OVERING, J - O Mito Como História Um Problema de Tempo, Realidade e Outras Questões (1995)

April 29, 2019 | Author: Rodrigo Oliveira | Category: Ciência, Sociology, Anthropology, Física e matemática, Physics
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Artigo publicado na revista Mana (1995)...

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MANA í {1): 107' MD, 1995 1995

O MITO COMO HISTÓRIA: UM PROBLEMA DE TEMPO,

REALIDADE E OUTRAS QUESTÕES Joanna Overing *

Os Piaroa Piaroa são apaixon ados p ela histór história. ia. Dizer que um povo que hab ita as florestas florestas tropicai tropicaiss tem um in teresse inten so p ela história história é contrariar "idéias geralm ente ac eita s"1, s"1, Como os povos amazôn icos apeg am -se a seus costumes especí específi ficos cos e supo stam ente n ão dão muito muito valor valor ao "pro gresso", conclui-se que eles não têm interesse pela história e são, portan to, "a-históricos". Quando afirmo o contrário, não estou me referindo à consciência histór histórica ica que os Piaroa porv entura tenh am adquirido a partir de suas interações com as instituições do Estado venezuelano no último quarto de século. O interesse dos Piaroa pela história não é um fenôme no recente que possa ser atribuído à passagem de uma forma de vida i n d í g e n a p a r a u m a o u tr tr a, a , m o d e r n a e h i st st ó ri ri ca ca , à m e d i d a q u e a u m e n t a seu envolvimento com um Estado nacional e uma economia de mercado.  N ã o f o r a m s u a s in t e r a ç õ e s co m a s o c i e d a d e i n d u s t r i a l q u e os i n ic ia r a m na h istória, istória, Ainda q u e   tais tais contat contatos os lhes lhes tenha m ap resentad o um a histó ria e uma historicidade específicas, antes dos mesmos os Piaroa não eram um "povo sem história". Na verdade, entretanto, decidimos se um povo é “histórico" ou "a-histórico" dependendo do conceito de história que ado tamos. E m Society against the State,   Clastres (1977:16) apresenta-nos uma versão particularmente interessante da defesa da "a-historicidade" quan do efabora um modelo de poder político centrado em dois modos diferen tes — o coercitivo coercitivo e o não-coercitivo. C lastres parte da prem issa de que o  p o d e r p o líti lí ticc o e n t r e os p o v o s a m a z ô n ic o s é n ã o - c o e r c itiv it iv o , E m s e g u id a , associa o poder político coercitivo àquelas sociedades em que o poder  p ro v é m d a in o v a çã o soci so cial al.. S e g u n d o o a u to r, "o p o d e r p o lític lí tic o com co m o co er ção ou violência é a marca das sociedades históricas,   ou seja, das socie dad es que contêm em si a causa da inovação, da mu dança, da histor historiei iei-dade" (Clastres 1977:16; ênfase do autor). Por outro lado, as sociedades ond e o po de r políti político co é do tipo tipo não-co ercitivo ercitivo são são socied ades sem histó-

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ria ria (Clastres 197 1977: 7:16) 16).. Como faz pa rte de s ua arg um en tação a idéia de que a inovação está na base da coerção política, os Piaroa teriam concor dado co com m ela, ela, em parte, pelo menos no passado, p orém discordariam dó veredicto — segundo o qual', por esse motivo, eles não teriam interessè  pe  p e l a h istó is tóri ria, a, A mais famosa de todas as formulações da a-historicidade dos povos indígenas é a de Lévi-Strauss em The Savage Mindt   onde ele estabelece sua famosa distinçã distinçãoo (muita (muitass vezes en tendida de m odo equivocado) equivocado) entre sociedades "quentes" e "frias" (Lévi-Strauss 1966:233; 1973). Ao estabe lecer esse contraste, o autor separa os povos dotados de história dos que não a possuem. Ele argumenta que estes últimos deliberadamente subor dinam a história ao sistema e à estrutura, e por causa dessa subordinação as sociedades o nde eles vivem vivem podem ser chamad as de "frias". Ele obser va que, ao contrário da nossa socieda de "q u en te ” (e histórica) histórica),, carac teri zada pe la crença na eficáci eficáciaa do progresso progresso e pela nece ssidad e ávida de mud anças, a "sociedade fri fria" a" é obstinadam ente fiel fiel a um passado con ce  bid  bi d o com co m o u m m o d e lo a t e m p o r a l e n ã o com co m o u m a e t a p a do p ro c e s s o h is  tórico. Lévi-Strauss afirma que as "sociedades frias" combinam o tempo mític míticoo com o temp temp o pres ente ; assim, assim, para elas, elas, há u m a coexistência, erh erh um "regime atemporal”, de seres mitológicos com seres humanos, que "viajam juntos pelo tempo" (Lévi-Strauss 1966:233). Essa atemporalidá-; de, segundo ele, é um princípio que visa a eliminação da história,  de tal; modo que os homens não podem ser outra coisa que não imitadores dè um mundo anterior composto de seres criadores (Lévi-Strauss 1966:236). Marx defende posição posiç ão sem elhante quando distingue, distingue, em Precapitalist  história radicalme nte diferentes ao  Eco  E co n o m ic F o rm at ío n s,  d uas visões da história longo do desenvo lvimento das formações formações socia sociais is,, Ele estabelece um con traste en tre, de um lado, lado, o compromisso compromisso das socieda des pré-capitalistás com a tradição, a comunidade e a história repetitiva, e, de outro, o valor atribuído pelo capitalism capitalism o ao progresso e à história história cum ulativa. ulativa. No caso daque las, o processo e o progresso são subo rdinados à estrutura e à con tinuidade, É verdade que os Piaroa, e os povos amazônicos em geral, não cos tumam definir definir a história soci social al hu m ana em termos termos de um a sucessão evoã lucionãria de etapas. Tanto Lévi-Strauss quanto Marx têm razão quando afirmam que esses povos não dariam valor a uma tal concepção. De fato) a visão visão piaro a de su a próp ria história história tem um a característica " involut involutiiva". Segundo eles, todos os seres (inclusive os Piaroa) perderam, ao fina) do tempo de criação, muitos dos poderes tecnológicos que haviam criado e adquirido antes, Na exegese dessa história realizada pelos ruwatu   (lide-

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 p o s i res espe cialistas cialistas dos Pia Piaroa roa), ), a per da desses pod eres teve um efeit efeitoo po tivo  sobre o desen volvim ento ulterior da vida social piaroa. É  a   a nossa historicidade toricidade que ten de a associar associar históri históriaa social social a desenvolvimento tecn o lógico, e em seguida a identificar ambos com o "progresso". Em conseqüência das associações feitas entre historicidade e progresso social e tecnológico, as quais estão profundamente arraigadas no nosso pensa m ento socia social, l, por por um processo m ental muito muito simples passamos a ver aq ue  les que não compartilham da nossa concepção muito específica de histo ricidade (que (que não passa de uma questão da nossa   história) como mem  bro  b ro s d e s o c i e d a d e s e s t á t i c a s e a - h i s t ó r i c a s . T e n d o f e ito it o e s s a s o b s e r v a  ções, certamente não surpreenderei o leitor ao afirmar que, a meu ver, é um eq uívoco rotular de "povo "povoss sem história" os povos amazônicos, O que vai nos nos levar a concluir se os os am eríndios se se interessam pela história ou se não possuem tal interesse é apenas a definição de história que resolvermos aceitar, a deles ou a nossa, Quanto a esta questão, é mui to importante assumir uma postura relativista (modificada), como a de Vernant (1982), para quem tipos diferentes de ordem cultural implicam  p r á t i c a s h is tó r ic a s d i f e r e n t e s . O u , co m o o b s e r v a S a h lin li n s e m  Is l a n d s o í   His  H isto tory ry,, onde ele exam ina um a historicidade historicidade p olinésia olinésia muito muito especifica especifica:: culturas diferentes, historicidades diferentes! (Sahlins 1985:X). Porém, uma tal postura relativista tem suas ramificações. Por exemplo, o próprio ato de afirmar a possibilidade possibilidade de v ariação nos modos modos de produ ção da his tória tem conseqüências expressivas para a questão do tempo e sua conceituação. Segundo esta concepção, cada historicidade contém, de uma forma ou de outra, uma noção de tempo que lhe é específica, A historici dade que Clastres e Lévi-Strauss atribuem às "sociedades históricas" traz em seu bojo nossa concepção familiar de tempo linear e progressivo. Para esses dois dois autores, tal como para Marx, a alta valorização valorização dos aspe ctos lineares e progressivos progressivos do tem tem po no pensam ento m oderno tem tem saliência saliência social social,, T amb ém o tempo social é visto visto como como linea r e progressivo, progressivo, don de a inovação socia sociall e a m udan ça serem encarad as co como mo a própria essên cia da história. Por outro lado, uma vez que aceitamos que os modos de pro dução da história podem variar, segue-se que é possível predicar histó rias rias específicas específicas com base em conc epções d iferentes do tempo. tempo. Pode-se, então, explorar a importância do tempo como valor variável   na criação da historicidade. Assim, antes que se possa emitir um juízo válido a res  pe  p e it o d e u m a " h i s t o r i c i d a d e " a m a z ô n ic a , d e v e - s e e x a m i n a r c o m m u i ta atenção o modo complexo como os os ameríndios vêern a relação en tre his tória, tempo e processo social. O tempo, tal como a historicidade, tem seu lado social. social.

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Mitologia como realidade fantasma, ou: Existirá uma metafísica indígena?

