porém, só são dois seres heterogêneos, se existe essa polaridade ou potencialidade complementar. Entretanto, não basta uma vacuidade puramente passiva ou negativa. Esta é apenas condição indispensável para uma vacuidade ativa e positiva, uma misteriosa "sucção" entre a vacuidade e a plenitude. Com outras palavras, é necessário que o homem, evacuado do Eu, sinta o desejo da plenitude de Deus. A consciência de uma grande vacuidade, sem a possibilidade e esperança de uma grande plenitude, seria um desastre para o homem, um envenenamento da sua personalidade, uma verdadeira catástrofe metafísica. O "horror vacui", de que fala a ciência antiga, seria aqui um fato, e seria um vácuo literalmente mortífero. Em todo homem normal, a consciência do seu vácuo gera ao mesmo tempo uma grande receptividade, que não é senão a capacidade e o desejo duma plenitude. Esse delicioso tormento, essa angustiosa inquietude metafísica, essa feliz infelicidade que todo homem pensante percebe dentro de si, nos melhores e mais sinceros momentos da sua vida - que é isto senão a sensação duma grande vacuidade e a consciência duma plenitude possível e em vias de realização? Digo, "em vias de realização", porque, na vida presente, talvez nunca venha a ser de todo real a divina plenitude a derramar-se na humana vacuidade. Na hipótese mais feliz, é um contínuo fluir e refluir, um enchimento parcial e fragmentário, sem nunca chegar a um termo definitivo. A capacidade espiritual da alma é, de per si, ilimitada. Por outro lado, a abundância das torrentes divinas também é sem limite. Possivelmente, quando a alma estiver liberta do corpo, chegará essa torrente divina a encher toda a potencialidade receptiva do espírito humano, comunicando-lhe beatitude perfeita e absoluta. No estado presente, apesar da ilimitada capacidade potencial do espírito, não é ainda possível esse enchimento cabal e — coisa estranha! — em vez duma progressiva beatitude que o crescente fluir da divina torrente deveria produzir no homem espiritual, aumenta nele o sofrimento na razão direta da sua abundância. Esse sofrimento não é,

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propriamente, produzido pela torrente divina considerada em si mesma, mas resulta da crescente pressão que as impetuosas águas da divindade exercem sobre o leito humano em que se lançam e que, por mais largo que seja, é sempre estreito demais para conter em sua humana finitude a infinitude de Deus. Na confluência do divino e do humano reside a dor... Mas esse sofrimento espiritual, como dissemos, é estranhamente delicioso e superior a todo e qualquer prazer não espiritual. O que esse sofrimento tem de amargo vem da estreiteza humana, o que ele tem de suave vem da largueza divina. Para que essa experiência íntima fosse integralmente deliciosa e beatífica, seria necessário que o leito do nosso rio fosse suficientemente amplo para conter sem dificuldade a divina plenitude — o que é simplesmente impossível na vida presente. Dentre os homens que este planeta habitaram existiu, provavelmente, um só que não sentiu a dolorosa incapacidade de abranger em si a abundância da divina plenitude — e esse homem era um homem divino, nele "habitava substancialmente toda a plenitude da divindade".

*** A alma, uma vez liberta da ilusão do pseudo-Eu, alargará quase ao infinito os limites da sua capacidade receptiva. Por vezes, já na vida presente, é tão grande a abundância divina que a alma humana se sente como que fora do corpo; "êxtase" lançasse com tamanha veemência para dentro do leito da alma humana devidamente evacuada que transbordasse, impetuosa, por todos os lados, alagando as margens e arrastando consigo tudo quanto encontra em sua passagem. Êxtase! Posto fora de si mesmo...

*** Pascal tinha uma noção extraordinariamente clara da necessidade dessa evacuação do Eu como condição indispensável para o advento da plenitude de Deus. A tal extremo chegou a sua "humildade" - nome comum que se dá a essa vacuidade — que não admitia homenagens da parte de quem quer que fosse. Qualquer homenagem lhe parecia mentira e insinceridade para consigo mesmo. Se os escritos de Pascal não revelam arroubos místicos, os últimos anos da sua vida são uma grande mística. Chega a dizer que o estado natural do cristão é a enfermidade. Os últimos dois anos de sua vida, de 37 a 39 anos, são de uma quase completa inatividade; não lhe permitia a saúde precária o menor esforço físico ou intelectual. Só Deus sabe o que esse homem, dotado de uma extraordinária dinâmica natural, sofreu com essa forçada passividade! Entretanto, ninguém se lembra de ter ouvido dos lábios de Pascal a menor queixa ou o mais ligeiro assomo de impaciência. Estabelecido o grande vácuo do Eu, integrou-se esse homem em Deus, e poderia em verdade dizer com o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo - - o Cristo é que vive em mim"... Esse fundo místico da vida de Pascal, vai pelas entrelinhas da sua grande obra, e o leitor que saiba de experiência própria o que significa "integrar-se em Deus"

79 compreenderá que o mais profundo segredo da fascinação desse livro fragmentário é a intensa potencialidade mística de seu autor. Livro verdadeiramente imortal não é aquele que foi inteligentemente excogitado e elaborado por um homem douto ou erudito, mas aquele que foi vivido e sofrido por uma alma integrada em Deus e identificada com o Infinito.

