Os Salmos Da Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

July 14, 2017 | Author: Jaster IV | Category: Psalms, Prayer, Sin, Jesus, Love
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Os Salmos Da Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio...

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ÍNDICE Capa Rosto Apresentação Introdução Os dez Salmos da Misericórdia I - Salmo 25 II - Salmo 41 III - Salmo 42 IV - Salmo 43 V - Salmo 51 VI - Salmo 57 VII - Salmo 92 VIII - Salmo 103 IX - Salmo 119 X - Salmo 136 Ficha Catalográfica

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APRESENTAÇÃO

N

os Salmos, reflete-se a vida de cada homem. Todos os que frequentam o Saltério, crentes ou não, cedo ou tarde encontram um reflexo da sua

existência nestas poesias antigas que se tornaram patrimônio de oração para gerações de pessoas. O nascimento e a morte, o sofrimento da doença e a dor do abandono, a guerra e a paz, a solidão e a procura de Deus… todos os aspectos da experiência pessoal se espelham nos Salmos. Não só a vida humana, mas também o cosmos, as vicissitudes de Israel e a história da salvação encontram lugar nos Salmos. O Saltério é, na verdade, a voz de Deus transformada em oração dos homens quando estão na sua presença, sabendo necessitarem do seu amor. No Ano Santo da Misericórdia, era importante oferecer um instrumento pastoral para ajudar a oração e a reflexão dos peregrinos. Pensou-se numa seleção de Salmos em que o tema da Misericórdia emergisse em toda a sua valência existencial e significado teológico. Na Bula Misericordiae vultus (MV), o Papa Francisco quis dedicar algumas expressões significativas também à oração dos Salmos: «Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: “É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura” (103,3-4). […] A misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor, como o de um pai e de uma mãe que secomovem pelo próprio filho até o mais íntimo das suas vísceras» (MV, n. 6). O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização agradece ao padre Sebastiano Pinto, professor de Exegese do Antigo Testamento na Faculdade de Teologia da Apúlia, pela sua disponibilidade em escrever este comentário aos Salmos da Misericórdia. Estamos certos de que, através da sua apresentação, muitos cristãos poderão apreciar melhor a oração do Saltério. Os Salmos da Misericórdia são como um guia que pode acompanhar a peregrinação 5

até a Porta Santa, para descobrir a Misericórdia de Deus como um refúgio de ternura e de consolação sem igual. X RINO FISICHELLA Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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INTRODUÇÃO

«Quanto não chorei, fortemente comovido, ao escutar os hinos e cânticos ressoando maviosamente na vossa Igreja! Essas vozes insinuavam-se-me nos ouvidos, orvalhando de verdade o meu coração; ardia em afetos piedosos e corriam-me dos olhos as lágrimas: mas sentia-me consolado» (Confissões, IX, 6,14).

C

om estas palavras intensas, Santo Agostinho conta-nos o fascínio que a Igreja em oração exerceu sobre a sua vida, juntamente com a forte

incidência do cântico litúrgico sobre a sua conversão. O Livro dos Salmos exerceu sempre sobre ele uma extraordinária atração, porque nele se encontra o amplo leque dos sentimentos humanos: alegria e louvor, tristeza e angústia, força e debilidade, vitória e derrota, confiança e desconforto. Toda a experiência da vida, da mais bela e exaltante à mais terrível, é aqui poeticamente narrada. Não foi por acaso que Santo Atanásio falou dos Salmos como o livro dos afetos, como o berço da vida moral e como o espelho da alma, porque suscita o desejo de virtude. Ainda que toda a nossa Escritura, antiga e nova, seja divinamente inspirada, este livro é, por assim dizer, um rico jardim de onde se podem colher os frutos de todos os outros textos inspirados. Na Igreja dos primeiros séculos, difundiu-se a interpretação cristológica dos Salmos, considerados como a voz do Cristo total, cabeça e corpo. Na voz de Davi, faz-se eco da voz de Jesus e, com ela, da polifonia de todos os membros do Corpo de Cristo. Até mesmo devido a esta leitura espiritual, os Salmos foram comentados amplamente. Se se tivesse de elaborar uma classificação das preferências

dos

livros

bíblicos

comentados

pelos

autores

cristãos,

descobriríamos que o Livro dos Salmos ocupa as primeiras posições, ao lado de outros ilustres escritos: o profeta Isaías, o Cântico dos Cânticos e, obviamente, os evangelhos. O próprio Cristo ressuscitado, aparecendo aos discípulos, indicara nos Salmos não apenas o lugar onde encontrar as marcas da sua presença, mas também a chave para reconhecê-lo vivo e operante na Igreja: «São estas as

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palavras que eu lhes falei, quando ainda estava com vocês: tinha de se cumprir tudo o que sobre mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (Lc 24,44). O fascínio do Saltério atravessa os séculos e chega até os nossos dias, mostrando toda a sua riqueza espiritual ao homem de hoje, tão esfomeado de interioridade e de sentido autêntico da vida. Esta riqueza obtém-se na leitura e no estudo do Saltério, tanto no âmbito pessoal como comunitário; mas oferecese sobretudo à oração dos cristãos na Liturgia das Horas: «Na Liturgia das Horas, a Igreja reza na maioria das vezes com os mais belos cânticos que os santos autores, sob a inspiração do Espírito Santo, compuseram no Antigo Testamento […]. Quem recita os Salmos na Liturgia das Horas, recita-os não tanto em nome próprio, mas em nome de todo o corpo de Cristo, e até mesmo na pessoa de Cristo» (n. 100.108). Em hebraico, o Saltério é chamado sefer tehillím (livro das laudes), ao passo que em grego encontramos o psálmos (“cântico”). No Livro de Daniel mencionam-se diversos instrumentos musicais, entre os quais o saltério: «Quando ouvirem o som da trombeta, da flauta, da cítara, da sambuca, do saltério, da gaita de foles e outros instrumentos musicais» (Dn 3,5.7). Na acepção da Bíblia grega, a ligação entre os Salmos e a música é indissolúvel, de acordo com 1Cr 16,4-6 e 2Cr 34,12, que apresentam os levitas como cantores e tocadores, ainda que isso não signifique que a recitação dos Salmos seja sempre acompanhada de um instrumento. Os Salmos foram compostos em hebraico, num período de tempo que oscila entre seiscentos e oitocentos anos, e foram amplamente utilizados na oração da comunidade. A versão grega dos Setenta é a mais importante das antigas versões, no que se refere ao Saltério. Esse texto – que abarca um período entre o século ii a. C. e o século i d.C. – é relevante porque é o testemunho mais próximo do original hebraico. Foi precisamente o texto grego, e não o hebraico, a ser utilizado pelos autores do Novo Testamento quando citavam o Antigo; semelhante é o discurso relativo à utilização do Saltério por parte dos Padres da Igreja. Foi, no entanto, a língua latina que permitiu a maior difusão do Saltério. No ano 386, São Jerônimo preparou em Belém o Psalterium Gallicanum, que mais tarde foi o saltério da Vulgata. 8

Lendo os vários Salmos, percebemos que a maioria deles começa com frases que servem de subtítulo. Estas inscrições não apareciam no original hebraico, ainda que a sua antiguidade seja indiscutível. Tais subtítulos foram inseridos pela tradição hebraica pré-cristã, com uma intenção claramente litúrgica. Temos três tipos de subtítulos: a) termos técnicos musicais e indicações para a execução, b) nomes pessoais aos quais está associado o salmo e c) alusões históricas. Percorrendo o Saltério, poderíamos ter dificuldade em saber exatamente o número do Salmo, uma vez que, a partir do Salmo 9, aparece uma numeração dupla: a segunda metade deste Salmo é considerada pelo texto hebraico o Salmo 10, ao passo que nos Setenta e na Vulgata não se encontra dividido. Depois do Salmo 9, começa uma numeração diferente, que, nas traduções modernas da Bíblia, figura do seguinte modo: a maior (normalmente entre parênteses) segue o hebraico, e a menor reflete a ordem dos Setenta e da Vulgata. A dupla numeração termina com o Salmo 147, no qual encontramos o procedimento exatamente inverso ao do Salmo 9. Por isso, tanto para a Bíblia hebraica como para os Setenta, os salmos são cento e cinquenta. A numeração atual deve-se a São Jerônimo. Devemos ter presente que a divisão da Bíblia hebraica em capítulos e versículos ocorreu muito mais tarde, num período que abarca os séculos iv-viii d.C. O Saltério foi sempre considerado como um verdadeiro e único livro, ainda que essa unidade tenha sido querida pelos redatores finais da Bíblia: por isso, os comentários exegéticos prescindem muitas vezes da individualização das ligações internas, preferindo aludir apenas a cada uma das composições, operação certamente legítima até mesmo nos últimos decênios, quando amadureceu uma sensibilidade que tende a juntar cada um dos poemas e ligá-los a um tema comum. No interior do Saltério, de acordo com São Gregório de Nissa, existem elementos que permitem estruturá-lo em cinco partes: 1-41: primeiro livro; 4272: segundo livro; 73-89: terceiro livro; 90106: quarto livro; 107-150: quinto livro. A presença de cinco livros evidencia a vontade dos redatores finais de compararem o Saltério com os primeiros cinco livros da Bíblia (Pentateuco), conferindo-lhes um valor fundador análogo. Como no Pentateuco se narra o 9

início da história da salvação (criação, eleição, escravidão, libertação, dom da Lei), assim no Saltério se apresenta o itinerário do caminho espiritual do piedoso israelita. O louvor que conclui cada um dos livros e todo o Salmo 150, hino totalmente doxológico, atestam o ponto de chegada para o qual tende a descrição sálmica: apesar das provações e da infidelidade, do pecado do povo e dos indivíduos, a promessa do Senhor permanece estável, assegurando aos israelitas a recuperação da saúde do corpo e a comunhão do espírito. Normalmente, pensa-se que o contexto natural dos Salmos é o Templo de Jerusalém ou então um ambiente ligado ao estudo da Escritura na sinagoga. Não se deve, todavia, confundir o lugar em que as composições foram celebradas e seguramente reelaboradas com o contexto que inspirou a intuição poética e espiritual. Os Salmos, tendo a sua origem na vida quotidiana, e precisamente por essa razão, pretendem exprimir poeticamente todas as suas estações, tanto as verdejantes e fecundas como as outonais e áridas. Os Salmos, portanto, são poesias de temas religiosos, e para os compreender em profundidade é necessária uma dupla competência: a poética, para se entenderem as delicadezas que a poesia hebraica exprime; e a de fé, para lhes intuir o valor espiritual. Por último, o Saltério narra o homem. E isso explica a riqueza ilimitada da simbologia utilizada. Segundo uma expressão que se tornou célebre, os cento e cinquenta Salmos constituem um “microcosmos” que alberga em si todo o período espaçotemporal do ser humano colhido na sua unidade psicofísica: o homem é espírito, coração, imaginação, e quando pensa em Deus e vive a sua fé de modo pessoal, o faz com todo o seu ser. Não é apenas inteligência, intelecto ou fria soma algébrica de variáveis. Um papel importante é desempenhado pelos símbolos que exprimem o “sabor” da teologia e, em última análise, da existência. São três as categorias fundamentais que narram o homem simbólico. A primeira é a vertical: “o homem de pé” numa linha ascendente-descendente, preso no seu processo de elevação moral e social. Pense-se no símbolo de cetro (2,9; 45,7; 60,9; 108,9), no templo sobre o monte (147), no escravo que eleva o olhar para o seu senhor (123,1), até nos nomes divinos «Deus Altíssimo», «Deus das montanhas» ou «Deus das alturas» (92,9; 93,4; 102,20). A segunda categoria é a horizontal: “o homem sentado”, em sinal de intimidade. Pense-se nas 10

referências de utilização do verbo habitar, demorar, permanecer (yasab), e nos lugares em que se habita: a casa (26,8; 84,5; 101,7; 113,9), o templo (11,4; 27,4; 65,5), a cidade-refúgio (18,3; 62,3.7; 144,2). Finalmente, a terceira categoria é a dinâmica e temporal: “o homem a caminho”. Aqui domina a imagem do “caminho” (derek), que indica não só a estrada, mas também a conduta moral (a imagem dos dois caminhos diz respeito ao bem contraposto ao mal). Não é apenas um símbolo geográfico, mas também de existência (orientação de vida: 49,14; 119). O movimento pode ser ascendente (para o templo, nos Salmos 120134) ou ligado à passagem do tempo (16,10-11). Permanecendo na simbologia espacial, podemos dizer que os Salmos seguem uma linha quádrupla: a vertical-teológica, em direção ao céu e a Deus; a horizontal-antropológica, na direção do homem; a horizontal-cosmológica, em relação à criação; e a vertical do além-túmulo, relativa ao mundo das trevas que, no imaginário hebraico, se situa no subsolo.

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OS

A

DEZ

SALMOS

DA

MISERICÓRDIA

Misericórdia é uma das características divinas que o Saltério mais evidencia. Existem, de fato, poemas a que podemos chamar «Salmos da

Misericórdia», nos quais se vê o agir amoroso do Senhor com o qual Ele se dirige aos seus fiéis. A palavra “Misericórdia” (hésed) possui uma forte riqueza de significados e por isso é traduzida de várias maneiras: ternura, graça, misericórdia, indulgência, bondade, benevolência, amor. Esse vocabulário revela um traço surpreendente de Deus: o da maternidade. Se existe um lugar onde vive a hésed divina é o ventre, as vísceras (rahamim): as vísceras maternais de Deus comovem-se ao ponto de perdoar o grande pecado cometido (IS 49,15; SL 103,13). No mundo bíblico, a parte mais íntima em que têm sede os sentimentos é precisamente o ventre/ /seio, e isso cria uma forte aproximação entre a Misericórdia e a geração da vida: «dar à luz a Misericórdia» equivale a «pôr no mundo a vida». Os Salmos dão voz ao homem e ao seu corpo. E é precisamente através do corpo e dos seus membros que a oração encontra as suas modulações, os seus ritmos, os seus tempos, os seus espaços. Não é que a alma ou o espírito não estejam envolvidos, mas a Bíblia tem uma concepção “carnal” do homem, no sentido mais espiritual do termo: não existe um corpo separado da sua alma, nem uma alma desligada do seu corpo. Quando o homem reza, ama, sofre, louva, quando, numa palavra, vive, o faz com todo o seu ser, na sua totalidade psicofísica. Talvez, durante demasiado tempo, certa visão cristã insistisse, excessivamente, apenas sobre a dimensão racional, deixando em segundo plano a corporal, dando a entender que a forma de oração mais nobre seria a do pensamento. Com a recuperação da antropologia bíblica, também se recuperou a “carne da fé” e, com isso, a dimensão existencial que atravessa as grandes narrações da Bíblia, de Abraão a Jesus Cristo. Os Salmos dão voz ao corpo, ou, fazendo lembrar uma célebre expressão de P. 12

Beauchamp, são a oração do corpo: «O instrumento frágil da oração, a harpa mais sensível, o mais diáfano obstáculo contra a malvadez humana, isso é o corpo. Parece que, para o salmista, tudo se joga aí, no corpo. Não é que seja indiferente à alma, mas, pelo contrário, porque a alma não se exprime e não transparece senão através do corpo. O Saltério é a oração do corpo. Nele a meditação exterioriza-se tomando o nome de “murmúrio”, “sussurro”. O corpo é o lugar da alma e, portanto, a oração atravessa tudo o que se produz no corpo. É o corpo quem reza: “Todos os meus ossos dirão: ‘Quem como Vós, Senhor?’”». A apresentação dos Salmos da Misericórdia – algumas das composições mais significativas ligadas a este tema, espalhadas pelos cinco livros do Saltério – dá muita atenção a este dado somático. Tal riqueza antropológica não só justifica a visão bíblica acerca do homem, mas espelha também o rosto com que Deus se decidiu dar a conhecer, Ele que fala uma linguagem que todos podem entender e que se entretém com os homens, falando-lhes como a amigos (cf. Dei Verbum, n. 2).

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I

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15

Salmo 25

1

De Davi. A ti, Senhor, minha alma se eleva. 2

Meu Deus, em ti ponho minha confiança, que eu não fique decepcionado. Que meus inimigos não cantem vitória sobre mim, 3

pois aqueles que em ti confiam não ficam decepcionados. Ficam decepcionados os traidores fracassados. 4

Faze-me conhecer, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas estradas. 5

Dá-me instrução em tua verdade, ensina-me que tu és o meu Deus e o meu Salvador. Em ti espero todos os dias. 6

Lembra-te, Senhor, de tua compaixão e de tua lealdade, pois elas duram para sempre. 7

Não leves em conta os pecados de minha mocidade, nem minhas transgressões, por tua lealdade. Senhor, em tua bondade lembra-te sempre de mim. 8

Bom e reto é o Senhor, pois ensina o caminho aos pecadores. 9

Ele encaminha os pobres de acordo com o direito, e ensina aos pobres o seu caminho. 10

Todos os caminhos do Senhor são lealdade e verdade para os que guardam sua aliança e seus preceitos. 11

Por teu nome, perdoa a minha falta, Senhor, por grande que ela seja. 12

Qual é o homem que teme ao Senhor? É Senhor quem lhe indica o caminho que deve seguir. 13

Sua vida residirá na felicidade, e sua descendência herdará a terra. 14

A intimidade do Senhor é para aqueles que o temem, e sua aliança lhes dá a conhecer. 15

Meus olhos estão sempre fixos no Senhor, pois ele retira da rede os meus pés. 16

Volta-te para mim e tem piedade de mim, pois estou sozinho e sofrido. 17

Faze morada em meu coração aflito, liberta-me das minhas angústias.

