Os Papas e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

July 14, 2017 | Author: Jaster IV | Category: Pope, Pope John Paul Ii, Saint, Second Vatican Council, Jesus
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Os Papas e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio...

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ÍNDICE Capa Rosto Apresentação Introdução I - A pregação da misericórdia na história do magistério pontifício II - As fontes da misericórdia divina III - Maria, Mãe de misericórdia IV - A misericórdia, vida da Igreja V - O cristão e a misericórdia Ficha Catalográfica

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APRESENTAÇÃO

N

a Bula de promulgação do Jubileu, Misericordiae vultus, o Papa Francisco citou três Pontífices para indicar a sua atenção particular ao tema da

Misericórdia. O primeiro a que faz referência é São João XXIII, que no discurso inaugural do Concílio Vaticano II referiu: «Agora a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. […] A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados» (VII, n. 2-3). O segundo Pontífice é o beato Paulo VI, que, na homilia na conclusão do Vaticano II, lembrava como o ensinamento conciliar tinha sido dado à luz da parábola do samaritano. Por fim, Francisco faz como que uma síntese do pensamento de São João Paulo II na Encíclica Dives in misericordia. Estes exemplos levaram a reunir numa breve síntese a riqueza do ensinamento dos últimos Papas sobre a mensagem central do Jubileu. Daí derivou uma profundidade insuspeita, porque a misericórdia atravessa todos os âmbitos de vida da Igreja e da existência cristã. Estas belas páginas são um testemunho precioso de como a referência à misericórdia é permanente no ensinamento da Igreja. O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização agradece ao professor Laurent Touze, docente na Pontificia Università della Santa Croce, por ter contribuído com esta seleção para evidenciar a misericórdia como a viga mestra do ensinamento dos últimos Papas. Apenas lamentamos não poder publicar todo o material em referência; é extraordinário e rico, mas de tal dimensão que ultrapassa a de um instrumento pastoral ágil como o que se pensou para a preparação do Jubileu. Estamos certos de que a meditação destas páginas levará não somente a refletir sobre a importância da misericórdia, mas será um incentivo para que passe para a vida quotidiana de cada crente na sua responsabilidade de tornar crível o Evangelho. 5

X RINO FISICHELLA Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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INTRODUÇÃO

A pregação da misericórdia, um eixo fundamental do magistério pontifício contemporâneo

O

s Papas e a misericórdia. Esta antologia situa-se no ponto de interseção de duas linhas que – entre outras – atravessam a vida da Igreja Católica dos

últimos duzentos anos. Por um lado, os Papas desempenharam, pelo menos durante um século, um papel muito mais importante do que o dos seus predecessores na orientação concreta da vida espiritual dos fiéis. O modo de orar ou de anunciar o Evangelho é hoje em dia, muito mais do que ontem, vivido em parte graças aos ensinamentos dos sucessores de São Pedro. Verifica-se, por outro lado, uma tomada de consciência muito mais profunda da misericórdia divina, presente na nossa história em Jesus Cristo. Esta segunda linha é sem dúvida traçada pelo próprio Deus no coração dos seus filhos (na sua livre adesão às inspirações do Espírito Santo, na sua descoberta emocional de mensagens centradas sobre a misericórdia divina, como aconteceu com Santa Teresa de Lisieux ou com Santa Faustina Kowałska), mas ela é também prolongada em numerosos textos do magistério pontifício, que apresentam – utilizando registros de linguagem que mudam periodicamente – o mistério pascal como mistério de misericórdia. Temos, pois, um primeiro ponto: desde há um século, ou melhor, dois, os Papas exerceram uma influência mais forte sobre a espiritualidade vivida pelos fiéis católicos do mundo inteiro. Foi em certo sentido sempre o caso, uma vez que, por exemplo, os cristãos assistiam constantemente à Missa, que está no centro e na raiz das suas vidas (Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 14), em união com o bispo de Roma citado no Cânone, ao receberem habitualmente da Sé Apostólica novas medidas litúrgicas modificadoras da sua piedade, novos santos e beatos propostos à sua imitação etc. Mas nos séculos xix e xx, junta-se a estas dimensões tradicionais uma autêntica promoção da vida cristã por parte dos 7

soberanos Pontífices, muito mais concreta e incisiva que durante as épocas precedentes. Apresentaremos aqui apenas alguns exemplos, entre muitos outros: Leão XIII escreveu dezesseis documentos importantes sobre o Rosário, dos quais onze encíclicas, para difundir ainda mais esta devoção mariana; São Pio X, sobretudo encorajando a recepção da Sagrada Comunhão, tornou-se conhecido como um dos maiores reformadores da vida interna da Igreja após o Concílio de Trento; Pio XI apoiou a difusão dos Exercícios Espirituais segundo o método inaciano (com a Encíclica Mens nostra, de 1929); além dos Anos Santos, devemos pensar também na promulgação dos Anos Marianos, como o de 1954, com Pio XII, ou o de 1987, com São João Paulo II, ou ainda os três anos de preparação do Jubileu do ano 2000, dedicados a cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade. Este contato mais direto do Papa com os católicos teve numerosas causas. A evolução da técnica, por exemplo: agora viaja-se mais facilmente, os Papas desde Roma e os fiéis até Roma; a rádio, a televisão e as novas tecnologias de comunicação da atualidade permitem aos cristãos seguir ao vivo as palavras pontifícias. Outras causas são mais políticas e sociais: o desaparecimento do que se chamavam as «potências católicas» colocou a Santa Sé em contato imediato com os povos. Se no final do Antigo Regime os Estados – por exemplo, os Habsburgos, no norte de Itália – se compreendiam como responsáveis por uma parte da pastoral, a presença, depois da Revolução, de autoridades políticas, tantas vezes mais ou menos abertamente anticristãs, impôs uma ligação mais ativa e religiosa entre o papado e os leigos cristãos. Quando o soberano Pontífice quer se dirigir aos fiéis, já não tem de recorrer a um mediador civil. O que na realidade se passa dentro deste quadro de diálogo direto é que os Papas da época contemporânea insistem muitas vezes na santidade dos leigos. E mais, perante os desafios comuns e cada vez mais globalizados, os cristãos são especialmente sensíveis à unidade das propostas pastorais e apostólicas, e portanto à unidade com Roma. Finalmente, as perseguições infligidas aos Papas, de Pio VI aos «prisioneiros do Vaticano» após 1870, o atentado seguido da prolongada doença suportada por São João Paulo II, o eco suscitado pela renúncia de Bento XVI, deram um tom muito mais afetivo à ideia pontifícia, permitindo falar de devoção 8

ao Papa. Primeira coordenada, pois, desta antologia: os bispos de Roma da época contemporânea exercem sobre os fiéis do mundo inteiro uma direção espiritual coletiva mais ativa do que a dos seus predecessores. Segunda coordenada: a Igreja está – há algum tempo – em escuta renovada da mensagem da misericórdia. Falando aos padres da sua diocese de Roma, o Papa Francisco dizia efetivamente, a 6 de março de 2014: «Compreendamos que nós [...] estamos aqui [...] para ouvir a voz do Espírito que fala à Igreja inteira nesta nossa época, que é precisamente o tempo da misericórdia. Disto estou certo. [...] Nós vivemos num tempo de misericórdia, desde há trinta anos ou mais, até os dias de hoje. Esta foi uma intuição de São João Paulo II. Ele teve a “perspicácia” de que este era o tempo da misericórdia». Este tempo de misericórdia começou há pelo menos trinta anos, o que nos faz pensar nos primeiros anos do pontificado de São João Paulo II, apóstolo da misericórdia divina, especialmente graças à mensagem de Santa Faustina Kowałska. Mas o Papa Francisco precisa o seu pensamento, acrescentando «há trinta anos ou mais», e por isso pode-se propor outra data para o início deste tempo de misericórdia. Com efeito, depois de mais de um século, pode-se observar na mensagem dos Papas que se sucederam na Sé de São Pedro certo número de características que os levam a falar com frequência de misericórdia: em primeiro lugar, num cristocentrismo explícito – o ensinamento eclesial e a pastoral foram sempre cristocêntricos, mas são-no mais refletidamente na época contemporânea – que indica Cristo como presença de amor do Pai na história e como objeto de amor dos homens. Neste sentido, há como que um fio condutor de misericórdia crística que une, por exemplo, o anúncio do Coração de Jesus, fundamental para o magistério pontifício desde o fim do século xix até os anos 50 do século xx, o do reino de Cristo, muito querido a Pio XI, a proposição paciente e dialogante do mistério cristão desejado pelos dois Papas que presidiram ao Concílio Vaticano II, a civilização do amor pregada pelo beato Paulo VI, a caridade posta em relevo pelo Papa Bento XVI, e a misericórdia, diretamente proclamada por São João Paulo II e pelo Papa Francisco. Aplicaremos por analogia a esta continuidade do magistério pontifício a 9

espantosa observação do beato Newman sobre a história da espiritualidade: «A Igreja Católica nunca perde o que alguma vez adquiriu. […] Em vez de passar de uma fase de vida para outra, ela leva consigo a sua juventude e a sua maturidade e até a sua (ou até a) velhice. […] São Domingos não a faz perder São Bento, e ela possui ainda a ambos, ao mesmo tempo que se torna a mãe de Santo Inácio» (The Mission of the Benedictine Order). A Igreja não perde a pregação do Coração de Jesus quando está mais atenta à extensão do reino, nem perde a ambição da civilização do amor enquanto se procura converter à misericórdia. Ao mesmo tempo, esta continuidade – fidelidade à Palavra de que o Papa e o Colégio dos Bispos são servidores – não esconde a pluralidade dos acentos altissonantes, nem as medidas tomadas. Em cada período, o Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja procura ler os sinais dos tempos, escutar o que o Espírito diz às Igrejas e indicar o caminho certo ao Povo de Deus. Esta pregação da misericórdia com acentos múltiplos tem, pois, como efeito, ou talvez mais como causa, uma mensagem essencialmente cristocêntrica. Antes da época contemporânea, o magistério pontifício não era certa e unicamente disciplinar, mas desde há dois séculos que adotou um tom mais pastoral e missionário, que lhe permite falar sobretudo e diretamente de Cristo. Isto devese ao fato de o magistério querer principalmente apresentar Cristo aos olhos dos homens,

e

apresentá-lo

de

uma

maneira

biblicamente

fundada

e

apostolicamente convincente, quando põe o acento no amor misericordioso de Deus, manifestado na história em Jesus Cristo. Estas escolhas pastorais dos Papas inserem-se no movimento cristocêntrico mais amplo na Igreja, por eles parcialmente determinado: é o Espírito Santo quem dá aos fiéis um instinto para encontrar – por exemplo, na piedade popular – caminhos novos que levam sempre a Cristo (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 31, 119, 122126). A seguir, ilustraremos brevemente certas manifestações concretas deste cristocentrismo vivido, insistindo especialmente sobre dois pontos: de um lado, a espiritualidade do século xix, como primícias da que será a do século xx e a do início do século xxi e que veremos com as citações magisteriais da antologia; de outro lado, a conjugação entre a piedade popular e os encorajamentos hierárquicos. 10

Já alguém escreveu que o século xix «redescobriu» Cristo, modelando assim a mentalidade católica dos dois séculos seguintes, e que redescobriu um Cristo perfeitamente amoroso. Dois exemplos podem ser propostos: uma maior familiaridade com a Eucaristia e uma confiança em relação ao Sagrado Coração. A familiaridade com Cristo presente na Eucaristia difundiu-se entre os cristãos com a comunhão frequente. Este movimento afirma-se gradualmente, em especial a partir do pontificado do beato Pio IX (1846-1878). Os fatores desta mudança progressiva são vários. Existem livros que os fiéis leem com predileção, como alguns simples e curtos, de monsenhor Gaston de Ségur (falecido em 1881), filho da condessa Rostopchine, que escreveu célebres romances para crianças. Antigo magistrado da Rota Romana antes de perder a visão e de regressar à França, monsenhor de Ségur foi um dos confessores mais visitados de Paris. Em 1858, encontra-se com o Cura d’Ars, do qual diz: «Eis um cego que vê mais claro que nós»; «hoje vi um santo». Publicou numerosas obras de piedade, frequentemente traduzidas, principalmente em 1860, La Très Sainte Communion, da qual se publicaram centenas de milhares de exemplares e cuja máxima essencial era: «Não comungamos porque somos bons, mas para sermos melhores». O próprio beato Pio IX louvou o livro e distribuiu-o em 1862 aos pregadores romanos da Quaresma. Mas os livros sobre a comunhão frequente chegaram-nos sobretudo da Itália. São especialmente as obras do venerável Giuseppe Frassinetti, fundador da congregação dos Filhos de Santa Maria Imaculada (falecido em 1868) – principalmente O banquete do amor divino (Gênova, 1867) –, e sobretudo de São João Bosco, com ênfase para O jovem preparado para a prática dos seus deveres de exercícios de piedade cristã (Turim, 1847), muitas vezes reeditado. Esta obra e a prática pastoral do fundador dos Salesianos ilustram também um movimento mais amplo e luminoso: o Espírito e a Igreja encorajam ao mesmo tempo a comunhão e a confissão frequentes, na consciência dos laços que unem estes dois sacramentos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1457-1458). Em alguns destes livros, as exortações pontifícias incitam igualmente à comunhão frequente: a Encíclica Miræ caritatis (28 de maio de 1902), de Leão XIII, mas sobretudo o Decreto Sacra tridentina synodus, de São Pio X, sobre a 11

comunhão quotidiana (20 de dezembro de 1905). Neste sentido, a Sé Apostólica exorta os bispos a não afastarem as crianças menores da primeira comunhão. Com o beato Pio IX, a Sagrada Congregação do Concílio corrigiu as disposições dos concílios locais e dos prelados franceses sobre este tema. As grandes mudanças a este respeito devem-se a um decreto de São Pio X, Quam singulari (8 de agosto de 1910): a idade da razão foi estabelecida nos sete anos, e bastava que a criança conhecesse os mistérios principais da fé e distinguisse as espécies do pão eucarístico do pão ordinário, disposições retomadas pelo chamado Catecismo de São Pio X, que conheceu uma grande difusão. O cristocentrismo mais consciente dos fiéis dos dois últimos séculos foi ilustrado, portanto, pela recepção mais habitual da Eucaristia. A devoção ao Sagrado Coração – sobretudo no período 1800-1950 – oferece outro exemplo desta consciência renovada da proximidade amorosa do Deus trino. Segundo a expressão frequentemente citada de monsenhor d’Hulst, primeiro reitor do Instituto Católico de Paris, falecido em 1896, o século xix foi efetivamente, «se considerado de um ponto de vista místico [...], o século do Sagrado Coração». Certamente existe uma literatura negativa e até fundada sobre certas manifestações desta devoção, que seriam doloristas e sentimentais, e apresentariam Deus, o Pai, como sedento do sangue de Cristo e dos cristãos. Mas seria talvez muito mais justo compreender como esta devoção ajudou a destruir a quimera de uma salvação sem cooperação humana, difundindo entre os cristãos a ambição de aderir livremente ao amor de Deus e de apresentar a salvação no mundo, especialmente graças à missão apostólica e à preocupação ativa pelos mais pobres. Foi notoriamente a contemplação amorosa do Coração de Jesus que permitiu a esta pedagogia da salvação esperar a afeição e a inteligência dos fiéis. Esta devoção foi principalmente fruto da livre determinação espiritual dos fiéis, mais do que consequência de encorajamentos hierárquicos: bem pelo contrário, em finais do século xvii, inquietada pela crise quietista, a Sé Apostólica recusou todas as novidades devocionais. Foi somente a partir do século xviii que a Santa Sé apoiou o culto do Sagrado Coração, como um antídoto contra o teísmo indeterminado e de tendências jansenistas. A festa litúrgica foi instituída em 12

1765 pelo Papa Clemente XIII, a pedido dos bispos da Polônia, e o beato Pio IX estendeu-a a toda a Igreja em 1856; Santa Margarida Maria Alacoque (falecida em 1690), vidente do Sagrado Coração em Paray-le-Monial, foi beatificada em 1864 e depois canonizada em 1920. No movimento das consagrações ao Sagrado Coração, também o papado segue os fiéis, muito mais do que os precede. Os primeiros exemplos de consagração de um Estado são a Bélgica, na vigília do Concílio Vaticano I, consagrada ao Coração de Cristo pelo primaz monsenhor Victor-Auguste Dechamps; o Equador, pelo seu presidente Gabriel García Moreno, em 1873; foi somente num segundo momento que Leão XIII, encorajado pela beata Maria do Divino Coração (Droste zu Vischering), consagrou o mundo inteiro, como refere a Encíclica Annum sacrum (25 de maio de 1899). Mais tarde, também a Colômbia será consagrada, em 1902, num gesto renovado pelo seu chefe de Estado em 1994; a seguir, a Espanha, pelo rei Afonso XIII, em 1919. A devoção ao Coração de Cristo ilustra perfeitamente a passagem do teísmo, por vezes um pouco glacial do século xviii, à consciência da presença amorosa da Santíssima Trindade no coração dos fiéis; da passagem da religião do dever à do amor. Esta linguagem do sentimento não deve ser confundida com sentimentalismo: ela permitiu o desenvolvimento de um cristianismo do coração, num espírito verdadeiramente evangélico, que ainda hoje marca a piedade vivida pelos cristãos. A viragem, da frieza para o sentimento, e o iniciar deste tempo de misericórdia poderiam ser identificados com o pontificado do bea​to Pio IX (1846-1878). A pregação da misericórdia divina foi nele estabelecida como um meio de ultrapassar as tendências jansenistas da espiritualidade de certos católicos. Agora já não se trata do jansenismo doutrinal do século xvii, mas de um jansenismo espiritual, marcado pela severidade, em que a seriedade de uma religião se revela num sentido de dever que tem algo de kantismo filosófico ou de victorianism protestante. É o que se pode observar, por exemplo, no início da época contemporânea, no bispo italiano Scipione de Ricci e nas declarações do seu sínodo de Pistoia (1786-1787), que foram condenados pelo Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei, de 28 de agosto de 1794. Ricci mandara imprimir certas obras dos grandes autores jansenistas de Port-Royal (Antoine Arnauld ou Pierre 13