Ao examinar a "história heróica" dos polinésios, Sahlins (1985:cap. 2) defende sua historicidade específica. Ele observa que ela é específica em  parte por se r form ula da em um a co sm ologia peculiar à cultura polinésia. E através da m itologia polinésia que um estrangeiro conseg ue ter acesso a essa cosmologia, pois o mito é o gênero por meio do qual a cosmologia indígena se revela. E por intermédio do mito que os postulados referen tes ao universo se exprimem e se explicam. Os ciclos míticos abordam questões metafísicas básicas a respeito da história e do desenvolvimento dos tipos de coisas ou seres que há no mundo, e tam bém suas m odalida des de ser e relacionamentos. A historicidade polinésia torna-se ainda mais específica na medida em que se associa a uma teoria social que é característica do modo de vida polinésio. Assim, Sahlins (1985:cap. 2) demonstra, com relação aos polinésios, q ue  tanto a mitologia/cosmologia quanto a teoria social podem ser constitutivas de uma modalidade espe cífica de historicidade. P ode-se a rgu m entar de modo análogo com rela  ção ao que designarei como a "história dos deuses falíveis" dos Píaroa. O fato de seus deuses serem falíveis e não heróicos é coerente com o ethos da Amazônia, m ais igualitário que a teoria social polinésia, que envolve um conceito de hierarquia. A análise feita por Sahlins da historicidade polinésia é, no sentido mais positivo, uma abordagem radical. Isto porque há na antropologia fortes preconceitos que, por vezes, tornam difícil para nós reconhecer tanto a historicidade do mito quanto a teoria e prática sociais que são constitutivas do mesmo. Por exemplo, partimos do pressuposto de que o mito se opõe à história. S egun do nossa visão do mundo, a história diz re s  peito a evento s veríd ic os que seguem um percurso linear e progressivo, enq uan to os eventos da mitologia não passam de rea lidades fantasmas, as quais são relativamente pouco relevantes quanto a qualquer mundo real de ação e ex periência, Nossos próprios conceitos de rea lidade te n  dem a fornecer o padrão com base ao qual exam inamos os conteúdos dos mitos, e é por esse motivo que boa parte da discussão geral sobre o mito gira em torno de questões que, de outro modo, seriam inexplicáveis. Assim, os. ev en tos míticos são co ntrapostos n ão ap en as à história, como também às descobertas científicas modernas referentes às propriedades físicas do universo. A base da confusão é o fato de que teorias da exis tência, cujo teor é essencialmente social,  são contrastadas com teorias a: respeito do universo físico que são "a-sociais" no que diz respeito tanto a

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seu alcance quan to a seu propósito. Nã o adm ira, pois, que o evento m íti co, um a vez despido de su a significação social, moral e histórica, seja vis to como deficiente. Afirmo, porém, que o "problema" do mito não é uma questão de deficiência, e sim de excesso. Há um preconceito contra a mitologia particularm ente eviden te nos escritos de Lévi-Strauss, que nos volumes de suas  M y th o lo g iq u e s  a p r e  sen ta um estudo m agistral de sua estrutura, Em bora ele veja um a conti nu idad e entre o em preend ime nto da história e o da mitologia, não se d eve im agin ar que Lévi-Strauss esteja afirman do q ue o conteúdo d a mitologia deve ser levado a sério, nem por nós nem pelos povos indígenas. Na v er dade, ele susten ta não ter m uita confiança na história ocidental,  e asse ve ra que ela inevitav elm ente cria ficções (Lévi-Strauss 1966:242-243). Mas se o conteúdo da história (ocidental) não é muito bem-visto dentro do esq uem a ge ral lévi-straussiano, o que ele diz sobre os possíveis méri tos da mitologia é ainda mais crítico. No capítulo final de The Na ked Man, ele conclui que "temos de nos res ign ar ao fato de que os mitos nad a nos dizem de instrutivo a respeito da ordem do mundo, a natureza da reali da de e a origem e o destino d a hum anid ade " (Lévi-Strauss 1981:639). De uma p erspectiva diferente da lévi-straussiana, podem os reformular o dile ma de m odo a pergu ntar: o que, ex atamen te, querem os incluir no mun do real? Porém, para Lévi-Strauss, que tem mais certezas quanto a essas questões, o mundo real é aquele que é revelado pelo empreendimento científico. Assim, para ele, os eventos apresentados pela mitologia são, em relação a esse mu ndo re al revelad o pe la ciência, irracionais e falsos, e portanto comparáveis "apenas à história menor, menos importante: a história dos cronistas mais obscuros" (Lévi-Strauss 1981:242-243). A história que para L évi-Strauss seria um sab er mínimo é, pa ra os Píaroa, reple ta de saber. Como, pois, e nc arar contradições tão fortes entre os julgam entos dos inve stigadores ocidentais e os dos povos indígenas? Até que ponto e de que modo podemos levar a sério as conclusões dos Piaroa quanto à validade de seu próprio sistema de conhecimento? Basi camente, o que Lévi-Strauss está dizendo é que, ao menos quanto à mito logia, não devemos levar os julgam entos dos indígen as nem um pouco a sério. Sua argu m entação base ia-se no pressupo sto de q ue a mitologia é irrelevante para aq uela realidade q;ue é conhecida e m ape ad a pelas ciên cias naturais e por nossa filosofia dá ciência. Porém, não seria de se es p e rar que se desse o contrário, um a Vez qu e todos concordam qu e n a m eta física ind ígen a muitas dás proposições básicas referentes às mod alidades de estar no mun do são incom patíveis com m uitas das proposições que são pressu po stas pelos biólogos e físicos modernos.

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Do ponto de vista do cientista, os postulados indígenas a respeito da realidade são fantasmagóricos. Por exemplo: a idéia piaroa de que os ani mais vivem como seres humanos em seus lares primordiais do tempo míti co, d ebaixo da terra, certam ente seria um a afronta à sensibilidade cientí fica. O mesmo pode-se dizer da idéia de que os poderosos líderes piaroa (os r u w a t u ) têm o po de r de anda r no " tem po-a ntes" do passad o mítico, ou a de que espíritos m onstruosos sem elhantes a ogros, com arm aduras de con quistadores espa nhó is, foram criados no tem po mítico para gu ar dar hoje os recursos da selva. Esses postulados sobre a realidade não são com patíveis com as teorias científicas refere ntes ao real. Se ja como for, as afirmativas de Lévi-Strauss a respeito da natureza do real implicam que existe uma única realidade, e que apenas a ciência pode revelá-la. Como o m undo qu e é aprese ntado pelos ciclos míticos é considerado fan tástico pelos câno nes dessa rea lidade, a m itologia dos povos ind ígen as é um equívoco. Como m uitos de seus postulados sobre a realidade se expri m em m edian te a ex ege se do mito, conclui-se, pois, qu e não se pode falar com prop riedade de um a metafísica indígena.

A visão unitária da realidade: o dilema materialista

Tal visão unitária da realidad e é sem elhante à qu e é exp ressa claramen  te por Gell (1992:esp. 54-56) em seu recente estudo da metafísica do tem  po em sua obra The An throp olog y oí Time.  Segundo ele, o tempo linear e  progressiv o é u n ív ersalm en te o único   modo de experimeutar o tempo e também, ao que parece, de exprimi-lo. Gell ataca o relativismo cultural de D urkhe im e Lévi-Bruhl e as afirmações de antropólogos como Leach, Lévi-Strauss e R. Barnes, em suas análises de culturas "não-tecnológicas" (para em pre ga r o termo de Gell), no sentido de q ue os m em bros de tais culturas teriam concepções próprias e diversas do tempo — por exe m   plo , tem p o cíclico, sin crônic o ou in verti d o (G ell 1992;c aps. 1, 3, 4 e 5). Segundo Gell, tais autores dão a entender que os povos "não-tecnológicos" co nseg uiram criar postulados m etafísicos que pod em ter aplicação geral,  ao lado dos nossos, e que portanto são tão válidos quanto os nos sos. Ele acusa Durkheim e outros relativistas culturais de estarem desse modo fazendo metafísica, o que não seria atribuição do cientista social. Para Gell (1992:55), a m etafísica deve p erm an ece r nas m ãos de filósofos e metafísicos ocidentais; e os antropólogos, quando analisam a diferença, devem limitar-se a descre ver as "crenças con tingentes" dos povos indí-

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gen as — isto é, crenças q ue não teriam eleito sobre o temp o linear u n i versalm ente válido, nem sobre qu alque r outra categoria de uma m etafí sica materialista moderna, Quem não age assim está errado, pois dá a entender que uma outra metafísica é possível. Assim, Gell (1992:55) faz uma distinção entre os “sistemas de cren ças contingentes" dos sujeitos da etnografia, que não são válidos, e as “teses metafísicas racionalmente expostas" pelos filósofos ocidentais, “como as defend idas po r Kant em sua Crítica da Razão Pura",   que são válidas. Com relação a essa distinção, Gell afirma que as crenças que são culturalm ente relativas são con ting entes e dep end em das crenças mais gerais que têm a característica de ser universalmente verdadeiras com relação à experiência humana do mundo. Como, de acordo com Gell (1992:56), as crenças contingentes a respeito do mundo são por definição inválidas, elas tamb ém não dão nen hu m a contribuição à nossa com preen são (correta) da verdade, necessidade, lógica e tempo. Para ele, tais cren ças conting entes são "expressas, com preend idas e levadas à prática à luz de premissas lógico-metafísicas uniformes, porém implícitas, e apenas à luz delas" (Gell 1992:56] ênfase minha). Para Gell, o tempo, por exem  plo , “é   inteiram ente unitário em todas as culturas" (Gell 1992:esp. 54). Assim, ele argumenta que existe apenas uma metafísica do tempo váli da, a qual é absoluta e universalmente adotada — ainda que de modo implícito ou subconscieute. Gell conclui que a tarefa da metafísica é declarar verd ades a respeito do m undo: pode hav er "sistemas m etafísi cos ve rdad eiros" , m as não falsos. Os consid erado s falsos (do pon to de v is ta científico) não seriam metafísicos e sim con tingentes. Gell afirma tamb ém qu e cabe ao antropólogo dizer ao nativo — o qual aceita um postulado falso — que ele está enganado. Segundo o autor, "o m ap a do m und o do sujeito etnográfico só po de ser avaliado (vis to tal como é) à luz do mundo ao qual ele supostamente se refere, que é o m undo real, e não um m undo im aginário que seria real se o m ap a do sujeito etnográfico fosse verdadeiro" (Gell 1992:324). Os inhames não dançam à noite; as borboletas não são feiticeiras, E o tempo tem um fluxo natural, linear, qu e não pod e ser alterado: não h á ritual que possa fazê-lo se comprimir, saltar para trás ou para a frente, Gell conclui que seria "pura con descendên cia" da parte do observador externo não criticar as ilusões do sujeito etnográfico. O observ ado r externo, pro sseg ue ele, é "deten tor de conhecim entos codificados [a respeito do m undo real] acu  m ulado s po r meio de es tratég ias de pes qu isa o bje tiva s” (Gell 1992:325) as quais são "inacessíveis" aos sujeitos nativos, qu e "se limitam a m ani  p u lar prem is sas cultu rais de m odo prático" (G ell 1992:325), O observa-