Nota: O epílogo da 2ª edição foi retirado pelo autor. A antologia contendo 100 pensamentos de Pascal da 3ª edição não foi incluída no presente trabalho. Caso o leitor se interesse contate com Iris Helena Gomes que será enviado um opúsculo com o referido texto. Não foram incluídas as ilustrações contidas na 3ª edição. É óbvio: elas dificultariam a impressão. Email: [email protected]

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Texto da orelha da 2ª edição PASCAL Blaise Pascal é um dos fenômenos mais estranhos na literatura religiosa mundial. Exímio matemático e físico, converte-se para um cristianismo austeramente ascético e místico - e entra em conflito com a mais poderosa Ordem da sua igreja, os Jesuítas, sem contudo abandonar sua igreja nem ser por ela excomungado. Porque esse conflito, que não só existe nas célebres "Cartas Provinciais” de Pascal, mas também, embora veladamente, nos seus esplêndidos "Pensamentos"? E' porque Pascal, após a sua misteriosa iluminação do alto, rejeita certos padrões de ética praticados cá embaixo. Repete-se nele o eterno antagonismo entre o profetismo místico e o sacerdotismo eclesiástico, que já encontramos nas páginas do Antigo Testamento. Aquele é intuitivo-platônico, este é intelectivo-aristotélico. Pascal condensa a sua intuição mística na conhecida frase: “O coração tem razões de que a razão nada sabe". O que ele, segundo a terminologia usual, chama "razão" é o intelecto, essa faculdade analítica unilateral, que seria a "razão pura", de Kant, e não a "razão prática", isto é, a faculdade sintética, onilateral, cósmica, que em linguagem filosófica mais exata chamamos "razão", mas que Pascal denomina "Coração". De maneira que em. Pascal ressuscita o profundo critério profétíco-platônico-místicoevangélico da certeza imediata do mundo divino, oriunda duma intuição interna claríssima e insofismável. Por melhor que seja, talvez, o escolasticismo sacerdotal-aristotélico-teológicotomista para preparar e aplainar os caminhos do reino de Deus, ele não está em condições de dar certeza definitiva e jubilosa, nem pode introduzir o homem nesse misterioso reino da Divindade; o escolasticismo intelectual faz apenas obra de “Virgílio", conduzindo o homem do Inferno através do Purgatório, mas não faz nem pode fazer obra de” Beatriz", conduzindo o homem para dentro do "Paraíso" — para nos servirmos da maravilhosa alegoria de Dante. Pascal descobriu em si a "Beatriz" da sua alma cristã e divina, e se incompatibilizou com os eruditos "Virgílios" da teologia casuística da época, que confiavam nos expedientes da escolástica intelectual e do eclesiastícismo burocrático. Pode o austero ascetismo do solitário eremita de Port-Royal não representar do Cristianismo integral do Evangelho, o certo é que o seu corajoso apelo "de Roma para Deus", e do intelecto para a intuição marcam uma grande etapa no caminho da evolução espiritual da humanidade.

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Relação das obras do Prof. HUBERTO ROHDEN: COLEÇÃO; FILOSOFIA UNIVERSAL O Pensamento Filosófico da Antigüidade A Filosofia Contemporânea O Espírito da Filosofia Oriental

COLEÇÃO; FILOSOFIA DO EVANGELHO Filosofia Cósmica do Evangelho O Sermão da Montanha Assim Dizia o Mestre O Triunfo da Vida sobre a Morte Nosso Mestre O Quinto Evangelho - Tomé (tradução e comentários)

COLEÇÃO; FILOSOFIA DA VIDA De Alma para Alma Ídolos ou Ideal? Escalando o Himalaia O Caminho da Felicidade Novos Rumos para a Educação Deus Em Espírito e Verdade Em Comunhão com Deus Cosmorama Porque Sofremos Problemas do Espírito Lampejos Evangélicos Panorama do Cristianismo Lúcifer e Logos Evangelho ou Teologia? A Grande Libertação Pelo Prestígio da Bíblia Novo Testamento (tradução do texto grego) Bhagavad Gita (tradução e comentários) Setas na Encruzilhada Entre dois Mundos Minhas Vivências na Palestina, no Egito e na índia Filosofia da Arte A Arte de Curar pelo Espírito – de Joel Goldsmith (tradução) Orientando Que vos Parece do Cristo? Educação do Homem Integral Dias de Grande Paz de Mouni Sadhu (tradução) O Drama Milenar do Cristo e do Anticristo Luzes e Sombras da Alvorada Roteiro Cósmico Imperativos da Vida Metafísica do Cristianismo Profanos e Iniciados A Voz do Silêncio Tão Te King (tradução e comentários) Sabedoria das Parábolas

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COLEÇÃO: BIOGRAFIAS Paulo de Tarso Agostinho Por Um Ideal - 2 vols. (autobiografia) Mahatma Gandhi Pascal Jesus Nazareno - 2 vols. Myriam Einstein, o Enigma da Matemática O Profeta das Selvas - Vida e Obra de Albert Schweitzer (Prefácio e coordenação) COLEÇÃO; MISTÉRIOS DA NATUREZA Maravilhas do Universo Alegorias Ísis Por Mundos Ignotos OPÚSCULOS Aconteceu entre 2000 e 3000 Ciência, Milagre e Oração Rumo à Consciência Cósmica Saúde e Felicidade pela Cosmo-Meditação

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