Nicole), obras contra a devoção ao Sagrado Coração, que introduziriam distinções indevidas na pessoa do Verbo encarnado, e também outros livros, que defendiam a corrupção total da natureza humana devido ao pecado original e, portanto, uma práxis penitencial rigorista. A importância que os Papas assumiram na questão da formação da espiritualidade vivida permitiu circunscrever gradualmente estas tendências jansenizantes. A difusão da moral de Santo Afonso Maria de Ligório é uma das manifestações e das causas desta rejeição do rigorismo durante o século xix, especialmente entre o clero. O fundador dos Redentoristas, falecido em 1787, foi beatificado em 1816, canonizado em 1839 e declarado doutor da Igreja em 1871. A sua profunda reflexão moral, cuja divulgação foi encorajada pela Sé Apostólica, permitiu ultrapassar certas práticas pastorais rigoristas entre o clero. Quando Santo Afonso entrou para a vida clerical em 1723, o rigorismo tinha, com efeito, um papel importante na prática pastoral católica, como uma consequência da luta contra o quietismo – a hierarquia pretendia lembrar os imperativos práticos e quotidianos da moral contra os excessos da pseudomística –, mas também da luta contra o jansenismo – que não quer ceder ao laxismo de que os jansenistas acusavam a Igreja e, especialmente, os Jesuítas. Santo Afonso procurará então tornar mais fácil o encontro dos fiéis com o amor de Deus graças a uma piedade simples e terna. A penetração progressiva das soluções liguorianas no clero tem um exemplo conhecido no Cura d’Ars. São João Maria Vianney entrou em contato com Santo Afonso graças ao seu bispo, monsenhor Alexandre Devie, que publicou, em 1830, uma carta pastoral elogiando a Theologia moralis liguoriana. O santo cura possuía e estudava durante os invernos a Théologie morale à l’usage des curés et des confesseurs [Teologia moral para uso dos párocos e confessores] (1844) do cardeal Charles Gousset, arcebispo de Reims e grande divulgador de Santo Afonso. Em 1839, João Maria Vianney abandonou completamente a sua práxis rigorista precedente: se verifica que os penitentes estão verdadeiramente contritos, já não retarda mais a absolvição; prega cada vez mais de modo encorajador, quase sempre sobre o amor divino. Por exemplo, nas suas palavras, «como Deus é bom, o seu bom Coração é um oceano de misericórdia. Portanto, 14

por muito grandes pecadores que possamos ser, não desesperemos jamais da nossa salvação. Assim sendo, é fácil que nos salvemos!»; «As nossas faltas são como grãos de areia comparadas com a misericórdia de Deus»; «O que são os nossos pecados, se os compararmos com a misericórdia de Deus! São um grãozinho de terra comparado com uma montanha»; «Deus corre atrás do homem e fá-lo regressar». Ou então ainda: «Os jansenistas ainda têm os sacramentos, mas para nada servem por eles pensarem que se tem de ser demasiado perfeito para se poderem receber. A Igreja só deseja a nossa salvação; e é por isso que ela nos incita a receber os sacramentos». O nosso santo alia este abandono do rigorismo a um sentido agudo de devida reparação pelas faltas por ele já absolvidas, a um enérgico horror ao pecado: «Oh! Jesus, dai-nos um santo horror dos nossos pecados. Fazei passar nos nossos corações uma gota deste amargor do qual o vosso foi inundado. Se não podemos apagar os nossos pecados pela efusão do nosso sangue, pelo menos fazei que os possamos chorar»: por isso, não se deve compreender o seu abandono do rigorismo como uma conversão ao laxismo. Se pensarmos, finalmente, nos meios que difundem entre os cristãos esta piedade pelo Cristo sofredor e misericordioso, e principalmente nos meios que os atraem como por instinto, porque eles aí reconhecem a essência do Evangelho, podemos pensar principalmente nos livros de piedade mais lidos. Para a primeira parte da época contemporânea, até os anos 50, a Imitação de Cristo será certamente um exemplo desta literatura. A Imitação ganha neste período uma audiência nunca atingida, é o livro que então todos os cristãos liam desde que tivessem de algum modo gosto para as coisas espirituais. O apologista piemontês Joseph de Maistre (falecido em 1821) leu-a, mas também a venerável Paulina Jaricot, fundadora da obra de Propaganda Fidei (falecida em 1862), o beato Frederico Ozanam (falecido em 1853), fundador das Conferências de São Vicente de Paulo, criadas em 1833, que começam as suas reuniões com a sua leitura. Esta obra não influencia apenas os meios sociais mais favorecidos, mas também os ambientes populares. O grande poeta provençal Frédéric Mistral, Nobel da Literatura falecido em 1914, refere, por exemplo, que o seu pai, agricultor que tinha participado nas guerras napoleônicas, só tinha lido três livros: o Novo 15

Testamento, a Imitação e o Dom Quixote (este lembrava-lhe a campanha de Espanha e distraía-o em tempos de chuva). Outra voz que coloca o anúncio de Cristo misericordioso ao alcance de todos será a pregação das missões populares, que começa antes do período contemporâneo – e que a bula de promulgação do Ano da Misericórdia menciona explicitamente como um meio apostólico a redescobrir. Para a Itália do século xviii, o franciscano São Leonardo de Port-Maurice (falecido em 1751) seria um exemplo, ele que pregou mais de trezentas missões, atraindo por todo o lado um número extraordinário de fiéis. Nos seus sermões, ele preferia falar da Mãe de Misericórdia mais do que do inferno, convencido de converter assim mais facilmente os pecadores. Ele edificou também cerca de seiscentos caminhos da Cruz (vias-sacras) e divulgou igualmente a devoção ao Sagrado Coração.

※ Portanto, é à luz deste quadro histórico que se situam os textos pontifícios desta antologia. A escolha das citações deve ser compreendida como um convite à leitura: muitas vezes teríamos gostado de tudo transcrever e os cortes devem suscitar o desejo de procurar os originais. Como uma outra obra desta mesma coleção aborda a misericórdia na Bíblia, não faremos aqui a análise de textos escriturísticos sobre este tema, frequentemente propostos pelos Papas (por exempl, por São João Paulo II, nos números 4 – sobre o Antigo Testamento – e 5 – sobre a parábola do pai misericordioso – da Encíclica Dives in misericordia). Uma vez que este livro trata dos bispos de Roma, não retomamos diretamente os textos do Concílio Vaticano II sobre a misericórdia, nem outros documentos importantes, como o Catecismo da Igreja Católica. Quanto ao período de tempo considerado, ele começa com o pontificado de Pio XI (eleito a 6 de fevereiro de 1922) e termina com a Bula Misericordiæ vultus, do Papa Francisco, que promulga o Jubileu Extraordinário da Misericórdia (11 de abril de 2015).

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I

A

PREGAÇÃO DA MISERICÓRDIA NA HISTÓRIA DO MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO

A pregação centrada na misericórdia é uma etapa na história do magistério pontifício: ela quer anunciar o amor de Deus e a essência do Evangelho, de um modo particularmente adaptado à nossa época – como São João Paulo II gostava de sublinhar –, como antes fizeram os Papas quando convidavam a contemplar o Coração de Cristo ou encorajando os cristãos a colaborarem na instauração do Reino de Deus.

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A finalidade dos Papas: pregar o coração do Evangelho O magistério pretende ser o eco da pregação do Verbo Encarnado, uma pregação centrada sobre o amor (cf., por exemplo, MT 22,34-40). Esta insistência sobre o amor anima especialmente o projeto pastoral do Concílio Vaticano II, tal como São João XXIII e os seus sucessores o apresentaram.

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Pio XI: a devoção ao Sagrado Coração A devoção ao Sagrado Coração contém a substância da religião, enquanto facilita o amor e a imitação de Cristo. De fato, na devoção ao Sagrado Coração «encontra-se toda a substância da religião e, especialmente, a norma de uma vida mais perfeita, como a que guia para um caminho mais fácil as mentes de um conhecimento mais íntimo de Jesus Cristo e induz os corações a amá-lo mais ardentemente

e

generosamente

a imitá-lo» (Encíclica Miserentissimus

Redemptor, 8 de maio de 1928).

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João XXIII: a misericórdia e o projeto do Concílio Ainda antes da sua eleição como Papa, São João XXIII (Giuseppe Roncalli) manifestou a sua convicção de que o anúncio da misericórdia deveria ser colocado no centro da vida eclesial. Ele fez ainda várias afirmações alusivas à misericórdia divina nas notas íntimas elaboradas durante os seus exercícios espirituais em 1940, em Terapia, no Bósforo. Nelas cita a Exposição do “Miserere”, publicada pelo padre Paolo Segneri, s.j., falecido em 1694, e onde têm origem certas citações e expressões do futuro Papa. «Terça-feira, 26 de novembro. [...] A grande misericórdia. Não basta uma misericórdia qualquer. O peso das injustiças sociais e pessoais é tão grave que não basta um gesto de caridade ordinária para as perdoar. Invoca-se, porém, a grande misericórdia. Esta é proporcional à própria grandeza de Deus. Secundum magnitudinem ipsius, sic et misericordia illius [“a sua misericórdia é como a sua grandeza”]. Com razão se disse que as nossas misérias são o trono da misericórdia divina. E disse-se ainda melhor que o nome e o apelido mais belo de Deus é este: misericórdia. No meio das lágrimas, isto deve inspirar uma grande confiança. Superexaltat misericordia judicium [“a misericórdia está acima do juízo”]. Parece demasiado. Mas não é, se sobre ele se apoiar o mistério da Redenção: se, para dar um sinal de predestinação e de salvação, este aparecer indicado no exercício da misericórdia» (Diário da alma, Paulus Editora, 3ª edição, 2014, p. 292). «Ao iniciar-se o Concílio Ecumênico Vaticano II, tornou-se mais evidente do que nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente. De fato, ao suceder uma época a outra, vemos que as opiniões dos homens se sucedem excluindo-se umas às outras, e que muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer, como a névoa ao despontar o sol. A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que renovando condenações. [...] A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe

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amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados» (Discurso na abertura solene do SS. Concílio, VII, n. 1-3, 11 de outubro de 1962).

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Beato Paulo VI: a caridade, espiritualidade do Vaticano II «Desejamos antes notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade; por esta sua declarada intenção, o Concílio não poderá ser acusado por ninguém de irreligiosidade, de infidelidade ao Evangelho, se nos lembrarmos de que o próprio Cristo nos ensina que todos conhecerão que somos seus discípulos. […] Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. [...] Uma corrente de interesse e de admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam; mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro» (Homilia na conclusão solene do Concílio Vaticano II, 7 de dezembro de 1965).

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São João Paulo II: a missão da Igreja é viver e anunciar a misericórdia «A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e, em primeiro lugar, a tarefa ecumênica que tende a unir todos os que creem em Cristo. Empregando múltiplos esforços nesse sentido, que é mais poderoso do que a fraqueza das divisões humanas, pode realizar definitivamente a unidade que Cristo pedia ao Pai, e que o Espírito não cessa de pedir para nós “com gemidos inexprimíveis”» (Encíclica Dives in misericordia, n. 13, 30 de novembro de 1980). «Prosseguindo na grande tarefa de dar cumprimento ao Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente descobrir uma nova fase de autorrealização da Igreja – na medida adaptada à época em que nos coube viver –, a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efetivamente, é revelar Deus, isto é, o Pai, que nos permite “vê-lo” em Cristo. Por mais forte que possa ser a resistência da história humana, por muito marcante que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea, e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde toda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo, realmente comunicado ao homem por meio de Jesus Cristo» (Encíclica Dives in misericordia, n. 15, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI: o Concílio e o pós-Concílio, o amor ao Coração de Jesus no anúncio da Igreja «Estou convicto, colocando-me no seguimento dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos meus venerados predecessores, São João XXIII, beato Paulo VI, João Paulo I e São João Paulo II, de que a humanidade contemporânea tem necessidade desta mensagem essencial, encarnada em Jesus Cristo: Deus é amor. Tudo deve partir daqui e tudo aqui deve conduzir: cada ação pastoral e cada desenvolvimento teológico» (Homilia na Basílica de San Pietro in Ciel d’Oro, Pavia, 22 de abril de 2007).

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Francisco: a misericórdia é a força jubilosa que nos faz sair do pecado «Deus é alegre! […] E em que consiste a alegria de Deus? A alegria de Deus é perdoar, a alegria de Deus é perdoar! [...] Aqui está o Evangelho inteiro! Aqui está! Aqui está o Evangelho inteiro, todo o Cristianismo! [...] A misericórdia é a verdadeira força que pode salvar o homem e o mundo do “câncer” que é o pecado, o mal moral, o mal espiritual. Só o amor preenche os vazios, os abismos negativos que o mal abre no coração e na história. Somente o amor pode fazer isto, e esta é a alegria de Deus! [...] Qual é o perigo? É que nós presumimos que somos justos e julgamos os outros. Julgamos até Deus, porque pensamos que Ele deveria castigar os pecadores, condená-los à morte, em vez de perdoar. Então sim, corremos o risco de permanecer fora da casa do Pai!» (Angelus, 15 de setembro de 2013). «Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. [...] Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus. Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, de serenidade e de paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado» (Bula Misericordiæ vultus, n. 1-2, 11 de abril de 2015).

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A misericórdia é o coração do Evangelho Faz um século que os Papas utilizam diferentes expressões para apresentar a essência do Evangelho aos homens do seu tempo: pensemos, em particular, no Sagrado Coração, no Reino de Deus, na misericórdia etc. Apresentaremos aqui algumas destas expressões, escolhidas nas passagens onde os Pontífices analisaram estas formulações como paralelas: elas conduzem todas a Cristo e encontram a sua unidade neste fim comum.

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Pio XI: o seu programa de instauração do reino de Cristo Pio XI observa que o seu programa de instauração do reino de Cristo está relacionado com a restauração de tudo em Cristo, promovida por São Pio X e pela obra de pacificação realizada por Bento XV. «É, portanto, evidente que a verdadeira paz de Cristo não pode estar senão no reino de Cristo: “a paz de Cristo no reino de Cristo”; e é igualmente evidente que, procurando a restauração do reino de Cristo, faremos juntos o trabalho mais necessário e mais eficaz para uma estável pacificação. Foi assim que São Pio X, propondo-se “restaurar tudo em Cristo”, quase que por um instinto divino preparava a primeira e mais necessária base daquela “obra de pacificação”, que deveria ser o programa e a ocupação de Bento XV. Nós unimos num só estes dois programas dos nossos antecessores: a restauração do reino de Cristo para a pacificação em Cristo: “A paz de Cristo no reino de Cristo”» (Encíclica Ubi Arcano, n. 49, 23 de dezembro de 1922).

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Pio XII: o anúncio de Cristo é a pregação do culto ao seu Coração e do seu reino «O arcano desígnio que o Senhor nos confiou, sem nenhum mérito nosso, a altíssima dignidade e as gravíssimas solicitudes do sumo pontificado próprio no ano em que decorre o quadragésimo aniversário da consagração da humanidade ao sacratíssimo Coração do Redentor, proferida pelo nosso imortal predecessor, Leão XIII, no declinar do século passado, na vigília do Ano Santo. [...] Como não sentir hoje profundo reconhecimento para com a Providência, que quis fazer coincidir o nosso primeiro ano de pontificado com uma lembrança assim [...]; e como poderíamos não colher com alegria a oportunidade para fazer do culto ao “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1Tm 6,15; Ap 19,16), quase no introito deste nosso pontificado, no espírito do nosso inesquecível predecessor e em fiel atuação das suas intenções? Como não fazer delas o alfa e o ômega da nossa vontade e do nosso operar, do nosso ensinamento e da nossa atividade, da nossa paciência e dos nossos sofrimentos, todos consagrados à difusão do reino de Cristo?» (Summi pontificatus, sobre o programa do pontificado, 20 de outubro de 1939).

