Parabolas de Jesus Completo Kistemaker

March 6, 2017 | Author: Josue Marcionilo del Santos | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Download Parabolas de Jesus Completo Kistemaker...

Description

Simon J. Kistemaker As Parábolas de JESUS Tradução: Eunice Pereira de Souza Produzido em Português com autorização do próprio autor Diretoria Executiva: Diretor-Presidente: Editor: Cláudio Marra Diretor-Comercial: Revisão: Arte: Composição:

1ª Edição 1992 – 3000 exemplares CASA EDITORA PRESBITERIANA Rua Miguel Teles Jr., 382/294 – Cambuci. 01540-040 – São Paulo – SP. Fone: (11)-270-7099

APRESENTAÇÃO As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como o primeiro do Autor – Simon Kistemaker -, e que esta Editora produz e oferece ao público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de língua portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos dados informativos, este Autor ainda não é lido via língua portuguesa, não obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo teólogo e expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além de outras obras de sua autoria particular, o Autor também forma parceria com Willian Hendriksen na série Comentário do Novo Testamento, que ora é publicado por esta Editora. De sua Autoria é Hebreus, Pedro e Judas, Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos (este último já se acha em preparação, em dois volumes, e em breve virá a lume). Além disso, o Autor tem sido um dos colaboradores estrangeiros no curso de mestrado em teologia, no Brasil, especialmente no Seminário Teológico José Manoel da Conceição (J.M.C.), em São Paulo. Ele faz parte da plêiade de Teólogos calvinistas que ainda permeiam (graças a Deus!) o seio da Igreja do Cordeiro. Esta Editora, bem como toda a IPB, ficamos em dívida para com o renomado Autor. Ao prepararmos este livro, uma incontida emoção e uma profunda convicção nos fizeram antever o quanto será ele uma bênção na vida cristã de cada leitor, seja ele ministro do Evangelho, ou seja, leigo, porém, estudioso e ativo na Seara de Nosso Mestre Jesus Cristo. Isto afirmamos sobre bases sólidas, pois eis aqui um livro rico em requisitos positivos: Sua simplicidade fica logo em admirável evidência. Dele podem beber todos quanto possuam alguma cultura e quantos são detentores de cultura privilegiada. Também eis um livro que se destinada a toda classe de leitores interessados em aumentar sua visão da literatura mais linda do mundo – as parábolas de Jesus! Sua abrangência o torna ainda mais rico e útil. Além de discorrer sobre todas as parábolas de nosso Senhor, nos Evangelhos, ainda nos fornece muitos lados e detalhes para a melhor compreensão dessa literatura tão complexa. Finalmente, resta-nos mencionar sua precisão e fidelidade à sã doutrina. O Autor revela total respeito para com a Palavra de nosso Senhor. Louvamos ao senhor e convidamos a cada leitor solícito a ler e meditar nesta obra tão preciosa, resvalando-se dela para outra muito mais preciosa ainda – as próprias parábolas! Ainda uma palavra sobre um amigo que preferiu permanecer no anonimato, por meio de que obtemos autorização para esta publicação. Ele não quis aparecer, todavia, registramos o nosso apreço e gratidão em sua referência. Obrigado, amigo oculto! O leitor não saberá que é você, todavia nós sabemos, e, acima de tudo, o Senhor da Igreja sabe... e é isto que importa! Agradecemos ao Dr. Simon Kistemaker por não ter requerido de nós royalty (=pagamento de direitos autorais). Esperamos que este livro seja um meio dentre

tantos outros para a maior glorificação do Nome de Jesus Cristo, o Senhor da Igreja... “até que ele venha”! Maranata! Dezembro de 1992 Valter Graciano Martins Editor

PREFÁCIO Livros sobre parábolas, escritos a partir de uma perspectiva evangélica, são poucos e, a maior parte das vezes, desatualizados: muitos dos que foram publicados deixaram de ser reeditados. Ao

escrever este livro, procurei ir ao encontro da necessidade do pastor que deseja consultar um livro evangélico que contenha todas as parábolas de Jesus e a maior parte do que é dito sobre elas nos Evangélicos Sinóticos. Este livro procura atingir o nível adequado de pastores teologicamente treinados. Tendo os pormenores técnicos sido restringidos a notas de rodapé, o texto, em si, pode ser de grande ajuda a qualquer um que pretenda estudar seriamente a Bíblia. O livro apresenta uma biografia selecionada. Muitas pessoas colaboraram para tornar este livro uma realidade. Quero expressar meus agradecimentos ao Seminário Teológico Reformado por me ter liberado do trabalho aos sábados; ao diretor e bibliotecário da Livraria Tyndale, em Cambridge, Inglaterra; a meus alunos assistentes, Dana W. Casey, Edward Y. Hopkins e James Theodore Lester; à minha secretária, Mrs. Kathleen Sapp; à minha esposa, Jean, que datilografou o manuscrito; e aos revisores, Mrs. Mary L. Hulton e P. Ronald Carr. Possa este livro ajudar os pastores a preparar seus sermões a respeito das parábolas de Jesus. Simon J. Kistemaker 1980

ABREVIATURAS ATR BA Bib BibLeb CBQ EvQ ExpT HTR Interp JBL JETS JTS NAB NASB NEB NIDNTT NIV Novt NTS RefR ScotJT SB StTh TB TDNT TynHBut TS TZ ZNW ZPEB ZTK

Anglican Theological Review Biblical Archaeologist Bíblica Bibel und Leben Catholic Biblical Quartely Evangelical Quarterly Expository Times Harvard Theological Review Interpretation Journal of Biblical Literature Journal of the Evangelical Theological Society Journal os Theological Studies New American Bible New American Standart Bible New English Bible New International Dictionary of New Testament Theology New International Version Novum Testamentum New Testament Studies Reformed Review Scottish Jounal of Theology H. L. Strack and P. Billerbeck, Kommentar Studia Theologia Tyndale Bulletin Theological Dictionary of the New Testament Tyndale House Bulletin Theological Studies Theologische Zeitschrift Zeitschrift für die Neuentestamentliche Wissenschaft Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible Zeitschrift für Theologie und Kirche

Livro da Bíblia Gn Êx Lv Nm Dt Js Jz Rt 1,2 Sm 1,2 Rs 1,2 Cr Ed

Jr Lm Ez Dn Os Jl Am Ob Jn Mq Na Hc

Lc Jo At Rm 1,2 Co Gl Ef Fp Cl 1,2 Ts 1,2 Tm Tt

Ne Et Jó

Introdução

Sf Ag Zc

Fm Hb

Com muita freqüência, os jornais trazem, junto aos editoriais, com destaque, uma caricatura. Com poucas linhas, o artista traça o esboço humorístico de um fato político, social ou econômico, atual. Através do desenho ele transmite uma mensagem contundente e direta, cuja eloqüência um redator dificilmente poderia alcançar. Contando parábolas, Jesus desenhava quadros verbais que retratavam o mundo ao seu redor. Ensinando através das parábolas, ele descrevia aquilo que acontecia na vida real. Isto é, ele usava uma história tirada do cotidiano, para, através de um fato já aceito e conhecido, ensinar uma nova lição. Essa lição, na maior parte das vezes, vinha no final da história e provocava um impacto que precisava de tempo para ser entendido e assimilado. Quando ouvimos uma parábola, acenamos com a cabeça, concordando, porque a história é como a vida real e fácil de ser entendida. No entanto, mesmo que se ouça a aplicação da parábola, ela nem sempre é compreendida. Vemos a história se desenrolar diante de nossos olhos, mas nem sempre percebemos seu significado1. A verdade permanece escondida até que nossos olhos se abram e possamos vê-la mais claramente. Então, a nova lição da parábola se torna significativa. Como Jesus disse a seus discípulos: “A vós outros vos é dado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se ensina por meio de parábolas” (Mc 4.11). Formas A palavra parábola, no Novo Testamento, tem uma conotação ampla que inclui formas de parábolas que são, geralmente, divididas em três categorias2. Há as autênticas parábolas, histórias em forma de parábolas e ilustrações. 1. PARÁBOLAS AUTÊNTICAS. Essas usam como ilustração um fato comum do dia-a-dia, e são facilmente compreendidas por qualquer um que as ouça. Qualquer pessoa entende a verdade transmitida; não há motivo para objeção ou crítica. Todos já viram uma semente germinar (Mc 4.26-29); o fermento levedando a massa (Mt 13.33); crianças brincando numa praça (Mt 11.16-19; Lc 7.31,32); uma ovelha desgarrada do rebanho (Mt 18.12-14); uma mulher que perde uma moeda em sua própria casa (Lc 15.8-10). Essas e muitas outras parábolas começam retratando verdades evidentes a respeito da natureza do homem. São contadas, usualmente, no presente. 2. HISTÓRIAS EM FORMA DE PARÁBOLAS. Diferindo das parábolas autênticas, a história em forma de parábola não se relaciona com uma verdade óbvia ou com um costume geralmente aceito. A verdadeira parábola é contada como um fato, com o verbo 1

R. Schippers, “The Mashal-character of the Parable of the Pearl”, em Studia Evangelica, cd F. L. Cross (BcrIin: Akademíe-Verlag, 1964), 2:237. 2 F. Haucck, TDNT, V:752.

no presente. A história em forma de parábola, por outro lado, se refere a um acontecimento em particular, que teve lugar no passado — geralmente a experiência de uma pessoa. É, por exemplo, a experiência de um fazendeiro que semeou trigo e, mais tarde, percebeu que seu inimigo semeara o joio no mesmo pedaço de chão (Mt 13.24-30). É a história de um homem rico, cujo administrador defraudou os seus bens (Lc 16.1-9); ou, é o relato a respeito de um juiz que julgou a causa de uma viúva atendendo a seus inúmeros pedidos (Lc 18.1-8). O interesse dessas histórias não está na narrativa, porque o que é significativo nelas não é o fato, mas a verdade transmitida. 3. ILUSTRAÇÕES. As histórias ilustrativas registradas no Evangelho de Lucas são, geralmente, classificadas como histórias que servem de modelo, de exemplo. Incluem a parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37); a parábola do rico insensato (Lc 12.16-21); a parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31); e a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18.9-14). Essas ilustrações diferem das histórias em forma de parábolas pelo seu propósito. Enquanto a história em forma de parábola é uma analogia, as ilustrações contêm exemplos a serem imitados ou evitados. Elas focalizam, diretamente, o caráter e a conduta de um indivíduo; a história em forma de parábola faz isso apenas indiretamente. Nem sempre é simples classificar uma parábola. Algumas delas apresentam características dos dois grupos — da autêntica parábola e da história em forma de parábola — e podem ser classificadas de um modo ou de outro. Os Evangelhos registram, também, numerosas afirmações em forma de parábola. É, muitas vezes, difícil determinar quando uma declaração de Jesus constitui uma autêntica parábola, ou quando é uma declaração em forma de parábola. O ensinamento de Jesus a respeito do fermento (Lc 13.20,21) é classificado como uma verdadeira parábola, mas sua mensagem sobre o sal (Lc 14.34,35) é considerada uma afirmação em forma de parábola. No entanto, algumas declarações de Jesus são apresentadas como parábolas. Por exemplo: “Propôs-lhe também uma parábola: Pode porventura um cego guiar a outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lc 6.39). No que uma parábola difere de uma alegoria? O Peregrino de John Bunyan é uma representação alegórica do caminhar de um cristão pela vida. Os nomes e as circunstâncias encontrados no livro representam a realidade. Cada fato, cada característica ou afirmação são simbólicos e devem ser interpretados ponto a ponto em seu significado real para que possam ser corretamente entendidos. Uma parábola, por sua vez, é fiel à vida e ensina, geralmente, apenas uma verdade básica. Em suas parábolas, Jesus usou muitas metáforas, como, por exemplo, um rei, servos e virgens, mas estas nunca se afastaram da realidade. Não estão nunca relacionadas com um mundo de fantasia ou ficção. São histórias e exemplos tirados do mundo em que Jesus vivia e transmitem uma verdade espiritual, através da

comparação. Os pormenores da história são o sustentáculo da mensagem que a parábola transmite. Não devem ser analisadas ponto a ponto e interpretadas como uma alegoria, pois perderiam o seu significado. Composição Embora, de um modo geral, seja verdade que uma parábola ensina somente uma lição básica, esta regra nem sempre é definitiva. Algumas das parábolas de Jesus têm composição complexa. A composição da parábola do semeador apresenta quatro partes e cada parte pede uma interpretação. Do mesmo modo, a parábola sobre as bodas não é uma história única, pois tem acrescentado uma parte a respeito de um convidado que não está usando roupas apropriadas para a ocasião. Também, a conclusão da parábola sobre os lavradores maus se desvia do cenário da vinha para o de construtores e seus negócios. Por causa dessa complexidade, é sensato o exegeta não se prender a um ponto único na interpretação da composição das parábolas. Ao ler as parábolas de Jesus, nós nos perguntamos por que são deixados de lado vários detalhes que deveriam fazer parte da história. Por exemplo, na história do amigo que bate à porta de seu vizinho, no meio da noite, para pedir três pães, a mulher do vizinho não é mencionada. Na parábola do filho pródigo, o pai é uma figura marcante, mas nem uma palavra é dita a respeito da mãe. A parábola das dez virgens apresenta o noivo, mas ignora completamente a noiva. Esses pormenores, entretanto, não são relevantes na composição geral das parábolas, especialmente se compreendermos o artifício literário das tríades, muitas vezes usado nas parábolas de Jesus. Na parábola do amigo que vem bater à porta no meio da noite, há três personagens: o viajante, o amigo e o vizinho. A parábola do filho pródigo também fala de três pessoas: o pai, o filho mais jovem e o irmão mais velho. Na história das dez virgens, encontramos três elementos: as cinco virgens prudentes, as cinco virgens tolas e o noivo. Além disso, nas parábolas de Jesus não é o começo da história o que é importante, porém o seu final. A importância recai sobre a última pessoa mencionada, o último feito ou a última declaração. O “efeito final” da parábola é deliberadamente elaborado em sua composição3. Foi o samaritano que procurou aliviar a dor do homem ferido, não o sacerdote ou o levita. Embora os dois servos que apresentaram cinco e dois talentos adicionais a seu senhor tenham recebido louvor e elogios, foi o fato de ter enterrado seu único talento na terra que trouxe ao terceiro servo escárnio e condenação. Na parábola sobre o proprietário de terras que durante o dia contratou 3

A. M. Hunter, The Parables Then and Now (London: Westminster Press, 1971), p. 12.

homens para trabalhar em sua vinha e, às seis horas, ouviu reclamações de alguns dos trabalhadores, o mais importante é a resposta do dono: “Amigo, não te faço injustiça... são maus os teus olhos porque eu sou bom?” (Mt 20.13,15). A arte de elaborar e contar parábolas, demonstrada por Jesus, não encontra paralelo na literatura. Mas bem semelhantes às parábolas de Jesus são aquelas dos antigos rabinos dos dois primeiros séculos da era cristã. Essas parábolas eram apresentadas, comumente, com uma pergunta: “Uma parábola: A que se assemelha?” Nessas parábolas, também, o artifício literário da tríade e a ênfase final eram usados. Por exemplo: Uma parábola: A que se assemelha? A um homem que estava viajando pela estrada, quando encontrou um lobo. Conseguiu escapar dele e seguiu adiante, relatando aos outros seu encontro com o lobo. Então, ele encontrou um leão e escapou dele; e seguiu adiante, contando a todos o encontro com o leão. A seguir, ele encontrou uma cobra e escapou dela. Após esse acontecimento, ele se esqueceu dos dois anteriores e prosseguiu contando o caso da cobra. Assim também é Israel: as últimas dificuldades o fazem esquecer as primeiras4. Entretanto, a semelhança entre as parábolas de Jesus e as dos rabinos está apenas na forma. As parábolas dos rabinos, normalmente, são apresentadas para explicar ou elucidar a Lei, versículos das Escrituras, ou uma doutrina. Elas não são usadas para ensinar novas verdades, como acontece com as parábolas de Jesus. Através das parábolas, Jesus explicava os grandes temas de seu ensinamento; o reino dos céus; o amor, a graça e a misericórdia de Deus; o governo e a volta do Filho de Deus; o modo de ser e o destino do homem5. Enquanto que as parábolas dos rabinos não ensinam senão a aplicação da Lei, as de Jesus são parte da revelação de Deus ao homem. Em suas parábolas, Jesus revela novas verdades, pois ele foi comissionado por Deus para tornar conhecida a vontade e a Palavra de Deus. As parábolas de Jesus, portanto, são as revelações de Deus; as dos rabinos, não. Propósito As parábolas mostram que Jesus estava perfeitamente familiarizado com a vida humana em seus múltiplos aspectos e significado. Ele tinha conhecimento de como cultivar a terra, lançar a semente, extirpar as ervas daninhas e colher os frutos. Ele se sentia em casa, em uma vinha; sabia a época da colheita dos frutos da 4

I. Epstein, cd., “Seder Zeraim Berakoth 13a”, in The Babylonian Talmud (London: Soncino Press, 1948); p.73. 5 Hauck, TDNT, V:758. J. Jeremias, na oitava edição de seu Die Gleichnisse Jesu (Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1970), p. 8, faz notar que as parábo1as de Jesus podem ter contribuído para o desenvolvimento do gênero literário das parábolas dos rabinos.

videira e da figueira, e estava a par do quanto se pagava por um dia de trabalho. Ele não apenas estava familiarizado com a rotina do fazendeiro, do pescador, do construtor e do mercador, mas se encontrava igualmente à vontade entre os chefes de Estado, os ministros das finanças de uma corte real, os juízes das cortes de justiça, os fariseus e os coletores de impostos. Ele compreendeu a pobreza de Lázaro, embora fosse convidado para jantar com os ricos. Suas parábolas retratam a vida de homens, mulheres e crianças; o pobre e o rico; os que são marginalizados e os que são exaltados. Pelo seu conhecimento da amplitude da vida humana, ele era capaz de ministrar a todas as camadas sociais. Ele falava a linguagem do povo e seus ensinamentos eram adequados ao nível daqueles que o ouviam. Jesus usava parábolas para tornar sua linguagem acessível ao povo, para ensinar às multidões a Palavra de Deus, para chamar seus ouvintes ao arrependimento e à fé, para desafiar os que criam a transformar palavras em atos e para exortar seus seguidores a permanecerem atentos. Jesus usou as parábolas para comunicar a mensagem de salvação de um modo claro e simples. Seus ouvintes podiam, prontamente, entender a história do filho pródigo, dos dois devedores, da grande ceia e do fariseu e o publicano. Através das parábolas, eles identificavam Jesus com o Cristo que ensina com autoridade a mensagem redentora do amor de Deus. Dos relatos do Evangelho, todavia, tomamos conhecimento que a interpretação das parábolas era feita em particular, no círculo dos discípulos. Jesus lhes disse: “A vós outros é dado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se ensina por meio de parábolas, para que: vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não entendam, para que não venham a converter-se e haja perdão para eles” (Mc 4:11,12). Isso significa que Jesus, que foi enviado por Deus para proclamar a redenção dos homens caídos e pecadores, esconde essa mensagem através de parábolas incompreensíveis? As parábolas são, então, um tipo de enigma compreendido apenas pelos iniciados? As palavras de Marcos 4.11,12 devem ser entendidas no contexto mais amplo, no qual o escritor as colocou 6. No capítulo anterior, Marcos relata que Jesus encontrara descrença, blasfêmia e 6

J. Jeremias. The Parables of Jesus (New York: Scribner, 1063), pp. 13.18, sustenta que essas palavras de Jesus foram deslocadas e pertencem a Outro escrito; devem ser interpretadas sem relação com o contexto de Marcos 4. De acordo com Jeremias, o escritor inseriu passagem proveniente de outra tradição, por causa do sentido comum da palavra parábola, que ele afirma significar, originalmente, enigma. Jeremias atribui, assim, dois sentidos à palavra parábola, em Marcos 4. O primeiro significando parábola autêntica, e o segundo, enigma. As regras da exegese, no entanto, não apóiam a interpretação de Jeremias, pois, a menos que o evangelista revele um significado diferente para uma palavra do texto, essa deve conservar o mesmo sentido através de toda a passagem.

oposição direta. Ele foi acusado de estar possuído por Belzebu e de expelir demônios, pelo príncipe dos demônios (Mc 3.22). O contraste que Jesus apresenta, conseqüentemente, é entre aqueles que acreditavam e os que não acreditavam, entre seguidores e oponentes, entre os que aceitavam e os que rejeitavam a revelação de Deus. Os que fazem a vontade de Deus recebem a mensagem das parábolas, porque pertencem à família de Jesus (Mc 3.35). Os que tentam destruir Jesus (Mc 3.6) não conhecem a salvação, por causa da dureza de seus corações. É uma questão de fé e descrença. Os que acreditam ouvem as parábolas e as recebem com fé e entendimento, mesmo que a completa compreensão venha, apenas, gradualmente. Os incrédulos rejeitam as parábolas porque elas são estranhas à sua maneira de pensar7. Recusam-se a perceber e entender a verdade de Deus. Assim, por causa de seus olhos cegos e seus ouvidos surdos, privam a si mesmos da salvação proclamada por Jesus, e trazem sobre si mesmos o julgamento de Deus. Não nos surpreende que os discípulos de Jesus não tenham entendido completamente a parábola do semeador (Mc 4.13). Os seguidores mais próximos estavam perplexos com os ensinamentos da parábola porque não tinham visto ainda a importância da pessoa e do ministério de Jesus, em relação à verdade de Deus revelada na parábola. Somente pela fé foram capazes de ver aquelas verdades da qual as parábolas davam testemunho8. Jesus explicou de modo mais pormenorizado a parábola do semeador e a do trigo e do joio (em outras, ele, de quando em quando, acrescentava esclarecimentos às conclusões). Aos discípulos foi dado ver a relação entre os acontecimentos que Jesus descrevia na parábola do semeador e o reino dos céus, iniciado na pessoa de Jesus, o Messias9. Interpretação Na igreja primitiva, os Pais da igreja começaram a procurar nas Escrituras do Velho Testamento vários significados ocultos relacionados com a vinda de Jesus. Como conseqüência natural dessa tendência, os Pais começaram a encontrar significados ocultos nas parábolas de Jesus. Influenciados, talvez, pela apologética judaica, substituíram a simplicidade das Escrituras pela especulação sutil. O resultado foi, as interpretações alegóricas das parábolas. Por isso, desde o tempo dos Pais da igreja, até meados do século XIX, muitos exegetas interpretaram as parábolas alegoricamente. Orígenes, por exemplo, acreditava que a parábola das dez 7

W. L.ane, The Gospel According to Mark (Grande Rapids: Eerdmans, 1974), p. 158; W. Hendriksen, Gospel of Mark (Grand Rapids: Baker llook House, 1975), p. 145; H. N. Ridderbos, The Coming of the Kingdom (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1962), p.124. 8 . C.E.B. Cranfield, “St. Mark 4.1-34’, Scot IT 4(1951): 407. . C.E.B. Cranfield, “St. Mark 4.1-34’, Scot IT 4(1951): 407. 9 Lane, Mark, p.160.

virgens estava cheia de símbolos ocultos. As virgens, disse Orígenes, são todos aqueles que receberam a Palavra de Deus. As prudentes acreditam e levam uma vida de justiça; as tolas acreditam, mas falham no agir. As cinco lâmpadas das prudentes representam os cinco sentidos, que são todos preparados para o seu uso apropriado. As cinco lâmpadas das tolas deixaram de fornecer luz e se encaminharam para a noite do mundo. O óleo é o ensinamento da Palavra e os vendedores de óleo são os mestres. O preço que eles cobram pelo óleo é a perseverança. A meia-noite é a hora do descuido imprudente. O grande clamor ouvido vem dos anjos que despertam todos os homens. o noivo é Cristo que vem para encontrar a noiva, a igreja. Assim Orígenes interpretou a parábola. Entre os comentaristas do século XIX, era comum identificar os pormenores da parábola. Na parábola das dez virgens, a lâmpada acesa representava as boas obras; e o óleo, a fé daquele que crê. Outros viram o óleo como uma representação simbólica do Espírito Santo. Ainda assim, nem todos os intérpretes das parábolas tomaram o caminho da alegoria. Por ocasião da Reforma, Martinho Lutero tentou mudar a maneira de interpretar as Escrituras. Ele preferiu um método de exegese bíblica que levava em consideração a localização histórica e a estrutura gramatical da parábola. João Calvino foi ainda mais direto. Ele evitou totalmente as interpretações alegóricas das parábolas e procurou estabelecer o ponto principal de seu ensinamento. Quando ele constatava o significado de uma parábola, não se preocupava com os seus pormenores. Em sua opinião, os detalhes não tinham nada a ver com aquilo que Jesus pretendia ensinar através da parábola. Durante a segunda metade do século XIX, C. E. van Koetsveld, um estudioso alemão, deu novo impulso ao modo de abordar o assunto, iniciado pelos Reformadores. Ele mostrou que as extravagantes interpretações alegóricas das parábolas, feitas por numerosos comentaristas, obscureciam mais que esclareciam o ensino de Jesus10. Para interpretar uma parábola apropriadamente, o exegeta precisa apreender seu significado básico e distinguir o que é, ou não, essencial. Van Koetsveld foi seguido, em sua maneira de abordar as parábolas, pelo teólogo alemão A. Jülicher, que observou que, embora o termo parábola seja usado freqüentemente pelos evangelistas, a palavra alegoria jamais é encontrada nos relatos dos Evangelhos11. No final do século passado, as amarras que atavam a exegese das parábolas foram cortadas e uma nova era de pesquisa teve

10

C. E. van Koetsveld, De Gelykenissen van den Zaligmaker (Schoonhoven, 1869), vols. 1, 2. 11 A. Jülicher, Die Gleichnisredcn Jesu (Tübingen: Buchgesellschaft, 1963), vols. 1, 2.

início12. Enquanto Jülicher via Jesus como um professor de princípios morais, C. H. Dodd o considerou como uma pessoa histórica, dinâmica, que, com seus ensinamentos, provocou um período de crise. Disse Dodd: “A tarefa de um intérprete de parábolas é descobrir, se puder, a aplicação da parábola na situação pretendida pelos Evangelhos”13. Jesus ensinava que o reino de Deus, o Filho do Homem, o Juízo e as bem-aventuranças passavam a fazer parte da história daquela época. Para Jesus, de acordo com Dodd, o reino significava o governo de Deus exemplificado em seu próprio ministério. Portanto, as parábolas ensinadas por Jesus devem ser entendidas como diretamente relacionadas com a efetiva situação do governo de Deus na terra. J. Jeremias continuou o trabalho de Dodd. Ele, também, desejou descobrir os ensinamentos das parábolas que remetem de volta ao próprio Jesus. Jeremias se dispôs a traçar o desenvolvimento histórico das parábolas, o que acreditava ocorrer em dois estágios. O primeiro diz respeito à situação real do ministério de Jesus, e o segundo é uma reflexão sobre o modo como as parábolas eram postas em prática pela igreja cristã primitiva. A tarefa a que Jeremias se propôs era a de recuperar a forma original das parábolas para ouvi-Ias na própria voz de Jesus14. Com o seu profundo conhecimento da terra, da cultura, dos costumes, do povo e da língua de Israel, Jeremias foi capaz de reunir um rico cabedal de informações que fazem de sua obra um dos livros de maior prestígio a respeito das parábolas. Apesar disso, uma questão se apresenta: pode a forma original ser separada do contexto histórico sem sucumbir a um acúmulo de adivinhações? Por outro lado, o texto das parábolas pode ser tomado e aceito como uma representação real do ensino de Jesus. Isto é, o texto bíblico que o evangelista nos entregou reflete o contexto histórico no qual as parábolas foram, originalmente, narradas. Dependemos do texto que recebemos e agimos acertadamente quando deixamos as parábolas e seu assentamento histórico intacto. Isso pede confiança — que os evangelistas, ao registrarem as parábolas, tenham compreendido a intenção de Jesus ao ensiná-las nas circunstâncias por eles descritas15. Na ocasião em que as parábolas foram registradas, testemunhas e ministros da Palavra transmitiram a tradição oral das palavras e feitos de Jesus (Lc 1.1, 2). Por causa do elo com as testemunhas, podemos confiar que o contexto no qual as parábolas estão inseridas se refere ao tempo, lugares e circunstâncias nas quais Jesus, originalmente, as ensinou. Mais 12

recentemente,

representantes

de

nova

corrente

da

Consulte os interessantes estudos de M. Black, “The Parables as Alegoty”, BJRL42 (1960): 273-87; R. E. Brown, “Parable and Allegory Reconsidered”, NTS 5 (1962): 3645. 13 C.H. Dodd, The Parables of the Kingdon (London, Nesbit and Co., 1935), p. 26. 14 Jeremias, Parables, pp. 113,114. 15 A. M. Iirouwer, De Gelykenissen (Leiden: Brill, 1946), p. 247; G.V. Jones, The Art and Truth of the Parables (L.ondon: S.P. C.K., 1964), p. 38.

hermenêutica têm, de maneira crescente, deslocado as parábolas de seu assentamento histórico para uma ênfase literária claramente baseada numa estrutura existencial16. Quer dizer, esses estudiosos tratam as parábolas como literatura existencial, as removem de suas amarras históricas e substituem sua significação original por uma mensagem contemporânea. Negam que o sentido da parábola tem sua origem na vida e ministério de Jesus17; não estão interessados em suas fontes e bases, mas, antes, em sua forma literária e sua interpretação existencial18. Para eles, a estrutura literária da parábola é importante porque leva o homem moderno a um momento de decisão: tem que aceitar ou rejeitar o desafio colocado diante dele. Aceitamos prontamente a idéia de que as parábolas chamam o homem à ação; na aplicação da parábola do bom samaritano, ao intérprete da lei que o questionou, Jesus disse: “Vai, e procede tu de igual modo” (Lc 10.37). Entretanto, o existencialista, em sua interpretação da parábola, enfatiza o modo imperativo e menospreza o modo indicativo no qual a parábola foi contada. Ele separa as palavras de Jesus de sua disposição cultural e, assim, as despoja do poder e autoridade que Jesus lhes deu. Além do mais, ao tratar as parábolas como estruturas literárias separadas de seu assentamento original, o existencialista precisa estabelecer para elas uma nova base. Assim, ele coloca as parábolas num contexto contemporâneo. Mas, esse método dificilmente pode ser chamado de exegético, pois insufla no texto bíblico uma filosofia existencial. Isso é eisegese, não exegese. Infelizmente, o cristão comum, que procura orientação para o entendimento das parábolas com os representantes da nova escola hermenêutica, precisa, primeiro, buscar conhecer a filosofia existencial, a teologia neoliberal e o jargão literário do estruturalismo, para que possa se beneficiar com seus pontos de vista. Princípios Interpretar parábolas não exige um treinamento completo em teologia e filosofia, mas implica que o exegeta se atenha a alguns princípios básicos de interpretação. Esses princípios, em resumo, estão relacionados com a história, a gramática e a teologia do texto bíblico. Sempre que possível, o intérprete deve fazer um estudo da conjuntura histórica da parábola, incluindo uma análise pormenorizada das circunstâncias religiosas, sociais, políticas e geográficas reveladas 16

M. A. Tolbert, Perspectives on lhe Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1979), p.20. 17 D. O. Via, ir., em “A response to Crossan, Funk, and Peterson”, Semeia 1 (1974): 222, afirma: ‘Não tenho absolutamente interesse, nem mesmo na Pessoa do Jesus histórico”. 18 J. D. Crossan, em “The Good Samaritan” Towards a Generic Definition of Parable’, Semeia 2 (1974): 101, parece indicar que é mais importante para uma proposição ser interessante que ser verdadeira.

na parábola. A disposição da parábola do bom samaritano, por exemplo, exige certa familiaridade com a instrução do clero daqueles dias. O intérprete da lei, procurando Jesus e perguntando-lhe o que fazer para herdar a vida eterna, deu início à conversação que levou à história do bom samaritano. Em relação à parábola do bom samaritano, o exegeta deveria se familiarizar com a origem, a classe social e a religião dos samaritanos, com as funções, ofício e residência do sacerdote levita; com a topografia da área entre Jerusalém e Jericó; e com o conceito judaico de boa vizinhança. Observando o contexto histórico da parábola, o intérprete apreende a razão por que Jesus contou essa história e compreende a lição que Jesus procurou transmitir através da parábola19. A seguir, o exegeta deve atentar para a estrutura literária e gramatical da parábola. Os modos e tempos de verbos empregados pelo evangelista em relação à parábola são muito significativos e lançam luz sobre o principal ensinamento da história. As palavras estudadas em seu contexto bíblico, assim como em escritos extra canônicos são parte essencial do processo de interpretação de uma parábola. Assim, o estudo da palavra próximo no contexto do comando “Ama o teu próximo como a ti mesmo”, como foi dado no Velho e Novo Testamentos, resulta num exercício gratificante. O intérprete precisa, também, levar em consideração a introdução e a conclusão de uma parábola, pois podem conter um artifício literário como uma questão de retórica, uma exortação ou uma ordem. A parábola do bom samaritano é concluída com o comando direto: “Vai, e procede tu de igual modo” (Lc 10.37). O intérprete da lei, que tinha perguntado a Jesus a respeito do que fazer para herdar a vida eterna, não teve como deixar de se envolver no cumprimento da ordem de amar a seu próximo como a si mesmo. As introduções, e especialmente as conclusões contêm as diretrizes que ajudam o intérprete a encontrar os pontos principais das parábolas. Ainda, o ponto principal de uma parábola deve ser comparado teologicamente com os ensinamentos de Jesus e com o resto das Escrituras20. Quando o ensino básico de uma parábola foi completamente explorado e está corretamente entendido, a unidade das Escrituras se manifestará e o sentido apropriado da passagem poderá ser visto em toda a sua simplicidade e limpidez. Por último, o intérprete da parábola deve traduzir seu significado em termos apropriados às necessidades de hoje. Sua tarefa é aplicar o ensinamento central da parábola à situação de vida da pessoa que está ouvindo sua interpretação. Na parábola do bom samaritano, a 19

L. Berkhof, PrincipIes of Biblical Interpretation (Grand Rapids: Baker Book House, 1952), p. 100. 20 A. B. Mickelsen, Interpreting the Bible (Grand Rapids: Ecrdmans 1963), p. 229.

ordem para amar o próximo se torna cheia de significado quando a pessoa que foi roubada e ferida na estrada de Jericó não é mais uma figura de um passado distante. Ao contrário, o próximo que clama pelo nosso amor é o sem-teto, carente e oprimido. Ele vem ao nosso encontro na estrada de Jericó das páginas diárias dos jornais e do noticiário colorido da televisão. Classificação As parábolas de Jesus podem ser agrupadas e classificadas de várias formas. As do semeador, da semente germinando secretamente, do trigo e do joio, da figueira estéril, e a da figueira brotando são, todas, parábolas naturais. Várias parábolas de Jesus dizem respeito ao trabalho e ao salário. Algumas delas são a respeito dos trabalhadores da vinha, do arrendatário e do administrador infiel, O tema de outras são as bodas e festas ou ocasiões solenes. Essas incluem a parábola das crianças brincando na praça, a das dez virgens, a da grande ceia e a do banquete das bodas. Outras, ainda, têm como motivo geral o achado e o perdido. Essas incluem as parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e a do filho perdido. Nem sempre, no entanto, é fácil classificar uma parábola. A parábola da rede é uma parábola natural, ou deve ser agrupada com as que falam de trabalho e salário? Onde colocar a parábola do bom samaritano? Fica claro que a classificação das parábolas pode ser, de certo modo, arbitrária, e, em alguns casos, forçada. Os Evangelhos Sinóticos apresentam parábolas com correspondentes em dois ou mesmo três dos Evangelhos, e também parábolas específicas de um único evangelista. Enquanto Marcos tem apenas uma parábola peculiar a seu Evangelho (a da semente crescendo secretamente), Mateus e Lucas têm várias. Em minha apresentação das parábolas, segui a seqüência dos Evangelhos, discutindo primeiro as de Mateus, com a exclusiva de Marcos estudada entre a parábola do semeador e a do trigo e o joio, e, então, as apresentadas no Evangelho de Lucas. Nas parábolas que têm correspondente, a seqüência quase uniforme de Mateus, Marcos e Lucas foi adotada. Escolhi esse procedimento a fim de ajudar o leitor que queira consultar um estudo dos paralelos sinóticos, por exemplo, Synopsis of the Four Golspels de K. Aland21. Nesse estudo sobre as parábolas, referências a palavras gregas e hebraicas são freqüentes. Quando elas aparecem são transliteradas e traduzidas. A Bíblia Inglesa usada é a Nova Versão Internacional (com permissão da Comissão Executiva). Para ajudar o leitor, o texto é transcrito integralmente no princípio de cada parábola. As parábolas que têm correspondentes nos três Evangelhos Sinóticos são apresentadas na seqüência de Mateus, Marcos e Lucas. Um total de quarenta parábolas e declarações em 21

K. Aland, Synopsis of lhe Four Gospels (Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1976).

forma de parábolas são estudadas neste livro. Todas as principais parábolas estão arroladas, assim como a maior parte das declarações em forma de parábola. Naturalmente, uma seleção foi necessária com relação a essas declarações, por isso a parábola do sal está incluída e a da candeia foi omitida. Apenas as declarações em forma de parábola que se encontram nos Evangelho Sinóticos foram estudadas, não aquelas encontradas no Evangelho de João. A literatura a respeito das parábolas é volumosa — uma interminável corrente de livros e artigos. Dificilmente uma parábola terá sido negligenciada pelos recentes estudiosos. Novas concepções provindas dos estudos sobre a cultura e a lei judaicas têm sido valiosas no avanço para uma melhor compreensão dos ensinamentos de Jesus, O objetivo deste livro é presentear o pastor e o verdadeiro estudioso da Bíblia com um acervo abrangente e contemporâneo dos escritos sobre as parábolas, sem se prender a pormenores. As notas de rodapé e a bibliografia selecionada auxiliam o estudioso de teologia que desejar prosseguir mais intensamente no estudo das parábolas de Jesus. Através do material bibliográfico e do índice, ele terá acesso à literatura disponível sobre as parábolas de Jesus.

1. O Sal Mateus 5.13 “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens”. Marcos 9.50 “Bom á o sal; mas se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”. Lucas 14.34,35 “O sal é certamente bom; caso, porém, se torne insípido, como restaurar-lhe o sabor?”. “Nem presta para a terra, nem mesmo para o monturo; lançam-no fora. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Através da história, o sal tem sido usado para preservar e dar gosto aos alimentos. É uma das necessidades básicas da vida. Seu uso é universal e seu provimento é aparentemente inesgotável. Mas além de suas qualidades úteis, o sal tem, também, propriedades destrutivas. Ele pode transformar o solo fértil em terra árida e devastada22. A área ao redor do Mar Morto é um exemplo. Nos tempos atuais, achamos inconcebível que o sal possa deixar de ser salgado. O cloreto de sódio (nome químico do sal de cozinha) é um composto estável. Ele não possui qualquer impureza. No antigo Israel, entretanto, o sal era obtido pela evaporação da água do Mar Morto. A água continha várias outras substâncias, além do sal. A evaporação produz cristais de sal e cloreto de potássio e de magnésio. Porque os cristais de sal são os primeiros a se formarem durante o processo de evaporação, eles podem ser recolhidos e fornecem, assim, sal relativamente puro. Se o sal resultante da evaporação não for, no entanto, preservado, e se, com o tempo, os cristais se tornarem úmidos e liquefeitos, o que restar será insípido e inútil23.

22

23

Dt 29.22,23; Jz 9.45; Jó 39.6; SI 107.34; Jr 17.6; Sf 2.9.

Jeremias, Parables, p. 169; J. H. Marshall, The Gospel of Luke (Grand Rapids: Eerdmans,1978), p. 596; Hauck, TDNT, 1.229.

O que se pode fazer com o sal insípido? Não serve para nada. Os fazendeiros não querem esse produto químico em suas terras, pois, no estado bruto, prejudica as plantas. Jogar esse resíduo na pilha de estrume também não resolve, pois, comumente, o esterco é espalhado na terra, como fertilizante. A única coisa que se pode fazer com o sal insípido é lançá-lo fora onde será pisado24. Se o sal perder sua propriedade básica e deixar de ser salgado25, não se poderá mais recuperá-la. No Sermão da Montanha, Jesus se dirigiu à multidão e a seus discípulos, dizendo-lhes: “Vós sois o sal da terra”. Como o sal tem a característica de impedir a deterioração, assim também os cristãos devem exercer uma influência moral na sociedade em que vivem. Por suas palavras e atos devem restringir a corrupção espiritual e moral. Como o sal é invisível (no pão, por exemplo) e, ainda assim, um agente poderoso, também os cristãos nem sempre são vistos, mas individual e coletivamente permeiam a sociedade e constituem uma força refreadora num mundo perverso e depravado. “Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”, diz Jesus (Mc 9.50). Ele exorta seus seguidores a usar dotes espirituais para promover a paz26, primeiro em casa, e depois com os outros. Porque os cristãos não têm sido capazes de viver em paz entre si mesmos, têm perdido sua eficiência no mundo. Muitas pessoas podem jamais ter lido a Bíblia, todavia constantemente observam aqueles que já a leram. Na Igreja Cristã primitiva, o eloqüente Crisóstomo, certa vez, disse que se os cristãos vivessem a vida que se espera deles, os incrédulos desapareceriam.

24

E. P. Deatrick, em “Salt, Sou, Savior”, 13A 25 (1962): 47, citando Lamsa, menciona que no moderno Israel “o sal insípido é espalhado em terraços cobertos com terra. Por causa do sal, a terra endurece. Os terraços são, então, usados como áreas de lazer e de brincadeiras de crianças”. 25 O verbo em Mateus 5.13 e Lucas 13.34 para “tomar-te insípido” é môrainein, que tem o sentido original de “fazer tolice”, na voz ativa, e “fazer-se de tolo”, na voz passiva. W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich e F. Danker, A Greek-English Lexicon of the New Testament (Chicago: University of Chicago Presa, 1978), p. 531. 26 W. Nauck, “Salt asa Metaphor”, St Th 6 (1953); 176.

2. Os Dois Fundamentos Mateus 7.24-27 “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra a casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruma”. Lucas 6.47-49 “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. E semelhante a um homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra aquela casa, e não a pôde abalar, por ter sido bem construída. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e arrojando-se o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa”. Jesus se referiu, muitas vezes, a tempestades repentinas que transformavam o leito seco de um riacho em correntes violentas. São cenas comuns em Israel, onde o tempo muda de repente e altera, às vezes, drasticamente a paisagem. As construções rurais dos dias de Jesus eram, geralmente, feitas com barro endurecido. Os ladrões conseguiam cavar buracos através das paredes de tais casas (Mt 6.19). Quatro homens fizeram uma abertura no teto da casa onde Jesus estava ensinando, para por ela fazer baixar o leito onde estava seu amigo paralítico (Mc 2.3,4). Para quem construía era uma questão de economia construir longe de possíveis cursos de água, mesmo que essas valas permanecessem secas por vários anos27. 27

E. F. F. Bishop, em “Jesus of Palestine” (London; Lutterworth Press, 1955), p. 86, faz referencia a casas de barro, entre Gaza e Asquelon, que tinham sido construídas

O construtor prudente escolhe um local sobre a rocha. Assim, ele não temerá que uma chuva torrencial, provocando o súbito transbordamento de um riacho, arraste a casa, nem receará as rajadas de vento que se abaterão sobre ela. O alicerce da casa construída sobre a rocha resistirá. O construtor insensato constrói sua casa como se estivesse erguendo uma tenda. Não lhe ocorre que a casa deve ter uma estrutura mais permanente. Ele edifica sua casa sobre a areia, possivelmente por causa do acesso mais fácil a um riacho próximo. Enquanto o tempo está bom e o céu permanece azul os ocupantes da casa nada têm a temer. Quando, quase sem que se possa prever, o tempo muda, as nuvens se acumulam, a chuva cai, os riachos transbordam e o vento sopra, a casa vem abaixo com grande estrondo. Os dois evangelistas, Mateus e Lucas, mostram algumas diferenças na narrativa da parábola. Podemos explicar essas variações atentando para os diferentes leitores a quem elas se destinavam. Mateus escreveu para o leitor judeu, que vivia em Israel, enquanto Lucas levava o evangelho aos helenos, que viviam na Ásia Menor e no Mediterrâneo. Para um judeu acostumado com as técnicas de construção que prevaleciam no antigo Israel, a parábola a respeito dos dois construtores se explicava por si mesma. Lucas, contudo, não escrevia para um povo que vivia na Galiléia, ou na Judéia. Ele se dirigia a gregos ou helenos. Por isso, Lucas substituiu por procedimentos de construção usuais entre eles, aqueles comuns em Israel28. O construtor cava, abrindo profunda vala, e assenta o alicerce da casa sobre a rocha, descreve Lucas. Além da diferença na maneira de construir, Lucas tinha que levar em consideração as mudanças geográficas e climáticas. Enquanto Mateus escreveu sobre a chuva caindo, o riacho transbordando e o vento soprando forte, Lucas se referiu à enchente que veio e à força da correnteza se arrojando contra a casa. Mateus fala de se construir sobre a areia; Lucas, de se construir sobre a terra. Esses pormenores diferentes não alteram o significado da parábola. O construtor é prudente quando constrói a casa sobre base sólida. Uma pessoa que ouve as palavras de Jesus e as pratica é como o construtor prudente. E tolo aquele que, ouvindo palavras de Jesus, não as obedece. Tal pessoa pode ser comparada ao construtor que constrói sua casa sobre a areia, ou sobre a terra, sem alicerce. bem longe de um curso de água, para evitar que uma súbita mudança de sua direção as atingisse. Mas, durante um inverno no deserto de Neguebe, um leito seco se encheu subitamente, mudou seu curso, e inundou completamente um acampamento beduíno, causando a morte de pessoas e de gado. 28 Jeremias, Parables, p. 27. As casas gregas eram, muitas vezes, construídas com porões (= alicerces), o que não era comum na Palestina.

Essa parábola faz eco às palavras do profeta Ezequiel. Ele descreve uma parede frágil que é construída, a chuva torrencial, o granizo batendo com força e a violência do vento que explode. Assim, a parede cai (Ez 13.10-16). Ao concluir o Sermão da Montanha (Mt 5-7), ou o sermão da planície (Lc 6), Jesus queria que seus ouvintes não apenas ouvissem, mas, também, praticassem o que ele lhes havia dito. É insuficiente apenas ouvir as palavras de Jesus. Aquele que crê deve aceitar a palavra de Jesus e construir sua fé apenas nele. Jesus é o fundamento sobre o qual o homem prudente constrói. Nas palavras de Paulo: “Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento como prudente construtor; e outro edifica sobre ele. Porém, cada um veja como edifica. Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo” (1 Co 3.10,11). O prudente ouve atentamente e direciona sua vida de acordo com as palavras de Jesus. Aquele que ouve as palavras de Jesus e não as pratica se arruinará completamente. Não gasta tempo cavando e assentando seu alicerce. Sua casa fica pronta logo e é temporariamente adequada às suas necessidades, mas quando a adversidade chega como um furacão, a casa que não tem Jesus como fundamento tomba, e sua ruína é completa. Essa parábola chama a atenção, indiretamente, para o julgamento de Deus, que todos, quer prudentes ou insensatos, terão que enfrentar. O prudente que construiu sua fé, baseado em Jesus, está apto a resistir às tempestades da vida. Ele permanece seguro, supera e triunfa. Nas Bem-aventuranças, Jesus chama o pobre, o manso e o perseguido de bem-aventurados. Na parábola, os que construíram sobre a Rocha demonstram firmeza em tudo que fazem. Eles ouvem a palavra de Deus e a praticam. Por isso, nunca serão destruídos. Acreditam em Jesus e obedecem à sua palavra.

3. Meninos na Praça Mateus 11.16-19 “Mas a quem hei de comparar esta geração? É semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos companheiros: ‘Nós vos tocamos flauta e não dançastes; entoamos lamentações, e não pranteastes’. Pois veio João, que não comia nem bebia, e dizem: ‘Tem demônio’. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: ‘Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores’. Mas a sabedoria é justificada por suas obras”. Lucas 7.31-35 “A que, pois, compararei os homens da presente geração, e a que são eles semelhantes? São semelhantes a meninos que, sentados na praça, gritam uns para os outros: ‘Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes’. Pois veio João Batista, não comendo pão nem bebendo vinho e dizeis: ‘Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizeis: ‘Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores’. Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos”. Jesus contou uma parábola interessante sobre crianças brincando numa praça. Ele extraiu a cena diretamente do cotidiano: uma visão conhecida de crianças inventando suas brincadeiras e representando-as. O “faz de conta” podia, muito bem, ter acontecido assim: vários meninos e meninas estavam brincando na praça, provavelmente vazia. Algumas crianças queriam brincar de casamento. Além da noiva e do noivo, precisavam de um tocador de flauta, pois um grupo deveria dançar na festa. Embora o noivo e a noiva estivessem prontos, e uma das crianças providenciasse a música de flauta, o resto das crianças se recusou a dançar. Não estavam interessados em brincar de casamento. Em outro exemplo, algumas crianças queriam representar um funeral. Uma delas tinha que se fingir de morta, enquanto outras cantavam um canto fúnebre. O resto tinha que chorar — mas se recusaram. Não queriam participar daquela brincadeira fúnebre. As

crianças que tinham disseram aos outros:

inventado

as

brincadeiras

sentaram-se

e

Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes. Aplicação De acordo com o evangelho de Mateus, as crianças sentadas na praça gritam aos seus companheiros. No Evangelho de Lucas, as crianças estão gritando umas para as outras. Na apresentação de Mateus, um grupo de crianças é criativo e sugere duas brincadeiras diferentes a um outro grupo29. O relato de Lucas dá a impressão de que um grupo queria representar uma brincadeira alegre e o outro, uma triste. Nenhum dos grupos queria aceitar a sugestão do outro. É provável, ainda, que apenas a reprovação de um dos grupos tenha sido registrada30, e que o uso de “uns para os outros” não deva ser indevidamente enfatizado. Mas, como se aplica a parábola? Basicamente, há dois modos de se aplicar a cena que Jesus descreveu. Primeiro, as crianças que sugeriram as brincadeiras de casamento e funeral representam Jesus e João Batista, respectivamente. As crianças que se recusaram a brincar são os judeus. João veio a eles de forma tão pungente quanto um canto fúnebre, mas eles não estavam dispostos a ouvi-lo. Para se livrarem de João, diziam que estava endemoninhado. Jesus, entretanto, veio e trouxe alegria e felicidade, contudo os judeus zombaram dele porque entrava nas casas dos marginalizados, moral e socialmente, e comia e bebia com eles. A segunda interpretação é o oposto da primeira. As crianças que sugeriram a brincadeira alegre do casamento e a triste do funeral são os judeus que queriam que João fosse alegre e que Jesus se lamentasse. Quando nenhum dos dois viveu conforme a expectativa deles, então se queixaram. Disseram a João: “Nós vos tocamos flauta, e não dançastes”. E, disseram a Jesus: “Entoamos lamentações, e não chorastes31”. Das duas, a segunda explicação é a mais plausível. Primeiro, ela estabelece uma ligação definida entre “os homens da presente 29

Jeremias, em Parables, p. 161, segue a sugestão de Bishop, em Jesus of Palestine, p. 104. Jeremias escreve: “O fato de algumas crianças estarem sentadas talvez implique que estivessem satisfeitas em apenas se queixar e se lamentar, deixando para outros, tarefas mais cansativas”. Há no entanto, grande perigo em se ir tão longe na interpretação do texto. 30 Marshall, Luke, p. 300. 31 E. Mussner, em “Der nicht erkannte Kairos (Mt 11.16-19 = L.c 7.31-35)”. Bid 40(1959)600; descreve todas as crianças sentadas e gritando.

geração” (Lc 7.31) e as crianças que faziam recriminações. Os judeus estavam descontentes tanto com João Batista como com Jesus, assim como as crianças com os seus companheiros. Segundo, ela coloca as queixas das crianças, aplicadas a João e a Jesus, numa ordem cronológica32. João veio como um asceta que vivia de gafanhotos e mel silvestre — não era de seu agrado comer pão e beber vinho —, e os judeus o acusaram de ser possuído pelo demônio. Jesus, ao contrário, comia pão e bebia vinho, e eles o chamaram de glutão e beberrão, amigo dos publicanos e “pecadores”. Deus enviou seus mensageiros nas pessoas de João e Jesus, mas seus contemporâneos nada fizeram senão achar faltas neles. Paralelos As brincadeiras que as crianças queriam brincar e suas conseqüentes reclamações estão em consonância com o Livro de Eclesiastes, que poeticamente observa que há tempo para tudo. Há “tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar de alegria” (Ec 3.4), diz o Pregador. Os insultos que os judeus lançaram sobre Jesus, entretanto, não eram, de modo algum, inofensivos. Eles o acusaram de ser glutão e beberrão. Essa era a descrição de um filho desobediente, que, de acordo com a lei de Moisés, devia ser apedrejado até à morte (Dt 21.20,21). O relacionamento de Jesus com os marginalizados social e moralmente, que eram olhados como apóstatas pelos lideres religiosos, foi considerado reprovável. Por causa desse convívio, os judeus achavam que o próprio Jesus devia ser considerado apóstata33. A literatura dos rabinos apresenta um paralelo extraordinário. Embora seja difícil afirmar quando foi escrito e qual sua origem, na forma oral, o texto é interessante: Jeremias falou diretamente ao Santo, louvado seja Ele: Tu enviaste Elias, de cabelos encaracolados, para agir em benefício deles, e eles riram dele, dizendo: “Olha como ele ondula seus cabelos!”, e zombavam dele, chamando-o de “aquele dos cabelos crespos”. E, quando Tu fizeste com que Eliseu se levantasse para agir em benefício deles, disseramlhe, ironicamente: “Sobe, calvo; sobe, calvo! 34”. Conclusão O ponto culminante dessa parábola diverge nas descrições dos dois Evangelhos. Os relatos de Mateus e Lucas variam na frase 32

A. Plummer, The Gospel of Luke (ICC) (New York: C. Scribner & Sons, 1902), p. 163. Mt 9.11; Lc 5.30; 15.1,2; 19.7. 34 Piska 26, em W. 6. Ilraude, Pesikta Rabbati, 2 vols. (New Haven: YaIe University Press, 1968,69), 1: 526-27. Ver também, 5H II; 161. 33

conclusiva. “Mas a sabedoria é justificada por suas obras” (Mt 11.19), e “Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos” (Lc 7.35). Já foi sugerido que a diferença pode ser devida a uma expressão do aramaico, que foi mal traduzida35. Qualquer que seja a causa, no entanto, não varia o sentido que as palavras transmitem. A sabedoria significa a sabedoria de Deus; ela pode ser mesmo um circunlóquio para o próprio Deus. De acordo com Mateus, as obras divinas de Jesus (Mt 11.5) são provas da sabedoria de Deus. No evangelho de Lucas, os filhos de Deus são testemunhas da veracidade de sua sabedoria. Por exemplo, publicanos e mulheres sem moral, rejeitados como marginais pelos religiosos daqueles dias, viram revelada em João Batista e em Jesus a sabedoria de Deus. Ambos, João e Jesus proclamaram a mensagem de redenção — João, com toda a austeridade, no Jordão (Lc 3.12, 13); e Jesus, ao redor da mesa, em suas casas (Lc 5.30). 4. O SEMEADOR Mateus 13.1-9 “Naquele mesmo dia, saindo Jesus de casa, assentou-se à beira-mar; e grandes multidões se reuniram perto dele, de modo que entrou num barco e se assentou; e toda a multidão estava em pé na praia. E de muitas coisas lhes falou por parábolas e dizia: Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho, e, vindo as aves, a comeram. Outra parte caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a terra. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto: a cem, a sessenta e a trinta por um. Quem tem ouvidos para ouvir , ouça”.

Marcos 4.1-9 “Voltou Jesus a ensinar à beira-mar. E reuniu-se numerosa multidão a ele, de modo que entrou num barco, onde se assentou, afastando-se da praia. E todo o povo estava à beira-mar, na praia. Assim, lhes ensinava muitas coisas por parábolas, no decorrer do seu doutrinamento. Ouvi: Eis que saiu o semeador a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a comeram. Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda a terra. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz, secou-se. Outra parte caiu entre os espinhos; e os espinhos cresceram e a sufocaram, e não deu fruto. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto, que vingou e cresceu, produzindo a trinta, a sessenta e a cem por um. E acrescentou: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Lucas 8.4-8 “Afluindo uma grande multidão e vindo ter com ele gente de todas as cidades, disse Jesus por parábola: Eis que o semeador saiu 35

Jeremias, Parables, p. 162. nº 44.

a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu sobre a pedra; e, tendo crescido, secou por falta de umidade. Outra caiu no meio dos espinhos; e estes, ao crescerem com ela, a sufocaram. Outra, afinal, caiu em boa terra; cresceu e produziu a cento por um. Dizendo isto, clamou: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Composição Em nossas sociedades industrializadas, a agricultura tem-se preocupado sempre com a produção de alimentos. Cultivar a terra não é simplesmente um meio de vida; ao contrário, tornou-se um modo de ganhar a vida. A moderna tecnologia tem sido amplamente aplicada a métodos de cultivo, de tal modo que o agricultor se tornou um técnico em diversas áreas — um especialista na aplicação de fertilizantes, herbicidas e inseticidas — e um homem de negócios que conhece o custo da produção, o valor de seu produto e a situação do mercado. Quando Jesus ensinou a parábola do semeador a seus ouvintes na Galiléia, eles podiam, literalmente, ver o agricultor lançando a semente nos campos próximos, durante o mês de outubro. O evangelista não nos diz quando Jesus contou a parábola, mas pode muito bem ter sido na ocasião em que o semeador saiu para semear. As multidões (de acordo com Mateus, grandes multidões) tinham vindo até à praia, à margem noroeste do Lago da Galiléia. Talvez chegassem a milhares. Para se dirigir a tamanha multidão, Jesus usou um púlpito flutuante, sentando-se num barco, muito provavelmente afastado da praia36. Desse modo, a superfície da água refletia sua voz que, num dia calmo, podia alcançar seus ouvintes à distância. Aquele ambiente natural funcionava mais eficientemente que os atuais sistemas usados para a comunicação com o público. Jesus não precisava explicar as atividades do lavrador. Eles, talvez, o estivessem vendo, à distância, no trabalho, semeando grãos de trigo e cevada. Provavelmente haviam passado ao lado de seu campo, no caminho para a praia. Na sociedade agrícola daqueles dias, muitos dos que ali estavam eram donos de terra, ou já haviam trabalhado no seu cultivo. Cultivar a terra era relativamente fácil nos dias de Jesus. Embora a parábola não nos conte nada a respeito de métodos de cultivo, aprendemos no Velho Testamento (Is 28.24,25; Jr 4.3 e Os 10.11,12) e nos escritos dos rabinos que, no final de um longo e quente verão, o fazendeiro ia para o campo semear trigo e cevada sobre o solo endurecido. Ele arava a terra para cobrir a semente e esperava que a chuva de inverno viesse fazer germinar os grãos37. 36

W. NeiI, “Expounding The Parables”, Exp T 78 (1965): 74. J. Jeremias, “Palastinakundliches zum Gleichnis vom S~emann”, NTS 13(1967): 4853. Ver também Parables, p.l2. 37

Na parábola de Jesus, o lavrador partiu para o campo levando seu suprimento de grãos numa bolsa que trazia a tiracolo. Com passos ritmados, lançava as sementes em faixas, pelo campo. Não se preocupava com os poucos grãos que caíam à beira do caminho, nem com aqueles que eram lançados em terra pouco profunda, onde as rochas despontavam. Também não se preocupava com o trigo caído entre os espinheiros que cresceriam na primavera, abafando as sementes. Para o lavrador, tudo aquilo fazia parte de seu dia de trabalho. A descrição é corriqueira e precisa. O lavrador não podia impedir que os grãos caíssem em solo duro. Cedo ou tarde viriam as aves e os comeriam. Alguns pássaros comeriam até mesmo as sementes lançadas no campo. Acontecia comumente. Também, pouco ele podia fazer a respeito das rochas. Assim era a terra. Ele havia tentado acabar com os espinheiros arrancando suas raízes, mas estes teimavam em renascer. A expectativa do lavrador estava no tempo da ceifa, quando iria colher. Um lucro médio, naqueles dias, podia ser menos que dez por um38. Se tivesse um retorno de trinta por um, ou uma colheita mais favorável que rendesse sessenta por um, seria um acontecimento excepcional. Muito raramente, talvez, ele conseguiria colher a cem por um (Gn 26.12). Resumindo, o semeador não estava interessado nos grãos que perdia enquanto semeava. Sua esperança estava no futuro, na colheita, que ele esperava com ansiedade. Nenhum dos ouvintes de Jesus discordou dele. Mas, o clímax da história deve ter surpreendido seus ouvintes: em vez de uma colheita normal com um lucro de dez vezes, Jesus falou de um retorno de cem por um. O ponto principal da história é, portanto, uma colheita abundante. Propósito A parábola do semeador é uma das poucas encontradas nos três Evangelhos Sinóticos. Quando incorporaram a história de Jesus a respeito do lavrador semeando e colhendo, cada um dos escritores dirigiu-se a seus próprios leitores. Mateus, Marcos e Lucas, obviamente, colocaram a parábola no contexto de seus respectivos Evangelhos para mostrar o ponto central do ensino de Jesus. No Evangelho de Mateus, o capítulo 13 é precedido por um 38

Jeremias. “Palãstinakundliches”, p. 53; ver, também, K. D. Whitc, “The Parable of the Sower., lIS 15 (1964): 300-7; P. B. Payne, “lhe Order of Sowing and Ploughing” NTS 25 (12978): 123-29. Os ensinos do Velho Testamento (Amós 9.13; Jeremias 31.27; Ezequiel 36.29,30) e, os ensinos dos escritos dos rabinos e das pseudoepígrafes parecem ser o de que a terra produzirá fruto em abundância, na era Messiânica. N. A. Dahl, “The Parables of Growth”, StTh 5 (1951): 153; SB, IV: 880-90.

relato a respeito do ministério de Jesus no âmbito de cura (capítulos 8 e 9). Concluindo essa parte, Mateus registra que Jesus ensinava nas sinagogas, pregava as boas-novas do reino, e curava todos os tipos de doenças e enfermidades (9.35). Então, ele olhou para as multidões, e porque não tinham quem as orientasse espiritualmente, teve compaixão delas. Ele as comparou a ovelhas sem pastor. “E então se dirigiu a seus discípulos: A seara na verdade é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara” (9.37,38). No capítulo 10, Mateus registra como Jesus enviou os doze apóstolos, comissionados para buscar as ovelhas perdidas de Israel. Mas Jesus advertiu os discípulos sobre rejeição, perseguição e morte. Eles encontrariam oposição, hostilidade constante e correriam risco de vida. Mateus volta ao mesmo assunto nos dois capítulos seguintes. As multidões tinham seguido João Batista, mas o povo dizia que ele tinha demônio. Sobre Jesus, diziam que era glutão e beberrão, amigo de publicanos e “pecadores” (11.19). Em Corazim, Betsaida, e Cafarnaum o povo se recusou a se arrepender e a crer em suas palavras. Parecia que Jesus tinha semeado em terra pouco profunda, e que as sementes por ele lançadas não tinham germinado. Ainda assim, apesar das dúvidas de João Batista (11.3), da descrença dos galileus (11.21,23) e da hostilidade dos líderes religiosos (12.2, 24,38), o reino de Deus se instalou e prosperou. As pessoas que fazem a vontade de Deus são parte e parcela do reino. São o irmão, a irmã e a mãe de Jesus (12.50). Neste ponto, Mateus apresenta a parábola do semeador. A estrutura da redação do relato evangélico revela a mão habilidosa de um arquiteto literário39. O evangelista preparou a cena para a parábola do semeador. O objetivo é alertar seus leitores para a inesperada colheita arrecadada no reino de Deus. De outro lado, Marcos parece enfatizar o ministério no âmbito do ensino, de Jesus ao longo das praias do Lago da Galiléia. Ele começa a passagem, dizendo: “Voltou Jesus a ensinar à beira-mar” (4.1). Enquanto Mateus omite a referência ao fato de Jesus ter-se assentado num bote, “à beira-mar”, Marcos se refere ao lago por, pelo menos, três vezes, no versículo introdutório. Marcos informa a seus leitores que, uma vez mais, Jesus se encontrou com uma grande multidão, junto ao mar (vejam-se 2.13 e 3.7). Ele intercala três parábolas de seu evangelho (o semeador, a semente germinando e o grão de mostarda) nesse ponto de sua narrativa para indicar o lugar onde foram ensinadas, a quem Jesus se dirigia, e o propósito delas. O escritor do terceiro Evangelho expõe uma versão abreviada da parábola do semeador e a coloca em um contexto sobre a aceitação e a rejeição. As palavras e os feitos de Jesus foram prontamente aceitos pelas pessoas comuns, pelos coletores de impostos, mulheres de má 39

H. N. Ridderbos, Studies in Scripture and lts Authority(St. Catharines: Paideia Presa, 1978), p. 50.

fama e outros (7.29,37; 8.1-3), mas encontraram firme oposição da parte dos fariseus e dos intérpretes da lei (7.30,39). A versão de Lucas da parábola difere pouco das de Mateus e Marcos, embora seja muito mais curta e mostre alguma diferença de vocabulário. “Essas mudanças mostram que Lucas ou a tradição oral se sentiram à vontade para modificar pormenores na narração da história, coisa que os modernos pregadores costumam fazer quando tornam a contar as parábolas40”. Mateus 13.18-23 “Atendei vós, pois, à parábola do semeador. A todos os que ouvem a palavra do reino e não a compreendem, vem o maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi semeado à beira do caminho. O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza. O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera. Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende; este frutifica e produz a cem, a sessenta e a trinta por um”. Marcos 4.13-20 “Então, lhes perguntou: Não entendeis esta parábola e como compreendereis todas as parábolas? O semeador semeia a palavra. São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada; e, enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada neles. Semelhantemente, são estes os semeados em solo rochoso, os quais, ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam. Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela infrutífera. Os que foram semeados em boa terra são aqueles que ouvem a palavra e a recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem por um”. Lucas 8.11-15 “Este é o sentido da parábola: a semente é a palavra de Deus. A que caiu à beira do caminho são os que a ouviram; vem, a seguir, o diabo e arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder que, crendo, sejam salvos. A que caiu sobre a pedra são os que, ouvindo a palavra, a recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem apenas por algum tempo e, na hora da provação, se desviam. A que caiu entre espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da vida; os seus frutos não chegam a amadurecer. A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança”. 40

I. H. Marshall, “Tradition and Theology’ in Luke”, Tyn H Bull 20(1969); 63.

A parábola do semeador é uma das poucas que Jesus explicou a seus discípulos e a outros que estavam junto dele. A primeira vista, a parábola parece não necessitar de explicação, mas, na realidade, precisa ser aplicada para que possa ser entendida espiritualmente. A pergunta inicial dos discípulos: “Por que lhes falas por parábolas?” Recebe uma resposta que não é prontamente entendida. Jesus diz: “Porque a vós outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas àqueles não lhes é isto concedido. Pois ao que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem nem entendem.” (Mt 13.11-13). Notamos que os discípulos perguntam por que Jesus fala ao povo por parábolas, e que ele responde por que lhes fala por parábolas. Marcos dá ainda mais ênfase à distinção entre nós e eles, registrando: “Aos de fora se ensina por meio de parábolas” (4.11). O que, precisamente, queria Jesus dizer ao se referir aos “mistérios do reino”? Se Jesus é o Grande Mestre (= Rabi), esperamos que ele ensine verdades espirituais numa linguagem simples. Seria difícil crer que Jesus, adotando uma determinada maneira de falar, pretendesse ocultar o seu ensino das multidões, e, ainda assim, falar dos mistérios do reino. Os documentos de Cunrã se referem ao papel do Mestre da Justiça, comissionado para revelar os mistérios divinos. Além disso, o Mestre deveria instruir seus discípulos sobre a revelação por ele recebida de Deus41. Jesus trouxe revelação divina ao ensinar a seus discípulos os segredos do reino dos céus. Os outros, aqueles que não faziam parte do círculo mais restrito dos discípulos de Jesus (quer dizer, os de fora), não tinham a compreensão do reino como o tinham os seguidores mais próximos de Jesus42. Jesus, indiretamente, se refere à exigência do novo nascimento espiritual para a entrada no reino de Deus (Jo 3.3-5). Em outras palavras, a capacidade e o privilégio de discernir os segredos do reino foram dados aos discípulos. Aos de fora, esse privilégio não foi concedido43. 41

F. E Bruce, Second Thoughts on the Dead Sea Scrolls (London: Paternoster Presa, 1956), p. 101. 42 B. Van Elderen, “lhe Purpose of the Parables According to Matthew 13.10-17”, em Ncw Dimensions in Evangelical New Testament Studies, cd. R. N. Longenecker e M. C. Tenney (Grande Rapids: Zondervan, 1974), p. 185. 43 W. Hendriksen. lhe (iospel of Mattew (Grand Rapids: Baker Book House, 1973), p. 553. J. R. Kirkland rejeita essa explicação e afirma que pessoas esclarecidas e eruditas v&m a verdade escondida nas parábolas, mas os menos inteligentes e menos perspicazes, não. Veja seu ‘Thc Earliest Understanding of Jesus’ Use of Parables: Mark IV 10-12 in Context”, Novt 19(1977): 13. A proposição de Kirkland desaparece diante da oração de Jesus: “Graças te dou, 6 Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos

As multidões a quem Jesus se dirigia são referidas como “eles”. Isso, si mesmo, não surpreende em vista dos ais proferidos por Jesus às cidades impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11.2024). Jesus recebia oposição constante dos anciãos, escribas, fariseus e de toda a hierarquia religiosa. Mateus parece ter empregado um termo simples para os judeus que cercavam Jesus — são, apenas, “eles” “. Entretanto, os segredos do reino não devem permanecer escondidos para sempre. Marcos acrescenta as seguintes palavras à explicação de Jesus sobre a parábola do semeador: “Pois nada está oculto, senão para ser manifesto; e nada se faz escondido, senão para ser revelado” (4.22)44. A verdade que Jesus proclama por meio das parábolas é entregue àqueles que vêem e compreendem. Mateus, em contraste, diz que aquele que tem receberá em abundância, e o que não tem, até o que tem lhe será tirado (13.12). Escrevendo para os judeus, Mateus deixa implícita a idéia de que os judeus, a quem não fora dada a percepção espiritual, e que rejeitam as palavras de Jesus, devem abandonar o entendimento que têm dos ensinos do Velho Testamento, a respeito do reino de Deus. Pois, sem uma compreensão espiritual desses ensinamentos, os oráculos do Velho Testamento perdem o seu significado. Assim, mesmo que eles (os judeus) vejam, não vêem; ainda que ouçam, não ouvem e não entendem (Mt 13.13). Todos os evangelistas citam as palavras de Isaías 6.9,10 —De sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías: “Ouvireis com os ouvidos, e de nenhum modo entendereis; vereis com os olhos, e de nenhum modo percebereis. Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados.” (Mt 13.14,15) Os três evangelistas Sinóticos parecem empregar a citação de Isaías para expressar a razão pela qual aqueles que tinham endurecido seus corações perderão, até mesmo, sua herança espiritual45. Outros comentaristas interpretam o uso de Isaías 6.9,10 como lição ou advertência quanto aos resultados de um coração empedernido46. Dos três evangelistas Sinóticos, Marcos apresenta o relato

pequeninos.” (Mt 11.25). 44 Kirkland, “Earliest Understanding”, pp. 16-20. 45 Hendriksen, Mark, p. 154. 46 Marshall, Luke, p. 323.

completo da interpretação da parábola feita por Jesus47. Ele inclui uma recriminação de Jesus: “Não entendeis esta parábola?” (4.13). Por implicação, Marcos indica que a parábola do semeador é única. Talvez o fato desta parábola ter sido uma das poucas que foram explicadas por Jesus, lhe dê um significado especial. Mas, as palavras de recriminação também indicam que os discípulos, cujos corações eram esclarecidos, deveriam ter entendido o sentido básico da parábola. O relato de Mateus é mais preciso em sua composição. Foi Mateus quem deu o título dessa parábola à igreja: parábola do semeador. E é o Evangelho de Mateus que estabelece um tom pedagógico, com uniformidade de estilo e frases simétricas de efeito. Mas, antes de iniciarmos a interpretação da parábola propriamente dita, devemos observar que a imagem usada por Jesus é retratada, também, em 2 Esdras 9.30-33: Disseste: “Ouvi, Israel: atentai para as minhas palavras, raça de Jacó. Esta é a minha lei, que eu semeei entre vós, para que dê fruto e vos traga glória para sempre”. Mas, nossos pais que receberam tua lei não a guardaram; não observaram os teus mandamentos. Não que o fruto da lei tenha perecido; isto é impossível, pois tu és a lei. Os que a receberam pereceram, porque deixaram de guardar a boa semente, que neles foi semeada48. Nos dias de Jesus o verbo “semear” podia ser empregado metaforicamente, com o sentido de “ensinar”. Podemos presumir que esta era a maneira de falar nas sinagogas locais. A formulação e a interpretação de Jesus da parábola do semeador combinam muito bem com o padrão de linguagem da época. O que nos surpreende na interpretação da parábola é a ausência de certos fatores. O primeiro deles é a figura do semeador. Apesar de ser mencionada apenas como meio de introdução da parábola, sua presença na interpretação, embora presumida, não é explicada. Em vez disso, a ênfase cai sobre a semente que é lançada. Lucas chama a semente de “a palavra de Deus”; Marcos a chama simplesmente de “palavra”. E Mateus, em vista da citação de Isaías, diz, por implicação: “A todos os que ouvem a palavra do reino, e não a compreendem, vem o maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi semeado à beira do caminho” (13.19). Embora pudéssemos esperar alguma referência à chuva, que obviamente aumentaria a 47

B. Gerhardsson, em “The Parable of the Sower and Its lnterpretation”, NTS 14 (1967-68): 192, conclui que a parábola e sua interpretaç5o caminham juntas como a mão e a luva. “Se a parábola — na forma como a conhecemos — veio de Jesus, também sua interpretação”. Veja C. F. D. Moule, “Mark 4.1-20. Yet once more”, Neotestamentica et Semitica (1969): 95 -113. 48 New English Bible, lhe Apoctypha (Oxford Cambridge: Oxford and Cambridge Universtity Prcss. 1970).

colheita, nada é dito (veja, por exemplo, Dt 11.14,17)49. Nenhuma menção é feita ao trabalho árduo de arar o campo, embora seja claro que foi parte do processo. A provisão de chuva por parte de Deus e o esforço do homem no trabalho do campo não têm nenhuma significação na construção e Interpretação da parábola. As ênfases da parábola são os altos e baixos por que passa o lavrador em seu trabalho de cultivar a terra50. Ele pode perder parte do que plantou, neste exemplo por três vezes, mas na colheita final tem uma safra abundante. Aplicação Quando mencionou pormenores, tais como a beira do caminho, os lugares rochosos e os espinhosos, Jesus, evidentemente, pretendia aplicar a lição da semente e do solo às pessoas que ouviam a mensagem do reino (Mateus), a Palavra de Deus (Lucas). Mateus usa o presente do particípio grego, referindo-se aos que são chamados a ouvir e receber a Palavra de Deus. A passagem explica também como a Palavra de Deus é ouvida por quatro diferentes tipos de ouvintes51. Mateus, bem como Lucas, apresentam a palavra coração. “Vem o maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração” (13.19). A Palavra de Deus alcança o coração daquele que a ouve, mas antes que a Palavra possa produzir qualquer efeito, o maligno (Mateus), Satanás (Marcos), ou o diabo (Lucas) vem e a arrebata. Na parábola, os pássaros descem à beira do caminho e devoram os grãos. Diz Marcos: “São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada; e, enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada neles” (4.15). Poderíamos dizer: “entra-lhes por um ouvido e sai pelo outro”. Algumas pessoas ouvem polidamente o evangelho, e só. O evangelho não tem valor para elas, pois seus corações são endurecidos como os caminhos pisados, à beira das plantações. Ignoram completamente o resumo da lei de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração...” (Mt 22.37). De início, parece que uma semente lançada em solo rochoso brota muito facilmente. As rochas, aquecidas no verão, desprendem, pouco a pouco, nos meses de inverno, o calor armazenado. Há chuva suficiente e o calor e a umidade fazem germinar, prontamente, o grão. Os brotos verdes despontam rapidamente, e enquanto o resto do campo está ainda árido e infrutífero, apresentam um espetáculo impressionante. O olho treinado do lavrador vê a diferença. Ele sabe que a aparência das hastes verdes no solo rochoso é enganosa. Quando cessarem as chuvas e o sol da primavera chegar 49 50 51

Gerhardsson, “Parable of the Sower”, p. 187. C. H. Dodd, lhe Parables of the Kingdom (London: Nesbjt and Co., 1935), p. 182. Gerhardsson, “Parable of lhe Sower”, p. 175.

esquentando a terra, as plantas murcharão. Elas não têm, no solo, raízes profundas capazes de suprir a planta de água. Elas definharão e morrerão. Na interpretação desse segmento da parábola, tanto Mateus como Marcos destacam o aspecto do imediatismo. “Semelhantemente são estes os semeados em solo rochoso, os quais, ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos, sendo antes de pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam” (Mc 4. 16, 17). O imediatismo é ressaltado na rápida germinação do grão lançado em terreno rochoso. Enquanto Mateus e Marcos atribuem a apostasia às dificuldades e à perseguição, Lucas fala em “hora da provação” (Lc 8.13). Os evangelistas se referem ao sofrimento que faz com que as pessoas mudem de opinião sobre a religião. Quando chega a hora de tomar posição e pagar o preço, mudam de interesse e se desligam da fé que uma vez abraçaram com alegria. Uma palavra define essas pessoas: superficialidade. O sol, geralmente considerado fonte de felicidade e alegria, é retratado aqui em termos de angústia e perseguição52. A razão desse aparente rigor é a falta de umidade. O justo, por outro lado, floresce como uma árvore plantada junto a corrente de águas (Sl 1.3). Ao leviano falta convicção, coragem, estabilidade e perseverança. Ele é influenciado por qualquer vento de doutrina que sopre em seu caminho. Porque não tem profundidade, sua vida espiritual tem significação passageira. A semente lançada entre os espinhos parece ter maior probabilidade de crescer e de se desenvolver do que aquela que foi lançada em solo pouco profundo. Primeiro, após um período de germinação, as plantas começam a brotar. De fato, por ocasião da primavera parecem viçosas e não se diferenciam das outras. Mas, quando o calor do sol se torna mais forte e aquece a terra, as raízes dos espinheiros e dos cardos renascem. Depois de descansarem durante o inverno, estão prontas para uma nova estação, e em questão de semanas os espinhos e os cardos já ultrapassaram o trigo em altura. Elas o privam da umidade e dos nutrientes da terra e, literalmente, o sufocam até à morte. O solo em que a semente foi lançada não é duro como o chão pisado da beira do caminho, nem raso e rochoso. Ele é, antes, um solo bom — fértil e úmido. O único problema é que aquele chão tem outros residentes permanentes, outras raízes. A semente lançada em terra fértil e úmida terá, muito breve, que disputá-la com raízes que crescem e se desenvolvem abaixo do solo, e com verdejantes cardos e espinhos à superfície. Resumindo, dois tipos de plantas estarão lutando por um lugar ao sol e vencerá aquela que assentou suas raízes 52

Jülicher, Gleichnisreden, 2: 528.

antes e mais profundamente. “Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela infrutífera” (Mc 4.18,19). O homem que leva uma vida dupla — religião aos domingos e vida sem religião durante a semana — logo descobrirá que “os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais ambições” vencerão, e sua fé se tornará sem valor. A mensagem do evangelho não pode florescer e dar fruto; ao contrário, ela é sufocada pelos cuidados do mundo. Esse homem tem levado uma vida dupla, desde o início. Encontrou segurança na riqueza e no que Relegou, propositadamente, sua fé a um lugar secundário. Ele é O que colhe espinhos e cardos e, eventualmente, apenas espinhos e Mesmo o que tem lhe é tirado. Estas três representações do campo não devem desencorajar o dor. Do mesmo modo, as três descrições das pessoas cuja fé se ti infrutífera não devem desanimar o crente verdadeiro. A semente que lançada em boa terra produziu colheita abundante. As pessoas que respondem com fé ao evangelho são inumeráveis, multidões incalculáveis. “Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende; frutifica, e produz a cem, a sessenta e a trinta por um” (Mt 13.23)53. Marcos apresenta uma ordem ascendente de a trinta, a sessenta e a cem por um”. Lucas, na parábola propriamente dita, apenas cita que “produziu a cem por um”, mas na interpretação, diz: “A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança” (8.15). Onde Lucas usa “retêm”, Marcos usa “recebem” e Mateus “compreende”. Quem é, então, aquele que possui um coração reto e bom? Responde: “o que ouve a palavra e a compreende”. Mateus, naturalmente tem em mente a citação de Isaías. O homem reto de coração faz a vontade de Deus e, ouvindo o chamado de Deus — “a quem enviarei?” —, responde confiante: “Envia-me a mim, ó Senhor”. Ele é aquele que ouve e pratica a Palavra. Ele compreende porque seu coração é receptivo à verdade de Deus. Todo o seu ser — vontade, mente e emoção — é tocado pela Palavra. Há um crescimento 53

The Gospel of Thomas, trans. B. M. Metzger, Citação 9, afirma o seguinte: ‘Jesus Eis que o semeador saiu para semear, encheu sua mão e semeou (a semente). Algumas (sementes) caíram no caminho. Os pássaros vieram e as apanharam. Outras caíram sobre as rochas e não lançaram raízes para a terra nem espigas para o céu. E outras caíram entre espinhos. Eles abafaram as sementes e os vermes as comeram. E outras caíram em boa terra, e lançaram bom fruto para o céu. Produziram sessenta por um e cento e vinte um”. É óbvio que o escritor do Evangelho de Tomé fundiu a parábola do semeador num molde gnóstico. A razão porque o escrito conclui a parábola com “cento e vinte por um” pode muito bem ter sido pelo fato de que ele acreditava ser o número 12 o número’ perfeição. Veja H. Montefiore e H. E. W. Turner, Thomas and the Evangelists (London: SCM Presa, 1962), p. 48.

espiritual, e aquele que crê frutifica; ele faz a vontade de Deus54. O que a parábola ensina? Alguns estudiosos têm chamado a parábola do semeador de parábola das parábolas. Isso não significa que tenha maior destaque nos Evangelhos Sinóticos, mas, antes, que ela contêm quatro parábolas em uma. Embora todas as quatro sejam apenas aspectos de uma verdade particular: a Palavra de Deus é proclamada e ocasiona uma divisão entre os que a ouvem; o povo de Deus recebe a Palavra, a compreende, e obedientemente a cumpre; outros deixam de ouvir pela dureza de seus corações, por serem basicamente superficiais, ou por interesse em riquezas e posses. Essas pessoas não frutificam e, espiritualmente falando, até aquilo que têm lhes será tirado. A parábola, portanto, atinge aqueles que realmente fazem parte da igreja e os que estão “à margem”. Este é o tom principal da parábola. Todos os seus pormenores fazem convergir, para esse ponto, o foco da atenção. A proclamação fiel do evangelho nunca deixará de produzir fruto, “trinta, sessenta ou mesmo cem vezes o que foi semeado”.