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dor externo, ao con trário do nativo, vê-se po rtanto na posição de po der fazer uma crítica racional dessas premissas culturais b asea da nas desco  berta s da ciência. Gell defende uma descrição unitária da existência, e deste modo tam bém promove a pop ular filosofia do materialísmo, Deve-se observar que o materialismo, como qualquer outro sistema metafísico, afirma prin cípios fund am entais re feren tes à na turez a do m und o os quais têm força  pre scritiva. Faz p arte do credo do m ateria lista a crença n a onic om petê ncia das ciências naturais. Como explica Walsh (1967:303), o materialista vê o mundo como um imenso mecanismo, e comp reende tudo que acon tece como resultado de causas naturais, Todos os outros fenômenos, como os que caracterizam a vida psicológica, social, religiosa ou moral, devem ser avaliados e com preendidos com base nessa perspectiva, Mais um a vez nos vemos diante do grande divisor de ág uas d a teo  ria ocidental: a distinção entre natu reza e cultura. Neste caso, a naturez a é vista como objetiva, mecânica e unitária, enquanto a tradição (por sua subjetividade e diversidade) é considerada não -natural, e portanto nãoreal. Esta visão de m undo materialista cria sérios problem as pa ra a antro  polo gia . Com o observa S hw eder (1991:52-56) ao d efen d er um a "a n tro   polo gia pós-nie tzscheana'', noss o campo in felizm ente adquir iu os atribu tos de uma realidade fantasma. Para esse autor, o dilema é o seguinte: cultura, tradição e sociedade passaram a ser vistas como coisas imaginá rias, sem nenhuma referência, portanto, a qualquer mnndo real. Ele observa que um a saída (entre muitas) ado tada pelos antropólogos para esc ap ar do dilema m aterialista é reduzir o cultural aos fatos ''concretos" do natu ra l (Shw eder 1991:56). É esta a saída ad ota da po r Gell. Tal solnção par te do pressuposto de que os demônios e os deuses não têm ne nh u m a relação com a realidade, enq nan to as leis do pens am ento (qne pe r tencem à natureza), por exemplo, são reais. Não admira, pois, que quase sempre haja uma divergência entre a avaliação dos fatos feita pelo mate rialista e a que é realizad a por alguém que pra tique a religião ou siga o credo m oral em questão. Reduzir a cultnra a determ inante s ex ternos — ou, de outro ponto de vista (mas que dá no mesmo), ao imaginário — é um a m aneira de esq ui var-se de respo nd er à pergun ta: como devemos interp retar as afirmativas das pessoas que m anifestam um a forte convicção de que deuses e dem ô nios não a pe nas existem como tam bém são seres dotados de eficácia? De modo geral, as pessoas não se convencem de que seus postulados de rea  lidade são ilnsórios ou m eras m anifestações de falsa co nsciência2. Para elas, tais postulados (p, ex., quando um sogro fica zangado ele se trans1

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forma em um a onça para atacar o genro) não apena s esclarecem a exp e riência, mas tam bém constituem um a forma de conhecimento do m undo. É quanto a este ponto, em particular, que a posição materialista atua no sentido contrário da tarefa da antropologia de co m preende r os julga m en  tos de conhecimento feitos por pessoas que d efendem expressam ente  prem is sas a re speito da exis tê ncia do m undo que são diferente s das m ate rialistas.

O que fazemos com o realmente construído? Duas visões

 Na intro dução de seu livro  M im esis and Alt erity,   Taussig (1993:XV) per gunta, em tom de brincadeira, por que motivo o que nos parece mais imp ortante na vida é construído — não é na da mais, na da m enos que "um construto social". Ele prossegu e: "Como seria bom se este real de ve rd a de se abrisse. Como eu queria f.,,j esta cumplicidade com a natureza da natureza! Mas quan to mais a quero, m ais me dou conta de que jam ais vou consegui-la. N em eu, nem você"   (Taussig 1993:XVII). O antor deci de en tão exa minar o poder social do faz-de-conta, ou a realidade do rea l m ente construído através do qual todos nós somos obrigados a viver nos sas vidas (Taussig 1993:IX). D esse modo, Tau ssig assu m e um a posição r quanto a uma discussão crucial na antropologia. De sde o início, boa par te da discussão em antropologia gira em toré no da tenta tiva de resolver o dilema de como interp reta r a convicção das :  pessoas de que denses, dem ônio s e espíritos exis te m de fato. Poré m, até o momento, não há nen hum sinal de consenso a respeito de como en ten  der esses "pressupostos de realidade fantasma", como Shweder os deno mina ironicam ente, A ten dê nc ia é a cristalização e m d nas posições rígi-céric.iéÇ das, polarizadas e intransigentes, expressas cada vez mais em termos do  posiç ões extr em as de univ ersalism o e rela tivis m o cultnra l, Por exem plo ,  p ara S hw eder os antr opólo gos devem d esc arta r a idéia u ltr ap assad a de que existiria uma única realidade uniforme, e aceitar a coexistência de "mundos objetivos múltiplos". Em outras palavras, os deuses dos nativos são tão reais qnanto as verdades do físico (Shweder 1991:68-69). Um boro exemplo da posição oposta é a visão de CeII (1992:324-325), para quem cabe ao antropólogo realizar uma "crítica da cultura''. G elí simplesm ente não lev a a sério a visão dos nativos, e só ace ita como re alm ente reais as verdades dos físicos. Pelo visto, voltamos à es taca zero. O n bem (1) afirmam os que o sujei to etnográfico, embora plenamente capaz de exercer ações práticas, é

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inca pa z de dese nvolve r raciocínios filosóficos e prem issas culturais a res  peito do m undo que seja m co rreia s; ou bem (2) suste nta m os que os pos tulados metafísicos locais a respeito da realidade (p. ex.: os deuses exis tem) deve m se r interpretad os do m e s m o m o d o   que os da física; ambos são projeções parciais e até certo ponto ima ginárias, e po rtanto não há  porque diz er que um é m enos verd adeiro que o outro.  Não nos veriam os em um a situ ação tã o absurda se, a parti r do sécu lo XVII, a filosofia não tivesse com eçado a elim inar de se u cam po de in te resses todas as questões práticas, e juntamente com elas todo o particu lar, o local, o temporal. Costume, tradição, sociedade, palavras, canções, rituais — tudo isso passou a ser encara do com desc onfiança, a ser visto como ilusão, em oposição ao mu ndo rea l e objetivo da na ture za física. O mundo h u m a n o   é visto como irreal. É desse dilema q ue Taussig tenta escapar, S hwe der tem toda razão quando afirma que o tema da antropo logia, tal como esta disciplina costuma ser concebida, consiste em postu lados de rea lidade fantasm a sustentados por outras pessoas. Todo aquele que d efende — ainda que com uma atitude m odesta — uma perspectiva m odernista é incapaz de respe itar a diversidade e a multiplicidade: tudo se reduz a construções sociais, a invenções d a tradição, e po rtanto a irrealidades. Gell, ao rejeitar a m ultiplicidade em um gesto ca lculadam ente imodesto, está seguindo um tema que, segundo Toulmín (1992:33-44), é comum na filosofia mod erna d esde De scartes. Este tem a é a afirmação da irrelevância da etnografia e da história para a investigação verdad ei ramente filosófica. Segundo se costuma afirmar, problemas que na ver dade são filosóficos devem ser expressos em termos que sejam ind ep en  dente s de q ualq ue r situação histórica ou concreta, Em outras palavras, questões de epistemologia, filosofia natural e m etafísica devem ser m an tidas fora do alcance da an álise c o n t e x t u a l , onde, por exemplo, é de se espe rar que as exp eriências desta ou daq uela cu ltura sejam relevantes, Esta é a posição de Gell quando ele repreende seus colegas antropólogos  por se m eterem a fazer m eta física. É claro que ele próprio está fa zendo metafísica qua ndo assume a posição categórica que defende. A m eu ver, ao;evidenc iar sua próp ria posição metafísica, G ell dá um passo ad m irá vel, na m edid a em q ue a maioria dos antropólogos não explicita seus pos tulados metafísicos contingentes, Buscando esta claridade, espero no decorrer deste texto explicitar meus pressupostos e reflexões a respeito dé tais questões, explicando, por exemplo, por que me sinto à vontade  p a ra fa la r de um a m etafís ica — ou de um a ontologia ou cosm olo gia — indígena3, :

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Como o temporal, o local e o prático foram expulsos da filosofia

Em sua ob ra recente Cosmopolis, Toulmin estabelece um con traste entre os posicionamentos filosóficos dos séculos XVI e XVII. Ao fazê-lo, o autor diz muita coisa relevante sobre as atitudes presentes e passadas quanto à relação en tre o em pre en dim ento etnog ráfico e o filosófico. Toulmin afir ma tam bém que as realizações dos hum anistas do século XVI foram revo  lucionárias o suficiente para que sejam colocadas, ao lado das realiza  ções mais teóricas do século seguinte, como responsáveis pelo desenvol vimento do modernismo. Segundo ele, a criação do modernismo seguiu duas linhas, um a hum anista e a outra racionalista, Em bora não fosse ine  vitável que elas se desenvolvessem como linhas mutuamente excludentes dentro do pensamento europeu, foi o que de fato ocorreu. Isto se deu devido ao estreitam ento e à descontextualização  radicais que o correram em bo a pa rte da filosofia seiscen tista — o que Toulmin (1992:17-20) vê mais como um a estratégia de defe sa contra-ren ascen tista do que como um gesto revolucionário. Ev identemente, as discussões que se travam atualmen te no campo da an tropologia não são novas. No contexto da polêm ica em qu estão, a  posiç ão relativ am ente p luralista de Taussig e S h w eder alin ha-se co m o clima intelectual do hum anism o qu inhentista, en qu anto a de Lévi-Strauss e Gell estão de acordo com a visão mais unitária do pensamento seiscen tista. Por volta do início do século XVII, houv e u m a acen tuad a m ud anç a da modéstia intelectual dos humanistas em relação ao compromisso dos seiscentistas com a busca da Certeza (Toulmin 1992:36-44). Como esta m uda nça é relevante p ara a atual discussão q ue se trava no seio da an tro  polo gia co m rela ção às discordância s quanto à avali ação — e po rtan to a comp reensão e a com unicação — do conhecimento indígena, vale a p ena resum ir aqui a visão que Toulmin tem dessas épo cas no campo d a histó ria das idéias. Segu ndo Toulmin, no século XVI, em que a atitud e ge ral era a de que "nad a do que é hum ano me é estranho", a etnografia fornecia m uni ção para o debate filosófico. O temperamento especulativo e teórico dos estudiosos renascentistas, observa o autor, "coexistia com o gosto pela v arie da de d a ex pe riênc ia co n cr eta 1' (Toulmin 1992:27). M on taign e, po r exemplo, argum entava que o m elhor era se dedicar a acum ular experiên cias tanto no mundo n atura l qüa nto no hum ano, bem como visões diver sas desses mu ndos, e nesse ínterim não pron un ciar julgam entos re fere n tes a questões de teoria geral. Assim, a reação de muitos humanistas lei gos (como Montaigne) aos relatos dos exploradores europeus foi a de