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Beato Paulo VI: construir a civilização do amor significa instaurar o Reino de Deus [O Papa procura] «fórmulas fecundas, que nos agrada cultivar e fazer presidir ao estilo e ao programa do nosso renovamento cristão. [...] Uma fórmula foi por nós já fugazmente lançada, quando nos propusemos procurar na “civilização do amor” o fruto religioso, moral e civil do Ano Santo. [...] Mas existem outras fórmulas, ótimas e fecundas, nas quais nós podemos condensar, como sementes destinadas a maravilhosos desenvolvimentos, a força genética de um cristianismo sempre novo e vivo. [...] Nós podemos, neste momento importante da nossa maturação espiritual, chegar à fórmula originária do anúncio evangélico, fórmula que temos continuamente nos lábios e no coração cada vez que recitamos a grande e usual oração do Pai-Nosso, e fazemos nosso o tema da primeira pregação de Jesus Cristo: “Venha o teu reino”» (Audiência geral, 14 de janeiro de 1976).

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São João Paulo II: o Reino de Cristo é o reino do amor misericordioso «Como é grande o poder do Amor misericordioso, que esperamos até que Cristo tenha colocado todos os inimigos sob os seus pés, vencendo até o fim o pecado e aniquilando, como último inimigo, a morte! O reino de Cristo é uma tensão para a vitória definitiva do Amor misericordioso, para a plenitude escatológica do bem e da graça, da salvação e da vida. Esta plenitude teve o seu início visível sobre a Terra na cruz e na ressurreição. Cristo, crucificado e ressuscitado, é, em profundidade, a autêntica revelação do Amor misericordioso. Ele é o rei dos nossos corações. [...] Este é, pois, o reino do amor para com o homem, do amor na verdade; e é, por isso, o reino do Amor misericordioso. Este reino é o dom “preparado [...] desde a fundação do mundo”, dom do Amor. E é também como fruto do Amor que, no decurso da história do homem e do mundo, se faz constantemente estrada através das barreiras da indiferença, do egoísmo, do desinteresse e do ódio; através das barreiras da concupiscência da carne, dos olhos e da soberba da vida (cf. JO 2, 16); através do resíduo do pecado que cada homem tem em si, através da história dos pecados humanos e dos crimes, como os que agravaram o nosso século e a nossa geração [...] através de tudo isso!» (Homilia no Santuário do Amor Misericordioso, Collevalenza, n. 2.6, 22 de novembro de 1981). «A misericórdia divina atinge os homens através do Coração de Cristo crucificado: “Minha filha, diz que sou o Amor e a Misericórdia em pessoa”, pedirá Jesus à irmã Faustina (Diário, p. 374). Cristo derrama esta misericórdia sobre a humanidade mediante o envio do Espírito que, na Trindade, é a Pessoa-Amor. E porventura não é a misericórdia um “segundo nome” do amor (cf. Encíclica Dives in misericordia, n. 7), cultuado no seu aspecto mais profundo e terno, na sua atitude de cuidar de toda a necessidade, sobretudo na sua imensa capacidade de perdão?» (Homilia na canonização da irmã Maria Faustina Kowałska, n. 2, 30 de abril de 2000). «É necessário fazer ressoar a mensagem do amor misericordioso com um vigor renovado. O mundo precisa deste amor. Chegou a hora de fazer a mensagem de Cristo atingir todos os homens: de maneira especial aqueles cuja

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humanidade e dignidade parecem perder-se no mysterium iniquitatis. Chegou o momento de a mensagem da Misericórdia Divina derramar a esperança nos corações, tornando-se a centelha de uma nova civilização: a civilização do amor» (Homilia na beatificação de quatro servos de Deus, Cracóvia, n. 3, 18 de agosto de 2002).

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Francisco: ter um coração misericordioso como o Sagrado Coração «Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador, mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs: no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e que se gasta pelo outro. Por isso, amados irmãos e irmãs, nesta Quaresma desejo rezar convosco a Cristo: “Fac cor nostrum secundum cor tuum”: “Fazei o nosso coração semelhante ao vosso” (Súplica da Ladainha ao Sagrado Coração de Jesus). Teremos assim um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo, nem cai na vertigem da globalização da indiferença» (Mensagem para a Quaresma de 2015, n. 3, 4 de outubro de 2014). «A salvação não começa pela confissão da realeza de Cristo, mas pela imitação das obras de misericórdia mediante as quais Ele realizou o Reino. Quem as cumpre demonstra que acolheu a realeza de Jesus, porque deu espaço no seu coração à caridade de Deus. Na noite da vida seremos julgados sobre o amor, sobre a proximidade e sobre a ternura para com os irmãos» (Homilia na cerimônia de canonização, 23 de novembro de 2014).

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A Divina Misericórdia no ensinamento e na vida de São João Paulo II São João Paulo II declarou que a mensagem da Divina Misericórdia formava a imagem do seu pontificado: Bento XVI e Francisco fizeram eco desta centralidade da misericórdia no magistério do seu predecessor.

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A difusão da devoção à Divina Misericórdia é um sinal dos tempos «É realmente maravilhoso o modo como a sua devoção a Jesus Misericordioso fez o seu caminho no mundo contemporâneo e conquistou tantos corações humanos! Este é sem dúvida um sinal dos tempos – um sinal do nosso século xx. O balanço deste século que passou apresenta, além das suas conquistas, que algumas vezes superaram as das épocas anteriores, também uma profunda inquietação e medo acerca do futuro. Onde, então, senão na Divina Misericórdia, pode o mundo encontrar saída e a luz da esperança? Os crentes intuem isto perfeitamente!» (Homilia na beatificação de três sacerdotes e duas irmãs, n. 6, 18 de abril de 1993).

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A mensagem da Divina Misericórdia forma a imagem do pontificado de São João Paulo II «A mensagem da Divina Misericórdia sempre me foi próxima e querida. É como se a história a tivesse inscrito na trágica experiência da Segunda Guerra Mundial. Naqueles anos difíceis, constituiu um particular sustento e uma inexaurível fonte de esperança, não só para os habitantes de Cracóvia, mas para a nação inteira. Esta foi também a minha experiência pessoal, que levei comigo para a Sé de Pedro e que num certo sentido forma a imagem deste pontificado» (Discurso às irmãs da bem-aventurada Virgem Maria da Misericórdia, Santuário da Divina Misericórdia, n. 1, 7 de junho de 1997).

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A mensagem da Divina Misericórdia confiada ao terceiro milênio, para transformar a humanidade «Como será o futuro do homem sobre a Terra? A nós não é dado sabê-lo. Contudo, é certo que, ao lado de novos progressos, não faltarão, infelizmente, experiências dolorosas. Mas a luz da Divina Misericórdia, que o Senhor quis como que entregar de novo ao mundo através do carisma da irmã Faustina, iluminará o caminho dos homens do terceiro milênio. [...] A canonização da irmã Faustina tem uma eloquência particular: mediante este ato quero hoje transmitir esta mensagem ao novo milênio. Transmito-a a todos os homens, para que aprendam a conhecer sempre melhor o verdadeiro rosto de Deus e o genuíno rosto dos irmãos. Amor a Deus e amor aos irmãos são de fato inseparáveis» (Homilia na canonização da irmã Maria Faustina Kowałska, n. 3.5).

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A Divina Misericórdia, única fonte de esperança perante o mal «Não existe para o homem outra fonte de esperança fora da misericórdia de Deus. Desejamos repetir com fé: Jesus, tenho confiança em Ti! No nosso tempo, em que o homem se sente perdido perante as numerosas manifestações do mal, temos particular necessidade deste anúncio, que exprime a confiança no amor onipotente de Deus. É preciso que a invocação da misericórdia de Deus surja do fundo dos corações repletos de sofrimento, de apreensão e de incerteza, mas que, ao mesmo tempo, procure uma fonte infalível de esperança. É por isso que hoje viemos aqui, ao Santuário de Łagiewniki, para redescobrir em Cristo o rosto do Pai: daquele que é “Pai da misericórdia e Deus de toda a consolação” (2Cor 1,3). Com os olhos da alma desejamos fixar o olhar de Jesus misericordioso para encontrar na profundidade deste olhar o reflexo da sua vida, assim como a luz da graça que já recebemos tantas vezes, e que Deus nos destina todos os dias e para o último dia» (Homilia na Dedicação do Santuário da Divina Misericórdia em Kraków-Łagiewniki, n. 1, 17 de agosto de 2002). Bento XVI referiu que as palavras desta homilia «foram como que uma síntese do seu [de São João Paulo II] magistério, evidenciando que o culto da Divina Misericórdia não é uma devoção secundária, mas dimensão integrante da fé e da oração do cristão» (Regina Cæli, 23 de abril de 2006).

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São João Paulo II reza pela difusão do amor misericordioso «Desejo confiar solenemente o mundo à Divina Misericórdia. Faço-o com o desejo ardente de que a mensagem do amor misericordioso de Deus, aqui proclamado por intermédio de Santa Faustina, chegue a todos os habitantes da Terra e cumule os seus corações de esperança. [...] Oxalá se realize a firme promessa do Senhor Jesus: deve elevar-se deste lugar “a centelha que preparará o mundo para a sua última vinda” (cf. Diário, 1732). É preciso acender esta centelha da graça de Deus. É necessário transmitir ao mundo este fogo da misericórdia. Na misericórdia de Deus, o mundo encontrará a paz, e o homem, a felicidade!» (Homilia na Dedicação do Santuário da Divina Misericórdia em Kraków-Łagiewniki, n. 5)

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O ensinamento de São João Paulo II sobre a misericórdia, fruto da sua experiência pastoral na Polônia e da sua análise do século xx «Também as reflexões que se podem ler na Dives in misericordia são fruto da minha experiência pastoral na Polônia e, de modo especial, em Cracóvia. Aqui, de fato, encontra-se o túmulo de Santa Faustina Kowałska, à qual Cristo concedeu ser uma intérprete particularmente iluminada da verdade sobre a Divina Misericórdia. [...] Falo disto porque as revelações da irmã Faustina, centradas sobre o mistério da Divina Misericórdia, se referem ao período que precede a Segunda Guerra Mundial. É precisamente o tempo em que nasceram e se desenvolveram aquelas ideologias do mal que foram o nazismo e o comunismo. A irmã Faustina tornou-se a porta-voz do anúncio segundo o qual a única verdade capaz de contrabalançar o mal daquelas ideologias é que Deus é misericórdia – é a verdade do Cristo misericordioso. É por isso que, chamado à sede de São Pedro, senti impelente a necessidade de transmitir as experiências feitas na minha terra natal, mas que pertencem ao tesouro da Igreja universal» (Memória e identidade, Milão, 2005, 15-16).

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A mensagem recebida de Santa Faustina, o Evangelho da Divina Misericórdia escrito segundo a perspectiva do século xx «Aos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, as palavras anotadas no Diário de Santa Faustina parecem um Evangelho especial da Divina Misericórdia, escrito segundo a perspetiva do século xx. Os contemporâneos compreenderam esta mensagem. E compreenderam-na exatamente através da dramática acumulação do mal durante a Segunda Guerra Mundial e através da crueldade dos sistemas totalitários. Foi como se Cristo tivesse querido revelar que o limite imposto ao mal, de que o homem é artífice e vítima, é definitivamente a Divina Misericórdia. Certamente nela há também a justiça, mas esta por si só não constitui a última palavra da economia divina na história do mundo e na história do homem. Deus sabe sempre tirar o bem do mal, Deus quer que todos sejam salvos e possam alcançar o conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4): Deus é Amor (cf. 1Jo 4,8). Cristo crucificado e ressuscitado, tal como a irmã Faustina o viu, é a revelação suprema desta verdade» (Memória e identidade, Milão, 2005, 67-71).

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A mensagem de misericórdia na vida de São João Paulo II: o poder que impõe um limite ao mal no mundo é a misericórdia manifestada na cruz São João Paulo II «deixou-nos uma interpretação do sofrimento que não é uma teoria teológica ou filosófica, mas um fruto amadurecido ao longo do seu caminho pessoal de sofrimento, por ele percorrido com a ajuda da fé no Senhor crucificado. Esta interpretação, que ele tinha elaborado na fé e que dava sentido ao seu sofrimento vivido em comunhão com o do Senhor, falava através da sua dor silenciosa, transformando-a numa grande mensagem. [...] O Papa mostra-se profundamente sensibilizado pelo espetáculo do poder do mal que, no século recém-terminado, nos é concedido experimentar de modo dramático. [...] Existe um limite contra o qual o poder do mal recua? Sim, existe, responde o Papa [...]. O poder que põe um limite ao mal é a misericórdia divina. [...] Na consideração retrospectiva do atentado de 13 de maio de 1981, e também com base na experiência do seu caminho com Deus e com o mundo, São João Paulo II aprofundou ulteriormente esta resposta. O limite do poder do mal, o poder que, em última análise, o derrota, é – como ele nos diz – o sofrimento de Deus, o sofrimento do Filho na Cruz» (BENTO XVI, Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana, 22 de dezembro de 2005).

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O tempo da misericórdia: uma intuição desejada pelo Espírito e recolhida por São João Paulo II «Estamos aqui [...] para ouvir a voz do Espírito que fala à Igreja inteira nesta nossa época, que é precisamente o tempo da misericórdia. Disto estou certo! [...] Nós vivemos num tempo de misericórdia, desde há trinta anos ou mais, até os dias de hoje. Esta foi uma intuição de São João Paulo II. Ele teve a “perspicácia” de que este era o tempo da misericórdia. [...] podemos esquecer os grandes conteúdos; as intuições excelsas e as exortações transmitidas ao Povo de Deus não os podemos esquecer. E a da Divina Misericórdia é uma delas. É uma herança que ele [São João Paulo II] nos deixou, mas que provém do alto» (FRA NCISCO, Discurso aos párocos de Roma, 6 de março de 2014).

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II

AS

FONTES DA MISERICÓRDIA DIVINA

As citações precedentes recordaram-nos esta certeza do magistério pontifício recente: o coração dos nossos contemporâneos – e primeiramente o dos cristãos – voltar-se-á cada vez mais para Deus se a Igreja souber anunciar mais claramente o amor misericordioso do Senhor. Por esta razão, os Papas encorajam sobretudo os homens deste tempo a descobrir a lógica misericordiosa da história da salvação, e especialmente do mistério pascal. Para se aproximar do amor divino, é preciso compreender e experimentar como Deus interveio na história em favor dos homens, em primeiro lugar sobre a cruz.

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A misericórdia vem de Deus Pio XII: a união da misericórdia com a justiça é ilustrada pelo Mistério Pascal «O mistério da Redenção é um mistério de amor misericordioso da Augusta Trindade e do divino Redentor para com a humanidade inteira, visto que, sendo esta totalmente incapaz de oferecer a Deus uma satisfação condigna pelos seus próprios delitos, mediante a imperscrutável riqueza de méritos que nos ganhou com a efusão do seu preciosíssimo Sangue, Cristo pôde restabelecer e aperfeiçoar aquele pacto de amizade entre Deus e os homens, violado pela primeira vez no paraíso terrestre por culpa de Adão e depois, inúmeras vezes, pelas infidelidades do Povo escolhido. Portanto, havendo, na sua qualidade de nosso legítimo e perfeito mediador, e sob o estímulo de uma caridade energética para conosco, conciliado as obrigações e compromissos do gênero humano com os direitos de Deus, o divino Redentor foi, sem dúvida, o autor daquela maravilhosa reconciliação entre a divina justiça e a divina misericórdia, a qual justamente constitui a absoluta transcendência do mistério da nossa salvação» (Encíclica Haurietis aquas, n. 20, 15 de maio de 1956).