5. A Semente Germinando Secretamente Marcos 4.26-29: “Disse ainda: O reino de Deus é assim como se um homem lançasse a semente à terra; depois, dormisse e se levantasse, de noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo ele como. A terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois, a espiga, e, por fim, o grão cheio na espiga. E, quando o fruto já está maduro, logo se lhe mete a foice, porque é chegada a ceifa”. O Evangelho de Marcos não é conhecido por suas dissertações; ao contrário, em sua narrativa o autor retrata Jesus como um homem de ação. Mesmo assim, o evangelista apresenta material didático, como a preleção sobre os sinais do final dos tempos (capítulo 4). Marcos não está interessado em aumentar o número de parábolas. Ele parece ter feito uma seleção do material que tinha à disposição 55. Escolheu as parábolas do semeador, da semente germinando secretamente e do grão de mostarda. Essas parábolas obviamente detalham o plantio da semente, a germinação e o amadurecimento, a ceifa e a colheita56. Marcos usa as parábolas para ilustrar a natureza 54

20. Kingsbury, Parables of Jesus, p. 62. Veja-se, por exemplo, Marcos 4.2, 10, 13 e 33, onde o plural ‘parábolas’ é usado consistentemente. 56 Lane, Mark, p. 149.Ridderbos, em Coming of lhe Kingdom, p. 142, é de opinião que Marcos escolheu essas três parábolas para ensinar “o significado positivo da demora 55

do reino de Deus como foi ensinada por Jesus. Composição Por falta de alguns pormenores, a história da semente germinando secretamente é, em si mesma, de algum modo, simplista. Nada é dito a respeito da preparação do solo, da chuva caindo, da extração da erva daninha, ou da fertilização. A vida do lavrador parece semelhante à da semente plantada: dormir à noite e despertar pela manhã. Ao chegar o tempo da colheita, o fruto maduro é ceifado. A parábola deixa de lado os detalhes por mais significativos que possam ser e coloca ênfase na semeadura, na germinação e na ceifa. Não devemos pensar que o fazendeiro passe seu dia ociosamente. Naturalmente que não; ele tem trabalho pesado para ser feito. Lavrar a terra, fertilizá-la e limpá-la das ervas daninhas toma muito de seu tempo. Além das tarefas diárias, ele tem que cuidar das compras e das vendas, planejar e preparar a colheita. Tudo isso está subentendido e dado como certo na parábola. Observamos, também, que Deus providenciará a chuva necessária 57. Ele controla os elementos da natureza. Este é exatamente o ponto. Desde o momento em que lança a semente, o lavrador deve confiar a Deus a germinação, o crescimento, a polinização e a maturação. Ele pode descrever o processo da germinação do trigo, mas não pode explicá-lo. Depois que a semente foi semeada, ela absorve a umidade do solo, incha e brota. Após uma semana ou duas, as primeiras hastes aparecem na superfície; gradualmente as plantas começam a lançar rebentos, ganham altura e desenvolvem as espigas. Então, quando a planta morre, sua cor muda do verde para o dourado; o grão amadurece e é chegada a hora da ceifa. O fazendeiro não pode explicar esse crescimento e desenvolvimento58. Ele é apenas um trabalhador que no tempo certo semeia e colhe. Deus guarda o segredo da vida. Deus mantém o controla. Interpretação A

parábola

da

semente

germinando

secretamente



é

do julgamento”. 57 Quando Marcos escreve que a terra “por si mesma” produz o grão ele não quer dizer que o solo produz a colheita sem a provisão de Deus, mas que a ajuda do fazendeiro não é necessária no processo de germinação do grão. W. Michaelis, Die Gleichnjsse Jesu (Hamburg: FurcheVerlag, 1956), p. 38. Além disso, a ênfase na produção do grão não deve ser colocada sobre o solo, nem na própria semente. R. Stuhlmann “Bcobachtungen zu Markus IV. 26- 29”, NTS 19 (1972-73): 156. 58 Jülicher, Gleichnisreden, 2: 540.

encontrada no Evangelho de Marcos. Mateus e Lucas não se referem a ela, e não temos maiores informações do que as encontradas nesses versículos de Marcos 4.26-2959. A parábola é introduzida pela sentença: “O reino de Deus é assim”. Há várias interpretações dessa parábola. Alguns comentaristas explicam o relato alegoricamente: Cristo semeou e na ocasião certa virá para a ceifa; o resto da parábola se refere ao trabalho invisível do Espírito Santo na igreja e na alma60. Outros têm destacado um dos seguintes fatores: a semente o período de amadurecimento, a ceifa; ou o contraste entre semear e ceifar61. Certamente, todas essas interpretações — mesmo as alegóricas (quando qualificadas) — apresentam pontos positivos. João Calvino olhou além do Originador dessa parábola e viu os ministros da Palavra semeando a semente. Eles não devem desanimar, diz Calvino, quando não vêem resultados imediatos. Jesus ensina que devem ser pacientes e os faz recordar o processo de germinação, como acontece na natureza. Não devem se agastar ou se inquietar, mas depois de terem proclamado a Palavra, devem se ocupar das tarefas do dia — dormir à noite, levantar pela manhã e fazer tudo o que há para ser feito. Como a semente chega à maturação no tempo próprio, assim o fruto do trabalho do pregador, eventualmente, aparecerá. Os ministros do evangelho devem ter coragem e continuar sua obra decidida e confiantemente62. Deus está atuando no processo da germinação da semente, em seu crescimento, desenvolvimento e maturação. “O fruto é o resultado da semente; o fim está implícito no começo. O infinitamente grande já está ativo no infinitamente pequeno63”. E bom relembrar a afirmativa jubilosa de Paulo “de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Na parábola, o lavrador é apenas um auxiliar da obra divina. Ele lança a semente, e dia após dia faz o trabalho necessário — dá 59

Há paralelos na literatura apostólica, inclusive 1 Clemente 23.4: “Ó insensatos: Comparai-vos a uma árvore. Tomai uma videira, por exemplo: ela primeiro espalha suas folhas, então o botão e a flor, e Somente após, primeiro a uva verde e então a madura.” Apostolic Fathers, vol.2 ed. R. M. Grant e H. H. Graham (Camden. N. J.: Thomas Nelson & Sons, 1965), p. 48. Ver também, II Clemente 11.3, e o Evangelho de Tomé, Citação 21. 60 H. B. Swete, The Gospel According lo St. Mark (L.ondon: Macmillan & Co., 1909), p. 85. 61 Para uma classificação abrangente dessas interpretações, veja C. E. B. Cranfield: “Message of Hope, Mark 4.21-32”, Interp 9(1955): 158-162. 62 J.Calvin, Harmonyof lhe Evangelists (Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1949), 2:128. Embora Calvino dê atenção ao período de crescimento, dá ênfase igual àquele que semeia o grão. O criticismo de Cranfield tem algum valor: Calvino considerou a parábola endereçada aos discípulos de Jesus. No entanto, a aplicação, no comentário de Calvino, parece muito mais abrangente do que o mero círculo dos doze discípulos. Ver Cranfield: “Message of Hope”, p. 159. 63 Jeremias, Parables, p. 152.

andamentos à sua tarefa. Tem confiança que a época da colheita chegará. Sabe, pela experiência, quantos dias se passarão desde a semeadura até à ceifa64. E quando a colheita está madura ele não espera mais. O dia da ceifa chegou. Do mesmo modo, os ministros da Palavra têm a tarefa divina de proclamar as boas-novas de salvação em Cristo Jesus. Eles, também, devem permanecer de lado, enquanto Deus efetua a obra secreta de crescimento e desenvolvimento. No tempo de Deus, o ministro verá os resultados quando chegar a hora de ceifar. A parábola da semente germinando secretamente é, realmente, uma parábola de seqüência: a colheita segue a semeadura, no tempo devido. A manifestação do reino de Deus sucede o ministério fiel da Palavra de Deus. Um leva ao outro, e nada acontece sem o secreto poder operante de Deus. “A lição é: a vitória está assegurada; a colheita se aproxima e chegará, com certeza, no momento apropriado decidido no plano eterno de Deus. O reino de Deus será revelado em todo o seu resplendor65”. As últimas palavras da parábola são, de certo modo, reminiscência de Joel 3.13: “Lançai a foice, porque está madura a seara”. Sem dúvida, a passagem se refere definitivamente ao dia do julgamento quando o Senhor, de acordo com Apocalipse 14.12-16, envia o seu anjo para ceifar a terra. Nesse ínterim, aqueles que foram enviados para proclamar a Palavra têm que aprender a ter a paciência do lavrador. “Sede, pois, irmãos, pacientes, até à vinda do Senhor. Eis que o lavrador aguarda com paciência o precioso fruto da terra...” (Tg 5.7). Falta de paciência é uma característica humana. Ela aparece até mesmo na descrição de João, das almas daqueles que foram mortos por causa da Palavra de Deus. Eles clamam em alta voz: “Até quando, Ó Soberano Senhor...?” e a resposta que recebem é que devem esperar ainda por algum tempo (Ap 6.9-11). Deus está no comando e determina quando é chegado o tempo da colheita. Ninguém, nem mesmo Jesus, sabe o dia e a hora (Mt 24.36).

64

Os fazendeiros do centro-oeste americano têm um ditado que diz que o milho “deve estar à altura dos joelhos pelo quatro de julho.” 65 Hendriksen, Mark, p. 170.

6. O Joio e o Trigo Mateus 13.24-30 “Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou o joio no meio do trigo e retirou-se. E, quando a erva cresceu e produziu fruto, apareceu também o joio. Então, vindo os servos do dono da casa, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um inimigo fez isso. Mas os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis também com ele o trigo. Deixai-os crescer juntos até à colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro”. A parábola sobre o trigo e o joio é peculiar ao Evangelho de Mateus, assim como a parábola da semente germinando secretamente é encontrada apenas em Marcos. A palavra joio não é uma tradução adequada da palavra original grega zizania, que significa “uma erva

daninha que nasce nas plantações de grãos, parecida com o trigo 66”. Não podemos determinar se a palavra se refere, ou não, a uma variedade venenosa dessa erva. De qualquer modo, a planta se parece com o trigo e cresce exclusivamente em campos cultivados67. Na verdade, a planta é uma degeneração do trigo. A cizânia pode ser comparada à aveia silvestre, que cresce livremente nos trigais da América do Norte, e que são difíceis de se erradicar. O Campo do Fazendeiro Depois da parábola do semeador e de sua interpretação, Mateus relata que Jesus contou à multidão uma outra parábola, a história de um fazendeiro abastado. Ele tinha servos e também ajudantes, no tempo da colheita. Como fazendeiro eficiente, esse dono de terras tinha usado boa semente em seu campo. É óbvio que ele não tinha interesse nenhum em semear erva daninha, que iria lhe causar grande problema. A boa semente não está misturada ao joio. O fazendeiro tinha semeado boa semente em seu campo (quando e como isso foi feito não é importante para a história). Assim que ele acabou de semear o trigo do inverno, veio seu inimigo. Ele chegou escondido pelas trevas, enquanto todos dormiam, e semeou joio por sobre o trigo. Com certeza não fez isso pelo campo todo. Aqui e ali, ele espalhou a semente. Ninguém poderia saber, até à chegada da primavera, que o joio estava crescendo entre o trigo68. O joio tem a aparência exata do trigo. Mas, quando as plantas começam a espigar, qualquer um pode distinguir o trigo do joio — “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.20). Nessa hora, no entanto, é impossível tentar resolver o problema. Qualquer um andando pelo trigal para remover o joio vai pisar o trigo. Além disso, as raízes do trigo e do joio estão tão emaranhadas que quem puxar o joio vai arrancar também o trigo. Os empregados do fazendeiro o alertaram sobre o problema e até mesmo mostraram vontade de fazer algo a respeito. Queriam saber de onde tinha vindo o joio. O fazendeiro apenas lhes explicou que um inimigo tinha feito aquilo e deveriam deixar tudo como estava até à chegada da ceifa. Então, os ceifeiros receberiam instruções para colher o joio e atá-lo em feixes, e para recolher o trigo no celeiro. O fazendeiro usará os feixes de joio — semente e palha — como 66

W. Bauer et al. Lexicon, p. 339. L. löw, Die Flora der Juden (Hildersheim: 1967), 1:725. SB, 1:667. 68 Meu sogro comprou uma fazenda no Canadá, no final de 1930. Logo viu que os campos estavam cobertos com um tipo de erva chamada “margarida”. Do proprietário anterior, ele ficou sabendo a causa: alguns anos antes, um vizinho rancoroso havia montado a cavalo, um dia, e espalhado pelo campo sementes de “margarida”. O resultado é visto até hoje. 67

combustível. Assim transformará em lucro uma desvantagem: terá aquecimento para o inverno. Embora, no final, o fazendeiro consiga resolver de algum modo aquela situação, ele sabe que o joio absorveu umidade e nutrientes que se destinavam ao trigo. Sua produção de grão será substancialmente menor que a esperada. Apesar de toda a sua experiência de cultivo, ele foi incapaz de ver a diferença entre o trigo e o joio antes que as plantas começassem a espigar e o tempo da colheita estivesse próximo69. Só meses após o mal ter sido feito, o fazendeiro se deu conta de que seu inimigo o atacara insidiosamente. Ele tem, então, que enfrentar as conseqüências da trama perpetrada por seu inimigo. Interpretação Mateus 13.36-43 “Então, despedindo as multidões, foi Jesus para casa. E, chegando-se a ele os seus discípulos, disseram: Explica-nos a parábola do joio do campo. E ele respondeu: O que semeia a boa semente é o Filho do Homem; o campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o joio são os filhos do maligno; o inimigo que o semeou é o diabo; a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos. Pois, assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim será na consumação do século. Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes. Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. De acordo com Mateus, os discípulos de Jesus lhe pediram uma explicação sobre a parábola do joio70. A explicação é dada em poucas palavras. Pode ser lida assim: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

“O que semeia a boa semente o campo a boa semente o joio o inimigo que o semeou a ceifa os ceifeiros

é o Filho do homem; é o mundo; são os filhos do reino; são os filhos do maligno; é o diabo; é a consumação do século, e são anjos”.

Embora a interpretação da parábola seja dada por Jesus, a composição da explicação parte de Mateus. Mateus toma o ensino de Jesus e ordena suas palavras numa lista de sete conceitos71. (O arranjo 69

Jülicher, em Gleichnisreden, 2: 548, afirma que o joio amadurece antes do trigo. Compare-se Mateus 15.15, onde a mesma questão da explicação da parábola é levantada. Consulte-se M. de Goedt, “L’Eplication dela Parable de L’Ivraie (Mt XIII, 36-43)’, RB 66 (1959): 35. Veja-se J. Jeremias, “Das Gleichnis vom Unkraut Unter dem Wiezen, “em Neotesstamentica et Patristica (Leiden: Brill, 1962), p. 59. 71 R. Schippers, Gelijkenissen van Jezus (Kampen: J. H. Kok, 1962), p. 71. 70

de nomes e dados é uma característica de Mateus, como fica evidente desde o primeiro capítulo de seu Evangelho). Na interpretação, nenhuma menção é feita ao fato de que o inimigo veio quando todos dormiam. Também é omitida a referência ao crescimento e à maturação do trigo e do joio, e nada é dito sobre o ajuntamento do trigo no celeiro e dos feixes de joio lançados ao fogo. Em sua interpretação, Jesus omite a referência aos servos. Ele talvez tenha feito isso para focalizar a atenção no ponto mais significativo da parábola: o conflito entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. E, nesse conflito, Satanás perde a batalha. Do mesmo modo, a conversa dos servos com o fazendeiro parece não ter importância para a interpretação da parábola. É deixada de lado; apenas uma referência a ela é feita no resumo onde o fato do joio ser arrancado e lançado ao fogo se torna importante (Mt 13.40). Na verdade, a conclusão da interpretação é uma visão das coisas que acontecerão no final dos tempos, Jesus, realmente, está dizendo: “com as Escrituras do Velho Testamento, vou lhes dizer o que vai acontecer”. “Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes. Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Da maneira usual, o ensinamento de Jesus reflete direta e indiretamente as Escrituras do Velho Testamento72. Jesus parece se referir à profecia de Sofonias: “De fato consumirei todas as coisas sobre a face da terra, ... os homens e os animais (1.2,3), quando fala de extirpar de seu reino tudo aquilo que traga escândalo e todo aquele que pratique a iniqüidade. A frase “os lançarão na fornalha acesa” lembra Daniel 3.6: “... lançado na fornalha de fogo ardente.” O próprio conceito se assemelha a Malaquias 4.1: “Pois eis que vem o dia, e arde como fornalha; todos os soberbos, e todos os que cometem perversidade, serão como o restolho...” A passagem: “Então os justos resplandecerão como o sol”, lembra Daniel 12.3: “Os que forem sábios, pois, resplandecerão, como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas sempre e eternamente.” E para completar, devemos ler, também, Malaquias 4.2: “Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça...”

72

Jeremias, em Parables, pp. 8485, afirma que “é impossível deixar de concluir que a interpretação sobre o joio vem do próprio Mateus.” De acordo com Kingsbury, em Parables of Jesus, p. 109, Jesus é o Senhor exaltado, que exorta os cristãos na igreja de Mateus a serem obedientes à vontade de Deus. No entanto, como observa R. H. Gundry “A resposta à questão de origem é o ensino de Jesus.” The use of the Old Testament in St. Matthew’s Gospel (Leiden: Brill, 1967), p. 213. Resumindo, não temos que chegar à mente imaginativa de Mateus. Antes, a origem desse ensinamento está em Jesus mesmo.

Sem dúvida, na interpretação de Jesus, ressoa o eco das palavras e sentimentos dos profetas. A parábola do joio é, realmente, aquela na qual Jesus ensina o julgamento que está para vir; pode ser chamada de a parábola da ceifa. Os servos estavam dispostos a arrancar o joio, embora pudessem, no processo, arrancar também o trigo — o sistema de raízes do joio é bem mais desenvolvido que o do trigo. Mas o fazendeiro diz: vamos esperar até à ceifa, quando, então, os ceifeiros separarão o trigo do joio. O fazendeiro conhece o seu negócio. Se permitir que os empregados arranquem o joio, perderá sua safra de trigo, pois o trigo não pode ser separado do joio. Se perder sua colheita, dará ao seu inimigo a satisfação que ele pretendia. Em vez disso, o dono de terras decide esperar que toda a plantação amadureça. Fará a separação na ocasião da ceifa. Tanto o joio quanto o trigo estarão maduros para a colheita. O joio são os filhos do maligno, e a boa semente são os filhos do remo. Como os dois — o mal e o bem — amadurecem não é explicado, e será sensato não tentarmos ir além da parábola, em busca de explicação73. Enquanto os dois crescem e amadurecem, o fazendeiro não pode fazer nada para remediar a situação. Essa incapacidade não provém da ignorância. Pelo contrário, o lavrador, plenamente ciente do problema, espera o tempo certo. Ele sabe o que deve ser feito. Ele sabe de onde veio o joio e como foi semeado em seu campo — à noite, enquanto todos dormiam. Jesus, ao interpretar a parábola, disse que o fazendeiro que semeia boa semente é o Filho do homem. O Filho do homem é o próprio Jesus, que tomando a forma humana, se fez semelhante ao homem (Fp 2.7,8). Ele veio semear a boa semente, os filhos do reino, a nova humanidade em Cristo. O campo onde a semente é lançada é o mundo. É onde tem lugar o drama entre o bem e o mal. O inimigo que semeia o joio é o diabo, e o joio são os filhos do maligno. É interessante notar que o campo, o mundo, pertence ao fazendeiro —a Jesus. Nesse campo cresce o trigo e o joio. Não importa onde o homem viva na terra. Onde quer que viva estará em propriedade que pertence a Jesus74. Ele é o trigo ou o joio, um OU outro. Ele é filho do reino ou filho do maligno. Tanto o trigo quanto o joio estarão maduros quando o dono das terras enviar os ceifeiros para o campo. 73 74

Ridderbos, coming of the Kingdom, p. 139. Schippers, Gelijkenissen p. 71.

Quando chegar o final dos tempos, os ceifeiros, que são anjos de Deus, separarão o bom do mau, o trigo do joio, os filhos do reino dos filhos do maligno. No conflito entre Deus e Satanás — tudo que causa escândalo e todo aquele que pratica a iniqüidade — é arrancado e lançado ao fogo ardente. Os filhos do reino, por outro lado, resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Eles são os justos. São abençoados. Permanecerão para sempre. Aplicação Esta parábola de Jesus põe em confronto o bem e o mal, e ensina que o bem prevalecerá. Na parábola, os servos perguntam ao fazendeiro de onde veio o joio: “Donde vem, pois, o joio?” A resposta concisa do fazendeiro foi: Um inimigo fez isso”. Os servos, naturalmente, podiam ter desabafado sua contra o inimigo75, mas voltaram sua atenção para o joio e manifestaram a vontade de arrancá-lo. O fazendeiro disse: “Não!”. Os servos refletem a impaciência de muitos cristãos no reino de Deus. Com o pretexto de manter a pureza da igreja, crentes zelosos têm causado dano incalculável, julgando e afastando outros cristãos da igreja. Qualquer jardineiro sabe que, às vezes, é impossível ver a diferença entre uma planta que produzirá belas flores e outra que se transformará apenas em erva daninha. Nos antigos versos: Há tanto bem no pior de nós, E tanto mal no melhor de nós, Que dificilmente qualquer um de nós poderá falar dos demais de nós76. Ninguém deve deduzir que a parábola ensina a eliminação da disciplina ou desaprova o cumprimento e a aplicação da lei. Ao contrário, as Escrituras ensinam muito claramente que a disciplina deve ser mantida e que a lei deve ser preservada. Jesus ensina, explicitamente, a doutrina da disciplina em Mateus 18.15-17. Ao esboçar o procedimento, no entanto, ele indica que a disciplina deve ser conduzida com espírito de amor e delicadeza. O processo deve se desenvolver cautelosa e pacientemente. O objetivo da disciplina deve ser, sempre, a salvação e recuperação da pessoa envolvida. Em Romanos 13, Paulo ensina que: “não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à 75

W. G. Doty, “An Interpretation of the Weeds and Wheat”, Interp 25 (1971): 189. Com agradecimentos a Hunter, Parables, p. 48, que parece ter um estoque infindável de verses, poemas e ditados. 76

ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal” (13.1-3). Deus investiu de autoridade os magistrados para preservar a lei, punir o que pratica o mal e impedir o crime. A parábola, entretanto, nos instrui a ter paciência e a não nos autonomearmos juízes. “Sede vós também pacientes, e fortalecei os vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para não serdes julgados. Eis que o juiz está às portas”. (Tg 5.8,9). À primeira vista, a parábola pode dar a impressão de que há dois tipos de indivíduos neste mundo, o bom e o mau, e que os bons serão sempre bons e os maus permanecerão maus para sempre. Mas isso não é totalmente correto. As Escrituras não ensinam que Deus tenha criado os homens bons e que Satanás criou os maus. Deus criou gente — artesanato divino —, e ele regenera aqueles que escolheu por obra da graça de seu Espírito. Os maus, embora criados por Deus, foram corrompidos por Satanás e são usados por ele para influenciar o povo regenerado de Deus77. São o joio entre o trigo. O trigo e o joio amadurecem lado a lado até à ceifa. Então, serão separados. A parábola do joio contém uma lista compacta de termos similares, em forma de glossário. A aparente simplicidade na explicação dos termos é quase um desafio a que se faça o mesmo em relação a outras parábolas ensinadas por Jesus. Muitos comentaristas têm visto isso como um convite explícito para explicar as parábolas à maneira de Jesus. Por exemplo, ao explicar a parábola das cinco virgens prudentes e as cinco virgens néscias (Mt 25.1-13), alguns comentaristas da igreja primitiva davam explicações variadas para a palavra óleo. Para Hilário, o óleo era o fruto das boas obras; para Agostinho, o óleo significava alegria; Crisóstomo dizia que o óleo significava a ajuda dada aos necessitados; e Orígenes considerava o óleo como sendo a palavra de ensinamento78. Obviamente, os comentaristas não têm a sabedoria demonstrada por Jesus para interpretar parábolas. Devem ser cautelosos, para não verem nas parábolas pensamentos e conceitos que elas não pretendem ensinar. Na verdade, serão sensatos se buscarem o ensinamento básico da parábola, na própria parábola, ou em seu contexto, e limitarem sua interpretação ao ensino transmitido pela parábola.

77

Calvin, Harmony of the Evangelists, 2:120. Numerosos exemplos são encontrados nas séries, Works of lhe Father, coletados por Tomás de Aquino. Veja Coomentary on the Four Gospels, 1, Si. Matthew (Oxford: n. p. 1842). 78

7. O Grão de Mostarda Mateus 13.31,32 “Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou no seu campo; o qual é, na verdade, a menor de todas as sementes, e, crescida, é maior do que as hortaliças, e se faz árvore, de modo que as aves do céu vêm aninhar-se nos seus ramos”. Marcos 4.30-32 “Disse mais: A que assemelharemos o reino de Deus? Ou com que parábola o apresentaremos? É como um grão de mostarda, que, quando semeado, é a menor de todas as sementes sobre a terra; mas, uma vez semeada, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves do céu poderem aninhar-se à sua sombra”.

Lucas 13.18,19 “E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos”. Jesus contou duas parábolas para falar a respeito do fenomenal crescimento do reino dos céus: a parábola do grão de mostarda e a parábola do fermento. As duas formam um par, e são, na verdade, duas faces de uma mesma moeda. A parábola do grão de mostarda retrata o crescimento do reino em extensão e a do fermento descreve a intensidade desse crescimento79. Mateus colocou as duas em seu capítulo de parábolas (Mt 13); provavelmente por causa do assunto. Lucas, por outro lado, incorporando as parábolas no decorrer da chamada narrativa da viagem (Lc 9.51 — 19.27), talvez reflita uma seqüência mais histórica, embora não possamos afirmar isso, com certeza. Podemos, apenas, presumir que Jesus tenha ensinado essas duas parábolas, juntas, na mesma ocasião80. A Semeadura e o Crescimento Vinte e cinco alunos acompanham seu professor a Washington D.C., para ver a Casa Branca. Quando voltam à sala de aula, o professor pede que cada um deles faça uma descrição da visita. Vinte e cinco redações refletem vinte e cinco aspectos da residência presidencial. Uma criança, talvez, escreva: “A Casa Branca parece...”, seguindo-se uma descrição daquilo que lhe pareceu mais interessante. Outra criança, todavia, pode usar a mesma introdução, mas na redação retratar uma perspectiva da Casa Branca, inteiramente diferente. Jesus tornou familiar a seus seguidores várias das características do reino de Deus. Por meio de parábolas, ele procurou descrever as facetas do poder soberano de Deus. Assim, ele introduz suas parábolas com a frase: “O remo dos céus é semelhante...” A parábola do grão de mostarda, em contraste com a do trigo e do joio, é muito curta. Em poucas palavras, Jesus descreve o surpreendente tamanho da mostardeira (“árvore”, em Mateus e Lucas; “hortaliça”, em Marcos) que se desenvolve da menor das sementes. Obviamente, Jesus realça a diferença entre o pequenino grão e a grande árvore. Ele não diz nada sobre a qualidade da mostarda. Ele poderia ter mencionado seu uso na comida e nos remédios, sua cor e seu gosto, mas esse não era o propósito da parábola. 79

A. B. Bruce. The Parabolic Teaching of Christ (New York: A. C. Armstrong, 1908), p. 91. 80 Michaelis, Gleichnisse, p. 55. No Evangelho de Tome, as parábolas do grão de mostarda e do fermento estão separadas. Elas têm o mesmo estilo (com ligeiras variações) dos relates canônicos. Vejam-se Citações 20 e 96.

Jesus usa um exemplo da vida diária. Na nossa sociedade moderna de comida enlatada, engarrafada e empacotada, muitos não conhecem uma horta. Mas nos dias de Jesus quase todo mundo tinha sua própria plantação. Mesmo os religiosos pagavam o dízimo das especiarias colhidas — hortelã, endro e cominho (Mt 23.23). Em cada quintal havia uma mostardeira. A planta podia, muitas vezes, ter crescido no campo ao lado do canteiro de hortaliças, porque exige muito espaço. Em Mateus, o jardineiro plantou a semente em um campo; em Lucas, numa horta; e em Marcos, na terra. O horticultor tomou apenas uma das sementes de mostarda. Seus dedos pareciam grandes demais para segurar uma semente tão pequena. Ele plantou a semente em seu campo porque sabia que aquela coisinha minúscula tinha a capacidade de se transformar numa planta do tamanho de uma árvore81. precisava de apenas uma planta, e ele sabia do contraste entre a semente e a planta82. De fato, o tamanho insignificante da semente de mostarda se tornou proverbial, no primeiro século. Jesus, uma vez disse: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará” (Mt 17.2O)83. Tanto Mateus como Marcos dizem explicitamente que o grão de mostarda é a “menor de todas as sementes84”. O contraste, no entanto, se torna mais marcante, porque a afirmativa é posta em comparação com a descrição da planta adulta: “crescida, é maior do que as hortaliças, e se faz árvore”. Aquele minúsculo grão, depositado no solo, se transforma numa árvore. Um milagre! Concluindo a parábola, Jesus se refere ao Velho Testamento, às passagens de Daniel 4.12 e Ezequiel 17.23 e 31.6. A passagem de Daniel era bem conhecida de seus ouvintes, pois se referia a um sonho de Nabucodonosor sobre uma árvore que se tornava tão forte que sua altura chegava até ao céu. Debaixo dela, os animais do campo achavam sombra e em seus ramos as aves do céu vinham se aninhar. Jesus, que fala as palavras de Deus (Jo 3.34), ensina, indiretamente, as Escrituras chamando, através de uma alusão verbal, a atenção para uma parábola messiânica, em Ezequiel 17.23: “No 81

Alguns manuscritos trazem “grande árvore”, em Lucas 13.19. B. M. Metzger, em A Textual Commentary on the Greek New Testament (London, New York: United Bible Societies, 1971), p. 162, escreve: “Embora alguns copistas possam ter suprimido mega, para harmonizar Lucas com o texto preponderante de Mateus (13.32), é muito mais provável que, com o interesse de enfatizar o contraste entre o grão de mostarda e a árvore, o termo mega tenha sido acrescentado, também, em alguns testemunhos, no paralelo de Mateus”. 82 A semente da mostarda negra (sinapis nigra) cresce predominantemente nas regiões do sul e do leste dos países mediterrâneos, Mesopotâmia e Afeganistão. É a menor das sementes de trCs ou quatro variedades de mostarda. Lõw, Die Flora der Juden, 1: 521, O. Michel, TDNT, III: 810-12. 83 Para exemplos dos escritos dos rabinos, veja SB, 1: 669. 84 É possível que os dois evangelistas tenham acrescentado essa explicação como ajuda ao leitor.

monte alto de Israel o plantarei, e produzirá ramos, dará frutos e se fará cedro excelente. Debaixo dele habitarão animais de toda sorte, e à sombra dos seus ramos se aninharão aves de toda espécie85”. O Cumprimento Através da parábola, Jesus ensina que o reino de Deus pode parecer sem importância e insignificante, especialmente na Galiléia de 28 AD. Mas, o evangelho do reino, proclamado por um carpinteiro transformado em pregador, provocará um impacto tremendo no mundo todo. Os seguidores de Jesus eram um grupo de pescadores “rudes” a quem foi ordenado que fizessem discípulos de todas as nações. Esses seguidores puseram o mundo em chamas, com a mensagem de salvação, que hoje é proclamada em quase todas as línguas conhecidas da terra. O pequenino grão semeado na Galiléia, no nascer da nova era do Cristianismo, se tornou uma árvore que, hoje, prove abrigo e descanso para os povos de todos os lugares. E o dia ainda não se acabou. A árvore ainda não alcançou maturidade; ainda está crescendo86. Olhamos para o fenômeno do seu crescimento e sabemos que Deus está operando o desenvolvimento do seu reino. Sabemos que inúmeros povos desse planeta ainda não ouviram as boas-novas do amor generoso de Deus. Nações inteiras estão virtualmente destituídas da sombra e do abrigo oferecidos pelo reino de Deus. Os ramos da árvore devem continuar a crescer e a se estender até àquelas regiões que ainda precisam do evangelho para que multidões possam encontrar refúgio e descanso87. E quando o evangelho do reino de Deus tiver sido pregado a todas as nações do mundo, então o fim virá (Mt 24.14) e a árvore terá alcançado sua plenitude.

85

J. W. Wevers, Ezekiel (Greenwood, 5. C.: Attic Press, 1969), p. 139. C. L. Feinberg, em The Prophecy of Ezekiel (Chicago: Mood Press, 1969), p. 97, diz que os versículos finais de Ezequiel 17 ‘sem dúvida, apresentam uma profecia messiânica”. Veja, também, D. M. G. Stalker, Ezekiel (London: 5. C. M. Presa, 1968), p. 154; J. B. Taylor, Ezekiel (Downers Grove, III:Inter Varsity Presa, 1969), p. 146; e, J. Mánek, Und Brachte Frucht (Stuttgart: Calwer, 1977), p. 28. 86 Os estudiosos hesitam em se referir à planta da mostarda como uma árvore. Veja R. W. Funk: “The Looking-Glass Tree is for the Birds”, lnterp 27 (1973): 5. No entanto, ela alcança uma altura de mais ou menos três metros. A linguagem popular descrevia o fenômeno do crescimento da mostarda, naqueles dias, como “uma árvore”. 87 Os rabinos costumavam chamar os gentios de “aves do céu”. Veja Hunter, Parables, p. 45, e Kingsbury, Parables of Jesus, p. 82. Também, H. K. McArthur, “The Parable of the Mustard Seed”, CBO 33(1971): 208; O. Kuss, “Zum Sinngehalt des Doppclgleichnissesvom Senfkom und Sauerteig”, Bib 40 (1959): 653.

8. O Fermento Mateus 13.33 “Disse-lhes outra parábola: O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado”. Lucas 13.20,21 “Disse mais: A que compararei o reino de Deus? É semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado”. O método visual era um dos recursos pedagógicos mais usados por Jesus. Sempre que ensinou às multidões a respeito do reino de Deus, ele usou exemplos tirados diretamente do cotidiano. Quando menino, em Nazaré, viu sua mãe fazendo pão. Primeiro, ela dispunha as vasilhas e panelas; então, pegava farinha, água e fermento, e adicionava uma pitada de sal. Ela misturava os ingredientes e deixava a massa descansar. Seu trabalho, até ali, estava feito; o fermento

agiria e faria a massa crescer. Quando o processo da fermentação estivesse completo, ela dividiria e assaria os pães. Jesus contou a história de uma mulher fazendo pão — cena comum do dia-a-dia. A mulher apanhou uma pequena quantidade de fermento, misturou-o a uma grande quantidade de farinha, e assou pão suficiente para uma refeição de cem pessoas. Tanto Mateus quanto Lucas indicam que a mulher usou três satas de farinha. Uma sata equivale a, mais ou menos, 13,13 litros. Assim, a mulher tomou cerca de 39 litros de farinha — mais de 20 quilos —, pretendendo fazer uma grande quantidade de pão. É demais, naturalmente, para o consumo diário de uma família pequena88. Mas Sara, mulher de Abraão, assou o mesmo tanto, quando três homens vieram visitá-los em Manre (Gn 18.6). E, em pelo menos outras duas referências, o total de três medidas (seah, ou um EFA) é mencionado em relação à farinha usada para o pão (Jz 6.19 e 1 Sm 1.24). Há quem argumente que as traduções modernas confundem o sentido básico do versículo traduzindo a palavra grega zume como fermento e não como levedo. A não ser entre o povo judeu, o uso do levedo não é muito conhecido, e por isso o conceito de fermento está na introdução: “O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado” (Mt 13.33). O fermento, como o conhecemos hoje, é limpo, fresco, saudável e até saboroso. E feito da cultura de uma solução de sal e açúcar à qual se adiciona amido. O levedo, no entanto, era conseguido com uma porção de massa guardada da semana anterior, à qual eram adicionados sucos para facilitar o processo de fermentação. Se o levedo fosse contaminado por uma cultura de bactérias nocivas, essa contaminação passaria para o pão até que o processo fosse interrompido, quando comessem pão não levedado durante uma semana, como faziam por ocasião da Páscoa89. Jesus não teve a intenção de considerar nocivo o levedo. Ele usou o exemplo do levedo por causa de seu poder oculto. O fermento e o levedo fazem a massa crescer, permeando-a inteiramente. Depois de misturados à farinha, o fermento ou o levedo não podem mais ser encontrados. Ficam escondidos e invisíveis. Esta parábola tão curta tem sido interpretada de várias maneiras. Jerônimo, por exemplo, identificou a mulher com a igreja 90. As três medidas de farinha têm sido explicadas como sendo os três ramos da raça humana (descendentes de Sem, Cão e Jafé); os gregos, 88

Jeremias, em Parables, p. 147, afirma sumariamente: “Nenhuma dona-de-casa amassaria tão grande quantidade de pão”. 89 Para uma descrição mais minuciosa, veja-se C. L. Mitton, “Leaven”, Expt T84(1973), 339-43. 90 R. C. H. Lenski, Interpretation of St. Matthew’s Gospel (Columbus: Lutheran Book Concern, 1943), pp. 530-32).

judeus e samaritanos; ou o coração, a alma e a mente91. Essas interpretações são especulativas, imaginativas e de pouco valor. A parábola destaca o fato de o fermento, uma vez adicionado à farinha, permear toda a porção de massa, até que cada partícula seja atingida. O fermento fica invisível, mas todos podem ver o seu efeito. É assim que o reino de Deus demonstra seu poder e sua presença no mundo de hoje. Na parábola do grão de mostarda, Jesus tornou conhecida a expansão aparente do reino. Na parábola do fermento, ele focaliza a atenção no poder interior do reino e em sua influência sobre tudo. A parábola do grão de mostarda ilustra o programa evangelístíco global da igreja em obediência à comissão de Cristo e seus seguidores para que fizessem discípulos em todas as nações. A parábola do fermento torna claro que essa obediência a Cristo traz como conseqüência a cristianização de cada setor e de cada segmento da vida. O seguidor de Cristo deixa sua luz brilhar diante dos homens, para que vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está nos céus (Mt 5.16). Ele alivia o sofrimento dos pobres e dos aflitos; luta pela causa da justiça, em favor dos oprimidos; exige honestidade dos que foram eleitos ou escolhidos para governar as nações; ergue o estandarte da moralidade e da decência; defende a santidade da vida; respeita as leis da natureza; exige integridade nos negócios, no comércio, na indústria, no trabalho e nas profissões (médicas, jurídicas, religiosas); e na área da educação, explica significativamente que em Cristo “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.3). O seguidor de Cristo torna o ensinamento das Escrituras de especial relevância em todos os lugares. “Está claro para todo aquele que tiver olhos para ver, que o “fermento” do poder de Cristo, nos corações e nas vidas dos homens e em todas as esferas humanas, tem exercido, de milhares de maneiras, uma influência completa. E essa influência ainda continua92”. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. O que, precisamente, queria Jesus dizer com a expressão “reino dos céus”? É um sinônimo de igreja? O povo de Deus, individual e coletivamente, confessa o nome de Jesus Cristo como seu Salvador. Juntos constituem a igreja. Nessa igreja recebem dons e poderes que se tornam capazes de guardar cuidadosamente a lei de Deus, proclamar universalmente o evangelho da salvação e promover efetivamente o governo de Deus93. A igreja, então, é constituída de 91

F. Godet, Commentaiy on St. Luke’s Gospel (Grand Rapids: Kregel, reprint of 1870 ed.), 2: 122. R. W. Funk, em “I3eyond Criticism in Quest of Literacy: The Parable of the Leaven”, Interp 25 (1971) entende o numero três escatologicamente e escreve: “Três medidas de farinha apontam para o poder sacramental do Reino para a ocasião festiva de uma epifania”, p. 163. Devemos acentuar, no entanto, o poder e não o significado da farinha ou do número três. 92 Hendriksen, Matthew, p. 568. 93 Para um estudo mais abrangente, veja-se Ridderbos, Coming of the Kingdom,

cristãos que praticam os ensinamentos de Cristo em todas as esferas da vida. Assim procedendo, promovem o reino de Deus, no qual o governo de Cristo é aceito. Resumindo, cada área da vida influenciada pelo ensinamento de Cristo (o fermento) pertence ao reino.

9. O Tesouro Escondido Mateus 13.44 “O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo”. 10. A Pérola Mateus 13.45,46 “O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e procura boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de grande valor, vende tudo o que possui e a compra”. Em sua série de sete parábolas, Mateus elabora cuidadosamente as duas primeiras — o semeador, o trigo e o joio — registrando a interpretação de cada uma delas. As outras cinco são especialmente as páginas 342-56.

um tanto curtas na forma, e diretas no tocante ao assunto. Apenas duas sentenças constituem cada uma das parábolas — do tesouro oculto e da pérola; a primeira sentença de cada uma delas é a conhecida frase introdutória: “O reino dos céus é semelhante a...” O ponto principal da parábola se encontra, naturalmente, na segunda frase. Encontramos essas duas parábolas apenas no Evangelho de Mateus. Não sabemos se Jesus contou-as em seqüência ou se Mateus reuniu-as pelo assunto ao organizar seu material. Permanece o fato de que as duas estão relacionadas94. Estritamente falando, as frases que apresentam as duas parábolas não são inteiramente condizentes. Numa o reino dos céus é semelhante a um tesouro; e na outra, a um mercador. Não devemos, no entanto, abordar as duas parábolas com a mente analítica ocidental. Devemos, antes, procurar seu sentido básico buscando entendê-las como foram entendidas pelos discípulos, que primeiro as ouviram. Composição Jesus contou a história de um homem que achou um tesouro escondido num campo. Rapidamente, tornou a enterrá-lo e voltou alegre para casa, a fim de vender tudo o que possuía, para comprar o campo. As crianças, muitas vezes, fantasiam que em algum lugar, em alguma casa velha, ou celeiro, vão descobrir um tesouro que ninguém viu. Na nossa sociedade sofisticada, consideramos isso irreal; pensamos que tais coisas não acontecessem mais. Entretanto, de tempos em tempos, descobertas são feitas: um pastor encontrou, perto do Mar Morto, rolos de pergaminho de dois mil anos de existência; um mergulhador localizou, afundado na costa da Flórida, um navio espanhol do século 17, cheio de ouro e prata; e um fazendeiro, arando o seu campo, em Suffolk, Inglaterra, achou um cofre que guardava belos pratos de prata, do tempo dos romanos95. Um tesouro tinha sido enterrado em um campo. Quem o enterrara e por quanto tempo permanecera ali, são perguntas que não temos como responder. Sabemos que, na antiga Palestina, um país 94

Alguns estudiosos citam o Evangelho de Tomé, onde as duas parábolas estão separadas (Hidden Treasures, Citação 109; and Pearl, Citação 76). Isso é verdade, também, em relação às parábolas do grão de mostarda e do fermento. A evidência disponível, no entanto, nIo~ conclusiva, O assunto é discutido por O. Glombitza, “Der Perlenkaufmann”, NTS 7 (1960. 61): 153-61. Ver também J. C. Fenton: “Expounding the Parables: IV. lhe Parables of lhe Treasure and the Pearl (Mt 13.4446)”, Expt 77(1966): 178-80; J. Dupont: “Les Paraboles du Trésor et dc la Pene”, NTS 14 (196768): 408-18. 95 E. A. Armstrong, The Gospel Parables (New York: Sheed and Ward, 1967), p. 154.

freqüentemente em guerra, as pessoas achavam mais seguro guardar seu tesouro, ou parte dele, no campo do que em suas casas. Em casa, os ladrões podiam roubá-lo; no campo ficaria em maior segurança. Mas, se o proprietário morresse na guerra, levaria para o túmulo o seu segredo, e ninguém, jamais, poderia saber onde enterrara o tesouro. O homem que encontrou tal tesouro podia ser um empregado ou mesmo um arrendatário daquele campo. Talvez estivesse arando, cavando buracos, ou plantando uma árvore. De qualquer modo, ele bateu em alguma coisa dura debaixo da terra, cujo som não parecia o de uma pedra. Ele cavou e encontrou um tesouro. Não nos é contado de que tesouro se tratava, mas o homem ficou maravilhado. Nunca tinha visto um tesouro tão valioso. Tudo aquilo poderia ser seu, se comprasse o campo. Em segundos, arquitetou um plano. Rapidamente, pôs o tesouro de volta no lugar, cobriu-o com terra e foi para casa. Sabia que o atual proprietário do terreno não tinha enterrado o tesouro ali. Assim, se o dono lhe vendesse o terreno, ele teria a posse do tesouro, que, então, seria seu de direito96. precisava de dinheiro e pôs à venda tudo o que tinha. Algumas pessoas talvez tenham meneado a cabeça, reprovando aquela atitude tão impetuosa. Mas o homem sabia o que estava fazendo. Com o dinheiro, poderia comprar o campo e teria para si o tesouro. Em poucas palavras, Mateus relata a parábola da pérola, contada por Jesus. Um mercador está à procura de pérolas e encontra uma de excepcional valor. Vai, vende tudo que possui, e compra aquela pérola única. A história é muito parecida com a do homem que encontrou o tesouro. A mesma dedicação é encontrada em ambas as parábolas. Cada um dos homens quer ter o objeto de seu desejo mesmo que isso lhe custe o que ajuntou em toda a sua vida. Os dois, literalmente, vendem tudo o que têm para conseguir o tesouro e a pérola. No tempo do Velho Testamento, as pérolas, aparentemente, não eram conhecidas, mas já no primeiro século da era cristã, tinham-se tornado símbolo de status entre os ricos97. Jesus disse a seus ouvintes: “Nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas” (Mt 7.6), e Paulo queria que as mulheres de seu tempo se vestissem modestamente: “não com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso” (1 Tm 2.9). No Apocalipse, uma voz dos céus, diz: 96

Não devemos pôr em dúvida a moral daquele homem, pois não sabemos como eram as leis de propriedade, nos dias de Jesus. A parábola não dá ênfase à conduta ética do homem que encontrou o tesouro. Para um estudo mais detalhado, veja-se J. D. M. Derrett, Law in the New Testament (London: Longman and Todd, 1970), pp. 116. 97 B. T. D. Smith, The Parables of the Synoptic Gospels (Cambridge: S. P. C. K., 1937), p. 145.

“Choram e pranteiam os mercadores da terra, porque já ninguém compra a sua mercadoria, mercadoria de ouro, de prata, de pedras preciosas, de pérolas” (Ap 18.11,12). Nos dias de Jesus e dos apóstolos, as pérolas eram muito procuradas. Os mercadores tinham que ir ao Mar Vermelho, ao Golfo Pérsico, e até mesmo à Índia para encontrá-las. As pérolas inferiores vinham do Mar Vermelho; as melhores vinham do Golfo Pérsico e das costas do Ceilão (hoje Sirilanka) e da Índia98. Um mercador tinha que viajar muito para conseguir as melhores e maiores pérolas. O homem, cuja história Jesus contou, está à procura das mais finas pérolas. Não sabemos para onde viajou, mas um dia encontrou uma de grande valor. Para ele, era uma oportunidade única na vida. Não sossegou enquanto não a teve. Pensou muito, fez todos os cálculos, avaliou seus bens, e decidiu vender tudo o que tinha para comprar aquela pérola única, perfeita. Devemos notar que o mercador não foi deliberadamente de um apanhador de pérolas para outro, em busca de uma excepcional. Enquanto as procurava, no decorrer normal de seu trabalho, ele se deparou com a melhor de todas as pérolas que já havia visto. Como o homem que descobriu o tesouro, o mercador, de repente, viu a pérola. Era uma questão de agora —ou nunca: vender tudo e comprar! Típico negociante oriental mantém o rosto impassível durante o negócio. Quando a pérola for sua, haverá tempo para celebrar. “Nada vale, nada vale, diz o comprador, mas, indo-se, então se gaba”. (Pv 20.14) Aplicação Os amigos e conhecidos dos dois homens das parábolas devem ter sacudido suas cabeças em desaprovação, quando os viram vender tudo que possuíam. Devem ter ficado surpresos, quando logo a seguir tiveram conhecimento do lucro obtido. E tiveram que mostrar respeito; os homens sabiam o que estavam fazendo. Os dois, no entanto, não especularam. Não havia nenhum risco na compra do campo, ou na aquisição da pérola; o que fora comprado valia o preço. O que fizeram foi o mais sensato. Por acaso, encontram aqueles bens, e seria tolice ignorá-los. Diante da oportunidade, tudo que tiveram que fazer foi adquirir o tesouro e a pérola. Ao comprar o campo e a pérola, os dois homens não fizeram sacrifício algum, mesmo vendendo tudo o que possuíam. “Há uma diferença básica entre o valor de uma compra e um sacrifício. A 98

Smith, Parables, p. 146. Veja Schippers, Gelijkenissen, p. 103; Jeremias, Parables, p. 199 Hauck, TDNT, IV: 472.

compra é a aquisição de um objeto de valor equivalente. O sacrifício, de outro lado, é uma dádiva que não espera recompensa99”. Tanto o homem que encontrou o tesouro quanto o mercador de pérolas pagaram o preço justo pelo que compraram. Viram a oportunidade e se mostraram dispostos a pagar o preço devido. Deram tudo o que tinham em troca do único bem desejado. O que, então, as parábolas ensinam? Pais da Igreja, como Irineu e Agostinho, identificam o tesouro e a pérola com Cristo. Pensaram acertadamente. O recém-convertido diz exatamente a mesma coisa: ‘Achei o Cristo’. O novo cristão, de repente, encontrou Cristo. Alegre, ele volta para casa, abandona o seu modo de vida, e se devota completamente a seu Senhor. Alguns vendem tudo o que têm para buscar instrução teológica, a fim de se ordenarem ministros ou missionários do Evangelho de Cristo. É Cristo quem oferece o tesouro e a pérola aos viajantes da vida100. Alguns deles estão buscando; outros estão andando a esmo. Subitamente, encontram Jesus e acham nele um tesouro inestimável. Sua resposta a Jesus é de entrega total. Alegremente vendem tudo o que têm, para ter Jesus. A salvação, naturalmente, é plena e de graça, e não pode ser comprada. É uma dádiva. Significa que Jesus exige o coração do homem. Como nas palavras do antigo hino: Tudo, ó Cristo, a ti entrego, Por ti tudo deixarei; Resoluto, mas submisso, Sempre a ti eu seguirei. Tudo entregarei! Tudo entregarei! Tudo, sim, Jesus bendito, por ti deixarei!

11. A Rede Mateus 13.47-50 “O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie. E, quando já está cheia, os pescadores arrastam-na para a praia e, assentados, escolhem os bons para os cestos e os ruins deitam fora. Assim será na consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus dentre os justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes”. Somente o Evangelho de Mateus registra a parábola da rede101. 99

E. Linnemann, Parables of Jesus: Introduction and Exposition (London: 5. P. C. K., 1966), p. 100. 100 Hunter, Parables, p. 80. Também Michaelis, Gleichnisse, p. 66. 101 No Evangelho de Tomé, Citação 8, encontramos uma parábola semelhante, uma

Está claramente associada à parábola do trigo e do joio; a interpretação de ambas focaliza o dia do juízo final. Ainda assim, ficam evidentes diferenças importantes. Na parábola do joio, Jesus acentuou a idéia de paciência. Essa idéia não aparece na parábola da rede102. A parábola do joio é mais descritiva. Ela menciona o fazendeiro, seus servos, e os ceifeiros, mas na parábola da rede apenas os pescadores e suas tarefas são mencionados. O joio é semeado no campo depois que o fazendeiro já tinha plantado o trigo, ao passo que os peixes próprios para serem consumidos, e os impróprios, estão sempre juntos no Mar da Galiléia. A parábola do joio descreve as condições do campo, no presente, e a ceifa como um acontecimento futuro. A parábola da rede, por outro lado, retrata a separação dos peixes, no presente103. A Pesca A maior parte dos discípulos de Jesus era de pescadores por profissão; tinham deixado suas redes e seus barcos para seguir Jesus e se tornarem pescadores de homens. Quando Jesus lhes contou a parábola da rede, compreenderam cada nuança da história. Jesus se referiu exatamente ao modo de vida que levavam antes. A margem norte do Mar da Galiléia é um dos melhores lugares de pesca, em Israel. As plantas arrastadas pela correnteza do rio Jordão são depositadas na enseada, ao norte. Essas plantas atraem e alimentam cardumes vastos e variados. Vinte e cinco espécies nativas, pelo menos, já foram identificadas naquele lado104. Embora houvesse várias maneiras de pescar, nos dias de Jesus, um dos mais eficientes era o uso do arrastão. Esse tipo de rede tinha dois metros de largura e perto de cem metros de comprimento. Tinha cortiça na parte superior para mantê-la à tona e pesos na parte inferior, para mantê-la ao fundo. Às vezes, os pescadores fixavam uma das extremidades da rede na praia, enquanto um barco puxava a outra ponta pelo lago, fazendo uma curva e trazendo a rede de volta à praia. Outras vezes, saíam dois barcos da praia, formando um semicírculo com a rede; juntos, os homens a puxavam para apanhar os peixes e juntá-los nos barcos. O uso do arrastão exigia a força de cuja ênfase difere radicalmente: “E ele disse: O homem é como um pescador que lançou sua rede ao mar, ele a recolheu quando estava cheia de pequenos peixes. Entre eles o pescador achou um peixe grande. O pescador sensato lançou de volta ao mar todos os pequenos peixes (e) escolheu o grande, sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. 102 Mánek, Frucht, p. 50. Ver, também, Jeremias, Parables, p. 226. 103 Michaelis, Gleichnisse, pp. 68-69. Consulte, também, B. Gerhardsson, “The Seven Parables in Mattew XIII”, NTS 19 (1972- 1973): 18-19. 104 G. Cansdale, AnimaIs of I3ible Lands (Grand Rapids: Zondervan, 1970), p. 216. Consulte, também, Dalman, Arbeit und Sitte, 4: 351, que faz referência a vinte e quatro espécies.

seis homens ou mais. Enquanto uns remavam, outros lançavam ou puxavam a rede e outros ainda batiam na água para guiar os peixes para a rede105. Pescadores experimentados procuravam localizar um bom cardume antes de começar a pescar. Mas, uma vez lançada a rede, os homens puxavam todos os peixes apanhados por ela. Obviamente, os peixes estavam misturados, pois não podiam selecioná-los, enquanto pescavam106. A rede apanhava os peixes próprios e impróprios para o consumo —os bons e os maus. Peixes de todos os tipos e tamanhos se debatiam ao serem puxados para a praia. Muitas espécies eram consideradas impuras, de acordo com as normas de alimentação dos judeus. Peixes sem barbatanas e sem escamas não podiam ser comidos (Lc 11.10), e tinham que ser lançados de volta à água. Os peixes pequenos, também, eram abandonados. Somente os peixes em condição de serem negociados eram apanhados e colocados em recipientes adequados. A classificação dos peixes, enfim, determinava o valor da pesca; até à hora da escolha, era impossível avaliar o lucro obtido. Explicação Jesus usa a parábola da rede para descrever o dia do juízo. Ele se dirige a seus discípulos que sabiam como apanhar e selecionar os peixes. Ele fala a linguagem deles e consegue, assim, comunicar efetivamente uma verdade espiritual. Jesus faz, ainda, uma breve interpretação da parábola. “Assim será na consumação do século: Sairão os anjos e separarão os maus dentre os justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.49,50). As palavras são quase idênticas àquelas usadas por Jesus em sua interpretação da parábola do trigo e do joio. “Pois, assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim será na consumação do século. Mandará o Filho do homem os seus anjos que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.40-42). Argumentar que a interpretação da parábola da rede não se ajusta aos termos da própria parábola, porque os peixes impróprios para serem comidos são jogados de volta à água, e não em uma fornalha acesa, é ilógico. Do mesmo modo, alguém poderia afirmar que a interpretação da parábola do trigo e do joio é inadequada, pois o joio não range os dentes. Jesus usa linguagem simbólica e transfere a mensagem da parábola para o destino espiritual do homem: céu ou 105

Há uma interessante descrição a respeito em W. O. E. Oesterley, The Gospel Parables in lhe Light of Their Jewish Background, (New York: Macmillan Co., 1936), pp. 85-86. 106 Dodd, Parables, p. 188.

inferno. Na parábola do trigo e do joio, o destino do homem é o céu, onde os justos resplandecerão como o sol, ou o inferno, onde há choro e ranger de dentes. A interpretação dada omite todos os pormenores descritivos a respeito dos pescadores lançando a rede e trazendo para a praia o produto da pesca; apenas a separação dos peixes bons, daqueles sem valor, é explicada. Portanto, não é prudente usar a própria interpretação para os detalhes da parábola107. Os pormenores fazem parte do quadro total do produto da colheita. A rede traz todos os peixes apanhados, e os pescadores, simplesmente, não podem escolher enquanto pescam. Do mesmo modo, os seguidores de Jesus, escolhidos para serem pescadores de homens, não têm como selecionar quando e a quem proclamar o evangelho. Usando as palavras de outra parábola, os servos de Cristo saem pelas ruas e reúnem todos os que encontram, tanto bons como maus (Mt 22.10). O apelo do evangelho é dirigido a todos, sem discriminação. Na parábola da rede, os pescadores lançam a rede, juntam o que conseguiram apanhar, e separam os peixes108. Na interpretação são os anjos que vêm e separam os ímpios dos justos. Assim, podemos deduzir que os pescadores, também, pertencem à multidão da qual os anjos recolherão os Ímpios. Os ímpios serão retirados da multidão dos justos. O termo ímpio é abrangente: ele se refere, também, àquelas pessoas que na aparência fazem parte da igreja, mas no íntimo não têm qualquer ligação com a verdadeira igreja. Com a boca confessam o Credo Apostólico, mas em seus corações não possuem a fé genuína em Jesus Cristo. Essas pessoas são como aquelas descritas na parábola do semeador: têm seus corações endurecidos (o solo à beira do caminho); são cristãos apenas superficialmente (o solo rochoso); amam os bens e os prazeres do mundo (o solo cheio de espinheiros). Estão na igreja, mas não pertencem a ela. No dia do juízo final, os anjos de Deus virão e os separarão do povo de Deus, e os lançarão no fogo ardente reservado para eles. O que a parábola ensina? Diz aos seguidores de Jesus: vão à sua tarefa diária de testemunhar aos outros, onde quer que estejam; tragam-nos para a igreja; façam com que se lembrem sempre da necessidade da fé e do arrependimento; que eles estejam atentos 107

Por exemplo, Lenski, em Matthew’s Gospel, p. 547, diz que “a rede é o Evangelho”. 108 Em um curto e interessante estudo, J. Mánek, “Fishers of Men”, NovT 2 (1958): 13841, mostra que há inimizade entre o mar e Deus (Ap 21.1). “Porque o mar é lugar de revolta contra Deus, ele não pode participar do mundo novo, no futuro. Ele passará juntamente com outros poderes demoníacos, como está demonstrado na visão do novo céu e da nova terra, em Ap. XXI.1”, p. 139. Os pescadores de homens, portanto, os resgatarão de um ambiente hostil a Deus.

para o dia do juízo, quando, então, a separação entre o ímpio e o justo acontecerá. Mateus, apropriadamente, fecha a série de sete parábolas (sete é o número da perfeição) com a parábola da rede. Essa última parábola lembra, uma vez mais, o dia dos dias, quando se dará o juízo final109. O escritor da Epístola aos Hebreus resume sucintamente: “E, assim, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez e, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação” (Hb 9.27,28).

12. O Credor Incompassivo Mateus 18.21-35 “Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até 109

Veja W. F. Albright e C. S. Mann, Matthew (New York: Doubteday, 1971), p. cxliv.

sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Então, o seu conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te pagarei. Ele, entretanto, não quis; antes, indose, o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. Vendo os seus companheiros o que se havia passado, entristeceram-se muito e foram relatar ao seu senhor tudo que acontecera. Então, o seu senhor, chamando-o, lhe disse: Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste; não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti? E, indignando-se, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão”. A História Jesus, alguma vez, negou-se a atender qualquer um que tenha vindo a ele em arrependimento e fé? Claro que não! Nunca, não importa que pecado tivesse cometido. Essa é a nossa resposta. Sabemos isso porque “a Bíblia nos diz”. Mas, quantas vezes nos esquecemos do nosso próximo? Uma coisa é Jesus perdoar alguém que tenha cometido um crime odioso; outra, nós perdoarmos o nosso próximo que cai, constantemente, no mesmo pecado. Pedro, conhecedor da Lei e dos Profetas, bem como da tradição judaica, sabia que devia perdoar seu semelhante. Sabia qual era o seu dever. Mas, qual o limite? Há limite, afinal? Pedro pensava que devia perdoar até sete vezes. Ele achava que sete vezes seria suficiente, e que Jesus, provavelmente, diria algo como: “Sim, Pedro, é bastante”. A misericórdia sem limite não encoraja uma vida de pecados? Jesus não concordaria com Pedro: “Há limite para tudo?”. Mas a resposta de Jesus é: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”. Jesus multiplica os dois números, sete e dez — números que simbolizam a perfeição — e acrescenta um outro sete: Ele quer dizer, não sete vezes, mas setenta vezes — sete vezes; isto é, a perfeição vezes a perfeição e mais a perfeição110. Ele indica a idéia de infinito. A misericórdia de Deus é tão grande que não pode ser medida; você, Pedro, deve também mostrar misericórdia a seu próximo. 110

A frase pode também ser traduzida como “setenta vezes sete”. Veja-se, Gn 4.24.

