Os "Sonhos" de Kurosawa interpretados pela Psicologia Analítica
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O maior dos cineastas japoneses, Akira Kurosawa, fez no outono de sua vida um filme autobiográfico baseado em oito sonho...
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JOSÉ FELIPE RODRIGUEZ DE SÁ
“VI UM SONHO ASSIM” :
OS SONHOS DE KUROSAWA INTERPRETADOS PELA PSICOLOGIA ANALÍTICA
BAHIA 2012
JOSÉ FELIPE RODRIGUEZ DE SÁ
“VI UM SONHO ASSIM” :
OS SONHOS DE KUROSAWA INTERPRETADOS PELA PSICOLOGIA ANALÍTICA
Trabalho de conclusão do XII curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Psicoterapia Analítica do Instituto Junguiano da Bahia e Fundação Bahiana Para o Desenvolvimento das Ciências. Orientadora: Professora Dra. Ermelinda Ganem Fernandes.
BAHIA 2012
Dedico este trabalho a meu pai, José de Sá Neto, cuja paixão pelo bom cinema e exímio conhecimento do idioma japonês me fez conhecer a obra de Akira Kurosawa. Longa vida, Dr. Zeca!
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer às seguintes pessoas, imprescindíveis para a conclusão conclus ão deste projeto: À minha orientadora, Ermelinda Ganem. O seu entusiasmo pelo tema e as suas sugestões foram cruciais para tornar este trabalho algo do qual q ual me orgulho – profundamente. À Vera Lúcia, cujo misto de incentivo e constante revisões de texto – feitas de graça, ainda por cima – em grande medida melhoraram o produto final.
À minha amiga Simone Velame, cuja benfazeja assistência abriu uma clareira na selva das normas da ABNT para mim.
RESUMO O maior dos cineastas japoneses, Akira Kurosawa, fez no outono de sua vida um filme autobiográfico baseado em oito sonhos seus. A rica simbologia desses oito episódios é como uma janela para o folclore e as expressões religiosas do Extremo Oriente. No entanto, a interpretação de Sonhos esbarra num considerável obstáculo: a fossa cultural que separa o Japão da nossa cultura Ocidental, judaico-cristã. Um estudo focado principalmente no budismo, xintó e na biografia do diretor ajuda a transpor tal barreira, somado a comparações com os mitos, lendas e contos de fada da África, Brasil e Europa. Tanto as expressões artísticas como a vida onírica são temas que suscitam interesse por parte de analistas junguianos, e a compreensão psicodinâmica dessa produção cinematográfica agregará ao repertório hermenêutico da psicologia analítica.
Palavras-chave: Cinema como Assunto; Folclore; Japão; Religião e Psicologia; Sonhos; Teoria Junguiana.
ABSTRACT The greatest of Japanese filmmakers, Akira Kurosawa, directed, in the twilight of his life, an autobiographical film based on eight dreams of his. The rich symbolism behind these eight episodes is like a window into the folklore and religious manifestations of the Far East. However, the interpretation of Dreams faces a major hurdle: the cultural abyssal trench between Japanese and Judeo-Christian Western culture. An analytical essay with Buddhism, Shinto and Kurosawa’s biography as foci, helps to overcome this barrier, aided by comparing it with myths, legends and fairy tales of Africa, Brazil and Europe. Both artistic expressions and oniric life are themes that arouse interest in Jungian analysts, and the psychodynamic understanding of that particular movie will aggregate into the hermeneutical repertoire of analytical psychology.
Keywords: Dreams; Folklore; Japan; Jungian Theory; Motion Pictures as Topic; Religion and Psychology.
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Precursores da psicanálise em visita à Clark University (1909)
17
Figura 2 - Yuki Onna (1737), por Sawaki Sūshi
54
Figura 3 - Cérbero (1824-1827), de William Blake
60
Figura 4 - Auto-retrato de orelha ligada (1889), de Vincent van Gogh
64
Figura 5 - A grande onda em Kanagawa (1826), de Katsuhika Hokusai
69
SUMÁRIO 1 1.1 1.2 1.2.1 1.2.2
INTRODUÇÃO CARL GUSTAV JUNG (1875-1961) OBJETIVOS Objetivo Geral Objetivos Específicos
11
1.3
METODOLOGIA
11
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS 2.1 PSICOLOGIA ANALÍTICA: BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO 2.1.1 Freud, Jung e a Psicanálise
8 10 11 11 12 13 14
2.1.2 2.1.3 2.1.4 2.1.5
A ruptura com Freud Conceitos básicos da Psicologia Junguiana A função dos sonhos Individuação
24
2.2
O ESPÍRITO DO JAPÃO
25
2.3
AKIRA KUROSAWA
32
2.4
OS PERIGOS DA SUPERINTERPRETAÇÃO
36
3
SONHOS
38
3.1
“SOL COM CHUVA” (日照り雨)
40
3.2
“O POMAR DOS PESSEGUEIROS” (桃畑)
49
3.3
“A NEVASCA” (雪あらし)
53
3.4
“O TÚNEL” (トンネル)
57
3.5
“CORVOS” (鴉)
62
3.6
“FUJI VERMELHO” (赤冨士)
68
3.7
“O DEMÔNIO CHOROSO” (鬼哭)
73
18 20 24
3.8
“ALDEIA DOS MOINHOS D’ÁGUA” (水車のある村)
78
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
81
REFERÊNCIAS
83
CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO
8
A associação entre sonhos e arte é perene. O pintor Salvador Dalí, figura máxima do movimento surrealista, foi inspirado por A Interpretação dos Sonhos (1900), o tomo apoteótico do pai da psicanálise, Sigmund Freud. O mundo das letras também foi grandemente afetado pelas produções oníricas. Dois grandes clássicos de suspense do século XIX – Frankenstein (1818) de Mary Shelley e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson – foram escritos após os seus respectivos autores terem acordado de pesadelos angustiantes com as ideias básicas da sua narrativa. O poeta britânico visionário William Blake dava bastante valor aos seus sonhos, e seu estado de vigília e noturno eram fortemente entrelaçados (VAN DE CASTLE, 1994). A associação entre sonhos e cinema também é de longa data. Grandes diretores como Buñuel, Bergman e Fellini foram inspirados por suas experiências oníricas, muitas vezes tentaram reproduzi-las através de técnicas da 7º arte (VAN DE CASTLE, 1994). O espanhol Luis Buñuel (1900-1983), pioneiro do movimento surrealista, inspirava-se nos seus sonhos para traduzir sua imaginação delirante para as telas do cinema. O seu primeiro filme, Um Cão Andaluz (1928), cujas possíveis interpretações confundem os críticos até hoje, é um vivo exemplo disso (EBERT, 2004). Ingmar Bergman (1918-2007) declarou numa entrevista ter descoberto que todos os seus filmes “eram sonhos”. A obra-prima do diretor italiano Frederico Fellini, 8½ (1964), foi grandemente
inspirado por sonhos e devaneios oníricos (VAN DE CASTLE, 1994). É partindo dessa longa tradição de associação que se chega ao foco deste trabalho – Sonhos (1990), uma das últimas criações do mais importante dos diretores do cinema japonês, Akira Kurosawa (1918-1993). Depois de finalizar a sua grande obra-prima, Ran (1985), Kurosawa passou cinco anos procurando financiamento para seu próximo projeto, até que finalmente conseguiu o apoio de diretores consagrados como Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola (RICHIE, 1996). Sonhos foi rodado durante um boom final de criatividade onde o diretor concluiu três filmes num período de quatro anos (NOVIELLI, 2007; PRINCE, 1999). Sonhos inaugura a fase final de Kurosawa aonde o diretor parte para um modo narrativo novo e experimental, cada vez mais contemplativo e autobiográfico (PRINCE, 1999).
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O roteiro de Sonhos foi construído a partir de oito sonhos de Kurosawa (RICHIE, 1996). Os temas do filme de Kurosawa são múltiplos; temos desde fatores ecológicos até libelos antiguerra, como nos episódios O Túnel e O Demônio Choroso (PRINCE, 1999).
1.1 CARL GUSTAV JUNG (1875-1961) O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, procurou durante sua carreira entrar em contato com a cultura, os mitos e as religiões de outros povos, assim enriquecendo e expandindo o seu sistema psicológico (BAIR, 2006a, 2006b). Essa abordagem pluriculturalista é de suma importância nesse trabalho, onde se explorará sonhos que nascem de uma psicologia diferente da ocidental. Visa-se utilizar as ferramentas conceituais da psicologia junguiana para analisar um artefato cultural; mais precisamente, um filme. Diz Metz (1980, p. 30) que o cinema “é hábil em designar coisas sem nomeá-las” – ou seja, algo prenhe de um simbolismo que por natureza ultrapassa o estreito âmbito da racionalidade. Novielli (2007, p. 19) aponta que o cinema foi tido inicialmente como “um intermediário ideal com o mundo ocidental” para os japoneses. Percorre-se o caminho contrário neste trabalho: Sonhos será uma porta de entrada para a psique japonesa, algo pouco explorado por analistas junguianos ocidentais. No entanto, o próprio Jung (1986) alertava para as dificuldades desse empreendimento, pontuando a diferença fundamental entre o pensamento oriental e ocidental. Exemplificando as dificuldades dessa tarefa transcultural, o analista junguiano japonês Kawai (2007) aponta que os contos-de-fada manifestam características da cultura das quais são oriundas, possuindo seus próprios significados; assim sendo, a interpretação dos contos japoneses por pesquisadores ocidentais é habitualmente uma tarefa confusa e difícil. Teorias ocidentais aplicadas por pesquisadores japoneses no folclore do seu próprio país sofrem do mesmo destino. No entanto, Kawai (2007) atina para o fato de que os contos de fada possuem uma natureza universal. Isso está dentro dos conformes da pesquisa analítica, que ao se debruçar sobre os mitos e símbolos de vários povos visa achar os temas universais recorrentes em todas as culturas que nos unem e nos definem como seres humanos. Franz (1990, p. 9) defende a posição de que os “contos de fadas são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo”. 10
Nisso diferem um pouco dos mitos, que para ela já tem uma elaboração cultural e refletem o caráter nacional dos países dos quais se originaram.
1.2 OBJETIVOS
1.2.1 Objetivo Geral Interpretar, pela ótica da Psicologia Analítica, o roteiro do filme Sonhos de Akira Kurosawa.
1.2.2 Objetivos Específicos
Aplicar conceitos da psicologia junguiana visando a análise simbólica do filme.
Balizar essa interpretação considerando não só os fatores biográficos do diretor, mas também contextualizando a narrativa e o roteiro dentro de especificidades da cultura nipônica.
Destacar os perigos de uma interpretação onírica unilateral, baseada exclusivamente num ponto de visto judaico-cristão ocidental.
1.3 METODOLOGIA A pesquisa desenvolvida nesse trabalho é do tipo exploratória de cunho bibliográfico, ou seja: através de um levantamento bibliográfico, baseada na análise de material previamente publicado (artigos, filmes e livros) busca-se uma maior familiaridade com o tema em questão (SILVA, 2001).
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CAPÍTULO 2:
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
12
2.1 PSICOLOGIA ANALÍTICA: BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO Carl Gustav Jung nasceu no Cantão (estado) da Basiléia, Suíça, em 26 de Julho de 1875. Seu pai, Paul Achilles Jung, era um instruído, porém pobre vigário rural e a sua mãe, Emilie Preiswerk, era uma dona de casa adepta do espiritualismo. Mais tarde o Jung pai atravessou uma crise de fé devido ao seu contato com a então incipiente psiquiatria; enquanto isso, a senhora Jung organizava seánces em torno de uma prima de Carl, Hélène “Helly” Preiswerk . Essas e outras diferenças entre o
casal tiveram um efeito duradouro sobre a vida de Carl. Apesar da pobreza material dessa nova geração da família Jung, Carl Gustav vinha de uma linhagem de veneráveis médicos e sacerdotes (BAIR, 2006a). O jovem Jung foi profundamente afetado pelo Romantismo alemão, encarnado para ele através do poeta e dramaturgo Friedrich Schiller (1759-1805) e Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), autor de Fausto (1806/1832), uma obra chave para o movimento. Desse fenômeno cultural também absorveu a contestação do cientificismo estrito e da visão mecanicista da mente trazidas pelo Iluminismo. Clarke (1993) explicita essa influência na obra de Jung: ...no compromisso com a análise e reabilitação do instinto, intuição e imaginação; na preocupação com símbolos, arquétipos e o mundo dos sonhos e da fantasia; na crença em que a arte é criada a partir de profundezas inconscientes da alma; no entendimento da necessidade humana de raízes e relacionamento simbiótico com a natureza (CLARKE, 1993, p. 86).
Uma influência duradoura no pensamento Junguiano foi o filósofo Immanuel Kant (17241804). Na epistemologia Kantiana, o conhecimento era organizado a priori em “categorias”, um combinado de princípios que estabelecem a maneira de como vivenciaremos e entenderemos o mundo exterior. Há, certamente, uma semelhança entre as “categorias” de Kant e as disposições mentais inatas batizadas por Jung de “arquétipos”, cuja descrição será feita numa seção posterior
deste capítulo. Outro traço herdado da filosofia kantiana por Jung é a desconfiança do filósofo alemão à respeito da metafísica. Mesmo depois dos longos anos de trabalho dedicados à compreensão das crenças envolvendo a teologia cristã, gnosticismo, astrologia e alquimia, o Jung maduro foi categórico em evitar que especulações místicas e transcendentais fizessem parte do seu sistema de psicologia (CLARKE, 1993). 13
Após concluir o ginásio, era hora de decidir por uma profissão. Dividido entre as ciências naturais e as ciências do espírito, Jung (2005) optou por estudar medicina. Apesar da sua rotina atarefada com os atendimentos clínicos, ele se dispôs a ler a obra de Friedrich Nietzsche (18401900). O contato com Assim Falou Zaratustra (1883-1885) lhe causou profunda impressão. Esse livro, mais o Fausto de Goethe, foram os pontos de partida de sua obra, segundo ele próprio. Ao término de sua graduação especializou-se em psiquiatria, pois nesta sua disciplina poderia estudar de perto seus temas favoritos: o espiritualismo e a teoria religiosa (BAIR, 2006a). Em dezembro de 1900 Carl Jung mudou-se da Basiléia para aceitar um cargo de médico assistente no Hospital e Clínica Universitária Psiquiátrica Cantonal de Zurique, vulgo o Hospital Mental Burghölzli. Era um dos “asilos mentais” mais prestigiados da Europa. Na direção do hospital estava Eugene Bleuler (1857-1939), famoso pelos seus métodos pouco convencionais e trato humanitário com os seus pacientes esquizofrênicos. Com o apoio do diretor do Burghölzli, escreveu a sua dissertação médica sobre o espiritualismo, baseadas nas experiências mediúnicas de Helly Preiswerk (BAIR, 2006a).
2.1.1 Freud, Jung e a Psicanálise Jung (2005) já tinha travado conhecimento dos escritos de Sigmund Freud através de Estudos Sobre a Histeria (1895) e demais trabalhos feitos em parceria com Joseph Breuer. Jung (2005) leu A Interpretação dos Sonhos no ano em que foi publicado, mas só foi dar a devida atenção ao livro três
anos depois, e constatou a compatibilidade de suas ideias com as do controverso médico. A Interpretação dos Sonhos é considerada a obra-prima de Sigmund Freud; é onde o neurologista vienense fundamenta a sua teoria do inconsciente e defende que a “via régia” para o seu acesso, o
sonho, satisfaz desejos reprimidos. Na gênese desse fenômeno está o conhecido complexo de Édipo, onde a criança manifesta erotismo e amor em relação a um dos seus genitores e ciúme e hostilidade para com o outro (JONES, 1979). Na opinião de Jung (1989), os problemas levantados pelo autor de A Interpretação dos Sonhos eram de suma importância para a psiquiatria e a neurologia.
No entanto, o trabalho de Freud era visto na época como algo dúbio, entre o escandaloso e o pseudo-científico (KERR, 1997). Quando Freud expôs A Etiologia da Histeria (1896) perante a 14
Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, a recepção foi gélida. Freud afirmava na sua chamada “teoria da sedução” que a histeria em suas pacientes adultas era causada por traumas
sexuais da infância, perpetrados pelos abusos de pais perversos. Um exemplo do ceticismo que se seguiu foi a reação do psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, autor do seminal Psychopathia Sexualis (1886). Krafft-Ebing estava presente na exposição de Freud (era presidente da sessão) e declarou que os resultados obtidos pelo seu colega soavam como um “conto de fadas científico” (JONES,
1979, p. 270). A insistência do neurologista vienense na etiologia sexual da histeria já tinha provocado debates acalorados e indignação moral (JUNG, 1989). A afronta de suas ideias à moralidade vitoriana pode ter sido um fator de resistência; porém, deve-se também admitir que as bases empíricas de sua hipótese eram frágeis. De fato, o próprio Freud admitiu na sua correspondência com o médico alemão Wilhem Fliess (1958-1928), seu amigo íntimo naquele período, a dificuldade de angariar provas concretas para estes casos de “sedução”. Concluiu que os relatos colhidos por ele eram na verdade fantasias inconscientes de suas pacientes. A sua marginalização acadêmica, suspeitava Freud, devia-se a sua origem judaica. A nomeação para o cargo de Professor-Adjunto na Universidade de Viena – garantia de melhoria na sua atividade clínica e de poder fazer conferências sobre a psicanálise, no seu estado embrionário – sofreu inúmeros revezes, supostamente devido a este fator (JONES, 1979). Fora as suas opiniões desconcertantes a respeito da sexualidade e o antissemitismo austríaco, Freud tinha de conviver com uma mancha na sua carreira: na década de 1880 ele fora o principal divulgador da cocaína na Europa, alegando que o uso dessa novidade farmacológica tratava a fadiga, a impotência sexual e a neurose (KERR, 1997). No início da carreira universitária de Jung (2005), quando este se tornou professor de psiquiatria da Universidade de Zurique e médico-chefe do Burghölzli, a psicanálise era apenas discutida nos corredores dos congressos de medicina e nunca no lugar de pauta principal de tais eventos. A essa altura da história C. G. Jung e Franz Riklin (1878-1938), um colega do Burghölzli, já tinham se tornados peritos no teste de associação de palavras. Foi Sir Francis Galton1 (1822-1911) o inventor da experiência onde um paciente era incentivado a anunciar a primeira coisa que associasse à lista de cem palavras-estímulo ditas pelo aplicador do teste. Ao repassar novamente a lista de palavras, Galton descobriu três coisas: (i) algumas associações provocavam emoções 1
Inventor da psicometria e primo de Charles Darwin (1809-1882), o pai da teoria da evolução.
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específicas; (ii) algumas associações remontavam à eventos da infância; (iii) algumas associações se repetiam. Riklin tomou conhecimento desse teste no período em que trabalhou na clínica do eminente psiquiatra Emil Kraepelin (1856-1926), com a diferença que um cronômetro era usado para medir o tempo das respostas. Jung aplicou uma versão mais sofisticada deste teste, utilizando um galvanômetro para medir a resistência elétrica cutânea para as respostas verbais. Jung e Riklin teorizaram sobre os conflitos psicológicos por trás da amnésia, da demora ou da repetição constante de certas respostas: por trás deles havia os “complexos”, agrupamentos de sentimentos suprimidos ligados à repressão sexual. Jung se alicerçou na psicanálise – considerada por ele como uma das maiores conquistas da psicologia moderna – para explicar a psicopatologia subjacente a estes complexos. O experimento da associação de palavras deu a Jung fama internacional. Apesar de Freud ter uma postura crítica em relação às experiências de associação feitas por Jung e a equipe de Zurique, os testes efetuados pelos suíços tiveram peso para o status científico da psicanálise como método de investigação (KERR, 1997). Na primavera de 1906, Jung escreveu a sua primeira carta endereçada à Freud, estabelecendo assim a correspondência entre eles (BAIR, 2006a). Jung (2005) por fim visitou Viena a convite de Freud, em fevereiro de 1907. A conversa entre os dois homens durou 13 horas. Jung ficou impressionado, achando-o “extraordinariamente inteligente”. Ficou também impressionado pela sua “teoria sexual”. Freud, segundo Jones (1979), ficara por sua vez impressionado pela energia do seu
jovem colega. A inclusão de Jung no círculo psicanalítico foi inteiramente bem-vinda por Freud. Ao alçar o colega suíço ao posto de “filho” e herdeiro científico, Freud aliviou os temores de que a psicanálise ficasse confinada a um gueto judeu. Jung, “cristão e filho de pastor” e psiquiatra de
renome internacional, teria um papel crucial nos planos de expansão da psicologia fundada pelo médico vienense (BAIR, 2006a). Além da contribuição teórica para a concepção de mente formulada pelo seu mentor, Jung demonstrou o seu empenho à psicologia freudiana quando organizou o I Congresso Internacional de Psicanálise, realizado no dia 27 de abril de 1908 em Salisburgo, Áustria. No ano seguinte foi
escolhido para o cargo de editor do Jahrbuch2 do qual Freud e Bleuler eram co-diretores. O 2
Abreviação de Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (tradução: O anuário de psicologia e pesquisas psicanalíticas e psicopatológicas). A sua edição inaugural foi lançada em fevereiro de 1909. Foi o primeiro periódico voltado exclusivamente para a psicanálise.
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psiquiatra suíço engrossou o contingente de psicanalistas convidados para palestrar no congresso promovido pela Clark University, em setembro de 1909. Foi o primeiro reconhecimento oficial da ciência de Freud nos Estados Unidos da América. Por fim, Jung foi o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional, fundada no congresso de Nuremberg, Alemanha, realizado entre 30 e 31 de março de 1910. Este congresso foi novamente organizado por Jung, desta vez em parceria com Freud (KERR, 1997).
Foto tirada em frente a Clark University, outono de 1909. Na primeira fileira: Sigmund Freud, G. Stanley Hall (18441924), o reitor da universidade e Carl Jung. Hall foi um psicólogo conhecido pelas suas discussões a respeito da sexualidade púbere e dos fatores filogenéticos que levam ao desenvolvimento da personalidade na adolescência. Um marco na sua carreira foi fundar o American Journal of Psychology, em circulação até hoje. Na fileira de trás estão Abraham A. Brill, Ernest Jones e Sándor Ferenczi. Depois das defecções de alguns psicanalistas de renome, Jones e Ferenczi formaram um “grupo de elite” – o “Comitê” secreto – para manter a primazia do ponto de vista de Freud na evolução da psicanálise (KERR, 1997).
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2.1.2 A ruptura com Freud Desde o início de sua carreira, Jung tinha reservas ao trabalho de Freud. No seu primeiro artigo científico defendendo os méritos da psicanálise – Resposta à crítica de Aschaffenburg, de 1906 – Jung (1989, p. 1) disse, textualmente, que não subscrevia “incondicionalmente”, a “todos os teoremas de Freud”. No entanto, enquanto praticou a psicanálise – entre 1907 e 1912 – Jung (1989)
defendeu a doutrina de Freud contra acusações de sugestão e interpretações arbitrárias. Falava do “empirismo prático” e dos “indiscutíveis resultados” que sustentavam as bases teóricas da
psicanálise e combatia os “adversários incondicionais” dela. De início concordou que os conflitos de natureza psicossexual estavam na origem da maioria das neuroses. Apesar de sua fidelidade à causa freudiana, Jung era um pensador independente. Não tardaria para surgir uma cisão entre suas teorias e as do inventor da psicanálise. Os críticos de Jung o viam tentar uma versão cristianizada da psicanálise, onde “menosprezava” a sexualidade (KERR, 1997). Carl Gustav tinha a sua própria versão dos fatos. Logo no primeiro encontro com Freud em Viena, Jung (2005, p. 136) ficou impressionado com o “apego extraordinário” que Freud tinha à sua “teoria sexual”. Freud, contente em divulgar o seu ateísmo aos quatro ventos, erigira um novo dogma: a
sexualidade. E esta profissão de fé tinha de ser defendida a qualquer custo. Apesar de não negar “a importância da sexualidade na vida psíquica” (JUNG, 1989, p. 327), Jung (1989) questionou o “fanatismo” dos partidários de Freud na defesa do caráter exclusivamente sexual do inconsciente. A
título de exemplo, uma objeção feita por Jung (1989) era a da utilização de um termo da psicopatologia – “perversidade” – para descrever as manifestações normais da sexualidade infantil. Pra ele, isso era projetar as formas anômalas da sexualidade adulta na mente de crianças. A publicação de Transformações e Símbolos da Libido (1911) foi decisiva para a ruptura entre Fred e Jung. Nesse ensaio – publicado depois em forma de livro – Jung deixou clara e pública as suas discordâncias com Freud. Entre elas, as de que os sonhos não eram satisfações de desejos e sim comunicações simbólicas do inconsciente. Ou a divergência quanto à tendência do grupo vienense de ver as neuroses em geral como o resultado de uma privação sexual. A mais polêmica, indubitavelmente, foi Jung tornar o Complexo de Édipo – para Freud, o complexo essencial – em algo simbólico e não literal (KERR, 1997). 18
De príncipe herdeiro, Jung passou a ser persona non grata no meio psicanalítico. Ele deu fim à sua associação com o movimento em 1914. Exonerou-se das funções editoriais do Jahrbuch, resignou ao do cargo de presidente da Associação Psicanalítica Internacional e se desligou como membro desta organização (JONES, 1979). O fim da amizade com Freud deixou Carl Jung devastado. Ele temia pela sua sanidade: a dor da perda e o sentimento de desorientação eram tamanhos que Jung achou que estava à beira de um surto psicótico. O seu futuro profissional também estava em jogo. Sem o apoio de Freud, quais seriam os seus próximos passos? Sofreu também um revés na área acadêmica: renunciou a cátedra da Universidade de Zurique, pois não conseguia trabalhos científicos desde a publicação de Símbolos e Transformações da Libido. Os ataques públicos orquestrados por Jones e Freud, mais os
boatos e calúnias espalhadas pelos personagens menores do séquito psicanalítico não contribuíram para a paz de espírito de Jung (BAIR, 2006a). No entanto, esse período de crise foi crucial para o seu crescimento pessoal e profissional. Após o afastamento de Carl Jung do universo psicanalítico, a maioria esmagadora do grupo de Zurique finalizou a sua participação na Associação Internacional da Psicanálise. Logo, constituíram uma entidade independente, a Associação de Psicologia Analítica, denominada segundo o novo sistema psicológico desenvolvido por Jung. Neste momento a sua atividade clínica particular já lhe garantia uma renda considerável. Foi durante essa fase de retomada em que conheceu Toni Wolff (1888-1953), a sua assistente e confidente para o resto da vida. Wolff ajudou na feitura do livro Tipos Psicológicos (1921), onde Jung apresentou ao mundo conceitos como anima e animus (BAIR,
2006a). Jung lutou para expandir os limites intelectuais da psicologia profunda até o seu falecimento, no dia 6 de junho de 1961. Durante a sua crise pós-psicanálise ele redigiu Septem Sermones ad Mortuos (Sete Sermões aos Mortos, 1916), um trabalho intensamente pessoal que só veio à tona para
o público no apêndice de sua autobiografia, Sonhos Memórias Reflexões (1961). Esse texto está atrelado à criação da técnica da “imaginação ativa” – a interação no estado de vigília com uma imagem que brota do inconsciente, sem intelectualizá-la – e do seu interesse no gnosticismo. Depois veio a cabala, mas foi a alquimia o foco do seu interesse nos últimos anos 20 anos de sua vida. Jung 19
sempre manteve em alta estima as religiões e filosofias do Oriente, e a amizade com o sinólogo alemão Richard Wilhelm (1873-1930), notório pelas traduções do I Ching: O Livro das Mutações (1923) e do texto taoista O Segredo da Flor de Ouro (1929), influenciou o seu pensamento. Os estudos de Jung, porém, não se limitavam ao livresco ou o clínico. Fez pesquisas de campo na África, Índia e Hopi Pueblo no Sudoeste americano; quis analisar e vivenciar in loco culturas distantes das suas raízes europeias. Jung deixou para a posteridade uma obra extensa, coletada em 20 volumes (BAIR, 2000a, 2006b).
2.1.3 Conceitos básicos da Psicologia Junguiana A psique humana é constituída por dois polos divergentes, o consciente e o inconsciente. O consciente surge do inconsciente, como uma ilha que surge “pouco a pouco da escuridão total da mera instintividade” (JUNG, 2000b, p. 274). À consciência pertence a moral convencional, o intelecto, o medir e quantificar, a motivação pra alcançar um ideal e o senso de planejamento para concretizá-lo. Apesar de voltada para a realidade, a consciência capta ela de maneira fragmentada, de trecho em trecho. A consciência tem um centro: o “eu” auto-reflexivo (JUNG, 2000b). Quanto ao inconsciente, Jung (2005) faz outra divisória: ele o separa em inconsciente pessoal e a sua camada mais profunda e arcaica, o inconsciente coletivo, base da psique. O primeiro é feito de conteúdos adquiridos na vida do indivíduo. Exemplos: coisas percebidas subliminarmente e desejos e pensamentos reprimidos pela consciência. Caso sejam trabalhados esses conteúdos podem ser reintegrados no consciente. Referente ao inconsciente pessoal é oportuna mencionar o termo “complexo”, utilizado pela primeira vez num contexto psicológico por Jung (2000a). Essa foi a palavra designada pelo médico suíço para nomear os poderosos aglomerados de experiências afetivas que residem em nosso inconsciente, as psiques parciais que surgem personificadas em nossos sonhos. Essas “psiques cindidas” estão subtraídas ao comando hierarquizante da consciência do “eu” (JUNG, 2000a).
Muitas vezes o complexo se origina através de um choque emocional, um trauma. Esse trauma promove uma “rachadura” na consciência e o fragmento desprendido desaparece no
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inconsciente. Essa dissociação é mantida por um conflito moral que empurra a fonte de atrito intrapsicológico para fora da visão normalmente estreita da consciência. Resultado: o complexo se porta quase como se fosse um corpo estranho para a consciência. Às vezes os complexos irrompem na consciência, tomando, por assim dizer, as rédeas da psique ressurgem para a consciência quando a situação traumática reaparece e aí o complexo retorna com toda força. Jung (2000a) chamou esse processo de constelação. Essas entidades psíquicas escapam, devido à sua marcada autonomia, ao domínio da nossa vontade (JUNG, 2000a). O inconsciente coletivo, o não-Eu psíquico, “se manifesta nas fantasias, nos sonhos e alucinações, bem como certos estados de êxtase religioso” (JUNG, 1999, p. 155). Essas disposições
herdadas da mente primitiva geralmente são de difícil compreensão, mas podem ser explicadas à luz de lendas, mitos e contos de fada. A sua intromissão na consciência individual produz fortes impressões, podendo inclusive causar perturbações mentais graves. O inconsciente coletivo não está isolado de condições sociais e políticas, e pode ser afetado por elas (JUNG, 2000a). O primeiro vislumbre da existência de um inconsciente “impessoal” surgiu durante a viagem transatlântica de Freud e Jung aos Estados Unidos, em 1909. A bordo do George Washington, Jung (2005) contou ao companheiro de viagem o seguinte sonho: ...eu estava numa casa desconhecida, de dois andares. Era a ‘minha’ casa. Estava no segundo andar onde havia uma espécie de sala de estar, com belos móveis de estilo rococó. As paredes eram ornadas de quadros valiosos. Surpreso de que essa casa fosse minha, pensava: ‘Nada mau!’ De repente, lembrei-me de que ainda não sabia qual era o aspecto do andar inferior. Desci a escada e cheguei ao andar térreo. Ali, tudo era mais antigo. Essa parte da casa datava do século XV ou XVI. A instalação era medieval e o ladrilho vermelho. Tudo estava mergulhando na penumbra. Eu passeava pelos quartos, dizendo: ‘Quero explorar a casa inteira! ’ Cheguei diante de uma porta pesada e a abri. Deparei com uma escada de pedra que conduzia à adega. Descendo-a, cheguei a uma sala muito antiga, cujo teto era uma abóboda. Examinando as paredes descobri que entre as pedras comuns de que eram feitas, havia camadas de tijolos e pedaços de tijolo na argamassa. Reconheci que essas paredes datavam da época romana. Meu interesse chegara ao máximo. Examinei também o piso recoberto de lajes. Numa delas, descobri uma argola. Puxei-a. A laje deslocou-se e sob ela vi outra escada de degraus estreitos de pedra, que desci, chegando enfim a uma gruta baixa e rochosa. Na poeira espessa que recobria o solo havia ossadas, restos de vasos, vestígios de uma civilização primitiva. Descobri dois crânios humanos, provavelmente muito velhos, já meio desintegrados (JUNG, 2005, p. 143).
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Jung voltou para a Europa no último dia de setembro com esse sonho na cabeça. Por muitos anos retornaria à sua análise. Eventualmente descobriu ser este o sonho mais importante de sua vida, devido ao fundamento que este lhe deu a teoria de um inconsciente coletivo (BAIR, 2006a). Para chegar a esta conclusão, Jung (2005) interpretou cada andar da sua casa onírica como se fossem as camadas da psique: no segundo piso era estava o consciente e já no térreo começava o inconsciente. A cada lance de escadas descido ele se aproximava das raízes pré-históricas da mente. Os delírios de Emile Schwyser (1862-1932), paciente do Burghölzli, forneceram outra pista para a concretude de uma estrutura psíquica não-individual. Esquizofrênico, Schwyser enxergava um gigantesco falo no topo do Sol. Ao fitá-lo de olhos semicerrados e balançar a sua cabeça, ele conseguia mexer esse “falo solar” de um lado para o outro. Esse movimento causava uma ventania furiosa e, por conseguinte, tempestades. Vindo de uma família pobre, sem instrução e sem acesso a livros nas suas hospitalizações prévias, o psicótico Schwyzer fixou-se numa imagem oriunda do Mitraísmo, uma religião indo-iraniana extinta a milênios. Na liturgia mitráica, falava-se de um tubo conectado ao disco solar, um tubo com o poder de produzir ventos. Jung citou o caso de Schwyzer no polêmico Transformações e Símbolos da Libido (BAIR, 2006a). O psiquiatra suíço não foi o único a perceber a existência de uma psique suprapessoal apoiado na sua experiência pessoal e clínica em onirologia. Jung (1977) lembra-se de Freud (1996c, p. 201) comentar a respeito do modo de expressão distinto de certos sonhos, onde eram elaboradas “conexões simbólicas que o indivíduo jamais adquiriu por aprendizado”. Esses processos mentais
foram batizados por Sigmund Freud de “resíduos arcaicos”. Eles eram uma regressão a um estágio anterior da evolução intelectual humana, uma herança filogenética de nossa espécie. Para Jung (1977) tais “resíduos arcaicos” remetem aos mitos e rituais dos povos primitivos. Vital para o entendimento do inconsciente coletivo são os “arquétipos” contidos nele. Os arquétipos são padrões da vida mental e comportamental inatos derivados do mundo instintivo. Estes padrões, repetidos e reencenados ad infinitum, são identificáveis independente da cultura ou do momento histórico. Não fazem parte de uma “alma cósmica” ou semelhantes misticismos como acreditavam os críticos da teoria junguiana. Aceitar a teoria dos arquétipos implica em aceitar que os
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seres humanos não nascem como tabulas rasas3, folhas em branco onde qualquer coisa pode ser escrita (CLARKE, 1993). A lista de arquétipos é infindável. Jung (2000b) centrou-se em alguns exemplos no livro Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo: o herói, a criança, o animus, a anima, o Velho Sábio, a
sombra e o Si-Mesmo. Os quatro últimos figuram de forma importante e preponderante em alguns episódios de Sonhos, e por tal razão iremos fornecer uma breve descrição deles logo abaixo:
Anima: existem tanto traços masculinos na personalidade da mulher (o animus) como o equivalente feminino na psique do homem: a anima. Essas características do sexo oposto na estrutura psíquica, assim como qualquer arquétipo, são bipolares, ou seja: tem um aspecto positivo e negativo. No caso do último, ele se manifesta em rompantes de animosidade e emotividade excessiva (JUNG, 2000b). Sombra: a sombra é a parte da personalidade oculta sob a fachada do convencional. Apesar de ser tradicionalmente vista como algo negativo, essa parte inferior de nossa personalidade deve ser integrada à consciência, apesar do perigo do “eu” sucumbir ao seu poder da sombra (JUNG, 1999).
Velho Sábio: o arquétipo do mestre espiritual, esse psicopompo (“guia das almas”) ilumina os caminhos escondidos dentro do caos do dia a dia. Jung (2000b) detalhou as diferentes manifestações do velho sábio, sempre ligadas a figuras de autoridade: professor, médico, mago ou sacerdote, sendo que os dois últimos remontam à figura do xamã nas sociedades primitivas.
Si-Mesmo: é o arquétipo central, a totalidade resultante da união entre consciência e o inconsciente. O círculo e a quaternidade são símbolos típicos do Si-Mesmo, imagens primordiais que expressam noções de atemporalidade e imortalidade, suscetíveis a inúmeras mutações (JUNG, 1999).
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Do latim “lençol branco”, expressão usada pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704) para sintetizar a sua crítica ao conceito de que existiam ideias pré-formadas.
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2.1.4 A função dos sonhos Para compreender como a psicologia analítica veio a desenvolver os seus aportes conceituais para com os sonhos, é interessante compará-los à visão oferecida pela psicanálise. Para a psicologia freudiana, os sonhos tem sentido: não são produtos de estímulos somáticos, causados por indigestão ou a posição que o sujeito dorme. O propósito dos sonhos é realizar desejos. Esses desejos são obrigados a lutar contra uma instância censora. Esse censor elabora uma “distorção” para tornar obscuro o simbolismo dos pensamentos aflitivos. Desse modo, o censor impede a penetração deles na consciência. É por esse motivo a separação entre o “conteúdo manifesto” e o “conteúdo latente” dos sonhos: o primeiro é a sucessão alucinatória de imagens oníricas, e o segundo é a história oculta a ser decifrada por trás destas composições pictóricas (FREUD, 1996a, 1996b). Jung (1989) endossou todos esses argumentos nos anos iniciais de sua colaboração com Freud. Posteriormente, Jung (1977) rejeitou a necessidade de “disfarçar” os conteúdos oníricos através de um censor hipotético, encarregado de proteger a psique adormecida de reminiscências desagradáveis. O sonho é um produto espontâneo e natural da inconsciência: a dificuldade em entendê-lo, na verdade, deriva da linguagem metafórica que utiliza. O seu simbolismo é pouco acessível ao homem moderno, incapaz de captar o valor emotivo e “histórico” das associações
inconscientes. A função dos sonhos para Jung (1977) é compensatória: ela equilibra o psiquismo do sujeito, corrigindo as deficiências da personalidade.
2.1.5 Individuação Entre 1918 e 1919, quando aquele espaço de tempo povoado por dúvidas e incertezas passou, Jung (2005) concluiu que a meta do desenvolvimento psicológico é a realização do Si-Mesmo. A esse processo de transformação interna Jung (2005) deu o nome de “Individuação”. Para Jung (2000b) a meta de uma psicoterapia é integrar o inconsciente na consciência. Tal síntese é o caminho para a individuação. Esse processo de harmonizar essas duas metades não é fácil, pois não existe uma fórmula certa para resolvê-la. O inconsciente age de modo caótico, assistemático, irracional, e a consciência se desvia da sua base instintiva a toda oportunidade. Portanto, o manuseio dos símbolos é de suma importância para a maturação da personalidade. 24
2. O ESPÍRITO DO JAPÃO Em primeiro lugar, o que sabemos sobre a chamada “Terra do Sol Nascente”? Segundo o Foreign Press Center Japan (2007), um estudo divulgado pelo governo nipônico, o Japão é um
arquipélago, um conjunto de 6.452 ilhas que abriga uma população de 127 milhões de habitantes, aproximadamente. A sua extensão territorial é de 378 mil quilômetros quadrados – um pouco maior do que a Alemanha e um pouco menor do que a Suécia. Além de sua indústria de alta tecnologia, o país exporta para o mundo uma miríade de produtos culturais, das artes marciais (karatê, aikido, judô) até os mangás, as revistas em quadrinho (FRÉDÉRIC, 2008). Mas, para além desse panorama geral, qual é o espírito do povo japonês? Seria possível visualizar os seus contornos ou até capturar parte de sua essência? Se mergulharmos na vida religiosa do extremo oriente, talvez possamos ter um vislumbre. A religião, nas palavras de Jung (1987, p. 7), “constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana”.
Apesar do Japão não ter uma religião oficial, o povo japonês foi desde sempre condicionado pelas suas crenças religiosas das origens remotas de sua civilização (FRÉDÉRIC, 2008). De acordo com o censo divulgado pelo Foreign Press Center Japan (2007), são duas as principais religiões do Japão: o xintó e o budismo. Juntos, os seus fiéis correspondem à aproximadamente 94% da população nipônica, sobrando 3% para o Cristianismo e o restante para as outras denominações religiosas. O xintó, religião xamanística com fortes traços animistas, cultua divindades da natureza. É considerada a religião “nativa” do Japão, apesar de historicamente ter sido importada pelos
cavaleiros-guerreiros mongóis no fim do século III. Com a Restauração Meiji (1868), tornou-se a religião oficial do Estado japonês por um curto período de tempo. Quanto a isso, em 1875 o governo Meiji suprimiu o Daikyô-in (“Escritório das Religiões”) devido à sua atitude intolerante para outros credos que não o xintó (FRÉDÉRIC, 2008).
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O xintó tem por base o culto dos kamis, espíritos “divinos” superiores aos espíritos humanos dos humanos comuns. Os xintoístas separam os kamis em dois tipos: os celestiais (amatsu-kami) e os terrestres (kunitsu-kami). Os celestiais praticamente não se interessam pelo mundo humano, diferente dos terrestres. O segundo tipo habita nas montanhas, rochas, rios e os protegem. Os kami podem também ocupar e vigiar construções humanas, a exemplo de santuários e estradas. Seres humanos de caráter excepcional podem se tornar kamis caso sejam divinizados após a morte (FRÉDÉRIC, 2008). O xintó tem um repertório rico de práticas mágicas. A adivinhação (bokusen) é uma delas, e é um passatempo favorito dos japoneses. Os métodos são os mais variados, desde o exame das entranhas de pássaros para atribuir-lhes significado até o conhecido cara ou coroa. As sacerdotisasxamãs do xintó têm poderes mediúnicos: no seu transe elas canalizam os espíritos de familiares falecidos, ou atuam como o canal de comunicação entre os mortais e os kamis (FRÉDÉRIC, 2008). Apesar da óbvia importância do xintó – todo japonês, independente de ser cristão ou budista, é sempre xintoísta – no entanto, o foco do nosso trabalho vai ser a “outra”4 religião – o budismo, em particular a seita zen. A atitude zen habita praticamente todos os recantos da vida japonesa: da cerimônia do Chá às esculturas, e aos jardins assimétricos dos mosteiros. Até os budô – as artes marciais nipônicas – são imbuídas pelo espírito zen (FRÉDÉRIC, 2008). A gênese do Budismo está na história de vida do príncipe Siddharta Gautama, posteriormente conhecido como o Buda (“O Desperto” ou “O Iluminado”). Ao nascer, o pai de Siddharta consultou os videntes do seu reino: todos concordaram que o seu herdeiro teria um destino extraordinário. No entanto, esse destino era divido em caminhos diametralmente opostos. Por um lado ele seria um grande rei, unificando a Índia. Por outro, caso renunciasse ao mundo material, tornar-se-ia um grande líder espiritual. O rei escolheu para o seu filho a primeira opção, e tratou de providenciar uma vida de luxo para ele, uma “bolha” na qual Siddharta viveria em eterna ignorância,
longe da tristeza e das mazelas do mundo real (SMITH; NOVAK, 2007).
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A importação do budismo pelo Japão do século VI levou os seguidores do xintó a organizarem suas crenças num todo coerente. Por isso a doutrina do Buda levou o nome de Bukkyo – a religião que vem de fora.
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Aos 20 e poucos anos, a inquietude invadiu a alma de Siddharta. Ele quis conhecer o “mundo lá fora”, além das muralhas do seu fabuloso castelo. Preocupado, o rei organizou esses passeios de modo a evitar que Siddharta tivesse contato com a doença, a velhice e a morte em seus passeios. Apesar dos esforços hercúleos do rei, o plano fracassou. Foi nos passeios que Siddharta conheceu a doença, a velhice e a morte. Depois de avistar um monge, no quarto e último passeio, Siddharta começou um desencanto com a sua existência mundana, percebendo com clareza a transitoriedade do mundo físico. Aos vinte e nove anos, saiu a cavalo numa jornada espiritual. Abandonou o seu reino, deixando para trás a sua mulher e filho (SMITH; NOVAK, 2007). No início de sua peregrinação, Siddharta procurou grandes mestres espirituais, absorvendo deles a filosofia da religião hindu e o ioga. O passo seguinte foi viver entre os ascetas para aprender a dominar o seu corpo. Ao final desse período não viu proveito nas privações do ascetismo e concatenou uma das verdades fundamentais de sua futura doutrina: o “Caminho do Meio”. Por fim, aos 35 anos de idade, o futuro Buda sentou debaixo de uma figueira (na atual Patna, ao nordeste da Índia) e jurou não levantar de lá até que tivesse alcançado o bodhi (“iluminação). Semelhante à história de Jesus ao ser tentado no Deserto, Siddharta passou por várias provações, superando todas. Conseguiu enxergar todas as suas encarnações prévias, percebendo claramente as ações e consequências regidas pela lei do karma (SMITH; NOVAK, 2007). Libertou-se assim da “Roda do Renascimento”, o samsāra, atingindo o nirvana (KHUDDAKANIKAYA; SUTTAPITAKA; TIPITAKA, 2000). Depois do “Grande Despertar” o Buda espalhou sua mensagem pela Índia. Eventualmente, a
pregação do Buda provocou uma cisão no hinduísmo. Paralelo ao cisma que o Protestantismo provocou no cristianismo, o Buda mostrou como o hinduísmo tinha se tornado uma religião corrupta. Smith e Novak (2007) citam seis pontos em que a nova religião difere da sua antecessora:
Autoridade: nos tempos do Buda, os brâmanes abusavam de sua autoridade religiosa cobrando somas astronômicas com a venda de “indulgências” para os fiéis. O Buda questionou a necessidade de ter “mestres”, exortando as massas a iniciarem a sua própria
busca pela verdade. Inclusive o Buda, em vida, rejeitou categoricamente a sua divinização pelos seus acólitos. 27
Ritual: uma expressão coletiva que engloba tanto a celebração ou alívio do sofrimento, os
rituais são intrínsecos a qualquer religião. O Buda questionava abertamente a necessidade deles, enxergando-os não só como uma prática supersticiosa, mas também como fórmulas mecanizadas e ineficientes de conseguir resultados miraculosos.
Especulação: o Buda evitava especulações metafísicas. Ele fundou uma religião baseada,
antes de tudo, na experiência direta da realidade.
Tradição: a tradição preserva o modo de vida das gerações passadas, passando esse legado
adiante. O problema é quando a tradição se torna um peso morto. O Buda ignorou o peso do passado ao pregar na língua do povo em vez de sânscrito, semelhante ao que Martinho Lutero (1483-1546) fez quando traduziu as Sagradas Escrituras para o alemão, um dos eventos históricos que iniciaram a Reforma Protestante.
Graça: Buda acreditava que a “Salvação” era um esforço eminentemente pessoal. Ao seguir
esta trilha, não se podia contar com a ajuda de deuses, brâmanes ou até do próprio Buda.
Mistério: o budismo é destituído de crenças sobrenaturais. A mente humana é assombrada
pela natureza infinita do universo; no entanto, o Buda recusava preencher essa lacuna com ocultismo e mistificação. Condenava as práticas de adivinhação e o comércio em torno dela, por exemplo. Assim como Jesus de Nazaré é o símbolo do Self (ou Si-Mesmo) na civilização cristã Ocidental, o Buda com o tempo tornou-se a manifestação desse arquétipo nas nações que adotaram a sua doutrina. No final do capítulo anterior, definiu-se o Self como o centro regente da totalidade na esfera psíquica, o portador do Imago Dei. Essa breve recapitulação serve para pontuar a origem psicológica da vasta influência que a numinosidade búdica teve nas civilizações orientais (VON FRANZ, 1985). Depois da morte do Buda, os seus seguidores dividiram-se em duas correntes, duas yanas5. Estas eram: a mahā yāna e a theravada. A primeira acreditava que o budismo era uma religião para as massas, acessível para os leigos, e daí deriva a etimologia de seu nome, maha sendo “grande”, ou seja: “Grande Balsa”. O outro grupo foi batizado à revelia de “Pequena Balsa” ou hīnayāna. O
grupo theravada – “caminho dos anciões”, como os da doutrina hīnayāna preferiam ser chamados – 5
Literalmente “balsas” ou “barcos”. Pode ser também traduzida como “veículo".
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se confinavam aos ensinamentos búdicos preservados no Cânone Páli (SMITH; NOVAK, 2007). O Cânone Páli contém os ensinamentos originais do Buda os estudiosos estimam que o seu tamanho exceda em doze vezes o volume da Bíblia (KHUDDAKANIKAYA; SUTTAPITAKA; TIPITAKA, 2000). O Budismo como doutrina eventualmente imigrou para o Leste Asiático, antes de praticamente se extinguir na sua terra natal. A corrente theravada ficou restrita ao Sri Lanka, Myanna (antiga Birmânia), Tailândia e, até o advento do Comunismo nesses países, o Laos e o Camboja. O budismo mahā yāna promoveu uma expansão mais agressiva: atravessou a China e a Coréia para chegar ao Japão (KHUDDAKANIKAYA; SUTTAPITAKA; TIPITAKA, 2000). No século XVII o budismo finalmente “invadiu” o Ocidente e hoje a Inglaterra, França, Alemanha e
Suíça abrigam cerca de um milhão de europeus convertidos ao budismo. A introdução oficial do budismo na América do Norte começou no final do século XIX. Atualmente nos EUA moram três milhões de budistas praticantes (SMITH; NOVAK, 2007). O budismo aportou na “Terra do Sol Nascente” entre os anos 538 e 552 d.C. O budismo chegou como uma religião da aristocracia, na correspondência entre o rei Kudara da Coréia e o soberano da antiga província de Yamato, atualmente a prefeitura de Nara. O respaldo oficial fez a nova religião se propagar. Alguns clãs locais aderiram, enquanto outros, adeptos do que logo se tornaria conhecido como xintó resistiram. As duas facções entraram em conflito e os partidários do budismo venceram. Largamente ignorado pelo povo, o budismo se tornou a religião da corte. Com o passar do tempo o budismo japonês tomou formas muito particulares, devido ao contato com o folclore nativo e o sincretismo com o xintó (FRÉDÉRIC, 2008). Séculos mais tarde uma nova seita budista foi importada da China: era o Chan, ou o zen no Japão. O seu fundador foi o misterioso monge indiano Bodhidharma, conhecido como BodaiDaruma para os japoneses (FRÉDÉRIC, 2008). Segundo o artigo de Frosi e Mazo (2011), a Bodhidharma (ou Ta Mo Lao Tse na China) é atribuída também a criação das artes marciais, introduzida a partir do ano 520 da era cristã num mosteiro Shaolin. Venerado no Japão, Daruma é tipicamente representado como um personagem sem pernas, com olhos globulosos e sobrancelhas espessas (FRÉDÉRIC, 2008). 29
Depois da morte de Bodhidharma o budismo ensinado por ele sofreu uma série de alterações ao se deparar com o Taoísmo. Essa tradição religiosa e filosófica teve como pilares os escritos de dois sábios chineses, Lao Tzu e Chuang Tzu. O “Tao” tem sido alternadamente traduzido como “caminho”, “lei”, “natureza”, “deus” ou “realidade”, mas um dos seus próprios fundadores (Lao
Tzu) disse que é melhor deixá-lo intraduzível. Qualquer tentativa de definir o Tao em palavras e conceitos é efetivamente matar o Tao. Na essência dos seus ensinamentos está o conceito da eterna mobilidade do universo, sinônimo de crescimento e mudança (WATTS, 2009). A atitude mental zen, transmitida de geração em geração, de mestre para discípulo, trata de “limpar” a mente mergulhada num estado de confusão e ignorância ao desconstruir velhos hábitos e
moralismos convencionais. Ela ultrapassa o intelectualismo, pois percebe ineficácia da razão para resolver os problemas da vida. A atitude zen faz troça da solenidade e seriedade dos “sábios” e a procura deles por uma “santa verdade”. Em contraposição a essa ideia, os mestres zen consideram até as coisas mais mundanas e monótonas do cotidiano como sagradas (WATTS, 2009). Um conceito-chave para o budismo mahā yāna, igualmente presente no zen, é a noção de shunyata ou o “vazio”. O Buda descreveu esse estado, onde a raiva, ganância e as ilusões geradas
pelo ego são completamente consumidas, como “incompreensível, inconcebível, impronunciável” (SMITH; NOVAK, 2007, p. 59). O egoísmo causa sofrimento porque, na busca da satisfação de desejos pessoais, os seres humanos prejudicam uns aos outros, criando uma barreira artificial entre o sujeito e a unicidade fundamental da realidade. A doutrina do “vazio” nega a existência de um “eu” para libertar-se das ilusões causadas pelo mundo dos sentidos (SMITH; NOVAK, 2007). Dois tipos muito particulares de prática budista oferecidas pelo zen são as técnica do Za-zen e os Koans. A primeira é uma evolução da ioga hindu, uma técnica de meditação que consiste em sentar-se em postura correta e respirar de forma adequada. O Za-zen relaxa o corpo e foca a mente, reduzindo o número de distrações. Já os Koans são problemas propostos pelos mestres do zen em forma de frases, impasses que não admitem soluções “lógicas” e intelectuais. Tanto o Za-zen quanto os Koans auxiliam o discípulo zen a atingir o Satori, uma compreensão súbita da natureza última da realidade, uma “iluminação” apartada de palavras ou ideias (WATTS, 2009).
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O zen recebeu apoio dos samurais, a classe guerreira japonesa, quando este aportou no país no final do século XII. O zen foi desenvolvido no coração do Bushidō (武士道), o código de honra samurai. Desdobramentos da influência zen nas artes do combate incluem a esgrima (kendô), o jiu jitsu e o judô (WATTS, 2009).
A importância do zen nas artes marciais nipônicas é tal que Musashi Miyamoto (1584-1645), o mais famoso dos samurais do Japão, disse no seu Gorin No Sho (五輪書, “O Livro dos Cinco Anéis”) que enquanto um guerreiro “não seguir os princípios do budismo” ele não compreenderá a
verdade do Caminho” (MIYAMOTO, 2010, p. 162). O “Caminho” do qual Musashi se refere é o Bushidō (literalmente “caminho do guerreiro”), posto a claro no livro Hagakure (“Escondido pelas Folhas”), redigido pelo monge e ex-samurai Yamamoto Tsunetomo (1659-1719). Esse samurai
aposentado reproduz as palavras do sacerdote Tannen, ao reparar as semelhanças e o intercâmbio entre as atitudes do samurai e do monge zen: Um monge só consegue seguir o caminho do budismo se tiver compaixão e interiorizar, na base da persistência, a coragem. Da mesma forma, se um guerreiro não for corajoso e não tiver em seu coração compaixão suficiente para arrebentar seu peito, não pode se tornar um vassalo. Portanto, o modelo de coragem para o monge é o guerreiro, e o modelo de compaixão para o guerreiro é o monge (TSUNETOMO, 2004, p. 126).
Os parágrafos recentes dedicados às artes samurais, devido à sua ligação com o zen, se justificam por (pelo menos) três motivos. O primeiro: o imbatível Musashi Miyamoto é um herói nacional. Seria leviano desconsiderar o peso desse arquétipo encarnado de herói no consciente – e inconsciente – coletivo do cidadão japonês. O segundo: ao examinar a sua árvore genealógica, Kurosawa (1993) traçou a origem de sua família a Jirisaburô Kurosawa, terceiro filho de Sadatô Abe (1052-1062), um famoso guerreiro do norte do Japão. Kurosawa (1993) admirava Jirisaburô e se sentia encorajado pela a sua ancestralidade samurai. Terceiro e último: Akira Kurosawa baseou uma fatia importante de sua filmografia em produções baseadas nas peripécias e percalços dos guerreiros do Japão feudal. Pela análise de Cohen-Shalev e Raz (2008), os filmes de Kurosawa produzidos na década de 1940 e 1950 foram influenciados pelo Bushidō, cujos ideais de autossacrifício e correção ética foram o seu compasso moral na meia idade.
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2.3 AKIRA KUROSAWA Akira Kurosawa nasceu no dia 23 de Março de 1910 no distrito Ōmori de Tóquio, capital do Japão. Era o filho caçula de Shima, 39 anos e Isamu, 45 anos, oficial do exército japonês. Akira foi precedido por sete irmãos, dois deles já maiores de idade quando veio ao mundo. Os preferidos dele eram Heigo, irmão mais velho e figura de grande influência na sua vida e Chi-ne-chan, a sua irmã que faleceu precocemente com a idade de seis anos (KUROSAWA, 1993). A sensibilidade artística de Akira Kurosawa aflorou cedo. Depois de ingressar na Escola Primária Kuroda, aos oito anos de idade, descobriu que era bom de desenho. Aos treze se forma em Kuroda e em abril ingressa no Ginásio Keika. Fora a sua habilidade nas disciplinas que exigiam o seu temperamento artístico – redação e pintura – Kurosawa não foi um aluno particularmente brilhante. Não era muito hábil nos esportes exceto pelo kendô, a arte marcial com espadas. Após o período de Ginásio, Kurosawa se lançou ao mundo como pintor profissional, com o apoio da família. Aos 18 anos, a sua pintura A Natureza-morta foi escolhida para integrar uma exposição nacionalmente renomada, a Nitten (KUROSAWA, 1993). Paralelo à sua atividade como pintor, o seu descontentamento com a sociedade japonesa o engajou numa postura política mais militante. Kurosawa (1993) filiou-se a Liga dos Artistas Proletários, e num breve período de radicalização juntou-se a organizações clandestinas esquerdistas. No entanto, ele se desiludiu com tais movimentos. Achava as teorias do materialismo dialético propostas por Karl Marx inadequadas para explicar as questões sociais do seu país, e achou a sua participação uma atitude irresponsável e leviana. O suicídio de Heigo deu uma virada na vida de Akira Kurosawa. Heigo era uma referência para o seu irmão menor: além de bem-sucedido profissionalmente, ele contribuiu muito para o repertório cultural de Akira, principalmente no que se refere à literatura e cinema. Da noite para o dia Akira virara “o homem da família”. Preocupado com o bem-estar e estabilidade financeira de
seus pais, Kurosawa decidiu mudar de profissão; viver como pintor e artista-gráfico freelancer o deixava insatisfeito, economicamente e artisticamente. Ainda assim, a sua cabeça “estava repleta de conhecimentos sobre arte, literatura, teatro, música e cinema” e ainda procurava “uma forma de
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fazer uso deles” (KUROSAWA, 1993, p. 118). Após três anos à deriva, Kurosawa ingressa na
companhia cinematográfica Toho, em abril de 1936, como diretor-assistente. Sobre o processo que o levou a trabalhar detrás das câmeras, Kurosawa (1993) diz: O caminho para os estúdios da PCL 6 e para o cinema, surgiram por acaso, embora eu estivesse me preparando, sem saber, para o inevitável. Não havia percebido que os filmes poderiam requerer tudo o que eu aprendera. Penso no destino que me encaminhou tão bem para esse caminho. Tudo o que posso dizer é que, de minha parte, essa preparação foi totalmente inconsciente (KUROSAWA, 1993, p. 141).
Mas o Japão em breve entraria em guerra e indústria cinematográfica japonesa viveria um período negro. Os censores do Ministério da Interior impunham os seus cortes repressivos, que iam de banir qualquer coisa por parecer um crisântemo – o símbolo da família real do Japão – até censurar toda cena de beijo em filmes estrangeiros, atitude extremada a qual Kurosawa (1993) considerou de “patologia sexual”. Em 1943 dirige o seu primeiro filme, Sugata Sanshiro. O filme
foi um sucesso, furando o bloqueio da censura por centrar no judô e na evolução espiritual de seu protagonista homônimo através dessa arte marcial (NOVIELLI, 2007). Sua escalada ao reconhecimento internacional veio com o clássico Rashōmon (羅生門, 1950), sobre um crime contado de quatro pontos de vista diferentes (NOVIELLI, 2007). Passado no século XII em Kioto, o título faz referência à Rajomon, o portal principal da região. Ali, três homens – um camponês, um monge e um ladrão – conversam sobre um evento terrível, tão terrível que fez o
monge perder a fé na humanidade. O filme foi inspirado por uma peça homônima do período Nô, escrita por Nobumitsu Kanze (1450-1516), e pela pesquisa do diretor sobre filmes mudos. Kurosawa queria resgatar o maravilhamento que sentia com o cinema daquele período. O tema central do filme é a dificuldade que os homens têm para serem honestos consigo mesmo. Eles mentem para si e para os outros, no esforço de parecerem melhor do que realmente são. É uma necessidade que os acompanharia além do túmulo, como cruelmente mostra Rashōmon (KUROSAWA, 1983). Rashōmon ganhou em 1951 um Leão de Ouro no Festival de Veneza, seguido por prêmios em Cannes, Berlim e por fim o Oscar de “Melhor Filme Estrangeiro”. A vitória do f ilme foi uma vitória para o cinema japonês como um todo, o que ocasionou a “descoberta” por cinéfilos 6
PCL – acrônimo de Photo Chemical Laboratory – é o nome antigo da Tôhô.
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ocidentais da produção cinematográfica do país. Além de Kurosawa, outros diretores nipônicos foram beneficiados: Teinosuke Kinugasa com o seu A Porta do Inferno (1953), Hiroshi Inagaki e a trilogia Samurai (1954-1956), a cinebiografia do lendário Musashi Miyamoto (NOVIELLI, 2007). Rashōmon, assim como A Porta do Inferno e Samurai, pertence ao subgênero dentro do
cinema oriental conhecido como jidaigeki. É um estilo de filme ambientado num passado relativamente remoto, de preferência durante a era Tokugawa (NOVIELLI, 2007). Esse período histórico tem início em 1603 e termina em 1868, com o fim dos xogunatos e a instalação da Restauração Meiji (FRÉDÉRIC, 2008). Os jidaigekis têm por características as lutas de espadas realistas e uma tendência de celebrar tanto os guerreiros fiéis ao bushidô quanto os samurais sem mestre, os rônins, que nos jidaigekis habitualmente defendiam os fracos e oprimidos (NOVIELLI, 2007). Kurosawa fez outros grandes filmes nesse estilo: Os Sete Samurais (1954), Trono Manchado de Sangue (1957), Yojimbo (1961) e A Sombra de um Samurai (1980). O último filme dentro desse
subgênero, Ran (1985), baseado na peça Rei Lear de William Shakespeare (1564-1616), é considerado uma das obras-primas do mestre (NOVIELLI, 2007). Ran encerra um período da carreira de Kurosawa focado no lado vil e traiçoeiro das relações humanas (PRINCE, 1999). A última década de vida de Akira Kurosawa assistiu a reinvenção do seu cinema. Grandes diretores com Luis Buñuel, Alfred Hitchcok e John Ford fizeram filmes na terceira idade, mas nenhum com o grau de revitalização de sua obra e nem com a disposição octagenária de Kurosawa (PRINCE, 1999). O longa-metragem que inaugurou essa fase foi Sonhos (Yume, 1990). Quando Kurosawa começou a trabalhar no roteiro de Sonhos, em janeiro de 1989, ele estava rumo ao término de uma década particularmente generosa com o seu legado cinematográfico. A Sombra de um Samurai recebeu a Palma de Ouro em Cannes e Ran foi bem acolhido: indicado a quatro Oscars (vencedor de “Melhor Figurino”), seis BAFTAs7 (ganhou os de “Melhor Filme Estrangeiro” e “Melhor Maquiagem”) e um Globo de Ouro. Aos 74 anos de idade Kurosawa
recebeu a Légion d’Honneur , a condecoração honorífica máxima do Governo da França. Dois anos depois foi a vez da sua terra natal homenageá-lo, concedendo-lhe a Medalha Cultural
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British Academy of Film and Television Arts – equivalente à um “Oscar” britânico.
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(KUROSAWA, 1993). Em março de 1990 recebe um Oscar Especial pelo conjunto de obra pelas mãos de dois grandes admiradores seus: George Lucas e Steven Spielberg (PRINCE, 1999). Sonhos consiste em oito episódios que, somados, nos apresentam a vida do diretor em
revista. Kurosawa está presente em todos através do seu ego onírico (PRINCE, 1999). Três diretores americanos poderosos – Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola – intercederam a favor de Kurosawa, assegurando o financiamento do projeto. A Warner Bros lançou o filme (RICHIE, 1996). Sonhos foi o primeiro dos filmes de Kurosawa a usar efeitos especiais modernos, com a ajuda da Industrial Light & Magic, companhia de George Lucas (PRINCE, 1999).
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2.4 OS PERIGOS DA SUPERINTERPRETAÇÂO “Quão incomensurável é a distância entre essas duas civilizações!”, escreveu Hisayasu
Nakagawa no seu livro Introdução à cultura japonesa. Nakagawa (2008) se referia às diferenças entre as expressões artísticas da cultura europeia e da do seu país natal. Em sintonia com essa ideia, houve por parte do autor uma preocupação constante de evitar uma “interpretose” durante o desenvolvimento desta monografia. O foco do trabalho é uma produção cinematográfica montada em cima de sonhos, e para Jung (1987) eles constituem uma matéria complexa e difícil, a psicologia subjacente de seus processos ainda um mistério. O perigo de introduzir “elementos estranhos ao próprio sonho” é real (JUNG, 1987, p. 31). Jung (1999, p. 21) aconselha cautela, pois ao nos depararmos com um texto desconhecido “toda interpretação é uma mera hipótese”. Esta não só é
uma tentativa de compreender a relação direta da psique do auter – – Akira Kurosawa – com os oito episódios do filme, mas também como fatores específicos de contexto religioso, político e cultural influíram no que acaba sendo representado na tela. É sempre um motivo para celebrar, diz Bulkeley (1990), quando um artista da envergadura de Akira Kurosawa resolve fazer um filme baseado em sonhos (e nos seus sonhos, ainda por cima). As diversas abordagens disponíveis “no mercado” – Freudianas, Junguianas, existencialistas, etc. – certamente encontrarão respaldo ao interpretar o filme de acordo com as suas técnicas e preceitos teóricos. E quanto aos rituais, crenças e costumes idiossincraticamente japoneses? Estes certamente passarão em branco na maioria dos casos, sem causar grandes impressões para o cinéfilo ocidental. O próprio Kurosawa (1993) disse que não gosta de falar dos seus filmes, o que dificulta ainda mais o nosso trabalho de interpretação. No seu livro A psique japonesa, o psicólogo junguiano Hayao Kawai exemplifica quando a falta de proximidade cultural gera confusões, via a análise simbólica dos conteúdos coletivos do inconsciente. Kawai (2007) observa o contraste entre os contos de fadas europeus e os japoneses: nestes últimos, “nada” acontece no final. Os contos japoneses raramente aderem à fórmula do “final feliz”, a exemplo do casamento entre os protagonistas ou a punição pela quebra de tabus dos contos
dos irmãos Grimm. Caso fosse adotado o ponto de vista de Franz (1990), seria dito que tais histórias, sem uma conclusão feliz ou final catastrófico, são características de povos primitivos. Em 36
A interpretação dos contos de fada (1981), Franz (1990) usa um conto siberiano (“A mulher que se casa com a lua e com o Kele”) como exemplo destas histórias “primitivas” com finais sem clímax.
Kawai (2007), no entanto, desconstrói essa ideia. Vivenciar o “Nada” faz parte da corrente principal da cultura japonesa. Ela é uma experiência além de palavras, ou de valores positivos e negativos. Herança do budismo zen, elas tem uma relação direta com o Si-Mesmo. No intuito de evitar uma leitura default para a rica simbologia de Sonhos, deve-se seguir o conselho de Jung (1999). Segundo ele, o perigo de uma interpretação consignada a um simbolismo padrão é transformar o material dinâmico e as imagens vivas do inconsciente em entidades estáticas, ou signos. C. G. Jung tinha provavelmente Freud (1996c) em mente, quando este afirmou nas suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1915-1917, p. 155) que a maioria dos símbolos oníricos “são símbolos sexuais”. Objetos retos e alongados (e em alguns casos pontiagudos) tipo
bengalas, guarda-chuvas, postes, árvores, canetas, facas e lanças representam os genitais masculinos. Para simbolizar o órgão sexual feminino, objetos ocos que servem para guardar coisas: vasos, estojos, malas, cofres, bolsas, porta-joias e assim por diante. Partindo desse a priori, a interpretação passa a ser apenas um joguete intelectual, academicista (JUNG, 1999). Por fim, a nossa investigação esbarra numa séria limitação: não temos um “diário de bordo” da produção de Yume. Não temos acesso ao cotidiano e à vida íntima de Akira Kurosawa durante as filmagens de Sonhos. “Não se pode interpretar um sonho isolando-o do cotidiano e do caráter do sonhador”, disse Jung (1999, p. 21). Apesar desse déficit informacional, espera-se das considerações
sobre o contexto cultural e religioso, acoplados com os dados biográficos do diretor, forneçam pistas a respeito dos conteúdos simbólicos do filme. A interpretação, disse Von Franz (1990, p. 48), “é uma arte ou ofício, que só pode ser aprendida pela prática e experiência”. Os desafios envolvidos em
decifrar Sonhos certamente valerão como um bom treino.
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CAPÍTULO 3: SONHOS
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Numa comunicação proferida num congresso de 1931, Jung (1999, p. 27) julgou ser “indispensável levar em conta” as “convicções filosóficas, religiosas e morais”, quando o objetivo é
o de analisar “a simbologia do sonho” do sonhador. Sonhos, na ótica de Serper (2001), leva em conta tais convicções quando exprime a “ japanidade” de Kurosawa, no explorar das práticas culturais, artísticas e sociais do seu país. O aspecto religioso é, sobretudo, importante: o título do filme, Yume (夢), sinaliza isso. Os Yume não são os sonhos corriqueiros do dia-a-dia, ordinários, comuns; eles são os sonhos premonitórios ou visões extáticas, imbuídas de religiosidade (FRÉDÉRIC, 2008). Portanto, são semelhantes aos sonhos proféticos da Bíblia e da Antiguidade Greco-Romana dos quais Freud (1996a) se debruçou em A Interpretação dos Sonhos, apesar de apenas um dos episódios de Sonhos se enquadrar, com reservas, nesta categoria. O presente capítulo será dedicado a “amplificar” e interpretar os oito sonhos encenados no filme. Na definição do próprio Jung (2005), o método da amplificação consiste no: Alargamento e aprofundamento de uma imagem onírica por meio de associações dirigidas e de paralelos tirados das ciências humanas e da história dos símbolos (mitologia, mística, folclore, religião, etnologia, arte, etc.), mediante o que o sonho se torna acessível à interpretação (JUNG, 2005, p. 351).
A base desta “junção de numerosas versões análogas” (p. 53), para utilizar a expressão de Franz (1990), está contida no capítulo anterior: o xintó, o zen-budismo e aspectos da vida íntima do cineasta, baseados principalmente no livro Relato Autobiográfico (1993). Na nossa análise, extraímos também da literatura consultada sobre o Japão informações sobre a história, a geografia e demografia desta nação. Esse material foi então comparado, via analogias, com os mitos, lendas e contos de fada da África, Brasil e Europa.
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3.1
“SOL COM CHUVA” (日照り雨) O primeiro episódio abre com um plano distante de um portão, filmado a partir de uma lente
teleobjetiva, de uma casa da era Taishô8 (PRINCE, 1999). Uma chuva tipicamente Kurosawariana – forte e barulhenta – é atravessada pela luz do sol. Enquanto uma versão mirim do ego-onírico de Kurosawa observa a precipitação, sua mãe corre para fora de casa e pede para ele ter cuidado, pois chuva com sol é quando as raposas celebram os seus casamentos. E elas ficam bastante zangadas caso sejam flagradas durante a procissão, avisa ela (PRINCE, 1999). Na mente japonesa as duas coisas estão tão associadas a ponto de existir uma expressão idiomática para esse fenômeno pluviométrico: kitsune no yome-iri, traduzida literalmente como “o cortejo de casamento da noiva raposa” (BUCHANAN, 1995, p. 222). Cabe esclarecer o que representa a raposa no universo religioso e folclórico japonês. Segundo Jung (2005) um arquétipo é moralmente neutro, podendo ter uma expressão tanto positiva quanto negativa. Diante dessa consideração, a expressão “favorável” da raposa é inari e a “desfavorável”, kitsune (CHEVALIER, 2012).
Para os praticantes do xintó, a kitsune simboliza a fertilidade, a sedução e os apetites sexuais. Essa libidinosidade da kitsune tem um lado sombrio: ela age como as súcubas e íncubos da Europa medieval, sugando a energia das suas vítimas através do contato sexual. A ela é atribuída também casos de histeria e de possessão demoníaca (CHEVALIER, 2012). Nisso ela se assemelha a percepção da Velha Europa da raposa ser um animal ardiloso associado às bruxas e os seus terríveis sabás (ROCKENER, 1997). A kitsune faz parte de um seleto grupo de animais com poderes metamórficos conhecidos como Obake. Além da raposa, os gatos, serpentes, aranhas, texugos e lobos possuem a mesma habilidade. No caso da kitsune ela adquire essa habilidade depois de completar 100 anos9 (ROSEN, 8
Conhecidas em japonês como nengô, as “eras” são nomeadas de acordo com os soberanos que ascendem ao poder. Nesse caso, o nome foi o do vigésimo centésimo terceiro imperador, Taishô Tennô, durando de 1912 até a sua morte, em dezembro de 1926. 9 Algumas dessas raposas míticas podem viver até 1,000 anos, e adquirem rabos extras com o passar do tempo.
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2009). A kitsune pode se transformar numa jovem mulher ou num monge budista (kenkui), a fim de prejudicar os seres humanos (FRÉDÉRIC, 2008). Uma crença semelhante pode ser verificada na velha Europa, onde se acreditava que as bruxas tomavam a forma de uma raposa à noite e saíam para cometer inúmeras maldades (VON FRANZ, 1990). Do lado positivo, a raposa é estreitamente associada à Inari, o kami do comércio e dos cereais em geral e, especificamente, do arroz, o alimento básico dos japoneses (FRÉDÉRIC, 2008). A sua manifestação física é uma raposa branca (ROSEN, 2009). Além de ser a mensageira tradicional de Inari, essa raposa é a guardiã dos santuários deste kami (FRÉDÉRIC, 2008). Cheio de curiosidade, o menino vai passear no bosque. Os bosques e florestas são sempre o cenário de mitos, fábulas e contos de fadas. São lugares escuros, perigosos, cheio de animais selvagens, longe do conforto do lar (LURKER, 2003). Lá se encontrando, ele vê surgir uma misteriosa bruma e se esconde atrás de uma árvore. Desta névoa sai uma procissão de raposas desconfiadas. Elas andam a passos lentos, sempre olhando para ver se flagram algum incauto curioso. O menino é descoberto e corre pra casa. Quando está chegando vê a mãe na porta com um olhar severo e aí desacelera o passo. Ela o recebe com uma cara séria, dizendo: “Você saiu e viu algo que não deveria ter visto. Agora não posso deixar você entrar. Uma raposa zangada apareceu procurando você”. A pedido dessa kitsune ela entrega uma adaga ao filho; este terá de pagar a vida pela sua transgressão. Ou isso, ou Kurosawa deve pedir perdão para elas, diretamente. Enquanto isso não for realizado, a mãe não permitirá que o filho retorne para ao lar. O protagonista neste tipo de conto quer descobrir, num misto de pavor e fascínio, um terrível segredo do qual foi advertido para não investigar. É o tema do “cômodo proibido”, típico dos contos de fada. Numa perspectiva psicodinâmica, pode-se supor um contato da consciência com um conteúdo inconsciente reprimido. A reação, nesse contexto, é normalmente intensa, sendo o consciente tomado de assalto pela energia represada deste conteúdo sombrio (FRANZ, 1990). Lendas, mitos e contos de fada têm uma base universal, e variações desse tema do “cômodo proibido” podem ser encontradas em culturas próximas à nossa (a africana, por exemplo). Na
mitologia dos povos iorubá, herdada pelo candomblé brasileiro, há a história de Iansã e a sua pele de 41
búfalo. Conta-se que um dia Ogum, orixá guerreiro e ferreiro, estava na floresta a caçar. Avistou um búfalo e, quando estava prestes a abater o animal, ele se transformou numa linda mulher. Era Iansã, tirando a sua pele para se banhar as margens do rio. Ogum a seguiu até o mercado da cidade e voltou para a floresta, para esconder a pele de búfalo (PRANDI, 2001; ZACARIAS, 1998). Quando foi novamente no mercado, Ogum cortejou Iansã insistentemente. Iansã resistiu. Paralelo a isso descobriu que a sua pele de búfalo tinha sumido. (Ogum tinha escondido a pele de búfalo num cômodo de sua casa). Eventualmente, Iansã cedeu aos avanços de Ogum, concordando em casar com ele; no entanto, em nenhum momento deveria se discutir o lado animal no futuro lar, o qual dividiria com as outras esposas do orixá. Essa era a sua exigência. Ogum concordou, e a partir daí constituíram uma família, tendo nove filhos (PRANDI, 2001). As outras mulheres ficaram invejosas da bela e encantadora Iansã e concatenaram um plano. Embriagaram a nova esposa de Ogum para revelar o seu segredo, que era justamente o seu lado animalesco. As outras esposas passaram a espalhar boatos sobre a origem de Iansã e dizer coisas que sugeriam onde estaria escondida a pele de búfalo. Um dia, sozinha em casa, achou num dos quartos da casa a sua tão procurada pele. Vestiu-a, e quando as mulheres anteriores de Ogum chegaram, ela partiu para cima delas, destroçando-as a base de chifradas. Somente os seus nove filhos com Ogum foram poupados do seu frenesi sanguinário (PRANDI, 2001). Traço a seguinte hipótese: a fonte do poder de sedução de Iansã é o seu lado animal, instintivo, inconsciente. Franz (1990) escreve sobre as mulheres que se recusam a serem mais conscientes, pois têm medo de perder a habilidade de “enfeitiçar” os homens quando tomadas pela força do inconsciente. Coerente com essa conjectura, quando a parte animal de Iansã é exposta à luz, ao conhecimento de todos, ela revela-se violenta e sombria (PRANDI, 2001). Existem paralelos intrigantes entre Iansã e a kitsune. As duas são figuras sedutoras e ardilosas. Ambas tem poderes metamórficos. E tanto a Iansã mitológica como a kitsune de Kurosawa fazem pagar com sangue aqueles que descobrem o seu segredo. Existe, no entanto, algum mérito explicativo nesta amplificação Iansã-kitsune? Segundo Kawai (2007, p. 148), as “espiadelas” dos contos japonesas são a forma mais comum de “descobrir a verdadeira natureza da mulher”. Algo
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foi revelado pela curiosidade intrometida do menino Kurosawa, em termos de psicologia profunda... Mas o quê, exatamente? Uma resposta possível para essa indagação pode estar relacionada com o tema do “quarto proibido”. Bruno Bettelheim, autor de A Psicanálise dos Contos de Fada (1980), faz uma análise da história de “Cachinhos de Ouro e os Três Ursos” a qual pode ser útil para nós. “Era uma vez”, como começam os clássicos contos de fadas, uma família de ursos que
moravam numa casa no meio da floresta. Eram três, e cada um tinha um tamanho diferente (Pequeno, Médio, Grande). Cada membro dessa trinca tinha uma cadeira para sentar, uma tigela de mingau e uma cama para dormir, adequados ao seu respectivo tamanho. Um dia os três saem pra passear na mata, enquanto esperavam o mingau do café da manhã esfriar. Ao saírem de casa uma menina loira – Cachinhos Dourados – se aproxima do lar dos ursos. Antes de entrar na casa, Cachinhos Dourados dá uma espiada pela janela e olha pelo buraco da fechadura. Não vendo ninguém gira a maçaneta da porta da casa, a qual está destrancada, pois estes eram bons ursos, não faziam mal a ninguém e não desconfiavam que alguém lhes quisesse prejudicar (MACHADO, 2010). Bettelheim (1980) vê tons “edípicos” nesta cena: Qual a criança que não sente curiosidade quanto ao que os adultos fazem de portas fechadas e que não gostaria de descobri-lo? Que criança deixaria de gozar de uma ausência temporária dos pais, que lhe permite espionar os seus segredos? (BETTELHEIM, 1980, p. 259).
Cachinhos Dourados entrou na casa e ficou feliz em ver as três tigelas de mingau servidas na mesa. Ela prova a do Urso Grande (muito quente), a do Urso Médio (muito fria) e a que lhe satisfaz é a do Urso Miúdo, que está no ponto certo. Ela faz o mesmo percurso quando experimenta as cadeiras dos ursos: achou a do Grande muito dura, a do Médio muito macia e a do Pequeno lhe pareceu a mais confortável. No entanto, ao sentar nessa última cadeira ela eventualmente quebra e Cachinhos Dourados cai no chão. Dando vazão a sua contínua curiosidade, a garota sobe para o segundo andar da casa onde ficam os quartos dos ursos. Ela experimenta a cama do Grande Urso. A cabeceira era alta demais para ela. Logo em seguida experimenta a cama do Urso Médio. Achou o seu pé muito alto. Mais uma vez, a cama do Urso Pequeno lhe pareceu a solução ideal. Cobriu-se com o lençol da cama e pôs-se a dormir (MACHADO, 2010).
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Logo quando a família Urso chegou, notou a bagunça em que a casa se encontrava. Trataram de investigar quem foi esse invasor e em pouco tempo descobriram Cachinhos Dourados deitada na cama do Urso Pequeno. Esta acordou num sobressalto ao ouvir a voz estridente do Pequeno Urso e pula pela janela. A família Urso nunca mais a viu (MACHADO, 2010). Antes de apontar as semelhanças entre as narrativas de Iansã, da kitsune injuriada de Kurosawa e de Cachinhos Dourados, apontemos logo uma grande diferença da última para as anteriores: o aviso prévio de que o contato com o conteúdo reprimido pode ser danoso. No primeiro episódio de Sonhos, a mãe de Kurosawa deixa claro para o filho o perigo de espiar a procissão das kitsunes. No caso de Iansã, a condição desse orixá para casar era: nunca a sua natureza animal
deveria ser revelada ou discutida. Os três ursos do conto de Cachinhos Dourados, no entanto, deixam a porta de casa destrancada. Ou seja: não há uma advertência explícita sobre o perigo de entrar, sem convite, na morada deles. Há um trecho do conto que deixa clara a disposição benigna dos ursos: Se fosse uma menina ajuizada, teria esperado até os ursos voltarem para casa, e então, talvez, eles teriam convidado ela pra tomar o café da manhã, porque eram ursos bons – um bocadinho estabanados, como é o jeito dos ursos, mas apesar disso muito afáveis e hospitaleiros (MACHADO, 2010, p. 274).
Mesmo quando pega em flagra, mesmo exasperados pela falta de educação da menina, a família urso não a ameaça, física ou verbalmente. Cachinhos Dourados foge por conta própria. Essa falta de animosidade desses ursos “felizes e ingênuos”, diz Bettelheim (1980), é explicada pelo fato
deles não terem problemas entre si. É uma família bem integrada. Cada um sabe o seu lugar, evidenciada por cada um ter a sua cama, a sua cadeira e a sua tigela. Não há disputas, e nem há nada a ser escondido entre eles. Diferente da estrutura psicológica do “cômodo proibido”, não há um conteúdo reprimido a ser temido pela consciência, não há um complexo com o perigo de ser constelado. Em versões mais antigas desse conto existia uma punição por essa infração – e ela era bem severa. Numa versão anterior dessa história, baseada num conto escocês, era uma raposa enxerida a invasora, devorada no fim do conto pelos três ursos (BETTELHEIM, 1980). Ao que parece a raposa aqui corresponde à tradicional visão europeia acerca desse animal: uma criatura astuta, inquieta e 44
audaciosa. Os ursos, dentro dessa mesma visão, são criaturas das trevas, detentoras de uma forte ligação com o instinto e o inconsciente (ROCKENER, 1997). Moral da história? Respeite a privacidade alheia; caso contrário, você pode se dar mal (BETTELHEIM, 1980). Não foi essa a natureza da infração do jovem Kurosawa, devido à sua curiosidade traquina? Para além desse sensato conselho, Bettelheim (1980) “escava” uma possível base psicossexual para o conto, base esta que gira em torno da simbologia do número três. Reparem: são três ursos, três tigelas, três cadeiras e três camas. Numa das várias versões de Cachinhos Dourados, dize-se que ela bateu três vezes na porta dos ursos antes de abri-la. Além de representar a configuração clássica de uma família nuclear – Pai, Mãe, Filho – Bettelheim (1980) vê o três como o símbolo do sexo no inconsciente. As características físicas diferenciais que tangem a sexualidade vêm em três: um pênis e dois testículos para os homens, uma vagina e dois seios para as mulheres. Há um reforço simbólico dessa perspectiva no imaginário judaico-cristã: foram Adão, Eva e a serpente da Árvore do Conhecimento os responsáveis por marcar a humanidade com o pecado original. Ou seja: Cachinhos Dourados está curiosa para descobrir o que os pais aprontam “entre quatro paredes”, pois o sexo é o maior dos enigmas, o segredo dos adultos.
Pergunta-se: terá esse “ângulo” psicossexual a resposta? Será a curiosidade do miniKurosawa da mesma natureza da de Cachinhos Dourados? Teria Akira flagrado um ato de concupiscência dos seus pais? O casamento das raposas – a união de seres tidos como altamente sensuais – é uma metáfora para o ato sexual dos seus progenitores? Seria esse o motivo verdadeiro da censura materna no sonho após o “flagra” do menino? Tal resposta, na opinião do autor, é especulação deletéria baseada em evidências inconclusivas. Caso o pequeno Akira tivesse mesmo violado a privacidade do casal, onde está o pai dele nesta história? Porque é a mãe que “castra” o menino, papel este geralmente reservado para as
figuras paternas? A autobiografia do diretor e os dados colhidos da bibliografia consultada são insuficientes para traçar um panorama sobre suas questões edipianas, e se houve de fato um episódio semelhante ao relatado acima. Ou seja: há lacunas demais a serem preenchidas. Há de se considerar também o simbolismo da raposa: ela não representa obrigatoriamente a ousadia sexual. Ela é também vista como um animal audaz e intrometido, um espelho do comportamento de Kurosawa 45
nesta primeira parte do filme. Conclusão: quando reunidos, os dados não sustentam tal hipótese. Igualmente, nota-se que o artifício empregado por Bettelheim (1980) para desvelar a situação edípica do conto – o número 3 – está ausente neste episódio de Sonhos. O aviso da mãe e a reação exacerbada da kitsune trazem um recado mais elementar: “cuidado com a sua curiosidade, menino”. No entanto, há algo nas reflexões de Bettelheim (1980) a respeito da mente infantil que pode ser aproveitada. Numa determinada fase a criança é tentada a ir além das bordas estritas do círculo familiar, levada a ter um contato maior com o mundo exterior. Ela precisa conquistar o seu espaço, apesar de ser obrigada a percorrer uma rota recheada de conflitos, frustrações e desespero. Sendo assim, a invasão de Cachinhos Dourados da casa dos ursos fez parte de sua viagem de autodescoberta. O mesmo pode ser dito do protagonista: ao embarcar na sua pequena aventura, ele teve de encarar a rejeição da mãe e vai encarar a fúria das kitsunes. Será que algo positivo surgirá dessas provações? Provavelmente. Voltemos para a cena onde a mãe de Kurosawa entrega a adaga para o filho. “Devolva o punhal e diga que lamenta muito. Elas não perdoam facilmente. Você precisa estar pronto para morrer.” Kurosawa (1993), um legítimo descendente da extinta classe samurai, certamente foi
educado sobre o valor do autossacrifício. A importância do autossacrifício é tal que pode desembocar no suicídio, tema de grande predileção por parte dos japoneses (BENEDICT, 2002). O suicídio no Japão feudal era um ato honroso. Ele “limpava o nome” do guerreiro, conservando imaculada a sua reputação e revelando o seu estoicismo perante a dor (BENEDICT, 2002). No tempo dos shoguns, o samurai cometia seppuku (切腹), vulgarmente conhecido como harakiri (腹切り), “abrir a barriga”. Essa forma ritual de esventramento seguia o seguinte protocolo:
utilizando um punhal, o suicida cortava o seu abdome da esquerda para a direita, depois subia em direção ao fígado ou fazia uma dupla incisão em cruz. Terminado esse passo, ele se inclinava para frente para aguardar o golpe de sabre que o decapitaria (FRÉDÉRIC, 2008). De acordo com os preceitos do Bushidō, as sanções sociais de uma recusa a compensar uma desonra na base do seppuku eram terríveis:
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Se um deles sentisse que tal falha era imperdoável, o mínimo que poderia fazer seria abrir seu estômago, em vez de viver em desonra, com uma queimadura em seu peito e a sensação de não ter para onde ir. Além disso, uma vez que sua carreira como guerreiro está arruinada, ele não possui nenhuma utilidade e seu nome está manchado para sempre. Mas se ele recusasse esse destino e decidisse que deveria viver, porque não vê sentido em uma morte como essa, então, pelos próximos cinco, dez ou vinte anos de vida, ele seria recriminado pelas costas e estaria marcado pela vergonha. Após a morte, seu cadáver seria coberto de desgraça, seus descendentes inocentes receberiam sua desonra por ter nascido em sua linhagem, o nome de seus ancestrais seria ultrajado e todos os seus familiares seriam malvistos. Essas consequências seriam lastimáveis (YAMAMOTO, 2004, p. 97).
Tal visão do suicídio, como algo valoroso, não pertence apenas ao passado distante dos japoneses. Caso o discurso do Imperador do Japão no final da Segunda Guerra tivesse sido diferente, conta Kurosawa (1993), o mundo assistiria pasmo o maior suicídio em massa da história. Se a mensagem do Imperador não tivesse sido a de “a abaixar suas espadas” e sim conclamar os seus
compatriotas a participaram da “Honorável Morte dos Cem Milhões”, o efeito seria devastador; quem sabe tão devastador quanto às bombas de Hiroshima ou Nagasaki, pelo menos aos olhos da opinião pública. No comando do Imperador, Kurosawa (1993, p. 215) admite que “teria agido da mesma forma”, sem questionar. A transgressão do menino Kurosawa é triplamente ofensiva. Primeiro, a já contada arquetípica do “cômodo proibido”. Segundo, ela feriu o princípio do dever filial, herança de uma
ética confuciana importada da China a partir do século VII (YAMASHIRO, 1986). Terceiro, a fé inabalável da sociedade japonesa na hierarquia rígida. No Japão, “assumir a devida posição” é uma questão central. Esse processo é dominado por regras meticulosas, feitas para a pessoa aprender a ter o devido respeito para aqueles os quais deve se subordinar. Citando Benedict (2002): A esposa inclina-se diante do marido; a criança, diante do pai; os irmãos mais jovens diante dos mais velhos e a irmã, diante de todos os irmãos, qualquer que seja a sua idade (p. 48).
A mando da mãe o pequeno Kurosawa parte para o fim do arco-íris, onde as kitsunes moram. A imagem é belíssima: no meio dum campo florido, Akira olha uma cadeia de montanhas ao longe, 47
seus picos cobertos por nuvens e sopés tragados por uma espessa neblina. É óbvio o contraste entre “luz” e “sombra” nesta cena. O arco-íris, prostrado acima e ao redor das montanhas, parece ser um
portal para o mundo mágico das raposas, fixado em algum ponto daquele misterioso vale. A trilha de Shin’ichirō Ikebe nesta cena – segundo Richie (1996), uma adaptação de “O Velho Castelo”, parte da suíte Quadros de uma Exposição (1874) do compositor Modest Mussorgsky – é rica em ambiguidade. Ela induz o ouvinte a sentir um misto de tensão e deslumbramento, a tradução “psicosonora” da expectativa rondando um encontro que pode ser tanto desastroso quanto fabuloso.
No entanto, faz-se notar a ausência de um “final feliz” neste episódio. Ele termina antes de Kurosawa encontrar as raposas. Esse tema foi debatido no capítulo anterior, quando foram comparadas as visões de Franz (1990) e Kawai (2007) a respeito desses “finais incompletos”, típicos dos contos japoneses. Foi vista também a importância da noção do “vazio.” No entanto, pode-se oferecer uma segunda explicação, mais prosaica, para o porquê de tantos episódios “interrompidos”: eles simplesmente estão imitando a estrutura narrativa dos sonhos, que raramente chegam a uma conclusão satisfatória.
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3.2
“O POMAR DOS PESSEGUEIROS ” (桃畑) O segundo episódio tem início: vemos um Akira um pouco mais crescido, em casa. A
arquitetura da residência dos Kurosawa, segundo as informações colhidas por Frédéric (2008), é tipicamente japonesa: assoalho de madeira, ambiente interno espaçoso, poucas paredes “fixas” e partes móveis, tipo painéis inteiriços, que servem como portas entre cômodos. Ele abre uma desses painéis e se depara com cinco meninas sentadas ao lado de um altar com uma fileira de bonecos. É o Hina Matsuri, o “Festival dos Bonecos”, celebrado todo três de Março.
Kurosawa traz seis bolinhos de arroz. Intrigado, diz que trouxe pra seis, insiste que falta uma pessoa. A irmã mais velha diz que não. “Você está com febre?” ela indaga zombeteira. Ele abre a porta do cômodo e se depara com uma menina vestindo um quimono rosa. Ele agora quer mostrar para a irmã, mas a menina sumiu. Há, no entanto, como parte da decoração, um pessegueiro rosa. Esta é uma dica sutil deixada por Kurosawa, uma antevisão do desfecho do episódio. O Kurosawa mirim avista de novo a misteriosa menina do quimono rosa, na porta de sua casa, e sai desbaratado no seu encalço. A irmã grita atrás dele, “Aonde está indo? Não pode sair!” A advertência dela cai em ouvidos surdos. O ego-onírico do diretor novamente se embrenha no bosque, seguindo a pista da menina através do tinido do sininho da garota. Os dois saem do bosque e o espectador avista então uma colina. A garota do quimono rosa sobe a colina, mas quando o menino Kurosawa tenta escalar o morro ele é barrado por um grupo de kamis. No topo da colina o líder kami, vestido em trajes imperiais, é o primeiro a dirigir a palavra a
Kurosawa e encabeçar uma reprimenda coletiva severa contra ele e a sua família: Você aí! Menino! Precisamos contar uma coisa! Ouça com atenção. Nunca mais voltaremos à sua casa. A sua família cortou todos os pessegueiros deste pomar! Mas o Festival das Bonecas também é chamado de Festival do Pêssego. Ele homenageia os pêssegos. Nós bonecas personificamos os pêssegos. Somos os espíritos das árvores, a vida dos brotos! Como se pode comemorar com estas árvores cortadas? As árvores desaparecidas choram de sofrimento! (SONHOS, c1990).
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Kurosawa desata a chorar, mas o Imperador kami o reprime; diz que não adianta chorar. Ele é interrompido pela Imperatriz, que pede para parar de culpá-lo, pois o Kurosawa menino chorou quando a sua família cortou as árvores, inclusive tentando impedi-los de fazer isso. O chefe do grupo zomba dele e os kamis riem. Kurosawa, indignado, grita: Não! Pêssegos podem ser comprados, mas onde comprar todo um pomar em flor? Eu amava este pomar e os pessegueiros aqui floresciam. Mas eles não estão mais aqui. Por isso choro. (SONHOS, c1990).
Enquanto Kurosawa volta a chorar, os kamis se calam e se voltam ao líder. Ele dá o seu veredito: Muito bem. Nós entendemos. Ele é um bom menino. Devemos permitir que ele veja mais uma vez florido nosso pomar de pessegueiros? (SONHOS, c1990).
Os kamis então executam o bugaku, um conjunto de danças tradicionais da corte imperial. Essas danças elegantes e aristocráticas têm como acompanhamento musical o gagaku, um misto de música sacra xintó e formas musicais importadas da China e da Coréia no século XI (FRÉDÉRIC, 2008). Pode-se especular que a vestimenta imperial dos kamis e o tom repressor do seu líder seja uma manifestação da rigidez hierárquica japonesa – dessa vez com o desrespeito pelos kamis terrestes, espíritos da natureza. A aparição destes espíritos nervosos pode também estar associada ao sentimento de culpa de Akira por sua família ter cortado os pessegueiros da colina. O tema da culpa será tratado no quarto “sonho” com mais detalhes. Ao final do bugaku vemos uma chuva de pétalas rosas e o pomar de pessegueiros é miraculosamente restaurado. A menina do quimono reaparece, correndo entre as pequenas árvores. No entanto, a felicidade do pequeno Akira dura pouco. A garota some e os pessegueiros voltam a aparecer todos podados, com a exceção de um. Ao olhar para aquele pessegueiro solitário Akira ouve pela última vez o sino de garota de rosa. Richie (1996) afirma que a garota do quimono rosa é
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na verdade o espírito daquele pessegueiro solitário. Pode-se então dizer que a missão da kami sobrevivente era avisar Kurosawa sobre o sofrimento dos espíritos das árvores. Richie (1996) chama atenção para uma discrepância neste episódio. O Hina Matsuri é normalmente associado às cerejeiras japonesas (Prunus cerrulata) e não a pessegueiros. A chave para este mistério pode estar numa tragédia familiar: o falecimento da querida irmã de Kurosawa (1993), Chi-ne-chan. Uma das lembranças mais fortes que Kurosawa (1993) tinha da irmã era como ele brincou com Chi-ne-chan no Hina Matsuri . A família do diretor herdou uma coleção de bonecos que incluía representações do Imperador, da Imperatriz e um conjunto de músicos e damas da corte. Chi-nechan o convidava para sentar em frente dos bonecos da família e servia para o irmão uma porção de saquê branco doce. Na sua autobiografia, Kurosawa (1993) lembra-se da fascinação ambígua que tinha por esses bonecos: Com as luzes apagadas, a iluminação fraca de um lampião incidia nos bonecos dispostos em cinco filas no suporte coberto com feltro escarlate. Na penumbra, os personagens pareciam vivos, como se pudessem falar a qualquer instante. Esta beleza era um pouco assustadora para mim (KUROSAWA, 1993, p. 47).
No artigo Totem e Tabu (1913), Freud (1996e) fala sobre as projeções antropomórficas que os homens primitivos faziam sobre diversos elementos da natureza, dotando vegetais, animais e objetos inanimados diversos de qualidades espirituais. Esse “sistema de pensamento”, segundo ele, é chamado de “animismo”. Num artigo posterior, O ‘Estranho’ (1919), Freud (1996d) retoma o tema
quando discorre sobre a estranha impressão causada nas mentes infantis de como bonecos ou figuras de cera parecem estar vivos. Partindo-se desta exegese psicanalítica e lembrando a forte influência que o xintó (uma religião animista por excelência) tem na sociedade japonesa, fica claro porque os bonecos / kamis assumem um ar tão pavoroso aos olhos do pequeno Kurosawa.
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Aos seis anos de idade, a bondosa e gentil Chi-ne-cham subitamente adoeceu. “Nunca me esqueço do sorriso desamparado em seu rosto, quando a visitamos no hospital Juntendo”, revelou Kurosawa (1993, p. 47). Ao falecer, adquiriu o seguinte nome budista: To Rin Tei Ko Shin Nyo. Na tradução do próprio Kurosawa, significa “Mulher da Sinceridade do Raio de Sol que brilha sobre o Pomar de Pessegueiros” (KUROSAWA, 1993, p. 51). Fazendo as devidas conexões, nota-se que
este episódio é, ao mesmo tempo, um tributo à sua querida Chi-ne-cham e ao Hina Matsuri, aqui uma segunda inserção de elementos folclóricos do seu país no filme. Ao levar em consideração essa homenagem subentendida à sua irmã, o segundo “sonho” de Akira Kurosawa pode adquirir uma ressonância arquetípica. No Japão há uma coleção de contos sobre “a mulher resistente” associados com um sentimento de tristeza, conhecido como awaré . Essa “mulher resistente” pode assumir o papel da irmã fiel, aquela que põe a felicidade ou até a própria
vida de lado pelo irmão. Ou da enteada cuja madrasta decepa suas mãos – uma metáfora de “cortar relações” para o japonês. A madrasta a expulsa de casa, forçando a menina a suportar uma “cruel solidão” separada do pai. Há uma terceira variação, a de esposas não-humanas num casamento
desastroso onde os seus respectivos cônjuges quebram um tabu imposto por elas, efetivamente dissolvendo o matrimônio (KAWAI, 2007). Nota-se um retorno do tema do autossacrifício levantado por Kurosawa (1993), mas agora voltado para a resiliência da anima nipônica no enfrentamento de situações adversas. Apesar da morte de Chi-ne-cham não ter sido um “sacrif ício” no sentido literal da palavra, ela desaparece da vida de Akira deixando um rastro de tristeza, de awaré . O trágico destino do feminino, representado pela mulher que some no fim das lendas, mitos,
contos de fada do país, é um paradigma cultural construído sob uma fundação psíquica arcaica (KAWAI, 2007). Sente-se o reflexo desta no término deste episódio.
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3.3
“A NEVASCA” (雪あらし) A Nevasca começa com uma paisagem azul-escura de baixa visibilidade, onde um grupo de
montanhistas é castigado, em câmera lenta, pelas intempéries do tempo. A tempestade de neve já dura três dias, e parece nunca acabar. Eles precisam encontrar o acampamento deles, pois logo vai anoitecer. De início, ouvimos somente a respiração ofegante dos alpinistas e tinir dos seus equipamentos de escalada. Um fade in sonoro introduz uma ventania, soprando inclemente na paisagem. Visivelmente cansados, presos num labirinto a céu aberto de vento e neve, os quatro homens param para dar uma respirada. Nesse momento são surpreendidos por uma avalanche de proporções dantescas. Os homens seguem em frente, caminhando com neve até os joelhos. Na tempestade, parece que perderam o rumo. Param para descansar. Os companheiros de Kurosawa se recusam a seguir em frente e dormem em pé, onde estão. “Não adormeçam! Se dormirem vão morrer!” grita o protagonista, desesperado. Em vão. Kurosawa finalmente cede ao cansaço e cai nos
braços de Morfeu. Presos naquele desfiladeiro, a morte parece certa para o pequeno grupo. Subitamente, o barulho do vento cessa e ouvimos a cantoria delicada de uma voz feminina. Uma mão gentilmente coloca um cobertor em cima do líder da expedição. Kurosawa acorda e se depara com uma mulher de véu e vestido branco à sua frente. Dócil e sorridente, ela diz: “A neve morna. O gelo é quente.” Ele tenta se levantar. Ela dá uns tapinhas delicados em seu peito e cobre o
seu corpo um pouco mais. O protagonista volta a cair no sono. Essa figura misteriosa é conhecida como a Yuki Onna (雪女), a “Mulher das Neves” dos contos populares japoneses. Ela é descrita frequentemente como um fantasma que aparecia nas noites de lua cheia com neve. Seu abraço é fatal para os homens que ela atrai (FRÉDÉRIC, 2008). Ela pode induzir os viajantes que encontra a dormir durante as nevascas, para que congelem até morrer, ou os vampiriza através do seu sopro gélido (ROBERTS, 2010).
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Uma Yuki Onna retratada pelo pintor Sawaki S ūshi (1707-1772). Esse papiro faz parte da coleção Hyakkai Zukan (百怪図巻, 1737), um bestiário sobrenatural publicado durante o período Edo.
Com os seus longos cabelos selvagens e o seu quimono branco, a veste funerária tradicional japonesa, a Yuki Onna de Kurosawa pode ser facilmente confundida com um yūrei (幽霊), o espírito inquieto de alguém que foi morto em circunstâncias injustas e de extremo estresse emocional, geradas por uma traição, tortura ou a quebra de códigos sociais. O yūrei pode assombrar o local onde pereceu por anos a fio – por até sete gerações, diz a tradição. Caso não seja apaziguado via rituais apropriados, o yūrei estende todo o seu ódio e desejo de vingança para qualquer um que se aproxime do seu local de morte (IWASAKA; TOELKEN, 1994). Alguns filmes de terror hollywoodianos de sucesso da década passada exploraram esse tema numa série de remakes de filmes japoneses: O Chamado, O Grito e a sua continuação, Água Negra (dirigido por Walter Salles), Pulse e Uma Chamada Perdida.10 Para Jung (2000a) a crença em espíritos era universal para os nossos ancestrais, e não só eles: esta crença sobrevive até hoje, mesmo entre os povos mais civilizados. Tal convicção religiosa é presente no cotidiano dos japoneses, especialmente no caso dos seguidores do xintoísmo 10
Segundo o site Box Office Mojo, estes filmes juntos acumularam cerca de US$ 723 milhões em bilheteria.
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(FRÉDÉRIC, 2008). Aos espíritos são atribuídos distúrbios psicológicos: a gênese dos delírios, alucinações e estados catatônicos da esquizofrenia seriam produtos de sua ação nociva. Quanto à manifestação visual deles, Jung (2000a) vê as aparições como alucinações causadas por uma constelação alucinatória de complexos ligados ao inconsciente coletivo. Diferente de quando são ligados ao inconsciente pessoal, os complexos do não-Eu psíquico são enxergados como um fenômeno estranho, alheios à consciência. Esta é a interpretação psicológica de Jung (2000a) para a questão dos espíritos, mas ela é ainda incompleta para os nossos propósitos hermenêuticos. O quesito sobre o lado pernicioso e funesto do arquétipo da anima, a ser tratada nos próximos parágrafos, é uma peça-chave neste mistério. Para aqueles que detêm certo conhecimento em relação às mitologias do mundo, o modus operandi da Yuki Onna – uma mulher bela e sobrenatural que atrai viajantes para uma morte certa
(ROBERTS, 2010) – soa familiar. Num determinado trecho da Odisseia – a história do retorno de Ulisses para casa, após o fim da Guerra da Tróia – o rei de Ítaca e os marinheiros passam pela Ilha das Sereias. As sereias da Grécia antiga eram ninfas marinhas, dotadas de um canto tão belo que faziam qualquer homem atirar-se ao mar, para literalmente afogarem-se de amor. Ulisses ordenou a tripulação do barco a colocarem cera nos ouvidos, e pediu-lhes também para o amarrarem no mastro. Queria ouvir o lindo canto das sereias sem correr risco de vida (BULFINCH, 2002). Como não poderia deixar de ser, um arquétipo se manifesta em facetas mil: além das sereias de Homero, temos as terríveis “russalcas” da mitologia eslava, que carregam as suas vítimas até o fundo do rio, ou a Lorelei alemã, cujo cantarolar induz os pescadores do Reno ao naufrágio. No folclore brasileiro existe uma figura similar: a Iara, ou Mãe-D’água. Ela é descrita como uma mulher loira, alva, meio peixe meio humana, enamorando com a sua voz os índios para que eles encontrem a morte no fundo das águas. Cascudo (2012) vê isso como uma importação europeia por parte dos poetas românticos brasileiros, a exemplo de Gonçalves Dias (1823-1864). A verdadeira MãeD’água, segundo ele, era uma cobra aquática monstruosa e assassina.
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Entre a Yuki Onna, as sereias gregas e a Iara, há um fator em comum: o elemento água. As sereias estão no oceano11, a Iara no rio, e a Yuki Onna na neve (H20 sólido, congelado). Aos olhos da psicologia analítica a água é associada ao inconsciente e o mar, especificamente, ao inconsciente coletivo, pois “sob a sua superfície espelhante se ocultam profundidades insondáveis” (JUNG, 1990, p. 59). Na psicologia do inconsciente, a anima, a personificação da natureza feminina no homem, é também associada ao elemento água. As sereias gregas e a Iara, à sua maneira, atraem os homens para um mesmo fim: submergi-los no mar do inconsciente, o seu lar e domínio. A Yuki Onna faz parecido: ela “afoga” os homens na neve. Segundo Richie (1996), o ego-onírico do diretor neste episódio está na fase da adolescência. Caso a Yuki Onna seja encarada como uma representação folclórica da anima adolescente de Akira Kurosawa, ela age como aquelas femme fatales do cinema hollywoodiano: uma mulher bonita, sedutora, uma expert em levar os homens ao mau caminho. As sereias, a Iara, Lorelei, a Yuki Onna: o denominador comum delas é fazerem os homens perderem o controle dos seus destinos. Jung (1990) disse que a anima pode ter um efeito positivamente diabólico na psique masculina. Em outro escrito, Jung (2000b) descreve um caso de “possessão” pela anima, e como sucumbir à “influência fascinante dos arquétipos” pode causar doenças mentais, inclusive a psicose (JUNG, 2000b). O perigo é tanto que pode acabar em morte – simbólica ou até literal. Cascudo (2012) menciona como as sereias na Antiguidade Greco-Romana eram divindades funerárias, ligadas aos cultos da morte. Tais cultos, pensa Jung (2000a, p. 244), são “antes de tudo, uma proteção contra a má vontade dos mortos”. Até o túmulo do grande dramaturgo grego Sófocles (497 – 405 a.C.), autor de Édipo Rei,
tinha sereias esculpidas nele (CASCUDO, 2012). Kurosawa consegue vencer o sono e espantar a Yuki Onna, que some em pleno ar. O sol aparece novamente. O episódio chega ao fim quando o quarteto descobre o acampamento a poucos metros atrás deles. Esse final feliz, como Kawai (2007) frisara, é raro nas histórias japonesas. Quanto ao elemento psicodinâmico, o ego onírico de Akira Kurosawa aparentemente se livrou de um complexo feminino travestido de Yuki Onna, uma junção negativa de anima com aparição, duas manifestações do inconsciente coletivo. 11
Curiosamente, as sereias da Odisseia são aladas. Elas não possuem o apêndice caudal dos peixes, o que conflita com a representação clássica desses seres mitológicos.
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3.4
“O TÚNEL” (トンネル) Kurosawa caminha solitário pela estrada, roupa surrada e barba por fazer. Ao término de sua
digressão ele se depara com um túnel. Da escuridão do túnel ouve-se um ganido seguido de um uivo. Um cão antitanque, com duas sacolas de granadas de mão presas ao lombo, corre para perto dele e rosna. A iluminação vermelha que incide sobre o cachorro, mais o seu latido sobrenatural, dão a ele um ar positivamente assustador. O pastor-alemão deixa Kurosawa acuado e o força a entrar no túnel. O túnel torna-se cada vez mais frio e escuro, e Kurosawa segue o risco central do túnel para não se perder. Ele eventualmente “vê a luz no final do túnel”, mas é uma luz de anoitecer, fria, azulescura, e um poste com uma luz vermelha – a mesma do cachorro – se encontra na saída do túnel. Ele é surpreendido por, literalmente, um fantasma do passado: o soldado Noguchi, que morreu em seus braços quando Kurosawa era o comandante do Terceiro Pelotão do exército japonês. O seu trabalho é convencer a Noguchi que ele realmente está morto; o soldado ainda está apegado à vida terrena, num perpétuo estado de autonegação. Ele se recusa a acreditar que está realmente morto. Quando ele finalmente convence o desvalido Noguchi a voltar para dentro do túnel, o oficial Kurosawa tem outra surpresa desagradável. O Terceiro Pelotão inteiro marcha para fora do túnel. O sargento da unidade anuncia: “Terceiro Pelotão voltando para a base, senhor! Nenhuma baixa!”. A aparição “em massa” dos fantasmas do Terceiro Pelotão pode ser uma variação
Kurosawiana para uma crença comum no Extremo Oriente. Os japoneses acreditam que os espíritos de pessoas mortas por afogamento, naufrágios e demais fatalidades marinhas voltam a bordo dos funa yūrei (船幽霊), literalmente “navios-fantasma”. Tais aparições se confirmam até os dias de
hoje, principalmente durante o O-Bon, o festival dos mortos (IWASAKA; TOELKEN, 1994). No curso da Segunda Guerra Mundial, pode-se supor que os oficiais da marinha japonesa tenham “avistado” versões modernizadas dos funa yūrei. Na história de O Túnel, Kurosawa simplesmente
trocou a marinha pela infantaria do exército.
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Visivelmente emocionado, Kurosawa se dirige aos seus companheiros de guerra: “Escutem! Sei como devem estar se sentindo. No entanto, o Terceiro Pelotão foi aniquilado! Todos vocês morreram em combate!”. O pelotão continua imóvel; um silêncio constrangedor é a resposta deles
para a declaração do comandante. Kurosawa tenta novamente ter uma reação deles, uma sucessão de trocas que se tornará cada vez mais tensa: Sinto muito. Eu não morri. Sobrevivi. Mal consigo encarar vocês! Mandei vocês para a morte. Eu sou o culpado! Eu poderia colocar toda a responsabilidade na estupidez da guerra, mas não sou capaz de fazer isso. Não consigo negar minha falta de cuidado, minha má conduta. Ainda assim... F ui capturado. Sofri tanto no campo de prisioneiros que senti o sabor da morte! E agora, olhando para vocês, sinto novamente a mesma dor. Sei que o sofrimento e a tortura de vocês foram muito maiores. Mas... Honestamente... Eu preferiria ter morrido com vocês. (SONHOS, c1990).
O foco muda mais uma vez para o Terceiro Pelotão. Eles continuam silenciosos e impassíveis. “Preferia mesmo, acreditem! Percebo a amargura de vocês”, afirma Kurosawa. “Diz-se que morreram pela pátria, mas vocês morreram como cães”. Segundo Benedict (2002), a expressão “morte de cão” significava para os militares japoneses morrer sem honra. Na era dos samurais,
acreditava-se que uma “morte de cão” era uma morte sem objetivo (TSUNETOMO, 2004). Poderíamos ver com bons olhos esse mea culpa catártico do comandante, mas do ponto de vista cultural japonês tal demonstração explícita de emoções é vista como um comportamento vulgar e grosseiro. Segundo Nakagawa (2008), a polidez sempre prevalece nas relações interpessoais, mesmo ela contradizendo as intenções reais. É só quando o Comandante Kurosawa assume o seu lugar na hierarquia e berra ordens ao pelotão fantasma (“Terceiro Pelotão! Meia Volta... Volver! Avante... em Marcha!”) é o que os seus subordinados voltam para o túnel, para escuridão de onde vieram. O excruciante sentimento de culpa do comandante e fantasmas que voltam pra assombrar os vivos podem estar interligados. Voltando a Totem e Tabu, Freud (1996e) examina a causa possível por trás da aversão fóbica dos povos primitivos aos mortos. Na visão da psicanálise, a transformação de pessoas amadas em “demônios” após morte pela mente primitiva é explicada pela hostilidade inconsciente dos parentes sobreviventes ao finado. Essa atitude emocional ambivalente, carregada 58
de culpa, projeta-se e assume a forma de espíritos ressentidos com os vivos. Eis uma razão por trás da necessidade de nossos antepassados apelarem para a feitiçaria, a magia e os seus rituais para apaziguarem os mortos (FREUD, 1996e). Tais práticas são antigas no Japão: no período Jômon (800 a.C. – 300/200 a.C.), os mortos eram enterrados sem caixão, com os braços e pernas dobrados e com enormes pedras sobre o peito. A finalidade, ao que parece, era a de impedir que a alma do morto voltasse (YAMASHIRO, 1986). Quanto ao sentimento de culpa, ela pode ser uma contraparte sombria para a conhecida polidez nipônica. Para Nakagawa (2008), a sociedade japonesa encara a cortesia e a gentileza como obrigações sociais. A fachada permanecerá inviolável, independente do que acontece nos bastidores, inclusive – ou melhor, principalmente – dentro de uma família. “Mesmo um marido dominado pela mulher ou um irmão mais velho por um mais moço, ambos não deixam de receber a deferência formal”, diz Benedict (2002, p. 53). Tamanha repressão, tamanha raiva frustrada em nome das boas
maneiras há de ter uma válvula de escape, nem que seja pela via animista. Talvez a crença em kamis vingativos, yûreis e demais espíritos inquietos seja a maneira xintó de dar vazão a esta hostilidade contida. Depois de despachar o Terceiro Pelotão para o além, Kurosawa é novamente confrontado pelo cão sentinela. Desta vez, o Comandante encara o cão raivoso não mais com medo, mas com firmeza. “Se você fecha os olhos para o terror, acaba aterrorizado. Se você olha tudo diretamente, não tem por que temer” diz Kurosawa (1993, p. 92) na sua autobiografia. Num trecho posterior do
livro, Kurosawa (1993) desenvolve melhor essa ideia: Sempre, em determinado ponto, ao escrever meus roteiros, sinto vontade de desistir de tudo. Com minhas várias experiências, no entanto, aprendi uma coisa: se encaro com firmeza esse vazio e desespero, adotando a tática de Bodhidharma, o fundador da seita Zen, que olhou fixamente o muro que se punha em seu caminho até que suas pernas se tornassem inúteis – , um caminho se abrirá (KUROSAWA, 1993, p. 230).
Resta ainda uma dúvida. Foi oferecida uma explicação plausível para a aparição dos fantasmas: o túnel que o ex-comandante atravessou foi para a terra dos mortos. Poderíamos a aplicar a mesma analogia do primeiro episódio – o bosque como o lugar do perigoso, do desconhecido – 59
com o túnel. Mas e quanto ao Pastor Alemão raivoso? Se o túnel era passagem para o além, seria ele o seu feroz cão de guarda? Pode-se então fazer amplificação e associar este cachorro raivoso com Cérbero, o monstruoso cão de três cabeças que fica do outro lado das margens do rio que leva ao Hades, o mundo dos mortos e inferno dos antigos gregos (BULFINCH, 2002). A função de Cérbero era impedir que os mortos fugissem e os vivos entrassem no Hades. Essa ligação do cão com a morte e a malevolência, longe de pertencer apenas à Antiguidade greco-romana, é praticamente universal. Verifica-se, por exemplo, semelhante associação nas mitologias egípcias, indianas e siberianas (ROCKENER, 1997).
Cérbero retratado pelo poeta e pintor britânico William Blake (1757-1827). Essa aquarela fez parte de uma série de 102 quadros que o artista criou para ilustrar uma tradução inglesa de A Divina Comédia, o poema épico de Dante Alighieri (1265-1321). Apesar de cristão devoto, Blake foi grandemente influenciado pelo antigo mundo grego. Ele foi inspirado pelo o seu vasto repositório de mitos, ritos, mistérios e filosofia (DAVIS, 1977).
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Nesse quarto episódio o espectro da rigidez hierárquica tão cara à sociedade nipônica volta a aparecer, desta vez associada ao militarismo. O Japão tinha uma visão bem particular das causas que os levaram a participar da Segunda Guerra Mundial: segundo Benedict (2002, p. 26), “enquanto cada nação tivesse soberania absoluta, haveria anarquia no mundo”. Como a “única” nação legitimamente hierárquica, cabia aos japoneses ordenar a confusão reinante, fazendo os outros países se submeterem a eles. Os líderes militares do Japão tinham a convicção que teriam de ir até as últimas consequências para estabelecer a sua nova ordem mundial (BENEDICT, 2002). Kurosawa (1993) não serviu o exército durante a Guerra do Pacífico e nem ofereceu uma resistência ao militarismo japonês; no entanto, sofreu com a pesada censura imposta pelo Ministério do Interior durante a guerra. Quarenta anos depois ainda tinha de “reprimir a ira” ao escrever sobre
os censores, pois sentia o “meu corpo inteiro” estremecer “de ódio” ao lembrar-se deles (KUROSAWA, 1993, p. 180). Caso a “Morte de Honra dos Cem Milhões” tivesse chegado às vias de fato, o combinado foi Akira Kurosawa e os seus colegas da indústria cinematográfica matarem todos os censores antes de darem cabo às suas próprias vidas. O germe dos problemas do diretor com o exército e hierarquia em geral começou bem antes, no seio da família. Benedict (2002) comenta como o hábito por hierarquia é instalado desde cedo no núcleo familiar japonês, para ser aplicado nas relações entre diferentes castas sociais, na vida econômica e nos setores públicos. Apesar de lembrar-se do pai, Shima, como um bom homem, Kurosawa (1993) diz ter sofrido com a severidade da etiqueta samurai imposta por ele. A rebeldia juvenil de Kurosawa (1993) tomou corpo no seu terceiro ano de ginásio, quando o treinamento militar tornou-se parte do currículo obrigatório. Um capitão do Exército, formado pela Academia Imperial Toyama, foi mandado para ensinar na escola Keika. As eras Taishô e uma parte da Shôwa12 foram marcados pelo fanatismo, e esse professor encarnava o radicalismo e cegueira doutrinária desse período com os seus métodos educacionais espartanos. O jovem Akira desenvolveu um relacionamento abertamente hostil com o tal capitão. Ao se formar, foi o único da classe a ser reprovado na matéria. Consequentemente, não recebeu o certificado de oficial autorizado (KUROSAWA, 1993). 12
Este nengô durou de 1926 a 1989; no entanto, deve se estar referindo até 1945, o fim da Segunda Guerra Mundial.
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3.5
“CORVOS” (鴉) Este sonho é um sonho do Kurosawa pintor; nele, o diretor explora o seu fascínio pela obra
do pintor neerlandês Vincent van Gogh (1853-1890). Quando Kurosawa (1993, p. 138) passava os olhos por uma tela de Van Gogh, “todas as casas, ruas e árvores pareciam-se com uma pintura realizada por ele”. Os quadros desse mestre pós-impressionista “transformavam o modo pelo qual eu contemplava todos os dias”. Neste episódio, o ego-onírico de Kurosawa está inclusive vestido como
um estudante de belas artes, com um estojo de pincéis e duas telas à mão. O tour começa com o último auto-retrato que van Gogh fez (WALTHER, 2006). Este é o início de uma visita a uma galeria com as pinturas mais famosas do artista, e Kurosawa inicialmente a percorre num sentido anti-horário. Vemos nesse breve percurso: I. Auto-retrato (Setembro de 1889, Óleo sobre tela, 57 x 43,5 cm). II. A noite estrelada (Junho de 1889, Óleo sobre tela, 73 x 92 cm). III. Doze girassóis numa jarra (Agosto de 1888, Óleo sobre tela, 91 x 72 cm). IV. Campo de trigo com corvos (Julho de 1890, Óleo sobre tela, 50,5 x 100,5 cm). A partir daí Kurosawa anda pela galeria no sentido horário, vendo os seguintes quadros: I. A cadeira de van Gogh em Arles com cachimbo (Dezembro de 1888, Óleo sobre tela, 90,5 x 72 cm). II. A ponte de Langlois, perto de Arles, com lavadeiras (Março de 1888, Óleo sobre tela, 54 x 65 cm). III. O quarto de van Gogh em Arles (Setembro de 1889, óleo sobre tela, 73 x 92 cm).
62
O ego-onírico de Kurosawa volta os olhos para A ponte de Langlois, e de repente ele literalmente entra na pintura. Lá, às margens do rio, ele pergunta para uma das lavadeiras onde está o monsieur van Gogh. Ela responde que ele acabou de atravessar a ponte, mas adverte: “Senhor, tome cuidado. Ele acabou de sair do hospício.” (SONHOS, c1990). As lavadeiras riem e Kurosawa segue caminho. Ao fundo ouve-se o Prelúdio em Ré Bemol do pianista e compositor Frédéric Chopin (1810-1849). O Kurosawa pintor encontra van Gogh no meio de um campo de trigo arado e de tulhas erguidas. No papel de van Gogh está o diretor ítalo-americano Martin Scorsese, responsável por clássicos como Taxi Driver – Motorista de Táxi (1976), Touro Indomável (1980) e recentemente A Invenção de Hugo Cabret (2011). Scorsese faz o papel de van Gogh, apesar de – como notou um
crítico – ele não falar uma só palavra de neerlandês durante a sua breve participação em Sonhos (RICHIE, 1996). Os dois mal começam a conversar e van Gogh já lhe dá uma aula sobre pintura, num fluxo torrencial de palavras: Para mim, esta cena é inacreditável. Uma cena que parece pintura não faz uma pintura. Olhando com atenção verá que toda a natureza tem a sua beleza. E, quando há essa beleza natural, eu simplesmente me perco nela. Então, com o término, a imagem aparece completa diante de mim. Mas é tão difícil segurá-la aqui dentro. (SONHOS, c1990).
Kurosawa nota a cabeça enfaixada de van Gogh e pergunta se o pintor vai bem. Ele responde ao admirador: “Ontem, eu estava tentando completar um auto-retrato. Não consegui acertar a orelha, então a cortei e a joguei fora.” (SONHOS, c1990). Esse diálogo alude ao famoso – ou infame? – episódio da automutilação de van Gogh, onde tinha chegado a um ponto de crítico na sua vida.
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O Auto-retrato com orelha ligada, finalizado em Janeiro de 1889. Esse foi o primeiro quadro a ser pintado por van Gogh quando chegou a casa, depois de passar 14 dias no hospital de Arles. Depois deste incidente nunca mais seria o mesmo. O último ano de sua vida foi solitário e deprimente, sofrendo periodicamente de ataques epiléticos. O pintor se internou voluntariamente no manicômio de Saint-Paul-de-Mausole em Provença durante esse período (WALTHER, 2006).
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Antes de o foco pairar sobre o episódio relatado no parágrafo anterior, é necessário ressaltar a vida sofrida de van Gogh. Nunca conseguiu manter-se financeiramente com a sua arte, nem criar laços sociais duradouros ou constituir família. O artista só teve o seu gênio reconhecido após a morte, ironicamente pelo mesmo público burguês que impôs o seu ostracismo (WALTHER, 2006). Talvez o ressentimento e a alienação acumulados de toda uma vida desembocaram no seu famoso surto. Alimentado pelo crescimento exponencial de suas alucinações e delírios de perseguição, van Gogh ameaçou o seu amigo pintor Gauguin (1848-1903) com uma navalha, na noite do dia 23 de Dezembro de 1888. Vincent achou que Gauguin conspirava contra ele, quando o artista francês decidiu se mudar de Arles. Gauguin tranquiliza van Gogh; este voltou para casa, enquanto Gauguin teve um sono intranquilo, alarmado pela conduta excêntrica do companheiro. Na véspera do Natal, Gauguin visita pela manhã a casa de van Gogh, e o vê segurando a orelha direita decepada na mão. Dali corre para um bordel e entrega a orelha para uma prostituta guardá-la, como se fosse algo de grande valor (WALTHER, 2006). Voltando ao filme: Kurosawa olha atônito para o pintor quando este relata a causa da faixa na cabeça. Van Gogh fala rispidamente ao seu interlocutor: “O sol me compele a pintar. Não posso
perder o meu tempo falando com você”. O artista sai da tela, enquanto Kurosawa olha de soslaio o sol. Quando se dá conta, van Gogh sumiu. Para Reider (2005), a buzina de trem ouvida a seguir é o equivalente sonoro ao “acelerar o passo” do pintor. O protagonista perambula por vários cenários tirados dos desenhos e pinturas do artista em fuga. Quando finalmente o encontra, van Gogh está caminhando numa trilha entre o milharal e desaparece num horizonte tomado por uma revoada de corvos. Um enquadramento fixo de câmera no quadro Campo de trigo com corvos (1890) segue esta cena. O quadro mostra um campo de trigo agitado por uma intensa ventania, com corvos a sobrevoá-lo. Para Walther (2006), esse trabalho exprime a instabilidade mental do artista. Crispino (2008) segue um raciocínio semelhante, e ressalta as cores escuras da tela e suas pinceladas turbulentas como indício disto. Exige-se uma breve interrupção para examinar a simbologia do corvo. No Velho Continente ela apresenta um caráter invariavelmente funesto: o corvo é o anunciador da morte. As tendências 65
carniceiras do pássaro negro forjaram essa associação na cultura popular, pois a presença de corvos nos campos de batalha banqueteando nos restos dos mortos era visão comum (ROCKENER, 1997). Segundo a interpretação de Erickson (1998), van Gogh via os campos de trigo como um símbolo de esperança, e os corvos sobrevoando-os como um presságio de algo ruim por vir. Considerando-se que Corvos foi um das últimas obras do artista, tal hipótese é plausível (DANTO, 1997). Para além desta conotação negativa, o corvo é considerado um psicopompo, um intermediário entre esse e o outro mundo. Os pássaros sempre tiveram o papel de mensageiros divinos devido a sua capacidade de voar; no caso do corvo, ele é tido como o guia das almas na sua última viagem (ROCKENER, 1997).13 Depressivo, com a sensação de que tinha falhado em todos os aspectos de sua vida, Vincent van Gogh se dirigiu na tarde de 27 de Julho para o campo e deu um tiro no próprio peito. Morreu dois dias depois nos braços do irmão Theo, na pensão onde morava (WALTHER, 2006). Na cena de encerramento do quinto episódio de Sonhos, Kurosawa mostra o respeito que tem pelo talento do perturbado gênio ao fazer o seu eu onírico literalmente “tirar o chapéu” para o quadro. O brevíssimo retrospecto dos últimos dias de van Gogh em Corvos faz uma referência sutil a um tema de considerável impacto para o diretor: o suicídio. Para além da sua função cultural num Japão pré-Meiji, o suicídio tem para Akira Kurosawa um significado profundamente pessoal: os efeitos devastadores do suicídio do irmão e a sua tentativa de tirar a própria vida, no início da década de 1970. Heigo Kurosawa tornou-se um homem bem-sucedido por causa de um movimento distintamente japonês: o dos narradores profissionais de filmes mudos. Os narradores mais populares eram tratados como estrelas de cinema e tinham o seu próprio séquito. Heigo era narrador-chefe de um cinema importante em Tóquio quando surgiram os filmes falados. Encerravase então a era dos narradores, e a vida de Heigo foi seriamente atingida com essa virada de eventos. A demissão em massa da categoria gerou greves, e Heigo foi alçado à condição de líder grevista (KUROSAWA, 1993).
13
Paradoxalmente, o corvo no Extremo Oriente é um mensageiro divino, símbolo do amor e gratidão filial.
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Em 10 de julho de 1933, quando Akira tinha 23 anos, o irmão Heigo se suicida. As causas são múltiplas, a começar pelo seu “fracasso” como líder grevista e as dificuldades financeiras que
enfrentava. No entanto, ao examinar de perto a vida de Heigo Kurosawa, esta se revela a crônica de uma morte anunciada. Um grande admirador da literatura russa, ele tinha A Última Linha (1912) de Mikhail Artsybashev (1878-1927) como livro de cabeceira. Dizia sempre que ia morrer antes dos 30, inspirado pela “morte estranha” de Naumoy, o protagonista de A Última Linha . Heigo tinha o hábito de sentenciar isso apoiado pelo seguinte argumento: “As pessoas que passam dessa idade só se tornam mais feias e mesquinhas” (KUROSAWA, 1993, p. 135).
A morte repentina do irmão fez Kurosawa (1993, p. 139) “rodar como um pião”, disse. Akira se espelhava em Heigo, e agora que ele estava morto o futuro cineasta passou a ser o homem da família. Após três anos sem rumo, muda de profissão: abandona a pintura e ingressa na indústria cinematográfica. Passou a se sentir responsável pelos pais, cuja renda diminuiu consideravelmente com o passar dos anos (KUROSAWA, 1993). Apesar de todo o seu sucesso artístico e comercial, o diretor passou por um período difícil entre as décadas de sessenta e setenta. Os anos de 1967 e 1968 foram tomados pela briga homérica (e bastante pública) com a 20th Century Fox, o estúdio que produziu Tora! Tora! Tora!, o primeiro e único filme americano a ser dirigido por Kurosawa (RICHIE, 1996). O fracasso comercial do seu filme seguinte, Dodes’Ka-Den – O Caminho da Vida (1970) e a evolução de uma doença o fizeram atentar contra a próprio vida (KUROSAWA, 1983). A tentativa de suicídio de Kurosawa veio em 1971. De acordo com Richie (1996), o diretor tinha perdido a paixão por fazer filmes.
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3.6
“FUJI VERMELHO” (赤冨士) Esse episódio já começa com uma confusão – uma multidão correndo, e o ego-onírico
“nadando” (ou melhor, correndo) “contra a corrente”. Logo ele descobre o motivo desse caos reinante: de uma cerca ele avista enormes explosões atrás do Monte Fuji. “O Fuji entrou em erupção? Terrível”. A neve ancestral em volta de seu pico começa a derreter.
O Kurosawa (1993) real vivenciou uma experiência aterrorizante, semelhante a esta: o Grande Terremoto Kantô, que sacudiu o Japão no dia 1 de Setembro de 1923.14 O futuro cineasta descobriu que esses desastres naturais podiam despertar o pior nas pessoas, a exemplo da turba que massacrou os imigrantes coreanos de Tóquio, incensados por demagogos que procuravam bodes expiatórios para aquele cataclismo. “Quando o animal humano entra em pânico, ele se torna um imbecil”, conclui Kurosawa (1993, p. 202). Uma mulher ao lado de Kurosawa, com duas crianças no colo, exclama: “Bem pior que isso!
Não está sabendo? A usina nuclear explodiu!”. Um homem engravatado de óculos se intromete na conversa dos dois e explica: “Os seis reatores atômicos estão explodindo um a um”. O mesmo homem trata logo de dissipar qualquer lufada de esperança: “O Japão é tão pequeno, que não há
como escapar!”. A mulher complementa: “Nós sabemos! Não há saída... Mas precisamos tentar assim mesmo! Não tem outro jeito”. O Fuji fica cada vez mais vermelho e começa a ruir . Prince (1999) aponta a semelhança desse episódio com os “filmes de monstro” de Ishirô Hōnda (1911-
1993), diretor de clássicos como Godzilla (1954), Rodan (1956) e Mothra (1961). O Monte Fuji (Fuji-san), é preciso esclarecer, é de suma importância na vida cultural dos japoneses. Considerado sagrado pelos xintoístas, ele é o vulcão mais alto do país, medindo 3.776m de altura. O Fuji-san está conectado a três vulcões subsidiários: Komitake, Ko-Fuji e Shin-Fuji. A sua beleza natural foi desde sempre tema de poesias, quadros, estampas e fotografias. Ao sul do vulcão está uma cidade portuária homônima, Fuji, localizada em frente à baia de Suruga (FRÉDÉRIC, 2008). 14
Pelo fato de se situar cerca de uma grande falha geológica, as quase sete mil ilhas que constituem o Japão estão sujeitas a constantes abalos sísmicos: superam cinco mil por ano. Um dos epicentros dessa atividade é a planície costeira de Kantô, a maior do Japão, que cobre com uma superfície de 15 mil km 2.
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A Grande Onda em Kanagawa, xilogravura de Katsuhika Hokusai (1760-1849). Ao fundo, o Fuji (KERRIGAN, 200 9).
Quanto à questão das usinas atômicas, este é um tópico delicado no Japão. O dito “País do Sol Nascente” sofre de uma notória escassez de recursos naturais. As matérias-primas que
alimentam a sua poderosa indústria de tecnologia de ponta (veículos, telecomunicações, biotecnologia, eletrônica), por exemplo, têm que ser todas importadas. As suas necessidades de energia elétrica são supridas por hidroelétricas, petróleo (importado, pois o carvão japonês é de má qualidade) e outras fontes. Resultado: 10,3% da energia do país acaba dependente de usinas nucleares (FRÉDÉRIC, 2008). A adoção da energia atômica é um mal necessário, para o horror dos ambientalistas de plantão. 69
O acidente na usina nuclear de Kushima, a 250 km de Tóquio, confirmou esses receios. No dia 11 de Março de 2011, um terremoto de nível 9 na escala Richter atingiu a costa leste do Japão. Um tsunami colossal foi criado logo em seguida, atingindo uma altura de 14m. Além dos 26 mil mortos pela onda gigantesca, o tsunami infringiu sérios danos estruturais, avaliado num prejuízo em bilhões de dólares. Dois dos seis reatores da planta nuclear foram avariados (SEHGAL, 2012). Voltando ao sonho de Kurosawa: depois da assustadora visão do Fuji em erupção, um silêncio ensurdecedor. Milhares de bicicletas, malas e mochilas abandonadas, jogadas pelo chão. Exceto por Kurosawa, a mãe e o homem engravatado, não há uma alma humana a ser vista. “Mas o que aconteceu? Onde foi parar toda aquela gente? Para onde fugiram?” pergunta Kurosawa,
aturdido. “Para o fundo do mar”, responde o executivo. Com a população atual de Fuji estimada em
210 mil habitantes (FRÉDÉRIC, 2008), imagina-se a visão dantesca de fitar as centenas de milhares de corpos boiando sem vida pelas águas de Suruga. Não vemos a cena, mas imaginamos todo o seu horror pela expressão do ego-onírico do diretor. “Aqui é o fim da linha”, disse a mulher, um pouco antes. É o que parece. Do lado oposto à costa surgem nuvens de cores diferentes: vermelhas, amarelas e roxas. O executivo enumera as suas propriedades letais: Aquela vermelha é a (sic) plutônio 239. Um décimo milionésimo de grama causa câncer. A amarela é o estrôncio 90. Entra em você e causa leucemia. A roxa é césio 137. Afeta a reprodução. Produz mutações. Faz nascer (sic) monstruosidades. A estupidez do homem é inacreditável. A radioatividade é invisível. Por causa do perigo eles a coloriram. Mas isso só permite que você saiba qual o tipo que vai matá-lo. (SONHOS, c1990).
“É o cartão de visita da morte” termina, lugubremente, a exposição do executivo. O homem
se despede e se dirige ao penhasco. Kurosawa tenta impedi-lo, argumentando que “a radiação não mata de uma vez”. O executivo se exaspera. “E daí? A morte lenta é pior. Recuso-me a morrer
lentamente!” (SONHOS, c1990).
70
É a vez de a mulher fazer a sua exposição. “A morte é uma coisa para os adultos, que já
viveram bastante... Mas as crianças nem viveram ainda! Não é justo!”. Ela continua o seu lamento: Disseram que as usinas eram seguras, que o mau uso era o perigo, não a usina nuclear em si. Sem acidentes. Não haveria perigo! Foi o que nos disseram. Mentirosos! Se não forem enforcados por isso, eu mesmo vou matá-los! (SONHOS, c1990).
O homem de terno garante que ela terá a sua vingança. “Não se preocupe. A radioatividade fará isso por você.” Depois disso ele se curva e se desculpa para a mulher. “Eu sinto muito. Sou um daqueles que merecem morrer.” Por alguns segundos Kurosawa e a mãe das duas crianças olham
estupefatos para ele, até um clarão iluminar os rostos do trio. O vento agora sopra as nuvens radioativas com mais força, indo em direção dos sobreviventes. Enquanto Kurosawa está distraído com os vapores venenosos, o executivo pula para a morte. Sabemos isso pelo gemido da mulher. Kurosawa tenta, pateticamente, repelir os gases tóxicos com o seu casaco. O episódio termina num fade-out , enquanto Kurosawa é engolido pela fumaça do plutônio 239.
Há quem diga que Kurosawa “previu” o acidente de Kushima através deste sonho. Caso seja, não há nada de profético nisso. Jung (2000a) menciona na sua obra os sonhos de função “prospectiva”, experiências oníricas com o objetivo de antecipar e preparar a consciência para
atividades futuras. Captado a partir de percepções subliminares, é uma forma de o inconsciente preparar o sujeito para eventos que virão. Exemplos disso foram os sonhos e visões que pegaram Jung (2005) de surpresa entre o outono de 1913 e junho de 1914. Primeiro viu a Europa e a Rússia serem destruídas por um vagalhão gigantesco. A Suíça, protegida pelas suas montanhas, foi o único país a emergir deste mar de sangue. Depois sonhou repetidas vezes com a Lorena (região ao nordeste da França) completamente congelada e desabitada. Em 1º de Agosto de 1914 eclodiu a Primeira Guerra Mundial, e Jung (2005, p. 157) interpretou tais sonhos e visões como “sinais do destino”.
Devem-se explicar esses “sinais do destino” de Jung para melhor compreender a característica prospectiva deles. O estopim da Primeira Guerra foi o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando no dia 28 de junho de 1914 em Sarajevo, capital da atual Bósnia e
71
Herzegovina. A Suíça, nação neutra, não foi tão afetada pela guerra quanto as restantes (BAIR, 2006a). Isto explicaria a Suíça como o “porto seguro” da assustadora visão de Jung (2005). Quanto à região de Lorena, ela é alvo de uma histórica disputa entre a França e a Alemanha. Quando era conhecida pelo nome de Alsácia e Lorena ela foi perdida para os alemães no fim da Guerra Franco-Prussiana. Foi invadida quarenta anos depois pelo exército francês, no início da Primeira Guerra Mundial. As forças alemãs foram eventualmente derrotadas e obrigadas a assinar o Tratado de Versailles com os Aliados (França, Inglaterra, Estados Unidos) em 28 de junho de 1919. O tratado selou um pacto de paz injusto que efetivamente plantou as sementes da Segunda Guerra Mundial (KEEGAN, 2005). É provável que a representação invernal da Lorena onírica de Jung e o seu abandono, sem uma alma viva para lhe habitar, foi uma antevisão da morte que em breve rondaria as fronteiras da Alemanha e da França. Como visto, não há nada místico na “previsão” do doutor Jung a cerca da Primeira Guerra e os seus trágicos desenlaces. Consciente disso ou não, é provável que ele soubesse da situação política periclitante do Velho Continente. A dita Belle Époque na verdade estava assentada sob um barril de pólvora. Quem desse o primeiro tiro literalmente começaria uma guerra. Basta esmiuçar os fatos históricos para chegar a esta conclusão. Devemos encarar o sexto episódio de Sonhos da mesma forma: um prognóstico das consequências dramáticas, porém críveis, de um derretimento nuclear, uma crítica à defesa do uso de fusão nuclear como uma fonte viável de energia. Algumas palavras finais sobre o Fuji Vermelho. Há insights a serem extraídos, caso comparássemos esse episódio ao “cinema catástrofe” Ocidental? Esse gênero cinematográfico apresenta duas vertentes: a religiosa e a secular. Na primeira, o fim do mundo tem uma finalidade redentora: o triunfo do Bem sobre o Mal. Na segunda o apocalipse é posto em movimento pela ação exclusiva dos homens. Sem intervenção divina, a destruição da Terra é fatalista, niilista. À primeira vista identifica-se o tipo “secular” como sendo o do Fuji Vermelho. Ao fazer isso, no entanto, ignora-se o subtexto religioso deste episódio. Além de o acidente nuclear profanar a natureza e, especialmente, o Fuji, considerado sagrado pelo xintó, o budismo não possui um cenário tipo “f im dos dias” semelhante às grandes correntes monoteístas. A história para ele é um movimento cíclico,
sem um clímax apoteótico, sem grandes redenções (HEINZEKEHR, 2012). 72
3.7
“O DEMÔNIO CHOROSO” (鬼哭) Apesar de não estarem relacionados diretamente, este episódio é uma continuação temática
do anterior. Via um mundo pós-apocalíptico, Kurosawa efetua a junção do ancestral com o moderno, o folclórico com o científico: o mítico Oni e as mutações genéticas produzidas pela radiação nuclear. Kurosawa “remitologiza o secular” nesse episódio, diz Heinzekehr (2012, p. 3). No começo do episódio o ego onírico de Kurosawa caminha perdido por paisagem cinzenta, sem vida. Não há animais ou plantas à vista. Atrás dele se vê, à distância, uma cidade em ruínas. Esse panorama desértico resgata uma segunda lembrança do Terremoto Kantô. Quando o tremor passou, Heigo forçou Akira a acompanhá-lo num passeio pelos escombros do subúrbio de Tóquio, para verem de perto o estrago causado pelo abalo sísmico. Além dos cadáveres carbonizados, empilhados nas margens dos rios, os incêndios tinham reduzido a paisagem a uma tonalidade “marrom-avermelhada até onde meus olhos podiam ver” (KUROSAWA, 1993, p. 90). Até aquele
momento, não percebera o “quão preciosa a vegetação é”; ele não viu um traço de verde naquela vista desoladora (KUROSAWA, 1993, p. 92). Ele está caminhando pelo pico do morro onde se encontra e é encoberto por uma espessa neblina. Kurosawa começa a suspeitar que alguém o segue. Dentro da neblina ele avista um vulto. A silueta lentamente revela ser um homem com um aspecto assustador: roupas rasgadas, cabelo desgrenhado, corcunda. O homem pergunta: “Você é humano, não?” O homem repentinamente urra de dor e segura a cabeça. Quando o personagem principal se aproxima dele para perguntar se o homem está bem o Kurosawa onírico toma um susto, pois percebe o chifre que cresce topo do cabeça do homem. “Você é um ogro?”, pergunta assustado. A criatura ri e responde: “É. Acho que sou. Mas já fui humano.” Depois resmunga: “Que mundo. Quanta estupidez!”. Caso a audiência preste atenção apenas nas legendas, perderá o verdadeiro sentido da pergunta que o protagonista fez. O que o ego-onírico de Kurosawa perguntou foi: “Você é um Oni?”. Uma figura grotesca e terrivelmente forte, o Oni é um ser de outro mundo que tem uma
enorme predileção por carne humana (KAWAI, 2007). Nos teatros Nô e Kabuki ele é representado por um demônio de rosto vermelho, olhos globulosos e chifres (FRÉDÉRIC, 2008). Apesar de suas 73
tendências antropofágicas, o Oni não é visto de forma maniqueísta na cultura japonesa; ele pode ser ambíguo e possuir qualidades humanas (KAWAI, 2007). Na interação do “Ogro” com o protagonista, o espectador vai reparar que o Oni ri
nervosamente com frequência. Esse riso é característico dos contos de fadas japoneses envolvendo o Oni. A risada grosseira e agressiva do Oni é feita para apavorar as suas futuras vítimas: o Oni ri enquanto tortura os seres humanos, antes de devorá-los. O seu riso é um signo de dominação (KAWAI, 2007). O Oni mostra para Kurosawa as “flores estranhas” a crescer naquela terra inóspita: Dentesde-Leão “monstruosos” de 2m de altura (PRINCE, 1999). “Há muito tempo este lugar era um lindo campo florido. Aí as bombas nucleares e os mísseis o transformaram neste deserto! ” O monólogo prossegue: “Tudo isto está poluído pela radiação. Ela causa essas mutações. As flores estão deformadas. E não são só as flores. Os seres humanos também. Olhe para mim.” O Oni apalpa o seu
chifre, e continua a resmungar: A estúpida humanidade fez isto. Tornou nosso planeta um lixão para detritos venenosos. A natureza sumiu da Terra, a natureza que apreciávamos. Perdemos os pássaros, os animais, os peixes. Há algum tempo, vi uma lebre com dois focinhos, um pássaro de um olho só e um peixe peludo. (SONHOS, c1990).
Os efeitos devastadores de um holocausto nuclear são algo que o povo japonês conhece bem. Uma obra contundente a esse respeito é Hiroshima de John Hersey, considerada a melhor reportagem já feita. Escrita um ano após a hecatombe, ela foca nos relatos de seis sobreviventes, seis hibakushas – literalmente “pessoas afetadas pela explosão” (HERSEY, 2002, p. 99) – que fazem
descrições pavorosas dos eventos logo após a explosão, e narram como ela afetou as suas vidas em longo prazo (HERSEY, 2002). Numa segunda-feira, dia 6 de Agosto de 1945, às ordens do presidente americano Harry S. Truman, um B-29 batizado de Enola Gay sobrevoou Hiroshima. O clarão silencioso da bomba que ele carregava iluminou o céu daquela manhã de verão como um segundo sol. A sua potência equivalia a 20 mil toneladas de TNT. Só um bunker reforçado com 125m de concreto poderia 74
proteger seres humanos do impacto direto da explosão. Foram estimados em 100 mil o número de mortos e mais 100 mil de feridos. Quem teve o azar de olhar diretamente a explosão teve a suas órbitas queimadas, o humor vítreo espalhado pelos rostos queimados dos sobreviventes (HERSEY, 2002). Os afetados pela radiação desenvolveram o que ficou conhecido como “síndrome da Bomba A”. Poucos dias após o bombardeio as pessoas apresentaram náusea, diarreia, queda de cabelo, febre
e diminuição dos glóbulos brancos no sangue. Outro efeito nocivo da radiação foi gerar esterilidade nos homens e abortos espontâneos nas mulheres. Além do cansaço e da dor de cabeça habituais que duraram o resto da vida, as vítimas da bomba apresentaram outros sintomas mais problemáticos: a catarata e as temidas petéquias, manchas hemorrágicas na pele e na membrana mucosa (HERSEY, 2002). Apesar de sua filmografia relativamente parca e limitada, surgiu um gênero no cinema pósguerra japonês dedicado exclusivamente a tratar – em forma de ficção ou documentarista – das vítimas da radiação atômica: o Hibakusha Eiga. Num primeiro momento eles foram pesadamente fiscalizados pelos censores da Ocupação americana, que só autorizavam roteiros que responsabilizassem os japoneses pelo seu próprio infortúnio e perdoassem os invasores. No fim da ocupação militar americana do Japão, no entanto, os filmes ficaram mais agressivos nas suas denúncias (NOVIELLI, 2007). Dois dos filmes de Kurosawa, Anatomia do Medo (1955) e Rapsódia em Agosto (1991), se aproximam dos Hibakusha Eiga ao tratarem do Japão “pós-nuclear”
(HEINZEKEHR, 2012). O protagonista aproxima-se novamente do Oni e pergunta: “O que vocês comem, então?” O Oni ralha com ele: Não há comida! Comemos uns aos outros. Os fracos são comidos primeiro. Está chegando a minha vez. Até mesmo aqui existe uma hierarquia. Ogros com um só chifre, como eu, são sempre comidos por aqueles que têm dois ou três chifres. Antigamente, eles eram poderosos e pretensiosos, e agora ainda se impõem como ogros. (SONHOS, c1990).
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Curiosamente, o tema da hierarquia asiática aludido no primeiro e quarto episódios voltam à tona, de forma grotesca. Heinzeker (2012) argumenta que a hierarquização feita entre os Onis pelo número de chifres é arbitrária, uma caricatura das estruturas de poder da sociedade nipônica. Essa avaliação peca ao ignorar o chifre como um símbolo antiquíssimo de poder e potência viril (CHEVALIER, 2012). Sendo assim, essa “divisão de castas” balizada pela numeração dos chifres está longe de ser arbitrária. Ela expõe os impulsos territoriais e agressivos que levaram ao conflito nuclear do episódio, impulsos que continuam a ser irrogados naquele mundo pós-humano. O Oni levanta e começa a rir maniacamente. “Como quiserem, então.” E continua: Que fiquem como todos os seus chifres. Que vivam torturados pela sua aparência. É um inferno. Pior do que a morte. Eles não podem morrer, mesmo querendo. É o castigo deles. A imortalidade. Torturados pelos seus pecados (eles) precisam sofrer para sempre. (SONHOS, c1990).
Os “poderosos e pretensiosos” dos quais o Oni se refere provavelmente eram políticos, capitães de indústria e outros homens cuja fome insaciável por poder provocaram o fim daquele mundo, um mundo o qual pode se tornar o nosso, seguindo a linha de pensamento de Kurosawa. Rockener (1997) comenta como a aparência monstruosa daqueles “ogros” / Oni pode ser uma expressão exterior da sua perversidade e desequilíbrio mental. Ainda segundo Rockener (1997), o monstruoso e o animal no imaginário humano são indissociáveis. O processo evolutivo do Homo sapiens separou-o do restante do reino animal, abrindo o caminho para o despertar da consciência. Uma identificação do homem com a sua natureza animal, então, é geralmente vista como uma regressão. A aparência dos monstros (nesse caso, os Onis hibakusha) simbolizaria a sua alma animalesca (ROCKENER, 1997). Nesse momento deve-se lembrar do arquétipo da “Sombra”, mencionado no segundo capítulo. Resumidamente, a sombra é aquilo que o homem não quer ser, “o inimigo no próprio peito” (JUNG, 1999, p. 65). A sombra acumula o que o homem conscientemente rejeita, por estar
incompatível com o estilo de vida escolhido por ele. Existe um perigo duplo ao se lidar com a sombra: pela sua proximidade com a vida instintual, ignorá-la ou identificar-se exageradamente com ela produz dissociações perigosas (JUNG, 2005). 76
Contudo, Jung (1987) adverte para não equiparar “as tendências reprimidas da sombra” ao
mal absoluto. “A sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda” diz Jung (1987, p. 83), mas ela detém qualidades que embelezam a existência humana. O Oni que interage com protagonista lamenta o estado de coisas daquele mundo pós-apocalíptico e assume parte da responsabilidade por isso. “Eu era fazendeiro quando era homem. Joguei galões de leite no rio para manter os preços elevados. Enterrei batatas e repolhos com uma escavadeira. Quanta estupidez!”
Essas são reflexões e atitudes tipicamente humanas, para além do puramente instintivo. Esse Oni talvez represente uma conscientização tardia da apatia social gerada pelo egoísmo e consumismo. Os outros Onis, no entanto, parecem representar algo menos restrito do que uma sombra puramente pessoal. Para Jung (2005) a sombra, quando ligada ao inconsciente coletivo, se torna o arquétipo do eterno antagonista. Conhecemos bem essa figura na cultura judaico-cristã: o Diabo. O “filho tenebroso” de Deus é uma perversão do ideal prometéico: ele induz o homem a ser
independente atiçando o seu lado animalesco. Isso provoca a ira do Todo Poderoso, que mediante intervenções divinas reforça a fidelidade que exige do povo de Israel. No Apocalipse15 de João ele encarnará no mundo como o falso profeta, o Anticristo, que enfeitiça a humanidade com a sua doutrina enganosa e lançará o poder descomunal das trevas sobre a Terra (JUNG, 2001). Com as devidas restrições, acha-se essa personificação do mal em outras culturas. Na mitologia egípcia ela é Seth, deus da agressividade e assassino de Osíris, deus da morte, ressurreição e dos ciclos da natureza. No panteão nórdico ela é o filho dos Gigantes do Gelo, Loki, infiltrado em Asgård, a morada dos deuses. Na tradição budista há Mara, o grande tentador (LURKER, 2003). Portanto, aqueles Onis gemendo entre poças de sangue e os restos devorados de gente são a maldade em estado pleno. Viverão para atormentar o próximo, talvez a única coisa a ser feita além de aturar o próprio sofrimento, interminável. É a definição de estar no inferno. A fonte da dor são os chifres, também fonte do seu poder; é o castigo deles por tê-lo conduzido mal. O Demônio Choroso termina com Kurosawa perseguido montanha abaixo pelo seu novo “amigo”. A essa altura o Oni eliminou o resto daquela ambivalência humana descrita por Kawai (2007). O episódio acaba num fade-out semelhante ao Fuji Vermelho.
15
Do grego apokálipsis, “revelação”. O último livro do Novo Testamento contém a descrição do dito “Juízo Final ”.
77
3.8
“ALDEIA DOS MOINHOS D’ÁGUA” (水車のある村) Vemos Kurosawa atravessar uma pequena ponte de madeira e entra num aldeia com moinhos
de água. O seu rosto está radiante, encantado pela paisagem idílica ao seu redor. Ouvem-se claramente os sons bucólicos do ambiente: o canto dos pássaros, o farfalhar das árvores, o barulho da água corrente. No seu relato autobiográfico, Kurosawa (1993) comenta sobre a diferença entre os estímulos sonoros de outrora e os atuais: Os sons que eu ouvia quando garoto eram completamente diferentes desses de hoje. Em primeiro lugar, não existia algo como som elétrico naqueles dias. Todos os sons eram naturais. Entre esses sons naturais, muitos se perderam para sempre (KUROSAWA, 1993, p. 66).
Um grupelho de sete crianças passa por ele e o saúda alegremente: Konichiwa! (“Bom dia!”). Todas elas catam ramos de flores e os deixam em cima de uma pedra no final da ponte. Ao perambular pela aldeia Kurosawa encontra um ancião consertando um aro dos moinhos e trava um longo diálogo com ele. Esse “velho sábio”, obviamente uma figura arquetípica, fala sobre as
vantagens do seu modo de vida; apregoa a volta a um passado onde o homem convivia em harmonia com a natureza (RICHIE, 1996; PRINCE, 1999). Ele dá algumas dicas de como conseguir isso. Primeiro, substituir a luz elétrica por velas (“Porque a noite deveria ser clara como um dia?”).
Trocar os tratores por bois e cavalos no cultivo dos arrozais. Usar esterco e lenha como combustível, mas não cortar árvores para conseguir a segunda; esperam-se elas caírem sozinhas. Num monólogo contundente, o velho sábio explica o porquê desse “retorno às raízes”: Tentamos viver de modo como o homem vivia antigamente. É o modo natural de viver. Hoje em dia, as pessoas esquecem de que elas são só uma parte da natureza. Destroem a natureza da qual nossa vida depende. Acham que sempre podem criar algo melhor. Sobretudo os estudiosos. Eles podem ser inteligentes, mas a maioria não entende o coração da natureza. Eles só criam coisas que acabam tornando as pessoas infelizes. Mesmo assim, orgulham-se tanto de suas invenções. E, o que é o pior, a maioria das pessoas também se orgulha. Elas as veem como milagres. Idolatram-nas. (SONHOS, c1990).
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Em consonância com essa ideia, Jung (1987) lamentou as consequências negativas do intenso desenvolvimento material e científico ocidentais. Elas tem sido acompanhadas, infelizmente, por “uma assustadora carência de sabedoria e introspecção”, marca indelével de nossa época (p. 19). Por causa disso, Jung (1986) teria dito que também “os povos orientais estão sob a ameaça de uma desagregação de seu patrimônio espiritual”. Ele advertiu: O impulso febril de conquista e dominação no plano político, social e espiritual, que convulsiona a alma do Ocidente com uma paixão aparentemente insopitável se difunde, sem parar, no Oriente, ameaçando produzir consequências imprevisíveis (JUNG, 1986, p. 107).
É chegada a hora de discutir o simbolismo por trás do arquétipo do velho sábio com mais detalhes, devido à sua óbvia semelhança com o ancião da aldeia. A figura do velho sábio aparece em sonhos, meditações e na técnica da “imaginação ativa”, provendo sentido em situações confusas. Esse “guru interno” auxilia na tomada de decisões, esquematiza um plano, afia a intuição... Em
suma: ele dá conselhos para a pessoa superar os obstáculos da vida (JUNG, 2000b). Para Middelkoop (1996) esse “espírito-guia” está ligado ao Si-Mesmo. É uma figura que inspira respeito
e confiança, que enfrenta de forma clara e direta os problemas do sonhador. Esse “personagem arcaico da alma coletiva” emana do “centro invisível de comando” do inconsciente, o Si-Mesmo, o
cerne da psique (MIDDELKOOP, 1996, p. 7). Na última cena, o foco da câmera descansa nas imagens do lânguido movimento das ervas aquáticas do rio que atravessa a aldeia dos moinhos. Richie (1996) identifica a música de fundo como a Caucasian Sketches, Suite No. 1 (1894) pelo compositor russo Mikhail Ippolitov-Ivanov. Baseado nas lembranças de Kurosawa (1993) pode-se supor que seja outra investida das críticas feita à modernidade durante este episódio. A evidência pode estar nesta exposição do diretor: A terra natal de meu pai, no interior de Akita, foi modificada de forma cruel. No riacho que corta o vilarejo, flutuavam, outrora, belas folhas e flores aquáticas. Agora, há ali tigelas, pratos, cacos de garrafa de cerveja, latas vazias, sapatos de borracha e até galochas. A natureza cuida bem de sua aparência. O que deixa a natureza feia é o comportamento dos seres humanos (KUROSAWA, 1993, p. 101-102).
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Mas o que é que Kurosawa realmente quis mostrar com essa imagem enigmática? O filósofo grego Heráclito de Éfeso (535-476 a.C.) afirma não ser possível atravessar o mesmo rio duas vezes. Tudo é movimento, perpétua mutação (FIORILLO, 2008). Um análogo desse pensamento é encontrado no modo budista de encarar a vida: nada é permanente, e tentar manter as coisas sempre iguais (inclusive o nosso “eu”) causa sofrimento. Como foi afirmada em outra ocasião, a influência
dessas ideias budistas, principalmente da vertente zen, é profunda na cultura japonesa (WATTS, 2009). Um exemplo disto são os preceitos dos códigos dos samurais: o abandono do egoísmo, o desapego a uma vida de riqueza e glória e a reflexão constante sobre a morte (TSUNETOMO, 2004). Talvez o movimento gentil dessas “belas flores aquáticas” traduza, pictoricamente, a
aceitação do inevitável por parte do diretor, com a serenidade e sapiência acumulada com a experiência de uma vida bem vivida.
80
CAPÍTULO 4:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
81
O último episódio de Sonhos, de certa forma, encapsula a essência do filme, a começar pelo ritmo em que ele é contado. O dinamismo frenético e fluidez dos filmes clássicos de Kurosawa foram substituídos por uma presença maior de planos estáticos, tomadas longas e movimentos mais lentos de câmera. O Kurosawa octogenário desenvolve Sonhos de forma metódica, sem pressa (PRINCE, 1999). Uma constatação interessante é a de que todos os episódios de Sonhos remetem – ora sutilmente, ora com drama – ao mesmo assunto: a morte. Ela está presente quando o pequeno Kurosawa chega em casa e vê a sua própria mãe lhe obrigar a pagar com a sua vida por desobedecêla. Ou na referência discreta à Chin-ne-cham no segundo episódio, O Pomar dos Pessegueiros. Ou no abraço gélido e mortal da Yuki-Onna. Ou naquele pelotão de almas penadas que vem direto do além para assombrar o Comandante Kurosawa. Ou no suicídio do irmão Heigo e de van Gogh, um dos seus artistas prediletos, acoplado a tentativa de tirar a sua própria vida. Ou ter de escolher, aos pés do Fuji-san, entre uma morte lenta (contaminação por radiação) ou rápida (pular de um penhasco). Ou, depois do fim do mundo, ter de fugir de um demônio canibal. Finalmente, é ver um ancião se despedir alegremente de sua existência terrena. Prince (1999) comenta que Sonhos pode ser um diálogo interno do diretor, em formato de filme, com a sua própria mortalidade. Igualmente, a estrutura cíclica de Sonhos é digna de nota. Serper (2001) percebe a curiosa ligação entre o primeiro e o último episódio do filme. Em Sol com Chuva um casamento – normalmente uma ocasião feliz, pois celebra o início de uma vida – é apresentado como um evento temeroso e sobre-humano. Já em A Aldeia dos Moinhos D’Água uma procissão funerária, normalmente marcada pelo luto e pesar, é regada à alegria e otimismo. Do casório das kitsunes à marcha nada-fúnebre, encerra-se um ciclo de vida. Quanto à mensagem de Sonhos, a mídia especializada considerou o seu conteúdo simplista. Além disso, as denúncias de Kurosawa contra a guerra e energia nuclear foram tachadas de “pedantes” e “panfletárias”. Bulkeley (1990) dá outra visão sobre esse ponto. Debaixo de toda a
tensão emocional e das imagens vívidas requeridas para a sua elaboração, os sonhos – matéria-prima do filme de Kurosawa – têm mensagens simples e óbvias, sim; no entanto, são essas as mensagens mais poderosas e profundas. 82
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