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Beato Paulo VI: a miséria humana e a misericórdia divina: o quadro da história da salvação No texto seguinte, Paulo VI desenvolve uma intuição de Santo Agostinho que ele citou várias vezes e que lhe permite resumir a história da salvação como a de um encontro entre a miséria do homem e a misericórdia de Deus. Este texto oferece uma introdução esclarecedora desta parte da nossa antologia. A miséria do pecado e do mal encontra em Cristo o desígnio divino de misericórdia, no qual o homem colabora com a sua penitência. «Santo Agostinho fornece-nos a fórmula, que não é somente verbal, mas real, humana e teológica, e que se condensa em duas palavras formidáveis: miséria e misericórdia. Ao falarmos de miséria queremos falar do pecado, tragédia humana que se desenrola na história do mal, abismo obscuro que precipita para uma espantosa ruína. O pecado: [...] agora é a oportunidade de colocar sob a lente de uma visão mais clara esta noção, a qual tem o lugar de grau inferior e negativo de toda a concepção cristã da existência humana; e isto é tanto mais oportuno porquanto as ideo​logias teóricas e práticas do mundo contemporâneo tentam expulsar o nome e a realidade do pecado do discurso moderno. Mas uma outra verdade se impõe; uma outra sorte está reservada ao homem através da chegada de um desígnio gratuito, onipotente e inefável de Deus: a misericórdia. A misericórdia divina vem em socorro da miséria do homem. E vós sabeis com que providência: “Onde foi grande o pecado, foi bem maior a graça” (RM 5,20). E, como já sabeis, com imprevisível amor: Cristo, o Verbo de Deus feito homem, assumiu sobre si mesmo a missão redentora. «Ele, que não conhecia o pecado, fez-se pecado por nós, para que nós nos tornássemos nele justiça de Deus» (cf. 2COR 5,21). Quer dizer: Ele ofereceu-se como vítima expiadora em nossa substituição, merecendo para nós uma restituição ao estado de graça, ou seja, à participação sobrenatural na vida de Deus. [...] Entrar neste plano significa para nós fazer penitência, ou seja, saber, aceitar e reviver esta economia de salvação. Que haverá de maior, de mais necessário, e, no fundo, de mais belo, de mais fácil e de mais feliz?» (Audiência geral, 20 de março de 1974). «Fixai o vosso pensamento, hoje mais do que nunca, para que se torne habitual e sempre inspirador, no fato misterioso e central de toda a nossa fé, a Presença 46

do Filho de Deus, feito homem, entre nós; mistério da Encarnação, que nos autoriza a repetir o verdadeiro nome de Jesus, nascido de Maria e residente em Nazaré, o nome de “Deus conosco” (cf. Is 7,14; Mt 1,23). Nobiscum Deus! Então veremos reunir-se sob esta designação, própria de Jesus, o desígnio, o sentido da sua vinda a este mundo, a intenção diretiva da sua aparição entre nós homens, na história da humanidade: esta intenção resolve-se num nome, tão comum e muitas vezes profanado, que aqui atinge o vértice da divindade; este nome é amor. [...] A história de Jesus deve ser vista a esta luz: “Ele amou-me”, escreve São Paulo, e cada um de nós pode e deve repeti-lo para si: Ele amou-me “e entregou-se por mim” (Gl 2,20)» (Homilia na solenidade de Corpus Domini, 13 de junho de 1974). «A Redenção supõe uma condição infeliz da humanidade, a que ela está destinada; supõe o pecado. E o pecado é uma história extremamente longa e complicada: implica a queda de Adão; supõe uma herança que ultrapassa ao nascer um estado de privação de graça, ou seja, de relação sobrenatural do homem com Deus; implica em nós uma disfunção psicomoral que nos induz a cair nos nossos pecados pessoais; supõe a perda da plenitude de vida à qual Deus nos tinha destinado além das exigências do nosso ser natural; supõe uma necessidade de expiação e de reparação, impossíveis às nossas únicas forças; supõe a advertência de uma justiça implacável, de per se considerável; implica uma concepção de per se ainda pessimista das sortes humanas; supõe uma derrota de vida e um macabro triunfo da morte. Implica, ou melhor, reclama, um desígnio de Misericórdia Divina, divinamente restaurador. E então, eis o grande anúncio de Cristo entrando no mundo: Eis-me aqui! (cf. Hb 10,5-10). Jesus vem como Salvador, como Redentor, ou seja, como aquele que paga, que satisfaz por toda a humanidade, por nós. Esforcemo-nos por compreender o significado desta palavra: vítima. Jesus vem ao mundo como vítima expiadora, como a síntese da justiça realizada e da misericórdia reparadora» (Au​diência geral, 29 de março de 1972).

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São João Paulo II: Cristo torna presente o Pai como misericórdia «Em Cristo e por Cristo, Deus, com a sua misericórdia, torna-se também particularmente visível, isto é, coloca-se em evidência o atributo da divindade, que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos conceitos e termos, tinha chamado “misericórdia”. Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento, quanto à misericórdia divina, sentido definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e de parábolas, mas sobretudo Ele próprio a encarna e a personifica. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê nele – e nele a encontra –, Deus torna-se particularmente “visível” como o Pai “rico de misericórdia” (EF 2,4)» (Encíclica Dives in misericordia, n. 2, 30 de novembro de 1980). «A cruz no Calvário, mediante a qual Jesus Cristo – Homem, Filho da Virgem Maria, filho putativo de José de Nazaré – “deixa” este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o qual por Ele (Cristo) se aproxima de novo da humanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o três vezes santo “Espírito de verdade”. Com esta revelação do Pai e efusão do Espírito Santo, que imprimem um sigilo indelével no mistério da Redenção, explica-se o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como Deus “fiel a si próprio”, fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isso o Filho “que não conhecera pecado, Deus tratou-o por nós como pecado”. E se “tratou como pecado” aquele que era absolutamente isento de qualquer pecado, fê-lo para revelar o amor que é sempre maior do que tudo o que é criado, o amor que é Ele próprio, porque “Deus é amor”. E sobretudo o amor é maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que “a caducidade do que foi criado”, mais forte do que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, sempre em busca da “revelação dos filhos de Deus”, que são chamados para a glória futura. Esta revelação do amor é definida também misericórdia; e tal revelação do amor e da misericórdia tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo» (Encíclica

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Redemptor hominis, n. 9, 4 de março de 1979). «É precisamente a Redenção a última e definitiva revelação da santidade de Deus, que é a plenitude absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor, pois a justiça funda-se no amor, dele provém e para ele tende. Na paixão e morte de Cristo – no fato de o Pai não ter poupado o seu próprio Filho, mas “o ter tratado como pecado por nós” – manifesta-se a justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Dá-se na verdade a “superabundância” da justiça, porque os pecados do homem são “compensados” pelo sacrifício do Homem-Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente justiça “à medida” de Deus, nasce toda do amor: do amor do Pai e do Filho, e frutifica toda no amor. Precisamente por isso a justiça divina revelada na cruz de Cristo é “à medida” de Deus, nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, e frutifica inteiramente no amor. Precisamente por isso, a justiça divina revelada na cruz de Cristo é “à medida” de Deus, porque nasce do amor e se realiza no amor, produzindo frutos de salvação. A dimensão divina da Redenção não se verifica somente em ter feito justiça do pecado, mas também no fato de ter restituído ao amor a força criativa, graças à qual o homem tem novamente acesso à plenitude de vida e de santidade, que provém de Deus. Deste modo, a Redenção traz em si a revelação da misericórdia na sua plenitude» (Encíclica Dives in misericordia, n. 7, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI: a cruz revela-nos a gravidade do pecado e o poder transformador da misericórdia «Contemplando com os olhos da fé o Crucificado, podemos compreender em profundidade o que é o pecado, quanto é trágica a sua gravidade e, ao mesmo tempo, como é incomensurável o poder do perdão e da misericórdia do Senhor. [...] Olhando para Cristo, sintamo-nos ao mesmo tempo protegidos por Ele. Aquele que nós trespassamos com as nossas culpas não se cansa de derramar sobre o mundo uma torrente inexaurível de amor misericordioso. Possa a humanidade compreender que só desta fonte é possível extrair a energia espiritual indispensável para construir aquela paz e felicidade que cada ser humano procura incessantemente» (Angelus, 25 de fevereiro de 2007).

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Francisco: Jesus é a misericórdia “encarnada” «Jesus Cristo é o amor de Deus encarnado, a Misericórdia encarnada» (Regina Cæli, 7 de abril de 2013). «Depois de Jesus ter vindo ao mundo, não podemos viver como se não conhecêssemos Deus; como se fosse algo abstrato, vazio, de referência puramente nominal; não. Deus tem um rosto concreto, tem um nome: Deus é misericórdia» (Angelus, 18 de agosto de 2013). «Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão que Jesus recebeu do Pai foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. “Deus é amor” (1JO 4,8.16); afirma-o pela primeira e única vez em toda a Escritura o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram dele, manifesta algo de único e de irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo nele fala de misericórdia. Nele nada há que seja desprovido de compaixão» (Bula Misericordiæ vultus, n. 8, 11 de abril de 2015). «Quando dirigimos o olhar para a Cruz onde Jesus foi crucificado, contemplamos o sinal do amor, do amor infinito de Deus por cada um de nós e a raiz da nossa salvação. Daquela Cruz brota a misericórdia do Pai que abraça o mundo inteiro. Por meio da Cruz de Cristo, o maligno foi vencido, a morte é derrotada, a vida nos é doada, a esperança nos é restituída» (Angelus, 14 de setembro de 2014).

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O Coração de Cristo, expressão da lógica misericordiosa de Deus A devoção ao Sagrado Coração resume de forma pedagógica como a misericórdia vem do Pai, como ela se revela perfeitamente na morte do Verbo encarnado sobre a cruz e como o homem se pode associar livremente a ela. Esta devoção foi um caminho privilegiado da pregação pontifícia de fins do século XIX até a década de 50, e ainda hoje é atual, porque exprime sinteticamente o conteúdo de toda a espiritualidade cristã.

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Pio XI: contemplar o Sagrado Coração para se compreender o desígnio misericordioso de Deus e poder reparar os pecados «A expiação, purificando das culpas, começa a própria união, e com a participação dos padecimentos de Cristo aperfeiçoa-a, e com a oblação dos sacrifícios em favor dos irmãos leva-a à última realização. Foi tal precisamente o desígnio da misericórdia de Jesus quando, ardendo em chama de amor, nos quis revelar o seu Coração com os sinais da sua paixão, para que nós, meditando, por um lado, na malícia infinita do pecado e admirando, por outro lado, a infinita caridade do Redentor, detestássemos mais vivamente o pecado e mais ardentemente nos revestíssemos de amor. E na verdade, o espírito de expiação ou de reparação teve sempre destaque no culto com que se honra o Sagrado Coração de Jesus, e liga-se certamente à origem, à natureza, à eficácia e às práticas

próprias

desta

devoção

particular»

Redemptor, 8 de maio de 1928).

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(Encíclica

Miserentissimus

Pio XII: o Coração de Cristo é a síntese da redenção, porque revela a misericórdia divina «No Coração [...] do nosso Salvador [...] podemos considerar não só o símbolo, mas também como que um compêndio de todo o mistério da nossa redenção. [...] As revelações com que foi favorecida Santa Margarida Maria não acrescentaram nada de novo à doutrina católica. A sua importância consiste em que o Senhor – ao mostrar o seu Coração Sacratíssimo – de modo extraordinário e singular quis atrair a consideração dos homens para a contemplação e a veneração do amor misericordiosíssimo de Deus para com o gênero humano. De fato, mediante manifestação tão excepcional, Jesus Cristo expressamente e repetidas vezes indicou o seu Coração como símbolo com que estimular os homens ao conhecimento e à estima do seu amor; e ao mesmo tempo constituiuo sinal e penhor de misericórdia e de graça para as necessidades da Igreja nos tempos modernos» (Encíclica Haurietis aquas, n. 42, 15 de maio de 1996).

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Bento XVI: a devoção ao Sagrado Coração exprime o conteúdo de toda a verdadeira espiritualidade cristã «Este mistério do amor de Deus por nós [...] não constitui apenas o conteúdo do culto e da devoção ao Coração de Jesus: ele é, de igual modo, o conteúdo de qualquer espiritualidade e devoção verdadeira. [...] Quem aceita o amor de Deus interiormente é por ele plasmado. O amor de Deus experimentado é vivido pelo homem como um “chamado” ao qual ele deve responder. O olhar dirigido ao Senhor, que “tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Mt 8,17), ajuda-nos a tornar-nos mais atentos ao sofrimento e à necessidade dos outros. A contemplação adorante do lado trespassado pela lança torna-nos sensíveis à vontade salvífica de Deus. Torna-nos capazes de nos confiarmos ao seu amor salvífico e misericordioso e ao mesmo tempo fortalece-nos no desejo de participar na sua obra de salvação, tornando-nos seus instrumentos» (Carta ao Superior-Geral da Companhia de Jesus, 15 de maio de 2006).

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III

MARIA, MÃE DE MISERICÓRDIA

O amor misericordioso de Deus manifestou-se plenamente sobre a cruz, e a partir dela o poder da ressurreição espalha-se pelo mundo graças ao Espírito; toda a história dos homens está irrigada por esta fonte: Maria, em primeiro lugar, Mãe de misericórdia, exemplo perfeito de vida nova criada pelo amor divino; a Igreja, à imagem de Maria, tal como o cristão, graças à força divina recebida na Igreja, especialmente através dos sacramentos; e a cidade dos homens, renovada pela ação dos filhos de Deus, eles também transformados pela misericórdia.

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Beato Paulo VI: Maria foi instituída por Deus como dispensadora da sua misericórdia «Se as graves culpas dos homens pesam na balança da justiça de Deus e provocam os seus justos castigos, sabemos, por outro lado, que o Senhor é o Pai da misericórdia e Deus de toda a consolação, e que Maria Santíssima foi constituída administradora e dispensadora generosa dos tesouros da sua misericórdia. Ela, que experimentou as penas e as tribulações da Terra, o cansaço do trabalho de cada dia, os incômodos e os apertos da pobreza, as dores do Calvário, venha em socorro das necessidades da Igreja e do mundo» (Encíclica Mense maio, n. 11, 29 de abril de 1965).

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São João Paulo II: Maria experimentou a misericórdia e colaborou na sua difusão, aos pés da cruz e na história da salvação «Maria é [...] aquela que, de modo particular e excepcional – como ninguém mais –, experimentou a misericórdia e, também de modo excepcional, tornou possível, com sacrifício do coração, a sua participação na revelação da misericórdia divina. Este seu sacrifício está intimamente ligado à cruz do seu Filho, aos pés da qual ela haveria de se encontrar no Calvário. Tal sacrifício de Maria é uma singular participação na revelação da misericórdia, isto é, da fidelidade absoluta de Deus ao próprio amor, à Aliança que Ele quis desde toda a eternidade e que no tempo realizou com o homem, com o seu Povo e com a humanidade. É a participação na revelação que se realizou definitivamente mediante a Cruz. Ninguém jamais experimentou, como a Mãe do Crucificado, o mistério da Cruz, o impressionante encontro da transcendente justiça divina com o amor, o “ósculo” dado pela misericórdia à justiça» (Encíclica Dives in misericordia, n. 9, 30 de novembro de 1980).

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Cardeal Joseph Ratzinger: Maria como reflexo da misericórdia divina na mensagem de misericórdia na vida de João Paulo II «Divina misericórdia: o Santo Padre [João Paulo II] encontrou o reflexo mais puro da misericórdia de Deus na Mãe de Deus. Ele, que em tenra idade tinha perdido a mãe, por isso amou intensamente a Mãe divina. Ouviu as palavras do Senhor crucificado como se lhe tivessem sido dirigidas direta e pessoalmente: “Eis a tua Mãe!”. E fez como o discípulo predileto: acolheu-a no mais íntimo do seu ser (eis ta idia: Jo 19,27) – Totus tuus. E da Mãe aprendeu a conformar-se com Cristo» (Homilia na Missa exequial do Romano Pontífice João Paulo II, 8 de abril de 2005).

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Francisco: Maria é especialista em misericórdia porque o seu Coração está em perfeita sintonia com Cristo «Tudo na sua [de Maria] vida foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor. Escolhida para ser a Mãe do Filho de Deus, Maria foi preparada desde sempre, pelo amor do Pai, para ser Arca da Aliança entre Deus e os homens. Guardou, no seu coração, a misericórdia divina em perfeita sintonia com o seu Filho Jesus. [...] Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, o discípulo do amor, é testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus. O perdão supremo oferecido a quem o crucificou mostra-nos até onde pode chegar a misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia do Filho de Deus não conhece limites e alcança todos, sem excluir ninguém. Dirijamos-lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve-Rainha, pedindo-lhe que nunca se canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus» (Bula Misericordiæ vultus, n. 24, 11 de abril de 2015).

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IV

A

MISERICÓRDIA, VIDA DA IGREJA

O rio divino que brota do mistério pascal atinge os homens e dá-lhes a vida através da Igreja, especialmente graças aos sacramentos. Após uma citação de Bento XVI que dará uma primeira visão de conjunto, outros textos pontifícios descreverão a Igreja como lugar de difusão da misericórdia, onde os pastores têm um papel particular, sobretudo na distribuição dos sacramentos – a Reconciliação merecerá um tratamento específico, uma vez que se fala de misericórdia. Concluiremos esta parte eclesiológica com os anos santos, tempos fortes para redescobrir e difundir o amor divino.

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Um resumo do movimento do rio de misericórdia Bento XVI: a misericórdia entra com Cristo na história «Na realidade, a misericórdia é o núcleo da mensagem evangélica, é o próprio nome de Deus, o rosto com o qual Ele se nos revelou na Antiga Aliança e plenamente em Jesus Cristo, encarnação do Amor criador e redentor. Este amor de misericórdia ilumina também o rosto da Igreja e manifesta-se quer mediante os sacramentos, em particular o da Reconciliação, quer com as obras de caridade, comunitárias e individuais. Tudo o que a Igreja diz e realiza manifesta a misericórdia que Deus sente pelo homem, portanto, por nós. Quando a Igreja deve reafirmar uma verdade menosprezada, ou um bem traído, fá-lo sempre estimulada por amor misericordioso, para que os homens tenham vida e a tenham em abundância (cf. Jo 10,10). Da misericórdia divina, que pacifica o coração, brota depois a paz autêntica no mundo, a paz entre os povos, culturas e religiões diversas» (Angelus, Domingo da Divina Misericórdia, 30 de março de 2008).

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Francisco: o grande rio da misericórdia «Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca se poderá esgotar, por maior que seja o número daqueles que dela se abeiram. Sempre que alguém tiver necessidade, terá acesso a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém» (Bula Misericordiae vultus, n. 25, 11 de abril de 2015).