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incluir as desco bertas de novas populações no cabe dal geral de dep oi mentos sobre a vida hum ana, de tal modo que houvesse lug ar no esq ue  ma geral de conhecimentos para informações etnográficas. Segundo Toulmin (1992:27-28), o respeito desses estudiosos pelas possibilidades racionais da experiência h um ana, vivenciada por meio de exemplos con cretos, é um dos m aiores méritos do human ismo re nasce ntista. Esse res  peito pela div ersidade concre ta tinha im plicações para as possib ilidades de criação de uma teoria abstrata. No projeto de construção de teorias, esses seguidores quinhentistas do ceticismo clássico impuseram limites às possibilidades de fazer generalizações com base na experiência, que lhes pa recia possivelm ente infinita. Por esse motivo, eles enc arava m com tolerância a existência de uma diversidade de posições referentes tanto às questões humanas quanto ao mundo natural. Para eles, as posições filosóficas específicas não pe rm item p rovar ne m refutaT na da (Toulmin 1992:29-30)4,  No século XVII, m uitas das colocações e dos intere sses m ais em ancipadores dos hum anistas foram deixados d e lado. Por exemplo, tanto a etnografia quan to a história com eçaram a p erde r valor. No  Dis cur so sobre  o M é to d o , Descartes confessa que quando jovem sentia fascínio pela etnografia e a história, mas explica que conseguiu deixar para trás o inteTesse por tais assuntos. Ca m inhando no sentido contrário ao do pe ns a m ento renasc entista, Descartes  d e s v a lo riz o u as i d é ia s tradic ion ais em favor de universais culturais, cujo  sta tu s seria garantido pela "clareza e distinguibilidade" que se man ifestariam para todos os pen sado res refle xivos (Toulmin 1992:32-33, 189), A tolerância e o pluralismo, típicos valo res humanistas do Renascimento (exemplificados pelos escritos de Montaigne), que previam a possibilidade de, por intermédio da discussão racional, os indivíduos chegarem ao menos a concordar civilizadamente que estavam em desacordo, tornou-se no século XVII uma opção intelec tual inaceitável (Toulmin 1992:55). Em um contexto de busca da Certeza, o pluralismo e a m ultiplicidade sofreram um a desvalorização a bsoluta. O  pensam ento intele ctual europeu, antes m arc ado pelo in te resse nas ques tões "tocais, temporais,  p r á tic a s " , cada vez mais passou a adotar um a visão exc 1usivarnen to "geral, atem po ral e  te ór ica " (Toulmin 1992:36; ênfases do autor). Toulmin. vê uma ligação entre a expulsão categórica de todas as  preoeupações prá ticas da filosofia e os distúrb io s sociais e políticos cre s cente s do século XVII. O autor observa qu e, de ac ordo com estudos re ce n tes sobre a história socioeronômica do início do século XVII, a partir de 1610 generalizaram-se. os distúrbios sociais e o retrocesso. Nesse clima

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de ex trema intranqüilidade, a busca da certeza con verteu-se em recurso  político. No in ício do século , o confronto religioso en tre p ro te stan te s e católicos tornou-se altamente politizado, intensificando-se em toda a Europa e explodindo na violência brutal da Guerra dos Trinta Anos. Até certo ponto, a aceitação hum anista da incerteza, am biguidade e d iferen ça de opinião foi respon sabilizada pelo d esenvolvimento dessa intra nq üi lidade. E m um período de turbu lência, "o ceticismo filosófico toino u-se  m e n o s atraente, enquanto a certeza tornou-se mais atraente" (Toulmin 1992:71; ênfases do autor). Segundo Toulmin, o raciocínio era mais ou m enos o seguinte: "Se a incerteza, a am bigüid ade e a aceitação do p lu ralismo levaram na prática à intensificação da g uer ra religiosa, cheg ou a hora de descobrir um  m é t o d o rac iona l  de dem onstrar que uma dad a dou  trina filosófica, científica ou teológica é essencialmente correta ou errô ne a" (Toulmin 1992:55; ênfase do autor). Os filósofos pa ssa ram a julg ar irrelevante, dada a espécie de construção de teoria que lhes interessava, qu alquer tipo de conhecim ento prático que, po r sua próp ria natureza, não pudesse ser senão contextual. Assim, descartaram o oral, o específi co, o local e o tem poral. Nas p alav ras de Toulmin, "os  a x i o m a s a b s t r a t o s e s t a v a m in,  a d i v e r s i d a d e c o n c r e t a e s t a v a out" (Toulmin 1992:33; ênfases do autor). Até mesmo a ética passo u a ab strair das circunstâncias concretas.  N o R enascim ento , os filó so fo s abo rdavam as qu estões m orais por m eio da aná lise de casos. Acreditava-se que o bom julgamen to moral se ba se a va no respeito às circunstâncias d etalha das de tipos específicos d e casos. Porém, a partir da década de 1650, os platônicos de Cambridge, por exemplo, passaram a tratar a ética como um campo de teoria g eral ab s trata, "divorciada dos problemas concretos da prática moral" (Toulmin 1992:31-32). O que é notável, do ponto de vista antropológico, é que a filosofia moral mo dern a tende a continu ar se interessan do po r princípios atemporais e universais de teoria ética, com base no pressuposto de que o Bom e o Justo, tal como a M ente e a M atéria, ob ed ecem a princípios que podem ser afirmados em termos gerais (Toulmin 1992). Agir de outra forma seria negar o  s t a t u s da ética como filosofia, a qua l por definição se transformou em um prog ram a descontextualizado, onde é necessário afir m ar os problemas como verdad eiros para qu alqu er contexto ou situação histórica. Em bora a filosofia moral p retend a limitar seus interesses ao un iver sal, seu  s t a t u s é o de um campo de estudos menor, ou meno s racional, do qu e a epistem ologia. Isto po rqu e os cientistas do século XVII res tring i ram o próprio conceito de "racionalidade" a argumentos teóricos que

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atingissem um a c erteza qu ase m atemática {e é provavelm ente por isto que Gell, em sua análise da questão do tempo, restringe a discussão "metafísica" do tópico aos argumentos "racionais", e portanto formais, da filosofia mo dern a). Assim, pa ra o filósofo dog m ático, a física teórica seria um cam po p ara o estudo e a discussão racionais, mas não a ética, o social, o direito. Foi essa a transformação ocorrida na filosofia moderna: negar a idéia renascentista de que a compreensão da epistemologia envolve não apenas questões intelectuais, mas também questões morais (Toulmin 1992:41). Se a ciência moderna separou o fato do valor, a filoso fia m od erna fez o mesmo. De mu itas m aneiras, a filosofia tamb ém elimi nou do repertório de seus interesse s diversos aspectos do que significa viver como ser hum ano — um ser social e cultural.

A diversidade do certo e as versões conflitantes

 N as ciências natu ra is hoje em dia, as discussões a re speito de quais m ode los da realidad e são ap ropriados vão de vento em popa. Segu ndo Toul min, a "m od ern ida de " nas ciências naturais, desenvo lvida a partir do racionalismo rígido e da visão u nitária d a na ture za prom ovidos pelos influentes cientistas e filósofos do século XVII, está "morta e enterrada" (Toulmin 1992:10). Os princípios e pressupostos que para Kant se aplica vam à ciência na tura l em gera l se revelaram, no final das contas, especí ficos da física newtoniana5. Nas ciências naturais, o desenvolvimento dos métodos sempre esteve associado à prática e à solução de problemas. Assim, como Toulmin (1992:10-11) observa, uma evolução constante das idéias e métodos m odernos dentro das ciências naturais tem dado origem a tod a um a nova geraç ão de idéias a respe ito do m étodo científico que escapam das críticas fatais dirigidas às concepções estreitas que os cien tistas do século XVII tinham dos métodos da ciência, inextricavelmente ligadas à sua busca da certeza absoluta. Sh w edei enfatiza que, se muitos aspectos do programa da ciência atual — que visa descobrir a realidade  — são in ev it avelm en te subje tivos ou arbitrário s, isto não é m otivo para ap ree ns ão (Shvvedor 1991:66), Todo um setor influe nte da filosofia segu e o exem plo d as ciências naturais, de m odo que  \   filosofia analítica, com base na observação da  práti ca   cientifica, conseguiu firmar o princípio de que não há motivos  p ara se crer na existência de princípios necessário s univ ers ais — fora das investigaçõ es p ura m en te formais —. senão com relação a um conjunto

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específico de pressupostos6. Se Kant pr ess up un ha a existência de um ú ni co esqu em a conceituai fixo que teria de ser adotado por toda men te racio nal, para muitos dos filósofos que Shweder (1991:59) chama de "pós-positivístas", o conhecimento depende da teoria. Para epistemólogos "pé-naterra" como W ittgenstein, Quine, N elson Goodm an, I. Lakatos, M ary Hesse e Paul Feyerab end, a idéia de que h á uma única   realidade objetiva, ou uma ú nica teoria da realidade a qu e todas as outras teorias po dem ser reduzida s, não faz mais sentido. A idéia de que o m undo objetivo pod e ser repre senta do por completo se for rep resen tado de um único ponto de vista não seria aceita por tais epistemólogos. Eles admitem uma plurali dade de conhecimentos, cada um dos quais só pod e oferecer um a visão  parcial, assim, o físico pode perfeitam ente trab alha r ora com "um mund o de ondas", ora com "um mundo de partículas", conforme for mais ade quado a seus propósitos (Goodman 1984:278). Em segundo lugar, eles aceitam a idéia de que todas as teorias da realidade são, até certo ponto, atos de projeção imag inativa7. Em suma, há muito tempo que um elem en  to interpretativo foi incorporado às concepções filosóficas da ciência enquanto atividade que busca a objetividade, como se percebe, por exemplo, nos textos filosóficos a respeito da utilização crítica da metáfora na s ciências n atura is15. Mais ainda: não há por que sup or que uma postura de  plu rali sm o metafísico resulte em "bagunça relativísta" ou "confusão filosófica", como poderíam argumen tar, em causa própria, os que se guem um a orien tação mais unitária. Em primeiro lugar, a metafísica é um campo de natu reza no tadam ente (ou lame ntavelm ente, dep end end o do ponto de vista) especulativa, quer "nas mãos" do filósofo ocidental, quer nas do cosmólogo indíge na. Os postulados metafísicos não são apriorísticos nem tam   pouco têm b ase em píric a. Ele s n e c e ssa ria m e n te sã o defen dido s co m argumentos retóricos e/ou lógicos; são esclarecedores e iluminadores^  porém — ta l como ocorre n as dis cussões lite rária s —, n u n ca é possív el chegar a uma conclusão aparente, senão dentro da versão de mundo que está sendo apresen tada. Não existem dados absolutamente ne utros aos quais possamos recorrer pa ra a tacar ou defende r uma dada teoria m eta física 15, Com o o bse rva W alsh (1967), em m eta física qu ase tudo é disc utis vel; assim, não admira que haja tantas variedades diferentes da nossa; m etafísica ocidental; realismo, irrealismo, idealismo, m aterialism o, natu-; ralismo, racionalismo, relativismo, essencialismo, nominalismo etc. Como foi observado tanto por Wittgenstein quanto por Goodman (1978), há diversas  lingua gen s ou teorias (da ciência, da psicologia, das artes, da m oralidade) por meio das q uais vivenciam os o m undo, e seria ab surdo