Para explicar a magnitude do amor misericordioso de Deus, que deve se refletir em seu povo, Jesus ensina a parábola do servo incompassivo. Ele conta a história, e o faz muito bem. Um rei reuniu seus oficiais (= servos), no dia marcado para o acerto de contas111. Um deles lhe devia a astronômica soma de dez mil talentos. De fato, a expressão “dez mil talentos” traz implícito o significado de algo que não se pode numerar ou contar, algo infinito112. Além disso, o talento era, naqueles dias, o mais alto valor monetário do sistema financeiro. Comparando, vemos que o total anual de impostos que Herodes, o Grande, recebia de todo o reino era de, aproximadamente, novecentos talentos113. Está claro que o ministro das finanças devia a seu senhor uma quantia enorme. Não nos é contado o que ele havia feito com o dinheiro; esse fato não tem importância. Ele devia a soma de dez mil talentos, e tinha que pagar. Ele sabia que jamais conseguiria todo aquele dinheiro, no dia marcado para o ajuste de contas. Quando ficou diante de seu senhor, ouviu o veredicto: ele, sua mulher, seus filhos e tudo o que possuía seriam vendidos para o pagamento da dívida. Era demais para ele. Atirou-se aos pés do soberano, implorando misericórdia, e pediu: “Sê paciente comigo e tudo te pagarei”. Ele implorou misericórdia, não o perdão. Prometeu restituição, sabendo que poderia pagar apenas uma pequena parte e não mais. Como resposta, recebeu o que menos esperava — quitação da dívida. Seu senhor teve piedade dele, cancelou o seu débito e deixou-o ir114. Inacreditável! Que alegria! Quanta bondade! Este foi apenas o primeiro ato do drama115. O segundo ato é paralelo ao primeiro: o ministro das finanças se torna senhor e encontra um outro oficial do rei. Descendo as escadas do palácio real, o servidor público 111

Quando um monarca oriental convocava seus secretários do tesouro, deixava de lado os oficiais menores. Etc se encontrava com os oficiais do alto escalão do serviço público. Veja-se K H. Rengstorf, TDNT 11; 266 que destaca que a palavra servo é a forma lingüística usual para a relação de sujeição ao rei, nas despóticas monarquias do antigo oriente. 112 H. O. Liddell e R. Scott, A Greek English Lexicon (Oxford: Clarendon Presa, 1968), p. 1154. A soma de dez mil talentos chega a vários milhões de dólares. 113 Josephus, Antiquities 17:318-20. Judéia, lduméia e Samaria pagavam Seiscentos talentos de impostos anualmente. Galiléia e Peréia pagavam duzentos talentos; Batanéia e Traconitis, bem como Auranitis pagavam cem talentos. 114 O ministro das finanças expôs sua falta de condição para pagara dívida e pediu um adiamento. Prometia pagar tudo dentro de um ano. Desse modo, o dinheiro devido renderia juros ao rei. Na realidade, o débito (=daneion) que o rei perdeu era um empréstimo. Derrett, Law in the New Testament, pp. 39-40. 115 Para um estudo simétrico da parábola, veja-se F. H. Breukelman, ‘Eine Erklárung des Gleichnisses vom Schaiksknecht”, Parrhesia, Festschrift honoring Karl Barth (Zürich: 1966), pp. 261-87.

absolvido encontrou um outro servidor que lhe devia cem denários. Realmente, era muito pouco — alguns dias de trabalho e a soma seria conseguida. Mas o servidor público agarrou-o pelo pescoço e o sufocava, exigindo pagamento imediato: “Paga-me o que me deves”116. O devedor atirou-se aos pés do ministro das finanças e pediu: “Sê paciente comigo e te pagarei”. Ele não precisava dizer: “Pagarei tudo”, porque o total era pequeno. Estava claro que ele pagaria tudo. Mas o ministro das finanças se recusou, lançou o homem na prisão, esperando que alguém opusesse em liberdade sob fiança, e pagasse a dívida. O terceiro ato apresenta as testemunhas do segundo ato; e é, também, a segunda e última confrontação do rei com o servidor público. Nada foi feito às escondidas; era difícil guardar segredos, no palácio. Outros viram o que tinha acontecido e não podiam manter silêncio. Tinham que contar ao rei. O rei, quando ouviu a história, ficou zangado. Chamou o servo e o repreendeu: “Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste, não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti?” Com isso, entregou-o aos carcereiros para que o torturassem até que a divida fosse paga117. A conclusão é que todo aquele que recebeu perdão deve estar pronto a perdoar quem quer que esteja em débito com ele, e deve fazê-lo de todo o coração. A Lição Esta história movimentada, contada em pormenores expressivos, acentua o contraste entre o amor infinito e a misericórdia de Deus e o comportamento mesquinho do homem, que tenta justificá-lo com base na lei. Jesus usa essa parábola para dizer a Pedro algo a respeito da grandeza do amor misericordioso de Deus para com o homem pecador. O pecado do homem é tão grande que Deus tem que perdoá-lo infinitamente mais que a conta de setenta vezes sete. A misericórdia de Deus não pode ser medida. Podemos calculá-la apenas vaga e aproximadamente, ao contar a história do servidor público que devia a seu senhor uma soma que beirava a milhões. Embora a palavra justiça não seja encontrada na parábola, os 116

O conservo não podia pagar, pois estava indo ao rei para quitar seu imposto anual. Prendendo seu companheiro, o ministro das finanças ofendeu o rei, privandoo de receber o que lhe cri devido, naquele dia. Consulte-se Derrett, Law in the Newlestament, pp. 41-42. 117 “A tortura era empregada regularmente, no Oriente, contra um governador desleal, ou contra qualquer um que atrasasse os impostos, a fim de descobrir onde escondia o dinheiro, ou para extorquir a soma de seus parentes e amigos”. Jeremias, Parables, 212.

conceitos expressos são os de misericórdia e justiça. São conceitos bíblicos porque ocorrem repetidamente no Velho Testamento, revelados pelos salmistas e profetas118. Cantarei a bondade e a justiça; a ti, SENHOR, cantarei (Sl 101.1). O povo judeu sabia muito bem que tinha que praticar a misericórdia e a compaixão. Deus lhes dissera expressamente: “Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor que impõe juros. Se do teu próximo tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol; porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se deitaria? Será, pois, que, quando alguém clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso” (Ex 22.25-27)119. A justiça se manifestava de diversas maneiras. Por exemplo, as exigências do Ano do Jubileu eram impostas; durante aquele ano, os que haviam alienado suas propriedades entravam de novo na posse delas e os escravos adquiririam sua liberdade120. Resumindo, o judeu dos dias de Jesus sabia que misericórdia e justiça não podem ser tratadas separadamente. Estão interligadas. É por esse motivo que Jesus conta a parábola do credor incompassivo. Ele ensina que a prática da misericórdia não se coloca apenas ocasionalmente ao lado da justiça. Jesus ensina a aplicação de ambas, da justiça e da misericórdia. Muitas vezes, entendemos justiça como uma norma que deve ser aplicada rigorosamente, a misericórdia como um abandono ocasional dessa norma. Exercemos essa opção como um “direito”, e, freqüentemente, somos elogiados ao mostrar indulgência121. Reconhecemos que a justiça contém um tanto de misericórdia, mas, no geral, sentimos que esta não deve ser mostrada a toda hora. No tempo do Velho Testamento, entretanto, Deus instruiu seu povo a considerar misericórdia e justiça como normas iguais. Normas essas que devem ser, ambas, eficientes e funcionais, pois refletem a maneira como Deus se relaciona com o seu povo. Com o tempo, a ênfase se alterou. Escritos do período entre os Testamentos proclamam que, no dia do juízo, a justiça prevalecerá e a misericórdia terá fim. “Então o Altíssimo será visto no trono do julgamento, e haverá um fim para toda piedade e paciência. Apenas o julgamento permanecerá” (2 Esdras 7.33, 34 NEB). 118

Sl 103.6,8; Mq 6.8. Consulte-se F. Notscher, “Righteousness (justice)” na Encyclopedia of Biblical Theology (London: 1970), 2: 782. 119 SB, 1: 800-1. 120 O sistema do Ano do Jubileu, do Velho Testamento não funcionava muito bem. Não por causa da lei de Deus, mas pelo egoísmo e avareza do homem. Os profetas do Velho Testamento pregavam a justiça, baseados, constantemente na lei. Veja-se A. H. Leitch, “Righteousness”, em ZPEB, 5:108. 121 Linnemann, Parables, pp. 111-13; Hunter, Parables, p. 69.

Aplicação Em nossa sociedade temos, às vezes, enfatizada a misericórdia, em detrimento da justiça. A preocupação exageradamente escrupulosa para com os “direitos” do criminoso tem alcançado extensão tal que os direitos do ofendido acabam por ser completamente ignorados. As Escrituras não ensinam que a misericórdia anula a justiça; nem ensinam que a justiça elimina a misericórdia. As duas normas são igualmente válidas. Como Jesus mostrou a Pedro que ele devia perdoar o seu próximo, vezes sem fim? Ele contou a história de um homem cujo débito era esmagadoramente grande e que implorou piedade quando a justiça foi aplicada. Seu senhor cancelou a dívida e mostrou infinita misericórdia. O homem foi posto em liberdade e pôde conservar sua mulher, filhos e tudo quanto possuía122. Estava isento de sua dívida. Jesus não contou a história de um homem que, várias vezes, dia após dia, vinha diante de seu senhor para implorar perdão pelos pecados que repetidamente cometia. Em vez disso, para realçar o nosso débito para com Deus, ele ensina a história de um homem que tinha uma enorme dívida com o seu senhor. “Se observares, SENHOR, iniqüidades, quem, SENHOR, subsistirá? Contigo, porém, está o perdão, para que te temam” (SI 130.3,4). A desesperança do homem se revela quando ele está diante de Deus123. Seu pecado é esmagador porque ele transgrediu a lei de Deus. Merece a morte. Mas ele sabe que Deus é um Deus de misericórdia. Quando Davi tinha desobedecido a Deus, levantando o censo de Israel e Judá, ao fazer cumprir a justiça, Deus deu a ele três escolhas: três anos de fome, três meses de perseguição, ou três dias de peste. Davi respondeu: “Caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias...” (2 Sm 24.14; 1 Cr 21.13). Deus revelou a Davi o seu pecado, deu-lhe o veredicto e mostrou misericórdia. No segundo ato da história, Jesus mostra que o homem perdoado deve refletir a misericórdia e a compaixão de Deus. Se Jesus não tivesse descrito o servidor público, de joelhos, implorando misericórdia, e tivesse contado apenas a segunda metade da história, com o homem forçando seu companheiro a pagar-lhe a dívida, poderíamos dizer que prevaleceu a justiça mesmo que rigorosa 124. Mas 122

“A lei judaica apenas permitia a venda de um israelita cm caso de roubo, se o ladrão não pudesse devolver o que tinha roubado; a venda da esposa era terminantemente proibida sob a jurisdição dos judeus; conseqüentemente, o rei e seus ‘servos’ representam os gentios”. Jeremias, Parables, p. 211. Ver, também, SB, 1: 798. Mas a parábola não se refere ao povo judeu, e, portanto, a lei judaica não se aplica. Veja-se Derrett, Law in the New Testament, p. 38. 123 R. S. Wallace, Many Things in Parables (New York: Harper and Brothers, 1955), p. 171. 124 Wallace, Many Things, p. 174; Linnemann, Parables, p. 111.

o homem tinha sido perdoado de uma dívida enorme, e agora encontrava um companheiro que, devendo-lhe uma ninharia, pedia misericórdia. Ele perdoaria? Corrie ten Boom, conhecida oradora e autora, esteve prisioneira, durante a II Grande Guerra, em um campo de concentração alemão, sofrendo muito nas mãos de um dos guardas alemães. Anos mais tarde, um dia, testificou sua alegria no Senhor, numa reunião na Alemanha do após guerra. Depois do encontro, enquanto algumas pessoas conversavam com ela, aquele mesmo guarda alemão aproximou-se de Corrie e lhe pediu que o perdoasse. Num clarão de reconhecimento, ela se lembrou da dor e da angústia sofrida na prisão, por causa daquele guarda. Agora, ele ali estava, à sua frente, pedindo-lhe misericórdia. E aquele que não merecia, recebeu o perdão. Triunfou a misericórdia! O servidor público retratado na parábola não perdoaria. Aplicaria o princípio da justiça sem misericórdia. Em vez de deixar triunfar a misericórdia, escolheu a vitória da justiça. Esse foi seu erro. Tiago escreve que “o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia” (2.13). O servo se recusou a refletir a compaixão que seu mestre lhe mostrara. Porque não mostrou piedade por seu companheiro, mas exigiu justiça, teve que enfrentar, uma vez mais, seu senhor, o rei. Exigindo justiça se afastou de seu mestre e de seu companheiro125. No último ato desse drama, o servo incompassivo reencontra, face a face, o seu irado senhor. O que o servo fizera a seu devedor, o senhor faz agora a ele: a justiça é administrada sem misericórdia. O servo lançou a si próprio na miséria, para sempre. Deus não pode relevar que alguém se recuse a mostrar misericórdia, pois isto contraria sua natureza, sua Palavra e seu testemunho. Deus perde aceitando o pecador como se este não tivera pecado jamais. Deus perdoa dívida do pecador e recomenda que não peque mais (Sl 103.12 e Jr 31.34). Deus espera que o pecador perdoado faça o mesmo. Ele se torna o representante de Deus quando mostra a característica divina da graça misericordiosa. A conclusão da parábola é expressa em palavras que nos são familiares Quando Jesus ensinou o Pai Nosso, continuou, dizendo: “Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens (as suas ofensas), tão pouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas” (Mt 6.14,15)126.

125 126

D. O. Via, Jr., The Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1967), p. 142. Veja-se, também, Marcos 11.25 e Colossenses 3.13.

13. Os Trabalhadores da Vinha Mateus 20.1-16 “Porque o reino dos céus é semelhante a um dono de casa que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, tendo ajustado com os trabalhadores a um denário por dia, mandou-os para a vinha. Saindo pela terceira hora, viu, na praça, outros que estavam desocupados e disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e vos darei o que for justo. Eles foram. Tendo saído outra vez, perto da hora sexta e da nona, procedeu da mesma forma, e, saindo por volta da hora undécima, encontrou outros que estavam desocupados e perguntou-lhes: Por que estivestes aqui desocupados o dia todo? Responderam-lhe: Porque ninguém nos contratou. Então, lhes disse ele: Ide também vós para a vinha. Ao cair da tarde, disse o senhor da vinha ao seu administrador: Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, começando pelos últimos, indo até aos primeiros. Vindo os da hora undécima, recebeu cada um deles um denário. Ao chegarem os primeiros, pensaram que receberiam mais; porém também estes receberam um denário cada um. Mas, tendo-o recebido, murmuravam contra o dono da casa, dizendo: Estes últimos trabalharam apenas uma hora; contudo, os igualaste a nós, que suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas o proprietário, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu e vai-te; pois quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura, não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom? Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

Conhecida pelo título de “Os Trabalhadores da Vinha”127, esta história é uma das parábolas encontradas em Mateus, a respeito do reino. Entretanto, esta parábola não termina com a mensagem: “Vai, e procede tu de igual modo”, no reino do céu. Seu enfoque não é a relação de trabalho e economia com o estabelecimento de um pagamento justo. Antes, as palavras e os atos do empregador, teologicamente falando, apontam para Deus, que dá aos homens, livremente, suas dádivas. Na verdade, ecoa na história o verso de um dos Salmos de Davi: “Oh! Provai, e vede que o SENHOR é bom...” (Sl 34.8). O Trabalho e os Trabalhadores Embora a parábola não cite a época específica do ano em que os trabalhadores são mais necessários na vinha, podemos presumir que 127

Jeremias, em Parables, p. 136, d~ mais ênfase ao empregador que aos trabalhadores e, conseqüentemente, fala da parábola do Bom Empregador. Veja-se, também, Hunter, Parables, p. 70. Mánek, Frucht, p. 55, chama a parábola de “Pagamento Igual”.

seja em setembro128, quando se dá a colheita da uva. Durante o mês de setembro, o período entre o levantar e o pôr-do-sol, em Israel, vai, aproximadamente, das 6 horas da manhã até às 6 horas da tarde. Descontando os períodos de descanso para as refeições e as orações, um trabalhador judeu, nos dias de Jesus, considerava normal uma jornada de dez horas de trabalho129. Em Israel, a temperatura do meio do dia é ainda mais alta em setembro, de modo que os trabalhadores no campo ou nas vinhas experimentavam literalmente “o calor do dia”. O proprietário de uma vinha de tamanho regular resolveu colher suas uvas, em um determinado dia. Todos os seus servos, que trabalhavam para ele, regularmente, durante todo o ano, saíram para a vinha às seis horas da manhã, enquanto o dono foi até à praça da cidade próxima, ao romper da aurora. Ele precisava encontrar alguns trabalhadores desempregados que estivessem dispostos a trabalhar por dia, pela soma razoável de um denário130. Bem cedo, entre cinco e seis horas da manhã, alguns homens dispostos a trabalhar já permaneciam pela praça à espera de algum empregador que viesse oferecer-lhes trabalho. O proprietário da vinha falou com os homens, mencionou o pagamento diário de um denário — com o qual todos concordaram — e levou-os para a jornada de dez horas de trabalho. Os trabalhadores, estando desempregados, dependiam do empregado que, por acaso, precisasse deles por um curto período de tempo. E claro que precisavam muito mais do empregador do que este precisava deles. Nos dias de Jesus, os trabalhadores se consideravam privilegiados ao conseguir um salário. Providenciando trabalho, o empregador demonstrava sua bondade. Era um ato de graça da parte do empregador131. Passar horas ociosas na praça significava para o trabalhador que ele e sua família teriam que contar com a caridade dos outros. O trabalhador não tinha recursos próprios, e as dádivas dos ricos nem sempre aconteciam. Conseqüentemente, um dia todo de trabalho era uma bênção para o trabalhador e sua família. Enquanto os servos e os novos contratados estão ocupados trabalhando na vinha, o proprietário volta à praça para ver se consegue encontrar mais alguns trabalhadores. São entre oito e nove 128

A. C. Schultz, em “Vine, Vineyard”, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas comecem a amadurecer em Julho, a colheita acontece em setembro. A. C. Schultz, em “Vine, Vineyard”, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas comecem a amadurecer em Julho, a colheita acontece em setembro. Consulte-se Dalman, Arbcit und Sitte, IV:336. DerretI, “Workers in lhe Vineyard: A parablc of Jesus”, Journal of Jewish Studics 25 (1974): 72, publicano, também, em Studies in lhe New Testament (Lciden: Brill, 1977), 1:56. 129 F. Gryglewicz, “lhe Gospel of lhe Overworkcd Workers”, CBQ 19(1957): 192. Vejase SB, 1:830. 130 Um denário era um pagamento justo por um dia de trabalho e suficiente para sustenta, um trabalhador e sua família. Veja-se Mánek, Frucht, p. 56. 131 A diferença de condições de trabalho de antigamente e de hoje é surpreendente. Veja-se Oesterley, Parables, p. 107.

horas, e muitos estão ainda à toa, na praça. O empregador perguntalhes se trabalhariam o resto do dia em sua vinha. Ele lhes promete um salário justo, embora não especifique a quantia. Os trabalhadores, conhecendo a reputação do dono da vinha, confiam nele plenamente. Sabem que não ficarão desapontados ao fim do dia. À medida que o trabalho progride, o proprietário e seu capataz calculam o número de horas de trabalho necessárias ainda para terminar a tarefa antes que a noite caia. Fica evidente a necessidade de mais trabalhadores extras. O dono da vinha sabe exatamente quando certas uvas devem ser colhidas. Se forem deixadas na videira por mais um ou dois dias acumularão açúcar demais. O valor de mercado das uvas de vindima superior depende da quantidade correta de açúcar. Se o dia da colheita cai numa sexta-feira, o fazendeiro faz tudo o que pode para conseguir trabalhadores adicionais e completar a tarefa antes do sábado132. Idas à praça próxima se repetem a intervalos regulares, ao meiodia e às três da tarde, com sucesso variado. Ao entardecer, parece que o projeto não estará completo até ao cair da noite, a menos que mais trabalhadores sejam contratados. O proprietário volta à praça às cinco horas e encontra alguns homens por ali. Pergunta por que estão na praça, àquela hora do dia. Eles respondem que ninguém veio contratá-los. O empregador diz: “Ide também vós para a vinha”. Não faz nenhuma menção ao pagamento. O dono da vinha sabe que é permitido aos trabalhadores consumir quanta uva desejarem. Ele espera perder, com isso, aproximadamente três por cento da colheita. Contratando trabalhadores ao final da tarde, porém, não corre o risco de perder tanta uva. Ele espera que apliquem sua energia no trabalho da colheita. “Ide também vós para a vinha”. As Horas e os Pagamentos Na parábola toda, o empregador é a figura dominante. Ele visita a praça ao romper da aurora, contrata os trabalhadores, observa a necessidade de trabalhadores extras, retorna, ainda, repetidas vezes à praça, para contratar mais homens. É ele que instrui seu capataz para pagar os trabalhadores, e ele mesmo se dirige àqueles que murmuram contra ele. O proprietário mantém o controle da situação do começo ao fim. De fato, ele é aquele a quem se compara o reino dos céus, na frase introdutória133. 132

Os relógios não eram usados; o dia era dividido em horas a partir do nascer do sol, muito embora o dia judeu comece ao pôr-do-sol. Veja-se Jeremias, Parables, p. 136, nº 21. Derrett, “Workers in lhe Vineyard”, p. 56. 133 A frase introdutória, entretanto, é apenas um ponto de partida. Ridderbos, Coming of the Kingdom, p. 141. O dono da vinha é a figura central da parábola e sua palavra e seus atos ilustram o significado do reino.

Várias questões surgem a respeito da administração da vinha. Por exemplo: por que o proprietário volta à praça por, pelo menos, quatro vezes a fim de contratar novos trabalhadores? O esperado seria que ele fizesse uma estimativa cuidadosa de quantos trabalhadores seriam necessários para cumprir a tarefa, antes que viesse a noite. Mas, não devemos aplicar a lógica ocidental a uma história que provém da cultura oriental. A lei da procura e da oferta foi, sem dúvida, observada. Além disso, trabalhadores contratados mais tarde, no dia, chegavam à vinha descansados e com energia para gastar. O empregador obtinha um bom retorno dos trabalhadores que trabalhavam energicamente durante meio dia ou menos. Os trabalhadores podiam ser contratados por hora e esperavam ser pagos imediatamente após o término de sua tarefa134. Aqueles que permaneceram na praça durante todo o dia podiam ter voltado para casa logo de manhã, quando ninguém os havia contratado. Em vez disso, esperavam que alguém viesse e os contrastasse, mesmo que para apenas uma parte do dia. Esses trabalhadores não eram vadios que passavam o tempo em conversas vazias. Tinham família para sustentar, e por isso esperavam ansiosos que alguém os contratasse. Até às cinco horas da tarde, esperavam ainda, desejando que alguém precisasse de seus serviços por apenas uma hora, ou com a esperança de combinar alguma tarefa para o dia seguinte. A seu modo, mostravam confiança, dedicação e necessidade. Os trabalhadores recebiam seu pagamento no final do dia. Os empregadores observavam as normas bíblicas de não reter o pagamento do trabalhador diarista durante a noite (Lv 19.13) e não tirar vantagem de um contratado por ser ele pobre e necessitado. “No seu dia lhe darás o seu salário, antes do pôr-do-sol; porquanto é pobre e disso depende a sua vida; para que não clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado” (Dt 24.15). O proprietário da vinha ciente, dessas injunções, dá instruções a seu capataz para que pague aos trabalhadores o seu salário. Ele é retratado como um homem justo e de confiança. Apenas aos trabalhadores contratados às seis horas da manhã ele havia prometido um denário pela tarefa do dia. Aos trabalhadores empregados às nove horas ele prometera o que fosse justo. Com os que foram requisitados mais tarde, no dia, nada foi combinado a respeito do pagamento. Eles foram para a vinha confiando plenamente no proprietário, e certos de que ele lhes pagaria ao anoitecer. O fazendeiro é um homem de palavra. Quando instrui seu 134

A regra dos rabinos era que um homem empregado por hora, para uma tarefa, devia receber seu salário todos os dias. Veja-se Baba Mezia III a e Nezikin I, em Babylonian Talmud, (Boston: Bennet, n.d.), p. 633. Veja-se, também, SB, 1:832. Pagando antes os trabalhadores contratados por último, e dando a eles um salário igual, o proprietário evitou possíveis pechinchas, que lhe tomariam tempo considerável. Veja-se DerretI, “Workers in the Vineyard’, p. 63.

capataz para pagar aos trabalhadores, recomenda que pague primeiramente os que foram contratados por último, e sucessivamente até chegar aos primeiros. Que surpresa quando os que foram contratados às cinco horas receberam um denário135! Eles estão contentes, alegres e cheios de gratidão. Sabem que o dono da vinha é não apenas digno de confiança e honesto, mas, também, um homem generoso. Todos os trabalhadores contratados no decorrer do dia recebem o mesmo pagamento e testificam a bondade e a generosidade do empregador. Aqueles trabalhadores contratados ao amanhecer, entretanto, que haviam suportado o calor do dia, esperam receber mais que um denário cada um. Eles, também, desejam experimentar a generosidade do empregador. Mas seu desejo não se cumpre. Recebem um denário, como haviam combinado antes de começar o trabalho. Acham o acontecido injusto; tornam claro seu descontentamento e seu desapontamento, murmurando contra o fazendeiro. Não se dirigem a ele com bons modos. Zangados, fazem uma série de queixas: Trabalhamos pesado durante todo o dia, suportamos o calor e o suor, e recebemos um denário; outros vieram às cinco da tarde, trabalharam uma hora e receberam, também, um denário. O empregador não se mostra ofendido. Dirige-se a um dos trabalhadores, evidentemente o que falava pelo grupo, e o chama de “amigo”. A conotação é de reprovação, mas o tom é amigável136. Ao responder ao queixoso, o fazendeiro se mostra senhor da situação. “Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário?” O trabalhador insatisfeito pode recorrer à justiça, mas não terá êxito, pois as evidências são contra ele. Ele concordou em trabalhar o dia todo por um denário, que lhe foi pago. Sua acusação de injustiça não passa de um disfarce para a inveja e a avareza. O empregador não discute, não se explica e nem se justifica. Simplesmente faz a pergunta que o outro tem que responder afirmativamente: “Não combinaste comigo um denário?” Ao fazer a pergunta, já tem incluído a resposta. “Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?”. O ponto de discussão não é a fraude ou a decepção. Ao 135

Durante o reinado do rei Agripa II, por volta de 60 A.D., os claustros do lado oriental do templo de Jerusalém foram construídos com a ajuda de cerca de 18.000 trabalhadores. O tesoureiro do templo e seus cooperadores decidiram pagara cada operário o salário de um dia todo, mesmo que trabalhasse apenas durante uma hora. Veja-se Josephus, Antiquities 20:219-20; Derreti, “Workers in the Vineyard’, p. 63. 136 A palavra hetaire aparece três vezes no Novo Testamento: 1) na parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20.13); 2) na parábola das bodas, quando o rei se dirige ao convidado que não se apresenta vestido para as bodas (Mt 22.12); 3) no relato da prisão de Jesus no Getsêmani, quando Jesus diz: “Amigo, para que vieste?” (Mt 26.50). De acordo com K. H. Rengstorf, TDNT II:701, o termo “sempre denota uma relação de obrigação mútua entre aquele que fala e o que ouve, a qual foi desprezada e escarnecida pelo ouvinte”.

contrário, ninguém é tratado com injustiça. A maior parte dos trabalhadores experimentou a generosidade do fazendeiro. Se há alguém que sacrificou a parte econômica pela benevolência, este é o proprietário da vinha. Teria sido melhor para ele se tivesse pago aos trabalhadores a quantia exata merecida137. Ele é acusado por sua generosidade. “Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom?”, ele pergunta. Com essa última pergunta, o empregador põe à mostra a falsidade dos empregados desapontados. Ele demonstrara bondade e gentileza enquanto eles mostraram inveja a avareza. Eles permanecem cegos à bondade do proprietário até que a máscara que escondia seu descontentamento é removida pela questão: “Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom?”. Assim é o reino dos céus, diz Jesus. Porque Deus é tão bom, triunfa o princípio da graça. No mundo, o conceito é o de que aquele que trabalha mais recebe mais138. Isso é justo. Mas, no reino de Deus, os princípios do mérito e da capacidade são postos de lado para que a graça prevaleça. Graça Não há na parábola a intenção de ensinar economia ou negócios. Ela não existe para ser usada como exemplo de relações humanas, na área do trabalho e da administração. A lição que a parábola transmite é a de que a graça vale mais que a justiça imparcial e as práticas lucrativas de negócio. O empregador da parábola foi à praça, várias vezes, durante o dia, e viu, atrás de cada trabalhador, uma família necessitando de sustento. Ele sabia que uma fração de denário não seria suficiente para as necessidades diárias de uma família. No fim do dia, pagou aos trabalhadores que contratara no decorrer do dia, não em relação às horas trabalhadas, mas de acordo com a necessidade de seus dependentes. Ele era uma pessoa muito generosa. Quando Jesus ensinou a parábola, estava diante de pessoas treinadas na doutrina judaica do mérito. Seus contemporâneos acreditavam que o homem deve acumular a seu crédito numerosas boas obras, que possam ser convertidas em recompensas, para assim poder reclamá-las diante de Deus. Essa era a doutrina das obras, no tempo de Jesus139. O povo conhecia a graça de Deus exaltada em salmos e orações. Não obstante, dava ênfase ao meritório valor das obras. Ao ensinar a parábola, Jesus mostrou que Deus não trata os homens de acordo com o princípio do mérito, da justiça ou da economia. Deus não está interessado em lucros. Deus não trata o 137

C. L. Mitton, Expounding lhe Parables, VII. lhe Workers in lhe Vineyard (Mateus 20.1-6), Expt 77 (1966): 308. 138 Os cidadãos do reino dos céus devem conhecer plenamente os princípios operantes no reino. Veja-se Wallace, Parables, p. 125. 139 Oesterley, Parables, p. 104.

homem na base do “toma lá dá cá”, ou “uma boa ação merece recompensa”. A graça de Deus não pode, simplesmente, ser dividida em quantidades proporcionais ao mérito acumulado pelo homem. Havia em circulação, na época, uma moeda chamada pondion, que valia a duodécima parte de um denário140. Na graça de Deus, no entanto, não circulam porcentagens, porque “todos nós temos recebido da sua plenitude, e graça sobre graça” (Jo 1.16). Aplicação Deus é tão bom; Deus é tão bom; Deus é tão bom; Tão bom ele é para mim. Esta simples canção, cantada em muitas línguas, através do mundo, expressa vividamente o sentido básico da parábola. No reino dos céus, a bondade de Deus prevalece e se revela àqueles que, somente pela graça, entraram no reino. O fato do fazendeiro pagar um denário àqueles a quem dissera que receberiam o que fosse justo e também àqueles a quem nada fora prometido, foi um ato de pura bondade. Todos os trabalhadores receberam o mesmo pagamento, que era suficiente para o sustento de suas famílias. Aqueles trabalhadores, que tinham combinado trabalhar pela soma de um denário ao dia, tinham que reconhecer que o fazendeiro era um homem justo, que honrava seus compromissos. Justiça e bondade, exemplificadas na parábola, são características fundamentais no reino de Deus. O contexto da parábola diz respeito à pergunta de Pedro e à resposta de Jesus. Pedro perguntou o que ele e os discípulos seus companheiros receberiam por seguirem a Jesus: “Eis que nós tudo deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?” Jesus respondeu que seus seguidores receberiam incontáveis bênçãos espirituais: “Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas ou irmãs, ou pai, ou mãe (ou mulher), ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna. Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros (Mt 19.27-30)141. 140

T. W. Manson, lhe Sayings of Jesus (London: SCM Presa, 1950), p. 220. Os paralelos dos Evangelhos de Mateus e Marcos são idênticos exceto no fato de que em Mateus a parábola dos trabalhadores na vinha é acrescentada como uma ilustração da expressão: “Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros” (Mt 19.30; 20.16; Mc 10.31). Em Locas 13.30, a expressão também ocorre, embora em contexto inteiramente diferente. 141

Jesus ilustra o significado da última sentença “muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros” — através da parábola dos trabalhadores na vinha. Ele conclui a parábola com as mesmas palavras, embora cm ordem inversa: “Os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos”. Dizendo isso, Jesus não tem a intenção de mostrar a Pedro e aos outros discípulos que a posição do primeiro e do último no reino será invertida. A parábola usa, antes, a expressão para indicar que, no reino dos céus, a igualdade é a regra. A recompensa, igual para todos, mesmo que o trabalho possa variar, transcende a tarefa realizada pelos discípulos, e conseqüentemente por qualquer um que se disponha a seguir a Jesus. O dom de Deus é a graça plena142. Sua graça é suficiente para todos143. Os discípulos eram os ouvintes de Jesus. Não podemos afirmar que havia outras pessoas presentes. Os discípulos, desde crianças, tinham aprendido a doutrina do mérito. Era necessário deixarem de lado esse ensinamento para que pudessem apreciar inteiramente a bondade de Deus e para que pudessem entender que seu próprio lugar no reino era um dom da graça. Mais que isso: no decorrer do tempo, receberiam, na igreja, com agrado, os gentios. Pedro, por exemplo, seria enviado à casa de Cornélio, o centurião romano, para pregar o evangelho, batizar os que criam, e para louvar a Deus por ter concedido, também aos gentios, “o arrependimento para vida” (At 11.18). Os gentios receberiam a mesma dádiva que Deus havia dado aos judeus que acreditaram em Jesus. Paulo chama isto de mistério, e conclui que “os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho” (Ef 3.6). Quem, então, são os murmuradores? Embora a parábola não deva ser interpretada alegoricamente144, a questão referente aos murmuradores é válida. Eles podem ser comparados ao irmão mais 142

A. H. McNeile, The Gospel Accordíng to St. Matthew (London: McMillan and Co., 1915), p. 285. 143 As versões bíblicas atribuem Mateus 20.16 a Jesus. O texto não é parte da observação feita pelo dono da vinha, mas é uma conclusão repetida por Jesus como seqüência de Mateus 19.30. O NEB, entretanto, não apresenta o versículo como citação, e por isso se conclui que ele é o fecho dado por Mateus à parábola. Jeremias, em Parables, p. 36, chega a sugerir que “deixemos de lado o versículo 16”. Por outro lado, Morison, em SÉ. Matthew, p. 356, e Derrett, em “Workers in lhe Vineyard”, p. 51, sustentam que as palavras de Mateus 20.16 são a aplicação da parábola feita por Jesus mesmo. Falta clareza ao argumento de que Jesus não proferiu as palavras do versículo 16. Ele não é convincente. 144 Os pais da igreja primitiva se entregavam a interpretações fantasiosas. Irineu, por exemplo, interpretou os cinco períodos de trabalho, durante os quais os trabalhadores foram contratados, como cinco períodos da história, começando com Adão. O período das nove horas ao meio-dia seria aquele de Noé a Abraão; o das doze às três incluía o período de Abraão a Moisés; o das três às cinco significava o tempo entre Moisés e Cristo, e a última hora aponta para o período entre a ascensão e a volta do Senhor.

velho da parábola do filho pródigo. Juntos, refletem a atitude de alguns fariseus que, por causa de seu zelo na observação da lei de Deus, contavam ter um lugar privilegiado no reino de Deus. Os fariseus esperavam que Deus os recompensasse por suas obras e se recusasse a abençoar os pecadores indignos. Jesus mostrou-lhes (presumindo-se que estivessem ali) por intermédio da parábola, que Deus é um Deus de justiça que honra sua Palavra, mas que oferece, também, suas misericórdias aos que não as merecem, mas que, apesar disso, são vasos de sua graça145. A parábola ensina que quando o homem chega diante de Deus, ele não recebe uma porção cuidadosamente calculada da graça divina. Deus, antes, lhe concede livremente as dádivas do perdão, da reconciliação, da paz, da alegria, da felicidade e da segurança. “Segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus...” (Fp 4.19) todas as suas necessidades. O cristão deve se alegrar com os que se convertem e passam a fazer parte da igreja de Jesus Cristo. Não deve haver ceticismo. Mas, a história ensina que esse ceticismo tem existido repetidamente. Quando George Whitefield e John e Charles Wesley levaram o evangelho às classes menos favorecidas da sociedade do século dezoito, foram criticados e provocaram a ira dos cristãos convencionais146. William Booth, que teve compaixão dos moradores dos bairros pobres de Londres e que deu a eles “sopa, sabão e salvação”, foi condenado pelos presunçosos membros da igreja de sua época. Esta parábola nunca será aceita por aqueles que querem impor à salvação regras e estipulações feitas pelos homens. No reino dos céus, como as Escrituras ensinam, não existe a burocracia humana. A graça de Deus é plena e livre para todo aquele que venha a ele pela fé. E todos os que são vasos de sua graça proclamam com o salmista: Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, e sua misericórdia dura para sempre (Sl 107.1).

145 146

Mitton, “Expounding the Parables”, p. 310. Hunter, Parables, p. 72.

14. Os Dois Filhos Mateus 21.28-32 “E que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai hoje trabalhar na vinha. Ele respondeu: Sim, senhor; porém não foi. Dirigindo-se ao segundo, disse-lhe a mesma coisa. Mas este respondeu: Não quero; depois, arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: O segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus. Porque João veio a vós outros no caminho da justiça, e não acreditastes nele; ao passo que publicanos e meretrizes creram. Vós, porém, mesmo vendo isto, não vos arrependestes, afinal, para acreditardes nele”. Somente no Evangelho de Mateus encontramos a parábola a respeito dos dois filhos. Ela é marcada pela simplicidade e por ser resumida nas conhecidas palavras de Tiago: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (1.22). Ela ensina que a pessoa que se recusa a fazer o que lhe é pedido, mas que, mais tarde muda de idéia e faz a tarefa, é melhor que aquela que promete cuidar de suas obrigações, mas nunca as realiza. O Evangelho de Mateus coloca a parábola imediatamente após o incidente ocorrido quando os principais sacerdotes e os anciãos do povo questionara a autoridade de Jesus. Jesus, por sua vez, lhes propôs outra questão perguntando-lhes a respeito do batismo de João, se era dos céus ou do homem. E a resposta deles foi: “Não sabemos”. A resposta de Jesus à indagação a respeito de sua autoridade foi: “Nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas”. Enquanto ensinava no templo, e com os principais sacerdotes e os anciãos a escutá-lo, Jesus continuou o curso de seu pensamento com uma história sobre um pai e seus dois filhos. O pai possuía uma vinha, que era a fonte de recursos da família. Por isso, o trabalho na vinha era comunitário e realizado por todos os membros da família. O pai dirigiu-se ao primeiro filho e disse-lhe pra ir trabalhar na vinha, naquele dia em particular147. É irrelevante se era o começo da primavera quando as vinhas eram podadas, ou verão quando as ervas daninhas eram arrancadas, ou outono quando as uvas eram colhidas. É o pedido feito e o atendimento dado a ele que são essenciais. “Filho, vai hoje trabalhar na vinha”. O filho sem se preocupar em se J.M. Derrett, “The Parables of the Two Sons”, Studia Theologica 25 (1971); 10916, também publicada em Studies in the New Testament, 1:76-84, segue Jülicher, Gleichnisreden, 2:367. Derrett destaca que o primeiro filho era o mais velho e deveria ser o sucessor do pai. “Um filho mais velho pode muito bem ter mais interesse na forma que na substância”. (Studies p. 81). 147

mostrar cortês para com o pai, respondeu apenas: “Não quero”148. Ele errou em não se dirigir respeitosamente ao pai, chamando-o de senhor, e nem procurou uma desculpa para sua má vontade. O pai teve que se dirigir ao segundo filho, com o mesmo pedido, a fim de ter o trabalho feito na vinha149. Esse filho, na polida maneira oriental, dirigiu-se ao pai corretamente, e disse: “Sim, senhor”. Entretanto, não foi. Prometeu ao pai um dia todo de trabalho. Era uma promessa que não pretendia cumprir. Interpretação Jesus colocou para os que o ouviam a inevitável questão: “Qual dos dois fez a vontade do pai?”. Os principais sacerdotes e os anciãos do povo não podia mais se esconder atrás de uma ignorância fingida. Foram forçados a responder, mesmo compreendendo que a parábola fala da hierarquia eclesiástica de Israel. Eles responderam: o filho que o primeiro se recusou, mas que, mais tarde, mudando de idéia, fez a vontade do pai. Jesus esclarece o que a história sobre o pai e seus dois filhos significa realmente, no contexto de sua época. O primeiro filho, diz Jesus, é a personificação dos coletores de impostos e das meretrizes que viviam uma vida de pecado e que se recusavam a fazer a vontade de Deus. Mas, quando veio João Batista “... pregando batismo de arrependimento para a remissão de pecados” (Mc 1.4), os marginalizados pela moral e pela sociedade se arrependeram, creram, e entraram no reino de Deus. Assim fizeram a vontade do pai. O segundo filho retrata a atitude dos líderes religiosos dos dias de Jesus. São aqueles que fazem tudo para serem vistos pelos homens: “Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem vistos dos homens; pois nos banquetes e as primeiras cadeiras nas sinagogas, as saudações nas praças e o serem chamados mestres pelos homens” (Mt 23.5-7). São aqueles que não praticam o que A evidência textual, em relação à sua leitura varia. Tecnicamente há três variações. (a) De acordo com o Códice Sinaítico e outros manuscritos, o primeiro filho disse não, mas se arrependeu; o segundo disse sim, mas não foi. Essa é a leitura em traduções tais como AV, RSV e NIV. (b) De acordo com o Códice do Vaticano e outros manuscritos, o primeiro filho diz sim, mas não vai; o segundo diz não, mas se arrepende. Quem faz a vontade do Pai? A resposta varia: “o último dos dois”, “o último”, “o segundo”. Traduções incluindo NASB, NAB e NEB, seguem o Códice do Vaticano. (c) O assim chamado texto Ocidental segue a ordem do Códice Sinaítico, com exceção da resposta à questão: “Qual dos dois fez a vontade do Pai?”, que é “o último”. Isto significa que o filho que disse sim, mas não foi, cumpriu o pedido do pai. Absurdo. A escolha fica, portanto, entre (a) ou (b). Veja J. R. Michaels, “The Parable of the Regretful Son”, HTR 61 (1968): 15-26. A ordem não afeta o sentido da parábola. Consulte-se Metzger, Textual Commentary, pp. 55-56. 149 Metzger, em Textual Commentary, p. 56, indica que a comissão do Novo Testamento Grego das Sociedades Bíblicas Unidas optou pela ordem seguida pelo Códice Sinaítico. Para substanciar essa escolha Metzger escreve: “Poderíamos argumentar que se o primeiro filho tivesse obedecido, não havia razão para chamar o segundo”. 148

pregam. João Batista veio a eles, mostrando-lhes o caminho da justiça. Ouviram suas palavras, mas não creram nelas. Simplesmente o ignoraram. Viram, no entanto, que os publicanos aceitaram a mensagem de João e foram batizados. Não obstante, rejeitaram o propósito de Deus para si mesmos, recusando-se a serem batizados por João (Lc 7.30). A aplicação da parábola é dinâmica. Os coletores de impostos e as meretrizes tinham-se recusado a obedecer a vontade de Deus. Mas, quando ouviram a mensagem de arrependimento voltaram-se para Deus, em obediência. Eram como o filho que disse: “Não quero”, mas que, mais tarde, mudou de idéia e foi trabalhar na vinha. Eles eram como Zaqueu que disse a Jesus: “Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais”. (Lc 19.8). Os líderes religiosos que, presumivelmente, eram peritos na lei de Deus, mostravam uma aquiescência apenas aparente. Interiormente, no entanto, se recusavam a aceitar a Palavra de Deus, viesse ela pela palavra escrita dos profetas, ou pela palavra falada de João Batista e de Jesus. Eram como o filho que disse a seu pai: “Sim, senhor”, porém não foi. Embora essa parábola seja relativamente curta e sua mensagem seja simples, a lição que ensina não é, de modo algum, trivial. Ela contém o ensino do Velho e Novo Testamento: obedecer a Palavra de Deus, escutar a sua voz e fazer a sua vontade. Como disse Samuel a Saul: “Eis que o obedecer é melhor que a gordura dos carneiros” (1 Sm 15.22), do mesmo modo Jesus instrui seus discípulos: “Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando” (Jo 15.14). O próprio Jesus fala abertamente de sua obediência a Deus, o Pai, dizendo: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade; e sim, a vontade daquele que me enviou. E a vontade de quem me enviou é esta: Que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.38,39).

15. Os Lavradores Maus Mateus 21.33-46 “Atentai noutra parábola. Havia um homem, dono de casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe, construiu nela um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores. Depois, se ausentou do país. Ao tempo da colheita, enviou os seus servos aos lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam. E os lavradores, agarrando os servos, espancaram a um, mataram a outro e a outro apedrejaram. Enviou ainda outros servos em maior número; e trataram-nos da mesma sorte. E, por último, enviou-lhes o seu próprio filho, dizendo: A meu filho respeitarão. Mas os lavradores, vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança. E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e o mataram. Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará àqueles lavradores? Responderam-lhe: Fará perecer horrivelmente a estes malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe remetam os frutos nos seus devidos tempos. Perguntou-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos. Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó. Os principais sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas, entenderam que era a respeito deles que Jesus falava; e, conquanto buscassem prendê-lo, temeram as multidões, porque estas o consideravam como profeta”. Marcos 12.1-12 “Depois, entrou Jesus a falar-lhes por parábola: Um homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um lagar, edificou uma torre, arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se do país. No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para que recebesse deles dos frutos da vinha; eles, porém, o agarraram, espancaram e o despacharam vazio. De novo, lhes enviou outro servo, e eles o esbordoaram na cabeça e o insultaram. Ainda outro lhes mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes enviou, dos quais espancaram uns e mataram outros. Restava-lhe ainda um, seu filho amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo: Respeitarão a meu filho. Mas os tais lavradores disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e a herança será nossa. E, agarrando-o, mataramno e o atiraram para fora da vinha. Que fará, pois, o dono da vinha? Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros. Ainda não lestes esta Escritura: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos? E procuravam prendê-lo, mas temiam o povo; porque compreenderam que contra eles proferira esta parábola. Então, desistindo, retiraram-se”. Lucas 20.9-19 “A seguir, passou Jesus a proferir ao povo esta parábola: Certo homem plantou uma vinha, arrendou-a a lavradores e

ausentou-se do país por prazo considerável. No devido tempo, mandou um servo aos lavradores para que lhe dessem do fruto da vinha; os lavradores, porém, depois de o espancarem, o despacharam vazio. Em vista disso, enviou-lhes outro servo; mas eles também a este espancaram e, depois de o ultrajarem, o despacharam vazio. Mandou ainda um terceiro; também a este, depois de o ferirem, expulsaram. Então, disse o dono da vinha: Que farei? Enviarei o meu filho amado; talvez o respeitem. Vendo-o, porém, os lavradores, arrazoavam entre si, dizendo: Este é o herdeiro; matemo-lo, para que a herança venha a ser nossa. E, lançando-o fora da vinha, o mataram. Que lhes fará, pois, o dono da vinha? Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros. Ao ouvirem isto, disseram: Tal não aconteça! Mas Jesus, fitando-os, disse: Que quer dizer, pois, o que está escrito: A pedra que os construtores rejeitaram, esta veio a ser a principal pedra, angular? Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó. Naquela mesma hora, os escribas e os principais sacerdotes procuravam lançar-lhe as mãos, pois perceberam que, em referência a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo”. De acordo com Mateus, marcos e Lucas, Jesus contou a parábola dos lavradores maus, durante a última semana de sua vida na terra. Entre um evangelista e outro pode haver variações em pequenos detalhes, mas todos transmitem, com fidelidade, o ensino de Jesus. O Evangelho de Tomé, apócrifo, também apresenta a parábola150. A história deve ser fiel ao fato e reproduz a história eclesiástica de Israel. As pessoas que cercavam Jesus entenderam a história, porque responderam à parábola, dizendo: “Tal não aconteça!” (Lc 20.16). Além disso, os fariseus, os principais sacerdotes e os mestres da lei sabiam que essa parábola era endereçada a eles. A História Um dono de terras tinha um terreno e decidiu transforma-lo num vinhedo. Depois de ter plantado os tenros brotos da uva, ele os protegeu dos animais selvagens, tais como as raposas e os javalis (Ct 2.15; Sl 8.13) plantando uma sebe ao redor da vinha. Também equipou a vinha com um lagar e uma torre. A torre era usada durante a colheita na vigilância contra os ladrões, e podia, também, servir de morada ao lavrador. Evangelho de Tomé, Citação 65: “Ele disse: ‘Um homem bom tinha uma vinha. Entregou-a a arrendatários para que a cultivassem e ele pudesse receber deles os seus frutos. Ele enviou seu servo para que os arrendatários lhe entregassem o fruto da vinha. Eles o agarraram (e) espancaram; um pouco mais e o teriam matado. O servo foi (e) contou tudo a seu senhor. Seu senhor disse: Talvez ele não os conhecesse. Enviou outro servo; os lavradores maus, também, o espancaram. Então, o dono da vinha, agarraram-no (e) o mataram. Quem tem ouvido, ouça’. De modo interessante, o Evangelho de Tomé. Citação 66, continua. “Jesus disse: Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram. Ela é a pedra angular”. 150

O projeto todo era uma aventura financeira para o fazendeiro. Ele plantou novas videiras num solo ainda não testado. Arrendou a vinha a lavradores, mas teria que esperar durante quatro anos até que as videiras começassem a produzir. Durante esse período, ele teria que sustentar os lavradores, comprar adubo e suprimentos para a vinha, e esperar que o quinto ano lhe trouxesse algum lucro 151. Um novo vinhedo não era, portanto, um empreendimento que trouxesse retorno financeiro imediato; era, antes, uma promessa de resultados permanentes que beneficiariam sucessivas gerações. O fazendeiro saiu para viajar durante um longo período. Na sua ausência, os lavradores cultivariam a vinha, podariam os galhos e cuidariam de plantações de vegetais entre as videiras durante os primeiros anos. Os arrendatários trabalhavam como meeiros e tinham direito a uma parte do que fosse produzido. O lucro restante pertencia ao proprietário. Os lavradores tinham feito um contrato com o dono da terra para cultivar a vinha. Durante os quatro primeiros anos seriam sustentados pelo proprietário. Passados esses anos de trabalho árduo, a vinha poderia se tornar uma fonte de lucro para o dono. Quando se aproximou a época da colheita, no quinto ano, o fazendeiro enviou seu servo152 para receber o lucro da vindima153. Os contatos entre o proprietário e os arrendatários devem ter sido mínimos, durante os primeiros quatro anos. Essa falta de aproximação pode ter resultado em alienação e mesmo em atitudes hostis da parte dos lavradores, como descreve a parábola. A razão exata da amarga animosidade não é exposta, mas fica evidente no relato154. O servo foi agarrado, espancado e mandado de volta a seu senhor. Voltou com as marcas físicas de um corpo ferido. O fato serviu ao proprietário como mensagem de que os arrendatários não Derrett, Law in the New Testament, p. 290. Onde Marcos e Lucas, vem como o Evangelho de Tomé falam de um servo, Mateus usa o plural. De acordo com Mateus, numerosos servos são enviados, e são espancados, apedrejados e mortos. Essa pode ser uma tentativa deliberada de Mateus de ligar a parábola ensinada por Jesus à história eclesiástica de Israel. Um toque de alegria está presente, embora não em relação à pessoa do filho: J. A. T. Robinson. “The Parable of the Wicked Husbandman: A Test of Synoptic Relationships”, NTS 21 (1975); 451. 1 Rs 18.13; 2 Cr 24.21; Mt 23.37; Lc 13.34; At 7:52; 1 Ts 2.15; e Hb 11.37, tornam evidente que alguns profetas foram mortos e apedrejados até a morte. 153 Porque o texto afirma explicitamente que o servo foi receber “dos frutos da vinha” (Mc 12.2; Lc 20.10), presumindo que o proprietário enviou o servo quando as uvas estavam prontas para serem colhidas. 154 Alguns estudiosos vêem um paralelo entre a dominação estrangeira de vastos territórios da Galiléia, antes e durante o tempo do ministério de Jesus e o proprietário retratado na parábola. Dodd, Parables p. 125; Jeremias, Parable, p. 74; M. Hengel, “Das Gleichnis von den Weingartner Mc 12.1-12 ins Lichte der Zenonpapyri und der rabbinische Gleichnisse”, ZNM 59(1968); 11-25; J. E. e R. R. Newell, “The Parable of the Wicked Tenantes”, NovT 14 (1972): 226-37. No entanto, a parábola não indica de modo algum que os arrendatários fossem oprimidos por um dono de terras estrangeiro. Ao contrário, os lavradores e não o proprietário são chamados de malvados (kakous), Mt 21.41. Consulte-se SB, 1:871. 151 152

tinham a intenção de pagar o lucro exigido, proveniente da colheita das uvas eles queriam guardar, para si mesmos, o lucro total, talvez como recompensa pelos anos de labuta e cuidado dispensados à vinha, antes que viesse a colheita. Ao mandarem o servo de volta, espancado, e de mãos vazias, os arrendatários não deixaram dúvidas quanto à sua intenção de reter o total do lucro da safra. Porque o fruto da vinha tinha que ser vendido, o lucro exigido pelo fazendeiro poderia ser pago em épocas variadas, durante o ano. O proprietário, portanto, mandou um outro servo aos seus arrendatários, com o mesmo pedido. Ele, sem dúvida, se referiu ao contrato assinado entre os arrendatários e o proprietário, que expunha claramente os termos. Mas eles o receberam do mesmo modo como tinham recebido seu predecessor. Bateram-lhe na cabeça, trataram-no insultuosamente e, também, o enviaram de volta com as mãos vazias (Lc 20.11). Uma vez mais se mostraram abertamente desafiadores: não queriam partilhar com ninguém o lucro obtido na colheita. O proprietário mostrou elogiável tolerância. Ele não opôs força à força, nem declarou nulo ou cancelado o contrato, como tinham feito os arrendatários. Depois de algum tempo, talvez na safra seguinte, o proprietário enviou um terceiro servo155. Outra vez, os lavradores se recusaram a ceder o pedido do proprietário; foram violentos, ferindo (Lc 20.12 ou matando o servo(Mc 12.5)). Mas, enquanto o dono continuava enviando os servos156, os arrendatários, ferindo-os e matando-os, tornavam conhecido o fato de que a vinha permanecia em suas mãos. Eles a tinham feito produtiva; portanto, argumentavam, tinham direito ao que fosse produzido pela vinha e, mesmo, à própria vinha. O proprietário entendeu que os arrendatários estavam agindo como donos legítimos da propriedade que era sua. Como último recurso ele enviou seu filho, dizendo a si mesmo que os lavradores reconheceriam sua autoridade, quando se confrontasse com seu filho. “A meu filho respeitarão”, disse. Os simples servos não impunham o mesmo respeito que seria devido a um filho que fosse enviado157. Enviaria seu único filho, o herdeiro da vinha. Os arrendatários, no entanto, não estavam dispostos a abrir mão da vinha. Quando viram o filho se aproximando, devem ter pensado que o dono tinha morrido e que seu filho tinha tomado seu lugar. Se esse fosse o caso, pouco restaria no caminho da posse total da vinha, se o filho fosse afastado. Os arrendatários, então, poderiam Derrett, em Law in the New Testament, pp. 289-99, entende que o segundo servo procurou os arrendatários no final da segunda ceifa, e o terceiro, na safra seguinte. Assim, por três anos consecutivos os lavradores guardaram para si o lucro da vinha. 156 Apenas Marcos relata que após ter enviado sucessivamente três servos, o proprietário ainda enviou outros. Mateus diz que dois grupos de servos, em duas diferentes ocasiões, foram enviados. Lucas fala de três servos que sucessiva e individualmente procuravam os lavradores. 157 Dodd, Parables, p. 125. 155

proclamar que tinham cuidado da vinha fielmente, que não haviam pago aluguel algum durante vários anos, e que o legítimo proprietário das terras tinha morrido158. No tempo legal, os lavradores estariam habilitados à posse exclusiva da propriedade. Os juízes locais mui provavelmente favoreciam os lavradores e dariam como legal a operação. Os arrendatários decidiram matar o herdeiro e tomar para si a herança. Eles o receberam na vinha, mas, depois, para não macular a vinha com sangue, eles o mataram fora159. Eles o abandonaram ali, presumindo que os servos que o acompanhavam cuidaram do funeral. A paciência do dono das terras se esgotou. Os arrendatários tinham cometido erro desastroso ao matar seu filho. Medidas foram tomadas para arranca-los da terra e leva-los à justiça, e o proprietário, reclamando plena posse da propriedade, escolheu outros lavradores para tomar conta da vinha. Esses eram servos que lhe dariam a parte estipulada da colheita, no tempo devido. O significado A história contada por Jesus foi prontamente aceita pelos que o ouviam. Ela retratava a situação real de um fazendeiro que, ausente de tempos em tempos, enviava um servo para recolher a parte justa do lucro anual da vinha. Os que o ouviam conheciam as circunstâncias descritas por Jesus na parábola. Podiam imaginar o final da história e dar sugestões de como se executaria a justiça. Jesus se dirigia aos principais sacerdotes, fariseus e mestres da lei. Eles devem ter reconhecido, rapidamente, a citação da profecia de Isaías. Agora, cantarei ao meu amado o cântico do meu amado a respeito da sua vinha. O meu amado teve uma vinha num outeiro fertilíssimo. Sachou-a, limpou-a das pedras e a plantou de vides escolhidas; edificou no meio dela uma torre e também abriu um lagar. Ele esperava que desse uvas boas, mas deu uvas bravas. (Is 5.1-2) Derrett, Law in the New Testament, pp. 300-4. Os arrendatários podiam mesmo citar Dt 20.6, para a própria justificação: “Qual o homem que plantou uma vinha e ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e outrem a desfrute...”. 159 Ambos Mateus e Lucas afirmam que os lavradores atiraram o filho para fora da vinha e, então, o mataram. Marcos inverte a ordem, dizendo que primeiro o mataram e, então, o lançaram fora da vinha. 158

O povo judeu sabia esse cântico de cor; eles o haviam aprendido no culto da sinagoga onde era cantado de tempos em tempos160. Sabiam, também, o seu final: Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta dileta do SENHOR; este desejou que exercessem juízo, e eis aí quebrantamento da lei; justiça, e eis aí clamor. (Is 5.7). Os líderes religiosos, especialmente, sabiam que a parábola se aplicava a eles. Sabiam que Jesus estava se referindo aos profetas que Deus enviara a Israel. Alguns desses profetas foram mortos por causa da mensagem que traziam. Um deles, Zacarias, foi assassinado no pátio do templo, entre o santuário e o altar (2 Cr 24.20,21; Mt 23.25). Com habilidade, Jesus ensinou a seus ouvintes o significado dessas passagens tão conhecidas do Velho Testamento. Quando Jesus falou a respeito do filho do dono da vinha que, tendo sido enviado à vinha, foi assassinado pelos arrendatários, falou, profeticamente, de sua própria morte iminente161. Jesus perguntou aos que o ouviam: “Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará àqueles lavradores?” Ele usou palavras que trazem à memória aquelas do Cântico da Vinha (Is 5.4-5). Suas palavras eram dirigidas contra os líderes do povo. Eles tinham rejeitado a mensagem de João Batista, e tinham questionado a autoridade de Jesus, a ponto de o desafiarem abertamente. Na verdade, rejeitaram o último mensageiro de Deus162. A resposta à pergunta de Jesus foi que um castigo imediato deveria ser aplicado aos lavradores assassinados. Deveriam ser mortos e a vinha arrendada a outros163. Falando diretamente à multidão, Jesus fez referência ao Salmo 118, uma passagem das Escrituras bastante conhecida por todos aqueles fiéis que tinham vindo à Jerusalém, na época da Páscoa. Esse salmo seria entoado num dia determinado, durante a festa. E. Werner, The Secret Bridge (New York: Columbia University Press, 1959), p. 140. 161 Dodd, Parables, p. 131: Hengel, “Gleichnis”, p. 37. Jeremias, em Parables, pp. 7273, observa que, embora Jesus falasse profeticamente de si mesmo, “o significado messiânico do filho podia não ser admitido pela maior parte dos seus ouvintes”. 162 Lane, Mark, p. 419. 163 Não fica claro, no texto, que seriam os outros arrendatário. Jeremias, Parables, p. 76, com base em uma das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra”. (Mt 5.5), afirma que os “outros” são os pobres. A lógica dessa afirmativa não é muito convincente. Um argumento a ser usado talvez seja o uso da palavra “povo” (=ethnos), em Mt 21.43, com referência aos gentios. 160

Participavam do coral dos cânticos, os sacerdotes, os peregrinos e os prosélitos que cantavam as palavras do salmo diante dos portões do templo. Um coro dos peregrinos cantava a parte do salmo que fala da pedra, a pedra angular (Sl 118.22-25)164. Referindo-se a esse salmo familiar, e especialmente aos versículos a respeito da pedra rejeitada, Jesus perguntou aos ouvintes se nunca tinham lido nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do SENHOR e é maravilhoso aos nossos olhos. (Sl 118.22-23)165. Esta questão de retórica proposta por Jesus tinha que ser respondida afirmativamente. Jesus transferiu a figura dos arrendatários que rejeitaram os servos para a dos construtores que rejeitaram a pedra. Os lavradores maus, matando o filho, destruíram a si mesmos; e os construtores, deixando de lado a pedra que se tornou a pedra angular, fizeram-se de tolos. A pedra, pela vontade do Senhor, veio a ser a pedra principal, a pedra angular do portal do edifício. Originariamente, a pedra pode ter sido referência a um dos blocos da construção do templo de Salomão, que veio a ser a principal pedra, pedra de esquina do edifício166. Jesus deixou implícito que ele era a personificação do filho do proprietário da vinha, bem como a pedra rejeitada pelos construtores. Mais que isso, os doutores da lei e os outros líderes religiosos eram os arrendatários da vinha e os construtores que haviam posto de lado a pedra principal. Assim, Jesus falou de sua morte e exaltação iminentes. Teologia A parábola, como registrada pelos evangelistas, tem um foco cristológico definido. O assassinato do filho traz a inevitável transferência do arrendamento para outros lavradores, e a rejeição da pedra resulta em sua maravilhosa exaltação. A parábola ensina, portanto, as imagens paralelas da rejeição do filho e da rejeição da pedra167. Ambas representam o Filho de Deus.

A. Weiser, The Psalms (Philadelphia: Westminster Press, 1962), p. 724. Embora a citação (118.22) seja repetida em At 4.11 e 1 Pe 2.7, não há razão para se aceitar que a igreja tenha acrescentado estas palavras à parábola dos lavradores maus. 166 Jeremias, TDNT, 1:792. A pedra rejeitada se referia a Abraão, Davi ou ao Messias, de acordo com os rabinos. Os construtores eram descritos como os mestres da Lei. SBI: 875-76. 167 M. Black, em “The Christological Use of the Old Testament in the New Testament” NTS 18 (1971-72): 13, chama a atenção para a interpretação messiânica da pedra e, conseqüentemente, fala da pedra e do filho rejeitados. 164 165

Ao mencionar dois grupos separados de servos enviados pelo dono de terras para receber sua parte no produto da vinha, Mateus, aparentemente, faz alusão às duas divisões de profetas – os antigos e os últimos profetas. Ele não adianta qualquer pormenor a respeito do filho do dono da vinha. Marcos e Lucas, no entanto, o chamam de “filho amado”, que traz a conotação de único filho 168. A expressão “filho amado” foi usada, também, por ocasião do batismo de Jesus e em sua transfiguração. Marcos escreve que o dono de terras enviou seu filho por último. A palavra último ressoa claramente nos primeiros versículos da Epístola aos Hebreus: “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo”. (Hb 1.1,2). Além disso, enquanto Marcos diz que o filho foi morto dentro da vinha, Mateus e Lucas escrevem que os lavradores maus apanharam o filho, atiraram-no fora da vinha e, então, o mataram. Fica implícito que os arrendatários deixaram o corpo ali, de modo que os que por lá estivessem, o enterrassem. Uma vez mais, o leitor ouve o eco na Epístola aos Hebreus: “Por isso foi que também Jesus, para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta” (Hb 13.12). Se a parábola terminasse com a morte do filho e com a ida do proprietário à vinha, o sacrifício da vida do filho teria sido desnecessária. O proprietário poderia ter ido até à vinha imediatamente após seus servos terem sido maltratados. A exaltação do filho não teria sido retratada, então, pela parábola da vinha. Mas, através da figura da rejeição, Jesus liga o Salmo 118 à parábola e a citação do Salmo revela que a pedra rejeitada é destinado o lugar mais importante entre todas as outras pedras da construção. O Senhor exaltou a pedra principal. Jesus, deliberadamente, entrelaçou a figura da vinha e da pedra, dizendo: “Portanto vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos. Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó” (Mt 21.43,44)169. O reino de Deus se torna a vinha onde outro povo produzirá frutos. Ao mesmo tempo, a pedra reduz a pedaços e esmaga oponentes do Filho. A “vinha” e a “pedra angular” são metáforas prontamente entendida pelos ouvintes teologicamente treinados, os líderes religiosos. Da profecia de Isaías eles sabiam que “a vinha do Senhor dos Exércitos... será pedra de tropeço e rocha de ofensa às duas casas de Israel.

Gn 22.2; Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22; 2 Pe 1.17. A evidência textual parece se tornar mais forte pela inclusão de Mt 21.44 que pela sua omissão. É possível, naturalmente, olhar o versículo como sendo uma interpolação de Lc 20.18. Não obstante, “a antigüidade da leitura e sua importância na tradição do texto” devem ser vistas como fatores decisivos para sua conservação. Metzger, em A Textual Commentary, p. 58, não obstante, sugere que o versículo pode ser um acréscimo ao texto. 168 169

Muitos dentre eles tropeçarão... cairão, serão quebrantados...”. (Is 8.13-15)170. O propósito da parábola e a citação do Salmo não escaparam aos líderes religiosos. Todos os três evangelistas relatam que “compreenderam que contra eles proferia esta parábola”. Eles, de fato, seriam esmagados pelo Filho que tinham rejeitado, mas a quem Deus tinha exaltado. Aplicação A parábola se aplicava, de maneira óbvia, aos principais sacerdotes, aos fariseus, escribas e anciãos do povo. Eles eram descritos como maus lavradores e como construtores preconceituosos. Eles se rebelaram contra o dono da vinha, mataram seu filho e rejeitaram a pedra principal, angular. Escolheram a inimizade contra Deus e seu Filho. Foram esmagadoramente derrotados e tiveram morte inesperada. Qual é o propósito da parábola? Jesus ensina que, aparentemente, a paciência infinita de Deus se estende a todos os que se opõem a ele, mas que, quando essa paciência se esgota, na rejeição de seu Filho, o castigo imediato de Deus se segue com toda a certeza. A passagem proclama uma mensagem de certeza e confiança àqueles que fielmente seguem a Jesus. Mesmo que a igreja possa experimentar tempos de adversidade, Jesus Cristo é o Rei eterno cuja vitória é certa. Nas palavras de uma confissão do século 16. Esta igreja existe desde o principio do mundo e permanecerá até ao fim. Isso emana do fato de que Cristo é o Rei eterno, do que se conclui que ele não pode deixar de ter súditos. E esta santa igreja é protegida por Deus do furor do mundo todo. Nunca será destruída mesmo que, às vezes, possa afigurar-se pequenina e possa mesmo parecer que se apaga171.