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18

Presta atenção ao meu sofrimento e fadiga, e perdoa todos os meus pecados. 19

Presta atenção nos meus inimigos que se multiplicam, e me odeiam com ódio violento. 20

Guarda minha vida e liberta-me. Que eu não fique envergonhado, pois em ti me abriguei. 21

Integridade e retidão irão me proteger, pois espero em ti. 22

Ó Deus, liberta Israel de todos os perigos.

O Salmo 25 tem uma estrutura inspirada no alfabeto hebraico. Esta articulação (acróstico alfabético que também se encontra noutros Salmos) tem uma função mnemônica e uma alusão à totalidade, que abrange toda a experiência pessoal. A composição apresenta-se como uma súplica individual: o orante sente-se atormentado pelos seus inimigos e dirige-se confiantemente a Deus, para que o livre desta situação. O Salmo apresenta, além disso, uma estrutura inspirada na sua qualidade rítmica, que descreve o coração da composição sobre o tema do “caminho”. V. 1. É a antífona inicial que traduz a atitude exigida de quem ora; é como se desse esta indicação: «Elevar a alma»; como sucede no convite do prefácio: «corações ao alto». A alma (néfesh) é uma palavra cujo significado nasce do som com que se pronuncia: o primeiro sentido é garganta, pela qual passa a respiração e, por fim, a ânsia do homem, o seu desejo de ser. A visão bíblica do homem nunca é dicotômica (a parte espiritual contraposta à física), mas unitária. Aqui indica a própria vida do homem, e é com todo o seu ser que o orante deseja elevar-se e alcançar espiritualmente a esfera divina. V. 2-3. Confiança, esperança e desilusão. O salmista professa a sua confiança em Deus, exprimindo o desejo de não ficar decepcionado; as razões de tal esperança não se encontram ulteriormente especificadas neste versículo, porque isso será feito ao longo de todo o poema; nesta estrofe inicial encontra-se a confiança incondicional em Deus. O que é que o salmista teme? De quem ou de que coisa quer ser liberto? O v. 2 fala de «inimigos», e o v. 3 de «traidores»; a expressão «ficam decepcionados os

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traidores fracassados» poderá aludir ao vocabulário da aliança/pacto (Os 6,7; Ml 2,11; Sl 78,57), especificando o pecado de idolatria, porque os conceitos de inutilidade e de futilidade são normalmente alusões a deuses que, precisamente, não têm consistência por não existirem («têm boca e não falam… têm ouvidos e não ouvem… têm pés e não andam», Sl 115,4-7). Portanto: se o orante exprime toda a sua confiança em Deus, sabendo não ter posto em vão os seus sentimentos, deseja que os inimigos/traidores façam, por sua vez, a experiência do “nada”. Vv. 4-7. Faze-me conhecer os teus caminhos. Abundam os termos relativos ao caminho, à estrada, às veredas, aos passos que se dão, tal como parece claro o convite dirigido a Deus (sob a forma de imperativos) para que seja luz e nos conduza. As veredas são, evidentemente, uma metáfora alusiva à conduta moral que o orante deseja aprender diretamente de Deus («Faze-me conhecer, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas estradas», v. 4). O tema dos “dois caminhos” (o do bem e o do mal) é típico da tradição sapiencial (Pr 9) e encontrase também muitas vezes no Saltério: o assim chamado “portal” do Livro dos Salmos, ou seja, os Salmos 1 e 2, sugere a ideia de que quem seguir o caminho do Senhor, meditando na Lei e evitando as veredas do mal, terá uma vida rica e feliz; mas quem, pelo contrário, seguir o mal será dizimado como palha que o vento leva. Típica da tradição sapiencial é também a imagem escolástica do v. 5 («ensina-me»): na escola da sabedoria, o discípulo aprende a arte do caminho reto e, sobretudo, adquire o discernimento necessário para não seguir os maus caminhos e não se deixar convencer pelas suas propostas falaciosas (Pr 1,8-19; 2; 7). Vv. 6-7. Com um quinto imperativo («lembra-te») o orante faz apelo direto à misericórdia divina e à bondade de Deus. Parece quase estranho que Deus deva ser obrigado a lembrar-se da oração do homem, ainda que se deva ter presente que tal convite é uma passagem típica das súplicas. A oração do escriba Esdras coloca-se, por exemplo, no continuum da história da salvação, e o fazer memória dos prodígios divinos (anamnese) prepara a invocação no “aqui e agora” (epiclese), antecipando a futura presença, esperada com confiança e abandono (Esd 9). 18

Misericórdia (rahamim) e fidelidade (hésed): como já se explicou, o Senhor tem um seio materno e sabe amar com a mesma intensidade de uma mulher que ama o próprio filho. Essa Misericórdia caracteriza o agir divino no seu íntimo e é uma característica inscrita, por assim dizer, no seu DNA («é eterna», v. 6), tal como recita o Salmo 78, uma longa meditação sobre o pecado do povo e a indulgência divina: «Ele porém, compassivo, perdoava as iniquidades e não os destruía; muitas vezes aplacava sua ira e não demonstrava todo o seu furor. Pois se lembrava de que vocês eram apenas carne, um sopro que vai e não volta. Quantas vezes o provocaram no deserto e o irritaram na estepe!» (78,38-40). Em nosso Salmo assiste-se a uma espécie de inversão de papéis: se é verdade que o mestre é sempre Deus, também o é que o orante sabe bem qual é o objeto do seu pedido, e isto o leva a “instruir” o Senhor de como Ele deve proceder: «Não leves em conta os pecados de minha mocidade» (Sl 25,7). O efeito desta inversão de papéis é a maior tomada de consciência do próprio pecado, que assume mais intensidade precisamente no confronto com a misericórdia divina. O salmista, já ancião, conhece o seu estado de grave transgressão. O primeiro termo «pecado», em hebraico hatta’t, um vocábulo que, mais do que os outros, até mesmo pela sua maior generalidade, é o registo com que é indicado o «pecado» na Bíblia (aparece

quinhentas

e

noventa e

cinco

vezes).

Etimologicamente, sugere a ideia de faltar/falhar o objetivo (amartías em grego); no sentido metafórico, reenvia para a incompletude em atingir o objetivo moral e religioso. Quem comete hatta’t não segue a trajetória reta, mas desvia-se, afastase do objetivo: se os fundibulários benjaminitas eram hábeis em acertar com a funda num fio de cabelo sem errar (Jz 20,16), o pecador nem sequer lhe consegue tocar. O segundo termo com que o pecado é denominado é pesha e tem um vasto leque de significados: o profeta Amós, nos oráculos contra as nações, especifica a casuística do pecado, ligando a este substantivo os delitos políticos relacionados com alianças que desagradavam ao Senhor e a deportações em massa, a violência sobre os débeis, ao desprezo da lei de Deus profanando o templo e apropriando-se das ofertas a Ele destinadas e a práticas que causam impurezas. O termo pesha, de fato, diz respeito quer aos pecados sociais, quer ao pecado de infidelidade contra Deus. 19

Vv. 8-11 B. O caminho da aliança. O coração do nosso Salmo está representado nos vv. 8-11 e 12-15 (B e B’). O tema do caminho e da aliança constitui o traço específico desta estrofe (cf. Sl 119). De forma repetida são descritas as qualidades que pertencem a Deus (bondade, retidão, amor, fidelidade), reiterando também o conceito de Deus como mestre (vv. 8-9) e o convite ao perdão já evocado na estrofe precedente (v. 11). Os alunos aos quais o Senhor dirige as suas lições são os pecadores e os pobres. A primeira palavra é hatta’t e dela já especificamos o sentido (“aquele que falha o objetivo”); a segunda palavra é ’anawim e indica, antes de tudo, os pobres do ponto de vista material (Pr 14,21; Am 2,7); a partir deste primeiro significado, o termo pretende indicar os que, conscientes da sua própria condição de pequenez e fragilidade, colocam a sua confiança unicamente em Deus (Sl 69,33; 149,4; Is 29,12; também Lc 6,20). Agora torna-se mais claro o sentido do v. 2: o salmista coloca-se no caminho destes “humildes” que tudo esperam de Deus e que estão conscientes do seu estado de pecado («por teu nome, Senhor, perdoa a minha falta, por grande que ela seja», v. 11). O tema da aliança é central para o salmista, porque ele sabe que a misericórdia divina está ligada ao respeito pela aliança. O termo berít tem uma primeira e imediata ligação ao pacto entre dois contraentes que “decidem” uma aliança (karat berít), ou seja, definem um acordo, dividindo em duas partes um animal: os dois passam pelo meio do animal, comprometendo-se reciprocamente a observar tudo o que foi contratado, fazendo votos de que a mesma sorte do animal recaia sobre quem infringir o pacto. Em Gn 15, encontra-se uma passagem muito importante, relativa a esta prática, pela qual Deus convida Abraão a dividir os animais em duas partes: mas é somente Deus quem passa pelo meio dos animais esquartejados, querendo significar a autoassunção do vínculo, porquanto ele é o único garante do respeito que esta aliança exige, comprometendo-Se na primeira pessoa (aliança unilateral). Fala-se, ao invés, de aliança bilateral em Ex 19-20: Israel terá uma relação especial com YHWH, mas deverá respeitar o Decálogo (é o sentido do nosso Salmo). O orante, embora consciente do seu pecado, abre-se com a confiança dos “pequeninos” à Misericórdia divina esperando o perdão. 20

Vv. 12-15 B’. O caminho da aliança. Volta novamente o tema do temor do Senhor e da aliança. A reflexão move-se nas coordenadas teológicas clássicas que ligam a fidelidade de Deus ao bem-estar (saúde e descendência): anteriormente expusemos o tema da retribuição, segundo a qual o fiel vê nos bens terrenos o sinal da bênção. Riqueza, prole e terra são, por isso, os dons divinos para quem observa a aliança, juntamente com o conhecimento do mistério de Deus e da proteção que Ele concede aos seus amigos (ser libertos da rede como um pássaro da gaiola: Sl 31,5; Pr 6,5; 7,3). A frase «A intimidade do Senhor é para aqueles que o temem» (Sl 25,14) pode ser explicada lembrando a passagem maravilhosa de Gn 18; o sod, em hebraico, é o conselho/segredo que um amigo revela ao seu íntimo amigo (Pr 24,29); na narrativa de Sodoma e Gomorra, o Senhor avisa Abraão do seu propósito de destruir aquelas cidades: «O Senhor disse: “Esconderei de Abraão o que vou fazer, uma vez que ele será uma nação grande e poderosa, e nele serão abençoadas todas as nações da terra? Vou descer, para ver e conferir se já chegou ao extremo o clamor que subiu até mim contra eles”. Abraão tomou a iniciativa e perguntou: “Será que vais varrer o justo com o injusto?» (Gn 18,17-18.21.23). Inicia-se uma negociação amigável entre Deus e Abraão, segundo a qual Abraão obteria a salvação das cidades, caso nelas se tivessem encontrado pelo menos dez justos. Podemos dizer o seguinte: o salmista declara que a aliança torna o Senhor tão íntimo do seu fiel, ao ponto de não querer lhe esconder nada. Por fim, uma palavra sobre o tema da terra: é inegável que, na origem do termo, está uma alusão à terra de Canaã, a terra prometida (Dt 26,5-9; Js 24,213); mas, no decurso da reflexão teológica, este tema sofreu um processo de espiritualização, ao ponto de “terra” aludir a outro lugar não já estritamente localizado dentro dos confins de Israel. A terra significa não só a vida plena que o Senhor dá neste mundo (Pr 2,21-22), mas também uma vida para além da morte (Mt 5,5). Vv. 16-19A’. «Volta-te para mim e tem piedade.» A oração chega à invocação direta de Deus e da sua piedade. A súplica do salmista quer chamar a atenção sobre a sua dupla condição miserável. Ele, de fato, está totalmente submerso no 21

pecado (tal como aparece ao longo de todo o poema), está só e impotente perante os seus inimigos. Nos vv. 2 e 3 foram mencionados os inimigos e os traidores, mas aqui percebemos que eles são numerosos e empenhados na perpetuação do mal (v. 19). A expressão «com ódio violento» soa assim literalmente: eles “odeiam com ódio de violência”, uma repetição que provoca um efeito redundante ao entender os malvados como intrinsecamente maléficos. Todavia, se observarmos bem, a mesma expressão mostra que a realidade mais angustiante para o salmista parece ser o pecado: se é verdade que o inimigo está no exterior, é igualmente verdade que assusta muito mais a condição de privação da graça de Deus: somente perante o próprio pecado o orante sente a angústia mais pavorosa (cf. Sl 51). Vv. 20-21. Confiança, esperança e desilusão. Estes temas já apareceram no início (vv. 2 e 3). No fim do Salmo, emergem os estados de alma que abriram o poema, mas com uma diferença: agora, o ancião orante declarou abertamente a sua condição e pode com maior confiança abrir-se à misericórdia divina, esperando o perdão. Manifestar o próprio pecado, de fato, é a precondição para obter o perdão (Sl 51,5). V. 22. Este versículo final é uma releitura da comunidade pós-exilada do Salmo. É significativo notar a extrema adaptação da oração sálmica: a comunidade acolhe o grito de um sofredor e sente-o como particularmente condizente com a sua própria condição. A perspetiva do indivíduo coloca-se num contexto de fé muito mais amplo em relação à condição inicial. Isto enriquece o Salmo porque lhe confere um impulso espiritual muito mais profundo e “eclesial”.

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II

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Salmo 41

1

Do mestre de canto. Salmo. De Davi.

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Feliz quem cuida do explorado: O Senhor o colocará a salvo no dia da aflição. 3

O Senhor o protegerá e lhe preservará a vida, a fim de que tenha felicidade na terra, e não o deixará aos caprichos dos inimigos. 4

O Senhor o sustentará no leito da enfermidade, e lhe mudará a sorte na cama onde definha. 5

Eu disse: “Senhor, tem piedade de mim! Cura minha alma, pois pequei contra ti!” 6

Meus inimigos blasfemaram contra mim: “Quando é que ele vai morrer e perecer o nome dele?” 7

Quando algum deles vem me visitar, fala ao vento, seu coração é um amontoado de iniquidades, e quando vai embora, é disso que fala. 8

Todos os que me detestam cochicham juntos contra mim. Eles, contra mim, planejam o mal: 9

“Algo perverso o contagiou, e agora, estendido na cama, não voltará a se levantar!” 10

Até o amigo, no qual eu mais confiava, e que comia do meu pão, ergueu contra mim o calcanhar. 11

Mas tu, Senhor, tem piedade de mim! Faze-me levantar, e lhes cobrarei o que me devem. 12

Então saberei que tens apreço por mim, se sobre mim o inimigo não triunfar. 13

Quanto a mim, és tu quem me sustenta na minha honestidade, és tu quem me manterá para sempre diante da tua face. 14

Seja bendito o Senhor, o Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém! Amém!

Neste Salmo domina o tom da súplica: um doente dirige-se ao Senhor para ser liberto da sua enfermidade, na sólida certeza de que a sua oração será atendida, porque o Senhor é piedoso. A indicação inicial da composição é muito genérica («Do mestre de canto. Salmo. De Davi»), e não o permite ligar a uma situação 25

histórica específica. Podemos subdividir o poema em quatro partes: hino sapiencial (vv. 2-4), lamento contra os inimigos (vv. 5-10), profissão de fé (vv. 11-13), releitura comunitária (v. 14). Vv. 2-4. Hino sapiencial. «Feliz quem» é uma frase que caracteriza diversos Salmos (32,1-2; 84,6.13; 112,1; 127,5). Com esta bem-aventurança somos introduzidos no Saltério (Sl 1,1), apresentando a condição de quem se aproxima com confiança do Senhor: ele será feliz porque gozará de uma proteção especial do Senhor, que, não só não o abandonará, mas protegê-lo-á, sobretudo nos momentos mais difíceis. A “porta” de entrada no Saltério (ou seja, os Salmos 1 e 2) descreve na bem-aventurança a antífona que acompanha a leitura de todo o livro: nos acontecimentos alegres e tristes, ao longo da extensa lista das situações da vida que os diferentes poemas apresentam, esta bem-aventurança é reservada aos fiéis que amam a Deus e se fazem solidários com o próximo. No Salmo 41, é a atitude da compaixão a ser elogiada: «Feliz quem cuida do explorado». A lógica do versículo é a seguinte: se alguém se aproxima de uma pessoa em dificuldades, de um pobre (o termo é usado para os pobres em sentido físico, cf. Am 2,7), de um fraco e/ou de um oprimido em geral, receberá o mesmo tratamento. Intitulamos esta primeira estrofe de “hino sapiencial”, porque está tecida com palavras dos mestres de Israel relativamente à caridade para com o próximo; se alguém sai em socorro de um irmão será, por seu lado, ajudado no momento de necessidade: «Quem tapa o ouvido ao clamor do fraco, também não terá resposta quando clamar» (Pr 21,13). Se observarmos bem a tradição sapiencial, apercebemo-nos de que esta caridade tem também outras motivações que superam a simples realidade egoísta do do ut des (eu dou para que me dês), porque o gesto em favor do oprimido está carregado de uma dimensão teológica: «Quem doa ao pobre, empresta ao Senhor, que lhe dará a recompensa» (Pr 19,17), e ainda: «Quem oprime o pobre, ofende a Deus, mas presta-lhe honra quem tem misericórdia do indigente» (Pr 14,31). Os vv. 3-4 do Salmo 41 reproduzem, quase à letra, esta mesma lógica que leva a não separar o amor a Deus do amor ao próximo, tal como Jesus explicitará no seu ensinamento: Mt 22,36-40; Lc 10. 26