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sup or q ue é possíve l redu zi-las a uma só (p. ex., à física new ton iana j á fim de propo r a descrição definitiva do mundo . Como diz Goodm an a res  peito da posição que ele próprio defende em Ways of Worldmaking,   “pas samos de uma verdade única e um mundo fixo e descoberto para uma diversidade de certezas e até mesmo versões ou mundos em formação conflitantes" (Goodman 1978:X). Em sum a, m esmo dentro da nossa próp ria tradição filosófica, não existe uma metafísica única, em particular com respeito ao complexo e fascinante tema do tempo. Trata-se de uma área em que cada nova teo ria rapidamente substitui a anterior, No momento, os mais brilhantes cosmólogos físicos estão gerando teorias do tempo — como a teoria das "on dulações" ["ripple" theory of   time] — que, quanto aos postulados gerais,  parecem mais pró xim as à te oria am azônica dos m undos possív eis do que dos relatos unitários dos materialistas. Nesta teoria recente, temos uni versos pais e universos filhos, cada um existindo d entro de sua zon a de temp o específica, de vez em qu ando esb arrand o um no outro — o que gera caos geral, e talvez esplendor criativo. En quan to a ciência e a filosofia há m uito tem po deixaram pa ra trás o compromisso estreito com a busca da certeza, tal como se desenvolveu através do racionalismo intransigente dos filósofos e cientistas do século XVlf, os conceitos que os autropólogos têm tanto dos métodos quanto da filosofia da ciência estão m uitas vezes ba stan te d esatualizado s, Não é raro en con trar visões ultrapas sad as da prática científica tanto entre os que criticam quanto entre os que defendem a metodologia científica10. Muitos antropólogos continuam desejando atingir o ideal positivista — ou seja, obter o que lhes parece ser o status  de cientista de verdade den tro da comunidade científica, ao ser capaz de desvelar a verdadeira rea lidade — tal como faz o cientista11. Devido à forte tendência positivista que hã na antropologia, os antropólogos continuam a buscar a verd ad ei ra realidade a fim de atingir aquela cumplicidade com a natureza que tanto desejam. Isto leva muitos deles a desco nfiarem profu ndam ente do tema que estão estudando, que é, ao mesmo tempo, exatamente o tópico distintivo da antropologia: a tradição. Nosso tema reduz-se a meros "pos tulados de realidade im aginários" ou a crenças contingen tes (não-naturais), É essa situação irônica que leva Shweder (1991:cap. 1) a se julgar na o brigação de defe nde r o desenvolvimento de u ma antropologia "pós posítiv is ta " e "pós-nietz scheana", a qual, uecessaria m ente , esta rá mais em harm onia com a prática e a teoria da ciência atual. .

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A volta ao específico, o local e o temporal

Para Gell, a etnografia em n ad a ajud a a filosofia a resolver seus pro ble  mas. Segu ndo ele, os antropólogos não devem env ered ar por esp ecu la ções metafísicas, nem mesmo involuntariamente. As questões que esse autor leva nta são sérias, e portanto precisam ser (mais um a vez) trazidas à baila. Na verdade, se ele estiver com a razão, muitos de nós estamos cometendo graves equívocos em nossas descrições das cosmologias e m etafísicas indígenas e dos conceitos ind ígena s de tempo, espaço etc. Porém a pergu nta p ermanece: até que ponto devemos levar a sério a crí tica de Gell, se tanto dentro da antropologia quanto fora dela há muitos que não concordam com esse autor quando ele afirma que o contexto deve ser eliminado? Assim, por exemplo, um antropólogo como Withers poon sen te -se perfeita m ente à vonta de p ara afirm ar que "os N avajo tê m um a con tribnição significativa a da r ao estudo filosófico da lingua ge m e da arte, e à nossa com preensão das relações en tre fenômenos m entais e fenô m eno s físicos" (W ítherspoon 1977:12). Na filosofia, Ch arles T aylor (1986) apresenta seu projeto em Philosophical Papers   como "antropolo gia filosófica", enqu anto Toulmin, tam bém um destacado filósofo, ob ser va que agora, no final do século XX, não acreditamos mais que os estu dos de etnog rafia e história "não possam nos ensina r na da que seja inte  lectualm ente relevante a respeito, por exemplo, da naturez a hum ana" (Toulmin 1992:188), E afirma que há poucos ramos da filosofia que podem se dar ao luxo de ignorar as contribuições dessas disciplinas (Toulmiu 1992:189). A inda no campo da filosofia, A lístair M aclntyre (1985) dedic a um livro inteiro ,  A íte r Virtue,   à tarefa de demonstrar a importância da coutextua lização cultural e histórica dos problem as filosóficos. O auto r dá ênfase, particularmente (mas não exclusivamente), à ética, e vê os sécu los XVIII e XIX, m arcados pe la preo cup açã o com as gen eralizaçõ es em forma de lei e com a desc ontextua lizaçã o, como séculos ca racterizados  p or "um a form a curio sa de ce g ueira" do ponto de vis ta do d e se n v o lv i mento moderno da teoria social (Maclntyre 1985:92). Maclntyre apela  p ara a antr opolo gia e a his tó ria p ara lev an ta r no cam po da filo sofia d is cussões sobre as diversas maneiras como os problemas morais são deba tidos e abord ado s nes te ou naq ue le contexto cu ltural e histórico12, S eg un  do ele: "Uma m oralidade q ue n ão seja a m oralidade de algum a socieda de em particular, não existe em lugar algum" (Maclntyre 1985:265-266). Suas posições contra a universalidade e sua defesa da contextualização vão além das fronteiras da ética, estendendo-se também aos poderosos

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argumentos a respeito da verdade e racionalidade que os filósofos analí ticos utilizam tanto, os quais, se gu nd o ele, só pode m ser justificados d en  tro do contexto de um gênero específico de investigação histórica. Cite mos uma p assagem de M aclntyre que resume be m sua posição; ''Assim como os princípios e pressupostos que para Kant se aplicavam à ciên cia natural se revelaram, no final das contas, específicos da física newtoniana, assim também os princípios e pressupostos que Kant julgava se aplica rem à ética em geral terminaram se revelando específicos de uma moralida de em particular, uma versão secularizada do protestantismo que veio a constituir uma das bases do individualismo liber al moderno" (Maclntyre 1985:266).

Pode a filosofia abordar questões etnográficas?

Embora no campo da filosofia esteja havendo, sem dúvida, uma volta ao temporal, ao específico e ao local, cabe também à antropologia discutir a relevância do contexto para temas qu e até recentem ente sem pre foram encarad os, ao men os pelos filósofos, como pe rten cen tes ao âmbito da filo sofia. Trata-se de um a série de qu estões imp ortantes, tais como teorias da mente, matéria, espaço, tempo e mesmo moralidade. É o antropólogo  — não o filósofo, n em m esm o o cientis ta político — que, como p a rte de sua rotina de trabalho , exp lora a m ultiplicidade , a d iversidade e o con texto com relação a tais temas. Até recentemente, com os escritos de filó sofos como Charles Taylor e Alistair Maclntyre, a filosofia moderna —  por motivos históricos — tem desprezado os deta lh es etn ográ ficos e estu  dos de caso, e mesmo quando se interessa por eles não se aprofunda no assunto. Os que vêm discutindo em anos recentes a "questão da racion a lidade", por vezes apelam para a autoridade da etnografia, citando a famosa obra de Ev ans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande. Porém, as obras de etnografia são pouco citadas pelos filósofos, e as afirmativas feitas por povos não-o cidentais a respeito do m und o em que vivem ou de seus sistemas éticos não aparecem com freqüência nos textos filosóficos. E o antropólogo que tenta entender os postulados não-ocidentais a res  p eito d a re a lid a d e e os aspecto s c o n t e x t u a i s   do direito, da política, da m oralidade e da soc iedade. Como já afirmei em outra ocasião (Overing 1985a), a maioria do s fatos com qu e o etnóg rafo lida e stá explicitamenLe associad a a contextos e valores.

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Ao contrário dos hu m anistas re nasc entistas, como M ontaigne , os filó sofos modernos ainda não tiveram seu interesse despertado para as modalidades e a  p ro fu n d id a d e da d iversidade com que a literatura etno gráfica pode contribuir para o debate filosófico. A maioria dos filósofos tampouco se interessa pelos  tó picos abordado s p or muitos dos postulados indíg ena s sobre a realidade, que tanto dizem respeito a que stões políti cas, sociais e morais quanto a atributos físicos do mundo. Nesse sentido, acho pouco realista da parte de Gell excluir os antropólogos das discus sões metafísicas, e injusto negar aos povos com culturas diferentes da nossa o direito de ter suas metafísicas e s p e c í f i c a s . Somente quando os filósofos começarem a discutir as implicações das descrições etnográficas (dando atenção ao todo, e não apenas a fragmentos), como as apresenta das por Witherspoon (1977) em sua magnífica descrição da metafísica navajo em sua obra  L a n g u a g e a nd A rt in th e N a v a j o U niverse, que tais colocações poderão ser abordadas de modo apropriado. Nesse ínterim, é o antropólogo q ue deve se esforçar, tanto qua nto possível, no sen tido de de screv er o que as outras pessoa s dizem a respeito do m undo, e de q ue modo agem nele. Por exemplo, em muitos contextos, na conversação coti dian a entre os Piaroa, o temp o não é tratado como linear e progressivo. C abe a nós, no mínimo, cha m ar a atenção pa ra a possível relevâ ncia de tais aspectos das metafísicas e práticas não-ocidentais para os interesses de nossos filósofos. Em bora e steja ha ven do u m a volta ao interesse pelo  p ráti c o no cam po da filo sofia, p ro v a v elm en te será g ra ças aos esforços conscientes de nossa parte que as questões filosóficas serão reformula das de modo a incorporar o caso etnográfico,