Outras referências à pedra são encontradas em: Is 28.16; Dn 2.34,44,45; At 4.11; Rm 9.33; Ef 2.20; e 1 Pe 2.6. 171 The Belgic Confession, artigo 27. 170

16. As Bodas Mateus 22.1-14 “De novo, entrou Jesus a falar por parábolas, dizendolhes: O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as bodas de seu filho. Então, enviou os seus servos a chamar os convidados para as bodas; mas estes não quiseram vir. Enviou ainda outros servos, com esta ordem: Dizei aos convidados: Eis que já preparei o meu banquete; os meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo está pronto; vinde para as bodas. Eles, porém, não se importaram e se foram, um para o seu campo, outro para o seu negócio; e os outros, agarrando os servos, os maltrataram e mataram. O rei ficou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade. Então, disse aos seus servos: Está pronta a festa, mas os convidados não eram dignos. Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai para as bodas a quantos encontrardes. E, saindo aqueles servos pelas estradas, reuniram todos os que encontraram, maus e bons; e a sala do banquete ficou repleta de convidados. Entrando, porém, o rei para ver os que estavam à mesa, notou ali um homem que não trazia veste nupcial e perguntou-lhe: Amigo, como entraste aqui sem veste nupcial? E ele emudeceu. Então, ordenou o rei aos serventes: Amarrai-o de pés e mãos e lançaio para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos”. Assim a parábola da grande ceia é peculiar a Lucas, a parábola das bodas pertence ao Evangelho de Mateus. Pode haver alguma semelhança entre as duas, e o tema parece comum a ambas; mas as diferenças são tão fundamentais, que é bom trata-las como parábolas distintas. A parábola Jesus contou a história de um rei que preparou um banquete para festejar as núpcias de seu filho. O rei – e não sua mulher, nem seu filho, mas o rei – fez os preparativos. Para a ocasião feliz do casamento, o rei planejou cuidadosamente a festa. Ele queria que todos os importantes dignatários de seu reino estivessem presentes. Mandou, então que fossem anunciadas as bodas. Era costume, naqueles dias, os convites serem entregues em mãos e os convidados serem relembrados do acontecimento, no dia da festa. Mas ao entregar os convites, os servos do rei não foram bem recebidos. Os dignatários e membros da nobreza fizeram saber aos servos que não estavam absolutamente interessados na festa. Expressaram amargura e rebeldia. Mesmo sabendo que o convite real

era equivalente a uma ordem real, conhecimento do comunicado do rei.

se

recusaram

a

tomar

Uma sombra se abateu sobre o palácio real. Pessoas de alta posição no reino, abertamente, menosprezavam o rei. Eles se recusavam a honrá-lo com sua presença no casamento do príncipe herdeiro. Mas, o rei continuou os preparativos para a festa, e, quando chegou o dia das núpcias de seu filho, enviou novamente os servos para fazer lembrar aos dignatários de todo o reino que eram convidados ao banquete. Fez saber que tudo estava pronto. No entanto, infelizmente, a atitude do rei não teve o resultado esperado. Ele, talvez. Até soubesse o tipo de resposta que seus servos receberiam, quando fossem enviados pela segunda vez. Já, antes, tinham recebido respostas negativas e hostis. Certamente enfrentariam a mesma amargura e o mesmo ressentimento, se não pior. Os servos partiram com a mensagem real: Meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo está pronto; vinde para as bodas 172. Mas, os convidados não deram atenção ao convite. Agiram de modo ostensivamente desafiante: uns foram para o seu campo, outros para o seu negócio, e, quando os servos do rei insistiram um pouco mais com um terceiro grupo, foram maltratados. Alguns foram mortos. O rei, justamente, irado, enviou seus soldados para punir os assassinos e queimar sua cidade. Desabafou assim a sua ira, mas ainda queria que pessoas viessem e celebrassem com ele as bodas de seu filho. Por isso, ordenou aos servos que fossem às esquinas das ruas e convidasse qualquer um que quisesse vir à festa. Tanto pessoas boas como más vieram em grande número, de modo que a sala do banquete se encheu de convidados. Um dos convidados, no entanto, se recusou a usar o traje nupcial que lhe foi oferecido, quando chegou. Por causa de sua roupa, ele ficou muito em evidência. Chegou, então, o momento da entrada do rei no salão do banquete. Ele examinou seus convidados com aprovação, até notar aquele que se tinha recusado a usar vestimenta apropriada. Surpreso, o rei exclamou: “Amigo, como entraste aqui sem veste nupcial?” O homem ficou calado. Não podia contar ao rei, na frente de todos os outros convidados, que se recusara a usar o traje que lhe fora oferecido ao chegar. Permaneceu em silêncio. O rei ordenou a seus servos que amarrassem o convidado obstinado e o lançassem lá fora, nas trevas. Explicação A parábola do banquete das bordas é a terceira de uma série de três, e é o ponto culminante do grupo que inclui ainda as parábolas Um paralelo no Velho Testamento é o convite para o banquete da Sabedoria, registrado em Provérbios 9.2-5. 172

dos dois filhos e dos lavradores maus. Estas três parábolas sobre o reino foram enunciadas no decorrer da última semana de Jesus na terra, quando ele experimentou a hostilidade dissimulada dos fariseus, dos principais sacerdotes e dos anciãos do povo, enquanto estes preparavam suas armadilhas para apanha-lo em contradição. Sem temor, Jesus ensinou a parábola das bodas, que era dirigida, claramente, contra seus oponentes. Esta parábola, no entanto deve ser lida e entendida n contexto histórico dos eventos que encerram o ministério de Jesus. Na introdução da parábola, ressoa uma nota de alegria e felicidade. O rei prepara, com esmero, um banquete para festejar as bodas de seu filho. Celebrando, ele convida altos dignatários para o banquete. O ato de comer e beber juntos, alegremente expressa com naturalidade, o laço de paz e união que deve existir entre o hospedeiro e seus convidados173. Um banquete, obviamente, não é preparado apenas com o propósito de satisfazer o apetite. Enquanto o dono da casa e seus hóspedes comem juntos, conversam e se tornam mais íntimos. O embaraço desaparece e um espírito de entendimento e afinidade toma seu lugar. Nos banquetes devem prevalecer a paz e a harmonia. Aqueles que foram convidados pelo rei recusaram-se a ir. No oriente, assim como em qualquer outro lugar, espera-se que os convidados aceitem o convite real, como uma obrigação. Espera-se, também, que os convidados ao casamento tragam presentes apropriados à ocasião. Porque os convidados da parábola não poderiam agir de maneira recíproca, convidando o rei e sua família para uma festa semelhante, os presentes deveriam ser caros – especialmente sendo o casamento do filho do rei174. Recusar o convite traria sérias implicações que poderiam resultar em problemas e hostilidades. A recusa poderia ser interpretada como uma declaração de que o filho do rei não merecia um presente, que os convidados não aprovavam o casamento e que não manteriam mais sua fidelidade ao rei175. O rei é obrigado a tomar medidas que assegurem sua autoridade. Faz isso enviando os servos pela segunda vez, mas, agora, com o apelo urgente de que venham imediatamente. Não toma, ainda, nenhuma outra medida. O rei espera que os convidados tenham mudado de idéia e aceitem seu convite. Os convidados, no entanto, não tinham mudado seus sentimentos. Vão para seus próprios negócios, ignorando a mensagem do rei. Quando os mensageiros insistem, fazendo ver a urgência do convite real, eles demonstram-lhes seu desprezo, os ridicularizam e não hesitam mesmo em matá-los176. Mánek, Frutch, p. 61 Derrett, Law in the New Testament, p. 139 175 Derrett, Law in the New Testament, p. 139, chama a atenção para o fato de Sir Thomas More ter-se recusado a assistir à coroação da Rainha Ana Bolena, em 1534. 176 Alguns escritores consideram que este detalhe, bem como alguns outros, vão 173 174

Jesus está contando a história de Israel, e seus ouvintes entendem que ele se refere aos profetas enviados por Deus, com a mensagem urgente de arrependimento. Mas Israel, em vez de aceitar o chamado de Deus e se arrepender, trata de maneira vergonhosa os profetas, e mata alguns deles (Mt 23.35)177. Jesus rememora a seus ouvintes a página negra do livro de sua história. Os fariseus, mestres da lei, sacerdotes e anciãos compreendem que ele está se referindo a eles. Jesus continua e descreve um rei zangado, que envia seu exército para destruir os assassinos e queimar sua cidade. O rei, tendo feito lembrar seus convidados, pela segunda vez, através de seus servos, e vendo que seus mensageiros são escarnecidos e mesmo assassinados, compreende as conseqüências políticas do fato. É de importância capital que ele enfrente aqueles que se opõem à sua lei. Ordena às suas tropas que destruam os assassinos e queimem sua cidade178. E indiferente que isso tenha acontecido no próprio dia das bodas, ou imediatamente após. Significativo é o fato de o rei ter exercido sua autoridade; ele governa e exige obediência. Embora a referência à queima de uma cidade possa ser alusão à destruição de Jerusalém, em 70 AC, é mais adequado pensar que o povo que ouvia Jesus estivesse familiarizado com os relatos históricos de reis enviando tropas para destruir os adversários e para tocar fogo em suas cidades179. Os ouvintes de Jesus provavelmente viram a figura irada do rei como a personificação de Deus. Eles sabiam que “... Deus é fogo que consome, é Deus zeloso” (Dt 4.24). A paciência de Deus não dura para sempre, e quando sua misericórdia não encontra arrependimento, o resultado é o juízo. O rei convida o povo da cidade e de seus arredores para os salões festivos do banquete nupcial. Eles vêm de longe e de perto, os bons e os maus, e enchem os lugares deixados vazios pelos convidados indignos. O rei é um retrato de benevolência e representa a misericórdia e o amor de Deus estendidos aos pecadores180. Pessoas além dos limites do exagero oriental. Veja-se, por exemplo, Armstrong, Parables, p. 103; Oesterley, Parables, p. 123; Linnemann, Parables, p.94; e Jeremias, Parables, p. 68. Entretanto, K. H. Rengstorf, cm “Die Stadt der Mõrder (Ml 22.7), Judentum, Urchristentum, Kirche, Festschrift honoring J. Jeremias (Berlin: Tõpelmann, 1960), pp. 106-29, acumulou uma coleção de incidentes, nos quais mensageiros enviados por reis eram escarnecidos ou mortos. 177 2 Cr 30.1-10. Josephus, Antiquities 9:264-265, escreve que os mensageiros de Ezequiel foram escarnecidos, agarrados e assassinados. Para comparar, leia-se Judite 1.11. 178 A expressão “suas tropas”, embora plural em grego, ~ um semitismo. Jeremias, Parables, p. 68, n5 75. 179 Rengstorf, “Stadt der Mörder”, pp. 106-24. Veja-se, especialmente, suas conclusões, nas páginas 125-29. 180 D. O. Via, Jr., em “The Relationship of Form to Content in the Parables: The Wedding Feast”; Interp 25 (1971): 181, é de opinião que o rei é ‘inquestionável e

de todos os caminhos da vida recebem o convite e respondem afirmativamente. Os servos do rei saúdam as pessoas, quando estas chegam ao palácio, e dizem a cada hóspede que use as roupas feitas para a ocasião. O rei convida o povo e espera que usem as vestes que providenciou. Vestindo o traje nupcial, ninguém mostra pobreza ou miséria. Cada um dos convidados pode esconder sua condição social e econômica atrás das roupas oferecidas pelo rei181. As vestes eram imaculadas e brancas, cor que na cultura oriental significa alegria e felicidade182. Segundo os costumes, um hospedeiro não comia com os convidados, num banquete formal; ele apenas se apresentava entre eles durante a refeição183. Qualquer um pode vir ao casamento do filho do rei? A resposta é que todos são bem-vindos, contanto que usem as vestes nupciais. Quando o rei chega ao salão do banquete e nota que um dos convidados não está vestido de maneira apropriada, considera o fato como um insulto deliberado. Ele não pode tolerar obstinação, desacato ou recusa. Ele quer que seu convidado aceite tudo que ele tenha a oferecer. Qualquer um que resolva declinar a oferta do rei, provoca sua ira e vai sofrer as conseqüências. O único convidado que apareceu no banquete usando suas próprias roupas foi sumariamente retirado do salão e lançado fora, na escuridão da noite. Cheio de remorsos, ele geme e range os dentes. Não são todos que permanecem no salão da festa das bodas. Apenas aqueles que aceitam o convite do rei, e chegam ao local obedecendo seus termos, poderão ficar. O Livro do Apocalipse, em especial, fala a respeito dos justos usando vestes brancas de linho fino, resplandecente e imaculado184. Deus providência essas vestiduras que representam a justiça de Deus com seu povo. Deus lhes dá a veste da justiça que simboliza que quem a usa foi perdoado, seus pecados foram resgatados, e ele é um membro da casa de Deus, por intermédio de Cristo. Quando o pai se alegrou com a volta do filho pródigo à casa, ele o vestiu de roupas finas, para mostrar que o passado do filho fora esquecido (Lc 15.22)185. Como o rei da parábola queria que todos os convidados imutável’. No entanto, Orei mostra amor, misericórdia e paciência de um lado, e desgosto, ira e vingança, de outro. 181 Para um estudo mais pormenorizado acerca do fornecimento devestes aos convidados, por pane do rei, veja Hendriksen, Matthew, pp. 797-98. Consultem-se referências das Escrituras em 2 Rs 10.22; Is 61.10; Ap 19.7,8. 182 Derrett, Law in the New Testament, p. 142, contrasta as vestes limpas e alvas com as sujas que significam luto. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p. 187; SB 1: 878-79. 183 Jeremias Parables, p. 187. 184 Ap 3.4,5,18 e 19.8. No último versículo, o escritor acrescenta a explicação de que o linho representa os atos de justiça dos santos. 185 Jeremias, Parables, pp. 130 e 189.

usassem as roupas nupciais, por ele providenciadas, assim Deus deseja que os pecadores venham à festa de seu filho e usem as vestiduras brancas que simbolizam o arrependimento, o perdão e a justiça. O convidado que não estava usando a veste branca, no banquete real, sem dúvida, representa o pecador que se autojustifica. Ele quer que todos saibam que não precisa da morte sacrificial e do sangue expiatório de Cristo, para entrar no céu. Ele não ouve as palavras de Jesus: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6), e, por isso, quando chega diante de Deus, é lançado fora. É absolutamente impossível chegar diante de Deus sem a veste protetora oferecida por Jesus Cristo. O parágrafo termina com as palavras: “Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos”. Tanto o começo quanto o fim da parábola se referem a pessoas que tinham sido convidadas. Aqueles que se recusaram a ir, assim como o convidado que não vestiu as roupas apropriadas para as bodas, não fazem parte do grupo dos que foram escolhidos. Embora o convite seja universal e extensivo a todos os povos, apenas aqueles que o aceitam com fé e arrependimento são destinados à vida eterna (At 13.48). Deus não se compraz com a morte do perverso; ele quer que ele viva (Ez 18.23; 33.11). O desejo amoroso de Deus é que “nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pe 3.9). Mas, se o homem faz saber que não sente necessidade de Jesus, ele, assim, recusa a justiça dispensada por ele. Ele tem que se arrepender, dando-se conta de que não tem merecimento algum para chegar à presença de Deus, e que necessita das vestes de justiça que Jesus provê. Um coração “compungido e contrito” (SI 51.17) é necessário para que se queira aceitar, prontamente, essa vestidura. O convite do evangelho é proclamado a todo o mundo, mas relativamente poucos respondem à oferta de salvação. Mesmo entre os que aceitam o convite há muitos que se contentam com uma simples profissão de fé. A profissão de fé deve demonstrar renovação de vida186. O crente deve transformar em atos suas palavras. Embora Deus escolha sem olhar as obras, essa escolha se expressa plenamente quando o eleito vive uma vida de obediência a Deus187. A escolha envolve o Deus Triúno. Os escolhidos são “eleitos segundo a presciência de Deus Pai.” Eleitos “em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1 Pe 1.2). Deus elege e o homem responde. A eleição divina representa um lado do quadro; o outro é a responsabilidade do homem em 186 187

Calvin, Harmony of the Evangelists, 11:175. G. Schrenk, TDNT, IV: 187.

aceitar o convite de Deus com fé verdadeira188. As palavras: “Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos” são complemento de “porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e são poucos os que acertam com ela” (Mt 7.14).

17. A Figueira Mateus 24.32-35 “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão”. Marcos 13.28-31 “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam, e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim, também vós: quando virdes acontecer estas coisas, sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão”. Lucas 21.29-33 “Ainda lhes propôs uma parábola, dizendo: Vede a figueira e todas as árvores. Quando começam a brotar, vendo-o, sabeis, por vós mesmos, que o verão está próximo. Assim também, quando virdes acontecerem estas coisas, sabei que está próximo o reino de Deus. Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão”. Os evangelhos revelam que Jesus era um arguto observador da natureza. Seu ensino, constantemente, faz alusão ao meio ambiente que cercava a ele e a seus ouvintes. As parábolas não são exceção, pois, muitas vezes, se referiam à vida do fazendeiro, do pescador e dos pastores. Os ouvintes de Jesus viviam mais próximos da natureza do que fazemos nós agora, e não tinham dificuldade para entender o significado de sua mensagem. Nos tempos bíblicos, a figueira era muito comum em Israel, especialmente nas proximidades de Jerusalém, onde Betfagé (= “casa dos figos”) se localizava. Em Israel, um dito popular sempre lembrado e que se referia ao reinado calmo de Salomão, afirmava que um homem está em segurança “debaixo de sua videira, e debaixo de sua figueira” (1 Rs 4.25 e Mq 4.4). Durante o verão, a figueira com suas largas folhas verdes oferece boa sombra. Mas, diferentemente de outras árvores, tais como a oliveira, o cedro e a palmeira, ela perde suas folhas com a 188

J. Morison, A Practical Commentary on the Gospel According to St. Matthew (Boston: Bartlett & Co, 1884), p 407.

aproximação do inverno. Mesmo quando outras árvores, que também costumam perder as folhas, começam a mostrar sinais de vida, logo no início da primavera — a amendoeira, por exemplo —, a figueira continua a apontar para o céu seus ramos nus, até que chegue o verão. Então, a seiva começa a correr, os rebentos intumescem, e, em alguns dias, as tenras folhas novas aparecem. A natureza proclama que o perigo da noite gelada e mortal já passou e o verão está próximo. Jesus talvez tenha ensinado a parábola da figueira florescente durante a primeira semana de abril, exatamente quando as árvores começam a dar os primeiros sinais de vida. “Quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão189”. Esta era a linguagem que seus ouvintes entendiam. A questão, no entanto, era se o povo seria capaz de interpretar este sinal teológica e espiritualmente. As pessoas tinham vindo a Jesus, repetidamente, pedindo por um sinal, mas Jesus não tinha o hábito de apresentar sinais. Certa vez, ele dissera aos fariseus que nenhum outro sinal seria dado senão aquele do profeta Jonas (Mt 12.39), e uma outra vez ele os censurou por serem capazes de interpretar o aspecto do céu; porém não serem capazes de discernir os sinais dos tempos (Mt 16.2,3). Saberiam seus discípulos reconhecer o sinal da figueira ao florescer? “Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabeis que está próximo, às portas190”. O ponto focalizado na ilustração é óbvio: quando as árvores começam a mostrar as tenras folhas, todos sabem que o verão está próximo. Lucas acrescentou: “todas as árvores191”. Ele generalizou, quando escreveu: “Vede a figueira e todas as árvores. Quando começam a brotar, vendo-o, sabeis por vós mesmos que o verão está próximo.” Lucas dá menos ênfase à figueira que às pessoas que olham as árvores: elas podem ver a evidência por si mesmas. Qual é, pois, a comparação? Os evangelistas diferem na narrativa. Mateus inclui tudo. Escreve: “Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabeis que está próximo, às portas”. 189

Lõw, Die Flora der Juden, 1.240, destaca que a palavra verão (grego = theros) em hebraico pode ter ocasionado um jogo de palavras: gayis (= verão; fruto do verão) e ges (= fim da vida; tempo do castigo final). Veja-se, também, 1. Dupont, ‘La parable du figuier qui bourgeonnne (MCXIII, 28,29 ei. par.)”, RB 75(1968): 542, que se refere à profecia de Amós 8.1,2, na qual o cesto de frutos de verão tem significado escatológico. 190 Dupont, “Parble fu figuier”, p. 532. As palavras “assim também” dão a impressão de que os discípulos são comparados a um outro grupo. O ‘vós” do versículo precedente (Mi 24.32; Mc 13.28; Lc 21.30) deve ser entendido no sentido geral de “todos sabem que o verão está próximo. 191 Um outro exemplo da generalização é encontrado em Lc 11.42, “... porque dais o dízimo da hortelã da arruda e de todas as hortaliças...” O paralelo é encontrado em Mt 23.23, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho...”.

Marcos varia ligeiramente, dizendo: “... quando virdes acontecer estas coisas”, que é igual à versão de Lucas. Mas Lucas tem um final diferente: “... sabei que está próximo o reino de Deus.” Ele omite a frase, “próximo, às portas192”. A expressão “quando virdes” ocorre no começo do sermão escatológico de Jesus: “Quando, pois, virdes o abominável da desolação situado onde não deve estar...” (Mt 24.15; Mc 13.14; Lc 21.20). Inegavelmente, as palavras “estas coisas” ou “todas estas coisas” devem referir-se às predições delineadas anteriormente, no discurso. Os discípulos de Jesus perguntaram: “Dize-nos quando sucederão estas coisas” (Mc 13.4). O sermão todo a respeito do final dos tempos (Mc 13.5-23 e paralelos), especialmente a parte sobre o cerco de Jerusalém e o aparecimento de falsos profetas, está resumido na expressão: “estas coisas ,ou todas estas coisas193”. A expressão se refere, também, ao “abominável da desolação” que foi profetizado que viria ao templo de Jerusalém. “Quando, porém, virdes Jerusalém sitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação” (Lc 21.20). Jesus aplica esta verdade diretamente a seus contemporâneos. “Em verdade vos digo”, diz ele a seus discípulos, “que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça” (Mc 13.30). Uma vez mais ele generaliza, usando a expressão “tudo isto”. Com certeza, os discípulos seriam capazes de constatar como estavam próximas a profanação e a destruição do templo, tanto quanto saberiam como estava próxima a chegada do verão, olhando para a figueira. Mas, o texto diz, “não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”. E todas estas coisas preditas no sermão sobre o final dos tempos vão muito além do tempo dos contemporâneos de Jesus194. Porém, os rolos de Cunrã têm lançado significativa luz na compreensão da frase “esta geração”. A expressão significa uma duração que não se limita a um período de vida, e não deve ser entendida literalmente 195. Ela se refere a pessoas que persistem e permanecem fiéis até ao fim. Inclui, portanto, os discípulos que ouviram as palavras dos próprios lábios de Jesus, aqueles que testemunharam a queda de Jerusalém, e os 192

As palavras de Mateus e Marcos, “próximo, às portas”, indicam a chegada iminente do Senhor que está vindo como Juiz e Redentor. “Sede vós também pacientes, e fortalecei os vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Eis que o juiz está às portas”. (Tg 5.8,9) Notem-se as palavras do Apocalipse: “Eis que estou à porta, e bato” (3.20). Mänek, Frucht,p.34. 193 Lane, Mark, p. 448; C. B. Cousar, “Eschatology and Mark’s Tbeologia Crucis, A Critical Analysius of Mark 13”, lnterp 24 (1970): 325; G.R. I3easley — Murray, A Commentary on Mark Thirteen (London, New York: Macmillan, 1957), p. 97. 194 As interpretações variam quanto ao significado da expressão “esta geração”: a) O povo judeu dos dias de Jesus. Beasley — Murray, Commentary p. 100; b) O povo judeu como uma raça. Hendriksen, Matthew, p. 868; e) A humanidade em geral (Jerônimo); d) Os fiéis na igreja. A. L. Moore, The Parousia in the New Testament, (Leiden; Brill, 1966), pp. 131 -32. 195 E. E. Ellis, The Gospel of Luke (The Century Bible) (London: Nelson, 1966), pp. 246-47. A expressão é usada em 1 QpHab 2.7; 7.2.

crentes que, através dos séculos, com perseverança, têm esperado o cumprimento das profecias que dizem respeito ao final dos tempos. A imagem da figueira florescente é comumente associada a um período de bênçãos (Jl 2.22) e raramente está relacionada com destruição e calamidade. A parábola, como tal, não deve ser vista basicamente ligada às calamidades profetizadas no sermão196. A ênfase deve permanecer, antes, na redenção que se torna evidente na vinda do reino de Deus. Embora Mateus e Marcos falem de calamidades, como a fome e terremotos, como sendo “o princípio das dores” (Mt 24.8; Mc 13.8), Lucas as omite. Ele apresenta as palavras de Jesus emolduradas de prazeirosa expectativa. “Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei as vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima” (Lc 21.28). Lucas usa praticamente a mesma linguagem na aplicação da parábola da figueira florescente: “Assim também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que está próximo o reino de Deus” (Lc 21.31). Naturalmente, os termos “redenção” e “reino de Deus”, neste contexto, se referem à futura consumação da salvação197. Eles se referem à derradeira vinda do reino de Deus, quando o povo de Deus será libertado da aflição. Então, também, “a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). A parábola conclui, dizendo: “Passará o céu e aterra, porém as minhas palavras não passarão.” O que passa se torna parte do passado e não significa mais nada para o presente198. O sentido da parábola é o de que as palavras de Jesus não perdem seu impacto quando urna predição, em particular, se cumpre no tempo. São tão válidas hoje, como o eram quando foram primeiro proferidas. Qual é a mensagem da parábola? Até ao dia do retorno de Cristo, quando o reino de Deus virá em toda a sua plenitude, nenhuma geração estará livre de calamidade. Mas, nenhum cristão deve desanimar-se ou entregar-se ao desalento. Ele deve observar os sinais dos tempos com muito cuidado, do mesmo modo como observa uma figueira que floresce e saberá que os acontecimentos que o cercam são anunciadores de uma nova era. A parábola, assim, exorta o crente a perseverar atento. As adversidades que ele enfrenta não devem abater o seu ânimo e enfraquecer a sua confiança. Elas devem, antes, confirmar a sua expectativa da aproximação do fim glorioso do qual essas adversidades são os prenúncios. Mesmo que os crentes, através dos tempos, tenham sofrido aflições e enfrentado infortúnios, o cristão, hoje, mais que nunca, é encorajado pelas palavras de Paulo: “E digo isto a vós outros que conheceis o tempo, que já é hora de vos despertardes do sono, porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos. Vai alta a 196 197 198

Mänek, Frucht, p. 34. Marshall, Luke, pp. 777,779. Ridderbos, Coming of the Kingdom, p. 502.

noite e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13.11,12).

18. O Servo Vigilante Marcos 13.32-37 “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de sobreaviso, vigiai e orai; porque não sabeis quando será o tempo. É como um homem que, ausentando-se do país, deixa a sua casa, dá autoridade aos seus servos, a cada um a sua obrigação, e ao porteiro ordena que vigie. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!”. Lucas 12.35-38 “Cingido esteja o vosso corpo, e acesas, as vossas candeias. Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que, quando vier e bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aqueles servos a quem o senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em verdade vos afirmo que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximandose, os servirá. Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira, bem-aventurados serão eles, se assim os achar”. O título deste capítulo se aplica bem mais à parábola registrada no Evangelho de Marcos, que àquela que encontramos em Lucas. Em Marcos, todos os servos recebem uma obrigação específica do senhor da casa, que está pronto para partir. Ao porteiro é dito que se mantenha vigilante. Os ouvintes, no entanto, são incluídos porque o comando universal é dado no plural: “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa” (Mc 13.35)199. Na parábola de Lucas, espera-se que todos os servos estejam prontos para abrirem a porta, quando o dono da casa estiver de volta de uma festa de casamento, numa determinada noite. Também, a admoestação geral dada (no plural) a todos que a ouvem, é: “Cingidos estejam os vossos corpos e acesas as vossas candeias”. (Lc 12.35) Um título mais apropriado à parábola de Lacas seria “os servos à espera”. As duas parábolas, em Marcos 13 e Lucas 12, não são idênticas na forma. Não apresentam sentenças ou frases paralelas. Ainda assim, o ensinamento básico dos dois relatos é o mesmo. Ambos apresentam a mensagem da vigilância para os servos que aguardam a chegada de seu senhor. Na parábola de Marcos, o senhor vai se ausentar, provavelmente para outro país200, e no Evangelho de Lacas o senhor está participando de uma festa de casamento. Em Marcos, embora todos os indícios sejam de que chegará em casa à noite, os 199

O imperativo da segunda pessoa plural da voz ativa é usado aqui e no versículo paralelo de Mateus 24.42. 200 “Ausentando-se” ( = apodemos) não significa, necessariamente, partir para um país distante. Pode querer dizer, simplesmente, sair da província, como, por exemplo, da Galiléia e Decapolis.

servos não sabem quando o senhor voltará, “se à tarde, se à meianoite, se ao cantar do galo, se pela manhã”. Lucas apresenta uma lista semelhante de períodos de tempo. “Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira, bem-aventurados serão eles, se assim os achar”. Marcos adota o costume romano de dividir a noite em quatro vigílias, cada uma com três horas de duração201. Lucas, no entanto, divide a noite em três vigílias202. Marcos 13.33-37 Ninguém sabe, absolutamente, a hora em que Jesus voltará. Os anjos do céu não têm essa informação, nem mesmo o Filho sabe a respeito. Somente o Pai sabe. “Estai de sobreaviso, vigiai203 (e orai); porque não sabeis quando será o tempo.” Como vigia o crente? É como um homem que tem certo número de servos, e um deles é o porteiro noturno. Quando o dono da casa se prepara para partir por um tempo indefinido, dá a cada um dos servos uma tarefa determinada. O porteiro, por exemplo, deve vigiar a entrada da propriedade. As casas, em Israel, eram, muitas vezes, separadas das estradas ou ruas por um muro alto que as cercava. A casa propriamente dita, juntamente com outras construções, ficava afastada do portão. Perto da entrada ficava a pequena casa do porteiro. O porteiro era a última segurança daqueles que moravam dentro dos muros da propriedade204. Dele se esperava que estivesse atento à noite e que descansasse durante o dia. Dormir em serviço era falta grave, que contrariava as instruções explícitas dadas pelo dono da casa (Mc 13.34,36). De certo modo, as tarefas destinadas aos outros servos não parecem tão importantes quanto à do vigia, e os servos não são instruídos a ajudar o porteiro em sua missão. Nesse ponto, a ênfase da parábola se transfere. Os ouvintes próximos, os discípulos de Jesus são exortados a permanecer vigilantes. Jesus aplica a parábola diretamente a seus seguidores com a intenção de que eles entendam a exortação espiritualmente205. Fica claro que o proprietário da casa 201

SB, 1:688. Em At 12.4, Lucas registra, fielmente, as vigílias romanas: “quatro escoltas de quatro soldados cada uma”, guardavam Pedro durante a noite. Veja-se, também, Mt 14.25 e Mc 6.48, onde é narrado que Jesus caminhou sobre o Mar da Galiléia durante a quarta vigília da noite. 202 Dodd, Parables, p. 162. 203 O acréscimo de “e orai” talvez derive de Mc 14.38. É mais fácil explicar a inserção que a omissão. Metzger, Textual Commentary, p. 112. 204 SB, 11:47. De acordo com o Mishna, quando no pátio havia mais que uma residência. o proprietário podia exigir que os moradores ajudassem a pagar o porteiro, Smith, Parables p. 105. 205 J. Dupont, “La Parabole du Maitre Qui Rentre dans La Nuit”, Melanges Bibliques, Festshrift honoring 13. Rigaux (Gembloux: Duculot, 1970), p. 96. Jeremias, em Parables, p. 55, afirma que a parábola foi dirigida aos escribas, que possuíam as chaves do reino dos céus. É difícil deduzir do texto e do contexto que é realmente assim. Consulte-se Smith, Parables, p. 106.

personifica o Filho do Homem que, no tempo conhecido apenas pelo Pai, virá “com grande poder e glória” (Mc 13.26). Os seguidores de Jesus são aconselhados a permanecer vigilantes, a não dormir, mas a esperar a sua volta. Como o vigia espera paciente e ansiosamente a volta do dono da casa, durante qualquer uma das quatro vigílias da noite, assim devem estar alertas os seguidores de Jesus, despertos e atentos à sua vinda. O dono da casa não podia determinar com precisão a hora de sua chegada. Podia ser a qualquer hora, cedo ou tarde. Do mesmo modo, ninguém é capaz de afirmar a hora exata da volta de Jesus. Pode ser a qualquer tempo. Assim como o porteiro não podia dizer que seu senhor estaria de volta durante a quarta vigília, pouco antes do amanhecer206, também os seguidores de Jesus não podem afirmar que Jesus voltará quando tiver passado a noite de adversidades. A volta de Jesus acontecerá inesperadamente (Mc 13.36). Por isso Jesus exorta não apenas seus ouvintes próximos, mas se dirige a todo o povo: “O que, porém, vos digo, digo a todos: Vigiai!” O tom de vigilância permeia toda a parábola, pois em cada versículo a idéia se expressa positiva ou negativamente. Aqueles que ouvem a parábola não devem ser encontrados adormecidos. São exortados a se manter alertas, pois não podem saber quando Jesus virá207. Lucas 12.35-39 A parábola dos servos vigilantes é análoga à do porteiro. É comum se afirmar que ambas derivam de uma parábola original, ensinada por Jesus208. Disso se deduz que a comunidade cristã primitiva ou os evangelistas criaram a versão atual dos Evangelhos. Entretanto, os dois relatos sobre o porteiro e os servos vigilantes são tão diferentes no vocabulário e na estrutura das frases que é impossível aceitar uma parábola original. É muito mais simples afirmar que ambas as parábolas vieram dos lábios de Jesus. Uma é relatada por Marcos, a outra por Lucas. No relato de Lucas, a parábola é apresentada como uma comparação. Após ter feito uma exortação à vigilância, Jesus compara 206

Michaelis, Gleichnisse, p. 84. O Evangelho de Mateus não registra uma parábola semelhante à do porteiro. Mas há versículos paralelos em Mt 24.42: Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor”; e em Mt 25.13: ‘Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora”. Marcos e Lucas não registram a parábola das dez virgens (Ml 25.1-13). Por causa da incorporação dessa passagem, Mateus deve ter suprimido a parábola do servo vigilante. 208 Armstrong, Parables, p. 124; Dodd, Parables, pp. 161,162; Jeremias, Parables, p. 55; Mánek Frucht, p. 35. É Michaelis, em Gleichnisse, p. 82. que considera a possibilidade de as dua parábolas, que diferem uma da outra, serem basicamente a mesma, por causa de sua afinidade a um tema comum. Consulte-se Marsahll, Luke, p. 537. 207

o estado de alerta “a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que, quando vier e bater à porta, logo lha abram.” Jesus diz a seus discípulos que estejam preparados para o serviço e que mantenham acesas as suas lâmpadas. Claramente, a mensagem que Jesus transmite deve ser entendida espiritualmente. Na parábola que fala sobre o porteiro, mesmo que a todos os servos tenha sido confiada uma tarefa a ser realizada durante a ausência de seu senhor, o vigia tem que se manter acordado e responder à batida na porta, quando o dono da casa voltar, durante a noite. Na parábola de Lucas, todos os servos esperam pelo regresso do senhor. São os únicos que abrem a porta para ele, quando ele bate. Embora não possam saber ao certo quando ouvirão a batida — a qualquer hora, entre as dez da noite e as seis da manhã —, eles sabem que naquela noite seu senhor voltará para casa vindo de um banquete de núpcias. Mas, por que devem todos os servos se manter acordados? E por que devem todos eles atender à porta209? A resposta a esta pergunta é que Jesus queria retratar o relacionamento de confiança que existia entre o senhor e seus servos. Nesta curta parábola, a passagem: “bem-aventurados aqueles servos” (Lc 12.37,38) ocorre duas vezes. Também, através da comparação, Jesus destaca o laço de amizade existente entre ele e os discípulos. Aos discípulos é dito que estejam vestidos e prontos para o serviço210, e que mantenham acesas as suas candeias. O uso de candeias acesas sugere um período de trevas durante o qual os discípulos devem permanecer alertas, prontos para servirem a Jesus211, quando ele voltar. A parábola retrata o senhor fora da porta de sua própria casa, batendo e esperando que os servos a abram e o recebam em sua própria casa. A imagem se repete na carta endereçada à igreja em Laudicéia: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20). A parábola continua com uma recomendação: “Bemaventurados aqueles servos a quem o senhor quando vier os encontre vigilantes.” A seqüência natural seria que os servos, após abrirem a porta, se ocupassem em servir ao seu senhor. Entretanto, uma série inesperada de acontecimentos tem lugar: o senhor se torna o servo.

209

Dupont, “Parabole”, p. 105. No grego, é usado o particípio perfeito do verbo perizonnumi junto com o imperativo do verbo eimi. Esse uso do perfeito significa conseqüência. Isto é, a ordem é que estejam sempre vestidos para o serviço: estar prontos sempre! 211 Dodd, Jeremias, e outros colocam esta parábola na categoria das “parábolas da crise’. A categoria inclui parábolas tais como a dos servos vigilantes, a do ladrão à noite, a do servo fiel e do infiel, e a das dez virgens. Embora a observação seja correta, as assim chamadas parábolas da crise não podem ser limitadas à morte de Jesus. Elas focalizam, também, a segunda vinda. Morris, Luke, p. 216; 1. H. Marshall, Eschatology and The Parables (London: Tyndale Press, 1973), pp. 34,35. 210

Ele se veste para o serviço, seus servos tomam lugar à mesa e ele os serve212. Sem dúvida, o fato contraria o costume normal tão bem descrito na parábola sobre a recompensa do servo (Lc 17.7-10). Entretanto, essa inversão de papéis está plenamente de acordo com o ensino e a conduta de Jesus. Ele ensinou o papel do servo muito claramente, no cenáculo, quando lavou os pés de seus discípulos213. Resumindo, dentro do contexto da parábola dos servos vigilantes, Jesus faz uma referência velada a si mesmo. Uma vez mais, os servos que haviam esperado seu senhor voltar são elogiados. Os servos cumpriram o que deles era esperado: aguardar a volta de seu senhor. Assim também, a todos os crentes, não apenas aos discípulos de Jesus, é recomendado que permaneçam prontos, atentos e aguardando a volta do seu Senhor. Se estiverem vestidos e prontos para o serviço, com suas lâmpadas acesas e fulgurantes na noite escura, o Senhor, quando vier, não negará sua recompensa.

212

Jeremias, Parables, p. 54 nº 18, chama Lucas 12.37b de secundário, pré-Lucas. Ele destaca a palavra amen (que Locas usa apenas seis vezes) assim como a redundância semítica de parelthon. Juntamente com Outros estudiosos, ele considera esse versículo um detalhe alegórico, o que pode ser verdade. Não obstante, não existe razão para que sejam questionadas a historicidade e a autenticidade do que foi dito. 213 Jo 13.1-7; também Lc 22.27.

19. O Ladrão Mateus 24.42.44 “Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa. Por isso, ficai também vós apercebidos; porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá”. Lucas 12. 39-40 “Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a que hora havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria arrombar a sua casa. Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá”. No Evangelho de Lucas, a parábola do ladrão vem em seguida à dos servos vigilantes. Por ser tão breve, é considerada, antes, uma declaração em forma de parábola que uma parábola propriamente dita. Enquanto a parábola dos servos vigilantes mostra a promessa se transformando em recompensa, a parábola do ladrão, que vem à noite, constitui uma advertência. A primeira descreve um acontecimento jubiloso; a outra, um desastre iminente. O ensino dessa declaração em forma de parábola é muito simples. Enquanto o dono da casa está dormindo, ladrões chegam à sua moradia. Cavam um buraco na parede de tijolos, arrombam a casa, e roubam todos os bens do proprietário. Se o dono da casa soubesse a que horas viriam os ladrões, vigiaria para impedir o roubo. Esta declaração em forma de parábola se baseia em fatos da vida real, pois assaltos acontecem freqüentemente, especialmente em tempos de recessão econômica. A imagem do ladrão, à noite, se aplica ao dia da vinda do Senhor, nas Epístolas e no Apocalipse. Paulo usa a imagem para o retorno do Senhor: “Vós mesmos estais inteirados com precisão do que o dia do Senhor vem como ladrão de noite. Quando andarem dizendo: Paz e seprança2 eis que lhes sobrevirá repentina destruição, como vem à dor do parto à que está para dar à luz; e de nenhum modo escaparão. Mas, vós, irmãos, não estais em trevas, para que esse dia como ladrão vos apanhe de surpresa”. (1 Ts 5.2-4) Pedro pinta um quadro semelhante: “Virá, entretanto, como ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfarão abrasados: também a terra e as obras que nela existem serão atingidas.” (2 Pe 3.10). No livro do Apocalipse, João registra a carta endereçada à igreja em Sardes. O Senhor elevado e exaltado diz: “Lembra-te, pois, de como tens recebido e ouvido, guarda-o, e arrepende-te. Porquanto, se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que

hora virei contra ti” (Ap 3.3). E, outra vez, diz: (“Eis que venho como vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para não andar nu, e não se veja a sua vergonha”). (Ap 16.15)214 Jesus profetiza sua própria volta no contexto de seu sermão a respeito dos últimos acontecimentos. Ele instrui seus seguidores a que estejam atentos para o imprevisto de seu retorno. Ele compara o tempo de sua vinda aos dias de Noé. “Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos. Assim será também a vinda do Filho do homem”. (Mt 24.38,39) Na parábola do ladrão, à noite, Jesus repete a mesma advertência: “Por isso ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá215”. Jesus está advertindo seus próprios discípulos a respeito de um perigo iminente? Esperamos que os seguidores de Jesus aguardem o tempo de sua volta como uma ocasião jubilosa. Aqueles que ouvem com atenção e obediência as palavras de Jesus estarão preparados, quando ele vier. Para eles seu retorno será um acontecimento feliz. Mas, para todos, mesmo para os discípulos de Jesus, é colocada uma palavra de advertência contra a apostasia. Afinal, entre os doze discípulos estavam Pedro, que negou seu Senhor, e Judas, que o traiu216. A parábola é dirigida àqueles que esperam o retorno glorioso de Jesus e àqueles que estão ignorando as instruções de Jesus. Enquanto a imagem da vinda do Filho do homem evoca alegre expectativa 214

O Evangelho de Tomé registra a parábola do ladrão em duas de suas citações, mas não tem aplicação cristológica: “Portanto eu vos digo: Se o dono da casa sabe quando vem o ladrão ele estará vigiando antes que venha (e) não deixará que arrombe a casa de seu reino para levar os seus bens. Mas vós deveis estar alertas contra o mundo; cingi vossos lombos com grande poder, para que nenhum ladrão possa achar um modo de chegar até vós” (Citação 21b). “Jesus disse: Bemaventurado é o homem que sabe em que parte (da noite) virá o ladrão, para que se levante e ajunte seu.., e cinja seu lombo antes que venham” (citação 103). 215 Alguns estudiosos afirmam que a expressão ‘Filho do homem” não pode ser original, mas que deve ter sido introduzida pela igreja cristã primitiva. Jeremias, Parables, pp. 50,51; Manek, Frucht, p. 66; 6. Schneider, Parusiegleichnisse im Lukas-Evangelium (Stuttgart: 1975), p. 22. Entretanto, “a predição da vinda do Filho do homem é uma parte consistente do ensino de Jesus...” Marshall, Luke, p. 534. Veja-se R. Maddox, “The Function of the Son of Man”, NTS 15(1968-9); 51. 216 Jeremias, Parables, p. 50, é de opinião que os discípulos não precisavam ser advertidos. A parábola, então, se aplica à igreja primitiva, para advertir o povo quanto ao julgamento que está para vir. Marshall, em Eschatology, p. 35, questiona seriamente esta opinião.

entre os fiéis, a imagem de um ladrão à espreita cria ansiedade e tristeza naqueles que não estão preparados. O que a parábola ensina? Nos dias que precedem a vinda do Senhor, muitas pessoas vivem ignorando totalmente o julgamento iminente. Sua vinda acontecerá sem aviso. O inesperado do acontecimento para os que não estão atentos pode ser comparado ao momento imprevisto quando um ladrão chega para arrombar e roubar. Aqueles que se preparam e estão prontos não serão surpreendidos quando o tempo do retorno de Jesus chegar.

20. O Servo Fiel e Prudente Mateus 24.45-51 “Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem o senhor confiou os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim. Em verdade vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas, se aquele servo, sendo mau, disser consigo mesmo: Meu senhor demora-se, e passar a espancar os seus companheiros e a comer e beber com ébrios, virá o senhor daquele servo em dia em que não o espera e em hora que não sabe e castigálo-á, lançando-lhe a sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes”. Lucas 12.41-46 “Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim. Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas, se aquele servo disser consigo mesmo: Meu senhor tarda em vir, e passar a espancar os criados e as criadas, a comer, a beber e a embriagar-se, virá o senhor daquele servo, em dia em que não o espera e em hora que não sabe, e castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os infiéis”. A parábola do servo fiel está entre aquelas nas quais Jesus ensina a necessidade da vigilância. Além de enfatizar a vigilância, Jesus, também, reforça a característica da fidelidade. Em resumo, a parábola se refere a um servo que recebe a responsabilidade de administrar a casa, na ausência de seu senhor. Se ele provar ser fiel e prudente, o senhor o recompensará generosamente ao regressar. Mas, se for preguiçoso, indigno e descuidado, o senhor voltará quando não estiver sendo esperado e lhe infligirá severa punição. O Servo Fiel Mateus e Lucas, ambos, mostram que Jesus se dirigia a seus discípulos (Mt 24.1; Lc 12.22). Quando Jesus estava ensinando seus discípulos, foi interrompido por Pedro que perguntou se a parábola se referia a eles ou a todos217. Isto é, o ensino de Jesus se aplicava especificamente a seus discípulos? Ou era para ser aplicado também aos outros? Foi Pedro, o porta-voz dos doze, quem fez a pergunta. Ele estava sempre pronto a indagar (Mt 15.15). Perguntou Pedro: 217

Jeremias, Parables, p. 99, considera Lc 12.41 como uma “situação criada”, embora seu “uso lingüístico mostre que se achava na fonte de Locas”. No entanto, por causa da referência aos discípulos (Lc 12.22) como os que ouviam diretamente a Jesus, não é possível rejeitar o caráter histórico da pergunta de Pedro (Lc 12.41).

“Senhor, proferes esta parábola218 para nós ou também para todos?” Jesus respondeu a Pedro contando uma outra parábola: a história a respeito de um servo fiel. O senhor de um determinado número de servos tinha que deixar sua casa por algum tempo. Fez os planos necessários para sua viagem e chamou um dos servos que, na sua opinião, seria capaz de administrar o dia-a-dia da casa219. Confiou-lhe a responsabilidade de cuidar dos outros conservos, de alimentá-los no devido tempo, e de provar sua fidelidade e prudência, durante a ausência de seu senhor. Se encontrar tudo em ordem quando voltar, o senhor tem a intenção de promover o servo passando-o a administrador de todos os seus bens. O servo demonstra duas características indispensáveis: fidelidade e prudência. Ele é digno de confiança porque quando diz sim, é sim, e quando diz não, é não. Seus conservos sabem que ele não falta à sua palavra. Podem confiar nele. Ele, também, é perspicaz, pois sabe antecipar os problemas, e está sempre preparado para enfrentá-los e resolvê-los, efetivamente. Com aparente facilidade, tem sempre o controle da situação. Quando o senhor volta de sua viagem, inspeciona tudo e encontra tudo em ordem. Fica contente com as referências elogiosas feitas a seu servo. Como recompensa à sua fidelidade, o senhor promove o servo à posição de administrador de todos os seus bens. Ele sabe, agora, que o servo passou no teste, administrando sua casa com eficiência. Como prêmio, coloca-o na segunda posição de comando. O Servo Infiel Quando um senhor coloca alguém como responsável por sua casa, ele escolhe um servo em quem confia e de quem espera boa conduta. Quer deixar sua casa em mãos seguras. Mas, nem sempre a natureza humana é confiável, e o senhor pode cometer um grande erro quando faz sua escolha por determinado servo, em quem pensa poder confiar. Em outras palavras, o senhor nunca pode ter a certeza absoluta de que o servo corresponderá às suas expectativas. O servo pode aparentar confiabilidade, antes de ser escolhido, mas, quando seu mestre parte, ele revela seu verdadeiro caráter. É ardiloso, cruel e descontrolado. Com base em outras viagens feitas 218

A expressão “esta parábola” não deve ser tomada literalmente como se referindo apenas parábola do ladrão. Tomada mais amplamente, ela inclui a parábola do porteiro. Esse uso abrangente da palavra parábola é encontrado também em Lc 15.3 que inclui as histórias da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo. 219 O termo oikonomos pode significar: a) um escravo de confiança a quem se dá autoridade na casa de seu senhor (Lc 12.42); b) um oficial público coletor de rendas (Rm 16.23); c) um administrador (Lc 16.1), SB, 11:219.

pelo seu senhor, o servo calcula que ele vai demorar bastante. Na ausência do dono, o servo maltrata os outros servos, seus companheiros. Ele se sente seguro ao fazê-lo, pensando que o dia da volta de seu senhor está distante. Passa o tempo na companhia de bêbados, com os quais se entrega a excessos de comida e bebida220. Seu senhor se apressa a voltar para casa, e aparece súbita e inesperadamente. O que fará o senhor com o servo que foi irresponsável e infiel? Ouve as histórias sobre seu comportamento, suas farras e sua indolência. Nada lhe escapa. Ele toma conhecimento de tudo. O senhor agora é o juiz e o executor da lei. Ele deve pronunciar o veredicto e declarar culpado o ofensor. Então, administrará a punição apropriada. Jesus disse: “E castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 24.51). Há uma versão em inglês que diz: “Cortá-lo-á em pedaços.” Este texto é de difícil interpretação, pois se a frase for tomada literalmente, como poderá ser lançado com os hipócritas? É possível que o texto apresente uma expressão idiomática, que deva ser entendida metaforicamente221, como, por exemplo, a expressão “esfolar vivo Os escritos de Cunrã lançam nova luz sobre o texto222. A expressão “cortá-lo-á em pedaços” é uma tradução mais literal de “cortá-lo fora”, tirá-lo do meio de seu povo. Desse modo, está em harmonia com o ensinamento do Salmo 37, que afirma que o justo herdará a terra, mas o ímpio será exterminado223. O servo que falhou diante de seu senhor recebe o oposto da recompensa recebida pelo servo responsável e fiel. Ele é separado, lançado fora e extirpado de seu povo. Interpretação O relato da parábola é idêntico nos Evangelhos de Mateus e Lucas, exceto na escolha das palavras da narrativa. Por exemplo, o servo fiel e prudente no Evangelho de Mateus é um mordomo fiel e prudente no Evangelho de Lucas; embora Lucas se refira a ele como “servo” no restante da parábola. Mateus escreve que o servo mau passa a espancar os seus companheiros, mas Lucas diz que ele passa 220

Na parábola do servo fiel e do infiel ecoa a história de Aicão. Veja-se R. H. Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha (Oxford: Clarendon Press, 1977), 2: 715. 221 Bauer, et al, Lexicon, p. 200, admite o significado de “punir com a maior severidade”. 222 O. Betz, em “The Dichotomized Servant and the End of Judas Iscariot”, RQ 5(1964): 46, se refere a 1QS2:16,17: “Deus ‘separará’ o hipócrita pela maldade, de modo que será extirpado do meio de todos os filhos da Luz; ... ele terá a parte que lhe cabe no meio daqueles excomungados para sempre.” O verbo dichotomein e a frase tithenai meros tinos são hapax legomena, no Novo Testamento, são, portanto, passíveis de várias interpretações. Consulte ieremias, Parables, p. 57 nº 30, 31. 223 Salmos 37.9a, 22b, 34b, 38b.

a espancar os criados e as criadas. Este servo terá seu lugar com os hipócritas, de acordo com Mateus, e um lugar com os infiéis, segundo Lucas224. Algumas outras pequenas diferenças podem, ainda, ser apontadas, mas que importância têm? Naturalmente, o apóstolo Mateus, guiado pelo Espírito Santo, se recordou de tudo que Jesus lhe havia dito (Jo 14.26). Lucas confiou nas informações que lhe foram dadas pelas testemunhas oculares e pelos ministros da Palavra (Lc 1.2)225. Os dois escritores foram inspirados pelo Espírito Santo, quando escreveram seus Evangelhos, embora cada um reflita seu próprio estilo e propósito. Como judeu, Mateus procurou trazer o evangelho aos judeus seus contemporâneos. Lucas, helenista, escreveu seu Evangelho para aqueles que, naqueles dias, falavam grego. Ao usar o termo mordomo, no começo de sua parábola, Lucas quer chamar a atenção para o chefe dos servos que é o responsável pela casa de seu senhor226, com seus criados e criadas. Ao usar a palavra servo, em todo o restante da parábola, Lucas mostra, claramente, que vê os responsáveis pela administração de modo muito semelhante ao de Mateus. O uso de palavras diferentes, portanto, pode ser atribuído ao estilo característico de cada escritor. Isso é especialmente verdade com respeito ao uso da palavra hipócritas que ocorre mais freqüentemente no Evangelho de Mateus227. Lucas, por outro lado, usa o termo infiéis, que no contexto não difere em sentido da palavra usada por Mateus, pois um hipócrita é, de fato, um infiel228. A parábola pretende chamar a atenção para a responsabilidade que recebem os seguidores de Jesus. Alguns desses seguidores recebem privilégios maiores que outros, mas são investidos de responsabilidades, também maiores. Porque cada um tem o seu próprio dever no serviço do Senhor229; ninguém está excluído ou isento. A parábola, na seqüência de Mateus, serve de introdução à parábola das dez virgens e à dos talentos. Para Jesus todos são 224

O uso de amem, característico de Jesus, em Mateus 24.47, é alethos, em Lc 12.44. 225 Os dois evangelistas podem ter tido acesso a uma fonte comum, quando escreveram seus Evangelhos. É possível, também, que Locas tenha consultado o Evangelho de Mateus, quando escreveu o seu. W. C. Allen, The Gospel According to St. Matthew (ICC) (Edinburgh: T&T Clark, 1922), p. 262. 226 Michel, TDNT, V:150. 227 A palavra é usada treze vezes no Evangelho de Mateus (6:2,5,16; 7.5; 15.7; 22.18; 23.13,15,23,25,27,29; e 24.51), uma vez em Marcos (7.6), e três vezes no Evangelho de Lucas (6.42; 12.56; e 13.15). 228 Plummer, Luke, p. 333. 229 Michaelis, Gleichnisse, p. 74 e Jeremias, Parables, p. 56, por causa da pergunta de Pedro (Lc 12.41), aplicam a parábola de Lucas aos apóstolos. Mas, esta interpretação significaria que a parábola tem pouco ou nenhum significado em relação aos cristãos.

responsáveis. Jesus é representado pelo senhor da casa. Ele parte, com a promessa de seu retorno. Na ausência de Jesus, seus seguidores recebem privilégios e responsabilidades. Se o crente for fiel e prudente no desempenho de seus deveres, Jesus o recompensará abundantemente, em sua volta. Mas, se for infiel e agir irresponsavelmente, a volta de Jesus será para ele um acontecimento inesperado, do qual resultará sua completa separação do povo de Deus e conseqüente punição. Enquanto Mateus conclui a parábola com a expressão conhecida: “ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 24.51)230, Lucas termina a seqüência das três parábolas sobre a vigilância (o porteiro, o ladrão e o servo fiel e prudente) com palavras conclusivas de Jesus, registradas apenas por Lucas: “Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação, levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lc 12.47, 48).

230

A expressão é registrada seis vezes por Mateus e uma vez por Lucas (Mt 8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28).

21. As Dez Virgens Mateus 25.1-13 “Então, o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo. Cinco dentre elas eram néscias, e cinco, prudentes. As néscias, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo; no entanto, as prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas vasilhas. E, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram. Mas, à meia-noite, ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí ao seu encontro! Então, se levantaram todas aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas. E as néscias disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se apagando. Mas as prudentes responderam: Não, para que não nos falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o vendem e comprai-o. E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta. Mais tarde, chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor, senhor, abre-nos a porta! Mas ele respondeu: Em verdade vos digo que não vos conheço. Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora”. Apenas Mateus registrou a parábola das dez virgens. Ele, habilmente, colocou a parábola após o sermão de Jesus sobre o final dos tempos. Na última parte desse sermão, Jesus fala da divisão entre os que são eleitos, atentos e fiéis, e aqueles que não o são. “Então dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra” (Mt 24.40,41). O servo fiel e prudente será responsável por todos os bens de seu senhor, mas o servo infiel terá seu lugar com os hipócritas (Mt 24.45-5 1). Na parábola das dez virgens, cincos entram na casa do noivo; as outras cinco encontram fechada a porta. Este tema da separação entre os bons e os maus continua na parábola dos talentos (Mt 25.14-30), e na descrição de um pastor separando as ovelhas dos cabritos (Mt 25.31-33). As Bodas Jesus conta a história de dez damas de honra que, de acordo com o costume nupcial do lugar, naquela época, se preparavam para aguardar a chegada do noivo. É uma história interessante que tem

como objetivo ensinar a lição da necessidade de se estar preparado. Embora as informações a respeito sejam variadas e imprecisas, podemos supor que nos dias de Jesus o casamento acontecia em idade precoce. Porque a maturidade sexual se dá na adolescência, em Israel os casamentos eram contratados nos seus primeiros anos231. Era costume a noiva se cercar de dez damas de honra232, escolhidas entre suas melhores amigas e da mesma idade que ela. A sentença introdutória: “Então o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo”, descreve a cena233. Isto é, dez moças adolescentes tomaram suas lâmpadas e foram para a casa da noiva com o propósito de prepará-la para o encontro com o noivo. A sentença introdutória, naturalmente, não se refere ao encontro acontecido entre o noivo e as dez virgens, pois este acontece mais tarde, no desenrolar da história (Mt 25.10). Não devemos imaginar essas jovens sentadas em algum lugar, na estrada, no meio da noite, vencidas pelo sono enquanto o óleo de suas lâmpadas se acaba e estas se apagam. É melhor vê-las ocupadas, na casa da noiva, enfeitando-a e cuidando dos últimos preparativos. Não podemos afirmar com certeza que o texto também faz alusão à noiva, como algumas versões bíblicas indicam em notas de rodapé234. É fato, no entanto, que o objetivo da parábola não se refere à noiva. Ela focaliza as damas de honra, e, especialmente, as cinco néscias235. As dez moças deviam acompanhar a noiva à casa do noivo, ou de seus pais, onde, de acordo com o costume, acontecia o casamento236. Cinco das moças eram displicentes, cinco eram prudentes (ou previdentes). As displicentes tinham apanhado suas lâmpadas, mas deixaram de levar o óleo. Que tipo de lâmpadas eram essas que precisavam de freqüente reabastecimento para continuar brilhando? As pequenas lamparinas usadas em casa não seriam apropriadas para uma procissão ao ar livre, porque o vento apagaria sua chama. As 231

P. Trutza, “Marriage”, ZPEB, pp. 4, 96, indica que “os rabinos fixavam doze anos, como a idade mínima para as meninas se casarem e treze para os meninos. 232 “As damas de honra cercavam a noiva, toda de branco, e eram, usualmente, dez.” Daniel. Rops, Daily Life in Palestina of the Time of Christ (London: 1962), p. 124. Do mesmo modo J. A. Findlay, Jesus and his parables (London: Epsworth Press, 1951), pp. 111-112, se refere às dez damas vistas por ele numa cidade da Galiléia, a caminho da casa da noiva, para fazer-lhe companhia enquanto esperava a chegada do noivo. 233 Jeremias, “Lampades:, ZNW 55 (1964): 199. 234 A evidência textual para a inclusão das palavras, “e a noiva”, no final do primeiro versículo, vem de uma combinação de testemunhos ocidentais e cesarianos. Metzger, Textual Commentary’, p. 62. 235 Oesterley, Parables, p. 136. 236 Jeremias, TDNT, IV:1100.

Lâmpadas do cortejo das bodas eram tochas. Consistiam de uma longa vara com trapos encharcados de óleo no topo. Quando acesos esses archotes queimavam com grande brilho, iluminando o cortejo festivo, em sua caminhada até à casa do noivo. Entretanto, por causa da brilhante chama ardente, a vasilha de cobre, que continha o óleo, logo se esvaziava. De quinze em quinze minutos os trapos deviam ser novamente encharcados, para conservar a tocha ardendo237. Aquelas que levavam as tochas deviam, pois, ter à mão um suprimento de óleo suficiente para mantê-las acesas, especialmente se fosse esperado que as damas de honra apresentassem sua dança, à luz das tochas, na chegada. As cinco moças displicentes tinham chegado à casa da noivas completamente despreparadas; foram negligentes e não Levaram consigo o óleo extra. Porque não precisaram de suas tochas até ao começo do cortejo, elas não tiveram, infelizmente, consciência de seu descuido. O noivo estava atrasado para seu encontro com a noiva. A demora pode ter sido causada pelos acertos relativos à questão do dote. Este antigo costume, mencionado freqüentemente nas Escrituras238, consiste na dádiva de bens da parte da família do noivo para a família da noiva. A conversa a respeito do dote podia tomar tempo considerável e levar a discussões prolongadas239. Quando tudo estava devidamente combinado, e as partes de pleno acordo, a festa de casamento tinha início. O noivo não podia ir ao encontro da noiva antes que o dote fosse pago e o contrato de casamento assinado240. Enquanto esperavam, as damas de honra ficaram sonolentas e acabaram adormecendo. Tanto as prudentes quanto as néscias dormiram. O tempo passou rapidamente. Mas, de repente, à meianoite, ouviu-se um grito: “Eis o noivo! Saí ao seu encontro”. O noivo e seus acompanhantes se aproximavam alegremente da casa da noiva. Dentro, as damas de honra acordaram rapidamente, levantaram-se, se retocaram e puseram em ordem as suas lâmpadas241. Todas as dez tinham suas tochas ardendo brilhantemente, mas cinco delas Jeremias, “Lampades”, p. 198. Também SB, I, 969 se refere a esta pratica em Israel, quando a noiva é trazida da casa de seu pai à de seu marido, durante a noite. Ela é precedida por um cortejo que carrega dez tochas feitas de varas às quais são atados recipientes de bronze, onde trapos ensopados de óleo são acesos e usados para iluminar o caminho. 238 Gn 34.12; Ëx 22.16; 1 Sm 18.25. 239 Daniel-Rops, Daily Life, p. 122. 240 Para um estudo mais pormenorizado, consulte-se H. Granqvist, Marriage Conditions in a Palestinian Village (Helsingfors: 1931), pp. 132-55. “Se o preço pela noiva já tivesse sido pago, as bodas podiam se realizar a qualquer tempo; podia acontecer que o fechamento do contrato fosse adiado até ao dia do casamento, mas, em qualquer caso, o noivo não podia levar a noiva antes que tudo estivesse estabelecido”, p. 155. 241 No Novo Testamento, o sentido de “pôr em ordem, preparar”, dado a kosmeo, ocorre somente em Mt 25.7. H. Sasse, TDNT, III: 867. 237

perceberam que sem óleo extra suas tochas estariam completamente apagadas antes que o cortejo começasse. Tentaram contar às outras o seu problema. Disseram: “Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se apagando”. Mas as cinco moças, que tinham levado consigo as vasilhas de óleo, sabiam que a cada quinze minutos teriam que reabastecer suas próprias tochas, e mantê-las acesas durante todo o cortejo, bem como durante a dança à luz das tochas, ao chegarem. O bom senso lhes dizia que o óleo que traziam consigo seria suficiente para cinco tochas, mas não para dez. Delicadamente se recusaram a repartir o óleo. Aconselharam as moças a irem aos que o vendiam para comprá-lo. As cinco moças que tinham passado o tempo esperando e dormindo tinham, agora, que correr até a um vendedor, acordá-lo e comprar o óleo necessário. Nesse intervalo, o noivo chegou e o cortejo começou. Todos foram à casa do noivo para participar da festa. A entrada do salão das bodas foi fechada, na casa do noivo, e ninguém mais, que não tivesse feito parte do cortejo, tinha permissão para entrar. Este era um procedimento costumeiro entre os ricos daqueles dias242. A parábola termina com a cena das cinco moças que encontraram a porta fechada, pedindo: “Senhor, senhor, abre-nos a porta.” Seu insistente chamado trouxe à porta o noivo, que disse às moças que não tinha nada a ver com elas243. Elas estavam muito atrasadas. O Significado A conclusão que Jesus dá à parábola é simples e direta: “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora”. Ele, evidentemente, se refere a si mesmo, e nessa parábola ensina a respeito de seu próprio retorno. Ele é o noivo, é aquele que vem. Repetidamente, durante seu ministério, ele fez referências ao noivo. À questão sobre por que seus discípulos não jejuavam, Jesus respondeu: “Podem acaso estar tristes os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar” (Mt 9.15). Além disso, o final da parábola das dez virgens é um claro eco do ensino de Jesus, registrado em Mt 7.2123244: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: “Senhor, 242

Oesterley, Parables, p. 135. Na literatura rabínica a expressão: “não vos conheço” pode ser usada por um mestre para suspender um aluno durante uma semana, SB, 1:469; IV:I, 293. 244 Marshall, em Eschatology and the Parables, p. 39, destaca que, com respeito a Mi 7.21-23 e Mi 25.11,12, “é difícil não ouvir neles o tom do Filho do Homem”. 243

Senhor! Porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade”. O ensinamento óbvio é que Jesus exclui do reino dos céus todo aquele que deixa de fazer a vontade de Deus, o Pai. No dia da volta de Jesus, eles podem chamá-lo pelo nome e mostrar suas obras religiosas, mas porque não fizeram a vontade do Pai não terão parte no reino. Cinco das virgens da parábola são chamadas de prudentes. São aquelas que estavam preparadas. São sábias porque estavam completamente preparadas para a situação e seguiram as instruções usuais cuidadosamente245. As Escrituras ensinam que uma pessoa prudente tem verdadeiro discernimento da vontade de Deus. As cinco moças chamadas de néscias (= displicentes) e que são o centro da parábola não parecem culpadas de nenhum mal. Tinham a melhor das intenções, e desejavam à noiva e ao noivo muitos anos de felicidades. Mas não fizeram a vontade dos noivos por causa de sua negligência ao esquecer o óleo necessário. “Acaso se esquece a virgem dos seus adornos, ou a noiva do seu cinto?” (Jr 2.32). A resposta é, naturalmente, que não. No entanto, essas cinco moças se esqueceram de se preparar adequadamente para a tarefa que lhes fora determinada. Chegaram despreparadas e por isso não foram recebidas no salão das bodas246. Nada na parábola indica que se esperava que as dez moças permanecessem acordadas. As prudentes, assim como as tolas, caíram no sono enquanto esperavam. A vigilância não é, portanto, a característica marcante ensinada nesta parábola. Antes, o que é predominante é a disposição de estar preparado. Como o noivo, na cultura e nos dias de Jesus, podia vir a qualquer hora da noite, assim Jesus virá, subitamente, no dia de sua volta. Interpretações A 245

parábola

das

dez

virgens

tem

sido

interpretada

G. Bertram, TDNT, IX:234. O rabino Johanan ben Zakkai, contemporâneo dos apóstolos, contou a parábola de um rei que convidou seus servos para um banquete, sem marcar a data. Os servos prudentes se vestiram para a ocasião e ficaram à espera à porta do palácio. Os servos displicentes continuaram trabalhando e tiveram que ir ao banquete com as roupas sujas. O rei se alegrou com os prudentes, mas se zangou com os servos descuidados. Shabbath 153a, Moed I, The Babylonian Talmud, (London: Soncino Presa, 1938), p. 781. 246

alegoricamente, de inúmeras maneiras, desde a igreja primitiva até aos nossos dias. Em tais interpretações, Jesus é o noivo e as dez virgens, a igreja. A igreja se constitui de bons e maus, os eleitos e os rejeitados, os sábios e os displicentes. As lâmpadas que eles carregam são as boas obras, porque os cristãos são exortados a deixarem suas obras brilhar diante dos homens. O óleo é o Espírito Santo, pois quanto Samuel ungiu Davi com óleo, o Espírito Santo desceu sobre ele. Os mercadores de óleo são Moisés e os profetas. E o alarme: “Eis o noivo!” É o chamado da trombeta de Deus, quando da volta de Cristo. Este tipo de interpretação leva à confusão e, freqüentemente, termina em absurdos. Alguns intérpretes entendem que o óleo significa alegria ou amor, enquanto outros o vêem como boas obras ou como a ajuda prestada aos necessitados. Outros, ainda, consideram o óleo como sendo a palavra de ensino247. Além disso, a falta de caridade na atitude das virgens prudentes, em relação às cinco virgens em apuros, poderia ser questionada. A resposta negativa — “Não vos conheço” — exigiria, também, uma avaliação crítica. Interpretações alegóricas e o questionamento detalhado de partes da parábola, no entanto, vão contra o espírito do ensino de Jesus248. Na parábola das dez virgens, o intérprete não deve perder de vista a floresta por causa das proverbiais árvores. Deve buscar o sentido principal da parábola. Quando o profeta Natã procurou o rei Davi e lhe contou a história de um homem rico que tomou a cordeirinha que pertencia a um homem pobre, Davi reagiu imediatamente e quis punir a principal figura da história — o rico. Então, Natã dirigiu-se a Davi, e disse: “Tu és o homem” (2 Sm 12.1-10). Natã transmitiu a mensagem principal da parábola com grande eficiência, pois provocou uma resposta imediata de Davi. Se, por outro lado, a parábola for interpretada alegoricamente, perde seu impacto. Então o homem rico é Davi e o pobre é Urias; a cordeirinha se transforma em Bate-Seba, mas o viajante em visita, de certo modo, não cabe na alegoria. Resumindo, interpretar alegoricamente os detalhes de uma parábola desvia a história de sua direção e, muitas vezes, resulta em disparates. A mensagem central da parábola é dirigida aos seguidores de Jesus. Os que são prudentes e estão constantemente buscando cumprir a vontade de Deus são os que fervorosamente oram: “Maranata”, “Vem, Senhor Jesus”. Mas os displicentes parecem não prestar atenção à volta iminente do Senhor. A parábola é dirigida a Tomás de Aquino reuniu numerosos exemplos provindos de obras dos pais da igreja. Commentary on the Four Gospels, 1, ST. Matthew, (Oxford: p. 1842), pp. 84450. 248 Jeremias, em Parables, p. 51, escreve que “Mateus viu na parábola uma alegoria a Parousia de Cristo”. Entretanto, como Michaelis, em Gleichnisse, p. 94, observa corretamente: a parábola tem sido sempre uma parábola sobre a volta de Cristo. Não há razão para considerá-la uma alegoria. 247

eles para suscitar de suas bocas as palavras: Quão tolo se pode ser! A parábola das dez virgens deve ser vista no amplo contexto dos ensinamentos de Jesus a respeito de sua volta. A conclusão: “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora” (Mt 25.13) é uma repetição dos versículos precedentes: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe” (Mt 24.36), e, “Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor” (Mt 24.42). É Jesus quem profere seu familiar: “Em verdade vos digo” (Mt 25.12), indicando assim que fala a respeito de sua própria volta. São palavras de Jesus, não de um noivo adolescente. Isto é, por meio da parábola, Jesus ensina claramente a seus seguidores que devem estar preparados para o sete retomo. Os que não estiverem preparados serão excluídos, para sempre, do reino, quando Jesus voltar. Esses são os que ouvirão Jesus dizer: “Em verdade vos digo que não vos conheço”. São os insensatos que não têm lugar, em seu estilo de vida249, para os pensamentos a respeito da volta de Cristo. Para eles, o dia do Senhor virá inesperadamente, e estarão completamente despreparados250. Então será tarde demais para qualquer mudança. No contexto em que Jesus contou esta parábola, o tema da volta (vinda) do senhor (noivo) predomina. O senhor do servo, a quem foi dada autoridade, volta no tempo apropriado; o noivo vem à meianoite; e na parábola dos talentos, o senhor volta depois de longo tempo (Mt 25.19). Dentro desta composição, a parábola das dez virgens adquire sua verdadeira dimensão. Na parábola do servo investido de autoridade, ele é caracterizado como fiel e prudente; na parábola seguinte, cinco virgens são descritas como prudentes; e na parábola dos talentos, dois dos servos são chamados de bons e fiéis. Sem dúvida, pois, a primeira parábola ensina fidelidade e sabedoria; a segunda sabedoria; e a terceira fidelidade251.

249 250 251

Schippers, Gelijkenissen, p. 114. R. A. Batey, New Testament Nuptial Imagery, (Leiden: Brill, 1971), p. 47. Lenski, St. Matthew’s Gospel, p. 961.

22. Os Talentos Mateus 25.14-30 “Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas o que recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles. Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. E, aproximando-se também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, dois talentos me confiaste; aqui tens outros dois que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste, receoso, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez. Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. E o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes. A parábola dos talentos ensina que os servos do Senhor devem ser fiéis, administrando pronta e eficientemente o que lhes foi

confiado, até ao dia do ajuste de contas. Como se espera que as noivas aguardem a chegada do noivo, assim também é esperado que os servos aguardem a volta de seu senhor. Embora a parábola das virgens não mencione nada a respeito de algum trabalho feito durante sua vigília noturna, a parábola dos talentos ensina que os servos devem se ocupar durante a ausência de seu senhor252. As duas parábolas mostram que tanto as mulheres como os homens devem estar alerta enquanto esperam a volta do Senhor. De acordo com Mateus, Jesus dirigiu-se aos seus discípulos, ao falar sobre o final dos tempos (Capítulo 24), e prosseguiu com algumas parábolas relacionadas com a sua volta. Tudo isso aconteceu dois ou três dias antes da celebração da Páscoa (Mt 26.2). Por sua vez, Lucas registra no capítulo 19.12-27, que Jesus ensinou a parábola das dez minas depois de ter deixado Jericó, e ao se aproximar de Jerusalém, pouco antes ou no próprio Domingo de Ramos. Essa parábola se assemelha à dos talentos, embora as duas não sejam idênticas253. Mas com base na estrutura e no assentamento histórico dado a elas pelos evangelistas, além da própria finalidade das parábolas, crê que Jesus as ensinou em duas diferentes ocasiões254. A parábola dos talentos é a mais longa registrada no Evangelho de Mateus. Relata de maneira pormenorizada a conversa havida entre o senhor e seus servos. A conclusão, um tanto longa, liga-a as outras parábolas. O Dinheiro Confiado A palavra talento, como a usamos hoje, se refere a um dom natural. Assim, se uma pessoa possui talento artístico e é criativa, geralmente é muito admirada. Mas, no Novo Testamento, talento se refere a uma moeda de uso corrente na época, e representa determinado valor em dinheiro. Nesta parábola devemos pensar em 252

Plummer, St. Matthew, p. 347. Muitos comentaristas pensam que Jesus, ao ensinar, usou mais que uma vez a idéia básica, expressa nas duas parábolas, Morris, Luke, p. 273. Veja-se, também, Geldenhuys, Luke, pp. 476-77; Plumer, St. Luke, p. 437; 1h. Zahn, Das Evangelium des Lucas (Leipszig: A. Deichert, 1913), p. 628, nº 23; Lenski, Matthew’s Gospel, p. 971. Outros, entre eles, Manson, Sayings, p. 313, vêem duas versões de uma parábola original. Jeremias, Parables, p. 58, afirma que a parábola dos talentos aparece em três versões: Mt 25.14-30; Lc 19.12-27; e no trecho 18 do Evangelho dos Nazarenos. Na verdade, entretanto, é questionável afirmar que três versões derivam de uma parábola original especialmente quando o trecho do Evangelho Nazareno parece se basear no relato de Mateus. De fato, P. Vielhauer conclui “que o conteúdo (do Evangelho dos Nazarenos) tinha semelhança grosseira com o de Mateus, e conseqüentemente era (o Evangelho dos Nazarenos) apenas uma forma secundária de Mateus”. New Testament Apocrypha, cd. E. Hennecke e W. Schneemelcher (Philadelphia: Westminster Press, 1963), I:140. 254 J. Ellul, em “du texte au sermon (18). L.es talents. Matthieu 25/13-30”, Etudes Théologiques et Religieuses 48 (1973): 125-38, questiona se é possível descobrir a forma mais antiga da parábola. A mensagem da parábola é por demais complexa. 253

termos de um salário anual recebido por um trabalhador. As quantias que o senhor confiou aos servos eram grandes, mas não exageradamente vultosas. Uma pessoa de posse reuniu seus servos e comunicou-lhes que se ausentaria do país por um longo período de tempo. Ele tratou com seus servos, não em base comercial, mas à maneira oriental, como sócios em uma empreitada255. Sua reserva de caixa importava em oito talentos, que ele confiou a seus três servos. O senhor conhecia seus servos muito bem. Ele tinha aprendido a reconhecer a capacidade deles e sabia que podia confiar-lhes sua riqueza. Esperava que empregassem bem o dinheiro, de modo que, quando voltasse, pudesse recompensá-los por incrementar seus lucros. Assim, deu ao primeiro servo cinco talentos, ao segundo dois, e ao terceiro apenas um talento. Com certeza, contratos foram feitos acertando as condições combinadas entre as partes. O capital, naturalmente, pertencia ao senhor256. Em troca, o senhor poderia recompensar os servos adequadamente, e eles poderiam esperar novas participações na sociedade. O primeiro servo investiu bem os cinco talentos, e logo havia dobrado a quantia. Assim fez, também, o servo que recebera dois talentos. Aquele a quem fora dado um talento, no entanto, teve medo de investir. Talvez se sentisse diminuído pelo fato de ter sido confiada aos outros servos uma quantia maior de dinheiro. Sabia que seu senhor era um homem rigoroso, e que exigiria o lucro. Mas o lucro conseguido com um talento seria pequeno em comparação com o obtido com os cinco talentos, ou mesmo com os dois talentos do outro servo. Então, não fez nada com o dinheiro, apenas o enterrou 257. Assim ficaria em segurança. Por ocasião da volta de seu senhor, poderia devolver-lhe a soma original de um talento. Dois Servos Depois de um longo tempo, o senhor voltou e chamou seus servos para o acerto de contas258. O dia do ajuste chegara. Os livros foram abertos e cada servo prestou contas do dinheiro que lhe havia sido confiado. 255

J. D. M. Derrett, “The Parable of the Talents and Two Logia”, ZNW 56 (1965): 184-95, publicado em Law in the New Testament, pp. 17-31. Veja-se especialmente a p. 18. 256 SB, 1:970. Dos ensinos dos rabinos fica evidente que tanto o capital como o lucro pertenciam ao senhor dos servos. Entretanto, se o servo fosse hebreu, podia acumular o lucro para si mesmo. 257 De acordo com os rabinos, “o dinheiro só pode ser guardado (colocando-o) na terra”, Baba Mezia 42a, Nezikin I, The Babylonian Talmud, 250-51. 258 Mateus 18.23.