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A Igreja como comunidade animada pela misericórdia A Igreja, animada pela misericórdia divina, não guarda este tesouro possessivamente, mas propõe-no aos homens, para que estes possam evitar a escravidão do pecado e enraizar-se nos caminhos de uma vida nova. A misericórdia oferece assim uma chave essencial para a pastoral.

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Pio XII: a Igreja, Corpo Místico de Cristo misericordioso, é também composta de pecadores, chamados a arrepender-se «Não se deve, porém, julgar que já durante o tempo da peregrinação terrena o corpo da Igreja, precisamente porque leva o nome de Cristo, é composto só de membros que se distinguem na santidade, ou só dos que de fato são por Deus predestinados à felicidade eterna. Pela sua infinita misericórdia, o Salvador não recusa lugar no seu corpo místico àqueles a quem nunca o recusou outrora no banquete (cf. Mt 9,11; Mc 2,16; Lc 15,2). Nem todos os pecados, embora graves, são de tal natureza que separem o homem do corpo da Igreja, como fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perdem de todo a vida sobrenatural os que pelo pecado perderam a caridade e a graça santificante e por isso se tornaram incapazes de mérito sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e, iluminados pela luz celeste, são divinamente estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas. Tenha-se, pois, sumo horror ao pecado que mancha os membros místicos do Redentor; mas o pobre pecador que não se tornou por sua contumácia indigno da comunhão dos fiéis, seja acolhido com maior amor, vendo-se nele com caridade operosa um membro enfermo de Jesus Cristo» (Encíclica Mystici corporis, n. 22, 29 de junho de 1943).

65

Beato Paulo VI: a misericórdia é o caminho que une a Igreja e o mundo «Mas distinção [viver no mundo, mas não do mundo] não é separação. Nem é indiferença, temor ou desprezo. Quando a Igreja afirma a sua distinção da humanidade, não se opõe, aproxima-se dela. Como o médico, ao ver as ameaças da epidemia, procura preservar da infecção a si e aos outros, sem deixar de atender aos que já estão contagiados, assim a Igreja não considera a misericórdia que lhe foi concedida pela bondade divina um privilégio exclusivo, nem faz da própria felicidade razão para se desinteressar de quem não a conseguiu ainda; bem pelo contrário, esse mesmo tesouro de salvação, que possui, é para ela fonte de interesse e de amor por todos os que lhe estão perto. O mesmo faz com todos os que pode abranger num esforço comunicativo universal» (Encíclica Ecclesiam suam, n. 36, 6 de agosto de 1964).

66

São João Paulo II: entre os principais deveres da Igreja está o de proclamar a misericórdia «A Igreja deve considerar como um dos seus principais deveres – em qualquer etapa da história, e especialmente na época contemporânea – proclamar e introduzir na vida o mistério da misericórdia, revelado no mais alto grau em Jesus Cristo» (Encíclia Dives in misericordia, n. 14, 30 de novembro de 1980).

67

São João Paulo II: a Igreja denuncia o pecado, porque sabe que a misericórdia divina oferece a sua força transformadora ao homem que reconhece a sua indigência «Se a Igreja, em virtude do Espírito Santo, chama o mal pelo nome, apenas o faz para indicar ao homem a possibilidade de o vencer, abrindo-se às dimensões do “amor Dei usque ad contemptum sui”. E isto é fruto da misericórdia divina. Em Jesus Cristo, Deus inclina-se sobre o homem para lhe estender a mão, para o levantar e ajudá-lo a retomar com força nova o caminho. O homem não é capaz de por si só se pôr de pé; necessita da ajuda do Espírito Santo» (Memória e identidade, Milão, 2005, 17-18).

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Bento XVI: a Igreja santa acolhe os pecadores chamados à penitência «Acreditamos que a Igreja é santa, mas nela existem homens pecadores. Deve rejeitar-se o desejo de a identificar somente com aqueles que estão sem pecado. Como poderia a Igreja excluir das suas fileiras os pecadores? É para a sua salvação que Jesus se encarnou, morreu e ressuscitou. Por isso, deve aprenderse a viver com sinceridade a penitência cristã» (Encontro com o Clero na Catedral de São João de Warszawa, 25 de maio de 2006).

69

Francisco: podemos ser transformados pela misericórdia divina, porque na Igreja encontramos Cristo «A Igreja faz-nos encontrar a misericórdia de Deus que nos transforma, porque nela está presente Jesus Cristo, que lhe confere a verdadeira profissão de fé, a plenitude da vida sacramental, a autenticidade do ministério ordenado. Na Igreja, cada um de nós encontra o que é necessário para acreditar, para viver como cristão, para se tornar santo, para caminhar em cada lugar e em cada época» (Audiência geral, n. 1, 9 de outubro de 2013). «A misericórdia não quer ser um peso para a vida dos fiéis, critério de discernimento para as tradições eclesiais não diretamente ligadas ao núcleo do Evangelho: São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao Povo de Deus “são pouquíssimos”. E citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, “para não tornar pesada a vida aos fiéis”, nem transformar a nossa religião numa escravidão, quando “a misericórdia de Deus quis que fosse livre”. Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma atualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 43, 24 de novembro de 2013). «Ser Igreja significa ser Povo de Deus, de acordo com o grande projeto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar de misericórdia gratuita, onde todos se possam sentir acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 114, 24 de novembro de 2013). «São duas lógicas de pensamento e de fé: o medo de perder os salvos e o desejo de salvar os perdidos. Hoje, às vezes, também acontece encontrarmo-nos na encruzilhada destas duas lógicas: a dos doutores da lei, isto é, marginalizar o perigo afastando a pessoa contagiada, e a lógica de Deus, que, com a sua 70

misericórdia, abraça e acolhe, reintegrando e transfigurando o mal em bem, a condenação em salvação e a exclusão em anúncio. Estas duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. [...] O caminho da Igreja [...] é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos, nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas, em vez de ficar a olhar passivamente para o sofrimento do mundo» (Homilia na Santa Missa com os novos cardeais e o Colégio Cardinalício, 15 de fevereiro de 2015). «A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes, no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. [...] Talvez durante demasiado tempo nos tenhamos esquecido de apontar e de viver o caminho da misericórdia. [...] Sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão» (Bula Misericordiæ vultus, n. 10, 11 de abril de 2015).

71

A misericórdia, eixo de vida dos Pastores Embaixador do Pai das misericórdias e servidor dos seus irmãos, o padre é encorajado a encarnar concretamente a caridade e a doçura. Como clérigos santos, os ministros devem dar a riqueza maior: a misericórdia do Pai, profecia de um mundo novo e fraterno.

72

Francisco: a misericórdia de Deus renova o mundo «São Celestino V [...], como São Francisco de Assis, teve um sentido fortíssimo da misericórdia de Deus, e do fato de a misericórdia de Deus renovar o mundo. [...] Com esta sua compaixão forte pelas pessoas, estes santos sentiram a necessidade de oferecer ao povo algo ainda melhor, a maior riqueza: a misericórdia do Pai, o perdão. “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.” Nestas palavras da oração do Pai-nosso está contido um projeto de vida, baseado na misericórdia. A misericórdia, a indulgência, a remissão dos pecados, não só devoção, algo íntimo, um paliativo espiritual, uma espécie de óleo que nos ajuda a ser mais suaves e melhores; não! É a profecia de um mundo novo: a misericórdia é profecia de um mundo novo, no qual os bens da terra e do trabalho serão distribuídos igualmente e ninguém será privado do necessário, porque a solidariedade e a partilha são a consequência concreta da fraternidade. Estes dois santos deram o exemplo. Eles sabiam que, como clérigos – um era diácono e o outro, bispo de Roma –, deviam dar o exemplo de pobreza, de misericórdia e de despojamento total de si mesmos» (Encontro com os cidadãos e promulgação do Ano Jubilar Celestiniano, Isernia, 5 de julho de 2014). «O Pastor consciente de que o seu ministério brota unicamente da misericórdia e do Coração de Deus nunca poderá assumir uma atitude autoritária, como se todos estivessem aos seus pés, como se a comunidade fosse sua propriedade, seu reino pessoal. A consciência de que tudo é dom, tudo é graça, ajuda o Pastor também a não cair na tentação de se colocar no centro da atenção e de confiar só em si mesmo. São as tentações da vaidade, do orgulho, da autossuficiência, da soberba. Deus não permita que um bispo, um sacerdote ou um diácono pense que sabe tudo, que tem sempre resposta certa para tudo e que não precisa de ninguém. Ao contrário, a consciência de ser o primeiro objeto da misericórdia e da compaixão de Deus deve levar o ministro da Igreja a ser sempre humilde e compreensivo em relação ao próximo» (Au​diência geral, n. 2-3, 12 de novembro de 2014).

73

A misericórdia e o sacramento da Reconciliação Os sacramentos, e especialmente o da Reconciliação, são os meios pelos quais a misericórdia divina transforma os pecadores e lhes dá uma vida nova. Os Papas não deixaram de encorajar os pastores a cuidarem deste ministério, porque «o sacerdote é sinal e instrumento do amor misericordioso de Deus para com o pecador» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1465).

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São João XXIII: o exemplo do Cura d’Ars «O Cura d’Ars não vivia senão para os “pobres pecadores”, como ele dizia, na esperança de os ver converter-se e chorar. [...] É que, com efeito, ele sabia, pela experiência do confessionário, toda a malícia do pecado e as suas horrorosas devastações no mundo das almas. Falou disso em termos terríveis: “Se tivéssemos fé e víssemos uma alma em estado de pecado mortal, morreríamos de pavor”. Mas a acuidade da sua dor e a veemência da sua palavra provinham menos do receio das penas eternas que ameaçam o pecador endurecido do que da emoção que sentia com o pensamento do amor divino ignorado e ofendido. Ante a obstinação do pecador e a sua ingratidão para com um Deus tão bom, as lágrimas brotavam-lhe dos olhos: “Oh, meu amigo” – dizia ele – “eu choro porque vós não chorais!” Mas, pelo contrário, com que delicadeza e fervor ele fazia a esperança renascer nos corações arrependidos! Incansavelmente, tornava-se junto deles o ministro da misericórdia divina, que é, dizia ele, poderosa “como uma torrente saída do leito, que arrasta os corações na sua passagem”, e mais terna do que a solicitude de uma mãe, porque Deus está “mais pronto em perdoar do que uma mãe em tirar o seu filho do fogo”. Seguindo o exemplo do Santo Cura d’Ars, os pastores de almas deverão tomar a peito consagrar-se, com competência e dedicação, a este ministério [do sacramento da Reconciliação] tão grave, porque é aí que, finalmente, a Misericórdia Divina triunfa sobre a malícia dos homens e que o pecador é reconciliado com Deus» (Encíclica Sacerdotii nostri primordia, n. 54, agosto de 1959).

75

Beato Paulo VI: o sacramento da Reconciliação não é uma simples doação automática da misericórdia de Deus, porque exige a colaboração humana «Esta intervenção salvífica da misericórdia triunfante de Deus exige algumas condições da parte de quem a recebe; e todos sabemos quais são. Não é automática, não é mágica a causalidade sacramental da penitência: esta é um encontro que supõe uma disponibilidade, uma receptividade, uma predisposição, uma certa colaboração humana condicionante. [...] Nós agora simplificamos a imensa análise a que o tema se presta, para mencionar os dois pontos nodais deste capítulo da disciplina católica penitencial. O primeiro tem um nome difícil e doloroso, que é contrição. [...] Deriva de uma consciência, com que, normalmente, o homem se procura subtrair a consciência do pecado, que supõe a fé na relação entre a nossa vida e a inviolável e vigilante lei de Deus. [...] O outro ponto nodal desta matéria é a confissão, ou seja, a acusação de que o homem, desejoso do perdão de Deus, faz de si mesmo, das suas culpas, e fala distendido nas suas qualificações morais, a um ministro autorizado a ouvir o penitente e a absolvê-lo. Tremenda coisa, tremenda penitência; assim parece. E assim é para quem não fez a experiência da humildade, que encontra a verdade e a justiça a falar dentro dele, e a experiência libertadora, consoladora da absolvição sacramental. Talvez os momentos de uma confissão sincera sejam dos mais doces, e mais confortantes, e mais decisivos da vida» (Audiência geral, 1 de março de 1975).

76

São João Paulo II: o homem, pelo pecado mortal, recusa a misericórdia divina «Há que ter esperança, porém, que bem poucos se queiram obstinar até o fim nesta atitude de rebelião ou até de desafio a Deus, o qual, aliás, no seu amor misericordioso, é maior do que o nosso coração – como nos ensina ainda São João. Deus pode, de fato, vencer todas as nossas resistências psicológicas e espirituais, de tal modo que – como escreve São Tomás de Aquino – “não há que desesperar da salvação de ninguém nesta vida, consideradas a onipotência e a misericórdia de Deus”. Mas, diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, [...] à luz dos [...] textos da Sagrada Escritura, os doutores e teólogos, os mestres espirituais e os pastores de almas distinguiram os pecados em mortais e veniais. [...] É pecado mortal aquele que tem por objeto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado. Impõe-se acrescentar que alguns pecados, quanto à sua matéria, são intrinsecamente graves e mortais. Quer dizer, há determinados atos que, para si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objeto. Esses atos, se forem praticados com suficiente advertência e liberdade, são sempre culpa grave» (Exortação Apostólica Reconciliatio et pænitentia, n. 17, 2 dezembro de 1984).

77

Bento XVI: a formação do confessor permite-lhe manifestar o poder renovador do amor divino «Obedecendo com dócil adesão ao Magistério da Igreja, ele [o confessor] faz-se ministro da misericórdia consoladora de Deus, salienta a realidade do pecado e, ao mesmo tempo, manifesta o incomensurável poder renovador do amor divino, amor que volta a dar vida. Portanto, a confissão torna-se um renascimento espiritual, que transforma o penitente numa nova criatura. Somente Deus pode realizar este milagre da graça, e fá-lo através das palavras e dos gestos do sacerdote. Experimentando a ternura e o perdão do Senhor, o penitente é mais facilmente impelido a reconhecer a gravidade do pecado, mais determinado a evitá-lo para permanecer e crescer na restabelecida amizade com Ele. Neste misterioso processo de renovação interior, o confessor não é um espectador passivo, mas uma persona dramatis, ou seja, um instrumento ativo da misericórdia divina. Consequentemente, é necessário que ele acrescente a uma boa sensibilidade espiritual e pastoral uma séria preparação teológica, moral e pedagógica, que o torne capaz de compreender a existência da pessoa» (Discurso aos penitenciários das quatro basílicas pontifícias romanas, 19 de fevereiro de 2007).

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Francisco: sem atraiçoar as exigências do Evangelho, devemos acompanhar com amorosa paciência o crescimento de quem se abre a Deus «Tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que ensina com muita clareza o Catecismo da Igreja Católica: “A imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídas e até anuladas pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”. Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 44, 24 de novembro de 2013). «Que entre os confessores haja diferenças de estilo, é normal, mas tais diferenças não se podem referir à substância, ou seja, à sã doutrina moral e à misericórdia. Nem o laxista nem o rigorista dão testemunho de Jesus Cristo, porque nem um nem outro faz bem à pessoa com a qual se encontra. O rigorista lava as próprias mãos: com efeito, fixa-se na lei entendida de modo insensível e rígido; também o laxista lava as próprias mãos: só aparentemente é misericordioso, mas na realidade não leva a sério o problema daquela consciência, minimizando assim o pecado. A verdadeira misericórdia interessa-se pela pessoa, ouve-a atentamente, aproxima-se com respeito e com verdade da sua situação, acompanhando-a no caminho da reconciliação. Sim, não há dúvida, isto é cansativo. O sacerdote verdadeiramente misericordioso comporta-se como o Bom Samaritano… mas por que motivo age assim? Porque o seu coração é capaz de compaixão, é o Coração de Cristo! Sabemos bem que nem o laxismo nem o rigorismo fazem crescer a santidade» (Discurso aos párocos de Roma, n. 3, 6 de março de 2014). «Um sacerdote que não cuida desta parte do seu ministério, quer na quantidade de tempo dedicado, quer na qualidade espiritual, é como um pastor que não se ocupa das ovelhas que se perderam; é como um pai que se esquece do 79

filho perdido e não o espera. Mas a misericórdia é o coração do Evangelho! [...] Não esqueçamos que os fiéis muitas vezes têm dificuldade de se aproximar do sacramento, tanto por razões práticas como pela natural dificuldade de confessar a outro homem os próprios pecados. Por este motivo, é preciso trabalhar muito sobre nós mesmos, sobre a nossa humanidade, para nunca ser um obstáculo, mas favorecer sempre o aproximar-se da misericórdia e do perdão» (Discurso aos participantes no curso promovido pela Penitenciária Apostólica, 28 de março de 2014). «Entre os sacramentos, certamente o da Reconciliação torna presente com eficácia especial o rosto misericordioso de Deus: concretiza-o e manifesta-o contínua e incessantemente. Nunca nos esqueçamos disto, quer como penitentes, quer como confessores: não existe pecado algum que Deus não possa perdoar! Nenhum! Só aquilo que é subtraído à divina misericórdia não pode ser perdoado, assim como quem se subtrai ao sol não pode ser iluminado nem aquecido» (Discurso aos participantes do curso promovido pela Penitenciária Apostólica, 12 de março de 2015).

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Os outros sacramentos e a misericórdia São João Paulo II: a misericórdia de Deus, alargada graças à Igreja na história «A Igreja tem a missão de anunciar [a] reconciliação e de ser o sacramento no mundo. A Igreja é sacramento, isto é, sinal e instrumento de reconciliação, por diversos títulos, de valor diferente, mas todos convergentes na obtenção daquilo que a iniciativa divina de misericórdia quer conceder aos homens. É-o, acima de tudo, pela sua própria existência de comunidade reconciliada, que testemunha e representa no mundo a obra de Cristo. É-o, depois, pelo seu serviço de guardiã e de intérprete da Sagrada Escritura, que é Boa-Nova de reconciliação, na medida em que faz conhecer, de geração em geração, o desígnio de amor de Deus e indica a cada um as vias da reconciliação universal em Cristo. É-o, por fim, nos sete sacramentos que, de um modo peculiar a cada um deles, “perfazem a Igreja”. Efetivamente, uma vez que comemoram e renovam o mistério da Páscoa de Cristo, todos os sacramentos são fonte de vida para a Igreja e, nas mãos dela, instrumento de conversão a Deus e de reconciliação dos homens» (Exortação Apostólica Reconciliatio et pænitentia, n. 11, 2 de dezembro de 1984).

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Bento XVI: a Eucaristia oferece-nos a vivência do dom de nós mesmos com a força divina de Cristo, no serviço dos outros e da comunhão «A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação. [...] A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencerlhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão seus. A comunhão tira-me para fora de mim mesmo, se projetando-me para Ele e, deste modo, também para a união com todos os cristãos. Tornamo-nos “um só corpo”, fundidos todos numa única existência. O amor a Deus e o amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a si. [...] Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária. Por outro lado [...] o “mandamento” do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser “mandado” porque antes nos é dado» (Encíclica Deus caritas est, n. 13-14, 25 de dezembro de 2005).

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Francisco: o Batismo e a Confissão, intervenções da misericórdia divina que perdoa e dá uma nova vida; e a Eucaristia, pão dos pobres que se reconhecem necessitados do perdão de Deus «No sacramento do Batismo são perdoados os pecados, o pecado original e todos os nossos pecados pessoais, assim como todas as penas do pecado. Mediante o Batismo, abre-se a porta a uma novidade de vida concreta que não é oprimida pelo peso de um passado negativo, mas já pressente a beleza e a bondade do Reino dos Céus. Trata-se de uma intervenção poderosa da misericórdia de Deus na nossa vida, para nos salvar. Esta intervenção salvífica não priva a nossa natureza humana da sua debilidade – todos nós somos frágeis, todos somos pecadores – e também não nos priva da responsabilidade de pedir perdão cada vez que erramos! Não me posso batizar várias vezes, mas posso confessar-me e deste modo renovar a graça do Batismo. É como se eu fizesse um segundo Batismo. O Senhor Jesus é deveras bondoso e nunca se cansa de nos perdoar» (Audiência geral, n. 3, 13 de novembro de 2013). «Quem celebra a Eucaristia não o faz porque se considera ou quer parecer melhor do que os outros, mas precisamente porque se reconhece sempre necessitado de ser acolhido e regenerado pela misericórdia de Deus, que se fez carne em Jesus Cristo. Se não nos sentimos necessitados da misericórdia de Deus, se não nos sentimos pecadores, melhor seria não irmos à Missa! Nós vamos à Missa porque somos pecadores e queremos receber o perdão de Deus, participar na redenção de Jesus e no seu perdão» (Audiência geral, 12 de fevereiro de 2014).

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O Jubileu para redescobrir e difundir a misericórdia Beato Paulo VI: o Ano Santo, tempo especialmente propício para a caridade concreta «Nós desejamos que o Ano Santo, com as obras de caridade que inspira e pede aos fiéis, seja um tempo propício também para uma consolidação da consciência social em todos os fiéis e no círculo mais vasto de todos os homens, aos quais pode chegar a mensagem da Igreja. [...] Parece-nos que também no mundo de hoje os problemas que mais agitam e atormentam a nossa humanidade – o econômico e social, o ecológico, o energético, e sobretudo o da libertação dos oprimidos e da elevação de todos os homens à mais ampla dignidade de vida – são iluminados pela mensagem do Ano Santo. Mas nós queremos convidar todos os filhos da Igreja, especialmente todos os peregrinos que vierem a Roma, a empenharem-se em alguns pontos concretos, que como sucessor de Pedro e chefe da Igreja que “preside à caridade universal”, chamamos à atenção de todos. Trata-se de realizar obras de caridade e de fé, ao serviço dos irmãos mais necessitados, em Roma e em todas as Igrejas do mundo» (Apostolorum limina, n. 5, 23 de maio de 1974).

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São João Paulo II: a celebração de um Ano Santo manifesta a misericórdia divina, por exemplo através das indulgências e particularmente pela caridade operosa «Outro sinal peculiar, bem conhecido dos fiéis, é a indulgência, um dos elementos constitutivos do acontecimento jubilar. Nela se manifesta a plenitude da misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos com o seu amor, expresso primariamente no perdão das culpas. Ordinariamente, Deus Pai concede o seu perdão por meio do sacramento da Penitência e da Reconciliação. De fato, a rendição consciente e livre ao pecado grave separa o crente da vida da graça com Deus, excluindo-se consequentemente da santidade a que é chamado. A Igreja, tendo recebido de Cristo o poder de perdoar em seu nome (cf. Mt 16,19; Jo 20,23), é, no mundo, a presença viva do amor de Deus que se inclina sobre toda a fraqueza humana para a acolher no abraço da sua misericórdia. É precisamente através do ministério da sua Igreja que Deus espalha pelo mundo a sua misericórdia por meio daquele dom precioso que, segundo antiquíssima designação, se chama “indulgência”. [...] A realização da reconciliação com Deus não exclui a permanência de algumas consequências do pecado, das quais é necessário purificar-se. É precisamente neste âmbito que ganha relevo a indulgência, através da qual se manifesta o “dom total da misericórdia de Deus”. Pela indulgência, é concedida, ao pecador arrependido, a remissão da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa. [...] Um sinal de misericórdia de Deus, particularmente necessário hoje, é o da caridade, que abre os nossos olhos às carências daqueles que vivem pobres e marginalizados. Tais situações estendem-se hoje sobre vastas áreas sociais e cobrem com a sua sombra mortífera populações inteiras. [...] Por outro lado, é claro que não se pode atingir um progresso real sem uma efetiva colaboração entre os povos das diversas línguas, raças, nacionalidades e religiões. Devem ser eliminadas as prepotências que levam ao predomínio de uns sobre os outros: tais prepotências são pecado e injustiça. Quem se preocupa em acumular tesouros apenas na Terra (cf. Mt 6, 19) “não enriquece diante de Deus” (Lc 12,21)» (Bula Incarnationis mysterium, n. 9.12, 29 de novembro de 1998).

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Francisco: o Ano Jubilar, oportunidade para atrair todos para o caminho do amor como meio de mudança individual e, portanto, social. No Ano Santo da Misericórdia, a Igreja manifesta a sua missão de testemunha da misericórdia «Eis o sentido atualíssimo do Ano Jubilar, deste Ano Jubilar Celestiniano, que a partir de agora declaro inaugurado, e durante o qual será aberta de par em par a porta da misericórdia divina. Não é uma fuga, nem uma evasão da realidade e dos seus problemas, é a resposta que vem do Evangelho: o amor como força de purificação das consciências, força de renovação das relações sociais, força de projeto para uma economia diversa, que põe no centro a pessoa, o trabalho, a família, e não o dinheiro e o lucro. Estamos todos conscientes de que este caminho não é o do mundo; não somos sonhadores nem iludidos, não queremos criar oásis fora do mundo. Mas acreditamos que este caminho é bom para todos, que deveras nos aproxima da justiça e da paz. Sabemos também que somos pecadores, os primeiros a ser tentados a não seguir este caminho e a conformarnos com a mentalidade do mundo, do poder e das riquezas. Portanto, confiemonos à misericórdia de Deus e esforcemo-nos por obter com a sua graça frutos de conversão e obras de misericórdia. Por estas duas coisas: converter-se e realizar obras de misericórdia. Eis o motivo condutor deste Ano Jubilar Celestiniano» (Encontro com os cidadãos e proclamação do Ano Jubilar Celestiniano, Isernia, 5 de julho de 2014). «Pensei muitas vezes no modo como a Igreja pode tornar mais evidente a sua missão de ser testemunha da misericórdia. É um caminho que começa com uma conversão espiritual; e devemos percorrer este caminho. Por isso decidi proclamar um Jubileu extraordinário que tenha no seu centro a misericórdia de Deus. Será um Ano Santo da Misericórdia. Queremos vivê-lo à luz da palavra do Senhor: “Sede misericordiosos como o Pai” (cf. Lc 6,36). E isto sobretudo para os confessores! Muita misericórdia! [...] Estou certo de que toda a Igreja, que tem tanta necessidade de receber misericórdia, porque somos pecadores, poderá encontrar neste Jubileu a alegria para redescobrir e tornar fecunda a misericórdia de Deus, com a qual cada um de nós está chamado a dar conforto a todos os homens e mulheres do nosso tempo» (Homilia na celebração penitencial, 13 de março de 2015). 86

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V

O

CRISTÃO E A MISERICÓRDIA

Renovado pela misericórdia divina, identificado com Cristo pelo Espírito Santo, o cristão é chamado a viver à altura do dom recebido, servindo os seus irmãos – especialmente através das obras de misericórdia –, tornando-se um apóstolo da bondade do Pai. Da misericórdia do Pai o cristão recebe não apenas o perdão dos seus pecados, mas também, em Jesus Cristo e pelo Espírito, uma vida nova: uma vida de doçura, de conversão, de perdão, de justiça, de misericórdia, doada aos outros porque aceita por Deus.

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O estilo de vida misericordioso do cristão O cristão faz a experiência do amor divino quando descobre o Crucificado, que lhe propõe o dom de uma vida transformada pelo poder do Espírito: ele pode então servir sempre os seus irmãos e anunciar-lhes a misericórdia do Pai. O homem procura o amor e encontra-o em Cristo crucificado, que lhe oferece a força de uma vida transformada e nova.

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Pio XI: um exemplo deste modo de vida misericordioso – São Francisco de Sales São Francisco de Sales «foi modelo de uma santidade não austera nem triste, mas amável e acessível a todos, podendo-se com toda a verdade dizer dele: “A sua conversação não tinha nada de amargura, nem a convivência com ele nos entediava, mas dava-nos alegria e satisfação”. Adornado de toda a virtude, brilhava todavia por uma doçura de ânimo tão própria, que dela se pode retamente dizer ser a sua virtude característica. [...] E não é este talvez o momento de nos propormos a prática desta virtude, que com razão se pode dizer o ornamento exterior da caridade divina, da paz perfeita e da concórdia na família e na sociedade? E quanto ao apostolado, dos sacerdotes e dos leigos, não terá nela uma força poderosa para a melhoria da sociedade, para que seja conduzido com doçura cristã? Vede bem, como importa que o povo cristão dirija a mente para os exemplos santíssimos de São Francisco de Sales, e se edifique, e siga os seus ensinamentos como regra de vida» (Encíclica Rerum omnium, 26 de janeiro de 1923).

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Beato Paulo VI: participar na cruz de Cristo significa receber o fruto, a misericórdia. Pedindo perdão pelos nossos pecados, respondamos à misericórdia divina «Participar na Cruz de Cristo significa receber o benefício que a Cruz nos obteve, e que é a misericórdia de Deus, e portanto a nossa salvação. A bondade do Senhor revelou-se-nos desta maneira; Ele escolheu-a para nos redimir. Abriu o seu Coração, e a caridade de Deus manifestou-se, juntamente com o seu desejo de se substituir a nós nas nossas responsabilidades e nas penas que deveríamos suportar pelas nossas faltas. É, portanto, o dom da misericórdia que nós aceitamos quando dizemos que queremos tomar nos nossos braços a Cruz de Cristo» (Homilia na via-sacra do Coliseu no Palatino, 8 de abril de 1966). «É-nos revelada a misericórdia de Deus: esta economia de bondade que nos deveria espantar, encantar e até comover um pouco, se refletíssemos um pouco em todo o amor que Deus derramou sobre nós. Não será porventura o amor que guia a nossa vida? [...] Podemos [...] pensar que todo o nosso pecado ou fuga de Deus acende nele uma chama do mais intenso amor, um desejo de nos reaver e de nos reinserir no seu plano de salvação. Esta revelação da misericórdia é original no Evangelho. Ninguém, com a fantasia humana e na fenomenologia comum, chegou a tanto» (Homilia, 23 de junho de 1968).

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São João Paulo II: o homem necessita de amor, encontra-o na misericórdia revelada em Cristo. Acreditar na misericórdia significa acreditar que o amor de Deus, mais poderoso que o pecado, transforma os homens. Um fruto de vida de misericórdia em nós é a conversão «O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e se não o torna algo que lhe é próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo Redentor [...] revela plenamente o homem ao próprio homem» (Encíclica Redemptor hominis, n. 10, 4 de março de 1979). «Crer no Filho crucificado significa “ver o Pai”, significa crer que o amor está presente no mundo e que o amor é mais forte do que toda a espécie de mal em que o homem, a humanidade e o mundo estão envolvidos. Crer neste amor significa acreditar na misericórdia. Esta é, de fato, a dimensão indispensável do amor, é como que o seu segundo nome e, ao mesmo tempo, é o modo específico da sua revelação e atuação perante a realidade do mal que existe no mundo, que assedia e atinge o homem, que se insinua mesmo no seu coração e o “pode fazer perecer na Geena”» (Encíclica Dives in misericordia, n. 7, 30 de novembro de 1980). «A realidade da conversão [...] é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem. Entendida desta maneira, constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão» (Encíclica Dives in misericordia, n. 6, 30 de novembro de 1980). «A misericórdia em si mesma, como perfeição de Deus infinito, é também infinita. Infinita, portanto, e inexaurível é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do sacrifício do Filho. 92

Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força, nem sequer a limita. Da parte do homem, pode limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo. [...] O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo ato interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim o “veem”, não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente. Passam a viver em estado de conversão» (Encíclica Dives in misericordia, n. 13, 30 de novembro de 1980). «Cristo, enquanto é o cumprimento das profecias messiânicas, ao tornar-se encarnação do amor que se manifesta com particular intensidade em relação aos que sofrem, aos infelizes e aos pecadores, torna presente e, desse modo, revela mais plenamente o Pai, que é Deus “rico de misericórdia”. Ao mesmo tempo, tornando-se para os homens modelo do amor misericordioso para com os outros, Cristo proclama com obras, mais ainda do que com palavras, o apelo à misericórdia, que é uma das componentes essenciais do ethos do Evangelho. Não importa cumprir somente um mandamento ou um postulado de natureza ética, mas também de satisfazer uma condição de capital importância, a fim de Deus poder se revelar na sua misericórdia para com o homem: “Os misericordiosos [...] alcançarão misericórdia”» (Encíclica Dives in misericordia, n. 3, 30 de novembro de 1980). «O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua misericórdia à medida que ele próprio se transforma interiormente, segundo o espírito de amor para com o próximo. Este processo autenticamente evangélico não consiste numa transformação espiritual realizada de uma vez para sempre, mas é um estilo de vida completo, uma característica essencial e contínua da vocação cristã. [...] Neste sentido, Cristo crucificado é para nós o modelo, a inspiração e o incitamento mais nobre. Baseando-nos neste impressionante modelo, podemos, com toda a humildade, manifestar a misericórdia para com os outros, sabendo 93

que Cristo a aceita como se tivesse sido praticada para com Ele próprio. Segundo este modelo, devemos também purificar continuamente todas as ações e todas as nossas intenções em que a misericórdia é entendida e praticada de modo unilateral, como bem feito apenas aos outros. Ela é realmente um ato de amor misericordioso:



quando,

ao

praticá-la,

estivermos

profundamente

convencidos de que ao mesmo tempo nós a estamos recebendo da parte daqueles que a recebem de nós. Se faltar esta bilateralidade e reciprocidade, as nossas ações não são ainda autênticos atos de misericórdia. Não se realizou ainda plenamente em nós a conversão, cujo caminho nos foi ensinado por Cristo com palavras e exemplos até a Cruz, nem participamos ainda completamente da fonte magnífica do amor misericordioso que nos foi revelado por Ele» (Encíclica Dives in misericordia, n. 14, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI: a necessária complementaridade de ternura para Deus e para o próximo. A misericórdia divina remove os nossos pecados e conduz-nos também ao caminho de uma vida nova «Se na minha vida falta totalmente o contato com Deus, posso ver no outro sempre e apenas o outro, e não consigo reconhecer nele a imagem divina. Mas se na minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser “piedoso” e cumprir os meus “deveres religiosos”, então definha também a relação com Deus. Neste caso, trata-se de uma relação “correta”, mas sem amor. Só a minha disponibilidade para ir ao encontro do próximo e lhe demonstrar amor é que me torna sensível também diante de Deus. Só o serviço do próximo é que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama. Os santos – pensemos, por exemplo, na beata Teresa de Calcutá – conseguiram uma tal capacidade de amar o próximo, de modo sempre renovado, através do seu encontro com o Senhor eucarístico, e, vice-versa, este encontro ganhou o seu realismo e a profundidade precisamente no serviço deles aos outros. O amor a Deus e o amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro» (Encíclica Deus caritas est, n. 18, 25 de dezembro de 2005). «A misericórdia divina não consiste apenas na remissão dos nossos pecados, mas também no fato de Deus, nosso Pai, nos reconduzir – por vezes com sofrimento, aflição e temor da nossa parte – ao caminho da verdade e da luz, porque não quer que nos percamos (cf. Mt 18,14; Jo 3,16). Esta dupla manifestação da misericórdia divina mostra como Deus é fiel à aliança selada com cada cristão no Batismo» (Discurso na visita à Catedral de Nossa Senhora da Misericórdia de Cotonou, 18 de novembro de 2011).

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Francisco: da cruz, supremo ato de misericórdia, recebemos a força para renascer como novas criaturas. O encontro com Jesus misericordioso dá-nos a força para recomeçar e ser capazes de misericórdia «A fecundidade pastoral, a fecundidade do anúncio do Evangelho não deriva do sucesso, nem do insucesso, vistos segundo critérios de avaliação humana, mas de se conformar com a lógica da Cruz de Jesus, que é a lógica do sair de si mesmo e dar-se, a lógica do amor. É a Cruz – sempre a Cruz com Cristo, porque às vezes nos oferecem a cruz sem Cristo: esta não vale! É a Cruz, sempre a Cruz com Cristo – que garante a fecundidade da nossa missão. E é da Cruz, supremo ato de misericórdia e de amor, que se renasce como “nova criação” (Gl 6,15)» (Homilia na Santa Missa com os seminaristas, os noviços e as noviças, 7 de julho de 2013). «Convido todo cristão, em qualquer lugar e situa​ção que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que “da alegria trazida pelo Senhor ninguém fica excluído” (Paulo VI, Carta Apostólica Gaudete in Domino, n. 22). Quem arrisca, o Senhor não o desilude, e quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. [...] Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e que nos pode sempre restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus, nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para adiante!» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 3, 24 de novembro de 2013). «Somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco. O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a 96

violência e a vingança é condiçao necessária para se viver feliz» (Bula Misericordiæ vultus, n. 9, 11 de abril de 2015). «Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). É um programa de vida tão empenhativo como rico de alegria e de paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6,27). Portanto, para sermos capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como estilo de vida próprio. [...] Se não se quer incorrer no juízo de Deus, não se pode ser juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras quando são movidas por sentimentos de ciúmes e de inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo. Mas isto não é suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro já o obtivemos de Deus» (Bula Misericordiæ vultus, n. 13-14, 11 de abril de 2015). «A misericórdia de Deus pode fazer florir mesmo a terra mais árida, pode devolver a vida aos ossos ressequidos (cf. Ez 37,1-14). Eis, portanto, o convite que dirijo a todos: acolhamos a graça da Ressurreição de Cristo! Deixemo-nos renovar pela misericórdia de Deus, deixemo-nos amar por Jesus, deixemos que a força do seu amor transforme também a nossa vida, tornando-nos instrumentos desta misericórdia, canais através dos quais Deus possa irrigar a terra, guardar a criação inteira e fazer florir a justiça e a paz» (Mensagem Urbi et orbi, 31 de março de 2013).

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As obras de misericórdia Pio XII: nas obras de misericórdia está a essência do Evangelho «Nas obras de misericórdia está a essência do Evangelho (e a prova está nas palavras de Cristo juiz, já que não admitirá no Reino eterno senão aquele que usou de misericórdia, o culto prático), vós, como todos os que mais diretamente são chamados a consolar os aflitos no corpo e no espírito, sois as páginas viventes deste grande Livro divino, destinadas a mostrar ao mundo que a mensagem de Jesus Cristo não é letra morta, mas substância de vida, sempre atual e sempre atuada; e é dirigida à conversão do mundo do egoísmo ao amor e para dar – não somente prometer – aquele alívio e aquela paz de que Jesus disse: “Vinde a mim vós todos que andais fatigados e oprimidos e Eu vos restaurarei [...] e encontrareis paz para as vossas almas”» (Audiência geral de 19 de julho de 1939).

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São João XXIII: as obras de misericórdia, confiadas às religiosas com coração dilatado pela castidade. As obras de misericórdia transformam o mundo «A Igreja Santa do Senhor exalta-se [...] e embeleza-se com a nobre coroa das virgens, consagradas à vida de oração e de sacrifício, e ao exercício das catorze obras de misericórdia. [...] Queremos nesta circunstância fazer sentir-vos, mas especialmente perante o mundo, o elevadíssimo apreço e a glória da virgindade. Esta é a virtude que dilata o vosso coração ao amor mais verdadeiro, mais vasto e universal, que possa existir na Terra: o serviço de Cristo nas almas. [...] Desta consagração total provém a vocação particular de cada família religiosa, que se exprime no serviço de Deus e dos irmãos, segundo o desdobrar daquele imenso painel, que embeleza a casa do Senhor, e sobre o qual estais figuradas – gostamos muito de as repetir – as catorze obras de misericórdia» (Discurso às religiosas de Roma, 29 de janeiro de 1960). [Perante a crise de civilização] «Proponhamos o remédio para tais abusos miseráveis através das obras de misericórdia: e estejamos bem certos de que não a polêmica, mas a altivez cristã e amorosa na exposição pública e em larga escala, dos tesouros do cristianismo, pode limitar o mal. Olhai: sobre este sagrado monte do Vaticano a Igreja guarda desde há séculos imensos tesouros de arte, de história, de literatura: mas os seus tesouros mais autênticos, e para os quais é maternalmente trépida, são os pobres, os doentes, as crianças, os fracos, os esquecidos. Para eles a sua voz se eleva suplicante, a fim de pedir compreensão, proteção, benevolência; para eles envia as suas fileiras de filhos e filhas voluntários e ardorosos, para conterem as lágrimas, consolarem os espíritos oprimidos, de apoio às misérias. [...] A multiplicidade concorde e operosa dos empreendimentos, que vós hoje representais perante nós, faz-nos exprimir um voto de suave esperança: que Roma, como diocese e como centro da catolicidade, mereça sempre o título luminoso, que desde as origens lhe foi atribuído, em incomparável elogio, por Santo Inácio: “præsidens universo cœtui caritatis”: que preside a toda a caridade, e disso faz exemplo, incitamento e guia; quer dizer, ao que hoje consideramos, que preside não a uma ou a algumas, mas a todas as obras de misericórdia» (Discurso aos delegados das obras de misericórdia de Roma, n. 3, 21 de fevereiro de 1960). 99

Beato Paulo VI: o Papa é chamado a exercer as obras de misericórdia espirituais, mas também materiais «Que relação existe entre os dois representantes de Cristo: o Pobre e São Pedro? [...] Entre as funções da autoridade pontifícia, a primeiríssima é a do exercício da caridade, a qual, como se sabe, não é apenas exercida através das obras de misericórdia, assim conhecidas, corporais, mas também, e sobretudo, através das espirituais; e estas são precisamente o conteúdo específico da missão benéfica e salvadora do Ofício apostólico. Mas isto lembra-nos, e a nós em primeiro lugar, que, se formos sequazes autênticos de Cristo, devemos ter sumo cuidado em socorrer os nossos irmãos na indigência e no sofrimento. Devemos ter a inteligência das necessidades dos outros (Sl 11,1), e com a inteligência da compaixão, com a compaixão de veneração, com a veneração engenhosa de lhes fornecer remédio» (Audiência geral, 11 de novembro de 1964).

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São João Paulo II: as obras de misericórdia representam o conteúdo mais imediato do empenho temporal dos leigos «A caridade para com o próximo, nas expressões antigas e sempre novas das obras de misericórdia corporais e espirituais, representa o conteúdo mais imediato, comum e habitual da animação cristã da ordem temporal que constitui o empenho específico dos fiéis leigos. Com a caridade para com o próximo, os fiéis leigos vivem e manifestam a sua participação na realeza de Jesus Cristo, isto é, no poder do Filho do homem que “não veio para ser servido, mas para servir” (MC 10,45): vivem e manifestam essa realeza na forma mais simples que é possível a todos e sempre, ao mesmo tempo, na forma mais digna, pois a caridade é o dom mais alto que o Espírito dá em ordem à edificação da Igreja (cf. 1COR 13,13) e ao bem da humanidade» (Exortação Apostólica Christifideles laici, n. 41, 30 de dezembro de 1988).

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Francisco: as obras de misericórdia indicam o essencial do Evangelho e despertam a nossa consciência perante o drama da pobreza «Gostaria de sublinhar um aspecto particular desta ação educativa da nossa Mãe Igreja, ou seja, como ela nos ensina as obras de misericórdia. Um bom educador vai ao essencial. Não se perde nos pormenores, mas quer transmitir o que deveras importa para que o filho ou o aluno encontre o sentido e a alegria de viver. É a verdade. E o essencial, segundo o Evangelho, é a misericórdia. O essencial do Evangelho é a misericórdia. Deus enviou o seu Filho, Deus fez-se homem para nos salvar, ou seja, para nos dar a sua misericórdia. Jesus diz isto claramente, resumindo o seu ensinamento para os discípulos: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Pode existir um cristão que não seja misericordioso? Não. O cristão deve ser necessariamente misericordioso, porque este é o centro do Evangelho. E fiel a este ensinamento, a Igreja não pode deixar de repetir a mesma coisa aos seus filhos: “Sede misericordiosos”, como o vosso Pai, e como o foi Jesus. Misericórdia» (Audiência geral, 10 de setembro de 2014). «É meu vivo desejo que o povo cristão reflita durante o Jubileu sobre as obras de misericórdia corporais e espirituais. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina. [...] Redescubramos as obras de misericórdia corporal: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espiritual: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, rogar a Deus por vivos e defuntos. Não podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas quais seremos julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25,31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância 102

em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças privadas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de ressentimento e de ódio que levam à violência; se tivemos paciência a exemplo de Deus, que é tão paciente conosco; enfim, se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes “mais pequeninos” está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga… a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: “Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor” (Ditos de luz e de amor, 57)» (Bula Misericordiæ vultus, n. 15, 11 de abril de 2015).

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A misericórdia e a missão Beato Paulo VI: a missão de levar a misericórdia divina compromete o cristão, até mesmo quando descobre os valores presentes nas religiões não cristãs «Haver descoberto os valores que existem nas religiões não cristãs, valores espirituais e humanos dignos de todo o respeito, o ter previsto em tais valores uma misteriosa predisposição à plena luz da revelação, não autoriza o apostolado da Igreja ao repouso, embora o conforte e o estimule; e o reconhecer que Deus tem outros caminhos para salvar as almas fora do cone da luz que é a revelação de salvação, por Ele projetado no mundo, não dispensa o filho da luz de deixar ao próprio Deus o desempenho desta sua secreta economia de salvação, renunciando ao cansaço da dilatação da verdadeira luz, e a dispensar o testemunho do martírio, da oblação aos irmãos, que até sem culpa deles “in umbra mortis sedent”, mas convida-o a celebrar o mistério de misericórdia com imensa amplitude de visão, a mesma de São Paulo: “Conclusit enim Deus omnia in incredulitate, ut omnium misereatur” (Rm 11,32), mas para isso faz-se portador de tal misericórdia no plano histórico e humano, quanto mais largamente lhe for possível» (Discurso aos elementos dos Conselhos Superiores Gerais das Obras Missionárias Pontifícias e da União Missionária do Clero, 14 de maio de 1965).

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Beato Paulo VI: Deus salva quem e como quer, mas espera a colaboração da nossa missão «É claro que seria certamente um erro impor qualquer coisa à consciência dos nossos irmãos. Mas propor a essa consciência a verdade evangélica e a salvação em Jesus Cristo com absoluta clareza e com todo o respeito pelas opções livres que essa consciência fará – e isso sem “pressões coercitivas, sem persuasões desonestas, e sem aliciar com estímulos menos retos” (Declaração Dignitatis humanæ, n. 4) –, longe de ser um atentado à liberdade religiosa, é uma homenagem a essa liberdade, à qual é proporcionado escolher uma via que mesmo os não crentes reputam nobre e exaltante. Será então um crime contra a liberdade de outrem proclamar na alegria uma Boa-Nova que se recebeu primeiro pela misericórdia do Senhor? Ou porque, então, só a mentira e o erro, a degradação e a pornografia teriam o direito de ser propostos e com insistência, infelizmente, pela propaganda destrutiva dos mass media, pela tolerância das legislações e pelo acanhamento dos bons e pelo atrevimento dos maus? Esta maneira respeitosa de propor o Cristo e o seu Reino, mais do que um direito, é um dever do evangelizador. E é também um direito dos homens seus irmãos receber dele o anúncio da Boa-Nova da salvação. [...] Não deixaria de ter a sua utilidade que cada cristão e cada evangelizador aprofundasse na oração este pensamento: os homens poderão salvar-se por outras vias, graças à misericórdia de Deus, se nós não lhes anunciarmos o Evangelho; mas nós, poder-nos-emos salvar se, por negligência, por medo, por vergonha – aquilo que São Paulo chamava exatamente “envergonhar-se do Evangelho” (Rm 1,16) – ou por se seguirem ideias falsas, nos omitirmos de o anunciar?» (Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, n. 80, 8 de dezembro de 1975).

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São João Paulo II: o apostolado cristão anuncia a misericórdia como libertação do mal «O missionário é convidado a crer no poder transformador do Evangelho e a anunciar a conversão ao amor e à misericórdia de Deus […], a experiência de uma libertação integral até a raiz de todo o mal, o pecado» (Encíclica Redemptoris missio, n. 23, 7 de dezembro de 1990).

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Francisco: a misericórdia como caminho de missão. Os cristãos, tocados pela divina misericórdia, tomam iniciativas para a divulgar «São necessários cristãos que tornem visível aos homens de hoje a misericórdia de Deus, a sua ternura por todas as criaturas. Todos nós sabemos que a crise da humanidade contemporânea não é superficial, mas profunda. Por isso, enquanto exorta a ter a coragem de ir contra a corrente, de se converter dos ídolos para o único Deus verdadeiro, a nova evangelização não pode deixar de recorrer à linguagem da misericórdia, feita de gestos e de atitudes, antes ainda que de palavras» (Discurso aos participantes da Plenária do Conselho Pontifício para a Nova Evangelização, 14 de outubro de 2013). «A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais em tomar a iniciativa!» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 24, 24 de novembro de 2013). «Hoje há tanta necessidade de misericórdia, e é importante que os fiéis leigos a vivam e a levem para os diversos ambientes sociais. Em frente! Nós estamos vivendo num tempo de misericórdia, este é o tempo da misericórdia» (Angelus, 11 de janeiro de 2015).

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A misericórdia e a família cristã A vida familiar é um dos ambientes mais imediatos para que os cristãos vivam concretamente a misericórdia mútua. Os esposos cristãos apoiam-se para isso na força de Deus, especialmente graças ao sacramento da Reconciliação. Perante os casais em crise, a Igreja e os seus pastores são convidados a conjugar a fidelidade ao plano divino sobre a família e a misericórdia perante aqueles que sofrem.

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Beato Paulo VI: a misericórdia na vida familiar ​– os esposos e o recurso ao sacramento da Penitência «Os esposos envidem os esforços necessários, apoiados na fé e na esperança que “não desilude, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito que nos foi dado”; implorem com oração perseverante o auxílio divino; abeirem-se, sobretudo pela Santíssima Eucaristia, da fonte de graça e de caridade. E se, porventura, o pecado vier a vencê-los, não desanimem, mas recorram com perseverança humilde à misericórdia divina, que é outorgada no sacramento da Penitência» (Encíclica Humanæ vitæ, n. 25, 25 julho de 1968). «Não minimizar em nada a doutrina salutar de Cristo é forma de caridade eminente para com as almas. Mas isto deve andar sempre acompanhado também de paciência e de bondade, de que o mesmo Senhor deu o exemplo, ao tratar com os homens. Tendo vindo para salvar e não para julgar, Ele foi intransigente com o mal, mas misericordioso para com os homens. No meio das suas dificuldades, que os cônjuges encontrem sempre na palavra e no coração do sacerdote o eco da voz e do amor do Redentor. Falai, pois, com confiança, diletos filhos, bem convencidos de que o Espírito Santo de Deus, ao mesmo tempo que assiste o Magistério em propor a doutrina, ilumina também internamente os corações dos fiéis, convidando-os a prestar-lhes o seu assentimento. Ensinai aos esposos o necessário caminho da oração, preparai-os para recorrerem com frequência e com fé aos sacramentos da Eucaristia e da Penitência, sem se deixarem jamais desencorajar pela sua fraqueza» (Encíclica Humanæ vitæ, n. 29, 25 de julho de 1968).

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São João Paulo II: o plano de Deus sobre a família e uma prática pastoral misericordiosa «Este sínodo [...] moveu-se segundo duas diretrizes: a fidelidade ao plano de Deus quanto à família e a prática pastoral, caracterizada por um amor misericordioso e pelo respeito devido aos homens, considerados em toda a sua plenitude, no que se refere ao “ser” e ao “viver”» (Homilia na Santa Missa de conclusão da V Assembleia Geral Ordinária do sínodo sobre o tema «A missão da família cristã no mundo contemporâneo», 25 de outubro de 1980). «Juntamente com o sínodo, exorto vivamente os pastores e toda a comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência, para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se Mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança. […] Agindo de tal maneira, a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à sua verdade; ao mesmo tempo comporta-se com espírito materno para com estes seus filhos, especialmente para com aqueles que, sem culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge. Com firme confiança, ela vê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor e vivem agora nesse estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se perseverarem na oração, na penitência e na caridade» (Exortação Apostólica Familiaris consortio, n. 84, 22 de novembro de 1981).

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Bento XVI: justiça-verdade e misericórdia não se contrapõem nos processos matrimoniais canônicos «É necessário considerar a tendência difundida e arraigada, embora nem sempre evidente, que leva a contrapor a justiça à caridade, como se uma excluísse a outra. Nesta linha, referindo-se mais especificamente à vida da Igreja, alguns consideram que a caridade pastoral poderia justificar cada passo rumo à declaração de nulidade do vínculo matrimonial, para ir ao encontro das pessoas que se encontram em situação matrimonial irregular. A própria verdade, mesmo invocada com palavras, tenderia assim a ser vista numa perspectiva instrumental, que a adaptaria de cada vez às diversas exigências que se apresentam. [...] Hoje gostaria de sublinhar como quer a justiça, quer a caridade postulam o amor à verdade e comportam essencialmente a busca da verdade. Em particular, a caridade torna a referência à verdade ainda mais exigente. “Defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de fato, ‘agrada-se da verdade’ (1COR 13,6)” (Encíclica Caritas in veritate, n. 1). “Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida […]. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade: acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada, chegando a significar o oposto do que realmente é” (Ibidem, n. 3)» (Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana, 29 de janeiro de 2010).

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A oração e a misericórdia A oração é uma das circunstâncias em que o cristão, no diálogo com Deus seu Pai, aprende a descobrir a misericórdia concreta do Senhor a seu respeito e a respeito dos seus irmãos.

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Beato Paulo VI: a oração humana é uma das causas seguras da misericórdia de Deus «Tudo depende de Deus, porque Ele é a fonte primeira e única de tudo, até mesmo no reino da liberdade humana; e tudo depende do homem enquanto ele livremente escolhe a posição que quer em relação à ação de Deus; ou seja, Deus é causa, o homem é condição. Para que a ação de Deus se desenrole no campo dos nossos interesses de forma que nos seja favorável, devemos colocar-nos em condição – em fase, diria em linguagem mecânica moderna – para facilitar, para tornar possível a intervenção da divina misericórdia. Este estudo, este esforço de nos pormos em condição de ser favorecidos pela ação de Deus em nós, chama-se oração. A oração faz parte do sistema geral das nossas relações com Deus e da economia essencial da nossa salvação. Por isso, o Senhor no-la recomendou tanto, como se Ele a esperasse de nós para nos conceder as suas graças; ela é a causa preparatória da sua misericórdia para conosco» (Audiência geral, 10 de novembro de 1965). «À gratidão sucede o arrependimento. Ao grito de glória para com Deus Criador e Pai sucede o grito que invoca misericórdia e perdão. E que pelo menos isto eu saiba fazer: invocar a tua bondade, e confessar com a minha culpa a tua infinita capacidade de salvar. “Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison.” Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade de nós; Senhor, tende piedade de nós. Aqui vem à memória a pobre história da minha vida, tecida, por um lado, pela urdidura de benefícios singulares e numerosos, derivados de uma inefável bondade (é o que, espero, um dia poderei ver e “in aeternum cantare”); e, por outro lado, atravessada por uma trama de miseráveis ações, que se preferiria nem lembrar, tanto são negativas, imperfeitas, erradas, insipientes, ridículas. “Tu scis insipientiam meam”: Deus, Tu conheces a minha estultícia (Sl 68,6). Pobre vida a nossa: falhada, ridícula, mesquinha, tão e tanto necessitada de paciência, de reparação, de infinita misericórdia. Parece-me sempre suprema a síntese de Santo Agostinho: miseria et misericordia. Miséria minha, misericórdia de Deus. Que eu possa pelo menos agora honrar quem tu és, ó Deus de infinita bondade, invocando, aceitando e celebrando a tua dulcíssima misericórdia. [...] E depois, ainda me pergunto: por que me chamaste a mim, por que me escolheste, a mim, 113

tão inepto, tão renitente, tão pobre de mente e de coração? Sei por quê: “quæ stulta sunt mundi elegit Deus... ut non glorietur omnis caro in conspectu eius”. Deus escolheu o que no mundo é fraco para que nenhum homem se possa gloriar à frente de Deus (1Cor 1,27-28). A minha eleição indica duas coisas: a minha pequenez; a tua liberdade, misericordiosa e poderosa, que não ficou sequer parada perante as minhas infidelidades, a minha miséria, a minha capacidade de te trair» (Pensamento na morte [1965], em L’Osservatore Romano, n. 32-33, 9 agosto de 1979). «Com especial reverência e reconhecimento aos senhores cardeais e a toda a Cúria Romana, perante vós, que me rodeais de mais perto, professo solenemente a nossa Fé, declaro a nossa Esperança, celebro a Caridade que não morre, aceitando humildemente da divina vontade a morte que me está destinada, invocando a grande misericórdia do Senhor, implorando a clemente intercessão de Maria santíssima, dos anjos e dos santos, e recomendando a minha alma ao sufrágio dos bons. [...] E acerca do que mais importa, despedindo-me da cena deste mundo e andando ao encontro do juízo e da misericórdia de Deus, deveria dizer tantas coisas, mesmo muitas. Sobre o estado da Igreja: tenha ela porventura escutado alguma palavra nossa, que para ela pronunciamos com gravidade e com amor. Sobre o Concílio: para que seja levado a bom termo, e que tudo se faça para executar fielmente as prescrições. Sobre o ecumenismo: seja continuada a obra de aproximação com os irmãos separados, com muita compreensão, com muita paciência, com grande amor; mas sem infletir da verdadeira doutrina católica. Sobre o mundo: ninguém pense beneficiá-lo assumindo-lhe os pensamentos, os costumes, os gostos, mas estudando-o, amando-o, servindo-o. Notas complementares ao meu testamento [1972]. [...] Peço um pouco de oração para que Deus use de misericórdia para comigo. In Te, Domine, speravi. Amen, aleluia. A todos a minha bênção, in nomine Domini. PAULUS PP. VI, Castel Gandolfo, 16 de setembro de 1972, 7h30» (Testamento [1965-1972-1973], n. 1.6. O testamento consiste num escrito de 30 de junho de 1965, integrado com dois acrescentos, um de 1972 e outro de 1973).

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São João Paulo II: com a oração, a Igreja faz irromper a misericórdia divina no mundo lacerado pelo mal «A Igreja proclama a verdade da misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, e proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar a misericórdia para com os homens por meio dos homens, como condição indispensável da sua solicitude por um mundo melhor e “mais humano”, hoje e amanhã. Mas, além disso, em nenhum momento e em nenhum período da história, especialmente numa época tão crítica como a nossa, pode esquecer a oração, que é um grito de súplica à misericórdia de Deus perante as múltiplas formas do mal que pesam sobre a humanidade e a ameaçam. Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da secularização, esquecer o próprio significado da palavra “misericórdia”, e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar “com grande clamor” para o Deus da misericórdia.

[...]

Imploremos

a

misericórdia

divina

para

a

geração

contemporânea! Que a Igreja, que procura, a exemplo de Maria, ser em Deus Mãe dos homens, exprima nesta oração a sua solicitude materna e o seu amor confiante, donde nasce a mais ardente necessidade da oração» (Encíclica Dives in misericordia, n. 15, 30 de novembro de 1980).

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A dimensão política e social da misericórdia Os Papas imaginaram a cidade dos homens irrigada pela misericórdia, especialmente graças à ação livre e responsável dos cristãos, formados pela Igreja e transformados pelos sacramentos; desta forma, lembraremos brevemente as coordenadas principais do que Paulo VI chamou civilização de amor.

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Pio XII: a dimensão política da misericórdia e a oração pela paz «O nosso Deus é amor, é a própria caridade; e nós conhecemos e cremos na caridade que Deus tem para conosco (1JO, 4,16). Este é o mistério do coração de Deus, o grande mistério do cristianismo. Deus, com a sua infinita e amorosa misericórdia, que se espalha sobre todas as suas criaturas, irá escutar-nos – no momento e no modo próprio que a sua Providência tem – se aos pés do seu trono subir unânime a oração confiante e ardente, acompanhada da humildade da penitência; porque pertence à suprema eminência da bondade e da caridade divinas não somente distribuir o ser e o bem-estar a todos, mas ainda escutar na sua liberalidade os piedosos desejos que se exprimem por meio da oração» (Homilia na celebração eucarística para invocar a paz para o mundo, 24 de novembro de 1940).

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Beato Paulo VI: a civilização do amor fundada sobre a cruz – Cristo amado e encontrado nos nossos irmãos «A sapiência do amor fraterno, que caracterizou em virtudes e em obras, que, sendo cristãs são justamente qualificadas, o caminho histórico da santa Igreja, explodirá com nova fecundidade, com felicidade vitoriosa, com socialidade regeneradora. Não o ódio, não a contenda, não a avareza serão a sua dialética, mas o amor, o amor gerador de amor, o amor do homem pelo homem, não por algum provisório e equívoco interesse, ou por alguma amarga e mal tolerada condescendência, mas por amor a ti; a ti, ó Cristo, descoberto no sofrimento e na necessidade de todo o nosso semelhante. A civilização do amor prevalecerá no afã das implacáveis lutas sociais e dará ao mundo a sonhada transfiguração da humanidade finalmente cristã» (Homilia no Natal do Senhor, 25 de dezembro de 1975). «Se quisermos novamente inaugurar e promover a civilização do amor, não nos iludamos poder mudar estes anos estreitos a reparo do tempo num rio de perfeita felicidade. [...] Por que acenamos a esta distância temporal e visual do alcance da verdadeira e perfeita forma de vida cristã a nós consignada? Oh!, bem o sabeis, e isto não deve perturbar a nossa segurança e a nossa alegria antecipada e esperada. A razão é a Cruz, erigida no sumo vértice entre a vida presente e a futura. A Cruz não somente faz parte, mas constitui o centro do mistério de amor, que escolhemos como verdadeiro e total programa da nossa renovada existência» (Audiência geral, 11 de fevereiro de 1976). «A síntese entre verdade e caridade toca aspectos de vida muito importantes, que a podem mudar, como frequentemente sucede na realidade histórica, em antítese! Para nós foi bom que o recente Concílio nos confirmasse numa e noutra adesão à verdade, que é sempre tal de merecer a homenagem e, se necessário, também o sacrifício da nossa existência para a professar, para a difundir e a defender; e juntamente com a caridade, mestra de liberdade, de bondade, de paciência, de abnegação em toda a nossa relação com os homens, aos quais o Evangelho atribui o nome de irmãos. Não são jogos de palavras, não são contrastes de escola, nem dramas fatais de história; são problemas intrínsecos à natureza e à socialidade humana, que encontram no Evangelho, e 118

por isso naquela “civilização de amor”, que nós andamos espalhando qual herança do Ano Santo, a sua humilde e triunfante solução» (Audiência geral, 18 de fevereiro de 1976).

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São João Paulo II: a civilização do amor desejada pelo Papa Paulo VI realizarse-á se for acolhido o anúncio da misericórdia «Se Paulo VI, por mais de uma vez, indicou que a “civilização do amor” é o fim para o qual devem tender todos os esforços no campo social e cultural, como no campo econômico e político, é preciso acrescentar que este fim nunca será alcançado se nas nossas concepções e nas nossas atuações, relativas às amplas e complexas esferas da convivência humana, nos detivermos no critério do “olho por olho, dente por dente” e, ao contrário, não tendermos para o transformar essencialmente, completando-o com outro espírito. É nesta direção que nos conduz também o Concílio Vaticano II quando, ao falar repetidamente da necessidade de tornar o mundo mais humano, centraliza a missão da Igreja no mundo contemporâneo precisamente na realização desta tarefa. O mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o “amor misericordioso” que constitui a mensagem messiânica do Evangelho» (Encíclica Dives in misericordia, n. 14, 30 de novembro de 1980).

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Bento XVI: a civilização do amor pregada por Paulo VI entende tornar visível o amor de Cristo enfrentando corajosamente questões éticas «O ensinamento social de Paulo VI foi, sem dúvida, de grande relevo: reafirmou a importância imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade segundo a liberdade e a justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma civilização animada pelo amor. Paulo VI compreendeu claramente como se tinha tornado mundial a questão social e viu a correlação entre o impulso à unificação da humanidade e o ideal cristão de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum. Indicou o desenvolvimento, humana e cristãmente entendido, como o coração da mensagem social cristã e propôs a caridade cristã como principal força a serviço do desenvolvimento. Movido pelo desejo de tornar o amor de Cristo plenamente visível ao homem contemporâneo, Paulo VI enfrentou com firmeza importantes questões éticas, sem ceder às debilidades culturais do seu tempo» (Encíclica Caritas in veritate, n. 13, 29 de junho de 2009).

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Francisco: a misericórdia concreta do serviço feito aos pobres «Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres encarna em nós quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. [...] É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente, que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para que complicar o que é tão simples? As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro com as suas palavras e com os seus gestos. Por que ofuscar o que é tão claro?» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 193-194, 24 de novembro de 2013). «Deus não só está na origem do amor, mas em Jesus Cristo chamando-nos a imitar o seu mesmo modo de amar: “Assim como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34). Na medida em que os cristãos viverem este amor, tornam-se no mundo discípulos credíveis de Cristo. O amor não pode suportar ficar fechado em si mesmo. Pela sua mesma natureza é aberto, difunde-se e é fecundo, gera sempre novo amor. [...] Quem experimenta a misericórdia divina é estimulado a tornar-se artífice da misericórdia entre os últimos e os pobres. Nestes “irmãos menores”, Jesus espera-nos (cf. Mt 25,40); recebamos misericórdia e demos misericórdia!» (Homilia na celebração da penitência, 28 de março de 2014).

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Coordenação de desenvolvimento digital: Guilherme César da Silva Revisão: Célia Nogueira, Caio Pereira, Tiago José Risi Leme Tradução: Mário José dos Santos Capa: Edizione San Paolo Desenvolvimento digital: Daniela Kovacs Conversão EPUB: Paulus Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Os Papas e a Misericórdia [livro eletrônico]; Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização [organizador]; [tradução: Mário José dos Santos] – São Paulo: Paulus, 2015 1Mb; ePUB Título original: I Papi e la Misericordia © Pontificio Consiglio per la Promozione della Nuova Evangelizzazione © PAULUS Editora, Portugal, 2015 © PAULUS – 2016 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 paulus.com.br • [email protected] [Facebook] • [Twitter] • [Youtube] eISBN 978-85-349-4334-5

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Os Salmos da Misericórdia Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização 9788534943406 136 páginas

Compre agora e leia O livro consiste num importante instrumento pastoral para ajudar a oração e a reflexão dos peregrinos do Ano Santo da Misericórdia. Foram selecionados dez Salmos em que o tema da Misericórdia emergisse em toda a sua valência existencial e significado teológico, no espírito da Bula Misericordiae vultus, em que o Papa Francisco afirma: “Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: 'É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura’ (103,3-4). [...] A misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor, como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até o mais íntimo das suas vísceras” (MV, n. 6). Compre agora e leia

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Pastoral da Escuta Pereira, José Carlos 9788534937078 96 páginas

Compre agora e leia A Pastoral da Escuta é um braço da Pastoral da Acolhida. O agente dessa Pastoral escuta atentamente as necessidades e desabafos da pessoa, e busca apontar caminhos de solução. Este subsídio apresenta os passos necessários, as ferramentas para auxiliar na implantação e manutenção da Pastoral da Escuta. A obra se coloca dentro do espírito do Documento de Aparecida e das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, com a intenção de contribuir no processo de evangelização e para o estado permanente de missão das comunidades paroquiais. Diz o autor: "Os avançados meios de comunicação, a tecnologia e a informática criam modalidades de interação que não substituem o contato pessoal, o olho no olho, a presença física de alguém que ouça gratuita e desinteressadamente”. Compre agora e leia

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Índice Rosto Apresentação Introdução I - A pregação da misericórdia na história do magistério pontifício II - As fontes da misericórdia divina III - Maria, Mãe de misericórdia IV - A misericórdia, vida da Igreja V - O cristão e a misericórdia Ficha Catalográfica

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