A realidade do realmente construído

Gell tem razão em insistir que devemos ter cuidado quando dizemos que as afirmações das pessoa s têm e sta ou aqu ela implicação pa ra elas — em  p artic ula r, qu an d o nos referim os à re la çã o e n tre o q u e as p esso as afir mam e o modo como elas v i v e n c i a m o mundo. As afirmações das pessoas têm ou não algum a influênc ia sobre o modo como elas de fato v i v e n c i a m o mundo? Se têm, que tipo de influência? São perguntas muito difíceis de respond er. Porém, a m esma ca utela deve ser exercida tanto pelos ch a m ados "relativistas culturais", qu anto por aque les que, como o próprio Gell, de fen de m um a visão m ais unitária. Assim, por exem plo, seria um erro pressu por que, q uand o as pessoas fazem afirmações a respeito do

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m undo elas não estão em harm onia com os postulados de realidade de um m etafísico kan tiano, ou com os do físico ou biólogo m odernos, um a vez que não há  n en h u m a correlação entre tais afirmativas e o modo como as pessoas v ivenciam o mu ndo na v ida cotidiana. Tome-se  c o m o exemplo a questão da relação entre alguns dos pos tulados dos Piaroa a respeito da realidade e o modo como eles vivenciam essa realidad e. Os Piaroa sustentam (primeiro postulado de realidade) que os animais eram/são hum anos no “tem po-an tes" dos eventos míti cos. S ustentam tam bém (segundo postulado d e realidade) q ue os animais só vivem na selva hoje porque seus  ruw atu (xamãs especialistas) tra ns  formam os seres humanos do "tempo-antes" (que agora vivem com seus  pais prim ord ia is so b a terra) em anim ais e em seguida os transferem para a superfície da terra, para a selva. Portanto, a ingestão de carne animal é considerada um ato de canibalismo, e os Piaroa  n ã o c o m e m carne que não ten h a sofrido uma transformação, desta vez da forma animal para a vegetal (terceiro postulado de realidade), realizada pelos  ruw atu. Os  ruw atu realizam ambas as transformações — de seres humanos em ani mais e de animais em vegetais — através de sua melopéia ritualística, à noite. Os Piaroa me informaram — não sem um toque de hum or irônico  — que n a verdad e eles eram vegeta rianos. De fato, o term o genérico que em preg am p ara de sign ar alimento é "comida vegetal" (fcwawa). Por fim (quarto postulado de realidade), eles afirmam que adoeceríam se comes sem carne q ue n ão tivesse sido transformada em b atata. O qu e pod e o antropólogo dizer a respeito da relação en tre tais po s tulados e o modo piaroa de v i v e n c i a r o m undo? Em prim eiro lugar, não  podem os p ressu p o r que não haja nenhum a rela ção entr e as duas coisas. Por mais qu e qu eiramo s a cred itar que os Piaroa vivenciam o m undo do mesmo modo que nós — e a meu ver eles de fato têm muitíssimas expe riências em comum conosco —, não podemos partir desse pressuposto e che gar à conclusão de q ue os Piaroa  não acreditam no que dizem. Então, como diferenciar o que eles  d ize m ser sua vivên cia do que eles  nã o viven ciam, embora afirmem o contrário? Por exemplo, quando um Piaroa diz que está  na v e r d a d e comendo uma batata (ou, em um outro nível, um ser hum ano), se o que ele está comendo para mim tem tod a a a pa rên cia e o  sa bo r de carne de caititu, o que significa v i v e n c i a r ? Como se dá a articu lação en tre o físico e o conceituai? Eis um e nigm a par a o qu al não tenho nenhuma resposta. O que a mim, como antropóloga, cabe d em onstrar é de qu e modo os  postu la dos que enum erei acim a (q ue era m consta nte m ente e de diversasformas reafirmad os pelos Piaroa que con heci como verd ade s a respeito.

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do mundo) se relacionam com atos específicos do cotidiano dos Piaroa. Recapitulando, os quatro postulados são: (1) os animais que vemos na sel va eram, e ainda são, seres humanos no "tempo-antes" dos eventos míti cos; (2) os anim ais só po de m p ov oa r a selva se o  n i w a n g ( x a m õ }  os evo car de seus lares hum anos sub terrâne os e atribuir-lhes formas animais; (3) os animais sofrem em segu ida um a outra transformação re alizada pelo  ru wang,  para a fo rm a vegeta l, ap ós a qual os m em bro s de sua com unid a de podem comê-los; e (4) se um Piaroa comer carne que não tiver sido transformada em vegetal, ele adoecerá. As articulações entre estes qua tro postulados e a prática cotidiana são surpreendentemente numerosas: os postulados estão relacionados à program ação das atividades do dia-adia, aos hábitos de caça e consumo, às práticas comerciais, às estruturas gramaticais, às explicações das doenças, à vida política, às normas de  prop riedade e a in úm eras outras áreas da esfera cotidiana, in clu siv e aos rituais diários, Ao apo ntar para essas articulações, estou tam bém m os trando que os postulados  têm de fato um a relação concreta com as prá ti cas dos Piaroa e — por intermédio delas — com o modo como eles vivenciam a realidade. Além disso, na comunidade em que morei, as pessoas  passavam boa parte do te m po agin do em confo rm idade com esse s po stu lados, Limitar-me-ei aqui a alguns exemplos óbvios que dizem respeito ao planejamento e à preparação da caça e do consumo de animais, Todas as noites, o líder  r u w a n g realizava um demorado ritual cujo objetivo era transformar a carne animal da caça em alim ento vegetal, mais saudável; todos os homens da comunidade participavam como coro, du rante m uitas horas de m elopéia. O ritual ocorria  den tro da habitação coletiva [ c o m m u n a l h o u se], de modo que as mulheres e as crianças ouviam pelo menos duas horas de cantoria antes de dormir, Todas as  manhãs, todos os mem bros da com unidade be biam a água ou o mel sobre o qual o  ru w a n g havia pronunciado intermitentemente, durante o ritual noturno, as palavras protetoras de seu encantamen to. Quando enc on tra vam algum animal na floresta,  não o caçavam se o ritual específico para a espécie em questão não tivesse sido realizado. Somente depois que o  ru w a n g cantava para pro teger os mem bros de sua comunidade dos peri gos daquele animal em particular, e depois que todos bebiam suas pala vras, é que o animal era caçado. Normalmente, □  ru w a n g tomava o cui dado de planejar seu ritual de modo a prever as espécies que deveríam ser encontradas na selva naquela época do ano, mas nem sempre isso se dava. Por exemplo, uma vez, durante minha estada entre os Piaroa, umas crianças que se em brenharam na m ata encontraram inespe radam ente alguns tatus, m as só foi enviada um a exp edição de caça pa ra pe ga r os

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animais  dep ois de o  ruw ang  passai várias noites executa ndo o ritu al apro  pri ado que perm itiría ao s m em bro s de sua com unid ade com er carne de tatu sem perigo. As vezes, antes da caçada, algum a outra comunidade dis  punha da água e do m el já pre para dos que era m apro priados à situação, e o espec ialista em rituais da seg un da com unidade fornecia-os à primeira, O que é impo rtante ressaltar nesses poucos exemplos de ações rela cionadas com os postulados de realidade dos Piaroa, qu anto aos proces sos de transformação envolvidos no consumo de carne de caça, é que se trata de uma  práti ca importante e  diária,  N a verd ade, o que está em jogo aqui é a  o r g a n iza ç ã o d o te m p o , o centro em torno do qua l a vida social dos Piaroa gira. Nesse contexto, o antropólogo percebe uma ligação evi den te e ntre os postulado s de realidad e dos Piaroa (que são claram ente estranhos à nossa metafísica) e o modo como eles vivenciam a realidade  cotid ia na . Em outras palavras, a prática é um importante aspecto da vivência que o antropólogo é capaz de comunicar. A prática inclui o ritual, que no caso não é uma ocorrência eventual e sim uma atividade que leva horas, sendo norm alme nte realizada todas as noites. Do ponto de vista dos Piaroa, esse ritual é um a ativida de prá ti ca que tem resultados práticos. Assim, se estabelecéssemos uma distin ção rígida entre, de um lado, o tempo e o comportamento do ritual e, do outro, os do cotidiano, e impuséssemos uma dicotomia sagrado/profano à vivência piaroa do mundo , estaríamos distorcendo a p rática piaroa. Para ficar em um único exemplo: a caça, como prática piaroa, não é apen as um a qu estão de se em brenh ar no mato e m atar um animal. Pelo contrá rio, trata-se de um processo que exige outras habilidades que vão além do uso da zarab atan a e a preparação de armadilhas, É igualmente impo r tante o trabalho ritual do  ruwang, que tran sporta p ara a floresta os seres humanos que ele transformou em animais, para que se tornem presas dos caçadores. E tam bém através de rituais  di ár io s e demorados que o  ruwang transforma a carne animal em alimento vegetal, deste modo tornando-a menos perigosa para os membros de sua com unidade. Por intermédio de tais práticas rituais, o  ruw ang é reconhecido como um caçador poderoso, o em sen papel de praticante do ritual ele é considerado o caçador mais capacitado da comunidade. O antropólogo m uitas vezes tenta sep arar as  práti cas ri tuais das práticas cotidia nas, o tem po rit ual do tem po cotidia no, mas n â prática piaroa um a coisa é constitutiva da outra. O qu e ocorre à noite rio.ritual está mtimamente associado ao que é feito durante o dia na selva. : t ;t : ; ■ . Do mesm o modo, a prática cotidiana dos Piaroa tam bém inclui o pró  prio ato de  afirrhar  postu lados cosm ológico s a re speito do m undo, o que

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 pode ser as so ciado ao fa to de que a p rática cotidia na dos Pia roa é consti tutiva de um a metafísica específica, a qual inclui um a metafísica do tem   po tam b ém específ ica. A inda q u e essas observações p a re ç a m óbvia s, muitas vezes se esquec e — principalmente nas abordag ens que tentam sep ara r as práticas sociais ilusórias das rea lm en te reais (o qu e é m uito comum quando o assunto em questão é a fala ritual) — que o ato de pro nun ciar palavras é uma forma de prática, de m odo que a palavra em si é sempre um aspecto da realidade social, e portanto constitui experiência. Em suma, é legítimo falar-se da relação entre a palavra e a experiência no mu ndo. A força da pala vr a não se limita ao proposicional; ela faz mais do que simp lesme nte dizer algo qu e é v erdade iro (ou falso) a respe ito da realidade, A palavra tem efeito sobre a prática no mundo esteja ou não em harmonia com as nossas proposições a respeito do mesmo. O real m ente construído també m é real, e portan to tem efeito real sobre as ações no mundo.