O primeiro servo apresentou não apenas os cinco talentos recebidos, mas, também, os outros cinco que havia conseguido. Devolveu a seu senhor o capital e o lucro, totalizando dez talentos. Ele entregou a seu amo uma grande quantia de dinheiro, que provava, sem dúvida, que tinha sido digno da confiança que nele fora depositada. Sem chamar atenção para si mesmo, com simplicidade, fez seu senhor notar os cinco talentos adicionais259. A resposta do senhor foi equivalente à fidelidade do servo. Foi generoso ao exaltá-lo e recompensá-lo. Primeiro exclamou: “Muito bem”, elogiando o excelente desempenho do servo. A seguir, chamou-o de servo “bom e fiel”. E, em terceiro, o colocou como responsável por muitas coisas. Ainda, em quarto lugar, convidou-o a se assentar à sua mesa e a celebrar com ele o resultado obtido 260. Sentar-se à mesa com o senhor implica, obviamente, em igualdade. O segundo servo apresentou-se diante do seu senhor com os dois talentos, bem como com os dois a mais que ganhara no investimento que fizera com o dinheiro. Também este servo não procurou chamar a atenção para si mesmo, mas para os talentos que conseguira. O senhor não foi menos generoso com o segundo servo do que fora com o primeiro. Da mesma maneira, as recompensas foram equivalentes à fidelidade demonstrada. O senhor provou ser muito generoso. Um Servo Quando o terceiro servo se apresentou para prestar contas, a cena mudou. Em vez de devolver o dinheiro que lhe fora confiado, como tinham feito os dois primeiros, o servo começou a fazer um pequeno discurso. Não louvou o senhor pela generosidade demonstrada. Antes, descreveu seu senhor como um homem rigoroso, que ceifava onde não havia semeado, e que recolhia onde não havia espalhado a semente. Porque teve medo de arriscar, tinha cavado um buraco na terra e enterrado ali o dinheiro. Parecia dizer a seu senhor: “Porque o senhor teve tão pouca confiança em mim, entregando-me apenas um talento? O que eu poderia realmente fazer com ele, levando-se em conta que, se tivesse algum lucro, eu pouco veria dele? Por desforra decidi nada fazer com o dinheiro261”. Seu discurso foi caracterizado pela contradição. Ele falhou não 259

À luz de Lv 26.1-13 e Dt 28.1-14, os judeus sabiam que Deus concede recompensa à obediência fiel. Por causa dessas bênçãos, o judeu obediente estaria, econômica e politicamente, sempre em posição elevada. 260 A expressão “entra no gozo” do senhor ê equivalente a “entra no reino” ou “entra na vida”. J. Schneider, TDNT, 11:677. A felicidade ou a alegria fazem pensar em festa, Jeremias, Parables, p. 60, n~ 42; e pode significar um banquete, Smith, Parables, p. 166; G. Dalman, The Words of Jesus (Edinburgh: 1. & 1. Clark, 1902), p. 117. 261 Derrett, Law in The New Testament, p. 26.

entendendo a bondade do senhor, mas vendo-o segundo sua própria natureza invejosa e egoísta. Ele se sentiu diminuído, embora afirmasse que temera fazer qualquer investimento com o dinheiro. Ele não usou o talento de modo lucrativo, mas parecia esperar palavras elogiosas por apenas tê-lo guardado em segurança262. Queria que entendessem que não perdera nada do dinheiro de seu senhor. Explicitamente, disse que o talento pertencia ao seu senhor. Ele o conservara em segurança. Por que o servo não guardou o dinheiro no banco, onde renderia juros? Provavelmente não confiava nos banqueiros inescrupulosos que podiam alterar ou invalidar o combinado263. Talvez, o servo estivesse motivado por um desejo de vingança contra o senhor e, por isso, tivesse decidido não depositar o dinheiro num banco. Embora o investimento envolvesse algum risco, ele sabia que o senhor, ao voltar, poderia recuperar o talento, com lucro264. Ao enterrar o talento privaria o senhor dos juros acumulados. Assim, quando seu senhor voltasse, o servo poderia devolver-lhe o único talento. O Senhor Quando o senhor entregou a soma de oito talentos aos seus três servos, ele mesmo se tornou dependente da honestidade e da lealdade dos servos. Se eles perdessem o dinheiro em transações comerciais, seria um homem arruinado. Compreensivelmente, pareceu bastante satisfeito quando o primeiro e o segundo servos mostraram haver dobrado a quantia confiada a eles. Ele os louvou pela diligência e os recompensou generosamente. A chegada do terceiro servo com o único talento deixou claro ao senhor que ele havia julgado mal o caráter de seu servo, que tinha se equivocado ao depositar confiança nele, e que em vez de recompensá-lo tinha que puni-lo. A resposta do senhor à fraca desculpa do servo para sua indolência foi o oposto da sua resposta aos outros dois servos. Primeiro palavras de louvor não podiam ser pronunciadas. Segundo, o senhor chamou o servo de mau e negligente. Terceiro, criticou-o pela preguiça e falta de lealdade. E quarto, mandou que retirassem o servo de sua presença, para sempre. O servo foi julgado por suas próprias palavras. Sabia que seu senhor esperava que seus servos se esforçassem ao máximo. De fato, 262

Michelis, Gleichnisse, p. 1110. Daniel-Rops, em Palestine, p. 253, cita que os rabinos tentavam estabelecer regras para o procedimento nos negócios, mas que, nem sempre, essas eram observadas. Embora o empréstimo com juros fosse proibido pela lei de Moisés, os rabinos conseguiram burla-la fazendo uma distinção entre empréstimo com juros e usura. A usura era condenada. 264 Bauer, et al., Lexicon, p. 443. 263

o senhor era um homem que queria colher onde não havia semeado e que agarrava a oportunidade quando esta se apresentava. Por estas atitudes, se tornou um homem duro aos olhos do servo indolente. “Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez”, disse o senhor. Mesmo tendo afirmado explicitamente que o talento pertencia ao senhor, o que o servo preguiçoso disse pôs fim à relação senhor-servo265. A sociedade com os outros dois servos continuou, enquanto o terceiro sabia que não era mais um dos sócios. Agora era olhado como um devedor que tinha que pagar juros sobre o dinheiro que tivera nas mãos. Se tivesse entregado o dinheiro aos banqueiros, o senhor o teria exigido com juros. O senhor, então, voltando-se para o servo, procurou recuperar o que, de direito, lhe pertencia, isto é, os lucros esperados. “Ao que não tem, até o que tem lhe será tirado 266”. Assim, todas as propriedades do servo lhe foram tomadas. O servo era inútil para o seu senhor. Foi lançado fora, nas trevas (de acordo com as palavras familiares de Jesus)267, onde “haverá choro e ranger de dentes”. O Significado A parábola dos talentos se insere no conjunto de ensinamentos de Jesus a respeito de sua volta. As damas de honra esperavam o noivo; os servos que receberam dinheiro de seu amo, trabalharam. A parábola ensina que, durante a ausência de Jesus, espera-se que seus seguidores trabalhem diligentemente com os dons a eles confiados, pois serão considerados responsáveis por eles, (na ocasião) de sua volta. Por causa de pronunciamentos tais como “entra no gozo do teu senhor” e “o servo inútil lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes”, Jesus deixa entender que estas não são apenas as palavras do senhor. São suas próprias palavras referindose ao dia do juízo. Quando os discípulos primeiro ouviram a parábola, podem ter pensado que ela se aplicasse não a eles, mas aos seus contemporâneos. Aos judeus tinha sido confiada a verdadeira Palavra de Deus, como Paulo afirmou, anos mais tarde 268. Eles podiam ver o paralelo do relacionamento do senhor com seus servos e de Deus com Israel. Deus dera ao povo judeu a sua Palavra e esperava que eles tornassem sua revelação conhecida em todos os lugares. Mas, nos dias de Jesus, um judeu piedoso podia observar a Lei de Deus cm seus pormenores e, ainda assim, negligenciar ao repartir as riquezas 265

Derrett, Law in the New Testament, p. 28. Mt 25.29, exceto por pequenas variações, é idêntico a Mt 13.12 (e os paralelos, Mc 4.25; Lc 8.18). Também a conclusão da parábola do servo investido de autoridade tem enunciado semelhante, Lc 12.48. Veja-se, também, Lc 19.26. 267 Mt 8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28. 268 Rm 3.2. Em sua Epístola Pastoral a Timóteo, Paulo o exorta a guardar o que lhe fora confiado. 1 Tm 6.20; 2 Tm 1.14. 266

da revelação de Deus. Os discípulos de Jesus talvez tenham visto os fariseus defensores da lei e os mestres da lei personificados no servo que enterrou o único talento que seu mestre lhe havia dado 269. Aos líderes religiosos de Israel tinha sido confiado um depósito sagrado: muitos deles falharam, no entanto, deixando de usá-lo de modo apropriado. Eles se sentiam satisfeitos de poder devolvê-lo a Deus, dizendo: “Temos guardado a Lei”. Guardaram para si mesmos o depósito. Fazendo isso falharam, pois não o puseram para render. Mas Deus, que lhes dera a guarda sagrada de sua revelação, um dia os chamaria para o ajuste de contas. A parábola dos talentos foi primeiramente endereçada aos discípulos de Jesus. Eles eram os únicos a quem o evangelho tinha sido confiado; a eles fora dito que pregassem o arrependimento e o perdão, em nome de Cristo, a todas as nações, começando por Jerusalém (Lc 24.47). Mas, o ensinamento da parábola não se limitava aos discípulos. O autor da Epístola aos Hebreus advertiu explicitamente os cristãos de seus dias, ao perguntar: “como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb 2.3). E, através dos séculos, a parábola dos talentos tem falado, e continua a falar, a todos os cristãos. Eles devem ser o canal por onde a mensagem da Palavra de Deus flui para o mundo que os cerca. Conclusão O servo a quem foi confiado um único talento guardou o depósito em segurança, em um lugar escondido. Temeu investi-lo, pois sabia que seu senhor exigiria seu talento, ao voltar. O receio, portanto, sobrepujou o amor, a confiança e a fé270. O medo é o oposto da confiança. O cristão que trabalha com fé colherá imenso dividendo. Ele não se preocupa consigo mesmo ou com seus próprios interesses, pois o que quer que tenha pertence ao Senhor, e o que quer que faça o faz pelo Senhor. Nenhum seguidor de Jesus pode jamais dizer que lhe faltam dons para o serviço, simplesmente por não ter a estatura de um Paulo, Lutero, Calvino ou Knox. A parábola ensina que cada um dos servos recebeu dons: “segundo a sua própria capacidade”. Jesus conhece a capacidade de cada cristão e espera receber frutos. Como em várias outras parábolas, não devemos realçar e aplicar pormenores específicos. O que importa é a mensagem central. O ensino básico da parábola dos talentos é que cada crente é dotado de dons diferentes, quanto a sua habilidade, e que esses dons devem 269

Dodd, Parables, p. 151; Jeremias, Parables, p. 62; Smith, Parables p. 168; E. Kamlah, “Kntik und lnterpretation der Parabel von den anvertrauten Geldern: Matt 25,14ff.; Luke 19, 12ff.” Kerygma und Dogma 14 (1968): 28-38; J. Dupont. La parabole des talents (Matt 25.14-30) ou des minas (Lc 19.12-27), “Revue de Théologie et de Philosophie 19 (1969): 376-91. 270 Mänek, Frucht, p. 73.

ser postos a serviço da obra de Deus. No reino de Deus é esperado que cada um empregue plenamente os dons que recebeu. No reino de Deus não há lugar para zangões — apenas para as abelhas operárias!

23. O Grande Julgamento Mateus 25.31-46 “Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. E eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? Então, lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna”. Estritamente falando, a passagem a respeito do juízo final é muito mais uma profecia que uma parábola. Apenas a parte que fala das ovelhas e dos cabritos pode ser considerada uma parábola. E essa breve comparação serve perfeitamente ao propósito de Jesus, quando ensina a seus discípulos a doutrina do último julgamento271. Rapidamente, Jesus se refere a uma cena bucólica comum em seus dias, O pastor reúne ovelhas e cabritos em um rebanho. Em áreas onde a grama é escassa por causa da seca, os cabritos preferem comer as folhas e os rebentos mais do que pastar272. Eles ficam no 271

Examinando a teologia de Mateus, 6. Gray, cm “The Judgment of the Gentiles in Matthes’s Theology”, Scripture, Tradition and Interpretation, Festschrift honoring E. F. Harrison (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 199-215, conclui que o julgamento dos gentios não pode decididamente ser o julgamento final de todos os homens”, p. 213. J. R. Michels, “Apostolic Hardships and Righteous Gentiles: A study of Matthew 25.31-46w, JBL 84 (1965); 27-38; R. C. Oudersluys, ‘The Parable of lhe Sheep and Goats (Matthew 25.3146): Eschatology and Mission, Then and Now”, RefR 26 (1973): 151-61. Permanece o fato, no entanto, que a parábola como um todo diz respeito ao último julgamento, e o último julgamento inclui todos os homens e é final. 272 Cansdale, Animais of Bible Lands, p. 44.

mesmo rebanho com as ovelhas, mas nem os cabritos nem as ovelhas se misturam. Ao entardecer, as ovelhas atendem ao chamado do pastor, mas os cabritos, muitas vezes, o ignoram. Quando cai à noite, as ovelhas preferem ficar ao ar livre, ao contrário dos cabritos, que não suportam o frio e precisam se abrigar273. O pastor põe as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Ele não separa os machos das fêmeas, e, sim, as ovelhas dos cabritos. Simbolicamente, coloca as ovelhas à sua direita e os cabritos de seu lado esquerdo. As ovelhas valem mais que os cabritos274, e sua lã branca, que não se confunde com a pele malhada dos cabritos, se destaca como símbolo de justiça275. O bode, há muito tempo, vem sendo associado com o mal. O Velho Testamento retrata o bode como o portador do pecado, que é enviado para o deserto (Lv 16.20-22). Mesmo nós, em nossa própria linguagem, usamos a passagem registrada em Levítico. Além disso, o lado direito significa sempre o que é bom, porém o esquerdo pode se referir a algo sinistro, sombrio, mau e vil. Todas as nações do mundo são comparadas a ovelhas e cabritos que são separados pelo pastor, no fim do dia. As nações serão reunidas diante do Filho do Homem sentado em seu trono na glória celestial. Ao comando divino, os anjos se adiantarão e reunirão os eleitos dos quatro ventos e os apresentarão diante do trono do juízo (Mt 13.41,42; 24.31; 2 Ts 1.7,8; Ap 14.17-20). Todos os povos estarão diante do Juiz. Tanto os bons, quanto os maus, os ímpios como os justos. Ninguém será excluído. O Juiz separará uns dos outros, como o pastor divide seu rebanho de ovelhas e cabritos depois de tê-los apascentado durante o dia. O Lado Direito O tema da separação e do juízo se desenvolve através de todo o Evangelho de Mateus. O trigo é ajuntado no celeiro, mas a palha é queimada em fogo que não se extingue (Mt 3.12); o joio é separado do trigo e atado em feixes para ser queimado, enquanto o trigo é recolhido no celeiro (Mt 13.30). No final dos tempos, os anjos separarão os justos dos maus, e os ímpios serão lançados na fornalha acesa (Mt 13.49,50). As cinco virgens néscias encontram a porta fechada e ouvem a voz do noivo dizer: “Não vos conheço” (Mt 25.12). O servo negligente, que enterrou seu único talento, é lançado fora, na escuridão (Mt 25.30). Na parábola das ovelhas e dos cabritos, o princípio da separação e do julgamento é claramente aplicado. O Filho do homem, como Jesus se refere a si mesmo, vem em sua glória e se assenta em seu trono celestial, cercado por seus anjos. 273 274 275

Armstrong, Parables, p. 191; Jeremias, Parables, p. 206. Dalman, Arbeit und Sïtte, VI: 217. Jeremias, Parables, p. 206; Mánek, Frucht, p. 76.

Passagens das Escrituras, no Velho Testamento, reiteram esta verdade que, sem dúvida, aponta para o último julgamento, como um julgamento universal276. Na parábola das ovelhas e dos cabritos, Jesus aceita todos aqueles trazidos diante dele, que foram eleitos desde a eternidade. São aqueles que ouvem o Rei dizer: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”. Eles são salvos, portanto, porque Deus, o Pai, os tinha abençoado e lhes diz que tomem posse do reino que já antes lhes havia sido preparado277. A salvação dos justos não tem raízes em suas boas obras, senão na vontade de Deus, o Pai. As boas obras, que os justos praticam, não são a raiz, mas, sim, o fruto da graça278. As boas obras não são anuladas pela graça eletiva de Deus; são esperadas de seus filhos benditos como uma efusão natural de obediência e amor. De modo interessante, sem explicação, o evangelista muda da imagem do Filho do homem para a do Rei. Por que Mateus usa estes dois títulos? Certamente, a identificação de Jesus, como o Filho do homem, com a raça humana, é evidente por si mesma. Mas, a transição do Filho do homem para o Rei se torna significativa à luz da profecia de Daniel, onde a pessoa do Filho do homem vem com as nuvens do céu. “Foi-lhe dado o domínio, a glória e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.13,14). O Filho do homem, incontestavelmente, é Rei, e no dia do juízo fala como juiz soberano279. As obras dos justos são atos de amor e misericórdia não intencionais realizados para o próprio Cristo. Por seis vezes Jesus, ao falar com os justos, usa o pronome da primeira pessoa singular — eu —, contrapondo-a a vós que se refere a outros. (Eu) tive fome (Eu) tive sede (Eu) era forasteiro (Eu) estava nu (Eu estava) enfermo (Eu estava) preso 276

e me destes de comer; e me destes de beber; e me hospedastes; e me vestistes; e me visitastes; e fostes ver-me280.

Zc 14.5; Mt 16.27; 19.28; 2 Ts 1.7; Jd 14,15; Ap 3.21; 20.11,12. No trecho chamado “Parábolas”, no Livro de Enoque 62.5, o Ímpio “vê o Filho do homem sentado no trono de sua glória”. Ele, que é o Messias, executa todos os pecadores pela palavra de sua boca. Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha, 2:228. 277 O tempo do verbo em “benditos” (=eulogemenoi) e em “preparados” (=hetoimasmenen) indica ação que, praticada no passado, tem significado permanente para o presente e o futuro. 278 Hendriksen, Matthew, p. 888. 279 Plummer, Si. Matthew, p. 350; Mánek, Frucht, p. 75; Manson, Sayings, p. 249. 280 No Testaments of the Twelve Patriarchs, Joseph 1.5,6, encontramos tênue eco dessa passagem, embora reconhecidamente o pensamento divirja em muito do de Mateus.

Em todos os seus atos, os justos têm demonstrado responsabilidade humana e genuíno interesse. Provaram ser cidadãos dignos do reino dos céus. No dia do juízo, receberão o privilégio de tomar posse do reino. Em suas atividades diárias mostraram fidelidade e diligência. No dia do julgamento, receberão sua recompensa. Nas pequenas coisas da vida, os justos demonstraram seu amor e lealdade. No último dia, serão honrados pelo próprio Deus. As pessoas que permanecem à direita de Jesus, o Rei, ouvem-no dizer que o alimentaram quando estava faminto, e lhe deram de beber quando tinha sede; e foram os únicos que o convidaram a entrar, o vestiram, cuidaram dele, e o visitaram. Eles se preocuparam com as pessoas com as quais Cristo se identificou. Mas, quem são estas pessoas que se tornaram recipientes do amor e da bondade dos justos? Esta é a questão que, surpreendidos, propõem a Jesus: “Senhor, quando foi que te vimos com fome?” E a resposta do Rei é: “Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Mas, quem são esses irmãos de Cristo281? No Novo Testamento, o próprio Cristo se identifica e é identificado com seus seguidores282. A mais marcante ilustração do laço que há entre Cristo e seus seguidores é o encontro de Paulo com Jesus, na estrada de Damasco. “Por que me persegues?” — perguntou Jesus. Paulo, de fato, estava perseguindo seus seguidores 283. Jesus é um com os seus seguidores, pois cada cristão que crê é irmão ou irmã de Cristo. Por isso, perseguindo os crentes, Paulo perseguia a Jesus284. No Evangelho de Mateus, a expressão “meus pequeninos” se refere aos discípulos de Jesus. Quando os doze discípulos são enviados dois a dois, Jesus diz: “E quem der a beber ainda que seja ‘Eu fui vendido como escravo, e o Senhor me livrou; Fui levado cativo, e sua forte mão me socorreu. Fui cercado pela fome, e o Senhor mesmo me alimentou. Estava só, e Deus me

confortou; Estava enfermo, e o Senhor me visitou; Estava na prisão, e meu Deus foi benigno para comigo.” Charles, Apocrypha, 2:346. 281 Para um exame amplo, veja-se G. E. Ladd, “The Parable of lhe Sheep and the Goats in Recent Interpretation”, New Dimensions in New Testament Study, ed. R. N. Longenecker e M. C. Tenney (Grand Rapids: Zondervan, 1974), pp. 19 1-99. 282 Mt 10.40,42; Mc 13.13; Jo 15.5,18,20; 17.10,23,26; At 9.4; 22.7; 26.14; 1 Co 12.27; Gl 2.20; 6.17; Hb 2.17. 283 J. C. Ingelaire, “La ‘parabole’ du jugement dernier (Matthieu 25/31-46), “Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses 50 (1970): 52. 284 H. E. W. Turner, “The Parable of the Sheep and the Goats (Matthew 25.3146)”, ExpT (1966); 245, interpreta At 9.4, dizendo: “Com certeza, é um misticismo, mas um misticismo de auto-identificação mais que de unificação’. Veja-se, também, C. L. Mitton, “Present Justification and Final Judgment — A Discussion of the Parable of the Sheep and the Goats.” ExpT 68 (1956): 46- 50.

um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (Mt 10.42)285. Quando ele chama uma criança e a coloca no círculo dos discípulos, exorta os doze a também se tornarem crianças. Os pequeninos que acreditam em Jesus pertencem a ele (Mt 18.5,6,10). Do mesmo modo, em Mateus 25.40, Jesus diz: “Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Qualquer auxilio prestado a algum dos seguidores de Cristo é, portanto, prestado ao próprio Cristo. Os cristãos são altamente exaltados, pois servirão de referência aos atos de bondade que forem praticados ou omitidos. Eles e Cristo são um! O seguidor de Jesus é comissionado a ser uma testemunha viva dele. É um representante do Rei, e a ele é dada autoridade para testificar do Senhor. Um mensageiro pertence sempre àquele que o enviou. O que é enviado deve representar sempre aquele que o enviou. Os que recebem os mensageiros do Rei e os tratam bem, providenciando alimento quando têm fome, bebida quando têm sede, roupas que os agasalhem quando têm frio, e que os confortem quando estão doentes ou na prisão, estão fazendo isso, de fato, ao próprio Rei. Negar a esses mensageiros, amor e misericórdia é o mesmo que fechar as portas àquele a quem representam (Mt 10.40). O Lado Esquerdo Dois textos são básicos na passagem sobre o último julgamento: Mt 25.40,45. “Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”; e, “Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer.” São versículos paralelos com praticamente as mesmas palavras. A omissão de “meus... irmãos” no v.45 pode ser devida ao estilo. O primeiro dos textos é afirmativo e endereçado aos judeus; o segundo é dirigido aos ímpios, em termos negativos. Os ímpios não cometeram nenhum crime. Não mataram ninguém; não cometeram adultério; não roubaram. Seus pecados não são de comissão, e, sim, de omissão. O que deixaram de fazer é enumerado no dia do juízo. A lista completa das necessidades atendidas pelos justos é repetida, mas, agora, as flagrantes omissões são destacadas.

285

J. A. T. Robinson, “The ‘Parable’ of the Sheep and the Goats”, NTS 2 (1956): 22537, também publicado em Twelve New Testament Studies (Naperville: A. R. Allenson, 1962), pp. 76-93, chama a atenção para esta passagem, mas por razões lingüísticas.

(Eu) tive fome, (Eu) tive sede, Sendo forasteiro, Estando nu, Achando-me enfermo e preso,

e não me destes de comer; e não me destes de beber; não me hospedastes; não me vestistes; não fostes ver-me.

No julgamento, como descrito na passagem, nenhuma pergunta será feita a respeito da fé ou do arrependimento em Cristo. Apenas perguntas sobre conduta serão propostas286. A lista de feitos pode ser cumprida por qualquer um; não há necessidade de treino na fé cristã para se estar qualificado. Quando os seguidores de Cristo, em necessidade, procuraram aqueles que permanecerão à esquerda do Rei, foram rejeitados. Aqui se coloca, realmente, a questão do ser a favor ou contra Cristo. Não há posição neutra em relação a Jesus: o homem precisa escolher. Como Jesus, sucintamente, colocou: “Quem não é por mim, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” (Mt 12.30). Se um homem recusa os apelos do evangelho e rejeita o seguidor de Jesus, ele rejeita o Cristo e escolhe ficar do lado do inimigo287. Estão incluídas aí as pessoas que nunca conheceram a Jesus? Eles serão julgados como todos os outros que no dia do juízo permanecerão diante do Filho do homem. O apóstolo Paulo referiu-se a esta questão, quando escreveu sobre o julgamento justo de Deus: “Assim, pois, todos os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão” (Rm 2.12). Apenas aqueles que obedecem à lei de Deus são declarados justos288. Por se recusarem a socorrer os seguidores de Cristo, os ímpios se colocam fora da esfera das bênçãos de Deus. Estão sob maldição. Ouvem as terríveis palavras: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. São condenados e enviados para junto de Satanás e de seu séqüito289. Os ímpios são separados de Cristo para sempre; e são enviados para um lugar onde passarão a eternidade com Satanás e os seus. E o lugar que as Escrituras descrevem como o inferno290. No tribunal, aqueles que estiverem à esquerda do juiz se surpreenderão e questionarão o veredicto: “Senhor, quando foi que te 286

Plummer, St. Matthew, p. 350. Manson, Sayins, p. 251 288 “Há, portanto, uma correspondência exala entre o caráter de seus pecados como ‘sem lei’ e a destruição final vinda sobre eles, também, sem lei”’, J. Murray, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), 1:70. 289 O tempo verbal nos particípios ‘malditos” (= kateramenoi) e “preparados” (= hetoimasmenon) como os de Mt 25.34, indica que, praticada no passado, tem validade no presente e no futuro. 290 Por exemplo: Is 33.14; 66.24; Mt 5.22; 13.42,50; 18.8,9; Lc 16.19-31; Jd 7; Ap 19.20; 20.10,14,15; 21.8. 287

vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te assistimos?” A resposta a esta pergunta é que se recusaram a ver o Cristo quando seus seguidores chegaram até eles. Fecharam seus olhos e endureceram seus corações, quando os seguidores de Jesus estavam precisando de ajuda para suas necessidades mais básicas. “Sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer”. Jesus aponta para seus seguidores, seus irmãos. São aqueles que crêem nele e constituem a igreja. Quando são rejeitados, Cristo é rejeitado. Eles representam Jesus. Diante do trono do julgamento, todas as nações estão reunidas: as nações do mundo estão diante de Jesus. Embora cada pessoa seja julgada individualmente, as nações também estarão diante do juiz, coletivamente. O homem é considerado responsável por sua atitude e resposta para com Jesus, sua Palavra e seu Reino, e recebe seu veredicto como indivíduo. Mas ele faz parte de sua comunidade e é um cidadão de sua nação. Juntamente com seus compatriotas carrega a responsabilidade coletiva pelas ações postas em prática e realizadas “contra o SENHOR e contra o seu Ungido...” (Sl 2.2). Durante o seu ministério terreno, Jesus denunciou as cidades de Corazim, Betsaida e Cafarnaum, porque não se arrependeram apesar dos milagres que ele ali realizara (Mt 11.20-24). No dia do juízo, haverá menos rigor para Tiro, Sidom e Sodoma, que para as cidades do norte da Galiléia que não responderam à mensagem de Jesus. Elas receberão julgamento coletivo. Implicações A parábola das ovelhas e dos cabritos é uma introdução à descrição do último juízo. Como o pastor separa suas ovelhas dos cabritos, assim também Jesus separa os justos dos ímpios no dia do juízo. Naquele dia, todas as nações do mundo permanecem diante do Filho do homem e são julgadas com base na aceitação ou rejeição mostradas a ele, quando seus mensageiros proclamaram o seu chamado291. O que se deduz deste quadro é que o julgamento só pode acontecer quando a ordem da Grande Comissão tiver sido plenamente cumprida. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações...” (Mt 28.19). Quando este comando tiver sido cumprido, o fim está próximo. Os seguidores de Jesus devem proclamar fielmente a mensagem do reino a todas as nações, pois quando esta tarefa estiver cumprida, o fim virá (Mt 24.14). Os mensageiros do evangelho de Jesus experimentam fadiga e sofrem fome, sede, frio, doença, solidão e prisão. Paulo relata suas experiências e fala das vezes em que passou fome e sede; esteve nu e com frio; nas vezes em que esteve em perigo entre patrícios e entre gentios; e como esteve, muitas vezes, nas prisões; como foi açoitado 291

L. Cope, “Matthew XXV.31-46. ‘The Sheep and the Goats’ reinterpreted”, NovT 11(1969): 43.

e enfrentou o perigo de morte (2 Co 11.23-27)292. As pessoas que o ouviam e que cuidaram dele por ocasião de seus julgamentos e de suas tribulações, demonstraram genuíno amor. Esses atos, como Paulo diz aos Filipenses que lhe haviam ofertado dádivas, eram “aroma suave, como um sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4.18). Mas, quando Paulo foi abandonado por todos, enquanto estava sendo julgado, o Senhor estava ao seu lado, dando-lhe força. Aqueles que o haviam desamparado, Paulo escreveu: “Que isto não lhes seja posto em conta” (2 Tm4.16). Ele deixou o julgamento para o Senhor. Embora representante de Jesus, não usou da autoridade daquele que o enviara. Jesus é o juiz, e ele dará o veredicto no dia do juízo. Paulo pode apenas orar para que o ato de deserção não fosse imputado àqueles que deveriam tê-lo apoiado. A auto-identificação de Jesus com seus irmãos não inclui todos os pobres e necessitados do mundo. Ver na passagem sobre o juízo final uma base para o amor cristão pelos pobres, considerados indiscriminadamente, porque o pobre representa Cristo, é acrescentar algo ao texto. Ver o Cristo na figura rejeitada do homem na estrada de Jericó, ou de Lázaro à soleira da casa do rico, é aceitar uma exegese falha293. A parábola das ovelhas e dos cabritos e seu subseqüente quadro do dia do juízo final acentua a palavra irmão (Mt 25.40). Para Mateus o termo irmão não se aplica a todos, mas apenas àqueles que aceitam Jesus como seu Senhor e Salvador294. Em seu Evangelho, Mateus fornece um significado para a palavra irmão295. Para ele a palavra significa um discípulo, um seguidor de Jesus. Portanto, a frase “meus pequeninos irmãos”, em Mt 25.40, se refere às pessoas que acreditam em Jesus. São membros de seu corpo, a igreja. Naturalmente, as palavras de Jesus: “Os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26.11; Mc 14.7; Jo 12.8), não significam que, em sua ausência, Jesus seja representado pelos pobres. Suas palavras são uma exortação para que os pobres sejam cuidados, como Deus ordenou aos israelitas: “Pois nunca deixará de haver pobre na terra; por isso eu te ordeno: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na terra” (Dt 15.11). Paulo era cuidadoso a respeito desta mesma injunção, que recebera novamente ao se engajar na missão aos gentios. Após ter recebido a destra de comunhão de Tiago, Pedro e João, ele disse: “Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres...” (Gl 2.10). 292

J. Mänek, “Mit wem identifiziert sich Jesus? Eine exegetische Rekontruktion ad Matt. 25.31-46, “Chrlst and SpirIt in the New Testament, ed. B. Lindars e S. S. Smalley (Cambridge: University Press, 1973), p. 19. 293 Alguns comentaristas vêem o Cristo oculto nos confrontado, nos povos necessitados e desafortunados do mundo. Por exemplo, Hunter, Parables, p. 118; Armstrong, Parables, p. 193. 294 Mänek, “Exegetische Rekonstruktion”, p. 22; Mánek, Frucht, p. 79. 295 Mt 5.47; 12.48; 18.15; 23.8; 28.10.

Ninguém pode, jamais, ignorar os pobres, porque a ordem de Deus: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é suficientemente clara. O cumprimento da lei é o amor, e aquele que cumpre esta lei régia está agindo bem (Tg 2.8). Assim, os cristãos têm a obrigação divina de mostrar amor genuíno e sincero interesse pelos necessitados e rejeitados, não importando a raça, origem, idade, sexo, ou religião. Qualquer um se qualifica como o próximo e reclama amor, porém nem todos são chamados de irmão ou irmã de Cristo. Apenas aqueles que crêem em Cristo e fazem a vontade de Deus são irmãos e irmãs de Cristo (Mt 12.48). Na parábola e na apresentação da cena do juízo, as seguintes pessoas aparecem individual e coletivamente: (1) o Filho do homem, (2 todas as nações, (3) um pastor, (4) o Rei, (5) o Pai do Rei, (6) os justos, (7) os irmãos do Rei, (8) os ímpios. É óbvio que Deus é o Pai do Rei; embora Deus não seja o Juiz. O Rei é o Juiz que é comparado a um pastor que separa as ovelhas dos bodes. Além disso, o rei é também conhecido como o Filho do homem, que é como Jesus se denomina. Os irmãos do Rei, também, estão presentes no julgamento. Quem são eles? Jesus diz a seus discípulos que: “quando na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19.28). O privilégio de julgar com Cristo não se limita aos doze discípulos. Os santos julgarão o mundo, escreve Paulo à congregação de Corinto (1 Co 6.2)296: O juiz não está sozinho, porém fala pelos seus irmãos. Ele não julga seus irmãos; porém todas as nações se apresentam diante de seu trono e são separadas em dois grupos: os que estarão à direita do Juiz, porque ajudaram os irmãos; e aqueles à esquerda, porque se recusaram a ajudar. Nesta parábola, Jesus apresenta apenas um aspecto do quadro do último julgamento. Outras passagens das Escrituras nos revelam cenas adicionais do que acontecerá naquele dia297. A parábola das ovelhas e dos cabritos descreve uma divisão entre os que foram colocados à direita e aqueles que foram colocados à esquerda. A descrição da cena do julgamento acaba com uma referência ao destino permanente que terão. “E irão estes para o castigo eterno, porém os justos para a vida eterna” (Mt 25.46). A conclusão indica que o veredicto, para ambas as partes, é final e irrevogável. Os justos gozarão para sempre a plenitude da vida, e os ímpios receberão a maldição da punição eterna.

296 297

Manson, Sayings, p. 217. Por exemplo: Dn 7.9,10; Ap 20.11-15.

24. Os Dois Devedores Lucas 7.36-50 “Convidou-o um dos fariseus para que fosse jantar com ele. Jesus, entrando na casa do fariseu, tomou lugar à mesa. E eis que uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com ungüento; e, estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o ungüento. Ao ver isto, o fariseu que o convidara disse consigo mesmo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, porque é pecadora. Dirigiu-se Jesus ao fariseu e lhe disse: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. Ele respondeu: Dize-a, Mestre. Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro, cinqüenta. Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles, portanto, o amará mais? Respondeu-lhe Simão: Suponho que aquele a quem mais perdoou. Replicou-lhe: Julgaste bem. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; esta, porém, regou os meus pés com lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que entrei não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta, com bálsamo, ungiu os meus pés. Por isso, te digo: perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama. Então, disse à mulher: Perdoados são os teus pecados. Os que estavam com ele à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este que até perdoa pecados? Mas Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz”. A parábola dos dois devedores é relativamente curta, pois se resume em apenas três versículos (Lc 7.41-43). A circunstância histórica é a unção de Jesus por uma mulher pecadora, na casa de Simão, o fariseu. A parábola ensina a verdade simples, ou seja, que o grau de gratidão expressa por alguém cuja dívida foi perdoada é diretamente proporcional ao total do débito. Um agiota que perdoa uma dívida considerável receberá do devedor maior reconhecimento e gratidão que de outro cujo débito cancelado seja insignificante. Jesus pôs em prática esta verdade, na casa de Simão, o fariseu, que

estava visivelmente embaraçado com a presença de uma mulher de má reputação. Mas Simão recebeu uma lição. As Circunstâncias Talvez tenha acontecido num sábado, quando Jesus pregara durante o culto da manhã, na sinagoga local. Porque era considerado um privilégio convidar um pregador visitante para o jantar298, Simão, o fariseu, convidou Jesus para ir à sua casa a fim de participar, com ele e com outros convidados, da refeição do meio-dia do Sabá. O anfitrião, porém, foi negligente, esquecendo-se das regras comuns de cortesia, não beijando Jesus, nem lavando seus pés ou ungindo com óleo perfumado sua cabeça299. Chegou-se Jesus à mesa e, como os outros convidados, tirou as sandálias300. A maneira típica da época, os convidados se reclinavam em divãs ao redor da mesa, apoiando-se sobre o braço esquerdo e mantendo livre a mão direita para se servir da comida e da bebida, e seus pés ficavam estendidos, afastados da mesa. Se não fosse inverno a refeição acontecia no pátio, porque os judeus gostavam de comer ao ar livre301. Durante a refeição, chegou uma mulher, que morava naquela cidade e que era conhecida pela sua moral duvidosa. Ela caminhou rapidamente para perto de Jesus, pretendendo lhe oferecer um vaso de alabastro, cheio de ungüento perfumado. Porque conhecia Jesus, ela queria presenteá-lo com aquele perfume tão caro. Queria expressar-lhe sua gratidão por tê-la ajudado, provavelmente ensinando-lhe a mensagem de salvação. Mas ela não conseguiu controlar a emoção, e, antes que percebesse, suas lágrimas corriam e caíam sobre os pés de Jesus. Ela não tinha uma toalha para enxugar seus pés. Então, soltou seus cabelos para com eles secá-los. Beijou seus pés, tomou o frasco de perfume e derramou-o sobre eles. Do ponto de vista de Simão, aquele era um incidente muito embaraçoso. Se a mulher tivesse comprado o perfume tão caro com o dinheiro ganho na prostituição, o presente seria impuro. De acordo com Dt 23.18, Deus abominava tais ganhos, que, portanto, não podiam ser trazidos à sua casa. Presentes de pessoas sem moral eram considerados sujos e inaceitáveis por qualquer pessoa 298 299

Jeremias, Parables, p. 126.

O costume de ungir alguém com óleo vem da antigüidade. Sl 23.5; 45.7; 104.15; Ez 23.41; Am 6.6. Daniel-Rops, Palestine, p. 208. 300 Um servo apanhava as sandálias dos hóspedes e as guardava até ao final da refeição. A. C. Bouquet, Everyday Life In New Testament Times (New York: Scribner, 1954), p. 71. 301 Daniel Rops, Palestine, p. 207.

respeitável. Além disso, a mulher desatara seu cabelo, estando na companhia de homens; agindo assim, mostrara que espécie de mulher era. Era contra os bons costumes que uma mulher soltasse seus cabelos em público302. O fariseu se admirava que Jesus permitisse que tudo isso acontecesse. Ele começou a olhar Jesus com olhos diferentes. Se Jesus fosse um profeta303, ele refletia, saberia que esta mulher era uma pecadora, e que seu presente era maculado pelo pecado. Nenhum profeta que se desse ao respeito permitiria que uma mulher de má reputação o tocasse, infamando-o. Porque a mulher não apenas tocou seus pés — fez mais, continuou beijando-os até que, finalmente, se retirou. Jesus não compreendia? A Parábola Jesus pregava o evangelho da salvação e conclamava o povo ao arrependimento e à fé em Deus. Talvez, mais cedo, naquele dia, a mulher tivesse ouvido a mensagem de Jesus, e, agora, respondesse positivamente à sua palavra. Vencida pela culpa, mesmo sabendo que Deus a perdoaria, procurou Jesus. Foi incapaz de reter a torrente de lágrimas que explodiu, expressando tristeza pelos pecados cometidos e alegria pela graça recebida304. Mas Simão, o fariseu, não pôde ver que essa mulher pecadora experimentava a alegria da regeneração. Não se lhe ocorreu que ela poderia ter sido perdoada e que se sentisse plena de felicidade. “Jesus jamais deveria permitir que a mulher o tocasse”, disse Simão a si mesmo. Jesus sabia o que Simão pensava, e de modo gentil, mas corrigindo-o, disse-lhe que apreciara o gesto da mulher, pois ela fizera o que seu hospedeiro deveria ter feito por seu hóspede. Mas, antes de Jesus dizer ao fariseu o que tinha visto na mulher, propôs-lhe uma questão, em forma de parábola. Começou a parábola dizendo a Simão que tinha algo a lhe falar. Simão estava pronto a ouvir. Jesus contou a pequena história de um agiota que tinha dois devedores. Um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta. Um denário, naqueles dias, era quanto valia o salário diário de um trabalhador rural. Nenhum dos dois devedores, na história de Jesus, tinha fundos para pagar ao agiota. Aconteceu, então, o inesperado. O credor cancelou a dívida de ambos. “Qual deles, portanto, o amará 302

Derrett, Law in the New Testament, p. 268. Alguns manuscritos apresentam o artigo definido antes de “profeta”. A expressão “o profeta” se referiria, então, ao grande Profeta que Deus providenciaria (Dt 18.15). 304 Marshall, Luke, p. 309. Calvin, Institutes of the Christian Religion, III. 4.33 (Grand Rapids: Eerdmans, 1944), p. 722. 303

mais?” — Jesus perguntou a Simão. Simão, meio relutante, respondeu: “Suponho que aquele a quem mais perdoou”. De repente, percebeu que a parábola o envolvia também. Ele sabia que Jesus não tinha terminado a história. A aplicação, inevitavelmente, se seguiria para explicar a presença da mulher, a atitude de Jesus em relação a ela, e o papel de Simão como anfitrião. “Vês esta mulher?” — perguntou Jesus. Naturalmente que Simão via a mulher, mas Jesus queria que ele a visse em uma dimensão espiritual. Os olhos de Simão estavam cegos, pois, enquanto a olhava apenas como pecadora, deixava de vê-la como alguém de quem os pecados haviam sido perdoados. Sua autojustificação bloqueava sua visão. Em sua opinião, a mulher era apenas uma pecadora. Jesus, no entanto, não o repreendeu, nem o censurou, mas, de maneira magistral, ofereceu-lhe uma perspectiva espiritual do acontecido. “Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; não mc saudaste com um beijo, nem me ungiste a cabeça com óleo”. Mas, disse Jesus, “esta mulher, com suas lágrimas, lavou meus pés, e por não ter uma toalha, enxugou-os com seus cabelos. Ela demonstrou seu respeito mais profundo por mim, beijando meus pés. Além disso, tomou um vaso de bálsamo perfumado e ungiu-os”. Jesus via a mulher como uma pecadora que tinha sido perdoada. Ele não especificou seus pecados. Apenas se referiu a eles dizendo que eram muitos. E porque seus muitos pecados lhe tinham sido perdoados, ela muito amou305. Ela queria expressar sua gratidão a Deus e se voltara para Jesus, que fora enviado por Deus. Ele se tornara o vaso que recebia a gratidão da mulher306. A Mulher A mulher não falou nada, durante o tempo em que esteve na casa de Simão. Mas, seu gesto falou mais alto que palavras. Ela desmanchou-se em lágrimas por causa de seus pecados. Como o devedor que ouviu de seu credor que não lhe devia mais nada, assim a mulher experimentou a graça misericordiosa de Deus. Por causa dessa graça, ela queria expressar sua gratidão oferecendo a Jesus uma dádiva preciosa. Isto é, mostrando seu amor a Jesus, ela provou que seus pecados já tinham sido perdoados. Não foi por ela ter demonstrado seu amor que obteve o perdão dos pecados307, pois, sendo assim, ela teria merecido o perdão. Com esta parábola, Jesus 305

Jeremias, Parables, p. 127, destaca que o hebraico, o aramaico e o siríaco são línguas que não têm palavras correspondentes para “obrigado” e “agradecimento”. O conceito se expressa por meio de palavras tais como “amor” ou “bênção”. 306 H. Drexler “Die grosze Sünderin Lucas 7.36-50”. ZNW 59 (1968): 166. 307 Católicos romanos interpretam que o texto (Lc 7.47) diz que o amor merece perdão. A versão NAB traduz o texto: “Eu vos digo porque seus muitos pecados são perdoados — por causa de seu grande amor”.

ensinou que o débito dos dois homens foi cancelado sem qualquer esforço da parte deles. Do mesmo modo, a mulher, aliviada do fardo do pecado, podia mostrar sua gratidão beijando e ungindo os pés de Jesus. “Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.” Queria Jesus dizer que Simão, o fariseu, amava pouco porque os pecados, que lhe tinham sido perdoados, eram poucos? Dificilmente. Simão não mostrou amor ou gratidão a Jesus, além do convite para que fosse jantar em sua casa. Ele não tinha sentido qualquer necessidade de ser perdoado. Apesar de tudo, a comparação permanece. Jesus não elaborou o assunto, mas, por implicação, pediu a Simão que reconhecesse e confessasse seus pecados para, assim, experimentar a alegria que acompanha o poder purificador da graça de Deus. Jesus perguntou a Simão se ele tinha visto a mulher. Pelo contraste exemplificado na parábola, Jesus, então, insinuou que Simão deveria olhar para sua própria vida espiritual. Depois de ter-se dirigido a Simão, Jesus voltou-se para a mulher e disse: “Perdoados são os teus pecados”. Deus tinha perdoado seus pecados. Jesus confirmou, então, a certeza da mulher de que ela recebera o perdão dos seus pecados, dizendo-lhe que tinha sido redimida: “A tua fé te salvou; vai-te em paz”. Ela já tinha professado sua certeza com seus atos de amor e gratidão. Pela fé, ela expressara a Jesus sua gratidão. Seu amor era, portanto, a conseqüência e não a causa de sua salvação308. Com a paz de Deus em seu coração, a mulher pôde enfrentar o mundo de novo, como um ser humano regenerado. Com as palavras “vai-te em paz”, Jesus a abençoou na despedida.

308

Morris, Luke, p. 149.

25. O Bom Samaritano Lucas 10.25-37 “E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo”. A parábola do bom samaritano se tornou parte de nossa cultura e de nosso vocabulário. É comum encontrarmos hospitais e instituições de caridade usando esse nome. A estrada de Jericó é mencionada em hinos e canções, e hoje os turistas podem encontrar a Hospedaria do Bom Samaritano a meio caminho de Jerusalém para

Jericó. Lugar e Povo A caminho de Jerusalém, Jesus foi inquirido por um estudioso das Escrituras do Velho Testamento a respeito de como fazer para herdar a vida eterna. Esse teólogo, naturalmente, não fez a pergunta por ignorância, mas porque queria testar Jesus e ouvir sua explicação sobre as Escrituras. Ele se dirigiu a Jesus, chamando-o de “mestre”, reconhecendo, assim, sua autoridade em assuntos religiosos. Ele esperava de Jesus uma resposta para uma pergunta muito comum309. Hábil e gentilmente, o Mestre instruiu seu aluno de teologia nos ensinamentos e implicações da Palavra. Dirigiu-lhe outra pergunta: “que está escrito na lei?” De fato, ele perguntou: “Como resumes a lei, quando adoras na sinagoga?” O teólogo respondeu citando os dois mandamentos ligados pela palavra amor: “Amarás o Senhor teu Deus...” e “amaras o teu próximo como a ti mesmo310”. Logo o doutor da lei compreendeu que Jesus tinha o controle da situação e que sabia a resposta. Ao comentário de Jesus: “Respondestes corretamente; faze isto, e viverás”, ele apôs a questão: “Quem é o meu próximo?” Esse era o ponto fundamental. O judeu vivia num círculo: o centro era ele mesmo, cercado por seus parentes mais próximos, então pelos outros parentes, e, finalmente, pelo círculo daqueles que proclamavam descendência judaica e que se tinham convertido ao judaísmo. A palavra próximo tinha um significado de reciprocidade: ele é meu irmão e eu sou irmão dele311. Assim se fecha o círculo de egoísmo e etnocentrismo. Suas linhas tinham sido cuidadosamente traçadas, a fim de assegurar o bem-estar dos que se achavam dentro e negar ajuda aos que estavam fora. Nos dias de Jesus, havia uma marcada afluência de não-judeus para Israel. Os samaritanos separavam os judeus do norte daqueles do sul. As forças de ocupação romanas estavam presentes em todos os lugares, e viajantes helênicos visitavam Israel regularmente. Israel funcionava como uma ponte entre as nações, e diariamente o judeu esbarrava em estrangeiros. “Quem é o meu próximo?” — era uma pergunta comum.

309

Mt 19.16. Consulte-se SB, 1:808, para fontes rabínicas. Dt 6.5 e Lv 19.18. 311 B. Gerbardsson, The Good Samaritan — The Good Shepherd? (Lund, Copenhagen: Gleerup, 1958), p. 7. quando um soldado judeu morreu em conflito armado, a nação pranteia a morte de um irmão. 310

O estudioso de teologia não via qualquer problema com relação ao primeiro grande mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus”. Mas o amor a Deus não poderia se expressar separado do segundo mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Ele via um problema no segundo mandamento e fez a pergunta, esperando que Jesus delineasse os limites. Mas, Jesus se recusou a responder diretamente. Em vez disso, aplicou o princípio da regra áurea: “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles” (Lc 6.31), e contou a história do bom samaritano. Ele queria que seu ouvinte lhe perguntasse: “Quem devo tratar como meu próximo?”. A história que Jesus contou é tão real e verdadeira que pode muito bem se refletir a um acontecimento atual relatado por alguém que foi assaltado e sobreviveu para contar o fato com todos os pormenores. Embora nem a hora ou o local exatos sejam descritos, o incidente pode muito bem ter acontecido naquele ano, não muito longe de Jerusalém312. A estrada de Jerusalém para Jericó tem apenas 27 quilômetros (=17 milhas) de extensão, e ao longo desse trecho apresenta um declive de 1200 metros (= 3300 pés). A área é praticamente deserta, sem vegetação e marcada por penhascos de pedras calcáreas e barrancos, em ambos os lados da estrada. Nos tempos bíblicos, a estrada era conhecida como “o caminho (ladeira) do sangue”, muito provavelmente por ser considerada insegura313. O trânsito de peregrinos e caravanas era bastante pesado por ali. De tempos em tempos, eles eram assaltados por bandidos que se escondiam atrás das rochas314. De acordo com a história contada por Jesus, um homem descia a estrada de Jericó. Não nos é dito se era rico ou pobre. Ele foi assaltado, e, porque reagiu, foi espancado. Em trapos, e quase morto, foi abandonado à beira do caminho. Logo após o assalto, passou por ali um sacerdote, a caminho de sua casa em Jericó 315. Ele olhou o homem ferido, e passou de lado. Se estivesse montando um burrico, na() teria se incomodado ao menos em saltar. Negou ao homem qualquer ajuda ou esperança. Pouco depois, um levita fez exatamente o mesmo: olhou-o e continuou seu caminho. 312

E. F. F. Bishop, “People on the Road to Jericho. The Good Samaritan — and the Others” EvQ 42 (1970):2. 313 A expressão “subida de sangue” pode ser uma corruptela do hebraico “subida de Adumim” Consulte-se Bishop, “People on the Road to Jericho”, p. 3. Veja-se, também. Js 15.7 e 18.17 Bishop “Down from Jerusalem to Jericho” EvQ 35 (1963): 97-102. 314 Histórias sobre assaltantes ao longo da estrada de Jericó têm sido registradas desde os tempos antigos até ao presente. Por exemplo, veja-se o comentário de Jerônimo, Jr. 3.2. 315 Jericó era uma das cidades com alta concentração de sacerdotes, que tinham fixado residência na “cidade das palmeiras”, SB, II:66 e 182.

Mais tarde veio um mercador, cujas roupas o identificavam como um samaritano. Parou, e olhou para o homem, que, desamparado jazia em seu próprio sangue. O samaritano se encheu de pena. Se estivesse no lugar do homem ferido, estaria também ansiando por ajuda. Aproximou-se e, cuidadosamente, ergueu o ferido. Raspou em tiras um pedaço de linho para fazer ataduras, aplicou azeite e vinho316, limpando e tratando as feridas do homem. Então o samaritano, por assim dizer, caminhou a segunda milha. Colocou o homem sobre seu próprio animal e, firmando-o, levou-o à hospedaria mais próxima. Lá, cuidou dele o resto do dia e durante a noite. Tendo negócios para cuidar, teve que deixar o ferido, no dia seguinte; mas, primeiro, pagou ao hospedeiro duas moedas de prata e lhe deu instruções para cuidar dele317. Disse também ao dono da estalagem que se mais dinheiro fosse gasto, ele lhe pagaria, quando voltasse de sua viagem. Implicações Jesus terminou a história perguntando: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?” O teólogo teve que dizer: “O que usou de misericórdia para com ele”. Em outras palavras, o samaritano provou ser um irmão do homem ferido. Com o conselho: “Vai, e procede tu de igual modo”, Jesus o dispensou. Na parábola, cinco pessoas são mencionadas (com exceção dos ladrões). São, pela ordem: o homem assaltado e ferido, o sacerdote, o levita, o samaritano e o dono da hospedaria. O ponto central não é tanto o homem à beira da estrada, embora ele seja objeto de atenção. Depois de roubado, ele foi primeiro negligenciado, mas depois cuidado com bondade. O objeto da história não é o sacerdote, nem o levita, ou o dono da estalagem. A figura central é o samaritano. Ele é o autor, o agente e o principal personagem. Por isso a parábola é chamada parábola do bom samaritano e não parábola do homem que foi assaltado e ferido. O ferido é uma figura sem rosto, cuja ocupação, nacionalidade, religião ou raça são ignoradas318. 316

Ap 6.6: “... e não danifiques o azeite e o vinho”. Azeite e vinho eram usados nos primeiros socorros, nos tempos antigos. SB, 1: 428. O azeite era paliativo e o vinho um anti-séptico. 317 As duas moedas de prata eram dois denários, quantia suficiente para pagar a hospedagem por vários dias. Na parábola dos trabalhadores na vinha (Ml 20.1-16), o salário diário dos trabalhadores é de um denário. 318 C. Daniel, ‘Les Esséniens et l’arrière — fond historique de la parabole du Bom Samaritan”. NovT II(1969): 71-104, retrata a vítima como um essênio que foi assaltado por zelotes. Os zelotes odiavam os essênios. Assim também o sacerdote e o levita passaram de largo, porque pertenciam a diferentes ordens religiosas. Entretanto, teria Jesus ensinado a lição apenas para condenar o ódio entre facções religiosas rivais? Se fosse assim, ele teria sido mais explícito. E correto presumir que o homem era judeu, porque assim entenderam aqueles que primeiro ouviram

Talvez, sem suas roupas, o homem não pudesse ser identificado pelo sacerdote, pelo levita ou pelo samaritano. Resumindo, a identidade do homem não importa. Ele faz apenas o papel do próximo — é só um vulto. Os ladrões vêm e vão. Cometem o crime e partem. É inútil, portanto, especular se eram zelotes, se tinha alguma queixa contra o homem — afinal de contas, o sacerdote, o levita e o samaritano não foram atacados — ou se eram moradores das redondezas e que viviam roubando os desventurados que por ali passavam. O sacerdote e, presumivelmente, o levita estavam a caminho de casa, vindos do templo, em Jerusalém. Pela lei, estavam impedidos de tocar em um defunto319. Se transgredissem a regra, estariam criando embaraços para si mesmos: socialmente (se tornando impuros), financeiramente (pagando o funeral) e profissionalmente (sendo suspensos de seus ofícios sacerdotais e levíticos)320. Naturalmente, o homem assaltado e ferido não estava morto. Mas, iria um sacerdote ou um levita desmontar de seu jumento, apanhar uma vara e com ela tocar o ferido para verificar se estava vivo, e, então, por fim, ministrar-lhe os primeiros socorros? Dificilmente. Na história, entretanto, o homem estava vivo, e por isso não havia desculpa convincente a ser apresentada pelos clérigos. Se tiverem medo de cair numa emboscada, ou se tinham o coração empedernido, ou se acreditavam estar interferindo no julgamento de Deus, que golpeava um pecador perverso, ou se eram vaidosos demais a respeito de sua posição de líderes religiosos para desmontar e ajudar uma vítima desafortunada, jamais saberemos321. O fato é que nenhum dos dois, nem o sacerdote nem o levita, mostrou misericórdia. O samaritano, como é descrito, enternece o coração de todos. É a figura preferida na história. Sabe o que deve fazer e o faz bem. Raça, religião, diferença de classes não são importantes para ele. Vê um ser humano em dificuldades e o ajuda. Jesus. Veja-se, também, B. Reicke, “Der harmherzige Samariter”, Verborum Veritas, Festschrift honorig G. Stãhlin (Wuppertal; Brockhaus, 1970). p. 107. 319 Lv 21.1; Nm 19.11. 320 Derrett, “Law in the New Testament: Fresh Light on the Parable of the Good Samaritan”, NTS 11(1964-65): 22-37, publicado em Law in the New Testament (London: Longman and Todd, 1970), pp. 208-27). 321 Os motivos da atitude do sacerdote e do levita têm sido estudados por muitos exegetas. Mas muitas explicações se baseiam em suposições, porque Jesus não especificou a razão por que os clérigos se recusaram a ajudar. Omitindo-se, deliberadamente, de explicar a razão, ele evitou que a parábola se tomasse um ataque frontal aos religiosos daqueles dias. Em vez disso, ele criticou a falta de misericórdia. Veja-se Oesterley, Parables, p. 162; H. Zimmerman, ‘Das Gleichnis vom barmherzigen Samariter: Lukas 10.25-37, “Die Zeit Jesu, Festschrift honoring H. Schlier (Freiburg, Basel, Vienna: 1970), p. 69; Jeremias, Parables, pp. 2034; Miachelis, Gleichnisse, p. 208.

Os samaritanos, para sermos exatos, não eram um povo muito simpático. Seu ódio pelos judeus explodia de diversas maneiras. Por exemplo, certa vez, entre 9 e 6 A.C., tinham profanado a área do templo para evitar que os judeus celebrassem a Páscoa. Fizeram isso espalhando ossos humanos pelos pátios do templo322. Aos olhos dos judeus, os samaritanos eram mestiços. Tinham-se estabelecido na terra de Israel durante o exílio dos judeus, e sua Bíblia consistia apenas dos cinco livros de Moisés. Tinham construído seu próprio templo no monte Gerizim (Jo 4.20); os judeus o destruíram em 128 a.C. Por causa desse ódio profundo, os judeus não se davam com os samaritanos323. Ainda assim, esse viajante, reconhecido como um samaritano, por suas roupas, seu modo de falar e suas maneiras, parou, desmontou e ajudou com bondade o seu semelhante. Não perguntou se o ferido era judeu, romano ou sírio. Para ele, aquela pessoa nua, ferida, meio morta, era um irmão precisando de ajuda. Prontamente pagou ao dono da hospedaria o suficiente para manter o homem na estalagem por alguns dias. Deve, também, ter providenciado roupas. O samaritano não praticou este ato de amor e caridade esperando retorno. Ele podia ter pedido que o ferido ao se recuperar lhe pagasse o que havia gastado. Mas, nem mesmo sabia se ele expressaria alguma gratidão, quando soubesse quem o socorrera. O modo de agir do samaritano representava um genuíno sacrifício de dinheiro, posses, risco de saúde, segurança e muitas horas de cuidado e amor324. Ele cumpriu a Regra Áurea. A última pessoa mencionada na parábola, o dono da hospedaria, recebe pouca atenção. Ele, possivelmente, conhecia o samaritano de outras passagens por ali. Um relacionamento de confiança mútua se estabelecera entre eles, o que é um testemunho eloqüente da conduta moral do samaritano. Ele era um homem em quem o hospedeiro podia confiar. “Cuida deste homem, e se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar”. Sua palavra valia ouro. Paralelos do Velho Testamento Embora a história possa se referir a um incidente recente, atual, Jesus é o criador da parábola. Ao contar a parábola do bom samaritano, ele chama a atenção de seu ouvinte versado em teologia para, pelo menos, dois paralelos do Velho Testamento. O intérprete 322

Josephus, Antiquities 18:30. 15. SB 1:538. Mi 10.5; Lc 9.52,53; Jo 4.9. Nos cultos nas sinagogas judaicas, os samaritanos eram amaldiçoados. Os judeus oravam a Deus que os excluísse da vida futura. 324 Mänek, Frucht, p. 87. 323

da lei deve ter reconhecido as alusões feitas a essas conhecidas passagens das Escrituras. Primeiro, há o relato registrado em 2 Cr 28.5-15. Fala do povo de Jerusalém e Judá, durante o reinando do rei Acaz, em 734 A.C., que foi levado cativo para Samaria. O relato termina com estas palavras: “Homens foram designados nominalmente, os quais se levantaram e tomaram os cativos e o despojo, e vestiram a todos os que estavam nus; vestiram-nos, calçaram-nos e lhes deram de comer e de beber, e os ungiram; a todos os que, por fracos, não podiam andar, levaram sobre jumentos a Jericó, cidade das palmeiras, a seus irmãos. Então voltaram para Samaria”. (2 Cr 28.15) Numerosas palavras-chave, parábola do bom samaritano.

naturalmente,

reaparecem

na

A segunda referência é o texto de Os 6.9: “Como hordas de salteadores que espreitam alguém, assim é a companhia dos sacerdotes, pois matam no caminho para Siquém; praticam abominações325”. Ensinando a parábola de modo a fazê-la soar como passagem familiar das Escrituras, Jesus demonstra que suas palavras são uma continuação das próprias Escrituras e uma explicação da Lei e dos Profetas. Assim, sua hábil exposição do segundo grande mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” revela uma perspectiva mais profunda. Jesus se mostra como intérprete da Lei326. Ele diz ao teólogo: “Faze isto, e viverás327”. Aplicação Em seu ministério terreno, Jesus torna conhecida uma dimensão mais ampla da exigência da Lei: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. No Sermão da Montanha, o mandamento não se restringe ao próximo, mas inclui, também, o inimigo: “Amai os vossos inimigos”. (Mt 5.44; Lc 6.27) Para o sacerdote e o levita descritos na parábola, a palavra próximo se referia a um judeu que podia ser claramente identificado. Mas alguém assaltado, espancado, nu e semimorto, simplesmente não se qualificava como tal.

325

Mänek, Frucht, p. 88, considera a parábola em Midrash, comentário ou sermão a respeito da Palavra de Deus, registrada em Os 6.6: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício...” Do mesmo modo, Derrett, em Law ln the New Testament, p. 227. 326 Derrett, Law in the New Testament, pp. 222-23, destaca que Jesus “tem um papel semelhante ao de Moisés”. 327 As palavras de Jesus: “Faze isto, e viverás” recordam Dt 5.33; 6.24 e Lv 18.5.

Para o intérprete da lei que inquiria Jesus, a questão era como traçar o limite. Ele queria saber se o amor tem limites. Queria se autojustificar e se assegurar de estar cumprindo o que a Lei ordenava. Se a Lei pudesse ser usada como uma barreira protetora, seria possível viver em paz dentro desse abrigo, onde tudo já estaria interpretado e soaria familiar328. Mas, quando a Lei está em aberto — “Amarás o teu próximo”, que inclui “Amai os vossos inimigos” —, uma visão toda nova se destaca possibilitando um novo questionamento dessa Lei. Jesus não contou a história de um judeu que encontrou um samaritano ferido, ao longo da estrada, e o ajudou, levando-o a uma hospedaria próxima329. Tal história poderia provocar uma reação contrária, porque o judeu seria considerado um traidor da causa judaica. Do mesmo modo, se Jesus tivesse usado os três: o sacerdote, o levita e o israelita, o efeito teria sido inteiramente diferente. Teria criado um contraste entre o clero e os leigos com uma tendência decididamente anticlerical. Mas, a apresentação do samaritano, na conjuntura apropriada, surpreende agradavelmente o ouvinte e não o predispõe a levantar objeções. O samaritano mostra como se deve amar o próximo e ser como um irmão para ele. Se o intérprete da lei tivesse quaisquer objeções teológicas, elas desapareceram com o desenrolar da história. Jesus podia ter-se referido ao estrangeiro que vivia entre os judeus e era tratado como um natural do lugar330. Também, podia ter mencionado os judeus convertidos e os que eram chamados tementes a Deus, que, regularmente, assistiam aos serviços religiosos na sinagoga. Mas, essas pessoas tinham como retribuir a bondade que recebiam. Além disso, eram considerados amigos e, em alguns casos, membros da fé judaica. Jesus, no entanto, focaliza não o próximo — “Quem é o meu próximo?” —, mas o único que mostrou amor e compaixão. O próximo não é uma pessoa atraente. Na parábola ele é mostrado sujo de sangue, nu e semimorto. Não tem condições para retribuir o amor, o dinheiro e as roupas. Precisa de ajuda e não tem como ressarcir. Deixar de atender esse próximo é incorrer na ira divina, pois significa não apenas transgredir o segundo grande mandamento, mas, também, deixar de praticar o primeiro. A parábola do bom samaritano é atemporal. Podemos substituir ocupações, nacionalidades e raças por equivalentes modernos, e nada mudou desde o dia em que Jesus ensinou a parábola. Portanto, a parábola não é uma história sobre alguém que, simplesmente, 328 329 330

Linnemann, Parables, p. 52. Armstrong, Parables, p. 165. Lv 19.34. Veja-se, também, Michaelis, Gleichnisse, p. 210.

praticou uma boa ação. Ela é uma denúncia contra qualquer um que tenha erguido barreiras protetoras e construído com elas um abrigo331. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é uma ordem que alcança além de nosso círculo de amigos e companheiros cristão. É um chamado para que mostremos misericórdia aos desafortunados que jazem pela estrada de Jericó que é a vida humana. É um clamor às nações desenvolvidas para que atentem ao sofrimento e pobreza sem fim, experimentados pelos povos subdesenvolvidos. Desde os primeiros tempos patrísticos ao tempo atual, os exegetas têm tentado interpretar, simbolicamente, a parábola. Há variações numerosas e algumas até engraçadas. A interpretação de Agostinho é clássica: o homem espancado e assaltado é Adão; os ladrões são o demônio e seus anjos; o sacerdote e o levita são os sacerdotes e ministros do Velho Testamento; o samaritano é Jesus; o óleo é o conforto e o vinho a exortação ao trabalho; a hospedaria é a igreja; as duas moedas são os mandamentos para amar a Deus e ao próximo; e o dono da hospedaria é o apóstolo Paulo332. É muito comum ver Jesus como o bom samaritano, que é amigo e irmão de pessoas vindas dos variados caminhos da vida, de qualquer nação e de todas as raças. Entretanto, ainda que o próprio Lucas passa ter pensado assim quando registrou a parábola, ele não nos dá a menor indicação de que Jesus pretendesse transmitir essa mensagem. Nem o texto, nem o contexto, aceitam tal interpretação333. A mensagem que Jesus ensina através da parábola se resume na expressiva exortação feita ao teólogo que provocou a história: “Vai, e procede tu de igual modo”. Na linguagem de Tiago: “Tomaivos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22).

331

Hunter, Parables, p. 111. Agostinho, Quaestiones Evangeliorum, II, 19. Dodd, Parables, pp. 11,12. Consulte-se Mänek, Frucht, pp. 88,89 para uma avaliação útil de modernas interpretações. Veja-se Gerhardsson, Good Samaritan, pp. 1-31, para um estudo elaborado de possíve1 derivados verbais; J. Daniélou, “Le Bon Samaritain”, Mélanges Bibliques rédiges en I’honneur de A. Robert (Paris, 1956), pp. 45493; H. Binder, “Das Geheimnis vom barmherzigen Samariter”, TZ 15 (1959): 176-94. 333 Morris, Luke (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 191. W. Monselewski, Der barmherzige Samariter. Eine auslegungsgeschichtliche Untersuchung zu Lukas 10.25-37 (Tübingen: Mohr-Siebeck, 1967), p. 16. 332

26. O Amigo Importuno Lucas 11.5-8 “Disse-lhes ainda Jesus: Qual dentre vós, tendo um amigo, e este for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, pois um meu amigo, chegando de viagem, procurou-me, e eu nada tenho que lhe oferecer. E o outro lhe responda lá de dentro, dizendo: Não me importunes; a porta já está fechada, e os meus filhos comigo também já estão deitados. Não posso levantar-me para tos dar; digo-vos que, se não se levantar para dar-lhos por ser seu amigo, todavia, o fará por causa da importunação e lhe dará tudo o de que tiver necessidade”. Lucas registra o Pai Nosso de forma mais breve que a encontrada no Evangelho de Mateus. Ele continua a oração não com uma exortação aos homens para que se amem uns aos outros, mas com uma parábola na qual Jesus ensina àquele que pede, que seja persistente. O ensino da parábola sobre o amigo importuno é reproduzido sucintamente na exortação do apóstolo: “Orai sem cessar” (1 Ts 5.17). Apenas Lucas menciona a parábola do amigo que vem à meia-noite. Em poucas e expressivas palavras, ele descreve o quadro de um homem que não tinha pão — provavelmente usara o último pedaço no jantar — e, então, recebe um amigo que chega de

viagem, à meia-noite334. A cidade era pequena e não era possível obter pão, àquela hora, a menos que procurasse um vizinho de boa vontade que lhe emprestasse alguns. O viajante chegou à meia-noite, talvez para evitar o calor do dia335. Cansado e com fome, procurou a hospitalidade do amigo. Mas, pelo inconveniente da hora, pôs seu hospedeiro numa situação embaraçosa: ou se recusava a hospedá-lo, porque não tinha pão, ou ia procurar o vizinho para pedir alguns pães. Que situação! Se recusasse a alimentar seu amigo viajante, faltaria às normas do bom receber; e se fosse procurar seu vizinho, provavelmente o incomodaria. A história contada por Jesus talvez se baseasse em um fato real e podia ser classificada entre aquelas que se iniciam sempre com a pergunta: “Sabe o que aconteceu...?” Fez sorrir discretamente todos aqueles que a ouviam porque era tão igual à própria vida. Todos queriam saber como a história ia acabar. As casas em Israel, especialmente nas áreas rurais, eram pequenas consistindo de apenas um cômodo usado como sala de jantar e dormitório336. A casa tinha uma porta que permanecia aberta durante todo o dia. Mas, ao anoitecer, quando o sol se punha, o chefe da família fechava a porta e fazia correr uma tranca de maneira que se prendia nas laterais da porta, mantendo-a fechada para evitar os intrusos337. Esteiras eram espalhadas e usadas como camas, nas quais a família toda dormia. Em tais circunstâncias, era muito difícil levantar no escuro e procurar algo. O hospedeiro, desejando cumprir as normas de hospitalidade, caminhou até à casa de seu vizinho e despertou-o, pedindo-lhe: “Amigo, empresta-me três pães, pois um meu amigo, chegando de viagem, procurou-me, e eu nada tenho que lhe oferecer”. Ele chamou o vizinho de amigo, provavelmente para desencorajar qualquer resposta zangada, embora não fosse próprio de um amigo acordar o outro no meio da noite. A questão é saber quem merece o nome de “amigo”. Aquele que foi prestativo com seu vizinho ou o que veio acordá-lo pensando em seu hóspede? 334

Traduções de Lc 11.5 diferem na maneira de considerar a palavra amigo. A versão NIV traduz: “Suponhamos que um de vós tenha um amigo e vá procurá-lo à meia-noite...” Mas a versão NEB diz o seguinte: “Suponhamos que um de vós tenha um amigo que vem procurá-lo no meio da noite...” O amigo é o vizinho que empresta o pão, ou o viajante faminto? Quem é amigo de quem? 335 As viagens à noite eram comuns, nos dias de Jesus; as pessoas prudentes viajavam à noite, como fez José com Maria e o menino Jesus (veja-se Mt 2.9,14). 336 A cozinha ficava, comumente, do lado de fora, ou sob um telheiro. Veja-se Daniel-Rops, Palestine, p. 220. 337 Dalman, Arbeit und Sitte VII:70-72, 178-79; Armstrong, Parables, p. 80; e Jeremias, Parables, p. 157.