Vv. 5-10. Lamento contra os inimigos. No pensamento bíblico encontra-se muito enraizada a lógica a que chamamos “retributiva”, segundo a qual a doença é sinal de pecado, e quanto mais crônica ela for, mais grave é a transgressão cometida. A relação delito-castigo encontra-se também nas palavras do orante, que invoca sobre si o perdão divino: reconhecendo, pois, a própria culpa, ele espera a sua cura. Vv. 5-8. Uma afirmação semelhante encontra-se também na narrativa de Jó, que, sentindo-se pobre e doente com lepra, é convidado pelos seus amigos a reconhecer o seu pecado para obter a cura; deveria, de algum modo, “chegar a um acordo” para alcançar uma redução de pena. Elifaz – um dos três amigos de Jó que o visitam depois de o saberem doente – interpela-o com estas palavras: «Mas, por mim, eu procuraria a Deus, e poria minha causa sob seus cuidados. Ele faz coisas grandiosas e insondáveis, e maravilhas sem conta: é ele quem dá chuva para a terra, e irriga a superfície dos campos, para elevar os que estão embaixo, e fazer chegar aos aflitos a salvação. Ele frustra os planos dos espertos, para que as obras de suas mãos fracassem. Veja: feliz o homem a quem Deus corrige! Por isso, não despreze a lição do Todo-Poderoso. Pois é ele quem causa dor e cuida do ferimento, é ele quem fere e cura com sua própria mão» (Jó 5,812.17-18). Jó não seguirá o conselho do amigo; o nosso salmista propõe, pelo contrário, este ato de arrependimento, porque não parece preocupado com o castigo divino, pois confia em Deus, mas teme a presença dos inimigos. Podemos quase imaginar a cena: uns supostos amigos (ou pelo menos uns conhecidos) vão visitar o doente e, em vez de lhe desejar o bem e as rápidas melhoras, desejamlhe a morte. A falsidade de suas intenções torna particularmente desagradável a sua visita, até porque eles, ao saírem da casa do doente, desafogam a sua maledicência (vv. 6-8). V. 9. O que justificará tanta falsidade? Por que tanto ódio? Este versículo cita uma das frases pronunciadas pelos falsos amigos: «Algo perverso o contagiou, e agora, estendido na cama, não voltará a se levantar». «Algo perverso» é literalmente uma “coisa de Beliar”. Beliar poderá também ser entendido como “algo que não serve para nada”, se bem que seja usado no rabinismo como uma 27

palavra que sugere uma espécie de personificação de Beliar, um demônio do mal (cf. 2Cor 6,15: «Que acordo pode haver entre Cristo e Beliar? Ou, o que existe de comum entre aquele que crê e aquele que não crê?»). A aproximação entre doença e presença de um ser demoníaco encontra-se também já presente na narrativa de Jó em que Satanás é quem provoca toda a desgraça (Jó 1-2), tal como o demônio Asmodeu é causa da impossibilidade de Sara arranjar um marido (Tb 3,8.17). Tal comparação foi desejada pelo salmista para criar um efeito superlativo (obviamente negativo): a entidade da doença possui algo de sobre-humano, de insuportável, a sua gravidade não é comum, mas “extraordinária”, e portanto também o pecado que a causou tem algo de demoníaco. O que justifica, portanto, a malevolência dos “amigos”? Não existe uma resposta para esta pergunta: permanece um mistério a satisfação gratuita ligada à desgraça alheia. Podemos somente pensar que, quando nos fechamos em lógicas teológicas punitivas (quando se considera a doença como uma punição do pecado), se culpabiliza duramente aquele que sofre. V. 10. O hábito de visitar os doentes é conhecido na Bíblia (2Sm 13,5-6; 2Rs 8,29; Jó 2,11-13; 35,11; no Novo Testamento: Tg 5,14). E isto torna o conteúdo do v. 10 particularmente doloroso: «Até o amigo, no qual eu mais confiava, e que comia do meu pão, ergueu contra mim o calcanhar». Quando um amigo atraiçoa, há sempre um misto de surpresa e de desilusão (cf. Judas que traiu Jesus). Os gestos de intimidade (comer juntos) são evocados com particular angústia e lidos à luz da nova situação de solidão. O Livro dos Provérbios sentencia uma verdade um pouco incômoda, mas que ajuda a interpretar o nosso Salmo: «O pobre é detestado até por seu próprio companheiro, mas o rico é amado por muitos» (Pr 14,20), onde por «pobre» se pode entender o desafortunado, o doente. O orante estaria à espera de um pouco de apoio por parte do amigo, porque a verdadeira amizade se mede na desgraça (Pr 17,17; 27,10), e, pelo contrário, a sua inexplicável hostilidade torna ainda mais dolorosa a doença. Vv. 11-13. Profissão de fé. O v. 11 refere o verbo da compaixão e da misericórdia (hanan, que já apareceu no v. 5). O salmista tem plena fé em Deus, por ter sido liberto dessa condição indigna. Estamos ainda na lógica retributiva, segundo a 28

qual se invoca a justiça divina para que exista uma inversão da sorte do oprimido, lógica inspirada pelo desejo de verdade: se os falsos amigos duvidam da integridade daquele que sofre – porque, segundo a própria e limitada perspectiva, ele merece o mal –, o doente pede justiça e quer ser reconhecido oficialmente na sua nova condição de saúde física e moral. Às vezes omitem-se precipitadamente estes dados: a justiça pede um juízo, porque o risco de confundir o bem com o mal poderia induzir o oprimido a questionar a ideia de um Deus bom e retribuidor, além de inspirar nos malfeitores um sentimento de impunidade. Concretamente, o Salmo 41 não diz mais nada. Alargando a perspectiva, poder-se-ia dizer que um juízo é necessário, ainda que ele ultrapasse a percepção humana de justiça, de culpa, de castigo, de responsabilidade. O Salmo 41 permite-nos dizer que o juízo divino é misericordioso. A libertação do mal é entendida como um ato de profundo amor para com o Senhor: o orante alegra-se com a sua presença, sentindo um gosto especial na recuperação da saúde («amparai-me», aqui há um qum, ou seja, um pôr-se de pé) e por poder caminhar novamente (pelos próprios pés e na fé). V. 14. Releitura comunitária. Como já mencionamos, a experiência única e irrepetível do orante é acolhida no patrimônio de fé da comunidade e consignada à oração de todos. Neste versículo, a bênção dirigida ao Senhor e a menção de Israel fecham a composição, conferindo-lhe um tom positivo e doxológico. A palavra final «amém» tem, seguramente, a função de assinalar o fim do primeiro livro do Saltério (1-41), mas serve igualmente para enfatizar a fé em Deus, que atende a oração dos necessitados.

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III

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Salmo 42

1

Do mestre de canto. Poema. Dos filhos de Coré.

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Assim como o cervo suspira pelas águas correntes, assim minha alma suspira por ti, ó Deus! 3

Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando terei a alegria de ver a face de Deus? 4

Minhas lágrimas são o meu pão, dia e noite, e o dia todo me perguntam: “Onde está o seu Deus?” 5

Ao me lembrar dessas coisas, minha alma se derrete em meu ser; quando eu peregrinava, junto com todo o povo, e caminhava para a casa de Deus, entre gritos alegres e louvores, em meio à multidão em festa. 6

Por que você está encurvada, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!” 7

Minha alma se curva dentro de mim, e assim me lembro de ti, desde a terra do Jordão e do Hermon, e do monte Menor. 8

Um abismo chama por outro abismo, ao fragor das cascatas; todas as tuas ondas passaram por cima de mim. 9

À luz do dia, o Senhor manda o seu amor, e pela noite eu cantarei uma oração ao Deus da minha vida. 10

Digo a Deus, a ele que é o meu rochedo: “Por que te esqueces de mim? Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo? 11

Enquanto quebram os meus ossos, meus opressores me insultam, perguntando ao meu redor o dia todo: “Onde está o seu Deus?” 12

Por que está encurvada, ó minha alma,

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gemendo dentro de mim? Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”

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IV

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Salmo 43

1

Julga-me, ó Deus, defende a minha causa contra uma nação sem piedade! Liberta-me do homem perverso e fraudulento, 2

porque tu és o meu Deus e o meu abrigo. Por que me rejeitas? Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo? 3

Envia tua luz e tua verdade: elas me guiarão e me levarão ao teu monte santo, ao teu santuário. 4

Irei até o altar de Deus, ao Deus da minha alegria e júbilo. Eu te celebrarei com a harpa, ó Deus, ó meu Deus! 5

Por que está encurvada, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”

Estas duas composições eram originalmente um único Salmo. A estrutura evidencia a presença de um refrão que se repete identicamente três vezes: «Por que está encurvada, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Espere em Deus, e eu ainda o louvarei: “Meu Deus, salvação da minha face!”» (v. 42,6.12; 43,5). Isto permite dividir o texto em três estrofes: 42,1-6: o passado; 42,7-12: o presente; 43,1-5: o futuro. 42,1-6. Nostalgia do passado. Um pensamento, uma imagem: o cervo! Na busca ansiosa pelo animal, o poeta projeta o seu estado de alma e descobre-se à procura inquieta de Deus. Este animal indica o desejo profundo (em Pr 5,19, a mulher é descrita como uma gazela amada) e a fecundidade (Gn 49,21), o amor juvenil e vivaz (o amado no Cântico dos Cânticos é apresentado como um filhote de cervo, 2,9.17; 8,14). A alma de quem ora ansiosamente a Deus, o homem com toda a sua néfesh (alma, respiração, ânsia, vida) lança-se na direção do rosto do Senhor. Mas uma pergunta trava este imparável impulso: «Quando irei contemplar a 36

face de Deus?» (v. 3). Poder contemplar a face de Deus é um desejo que atravessa muitas páginas do Antigo Testamento (e também do Novo: cf. Jo 14,18-19); todo o Salmo 27 não é senão uma ladainha sobre a procura do rosto [de Deus]: «Meu coração medita em ti: “Procurem a minha face!” É a tua face, Senhor, que eu procuro. Não escondas de mim a tua face. Não afastes teu servo com ira, pois tu és o meu socorro! Não me abandones, nem me desampares, meu Deus e minha salvação!» (Sl 27,8-9). E, no entanto, o homem não está ainda pronto para este encontro, até mesmo porque sabe que somente os retos de coração podem ter acesso a Ele («os homens retos contemplarão a sua face», Sl 11,7): por isso, difundiu-se a convicção de que quem vê a Deus não pode continuar com vida (Ex 33,20), embora alguns privilegiados tenham conseguido tal encontro (Dt 5,24). O salmista encontra-se afastado da face de Deus: talvez esteja no exílio, e a recordação do tempo em que peregrinava até o Templo, participando nas procissões alegres e ricas de cânticos litúrgicos, torna este afastamento muito mais amargo (Sl 42,5); a expressão «vinde ver a face de Deus» é clássica e descreve a entrada solene do povo no Templo (Sl 11,7; 16,11; 17,15; Is 1,12). A minha alma consome-se: recorre ao verbo shafak, que significa dissolver, esvaziar, virar de pernas para o ar (Ex 4,9; Ez 22,31) e descreve o estado de desgaste interior do salmista (ele sente-se “cansado”, “desfeito”). As lágrimas como alimento («Minhas lágrimas são o meu pão, dia e noite», Sl 42,4) são uma metáfora da dor profunda e prolongada (Sl 80,6: «Tu o sustentas com pão de lágrimas, e lhe sacias a sede com lágrimas em abundância»; Sl 102,10: «Porque eu como cinza em lugar de pão, e com lágrimas misturo as minhas bebidas»). É neste estado de prostração que o orante se levanta e faz uma pergunta teológica: «Onde está o seu Deus?» (Sl 42,4). Este grito blasfemo e sarcástico é pronunciado, provavelmente, pelos opressores (os babilônios) que interpretam a derrota de Israel e o exílio, conforme as concepções religiosas do antigo Oriente Médio, como uma forma de fraqueza da divindade. A pergunta do nosso Salmo torna ainda mais penosa a condição do orante e ocorre também noutras passagens bíblicas: «Por que diriam as nações: “Onde está o seu Deus?”» (Sl 79,10; ainda o Sl 115,2; Gl 2,17; Mq 7,10). 37

A experiência mais emblemática do silêncio de Deus na Bíblia é certamente a de Jó, num mutismo que leva a duvidar da bondade divina: «Eu grito para ti, e tu não me respondes. Eu fico diante de ti, e tu não te importas comigo. Tu te transformaste em meu carrasco, e me atacas com a força de teu braço. Tu me levantas ao vento, sobre ele me fazes cavalgar e me dissolves no furacão. Pois eu sei que tu me devolves para a morte, para a morada do encontro de todos os seres vivos» (Jó 30,20-23). E, já chegado ao extremo da resistência, chega a suspirar: «Oxalá houvesse alguém para me ouvir! […] Que o Todo-poderoso me responda» (31,35). O silêncio de Deus, pois, apresenta-se mais lacerante do que as chagas corporais (Jó está doente com lepra). No v. 6 surge pela primeira vez o refrão utilizado como antífona do Salmo. O orante, como se se desdobrasse, dirige-se à sua alma em conformidade com uma dupla atitude. A primeira é de interrogação («Porque está encurvada, minha alma, gemendo dentro de mim?»): a tristeza é expressa com um verbo que indica o estado de desconforto (como se estivesse num buraco profundo e escuro, Sl 57,7), de prostração no pó (Sl 44,26). A segunda atitude pede, pelo contrário, uma reabilitação da própria face, ou seja, da própria pessoa na presença de Deus e, por consequência, daqueles homens que riem dele («espere em Deus: ainda o louvarei, meu Salvador e meu Deus»; cf. Is 63,9). A prova de tal reabilitação foi dada pela possibilidade de continuar a louvar a Deus (ou seja, pela profissão pública da fé sem temer ser escarnecido e vilipendiado). 42,7-12. O presente amargo. O salmista conduz-nos pela sua “geografia” interior (o rio Jordão, o Hermon – o monte mais alto da terra prometida –, o monte Misar): a tristeza da condição presente (do exílio) torna ainda mais áspera a recordação do passado. Se na primeira estrofe Deus se apresenta como «água» que sacia, nesta segunda o mesmo elemento, sempre relativo a Deus, tem uma conotação mais negativa: é, de fato, Deus, com a sua força onipotente, que conduz o orante para longe da terra prometida. O elemento aquático é apresentado, por isso, de maneira ambivalente. As grandes águas e os rios têm ambos uma conotação mítica (Sl 74,14-15; 77,17.20; 107,23.26; Is 43,2-3), já que descrevem a supremacia de YHWH sobre o caos e sobre as águas primordiais (o abismo), como um significado histórico (Sl 144,7; Is 17,13; Jr 46,7-8; Ez 32,2.14), 38

em referência aos inimigos de Israel, que Deus combate e vence (somente Yhwh pode salvar das águas abissais e letais do sheol, das profundezas, tal como surge também num texto do profeta Jonas: 2,2-6). Fora da metáfora: no nosso Salmo, é Deus quem provoca o exílio («Um abismo chama por outro abismo, ao fragor das cascatas; todas as tuas ondas passaram por cima de mim», Sl 42,8), e isto pode ser explicado historicamente pela vontade de punir Israel pelo seu pecado (in primis, a idolatria). No entanto, no meio de tamanhos castigos e tormentos, aparece a misericórdia divina (hésed) como dom quotidiano que o Senhor oferece ao seu fiel («à luz do dia, o Senhor manda o seu amor», v. 9); somente graças a esta atitude amorosa de Deus é que a noite (aquela que vem depois do dia, mas também a da fé) se recolhe no canto e na oração (no v. 6, o orante tinha descoberto na possibilidade do louvor a prova do seu resgate). «Deus da vida» é um título divino que encontramos em Nm 27,16, na boca de Moisés, que guia o seu povo: analogamente, podemos aplicar este significado ao orante que anseia retomar o seu caminho pessoal e comunitário. Deus-rochedo (v. 10) cria um forte contraste com Deus-água. Este título, que normalmente aparece num contexto bélico, lembra a solidez do Senhor, força maior da qual nos podemos valer para derrotar os próprios inimigos (2Sm 22,2; Sl 18,3; 31,4; 62,3.7; 92,16; 144,1). Ainda que em nosso Salmo a rocha esteja expressa com o termo sela‘, noutros contextos o mesmo conceito encontra-se utilizando a raiz ’mn, que evoca o conceito de firmeza e de estabilidade (cf. 1Sm 2,35; 2Sm 7,16; 2Cr 20,20; Is 7,9); daqui provém a ideia de fiabilidade (cf. Dt 7,9; Is 49,7) e de veracidade (cf. Gn 42,20; Sl 19,8; 93,5; Is 55,3), cuja referência imediata e fonte principal é Deus (cf. Gn 24, 27; 2Sm 2,6; Sl 71,22; 88,12; 89,23.6). «Digo a Deus, a ele que é o meu rochedo: “Por que te esqueces de mim? Por que devo andar de cabeça baixa, sob a opressão do inimigo?» (v. 10). São as perguntas típicas da lamentação que esperam uma resposta por parte de Deus. A Ele, de fato, o orante atribui a responsabilidade da sua condição que no v. 11 está descrita como um verdadeiro massacre («quebram os meus ossos») por parte dos inimigos. Os ossos desfeitos (cf. Sl 51,10) remetem para a estrutura interior 39

do homem fracassado, em nosso Salmo, através da acutilante pergunta teológica: «Onde está o seu Deus?». É outra forma de descrever a terrível situação de sofrimento psicológico em que ele se encontra. Com o v. 12 encerra-se a segunda estrofe da composição, reiterando o refrão pleno de esperança já encontrada no v. 6. 43,1-5. O futuro luminoso. Com uma linguagem típica do gênero forense, o orante pede justiça a Deus juiz, porque se sente falsamente acusado (Sl 7,9; 26,1; 35,24). A identikit dos malfeitores está desenhada recorrendo ao mais usual perfil criminal presente na Bíblia. Eles são impiedosos, literalmente «sem piedade» (hésed), faltando-lhes esta virtude que pertence principalmente a Deus. O adjetivo «perverso» transmite a ideia de quem cultiva a atitude do engano (como Jacó, que rouba a primogenitura a Esaú, Gn 27,35) e da mentira (Sl 24,4). O v. 2 repete substancialmente o v. 10 do Salmo 42; aqui, discute-se a função de sublinhar o papel fundamental de Deus na resolução do conflito entre o orante e os seus inimigos. O orante chega a desejar as modalidades da intervenção divina (43,3): com a luz e a verdade, como se fossem as duas asas de Deus, ele gostaria de sair de Babilônia e poder chegar à montanha de Deus, que podemos encontrar no monte Sião, lugar em que ele habita (Is 2,1-5; 11,9; 66,20), idealização de Jerusalém (Sl 3,5; 15,1; 48,2; 99,9; 147), remetendo com mais certeza para a terra prometida. O altar de Deus (43,4) é a meta final da viagem. Se a composição abrira com a lembrança nostálgica das procissões que se dirigiam ao Templo, agora encerra declarando a mesma imagem litúrgica. O que terá mudado no ânimo do orante no final do poema? Se no âmbito da recordação domina a nostalgia e o encorajamento, em outro âmbito mais profundo abre caminho à consciência da segura intervenção salvífica (de acordo com o tema geral – o crescimento na confiança – do segundo livro do Saltério). Esta torna menos amarga a condição de exilado, porque o Senhor habita no coração do orante, fazendo já sentir a sua presença (é uma presença na ausência).