Podemos  julgar mundos valorativos do ponto de vista de um mundo objetivo?

Há m ais um p roblem a q ue se coloca pa ra a visão unitária, que visa resol ver a diversidade postulando universais da experiência: é muito difícil estabe lecer um a correspondên cia legítima entre os postulados de um mundo unitário e objetivo e os de um cosmos indígena sul-americano de m undos m últiplos. Em primeiro lugar, o universo ind ígen a de m undos múltiplos é composto de mundos valorativos, ao contrário de nosso m un  do objetivo unitário. Os mundos valorativos não podem ser entendidos (pelo m enos não em termos indígena s) atrav és dos postulados do nosso m undo objetivo, q ue são — ou ao m enos pre ten de m ser — livres de valo res. Assim, o mundo valorativo não pode ser reduzido ao mundo objetivo. Eu diria mesmo que quase nen hum dos postulados da teoria do m un do valorativo pode ser reduzido a postulados a respeito de um único m un  do objetivo. Por exemplo: é verdade que quase todos os seres humanos do mundo reconhecem e vivenciam o ciclo de dia e noite; mas isto não qu er dízeT que nossos postulados d e realidad e referen tes aos mo vime n tos dos plan etas sejam os únicos  postulados realmen te reais que expli cam a alternância de dia e noite. Também não se está dizendo que os  povos indíg enas não podem in corporar co m facilid ade alguns  postulados do m undo objetivo a seu esq uem a conceituai. Por exemplo, os Piaroa

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aceitaram tranq üílam ente o pap el dos antibióticos na cura da coq uelu che. Mas esta aceitação foi parcial. De acordo com o conhecimento piaroa, não pode haver uma relação direta entre morrer de coqueluche e a não utilização de antibióticos. Isto porque, segundo a visão piaroa da doen ça e da morte, as crianças não podem m orrer de coqueluche, pois todas as mortes são prov ocad as pela feitiçaria. Foi-me explicado, de modo enfático, qu e a c oqu eluche p ode tornar a criança vulne ráv el aos efeitos da feitiçaria, mas a coqueluche em si, como doença, não pode causar a morte. O que mata é o poder dos pensamentos malévolos, e não o poder da doença. Como os Piaroa não consideram o mundo h uman o parte de um m un do natural, eles não po dem aceitar a idéia de que a coqueluche é a causa real da m orte. Tanto dentro da visão popu lar das coisas quando da c ientí fica, tende m os a ver a existência como um processo natura l — nas p ala  vras de M. Strathern, referindo-se especificamente à visão inglesa, "a vida [tal como a morte] é encarada como uma condição do corpo natural” (Stra thern 1992:66), Pa ra os Piaroa, a vida não é um proc esso "n at u ra l1', e a morte tam bé m n ão o é, Dentro de su a visão das coisas, a cap acida de hu m ana de vida na terr a é atribuída às ações de deuse s e pessoas, e a causa decisiva da morte exc lusivam ente à ação de feiticeiros humanos. Do mesmo modo, os Piaroa não véem o tempo como um processo na tural line ar e progressivo. Às vezes o tempo é linear, às vezes não. D en tro da metafísica (e portanto da h i s t o r í c i d a d e ) dos Piaroa, o tempo tem um c o n t e x t o ,  e como a natureza do tempo é contextual, não há nada de contraditório na idéia de que o tempo ora é linear, ora não. Além disso, o t e m p o t a m b é m n ã o é n e c e s s a r i a m e n t e p r o g r e s s iv o . C o m o o b se r va Strathern (1992:67), de àcordo com a nossa visão popular, o tempo deslo ca-se pa ra a frente, en qua nto na teoria piaroa ele pode tam bém saltar  por cima do fluxo dos evento s, ou aconte cim ento s que — de um ponto de vista linear — perten cem a períodos históricos diferentes pod em se fun dir, O tem po pode ser caleidoscópico, fragm entar-se e recom binar-se em novas configurações. O futuro pode até alterar os eventos passados, Mais uma vez, não há aqui nenh um a contradição, já que n ão há um "mundo natural" cuja ordem esteja sendo violada. Por exemplo, dentro da visão piaroa, a morte não é um processo inteirame nte linear. Os mortos não pertencem ao passado, como a m em ó ria pode dar a entendei, pois do ponto de vista das pessoas vivas, terrenas, os mortos vivem no presen te. Como seres eternam ente p resentes, ainda que n orm alm ente vivam em moradias fora das habitações hum anas lerrenas, os mortos podem interterir (com efeitos desastrosos) nas ativida-

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des terrenas. Por outro lado, nossos mortos perten cem m ais categ oric a mente ao passado, pois eles estão naturalmente mortos. De modo geral, eles tam bém são mais velhos do q ue nós. Podemos calcular que ida de eles teriam se ainda estivessem vivos — talvez cem ou cento e cinqüenta anos13. Os mortos dos Piaroa não envelhecem, pelo contrário, permane cem eternam ente m uito jovens, cada um sofrendo um a transformação quan do sua alma passa a fixar residência p erm anen te fora do corpo, Ain da que sejam ancestrais no sentido linear do termo, esses jovens não  podem ter poder legítim o alg um sobre os vivos. Seg undo a nossa teoria linear do tempo, a causalidade se gue o fluxo do tem po pa ra a frente, de modo que as causas p reced em os efeitos. Acre dita-se que aquilo que vem an tes tem p oder sobre aquilo que vem depois. O corolário social desse po stulado é o de qu e os pais têm p od er sobre os filhos14, ou o de qu e os mais ve lhos tê m po de r sobre os mais joven s. Um  pri ncípio h ierárquico é facilm ente associa do a nosso postu la do, a p a re n  tem ente natural, referen te ao temp o linear e progressivo — o indivíduo tem po der sobre o outro que vem depois dele (assim é que falamo s de líderes e seguidores}15. Os mais velhos naturalmente têm precedência sobre os mais jovens e os influenciam, Na Amazônia, a institucionaliza ção desse princípio não é generalizada. N ão é tão comum enco ntrar ins tituições do tipo de um conselho de anciãos com poderes decisórios sobre os mais jovens. Além disso, o princípio segu nd o o qual é "natural" os pais terem p od er sobre os filhos não se evidencia muito. Na literatura etno  gráfica sobre os povos amazônicos, dá -se m uita ên fase ao fato de q ue os  pais têm pouco poder e controle direto sobre os filh os16. Um dos motivos  pelo s quais esses povos não dão m uita im p o rtân cia ao p od er dos pais sobre os filhos, dos velhos sobre os jovens, é que eles têm idéias sobre a relação entre o tempo e as relações de poder que são diferentes das nos sas, O fato de o tempo linear não o cupa r um a posição de d estaq ue em suas teorias sobre a realidad e faz com que o conceito de tem po n ão seja considerado natura lm ente relev ante p ara a teoria e a prática sociais. O elemento progressivo d a teoria do tempo q ue é dom inante en tre nós tem mais uma conotação, tam bém de n ature za hierárquica: trata-se da idéia d e que a passag em do tempo tem efeito cumulativo. Daí a noção de que o que vem depois pode ser encarado como melhor. Essa crença no po der concedido pelo tempo linéar progressivo tem implicações para a teoria política: d ela deriva-se a idéia d e qu e é natu ral qu e os Estados nacionais se tomem maiores e as civilizações se tornem melhores. Segun do a doutrina colonialista, os maiores e mais poderosos são os mais avan çados, não ap enas em tecnologia mas tam bém n a seqüê ncia temporal;

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assim, no discurso político, eles têm o direito mo ral — po r serem tem po ralmente mais avançados — de ter poder sobre os pequenos, os que por definição fazem p arte do passado atrasado. Os men ores, por nã o terem aproveitado o acúmulo do tempo, vivem em "tempos passados". O ponto a que se qu er che gar é a observação de qu e as noções de tempo, estando associadas de uma maneira ou de outra a conceitos de causalidade , aca bam tendo implicações para as concepções de poder. Elas afetam tam bém o modo como um povo com preend e a história e inter p reta os evento s históricos. Vem os nosso conceito de te m po linear e p ro gressivo como um princípio a bstrato q ue reflete a realida de tal como ela realm en te é; julgam os q ue ele não é valorativo. Porém, tanto nas mãos dos políticos e cientistas sociais quanto nas das pessoas comuns, ele é valorativo, sim. E as teorias do tempo específicas variam quanto à sua aplicab ilidad e a esta ou aqu ela construção social ou política. Algumas teorias do tem po {por exemp lo, a do temp o u nitário, linea r e progressivo) se prestam muito para a criação de estruturas hierárquicas, enquanto outras se integram com mais facilidade a estruturas igualitárias — é o caso da teoria do tem po contextua l formu lada pelos Piaroa. H á aq ui mais um a lição. Aqueles que defendem os postulados de um universo valorativo de mundos múltiplos se recusariam a aceitar integralmente os postulados de um universo unitário e objetivo, quanto mais não fosse porque sempre veriam com desconfiança a maioria dos postulados do mundo objetivo que dizem respeito à causalidade. Isto se aplicaria tanto às causas ne cessárias e suficientes da morte, qu anto aos mov imentos da lua e d as estrelas — ou à direção do fluxo do tempo. N um u nive rso valorativo, todos os postulado s sob re a realidad e, inclusive os que se referem à realida de física, estão e x p l i c i t a m e n t e vinculados a um universo m oral (p. ex., a malev olênc ia pess oal é a cau sa de  to d a s as mortes), o que não é o caso dos postulados do mundo objetivo do cientista. Entre os  povos silvícolas da Amazônia, é norm al os postu la dos da realidade serem constitutivos de outros postulados de âmbito social, moral e político. Para o típico cientista ocide ntal moderno, porém, os fatos de q ue a ciência trata são autônomos com relação aos valores — uma característica que é oriun da do p rog ram a d a ciência dos séculos XVII e XVIII, que decidiu que toda a realidade podia ser explicada mediante leis naturais. O cientista, em seu trabalho, normalmente ignora os fatores sociais, políticos e morais, en qu anto os postulados indígenas não po dem ser  de scontextu ali z a d o s . Assim, a antropologia tem como uma de suas preocup ações centrais o pod er do pen sam ento dos agentes enqu anto sere s sociais e morais, e não enq ua nto físicos.