Um pão, naqueles dias, não era maior que uma pedra que se pudesse segurar com uma das mãos. Assim, Mateus, no contexto paralelo registra: “Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra?” (Mt 7.9). Três desses pães eram refeição suficiente para uma pessoa. A longa explicação do que pedia emprestado era uma tentativa de descrever ao vizinho a situação embaraçosa em que se achava e revela a esperança de que o amigo o compreendesse. Naturalmente, o hospedeiro estava perfeitamente ciente do problema que seu pedido causaria. Mesmo assim, ele pediu, sabendo que era a única maneira de conseguir pão para oferecer a seu amigo cansado e faminto. Emprestar pão a um vizinho, cujo suprimento se esgotara, era costume comum em Israel. Pela manhã, quando o pão fresco fosse assado, o que fora emprestado era devolvido. O problema não era a quantidade emprestada; era a hora. A voz do vizinho estava longe de agradar. Numa reação bem humana, de alguém cujo sono foi perturbado, ele respondeu: “Não me importunes: a porta já está fechada e os meus filhos comigo também já estão deitados. Não posso levantar-me para tos dar”. Ele mostrou má vontade, não falta de condições para atender o pedido. Ele teria que se levantar, acordar os filhos ao acender a lâmpada, achar o pão, e retirar a tranca para abrir a porta. Seria muito mais fácil se o vizinho desaparecesse na escuridão. Mas o vizinho não lhe deu descanso nem o deixou dormir. Não podia voltar para casa, onde seu amigo estava esperando, com as mãos vazias. Continuou pedindo até que seu vizinho se levantou, acendeu a lâmpada, removeu a tranca, abriu a porta e lhe entregou os pães. O vizinho não fez isto por causa da amizade, mas por causa da insistência daquele que estava pedindo. A palavra insistência é a palavra-chave na conclusão da parábola338. Ela retrata a atitude de um homem que se vê obrigado a mostrar hospitalidade a um amigo que o procurou à meia-noite. No contexto de sua cultura, ele sai de seus hábitos para providenciar alimento para suprir as necessidades de seu amigo. Está disposto a sacrificar a amizade com seu vizinho, a fim de se mostrar um bom hospedeiro. Ele insiste. Sabe que seu pedido receberá resposta apesar das circunstâncias adversas. Nesta parábola, Jesus aplica claramente a regra judaica dos 338

Em todo o Novo Testamento, a palavra anaideia ocorre apenas aqui. Pode ser traduzida como “falta de vergonha” para descrever a impertinência do homem que acordou o vizinho. Jeremias, Parables, p. 158, e Marshall, Luke, p. 465, admitem que a falta de vergonha pode ser atribuída, também, ao vizinho que se recusou a atender o pedido do amigo. A palavra exprime, então, o sentido de “manter a aparência”. O vizinho, portanto, atendeu o pedido, porque não queria trazer vergonha para sua casa, com sua recusa.

contrastes339. E uma norma que destaca o maior ensinando o menor. Nesse exemplo, chamando atenção para a insistência do hospedeiro, que tem certeza de que o amigo lhe emprestará os pães, Jesus ensina que podemos procurar Deus em oração, sabendo que ele vai nos atender. “Digo-vos que, se não se levantar.., por ser seu amigo... o fará por causa da importunação, e lhe dará tudo o de que tiver necessidade. Por isso vos digo: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á” (Lc 11.8,9). Se o vizinho acorda à meia-noite e se levanta para emprestar os pães a seu amigo, muito mais fará Deus, o Pai, respondendo à oração de seu filho, que o procura em necessidade! O que a parábola ensina? Não ensina que, como o vizinho despertado do sono, Deus não gosta de ser importunado. Antes, ela transmite a idéia de que, como o hospedeiro continuou a pedir, sabendo que seu vizinho lhe abriria a porta e lhe daria pão, assim o cristão deve continuar diligentemente em oração. Pela fé, ele sabe que Deus atenderá seus pedidos, e lhe dará muito mais do que necessita. Deus atende às orações em resposta à fé manifestada pelo crente. Por isso, o cristão termina suas orações repetindo a palavra amém. Nas palavras de um catecismo do século dezesseis, a respeito do Pai Nosso: Amém significa, Assim será, com toda a certeza! É muito mais certo Que Deus ouça minha oração, Do que eu estar realmente desejando Aquilo pelo qual estou orando340.

339

Esta regra, chamada Kal Wa-homer (do menos importante para o mais importante), era uma das sete regras de hermenêutica compiladas pelo Rabino HilIel (60 A.C. a 20 DC.) H. L. Strack, Introduction to the Talinud and Midrash (New York: Meridian Books, 1969), pp. 93-94. 340 Catecismo de Heidelbergae, questão 129.

27. O Rico Insensato Lucas 12.13-21 “Nesse ponto, um homem que estava no meio da multidão lhe falou: Mestre, ordena a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós? Então, lhes recomendou: Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui. E lhes proferiu ainda uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico produziu com abundância. E arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: Farei isto: destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. Então, direi à minha alma: tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus”. “Não julgueis, para que não sejais julgados”, disse Jesus no Sermão da Montanha. Ele estava plenamente consciente do significado do que dizia, cercado por uma multidão. Alguém lhe pediu

que fosse juiz numa disputa de família. Dois irmãos vinham discutindo a respeito de uma herança. O pai tinha morrido, e o irmão mais velho, na opinião do mais novo, não tinha cumprido o que estava especificado no testamento. Talvez a herança não tivesse sido dividida por motivos religiosos341. Mas, o irmão mais novo fazia objeção ao curso da ação e fez um apelo a Jesus. Dirigiu-se a ele como “mestre”, que quer dizer “rabino342”. Jesus, no entanto, negou-se a se envolver na disputa e a servir de juiz e árbitro. Recusou-se a se tornar um outro Moisés, que tomou partido em uma contenda e, como resultado, teve que deixar o país343. Não se prestou a ser usado por alguém movido pelos próprios interesses. O irmão que pediu a Jesus para intervir parece ter ido, sozinho, até Jesus. Não temos indícios de que o irmão mais velho tenha concordado em ter uma terceira pessoa avaliando a situação. Nada é revelado, também, a respeito dos pormenores da reclamação. O que fica evidente é que a pessoa que se dirigiu a Jesus queria usá-lo como advogado, juiz e árbitro. Resumindo, queria empregá-lo como se emprega um servo. Deixou de ver Jesus como um mestre. Porque os rabinos conheciam a Lei, e serviam duplamente como mestres e advogados, o irmão, simplesmente, não conseguiu ver a diferença. Por isso, depois de ter-se dirigido diretamente ao homem, Jesus passou a ensinar à multidão uma lição espiritual, fazendo-lhes uma recomendação geral, e contando-lhes uma parábola: “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui”. Como mestre Jesus advertiu o povo contra o perigo espiritual da avareza. A avareza é idolatria344. É o culto à criatura em lugar do Criador. Jesus foi direto à raiz do problema apresentado pelo homem. Descobriu a origem do erro que o levou a pedir a Jesus que fosse seu advogado. Pessoas avarentas não herdam o reino de Deus345. As palavras de Jesus são elaboradas na primeira Epístola de Paulo a Timóteo: “Porque nada temos trazido para o mundo nem coisa alguma podemos levar dele; tendo sustento e com que nos 341

Sl 133.1. Josephus assinala que os essênios desistiam do direito à propriedade privada morando juntos, como fazem os irmão de uma família. Wars 2:122. 342 Os judeus apelariam aos rabinos e fariam referência às Escrituras: Nm 27.1-7; 36.2-10; Dt 21.15-17. 343 Êx 2.14; At 7.27,35. O Evangelho de Tomé, Citação 72, apenas descreve Jesus como um repartidor: “Um homem disse a ele: Fala com meus irmãos para que dividam comigo os bens de meu pai. Ele disse: Homem, quem me pôs como repartidor? Ele se voltou a seus discípulos e lhes disse: Não sou um repartidor, sou?” 344 Cl 3.5. 345 1 Co 6.9,10. J. D. M. Derrett, “The Rich Fool: A Parable of Jesus concerning Inheritance”. Studies in lhe New Testament (Lciden: Brili, 1978), 2:103.

vestir, estejamos contentes” (1 Tm 6.7,8). Comida, roupa e um abrigo resumem as necessidades da vida. Qualquer coisa a mais é abundância e deve ser repartida com os pobres. A Parábola A parábola do rico insensato deixa evidente que a vida, no verdadeiro sentido da palavra, não depende de riquezas materiais. Há alguns anos atrás, estavam muito em moda definições de felicidade: “Ser feliz é...” Mas entre todas as definições, nenhuma mencionava riqueza. A riqueza não traz felicidade. Antes, é, muitas vezes, causa de ruína e destruição. Na parábola de Jesus, um fazendeiro muito rico teve um verão excepcional, porque na ocasião da ceifa tivera uma colheita abundante. O fazendeiro arrazoava consigo mesmo o que fazer com a colheita e onde guardá-la. Ele resolveu: “Farei isto: Destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens.” Falando consigo mesmo e usando os pronomes eu e meu repetidamente, ele revela seu extremo egoísmo346. Deus tinha prometido encher plenamente os celeiros do homem se este o honrasse com os primeiros frutos de tudo que produzisse347. Esse fazendeiro não levava em consideração a promessa de Deus. De fato, mostrou seu desrespeito derrubando seus celeiros e construindo Outros maiores348. Queria ter o controle completo da situação. Não se sentia seguro dependendo de Deus. Mais que isso, jamais passou pela sua cabeça a idéia de ajudar os pobres. Ao contrário, pensou em si mesmo, em seu próprio prazer e segurança. Manifestou extrema desconsideração para com o resumo básico da lei de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Deus e o próximo não existiam para ele. Pensava apenas nele mesmo. “Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te”. O homem rico mostrava apenas auto-indulgência349, o enriquecimento de sua própria vida não era ao menos considerado. A auto-indulgência é feita de egoísmo. O círculo de sua vida tinha se reduzido a um ponto. Ela não se caracterizava pelos pecados de comissão, mas, sim, pelos pecados de omissão. Deixou de agradecer a Deus as riquezas recebidas e foi negligente no cuidado ao próximo necessitado. Sem Deus e sem o próximo, sua existência estava centrado nele mesmo. Só, sem relação com Deus, queria garantir seu futuro. Tiago, em sua 346

Compare-se a parábola à história de Nabal que, com palavras e atos, mostrou-se escravo de seus bens. 1 Sm 25.11. 347 Pv 3.10 e Dt 28.8. 348 Derrett, “The Rich Fool”, p. 112. 349 Compare-se com Ec 11.19.

Epístola, se dirige àquelas pessoas que dizem: “Hoje ou amanhã iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano e negociaremos e teremos lucros”. Replica Tiago: “Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa” (Tg4.13,14). Deus interveio chamando-o de louco350, e dizendo-lhe que morreria naquela noite351. Perderia a vida e todas as suas riquezas. Deus o chamou para prestar contas de seus bens. Queria fazer um balanço de suas posses terrenas e espirituais. O fazendeiro rico tinha empilhado sua colheita em celeiros e acumulado riqueza suficiente para vários anos. Mas porque não repartira seus bens com o próximo, nem havia ajustado contas com Deus, seu saldo no banco espiritual estava a zero. Quando Deus chamou o homem, a conta estava encerrada e não podia ser alterada352. “Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” A questão é retórica e implica que as riquezas do homem, na verdade, pertencem a Deus. Ele as dá e tira no tempo devido. Conclusão Jesus não disse que o homem devia se privar de riquezas terrenas, prazer e bem-estar. Nem tentou dizer ao irmão mais novo, que o procurou com uma queixa a respeito de sua parte da herança, para se desprender de bens materiais. O homem deve compreender que Deus é o dono de sua grande criação, e que colocou o homem como despenseiro do mundo que criou353. Como despenseiro, o homem deve periodicamente prestar contas a Deus. Quando deixa de fazê-lo e age como se fosse proprietário de seus bens, transgride a lei de Deus e se condena como louco. Sempre que vive para si mesmo, ele está espiritualmente morto. Na presença de Deus, nossas mãos estão vazias. “Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele” (1 Tm 6.7). Apenas o que temos oferecido a Deus e a nosso próximo permanecerá. A morte não pode tomar de nós nossas dádivas de amor e gratidão, porque têm valor espiritual. 350

SI 14.1; 53.1. A parábola do rico insensato, no Evangelho de Tomé, Citação 63, difere, em ênfase e propósito, do relato canônico: “Jesus disse: havia um homem rico que possuía muitos bens. Ele disse: usarei meus bens para semear e colher e plantar e encher meus celeiros com frutos, para que nada me falte. Assim pensava consigo. E, naquela noite, morreu. Quem tem ouvidos, ouça”. 352 Derrett, “The Rich Fool”, p. 114. 353 Sl 24.1. 351

Só uma vida, que breve passara; Só o que é feito para Cristo subsistirá. Jesus termina sua parábola instando o homem a armazenar tesouro nos céus e a ser rico para com Deus. Assim Jesus ensinou no Sermão da Montanha: “Porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6.21)354.

28. A Figueira Estéril Lucas 13.6-9 “Então, Jesus proferiu a seguinte parábola: Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e, vindo procurar fruto nela, não achou. Pelo que disse ao viticultor: Há três anos venho procurar fruto nesta figueira e não acho; podes cortá-la; para que está ela ainda ocupando inutilmente a terra? Ele, porém, respondeu: Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”. O proprietário da vinha é tratado apenas como “certo homem”. Se era rico ou não, pouco importa. O que conta não é o que ele é, mas o que diz. Esse homem tinha uma figueira em sua vinha — coisa muito comum em Israel. Depois de ela ter sido plantada, ele teve que esperar três anos até que a árvore começasse a produzir. Então, de acordo com a lei de Moisés (Lv 19.23), teria que esperar outros três anos até que os frutos fossem considerados puros. Passados os primeiros três anos, o proprietário foi procurar frutos na árvore. Ano 354

O contexto geral aponta, obviamente, para o ensinamento do Sermão da Montanha. Portanto, a parábola pode ser vista como uma elaboração da instrução de Jesus para que não armazenemos tesouros na terra, e, sim, nos céus (Mt 6. 19,20).

após ano, procurou e não encontrou fruto algum. A árvore era estéril. Por causa de sua localização, deduzimos que a árvore tinha sido muito bem cuidada. Ocupava uma parte do terreno que podia ter sido usado para as videiras. Cada ano que a árvore permanecia estéril significava prejuízo para o lavrador. Ela absorvia umidade e nutrientes que serviriam para as videiras. A figueira era como uma dívida que aumentava na medida em que se passavam os anos. Outra árvore ou videira poderia ser plantada ali e, dentro de alguns anos, produzir frutos. Há um tempo limite para a paciência do fruticultor. Então basta! O proprietário deu instruções ao homem que cuidava da vinha para que cortasse a figueira. Mas ele pediu ao dono que tivesse ainda um pouco mais de paciência. Queria dar mais um ano à árvore, durante o qual cavaria o solo ao seu redor e a adubaria. “Se vier a dar fruto, bem está, se não, mandarás cortá-la”. A figueira tinha um papel muito importante na vida de um israelita. Ele sabia que Deus a usava para indicar a prosperidade de Israel — cada um vivendo em segurança, debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira355. O contrário também era verdadeiro. Quando Deus se desagradava de seu povo por causa de sua infidelidade, tornava isso conhecido, referindo-se à falta de fruto na videira e na figueira356. Como nação, Israel era, muitas vezes, representada por uma figueira. Tinha recebido lugar escolhido na vinha de Deus e era, portanto, altamente privilegiada. Mas, o privilégio traz a responsabilidade. Israel, no entanto, não correspondeu ao privilégio357. O julgamento de Deus não podia mais ser adiado, e a falta de figos na figueira simbolizava o desagrado de Deus358. A parábola que Jesus ensinou mostra, implícito, um contraste. Se o homem que era responsável pela vinha dispensou cuidado especial a uma figueira, durante um ano extra, quanto mais amor e consideração, mostrará Deus para com o homem, e, certamente, para com seu próprio povo359! Embora a parábola não diga se o dono 355

1Rs 4.25; Mq 4.4 Jr 8.13; Os 9.10; Hc 3.17. 357 A parábola é uma reminiscência do que está registrada em Is 5.1-7. Vides escolhidas foram plantadas numa vinha num Outeiro fértil. Mesmo assim, após todos os cuidados dedicados às vides, elas produziram uvas bravas. Veja-se, também, a história de Aicão. Um pai diz a seu filho: “Meu filho, tu és como uma árvore que o dono é forçado a Cortar porque não produz frutos, embora esteja plantada junto da água. E ela lhe diz: Transplanta-me, e se, mesmo assim, eu não der frutos, corta-me. Mas, seu dono lhe disse: junto da água não dás frutos, como, então, frutificarás, estando em outro lugar?” Jeremias, Parables, p. 170; Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha, 2:775. 358 Is 34.4; Jr 5.17; 8.13; Os 2.12; Jl 1.17. 359 Mànek, Frucht, p. 93. 356

colheu figos no ano seguinte ou se figueira foi cortada, o ponto central da história é que a paciência tem um tempo limite — um ano e nada mais. A misericórdia de Deus é grande, mas, no fim, o dia do juízo virá. O tempo da graça concedido ao pecador deve ser usado por ele para se arrepender e voltar para Deus. Jesus ensinou a parábola da figueira estéril, no contexto histórico do triste feito de Pilatos que misturara sangue de galileus aos sacrifícios que os mesmos realizavam (Lc 13.1-5). Seriam esses galileus assassinados, pecadores que mereciam o castigo divino? A resposta de Jesus foi negativa. “Se não vos arrependerdes”, disse Jesus, “igualmente perecereis”. “Ou cuidais que aqueles dezoito, sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém?”. De novo, Jesus respondeu que não. Chamou outra vez seus ouvintes ao arrependimento, e prosseguiu contando-lhes a parábola da figueira estéril. O que, então, ensina a parábola? No contexto das calamidades que tinham atingido os galileus e os dezoito habitantes de Jerusalém. Jesus afirmou a seus ouvintes que a paciência de Deus resulta em julgamento se o pecador não se arrepende. A quem muito se confiou, muito será exigido. O mesmo sentimento se repete no autor da Epístola aos Hebreus, quando adverte os cristãos, na segunda metade do primeiro século, a que prestem atenção ao evangelho. “Se, pois, se tornou firme a palavra falada por meio de anjos, e toda transgressão e desobediência recebeu justo castigo, como escaparemos nós, se neg1igenciarmos tão grande salvação?” (2.2,3). O ensino da parábola é que, quando o tempo designado para que o homem se arrependa tiver se esgotado, o juízo de Deus estará concluído. O tempo permitido por Deus é um período de graça, e reflete sua misericórdia para com o homem. Deus não caminha apenas a segunda milha. Anda a terceira, e, se necessário, a quarta, a fim de salvar um pecador. Mas, quando sua paciência se exaure e o chamado de Deus para que o homem se arrependa continua negligenciado, então o julgamento é inevitável360. Em nossas orações a Deus, em favor de pecadores impenitentes, devemos pedir mais tempo. Como o jardineiro da parábola pediu mais um ano ao proprietário da vinha, assim devemos pedir um pouco mais de paciência. Do mesmo modo, Paulo, em seu interesse por seus conterrâneos, constantemente implorava a Deus por sua salvação: “Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles é para que sejam salvos” (Rm 10.1). 360

A parábola pode ser vista como simbolicamente cumprida na maldição lançada à figueira (Mt 21.18,19; Mc 11.12-14). É muito marcante que apenas Lucas tenha registrado a parábola da figueira estéril e que dos evangelistas sinóticos ele seja o único que não registra o fato de Jesus ter amaldiçoado a figueira.

Nossa preocupação é com o ganho361 eterno do homem e, por isso, imploramos a Deus que exerça a paciência e conceda a graça.

29. Os Primeiros Lugares Lucas 14.7-14 “Reparando como os convidados escolhiam os primeiros lugares, propôs-lhes uma parábola: Quando por alguém fores convidado para um casamento, não procures o primeiro lugar; para não suceder que, havendo um convidado mais digno do que tu, vindo aquele que te convidou e também a ele, te diga: Dá o lugar a este. Então, irás, envergonhado, ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando fores convidado, vai tomar o último lugar; para que, quando vier o que te convidou, te diga: Amigo, senta-te mais para cima. Serte-á isto uma honra diante de todos os mais convivas. Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado. Disse também ao que o havia convidado: Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que eles, por sua vez, 361

J. Murray, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), 2:47.

te convidem e sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bemaventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos”.

Após o culto na sinagoga, aos sábados, os judeus costumavam ter uma lauta refeição, para a qual, muitas vezes, havia vários convidados362. Um dos principais dos fariseus convidara Jesus para um desses almoços, com o propósito de armar-lhe uma cilada. Lá, bem na frente de Jesus, estava um homem hidrópico. Jesus curaria o homem, no Sábado, ou esperaria até à noite, quando o sábado terminasse? Jesus curou o homem e mandou-o para casa, porque os fariseus se recusaram a responder à sua pergunta, se era ou não lícito curar no sábado. Ainda lhes propôs outra questão, apelando para o seu senso de compaixão e misericórdia: “Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo cm dia de sábado?” Também a essa pergunta, que se referia a coisas da casa, os fariseus não souberam o que responder. Naquele ambiente hostil, onde alguns hóspedes tinham egoisticamente tomado os melhores assentos junto à mesa, Jesus ensinou a parábola dos convidados orgulhosos — uma lição de humildade. Ele usou a cena de uma festa de casamento para a qual certo número de pessoas havia sido convidados. Num banquete de casamento, os divãs eram dispostos na forma de uma ferradura alongada ao redor de uma mesa retangular. À cabeceira da mesa se colocava a pessoa de maior destaque, com o segundo e o terceiro lugares à esquerda e à direita desta pessoa363. Cada divã acomodava três pessoas, cabendo à do meio a honra maior. O divã à esquerda da cabeceira da mesa era o segundo em prioridade, e, depois, o divã da direita. Conseqüentemente, os hóspedes judeus se orientavam pela etiqueta social da época para encontrar o lugar certo à mesa. No entanto, se a escolha de lugares ficasse a critério dos convidados, muitos demonstravam seu egoísmo, preconceito e orgulho. Foi exatamente isso que aconteceu, naquele dia, na casa do fariseu que tinha convidado Jesus. Os fariseus e os doutores da lei tinham criado um clima de soberba e arrogância desprovido de amor e humildade. Nessas circunstâncias, Jesus ensinou uma lição de autodepreciação. A parábola é encontrada apenas no Evangelho de Lucas, embora o sentimento que ela expressa ocorra cm outros lugares dos Evangelhos e Epístolas364. Naturalmente, nos lembramos de quando 362

SB, II:202. A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah (Grand Rapids, Eerdmans, 1953) 2:207. Veja-se, também, Morris, Luke, p. 231. Plummer, SI. Luke, p. 356; SB, IV: 2.618. 364 Por exemplo: Mt 18.4; 23.12; Rm 12.16; 1 Pe 5.6. 363

Jesus lavou os pés dos discípulos, no cenáculo, na noite em que foi traído. O Exemplo Os fariseus e os doutores da lei estavam acostumados com os Provérbios de Salomão. Conheciam muito bem o trecho que diz: “Não te glories na presença do rei, nem te ponhas no meio dos grandes; porque melhor é que te digam: Sobe para aqui; do que seres humilhado diante do príncipe” (Pv 25.6,7). Jesus se referiu habilmente a esta passagem quando descreveu um salão cheio de convidados para as bodas, assentados à mesa. Um convidado mais importante chegou quando todos os assentos escolhidos junto da mesa estavam já ocupados365. O anfitrião não podia permitir que esse hóspede tão ilustre tomasse um lugar inferior. Isso seria uma quebra imperdoável da etiqueta. Em tal caso, o hospedeiro tinha apenas uma escolha: pedir à pessoa que ocupava o lugar de honra, ao qual não tinha direito, que ocupasse um lugar inferior, e, então convidar o visitante ilustre para ocupar o lugar de destaque. O convidado, humilhado, aprenderia uma lição difícil de esquecer. Ao chegar, não seria mais prudente ocupar o lugar de menor destaque, à mesa? Se o anfitrião julgasse que o lugar ocupado era modesto demais, convidaria o hóspede, dizendo: “Amigo, senta-te mais para cima”. Conseqüentemente, o convidado seria honrado na presença de todos os outros. Do lugar mais humilde até ao mais honrado. As palavras de Jesus: “Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado”, eram muito familiares naquela época. Um contemporâneo de Jesus, o Rabino Hillel, citava um provérbio judaico semelhante: “Minha própria submissão é minha exaltação; minha própria exaltação é minha submissão366”. Jesus não pretendia ensinar aos fariseus e teólogos apenas algumas regras de boas maneiras à mesa. Ensinou uma lição de humildade e amor dirigindo-se aos convidados que ali estavam, bem como àquele que o convidara. Jesus disse ao hospedeiro que este não devia convidar com interesse de ser recompensado: “Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes?” (Mt 5.46). Se o anfitrião convida seus parentes, amigos e conhecidos para comerem com ele, com a intenção de que eles, depois, também o convidem, estará pensando no quanto receberá de volta. Mas, se convida pessoas que são financeira e socialmente impossibilitadas de retribuir o convite, sua recompensa será paga pelo próprio Deus, por ocasião da ressurreição. Quem promoveria um banquete e convidaria a mais baixa 365

Os doutores da lei eram notórios por ocuparem lugares de honra nos banquetes. Veja Mt 23.6 e seus paralelos: Mc 12.39; Lc 20.46. 366 Midrash Rabbath Leviticus, I, 5 (London: 1961), p. 9

classe da sociedade: os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos? Financeiramente, os pobres dependem dos ricos, e aqueles que são aleijados, coxos e cegos, muitas vezes, precisam da ajuda dos que são fisicamente capazes. Essas pessoas não têm meios nem força para retribuir os favores. Quando o convite é extensivo às pessoas que não têm acesso aos prazeres da mesa, gozados pelos ricos, a bênção se torna merecida. Naturalmente, Jesus não estava dizendo que o anfitrião deveria convidar apenas os oprimidos. Ele ensina que os nossos atos devem ser praticados sem que esperemos reciprocidade. Devem ser executados com espírito de humildade e amor desinteressados. Tais atos recebem a aprovação divina, pois: “Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25.4411). Este ensino universal não se limita ao oferecimento de banquetes, mas inclui também todas as dádivas que não podem ser retribuídas por aqueles que as recebem.

30. A Grande Ceia Lucas 14.15-24 “Ora, ouvindo tais palavras, um dos que estavam com ele à mesa, disse-lhe: Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus. Ele, porém, respondeu: Certo homem deu uma grande ceia e convidou muitos. À hora da ceia, enviou o seu servo para avisar aos convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante, todos, à uma, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um campo e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro disse: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te que me tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me e, por isso, não posso ir. Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o dono da casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos da cidade e traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Depois, lhe disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar. Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga a todos a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia”. Ao ensinar na casa de um dos principais dos fariseus, Jesus provocou o comentário de um dos convidados que estavam com ele à mesa. Ele disse: “Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus.” Falando assim, deixava implícito que, a qualquer custo, ele estaria presente nas festas celestiais. Mas, quando o convite para a celebração desta festa nos céus chegasse, estaria ele disposto a aceitá-lo? Jesus quis testar a sinceridade do homem e contou a parábola sobre uma grande ceia. A História Uma pessoa abastada, numa certa cidade, preparou cuidadosamente uma grande ceia. Ele tinha falado a respeito com numerosos amigos que receberam bem sua idéia de oferecer um banquete. Disseram-lhe que, quando tudo estivesse pronto, o que tinha a fazer era falar, e eles iriam. No dia da ceia, o homem mandou seu servo avisar os convidados que já estava preparada a festa367. Ele chegou à casa do primeiro convidado, e disse: “Vinde, porque tudo já está preparado.” Infelizmente, o convidado tinha um compromisso e, com tristeza, teve que recusar o convite. Disse ao servo: “Comprei um campo, e preciso ir vê-lo”. Realmente, queria dizer: “Sinto muito, mas não posso comparecer ao banquete. Os negócios vêm antes do prazer. Rogo-te que me tenhas por escusado”. Mandou lembranças ao anfitrião, e esperou que este o compreendesse. 367

A prática de enviar servos para chamar os convidados era muito comum nos tempos antigos. Ester 6.14 e SB, 1:880.

O servo procurou o segundo convidado, e chamou-o para a ceia, pois o anfitrião estava à espera: “Vinde, porque tudo já está preparado”. O homem pareceu perplexo, ao ouvir o convite. Estava tratando de negócios. Tinha acabado de pagar uma quantia razoável por cinco juntas de bois e se preparava para experimentá-las. Não podia sair, pois os homens que conduziam os bois dependiam dele. Era o único que podia tomar decisões. Era o chefe, ali. Sair de sua fazenda naquele momento, para tomar parte em um banquete, seria muita irresponsabilidade. Ele expressou profundo pesar e pediu ao servo que levasse suas saudações ao anfitrião. Tinha certeza de que o outro entenderia sua situação embaraçosa. O servo continuou, e bateu à porta do terceiro convidado. A esta altura já estava preparado para receber resposta negativa ao convite de seu senhor. Quando fez ao convidado, o chamado para o banquete, ficou sabendo que este se casara durante aquela semana, e estaria ocupado com suas próprias festas. Realmente, ele nem precisava se justificar. Ninguém estranharia o fato de o noivo querer ficar ao lado de sua noiva. Depois de ter falado com todos os convidados, o servo voltou ao anfitrião e transmitiu-lhe todas as desculpas e lembranças enviadas. Compreensivelmente, o dono da casa não se sentiu satisfeito. Ficou muito zangado. Não podia perder toda a comida preparada. Não tinha outra escolha senão encher sua casa com outros convidados. Assim, ordenou ao servo que fosse às ruas e becos da cidade e trouxesse para a ceia os mendigos, aleijados, cegos e coxos, que encontrasse. O servo cumpriu as ordens do seu amo, mas, quando os convidados já estavam assentados, ainda sobrava lugar. O senhor o enviou, para que buscasse todos os marginalizados pela sociedade, que encontrasse pelos caminhos e atalhos da cidade. O anfitrião queria que todos os lugares do banquete fossem ocupados, de modo que se algum daqueles que convidara antes chegasse atrasado, não poderia entrar, pois não haveria mais lugar. Interpretação Um dos convidados presentes à casa do fariseu ilustre tinha dito: “Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus.” Ele visualizava o céu como o lugar onde não há mais morte, luto, lágrimas, ou dor (Ap 21.4), onde os cegos vêem e os coxos andam. Que bênção se assentar em lugar reservado, à mesa de Deus, como um filho seu, e participar com gozo da festa e da comunhão celestiais. Jesus ensinou a parábola da grande ceia para mostrar que mesmo tendo intenção de honrar nossas obrigações em relação a Deus, quando os cuidados e interesses da vida terrena fazem seus reclamos, nós os pomos em primeiro lugar, e oferecemos nossas desculpas a Deus. Prometemos a Deus amá-lo com todo o nosso

coração, toda a nossa mente e toda a nossa alma. Porém, a promessa prontamente se esvazia quando os interesses desta vida exigem nossa atenção. Então, apresentamos nossas desculpas a Deus e dizemos que ele deve compreender o acúmulo de nossas responsabilidades, nossos compromissos, e que as oportunidades não se apresentam com muita freqüência368. Nossas obrigações, relacionamentos e conveniências contrariam, freqüentemente, a promessa de amar a Deus e de servi-lo. Satisfazemos nossos próprios interesses e esperamos que Deus nos dê uma segunda oportunidade. As desculpas apresentadas pelos convidados simplesmente não se sustentariam. Elas fazem referência a negócios e assuntos de família que poderiam facilmente ficar em segundo plano em relação ao convite anteriormente aceito. O campo ainda estaria lá no dia seguinte, para ser vistoriado. Os bois poderiam descansar por uma noite e os recém-casados poderiam concordar numa separação ocasional. A seqüência de desculpas atinge um limite. Na fala de Jesus, após o almoço, percebemos uma nota de humor. Primeiro, o exemplo do homem que tinha comprado um campo é despropositado — quem compra um campo vai vê-lo antes de comprá-lo, não depois. Do mesmo modo, a segunda desculpa não convence — as cinco juntas de bois podiam ser postas para trabalhar no dia seguinte369. Além disso, se o fazendeiro não tivesse experimentado as juntas de bois antes de comprá-las, teria feito uma grande tolice. O terceiro exemplo foi o ponto culminante das ilustrações. O marido recém-casado, incapaz de deixar a esposa por uma noite, fornece excelente material para inúmeras brincadeiras370. Ao enumerar essas desculpas, o objetivo de Jesus era mostrar sua inconsistência e fragilidade. Ninguém poderia levá-las a sério. Elas simplesmente não resistiriam. Nos dias de Jesus todo mundo sabia da importância de um convite para um banquete. Recusar-se a atender o segundo convite constituía um insulto ao dono da casa — em tal grau que, entre as tribos árabes, equivalia a uma declaração de guerra371. O convite devia ser considerado uma ordem. 368

Schippers, Gelijkenissen, p. 45. O fazendeiro que comprou cinco juntas de bois devia possuir muita terra. Provavelmente, mais de 45 hectares (111 acres). Jeremias, Parables, p. 177. 370 H. Palmer, “Just Married, Cannot Come”, NovT 18 (1976):241-57. Veja especialmente a página 248. O Evangelho de Tomé, Citação 64, tem uma série maior de desculpas. A primeira: “Alguns comerciantes me devem dinheiro; virão me procurar esta noite; preciso dar algumas ordens a eles. Peço para ser dispensado do jantar.” O segundo convidado disse: “Comprei uma casa, estarei ocupado durante todo o dia.” O terceiro disse: “Meu amigo vai se casar e eu vou ser responsável pela festa. Peço desculpas por não ir ao banquete.” O quarto se desculpou, dizendo: “Comprei uma vila; tenho que receber o aluguel; não poderei ir. Peço que me tenhas por escusado”. 371 Plummer, St. Luke, p. 360. 369

Os que ouviam Jesus, na casa do fariseu, compreenderam que a parábola era endereçada a eles. O hospedeiro e seus hóspedes estavam sendo convidados novamente para o banquete de Deus, ao qual já tinham aceitado comparecer. Eles viriam ou Deus deveria procurar outros, porque os hóspedes convidados se recusavam a ir? Jesus disse aos fariseus e aos doutores da lei que o banquete de Deus não é um acontecimento a ser celebrado no final dos tempos. A festa já está pronta e Deus espera, então, a resposta que têm para dar372. Respondendo ao homem que tinha comentado: “Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus”, Jesus falou: “Sim. Vinde, porque a festa já está preparada. Os convidados devem vir agora. Depois será tarde demais.” As instituições religiosas dos dias de Jesus não estavam preparadas para aceitar a vinda do reino, apesar dos sinais e maravilhas realizados por Jesus, diante de todos. Pela parábola, Jesus deixou entrever que não haverá falta de cidadãos no reino de Deus. Se os líderes religiosos de Israel rejeitassem o convite de Deus para a entrada no reino, ele o estenderia aos marginalizados pela sociedade, isto é, aos coletores de impostos, indecisos e gentios373. A mensagem de salvação não foi aceita pelos líderes religiosos dos dias de Jesus. Ela muitas vezes foi alvo de escárnio e desprezo. O povo comum a aceitou com ardor. Marginais, ignorantes, samaritanos e gentios atenderam prontamente ao chamado de Jesus. Colocação A parábola da grande ceia foi contada por Jesus após um almoço de sábado, que se seguiu ao culto da manhã. A parábola sobre o banquete das bodas foi contada por Jesus nos últimos dias de seu ministério terreno (Mt 22.1-14). As duas têm um tema comum, mas sua disposição é inteiramente diferente. Em Lucas, a parábola é dirigida aos fariseus e doutores da lei. Em Mateus, a parábola do banquete nupcial se volta contra os líderes religiosos 374. O relato de Mateus se refere à dura realidade de um rei que, provocado até à ira, reage com pronto castigo. No Evangelho de Lucas, o quadro apresentado é o de um anfitrião que, se sentindo deliberadamente menosprezado, extravasa seus sentimentos convidando a escória da sociedade. Os quatro Evangelhos mostram, repetidamente, que Jesus ensinava à maneira dos rabinos daquela época375. Para ele, ensinar 372

Huner, Parables, p. 94. Linnemann, p. 91. Talvez a diferença entre os desamparados que vivem na cidade e os que estavam fora, no campo, se refira ao judeu errante, que “não está longe do reino”, e ao gentio destituído de instrução religiosa. 374 Palmer, “Just Married”, p. 256. 375 E. Schürer, A History of the Jewish People in the Time of Jesus Christ, 373

significava repetir. Assim, ensinou a parábola da grande ceia na ocasião em que foi convidado para um almoço de sábado na casa de um fariseu. Alguns dias antes de sua morte, ele contou a parábola sobre o banquete de núpcias376. Quando Jesus contou a parábola da grande ceia, aqueles que tinham instrução religiosa e teológica puderam perceber a alusão a duas passagens encontradas em Deuteronômio: “Os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual o homem que edificou casa nova e ainda não a consagrou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e outrem a consagre. Qual o homem que plantou uma vinha e ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e outrem a desfrute. Qual o homem que está desposado com alguma mulher e ainda não a recebeu? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e outro homem a receba” (Dt 20.5-7). “Homem recém-casado não sairá à guerra, nem se lhe imporá qualquer encargo; por um ano ficará livre em sua casa e promoverá felicidade à mulher que tomou” (Dt 24.5). Os teólogos sabiam que estas passagens eram válidas apenas em relação à guerra e ao serviço militar e que não serviam de desculpa para obrigações sociais377. Eles conheciam, também, os costumes prevalecentes. Quando o primeiro convite fosse feito, o hospedeiro poderia aceitar as desculpas apresentadas. Recusar um segundo convite, quando tudo já estava preparado, era não apenas faltar ao prometido, mas também insultar o hospedeiro. A parábola, claramente, se dirigia e se aplicava aos fariseus e doutores da lei. Se não aceitassem o convite para serem hóspedes de Jesus, no reino de Deus, seriam deixados de lado, e outros, que não mereciam seu respeito, tomariam seus lugares. Aplicação O hospedeiro é, às vezes, visto como vítima das circunstâncias. Seria compreensível que um dos convidados declinasse o convite, mas o anfitrião fica sabendo que todos se recusaram a ir378. Talvez Division II, vol. 1 (Edinburgh: T&T Clark, 1885), p. 324. 376 Palmer, “Just Married”, p. 255. 377 Morris. Luke, p. 234. P. II. Ballard, “Reasons for Refusing the Great Supper”, JTS 23(1972): 345. 378 Jeremias, Parables, p. 179, afirma que “podemos pensar que o hospedeiro era um coletor dc impostos que, tendo-se tornado rico, tenha enviado convites com a esperança de ser aceito nos mais altos círculos.” Ele se baseia na convicção de que Jesus tenha usado uma história corrente, naqueles dias, de um rico publicano, Bar

seja mais lógico ver menosprezo deliberado no fato de que todos os convidados — e não temos que nos ater a apenas três exemplos — se recusaram a ir. Ainda que não tenham combinado ente si, o efeito foi o mesmo. Os convidados refletiam a atitude da hierarquia religiosa. Jesus envolveu a si mesmo na conclusão, quando disse: “Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia.” Quem fala já não é mais o hospedeiro dirigindo-se ao servo. Jesus é a figura central, é ele quem fala “minha” ceia, e diz que nenhum dos convidados insolentes provará da sua comida379. Jesus é o anfitrião que, através de seus servos, envia convites chamando o povo para a festa no reino de Deus. Quando o convite é enviado por Jesus, com seus servos falando ao povo, não deve ser entendido como um chamado que pode ser aceito ou rejeitado, de acordo com a própria vontade. O chamado é equivalente a uma ordem que deve ser cumprida380. O povo de Deus, que é parte e parcela da igreja, recebe o chamado para o serviço obediente. Já responderam ao convite inicial. Agora, soa o chamado para o serviço. Será que o povo de Deus vai responder à ordem de amar a Deus de todo o coração e ao próximo generosamente381? O homem que come do pão do banquete no reino de Deus é chamado de bem-aventurado, porque obedece às leis do reino e cumpre as ordens do Rei. A lição da parábola é clara. Jesus está enviando seus servos com a mensagem da vinda do reino de Deus. Os que ouvem a mensagem são convidados a fazer parte desse reino. Não devem apresentar desculpas e se demorar porque Jesus não reservará um lugar para eles382. Ele preencherá os lugares de seu reino com outros, que virão daqui e dali. Ele quer que sua casa fique repleta. Ele diz: “Obriga a todos a entrar”. A parábola tem sentido obviamente missionário. Jesus reúne seu próprio povo das ruas e becos da cidade, e das estradas e atalhos dos campos. Ele não se envergonha de chamar de seus irmãos os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos (Hb 2.11). Estes são feitos santos e pertencem à família de Deus. Numa época em que muitos que pertencem à igreja oferecem fracas desculpas para não participarem da obra contínua do reino de Deus, os servos fiéis de Deus devem sair às ruas e becos da vida, com o convite para que Ma’Jan, registrada no Talmud Palestino (1. Sanh. 6-23c par. 1. Hagh 2.77d). É discutível, no entanto, se a parábola copia a história. Linnemann, Parables, pp. 160-62; F. Hahn, “Das Gleichnis von der Einladung Zum Festmahl, “Verborum Veritas”, p. 67; Derrett, Law in lhe New Testament, p. 143. 379 Derrett, Law in the New Testament, p. 141, afirma que um hospedeiro enviaria porções da comida a amigos que não pudessem comparecer ao banquete. Distribuindo a comida aos pobres, o anfitrião recusou até mesmo “um sinal de reconhecimento e reciprocidade”. 380 Michaelis, Gleichnisse, p. 158. 381 O. Glombitza, “Das Grosse Abendmahl Luk XIV 12-24, NovT 5 (1962):15. 382 Palmer, “Just Married”, p. 253.

todos aceitem a Jesus Cristo, o Salvador do mundo. Enquanto esses que se recusam a tomar conhecimento do chamado de Jesus são preteridos e perdem sua cidadania do reino, estranhos ao reino são convencidos a responder, pela fé, ao chamado de Cristo. O convidado precisa ter fé para aceitar o convite. Quando o servo chega com o recado do hospedeiro: “Vinde, porque tudo já está preparado”, o convidado vê apenas um homem383. Quando um ministro da Palavra de Deus proclama a mensagem de salvação, muitos que ouvem a Palavra vêem apenas um homem. É preciso fé para que se possa ver e ouvir, através do pregador, Jesus Cristo, o Salvador, que oferece, de graça, salvação plenária. O carcereiro de Filipos procurou Paulo e Barnabé, e lhe foi dito: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e tua casa” (At 16.31).

383

Wallace, Parables, p. 69.

31. O Construtor da Torre e o Rei Guerreiro Lucas 14.28-33 “Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo”. As parábolas gêmeas sobre o homem que queria construir uma torre e o rei que devia partir para a guerra são encontradas apenas no Evangelho de Lucas. Foram contadas quando Jesus seguia da Galiléia para Jerusalém, acompanhado por grandes multidões. O povo, de modo errôneo, via Jesus como um governante terreno que caminhava para Jerusalém, a fim de estabelecer seu reino, e queriam estar lá com ele e seus discípulos. Mas, em Jerusalém Jesus não ocuparia nenhum trono secular. Seria, antes, aprisionado, julgado e executado. Seus seguidores iriam perceber o custo do discipulado antes mesmo de se decidirem a lançar sua sorte com Jesus384. Deviam saber que qualquer um que não aborreça seus parentes e até sua própria vida por causa de Jesus, não pode ser seu discípulo (Lc 14.2527). Em termos semíticos, aborrecer significa amar menos alguém ou alguma coisa. Significa que ninguém ou nada deve ter prioridade. Tudo mais deve ser relegado a segundo ou terceiro plano. Apenas aquele que afirmar: “Jesus é o primeiro em minha vida” pode ser seu discípulo. Ser discípulo de Jesus significa carregar sua própria cruz e seguir Jesus onde quer que ele vá. O único que disse: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados...” (Mt 11.28), disse também: “Qualquer que não tomar a sua cruz, e vier após mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14.27). “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus” (Lc 9.62). O discipulado exige compromisso de entrega total a Jesus. “É preciso avaliar o custo”, Jesus disse à multidão que o acompanhava, “e considerar o que realmente representa me seguir”.

384

O tema “o custo do discipulado” é estudado em livro do mesmo título, de Dietrich Bonhoeffer. Neste trabalho, Bonhoeffer fala da auto-entrega e do auto-sacrifício dos quais deu pessoal-mente testemunho, quando foi executado em 9 de abril de 1945, numa prisão alemã.

As Duas Parábolas Para ilustrar o que queria ensinar, Jesus contou duas parábolas relativamente curtas. A primeira é tirada do cenário agrícola daqueles dias, e a segunda de um fato político. As duas parábolas ensinam a mesma lição e, com simplicidade, vão direto ao objetivo. Suponhamos, diz Jesus, que um fazendeiro resolva construir uma torre em sua fazenda. Ele precisa de um lugar onde guardar suas ferramentas e suas provisões. Quer proteger sua propriedade de estranhos e ladrões. Se construir a torre obterá respeito na comunidade e sua propriedade aumentará seu valor. Reconhece a necessidade da construção385, mas não se assenta para calcular o total do custo do material e da mão de obra envolvidos. Começa a construção da torre lançando os alicerces. Quando está ocupado com a estrutura, o dinheiro acaba e ele tem que abandonar o projeto. Ali fica a torre, inacabada, e, num certo sentido, sem valor. O fazendeiro perdeu seu dinheiro investindo-o numa construção que não pode usar, inacabada como está. Perdeu seu prestígio na comunidade, pois todos os que vêem a estrutura incompleta o ridicularizam dizendo: “Este homem começou a construir e não pôde acabar”. Ele se tornou motivo de riso no lugar. Com seus exemplos, Jesus vai da fazenda para o palácio. Suponhamos, ele diz, que um rei precise combater outro rei. Uma disputa territorial se estabeleceu, paixões se inflamaram, palavras de retaliação e vingança se fizeram ouvir. Como líder, o rei precisava decidir se partia ou não para a guerra. Ele seria completamente louco se enviasse para a guerra seu exército de dez mil homens para se confrontar com o dobro de soldados, no campo de batalha. Então se assenta, antes, com seus conselheiros militares e calcula o risco de partir para a guerra contra um inimigo superior em força. Se for prudente, enviará alguns delegados para discutir os termos de paz com o inimigo e evitar o derramamento de sangue386. A ênfase é a mesma nas duas parábolas, embora variem os pormenores. Na que fala sobre o construtor da torre, a mensagem é: avalie o custo, antes de construir. Na do rei guerreiro, é: considere as possibilidades de sucesso, antes de enviar seus soldados à batalha; esteja pronto, e disposto a ceder. “Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo”, diz Jesus. 385

Smith, Parables, p. 220, raciocina que, por causa da referência ao custo do alicerce, algo de maior valor que o simples erguimento de uma torre de vigia, em uma vinha, deve ser levado em conta, talvez, uma construção rural”. 386 O Evangelho de Tomé, Citação 98, tem um interessante paralelo à parábola do rei guerreiro: “Jesus disse: O reino do Pai é semelhante a um homem que queria matar um outro homem poderoso. Ele sacou sua espada dentro de sua casa e golpeou com ela a parede, até saber que sua mão tinha força suficiente. Então, matou o homem poderoso”.

Conclusão À primeira vista, o ensino das parábolas parece contrariar a mensagem do evangelho de Cristo, de fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.19). Depois de refletir, no entanto, ninguém pode dizer que as parábolas pretendam desencorajar possíveis discípulos. Em conjunto, os dois exemplos usados por Jesus mostraram-lhes como se tornar verdadeiros discípulos. Jesus não quer e nem precisa de seguidores cujos corações não estejam totalmente comprometidos. Tais seguidores são como as sementes que caem nos lugares rochosos. Ouvem a Palavra e a recebem imediatamente, com alegria. Mas, porque não têm raiz, não permanecem. Quando vem a dificuldade e a perseguição, por causa da Palavra, desistem (Mt 13.20,21). As parábolas põem em destaque dois pontos principais: (1) O discípulo de Jesus deve ponderar tudo muito cuidadosamente; e, (2) deve estar disposto a renunciar tudo por causa de Jesus387. O discipulado não se baseia em emoções fingidas e entusiasmo superficial. Estes vêm e vão. Mas o compromisso genuíno é o alicerce no qual o discípulo de Jesus constrói. Ele tem que avaliar o custo, com cuidado, e analisar os riscos que corre ao seguir Jesus. Deve renunciar prontamente a seus parentes e posses, a fim de tomar sua cruz e seguir a Jesus. Três vezes Jesus repete o refrão: “não pode ser meu discípulo” (Lc 14.26,27,33). Com toda a certeza, apenas aqueles que avaliaram o custo e estão dispostos a renunciar a tudo por causa de Cristo são verdadeiramente seus discípulos.

387

P. G. Jarvis, “Expouding the Parahles. V. The Tower-builder and the King going to War (Luke 14.25-33), ExpT 77 (1966): 197.

32. A Ovelha Perdida Mateus 18.12-14 “Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e nove, indo procurar a que se extraviou? E, se porventura a encontra, em verdade vos digo que maior prazer sentirá por causa desta do que pelas noventa e nove que não se extraviaram. Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”. Lucas 15.4-7 “Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha perdida. Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. Entre as parábolas contadas por Jesus, a da ovelha perdida é a que cm tido maior apelo entre as crianças. Elas conseguem visualizar a ovelha perdida, o amor e a preocupação do pastor, e sua alegria e felicidade quando a reencontra. Muitas canções e hinos têm sido escritos sobre o tema. Tanto Mateus quanto Lucas registraram a parábola da ovelha perdida. Em resumo, os dois relatos se mostram idênticos, embora haja variação nos pormenores. É bem possível que Jesus tenha contado a parábola duas vezes, em ocasiões diferentes 388. Além disso, histórias sobre pastores e ovelhas tinham particular interesse e significado para a sociedade pastoril daqueles dias. Em Mateus, bem como em Lucas, Jesus começa a parábola com uma pergunta de retórica que, em Lucas, envolve os ouvintes (“Qual, dentre vós”): “... que, possuindo cem ovelhas... não deixa no deserto as noventa e nove...?” Alguém que possuísse cem ovelhas não era um homem de muitos recursos. Ele mesmo tomava conta do rebanho, conhecia-as pelo nome e as contava pelo menos uma vez por dia389. Quando o pastor se distraiu por momentos, uma das ovelhas se afastou, abocanhando algo aqui e ali, até que estava completamente 388

Marshall, Luke, p. 600’; Plummer, St. Luke, p. 368. Para um estudo mais detalhado, consulte-se J. Jeremias, “Tradition und Redaktion in Lukas 15”, ZNW 62 (1971): 172-89. 389 E. F. F. Bishop, “The Parable of the Lost or Wandenng Sheep”, ATR 44 (1962): 50.

desgarrada do resto do rebanho. O pastor deixou o resto do rebanho nos montes (Mateus) ou no deserto (Lucas)390. Embora a parábola diga apenas que o pastor deixou as noventa e nove ovelhas, não menciona que as deixou desprotegidas391. Além do mais, o objetivo da parábola não são as noventa e nove, e, sim, aquela que se perdeu. As ovelhas são animais gregários; vivem juntas em grupo. Quando uma ovelha se separa do rebanho, fica desnorteada392. Deita no chão, imóvel, esperando pelo pastor. Quando ele, afinal, a encontra, coloca-a sobre os ombros, para caminhar de volta, mais depressa, até onde deixou o rebanho393. Logo o pastor, a ovelha e o rebanho estão todos juntos outra vez. Este poderia ter sido o final da história, mas não foi. A história cresce em emoção no seu clímax com a alegria que toma conta do pastor. Jesus diz: “... em verdade vos digo que maior prazer sentirá por causa desta, do que pelas noventa e nove, que não se extraviaram” (Mt 18.13). Para ser verdadeira a felicidade precisa ser compartilhada. O pastor vai para casa, chama seus amigos e vizinhos e os convida a se alegrarem com ele, porque, diz o pastor: “... já achei a minha ovelha perdida” (Lc 15.6). A tensão que o pastor sentira enquanto procurava a ovelha extraviada tinha desaparecido, dando lugar à alegria394. Ele comemora com seus amigos e vizinhos. Aplicação Os relatos de Mateus e Lucas diferem, obviamente, na aplicação, por causa das circunstâncias históricas nas quais Jesus contou a parábola. No Evangelho de Mateus, uma pergunta foi proposta pelos discípulos: “Quem é, porventura, o maior no reino dos céus?” Ao responder, Jesus, de modo muito significativo, colocou uma criança no círculo dos discípulos e lhes disse: “Se não vos converterdes e não vos tomardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 18.3). Prosseguiu advertindo-os a não fazer “tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim”, nem a desprezá-los. Jesus, então, contou a parábola da ovelha perdida e aplicou-a as crianças. “Assim, pois, não é da vontade de 390

M. Black. Ais Aramalc Approach lo lhe Gospels and Acts, 3rd cd. (Oxford; Clarendon Press, 1967), p. 133, sugere que a palavra montes pode ter recebido a influencia do aramaico tura, “que no siríaco da Palestina tinha dois sentidos: montanha’ e ‘campo’, o ‘campo aberto’ em contraste com os lugares habitados”. 391 “Devemos imagina-las em algum lugar cercado” Smith, Parables, p. 188 nº 2. 392 Armstrong, Parables, p. 185. 393 Jeremias, Parables, p. 134, e Brouwer, Gelijkenissen, pp. 225-26, descreve o pastor com uma ovelha ao redor do pescoço, segurando suas patas dianteiras e traseiras com cada uma das mãos. Veja-se também SB, 11:209. 394 O Evangelho de Tomé, Citação 107, mostra uma tendência gnóstica na parábola, acentuando o amor do pastor pela ovelha, por causa de seu tamanho: “Disse Jesus: o reino é como um pastor que possuía cem ovelhas. Uma delas se extraviou; era a maior delas. Ele deixou as noventa e nove e procurou aquela até encontrá-la. Após o esforço, disse à ovelha: “Eu te quero mais que às noventa e nove”.

vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”. No contexto, a expressão se refere às crianças, mas, levando em conta a demonstração visual feita por Jesus, colocando uma delas no círculo dos discípulos, “estes pequeninos” passam a ter conotação espiritual. Jesus está se referindo àqueles cuja fé mantém a simplicidade das crianças395. Como um pastor vigia suas ovelhas, e até mesmo sai à procura daquela que se extravia, assim Deus cuida daqueles que acreditam nele, especialmente as ainda crianças na fé396. Se algum se extraviar, Deus irá a busca dele porque não quer “que pereça um só destes pequeninos”. O Evangelho de Lucas relata que Jesus foi cercado por publicanos e “pecadores”, que tinham vindo para ouvi-lo397. Os fariseus e os escribas se escandalizaram com isso e murmuravam: “Este recebe pecadores e come com eles” (Lc 15.2). Cercado por aqueles que ainda eram crianças no espírito, Jesus contou a parábola da ovelha perdida, e concluiu, dizendo: “Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” Jesus comparou os publicanos e as pessoas sem moral a uma ovelha que se extraviou. Perdida, ela não respondeu mais ao chamado do pastor. Não queria se mexer. Quando o pastor a encontrou, teve que erguê-la e colocá-la em seus ombros para levá-la de volta ao rebanho. Os coletores de impostos eram judeus empregados pelo governo romano. O povo os considerava traidores e os afastava da sociedade. Pertenciam à mesma classe dos marginalizados moralmente. Um judeu não devia ter qualquer contato com tais pessoas, e muito menos comer com elas. Havia barreiras entre os judeus e os “pecadores”, mas estas não impediram que Jesus ensinasse aos marginalizados a mensagem da salvação. Ele lançou uma ponte sobre esse abismo e trouxe o pecador de volta para Deus. Deus se alegra mais por um desses proscritos que se arrependem que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento398. Ele está genuinamente interessado na salvação do pecador. Como um pastor, ele vai à procura do homem que é incapaz 395

Morison, St. Matthew, p. 317. Jeremias, Parables, p. 39, traduz Mt 18.14 da seguinte maneira: “não é da vontade de Deus que nenhum destes mais pequeninos se perca.” Ele aplica a expressão “mais pequeninos” aos apóstatas que deveriam receber o cuidado pastoral por parte da comunidade cristã (p.40). 397 K. H. Rengstorf, TDNT, 1:327-28, apresenta uma dupla interpretação da palavra pecador, como era entendida pela hierarquia judaica. (a) O pecador é “um homem que vive em oposição, consciente ou intencionalmente, à vontade divina (Torá), diferentemente do justo que faz da submissão a esta vontade sua alegria de viver”. E (b) é o homem “que não se sujeita aos rituais farisaicos”. 398 As regras religiosas daquele século e do século seguinte falam mais sobre a alegria de Deus na destruição do ímpio que sobre sua salvação. SB, 11:209. 396

de fazer qualquer coisa por si mesmo. Deus vai a busca do homem, não o homem em busca de Deus. Neste ponto, o Cristianismo difere das outras religiões do mundo399. Deus encontra o homem que está perdido em pecado. Quando o pecador é encontrado, há júbilo no céu. Naturalmente, há alegria por aquele que faz a vontade de Deus, mas, quando um pecador volta para Deus, em arrependimento e fé, é chegado o tempo da celebração. Um filho de Deus, que estava perdido, foi achado.

399

Wallace, Parables, p. 52.

33. A Dracma Perdida Lucas 15.8-10 “Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma, não acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido. Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende”. Lucas, muitas vezes, apresenta seus assuntos aos pares. Quando menciona um homem, com muita probabilidade se refere, também, a uma mulher. No primeiro capítulo de seu Evangelho, Zacarias e Isabel são apresentados; e no capítulo seguinte, José e Maria, Simeão e Ana. Nos capítulos que se sucedem, se refere à viúva de Sarepta e a Naamã, o siro. Nas parábolas, coloca a do homem com o grão de mostarda junto à da mulher que adiciona o fermento à massa. A parábola do pastor que encontra a ovelha perdida é seguida pela parábola da mulher que encontra uma das suas moedas de prata400. Essas duas parábolas formam um par, e transmitem, virtualmente, a mesma mensagem. Assim é alcançado o objetivo de Jesus ao se dirigir aos fariseus e doutores da lei. Esta história, em sua concisão, é de uma beleza cintilante. Revela toda a emoção da ansiedade, preocupação, exaltação e alegria em uma ou duas linhas. E é, ainda, uma história completa! Jesus fala a respeito de uma mulher que tinha dez moedas de prata. Faziam parte de seu dote e eram usadas para enfeitar seu penteado. O equivalente atual seria o anel de noivado e a aliança de casamento cravejados de brilhantes. A perda de um desses brilhantes causaria consternação, ansiedade e tristeza. Quando ela percebeu que faltava uma das moedas, sabia que devia ter-se soltado e caído. Era inconcebível que alguém a tivesse roubado401. Devia procurá-la em sua própria casa. As casas mais pobres eram construídas sem janelas. Junto do teto, às vezes, faltavam algumas pedras na parede para permitir a ventilação. Mas, essa abertura, além da entrada, não fornecia muita luz para o interior da casa. Era escuro, dentro de casa, mesmo durante o dia. A mulher teria que acender uma lamparina para poder procurar a moeda no chão de pedra402. Nas casas da zona rural, os 400

Alguns estudiosos questionam a ordem em que as parábolas são apresentadas: Armstrong, Parables, pp. 182,3; Linnemann, Parables, p. 68. Oesterley, Parables, pp. 176-77, se opõe a qualquer inversão da ordem das parábolas, estabelecendo a diferença entre a mente ocidental, que busca a seqüência lógica, e a maneira oriental de pensar, que não leva em conta a simetria lógica. 401 Bishop, Jesus of Palestine (London: n p. 1955), p. 191 — Jeremias, Parables, p. 134. 402 J. Wilkinson, Jerusalem as Jesus Knew it (London: Thomas and Hudson, 1978),

animais eram, muitas vezes, guardados dentro de casa, embora numa parte separada da habitada pela família403. Na casa eram, ainda, guardadas as provisões. Em algum lugar da casa estava a moeda que a mulher tinha perdido. Ela pegou uma vassoura e, com a luz de uma lamparina iluminando o cômodo, varreu tudo cuidadosamente. Cada lugar onde a moeda poderia estar foi vasculhado, até que avistou um brilho de metal, ou ouviu o tilintar da moeda no chão duro. Sua ansiedade e preocupação desapareceram de repente e deram lugar à alegria e ao júbilo. Queria repartir sua alegria com as amigas e vizinhas. Chamouas e disse: “Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido”. Palavras de contentamento foram trocadas, e quando o marido voltou do campo, também se alegrou com a mulher. “Eu vos afirmo”, disse Jesus, “que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende”. Como a casa da mulher se encheu de riso e felicidade porque o que estava perdido foi achado, assim os céus se rejubilam quando um pecador se arrepende e volta a Deus, com fé. Como a mulher se alegrou com suas amigas e vizinhas, assim Deus se alegra diante de seus anjos404. Como a moeda pertencia à mulher que diligentemente procurou por ela, enquanto estava perdida, assim o pecador que se arrepende pertence a Deus. O amor de Deus está voltado para seu filho extraviado: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Jesus mostrou o amor de Deus pelos “pecadores” de seus dias. Ensinou aos publicanos e aos marginalizados, entrou na casa deles, comeu e bebeu com eles, e foi chamado de “amigo de pecadores” (Mt 11.19). Por causa disso, até mesmo Jesus era considerado um pecador, pelos fariseus. As duas parábolas, a da ovelha perdida e a da dracma perdida, têm uma verdade evangélica definida. A igreja, conhecida como o corpo de Cristo, é chamada para estender seu amor e interesse aos homens, mulheres e crianças que estão espiritualmente perdidos no mundo. Os membros da igreja são convocados para procurar os que estão perdidos e para dizer aos que vivem no pecado “que Cristo... morreu pelos ímpios” (Rm 5.6). O fervor que Jesus mostrou, associando-se aos chamados “pecadores” de seus dias, deve arder em cada um dos membros da igreja, irradiando o calor do zelo p. 28, comenta sobre escavações em Nazaré, onde se encontram casas que foram, provavelmente, visitadas por Jesus. Ele diz: “O chão era desnivelado, feito de grandes pedaços de basalto com consideráveis fendas entre eles. Mesmo com a luz do sol, podemos imaginar a mulher da parábola de Lucas 15.18, procurando sua moeda perdida, especialmente num cômodo de chão e paredes de pedra, e pequenas janelas. Não é de admirar que ela tenha usado uma candeia”. 403 Dalman, Arbeit und Sitte, VII:111-12. 404 A. F. Walls, “In lhe Presence of the Angels (Luke XV. 10), NovT 3(1959): 316; SB, 11:212.

evangelístíco e se rejubilando com os “anjos de Deus por um pecador que se arrepende”.

34. O Filho Pródigo Lucas 15.11-32 “Continuou: Certo homem tinha dois filhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe. E ele lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade. Então, ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos. Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam; mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se. Ora, o filho mais velho estivera no campo; e, quando voltava, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos criados e perguntou-lhe que era aquilo. E ele informou: Veio teu irmão, e teu pai mandou matar o novilho cevado, porque o recuperou com saúde. Ele se indignou e não queria entrar; saindo, porém, o pai, procurava conciliá-lo. Mas ele respondeu a seu pai: Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado. Então, lhe respondeu o pai: Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu. Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”. As Circunstâncias Jesus estava ensinando aos publicanos e àqueles considerados marginais, por causa de sua conduta moral. Ensinava-lhes verdades espirituais que diziam respeito ao reino de Deus, quando os líderes religiosos daqueles dias manifestaram seu desagrado, murmurando contra Jesus: “Este recebe pecadores e come com eles.” Aos olhos dos escribas e fariseus, os publicanos, porque tinham-se vendido ao governo romano, e as prostitutas, pelo seu pecado moral, estavam banidos da comunidade religiosa de Israel, e estavam,

espiritualmente, mortos. Embora procurassem ganhar convertidos, os doutores da Lei e os fariseus não tinham interesse em receber tais convertidos para um relacionamento mais expressivo com Deus (Mt 23.15). Não podiam nem queriam entender que Deus deseja o arrependimento que, quando demonstrado, causa imenso júbilo nos céus. Jesus contou a parábola do filho pródigo. Talvez fosse melhor falar de dois filhos e seu pai. Nestes três personagens, Jesus caracterizava seus ouvintes. Cada um dos que o ouviam tinha que se mirar no espelho da parábola e pensar: “Este sou eu.” O filho pródigo retratava aqueles que, por sua moral e pela sua classe social, eram marginalizados. Seu irmão era o judeu que se auto justificava, e o pai era o reflexo de Deus405. Jesus se dirigiu diretamente aos que o ouviam. Chamou o pecador ao arrependimento e exortou o justo a aceitar o pecador e a se alegrar com sua salvação. A parábola descreve claramente o amor de Deus por seus filhos, tanto pelo rebelde quanto pelo obediente. Os contemporâneos de Jesus tinham plena consciência da paternidade de Deus406. Das profecias de Jeremias eles sabiam que Israel tinha sido o filho que se desviara. Efraim disse: “Converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR meu Deus. Na verdade, depois que me converti, arrependime; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade” (Jr 31.18,19)407. O Filho Mais Novo Jesus contou a história de um homem rico que tinha dois filhos, provavelmente no final da adolescência. Os dois trabalhavam com o pai na fazenda da família, mas o mais jovem deles se tornou impaciente e queria partir para longe da casa dos pais. Queria ser livre, para ir a outras terras e viver como lhe agradasse408. O pai 405

Jeremias, Parables, p. 128, afirma que a parábola não ~ uma alegoria, “mas uma história tirada da vida.” Veja-se, também, Linnemann, Parables, p. 74, e Mánek, Frucht, p. 103. Hunter, Parables p. 59, discorda porque “o pai e seus dois filhos... são uma representação diretamente significativa”. 406 G. Quell, TDNT, V:972-74; e 6. Schrenk, TDNT, V:978. 407 Uma parábola remotamente semelhante à do filho pródigo vem do Rabino Meir: “Isto é semelhante ao filho de um rei que tomou o caminho do mal. O rei enviou um tutor para lhe fazer apelos, dizendo: ‘Arrepende-te, meu filho.’ O filho, no entanto, o mandou de volta a seu pai com a mensagem: ‘Como posso ter a desfaçatez de voltar? Estou envergonhado diante de ti.’ Então seu pai lhe mandou dizer: ‘Meu filho, como pode um filho, jamais, se envergonhar de voltar para seu pai? E não é para teu pai que estarás retornando”. The Midrash, Deuteronomy (London: n.p., 1961), p. 53. Consulte-se, também, em F. W. Danker, Jesus and lhe New Age (St. Louis, Clayton Pub. House, 1972), p. 170, o texto de uma carta em papiro que contém o apelo de um filho desviado, pedindo perdão a sua mãe. 408 Sair de Israel e fazer parte da diáspora era muito comum. Tem sido ensinado que

notara que o filho queria partir, mas não disse nada. Ele poderia ter feito ver ao filho sua posição na vida — ele e o irmão, um dia, herdariam a fazenda toda. Eventualmente, o filho tomaria conta da fazenda, dos servos e dos trabalhadores contratados. Em vez disso, o pai esperou que o filho tomasse sua própria decisão. Um dia, o mais jovem se aproximou do pai e disse: “Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe.” Ele, naturalmente, não podia pedir a divisão da propriedade porque o patrimônio da família devia permanecer intacto enquanto o pai fosse vivo. Pedindo sua parte, o filho mais novo confessava que não permaneceria mais com o pai, que se aborrecia com a rotina diária e queria a parte a que tinha direito para gastá-la como quisesse. O pai deu ao filho o que era seu, provavelmente a nona parte da soma total409. Ele teria recebido um terço da herança, por ocasião da morte do pai (Dt 21.17). Recebendo sua parte por antecedência, o filho perdia o direito de exigir mais, quando realmente se desse a partilha dos bens. O pai, embora dividindo a propriedade, continuou administrando a fazenda. O pai, não o filho mais velho, geria os bens da família410. O filho mais novo recebeu sua parte e ajuntou “tudo o que era seu Estava agora por conta própria e livre para ir. Pensava: “Tenho dinheiro, vou viajar”. Poderia ir para a Babilônia, ao leste; à Ásia Menor, ao norte; à Grécia e à Itália, ao oeste; ou ao Egito e África, ao sul. Tinha o mundo à sua disposição. Diversos fatores influíram profundamente no futuro do filho mais jovem. Seu idealismo juvenil, sua inexperiência e falta de discrição, sua saída da fazenda para a cidade, o dinheiro à mão — tudo teve um papel importante. Sua intenção de viver por sua própria conta logo se frustrou, quando foi cercado por falsos amigos. Princípios de vida e conduta, aprendidos em casa, foram postos de lado e esquecidos. Foi descuidado e perdulário411.A reprovação do irmão mais velho — “esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes” — não é mera acusação. Baseava-se em informações que a família recebia, de tempos em tempos, de como o caçula passava seus dias dissolutamente. A desobediência às leis da economia e da moral não podia continuar. Ele teve que pagar um preço pela vida desregrada. Em relativamente pouco tempo, gastou tudo. Chegou ao fim da linha. As notícias sobre a quebra da safra eram os principais comentários naquela terra. A inflação levou os preços para os ares, os havia cerca de oito vezes mais judeus (quatro milhões) que viviam em dispersão, do que em Israel (meio milhão). Jercmias, Parables, p. 129. 409 Para um estudo mais detalhado, consulte-se Derrett, Law in the New Testament, p. 107. 410 O pai deve ter seguido o costume daqueles dias, como encontramos em Eclesiástico 33.22,23: “Em todas as tuas obras conserva a tua superioridade. Não manches a tua reputação. Deixa seguir o curso da tua vida e, no tempo da tua morte, reparte a tua herança” (NEB). 411 W. Foerster, TDNT, 1:507.

empregos eram raros, e a economia indicava que tempos difíceis tinham chegado. O jovem de vida devassa estava sem dinheiro e sem sequer um amigo que o ajudasse. Em terrível necessidade, percorreu as ruas e arredores da cidade procurando serviço, mas tudo que pôde achar foi a tarefa humilde de alimentar porcos. Ele tinha chegado agora à degradação mais profunda, pois desde a infância aprendera, como qualquer judeu, que o porco é um animal imundo (Lv 11.7)412. Era agora empregado de um gentio e teve que abandonar o hábito de guardar o Sábado. Nessa triste situação, estava alijado da religião de seus pais espirituais413.9 Ele estava desesperado. Seu empregador o fazia sentir que aqueles porcos tinham mais valor para ele que um simples empregado. Sentia falta de amizade e consideração, mas ninguém se importava com ele. Por causa da escassez de comida, sua alimentação diária não era suficiente para acalmar suas dores de fome. Queria até mesmo comer da comida dada aos porcos, as vagens da alfarrobeira414. A falta de consideração mostrada para com um pastor faminto era mais do que o rapaz podia agüentar. Esse foi para ele o ponto máximo. Buscara a bondade humana e não a pudera achar. As notícias a respeito da fome o fizeram pensar em sua terra natal. Começou a pensar em sua casa. Devia voltar? Quando essa idéia lhe passou pela cabeça, primeiro ele a afastou. Os servos e os contratados dificilmente esconderiam seu escárnio. Seu irmão mais velho, de modo algum, o receberia bem se voltasse para casa, para uma propriedade a que não mais tinha direito. Seu pai veria seu segundo filho descalço e vestido como um pastor. Voltando, assim, para casa, ele seria a figura abjeta de um mendigo. O filho começou a pensar em seu pai — como o tinha magoado, como seu pai lhe havia dado a parte da herança que ele, filho pródigo, tinha esbanjado. Começou a falar consigo mesmo: “quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome!” Ele se comparou, não com os servos que tinham emprego estável, mas aos trabalhadores ajustados temporariamente. Assalariados, como ele era na ocasião, viviam regiamente na fazenda de seu pai. Ele sabia que o amor de seu pai se estendia a todos aqueles 412

Os judeus estavam estritamente proibidos de criar porcos. “Não é permitido criar porcos, onde quer que seja”; “Amaldiçoado seja o homem que criar porcos”. Baba Kamma 82b, Nezikin I, The Babylonian Talmud, pp. 469,70. 413 Jeremias, Parables, p. 129, comenta que o homem foi “praticamente forçado a abandonar a prática regular de sua religião”. 414 Vagens e sementes de locusta (alfarrobeira) são usadas como forragem para o gado e para os porcos e, às vezes, são comidas pelos pobres. Não há necessidade de dizer, como alguns estudiosos fazem, que o jovem roubava as vagens para satisfazer sua fome. A máxima universal: “Não atarás a boca do boi, quando debulha” (Dt 25.4), pode ser, certamente, aplicada.

que pertenciam ao amplo círculo de sua família. Sabia, também, que tinha desobedecido ao mandamento: “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR teu Deus te dá” (Ex 20.12)415. Ele tinha pecado contra Deus. Quando caiu em si, estava pronto para confessar seus pecados contra Deus e contra seu pai. Ele disse a si mesmo: “Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti416”. Sabia que tinha transgredido o mandamento de Deus, e que, agindo assim, ofendera e magoara seu pai. Queria se corrigir. Procuraria o pai e lhe diria: “Já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores”. Tudo que ousava pedir era um emprego temporário 417. Ansiava pela reconciliação, sem esperar reintegração. Levantou-se e foi para casa. O Pai Jesus apresentou a parábola, dizendo: “Certo homem tinha dois filhos”. Mas, à medida que continuava, mostrou que esse homem tinha um relacionamento extraordinário com os filhos: ele os amava de modo sábio, com ternura e não possessivamente. Podemos imaginar um pai ainda suficientemente moço para se opor rigorosamente ao pedido de divisão dos bens, feito pelo filho mais novo. O pai poderia ter recusado o pedido porque o filho era muito jovem para receber sua parte dos bens. Nenhum argumento, no entanto, foi usado. O pai consentiu que o filho se tornasse independente e, embora ferisse seu coração vê-lo partir, sabiamente guardou para si o que sentia418. Podemos presumir que o pai tenha tentado descobrir onde vivia o filho e o que fazia longe de casa. As notícias sobre a fome, com certeza, chegaram até ele. Deve ter sabido das condições miseráveis em que o filho vivia, e que determinariam a sua volta, porque constantemente olhava ao longo do caminho por onde esperava que ele regressasse. Podemos perguntar por que os parentes próximos do rapaz não o procuraram sabendo de sua situação tão degradante. Havia fartura na fazenda. Teria sido carinhoso da parte deles enviar algo ao filho para aliviar suas necessidades. O pai poderia ter enviado ao filho uma mensagem, convidando-o a voltar. Tudo isso teria sido prova de 415