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V

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Salmo 51

1

Do mestre de canto. Salmo. De Davi.

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Quando o profeta Natã foi encontrá-lo, após ele achegar-se a Betsabeia. 3

Tem piedade de mim, ó Deus, conforme a tua misericórdia! Por tua infinita compaixão, apaga a minha culpa! 4

Lava-me completamente da minha falta, e purifica-me do meu pecado! 5

Porque reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre na minha frente. 6

Contra ti, somente contra ti, é que eu pequei, eu fiz o que é mau aos teus olhos. Assim, tu és o justo ao falar, e sem reprovação no julgamento. 7

Eis que eu nasci na iniquidade, e minha mãe me concebeu no pecado. 8

Sim, desejas a verdade no íntimo do ser, e em segredo tu me fazes conhecer a sabedoria. 9

Purifica-me com hissope, e ficarei puro. Lava-me, e ficarei mais branco do que a neve. 10

Faze-me ouvir o júbilo e a alegria, e que se alegrem os ossos que trituraste. 11

Oculta a tua face dos meus pecados, apaga todas as minhas iniquidades. 12

Ó Deus, cria em mim um coração puro, confirma em meu interior um espírito novo. 13

Não me afastes para longe do teu rosto, não retires de mim teu santo espírito. 14

Devolve-me o júbilo da tua salvação, e um espírito generoso me mantenha firme. 15

Ensinarei os teus caminhos aos culpados e para ti se voltarão os pecadores. 16

Livra-me do sangue, ó Deus, ó Deus meu salvador, e minha língua celebrará a tua justiça. 17

Abre-me os lábios, Senhor, e minha boca anunciará o teu louvor.

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18

Pois não queres nenhum sacrifício, e se te oferto um holocausto, não o aceitas. 19

Sacrifícios para Deus são espíritos alquebrados. Corações alquebrados e abatidos, ó Deus, tu não os desprezas. 20

Faze o bem a Sião, por tua bondade; reconstrói as muralhas de Jerusalém. 21

Então sentirás prazer nos sacrifícios de justiça, nos holocaustos e ofertas totais. E assim se ofertarão novilhos em teu altar.

Vv. 1-2. O pecado com Betsabeia. O título do v. 1 faz-nos lembrar o pecado de impureza cometido pelo rei Davi. Em 2Sm 12,1-14 narra-se o que o breve título do Salmo faz lembrar: Davi comete adultério com a mulher de Urias e, quando é denunciado pelo profeta Natã, entoa o pedido de perdão pelo seu grande delito. Esta foi desde sempre a linha de interpretação na tradição litúrgica, que o colocou sempre – designando-o, não por acaso, Miserere – nos sete salmos penitenciais (6; 32; 38; 102; 130; 143). Vv. 3-11. Confissão da culpa e pedido de perdão pelo pecado. Representa o coração do poema, porque descreve o estado de alma do penitente que, reconhecendo as suas transgressões, invoca a misericórdia divina. Vv. 3-4. O pedido de purificação. O pecado é mencionado com três nomes diferentes. É importante notar que os três termos são muitas vezes aproximados para exprimir a totalidade das transgressões. Em Lv 16, a liturgia da grande expiação, chamada Yom Kippur, por exemplo, o santuário ficou impuro por causa dos pecados (hatta’im) e das revoltas (pesha’im) de Israel e das culpas (‘awon). No que se refere aos primeiros dois termos (pesha‘ e hatta’t), já tivemos oportunidade de os explicar na leitura dos outros Salmos. O termo pesha’ evoca um vasto leque de significados e parece referir-se à ruptura da harmonia jurídica no confronto contra alguém (Deus e o próximo) ou contra a comunidade, harmonia essa que deveria ser recuperada através de um processo, a menos que quem pudesse fazer valer o próprio direito desistisse da ação jurídica, concedendo o perdão. A tradição profética (cf. Am 1-2) inclui os desvios políticos, o abuso em desfavor dos pobres, a idolatria e a profanação do templo. Pesha’

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aparece também em 1Rs 8,50, onde Salomão dirige uma oração a YHWH diante do povo e do altar: nesta oração pública de perdão, especifica-se que os pecados de Israel, pelos quais se pede perdão, são transgressões contra YHWH. Tal acepção de pesha’ pode também ser encontrada em Jr 5, onde se condena o pecado de Israel, que consiste em ter abandonado as suas relações com Deus e ter-se entregado à idolatria e ao adultério (Jr 5,6-8). O vocábulo remete para as revoltas sociais e religiosas, que mancham o povo e por causa das quais é necessária uma purificação. O outro nome do pecado é hatta’at que, devido à sua generalidade, é o termo mais presente no Antigo Testamento (aparece quinhentas e noventa e cinco vezes). Como já indicamos ao comentar o Salmo 25, remete para a ideia de fracasso do alvo moral e religioso. O pecador é aquele que não segue a parábola justa e se afasta do alvo (cf. Jz 20,16). O terceiro vocábulo ligado ao pecado é ‘awón, utilizado para indicar os pecados contra Deus (Ex 20,5; Dt 5,9; Is 1,4; 27,9; Jr 11,10) e os que se cometem contra os homens; estes últimos encontram-se ligados principalmente a práticas rituais infringidas devido a comportamentos sexuais (1Sm 3,14; 2Sm 3,8). Em Ez 18,30, por exemplo, o convite à conversão tem como objetivo libertar Israel das revoltas que são uma verdadeira “ratoeira do mal” (mikshol ‘awón), revoltas essas que nos versículos precedentes se encontram descritas como a conduta da qual nos devemos afastar: o ímpio «mesmo que o pai não faça nada disso; mas ele come sobre os montes; desonra a mulher do próximo; explora o pobre e o indigente; rouba e não devolve o penhor; adora ídolos imundos e comete abominação; empresta com usura e cobra juros, é claro que não permanecerá vivo por ter praticado todas essas abominações: ele certamente morrerá e será responsável por seus próprios crimes» (Ez 18,11-13). No Salmo pede-se que estes três pecados sejam, respectivamente, apagados (mahah), lavados (kabas) e purificados (tahar). O primeiro verbo encontra-se ligado ao mundo judiciário e comercial (Ex 32,32- 33; Nm 5,23): cancelar uma escritura, um documento (Ex 17,14; Dt 9,14). O conceito de pecado é visto como uma dívida da qual existe um documento que o comprova. O ambiente das lavandarias é, porém, o contexto de kabas: lavam-se as roupas e os objetos, sendo também assim que se devem purificar os pecados; a passagem para a 45

esfera sagrada nasce com aquela sensibilidade própria da tradição sacerdotal que, através destas práticas, procura a pureza ritual e a santidade que nos permite aproximar da esfera do divino (Ex 19,10.14; Lv 6,20-21; 11,25.28.40). O terceiro verbo (tahar) evoca a ideia do esplendor (vizinha da raiz árabe e aramaica zhr: brilhar). O pecado ofusca, obscurece e por isso a realidade ou a situação que perdeu a sua luminosidade (o parto: Lv 12,7; a lepra: Lv 13; 14; 22,4; os fluidos sexuais: Lv 15; 22,4; Dt 23,11; o contato com os cadáveres: Lv 21, 1-4; Nm 6,6-9) deve voltar ao seu esplendor natural. O orante invoca, por isso, o pleno perdão divino, recordando o amplo leque de pecado e fazendo apelo ao amor misericordioso de Deus (hanan significa ter piedade, ter misericórdia, fazer graça a alguém), a sua hésed, ou seja, da sua fidelidade amorosa. Vv. 5-8. A confissão do pecado. Após o pedido de perdão, o primeiro ato do penitente é reconhecer o seu pecado. Tomar consciência da própria condição sem a esconder exprime a atitude de quem se dispõe à reconciliação (Sl 32,5; 38,19). Pelo contrário, quem oculta a culpa, não somente não possui consciência psicológica de si, mas tem uma ideia parcial de Deus, que é percebido com temor. No v. 5 não só não está escondido, mas diz-se também que o pesha‘ está quase obsessivamente presente na vida do orante. O pecado cometido contra os homens (segundo o título do salmo seria o pecado de adultério) é, em última instância, uma culpa contra Deus (v. 6); por isso, Davi, depois do homicídio de Urias e do adultério com a mulher deste, diz: «Pequei contra o Senhor» (2Sm 12,13). A justiça de Deus deve ser entendida como inocência: a má ação lesou a parte inocente da relação, a quem agora se pede perdão, embora sabendo que tal parceiro poderia punir a ofensa emitindo uma sentença de condenação (Ez 28,22; Eclo 36,4). O v. 7 repete a profissão, por parte do orante, do seu estado de pecado. Ele está radicalmente esmagado por esta realidade negativa desde que foi concebido. Tal convicção enraíza-se na Bíblia, onde se declara a trágica condição humana a partir da narrativa de Gn 3: o homem não pode aparecer perante Deus porque essencialmente é injusto (Sl 143,2), porque desde a juventude o seu coração está inclinado para o mal (Gn 8,21). O verbo raro yhm exprime o estado de calor dos animais, como em Gn 30,38.41; poder-se-ia pensar que tal instinto está ligado ao 46

momento da cópula, ato em si pecaminoso, que fere o início da nova vida. Ao longo da história da interpretação, com efeito, este versículo foi interpretado como prova de impureza da união sexual até mesmo no matrimônio. Ao que parece, o texto não pretende dizer tal coisa, mas intensifica a perspectiva do penitente, que adverte uma arcaica e conatural propensão para o pecado. A sinceridade (’emet) manifestada pelo orante é motivo para proceder a uma substituição: se é verdade que alberga no coração humano a inclinação para o mal, é também verdade que Deus lhe pode doar sapiência para o orientar numa nova existência (v. 8). O ensinamento da sapiência comporta não uma substituição passiva (um simples “transplante” de coração), mas uma dimensão dinâmica, porque esta se liga à vida, atravessando-lhe as fases. Deus é apresentado como um mestre sábio que educa o discípulo disposto ao seu ensinamento, tal como se lê em Is 54,13: «Seus filhos todos serão discípulos de Senhor. Será grande a paz de seus filhos». Vv. 9-11. Invocação de purificação. Há uma evocação direta entre estes versículos e os vv. 3-4 (são usados os mesmos verbos). O hissope é um parente do orégano, uma planta aromática, conhecida pelas propriedades esterilizantes; servia de aspersório nos casos de lepra (Lv 14,4.6) e nos sacrifícios expiatórios (Nm 19,6.18); encontramo-lo mesmo como referência à aliança do Sinai (Ex 24,8). O valor do hissope e a sua função propiciadora atesta-se também no rito do cordeiro pascal, em que se aspergem os batentes das portas dos hebreus com o sangue (Ex 12,22). Outro elemento que lembra a catarse é a neve, cuja citação mais direta está em Is 1,18: «Então venham e discutiremos – diz o Senhor. Ainda que seus pecados sejam vermelhos como púrpura, ficarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como escarlate, ficarão como a lã». O sentido do v. 9 é claro: somos depurados da opacidade e da sujeira do pecado, tornando-nos cândidos como a neve (elemento raro na terra de Israel e, por isso, ainda mais belo para olhar: cf. Eclo 43,18). A ligação clássica pecado-castigo explica o estado de bem-estar descrito no v. 10: se o pecado provoca aflição, mesmo física, quando a pessoa é perdoada, é lógico que experimente a alegria e a saúde em todas as dimensões. Os ossos indicam a parte mais interna da estrutura física (Jó 7,15) que participa no 47

despertar pleno da vida que floresce (usa-se o verbo «ouvir» para mostrar a percepção do novo estado de alma), semelhante ao que se lê em Is 66,14: «Ao verem isso, vocês ficarão de coração alegre, e seus ossos florescerão como um campo. A mão do Senhor se manifestará para seus servos, mas sua cólera a seus inimigos». Se o pecado faz do homem um esqueleto, o perdão enche-lhe as carnes (cf. Ez 37). Por isso, reitera-se o pedido de misericórdia que percorre esta primeira parte do Salmo, pedindo a Deus, depois de ter considerado as suas mazelas, que não as leve em consideração (v. 11). Vv. 12-21. Súplica de uma nova relação com Deus. Depois de ter reconhecido o amplo leque dos seus pecados e de ter professado a sua radical pecaminosidade, surge o pedido de uma nova relação com Deus, não já marcada pela debilidade, mas pela força que deriva da nova condição de penitente. Vv. 12-14. Coração e espírito. O imperativo inicial assinala uma mudança no Salmo. O verbo criar (bara’) só pertence a Deus (Gn 1,1), porque Ele é o único a dar vida às coisas a partir do nada (Sl 104,30; 148,5). A recriação do homem novo envolve o coração (lev), isto é, o seu centro intelectual-volitivo, mas também o seu sopro (ruah) vital (Gn 2,7). O coração e o espírito evocam a nova aliança de Jr 31,33 na qual Deus estabelecerá um pacto novo, não sobre tábuas de pedra, mas no íntimo da alma humana. Juntamente com o coração puro, é pedido um espírito que seja forte (nakón), isto é, firme, decidido: não já entregue à inclinação para o mal (como se fosse quase um espírito de “invertebrado”), mas constante e robusto. Paralelamente a esta caracterização, no v. 14 encontra-se outra: espírito generoso, isto é, disponível, obediente. Os imperativos, como «devolve-me» e «me mantenha firme», exprimem a ideia de que as qualidades de tal espírito, a nova arquitetura, a nova estrutura portante do penitente, se explicam num percurso que leva à plena renovação: como para o ensinamento da sapiência do v. 8, é o início de uma nova condição. No v. 13 há ainda outro espírito, o de Deus. Aí é definido como “santo” (qadósh), porque somente Deus é o Santo em absoluto (Is 6,3), ao passo que o homem apenas o pode ser se conformar a sua vida com a santidade divina, livrando-se das impurezas (Ex 19,6; Is 62,12; 63,18; Jr 2,3). Não ser admitido à 48

presença de Deus equivale a ser rejeitado por Ele, não atendido e, portanto, não reinserido no projeto de amor. Quando YHWH se retira, decreta-se a rutura de uma relação de confiança (como aconteceu com Saul em 1Sm 28,6) e de aliança (como aconteceu ao reino de Israel e de Judá em 2Rs 17,20 e 24,20). A presença (a face) de Deus e o seu Espírito Santo são, por isso, imagens da mesma pessoa divina que de maneira performativa se volta benevolamente para o penitente. Vv. 15-19. A promessa de um compromiso. Como acontece quase sempre nas súplicas, o orante propõe-se assumir um compromisso que confirme as suas intenções: «O agradecimento pela libertação conseguida transforma-se em cântico catequético e missionário, o pecador torna-se um pregador, o seu drama torna-se exemplar, a sapiência adquirida depois do perdão (v. 8) é comunicada como instrumento eficaz para combater a loucura do pecado». O Aleluia (v. 17) dirigido a Deus é a melhor oferta que se lhe pode fazer; vale mais do que os holocaustos e os sacrifícios rituais (Sl 22,23). Tudo é novo na vida de quem experimentou o perdão: coração, espírito, ossos, boca, lábios, língua. A expressão do v. 16 «livra-me do sangue» pode explicar-se pensando no homicídio de Urias por parte de Davi (2Sm 12,9.13) ou então pode evocar qualquer delito não identificado com derramamento de sangue (Jr 26,15): seria, por isso, o último pedido para ser liberto definitivamente da culpa grave com que o orante se manchou. Nos vv. 18-19 formula-se o propósito de não se deter apenas num culto exterior: esta é, no fundo, a principal imputação expressa em todo o Salmo 50, ao qual o Salmo 51 está estreitamente ligado: o verdadeiro holocausto é o coração do fiel (Is 1,11-14; Os 6,6; Am 5,21-27; Jr 6,20). Vv. 20-21. Final comunitário. Os dois últimos versículos são um acréscimo do tempo do exílio ou do imediato pós-exílio. Como muitas vezes acontece nos Salmos, a comunidade chama a atenção para a necessidade de atualizar o conteúdo do poema, relendo-o à luz dos acontecimentos que marcaram a história. O exílio para a Babilônia torna-se punição pelo pecado, pelo que, castigado, Israel pode novamente dirigir ao Senhor a oração pela reedificação da cidade santa (Ne 2,17-20) e do Templo para os sacrifícios (Is 62,6). O sacrifício mencionado também no v. 19 é o holocausto (‘olah). Este refere-se geralmente à 49

degolação de um animal (Gn 31,54; 46,1), mas aqui aparece como holocausto (Ex 10,25), porque o animal sacrificado era muitas vezes, parte dele, queimado. De fato, o holocausto acontecia através da consumação cáustica do animal inteiro, ou apenas de uma parte dele (Lv 16,3) sobre o altar do Templo, onde geralmente ardia um fogo (Lv 6,5). Ele exprimia a dimensão do dom do sacrifício que era oferecido tal como emerge em Lv 9,12-14, no qual se oferece primeiro o holocausto e depois o sacrifício expiatório pelo povo. A releitura comunitária do Salmo chega à consideração de que, se durante o exílio a matéria do sacrifício era representada pelo choro amargo (Sl 137), agora é o momento de uma liturgia mais pura e, portanto, mais agradável, porque inspirada por um coração humilhado.

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VI

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Salmo 57

1

Do mestre de canto. “Não destruas”. De Davi. À meia-voz. Quando ele fugiu de Saul, na caverna. 2

Tem piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim, pois em ti me refugio, à sombra de tuas asas me abrigo, até que passe a calamidade. 3

Clamo ao Deus Altíssimo, ao Deus que me faz tudo de bom. 4

Dos céus ele enviará a minha salvação, ultrajando os meus opressores. Deus enviará seu amor e sua fidelidade! 5

Estou deitado no meio de leões que devoram os seres humanos: seus dentes são lanças e flechas, sua língua é espada afiada. 6

Eleva-te acima dos céus, ó Deus, e tua glória paire sobre toda a terra! 7

Eles armaram uma rede contra meus pés, e minha alma está toda encurvada; na minha frente cavaram um fosso, mas eles é que nele caíram. 8

Meu coração está firme, ó Deus, meu coração está firme. Cantarei e tocarei! 9

Desperta, glória minha! Despertem, ó cítara e harpa! Eu irei despertar a aurora! 10

Vou louvar-te entre os povos, Senhor! Tocarei para ti diante das nações, 11

pois a tua fidelidade é maior do que os céus, e bem maior que as nuvens a tua verdade. 12

Eleva-te acima dos céus, ó Deus, e tua glória paire sobre toda a terra!

Este Salmo apresenta-se como uma súplica dirigida a Deus. Já explicamos o 53

sentido do breve título (v. 1) Do mestre de canto. «Não destruas.» De Davi. A meia-voz. Quando ele fugia de Saul, na caverna, que também se repete com uma pequena variação nos Salmos 58 e 59, um sinal claro de que, para o redator, estes salmos devem ser lidos juntos. Em 1Sm 24, narra-se o encontro entre Davi e o rei Saul, seu sogro, que saiu com o exército para o matar. O Senhor põe Saul nas mãos de Davi – já ungido como rei por Samuel, mas ainda não reinante – no deserto de Engadi; a gruta mencionada pelo título referido do Salmo fica perto das Rochas das Cabras (1Sm 24,3), lugar onde Davi poderia facilmente levar a melhor perante o sogro, porque o Senhor fez adormecer Saul e o seu séquito; Davi, aproximando-se de Saul na gruta, em vez de o matar, limita-se a cortar-lhe uma ponta do seu manto. Depois de se ter afastado devidamente, acorda o sogro, mostrando-lhe o pedaço do manto, fazendo-lhe entender que poderia tê-lo matado e pedindo, finalmente, ao rei o fim da perseguição. De fato, Saul quis matar Davi por inveja, porque temia perder o reino. Acontece, pois, a reconciliação, e Saul não mais perseguirá Davi. O Salmo 57 é colocado nos lábios de Davi e testemunha os sentimentos de angústia e de confiança vividos naqueles momentos. A estrutura da composição é muito simples e tem em atenção as suas duas partes individualizadas graças à repetição do refrão: «Eleva-te acima dos céus, ó Deus, e tua glória paire sobre toda a terra!» (vv. 6 e 12). Vv. 2-6. Súplica. A abertura do Salmo é típica das súplicas (Sl 51,3; 56,2); aí aparece o verbo hanan (“fazer graça”) repetido duas vezes, seguido da profissão de fé em Deus-refúgio (também ligado ao que se disse a propósito de Davi, que se refugia na caverna). Vv. 2-3. «Pois em ti me refugio» refere-se a todo homem que procura refúgio sob as asas do Senhor, até que o perigo esteja longe. Esta bela imagem das asas é típica do Deuteronômio. Encontrá-la-emos no comentário ao Salmo 103 e inspira-se em Dt 32,11-12: as asas de águia que fazem elevar o povo de Israel. É a primeira evocação do simbolismo animal que encontramos na composição e evoca a força e a calorosa proteção do Senhor. Deus é chamado «Deus Altíssimo», continuando a imagem da grande ave que voa alto: se o perigo vem de baixo (os inimigos e, no caso, Saul), o Senhor eleva para o alto, longe das 54

insídias dos homens. V. 4. As duas asas sob as quais o orante encontra proteção são o amor misericordioso e a fidelidade, uma dupla que exprime a intimidade da natureza divina na história dos homens; quando Ele se revela, o faz manifestando o poder inspirado no amor: a referência ao contexto do êxodo é muito oportuna, porque a libertação da escravidão está descrita em termos de elevação sobre as asas do Senhor, misericordioso e fiel (Ex 34,6): «Vocês viram o que eu fiz aos egípcios e como carreguei vocês como em asas de águia e os trouxe até mim» (Ex 19,4). Todo o enredo do Salmo 57 está tecido parafraseando a história da salvação e aplicando-a à experiência de um homem que experimenta a dura opressão por parte de inimigos furiosos. V. 5. A segunda imagem, extraída do mundo dos animais, é a do leão. Os leões são descritos recorrendo à linguagem bélica: os dentes são lanças e flechas, ao passo que a sua língua é uma espada afiada. É uma representação clássica, várias vezes testemunhada no Saltério (Sl 7,3 ; 10,9; 11,2; 14,4; 37,14; 52,4; 58,7; 59,8; 140,4; 148,13). A referência ao sono torna ainda mais viva a imagem: o orante deve partilhar com os inimigos também o leito, querendo talvez significar que os piores inimigos vivem no mesmo espaço vital, na mesma casa: a ligação a Saul e a Davi, sogro e genro, esclarece esta afirmação, mas não se deve excluir a ideia de que os piores conflitos podem surgir entre os familiares (cf. Jacó e Esaú, José e seus irmãos: cf. Gn 27-50). Uma última referência pode alargar a perspetiva do Salmo: a história de Daniel na cova dos leões é sinal da incolumidade que o Senhor confere aos seus fiéis (Dn 6: Daniel amansa os leões e passa a noite inteira com eles). No Salmo 57 (v. 5), os leões «devoram»: uma expressão hiperbólica que poderia ser ligada a outra passagem do livro de Daniel, em que se lê que Sidrac, Misac e Abdênago, três jovens judeus que recusam adorar a estátua do rei, foram lançados na fornalha ardente do rei da Babilônia, saindo dela incólumes (Dn 3). V. 6. Este refrão fecha a primeira estrofe. Recorrendo ao simbolismo cósmicoespacial do céu e da terra, o salmista exprime o poder divino que se estende em altura e profundidade, um modo para dizer que é ilimitado; o céu, de fato, é considerado o lugar em que Deus habita (1RS 8,27; 2CR 2,5). Neste ponto da 55

composição, o versículo apresenta-se como uma invocação por parte de quem se encontra em dificuldades: ele espera que Deus possa fazer sentir o seu “peso”. O termo «glória» (kabod), de fato, significa “que pesa” ou seja, “importante”, “relevante”; a expressão parece ser uma síntese entre o Salmo 8 («Como é glorioso o teu nome […] acima dos céus», v. 2) e Isaías («[…] a sua glória enche toda a terra», Is 6,3), textos em que no centro da cena está Deus, primeiramente (respectivamente na criação e no Templo), e o homem que se sente alcançado por essa presença que lhe transforma a vida. Vv. 7-12. Ação de graças. A segunda estrofe mistura motivos sapienciais, desde a imagem da rede às imagens da alegria e do canto típicas do hino como convite ao louvor, e conclui com o refrão do v. 12, que serve de antífona final. V. 7. A lei do contraste encontra-se admiravelmente neste versículo. Na Bíblia existe uma espécie de equilíbrio, querido por Deus, segundo o qual o mal que se faz se volta, antes ou depois, contra o seu autor, na base de uma retribuição intrínseca pelas mesmas obras: «Suas ciladas são mortais para eles próprios, agem contra suas próprias vidas. Este é o caminho do ganancioso: a cobiça acaba com a vida do seu dono» (Pr 1,18-19). O Eclesiástico chega a formular esta lei de modo claro: «Quem cava um buraco nele cairá; quem prepara uma armadilha, ficará preso nela. O mal se voltará contra quem o pratica, e sem que a pessoa saiba de onde ele virá» (Eclo 27,26-27). É nesta linha também a reflexão de Baldad, um dos três amigos de Jó, a propósito da sorte do ímpio que cai nas redes e caminha sobre a armadilha (Jó 18,5-21). O salmista pede justiça e quer ser subtraído às garras dos seus inimigos. Neste versículo, confessa a sua confiança na forma de Deus agir porque sabe que quem faz o mal será, no fim, vítima do malefício perpetrado. Isso explica também a frase do v. 4 («[Deus ultrajará] os meus opressores»): o orante, renunciando ao desejo de vingança e à tentativa de fazer justiça pelas próprias mãos, confia em Deus, que retorcerá as armadilhas dos seus inimigos, confundindo-os. Vv. 8-9. Por duas vezes no mesmo versículo aparece o termo «coração» (lev). É sabido que o coração é o centro da pessoa, porque, na maior parte dos casos, se atribuem a este órgão funções intelectuais e racionais, como em 1Rs 3,9-12, onde Salomão pede a Deus um coração dócil, ou seja, com o discernimento e a 56

capacidade de governar, dotes necessários para poder reger o povo. O coração indica, também, o órgão central que preside à capacidade motriz dos vários membros (2Sm 25,37-39a), mas sobretudo refere-se ao que está escondido e que não é imediatamente evidente, a parte mais íntima do homem, o seu temperamento, como em 1Sm 16,7: Samuel encontra-se em Belém para ungir Davi como rei de Israel e o critério para reconhecer o futuro rei não é o aspecto físico, mas a generosidade do coração do rapaz, que somente Deus pode conhecer. Mas o coração, segundo a acepção mais comum do homem contemporâneo, é também o lugar dos sentimentos, da esfera emotiva e da sensibilidade. Esta, de acordo com as situações em que a pessoa se encontra, cobrindo todo o leque das emoções humanas: desde a angústia mais escura à alegria mais radiosa (Sl 25,16-17; Jz 18,19-20); como para a alma (néfesh), também o coração tem uma ligação intrínseca com o ato de desejar e de ansiar (Sl 21,2-3; Pr 6,25-26). Em nosso Salmo 57, sublinha-se a solidez do que o orante adverte, juntamente com a vontade resoluta de exprimir tal estado de alma inspirado na alegria. O coração firme (naqón) é um adjetivo já usado no Sl 51,12, expressão que declara a nova realidade do penitente; em nosso Salmo 57, o orante professa esta sua condição apresentada quase como um renascer (interpretação apoiada também pela referência à aurora de um novo dia). Ainda que a versão original cite uma terceira ocorrência de «coração», no v. 9 aparece também a palavra «fígado» (kavód), termo que indica a interioridade do homem (o fígado é, juntamente com o coração, o órgão mais importante, “pesado/kavód”, do corpo humano); na lógica do Salmo, parece quase demonstrar um desdobramento do orante que fala a si mesmo, e que já não sabe como pode exprimir a alegria; poder-se-á dizer, que “não cabe mais em si”, devido à sua alegria. Vv. 10-11. Depois do convite, entoa-se o canto. Podemos descobrir um duplo movimento de louvor: um vertical, que tende a atingir o céu e, com ele, o ponto mais afastado e inatingível (v. 11); o outro, horizontal, voltado para todos os povos que há na terra (v. 10). Por outras palavras, a misericórdia divina enche o universo e atinge todos os povos da terra. O orante colhe este dinamismo e sente-se plenamente envolvido: como “uma mancha de óleo”, o amor divino 57

difunde-se do centro do coração do orante até os espaços mais inacessíveis. V. 12. O refrão encerra a segunda estrofe e todo o Salmo 57, colocando-se como selo das alturas místicas já atingidos pelo orante. O Salmo não diz se ele foi liberto dos seus inimigos, mas contempla a misericórdia divina, quase se esquecendo da sua dor; poder-se-ia dizer: não importa se os inimigos fazem ainda ouvir os seus ruídos ameaçadores, o que importa é o amor ilimitado do Senhor, que é a melhor garantia para o fiel em dificuldade.

58

VII

59

60

Salmo 92

1

Salmo. Cântico. Para o dia de sábado.

2

É bom celebrar ao Senhor, e fazer músicas em teu nome, ó Altíssimo; 3

anunciar pela manhã a tua graça e a tua fidelidade pela noite; 4

com a lira de dez cordas e com os arranjos da harpa. 5

Pois teus feitos, Senhor, são a minha alegria; darei gritos de alegria pelas obras de tuas mãos. 6

Como são grandes, ó Senhor, as tuas obras, e os teus planos, como são insondáveis! 7

O ignorante não compreende, o insensato nada disso entende. 8

Ainda que brotem os ímpios como a erva, e floresçam todos os malfeitores, serão destruídos para sempre. 9

Tu, porém, Senhor, tu és o sublime para sempre! 10

Eis que teus inimigos, Senhor, eis que teus inimigos fracassarão, todos os que praticam o mal se dispersarão. 11

Mas tu me ergues a fronte, como a de um búfalo, e me unges com óleo puro. 12

Meus olhos observam os meus inimigos. Quando os malfeitores se levantarem contra mim, meus ouvidos escutarão. 13

O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro que há no Líbano. 14

Plantado na casa do Senhor, florescerá nos átrios de nosso Deus. 15

Mesmo no tempo da velhice darão frutos, serão cheios de seiva e verdejantes, 16

para anunciar que o Senhor é retidão, ele é o meu rochedo, e nele não existe injustiça.

Este Salmo é um típico exemplo de hino e pode ser subdividido da seguinte 61

forma: convite ao louvor com instrumentos musicais de cordas (vv. 2-4); o corpo do hino desenvolve os motivos do louvor, a recompensa dos justos (vv. 5-14); a conclusão é um convite renovado ao reconhecimento da retidão de Deus (vv. 1516). A situação que gerou o Salmo poderia ser a de uma instrução oferecida por um mestre sob a forma de oração/canto. V. 1. Frontispício. Logo no versículo 1 aparecem juntos dois termos, «salmo» e «cântico», ligados a uma celebração do dia de sábado. Vv. 2-4. Convite a louvar o Senhor (YHWH). O versículo inicial abre com o adjetivo «bom» (tov), que aparece setecentas e quarenta e uma vezes no Antigo Testamento. São três os seus significados principais. O primeiro é de natureza ética: por exemplo, em relação à bondade de Yhwh, como no Sl 34,9; neste sentido, “bom” é o oposto de “mau” (Am 5,14). O segundo significado é funcional, isto é, está relacionado com a conveniência de uma coisa em relação a outra: por exemplo, em Ex 14,12; Nm 14,3; 1Sm 27,1. O terceiro significado é estético e evoca a beleza do corpo humano e o fascínio a ele ligado (Gn 6,2; 24,16; 26,7; 2Sm 11,2; Est 2,2-3.7). O Salmo 92 é o único a iniciar com este adjetivo, cujo valor nos remete para o macarismo («feliz...») com que começam outros salmos (1,1; 32,1-2; 41,2; 112,1). A bondade da ação de graças dirigida a Deus no cântico não para (v. 3): do romper da manhã e durante toda a noite. A bondade e a fidelidade (’emunáh) são os atributos divinos que são louvados: termos que caracterizam o agir divino ao ponto de serem personificados nos Salmos 85 e 89. Na tradução portuguesa, é fácil compreender quais os instrumentos musicais mencionados. Certamente o imaginário do Saltério recorre a tais instrumentos para descrever a alma do louvor, no qual o canto e a música se harmonizam para exprimir a alegria do espírito do orante. Vv. 5-14. Corpo do hino. Os vv. 5 e 10 marcam a divisão em duas estrofes do corpo laudatório (vv. 5-9; 10-14). Vv. 5-9. O Senhor é mais forte do que os malfeitores. Os primeiros dois versículos (5-6) concentram-se no Senhor. Ele é motivo de alegria para o orante, por causa das suas maravilhas e da obra das suas mãos, segundo um estereótipo da sua ação como Criador (Sl 8,7; 143,5). A sequência de substantivos, feitos62