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O fato de os postulados indígenas sobre a realidade nunca serem (conscientemente) descontextualizados dos aspectos sociais, políticos e morais, e portanto da prática cotidiana, não é uma questão trivial. Um teórico piaroa que faz uma afirmação a respeito da realidade física não está fazendo o mesmo tipo de afirmação que faz um cientista ocidental  — ou, p elo m enos, q ue o cien tista faz no d ec o rre r de seu trab alh o . Por exemplo, um  ruwang  pia roa explicou-m e que um a m o nta nha de encosta íngrem e, à qual a erosão de ra um a forma curiosa, situad a perto de sua casa, resultava da transformação da árvore da vida do deus criador dos Piaroa, cuja fruta continha a doença da paranóia. A transformação da árvore em m ontanh a, no final dos tem pos míticos, serviu para n eutralizar em parte os perigos da paran óia, en cerran do a força da árvore da vida den tro da m assa sólida da mo ntanha. Já o geólogo que fosse explicar a origem d essa formação de arenito nas Gu ianas falaria sobre as condições desérticas no passado e o efeito das tempestades de vento (Grelier 1957:55-56, 102). As explicações são, sem dúvida, muito diferentes, mas não se pode d eterminar que um a está certa e a outra errada (ou que uma é m elhor e a outra pior), segu nd o os mesm os  p a d rõ e s de julg a m e nto . As duas afirmações são incomensuráveis, no sentido de que uma não pode ser reduzida à outra de tal modo que ambas sejam julgadas com base em um mesmo conjunto de padrões. E isto que Nelson Goodman (1978) tem em m ente q uando contrasta os padrões de julgamento apropriados à arte com os que se aplicam ao em preen dim ento científico; segund o ele, a q ue  les são tão rigorosos quanto estes, só que diferentes. Reconhecer a incom ensurabilidade dos padrões de julgam ento não é a mesm a coisa que dizer que é im possível o cientista e o esp ecialista  p iaroa se entenderem , e sim enfatizar que o geó lo go está in te ressado em oferecer uma explicação natural para os fenômenos físicos, enquanto o interesse do especialista indíg en a é outro. Assim, as intençõ es são dife rentes. As afirmações do  ruwang, que são  co ntextua lizad as na prática da cura e da proteção, têm de se harm oniza r com os processos de um cosmo valorativo e sua história. Quando o  ruw a ng quer curar um p aranóico, as comp lexas origens históricas d este m al no tem po mítico têm pa ra ele mais impo rtância que a fisicalidade da m ontanha. Assim, em sua abord agem do evento, uma das  r a z o e s im po rtantes pelas qu ais a árvore da vida foi transform ada em m ontanh a foi o fato de q ue seus pod eres malignos esta vam enlouquecendo muitas pessoas nesse tempo mítico, tornando-as  paranóic as. O  ruw ang não está interessado em origens naturais, e sim em origens morais e sociais. Na historicidade piaroa, o processo histórico sem pre incorpo ra eventos m íticos, O tempo mítico da h istoricidade pia-

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roa não é o tempo passado (morto e enterrado), é, em um certo sentido, um tem po o nipresente, que tem efeito contínuo sobre o atual. Além dis so, como os deu ses e os outros seres do tem po m ítico têm etern am ente o  po d er de a g ir sobre o tem po p resente, o efeito do te m po m ític o sobre o atual é tão imprevisível quanto as intenções específicas de agentes míti cos individuais. Assim, a historicidade piaroa não pode pressupor uma  base só lida de evento s lineares. Criticar os postulados de realidade associados a esse exemplo espe cífico de historicidad e am azônica com bas e no ponto d e vista de um un i verso kan tiano, que ob ede ce a leis universais e naturais,   seria, se não  politi cam ente absurdo, sem dúvid a lo gicam ente im pró prio. Com o a rg u  m enta M aclntyre (1985:267-269), a superioridad e do universo newtoniano faz parte de uma história específica que é tipificada por um conjunto específico de intere sses p rogram áticos — isto é, problem as que se está interessado em resolver17. Tais interesses são, de modo geral, diversos dos dos povos amazônicos, cuja história é distinta. É  em par te porque os interesses do físico newtoniano são muito diferentes dos do especialista amazônico, que são diferentes as ênfases que eles dão ao conteúdo de seus respectivos universos. Para aquele, o universo é feito de matéria;  p ara este , o univ erso é com posto de ações de agente s, m uitas vezes com intenções personalizadas. No caso dos Piaroa, a realidade dos seres humanos como seres sociais e morais é constitutiva dos postulados do ruwang  sobre a realidade. D izer que o ruw ang e stá equivocado em suas afirmações sobre a realidade física equivalería a dissociar esses postula dos de seu v alor social, m oral e político — o que seria absu rdo, pois é ju s tamente a isto que eles dizem respeito. Assim, não podemos dizer que o ruwang  está errad o qu ando postula suas teorias a respeito do mundo, sem ao me smo tempo julga r que ele está errado em suas teorias sobre a rea li dade dos seres humanos como seres sociais e morais. Qualquer julga m ento desse tipo seria valorativo e não objetivo. O fato é que os postulados metafísicos locais referentes à realidade (p. ex., os feiticeiros e os deuses existem, o tempo não se desloca apenas de modo linear) não deve m ser interpretados do mesmo modo e segundo os mesm os padrõ es que utilizamo s para inte rpr eta r os postulados da físi ca. Como se trata de postulados incomensurãveis, com interesses dife rente s e pe rtenc en tes a histórias diferentes, é necessário utilizar pad rões de julgam ento diferentes. Por outro lado, não há como discordar de Shw eder qua ndo ele afirma que um conjunto de postulados é tão verdadeiro qua nto o outro. Porém, o saber esp ecializado associado a cad a um desses conjuntos diz respeito, de modo geral, a aspectos diferentes da realidade.

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Um deles, como afirmou Horton a propósito da África "tribal" (Horton 1979; O vering 1985b), volta-se pa ra a realid ade contextualizada do m un  do hum ano dos relacionam entos interpe ssoa is18, enq uan to o outro se inte  ressa por um a realidade física totalme nte descontextualizada do pessoal,  bem como de muitos outros aspecto s da experiência hum ana. Por fim, co mo W eber observou há muito tempo, qu alquer tentativa de reduzir a ra  cionalidade d a visão objetiva unitária à v alorativa — e vice-versa — fatal m ente resu ltará em um a indiscem ibilidade de julgamentos, a da loucura.

Recebido para publicação em 20 de março de 1995 Tradução-. Pauio Enriques Britto

Joanria Overing é professora da Universidade de Saint-Andrews, Grã-Breta nha. Entre outras publicações, é autora do livro The Piaioa; A People oí the Orinoco Basin e organizadora da coletânea  Reason and Morality.

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Notas

4 Este artigo é parte do livro The Creativity of Power: An Amazonian Aes thetic of Productivity, atualmente em elaboração. 1 Cf. J. D. Hill (1988), o qual explora a historícidade dos povos da Amazô nia. Sua ênfase, porém, recai basicamente nas reações dos indígenas aos proces sos históricos modernos, e portanto às mudanças sociais vivenciadas e expressas pelos povos indíg enas à medida que são incorporados à economia de mercado e ao Estado nacional. 2 Ver, também, Shweder (1991:58) para uma abordagem semelhante, 3 Ver, por exemplo, Overing (1985a; 1986), onde defendo a mesma posição. 4 Ver, também, por exemplo, "Da Experiência", de Montaigne (1993), 5 Ver, por exemplo, Maclntyre (1985:266), onde se propõe que, tanto na físi ca quanto na ética, a teoria por sua própria natureza depende do contexto, 6 Em Consequences of Pmgmatism,   Ríchard Rorty (1982:215-216) observa que, nos departamentos de filosofia dos Estados Unidos, há hoje em dia, nas áreas centrais da filosofia analítica — epistemologia, filosofia da linguagem e metafísica — "tantos paradigmas quantos são os principais departamentos de filosofia". Ao contrário da situação em 1960, quando havia um consenso em tomo do programa do positivismo lógico, hoje praticamente não há nos Estados Unidos nenhum con senso a respeito dos problemas e métodos da filosofia. 7 Ver, também, Shweder (1991:59-69), onde a maioria das posições defendi das é semelhante às minhas. Estou também plenamente de acordo com a maior parte do que Shweder diz sobre a importância da filosofia recente para a antropo logia. B Ver, por exemplo, Black (1962), Ricoeur (1978), Goodman (1968), Feyerabend (1975), De Man (1978) e Knhn (1979), a respeito das relações entre a metá fora e a investigaçã o científica. 9 Quanto a essas qu estões, ver, por exemplo, o artigo de Walsh (1967). Esta seria também a postura da maioria dos filósofos pós-posítívistas, como Nelson Goodman, Mary Hesse, Stephen Toulmin, Paul Feyerabend e muitos ontros. 10 Ver M. Hes se (1972), que no artigo "In Defe nse of Objectivity" tentou informar aos críticos da ciência qne sua visão desta estava atrasada mais ou menos em um século! Elá observa que as descrições feitas pela física das essências do mundo real não sãorião-cumulativas nem convergentes. Por exemplo, as teorias

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do átomo oscilam entre continuidade e descontinuidade, concepções de campo e concepções de partícula, "e mesmo, em termos especulativos, entre diferentes tipologias do espaço" (Hesse 1972:282), 15 As expressões mais categóricas que conheço desse ideal são as apresenta das por Lévi-Strauss na  conclusão de The N aked Man   (1981) e por Gell (1992) em The Anthro polo gy oí Time. 12 Ver, também, em Toulmin (1992:188), uma abordagem sem elh an te da necessidade de incorporar à ética os estudos de caso específicos fornecidos pela história e a etnografia. 13 Ver, mais uma vez, a inte ressa nte análise feita por Strathern (1992) das crenças populares dos ingleses a respeito do tempo e do significado do envelheci mento, Ela afirma a correlação que há em tais crenças entre as idéias sobre o mun do e as idéias sobre as pessoas. í4 Ver Strathern (1992), para quem um tal princípio é altamente pertinente para a maneira inglesa de entender as relações de parentesco. Os dados etnográficos referentes ao modo como a relação entre líderes e membros de suas comunidades se exprime apresentam diferenças interessantes. Ver Belaunde (1992); Lévi-Strauss (1967), 30Ver o estudo de Gow {1991} sobre o Bajo Urnbamba; o de Lizot (1985) sobre os Yanomami etc. 37 O autor defende a relevância do contexto social e histórico de julgamento e ataca a idéia de padrões gerais atemporais. Assim, por exemplo, ele propõe que a física newtoniana só pode ser considerada racionalmente superior dentro do contexto  histórico   em que ela pode resolver problemas científicos específicos qne seus predecessores, a física de Galileu e a de Aristóteles, não conseguiram resol ver  segundo seus próprios interesses programáticos, 18 Trata-se de uin peqn en o detalhe, mas para os Piaroa tanto os feiticeiros quanto os denses pertencem à categoria dos seres humanos.

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