Derrett, Law in the New Testament, p. 111. A palavra céu é um circunlóquio judaico para “Deus”. Se, 11:217. 417 Numa fazenda judaica havia três tipos de servos: primeiro, o escravo, que pertencia à família de seu senhor e que gozava de inúmeros privilégios; depois a classe inferior de criados e criadas (veja-se Lc 12.45); e, terceiro, os trabalhadores temporários. Consulte-se Oesterley, Parables, pp. 185,86. 418 Michaelis, Gleichnisse, p. 138, pensa que o pai estava orgulhoso porque o filho partira para terras estrangeiras. 416

amor. Mas, aqui, nos deparamos com um contraste. O pai não procurou seu filho para trazê-lo de volta a casa. Nas outras duas parábolas, o pastor vasculhou os montes para encontrar a ovelha perdida, e a mulher varreu o chão à procura da moeda. Mas o pai ficou em casa. Há uma diferença entre uma ovelha e uma moeda, de um lado, e um filho, de outro. O pastor só pode encontrar sua ovelha se sair à procura dela pelos montes. A única maneira de a mulher recuperar sua moeda é varrendo a casa. O pai, no entanto, tinha mais que uma opção. A primeira, seria visitá-lo e chamá-lo de volta à casa. A segunda era esperar paciente e prudentemente que o filho caísse em si, confessasse seus pecados e buscasse a reconciliação. Assim, estaria restabelecida a relação pai-filho. Então o que estava perdido seria encontrado419. O pai tinha o controle da situação, não o filho. O pai olhava na direção de onde esperava que seu filho viesse. Quando o viu, seu coração se compadeceu dele. Deixando de lado a dignidade e o decoro, correu ao encontro do filho, descalço e maltrapilho, e, abraçando-o, o beijou420. O pai aceitou o filho como membro da família antes que ele pudesse atirar-se a seus pés para beijá-los, como um escravo; ou, antes, que se ajoelhasse e lhe beijasse as mãos. Abraçando-o e beijando-o, deixou que soubesse que era considerado filho. Assim, não foi necessário que o jovem fizesse o discurso que já havia preparado para dizer que gostaria de ser empregado como trabalhador na fazenda de seu pai421. O pai o impediu, beijando-o e tratando-o como filho. O filho confessou seu pecado: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho”. Ele falou a verdade. Já não era mais digno por causa de seu passado. Tinha perdido o direito legal à sua filiação. Mas, o pai o aceitou como filho, e isso pôs fim a qualquer idéia de trabalhar na fazenda como contratado. Assim determinou o fazendeiro. O longo período de espera chegara ao fim. O pai tinha seu filho de volta. Portanto, era hora de comemorar. O pai ordenou aos servos que lhe trouxessem as melhores roupas. Puseram-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés422. O filho foi tratado com muita honra pelo pai, pois as melhores vestes estavam sempre guardadas para hóspedes muito especiais. O anel era símbolo de autoridade; e, assim, 419

Schippers, Gelijkenissen, p. 170; H. Thielicke, The Waiting Father (New York: Harper, 1959), p. 28; Mánek, Frucht, p. 101. 420 No relato sobre Davi saudando Absalão no palácio real, o beijo paternal significava perdão. 2 Sm 14.33. Jeremias, Parables, p. 130: K. H. Rengstorf, Die ReInvestur des Verlorenen Sohnes in der Gleichniseriàhlung Jesu Luk. 15.11-32 (Kóln, Opladen: Westdeutscher Verlag, 1967), p. 19. 421 Metzger, Textual Commentary, p. 164. 422 Compare-se com Gn 41.42, onde José recebe um anel de sinete, roupas de linho fino, e um colar de ouro, de Faraó. Veja-se, também, 1 Macabeus 6.15.

todos podiam ver que ele estava reintegrado423. Naturalmente, as sandálias lhe foram dadas para indicar que era um homem livre. Os escravos e os pobres andavam descalços. “Trazei também e matai o novilho cevado”, disse o pai, “Comamos e regozijemo-nos”. Como o pastor tinha chamado os amigos e vizinhos para festejarem com ele por ter achado a ovelha perdida, e como a mulher celebrou a recuperação da moeda com amigas e vizinhas, também o pai ordenou que houvesse músicas e danças. Todos os membros da família e os servos foram chamados para a festa. Era hora de celebrar e ser feliz. “Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”. O pai se referia ao fato de que o filho, deixando de ter parte na herança da família, e dando por acabada sua obrigação moral e material para com o pai, tinha-se desligado, voluntariamente, de casa. Na prática, o filho estava morto424. Na verdade ele não tinha mais nada a reclamar sobre a propriedade, quando o pai morresse. “Este meu filho estava morto e reviveu”, disse o pai. A parábola não diz como foram resolvidos os aspectos legais dos direitos envolvidos com relação à herança425. Esse não é o objetivo. O ponto importante é a volta do jovem e o fato de ter sido aceito plenamente como filho. O Filho Mais Velho A parábola do filho pródigo poderia se encerrar com as palavras: “E começaram a regozijar-se426”. Mas, então, a sentença introdutória: “Certo homem tinha dois filhos” seria de pouca ou nenhuma significância. A história estaria incompleta sem outras referências ao filho mais velho. O pai não era pai apenas do filho mais novo; era pai, também, do filho mais velho. Seu primogênito tinha sido um filho leal, com interesse pessoal na fazenda. Naturalmente, o filho sabia que era o herdeiro. Ele estava fora, no campo, enquanto todos celebravam a volta de seu irmão. Ele servia bem a seu pai, e seu pai aprovava o zelo do filho. Mas, como pai, conhecia também as manifestações de inveja, e sabia que a atitude do filho mais velho, em relação ao 423

Rengstorf, Re-Investitur, p. 29. Rengstorf, Re-Investitur, p. 22, se refere ao costume legal, chamado Ketsalsah, que é o desligamento de um membro da comunidade judaica, por causa de conflito de interesse. Derreti, Law in the New Testament, p. 116, faz notar que esse costume legal não se aplica às circunstâncias do filho pródigo, porque ele não foi penalizado nem banido da família. 425 Consulte-se L. Schottroff, “Das Gleichnis vom Verlorenen Sohn”, ZTK 68 (1971); 39-41. 426 Entre Outros, J. T. Sanders, em “Tradition and Redaction in Lk XVG: 11-32, NTS 15 (1968-69): 433-38, argumenta que há duas parábolas separadas. Veja-se, também, 1. J. O’Rourke, “Some Notes on Luke XV, 11-32, NTS 18 (1971-72): 43133, e Jeremias, Tradition und Redaktion in Lukas 15”, NW 62 (1971): 172-89, que refuta o argumento. 424

caçula, estava influenciada por ela. Não nos é contado por que razão o irmão mais velho foi o último, a saber, da volta do caçula 427. Pode ter sido porque naquele dia ele tinha ido inspecionar a parte distante da casa, e, por isso, tenha voltado mais tarde, naquela noite. Ao chegar, ouviu a música e as danças e perguntou a um dos servos o “que era aquilo”. Em segundos ficou sabendo que o irmão mais moço tinha voltado e que o pai mandara matar o novilho cevado, porque recebera de volta o filho, são e salvo. O filho mais velho simplesmente não podia entender por que seu pai estava tão feliz com a volta daquele filho inútil 428. Ninguém, nunca, antes, expressara alegria e felicidade por causa do primogênito; ninguém, nunca, fizera uma festa para aquele que ficara em casa e que servia ao pai. O filho mais velho se recusou a entrar em casa. Não tinha nada para tratar com seu sermão irresponsável, que, ao voltar para casa, recebia a atenção de todos. O pai tinha tido que sair de casa para ir ao encontro de um filho; saiu de casa, outra vez, para encontrar o outro. Ele dera as boasvindas ao primeiro; saiu e fez o mesmo com o segundo. Tratou os dois da mesma maneira. No entanto, o irmão mais velho não queria tratamento igual. Ele censurou o pai, embora o pai continuasse a argumentar com ele. Ao se justificar, o filho via a si mesmo como um dos servos, não como filho. “Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua”, disse ao pai. Ele não entendia o que significava ser filho, e, assim, não podia ver o que estava implícito na paternidade429. Acusou o pai de nunca lhe ter dado sequer um cabrito para festejar com os amigos. Para seu irmão perdulário, ao contrário, mandara matar o novilho cevado. Suas palavras eram cortantes e amargas; recusava-se a tratar o pai como “pai” e a se referir ao irmão como “irmão”. Insolentemente, disse: “Vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado”. Com estas palavras magoou o pai tanto quanto o magoara o filho pródigo, com sua vida de dissipações. O filho mais velho se afastava do pai, tanto quanto o fizera o irmão mais moço. Aquele voltara para casa; o pai, agora, procurava argumentar com o outro para que fizesse o mesmo. Tanto o mais velho quanto o mais novo eram seus filhos, e o pai se dirigiu ao mais velho com a mesma ternura com que se dirigira ao caçula. Disse o pai: “Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que e meu é teu430”. O pai ensinou-lhe o que significa ser filho: estar sempre 427

Rengstorf, Re-Invetitur, p. 54, faz perguntas sobre a expressão “no campo”. Seria indício de que o filho não convivia bem com o pai e permanecesse longe de casa? 428 Thielicke, The Waiting Father, p. 32. 429 Morris, Luke, p. 244. 430 A palavra grega teknon (= criança) é muito mais afetuosa que a palavra huios (= filho). A Nova Bíblia Inglesa emprega o sentido de teknon na tradução, “my boy” ( =meu menino).

na presença do pai, como herdeiro. Mais ainda mostrou-lhe as relações familiares de pai para filho e de irmão para irmão. Ele estava dizendo: Porque és meu filho, eu sou teu pai; e porque o pródigo é meu filho, ele é teu irmão431. Como uma família, disse o pai, “era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado432”. A questão do relacionamento entre os filhos estava proposta. O filho mais velho, que fielmente tinha servido o pai, na fazenda da família, aceitaria ficar ao lado do pai quando este celebrava a volta do mais jovem? A parábola termina com um refrão: “Porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”. Estas palavras repetem as proferidas na conclusão da parte que focaliza o filho mais novo. As palavras ligam, inseparavelmente, os irmãos um ao outro e ao pai. Jesus não disse o que aconteceu depois. Parou ali, propositalmente. Se tivesse mostrado a recusa do filho mais velho de entrar em casa, teria fechado a porta. Deixando inacabada a história, indicava que a porta permanecia aberta. O pai convidou o filho a participar das festas; o filho tinha que se decidir. Cabia a ele a decisão. Aplicação A intenção de Jesus era descrever a atitude dos fariseus e mestres da Lei em relação aos coletores de impostos e às prostitutas. Ele tinha sido acusado de receber aqueles pecadores e de comer com eles. Tinham-lhe dado a entender que, associando-se com os proscritos, ele mesmo seria banido. Jesus contou essa parábola na qual o pai manda matar o novilho cevado e diz: “Comamos e regozijemo-nos”. Queria mostrar aos escribas e fariseus por que comia com publicanos e meretrizes. Na pessoa do filho pródigo, os ouvintes de Jesus viram o retrato dos marginalizados daqueles dias. Os coletores de impostos e os “pecadores” eram judeus de nacionalidade, porém, por causa de sua ocupação, tinham sido banidos da comunidade religiosa. Estavam espiritualmente mortos, aos olhos dos judeus que permaneciam na lei. O filho pródigo trabalhara para um empregador gentio; assim como o coletor de impostos. O pródigo, no entanto, caiu em si e voltou para casa de seu pai. Poderiam os publicanos fazer o mesmo e voltar? A pergunta que Jesus propunha aos ouvintes era: “O que 431

Schippers, Gelijkenissen, p. 178. Celebrar a volta do filho pródigo “era uma obrigação que o filho mais velho não quis reconhecer.” Plummer, St. Luke, p. 379. Jeremias, Parables, p. 131, percebe um tom de reprovação na voz do pai, quando diz a seu filho: “Devias te alegrar e festejar, pois é o teu irmão que voltou para casa”. 432

acontece quando um publicano ou um ‘pecador’ se arrepende?”. Jesus retratou o amor do pai pelo filho para deixar bastante claro que o amor de Deus é infinito. Seus ouvintes reconheceram Deus, na pessoa do pai. Sabiam que o pecado é sempre primeiro contra Deus e depois contra o semelhante. Como Deus perdoa um pecador e depois o reintegra como membro da sua família? A atitude do pai, na parábola, representa o perdão amoroso de Deus oferecido ao pecador que se arrepende. Como o pai disse aos servos: “Comamos e regozijemo-nos”, assim Deus se alegra com seus anjos por um pecador que se arrepende. Como nas parábolas da ovelha e da dracma perdidas, todos os amigos e vizinhos se reúnem para festejar, também na parábola do filho pródigo, o filho mais velho é convidado a festejar e a alegrar-se. Os fariseus e doutores da Lei não podiam deixar de entender a pretendida identificação. Jesus tinha apontado seu dedo para eles, quando contara a parte sobre o irmão mais velho. Jesus, entretanto, não os acusou, de maneira alguma. Pela parábola, mostrou amor e zelo genuínos, não apenas pelo pecador arrependido, mas, também, pelo filho obediente. Pediu aos líderes religiosos daqueles dias para celebrarem e alegrarem-se quando alguém social e moralmente marginalizado se arrependesse. Pediu-lhes que aceitassem tais pessoas com amor fraternal e que os reintegrassem na comunidade religiosa. Jesus fez a proposta. Os fariseus e os doutores da Lei teriam que tomar a decisão. A parábola do filho pródigo proclama as boas-novas do evangelho. Todos aqueles que voltaram suas costas para Deus, que consideram a igreja fora de moda e aceitam a permissiva sociedade atual, encontrarão um Pai celestial amoroso, esperando por eles, no momento em que regressarem. Há uma volta ao lar para eles, porque Deus é o lar433. Embora o arrependimento seja um mistério, o cristão que tem amado e obedecido a Deus deve regozijar-se e alegrar-se, quando um pecador se arrepende. Para ele são dirigidas as palavras: “Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu”. Esta é a mensagem para o justo que tem enfrentado batalhas pelo e com o Senhor, que tem suportado o calor do dia e tem guardado a fé. Do ponto de vista da economia, modernos filhos pródigos têm dissipado milhões. Os pródigos de nossos dias esbanjam tempo e talentos como se não tivessem valor. Não é de admirar que os justos digam: “Imaginem se esses recursos fossem usados para difundir o evangelho e construir o reino de Deus!” Ninguém pode discutir isso. Deus não está interessado em tempo, energia e talentos gastos — embora não perdoe o mau uso e o desperdício. Deus está interessado na salvação dos seres humanos. Quando um pródigo moderno cai em si e volta para Deus, há alegria nos céus. Como o céu se alegra, assim 433

Thielicke, The Waiting Father, p. 29.

a igreja deve celebrar e regozijar-se quando alguém espiritualmente morto revive, e quando o que estava perdido é achado. Proclamar o evangelho da salvação e ver pecadores serem salvos pelo conhecimento de Cristo deve ser uma infindável celebração de vida para todos os que crêem. É esta uma história na qual apenas a graça de Deus é revelada? A parábola é uma história do Cristianismo sem Cristo434? A resposta a estas perguntas é que a parábola deve ser vista no contexto das Escrituras. Do princípio ao fim, a Bíblia, desde a desobediência de Adão e Eva até à descrição das multidões cercando o trono do Cordeiro, é um comentário fluente a respeito desta parábola. É Jesus que fala sobre o amor do Pai, que abre o caminho para a casa do Pai, e que chama o pecador de volta à casa.

434

Para estudo destas questões, veja, Jülicher, Gleichnisreden, 2:364-65.

35. O Administrador Infiel Lucas 16.1-9 “Disse Jesus também aos discípulos: Havia um homem rico que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem estava a defraudar os seus bens. Então, mandando-o chamar, lhe disse: Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, porque já não podes mais continuar nela. Disse o administrador consigo mesmo: Que farei, pois o meu senhor me tira a administração? Trabalhar na terra não posso; também de mendigar tenho vergonha. Eu sei o que farei, para que, quando for demitido da administração, me recebam em suas casas. Tendo chamado cada um dos devedores do seu senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao meu patrão? Respondeu ele: Cem cados de azeite. Então, disse: Toma a tua conta, assenta-te depressa e escreve cinqüenta. Depois, perguntou a outro: Tu, quanto deves? Respondeu ele: Cem coros de trigo. Disse-lhe: Toma a tua conta e escreve oitenta. E elogiou o senhor o administrador infiel porque se houvera atiladamente, porque os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz. E eu vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos”. De todas as parábolas ensinadas por Jesus, a parábola do administrador infiel é a mais enigmática. Por esta razão, numerosas interpretações têm sido dadas435. Cada uma delas tentando explicar o 435

Em ordem alfabética, a literatura representativa recente é a seguinte: J. D. M. Derrett, “Fresh Light on St. Luke XVI:1. Tbe Parable of lhe Unjust Steward”, NTS 7 (1960-61): 198-219, publicado em Law inibe New Teslament (London: Longman and Todd, 1970), pp. 48-77; J. D. M. Derrett, “Take thy Bond... and write Fifty (Luke XVI.6) The Nature of the Bond”, JTS 23 (1972): 438- 40, pupblicado em Studies in the New Testamenl (Leiden: Brill, 1977), 1:1-3. J. A. Fitzmyer, “The Stoiyof the Dishonest Manager (Luke 16.1.13)”, TS 25 (1964):23-42, publicado em Essays on lhe Semitic Background of the New Teslament (L.ondon: Society of Biblical Literature, 1971), pp. 161-84. D. R. Fletcher, ‘The Riddle of lhe Unjust Stewart: Is lrony the Key?” JBL 82 (1963): 15-30. E. Kamlah, “Die Parabel vom ungerechten Verwalter (Luke 16:lff) in Rahmen der Knechtsgleichnisse’, Abraham Unser Vater Festschrift honoring O. Michel (Leiden: Brill, 1963), pp. 276-94. F. J. Moore, “The Parable of lhe Unjust Steward”, ATR 47(1965): 103-5. R. G. Lunt, “Expounding the Parabies, III. The parable of the Unjust Steward (Luke 16.1-15)”, ExpT 77 (1966): 132-36. L. J. Topei, “On the Injustice of lhe Unjust Steward: Luke 16:1-13,” CBQ (1975): 216-27, F. E. Wiiliams, “Is Almsgiving the Point of the ‘Unjust Steward’?” JBL 83 (1964):293-97.

ensinamento da parábola à luz de suas implicações éticas. A dificuldade que se apresenta ao leitor deve-se ao fato de a parábola estar colocada em um contexto judaico, e por isso refletir as práticas judaicas. Essa composição, com todos os seus fatores deve ser reconstituída para que se obtenha um quadro claro e a compreensão do ensinamento da parábola436. Composição Repetidamente, Deus dissera aos judeus que não cobrassem de seus concidadãos juros sobre dinheiro, comida, ou qualquer outra coisa. “Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor que impõe juros” (Ex 22.25; veja-se, também, Lv 25.36; Dt 15.8; 23.19). Deus ensinou a seu povo a responsabilidade social e proibiu a usura, deixando implícito que o usurário devia ser considerado um ladrão. Sendo a natureza humana como é, práticas se desenvolveram no decorrer do tempo objetivando burlar a lei de Deus. Os ricos, por exemplo, escolhia.m uma pessoa de confiança como administrador. Ele recebia plenos poderes para agir em nome de seu senhor. Respondia por seu senhor, mas se usasse de usura, não seria o senhor, e, sim, o administrador que seria levado ao tribunal. O rico sempre obtinha lucro das transações de usura negociadas por seu administrador. Mas, se tal transação fosse contestada no tribunal, o rico estaria livre e a responsabilidade cairia sobre seu administrador. O administrador, no entanto, tinha meios de se proteger, aceitos até mesmo pelos fariseus e doutores da lei, e contra os quais os magistrados nada podiam fazer a não ser reconhecê-los como mal necessário. O administrador e o tomador do empréstimo redigiam um acordo no qual o débito e os juros eram declarados como um todo. De acordo com os líderes religiosos, a seguinte nota era considerada exemplo de usura, e quem fosse responsável por ela poderia ser levado aos tribunais: “Pagarei a Rubens 10 kor de trigo, no primeiro dia do Nisã e se não o fizer, pagarei 4 kor de trigo a mais por ano 437”. Mas, era considerada legal a seguinte: “Devo a Rubens 14 kor de trigo”. O que a nota não explicava era que o tomador do empréstimo tinha recebido apenas 10 kor e tinha que pagar a diferença em juros438. Por exemplo, em 33-34 A.D., Herodes Agripa 1 estava para falir e instruiu seu escravo libertado, Márcio, para tomar empréstimo de alguém. Márcio foi procurar um banqueiro que o forçou a assinar um título de 20.000 dracmas áticas. Na realidade, entretanto, ele 436

Oesterley Parables, pp. 192-203; DerretI, Law in lhe New Testament, p. 51. Numerosas peculiaridades e expressões judaicas são evidentes na parábola. Permanece a questão se ouvintes não-judeus entenderam a parábola nos dias de Lucas. A tradição oral paralela à do Evangelho pode ter providenciado a chave para um entendimento apropriado da parábola. Veja-se Marshall, Luke, p. 615. 437 Derrett Law in lhe New Teslament, p. 65. 438 Fitzmyer, Essays, p. 176.

recebeu 2.500 dracmas a menos439. Os juros estavam somados ao capital, e o tomador do empréstimo teria que pagar o total, mesmo que tivesse recebido uma soma consideravelmente menor440. O título, em si, não explicaria os detalhes. A taxa de juros para empréstimo de trigo chegava a vinte por cento, com um adicional de cinco por cento de seguro contra a flutuação dos preços e depreciação do valor do produto. Se acontecesse de a mercadoria ser óleo de oliva, a taxa de juros era de oitenta por cento acrescidos de mais vinte por cento da taxa de seguro, totalizando cem por cento. O risco de tomar óleo de oliva como empréstimo era muito grande. As colheitas de azeitonas são imprevisíveis, e a qualidade do azeite varia de ano para ano, por causa do tamanho e da qualidade das azeitonas. Óleos mais baratos, extraídos de outras fontes, podiam ser adicionados ao óleo de oliva, e os métodos usados para determinar sua pureza, eram ineficientes441. O administrador tinha uma posição de confiança. Ele controlava os bens de seu senhor e era considerado membro de sua casa. Representava seu senhor e tinha plena autoridade para tratar com os devedores da maneira que julgasse mais acertada. Os devedores, portanto, tinham que aceitar as condições impostas pelo administrador. Estas eram apenas de sua responsabilidade. Se o administrador se mostrasse incompetente, ineficiente ou indigno de confiança, o senhor o chamaria para prestar contas, e depois, sumariamente, o despediria. O administrador não tinha como procurar ajuda externa. Teria que deixar o emprego estaria sem recursos próprios, e não seria bem recebido pelos companheiros442. A História Jesus contou uma história que poderia muito bem acontecer nos dias de hoje. Fala de um homem rico que escolheu um administrador para os seus negócios. Ele tinha inteira confiança no escolhido, mas quando soube que ele estava dissipando seus bens, chamou-o e disse-lhe para apresentar seus livros e prestar contas de sua administração, pois estava despedido. Poderia procurar outro emprego. O administrador sabia que as acusações contra ele eram verdadeiras, que tinha abusado da confiança de seu senhor, e que 439

Josephus, Antiquities, 18:157. Derrett, Studies, 1:1-3. 441 Derrett, Law, p. 71. 442 Fitzmyer, em Essays, p. 177, é de opinião que o administrador recebia comissões nas transações. Derrett, Law, p.74, mostra que o dinheiro envolvido em transações de empréstimo pertencia ao senhor. Além disso, o administrador da parábola de Jesus não tinha bens próprios e, por isso, fazia reservas para o futuro. 440

não poderia pedir misericórdia443. Sabia que um sucessor tomaria seu lugar. O que o futuro reservava para aquele administrador? Tinha que depender de sua própria engenhosidade. Não era fisicamente capacitado para o trabalho braçal, e mendigar estava fora de questão444. Ele arrazoava consigo mesmo, considerando possibilidades e alternativas. De repente, exclamou: “Eu sei o que farei!” Controlaria os negócios de modo que os devedores de seu senhor ficassem lhe devendo obrigações, para que, depois de sua demissão, o recebessem em suas casas. Chamou os devedores, um a um. Dois exemplos são dados. O primeiro veio e o administrador lhe perguntou quanto devia ao senhor. Ele respondeu: “Cem cados de azeite”. Era uma quantidade considerável de azeite, perto de 868 galões, ou 3.946 litros445. Uma oliveira produz cerca de 120 quilos de azeitonas, ou 25 litros de azeite446. O total de azeite devido viria de uma plantação com 150 árvores ou mais. O administrador disse ao devedor para apanhar a conta, que registrava o valor devido e que o reduzisse à metade. Ao devedor seguinte, fez a mesma pergunta: “Tu, quanto deves?” E ele respondeu: “Cem coros de trigos”. O equivalente a cem alqueires, que correspondem ao que cem acres produziam, naqueles dias447. O administrador disse-lhe para apanhar sua conta e reduzir o total em vinte medidas. Nos dois exemplos, largas somas de dinheiro estavam envolvidas. Assim mesmo, com a permissão do administrador, que já tinha sido comunicado de sua demissão, os devedores mudaram os números das contas. Podemos presumir que outros devedores fizeram o mesmo. Os devedores alteraram os totais porque sabiam que a taxa de juros para o azeite emprestado era de cem por cento e para o trigo emprestado vinte e cinco por cento. Satisfeitos, mudaram o total para a soma que, realmente, deviam ao Senhor. Não falsificaram os números, antes, de próprio punho, indicaram quanto tinham que pagar. Resumindo, porque os juros da usura tinham sido retirados, prevaleceu a honestidade. Quando o administrador apresentou os livros a seu senhor, que 443

Ao contrário, o ministro das finanças, na parábola do credor incompassivo (Mt 18.21-35), ajoelhou-se e pediu a seu senhor que fosse paciente. 444 Eclesiástico 40.28 adverte: “Filho, não leves vida de mendigo; é melhor morrer do que mendigar” (NEB). 445 SB, 11:218, faz esse cálculo baseando-se em Josephus, Antiquities 8.57. Jeremias, Parables, p. 181, arredonda para 800 galões, quantia adotada pelos tradutores do MV. 446 Dalman, Arbeit und Sitte, IV: 192. 447 Dalman, Arbeit und Sitte, 111:155,159. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p. 181; SB, 11:218.

a seguir tomou conhecimento das alterações, ele foi elogiado por ter agido com astúcia448. O administrador, não o senhor, manteve a situação sob controle. Palavras de louvor foram proferidas porque o administrador tinha assegurado para si mesmo a hospitalidade e a generosidade dos devedores, tinha preparado o caminho para seu sucessor, afastando qualquer má vontade da parte dos devedores, e tinha dado a seu senhor a oportunidade de elogiá-lo por ter retirado as taxas de usura e ter-se mostrado cidadão religioso e cumpridor da lei. O administrador deve ter deixado seu senhor em posição mais favorável, uma vez que este lhe dirigiu palavras de louvor449. “E elogiou o senhor o administrador infiel porque se houvera atiladamente”. A palavra infiel não pode ser aplicada à atitude do administrador em relação aos devedores, porque, então, a sentença “porque se houvera atiladamente” seria contraditória 450. Ela se refere à vida anterior do administrador quando ele esbanjava os bens de seu senhor. A caracterização é a mesma daquela usada para o juiz que, com o correr do tempo, tinha estabelecido a reputação de ser injusto. Quando julgou a causa da viúva, com certeza não lhe fez injustiça451. Do mesmo modo, o administrador, por sua prévia carreira de negócios escusos, é chamado de desonesto, mesmo que as instruções que mais tarde deu aos devedores fossem honradas e louváveis, aos olhos do público. O senhor não podia ir aos devedores e aplicar as taxas de usura que anteriormente o administrador tinha combinado, pois, então agiria como um agiota e poderia ser levado aos tribunais. O senhor elogiou o servo por sua esperteza. Aplicação O que ensina a parábola, precisamente? A história do administrador desonesto, posta à luz das circunstâncias judaicas originais, ainda transmite uma mensagem importante para os nossos dias. Qual é, então, a mensagem452? Jesus a resumiu, afirmando: “Porque os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz. E eu vos recomendo: Das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando estas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos453”. 448

I. H. Marshall, “Luke XVI.8 — Who Commented the Unjust Steward?” JTS 19 (1968): 617-19. 449 Derrett, Law, p. 73. 450 H. Drexler, “Zu Lukas 16.1-7”, ZNW 58(1967): 286-288, sustenta que porque o senhor fora injusto com o administrador, pedindo-lhe contas e o despedindo, este se vingou chamando os devedores. 451 O artigo definido e o substantivo grego (tes adikias), traduzidos adjetivalmente em muitas versões, são os mesmos em Lc 16.8 e Lc 18.6. 452 H. Preisker, “Lukas 16.1-7”, TLZ 74 (1949):85-82. contrasta a parábola do administrador desonesto com a do filho pródigo. O administrador continuou escravizado ao poder do dinheiro, enquanto o filho pródigo gastou seu dinheiro e se arrependeu. 453 Traduções mais antigas, seguindo literalmente o texto grego, obscurecem, de

O ponto que a parábola focaliza é o fato de que o administrador, que tinha fama de desonesto, compreendendo que seu futuro estava em perigo, procurou aprovação, sendo honesto e generoso com os devedores de seu senhor. Não procurou riquezas do mundo, mas distribuiu-as àqueles que deviam a seu senhor, embora o dinheiro não fosse seu, e, num certo sentido, nem mesmo de seu patrão. Do mesmo modo, os filhos da luz não devem colocar seus corações em bens terrenos. Devem ser generosos e repartir parte do que possuem. Podem agir assim porque essas posses não lhes pertencem, mas, sim, a Deus. Quando doam dinheiro aos pobres, estão redistribuindo a riqueza que lhes for confiada por Deus454. Jesus repetiu essa verdade quando disse: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra... mas ajuntai para vós outros tesouros no céu” (Mt 6.19,20). O que Jesus ensinou tem raízes, de muitas formas e maneiras, nos ensinamentos do Velho Testamento. Davi, na presença do povo de Deus, orou: “Porque quem sou eu, e quem é o meu povo para que pudéssemos dar voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to damos” (1 Cr 29.14). Por intermédio da parábola do administrador infiel, Jesus aconselha os seus seguidores a dar de seu dinheiro tanto quanto possível para que possam receber aprovação de Deus e serem bem-vindos à sua casa, para ali viverem eternamente455. Aqui encontramos, implícito, um ponto de contraste. Indiretamente, Jesus diz: o administrador infiel, reduzindo o total das dívidas, olhou para o futuro; muito mais deve o povo de Deus repartir seus bens e olhar adiante, para sua casa eterna. O povo de Deus deve usar suas posses materiais para fazer um investimento espiritual, assim como o filho do mundo usa seu dinheiro para obter lucros materiais. O tempo vem quando o dinheiro será coisa do passado. Ao vir a morte, o espírito do homem volta para Deus, que o deu (Ec 12.7). Deus recebe com alegria todos aqueles que não têm colocado seu coração em tesouros da terra, mas têm ajuntado tesouros nos céus456. Os filhos do mundo sabem como usar suas posses terrenas e como aplicá-las de modo materialístico. De repente, no entanto, podem abandonar padrões desonestos sabendo que, em longo prazo, a honestidade compensa. Por outro lado, cristãos que têm aprendido algum modo, o significado da passagem. A NEB traduz Lucas 16.9 quase do mesmo modo que a NIV: “Eu vos digo: Usai vossas riquezas materiais para fazer amigos para vós mesmos, de modo que, quando o dinheiro for coisa do passado, possais ser recebidos no lar eterno”. 454 Derrett, Law, p. 74. 455 SB, 11:221. Consulte-se, também, Willians, ‘Almsgiving”, p. 294; Lunt, ‘Parable”, p. 134. 456 Com base nos estudos dos textos de Cunrã, a expressão “riquezas materiais”, o mamom da injustiça, deve ser contrastada com as riquezas celestiais. Marshall, Luke, p. 621.

o padrão da lei de Deus, têm, muitas vezes, a tendência de relaxar e modificar os princípios cristãos. Querem o melhor dos dois mundos: querem ter a fé cristã no conforto de uma sociedade abastada; querem ser amados por Deus e, ao mesmo tempo, serem elogiados pelos homens. Jesus disse: “Os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz”. Se aqueles que não professam servir a Deus compreendem que seus padrões são fundamentais, não deveriam os que professam ser seu povo manter a lei de Deus, praticar o que pregam e mostrar por palavras e atos que o dinheiro, afinal, falha, mas as riquezas celestiais são eternas? Em sua epístola pastoral, Tiago adverte os cristãos que fazem opção por uma vida dupla. “Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo, constitui-se em inimigo de Deus” (Tg 4.4).

36. O Rico e Lázaro Lucas 16.19-31 “Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçamnos. Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”. A parábola do administrador infiel e a do rico e Lázaro têm algumas coisas em comum. Primeiro, um ponto óbvio: as frases introdutórias das duas parábolas são idênticas: “Havia certo homem rico.” Segundo, o ensino da parábola do administrador infiel é a advertência para que não ajuntemos tesouros na terra, e, sim, nos céus. Este é, também, um dos temas da parábola do rico e Lázaro. E, terceiro, nas duas parábolas encontramos o chamado para o arrependimento, antes que seja tarde demais. Elas desafiam o ouvinte a voltar ao ensinamento da lei de Deus a respeito do uso das riquezas, ao exercício da honestidade e do respeito, e à prática da misericórdia e do amor. A parábola do rico e Lázaro pode ser vista como um drama em dois atos, seguidos de urna conclusão. A primeira cena apresenta a vida e a morte na terra; a segunda retrata o céu e o inferno. A conclusão é dada na forma de uma aplicação implícita. Aqui e Agora Jesus contou a história sugestiva de um rico e um pobre 457. O 457

Antes dos dias de Jesus, uma história popular egípcia descrevia um rico vestido

rico se vestia de púrpura, ornamento de reis 458, suas roupas eram de linho finíssimo, vindo do Egito. Dia após dia, ele gastava seu tempo em banquetes porque não tinham nada para fazer. Passava sua vida em festas. Apesar de toda a sua riqueza, o nome do homem não é conhecido459. Tudo que sabemos é que tinha cinco irmãos que, como ele mesmo, mostravam habitual menosprezo pela Palavra de Deus revelada. A segunda pessoa apresentada na história se achava no extremo oposto do espectro econômico. Vivia em pobreza abjeta. Não podia nem mesmo andar. Seus amigos tinham que carregá-lo e apoiálo junto ao portão da mansão do rico. Por causa da falta de cuidados médicos e de higiene pessoal, ele sofria de uma doença da pele e tinha o corpo coberto de feridas. Seu corpo tinha definhado, a fome era sua companheira constante e seu olhar ansioso se voltava para as sobras de comida que tinham sido varridas do chão da sala de jantar460 e reunidas para serem dadas aos cães e aos mendigos que esperavam lá fora. Esse miserável ser humano só tinha a companhia dos cães que vinham lamber-lhe as chagas. Embora tenha passado pela vida como se fosse ninguém, seu nome ficou registrado: Lázaro, forma abreviada de Eleazar, que significa “Deus ajuda461”. Os dois homens eram judeus, mas o rico ignorava a ordem de Deus para cuidar de seu compatriota abatido pela pobreza. O rico não podia ser totalmente ignorante das Escrituras, pois os mestres da lei diligentemente instruíam o povo acerca dos preceitos divinos. Além disso, conhecia Lázaro e até mesmo sabia seu nome. O pobre homem, que nunca se queixava, nem nunca se dirigia ao rico, de fino linho e um pobre numa esteira de palha, cujos papéis se invertiam após a morte. Veja F. L. Griffith, Stories of the High Priests of Memphis (Oxford: n.p. 1900), e H. Gresssmann, Vom relchen Man und armen Lazarus (Berlin: n.p. 1918). Esse conto popular foi trazido a Israel pelos judeus de Alexandria. Alterado, tornou-se parte do folclore judaico. Na história modificada, um rico coletor de impostos chamado Bar Ma’jan e um pobre mestre da lei foram sepultados. Após a morte, o mestre da lei passeava ao longo dos riachos do paraíso, enquanto o coletor de impostos, mesmo junto das águas, era incapaz de alcançá-las para mitigar sua sede. G. Dalman Aramaische Dialektproben (Leipzig: Deichert, 1927), pp. 33-34. 458 A tinta púrpura era obtida do caramujo púrpura. SB, 11:220. 459 O nome Dives é o adjetivo latino para a palavra rico, em todas as versões latinas. Ao rico têm sido dados nomes como Amonofis, Finees, Finaeus, Nineue, e Neves, em vários manuscritos. H. J. Cadbuiy “A Proper Name for Dives”, JBL 81, (1962):339-402; H. J. Cadbuty, “The Name of Dives”, JBL 84 (1965): 73; K. Grobel, “... Whose Name was Neves”, NTS 10 (1963-64):373-82. 460 Os hóspedes, à mesa de um rico, usavam pedaços de pão para limpar a gordura de entre os dedos. Esses pedaços não deviam ser colocados no prato da carne ou do molho e não eram comidos pelos convidados. Era costume jogá-los para debaixo da mesa. Oesterley, Parables, p. 205; Jeremias, Parables, p. 184. 461 Recentemente, alguns estudiosos têm procurado explicar o nome Lázaro. Consulte-se R. Dunkerley, “L.azarus” NTS 5 (1958-59):321-27; 1. D. M. Derreti, “Fresh light on St. Luke XVI: II. Dives and L.azarus and lhe Preceding Sayings”, NTS 7 (1960-1961): 364-480, publicado em Law ln the New Testament (London: 1970), pp. 78-99; C. H. Cave, “Lazarus and the Lukan Deuteronomy”, NTS 15 (196869):319-25.

confiava em Deus, que o ajudava. A morte veio e pôs fim ao sofrimento de Lázaro. Seu corpo, que não era mais que pele e osso, foi rapidamente, removido. Porque não havia ninguém para mostrar ou receber simpatia, seu funeral não foi, ao menos, mencionado. Mas, Lázaro não estava sozinho na hora de sua morte. Os anjos de Deus vieram e o levaram para um lugar de honra nos céus. Estava assentado junto de Abraão, onde podia desfrutar do Banquete Messiânico462. O rico morreu, também. Sua vida de comodidade, luxo, conforto, prazer e pompa, subitamente terminou. Talvez tenha sofrido um ataque cardíaco. Seu funeral foi bem cuidado. Seus cinco irmãos fizeram todos os arranjos necessários. Tocadores de flauta e carpideiras vieram, e todos os seus amigos compareceram. O falecido vivera com pompa; foi enterrado com pompa. Mas, todos aqueles que vieram pranteá-lo, não podiam ver além do túmulo. Continuavam a pensar nele como um homem rico, agora morto463. Enquanto Lázaro foi levado pelos anjos para o seio de Abraão, o rico, despojado de seus bens terrenos, foi para o inferno. Então e Além Tudo mudou no momento da morte. Lázaro recebeu um lugar da mais elevada honra, junto do pai dos crentes. Os anjos o tinham levado para junto de Abraão, onde gozava da companhia dos filhos de Deus. O rico, que na terra vivia cercado de amigos, não era mais considerado rico no inferno. Despojado de toda a sua riqueza, estava só. Do outro lado do túmulo, Lázaro mantinha silêncio em relação ao rico, embora, compreensivelmente, conversasse com Abraão. Foi Abraão quem respondeu aos pedidos do homem rico. Não foi Lázaro, e, sim, Abraão quem o instruiu sobre as realidades dos destinos eternos. O rico estava em tormentos, enquanto Lázaro gozava o prazer da companhia de Abraão. No tormento do inferno estavam incluídas a sede extrema e a agonia do fogo464. O rico, no tormento do inferno, viu Abraão à distância e Lázaro junto dele465. Reconheceu Abraão, o pai dos crentes. Sendo judeu, ele 462

O termo holpos (= “seio”) pode ser entendido como uma expressão oriental significando recostar-se ou reclinar-se em uma festa ou banquete (Jo 13.23). Pode, também, descrever amizade íntima (Jo 1.18). Veja-se,T. W. Manson, The Sayings of Jesus (L.ondon: SCM Press, 1950), p. 299; SB, 11:225-27. 463 Michaelis, Gleichnisse, p. 217. 464 A sede e a dor eram o quinhão daqueles condenados a morrerem separados de Deus. Veja-se 2 Ed 8.59; 2 Enoque 10.1,2. 465 Para descrever os indivíduos no céu e no inferno, Jesus usou imagens de corpos humanos e suas funções, embora tanto o corpo de Lázaro como o do homem rico estivessem sepultados na terra.

o conhecia como pai. Esperava que sua raça fosse levada em conta, embora fosse muito mais física que espiritualmente filho de Abraão. Mesmo no inferno, parecia não compreender que sua completa indiferença às ordens de Deus na terra tinha posto fim a qualquer reclamo de herança espiritual466. Durante sua vida, ele mesmo rompera os laços espirituais com Abraão, ignorando as necessidades de seu próximo. Em vez de amar o próximo como a si mesmo, vivera não para este, nem para Deus, senão para si mesmo. Buscara sempre a satisfação própria. Agora, no inferno, estava entregue a si mesmo. O rico não se encontrava no inferno porque tinha vivido de modo perverso, na terra. Seus muitos parentes e amigos podiam testemunhar que tinha sido cidadão proeminente e que dera provas de ser anfitrião muito generoso, quando recebia seus convidados. Podiam falar dele com palavras calorosas de elogio e reconhecimento. Entretanto, o rico não merecia os tormentos do inferno por causa do que tinha feito na terra, mas, antes, pelo que deixara de fazer. Tinha negligenciado o amor a Deus e ao próximo. Menosprezara Deus e sua Palavra. Mesmo no inferno, o rico continuava impenitente. Não pediu misericórdia a Deus, mas a Abraão. Chamou Abraão de pai, e esperava que o patriarca tivesse pena de um de seus descendentes467. Instruiu Abraão a como mostrar misericórdia e enviar alívio: “Manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua”. Pôs de lado os preconceitos. Aceitaria prontamente ser servido por um antigo mendigo, se pudesse. Ainda assim, seu tom de voz deixava implícito que considerava Lázaro como um servo que devia ser enviado a seu pedido, com a aprovação de Abraão. Na terra, o rico nunca tinha ajudado Lázaro; no inferno, entretanto, mostrava necessidade de ajuda. Reconheceu Lázaro, mas não se dirigiu a ele, diretamente. Queria que Abraão o enviasse, como um servo humilde que respondesse prontamente às ordens de um rico. Em certo sentido, agia como se ainda estivesse na terra. Enquanto Lázaro gozava dos prazeres celestiais, provavelmente no cenário de um riacho corrente, o rico sofria a agonia ardente do fogo do inferno468. Ele implorou por água para refrescar sua língua, e 466

Paulo, na Epístola aos Romanos, toca neste ponto, quando escreve: “E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são de fato israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (Rm 9.6,7). 467 O judeu se orgulhava do fato de ser descendente de Abraão — Mt 3.8,9 e Jo 8.3339. Um judeu excomungado não chamaria Abraão de pai. O judeu, com boas obras a seu crédito, pertencia ao povo do pacto de Israel e podia chamar Abraão de pai. Veja-se Oesterley, Parables, p. 208. 468 Fica evidente, pelas muitas referências ao fogo do inferno, nos Evangelhos, que Jesus ensinou, em termos francos, a doutrina do inferno. Reconhecidamente, a palavra para inferno, nestes textos, é a palavra Gehenna e não Hades. Jesus o descreveu como um lugar de castigo, como também fizeram os apóstolos. Vejamse, entre outras passagens: Mt 5.22,29,30; 7.19; 8.12; 10.28; 18.8,9; 22.33; 25.41;

viu que Lázaro poderia alcançá-la. Abraão se dirigiu ao rico como “filho”, aceitando o parentesco físico. Mesmo esse parentesco não devia trazer alívio ao homem, por duas razões: (1) a lei da retribuição, e (2) o caráter irrevogável do veredicto de Deus. Primeiro, a lei da retribuição estipulava que a vida terrena de um homem, em palavras e atos, permanecia em relação direta com seu destino na vida futura. O rico escolhera uma vida de coisas boas na terra; no inferno sofria agonia. Lázaro, pelo contrário, passara a vida na miséria, mas, depois, gozava do conforto dos céus. Segundo, o irrevogável julgamento de Deus estava confirmado pelo abismo intransferível existente entre o céu e o inferno. Ninguém poderia ir do céu para o inferno e vice-versa469. Deus pronunciara seu julgamento sem possibilidade de apelo. O destino fora selado no momento da morte. Lázaro foi para o céu, e o rico para o inferno. Entre os dois lugares, Deus colocou um grande abismo para tornar impossível a passagem de uma situação para outra470. O rico compreendeu que sua situação era permanente. Seu próprio quinhão foi fixado, mas o de seus cinco irmãos, na terra, não estava. Poderiam mudar a maneira de viver e, assim, evitar passar a eternidade no inferno. Mais uma vez, ele chamou Abraão de “pai’”, e outra vez queria usar Lázaro como servo. Implorou a Abraão que enviasse Lázaro à casa de seus pais para avisar seus irmãos, a fim de que não viessem para o lugar de tormento no qual se encontrava. Estava ciente do grande abismo colocado entre o céu e o inferno, mas pensava que alguém poderia, prontamente, ir do céu para a terra. Pensava que Abraão tinha autoridade para enviar Lázaro. De algum modo, compreendia que ele mesmo não poderia deixar o inferno para voltar a terra. Tinha que ficar onde estava471. Durante sua vida na terra, assim como durante a conversa do e versículos paralelos. 469 Oesterley, Parables, p. 209, vê a doutrina da condenação eterna como anticristã. Pergunta se Lucas 16.26 é uma interpolação e afirma que a passagem “fica mais suave sem ov. 26”. Porque ele não apresenta evidência textual, tal questionamento é inadmissível e demonstra uma recusa a lidar com a Palavra de Deus escrita. E C. F. Evans, “Uncomfortable Words — V. (Luke 16.31)”, ExpT 81 (1969-70):230, que escreve: “Hoje, a parábola é considerada fundamento imperioso para a crença de que a posição e o status do indivíduo são irrevogavelmente fixados no momento da morte”. 470 No v. 26, o tempo perfeito do verbo grego sterizo indica estado resultante. Entretanto, o uso de hopos implica em propósito e não resultado de alguma coisa ocorrida. Morris, Luke, p. 254, A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament (New York: Hodder & Stoughton, George 11. Doran Company, 1919), p. 896. 471 Michaelis, Gleichnisse, p. 264, nº 151, sugere que Lázaro poderia aparecer, em sonho ou visão, aos irmãos do rico. Entretanto, se este fosse o caso, o próprio homem rico poderia fazer isso com muito mais eficácia.

rico com Abraão, Lázaro permaneceu em silêncio. Nem uma palavra saiu de seus lábios sobre a audácia do rico de dizer a Abraão o que fazer. O rico se dirigiu a Abraão, que lhe respondeu. Abraão se recusou a permitir que um sinal dos céus fosse enviado aos cinco irmãos do homem rico. Não permitiu nada que vislumbrasse o oculto. A revelação de Deus fora dada e era suficiente para a salvação. Abraão disse ao rico que seus parentes tinham acesso aos cinco livros de Moisés, e aos livros dos profetas. Isto é, tinham as Escrituras do Velho Testamento. “Ouçam-nos”. O rico sabia que seu pai e seus irmãos não levavam a sério as Escrituras. Seus cinco irmãos solteiros viviam ainda na casa do pai (o número cinco é arbitrário) e viviam uma vida semelhante à que ele levara na terra. Não eram as riquezas que eles desfrutavam que o preocupavam472, e, sim, o seu menosprezo para com as Escrituras. Chamou Abraão de “pai” pela terceira vez, assegurando-lhe que seu pai e seus irmãos se arrependeriam se alguém de entre os mortos ressuscitasse e fosse ter com eles. Não pediu mais que Lázaro fosse enviado. Qualquer um poderia fazê-lo. Abraão respondeu que ninguém ressuscitado de entre 473os mortos seria capaz de lhes falar a respeito da revelação de Deus mais claramente do que podiam achar nas Escrituras. Se um homem rejeita a Palavra de Deus escrita, não se arrependerá nem será persuadido por alguém que ressuscite. O rei Saul viu Samuel trazido pela médium de En-Dor, e, ainda assim, não se arrependeu (1 Sm 28.7-25). Os fariseus viram Lázaro, irmão de Maria e Marta, sair do túmulo. Não se arrependeram, antes, procuraram matá-lo (Jo 12.10). O fato de o nome Lázaro, na parábola, ser o mesmo do ressuscitado em Betânia, surpreende. Leva-nos a perguntar até que ponto pode isto ser mera coincidência474. No entanto, porque não sabemos a circunstância histórica precisa na qual a parábola foi contada, a tentativa de ligá-la ao relato da ressurreição de Lázaro, em Betânia, embora bem intencionada, dificilmente convence. Por outro lado, a ressurreição de Lázaro e a ressurreição de Jesus demonstram indubitavelmente que aqueles que se recusam a aceitar o testemunho da revelação de Deus “tão pouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”. Aplicação Não há, na parábola do rico e Lázaro, introdução nem conclusão 472

A dedução não é que um crente deva viver na pobreza para entrar nos céus. Abraão, durante sua vida na terra, era considerado rico. O ponto em questão é a relação com Deus e com o próximo. Mánek, Frucht, p. 108. 473 Plummer, St. Luke, p. 397. 474 Dunkerley, “Lazarus”, p. 322.

específica. A parábola pode ter sido contada em qualquer ocasião do ministério terreno de Jesus. Mas, porque Lucas a registrou em seguida à do administrador infiel, e porque ele revela a reação dos fariseus ao ensino de Jesus: “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lc 16.13), podemos deduzir que os fariseus estavam presentes quando Jesus contou a parábola do rico e Lázaro475. Os fariseus eram, provavelmente, os que ouviam a parábola. O contexto imediato mostra que, porque amavam o dinheiro, ridicularizavam Jesus (Lc 16.14). Também porque se justificavam a si mesmos diante dos homens, como Jesus afirmou (Lc 16.15). Deus, no entanto, conhecia seus corações. Jesus via a contradição que havia em suas vidas e contou a história de um homem que amava o dinheiro, vivia no luxo, e pensava que o fato de ser descendente de Abraão lhe garantiria a salvação. O conteúdo da parábola está ligado ao comentário dirigido aos fariseus a respeito de vícios como o amor ao dinheiro e a autojustificação476. No contexto mais amplo da série de parábolas registradas por Lucas, várias questões se impõem: “O que o rico e Lázaro representam?’” e “Por que Jesus não contou a história de um rico coletor de impostos e um pobre mestre da lei?” Os fariseus olhavam os publicanos como “pecadores” que corriam o risco de perderem o direito de ser chamados filhos de Abraão e de pertencer ao povo da aliança de Deus. Na parábola, no entanto, Jesus retrata dois homens, um rico e o outro pobre. O rico viveu uma vida respeitável, chamava Abraão de pai, e foi viver a eternidade no inferno. O pobre jamais abriu a boca, na terra ou no céu, embora ocupasse lugar de honra junto ao pai Abraão. Os fariseus foram capazes de se reconhecer no homem rico. Reagiram veementemente contra a afirmação de Jesus de que não poderiam servir a Deus e às riquezas. Ridicularizando Jesus, ostensivamente revelaram que eram aqueles que amavam o dinheiro. Eram, também, os únicos que prontamente chamavam Abraão de pai e pensavam que seu parentesco com o patriarca lhes assegurava o futuro. Três vezes o rico chamou Abraão de pai. Mas, Abraão, embora aceitando a descendência física, chamando-o de “filho”, na primeira vez, deixou claro, nas respostas subseqüentes, que um parentesco físico era insuficiente477. Portanto, os fariseus não podiam contar com o fato de serem da linhagem de Abraão para terem garantido um lugar no céu. 475

Manson, Sayuings, pp. 296-301, e Hunter, Parables, p. 114, sugerem que a parábola foi endereçada aos saduceus porque negavam a ressurreição. Esta seria, na verdade, uma interpretação útil, se o contexto, direta ou indiretamente, se referisse a eles. 476 Derrett, Law, p. 85, se refere à história de Dives e Lázaro como a “parábola da inversão”. Veja-se, também, Oesterley, Parables, p. 203. 477 F. H. Capron, “Son in the Parable of the Rich Man and Lazarus”, ExpT 13 (1901): 523.

Além disso, os fariseus eram os que ensinavam a lei da retribuição, em relação à vida futura. Essa doutrina, simplesmente, não é compatível com o ensino de Jesus478. É estranha a ele. Mas Jesus pôs a doutrina dos fariseus na boca de Abraão: “Filho, lembra-te de que recebestes os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos.”’ Jesus aplicou a lei da retribuição aos fariseus, que ouviram sua própria teologia dos lábios de Abraão. Eles tinham criado um grande abismo entre eles próprios e os proscritos morais e sociais. Esses banidos da sociedade viviam em completa pobreza religiosa e econômica. Ninguém da comunidade judaica lhes fornecia alimento espiritual; estavam condenados a morrer de fome. Se alguém, alguma vez, questionasse a atitude dos fariseus em relação a esses marginalizados, ouviria como resposta que eles tinham Moisés e os profetas, que ouvissem a lei e se arrependessem. Os fariseus ouviam suas próprias palavras distinta e diretamente de Abraão. Estavam retratados pelo rico, no inferno, e Lázaro representava os marginalizados. Os fariseus, mais que uma vez, haviam pedido a Jesus que lhes desse um sinal dos céus479. Pediam isso com o propósito de testá-lo. Provavelmente não teriam acreditado nele, mesmo que lhes apresentasse um sinal sobrenatural. Agora, esses mesmos fariseus ouviam o rico da parábola pedir a Abraão um sinal dos céus. Abraão recusou. Ele disse: “Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tão pouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.” No pedido do rico, os fariseus ouviram o eco de suas próprias palavras. A parábola era endereçada a eles480. Conclusão A lição ensinada por Jesus é atemporal; é a regra permanente de como ouvir, obediente e agradecido, a Palavra de Deus. As Escrituras nos ensinam a amar o Senhor nosso Deus de todo o nosso coração, nossa alma e nossa mente, e ao próximo como a nós mesmos. Este amor tem que ser materialmente expresso na cuidadosa entrega de nossos dons ao Senhor e àqueles que, próximos a nós, estão em dificuldade (SI 112.9; 2 Co 9.7). Este amor, também, deve-se mostrar espiritualmente; primeiro, pelo crescimento na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2 Pe 3.18); e, segundo, ensinando nosso próximo a conhecer o Senhor (Jr 31.34; Hb 8.11). Os ricos são realmente ricos quando repartem suas bênçãos materiais e espirituais com os necessitados. Na verdade, são terrivelmente pobres se guardam, para si mesmos, essas bênçãos. 478 479

Schippers, Gelijkenissen, p. 160.

Mt 12.38; 16.1; Mc 8.11; Lc 11.16; Jo 6.30. 480 Schippers, Gelijkenissen, p. 161.

Qualquer que ajunte egoisticamente riquezas materiais acaba sofrendo bancarrota espiritual. Do mesmo modo, qualquer igreja que deixa de evangelizar, morre espiritualmente. Os cristãos das sociedades abastadas não podem deixar de ver e ouvir as necessidades dos pobres na África, Ásia e América Latina. Pelas notícias da mídia, encontram os necessitados junto à sua porta. Esses são os que sofrem de fome física e espiritual, que anseiam pela comida que cai da mesa do rico. Em lugar algum as Escrituras ensinam que é pecado ser rico. Repetidamente, no entanto, elas advertem o povo de Deus que riquezas podem ser cilada e tentação que “afogam os homens na ruína e perdição” (1 Tm 6.9). Quando o homem coloca Deus e seu próximo necessitado em um plano secundário, e trata as Escrituras com desprezo intencional, sua resposta responsável ao chamado para o arrependimento pode não acontecer jamais481. Na parábola soa uma nota de urgência para o homem que sábia e obedientemente atenta para a Palavra de Deus. Ela o chama ao arrependimento e à fé; diz-lhe que ele está vivendo no período da graça; instrui-o a deixar de lado a autojustificação; e fá-lo lembrar que o destino do homem é irrevogavelmente selado no momento da morte. Resumindo, a parábola reitera as palavras do salmista: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz! Não endureçais o vosso coração” (SI 95.7,8).

481

O Glombiiza, “Der reiche Mann und der arme L.arzan,s. Luk. XVI 19-31. Zur Frage nach der Llotschaft des Texts”, NovT 12(1970):173.

37. O Fazendeiro e o Servo Lucas 17.7-10 “Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cingete e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois, comerás tu e beberás? Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer”. No mundo materialista da sociedade ocidental, a parábola do fazendeiro e seu servo parece, de certo modo, fora de lugar. As disputas trabalhistas, de um tipo ou de outro, são comuns, hoje em dia. Salários mais altos e jornadas mais curtas são parte das exigências da força de trabalho. Um empregado de determinado setor não pode, simplesmente, passar para outro. Cada trabalhador deve fazer a tarefa para a qual foi contratado. A parábola contada por Jesus deixa entrever parte da relação empregador x empregado, daqueles dias. Embora as circunstâncias atuais sejam outras, a aplicação da parábola não tem limite no tempo. A mensagem transmitida nesta pequena representação da vida agrícola da sociedade do primeiro século é permanente e relevante ainda hoje. “Qual de vós”, disse Jesus, “tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que antes não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois tu comerás e beberás? Porventura terá de agradecer ao servo por ter este feito o que lhe havia ordenado? Assim, também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que deveríamos fazer482”. O contexto da parábola é o relacionamento frio e impessoal do mundo antigo, quando o que se esperava de um escravo era que obedecesse ao que quer que seu senhor ordenasse. Se o dono desse 482

O adjetivo “inúteis” na sentença “somos servos inúteis”, não tem o sentido de imprestável ou sem serventia. E mais uma expressão de modéstia no sentido de falta de merecimento. “Somos servos, e não merecemos elogios” (NEB).

ordens ao servo para arar o campo durante o dia e preparar o jantar, quando voltasse, ele, simplesmente, obedeceria, pois sabia que esta era sua tarefa. Era simples assim. E, por ter feito sua tarefa, o escravo não recebia agradecimentos, porque não era costume agradecer-lhes. O que Jesus está dizendo com esta parábola? Ele quer que seus seguidores entendam o que significa ser servo. Seus próprios discípulos, que viviam num clima religioso de méritos e demérito, perguntaram, mais de uma vez, qual deles seria o maior no reino dos céus483. Jesus teve que ensinar: “Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo de todos” (Mc 9.35). Ele mesmo deu o exemplo, quando lavou os pés dos discípulos (Jo 13.1- 17) e, depois de instituir a Santa Ceia, instruiu-os a agir como servos: “... o maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Pois, no meio de vós, eu sou como quem serve” (Lc 22.26,27)484. Constantemente Jesus tinha que ensinar a seus discípulos que não deviam trabalhar para o reino de Deus pensando em recompensas. Deus não emprega seus servos para recompensá-los por seus serviços. Nenhum servo pode, jamais, dizer: “Deus está em débito comigo”. Deus não compra serviços como um empregador que compra o tempo e a habilidade de seus empregados. E porque Deus não entra numa relação empregador x empregado, ninguém pode, jamais, reclamar de Deus, alegando serviços prestados485. Para fazer seus discípulos entenderem o que significa servir, Jesus contou-lhes a parábola do fazendeiro e seu servo. O fazendeiro podia fazer as maiores exigências a respeito do tempo e da eficiência de seu servo. Legitimamente podia agir assim, para o seu próprio benefício e prazer. Se isso era verdadeiro na relação entre o fazendeiro e o servo, Jesus perguntou, quanto mais verdadeiro será para os servos de Deus486, que foram chamados para amar a seus servos para serem santos, porque ele é santo, então, ninguém pode reclamar dele recompensas por tarefas cumpridas. Ninguém tem o direito de esperar dele palavras de elogio por ter feito o que devia. Se Deus concede favores e recompensas, o faz pela graça dele e não pelo mérito pessoal de cada um.

483

Mt 18.1; 20.21; Mc 9.34; 10.37; Lc 9.46; 22.24; e veja Mt 23.11. Na parábola dos servos vigilantes (Lc 12.35-38), o senhor, quando chega, prepara a refeição dos servos e os serve. 485 Comparem-se, entre outros, Sl 62.12; Mt 16.27; 2 Co 5.10; Ap 22.12. 486 Manson, Sayings, p. 302. 484

38. O Juiz Iníquo Lucas 18.1-8 “Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar sempre e nunca esmorecer: Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus, nem respeitava homem algum. Havia também, naquela mesma cidade, uma viúva que vinha ter com ele, dizendo: Julga a minha causa contra o meu adversário. Ele, por algum tempo, não a quis atender; mas, depois, disse consigo: Bem que eu não temo a Deus, nem respeito a homem algum; todavia, como esta viúva me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha a molestar-me. Então, disse o Senhor: Considerai no que diz este juiz iníquo. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los? Digo-vos que, depressa, lhes fará justiça. Contudo, quando vier o Filho do Homem, achará, porventura, fé na terra?”. Esta parábola é conhecida, também, como a parábola da mulher persistente. E companheira daquela do amigo à meia-noite (Lc 11.5-8). Lucas apresenta as duas como relatos semelhantes: uma sobre um homem, a outra sobre uma mulher (esta parábola é encontrada apenas em Lucas). Embora pareça um tanto fora do contexto, sua conclusão: “Contudo, quando vier o Filho do homem, achará porventura fé na terra?” (18.8) a relaciona com o estudo escatológico do capítulo precedente. Além disso, o assunto oração aparece na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18.9-14) que vem imediatamente a seguir. A Viúva e o Juiz Apenas duas pessoas representam os papéis principais: a viúva e o juiz. O adversário da viúva é apenas mencionado. A parábola do amigo à meia-noite também apresenta dois personagens centrais: o hospedeiro e o vizinho, enquanto que o viajante é mencionado apenas de passagem. Parece que as viúvas, em Israel, passavam por grande dificuldade; as numerosas leis protetoras indicam que eram oprimidas e passavam grande privação. O próprio Deus defende a causa da viúva (Dt 10.18) e amaldiçoa o homem que perverter seu direito (Dt 27.19). A viúva tomava o lugar do marido falecido e, no tribunal, era considerada como tendo os mesmos direitos de um homem: “No

tocante ao voto da viúva ou da divorciada, tudo com que se obrigar lhe será válido” (Nm 30.9). Qualquer um que pervertesse o direito da viúva teria que enfrentar Deus, o juiz das viúvas (Sl 68.5). Contudo, as viúvas eram maltratadas. O profeta Isaías queixase de que os governantes da terra são rebeldes e ladrões. “Não defendem o direito do órfão, e não chega perante eles a causa das viúvas” (Is 1.23). E Malaquias afirma que Deus será testemunha veloz contra aqueles que oprimem a viúva e o órfão (Ml 3.5). Jesus contou a seus discípulos sobre uma viúva de certa cidade, que não tinha ninguém para apoiá-la contra seu adversário, a não ser um juiz iníquo487. Seu adversário não tinha nem mesmo que comparecer no tribunal, o que é indício de que se tratava de uma questão de dinheiro. Ela não podia pagar um advogado. Então, se dirigiu diretamente ao juiz e queria que ele lhe servisse de advogado e juiz488. Em vez de ir ao tribunal da comunidade, ela procurou o juiz, que era conhecido por todos pela sua má reputação489. Esse juiz não tinha princípios religiosos e se mostrava imune à opinião pública. Simplesmente não dava a mínima importância ao que falasse Deus ou o homem. Assim era o juiz que a viúva procurou. Faltam-nos detalhes, pois não nos é dito nada sobre a idade da mulher490, se era rica ou pobre, e porque procurou um juiz que “não temia a Deus nem respeitava homem algum”. Viúva, ela é um retrato de vulnerabilidade. Seu único recurso é levar sua causa ao juiz com o pedido: “Julga a minha causa contra o meu adversário”. A expressão “julga a minha causa” é linguagem jurídica, e significa, realmente, “aceita a minha causa”, ou “ajuda-me a obter justiça491”. Apesar da reputação do juiz de menosprezar esses assuntos, a viúva pediu-lhe ajuda. Coerente com a própria fama, o juiz se recusou a agir. Provavelmente dispensou a viúva, mandando-a para casa, com a observação costumeira: “O caso seguinte, por favor”. 487

G. Schrenk, TDNT 1:375. Derrett, ‘Law in the New Testament: The Unjust Judge”, NTS 18(1971.72): 188, publicado em Studies in the New Testament (Leiden: Brill, 1977), 1:42. 489 De acordo com a lei dos fariseus, o judeu estava proibido de procurar tribunais não judaicos. Paulo revela que na igreja primitiva esta mesma regra devia ser seguida (1 Co 5.12 — 6.8). Muitas vezes, o povo procurava juízes gentios “se por esse intermédio, apelando para algum argumento político ou fiscal, pudessem ter frustrados os direitos de seus oponentes ou pudessem forçá-los a fazer o que a lei ordinária deixara de fazer”. DerretI, “L.aw in lhe New Testament”, p. 184. Consultese, também, Smith, Parables, p. 149. 490 Porque os casamentos eram contratados quando a moça tinha catorze ou quinze anos, uma viúva podia ser bem jovem. Consulte-se SB, II: 374; Jeremias, Parables, p. 153. 491 Derrett, “Law in the New Testament”, p. 187, Schrenk, TDNT, II: 443. 488

A única arma de que a mulher dispunha era procurar o juiz, dia após dia, com o mesmo pedido: “Julga a minha causa contra o meu adversário”. A viúva conseguiu irritar o juiz, que pensou: “Bem que eu não temo a Deus, nem respeito homem algum, todavia, como esta viúva me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha a molestar-me”. Ele não temia uma agressão física492; o que estava acontecendo é que a persistência dela fazia aflorar o seu lado bom. Em lugar de ir embora, quieta, que era o que ele esperava, ela voltava, sempre, com o mesmo pedido. O juiz não podia suportar mais a insistência da mulher. Ele cede, investiga o caso e aplica a justiça. Aplicação Na parábola do juiz iníquo, Jesus é muito mais específico que na do amigo importuno. De fato, a interpretação e a aplicação da mensagem da parábola, em Lc 11.5-8, devem ser buscadas no contexto geral, enquanto que na parábola do juiz iníquo, encontramos tanto a mensagem quanto a aplicação. Jesus diz: “Considerai no que diz este juiz iníquo493”. Ele quer que os discípulos prestem atenção às palavras do juiz. Elas são importantes para a compreensão correta da parábola. Como fez na parábola do amigo que veio à meia-noite, Jesus usa a regra dos contrastes. Ele contrasta o pior que há no homem com o melhor que há em Deus: “Considerai no que diz este juiz iníquo. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?” Em outras palavras, ninguém deve imaginar Deus como uma divindade inabalável que se compara ao juiz da parábola. O sentido é que se esse juiz grosseiro e mal humorado, que, segundo suas próprias palavras, não teme a Deus nem aos homens, se comove com os pedidos da viúva, quanto mais fará Deus justiça a seu próprio povo que ora a ele, de dia e de noite? Além disso, não existe nenhuma relação entre a viúva e o juiz, seja social, comunitária ou religiosa. O juiz quer ficar livre dela para que até o laço advogado-cliente tenha fim. E, mesmo assim, esse juiz inescrupuloso atende à viúva e lhe faz justiça. Deus, ao contrário, escolheu seu próprio povo. Ele tem interesse especial nesse povo, 492

As traduções da palavra grega hypopiaze variam, e vão de um insulto ao cometimento de um ato de violência — “acertar um soco no olho”. Derrett, “Law to the New Testament”, p. 191, interpreta a palavra, como significando “perda de prestígio”. É, portanto, comparável à palavra anaideia, de Lá 11.8, que pode ter o sentido de “não ser alvo de reprovação; manter a aparência”. Veja-se D. R. Catchpole, ‘The Son of Man’s Search for Faith (Luke XVIII 8b)” NovT l9 (1977):89. 1 Co 9.27 é o outro lugar, no Novo Testamento, onde a palavra hypopiaze é usada. 493 A expressão “juiz iníquo” define o contraste entre a injustiça personificada pelo juiz terreno e Deus que ouve seus eleitos. Veja-se G. Delling, “Das Gleichnis voo gottlosen Richter”, ZNW 53 (1962):14.

pois ele lhe pertence494. Quando esse povo lhe pede, noite e dia, Deus toma para si sua causa e faz justiça. Assim, se a viúva tivesse pedido a Deus, teria recebido justiça, porque Deus ouve e responde às orações495. O juiz ouviu a mulher pelo motivo errado: para livrar-se dela. Deus ouve seu povo porque o ama e defende sua causa. O juiz age egoisticamente; Deus age em favor de seu povo. Os filhos de Deus devem orar constantemente? A parábola ensina que devem trazer sua causa diante de Deus, em oração contínua. Devem orar sempre e não se tornarem ansiosos quando não obtêm uma resposta imediata. Jesus ensina o poder da oração. Por palavras e exemplos, ele demonstrou que os filhos de Deus devem orar dia e noite, sem desanimar. Do mesmo modo, Paulo, em suas Epístolas, repetidamente se refere ao fato de orar continuamente (dia e noite) e com o máximo empenho, como, por exemplo, no seu desejo de estar com a igreja em Tessalônica (1 Ts 3.10). Se o povo de Deus clama a ele dia e noite, por que, às vezes, ele demora a responder496? Jesus continua: “Não fará Deus justiça aos seus escolhidos... embora pareça demorado em defendê-los?” E a resposta implícita desta pergunta de retórica é: Naturalmente que sim. Ele talvez faça seu povo esperar, pode testar sua paciência, fortificar sua fé, mas, no tempo próprio, Deus responderá às orações de seus eleitos497. Deus não é como o juiz iníquo que se recusa a atender os pedidos da viúva. Deus pode fazer seu povo esperar, mas fará justiça incontinenti: “Digo-vos que depressa lhes fará justiça”. Aparentemente há uma contradição na afirmativa de Jesus. Mas não é o que acontece se propusermos duas simples questões e procurarmos suas respostas. Primeiro, Deus fará justiça a seu povo? A resposta, obviamente, é que sim. O povo de Deus pode confiar em sua fidelidade. Ele não é como o juiz iníquo, em cujo caráter não se pode Delling, “Gleichnis”, p. 15. A linguagem da parábola é reminiscência de Eclesiástico 35.12-20, que faIa sobre a justiça de Deus. “Porque o Senhor é um juiz”, diz Jesus Ben-Sirach. “Ele jamais ignora o apelo do órfão ou da viúva” (NEB). 496 Muitos exegetas têm tentado uma explicação satisfatória para Lá 18.7b. A brusca mudança do subjuntivo no v.7a, para o indicativo, em 7b, pode significar que o versículo consiste de duas sentenças independentes. A última parte do v. 7 é semelhante a Eclesiástico 25.19. Para interpretações deste versículo, veja-se H. Riesenfeld, “Zu makrothumein (Lk 18.7) “Neutestamentliche Aufsãtze, Festschrift honoring J. Schmid (Regensburg: Pustet, 1963), pp. 214-17; H. Ljungvik, “Zur Erklãrung einer Lukas-Stelle (Luk. XVIII7)”, NTS 10(1963-64): 289-94; A. Wifstrand, “Lukas xviii:7’, NTS 11(1964-65): 72-74: C. E. 13. Cranfield, “The Parable of the Unjust Judge and the Eschatology of Luke-Acts”, Scot JT 16(1963): 297-301; e Jerem ias, Parables, p. 154. 497 Plumer, St. Luke, p. 414, comenta que, embora o sentido exato não possa ser determinado, o que é importante é suficientemente claro: ‘não importa o quanto a resposta possa parecer demorada, a oração com fé e constância é sempre respondida. 494

495

confiar. Segundo, o povo de Deus deve esperar até que suas orações sejam respondidas? Ao contrário do juiz, Deus não se sente incomodado porque seu povo ora a ele, de dia e de noite. Quando Deus ouve as orações, não significa que cedeu em sua determinação de não respondê-las. Deus responde às orações no tempo apropriado e de acordo com seu plano498. E, quando o tempo vem, a oração é prontamente atendida Deus não demora, pois seu ouvido está sintonizado com a voz de seus filhos. Em tempos de tristeza, o tempo de espera parece alongar-se, mas, quando o filho de Deus recebe resposta às suas orações, e percebe o plano de Deus, admite que Deus praticou a justiça em seu favor, sem demora499. Jesus conclui a aplicação da parábola chamando a atenção para sua volta: “Contudo, quando vier o Filho do homem achará porventura fé na terra?” A pergunta, à primeira vista, parece não ter relação com o que a precedeu. Mas, na última parte do capítulo anterior Lucas registrou o ensino de Jesus sobre a vinda do Filho do homem, no último dia500. Ao referir-se à sua segunda vinda, Jesus liga o conceito de justiça ao dia do juízo, quando ele será o Juiz dos vivos e dos mortos (At 10.42). Jesus lembra a seus seguidores o dia de sua volta. Ele vai encontrar, naquele dia, a fé simples como a de uma criança? A volta do Filho do homem não pode ser questionada; o evento se cumprirá no tempo escolhido por Deus. Podemos estar certos da promessa de Jesus sobre sua volta. O outro lado da questão é saber se o crente será fiel em suas orações. O seguidor de Jesus orará continuamente pela vinda do reino de Deus (Mt 6.10; Lc 11.2) e pela volta de Cristo (1 Co 16.22; Ap 22.17,20)? Jesus cumpre e, eventualmente, completa sua obra de redenção através do corpo de crentes do qual ele é o Cabeça. Jesus faz a obra confiada a ele. O crente, no entanto, será fiel a Jesus, comunicando-se com ele, constantemente, em oração? Haverá fé perseverante, quando ele voltar? Em certo sentido, a viúva persistente retrata a igreja em oração501. O mundo oprime os seguidores de Jesus que não têm para onde se voltar, a não ser para Deus. Eles esperam, em oração, a intervenção de Deus, sabendo que ele ouvirá seus pedidos. A semelhança entre o hospedeiro insistente, que tirou seu vizinho da 498

Marshal, Luke, p. 676, Morris, Luke, pp. 263-64. Veja Delling, “Gleichnis”, p. 20: C. Spicq, “La parabole de la veuve obstinée et du juge inert aux decisions impromptues (Lc xviii 1-8)”, RB 68(1961): 82-83. 500 Linnemann, Parables, p. 121, ousadamente escreve que a parábola não é originalmente de Jesus; antes, é a palavra do Senhor que ascendeu “falada em nome e espírito de Jesus para a comunidade de crentes”. Catchpole, ‘Son of Man’s Search”, p. 104, refuta o argumento mostrando a inter-relação da parábola e do contexto. Ele conclui que, na parábola, “ouvimos a voz do Jesus histórico”. 501 Delling, “Gleichnis”, p. 24. 499

cama, e a viúva que continuou insistindo com o juiz, é clara. Nenhum dos dois tinha para onde ir. Os dois sabiam que, se continuassem insistindo, acabariam sendo atendidos. Por meio dessas parábolas. Jesus exorta seus seguidores a permanecerem fiéis, mesmo que sua volta exija espera paciente. As almas dos que morreram por causa da Palavra de Deus podem gritar: “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6.10). A resposta que recebem é que esperem um pouco mais até que se complete o número dos seus conservos e irmãos.