obras/obras-planos, coloca no centro a visibilidade da intervenção divina que o homem experimenta: este amor é um dado de fato, não é apenas fruto de uma proclamação vaga e, por isso, gratuita. A insistência neste aspecto teológico parece encontrar uma razão bem precisa, porque nos vv. 7-8 a experiência do salmista registra uma anomalia no plano superior que ele entrevê. A sua experiência, de fato, não é universal, no sentido de que não é experienciada por todos os seus semelhantes; pelo contrário: o homem insensato não a conhece e o ignorante não a compreende. O primeiro e, sobretudo, o segundo pertencem à categoria dos sujeitos privados de compreensão do que é um ser humano acabado e, precisamente por isso, necessitam de instrução (Pr 3,32-35). Mas pode-se entender a aproximação destes sujeitos acentuando a sua dimensão moral: o homem insensato é o violento, enquanto o ignorante é aquele que provoca imprudentemente e leva a conflitos; por este motivo, não só não entendem, mas, obstinados, não querem entender. De fato, ao longo do v. 8, menciona-se explicitamente o ímpio e os malfeitores em geral, gente má, que não pode conhecer nem apreciar as obras maravilhosas de Deus ou, para o referir como o Livro da Sabedoria, tentam a Deus, põem-no à prova, pensam mal acerca d’Ele e não têm intenções retas: por tais razões são excluídos da sua presença e da intimidade do seu projeto (Sb 1,1-4). O juízo sobre a sorte deles é claro: como a erva tem vida breve, assim a vitalidade dos malfeitores é somente um fenômeno momentâneo. À brevidade da sua vida sobre a terra corresponde, por acréscimo, uma ruína eterna. Os Salmos 37 e 73 estão ligados a este Salmo pelo tema da retribuição, que levanta o problema da vitalidade do malfeitor que, segundo a teoria clássica da retribuição, deveria sucumbir e sofrer doenças, miséria e morte. No Salmo 92, esta questão, que corre o risco de se complicar como na narrativa de Jó e de Coélet, é resolvida com uma profissão de fé: «Tu […] és o Sublime» (v. 9). A superioridade do Senhor não teme o obscurecimento momentâneo do seu projeto, porque Ele, do alto da sua posição, tudo domina. Ele é excelso, substantivo, com conotações históricas e mitológicas: o maior de todos os outros deuses, o inatingível, o imbatível (Jó 31,2; Is 33,16; Mq 6,6). O texto de Is 57,15 exprime plenamente o sentido do v. 9 do nosso Salmo: «Pois assim diz aquele 63

que está no alto, lá em cima, aquele que mora na eternidade e tem nome santo: Eu moro na altura santa, mas estou com os oprimidos e humilhados, para reanimar o espírito dos humilhados e reanimar o coração dos oprimidos».Vv. 1014. O vigor do justo. Depois das declarações do v. 8, reafirma-se a clara convicção de que os malfeitores – aqui chamados duas vezes «inimigos», confirmando o perfil negativo que até aqui se foi traçando –, serão eliminados e dispersos (v. 10). Continuando a analogia com a erva do campo, diz-se que eles perecerão e serão dispersos. A imagem do búfalo (v. 11) é particularmente evocativa. O orante, que recupera as próprias convicções de fé perante o possível descrédito representado pelos malfeitores, é apresentado como um búfalo no auge da sua força muscular, animal indômito que não se sujeita a ser utilizado na agricultura (Jó 39,9-12) e cuja ferocidade o faz levar sempre a melhor sobre os inimigos (Nm 23,22; 24,8; Dt 33,17; Sl 22,22; Is 34,7). Podemos dizer que o símbolo do búfalo transmite universalmente a ideia de força e de potência selvagem. No Oriente Médio antigo, era adorado pelas semelhanças com um animal sagrado, o touro lunar, associado à grande Mãe e, posteriormente, a Mitra. Grandes bovinos estão pintados na porta de Ishtar: os cornos do animal serviam para afastar o mal. Não é por acaso que o termo hebraico «força», utilizado pelo salmista, seja qéren, que significa “corno” (cf. Sl 75,5-6; 89,18). Segundo um imaginário comum confirmado também na língua egípcia, tal inclui um sinal com o braço e o pé, entre os que compõem o vocábulo “força” (‘ab). A unção («ungistes-me com óleo puríssimo», v. 11) tonifica o músculo, fá-lo mais esplendoroso e preparado para a batalha. Da descrição desta força da natureza passa-se ao contexto totalmente humano do desafio entre inimigos (v. 12): o olhar lançado contra o próprio adversário exprime coragem e desdém. As duas imagens (os olhos e o óleo) aparecem também no Salmo 23,5, em que o orante pode tranquilamente sentar-se à mesa, em plena segurança, sob o olhar dos seus adversários inofensivos. Ouvir falar da desgraça do inimigo significa tomar conhecimento da desventura que o atingiu (Ez 7,5.26) e do restabelecimento da justiça que foi anunciada nos versículos precedentes, mesmo sem especificar as modalidades de tal revés. O segundo símbolo que domina o Salmo 92 é a palmeira (vv. 13-14). O Saltério 64

abre com esta imagem (1,3): o justo é apresentado como uma planta sempre frutífera, que nunca seca. No Salmo 92, a ênfase se dirige não tanto para os frutos, mas para o vigor, em coerência com a outra imagem, a do búfalo. A aproximação ao cedro do Líbano confirma a ideia do poder que caracteriza o justo (Ez 31,3), que está fixo, bem plantado como um mastro extraído do tronco desta planta (Ez 27,5). A particularidade destas duas árvores está no lugar em que foram plantadas, porque embelezam o átrio do Templo. A mensagem parece ser a seguinte: somente se o orante permanecer no espaço da fé pode desfrutar da seiva que provém do Senhor e receber estabilidade. Vv. 15-16. Renovado convite ao reconhecimento da retidão de Deus. Estes dois versículos encerram a composição que, segundo o gênero literário do hino, deveria servir para reiterar o convite ao louvor. Aqui tal convite aparece de leve, se bem que presente. Completa-se o ciclo vegetativo iniciado com o florescimento (vv. 13-14), porque se mencionam os frutos da velhice, enquanto se sublinha novamente o vigor da palma e do cedro (v. 15). O convite ao louvor, ainda que não esteja consignado com a habitual fórmula verbal, está expresso no infinitivo do verbo «anunciar», que cria uma ligação com o v. 3, que inicia com a mesma forma verbal. No final, o salmista abre o jogo: não se pode atribuir à responsabilidade divina a desgraça do justo e o favor de que goza, por sua vez, o malfeitor; o Senhor é reto e demonstra-o fortalecendo o justo, rejuvenescendo-o na fé, inserindo-o numa relação vital com Ele, libertando-o das areias movediças da incredulidade, porque Yhwh é rocha (2Sm 22,2; Sl 18,3; 31,4; 62,3.7; 144).

65

VIII

66

67

Salmo 103

1

De Davi. Bendiga o Senhor, ó minha alma, e todo o meu interior bendiga seu nome santo! 2

Bendiga o Senhor, ó minha alma, e não se esqueça de nenhum de seus favores! 3

Ele perdoa todas as suas culpas, ele cura todas as suas enfermidades. 4

Ele resgata a sua vida da sepultura, ele o coroa com seu amor e compaixão. 5

Ele sacia de bens os seus anos, e renova a sua mocidade, como da águia. 6

O Senhor faz ações justas, exerce julgamentos contra todos os opressores. 7

Ele deu a conhecer seus caminhos a Moisés, e suas proezas aos filhos de Israel. 8

O Senhor é compassivo e clemente, lento para a cólera e repleto de amor. 9

Ele não disputará perpetuamente, nem ficará rancoroso para sempre. 10

Ele não nos trata segundo nossas faltas, nem nos retribui segundo nossas iniquidades. 11

Assim como o sol se eleva por sobre a terra, seu amor triunfará sobre aqueles que o temem. 12

Como o oriente está distante do ocidente, assim ele afasta para longe de nós as nossas transgressões. 13

Como um pai sente compaixão dos filhos, assim o Senhor sente compaixão daqueles que o temem. 14

Porque ele conhece a nossa condição, ele se lembra do pó de que somos feitos. 15

Os dias do homem são como a relva, como a flor do campo que floresce; 16

pois o vento soprando sobre ela a faz desaparecer, e ninguém mais identifica o seu lugar. 17

Mas a bondade do Senhor existe desde sempre, e para sempre existirá sobre aqueles que o temem.

68

A justiça dele é para os filhos dos filhos, 18

para os que guardam a sua aliança e se lembram de praticar os seus preceitos. 19

O Senhor estabeleceu nos céus o seu trono, e sua realeza governa todo o universo. 20

Bendigam o Senhor, anjos seus, valentes e fortes realizadores da sua palavra, e ao som da sua palavra obedientes. 21

Bendigam o Senhor todos os seus exércitos, ministros realizadores da sua vontade. 22

Bendigam o Senhor, todas as suas obras, em todos os lugares que ele governa. Bendiga o Senhor, ó minha alma!

É um hino de louvor ao Senhor que, respeitando o frontispício, estaria ligado a Davi, ainda que não se especifique a circunstância. O início do primeiro versículo (1a) é idêntico à conclusão no último (v. 22): este procedimento literário incluído no Salmo confere-lhe uma unidade temática ligada à bênção que o orante dirige a Deus. O aspecto característico é a alma que abre e fecha a composição (vv. 1 e 22). Vv. 1-2. Apelo inicial do “homem todo”. Aqui encontramos o termo «alma», que em hebraico é néfesh, mas que já apresentamos como garganta, respiração, ânsia, desejo. O segundo termo é “intimidade”, traduzido pela expressão «todo o meu interior». Qéreb em hebraico significa interioridade, ventre, e quer indicar a parte mais profunda do homem. Desde as primeiras palavras do Salmo, somos convidados a dirigir-nos a Deus com todas as nossas forças, voltando-nos para Ele com toda a energia vital, literalmente “com todo o ar que respiramos”. A frase «e não se esqueça de nenhum de seus favores» não indica a perda banal de um conteúdo mnemônico, mas evoca a teologia do memorial (zikkarón), tão apreciada pela fé hebraica e cristã: não esquecer o significado de fazer memória ativa e existencial, não somente psicológica; sentir a atualidade dos acontecimentos evocados e a participação pessoal de quem os evoca. Sobre o mandamento da Páscoa, por exemplo, somos levados a recordar, no hoje da celebração ritual, tudo o que aconteceu no passado (Ex 12,14; considere-se que também Jesus disse: «Façam isto em memória de mim», Lc 22,19; 1Cor 11,24). 69

Vv. 3-10. O amor vence o castigo. Estes versículos compõem a primeira estrofe do Salmo, no qual se celebra o amor e o perdão. O tema da culpa aparece no início da estrofe (v. 3) e no final (v. 10), reforçando as outras afirmações que consagram os motivos do louvor. Vv. 3-4. O Senhor perdoa toda a culpa. Este é o primeiro motivo para o louvor. De que pecado se trata? A palavra utilizada no original hebraico é ’avón, que evoca uma pluralidade de más ações e diz respeito tanto aos pecados contra Deus (Ex 20,5; Dt 5,9; Is 1,4; 27,9; Jr 11,10) como contra os homens. Estes últimos estão

ligados

principalmente

a

práticas

rituais

infringidas

devido

a

comportamentos sexuais (1Sm 3, 14; 2Sm 3,8). Em Ez 18,30, por exemplo, o convite à conversão visa libertar Israel das rebeliões, que são uma verdadeira “armadilha do mal”, rebeliões que nos versículos anteriores são descritas referindo-se à conduta da qual se deve afastar: o ímpio «mesmo que o pai não faça nada disso; mas ele come sobre os montes; desonra a mulher do próximo; explora o pobre e o indigente; rouba e não devolve o penhor; adora ídolos imundos e comete abominação; empresta com usura e cobra juros, é claro que não permanecerá vivo por ter praticado todas essas abominações: ele certamente morrerá e será responsável por seus próprios crimes. […]» (18,11-13). O segundo motivo que leva o orante a louvar encontra-se ligado à capacidade terapêutica do Senhor: «Ele cura todas as tuas enfermidades». A alusão pode ser dupla. Em primeiro lugar, no Antigo Testamento existia uma estreita ligação entre o pecado e a doença física, segundo o qual, quando o Senhor perdoa, confere também a saúde física. Com efeito, lê-se no Salmo 51: «Faze-me ouvir o júbilo e a alegria, e que se alegrem os ossos que trituraste» (v. 10), no sentido de uma recuperação da força consequente ao perdão e à plena reconciliação. O segundo significado da frase provém da ligação com o v. 4 («Ele resgata a sua vida da sepultura») e remete para a intervenção divina, que livra da morte o seu fiel. Com efeito, a morte lembra o túmulo (sheol), imaginado como um grande fosso para o qual se escorrega (Salmos 7,16; 9,16; 16,10; 49,10; 94,13): somente YHWH pode salvar do fosso e permitir o regresso à vida plena. Com efeito, o piedoso hebreu encontra-se fortemente centrado no aqui, porque é sobre esta terra que experimenta a bondade de Deus nos dons da saúde e da prosperidade. 70

A segunda parte do v. 4 contempla a dupla «graça e misericórdia» (hésed e rehamím) que consta ainda no Salmo 23,6. São atributos divinos que descrevem a sua interioridade unida à sua ação em favor do povo, como em Ex 34,6. A piedade divina (rehamím) fala em vísceras (“amor visceral”), expressando-se num amor profundo, intenso, maternal (Is 49,15). A imagem de conjunto poderia ser esta: como se YHWH apertasse o orante contra Si, com os seus dois braços, que são a bondade e a misericórdia, enchendo-o de saúde e de bens. Vv. 5-6. A saúde que foi adquirida juntamente com o perdão traduz uma prosperidade que permite uma velhice serena, porque livre da ânsia da preocupação pelo alimento. Na lógica retributiva que une a retidão humana à recompensa divina, o salmista está consciente de que não lhe faltará nada, porque o Senhor tem cuidado dele, e poderá gozar do que necessita precisamente porque foi alcançado pela justiça («Fui jovem e agora já sou velho, e nunca vi um justo ficar abandonado, nem sua descendência mendigando pão», Sl 37,25). A imagem da águia evoca a imagem do poder, da fortaleza e da longevidade. Talvez o texto mais sugestivo para explicar este símbolo animal seja Dt 32, 11-12: «Como águia que cuida do seu ninho e revoa por cima dos filhotes, ele, estendendo suas asas, o tomou, e por sobre suas penas o carregou. O único a conduzi-lo foi o Senhor. Nenhum Deus estrangeiro o acompanhou». O jovem salmista não teme a velhice, acolhendo-a como crescimento na certeza da fé e como estação na qual amadurece o bem semeado ao longo da vida. A proteção divina traduz-se na defesa dos pobres e dos oprimidos, um tema muito presente sobretudo na pregação dos profetas do século viii (Amós, Oseias, Isaías, Jeremias), que denunciavam abertamente um culto exterior desligado da vida moral. A frase de Isaías 1,14 resume o sentido dos avisos proféticos: «[Diz o Senhor:] Eu detesto suas luas novas e solenidades. Para mim se tornaram um peso que eu não suporto mais». Contra os juízes corrompidos grita poderosamente também o Salmo 58, que apela para a justiça divina, para que intervenha e restabeleça o direito. A sentença do juiz tinha poder de vida e de morte, e isto tornava a sua função particularmente delicada: como no caso emblemático da casta Susana, injustamente acusada por dois juízes que queriam aproveitar-se dela, a falsa sentença podia levar à lapidação (Dn 13) ou à perda da 71

própria liberdade. O orante toma consciência de que somente Deus é o verdadeiro defensor dos mais fracos, que na tradição bíblica equivalem ao órfão, à viúva e ao estrangeiro (Dt 24, 19-21). Vv. 7-10. Do plano pessoal passa-se ao comunitário, como frequentemente se vê nos Salmos, em que o orante mistura motivos existenciais e motivos históricosalvíficos. Em duas passagens evoca-se a história do êxodo, com o chamamento de Moisés, unida à história do povo de Israel. Aqui podemos ver pelo menos duas alusões aos acontecimentos narrados no Pentateuco. O primeiro permite ler as afirmações dos vv. 8 e 9 sobre o fundo do que se encontra em Ex 34. Os títulos divinos “misericordioso” (rahum, com a mesma raiz de rahamím) e “piedoso” (nahám’) aparecem, de fato, na passagem em que Moisés pede um passo a mais no conhecimento da face de Deus: «O Senhor desceu na nuvem e aí ficou com ele, e ele invocou o nome do Senhor. O Senhor passou diante dele, e ele proclamou: “Senhor, Senhor! Deus compassivo e cheio de graça, lento para a cólera e grande em solidariedade e fidelidade. Que guarda solidariedade para milhares, tolerando a falta, a transgressão e o pecado, mas não deixa ninguém impune, castiga a falta dos pais nos filhos, e nos filhos dos seus filhos, até a terceira e quarta geração”» (34,5-7; cf. Sl 86,15). À história mosaica está ligado também o v. 9 («Ele não disputará perpetuamente, nem ficará rancoroso para sempre»), relacionado com a contenda entre Israel e YHWH em Meriba (Ex 17), devido à qual Moisés e a sua geração não puderam entrar na terra prometida (são castigados por terem questionado a presença e o poder de Deus). Pode-se ver uma posterior alusão àquele gênero literário que toma o nome de rib, uma espécie de debate de caráter judiciário entre Deus e o seu povo: porque Israel não cumpriu os compromissos assumidos na aliança, Deus chama-o às suas obrigações, já que quer restabelecer a aliança com o seu parceiro (cf. Is 5,1-7). Em nosso Salmo, volta a referir-se que o Senhor não fica fechado nas suas razões, mas abre-se à misericórdia, porque, como diria Jeremias, «não guardo rancor eterno» (3,12). Regressa a recordação do pecado que abriu esta estrofe (v. 10). O Senhor supera o esquema retributivo clássico, delito-castigo, porque está bem consciente da fraqueza humana: embora possa fazer valer os seus direitos 72

citando Israel em tribunal, o que o move não é a vontade de destruir a sua criatura, mas o desejo de recuperar uma relação comprometida pela infidelidade. Vv. 11-19. Segunda estrofe: entre amor e fragilidade. O cosmos torna-se o espaço para narrar a grandeza e a profundidade do amor divino. Vv. 11-12. O simbolismo vertical céu-terra é confirmado também em Is 55,6-9 com a mesma intenção, a de descrever o perdão: «Procurem o Senhor enquanto ele se deixa encontrar. Chamem por ele, agora que está perto. Que o mau abandone seu caminho e o homem injusto mude seus projetos. Que volte para o Senhor, e ele terá compaixão. Que volte para nosso Deus, pois ele é rico em perdão. Meu pensamento não é o pensamento de vocês, e os caminhos de vocês não são os meus caminhos – oráculo do Senhor. Tanto quanto o céu está acima da terra, assim meus caminhos estão acima dos caminhos de vocês, e meu pensamento está acima do pensamento de vocês». Há um poder da misericórdia divina, que aqui é quase personificada, que se estende sobre os tementes a Deus. Na literatura sapiencial, o temor de Deus é um verdadeiro refrão da atitude de afetuoso reconhecimento e profunda gratidão para com Aquele que é a fonte de toda a sapiência (1,7.33; 2,5; 9,10; 15,16.33; 19,23; cf. também Eclo 1,9; 16,2; 19,18). No Saltério, o temor de Deus habita nos fiéis, nos tementes a Deus, precisamente, porque participam devotamente no culto e levam uma vida irrepreensível (Sl 22,24; 31,20; 66,16; 103,11.13.17). Esta segunda acepção ética torna-se evidente sobretudo nos textos em que se encontra a referência da aliança do Senhor com o seu povo (Sl 25,12.14; 34,8.10). Pode-se dizer que existe uma identificação entre o observador e o temente a Deus, ou seja, entre aquele que segue com agrado os preceitos do Senhor e aquele que o teme. Paralelamente ao simbolismo vertical, confirma-se o horizontal, que exprime a enorme distância entre as culpas e quem as cometeu; é o Senhor que torna possível esta separação e esta “lentidão para a ira”: se as culpas oprimem até quase sufocar, o Senhor intervém e volta a dar oxigênio ao pecador, aliviando-o do fardo. Mas a imagem pode também ser aplicada a Deus: é Ele quem se distancia do pecado, lançando-o para trás das costas (Is 38,17) ou para o fundo do mar (Mq 7,19). Vv. 13-14. O salmista, recorrendo ao simbolismo antropológico, usa uma das 73

imagens mais bonitas da composição: Deus como pai. O texto que melhor pode comentar estes versículos é Os 11: «Quando Israel era menino, eu o amei. Do Egito chamei o meu filho. E no entanto, quanto mais eu chamava, mais eles se afastavam de mim: ofereciam sacrifícios aos Baais, queimavam incenso aos ídolos. E não há dúvida: fui eu que ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mão. Mas eles não perceberam que era eu quem cuidava deles. Eu os atraí com laços de bondade, com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até a altura do próprio rosto uma criança. Para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles. Como poderia eu abandoná-lo, Efraim? Como haveria de entregar você a outros, Israel? Será que eu poderia tratá-lo como a Adama? Eu poderia tratá-lo como a Seboim? Meu coração salta em meu peito, minhas entranhas se comovem dentro de mim. Não me deixarei levar pelo ardor de minha ira, não voltarei a destruir Efraim. Eu sou Deus, e não um homem. Eu sou o Santo no meio de você, e não um inimigo devastador» (Os 11,1-4.8-9). O Salmo 27,10 refere, a propósito, que, se alguma vez os pais negligenciassem os próprios filhos, o Senhor nunca esqueceria Israel. Ainda que normalmente se pense que a paternidade divina seja uma revelação exclusiva do Novo Testamento, estes textos confirmam que, já na primeira aliança, Deus é pensado em termos afetuosos e familiares. O que move Deus para a misericórdia é a certeza da pobreza humana. Precisamente porque conhece o ser humano no seu íntimo mais profundo, ele é suporte de toda a sua caducidade (Gn 2,4b-25). Se bem que o homem tenha sido criado à sua imagem e semelhança, ele permanece pó da terra, segundo aquele jogo de palavras do Livro do Gênesis em que Adão é tirado da adamáh, da terra, para a qual há de voltar. A indulgência de Deus, portanto, é semelhante ao seu profundo conhecimento do ser humano. Vv. 15-16. O Salmo 78 transmite a ideia da misericórdia divina motivada pela consciência do orante em ser «carne e sopro» (vv. 38-39). O termo utilizado no v. 15 no nosso Salmo para dizer homem é em hebraico enósh e sublinha precisamente tal caducidade, precariedade e fragilidade. Nos vv. 15-16, é desenvolvida a ideia da precariedade, recorrendo à imagem da relva e das flores do campo, que estão à mercê do vento: não podem opor resistência porque são 74

constitucionalmente frágeis. Existe um belíssimo texto extraído do Livro do Eclesiástico (cerca de 180 a.C.) que descreve admiravelmente esta condição: «O que é o ser humano, e para que serve? Qual é o seu bem e qual é o seu mal? A duração de sua vida é de cem anos, quando muito. Como gota no mar e grão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da eternidade. É por isso que o Senhor tem paciência com os seres humanos, e derrama sobre eles sua misericórdia. Ele vê e reconhece que o fim deles é miserável; por isso multiplica seu perdão. A misericórdia humana é em favor de seu próximo, mas a misericórdia do Senhor é para todos os seres vivos» (18,7-12). Olhando para o Novo Testamento, como não considerar o grito de Jesus sobre a cruz – «Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que estão fazendo» (Lc 23, 34) – como a prova extrema do seu infinito amor, que o leva a considerar o mais atroz delito da humanidade como um desesperado gesto de ignorância dos homens? Vv. 17-19. O v. 17 sugere ainda o termo “misericórdia” (hésed). Se a relva e a flor referem o homem que passa, o trono de Deus que está nos céus é a imagem da perenidade do seu amor/misericórdia. Explícita é a vontade do salmista em insistir no “para sempre” de Deus: a misericórdia é de sempre e para sempre, e a sua justiça entendida no sentido de defender os oprimidos, e para os filhos dos filhos; expressão superlativa que significa para todas as gerações. Quem são os destinatários deste amor superabundante? Os tementes a Deus, portanto os piedosos e os que observam a aliança e os seus preceitos. Aliança e preceitos lembram o contexto do Sinai, do Decálogo e da teofania: «Portanto, se obedecerem à minha voz, se forem fiéis à minha aliança, vocês serão minha propriedade particular entre todos os povos, porque a terra inteira me pertence, mas vocês serão para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa. Isso é o que você deverá dizer aos filhos de Israel» (Ex 19,5-6). Ser sua «propriedade especial» (segullah) significa entrar numa relação única com Deus, numa ligação intensa, tecida de cuidados e de proteção. O hino do salmista enriquece-se de motivos fundamentais que alimentam a fé hebraica, proclamando por fim a realeza universal de YHWH (v. 19). Vv. 20-22. Bênção final. Esta bênção é entoada por toda a corte celeste, que é imaginada como uma multidão de figuras angélicas em total serviço divino (cf. Is 75

6; Jó 1-2). Se normalmente a expressão «Senhor dos exércitos» (YHWH zeva’ot) é entendida como uma expressão bélica, da teologia da plenitude emerge outra lógica, que é a da paz e a do amor. Não é pela prepotência que Deus quer fazer-se temer, mas pela benevolência: «Pois agir com a força está sempre a teu alcance: quem poderia opor-se ao poder do teu braço? Porque o mundo todo, diante de ti, é como grão de areia na balança e como gota de orvalho matutino caindo na terra. Tu, porém, tens compaixão de todos, porque tudo podes, e fechas os olhos frente aos pecados dos seres humanos, para que se convertam. Tu amas tudo o que existe, e não detestas nada do que fizeste. Se alguma coisa odiasses, não a terias feito. Como poderia alguma coisa permanecer, se não a quisesses? Ou como poderia alguma coisa se manter, se não a tivesses chamado? Mas tudo poupas, pois tudo é teu, Senhor, amigo da vida» (Sb 11,21-26). «Bendiga o Senhor, ó minha alma (néfesh)»: é desta maneira que fecha a composição, tal como a tinha iniciado: esta inclusão exprime a perenidade do louvor para o qual o orante é chamado a contribuir e que nunca terminará.

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IX

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Salmo 119

81

Minha alma se consome com a tua salvação. Em tua palavra coloco a minha esperança. 82

Meus olhos se consomem pela tua palavra, e eu digo: “Quando me confortarás?” 83

Pois me sinto como odre na fumaça, mas tuas normas não esqueço. 84

Quantos serão os dias do teu servo? Quando hás de fazer justiça contra os meus perseguidores? 85

Os arrogantes fizeram covas para mim, eles que não aceitam a tua lei. 86

Todos os teus mandamentos são sinceros. Eles, porém, mentirosos me perseguem: Socorre-me! 87

Por pouco eles não me aniquilam por terra, mas eu não deixei de buscar socorro em teus preceitos. 88

Pois teu amor me faz viver, e eu observarei o testemunho de tua boca.

O Salmo 119 é o mais longo do Saltério. Segue uma ordem alfabética, como o Salmo 25, mas com uma diferença: se no Salmo 25 cada versículo iniciava com uma letra do alfabeto, no Salmo 119 a letra encontra-se no início de cada estrofe (vinte e duas). O motivo desta estrutura está ligado à vontade de oferecer uma oração onicompreensiva (do “a” ao “z”), que abrace todas as palavras que se podem mencionar sobre o tema da Lei. É a Torá (a Lei), de fato, que está no centro da meditação sálmica, perfazendo um longo elogio da riqueza e do poder da Palavra de Deus. Com base em nossa reflexão, escolhemos a estrofe marcada pela letra Kaf (o nosso “k”), a décima primeira do alfabeto hebraico. A composição apresenta-se como uma lamentação muito próxima da tradição sapiencial, porque apresenta o tema da perseguição dos inimigos (vv. 84.87). V. 81. O verbo com que se inicia o poema aparece nos vv. 81, 82 e 87. Kaláh significa comprimir-se, consumar-se, queimar, mas também, como no v. 87, ser 79

destruído. Nos primeiros dois versículos está descrita a situação psicológica do orante, que chama a atenção para um profundo tormento ligado à espera da salvação do Senhor. Não está especificado o motivo de tanto sofrimento: da descrição dos inimigos, parece que são os infiéis que investem contra quem deseja viver a sua religiosidade (v. 85); ou então, o orante encontra-se na situação de quem é acusado injustamente e espera confiante o juízo divino que restaurará a justiça (v. 84). Na verdade, o salmista encontra-se no limite das suas forças e espera por uma rápida intervenção divina, uma palavra sua decisiva. Aparece neste versículo a palavra néfesh, já referida noutros Salmos, que exprime esta ânsia presente numa inspiração profunda; quando se pronuncia néfesh, com efeito, realiza-se o ato de inspirar e expirar. V. 82. A segunda ocorrência do verbo kaláh é menos psicológica e faz pensar nos olhos desidratados e mais do que ressequidos; a causa desta situação pode ser dupla. A primeira causa de secura pode derivar do choro prolongado, devido a uma doença. Lê-se no Salmo 31: «Senhor, tem piedade de mim, pois estou angustiado. A dor consome meus olhos, minha garganta e meu ventre. Pois em aflição se esgotou a minha vida, e os meus anos em gemidos; por minha iniquidade, minha força vacila e meus ossos se consomem» (vv. 10-11). Semelhante é a descrição do Salmo 6: «Estou cansado com o meu lamento; todas as noites banho de pranto minha cama, e minhas lágrimas dissolvem meu leito. Meus olhos se consomem por causa do desgosto, envelheço diante dos meus inimigos» (vv. 7-8). O olho envelhecido pode ser, principalmente, sintoma de uma proximidade à morte, entendendo por “envelhecido” um olho gasto e quase morto; ao contrário, a luz nos olhos é sinal de vida plena (Sl 19,9). A segunda causa que pode levar à desidratação dos olhos é a incredulidade alheia. Tal motivo está particularmente em sintonia com a estrofe do nosso Salmo, até mesmo porque se encontra noutra passagem do Salmo 119: «Rios de lágrimas descem de meus olhos, pois não guardam a tua lei» (v. 136). Portanto, embora se possa encontrar o motivo da doença, o choro parece ser devido à perseguição de homens descrentes que tornam impossível a vida do homem de fé. V. 83. A imagem do odre exposto à fumaça é, com efeito, especial. Continua o tema do choro, porque a fumaça nos olhos queima e provoca uma dolorosa 80

lacrimação: o orante está continuamente exposto às perseguições dos seus inimigos que lhe tornam insuportável a existência, chegando a sufocá-lo. Outro significado do odre exposto à fumaça pode ser atribuído à velhice: como um odre enegrece pela contínua exposição ao fumo, assim o salmista declara a sua condição de envelhecimento/enegrecimento («Hoje estão mais escuros que o carvão, e na rua ninguém os reconhece; a pele enrugada sobre os ossos, seca como lenha», Lm 4,8). A sua única força está representada pelos preceitos do Senhor, de que tem viva memória. V. 84. Segundo o estilo da lamentação, o salmista dirige a Deus dois pedidos que podemos reformular assim: Até quando irá durar o seu silêncio? Quando será o juízo? O que provoca sofrimento não é somente a situação objetiva, mas também a subjetiva, de quem, na dor intensa e prolongada, se interroga sobre a justiça divina. Referimos já a história de Jó e o seu protesto contra o silêncio divino (cf. comentário ao Salmo 42). Aqui notamos que também a imagem do tribunal é particularmente semelhante à história que se narra no Livro de Jó, em que o protagonista acusa Deus pela sua injustiça. Em nosso Salmo, o orante quer receber a justiça de Deus justo juiz. V. 85. A cova é símbolo de morte e da boca dos infernos. A oração é dirigida a YHWH, o único que pode nos livrar da voracidade do além-túmulo (cf. Salmos 7,16; 9,16; 16,10; 49,10; 94,13). Ao analisar o perfil dos perseguidores, sugerimos duas hipóteses, uma das quais decorre do perfil criminoso de quem se enfurece contra alguém só pelo fato de ser crente. No Livro da Sabedoria (cap. 2), é descrita a atitude hostil do ímpio (asebés, “alguém que não é piedoso”) contra o justo: os ímpios decidem fazer-lhe mal porque a sua presença e o seu estilo de vida provocam incômodo («Vamos preparar ciladas para o justo, pois ele nos incomoda e se opõe a nossas ações. Censura nossas transgressões contra a Lei, e denuncia nossas faltas contra a educação que recebemos» (Sb 2,12). A sua especial e íntima relação com Deus é percebida como uma ameaça («ele proclama ter conhecimento de Deus e afirma ser filho do Senhor. Tornou-se uma reprovação para nossas intenções. Vê-lo é desagradável para nós. Somos considerados por ele como coisa falsa; ele se afasta de nossos caminhos como de impurezas; declara que o destino dos justos é feliz e se alegra em ter Deus como 81

pai», vv. 13-14.16), porque a sua vida está fora dos cânones comportamentais normais («porque a vida dele é diferente da vida dos outros, e seus caminhos são contrários», v. 15). A decisão de pôr à prova a integridade do justo tem o sabor de um desafio contra tudo o que ele representa («Vejamos se as palavras dele são verdadeiras, vamos verificar como será o seu fim. Se realmente o justo é filho de Deus, Deus o ajudará e o libertará da mão de seus adversários. Vamos submetêlo a insultos e torturas, para sabermos de sua serenidade e avaliarmos sua resistência», vv. 17-19) e pretende atingir o objetivo (que os malfeitores desconsideram) de uma confirmação do seu posicionamento de vida («Vamos condená-lo a morte humilhante, pois, segundo suas palavras, haverá quem olhe por ele», v. 20). Estas palavras da Sabedoria e do nosso Salmo podem ser aplicadas aos perseguidos por motivos religiosos de qualquer tempo; mas, de modo muito especial e único, estas palavras fazem-nos lembrar a paixão de Jesus, o justo por excelência, oprimido, vilipendiado e morto pelos malfeitores (Mc 15,16-32; Mt 27,1-50). Vv. 86-87. Quanto mais enfurecida é a hostilidade dos perseguidores, tanto mais o orante professa a própria fé e a ilimitada confiança em Deus e na sua Palavra; esta é indicada como Lei/mandamento (torah) e preceitos (mizwot), termos que na tradição do Pentateuco exprimem a dimensão normativa e ao mesmo tempo indicativa da Palavra revelada (cf. Dt 6). O salmista vai ao núcleo da fé dos padres, encontrando nela o coração pulsante da sua escolha: ao imperativo da fé («Escute, Israel!» – Dt 6,4) ele liga o indicativo da vontade («não deixei de buscar socorro em teus preceitos», Sl 119,87), e isso reforça a sua relação com o Senhor. Na Primeira Carta de São Pedro, encontramos uma passagem que exprime muito bem esta situação de fecundidade nas adversidades: «Por isso, fiquem alegres, ainda que agora, por pouco tempo, vocês precisem suportar, a duras penas, diversas provações. Isso para que a autenticidade da fé que vocês têm receba louvor, honra e glória, quando Jesus Cristo se revelar. Porque a fé que vocês têm é muito mais preciosa do que o ouro que desaparece e é provado pelo fogo. Vocês nunca viram Jesus, mas o amam; não o veem, mas creem nele e exultam com alegria gloriosa, que não se pode explicar. Vocês alcançam, assim, a meta da fé, que é a salvação de suas vidas» (1,6-9). Os destinatários desta carta 82

petrina são pessoas perseguidas pelo simples fato de professarem a fé em Cristo; o Apóstolo exorta a perseverar, porque há um fruto misterioso que esta hostilidade traz consigo. V. 88. Não se vê espírito de vingança nas palavras do orante. Não deseja a morte do inimigo, nem pretende usar a lei de talião («olho por olho, dente por dente», Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21), como legitimamente poderia fazer. A expressão «vivificai-me segundo a vossa bondade [hésed]» pode entender-se de dois modos complementares, devido à partícula hebraica ke («segundo»). Em primeiro lugar, quem reza abre-se ao dom proveniente de Deus, dom da vida plena porque é “proporcionado” à misericórdia divina. Além disso, «segundo a vossa bondade» pode ter um valor motivacional que podemos explicitar assim: «Porque o teu amor existe, faze-me viver». Dito de outra forma: se o orante, na primeira hipótese, deseja uma vida plena e duradoura, segundo a medida de Deus e, portanto, “ilimitada”, na segunda acepção, sublinha-se o dinamismo ligado a esta graça e o papel das motivações que suportam, dia a dia, a sequela («porque o teu amor me assiste, eu posso viver… caminhar»).

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X

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Salmo 136

1

Celebrem ao Senhor, porque ele é bom, porque eterno é o seu amor! 2

Celebrem ao Deus dos deuses, porque eterno é o seu amor! 3

Celebrem ao Senhor dos senhores, porque eterno é o seu amor! 4

Só ele fez grandes maravilhas, porque eterno é o seu amor! 5

Ele fez os céus com inteligência, porque eterno é o seu amor! 6

Ele estabeleceu a terra sobre as águas, porque eterno é o seu amor! 7

Ele fez os grandes luminares, porque eterno é o seu amor! 8

O sol para governar o dia, porque eterno é o seu amor! 9

A lua e as estrelas para governarem a noite, porque eterno é o seu amor! 10

Ele feriu o Egito em seus primogênitos, porque eterno é o seu amor! 11

Ele fez Israel sair do meio deles, porque eterno é o seu amor! 12

Com mão forte e braço estendido, porque eterno é o seu amor! 13

Ele dividiu o mar Vermelho em duas partes, porque eterno é o seu amor! 14

Ele fez Israel atravessar por entre elas, porque eterno é o seu amor! 15

Ele atirou no mar Vermelho o Faraó e seu exército, porque eterno é o seu amor! 16

Ele fez caminhar seu povo no deserto, porque eterno é o seu amor! 17

Ele feriu reis poderosos, porque eterno é o seu amor! 18

Ele matou reis famosos, porque eterno é o seu amor!

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19

Seon, rei dos amorreus, porque eterno é o seu amor! 20

Og, rei de Basã, porque eterno é o seu amor! 21

Ele deu a terra deles como herança, porque eterno é o seu amor! 22

Como herança a seu servo Israel, porque eterno é o seu amor! 23

Ele se lembrou de nós em nossa humilhação, porque eterno é o seu amor! 24

Ele nos livrou de nossos opressores, porque eterno é o seu amor! 25

Ele dá alimento a todo ser vivo, porque eterno é o seu amor! 26

Celebrem ao Deus dos céus, porque eterno é o seu amor!

O Salmo é um hino de ação de graças por excelência, utilizado nas festas de Páscoa, das Cabanas e do Ano Novo. Tem um ritmo litânico porque repete o refrão «porque eterno é o seu amor» por cada momento da história da salvação (criação, redenção, dom da terra). É também chamado o “Grande Hallel” (do verbo halal, “louvar”, daí a palavra halleluya) e foi provavelmente recitado até por Jesus («E, tendo cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras», Mt 26,30). O Salmo exprime bem o tema da maturidade espiritual que caracteriza o quinto livro do Saltério. Como escreveu o Papa Francisco na Bula do Jubileu Misericordiae vultus, «antes da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando afirma que “depois de cantarem os salmos” (26,30), Jesus e os discípulos saíram para o monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este ato supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O fato de saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão em nossa oração de louvor diária: “Eterna é a sua misericórdia”» (MV, n. 7). Depois dos primeiros três versículos, onde se convida ao louvor reconhecedor (vv. 1-3), segue-se a 87

memória da criação (vv. 4-9), da libertação do Egito, com os prodígios que a acompanharam (vv. 10- 16), da destruição dos inimigos de Israel (vv. 17-22); os últimos versículos resumem os benefícios recebidos no presente, entre os quais o dom do pão (vv. 23-26). O primeiro versículo do Salmo e o último (v. 26) formam uma inclusão, delimitando a composição numa unidade literária, porque estão praticamente formulados da mesma maneira. Vv. 1-3. Convite ao louvor. O poema não tem título. Podemos considerar estes primeiros versículos como frontispício no qual se indica o tema do Salmo: ação de graças ao Senhor (v. 1), de quem se declara a superioridade absoluta no confronto com os outros deuses (v. 2) e com os soberanos da terra (v. 3), pela sua bondade e misericórdia. Em Dt 10,17, uma passagem em que se exalta o agir de Deus em favor do seu povo e sobretudo dos pobres, os dois títulos vêm juntos, como neste nosso Salmo: «porque Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, valente e terrível, que não faz discriminação entre as pessoas e não aceita suborno». A palavra hésed é repetida vinte e seis vezes, “misericórdia”, “amor benévolo”, que em português também se traduziu por «bondade». Está presente em cada versículo, marcando o ritmo do poema: toda a história da salvação é lida à luz da misericórdia e da vontade amorosa de Deus, para que intervenha em favor do seu povo, desde o início da criação até os nossos dias. «Eterna» exprime a indefectibilidade de tal amor, que nunca acabará nem faltará. O propósito da memória e da reelaboração do passado é, de fato, mostrar o agir divino em favor do seu povo, obtendo uma lição de fé e de esperança pelo presente da comunidade: «Inserindo-se vitalmente na tradição orante dos hebreus», refere São João Paulo II a propósito da consciência orante do amor divino, «os cristãos aprenderam a rezar cantando as Magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus, quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história de Israel e da Igreja. Por isso, o Livro dos Salmos permanece a forma ideal da oração cristã» (João Paulo II, Audiência geral de 28 de março de 2001, n. 5). Vv. 4-9. A criação. A consciência explícita da criação, ainda que sempre tenha feito parte do credo de Israel, torna-se mais explícita durante o exílio babilônico 88

(587-539 a.C.), e isto poderia ser um pequeno indício da possível datação do Salmo. Vv. 4-5. É repetido três vezes o verbo que aparece nas narrativas da criação (Gn 1-2), «fazer» (‘asah, vv. 4-5.7), que significa plasmar, modelar, veiculando a imagem de um Deus criador, próximo da sua criatura, que, com as suas mãos, a molda como um oleiro o seu barro. Céu, terra, água, sol e lua: em poucos versículos evoca-se a criação nos seus elementos constitutivos. Em Gn 1,6-8, Deus cria o “céu” (shamaym é formalmente um plural) com a finalidade de ter separadas as águas superiores das inferiores; o firmamento (raqía) é imaginado como uma abóbada de metal liso cuja finalidade é ter sob controle a virulência das águas que estão acima e das águas que estão debaixo. No Salmo 136, os céus foram criados com «sabedoria», tal como no Livro dos Provérbios se refere a propósito da Sapiência mediadora: «Eu estava lá quando ele fixava o céu e traçava um círculo sobre as faces do abismo. Eu já estava presente quando ele formava as nuvens do alto e quando as fontes do abismo mostravam sua força; quando impôs suas leis para o mar, para que as águas não ultrapassassem seus limites; e também quando assentava os fundamentos da terra. Eu estava junto dele, como mestre de obras. Eu era sua alegria todos os dias, e brincava o tempo todo em sua presença» (Pr 8,27-30). A obra divina é fruto da sua vontade de criar um mundo ordenado e harmonioso, um habitat adaptado à vida humana, tal como emerge de Gn 1-2. Vv. 6-9. A terra (’érez) é imaginada como que arrumada sobre as águas, conforme se lê em Gn 1,9-10, onde se diz que Deus canaliza as águas para fazer emergir a terra seca que navega sobre o mar. Também no Livro do Gênesis se mencionam o sol e a lua, chamados «grandes luzeiros», segundo a sensibilidade teológica do autor, que reduziu estes astros a simples sinais, para regular o calendário humano das festas e das estações; e isto para evitar qualquer atribuição às divindades astrais, veneradas nas nações limítrofes. No Salmo 136, pelo contrário, aparece o nome dos astros (sol, lua e estrelas) sem nenhuma preocupação idolátrica, porque tudo é reconduzido explicitamente à onipotência divina que tudo controla. Como no Gênesis, aos astros é atribuído um espaço e uma função reguladora para iluminar. 89

Vv. 10-16. A libertação do Egito. Os fatos narrados nos livros do Êxodo e dos Números são cantados nos vv. 10-22, ocupando a maior parte do Salmo. Isto representa uma orientação da linha que segue a interpretação: Quando é que Israel experimentou a misericórdia divina? Quando se encontrava em dificuldade, escravo, oprimido e nômade no deserto. É lembrada a décima praga, a dos primogênitos, que está especialmente ligada ao rito da Páscoa (Ex 12): o Senhor pede uma aspersão de sangue sobre os batentes das portas como sinal da presença dos israelitas, sangue que foi recolhido do cordeiro degolado e sacrificado na Páscoa. O agir de Deus – do qual a mão direita exprime o poder salvador, como na passagem do mar Vermelho (Ex 15,6) – é descrito em termos de saída («fez sair», v. 11), como se fosse uma locução verbal técnica indicadora do êxodo (Ex 12,51; 19,17; Nm 20,16; Dt 6,21). De modo essencial é descrita a passagem do mar Vermelho (vv. 13-15): a entrada do povo pelo mar adentro e a morte do Faraó e do seu exército, quando as águas voltaram a reunir-se sob o comando de Moisés (Ex 14). Compare-se no v. 16 o tema do deserto. A tradição profética referiu-se muitas vezes ao deserto mais como um tempo do que como um espaço. Durante estes quarenta anos, YHWH foi a única segurança de Israel, ao passo que, na fase de instalação na terra prometida, o povo vive uma espécie de sedentariedade espiritual, esquecendo os benefícios recebidos de Deus e todas as suas atenções. Oseias (século viii a.C.), o profeta do amor por excelência, lembra o tempo do deserto associando-o ao período de enamoramento, com o fim de reavivar o amor de Israel (descrito como Gomer, a esposa infiel do profeta), agora tíbio e até manchado de infidelidade: «Agora, sou eu que vou seduzi-la, vou levá-la ao deserto e falarei ao seu coração […]. Acontecerá naquele dia – oráculo do Senhor – que você me chamará “Meu marido” e não mais “Meu Baal” […]. Eu me casarei com você para sempre. Eu me casarei com você na justiça e no direito, no amor e na ternura. Eu me casarei com você na fidelidade, e você conhecerá o Senhor» (Os 2,16.18.21-22). A misericórdia do Senhor manifestou-se nos cuidados amorosos que Israel recebeu em termos de guia (Dt 32), alimento e vestuário, tal como se lê no Deuteronômio: «Eu os fiz caminhar quarenta anos pelo deserto, sem que se 90

desgastassem as suas vestes nem as sandálias de seus pés. Vocês não comeram pão, nem tomaram vinho ou bebida forte, para ficarem sabendo que eu sou o Senhor, o Deus de vocês» (29,4-5). Vv. 17-22. A destruição dos inimigos de Israel. Outro sinal da proteção divina vem indicado no vexame das populações e dos seus soberanos contra os quais Israel combateu (Nm 21,21-35; Dt 1,4; 3,1-13; Js 2,10). No Salmo são nomeados dois reis, Sehon e Og, mencionados no Salmo 135,11, e dos quais também o Deuteronômio conserva memória, com a finalidade de suscitar no povo a justa observância dos preceitos divinos («Por fim, vocês chegaram a este lugar. Seon, rei de Hesebon, e Og, rei de Basã, saíram em guerra contra nós, mas nós os derrotamos. Tomamos suas terras e as demos para ser a propriedade de Rúben, de Gad e da meia tribo de Manassés. Vocês devem guardar as palavras desta Aliança e colocá-las em prática, para serem bem-sucedidos em tudo quanto fizerem», Dt 29,6-8). Para além das conotações históricas e geográficas, o salmista pretende sublinhar a força de Deus contra todos os inimigos do seu povo. Os povos pagãos (goyim) são apresentados sumariamente como símbolo da maldade e dos inimigos de Israel; isso explica a presença de uma lista menos fixa, que aparece idêntica em alguns textos do Antigo Testamento: Cananeus, Hititas, Amorreus, Perezeus, Eveus e Gebuseus. No Salmo 136, os dois reis mencionados, Seon e Og, devem considerar-se como os “principais” adversários que YHWH derrotou para dar um lugar aos seus eleitos. Vv. 23-26. Recordação dos benefícios recebidos e dos bens presentes. O tema da humilhação do v. 23 pode referir-se a todas as situações em que Israel a experimentou por causa das suas muitas infidelidades (cf. Dt 8,3; 1Rs 8,35; 2Cr 28,19). Mas é sobretudo o exílio babilônico, com a consequente perda da terra prometida e do culto, que representa o ponto mais baixo da história de Israel, porque cria desânimo, desorientação e contrição: «No entanto, Senhor, nós estamos diminuídos em meio a todas as nações; estamos hoje humilhados na terra inteira, por causa dos nossos pecados. Neste nosso tempo, não há chefe, profeta ou dirigente, nem holocausto, sacrifício, oferenda ou incenso; não existe lugar onde te oferecer os primeiros frutos e alcançar misericórdia. Mas, com alma 91

despedaçada e espírito humilhado, sejamos aceitos como se viéssemos com holocaustos de carneiros, touros e milhares de gordos cordeiros» (Dn 3,37-39). O Senhor, derrotando os adversários históricos de Israel, manifesta fidelidade à palavra dada a Abraão (Gn 12; cf. também Lc 1,54-55: «Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, como tinha dito a nossos antepassados, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre»). O v. 25 contém a imagem, difusa no Saltério, de Deus que mata a fome de todo ser vivente (SL 104, 27-28; 145,15; 147,9; cf. também AT 14,16-17). O original hebraico fala de “toda carne”, alargando assim o horizonte da misericórdia divina a toda a criação e abraçando, segundo um projeto imprevisto para os homens, também os animais. «Tua justiça é comparada às montanhas de Deus, e teus julgamentos são como o grande oceano. Senhor, tu salvas homens e animais» (SL 36[35],7). O último versículo (v. 26) encerra o poema, voltando ao versículo inicial: «O credo chegou ao fim, mas não se concluiu. Por isso, o Salmo encerra-se num modo circular, retomando o início numa espécie de louvor perene, porque Deus nunca vai cessar de amar, de salvar, de doar e, portanto, nunca poderá deixar de existir a nossa ação de graças» (G. Ravasi, O livro dos Salmos. III, 742). A misericórdia, e não o ódio, a vingança, a injustiça e os abusos, é a chave de leitura da história. A misericórdia permite que não se limite o próprio horizonte na imanência dos conflitos, porque rompe com a espiral da lei de talião, fazendo progredir a história e o caminho da humanidade para a sua realização plena em Deus.

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Coordenação de desenvolvimento digital: Guilherme César da Silva Revisão: Rita Bruno Célia Nogueira Tiago J. Risi Leme Iranildo Bezerra Lopes Tradução: Mário José dos Santos Capa: Edizione San Paolo Desenvolvimento digital: Daniela Kovacs Conversão EPUB: Paulus Citações bíblicas: © Nova Bíblia Pastoral, São Paulo: Paulus, 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Os Salmos da Misericórdia [livro eletrônico]; Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização [organizador]; [tradução: Mário José dos Santos] – São Paulo: Paulus, 2015 664Kb; ePUB Título original: I Salmi della Misericordia © Pontificio Consiglio per la Promozione della Nuova Evangelizzazione © PAULUS Editora, Portugal, 2015 © PAULUS – 2016 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 paulus.com.br • [email protected] [Facebook] • [Twitter] • [Youtube] eISBN 978-85-349-4340-6

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Os Papas e a Misericórdia Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização 9788534943345 144 páginas

Compre agora e leia Na Bula de convocação do Jubileu, intitulada Misericordiae Vultus, Papa Francisco recorda três antigos papas que dedicaram especial atenção ao tema da misericórdia. Ele falava de João XXIII, que, ao convocar o Concílio Vaticano II, disse: "Agora a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia, em vez da severidade”; de Pablo VI, que, na conclusão do concílio, indicou o samaritano misericordioso como modelo de espiritualidade a ser seguido pela Igreja e seus fiéis; e João Paulo II, que fala, em sua Carta Encíclica Dives in Misericordia, da Revelação da Misericórdia de Deus. Este livro apresenta a riqueza dos pensamentos desses grandes líderes da Igreja Católica sobre a mensagem central do Jubileu. Compre agora e leia

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Pastoral da Escuta Pereira, José Carlos 9788534937078 96 páginas

Compre agora e leia A Pastoral da Escuta é um braço da Pastoral da Acolhida. O agente dessa Pastoral escuta atentamente as necessidades e desabafos da pessoa, e busca apontar caminhos de solução. Este subsídio apresenta os passos necessários, as ferramentas para auxiliar na implantação e manutenção da Pastoral da Escuta. A obra se coloca dentro do espírito do Documento de Aparecida e das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, com a intenção de contribuir no processo de evangelização e para o estado permanente de missão das comunidades paroquiais. Diz o autor: "Os avançados meios de comunicação, a tecnologia e a informática criam modalidades de interação que não substituem o contato pessoal, o olho no olho, a presença física de alguém que ouça gratuita e desinteressadamente”. Compre agora e leia

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Índice Rosto Apresentação Introdução Os dez Salmos da Misericórdia

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I - Salmo 25 II - Salmo 41 III - Salmo 42 IV - Salmo 43 V - Salmo 51 VI - Salmo 57 VII - Salmo 92 VIII - Salmo 103 IX - Salmo 119 X - Salmo 136

16 25 32 36 43 53 61 68 79 86

Ficha Catalográfica

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