39. O Fariseu e o Publicano Lucas 18.9-14 “Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado”. O versículo introdutório desta parábola é propositalmente amplo em seu escopo e não especifica um grupo determinado. Não obstante, existe a tentação real de destacar os fariseus dos demais. Reconhecidamente, muitos deles exibiam uma atitude de confiança na própria justificação e olhavam com desprezo seus semelhantes. Seria um erro deplorável atribuir esta atitude a todos os fariseus, pois Nicodemos e José de Arimatéia, por exemplo, não poderiam ser incluídos nesta categoria502. Por isso, Lucas generalizou, no primeiro versículo. O Fariseu Nesta parábola, Jesus descreve a atitude de um fariseu em particular, que cm sua própria maneira de ver, excedia o restante de seus compatriotas na observância dos detalhes da Lei de Moisés503. Cheia do espírito de auto-justificação e lançando olhares desdenhosos aos que estavam a seu redor, o fariseu se encaminhou ao templo para orar. Em suas palavras e atitude, mostrava que não precisava de 502 503

D. A. Hagner, “Pharisees”, ZPEB, 4:745-52. Josephus, War, 1:110; Manson, Sayings, p. 309; SB, 11:239.

Deus porque confiava em si mesmo504. Sua autoconfiança era tão grande que ele julgava ser capaz de manter o padrão que se havia proposto. Conseqüentemente, menosprezava as pessoas que não desejavam ou eram incapazes de manter esse padrão. Ele foi ao templo de Jerusalém para orar. Deve ter sido no meio da manhã, às 9 horas, ou no meio da tarde, às 15 horas — horas determinadas para a oração. Dirigiu-se ao pátio externo, onde podia ser visto e ouvido pelos homens, porque o pátio interno era acessível apenas aos sacerdotes. Lá ele se postou e, olhando para os céus, orava a respeito de si mesmo505. Sua oração estava centrado nele mesmo, e pretendia que todos, ao seu redor, a ouvissem. Foi uma oração curta: uma introdução, um elemento negativo e um elemento positivo. “Deus, graças te dou Porque não sou como os demais homens — roubadores, injustos e adúlteros — nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho”. Na relativamente curta oração, a ênfase recai na primeira pessoa do singular. O pronome eu ocorre, pelo menos, quatro vezes. O fariseu orou em agradecimento. Nada pediu, porque confiava em si mesmo e em sua auto-suficiência. Não tinha necessidade de se confessar, pois guardava os mandamentos. As referências ao seu semelhante foram feitas em termos negativos. Além disso, Deus deveria estar satisfeito porque um fariseu, cumpridor da lei, se dirigia a ele em oração. Ele não se dava conta de que a graça de Deus evitara que caísse em pecados tão medonhos como o roubo, a injustiça e o adultério. Não podia entender o que significava viver com a consciência culpada, como o publicano. Para sua própria glorificação, enumerou dois feitos extraordinários que costumava praticar. Primeiro, além e acima do que é exigido pela Lei, jejuava duas vezes por semana. A Lei prescreve um dia de jejum por ano, no Iom Kipur (= o Dia do 504

Jeremias, Parables p. 139 nº 38; Manson, Saylngs, p. 309. Em sua carta aos Filipenses, Paulo descreve sua vida passada, como fariseu: ‘Bem que eu poderia confiar também na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais! Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível” (Fp 3.4.6). 505 Os manuscritos gregos diferem na ordem precisa das palavras pros heauton. Estaria esta frase ligada à expressão verbal “estar em pé” ou ao verbo “orar”? A tradução pode ser “de pé, separado por si mesmo, orava” ou “posto em pé, orava para si mesmo”. Os tradutores da NIV escolheram a segunda forma, com uma modificação. Entenderam a preposição pros no sentido de “a respeito de”, embora na nota de rodapé traduzam como “para”. The Modern Language BibIe (New Berkekey) traduz: “O fariseu pôs-se de pé e disse essa oração para si mesmo”.

Perdão)506, mas dá permissão para o jejum voluntário, em qualquer tempo. Os fariseus instituíram a segunda-feira e a quinta-feira, como dias de jejum durante os quais são feitas orações pela nação507. Segundo, embora o dízimo sobre o produto comprado por ele já tivesse sido entregue pelo produtor, o fariseu tornava a pagar, ele mesmo, o dízimo de tudo o que se tornava seu508. Queria ser ele mesmo a preservar a Lei de Deus, embora as suas exigências já tivessem sido cumpridas pelos outros. A oração do fariseu não era de todo incomum. Uma prece semelhante, registrada no Talmude e proferida originariamente pelo rabino Nadhunya ben Ha Kana, por volta de 70 A.D., diz: “Graças te dou, ó Senhor meu Deus, que me tens dado a minha porção com aqueles que se assentam em Bete haMidrash (=casa do conhecimento) e não tens colocado minha porção com aqueles que se assentam nas esquinas, porque eu me levanto cedo por causa das palavras da Torá e eles se levantam cedo por causa de conversas frívolas; eu trabalho e eles trabalham, porém eu trabalho e recebo minha recompensa; eu corro e eles correm, porém eu corro para a vida do mundo futuro, e eles correm para a destruição509”. O fariseu, olhando ao seu redor, no pátio do templo, viu um publicano. Ele agradeceu a Deus por ser diferente dos outros homens, e, certamente, diferente daquele coletor de impostos. Ele estava livre dos pecados cometidos por aquele traidor. Como se atrevia, esse miserável, a entrar no templo? Davi não perguntou: “Quem subirá ao monte do SENHOR? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade, nem jura dolosamente” (Sl 24.3,4). As palavras de Davi, não condenavam esse publicano? O Publicano As sinagogas eram encontradas por todo o país e em numerosos lugares de Jerusalém. O publicano não ousava entrar numa sinagoga. O que ele procurava era um lugar onde pudesse orar a Deus sem ser perturbado. Sendo judeu, tinha acesso ao pátio externo do templo e podia ir até lá na hora de oração, pela manhã ou à tarde. Só desejava um lugar onde pudesse permanecer afastado 506

Lv 16.29-31; 23.27-32; Nm 29.7; Jr 36.6. SB, 11:241-44; SB, IV:1, 77-114. J. Behm, TDNT, IV: 924-35. 508 SB, 11:244-46; Jeremias, Parables, p. 140. Deus disse ao fazendeiro: “Certamente darás os dízimos de todo fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo” (Dt 14.22). 509 Berakoth 28b, Zeraim, The Babylonian Talmud, p. 172. 507

dos outros que ali vinham para orar. O publicano ouviu a Palavra de Deus, que o convenceu de seus pecados. Sua consciência o estava incomodando; precisava de ajuda espiritual. Queria chegar até Deus, mas estava sobrecarregado pelo peso de sua própria indignidade diante de Deus e do homem. Nem mesmo se atrevia a erguer os olhos para os céus, apenas ergueu as mãos, em oração (1 Tm 2.8). Sentia vergonha pelos pecados cometidos contra Deus e contra o próximo. Empregado dos romanos, era objeto de desprezo e zombaria entre seu próprio povo. Sabia que os tinha prejudicado, de tal modo que o viam como ladrão e traidor. Não se surpreendia que os fariseus o considerassem pecador e transgressor da lei de Deus. A dívida que o coletor de impostos tinha para com o povo que ele enganava era enorme. Ele não tinha possibilidade de pagá-la, e, além disso, nem mesmo era capaz de se lembrar de quantos tinha enganado510. A Lei fala claramente do pecado do roubo mediante fraude, quando diz: “Quando alguma pessoa pecar, e cometer ofensa contra o SENHOR, e negar ao seu próximo o que este lhe deu em depósito, ou penhor ou roubo, ou tiver usado de extorsão para com o seu próximo... restituirá aquilo que roubou, ou que extorquiu, ou o depósito que lhe foi dado, ou o perdido que achou, ou tudo aquilo sobre que jurou falsamente; e o restituirá por inteiro, e ainda a isso acrescentará a quinta parte; àquele a quem pertence, lho dará no dia da sua oferta pela culpa” (Lv 6.2-5). O publicano não tinha coragem para aproximar-se do altar e dirigir-se ao sacerdote com sua oferta pela culpa. Ficou próximo do altar. Não tinha para onde ir a não ser para Deus, em oração. Por causa de sua profissão tinha negligenciado a adoração a Deus, na sinagoga e no templo. Agora, era chegado o momento de confessar seus pecados diante de Deus, mesmo que não pudesse pensar em apresentar sua oferta pelas suas culpas. Seus débitos para com o povo eram grandes e variados demais. Pecara excessivamente para poder fazer uma oferta pela sua culpa. Tudo o que podia fazer era orar a Deus. Mas, porque negligenciara, por tanto tempo, sua vida espiritual, nem mesmo sabia orar. Faltavam-lhe palavras de louvor, adoração e gratidão. O fardo do pecado o oprimia. Queria expressar sua culpa e só conseguia clamar por misericórdia. Rogava: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” E, enquanto pedia, batia no peito como querendo mostrar a fonte do pecado — seu coração. O pecador, como o publicano chamava a si mesmo, chegou diante de Deus com as mãos vazias. Não apresentava méritos, nem exigências. Não usou desculpas ou explicações. Comparar-se a outros estava fora de cogitação. Ele sabia que era o pecador implorando misericórdia. Seu grito: “Ó Deus, sê propício a mim” era um pedido 510

Jeremias, Parables, p. 143.

para que Deus perdoasse seus pecados e afastasse dele a sua ira511. Pedia misericórdia, e era tudo o que se atrevia a pedir512. Orou e esperou pela resposta de Deus. Respostas Na afirmação final, Jesus revelou como Deus respondeu às orações do fariseu e do publicano: “Digo-vos que este (o publicano) desceu justificado para sua casa, e não aquele (o fariseu)”. Deus ouviu e respondeu ao grito angustiado do pecador em agonia espiritual. As pessoas que cercavam o fariseu certamente o consideravam um santo que se esforçava diligentemente para obedecer a lei de Deus. Acreditavam que Deus ouviria sua oração porque era uma expressão de gratidão. Por outro lado, a oração do coletor de impostos não estava acompanhada da exigida oferta pela culpa e não poderia receber aprovação. Se alguém fosse chamado a julgar as duas orações, provavelmente elogiaria o fariseu, e condenaria o publicano513. Deus ouviu as orações e sondou os corações dos dois homens. O do fariseu era auto-suficiente, enquanto que o do publicano era completamente vazio de autoconfiança. O fariseu se justificava diante de si mesmo e, portanto, não tinha necessidade da misericórdia de Deus. Ele tinha obedecido à Lei e não tinha consciência de quaisquer pecados de comissão ou omissão. O publicano, no entanto, se dirigiu a Deus usando a primeira linha do Salmo 51,o salmo penitencial de Davi. Orou usando a própria linguagem das Escrituras: “Compadecete de mim, ó Deus...” (Sl 51.1)514. Ao seu pedido acrescentou a palavra “pecador”, mas, mesmo nessa palavra ressoa o sentimento do salmo de Davi. Deus responde à oração feita segundo as Escrituras. O publicano voltou para casa justificado diante de Deus, disse Jesus. O homem que se chamou de “pecador” confiou inteiramente na misericórdia de Deus515. Sua atitude em relação a Deus foi correta e, por isso, foi aceito como filho de Deus, no reino dos céus. Confiou simplesmente em seu Deus, que não desapontou sua fé. Diante de Deus, o publicano estava absolvido. O fariseu, não. Um voltou santificado; o outro como um pecador. 511

Consulte-se o estudo sobre o verbo hilaskomai, de F. Büchsel, TDNT III:316. The Modern Language Bible (New Berkeley) fornece uma tradução literal do texto grego: “Deus, tem misericórdia de mim, pecador” (Lc 18.13). 512 Manson, Sayings, p. 312. 513 Mànek, Frucht, p. 113; Linnemann, Parables, p. 61. 514 Jeremias, Parables, p. 144. 515 F. F. Bruce: “Justification in Non-Pauline Writings of the New Testament”, EQ 24 (1952): 68.

Jesus concluiu a parábola do fariseu e do publicano com as mesmas palavras que usou para a parábola dos lugares à mesa: “Pois todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado” (Lc 14.11). A aplicação da parábola não é limitada nem pelo tempo, nem pela cultura. “Fariseus” e “publicanos” são encontrados nas igrejas de hoje. Se olharmos no espelho da Palavra de Deus, podemos vislumbrá-los em nossa própria vida. Jesus ensina que a verdadeira humildade leva à exaltação. Ele nos diz que olhemos apenas para ele ao buscarmos a salvação. Quando estamos conscientes de nossa própria insignificância diante de Deus e pedimos misericórdia, Deus perdoa nossos pecados e nos salva através de seu Filho. Nas palavras de Paulo: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1 Tm 1.15).

40. As Dez Minas Lucas 19.11-27 “Ouvindo eles estas coisas, Jesus propôs uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente. Então, disse: Certo homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino e voltar. Chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes: Negociai até que eu volte. Mas os seus concidadãos o odiavam e enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este reine sobre nós. Quando ele voltou, depois de haver tomado posse do reino, mandou chamar os servos a quem dera o dinheiro, a fim de saber que negócio cada um teria conseguido. Compareceu o primeiro e disse: Senhor, a tua mina rendeu dez. Respondeu-lhe o senhor: Muito bem, servo bom; porque foste fiel no pouco, terás autoridade sobre dez cidades. Veio o segundo, dizendo: Senhor, a tua mina rendeu cinco. A este disse: Terás autoridade sobre cinco cidades. Veio, então, outro, dizendo: Eis aqui, senhor, a tua mina, que eu guardei embrulhada num lenço. Pois tive medo de ti, que és homem rigoroso; tiras o que não puseste e ceifas o que não semeaste. Respondeu-lhe: Servo mau, por tua própria boca te condenarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que tiro o que não pus e ceifo o que não semeei; por que não puseste o meu dinheiro no banco? E, então, na minha vinda, o receberia com juros. E disse aos que o assistiam: Tirai-lhe a mina e dai-a ao que tem as dez. Eles ponderaram: Senhor, ele já tem dez. Pois eu vos declaro: a todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado. Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença”. Quando

Jesus

estava

indo

para

Jerusalém,

as

pessoas

acreditavam que o reino de Deus estava preste a vir. Durante seu ministério de cura e ensinamento, Jesus tinha curado cegos, limpado os leprosos e ressuscitado Lázaro, além de pregar as boas-novas516. Acompanhando Jesus a Jerusalém, o povo esperava que o reino de Deus se tornasse uma realidade. Jesus sabia que o povo não tinha entendido a vinda do reino, em termos espirituais. Não puderam ver que ele não seria, nem poderia ser, um rei terreno, no reino de Deus. Para ajudá-los a entender a implicação do reino, Jesus contou a parábola das minas. Fez isso se referindo indiretamente a acontecimentos ocorridos há mais de trinta anos atrás e que estavam gravados em suas memórias. A História O povo de Israel se lembrava com nitidez das calamidades infligidas aos judeus durante os festejos da Páscoa do ano 4 a.C., no pátio do tempo de Jerusalém. Herodes, o Grande, morrera não muito antes da festa da Páscoa, e em seu testamento tinha determinado que Arquelau fosse o rei517. No entanto, o reinado de Arquelau não se tornaria efetivo até que César o aprovasse. Antes que o novo escolhido pudesse viajar para Roma a fim de ser oficialmente coroado rei — embora oficiais e soldados o aclamassem como tal —, um distúrbio sem importância, no pátio do templo, degenerou em um banho de sangue no qual três mil judeus foram mortos pelos soldados de Arquelau. Em conseqüência, Arquelau ordenou que todos os judeus voltassem para suas casas; eles deixaram a festa da Páscoa e partiram. Enquanto Arquelau foi a Roma, seus oficiais ficaram no comando. Em vista dos tumultos e da violência no país, Arquelau tinha pressa de se apresentar diante de César para se defender. Cinqüenta deputados judeus procuraram o imperador romano pleiteando a autonomia de Israel e acusando Arquelau de assassinar três mil de seus compatriotas, no pátio do templo, em Jerusalém. Esses cinqüenta deputados tiveram o apoio de mais de oito mil judeus, em Roma518. Pediram a César que seu país fosse entregue a governadores, e não a Arquelau. Depois de alguns dias de deliberação, César indicou Arquelau como o etnarca da Iduméia, Judéia e Samaria, e prometeu fazê-lo rei se provasse capaz. Para o povo, no entanto, Arquelau, bem como seu irmão Antipas (que governava a Galiléia e a Peréia, como tetrarca) eram considerados reis519. 516

Mt 11.5,6; Lc 7.22. Josephus, War 1:668; Antiquities 17:194. 518 Josephus, War 2:80; Antlqulties 17:300. 519 José levou Jesus e Maria para Nazaré e não para Belém, porque Arquelau reinava (basileuei) na Judéia, Mi 2.22. Em Mc 6.14,22,26 Herodes Antiquas é chamado de 517

Arquelau deve ter passado tempo considerável em Roma, porque foi envolvido em pelo menos dois litígios diante de César: um contra seus parentes próximos, que queriam reclamar dele o trono, e outro contra os cinqüenta deputados judeus que pleiteavam autonomia. Também em Jerusalém os judeus se revoltaram, durante a ausência de Arquelau. Por ocasião da festa de Pentecostes, em 4 a.C., eles tentaram obter a independência nacional. Quando Arquelau, afinal, voltou para tomar posse de sua etnarquia, aplicou punição exemplar. Assim, o sumo sacerdote Joazar foi afastado de seu posto por ter dado apoio aos judeus rebeldes. Arquelau foi extremamente rude no trato não só com os judeus, mas também com os samaritanos520. Por suas ações, ele se tornou o mais odiado dos governantes e, por causa das queixas contra ele, foi afastado do cargo e banido em 6 a.D. Depois de seu reinado, Iduméia, Judéia e Samaria passaram a ser administradas por governadores. Mas o povo tinha recordações bem vivas do reinado de Arquelau. A Parábola Ao se aproximar de Jerusalém, junto com numerosos peregrinos, para a festa da Páscoa, Jesus tinha apenas que dizer: “Certo homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino, e voltar”, e todo o povo sabia que ele se referia a Arquelau. Eles se recordavam do massacre de três mil judeus, durante as celebrações da Páscoa, três décadas atrás. Jesus continuou a chamar a atenção para esse incidente. Ele disse: “Mas os seus concidadãos o odiavam, e enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este reine sobre nós. Quando ele voltou, depois de haver tomado posse do reino, mandou chamar os servos”. Jesus se referiu à história recente para estabelecer o cenário de seu ensino sobre o reino de Deus. “Certo homem nobre”, Jesus disse, “chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes: Negociai até que eu volte”. A quantia era equivalente a três meses de salário521. Não era uma quantia excessiva, o que cada um dos servos recebeu, mas era suficiente para provar sua fidelidade ao rei. A instrução que cada um recebeu a seguir foi: “Negociai até que eu volte”. O rei esperava que seus servos soubessem administrar a relativamente pequena soma de dinheiro, para, assim, obter lucro, por ocasião de sua volta. A ordem deve ser vista e entendida no contexto da cultura oriental da época, quando o comércio e a barganha faziam parte do dia-a-dia.

rei. M. Zerwick, “Die Parabel vom Thronanwãrter”, Bib 40(1959): 662. 520 Josephus, War 2:111; Antiquitics, 17:339. 521 Considerando as oscilações dos valores monetários, os tradutores expressam sua equivalência em termos de um período de trabalho.

A ausência de quaisquer termos de contrato pode indicar a intenção de ludibriar a lei divina contra a usura. Muitas vezes, Deus repetira a seu povo que não cobrasse dos seus concidadãos juros de usura522. Mas, numerosos meios de fraudar a injunção tinham sido postos em prática. Assim, enormes lucros eram obtidos em alguns casos, principalmente quando o dinheiro era investido em negócios que eram verdadeiras aventuras de alto risco. O primeiro servo investiu o dinheiro e, quando seu senhor voltou, estava apto a lhe mostrar um lucro de mil por cento. O segundo conseguiu um lucro de quinhentos por cento523. Embora a parábola não mencione os lucros obtidos por outros servos, o contexto deixa implícito que experimentaram vários graus de sucesso. Do ponto de vista oriental, portanto, não era comum alguém guardar seu dinheiro embrulhado num lenço em vez de pô-lo para render. Negociar era parte da cultura. Quando o rei voltou e convocou seus servos, se alegrou com a fidelidade daquele que ganhara outras dez minas. Elogiou-o pela sua diligência e sabedoria; chamou-o de “bom” e o recompensou fazendoo responsável por dez cidades524. O segundo servo, após mostrar suas cinco minas adicionais, recebeu proporcionalmente a mesma recompensa. Foi colocado como responsável por cinco cidades. O terceiro servo, ao devolver apenas a única mina que tinha recebido, foi condenado. Os três servos da parábola podem ser considerados como pertencendo a três grupos. O primeiro, representa aqueles que obtêm imensos lucros; o segundo aqueles cujo lucro é considerável; e o terceiro, aqueles que não obtêm lucro algum. O terceiro servo, portanto, é de um tipo completamente diferente525. Pode ser considerado um servo inútil. Quando o terceiro servo compareceu diante do rei e devolveu a 522

Ex 22.25; Lv 25.35-37; Dt 23.19.20; Ne 5.7; SI 15.5; Pv 28.8; Ez 18.8, 13, 17; 22.12. 523 Derrett, Law in the New Testament, p. 23, mostra que a cobrança de altas taxas de juros não era incomum no mundo antigo. Como exemplo, se refere às taxas de empréstimos cobradas por Catão, o Antigo. 524 Alguns estudiosos têm conjecturado se a palavra cidades entrou no texto por um engano da palavra aramaica para talentos. Em aramaico, as duas expressões são bastante semelhantes: cidades é kerakin e talentos é kakerin. E. Nestle sugere um possível erro de leitura do texto, em um artigo publicado no Theologische Literaturzeltung, nº 22, 1985. M. Black, Aramaic Approach, p. 2, defende a sugestão de Nestle, embora Dalman, Words of Jesus, p. 67, tenha destacado que no paralelo de Mt 25.21,23, os servos não recebem talentos, mas são colocados responsáveis por muitas coisas. Lucas usa a palavra cidades para expressar o conceito geral de muitas coisas. Além disso, um rei, tomando posse de seu reino, podia investir seus servos de autoridade sobre cidades, o que não poderia (Mt 25) ser feito por um senhor. 525 Lucas usa o artigo definido masculino com heteros (= outro) no sentido de “diferente”. Plummer, St. Luke, p. 441.

única mina, fez saber que ela não lhe pertencia, mas, sim, ao rei e que ele a tinha guardado em segurança, embrulhada num lenço. Ele não a gastara nem os ladrões a haviam roubado. O medo o impedira de pô-la para render. Ele conhecia a natureza exigente do rei e podia descrever minuciosamente suas características. Ele disse: “Tive medo de ti, que és homem rigoroso; tiras o que não puseste e ceifas o que não semeaste”. Sabia que seu senhor era agressivo, que não hesitava em tomar o que não era seu. O servo tinha consciência de sua própria timidez. Temia a dureza do rei. Esperava apenas que, devolvendo a soma intacta, o rei o deixasse partir em paz. O rei, no entanto, não ficou nem um pouco satisfeito com a insolência do servo. Não entendeu o medo do servo e não teve paciência com sua desculpa inepta. Podia-se ver refletido na descrição feita pelo servo, mas se o servo acreditasse no que ele próprio dizia a respeito do rei, deveria, ao menos, ter depositado, no banco, o dinheiro526. O louvor e os elogios dirigidos aos dois primeiros servos se tornaram escárnio e condenação para o terceiro. O rei, agindo agora como juiz, disse ao servo que, com base em suas próprias palavras, ele seria julgado. Se o servo sabia que seu senhor era um homem exigente, deveria ter tido confiança na capacidade do rei de exigir dos banqueiros o seu dinheiro com os juros devidos. Os banqueiros, com toda a certeza, deveriam ter conhecimento de que o rei tirava o que não colocara e colhia onde não havia semeado. Mas, embora reconhecesse que o rei saberia exigir bons lucros dos banqueiros, o servo nem mesmo considerou a possibilidade de depositar o dinheiro no banco. Prontamente, orei o chamou de mau, querendo dizer que o servo era incompetente, incapaz e inútil527. A parábola é contada em tons fortes. O rei se dirige aos que assistiam a cena: “Tirai-lhe a mina, e dai-a ao que tem as dez”. Eles expressaram sua surpresa, ponderando ao rei: “Senhor, ele já tem dez528”. A objeção à ordem do rei se refere ao fato do primeiro servo já ter a maior soma de todos. Por que deveria receber a mina extra? Esta ordem significa que o rico se tornará mais rico, e o pobre mais pobre? Além disso, se o servo já tinha sido investido de autoridade sobre dez cidades, iria se sentir recompensado recebendo a relativamente pequena soma de uma mina? Afinal, todo o dinheiro 526

Morris, Luke, p. 275. G. Harder, TDNT, VI:547,554. 528 Pelo texto toma-se difícil definir se este versículo faz parte da parábola ou se foi inserido por copistas a partir de anotações feitas à margem. No entanto, essas testemunhas (por exemplo, D. W. 565 e algumas das versões latinas, siríacas e cópticas) que omitem o versículo, podem tê-lo feito por causa do paralelo de Mt 25.28,29 (que não o apresenta) ou por razões estilísticas, a fim de providenciar uma ligação mais estreita entre Lá 19.24 e 26. Com base em evidência externa e interna, entretanto, parece melhor conservar o v.25, Metzger, Textual Commentary, p. 169. 527

que os servos receberam do rei e aquele que ganharam negociando não seria depositado no tesouro real? É fácil multiplicarmos as perguntas, mas a maior parte delas se resolve se compreendemos o simbolismo que está implícito na parábola. O dinheiro confiado aos servos foi-lhes entregue como um teste. O rei queria experimentar sua lealdade e recompensá-los adequadamente. Fez isso colocando um servo responsável por dez cidades e o outro com a responsabilidade sobre cinco. Como recompensa à sua lealdade ao rei, o primeiro servo recebeu o dinheiro do terceiro. Agindo assim, o rei deixou claro que seu relacionamento com o terceiro servo estava definitivamente acabado529. Mostrou, ainda, que punha total confiança no primeiro servo, investindo-o da responsabilidade retirada do outro. O total do dinheiro deve ser visto, então, em termos de responsabilidade. O rei não respondeu diretamente aos que o cercavam530. Usando uma expressão um tanto proverbial531, ele, implicitamente, disse-lhes por que deu a mina ao servo que tinha as dez minas: “A todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado.” A observação aponta para uma prática comum no mundo dos negócios. Isto é, as pessoas prontamente emprestam dinheiro para aqueles cujo retorno de capital mostra lucro substancial. Confiam num negócio de sucesso porque sabem que o dinheiro investido trará dividendos. Mas, quando os investidores sabem que a pessoa que está tomando emprestado não consegue lucros sobre seu capital, depressa retiram a quantia investida e reduzem, assim, ainda mais, o capital do emprestador532. O dinheiro é entregue ao homem que corteja o sucesso e tirado daquele que enfrenta a bancarrota. Jesus terminou a parábola chamando a atenção para os embaixadores que tinham protestado contra a escolha daquele rei. Quando se apresentaram diante dele, o rei ordenou que fossem executados. Não há registro de que Arquelau, ao voltar de Roma, tenha mandado executar os cinqüentas judeus que tinham intentado contra ele na corte de César. No entanto, é fato conhecido que ele afastou do cargo o sumo sacerdote, por ter ajudado os rebeldes. Ele, também, tratou o povo de modo mais cruel, depois de sua ida a Roma. Interpretação

529

Derrett, Law in the New Testament, p. 28. A afirmação sobre quem fala em Lá 19.26, o rei ou Jesus, depende da interpretação dada ao versículo anterior. Plummer, St. Luke, p. 443. Por causa da expressão “eu vos declaro”, as palavras parecem refletir um comentário feito por Jesus, Marshall, Luke, p. 708. 531 De modo semelhante a expressão ocorre em Mt 13.12; 25.29; Mc 4.25; e Lc 8.18. 532 Derrett, Law in the New Testament, p. 30. 530

Em certo sentido, a parábola das minas é uma parábola sobre o reino, embora não seja apresentada pela frase familiar: “O reino dos céus é semelhante...” A parábola, baseada em história verídica, foi contada na ocasião quando o povo pensava que o reino de Deus estava preste a vir. Da própria história recente, Jesus ensinou a seus contemporâneos uma lição a respeito da vinda do reino. A parábola pretendia ensinar ao povo que haverá um intervalo entre sua primeira e segunda vindas. Como Arquelau partiu para Roma, mas voltou, assim o Filho do homem partirá e, no tempo escolhido por Deus, voltará. O rei deu a seus servos uma certa quantia de dinheiro, com a ordem explícita de que a pusessem para render. Quando assumiu a responsabilidade de governar sua etnarquia, chamou os servos à sua presença, para prestarem contas de suas atividades. Do mesmo modo, Jesus, ao partir da terra para o céu, dotou seus seguidores com dons, e espera que eles operem esses dons do modo mais fiel e fecundo durante sua ausência. Quando chegar o tempo de seu retorno, ele convocará seus servos diante de si, para receberem palavras de louvor e recompensa, ou condenação e punição severa533. O reino de Deus existe no presente, mas é, também, um estado de expectativa a ser cumprido. Ele é, portanto, agora, mas, ao mesmo tempo, ainda não. Jesus, embora eternamente rei, trará seu reino à realização plena, somente após a sua volta. Então outorgará aos servos fiéis grandes oportunidades de servi-lo, e, proporcionalmente, fará punir os servos indolentes e maus. Durante sua ausência Jesus dará ampla oportunidade para o serviço, bem como para a rebeldia534. Aquelas pessoas que acompanhavam Jesus em sua jornada para Jerusalém não deviam ter pensado que o reino traria, imediatamente, alegria e felicidade a todos. Deviam, antes, Ler pensado em termos de um intervalo durante o qual seriam provados. Então, após o período de provação, os que tivessem se rebelado, seriam punidos. Ninguém, dos que ouviam Jesus, o identificaria com o cruel Arquelau dos dias passados535. Mas, seus ouvintes eram capazes de entender que o intervalo da ausência de Arquelau, de certo modo, era um paralelo da partida de Jesus e seu subseqüente retorno. Simplesmente, a parábola não pode ser interpretada em todos os seus detalhes, porque isso nos levaria a um absurdo total. O objetivo da parábola é este: todos os seguidores de Jesus recebem dons e oportunidades para servir. Ninguém pode dizer que, por não ter a habilidade de um teólogo treinado ou a eloqüência de um orador 533

Ridderbos, Coming of lhe Kingdom, p. 515, comenta que é difícil explicar ‘A parábola das minas de qualquer Outro modo que não como uma referência à partida de Jesus da terra para o céu, e a vocação dos discípulos na terra”. 534 Plummer, St. Luke, p. 444. 535 Zerwick, “Thrononwärter”, p. 667.

talentoso, não pode servir ao Senhor. Tais argumentos não prevalecem. A parábola ensina que todos os servos receberam uma mina e cada um respondeu pelo dinheiro a ele confiado. Do mesmo modo, cada um dos seguidores de Jesus foi dotado com dons e com oportunidades de usarem esses dons para servir. De cada um é esperado que faça o melhor possível. Logo, o tempo concedido por Deus, em sua providência, estará findo, e, então, virá o juízo. Eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras (Ap 22.12).

Conclusão As parábolas de Jesus são únicas no contexto das Escrituras. Embora algumas parábolas tenham sido registradas no Velho Testamento, nos Evangelhos o grande número de parábolas e de declarações em forma de parábola é marcante. Alguns exemplos encontrados no Velho Testamento indicam que o hábito de contar histórias não era desconhecido. O profeta Natã, por exemplo, contou a Davi a história de um homem pobre cuja cordeirinha lhe foi tomada por um homem rico. A aplicação: “Tu és o homem”, foi bastante direta536. Nos escritos dos rabinos, também encontramos o ensino em forma de parábolas, mas é realmente difícil podermos atribuir mais que duas parábolas a uma única pessoa537. Entretanto, estima-se que um terço dos ensinos de Jesus foi feito em forma de parábola. Contando as parábolas e as ilustrações figurativas, alguns estudiosos chegaram a um total de sessenta delas538. Todas são chamadas de parábolas de Jesus. Como, na conclusão de seu Evangelho, João escreve que nem tudo que Jesus fez foi relatado (Jo 21.25), podemos presumir que nem todas as parábolas contadas por ele foram registradas. Talvez algumas das histórias atribuídas a Jesus, que encontramos em outras fontes que não o Novo Testamento, sejam autênticas539. Também, ensinando oralmente como os mestres de seus dias costumavam fazer, Jesus repetia o que ensinava. Como mestre, ele tinha toda a liberdade para contar determinada parábola mais que uma vez, de formas diferentes, em cada caso. Quando viajou de Jericó para Jerusalém, a fim de celebrar a Páscoa pela última vez, ele contou a parábola das minas, baseando-a na circunstância histórica da ida de Arquelau para um país distante para ser escolhido rei. Alguns dias mais tarde, Jesus contou a seus discípulos a parábola dos talentos. As duas, sem dúvida, têm muito em comum, embora apresentem finalidade e propósito diferentes. Jesus não apenas contou as parábolas; contou-as muito bem. Muitas delas se destacam por serem breves, e, mesmo sendo curtas, são brilhantes. Jesus buscou seu material em diversas fontes. Às vezes, voltava-se para o Velho Testamento — como fez na parábola da vinha e dos lavradores maus, tomando seu tema do “Cântico da Vinha”, registrado em Isaías 5. Em outras ocasiões, tirava seus exemplos diretamente da época, cultura e meio ambiente em que 536

2 Sm 12.14. Outros exemplos são a parábola da mulher tecoíta (2 Sm 14.4-7): e a mensagem de Jeoás a Amazias (2 Rs 14.9). 537 Hunter, Parables, p. 15. 538 T. W. Manson, The Teaching of Jesus (Cambridge: University Press, 1951), p. 69, conta um total de sessenta e cinco parábolas. A. M. Hunter, Interpreting the Parables (Philadelphia: Westminster Press, 1960), p. 11, apresenta o número como “cerca de sessenta”. 539 J. Jeremias, Unknown Saylngs of Jesus (London: S. P. C. K., 1958), p. 2.

vivia. Parábolas como a do semeador, da figueira estéril e do juiz iníquo, são exemplos disto. Jesus, também, se baseava em acontecimentos que eram bem conhecidos daqueles que o ouviam: o nobre que partiu para um país distante, para ser escolhido rei, e o homem desventurado que caiu nas mãos de salteadores, na estrada de Jericó. Jesus é o Grande Mestre de todas estas parábolas. Embora os evangelistas as tenham transmitido, nas parábolas nos deparamos como os ensinamentos de Jesus. Elas são suas. Isto é, não tiveram origem na mente de um evangelista540, e não foram criadas pela comunidade cristã primitiva, que necessitava de uma história particular, para com ela ilustrar o ensino de uma doutrina541. As parábolas são originalmente de Jesus. Naturalmente, os evangelistas registraram as parábolas de Jesus, e, em seu ofício de escrever os Evangelhos, mostraram sua própria individualidade. Diferenças de expressão, nos relatos paralelos das mesmas parábolas revelam claramente o seu trabalho individual. Além disso, o próprio fato de Jesus ter contado suas parábolas em aramaico, enquanto que os Evangelhos as apresentam na língua grega, deixa claro que o restabelecimento das palavras exatas de Jesus constitui um problema542. A questão da origem, não a autoridade, em relação à maneira específica de se expressar numa determinada parábola, nem sempre é fácil de resolver. Se uma parábola foi registrada apenas por um evangelista, a autenticidade das palavras de Jesus não precisa ser discutida. Mas, quando uma parábola ocorre em relatos paralelos do Evangelho e mostra variação na maneira de narrar, a questão do estilo do evangelista, em particular, se torna real. Mateus, Marcos e Lucas exibem suas próprias características e tendências, ao registrar as parábolas de Jesus. Características Gerais O Evangelho de Marcos tem apenas seis parábolas, e, por isso, não podemos falar muito sobre suas características. Dessas seis, apenas uma é peculiar a Marcos: a da semente germinando secretamente. As outras têm paralelos em Mateus e Lucas. São as parábolas do semeador, do grão de mostarda, da vinha e dos lavradores maus, da figueira e do servo vigilante. A parábola do servo vigilante, que não está registrada no Evangelho de Mateus, é a única das seis de Marcos que não diz respeito à natureza. De todas as parábolas de Jesus, Marcos selecionou cinco que descrevem o crescimento, na natureza. Esta evidência parece indicar que Marcos era uma pessoa ligada à vida rural. 540

Jeremias, Parables, pp. 84-85, afirma que “é impossível deixar de concluir que a interpretação da parábola do joio é do próprio Mateus”. Ele chegou a esta conclusão baseando-se em considerações lingüísticas. 541 Jülicher, Gleichnisreden, 2:385406, considera a parábola da vinha e dos lavradores maus, uma criação da igreja primitiva. Do mesmo modo, R. Bultmann, The History of the Synoptic Tradition (New York: Harper and Row, 1963), p. 177. 542 Marshall, Eschatology and the Parables, p. 11.

O mundo de Mateus é amplo, e abrange de reis a servos. Ele registra parábolas que descrevem ministros das finanças, construtores, um fazendeiro que emprega trabalhadores temporários, arrendatários, pescadores, um joalheiro, uma mulher assando pão, um pastor, um pai e seus dois filhos, um ladrão, crianças brincando, damas de honra e convidados para um banquete nupcial. Estas parábolas focalizam pessoas543, e Mateus se revela um homem interessado nelas. Esse interesse é ainda mais pronunciado no Evangelho de Lucas544. Nas parábolas que são próprias de Lucas, as pessoas, como indivíduos, têm um lugar central: o amigo que chega à meia-noite, o filho pródigo e seu irmão e pai, a mulher que perdeu sua moeda e o pastor que encontrou sua ovelha, o rico e Lázaro, a viúva e o juiz, o fariseu e o publicano e o samaritano cuidando da vítima dos ladrões. Através destas parábolas, Lucas demonstra interesse em gente, como indivíduos, a ponto de registrar nomes (Lázaro e Abraão), nacionalidade (samaritano) e ocupação (coletor de impostos). Lucas parece se movimentar entre pessoas comuns, particularmente aquelas de recursos moderados. Os dois devedores devem ao agiota um total de três meses de salário, o salário de seis semanas cada um, e cada um dos dez servos recebe do senhor o equivalente a três meses de salário. O fazendeiro tinha apenas um servo, que ara seu campo e prepara seu jantar. Do mesmo modo, o homem que prepara um banquete tem apenas um servo que chama os convidados, e que traz para dentro de casa os pobres e os coxos. Os ricos, nas parábolas apresentadas por Lucas, pertencem à classe média alta545. Um fazendeiro, que tem excelente colheita e precisou construir celeiros maiores para guardá-la, o homem que se vestia de púrpura e finos linhos e vivia no luxo, o rico cujo administrador atiladamente diminuiu o débito dos que deviam a seu senhor, e o pai que repartiu a herança por causa do pedido do filho caçula. As parábolas de Lucas retratam gente comum: um samaritano e seu jumento, o mendigo lambido pelos cães, o pastor e seu rebanho, a mulher e sua moeda, a viúva fazendo seu pedido e o publicano batendo no peito. Ao contrário, algumas das parábolas de Mateus retratam a grandeza, o esplendor e a extravagância. O ministro das finanças deve ao rei uma quantia que vai a milhões, um homem confia um total de oito talentos a três de seus servos, um rei prepara um banquete de núpcias e envia servos para chamar os convidados e soldados para puni-los quando se recusam a vir, e o proprietário de uma vinha envia 543

M. D. Goulder, “Characteristics of the Parables in the Several Gospels”, JTS 19 (1968): 52. 544 Morris, Luke, p. 40. 545

Goulder, “Characteristics of the Parables”, p. 55.

seus servos, em grupos, para recolher o lucro dos arrendatários. Muitos são da mais alta classe social. Outros, como o mercador de pérolas e o senhor que investiu seu servo de autoridade estão entre os moderadamente ricos. A seleção de parábolas peculiar a cada escritor dos Evangelhos traz à luz algumas de suas características. Mateus trata de histórias de interesse financeiro; Lucas é o homem voltado para os pobres e para o cidadão da classe média; enquanto que Marcos, embora apresente poucas parábolas, demonstra interesse pela natureza. Além disso, cada escritor dispõe as parábolas mais ou menos em grupos. Em uma série (Mt 13), Mateus inclui sete, que não são postas juntas por acaso. Essas sete revelam um padrão definido546. Após a parábola introdutória, a do semeador, as do trigo e o joio e da rede formam um par. Entre essas duas, há dois conjuntos de parábolas gêmeas: primeiro, a do grão de mostarda e a do fermento; então, a do tesouro escondido e a da pérola. As parábolas que Mateus registra nos capítulos 24 o 25 de seu Evangelho têm perspectiva escatológica. As parábolas da figueira, do ladrão, do servo fiel e prudente, das dez virgens, dos talentos e a do grande julgamento apontam nessa direção. Lucas, também, ordenou seu material de tal modo que, com exceção das parábolas dos dois devedores e das minas, as que lhe são peculiares se encontram na chamada narrativa da jornada ou grande inserção de Lucas 9.51; 19.27. A parábola das minas, que é a última das parábolas de Lucas, foi estrategicamente colocada para servir de ponte entre a parte referente à jornada de Jesus para Jerusalém e a do ministério de Jesus em Jerusalém547. Algumas parábolas, que foram registradas por mais de um escritor do Evangelho, refletem a situação de vida na qual foram escritas548. Por exemplo, na interpretação da parábola do semeador, especificamente sobre a semente lançada em solo rochoso, Mateus e Marcos escrevem: “... em lhe(s) chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza(m)” (Mt 13.21; Mc 4.17). Mas, em Lucas, achamos: “... na hora da provação se desviam” (Lc 8.13). Cada um, à sua própria maneira, expressa a mesma verdade: em tempos de dificuldade, as pessoas abandonam a fé. Semelhantemente, a parábola dos dois fundamentos é relatada por Mateus em versão compreensível aos judeus que viviam na Judéia ou Galiléia, e, por Lucas, numa versão apropriada aos helenistas que viviam no estrangeiro. Características Literárias O estilo dos evangelistas difere, notadamente, com respeito às 546

B. Gerhardsson, “The Seven Parables in Matthew XIII”, NTS 19(1972-73): 18. Marshall, Luke, p. 401. 548 G. E. Ladd, “The Sitz im Leben of the Parables of Matthew 13: the Soils, Studia Evangelica, ed. F. L. Cross (Berlin: 1964), 2: 204. 547

parábolas por eles registradas. Enquanto o estilo de Marcos é bastante simplista, o de Mateus, especialmente nas parábolas mais longas, é marcado pelo uso de contrastes. De fato, as parábolas mais longas, no Evangelho de Mateus, se apresentam em preto e branco549. Os construtores edificam sobre a rocha ou na areia; o fazendeiro semeia trigo, e seu inimigo semeia o joio, no mesmo campo; a rede apanha peixes apropriados para o consumo e os que não o são; o rei se mostra misericordioso, mas seu ministro das finanças, não; os trabalhadores da vinha, contratados primeiro, murmuram, os contrastados mais tarde se regozijam; dos dois filhos apenas um obedece ao pai; o servo em quem o senhor confia pode ser fiel ou mau; cinco virgens são prudentes e cinco são néscias; dois servos põem seus talentos para render e um enterra o seu; no banquete nupcial todos os convidados estão apropriadamente trajados, só um não está. Mesmo nas parábolas mais curtas, o contraste fica evidente. As crianças que brincam na praça são alegres ou tristes. Nas parábolas de Mateus as pessoas são sábias ou tolas, boas ou más, fiéis ou indolentes. Enquanto Mateus filma em preto e branco, Lucas usa a cor. Seus personagens são coloridos, pitorescos e bem construídos. O samaritano personifica a compaixão; o amigo que bate à porta do vizinho no meio da noite, e a viúva que faz periódicas visitas ao juiz retratam a arte da persistência. Isso não significa que Lucas evite os contrastes. Ele coloca o sacerdote e o levita em oposição ao samaritano; o rico em oposição a Lázaro; e o fariseu em contraste com o publicano. Mas Lucas apresenta suas figuras com mais cor e detalhes que os outros evangelistas. No Evangelho de Mateus, o bom e o mau são convidados para o banquete das bodas. Na apresentação que Lucas faz da parábola da grande ceia, os pobres, estropiados, cegos e coxos são bem-vindos. Na parábola dos talentos, um dos servos enterra o seu. Em sua descrição da parábola das minas, Lucas descreve um dos servos enrolando sua moeda em um pedaço de pano. As pessoas que Lucas retrata são reais: pensam, falam e agem. O mercador de pérolas não é descrito e, de certo modo, não tem vida. O rico de Lucas, que obtém lucro numa colheita excepcional, é um personagem que parece vivo. Ele fala consigo mesmo, faz planos e se dispõe a agir. Mateus, geralmente, omite pormenores; apresenta um mero esboço. É Lucas quem, por meio de sua pena ágil, acrescenta profundidade e dimensão às parábolas. Características Teológicas Nas parábolas peculiares ao Evangelho de Lucas, o tema do arrependimento e salvação é relevante. Lucas mostra de modo muito mais claro que Mateus que Jesus chamou para a salvação os 549

Goulder, “Characteristics of the Parables”:, p. 56, quer incluir a parábola do semeador, mas pode fazê-lo apenas baseando-se em sua interpretação nos capítulos seguinteS. A parábola em si não revela contraste.

marginalizados, os pobres, os perdidos e os desprezados550. O tema apresentado em Lucas 19.10: “Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido”, é exemplificado em várias parábolas de Lucas. São os dois devedores, a ovelha perdida, a moeda perdida, o filho pródigo e o fariseu e o publicano. A parábola dos dois devedores foi contada depois do incidente do Sábado, quando uma mulher entrou na casa de Simão, o fariseu. Embora aos olhos do fariseu cumpridor da lei fosse considerada desprezível, ela achou remissão de pecados e paz para o seu coração. O filho desviado caiu em si numa pocilga imunda, voltou para casa e foi reintegrado à família. O coletor de impostos, considerado um marginalizado social pelo fariseu, bateu no peito, orou a Deus e foi justificado. Há alegria no céu quando um pecador se arrepende; festa na casa do pai, quando o filho volta; e paz no coração do proscrito, quando Deus o justifica. É Lucas que desenvolve o tema do amor de Jesus pelos pobres e oprimidos. Quando os convidados se recusam a participar do grande banquete, os pobres, estropiados, cegos e coxos são trazidos. Quando ainda restam lugares vazios na casa, o servo recebe ordens para fazêlos entrar. O pobre, que diariamente é carregado até ao portão da casa do rico, é carregado por anjos até junto de Abraão, nos céus. Lucas mostra que Jesus ama o pobre, mas adverte o rico para que se arrependa e creia. A parábola do rico e Lázaro pretende retratar a miséria da vida no além, do homem que na terra vivia no luxo sem se importar com Deus e com o próximo. A parábola do rico que queria armazenar seus bens materiais em celeiros maiores revela a pobreza nua do homem que confia em suas riquezas e não em Deus. A parábola do administrador infiel nos ensina a não dependermos de riquezas, mas a distribuí-las para com elas fazer amigos e sermos bem-vindos nas moradas eternas. O amor ao próximo é um tema muito mais definido no Evangelho de Lucas que nos outros. Através da parábola do bom samaritano, Lucas indica que o conceito é ilimitado e sua aplicação universal. A ordem para amar o próximo, portanto, transcende barreiras de raça, cultura, idade, nacionalidade e língua. Em pelo menos três parábolas próprias de seu Evangelho, Lucas desenvolve o tema da fidelidade. O custo do discipulado é a lealdade inabalável no cumprimento do dever. Na parábola do fazendeiro cujo servo ara o campo durante o dia, prepara o jantar ao voltar para casa, e nem ao menos recebe qualquer agradecimento, porque esta é a sua tarefa diária, fica demonstrada claramente a devoção de todo o coração com que um seguidor de Jesus o serve. A parábola do homem que queria construir uma torre e aquela do rei que devia ir à guerra 550

A. Wikenhauser, New Testament lntroduction (New York: Herder and Herder, 1965), p. 217.

contra outro rei ilustram o custo do discipulado. Seguir a Jesus significa desistir, voluntariamente, de tudo; nada deve prevalecer ao discipulado. Essa lealdade está expressa na parábola das dez minas. Nove servos investem o dinheiro e cada um consegue receber algumas minas a mais. Mas um deles guarda dentro de um lenço a sua mina e recebe condenação pública por sua inutilidade. Os outros servos são elogiados e recebem, como recompensa, grandes responsabilidades. O tema da fidelidade é tratado, também, nas parábolas dos outros evangelistas. Isto é, Mateus o aborda nas parábolas dos dois filhos, do ladrão, do servo fiel, das virgens e dos talentos. Marcos se refere a ele na parábola do servo vigilante. Por fim, mas não menos importante, o tema da oração é exposto em três parábolas de Lucas. O amigo que bate à porta do vizinho, à meia-noite, e a viúva que procura sempre pelo juiz, são relatos paralelos. As duas parábolas ensinam a doutrina da perseverança na oração, que na comunidade cristã primitiva era resumida no preceito apostólico: “Perseverai na oração551”. A parábola do fariseu e do publicano menciona a oração, embora basicamente se refira à justiça552. Exceto pelos paralelos sinóticos do grão de mostarda e do fermento, Lucas não tem qualquer parábola que ele apresente como uma parábola sobre o reino. Marcos apresenta duas: a da semente germinando secretamente e a do grão de mostarda. É Mateus quem arrola as parábolas do reino. Um total de dez parábolas apresenta o reino: a do trigo e do joio, a do grão de mostarda, a do fermento, a do tesouro escondido, a da pérola, a da rede, a do credor incompassivo, a dos trabalhadores na vinha, a das bodas e a das dez virgens. Também a do semeador faz parte do contexto do “conhecimento dos segredos do reino dos céus”, porque nela Jesus transmite um entendimento básico a respeito da vinda do reino553. Muitas das parábolas do reino, no Evangelho de Mateus têm, uma perspectiva escatológica. A do trigo e do joio e a da rede são semelhantes em sua conclusão: ambas falam da separação no juízo. Do mesmo modo, a parábola das bodas termina com a expulsão do homem que não estava vestido adequadamente. A das dez virgens e a dos talentos retratam cinco moças tolas deixadas do lado de fora e um servo negligente que é lançado nas trevas exteriores. Mateus conclui suas parábolas com a do juízo final, na qual a separação das pessoas é comparada à separação feita pelo pastor, que coloca as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 551 552 553

Rm 12.12; Ef 6.18; Fp 4.6; C1 4.2; l Ts 5.17. P. T. O’Brien, “Prayer in Luke-Acts”, TB 24 (1973): 118. Ridderbos, Coming of the Klngdom, p. 132.

À sua maneira metódica, Mateus agrupou um total de sete parábolas no capítulo treze. Quatro delas podem ser consideradas dois pares: a do grão de mostarda e a do fermento são similares; e a do tesouro e a da pérola têm a mesma mensagem. No primeiro par, o poder vitorioso da mensagem de salvação se expressa exteriormente no crescimento da mostardeira e interiormente no crescimento da massa levedada. No segundo par, ambas, a do fazendeiro que vendeu tudo o que tinha para comprar o campo onde estava escondido o tesouro e a do mercador que vendeu seus bens para comprar a pérola valiosa, exemplificam a total submissão a Cristo e o valor infinito do reino. Pela escassez de parábolas, no Evangelho de Marcos, é difícil afirmar se ele selecionou as suas com um propósito teológico. Duas delas têm motivo escatológico: a da figueira e a do servo vigilante. Nas outras, ele demonstra a ação de Deus operando ou na natureza ou nas relações humanas. São as parábolas do semeador, da semente germinando secretamente, do grão de mostarda e dos lavradores maus. De modo geral, podemos dizer que, em todas as parábolas de Marcos, o poder e o governo de Deus ficam evidentes. Destinatários e Resposta Quem eram as pessoas que ouviam as parábolas quando Jesus as contava em público, ou em particular? Elas podem ser classificadas em três categorias: os discípulos, as multidões e os adversários de Jesus. A maior parte delas foi endereçada às multidões ou aos discípulos554. De acordo com Mateus, as multidões ouviram a parábola dos dois fundamentos, a das crianças na praça, a do semeador, a do trigo e o joio, a do grão de mostarda e a do fermento. Os discípulos ouviram a do tesouro escondido e a da pérola, a da ovelha perdida, a do credor incompassivo e a dos trabalhadores na vinha. Além dessas, foram contadas aos discípulos, em particular, as parábolas escatológicas das dez virgens, dos talentos e a do julgamento final. Os principais sacerdotes e os anciãos do povo eram os adversários de Jesus. Eles ouviram as parábolas dos dois filhos, dos lavradores maus e do banquete nupcial, que se aplicavam a eles. Lucas revela que Jesus, freqüentemente, enfrentava seus oponentes, contando-lhes parábolas, até mesmo em suas próprias casas. Em pelo menos cinco ocasiões diferentes, Jesus ensinou os fariseus, mestres da lei. Na primeira vez, convidado para jantar na casa de Simão, o fariseu, ele contou a parábola sobre os dois devedores. Em outra ocasião, durante um jantar semelhante, um fariseu proeminente e seus hóspedes ouviram a parábola de Jesus sobre o principal lugar à mesa, e sobre a grande ceia. Na terceira vez, 554

Linnemann, Parables, p. 35, apesar de todas as evidências, afirma: “Podem ser encontradas apenas algumas poucas parábolas que Jesus dirigiu explicitamente aos discípulos. A maior parte foi contada a seus oponentes, a homens que se ofendiam com seu comportamento, ou se indignavam com o que ele dizia”.

um doutor da lei pediu a Jesus que lhe explicasse o significado da palavra próximo e ouviu como explicação a história do bom samaritano. Em uma quarta ocasião, quando os fariseus e doutores da lei murmuravam contra Jesus porque entrava na casa dos “pecadores” e comia com eles, foram convidados a olhar no espelho das parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo, para verem, na perspectiva real, seu relacionamento espiritual com os marginalizados. Uma vez mais, quando Jesus disse aos fariseus: “Não podeis servir a Deus e às riquezas”, zombaram de Jesus porque amavam o dinheiro, e, então, Jesus contou-lhes a parábola do rico e Lázaro. As multidões, escreve Lucas, se encantavam com as maravilhas que Jesus operava, embora todos os seus adversários se envergonhassem (Lc 13.17). As multidões ouviram as parábolas dos dois construtores, do semeador, do rico tolo, do grão de mostarda, do fermento, do construtor da torre e do rei guerreiro e a das minas. Os discípulos eram instruídos em particular, através de parábolas, tais como a do amigo que veio à meia-noite, a do juiz iníquo, a do servo vigilante, a do ladrão, a do servo fiel e prudente a quem o senhor investiu de autoridade, a do administrador infiel e a do fazendeiro e seu servo. Três das parábolas de Marcos foram ouvidas pelas multidões: a do semeador, a da semente germinando secretamente e a do grão de mostarda. Duas foram contadas, em particular, para os discípulos: a da figueira e a do servo vigilante. Por fim, a dos lavradores maus foi dirigida aos principais sacerdotes, doutores da lei e anciãos. As parábolas que têm paralelos geralmente têm os mesmos ouvintes, embora um evangelista possa ser mais específico que outro. Assim, Mateus conta que a parábola do grão de mostarda e a do fermento foram apresentadas às multidões (Mt 13.34); Lucas indica que o povo se achava na sinagoga, o que inclui muitos dos adversários de Jesus (Lc 13.10,17). A parábola da ovelha perdida foi dirigida aos oponentes de Jesus (Lc 15.1), de acordo com Lucas, e a seus discípulos (Mt 18.1), de acordo com Mateus. Não é de todo impossível que Jesus tenha contado a parábola duas vezes, para ouvintes diferentes555. De fato, isso foi o que aconteceu quando Jesus contou à multidão a parábola das minas, ao se aproximar de Jerusalém, para sua última Páscoa. Alguns dias mais tarde, ele usou o mesmo motivo para contar a seus discípulos a parábola dos talentos. A maior parte das parábolas de Mateus tem um apelo indireto. Comumente são apresentadas com a sentença: “O reino dos céus é 555

Jeremias, Parables, p. 41, admite a possibilidade de Jesus ter repetido suas parábolas a mais de uma assistência. Ao mesmo tempo, insinua que Mateus e Lucas se contradizem quando apresentam as palavras de Jesus como dirigidas a uma multidão, em um exemplo, e aos discípulos em outro. Esse juízo parece um tanto sem propósito à luz do ensinamento oral repetitivo usado por Jesus.

semelhante...” O reino é comparado a um semeador, à semente, a um tesouro, a um mercador, à rede, a um rei ou dono de terras. Outras parábolas são muito mais diretas, exigindo uma resposta pessoal. Jesus, por exemplo, aplica a parábola sobre os dois fundamentos a “todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica”. A mensagem é — ouvir e, em resposta, agir. Na parábola de Mateus sobre o credor incompassivo, é feito um apelo individual: “Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão” (Mt 18.35). O mesmo apelo direto se expressa nas parábolas dos dois filhos, da figueira, do ladrão, do servo fiel e prudente e das dez virgens. Nessas parábolas, a resposta induzida aparece em forma de um chamado à prontidão constante, e de uma exortação à vigilância e ao arrependimento. A parábola dos lavradores maus provoca imediata resposta negativa dos principais sacerdotes e fariseus; eles procuravam prender Jesus. As parábolas de Lucas, muito mais que as de Mateus, convidam a uma resposta: a Simão, o fariseu, é feita uma pergunta sobre a parábola dos dois devedores; ao mestre da lei, após ter ouvido a parábola do bom samaritano, é dito: “Vai, e procede tu de igual modo”. Inúmeras parábolas são contadas no contexto de situações que pedem respostas. São as do rico tolo, que Jesus contou quando lhe foi pedido que dividisse uma herança; a da figueira estéril que resultou de uma discussão a respeito do pecado dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que eles mesmos realizavam; as parábolas sobre os lugares de honra à mesa, e a grande ceia, que vieram em resposta ao convite que Jesus recebera para jantar; as da ovelha, da dracma e do filho perdido, que eram uma resposta aos fariseus e doutores da lei que desaprovavam o fato de Jesus comer com os marginalizados; e a das minas, dirigida ao povo que pensava que o reino de Deus estava preste a vir. Quando ensinou sobre o administrador infiel, Jesus fez um apelo a seus discípulos para que não ajuntassem tesouros materiais. Também, instou com eles para que vissem o resultado da adoração ao dinheiro, na parábola do rico e Lázaro. Na do juiz iníquo o apelo se refere à perseverança na oração; na do fariseu e o publicano, à humildade diante de Deus. Em muitas parábolas de Lucas, a mensagem básica é o arrependimento dos pecados. Isso acontece nas da figueira estéril, da grande ceia e na tríade dos perdidos: ovelha, a moeda e o filho pródigo. Às vezes, as parábolas de Lucas envolvem os ouvintes através da introdução “qual de vós”. Desse modo, os ouvintes são parte directa da parábola e cada um é compelido a responder. A do amigo que vem à meia-noite começa com a pergunta: “Qual dentre vós, tendo um amigo...” As do construtor da torre e do rei guerreiro, da ovelha e da moeda perdidas e a do fazendeiro e seu servo têm introduções semelhantes. Quer a assistência consista de amigos ou adversários, a parábola que começa com uma cláusula introdutória induz a uma resposta. Mateus usa a pergunta insinuante: “Que vos parece?” como modo de apresentar as parábolas da ovelha perdida e

a dos dois filhos. Representação Em seu evangelho, Mateus apresenta Jesus a seus leitores, como o Cristo, o Filho de Deus. Não é, portanto, de todo surpreendente que, em sua seleção de parábolas, Mateus tenha coletado muitas, nas quais a representação de Jesus fique evidente. Assim, na aplicação da parábola das crianças brincando na praça, é o Filho do homem que vem, comendo e bebendo, e que é chamado de glutão, beberrão e amigo de publicanos e “pecadores”. Quando explica a parábola do trigo e do joio, Jesus se identifica como o dono de terras. “O que semeia a boa semente é o Filho do homem” (Mt 13.37). Na dos lavradores maus, o filho do dono de terras é enviado aos arrendatários e é morto por eles. O banquete das bodas acontece porque o filho do rei está se casando. A parábola das ovelhas e dos bodes é apresentada pela descrição do Filho do homem vindo em sua glória, acompanhado de seus anjos, julgando as nações e separando o povo. Naquelas assim chamadas parábolas escatológicas, as referências a Jesus são implícitas e explícitas. O porteiro tem que vigiar porque o dono da casa pode voltar, à qualquer hora, durante a noite. A do ladrão é mais direta em sua aplicação: “Por isso ficai também vós apercebidos; porque, à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá” (Mt 24.44). As parábolas das dez virgens, dos talentos e das minas se referem à volta iminente de Jesus. Deus é apresentado como Pai em várias das parábolas de Mateus. O rei, na do credor incompassivo, é a personificação de Deus, o Pai. “Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão”, diz Jesus em sua aplicação (Mt 18.35). Na parábola dos dois filhos, um obedece e o outro desobedece ao pai. A implicação é que os publicanos e as prostitutas, obedecendo a vontade de Deus, o Pai, entram em seu reino. Ambas as parábolas, a dos lavradores maus e a das bodas, retratam o pai enviando seu filho e o pai preparando um banquete para o filho. Embora a figura do pai seja apresentada por Lucas apenas na parábola do filho pródigo, o terceiro evangelista apresenta algumas parábolas nas quais Deus é diretamente mencionado. Assim, a vida do rico tolo é exigida por Deus. O nome de Deus é citado várias vezes na do juiz iníquo. E o fariseu e o publicano se dirigem a Deus, em oração. É característico do Evangelho de Mateus representar Jesus em muitas das parábolas — o que não acontece em Lucas. Do mesmo modo, é Mateus quem destaca o papel de Deus Pai em várias de suas parábolas. Lucas, ao contrário, enfatiza os relacionamentos entre pessoas, como os exemplificados nas parábolas do bom samaritano, do amigo à meia-noite, do filho pródigo e do rico e Lázaro.

Todos os escritores apresentam as parábolas de Jesus, mas cada um emprega seu próprio talento, modo de ver e habilidade ao fazê-lo. No entanto, a autoria das parábolas é de Jesus. Ele as criou, ele fala através delas, e nelas se torna conhecido dos homens. Assim, as parábolas, ainda que chegando até nós na forma apresentada pelos evangelistas, nos dão a certeza de que, na verdade, ouvimos a voz de Jesus.

Bibliografia Selecionada Comentários Albright, W. F. and Mann. C. S. Matthew, New York; Doubleday, 1971. Allen, W. C., The Gospel According to St. Matthew (ICC), Edinburgh: T. & T. Clark, 1922. Calvin, J. Harmony of the Evangelists, 3 vols. Grand Rapids: W. B. Eerdmans Pub. Co., 1949. Godet, F. Commentary on St. Luke’s Gospel, 2 vols. Edinburgh: T. & T. Clark, 1870. Green, H. B. The Gospel According to Matthew, London: University Press, 1975. Hendriksen, W. The Gospel of Matthew, Grand Rapids: Baker Book House, 1973. _______________ The Gospel of Mark, Grand Rapids: Baker Book House, 1975. ______________ The Gospel of Luke, Grand Rapids: Baker Book House, 1978. Lane W. L., The Gospel According to Mark, Grand Rapids: Eerdmans, 1974. Lenski, R. H. C. Interpretation of St. Matthew’s Gospel, Columbus: Lutheran Book Concern, 1943. _____________ Interpretation Augsburg, 1946.

of

St.

Marks’s

Gospel,

Columbus:

______________ Interpretation of St. Luke’s Gospel, Wartburg Press,

1946. Marshall, I. H. The Gospel of Luke, Grand Rapids: Eerdmans, 1978. McNeile, A. H. The Gospel According to St. Matthew. London: Macmillan and Co., 1915. Morison, J. A Practical Commentary on the Gospel Acoording to St. Matthew, Boston: Bartlett and Co., 1884. Morris, L. The Gospel According to Luke, Grand Rapids: Eerdmans, 1974. Plummer, A., Exegetical Commentary on the Gospel According to St. Matthew, Grand Rapids: Eerdmans, 1956. ___________ the Gospel of Luke (ICC), New York: C. Scribner’s Sons, 1902. Swete, H. B. The Gospel According to St. Mark, London: Macmillan and Co., 1908. Estudos Armstrong, E. A. the Gospel Parables, New York: Sheed & Ward, 1969. Bishop, E. F. F. Jesus of Palestine, London: 1955. Bouquet, A. C. Everyday Life in New Testament Times, New York: Scribner, 1954. Brouwer, A. M. De Gelijkenissen, Leiden: Brill, 1946. Bruce, A. B. The Parabolic Teaching of Christ, New York: A. C. Armstrong, 1908. Daniel Rops, H. Daily Life in the Time of Jesus. New York: Hawthorn, 1962. Derrett, J. D. M. Law in the New Testament, London: Longman and Todd, 1970. ___________ Studies in the New Testament, 2 vols. Leiden: Brill, 197778. Dodd, C. H. The Parables of the Kingdom, London: Nesbit and Co., 1935. Findlay, J. A. Jesus and His Parables, London: Epworth Press., 1951.

Gerhardsson, B. lhe Good Samaritan — The Good Shepherd? Lund, Copenhagen: Gleerup, 1958. Gundry, R. H. lhe Use of the Old Testament in St. Matthew’s Gospel, Leiden: Brill, 1967. Hunter, A. M. Interpreting the Parables, Philadelphia: Westiminster Press, 1960. ____________ The Parables Then and Now, Philadelphia: Westminster Press, 1971. Jeremias, J. Parables of Jesus, New York: Scribner, 1963. Jülicher, A. Die Gleichnisreden Jesu, 2 vols. lübingen: Buchgesellschaft, 1963. Kingsbury, J. D. lhe Parables of Jesus in Matthew 13. Richmond: John Knox Press, 1969. Linnemann, E. Parables of Jesus, London: S.P.C.K., 1966. Mánek, J., Und Brachte Frucht, Stuttgart: Calwer, 1977. Manson, 1. W. lhe Sayings of Jesus. London: SCM Press, 1950. Marshall, 1. H., Eschatology and the Parables. London: lundale Press, 1963. Michaelis, W. Die Gleichnisse Jesu. Hamburg: Furche-Verlag, 1956. Oesterley, W. O. E. lhe Gospel Parables in the Light of their Jewish Background. New York: Macmillan Co., 1936. Riderbos, H. N. lhe Coming of the Kingdom. Philadelphia: Prcsbyterian and Reformed Pub. Co., 1962. ______________ Studies in Scripture and Its Authorily St. Catharines: Paideia Press. 1978. Schippers, R. Gelijkenissen van Jezus. Kampen: J. H. Kok, 1962. Seagren, D. lhe Parables. Wheaton: lyndale House, 1978. Smith, B. T. D. the Parables of the Synoptic Gospels. Cambridge: S.P.C.K., 1937. Thielicke, H. the Waiting Father. New York: Harper, 1959. Via, D. O. the Parables, Philadelphia: Fortress Press, 1967.

Wallace, R. S. Many Things in Parables. Grand Rapids: Eerdmans, 1963. Wilkinson, J. Jerusalem as Jesus Knew It. London: Thames and Hudson, 1978. Ferramentas Bauer, W.: Arndt, W. F.; Gingrich, F. W.; Danker, F. A Greek- English Lexicon of the New Testament. Chicago: University of Chicago Press, 1978. Berkhof, L. Principies of Biblical Interpretation, Grand Rapids: Baker Book House, 1964. Black, M. An Aramaic Approach to the Gospels and Acts. Oxford: Clarendon Press, 1967. Brown, C., ed., New International Dictionary of New Testament Theology. 3 vols. Grand Rapids: Zondervan, 1975-78. Charles, R. H. Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English, 2 vols. Oxford: Clarendon Press, 1977. Epstein, 1., cd. lhe Babylonian Talmud. 18 vols. (Soncino ed.), London: the Soncino Press, 1948-52. Josephus, Flavius. lhe Loeb Classical Lihrary cdition. London and New York: Heinemann and Putnam, 1966-76. Kittel, G., and Friedrich, G., eds. Theological Dictionary of the New Testament. Translated by G. W. Bromilcy, 9 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1964-76. Liddell, H. G., and Scott, R. A Greek-English Lexicon, Oxford: Clarendon Press, 1968. Metzger, B. M., A Textual Commentary on the Greek New Testament. London and New York: United Bihle Societies, 1971. Mickelsen, A. B. Interpreting the Bible. Grand Rapids: Eerdmans, 1963. Robertson, A. T., A Grammar of the Greek New Testament. New York: Hodder and Stoughton, Gcorge H. Doran Co., 1915. Strack, H. L., and Billerbeck, P. Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, 5 vols. München: Beck, 1922-28.

Contra Capa As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como o primeiro do autor – Simon Kistemaker-, que esta Editora produz e oferece ao público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de língua portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos dados informativos, este autor ainda não é lido via língua portuguesa, não obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo teólogo e expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além de outras obras de sua autoria particular, o Autor também forma parceria com Willian Hendriksen na série Comentário do Novo Testamento, que ora é publicado por esta Editora. De sua autoria é Hebreus, Pedro e Judas, Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos (este último já se acha em preparação em dois volumes, e em breve virá a lume.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF