Os Padres Da Igreja e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

July 14, 2017 | Author: Jaster IV | Category: Lord's Prayer, Jesus, Prayer, Liturgy, Saint
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Os Padres Da Igreja e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio...

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ÍNDICE Capa Rosto Apresentação I - A misericórdia, o estilo de vida cristão II - Santo Agostinho: pregador da misericórdia III - Antologia Santo Inácio de Antioquia São Clemente Romano São Policarpo de Esmirna São Justino Santo Hilário de Poitiers São Basílio São Gregório Nazianzeno São Cromácio Santo Ambrósio, bispo de Milão São João Crisóstomo São Cirilo São Máximo Isaac de Nínive Um comentador anônimo Antiga «Homilia sobre o Sábado Santo» Ficha Catalográfica

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APRESENTAÇÃO

O

apelo à misericórdia é o verdadeiro fio condutor que liga a história dos cristãos. É verdade que houve momentos em que alguns acontecimentos históricos ofuscaram

e até eclipsaram a visibilidade da misericórdia. Guerras e conquistas territoriais, escândalos e violências várias relegaram para um canto o amor terno de Deus, sem todavia o poderem extinguir da vida da Igreja. Seria fácil mostrar como precisamente nestes períodos escuros da nossa história surgiram pessoas de incrível santidade que fizeram emergir a bondade de Deus através do testemunho da sua vida. Conservamos a memória de santos e santas que ficaram famosos porque as instituições por eles fundadas permanecem como sinal concreto da sua caridade. Não podemos esquecer, todavia, as centenas de milhares de homens e de mulheres simples, cujo «nome está escrito no Céu» (Lc 10,20), que com a sua fidelidade quotidiana ao Evangelho mantiveram vivo o ensinamento de Cristo dando voz às várias obras de misericórdia. Um capítulo importante desta história foi-nos deixado pelos Padres da Igreja. Quisemos criar uma breve antologia de textos sobre a misericórdia para mostrar como o tema marcou as suas vidas e os seus ensinamentos. A perspectiva ou evocação da parábola do bom samaritano encontra-se em muitos Padres como um ponto de referência constante. Uma presença importante no Ocidente é Santo Agostinho, verdadeiro cantor da misericórdia. Olhando para a cena de Jesus na cruz com o ladrão a seu lado, a quem prometeu: «Hoje estarás comigo no paraíso», Santo Agostinho comentou: «O Senhor, enquanto ele dizia: Lembra-te de mim; mas quando? Quando estiveres no teu reino, logo lhe respondeu: Prometo-te que hoje estarás comigo no paraíso. A misericórdia concedeu o que a miséria diferira» (Sermão 67,4,7). Este instrumento pastoral divide-se em três capítulos: no primeiro, oferece-se uma introdução geral sobre o tema que evidencia como a misericórdia colhe transversalmente o ensinamento destes grandes mestres dos primeiros séculos da nossa história. No segundo capítulo, pela importância que o tema tem, encontra-se uma breve introdução a 5

Santo Agostinho com alguns dos textos mais significativos da sua obra. No terceiro capítulo, por fim, recolhem-se alguns textos dos Padres da Igreja do Oriente e do Ocidente para ajudar a refletir e a rezar ao longo deste Ano Jubilar. Poderão ser facilmente utilizados na catequese, na lectio e na oração. Deles nasce uma visão que toca toda a vida do crente e que permite recuperar um verdadeiro tesouro escondido. O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização está grato a monsenhor Enrico dal Covolo e ao padre Vittorino Grossi pelo seu contributo na elaboração deste texto. Que a sua competência e o seu esforço possam ser recompensados pelo conhecimento a que um grande número de cristãos poderá aceder em textos geralmente desconhecidos, para apoio e solidez da sua fé. RINO FISICHELLA Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização

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I

A MISERICÓRDIA, O ESTILO DE VIDA CRISTÃO

O Jubileu extraordinário que terá início em 8 de dezembro de 2015, no cinquentenário do Concílio Vaticano II (1962-1965), é um grande convite para celebrar, viver e cantar a misericórdia do Pai revelada pelo Senhor Jesus e derramada em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5,5). De fato, o lema do Jubileu, indicado pelo Papa Francisco na Bula Misericordiae vultus, é «Misericordiosos como o Pai», isto é, cantores da misericórdia divina com o desejo, as obras, o pensamento e toda a nossa vida, como o foram os profetas e os santos, e todas as gerações cristãs desde as origens da Igreja. A esses cantores da misericórdia pertencem de forma especial os Padres da Igreja. O convite a ser misericordiosos como o Pai (Lc 6,36) foi muitas vezes traduzido pelos Padres da Igreja como um convite à verdadeira perfeição, evangélica, que é vocação comum de todos os cristãos à santidade (cf. Lumen gentium, n. 5, 40). Para os Padres, na sua experiência e no seu pensamento, o convite à misericórdia e à perfeição estão intimamente unidos, porque os pastores e os doutores dos primeiros séculos do cristianismo se reconheceram sempre, e a toda a Igreja peregrina, como necessitados da bondade misericordiosa de um Deus que perdoa. Portanto, ser cristãos, ou seja, ser semelhantes a Cristo, o Homem Perfeito, é possível, e ainda mais se acolhermos a misericórdia divina e se formos pessoas de misericórdia. Atualmente, a Igreja sente a necessidade de transmitir o Evangelho da misericórdia, e para tal os ensinamentos dos Padres e da Tradição sempre viva da Igreja são instrumentos essenciais para experimentar, contemplar e transmitir em toda a sua riqueza o mistério da misericórdia, fonte da verdadeira alegria.

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Os Padres e o confronto com o mundo antigo não cristão O mundo cristão antigo, como se sabe, a partir da cultura bíblica e de outras do seu tempo, iniciou logo desde o princípio um confronto com a cultura do mundo pagão. A filosofia antiga dedicou-se amplamente ao tema da misericórdia, mas o juízo em relação a ela foi sempre muito controverso. No pensamento grego mais antigo, que deixou vastos traços nos poemas de Homero, a misericórdia é considerada uma das virtudes mais nobres. Como observava Giacomo Leopardi (1798-1837) no seu Zibaldone (3095-3169), a Ilíada, por comparação com os poemas épicos seguintes, continua a interessar-nos mesmo passados «vinte e sete séculos», pelo fato «estranho e quase absurdo de Homero, em tempos ferozes, ter evocado de tal forma a compaixão no seu poema», e esta recair «quase unicamente sobre os inimigos dos gregos seus compatriotas, em favor dos quais escrevia, e que não estimavam demasiado a generosidade para com o inimigo, apreciando até a qualidade oposta» (3152s.). O poeta da Ilíada ensina o novo sentimento da compaixão ao mesmo tempo que delineia heróis que não a conhecem, e compõe por isso não somente «o mais sentimental, e até o único sentimental», entre todos os poemas épicos, mas «até o poema mais cristão» (3157, n. 2). Com Platão (428-348 a.C.), mas ainda mais com o estoicismo, que considerava a misericórdia como uma doença da alma – aegritudo animi –, a filosofia tinha considerado a compaixão e a misericórdia semelhantes a uma fraqueza humana (cf. Apologia 34c ss.). Para o filósofo, a compaixão e a misericórdia opõem-se a um comportamento guiado pela razão e pela procura da justiça, que, para os antigos, era fundamentalmente uma justiça retributiva: «A cada um o que lhe pertence» (suum cuique). O tema da relação entre a justiça e a misericórdia atravessa todo o pensamento seguinte, até mesmo cristão, com êxitos diversos que, na época, levaram à perda do sentido autêntico da misericórdia, sobretudo no pensamento teológico, como foi notado por muitos, até mesmo em tempos recentes. O tema da relação entre a justiça e a misericórdia foi retomado vigorosamente pelo Papa Francisco na Bula de promulgação do Ano Santo (Misericordiae vultus, n. 20) e merece sem dúvida ser ainda aprofundado no decurso do Ano Jubilar, também à luz dos ensinamentos dos Padres. Isaac de Nínive

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(século VII), no final da era patrística em sentido restrito, escrevia como em síntese: «Se o misericordioso não superar a justiça, não é misericordioso» (Discursos ascéticos 4). Regressando à tradição clássica, para Aristóteles (384-322 a.C.), a compaixão não era considerada como uma virtude, apesar de ele ter dela uma concepção positiva: na sua opinião, a experiência de um sofrimento imerecido move o ânimo de quem o vê, porque um mal semelhante o poderá atingir também a ele, e isso o induz a agir, sendo solidário com quem sofre injustamente (cf. Retórica 1385 b). Para os estoicos, a emoção produzida no espírito humano pela compaixão é absolutamente inconciliável com os princípios de domínio racional dos sentimentos, com a autarquia, a ataraxia, a imperturbabilidade às quais eram chamados os seguidores da Stoá. Isto não desvaloriza que a filosofia estoica tenha apreciado largamente o exercício da clemência (clementia), da filantropia (humanitas) e da benévola disponibilidade para ajudar os outros homens (benignitas) (cf. SÊNECA , Sobre a clemência 2, 6). Cícero (106-43 a.C.), que será algumas vezes lembrado por Santo Agostinho e por muitos outros Padres do Ocidente latino, embora empregasse a definição estoica de misericórdia-compaixão como doença da alma, nos seus escritos exprime também uma elevada consideração a respeito dos homens misericordiosos. Na oração Pro Murena, distanciando-se dos excessos do estoicismo do adversário Catão e insistindo na tradicional desconfiança romana nos confrontos do pensamento grego, critica Zenão (336-263 a.C.) e os estoicos ortodoxos, que defendiam «que o sábio nunca é movido pela compaixão, nunca perdoa um pecado a ninguém, que ninguém é compassivo, exceto o estulto e o superficial» (XXIX, 61). De qualquer forma, estamos geralmente afastados da perturbadora mensagem evangélica de Deus que se fez homem por misericórdia, como sublinha Orígenes († 254 d.C.) de modo icástico: «O homem foi feito à semelhança da imagem dele, e por isso o nosso Salvador, que é a imagem de Deus, movido pela misericórdia para com o homem, que fora feito semelhante a Ele, vendo que, deposta a sua imagem, se revestira com a imagem do maligno […], assumindo a imagem do homem, veio para junto dele» (Homilias sobre o Gênesis 1,13,54s.). O mesmo doutor alexandrino escreve, de modo ainda mais espantoso: «Nem sequer o Pai é impassível. Se lhe rezamos, sente piedade e misericórdia, sofre de amor e identifica-se nos sentimentos que não poderia ter, dada a grandeza da sua natureza, e por 9

nossa causa suporta os sofrimentos dos homens» (Homilias sobre Ezequiel 6,6,119). Orígenes também enunciou o dogma da impassibilidade divina, mas o caso da misericórdia parece-lhe radicalmente diferente.

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A misericórdia na Sagrada Escritura e nos Padres Na compreensão do grande mistério do amor ilimitado de Deus pelo homem, os Padres da Igreja começaram pela leitura da Sagrada Escritura, a norma da vida cristã, meditada, proclamada, celebrada e vivida na Igreja. A Escritura ocupava e ocupa um lugar absolutamente fundamental na vida da comunidade e com ela deve ser conciliado qualquer ato da sua vida, desde a liturgia à doutrina e à disciplina, em sentido coletivo e individual. Pode certamente afirmar-se que toda a vida da comunidade cristã é guiada pela interpretação da Sagrada Escritura: o seu estudo constitui na Igreja dos primeiros séculos o autêntico fundamento da cultura cristã. No coração da mensagem transmitida pela Escritura, o Deus bíblico é definido com frequência com o binômio «paciente e misericordioso» (Sl 144), e na história da salvação é frequente que a sua bondade prevaleça sobre a destruição e sobre a punição anunciadas em razão da infidelidade dos homens. Devido a tais ameaças, incluídas nas páginas do Antigo Testamento, surgiram no âmbito etnocristão e no paulinismo extremo antijudaico algumas heresias, que contrapunham de modo muito claro o Deus do Antigo Testamento ao Pai bom revelado por Jesus. Como exemplo, lembramos a heresia dualista de Marcião de Sinope (século ii d.C.), que se tentou impor, devido aos grandes recursos à sua disposição e a ricas doações, à atenção da Igreja romana, da qual queria ultrapassar os limites. Tendo sido descoberto, Marcião foi imediatamente condenado e em 144 foi expulso da comunidade de Roma, que até lhe restituiu um donativo por ele oferecido no valor de 200.000 sestércios. Essa soma considerável teria sido útil à Igreja romana, que cedo se tinha distinguido pela sua caridade prática em favor dos pobres (egeni), como refere São Justino, que fala de coletas dominicais para ajudar os pobres. A restituição desses 200.000 sestércios terá sido especialmente difícil, mas lembra que a caridade e a verdade são indivisíveis para a comunidade cristã, e juntas são a manifestação da misericórdia divina. Na tradição dos doutores católicos, como o grande mestre africano Tertuliano (ca. 155230 d.C.) e Santo Irineu (ca. 135-200 d.C.) – um dos primeiros e maiores autores cristãos, formado na Ásia Menor e que se tornou bispo de Lião na Gália (Contra as heresias 4,26,1) –, são, sim, sublinhadas firmemente, através de refinados instrumentos de interpretação da Escritura, a unidade dos dois Testamentos e a única revelação da

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misericórdia divina para a humanidade. Tertuliano afirma que o Deus que se revelou a Moisés, o «Deus misericordioso e piedoso, lento para a ira e rico de amor e de fidelidade», é o mesmo «Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação» (2Cor 1,3) do Novo Testamento (Contra Marcião 5,11). Os Padres da Igreja souberam sempre colher, até nas páginas mais difíceis e duras da Escritura judaica, com a perspicácia e a inteligência espiritual que os distingue, a revelação de Cristo que se esconde no Antigo Testamento como o tesouro no campo do Evangelho de São Mateus (13,44).

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A misericórdia como “miséria” e “coração” Misericórdia é uma palavra latina muito antiga e, durante a sua longa história naqueles que dela fizeram experiência, adquiriu significados delicados com numerosos matizes de linguagem nos dois termos de que se compõe: “miséria” e “coração”. Nas Confissões (3,2,2), Santo Agostinho precisa que é habitual definir miséria como sofrimento próprio, enquanto o sofrer pelos outros se define como misericórdia. Em grego, a língua do Novo Testamento, misericórdia diz-se eleos. Esta é uma palavra para nós familiar graças à invocação Kyrie eleison, pela qual suplicamos a misericórdia do Senhor. Esta, por seu lado, traduz a palavra hebraica hésèd, uma das palavras bíblicas mais belas, que sublinha a fidelidade da misericórdia de Deus por cada homem. Por tal motivo, traduz-se com frequência muito simplesmente por «amor» ou «a fidelidade do amor de Deus» pela humanidade. O grego eleos traduz também outro termo hebraico, rahamîm, que indica uma hésèd (fidelidade no amor) cheia de emoções, significando as entranhas do seio materno. A fidelidade de Deus à sua misericórdia era celebrada expressamente nas assembleias de oração dos israelitas ao utilizarem os Salmos 117 e 135. A emoção misericordiosa é registrada pelos evangelistas em relação a Jesus quando se diz que «se comoveu e começou a chorar», como na Última Ceia, onde se nota que o discípulo amado apoiava a sua cabeça sobre o peito de Jesus, mas na realidade o texto afirma que apoiava a cabeça sobre as entranhas maternas do Senhor, ou sobre o seio no qual somos continuamente gerados, expresso no afeto da mãe pelo seu filho (IS 49,15). Na parábola do Pai misericordioso, nota-se ainda que, quando o pai viu o filho que regressava a casa, comoveram-se-lhe as entranhas materno-paternais. Como referimos anteriormente, em latim, a palavra «misericórdia» é composta por dois termos. A «miséria» exprime certa insuficiência extrema que só suplica por piedade e compaixão, uma comiseração implorada por quem se encontra em estado de grave angústia. Portanto, «miséria» refere uma indigência que ameaça a subsistência de quem se encontra em tal estado, porque é obrigado a viver nas margens da vida humana, e com dificuldade pode respirar a vida. O outro termo, ligado a este de miséria, é coração. A miséria, próxima do coração, com a raiz latina urere, que significa queimar, acaba por ser destruída como se fosse investida por um incêndio. O coração, por isso, quando sente a

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miséria presente num homem, não a julga, mas queima-a e destrói-a. E isto é a misericórdia. Quando um coração se aproxima de ti, sentes-lhe o calor, porque a tua miséria queima, e isto é o mesmo que dizer que a negatividade em que estás envolvido te faz sentir o calor de quem te abraça, de quem te quer bem porque não te deixa sentir o peso da tua miséria. Esta, de fato, já não existe: foi queimada. É o milagre produzido pelo coração misericordioso. O “coração” é o centro da zona mais íntima e mais verdadeira de cada homem. Por esse motivo, o “coração” é considerado a sede dos afetos, ou seja, dos sentimentos de alegria, de sofrimento, de amor, de serenidade ou de agitação, daquele lugar impenetrável em que se avaliam as escolhas de consciência de cada um de nós. A união dos dois termos transforma-se, então, em «misericórdia», ou seja, no olhar amoroso cheio de compaixão, tanto de Deus como da criatura, que gratuitamente se ajoelha sobre a miséria, a socorre e a anula com o seu coração. Por esse motivo, a misericórdia nasce, vive, alimenta-se e manifesta-se no perdão e na ternura que te abraça. Viver com verdade cada dia não é senão uma peregrinação à procura do lugar do coração, essa fornalha capaz de queimar toda a miséria que produz misericórdia. A palavra «misericórdia» indica, pois, um coração humano pronto a intervir quando percebe que uma indigência pode provocar a morte de uma vida; e também indica que uma miséria, que se apoderou de alguém, está prestes a acabar, porque será queimada por um coração que a percebeu. É certo que a misericórdia do homem é limitada como o seu coração, mas a de Deus é imensa como o seu ser subsistente. A misericórdia cristã pode ser encontrada porque tem um rosto e um nome: chama-se Jesus Cristo. Nele, a misericórdia é o rosto do amor do Pai por cada criatura humana.

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A educação dos cristãos à misericórdia Os cristãos, desde que nascem, nas exortações dos seus Pastores, são continuamente levados a ser misericordiosos, produzindo na sua vida quotidiana obras de misericórdia. No tempo dos Padres da Igreja, durante o período do catecumenato, com a oração do Pai-Nosso, eram educados para ser capazes de misericórdia. Tal educação apoiava-se na consciência do homem que nasce e vive a existência envolvido por zonas sombrias. Estas invadem todo ser humano que se encontre numa situação de dificuldade em fazer o bem, ou de pecado, como habitualmente nos exprimimos. Ao crescermos, essas zonas sombrias, nas quais se nasce, tornam-se manifestas e agressivas: o coração deixa-se seduzir, as melhores aspirações chegam-nos corrompidas, a consciência não consegue esconder à criatura humana o seu tormento, agitada como está por esse contínuo e simultâneo embaraço de valores e desvalores, de sentido do bem e do mal. Um mal-estar que, por outras palavras, pertence à vida: à vida individual como à vida social e até à vida da Igreja. Nela se congregam os homens de todas as línguas e de todos os povos, chamados pela esperança doada pela revelação da misericórdia de Deus. Graças a ela, todos podem enfrentar as dificuldades que minam uma convivência amorosa com os seus semelhantes, e também viver a esperança de um dia poderem libertar-se da espiral da tentação do mal nas suas multiformes variedades: desde a perda de significado da existência e da confiança dos outros até não suportar viver na sua presença. A educação cristã à misericórdia, em termos de convivência, traduz-se em relações de ajuda recíproca para se libertar do mal em que quotidianamente se incorre, em não demorar mais do que necessário julgando negativamente os outros, para se relacionar com o seu semelhante vivendo de misericórdia. Se o próximo pecar em relação a nós e nós persistirmos em o julgar negativamente, estamos nos esquecendo do dom da misericórdia e, como se voltássemos a ser pagãos, pecamos também. Somente a misericórdia recíproca nos salva. No tempo dos Padres da Igreja, todos aqueles que pediam para ser cristãos eram educados para tomar consciência de uma realidade comum que era a dificuldade com que se vem ao mundo. De tal modo eram ajudados a descobrir que eram todos pobres, porque todos partilhavam uma mesma ferida e, por conseguinte, estavam todos necessitados de uma mesma misericórdia. Quando o mal não se descarrega sobre um só,

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ele não aumenta, nem se multiplica, mas perde a sua força destruidora, torna-se limitada tal qual é na sua realidade negativa, ausência de um bem só momentaneamente ausente, mas pronto a assumir o seu lugar. Então, os homens não agem já sob as forças do mal julgando-se, odiando-se, matando-se, mas olhando-se e descobrindo-se pecadores, rezam em conjunto: «Perdoai-nos as nossas ofensas». Na idade patrística, era tradição da Igreja de Roma não limitar a sua ação caritativa ao âmbito do seu território e à assistência a cristãos romanos em dificuldades que viviam longe da sua comunidade. Roma realizava o que Santo Inácio de Antioquia (Roma, † 107 ca.) dizia dela, ou seja, que «presidia à caridade». Dionísio de Corinto († 175 ca.), escrevendo ao Papa Sotero (166-175) sobre a tradicional solidariedade romana, afirmava: «Desde o início vós tendes o bonito hábito de beneficiar todos os irmãos, de enviar ajudas a numerosas Igrejas constituídas em cada cidade. É assim que aliviais os necessitados, mediante as vossas ajudas, que já desde os primeiríssimos tempos continuais a enviar, e socorreis com o necessário os irmãos que desfalecem nas minas. Sois romanos e guardais zelosamente as tradições dos vossos avós, os romanos: Sotero, o caríssimo bispo que tendes, não somente as manteve, mas até as desenvolveu, socorrendo com generosidade os santos nas suas necessidades» (Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica 4,23). Estas afirmações sobre a caridade da Igreja romana foram confirmadas por numerosos testemunhos de outras províncias do Império Romano: por exemplo, o bispo Dionísio de Alexandria (190-265 d.C.) deixou-nos um louvor ao Papa Estêvão (254-257), porque, em nome da Igreja da urbe, enviava regularmente muitas ajudas e socorros às Igrejas da Síria e da Arábia (cf. EUSÉBIO, História eclesiástica 7,5,2). As formas de solidariedade cristã da comunidade romana e de outras cidades do império eram realmente numerosas e foram muitas vezes louvadas até por escritores pagãos, como Luciano de Samósata († depois de 180 d.C.), o imperador Juliano († 363 d.C.) e outros. Juliano, chamado Apóstata, que conhecia bem as multiformes atividades caritativas da Igreja, quis legislá-las em âmbito pagão, paralelamente a uma revisão da religião tradicional na base da experiência cristã. Tertuliano e outros escritores antigos afirmam que a esmola, a atenção aos necessitados, aos pobres e a todas as obras de misericórdia espirituais e corporais que manifestam um coração misericordioso fazem dos cristãos homens e mulheres superiores aos pagãos (cf. Apologético 42,8). 16

Apenas para oferecer uma ideia da efetiva caridade do tempo dos Padres, recordamos algumas obras que estavam ao cuidado dos bispos e das comunidades cristãs: a ajuda aos cristãos presos ou condenados nos variados lugares penais nos primeiros séculos, depois em favor dos encarcerados em geral; o resgate de numerosas prostitutas; de prisioneiros; o socorro às vítimas da usura; a sepultura para todos; o cuidado das viúvas e dos órfãos; o cuidado dos enfermos; a hospitalidade em favor dos forasteiros (uma obra de misericórdia que no Pastor de Hermas é considerada uma das características que fazem dos bispos homens santos e justos). No livro Contra Marcião, quando Tertuliano comenta a passagem do profeta Oseias: «Quero misericórdia e não sacrifício» (6,6), aparecem constantemente estes dois sentidos da misericórdia, a recebida por Deus e a exercida pelos cristãos (cf. Contra Marcião 2, 11,2; 13,5; 17,2; 4, 17,8; 18,9; 20,4). Em muitos autores cristãos, sinônimos de misericórdia são também a pietas, humanitas e outros termos que têm uma tradição clássica muito antiga e rica – como já vimos no caso de Sêneca –, e que o cristianismo recuperou e ampliou. Em Lactâncio (ca. 250-317), o Cícero cristão, um culto reitor convertido e feito depois precetor da prole imperial de Constantino, a misericórdia é companheira da justiça, uma especialmente para benefício dos homens e a outra um dever para com Deus (cf. As instituições divinas 6,10). Mas seria impossível oferecer a Deus algo se Ele, primeiro, não tivesse dado tudo gratuitamente ao homem, se primeiro não tivesse amado o homem, apesar da indignidade do homem e da sua incapacidade de considerar a bondade paternal de Deus. Escreveu outro escritor anônimo do século IV, conhecido por Ambrosiaster: «Estas são as verdadeiras riquezas da misericórdia de Deus, que até mesmo quando não a procurávamos, a misericórdia foi revelada por iniciativa dele» (Comm. Ef 2,4). Para os mestres da Igreja das origens, no rosto misericordioso de Cristo podemos ver a misericórdia divina em favor do homem pecador. De resto, na caridade, na misericórdia e no perdão exercidos em favor do próximo, já Orígenes convidava os seus leitores a descobrir a imagem de Deus (ORÍGENES, Princípios IV, 4,10). Santo Agostinho afirma com frequência que o cristão pode contemplar Deus, pode descobrir a visão da Trindade, o mistério imenso que um dia será chamado a ver e a contemplar «face a face» (1Cor 13,12) somente pela efetiva caridade para com o próximo. A contemplação da Trindade obtém-se «pela caridade» (A Trindade 8,8,12). 17

A missão de Jesus foi a de revelar e comunicar aos homens a plenitude do amor que é a vida de Deus, de Deus que «é Amor», como ensina São João (1Jo 4,8.16). Toda a vida de Jesus é expressão deste Amor que se dá gratuitamente, até o supremo sacrifício da Cruz. Cirilo, bispo de Alexandria, recorda que a misericórdia é um atributo da própria natureza divina e convida os seus leitores a fixar bem este pensamento na sua mente (cf. Comentário a São Lucas. Homilia 29). Os sinais que o Senhor Jesus realizou em favor da humanidade cansada e esgotada, dos pecadores, dos pobres, dos excluídos, dos enfermos e dos que sofrem falam-nos da misericórdia de Deus. Todos estes sinais, apresentados em muitos episódios do Evangelho, mostram como Jesus sente compaixão pelas multidões transviadas que o seguem e, preocupado com a sua miséria, as livra da fome com apenas cinco pães e dois peixes (Mt 14,13-21). Os Padres tiveram sempre muita atenção na distinção cuidadosa dos atributos divinos e humanos do Filho de Deus. Em muitas passagens em que Jesus se mostra comovido em relação a situações penosas e de sofrimento dos seus interlocutores, revela-se a sua verdadeira humanidade, aí manifestada, e para defesa da divindade do Filho de Deus exploram o que se pode descobrir nos milagres. Em suma, a divindade que não se pode ver manifesta-se através dos sinais concretos que aparecem sob os olhos de todos, como no caso da multiplicação dos pães. Mas eles põem também em relevo a compaixão de Jesus pela multidão que o segue, a sua condescendência e entrega que o Senhor faz de si na economia da salvação. Um autor oriental do século iv escreveu: «Ele nunca foi nem ocioso nem inativo no mundo, mas sempre se empenhou a matar a fome de todos sem ganhar nada com isso» (EUSÉBIO DE EMESA , Homilia 8,12). A exegese dos Padres vê no milagre da multiplicação dos pães o sinal da chegada do Messias que alimenta o seu povo e, em sentido alegórico, os cinco pães e os dois peixes são muitas vezes respectivamente considerados o alimento do Antigo Testamento, especialmente os cinco livros da Lei (Pentateuco), e os dois peixes também seriam os Profetas e São João: é o que se pode ler, por exemplo, em Hilário de Poitiers (315-37 d.C.; cf. Comentário a São Mateus 14,19). Ambrósio (ca. 340-397 d.C.) aventura-se em alegorias ainda mais audazes (cf. Exposição do Evangelho de São Lucas 6,79-80). Também não faltam interpretações que nos remetem obviamente para o alimento eucarístico. 18

O milagre da misericórdia de Cristo, comovido pela multidão esfomeada, não se esgota na multiplicação: a misericórdia recebida difunde-se e vai em benefício de quem dá sem reservas, como Cristo fez. Com efeito, ainda sobraram doze cestos de pão. O bispo Cirilo de Alexandria (370-444 d.C.) pergunta então: «E o que se deduz disto? É uma certeza clara de que a hospitalidade recebe uma rica recompensa de Deus. Os discípulos ofereceram cinco pães e dois peixes e […] acabou por ficar cada um com um cesto de pedaços que sobraram. Portanto, não existe nada que nos impeça de acolher os estrangeiros […]. Ninguém diga: “Não tenho meios adequados, o que apenas posso fazer é ridículo e não chega para tantos”. Caríssimos, acolhei os estrangeiros! Vencei toda a relutância que não leve à recompensa. O Senhor multiplicará muitas vezes o pouco que tendes para além do que se pode esperar» (CIRILO

DE

ALEXANDRIA , Comentário a São

Lucas. Homilia 48). Este é um desenvolvimento exegético tornado especial e dramaticamente atual pelas multidões desesperadas de migrantes que, sob os nossos olhos, tentam escapar de conflitos e misérias, aos quais somente uma justiça conjugada com a misericórdia poderá redundar num êxito positivo e duradouro. Em virtude do seu amor compassivo e misericordioso, Jesus cura os doentes e sente compaixão pela viúva de Naim ressuscitando-lhe o filho (Lc 7,11-17). Comentando estes milagres, os Padres não se podem limitar apenas a comentar a misericórdia de Jesus que perdoa, cura e volta a dar a vida. O seu olhar é profundamente eclesial e acolhe na viúva a imagem da comunidade dos crentes estabelecida no amor de Cristo e que o difunde; como Esposa de Cristo, que se comove perante os dramas dos homens e das mulheres e se empenha em socorrer as pessoas com a graça dos sinais sacramentais, com o perdão e até com as obras de misericórdia espirituais e corporais. A mãe dolorosa pela morte do Filho é a Igreja que chora pelos pecados dos filhos que gerou no seio da pia batismal. Ela intervém por cada um de nós, como se fôssemos seus filhos únicos, e chora, escreve Santo Ambrósio, para que cada filho seu se erga ao longo do cortejo fúnebre e não conheça o sepulcro e a morte eterna (cf. Exposição do Evangelho segundo São Lucas 5,92). Depois de ter libertado o endemoninhado de Gerasa, Jesus dá-lhe esta missão: «Anuncia tudo o que o Senhor, na sua misericórdia, fez por ti» (Mc 5, 19). Também neste caso o comentário unânime dos mestres do cristianismo antigo evidencia que, 19

obtida a remissão dos pecados, é dever de todos os fiéis tornar os outros participantes dos dons recebidos e colocar-se ao serviço do Evangelho e da difusão do Reino de Deus (cf. BEDA VENERÁVEL, Comentário a São Marcos, 2). Também a vocação de São Mateus se encontra inscrita no horizonte da misericórdia que atravessa o olhar de Jesus em direção ao cobrador de impostos. Era um olhar que perdoava os pecados daquele homem. Jesus, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o a ele, pecador e publicano, para ser um dos Doze. O Papa Francisco – como se sabe – de tal modo se deixou impressionar por este olhar que do episódio tirou o seu mote episcopal na tradução lapidária que devemos a São Beda (672735 d.C.). Este santo, comentando o episódio evangélico, afirma: «Jesus olhou para Mateus com amor misericordioso e escolheu-o – miserando atque eligendo» (BEDA VENERÁVEL, Homilia 21). Entre as muitas passagens do Evangelho comentadas pelos Padres são particularmente significativas a parábola do bom samaritano e a trilogia de Lucas da misericórdia (Lc 10,25-37; 15,1-10; 15,11-24). Na primeira, o bom samaritano da humanidade é identificado com Cristo desde os tempos de Orígenes, e o seu exemplo deve ser imitado mais com obras do que com palavras. É possível imitar Cristo, continua o doutor alexandrino, segundo o ensinamento de São Paulo: «Sede meus imitadores, como também eu o sou de Cristo» (1Cor 11,1). Para Orígenes, o Filho de Deus encoraja-nos a fazer obras de misericórdia como as que o samaritano realizou. E quando incita o seu interlocutor, dizendo-lhe: «Vai e faz o mesmo», não está falando ao doutor da Lei que o interrogara, mas a cada um de nós. Se o homem agir deste modo, então receberá a vida eterna em Cristo Jesus (cf. Homilias sobre o Evangelho de São Lucas 34,3; 34,9). Nas parábolas da ovelha perdida, da moeda encontrada e do pai misericordioso, é sublinhada a paciência misericordiosa de Deus por aquilo que se perdeu, ou seja, pelo homem pecador, e também se sublinha a alegria do Pai quando o homem é encontrado e perdoado. Toda a conversão produz alegria entre os poderes celestiais (cf. CIRILO ALEXANDRINO, Comentário a São Lucas. Homilia 106; SANTO AMBRÓSIO , Exposição do Evangelho segundo São Lucas 7,210). Na parábola do pai misericordioso, encontra o seu ápice a reflexão sobre a misericórdia do Pai: «Ele, o Pai» – escreveu Santo Ambrósio –, «vem ao teu encontro porque te escuta enquanto estás ainda refletindo contigo mesmo no segredo do coração… Ao correr ao teu encontro, está a presciência e no abraço, a sua 20

clemência» (Exposição do Evangelho segundo São Lucas 7,229). À pergunta de São Pedro sobre quantas vezes é preciso perdoar – até sete vezes? –, Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete» (Mt 18,2122). O Senhor pensava de outra forma em relação à questão que lhe foi colocada por São Pedro, porque «Ele é a misericórdia em pessoa» (CROMÁCIO

DE

AQUILEIA ,

Comentário a São Mateus, Tratado 59,3). Hilário de Poitiers recorda que Jesus nos ensina que devemos conceder o perdão sem medida nem conta, e que devemos pensar não em quantas vezes perdoamos, mas deixar de nos indignar contra aqueles que pecaram contra nós todas as vezes em que sentimos a necessidade de o fazer… De fato, perdoar sem medida é garantia de sermos perdoados sem medida (Comentário a São Mateus 18,10). O texto do diálogo entre Jesus e São Pedro é explicitado pela parábola do servo desumano (Mt 18,23-26). Ela narra como o senhor tinha perdoado uma grande dívida ao seu servo, ao mesmo tempo que este não procedera da mesma forma com outro servo que lhe devia uns pequenos trocos, enviando-o para a cadeia. Jesus fala-nos através das palavras do senhor: «Não devias também ter compaixão do teu companheiro como eu tive de ti?». E concluiu: «É assim que procederá convosco o meu Pai que está no Céu, se cada um não perdoar do fundo do coração a seu irmão» (Mt 18,33-35). O exemplo é claro como o ensinamento que dele deriva – comentou Cromácio uma vez mais (cf. Comentário a São Mateus, Tratado 59,3): somos chamados a ser misericordiosos, porque também para nós foi usada misericórdia. E não chega usar misericórdia para os que são amáveis. Só é verdadeiramente misericordioso aquele que tiver misericórdia do seu inimigo e lhe fizer o bem na medida em que foi escrito: «Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam» (Lc 6,27). Com efeito, Deus não apenas dá a chuva aos que lhe são fiéis, mas também aos outros, e por isso foi dito: «Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6,36). Um autor anônimo, que se fez voz de muitos cristãos antigos, afirma: «É realmente bem-aventurado aquele tal, porque a sua misericórdia, se ele não pecou – coisa difícil para os homens – [melhor se diga: impossível, n.d.r.], o ajuda a crescer na sua justiça; mas no caso em que tenha cometido pecado, ajuda-o em vista da remissão, porque pode com confiança dizer: “Perdoai-nos as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6,12)» (Comentário anônimo a São Mateus. Homilia 9, PG 59). 21

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O Pai-Nosso: a oração da misericórdia A educação cristã à misericórdia encontrou, na Antiguidade cristã, um espaço quotidiano no comentário à petição do Pai-Nosso «perdoai-nos as nossas ofensas» (Mt 6,12). A oração do Senhor (o Pai-Nosso) era utilizada, nas comunidades cristãs latinas, como síntese de catequese sobre a oração para os neobatizandos através de dois ritos: o rito da entrega da oração do Senhor ao batizando e o rito da reentrega de tal oração (em latim, os ritos da traditio-redditio orationis dominicae). O rito da entrega previa a leitura de cada petição do Pai-Nosso com uma breve explicação; o rito da reentrega era a recitação decorada do Pai-Nosso por parte do candidato. O seu principal significado era ajudar o povo cristão a viver em união permanente com Deus nosso Pai para lhe suplicar a graça de observar as promessas batismais professadas no Credo. Em tal contexto, no âmbito da petição «perdoai-nos as nossas ofensas», educava-se o catecúmeno a viver de misericórdia. Tal oração explicitava a possibilidade de o novo candidato ao cristianismo poder sempre dirigir-se a Deus, apesar das falhas quotidianas da existência, para poder sempre recomeçar. Tal educação constituía, para os Padres da Igreja, a síntese da mensagem de Jesus. O que de fato pode esperar um coração humano, que nasceu para viver eternamente com Deus, senão uma piedade imensa pelas suas feridas sempre abertas e a misericórdia de Deus, que, cuidando das suas cicatrizes, o ajude de tal modo que possa continuar a viver? Os comentários à petição do Pai-Nosso «perdoai-nos as nossas ofensas» (os mais conhecidos na Igreja são os de Tertuliano, Orígenes, São Cipriano e Santo Agostinho) foram escritos para que tal esperança se tornasse própria de cada crente, como de cada homem chamado à fé cristã. São Cipriano de Cartago deixou escrito: «É realmente necessário, providencial e salutar que nos seja lembrada a nossa condição de pecadores: assim induzidos a rezar pelos nossos pecados, ao mesmo tempo que pedimos perdão a Deus, também nos lembramos daquilo que somos... Quando confessamos os nossos pecados, Deus, fiel e justo, perdoa-no-los. Com isso, Ele lembra duas coisas: o dever de rezar por causa dos nossos pecados e o dever de pedir para eles o perdão através da oração. Ele proclama que o Senhor é fiel pelo perdão dos pecados, ou seja, tem fé na sua promessa porque, ao mesmo tempo que nos ensinou a rezar pelas nossas dívidas e pecados, também nos prometeu a sua misericórdia paternal e o perdão que nos oferece».

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A catequese aos neobatizandos sobre a oração do Pai-Nosso tinha em vista principalmente duas coisas: educar os neocristãos para que tomassem consciência da realidade de cada homem, totalmente necessitado de misericórdia, e da pertença à comunidade cristã, uma Igreja feita de homens que os reúne de todo o lado tal como são e os educa à misericórdia de Deus pelo homem e à misericórdia recíproca, ou seja, à esperança de uma confiança fundamentada que se pode sempre recuperar mesmo no meio de todos as falhas batismais, de qualquer natureza e gravidade. Santo Agostinho, no sermão sobre o Pai-Nosso, encorajava os neobatizandos: «Escutai [...] tende a certeza de que tudo vos será perdoado: seja tudo o que contraíste até chegardes à vida com o pecado original, pelo que juntamente com as criancinhas correis à graça do Salvador, como tudo na vossa vida, aumentaste de mal com palavras, obras e pensamentos. Tudo vos será perdoado» (Sermão 56, 9,13). A consciência do mal, da possível falha que cada um tem dentro de si, traduz-se na vida do cristão em relações de misericórdia e de ajuda recíproca quando se liberta do mal em que quotidianamente se incorre, não demorando mais do que necessário a julgar, vivendo, por consequência, relações de negatividade com os seus semelhantes. A misericórdia leva-nos a encontrar-nos no humano que nos une. Pela misericórdia, os homens não agem sob as forças do mal (julgando-se, odiando-se, matando-se), mas, olhando-se e descobrindo-se pecadores, rezam em conjunto: «Perdoai-nos as nossas ofensas». A invocação da oração do Senhor «perdoai-nos as nossas ofensas» era ensinada ao catecúmeno para que a rezasse quotidianamente com a confiança de que o homem se pode sempre dirigir a Deus, porque Ele, a misericórdia, está do lado daquele que cai, ressuscitando-o de geração em geração. Na prisão do coração humano, privado de luz, desce sempre, por isso, o paternal, misericordioso e piedoso olhar de Deus que o ilumina com a sua luz, não pondo diante dele os seus pecados, mas perdoando-os, o introduz no calor do abraço da sua luz. Portanto, os cristãos eram educados para a possibilidade quotidiana de ser perdoados, isto é, de receber um gesto de misericórdia, necessário ao homem como pão para a boca e água para matar a sede. Sem tal possibilidade, a própria liberalidade de Deus não teria sentido, porque o homem viria a encontrar-se, como explicava o catequista de Cartago, Tertuliano, aos catecúmenos, como na condição de um boi destinado ao matadouro. 24

Escreveu textualmente: «Uma vez considerada a generosidade de Deus, é agora necessário que imploremos também a sua clemência. Para que serviria o alimento corporal se, perante Ele, estivéssemos na condição de um boi destinado ao matadouro? O Senhor bem sabia que era o Único sem pecado, e foi por isso que nos exortou a rezar assim: “Perdoai-nos as nossas ofensas”».

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A misericórdia na liturgia As orações da liturgia veiculam, durante todo o ano litúrgico e nos sacramentos administrados, a imensa misericórdia do Senhor, seja como memória dos gestos de salvação do Salvador, seja como sacramento e exemplo na vivência cristã quotidiana. De fato, a liturgia, abarcando toda a vida de Jesus Cristo desde o nascimento até a ascensão, apresenta-se como sacramento de salvação de geração em geração, como exprime São Leão Magno: «O sacramento da festa de hoje pertence aos tempos de cada fiel» (Sermão 38, 1). Portanto, desde o Papa Leão Magno, o ano litúrgico é descrito, desde o Natal ao Pentecostes, como transmissor de comunicação da salvação aos crentes, ou então “como convidando à misericórdia de Deus”. O mesmo São Leão explicava-se da seguinte forma num sermão ao povo: «Todos os dias e em todos os tempos são colocados diante de nós os sinais (signa) da bondade divina, e não há parte alguma do ano que não seja beneficiada pelos sagrados mistérios para, enquanto de todo o lado vêm ao nosso encontro ajudas em vista da nossa salvação, atendermos cada vez mais avidamente à convidante misericórdia de Deus» (Sermão 49, 1). São Cirilo de Jerusalém também explica na sua Catequese 20: «No plano das realidades físicas, nós não estamos mortos, nem sepultados, nem crucificados nem sequer ressuscitados. Porém, representamos estes acontecimentos na esfera sacramental, e é assim que neles se produz realmente para nós a salvação. Cristo, pelo contrário, foi verdadeiramente crucificado e verdadeiramente sepultado e foi verdadeiramente ressuscitado, até mesmo na esfera física, e tudo isto foi para nós dom da graça. Assim, de fato, participamos da sua paixão e, através da representação sacramental, podemos realmente obter a salvação» (Mistagógica 2, 4-6). Os textos da liturgia explicitam a revelação de Jesus, conservada pelo evangelista João: «Deus amou de tal forma o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna» (JO 3,16-17). Por exemplo, a liturgia do tríduo da Semana Santa veicula a misericórdia do Salvador numa sua concentração especial, fazendo-nos participar da sua paixão. A propósito do Batismo, São Cirilo de Jerusalém explica na Catequese 20: «Nós sabemos que o Batismo, como pode libertar dos pecados e obter o dom do Espírito Santo, é também figura e expressão da Paixão de Cristo. É por isso que São Paulo proclama: “Não sabeis que todos nós, que fomos

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batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte” (Rm 6,3-4a)» (Mistagógica 2,6). E voltamos ao Tríduo Pascal. A Quinta-Feira Santa, pelo perdão de Jesus que, na pessoa de quem preside à santa assembleia, lava, enxuga e beija os pés dos penitentes, é sinal da reconciliação que Deus dá novamente e da comunhão de fé para quem caiu em alguma falha grave de fidelidade cristã. De fato, depois de um período de penitência, na Quinta-Feira Santa, os penitentes eram readmitidos na comunidade e, com todos os outros, voltavam a participar da Eucaristia. Tratava-se de reconciliar quem tinha caído no pecado: de ter renegado ou rompido, pelo cisma ou pela heresia, a fé professada no Batismo; ou de ter cometido um homicídio (no tempo patrístico, incluía também o crime do aborto e, em algumas zonas, igualmente o crime de ter matado alguém no serviço militar); ou de ter rompido o vínculo conjugal. Conhecemos tais pecados sujeitos à penitência pública porque se conservam as listas. O gesto de lavar os pés tocava profundamente o penitente, pelo manifesto pedido de misericórdia por parte da sua comunidade de fé, como todo participante da divina liturgia chamado a ter misericórdia de um seu irmão de fé que faltara às promessas batismais. Para todos se representava, na figura do presidente da assembleia litúrgica, a figura do humilde Jesus que se debruça sobre mim enquanto penitente, me lava, me enxuga, me põe a mão na cabeça em sinal de acolhimento, me pega na mão, me levanta, me abraça, me beija. Repete-se o gesto do Pai misericordioso do Evangelho. É como se o homem dissesse a Deus: por que é que ainda gostas de mim e me amas? E Deus, abraçando-nos, responde: «Voltaste, meu filho», enquanto enxuga as lágrimas procurando escondê-las. Sou a misericórdia. A liturgia milanesa foi de tal forma tocada pelo gesto do lava-pés que o elevou a sacramento, ou seja, fez dele um gesto de salvação deixado à comunidade cristã pelo próprio Salvador. A Quinta-Feira Santa faz memória, além disso, do gesto do dom de Jesus ressuscitado na Eucaristia, tornando-se nosso pão abençoado que nos alimenta e se torna nossa oferta espiritual, porque pão de misericórdia do coração de Cristo. O penitente estava presente na mesa de todos, que era a eucarística. Na Sexta-Feira Santa, a comunidade dos crentes faz memória do gesto supremo de Jesus de nos doar a sua vida até morrer por nós sobre uma cruz. A cruz, de fato, é o lugar da vida onde o Pai faz nascer no Filho a misericórdia pela pobre humanidade. «Perdoa-lhes!» – orava Jesus moribundo ao Pai. – «Eles não sabem o que fazem» (Lc 27

23,34), ao mesmo tempo que era ferido pela mão de todos os que amava. Toda a relação de amor deixa uma porta aberta à vulnerabilidade, ou seja, à possibilidade de ser feridos. Recordar-se, isto é, não evitar esta vulnerabilidade, é já preparar-se para o instante da misericórdia, porque fomos feitos para a vida, mesmo que, por vezes, procuremos a morte. Tudo isto é saber ceder à ternura de Cristo que, ensanguentado, na sua misericórdia vem ao meu encontro para me abraçar. O Sábado Santo recorda a descida de Jesus aos infernos, quando o Salvador levou a sua misericórdia aos nossos pais, tomando Adão e Eva pela mão para os arrastar e a todos os outros para a vida, como está figurado na Igreja de São Salvador em Cora, em Constantinopla (Istambul). No Domingo de Páscoa, a sua misericórdia expande-se sobre toda a humanidade, como os cristãos das comunidades joaninas sintetizaram no monograma da cruz fos-zoè – a cruz é luz e vida!

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II

SANTO AGOSTINHO: PREGADOR DA MISERICÓRDIA

Santo Agostinho sentiu-se pessoalmente atingido pela misericórdia de Deus, notando que esta o seguira até mesmo quando errava longe dele. Convertendo-se ao cristianismo aos trinta e três anos de idade, escreveu as Confissões, a biografia da sua conversão, que é como um cântico de ação de graças à misericórdia de Deus, que tinha estado próxima dele até mesmo quando Agostinho se tinha afastado da religião da sua mãe, Mônica. Por tal motivo, as Confissões poderiam ter como subtítulo «A misericórdia». Num sermão ao povo, Santo Agostinho confessou como ele, tendo saído do ninho antes de saber voar, foi tocado pela misericórdia divina para ser de novo levado ao ninho. Ele escreveu cheio de comoção: «Ousava procurar [nas Sagradas Escrituras] soberbamente o que pode encontrar somente quem é humilde. Como vós sois agora felizes, com tanta serenidade, com tanta segurança aprendei, vós todos que sois ainda pequenos no ninho da fé, e recebei o alimento espiritual! Eu, pelo contrário, infeliz, pensando-me capaz de voar, abandonei o ninho e dele saí antes de saber voar. O Senhor, porém, na sua misericórdia, para que não fosse pisado pelos que passam e morresse, recolheu-me e voltou a colocarme no ninho» (Sermão 51, 5,6). Santo Agostinho apercebeu-se de que Deus se dá a conhecer precisamente na misericórdia: «Deus expande a sua misericórdia sobre aqueles que o conhecem e a sua justiça sobre os retos de coração; expande a sua misericórdia não só pelos que já o conhecem, mas também para que o conheçam; não expande a sua justiça com a qual justifica o ímpio por serem retos de coração, mas para que também sejam retos de coração» (O Espírito e a letra 7,11). O bispo de Hipona, tomando consciência de que a misericórdia pertence a qualquer homem quer como necessidade, quer como capacidade não alienável, falou dela em todos os seus escritos, sempre e cada vez que se apresentava a oportunidade, particularmente no seu comentário aos cento e cinquenta Salmos, aos quais recorria continuamente. Falava da misericórdia de Deus e da misericórdia do homem, nunca 29

saciado de receber piedade. Como bispo, explicou aos seus fiéis a misericórdia que perdoa e a misericórdia que socorre a necessidade do pobre dando, como intelectual que era, uma atenção especial à misericórdia pelo esforço de quem procura brechas de verdade para poder continuar a viver, «obrigado» – como Santo Agostinho disse de si mesmo – «a fazer caminho através de sendas intrincadas e obscuras» (A Trindade I, 3,6). O homem intelectual, por causa de certos «remorsos da razão», como ele chama aos raciocínios dos quais não consegue sair, vive muitas vezes nas trevas do erro, sempre na esperança daquele raio de luz que, para ele, é a misericórdia. Santo Agostinho era um intelectual e, como tal, experimentou as falsidades que a razão gosta de arranjar e o esforço de alcançar os enganos dos pseudoargumentos. «Quanto são preferíveis» – deixou escrito nas Confissões – «as fábulas dos mestres de escola e dos poetas àqueles devaneios! [...] Através daqueles degraus fui atraído até os abismos infernais, febricitante, atormentado pelo ardor da verdade, e tu, meu Deus, reconheço-o, tiveste misericórdia de mim quando ainda não te conhecia. Ao mesmo tempo que te procurava [...] Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima e mais acima do que a minha parte mais elevada» (Confissões 3, 6,11). A propósito da misericórdia que se deve ter para com os intelectuais, que infelizmente caem no engano da razão, Santo Agostinho deixou escrito a propósito de um pedido de condenação contra ele dirigido pelos intelectuais maniqueus: «Somos duros convosco [aqui dirige-se aos maniqueus, intelectuais cristãmente desviados, daquele tempo], vós que não sabeis com que esforço se tem de encontrar a verdade, e como dificilmente se evitam os erros... Quantos gemidos são necessários para chegar a entender, ainda que minimamente [...] como são duros convosco os que nunca foram enganados pelo erro [...] mas eu, pelo meu lado, não o posso ser» (Contra a letra do fundamento 2-3). Na escola de Santo Agostinho, que foi literalmente tocado pela experiência da misericórdia de Deus e influenciou os seus contemporâneos, pode compreender-se mais profundamente a riqueza contida na palavra “misericórdia”. Nela, o bispo de Hipona vê contido todo o cristianismo de Jesus e o dos cristãos. Com a palavra «coração», ele indica o homem, o homem na sua existência concreta, orientado ou não para a realização do seu ser. Para Santo Agostinho, o homem identifica-se com o seu coração, ou seja, «com o seu amor», como precisou na Cidade de Deus. Não é o homem das abstrações conceptuais dos filósofos, mas o homem como existência histórica vivente, filho da 30

herança de Adão e da graça de Cristo. Para Agostinho, colocar-se o problema do coração humano é o mesmo que colocar-se o problema do homem enquanto tal; e não só. Indagar no coração do homem equivale a deitar um olhar na profundidade do seu mistério que só se atinge na misericórdia. Nos seus discursos ao povo como nos seus escritos, Santo Agostinho é literalmente arrebatado pelas expressões da Escritura que descrevem o homem como uma profundidade cujo coração é um abismo. Por tal motivo, muitos estudiosos do pensamento agostiniano veem na palavra «coração» o termo-chave de toda a sua filosofia e teologia. Segundo este santo bispo, o coração é o homem no seu íntimo mais profundo, é como a casa do homem, a sala secreta onde ele gosta de habitar, de repousar e de se entreter. É o ângulo onde o homem gosta de conversar com o homem, na eterna procura de colher uma palavra sobre si próprio: quem é, de onde vem, para onde vai, onde se pode encontrar com o seu Deus. Mas descer ao coração, àquele ângulo secreto de nós mesmos, é querer descer a um abismo profundo aonde nunca ninguém desceu nem poderá descer. Permanece de fato impenetrável ao próprio homem o seu coração. Todavia, Santo Agostinho, embora permanecendo perante o coração humano como diante de um sacrário, percebe que o homem quer olhar para dentro dele e procura o caminho para aí chegar, a luz para aí penetrar. Tal luz vem-lhe da fé pela qual Deus penetra o abismo da profundidade do coração humano. Ao seu olhar tudo é visível, qualquer profundidade revela as suas partes mais remotas. O homem percebe então que, para lançar um olhar para o mais profundo de si mesmo, deve olhar para dentro de si com a luz de Deus, ou seja, com a sua misericórdia. Ele descobre que Deus leva em si o segredo do mistério do coração do homem e que colocou no seu coração a sua demora. De fato, com a sua presença, Deus cura o coração contrito, acolhe a oferta do coração humilde e o homem toma consciência daquela voz que Deus escuta, daquela pureza de coração onde Deus é visto e «encontra aquele Deus do qual afastar-se é cair, ao qual dirigir-se é ressurgir, no qual permanecer é ser salvos, ao qual regressar é renascer, no qual habitar é viver» (Solilóquios I, 1,3). Por saber que a miséria é conatural ao homem desde o nascimento, trazendo em si aquela rebelião contra Deus dos progenitores da humanidade, que o coloca nos seus dias numa condição habitual de miséria, sempre exposto ao perigo de se enganar e de morrer, grávido de indigência abissal, nele determina uma permanente condição de mendicidade. 31

Ele só espera que algum coração perceba e não o deixe morrer. A sede do seu coração é, por isso, a misericórdia pela sua debilidade congênita nunca inteiramente conhecida, essa misteriosa debilidade que envolve de medo inconsciente as batidas do pulsar do coração do homem. Quando a misericórdia invade o coração, o homem vê que, naquele momento, Deus está nele presente e sai de si mesmo: aproxima-se de Deus, dos outros e do seu próprio mistério. A misericórdia torna-se, assim, juntamente com a verdade e com a graça de Cristo, um dos caminhos através dos quais Deus se aproxima do mundo humano nas suas raízes mais profundas. Em Cristo, os três caminhos encontram-se, permitindo ao homem que se aproximou de Cristo que os caminhos de Deus possam converter-se em caminhos do homem. Santo Agostinho, no seu comentário aos Salmos, deixou a síntese mais vasta, atraente e fascinante da experiência da misericórdia. Esta se manifesta na consolação que leva ao coração humano: sentes-te socorrido, sentes-te salvo, ela enche-te de uma doçura interior que te arranca as lágrimas. É uma misericórdia que Deus nunca consegue guardar, por isso ela encontra-se difusa como chuva fecundante no meio de todas as gentes e idades do homem. Melhor dizendo, o tempo da vida humana é propriamente o tempo da misericórdia de Deus. Graças a tal misericórdia, há uma ponte entre Deus e o homem, nunca sujeita à quebra total temporal. De fato, Deus tem misericórdia do justo e do pecador, está sempre perto de quem tem o coração contrito e não abandona a si mesma a fragilidade humana em perigo de se desintegrar. Por esse motivo, a pregação da Igreja tem como seu sujeito específico a misericórdia divina. O homem é levado a pedir a Deus misericórdia, e até a exigi-la. E pela misericórdia Deus faz-se devedor do homem, que se torna piedoso cobrador da sua misericórdia. A misericórdia do homem para com o seu semelhante nasce, na consciência cristã, da experiência do dom da misericórdia recebida de Deus. Por ela, o homem juntase a qualquer outro homem não excluindo nunca ninguém, e não discutindo o tempo nem a oportunidade de socorro. Com a misericórdia, o homem aprende a sentir-se unido a outro homem, não por vínculos de nascimento e de sangue, mas pela misericórdia. Santo Ambrósio, o mestre de Santo Agostinho, escreveu: «O que nos faz próximos uns dos outros não é a parentela, mas a misericórdia» (Exposição sobre o Evangelho de São Lucas 7,84). Da ligação à misericórdia, que une os homens com vínculos novos, nascem as obras de misericórdia, as tais que produzem justiça. O homem rico de misericórdia, 32

quando não tem nada para dar ao pobre, dá-lhe o seu amor; o seu coração sente-se unido àquele que jaz na miséria. Em tal experiência, o homem conhece do seu semelhante a melhor parte, aquela humanidade não desfigurada pelo mal e, no seu semelhante, reconhece e recupera a sua própria humanidade. Como conclusão, a misericórdia é, para Santo Agostinho, uma das maiores mediações que permite ao homem conhecer-se a si mesmo, o mistério da própria humanidade que o liga aos seus semelhantes e o une a Deus. A compaixão adquire por isso também uma valência antropológica. Ela dá uma indicação para se compreender quem é o homem. Posta ao lado da verdade e da liberdade, a misericórdia constitui para Santo Agostinho o eixo da compreensão cristã do homem. Ele sentiu a misericórdia como um bem comum, de todos; como um bem do homem do qual, se dela é privado, é depauperado do seu bem que é a relação com Deus e com o seu semelhante. Por isso, a quem lhe pedia o que desejava, Santo Agostinho respondia que a sua esperança era poder cantar eternamente e com todos a infinita misericórdia de Deus, especialmente com todos aqueles com quem tinha partilhado a existência. A oração, que encerra o livro d’As duas almas contra os maniqueus, sintetiza de modo admirável o seu pensamento/proposta antropológica sobre a misericórdia: «Ó Deus grande, ó Deus onipotente, ó Deus bondade suprema, prostro-me suplicante perante ti, escuta a minha oração. Agora que experimentei a tua misericórdia, não permitas que aqueles com quem vivi desde a minha meninice, como se tivéssemos um só coração, sejam separados de mim no culto a ti devido» (I, 5.24).

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Textos escolhidos Sobre o significado do termo Desejo transmitir-vos, queridos fiéis, alguns pensamentos sobre o valor da misericórdia. Por muito que tenha experimentado que estejais disponíveis para toda a boa obra, é todavia necessário que sobre este argumento vos faça um sermão bastante empenhado. Vamos a isso: o que é a misericórdia? Não é outra coisa senão encher o coração de um pouco da miséria [dos outros]. A palavra «misericórdia» deriva da dor que se sente pelo «miserável». Há duas palavras contidas nesse conceito: miséria e coração. Quando o teu coração é tocado e atingido pela miséria dos outros, então isso é misericórdia. Prestai atenção, portanto, meus irmãos: todas as boas obras que fazemos na vida estão verdadeiramente relacionadas com a misericórdia. Por exemplo: se tu deres pão a quem tem fome, dá-lho com a participação do coração, não com chalaça, para evitar tratar um homem semelhante a vós como se fosse um cão. Portanto, quando fizeres um ato de misericórdia, comporta-te [assim]: se deres um pão, procura sentir-te participante da pena de quem tem fome; se deres de beber, participa da pena de quem tem sede; se deres roupa a alguém, partilha a pena de quem não tem o que vestir; se deres hospitalidade, partilha a pena de quem é peregrino; se visitares um enfermo, procura sentir pena por quem está doente; se fores a um funeral, sente o luto; e se levares a paz aos litigantes, pensa no afã de quem tem uma contenda. Se amarmos a Deus e ao próximo, não podemos fazer nada sem sentir pena no coração (Sermão 358A).

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A misericórdia no falar Com a língua rezamos a Deus, com ela propiciamo-lo, com ela louvamo-lo, com ela, bem harmonizados, cantamos a Deus, com ela todos os dias usamos de misericórdia ao falar com os outros ou ao darmos conselhos… Pensai no seguinte: Coloquei um freio na minha boca, até que o ímpio esteja em frente de mim. À tua frente está um impudente que te insulta, diz coisas do outro mundo. Coloca um freio na tua boca. Disse: Vigiarei sobre os meus caminhos para não pecar com a língua. Deixa-o dizer. Tu escuta e está calado. Uma de duas: ou ele diz a verdade ou diz mentiras. Se disser a verdade, é por causa de ti. E talvez isto seja misericórdia, porque, quando tu não quiseres ouvir o que fizeste, Deus, que tem cuidado de ti, através do outro diz-te o que fizeste, para, pelo menos confundido pela vergonha, ires finalmente à procura de remédio. E nesse caso nunca pagues o mal com o mal. Porque não sabes quem é que te fala por meio de alguém. Por isso, se alguém te envergonhar ao dizer-te algo que fizeste, reconhece teres encontrado misericórdia ou pensando que já te tinhas esquecido ou concluindo que isso te foi dito para te envergonhares... Não penses parecer santo se ninguém te puser à prova. Serás santo quando não te perturbares perante os insultos, quando sentires pena por quem te ofende, quando não te preocupares por aquilo que sofres, mas lamentares quem te fizer sofrer. Tudo isto é misericórdia. Lamentas-te porque ele também é teu irmão, porque é teu membro. Ele virou-se contra ti, atormenta-se e fica doente. Não te alegres por ele se sentir mal. Mas alegra-te por teres a tua consciência tranquila. Quanto ao resto, sente pena. Porque também tu és homem. E isto é misericórdia de Deus. Assim o Senhor, com a sua misericórdia usual, nos concederá, pelas vossas orações, poder aprofundar (como falar, como reagir), porque isto é muito difícil. Repara que agora é Deus Pai que te fala: «Eu te digo, ó alma que eu formei, ó homem que eu criei, eu te digo: és um ser finito. Que significa ser finito? Significa ser ferido. Mas eu enviei-te alguém que te procurasse, enviei-te alguém que caminhasse contigo, enviei-te alguém que te perdoasse. Ele caminhou com os pés e perdoou com as mãos. Por isso, quando se levantou após a ressurreição, mostrou as mãos, o lado e os pés: as mãos, com que concedeu o perdão dos pecados; os pés, com que anunciou a paz aos marginalizados; o lado, de onde brotou o preço dos redimidos». Portanto, em resumo, o fim da lei é Cristo para a justificação de todo aquele que crê. Faz-me, Senhor, conhecer o meu fim.

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Mas eis que o teu fim já te foi dado a conhecer. E como foi que se conheceu? O teu fim foi pobre, o teu fim foi humilde, o teu fim foi esbofeteado, o teu fim foi escarnecido, contra o teu fim foram ditos falsos testemunhos. E eu pus um freio à minha boca até que o ímpio esteja à minha frente. Ele para ti se fez caminho. Quem disser permanecer em Cristo, deve comportar-se como Ele se comportou. Ele é o caminho. Agora caminhamos, não temos medo, não nos perdemos. Não caminhamos fora da estrada. Porque foi dito: Puseram obstáculos sobre o meu caminho, armadilharam-me o caminho. Eis então a misericórdia: para que tu não caias nas armadilhas, tens como caminho a própria misericórdia (Sermão 16A).

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A doçura da misericórdia Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia. Explica a causa pela qual deve ser escutado: porque a misericórdia de Deus é doçura. Mas não seria mais lógico dizer: Escuta-me, Senhor, a fim de que para mim seja doce a tua misericórdia? Por que motivo diz: Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia? Já sublinhou por outras palavras a doçura da misericórdia do Senhor quando, no meio da tribulação, dizia: Escuta-me, Senhor, porque sofro. E verdadeiramente, dizendo: Escuta-me, Senhor, porque sofro, explica a causa pela qual implora ser escutado. Mas ao homem que jaz no meio da tribulação não pode não parecer doce a misericórdia de Deus. Da doçura da misericórdia de Deus notai o que noutro lugar diz a Escritura: Como a chuva no sequeiro, assim brilha a misericórdia de Deus na tribulação. Aqui fala em brilho; ali diz doce. O pão não poderia ser doce se não fosse precedido pela fome. Portanto, quando o Senhor permite ou faz com que nós nos encontremos na tribulação, também então é misericordioso. Não nos nega o alimento, mas acende-nos o desejo. Por que, então, diz agora: Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia? Escuta-me sem mais acrescentar: encontro-me numa tribulação tão grande que é doce para mim a tua misericórdia. Por isso tu diferias a tua ajuda para que me fosse doce. Ora bem, agora já não há mais atrasos: a minha tribulação chegou ao extremo; a medida do sofrimento está cheia. Venha, portanto, a tua misericórdia para me beneficiar. Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia. Segundo a multidão das tuas misericórdias olha para mim, mas não segundo a multidão dos meus pecados (Sermão 2,1).

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A misericórdia é um gesto de amor O homem que tem dois filhos é Deus que tem dois povos: o filho mais velho é o povo dos judeus, o mais novo é o povo dos pagãos. As substâncias recebidas por parte do Pai são a alma, a inteligência, a memória, o engenho e todas as faculdades que Deus nos deu para o conhecer e adorar. Tendo recebido este patrimônio, o filho mais novo viajou para um lugar distante, ou seja, passou a esquecer-se do seu Criador… Compreendeu finalmente a que condição ficou reduzido, o que tinha perdido, quem tinha ofendido e em poder de quem se sujeitara e voltou a si mesmo; primeiro voltou a si mesmo e depois voltou para o pai. Talvez tenha dito: o meu coração abandonou-me; por isso era necessário que primeiro voltasse a si mesmo e assim conhecesse andar longe do pai. Levanta-se e regressa; de fato estava parado lá aonde se encontrava. O pai vê-o ao longe e vai ao encontro dele… E tu perdoaste a impiedade do meu coração. Oh, como está próximo o perdão de Deus de quem se confessa pecador! Deus de fato não está longe daqueles que têm o coração contrito… Enquanto o filho se dispunha a dizer ao pai o que andava a repetir: Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e lhe direi, porque o pai conhecia vagamente a resolução do filho, correu ao encontro dele. O que significa «correu ao encontro» senão conceder-lhe o perdão antecipadamente? Estando ainda longe – diz o Evangelho –, o pai, cheio de misericórdia, correu ao seu encontro. Porque se moveu de misericórdia? Porque o filho estava já esgotado pela miséria. Correu ao encontro dele e lançou-se-lhe ao pescoço, lançou-lhe o braço ao pescoço. O braço do Pai é o Filho; deu-lhe a possibilidade de levar Cristo: este peso não oprime, mas eleva. O meu jugo – disse Cristo – é leve e o meu peso suave. O pai inclinara-se sobre o filho ereto; inclinado sobre ele, não permitia que caísse de novo… Pelo fato de o pai se lançar ao pescoço do filho, ele levantou-o, não o oprimiu; honrou-o, não o onerou. De que modo, porém, o homem é capaz de levar Deus, senão porque é Deus que o leva quando é elevado? O pai ordena que tragam a melhor veste que Adão tinha perdido, pecando. Depois de já ter acolhido o filho pelo perdão e depois de o ter beijado, ordena que lhe tragam a veste, ou seja, a esperança da imortalidade mediante o batismo. Ordena que lhe ponham o anel, isto é, o penhor do Espírito Santo e as sandálias nos pés para a prontidão de anunciar a mensagem evangélica da paz, para que fossem belos os pés de quem faz o

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bom anúncio do bem. E é o que Deus faz através dos seus servos, isto é, através dos ministros da Igreja. Será que dão a veste, o anel e as sandálias da sua propriedade? Estes apenas devem desempenhar um serviço, realizar um dever; aqueles bens dá-os aquele de cujo seio misterioso e de cujo tesouro saem… Tudo o que é meu – diz o Pai ao filho mais velho – é teu. Se fores promotor de paz, se te reconciliares, se te alegrares pelo regresso do teu irmão, se o nosso banquete não te entristecer, se não ficares fora de casa, então é porque já voltaste dos campos, tudo o que é meu é teu. Mas devemos fazer festa e alegrar-nos, porque Cristo morreu pelos ímpios e ressuscitou. Isto é o que significa a afirmação: Porque o teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado (Sermão 112).

❈ Volta a ti: e, depois de teres entrado em ti, dirige-te para as alturas, não permaneças em ti. Em primeiro lugar, regressa a ti do mundo exterior, e a seguir entrega-te àquele que te criou, e que te procurou quando estavas perdido; encontrou-te fugitivo; converteu-te a si mesmo, tu que lhe tinhas virado as costas. Volta a ti, portanto, e move-te para aquele que te criou. Imita aquele filho mais novo, porque podes ser tu... Entra em ti mesmo e diz: levantar-me-ei. Portanto, tinha caído. Levantar-me-ei – disse – e irei ter com meu Pai. Aquele que se encontrou consigo mesmo, eis que renuncia a si próprio. De que modo renuncia? Escutai: Dir-lhe-ei: pequei – disse – contra o céu e contra ti. Renuncia a si. Não sou digno de ser chamado teu filho... Escuta também o Apóstolo Paulo a renegar-se a si mesmo: Quanto a mim, só me gloriarei na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo por meio da qual o mundo foi crucificado para mim e eu para o mundo. Ouve-o a insistir na negação de si. Disse: Já não sou eu que vivo. É clara a sua renúncia ao eu; mas depois vem com o testemunho triunfal de Cristo: mas é Cristo que vive em mim. Que significa então “renega-te”? Não ser tua a tua própria vida. E que significado tem «não ser tua a tua própria vida»? Não fazer a tua vontade, mas a vontade daquele que mora em ti. Volta a ti: e, uma vez reentrado em ti, volta-te para o alto, não fiques em ti. Primeiramente volta a ti do mundo exterior, e depois entrega-te a ti mesmo àquele que te criou, e que te procurou quando estavas perdido; encontrou-te a ti, fugitivo; converteu-te a si mesmo, a ti que lhe tinhas 39

voltado as costas. Volta a ti, portanto, e move-te para ele que te criou. Imita aquele filho mais novo, porque talvez sejas tu... Reentrando em si mesmo, disse: levantar-me-ei. Portanto, estava caído. Levantar-me-ei – disse – e irei ter com meu Pai. Só renuncia a si mesmo quem se encontrou a si mesmo. De que modo renuncia? Escutai: E dir-lhe-ei, pequei – disse – contra o céu e contra ti. Renuncia a si. Já não sou digno de ser chamado teu filho... Escuta também o Apóstolo Paulo a renegar-se a si mesmo: Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo por meio da qual o mundo foi crucificado para mim e eu para o mundo. Escuta-o a insistir no renegamento de si. Disse: Já não sou eu que vivo. É clara a sua renúncia ao eu; mas logo depois segue o testemunho triunfal de Cristo: mas é Cristo que vive em mim. Que quer então dizer «renega-te»? Não ser tua a própria vida. E que quer dizer «não ser tua a própria vida»? Não fazer a tua vontade, mas a vontade daquele que vive em ti. Cristo nossa misericórdia (Sermão 330).

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Cristo é a misericórdia Cantemos, pois, irmãos, cantemos: «Bendigo ao Senhor que me aconselha» (Sl 16,7). Ele deu-nos o dom da natureza, o dom da inteligência: restaurou a natureza, restaurou a inteligência. O piedoso samaritano que desceu para nos socorrer fez o curativo das nossas feridas, lavou-as com vinho – e sabemos com que vinho –, dispensou todas as curas à criatura, levou-a para a estalagem mais próxima deixando-a ao cuidado de quem aí vivia, usou de misericórdia para com a natureza como para com a inteligência. A estalagem é a Igreja; quem nela vive é o Espírito Santo. Ele retirou do seu saco lacerado a moeda com que pagou por nós ao hospitaleiro miserável; este, recebida a moeda, fez os curativos com o seu azeite, ungiu as feridas da natureza enferma com o seu unguento, e curou-a; deitou fogo no seu azeite para iluminar as nossas trevas e fez luz na nossa inteligência. Se não tiverdes esta fé, para vós não existirá o samaritano, e vós morrereis por causa da vossa ferida, por terdes recusado a mão que cura (Sermão 365).

❈ O Senhor fez isto aos judeus, quando estes lhe levaram uma mulher adúltera e lhe estenderam um laço para o experimentarem, acabando eles mesmos por cair nessa cilada. Disseram: Esta mulher foi surpreendida em adultério; Moisés manda lapidar tais mulheres; mas que pensas tu? Tentaram capturar a sapiência de Deus numa dupla armadilha: se houvesse mandado executá-la, logo aí perderia a fama da mansidão; mas, se houvesse mandado libertá-la, poderiam difamá-lo como violador da lei. Por isso, respondeu sem afirmar: executai-a, ou sequer: libertai-a, mas dizendo: Quem se achar sem pecado, atire-lhe a primeira pedra. É justa a lei que ordena matar uma adúltera; mas esta lei justa tem de ter ministros inocentes. Vós que acusais aquela que arrastais, pensai também quem vós sois. Eles, logo que ouviram tais palavras, começaram a afastar-se um atrás do outro. Apenas ficou a adúltera e o Senhor, permaneceu aquela que se encontrava ferida e o médico, ficou a grande miséria e a grande misericórdia. Aqueles que a tinham arrastado envergonharam-se, mas não pediram perdão; aquela que por eles foi arrastada mostrou estar envergonhada e foi curada. Disse-lhe o Senhor: Mulher, ninguém te condenou? E ela: Ninguém, Senhor. E Ele: Também Eu não te 41

condeno; vai, e daqui em diante não voltes a pecar. Terá Cristo agido contra a sua lei? Na verdade, o seu Pai não dera a Lei sem o Filho. Se o Céu e a Terra e todas as coisas que neles vivem foram feitos por seu intermédio, como poderia ser a Lei escrita sem o Verbo de Deus? Portanto, Deus não age contra a sua lei, e nem sequer o imperador o faz, quando concede indulgências aos réus confessos. Moisés é o ministro da lei, mas Cristo é o promulgador da lei; Moisés lapida como juiz, Cristo manifesta indulgência como rei. Deus teve piedade da mulher pela sua grande misericórdia, como aqui o salmista reza, como pede, como exclama e geme. Mas isto não o quiseram fazer os que apresentavam ao Senhor aquela adúltera: reconheceram pelas palavras do médico as suas feridas, mas não pediram nenhum remédio ao médico. São assim muitos que não se envergonham de pecar, mas se envergonham de fazer penitência. Ó incrível loucura! Não te envergonhas da ferida e envergonhas-te da ligadura da ferida? Não será ela mais fétida e pútrida quando fica nua? Entrega-te, portanto, ao médico, converte-te e exclama: Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim. E todos saíram da cena. Somente ficaram Ele e ela; ficou o Criador e a criatura; ficou a miséria e a misericórdia; ficou ela consciente do seu pecado e Ele que lhe perdoava o pecado. E é mesmo isso o que Ele, inclinado, escrevia na terra. De fato, escreveu na terra. Quando o homem pecou, foi-lhe dito: Tu és terra. Por isso, ao conceder o perdão à pecadora, deu-lho escrevendo na terra. Dava-lhe o perdão, mas, ao dá-lo, erguendo o seu rosto em direção a ela, disse-lhe: Ninguém te lapidou? E ela não respondeu: «Por quê? Que fiz eu, Senhor? Acaso pratiquei algum mal?». Não respondeu assim, mas exclamou: Ninguém, Senhor. Ela acusou-se. Os outros não podiam apresentar as provas e retiraram-se. Porém, ela confessou; o seu Senhor não ignorava a culpabilidade, mas procurava a fé e a confissão. Ninguém te lapidou? E ela: Ninguém, Senhor. Ninguém, para confessares o teu pecado; Senhor, para esperares o perdão. Ninguém, Senhor. Reconheço ambas as coisas: sei quem és e sei quem sou. E perante ti o confesso. De fato, acabei de ouvir: Celebrai o Senhor, porque Ele é bom. Reconheço aquele que confesso, reconheço a tua misericórdia. Ela disse: Vigiarei os meus caminhos para não pecar com a língua. Eles, agindo com engano, pecaram; esta, confessando, encontrou o perdão. Ninguém te lapidou? E ela: Ninguém. E basta. Ele novamente põe-se a escrever. Duas vezes escreveu, bem o ouvimos, duas vezes escreveu: a primeira foi para dar o perdão, depois 42

para renovar os preceitos. Na verdade, estas duas coisas também se fazem quando nós recebemos o perdão. O imperador assinou. Mas, como as formalidades continuam, é como se se renovassem os preceitos. E são os mesmos com que na primeira leitura ouvimos o Apóstolo, que nos manda praticar a caridade. Foi o que ouvimos na primeira leitura. Sobre este argumento, o próprio Senhor diz: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças; e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas (Sermão 16A).

❈ Repara que agora é Deus Pai quem te fala: «Eu te digo, ó alma que Eu formei, ó homem que Eu criei, Eu te digo: és um ser finito. Que significa: ser finito? Significa ser ferido. Mas eu enviei-te alguém que te procurasse, enviei-te alguém que caminhasse contigo, enviei-te alguém que te perdoasse. Ele caminhou com os pés e perdoou com as mãos. Por isso, quando se levantou após a ressurreição, mostrou as mãos, o lado e os pés: as mãos, com que concedeu o perdão dos pecados; os pés, com que anunciou a paz aos marginalizados; o lado, de onde brotou o preço dos redimidos». Portanto, em resumo, o fim da lei é Cristo para a justificação de todo aquele que crê. Faz-me, Senhor, conhecer o meu fim. Mas eis que o teu fim já te foi dado a conhecer. E como foi que se conheceu? O teu fim foi pobre, o teu fim foi humilde, o teu fim foi esbofeteado, o teu fim foi escarnecido, contra o teu fim foram ditos falsos testemunhos. E eu pus um freio à minha boca até que o ímpio esteja à minha frente. Ele para ti se fez caminho. Quem disser que permanece em Cristo, deve comportar-se como Ele se comportou. Ele é o caminho. Agora caminhamos, não temos medo, não nos perdemos. Não caminhamos fora da estrada. Porque foi dito: puseram obstáculos sobre o meu caminho, armadilharam-me o caminho. Eis então a misericórdia: para que tu não caias nas armadilhas, tens como caminho a própria misericórdia (Sermão 16A).

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Os cristãos são membros do Corpo de Cristo misericordioso Quando Cristo fala, fala apenas como Cabeça, que é Ele mesmo, o Salvador, nascido de Maria Virgem; fala na pessoa do seu Corpo, que é a santa Igreja espalhada por todo o mundo. Também nós estamos no seu Corpo, se a nossa fé nele for sincera, a nossa esperança segura e a nossa caridade ardente; estamos no seu Corpo, e somos seus membros, e por isso somos nós a falar, como disse o Apóstolo: Nós somos os membros do seu Corpo; conceito que o Apóstolo repete em muitas passagens. Se disséssemos que estas não são palavras de Cristo, também não seriam estas palavras de Cristo: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? No entanto, também lês naquele salmo: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Estão longe da minha salvação as palavras das minhas culpas; assim também como quem lê: Em frente de mim estão os meus pecados, aí encontras: as palavras das minhas culpas. Dado que certamente Cristo é sem pecado e sem culpa, devemos contestar que as suas [últimas] palavras sejam as mesmas deste salmo? Seria muito incompreensível e contraditório que este salmo não se aplicasse a Cristo, dado que nele encontramos tantas referências claras à sua Paixão, quase como lá se lesse o Evangelho. Lemos de fato nele as palavras: Dividiram as minhas vestes e sobre o meu manto deitaram sortes. E por que é que o mesmo Senhor, do alto da cruz, pronunciou com a sua boca o primeiro versículo deste salmo, quando disse: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Que quis dar-nos a compreender, senão que todo aquele salmo se referia a Ele, enquanto Ele mesmo lhe pronunciava o início? Não pode, portanto, haver dúvida de que as palavras que se seguem, quando disse: As palavras dos meus pecados, são a voz de Cristo. E donde derivam então os pecados, senão do Corpo, que é a Igreja? Portanto quem fala é o Corpo e a Cabeça de Cristo. Porque é que fala como se fosse um só? Porque serão, disse, dois numa só carne. Este é um grande mistério, acrescenta o Apóstolo, e eu digo-o em relação a Cristo e à Igreja. Também é ainda Ele a falar no Evangelho respondendo aos que o questionavam sobre o repúdio da esposa: Então não lestes que Deus no princípio os fez homem e mulher, e o homem abandonará o pai e a mãe e unir-se-á à sua esposa, e os dois serão uma só carne? Portanto, não são dois, mas uma só carne. Se Ele mesmo disse já não são dois, mas uma só carne, que há de estranho que exista uma só carne, uma só língua e as mesmas palavras também aparecem como uma só carne acerca da Cabeça e do Corpo?

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Escutamos, portanto, Cristo enquanto é um, mas todavia escutamos a Cabeça como Cabeça, e o Corpo como Corpo. Não se dividem as pessoas, mas distingue-se a dignidade; porque a Cabeça salva, ao passo que o Corpo é salvo. Manifeste a Cabeça a misericórdia, chore o Corpo a sua miséria. À Cabeça compete purificar, ao Corpo confessar os pecados; uma só, todavia, é a voz, onde não estiver escrito que é o Corpo que fala, e quando é a Cabeça; mas nós, ao ouvir a voz, fazemos a distinção, enquanto Ele fala como se fosse um só. Por que não deveria dizer os meus pecados, aquele que disse: Tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; fui peregrino e não me recebestes; estive doente e prisioneiro e não me fostes visitar? Certamente o Senhor nunca esteve na cadeia. Por que não diria isto aquele que, ao serlhe questionado: Quando foi que te vimos com fome e com sede, ou na cadeia e não te assistimos?, respondeu, falando em nome do seu Corpo: Quando o não fizestes a um destes meus pequeninos, foi a mim que não o fizestes? Por que não deveria dizer: Perante os meus pecados, aquele que disse a Saulo: Saulo, Saulo, por que me persegues? E, no entanto, Ele no Céu já não sofria nenhuma perseguição. Mas do mesmo modo em que lá a Cabeça falava pelo Corpo, assim também aqui a Cabeça diz as palavras do Corpo, enquanto ouvis ainda a voz da Cabeça. Ora, até mesmo quando ouvirdes as palavras do Corpo, não separeis a Cabeça; nem também quando ouvirdes as palavras da Cabeça não separeis o Corpo; porque não somos dois, mas uma só carne (Comentário ao Salmo 37).

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As obras de misericórdia Ele (Deus) será o porto onde terminarão as nossas fadigas: veremos Deus e o louvaremos. Então não mais se dirá: levanta-te, trabalha, veste os servos, veste-te, enfeita-te de púrpura, distribui o alimento aos escravos, fica atento a que a luzerna não se apague, sê diligente, levanta-te de noite, abre a mão ao pobre, trabalha a roca e põe o fio do novelo no fuso. Já não haverá obras impostas pela necessidade onde já não há nenhuma necessidade. Não existirão mais as obras de misericórdia, porque não haverá miséria alguma. Não deverás partir o pão ao pobre onde ninguém é mendigo. Não deverás hospedar o peregrino onde todos vivem na sua pátria. Não deverás visitar os enfermos onde todos são eternamente sãos. Não deverás vestir o nu onde todos estão revestidos de luz eterna. Não deverás enterrar os mortos onde todos viverão sem fim (Sermão 37).

❈ Não dividem o pão com quem tem fome, não vestem o nu, não hospedam o peregrino, não visitam o enfermo, não reconciliam os litigantes, não enterram os mortos: tudo isto são obras impostas pela misericórdia, ao passo que lá em cima não existirá nenhuma miséria em favor da qual se exerce a misericórdia (Exposição do Salmo 148).

❈ Às almas que têm sede de Vós e que aparecem aos vossos olhos separadas do mar (do mundo) por outra vocação, Vós as regais com uma água misteriosa e doce, para que a «terra» dê o seu fruto. E, então, quando Vós, seu Dono e seu Deus, o ordenais, a nossa alma germina em obras de misericórdia, conformes à sua própria condição, amando o próximo, ajudando-o nas necessidades materiais. Esta «terra» (a alma misericordiosa) contém em si esta semente de compaixão, conforme for a sua semelhança com o próximo, porque é o sentimento nascido da nossa miséria que nos leva a ter piedade dos que estão necessitados, na proporção em que desejaríamos que nos auxiliassem, se tivéssemos as mesmas necessidades. Devemos socorrer o próximo não somente nas coisas fáceis, semelhantes às ervas nascidas de semente, mas também obsequiá-lo com 46

uma proteção forte e vigorosa. Assim, a terra produz árvores de fruto (Confissões 13, 17, 21).

❈ Eis por que será vigorosa na terra a sua semente. Semente de uma messe futura são as obras de misericórdia. Atesta-o o Apóstolo, quando disse: Não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo o recolheremos na messe. E noutro lugar: Recordo-vos isto entre outras coisas: Quem semear pouco, pouco recolherá. Com efeito, que poder superior se poderá imaginar àquele que permitiu a Zaqueu comprar o Reino dos Céus pela distribuição de metade dos seus bens, ao passo que à viúva bastou dar duas moedinhas, para no fim ambos conseguirem igualmente alcançá-lo? Que vigor maior que o de dar o mesmo valor, em ordem ao Reino dos Céus, ao tesouro do rico e ao copo de água fresca dado pelo pobre? Há pessoas, é verdade, que se dedicam às obras de misericórdia com intenções terrenas, ou seja, pretendendo do Senhor uma recompensa material ou procurando agradar aos homens; mas só será abençoada a estirpe dos homens retos. Quer dizer, serão abençoadas as obras daqueles para os quais é bom o Deus de Israel, porque esses são retos de coração, e ter um coração reto significa não resistir a Deus quando açoita salutarmente e acreditar nele naquilo que promete. Não serão assim as obras de quem tem o pé vacilante e incerto ou o passo irregular (como se canta noutro salmo), nem aquelas [obras] de pessoas que invejam os pecadores vendo-os em paz e temem que sejam vãs as próprias obras boas, pelo fato de que não lhe alcançam a recompensa caduca que esperavam. O homem temente a Deus de que fala o salmo, mediante a conversão do coração, erige-se como templo santo de Deus, e não aspira à glória humana nem é ávido de riquezas terrenas. E ainda em sua casa haverá glória e riqueza. A sua casa é o coração e dentro dele louva Deus e, rico de esperanças de vida eterna, nele demora com maiores provisões de quantas teria se, apesar das adulações das pessoas, habitasse em salões de mármore com preciosos tapetes, oprimido, porém, pelo temor da morte eterna. A justiça de tal homem piedoso é estável “in aeterno”: e esta justiça é a sua riqueza e a sua glória. Pelo contrário, a púrpura, o bisso e os lautos banquetes do ímpio passam no mesmo instante em que se gozam, e quando se chega ao fim, não existe mais nada senão gritar com uma língua queimada pelas chamas 47

e desejosa de uma gota de água que caiba na ponta de um dedo [do justo]. O Senhor Deus é misericordioso, compassivo e justo. Alegrem-se porque o Senhor Deus é misericordioso e compassivo, mas talvez temam a sua justiça. O homem feliz, que teme o Senhor e se agrada muito pelos seus preceitos, não teme nem desespera! Sê benigno, usa compaixão e faz empréstimos! De fato, o Senhor Deus será justo no sentido de que reservará um juízo severo, sem misericórdia, para quem não agiu com misericórdia. Se, ao contrário, se tratar de um homem benigno que usa compaixão e dá emprestado, Deus não o vomitará da sua boca, como a alguém que não tivesse agido com benignidade. Disse: Perdoai e ser-vos-á perdoado; dai e ser-vos-á dado. Quando perdoas, usa aquela compaixão pela qual te será perdoado também a ti; quando deres, emprestas ao próximo algo que te será restituído. É de fato verdade que com o nome de misericórdia se designa, num termo genérico, todo o ato que tenda a socorrer a miséria do próximo, todavia é digno de nota o caso em que, sem exigires dinheiro, nem prodigares-te em atividades ou trabalhos corporais, perdoas a quem pecou contra ti e assim consegues, sem gastar nada, o perdão dos teus pecados. Estas duas funções de bondade, isto é, o perdão dos pecados e a oferta alargada de benefícios, estão indicadas pelas palavras do Evangelho: Perdoai e ser-vos-á perdoado; dai e ser-vos-á dado. Quem agir desta maneira porá ordem em [vista do] juízo nos seus discursos. As próprias obras são os discursos com que será defendido no juízo: não ficará sem misericórdia, tendo ele mesmo agido com misericórdia. Não será perturbado “in aeterno”, porque, situado à direita, ouvirá a sentença: Vinde, benditos de meu Pai! Possuí o reino que vos foi preparado desde a origem do mundo. Em tal juízo, de fato, não será mencionada outra coisa senão as obras de misericórdia, e, portanto, as palavras que se ouvirão serão: «Vinde, benditos de meu Pai» (Exposição do Salmo 111).

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A misericórdia e o juízo da consciência Estas são palavras do Apóstolo: Atendei à vossa própria salvação com temor e tremor. [Mas poderíeis objetar-me]: Em que sentido devo atender a esta salvação com temor e tremor, se tenho em mim a possibilidade de atender à minha salvação?... É Deus, com efeito, que opera em vós, por isso: com temor e tremor. Porque o que um humilde obtém, um soberbo perde. Se é Deus que opera em vós, por que foi escrito: Atendei à vossa própria salvação? Porque Deus opera em nós de maneira que também nós devemos operar. Sê a minha ajuda: significa que o homem deve também operar, ao mesmo tempo que invoca ajuda. «Mas a boa vontade – diz – é minha.» Admito-o, é tua. Mas também se é tua, quem foi que a deu a ti? Por quem é suscitada? Não escuteis o que vos digo, interroga o Apóstolo: é Deus de fato – disse – que opera em vós o querer, que opera – repito – o querer, e o operar, em conformidade com a boa vontade... Vós que julgais a terra... Julga de fato um seu igual, um homem a outro homem, um mortal a outro mortal, um pecador a outro pecador. Se se pusesse perante nós aquela frase do Senhor: Quem estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra, não sucederia um terremoto para quem quer que julgue a terra? Reflitamos sobre aquela passagem do Evangelho. Os fariseus, para porem o Senhor à prova, levaram uma mulher à sua presença surpreendida em flagrante adultério. A pena por tal pecado fora estabelecida pela lei, isto é, pela lei de Moisés, servo de Deus. Com este dilema insidioso e fraudulento, os fariseus dirigiram-se ao Senhor: se Ele tivesse mandado lapidar a mulher acusada, teria agido contra a misericórdia. Se, pelo contrário, tivesse mandado fazer o que a lei proibia, teria sido acusado de ter faltado à lei... No caso da adúltera, questionou os seus interrogadores, e assim julgou os seus juízes. «Não proíbo» – disse – «de lapidar a mulher que a lei manda lapidar, mas pergunto quem a deve lapidar. Não me oponho à lei, mas procuro um executor da lei.» Por fim, escutai: «Quereis lapidá-la em conformidade com a lei? Quem estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra». Enquanto escutava as suas palavras, escrevia com o dedo na terra para ensinar a terra. Mas quando dizia aquelas coisas aos fariseus, levantou os olhos, olhou para a terra e fêla tremer. Depois, após haver falado, voltou novamente a escrever na terra. Mas eles, confundidos e a tremer, foram desaparecendo uns atrás dos outros. O terremoto que a terra sentira fê-los mudar de lugar!

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Depois de haverem partido, ficou ali apenas a pecadora com o Salvador. Ficou a enferma com o médico. Ficou a miserável com a misericórdia. E fixando a mulher, disselhe: Ninguém te condenou? E ela: Ninguém, Senhor. Mas sentia-se ainda perturbada. Os pecadores não ousaram condená-la, nem ousaram lapidar a pecadora porque, examinando-se, se encontraram como ela. Mas a mulher estava ainda em grave perigo porque estava perante aquele juiz que era sem pecado. Ninguém – disse – te condenou? E ela: Ninguém, Senhor: se nem sequer Tu me condenas, estou salva. A esta angústia silenciosa, o Senhor respondeu firme: Nem Eu te condeno. Nem Eu, embora esteja sem pecado, nem Eu te condeno. A consciência manteve quietos aqueles homens da vingança, a misericórdia leva-me a ajudar-te... Talvez desejes ser útil aos outros nas várias situações humanas e faças compras para ser útil. Para servir a justiça, não juntes dinheiro. Em primeiro lugar, sê juiz dentro de ti em teu favor. Julga-te primeiro para que, tranquilo no segredo da consciência, possas ocupar-te do outro. Volta a ti mesmo, cuida de ti, examina-te, perscruta-te. Aí quero encontrar-te juiz justo, onde não procures testemunhas. Queres proceder com autoridade para que alguém te diga em relação a outro o que tu não sabes. Primeiro julga o teu íntimo. Nada te disse a tua consciência em relação a ti? Se não o quiseres negar, disse, sim, alguma coisa. Não quero saber o que ela disse, julga-te a ti mesmo, tu que a ouviste. Disse-te o que fizeste, o que recebeste, em que pecaste. Gostaria de conhecer que sentença proferiste. Se escutaste bem, se escutaste retamente, se nessa audição foste justo, se entraste no tribunal da tua consciência, se perante ti mesmo te suspendeste ao cavalete do coração, se te serviste das severas carnificinas do temor: escutaste bem se foi assim que escutaste, e sem dúvida puniste o pecado arrependendo-te. Portanto: discutiste a causa, escutaste, condenaste. E todavia poupaste-te. Do mesmo modo escuta também o teu próximo, se te instruíste como o salmo recomenda: Instruí-vos, vós que julgais a terra… Se escutares o teu próximo como te escutas a ti, perseguirás os pecados, poupando o pecador. E se alguém, não cuidando do temor de Deus, for insensível na correção dos pecados, tu cultivarás esta [atitude], tentarás corrigir isto, com todo o esforço quererás destruir isto e eliminá-lo para que, condenado o pecado, o homem se salve. Os nomes são dois: homem e pecador. O homem foi Deus que o fez, o pecador foi o homem. Seja destruído aquilo que o homem fez, seja liberto o que Deus fez... com a disposição de 50

quem ama, com a disposição de quem quer o bem, com a disposição de quem corrige (Sermão 13,3-5.7.8).

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O Senhor dá-se ao homem com misericórdia O Senhor subiu ao Céu manifestando-se na presença dos seus discípulos. Sabemos isto, acreditamos nisto, declaramos isto. Deu dons aos homens. Que dons? O Espírito Santo. De que natureza é a pessoa que dá tal dom? Grande de fato é a misericórdia de Deus; dá um dom igual a si, porque o seu dom é o Espírito Santo, e toda a Trindade, o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus. Que nos dá o Espírito Santo? Escuta o Apóstolo: O amor de Deus – disse – foi derramado em nossos corações. De quem te vem, ó mendicante, que o amor de Deus foi derramado no coração do homem? Nós possuímos – disse – tal tesouro em vasos de barro. Por que em vasos de barro? Para que resulte que a força extraordinária da virtude vem de Deus. Por fim, depois de ter dito: O amor de Deus foi derramado em nossos corações, para evitar que cada um pensasse que o tinha de si mesmo ou que só fosse um meio de amar a Deus, logo acrescentou: por meio do Espírito Santo que nos foi dado. Portanto, para que tu possas amar a Deus, Deus demora em ti e se ama em ti, ou seja, dá-te vigor, inflama-te, ilumina-te e alivia-te pelo seu amor (Sermão 128).

❈ Escuta, pois, estas coisas, e diz com ele: Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia. Quem esconjura a grande misericórdia confessa uma grande miséria. Procurem a tua pequena misericórdia aqueles que pecaram sem o saber. Mas está escrito: Tem piedade de mim, segundo a tua grande misericórdia. Socorre-me na grave ferida com a tua grande medicina. Grave é aquilo que sofro, mas confio no Onipotente. Desesperaria pela minha gravíssima e mortal ferida, se não encontrasse um tão grande médico. Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia; e segundo a imensidão da tua piedade, cancela a minha iniquidade. As palavras: Cancela a minha iniquidade equivalem às outras: Tem piedade de mim, ó Deus. E dizendo segundo a imensidão da tua piedade, é como se dissesse segundo a tua grande misericórdia. Porque grande é a misericórdia e muitas são as misericórdias; e da tua grande misericórdia derivam as tuas muitas misericórdias. Tu observas aqueles que te desprezam por os corrigir, observas aqueles que ignoram para os instruir, observas aqueles que se confessam para os perdoares. Cometi uma culpa sem o saber? Alguém 52

que fizera algumas coisas e cometera muitas culpas, diz: Obtive misericórdia, porque, ignorando, pequei na minha incredulidade. Davi não poderia dizer: Ignorando, pequei. Não ignorava de fato o mal enorme de se unir com a esposa de outro, e a culpa enorme de matar o marido afirmando que não sabia nada e nem sequer se irava. Obtêm, portanto, a misericórdia do Senhor os que pecaram sem o saber; e os que sabiam o que faziam obtêm não uma misericórdia qualquer, mas uma grande misericórdia. Lava-me bem lavado da minha injustiça. Que significa: Lava-me bem lavado? Significa que estou muito manchado. Lava-se bem dos seus pecados aquele que sabe, tu que lavaste os pecados daquele que não sabia. Não deves desesperar da sua misericórdia. E purifica-me do meu pecado. Por que mérito? Se é um médico, oferece-lhe uma recompensa; se é Deus, oferece-lhe um sacrifício. E que darás para seres purificado? Observa quem é aquele que tu invocas. Invocas o justo: odeia os pecados, se és justo; vinga os pecados, se és justo; e não podes extorquir do Senhor Deus a sua justiça. Implora, pois, a misericórdia, mas espera pela justiça: é misericórdia perdoar o pecador, é justiça punir o pecado. E então? Tu pedes misericórdia, e o pecado ficará impune? Responda-te Davi, respondam-te os que caíram, respondam-te juntamente com Davi, para merecer misericórdia como Davi, e digam: Senhor, não ficará impune o meu pecado; conheço a justiça daquele do qual imploro a misericórdia; não ficará impune o pecado; mas por isso quero que tu não me castigues, porque por mim mesmo castigo o meu pecado; por isso peço que tu o perdoes, porque por mim o reconheço. E os ímpios converter-se-ão. Tão plena é a riqueza da misericórdia que nenhum daqueles que a ti se convertem deve desesperar, não só os pecadores de qualquer gênero, mas nem sequer os ímpios. E os ímpios converter-se-ão a ti. Por que? Porque, acreditando naquele que justifica o ímpio, a sua fé será comutada como justiça (Exposição do Salmo 50).

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Os ministros da Igreja são ministros da misericórdia Por aquilo que o Senhor nos concede, que fez de nós ministros da sua palavra e do seu sacramento para vos servir com a superabundância da sua misericórdia, assumimos o empenho de examinar e de explicar – como é possível que este Salmo, que agora acabamos de cantar, tão breve pelo número das palavras, mas importante pela profundidade dos conceitos: confiemos na ajuda divina, que como vos fez atentos, também nos faça idôneos para esta tarefa. Esteja viva a nossa alma e se anime dirigindose a Deus! De fato, Deus estabeleceu o tempo para as suas promessas e o tempo para cumprir o que tinha prometido. O tempo das promessas foi o que vai dos Profetas até João Batista; ao contrário, o que vem depois até o final é o tempo do cumprimento das promessas. E Deus é fiel por se fazer nosso devedor, não porque recebeu algo de nós, mas porque nos prometeu coisas grandiosas. Beberá da torrente ao longo do caminho; por isso levantará a cabeça. Vejamos (Cristo) enquanto também bebe da torrente, ao longo do caminho. Em primeiro lugar, qual é a torrente? É o fluir da mortalidade humana: com efeito, como a torrente se engrossa pelo concurso das águas chuvosas, espalha-se, faz rumor, corre e, correndo, escorre e termina o seu curso, assim acontece com o curso de toda a mortalidade. Os homens nascem, vivem, morrem e, enquanto alguns morrem, outros nascem, e de novo, estes morrem, outros hão de ainda vir: sucedem-se uns aos outros numa série ininterrupta de vindas e de partidas, mas não permanecem para sempre. O que é estável cá na terra? Existirá alguma coisa que não se consuma e não passe, como onda reunida pela chuva a dirigir-se para o abismo? Exatamente como um rio, rapidamente reunido pela chuva, pelas gotas de um aguaceiro abundante, vai a ter ao mar e desaparece para sempre – e nem sequer existia antes de ser formado pela chuva –, assim este gênero humano reúne-se de lugares desconhecidos e começa a passar, depois novamente, com a morte, vai para lugares escondidos: no meio deste seu curso, faz-se ouvir e passa. Cristo bebeu desta torrente: Ele não desdenhou beber desta torrente! Para Ele, o beber desta torrente significou, com efeito, nascer e morrer. Esta torrente, pois, leva em si o nascimento e a morte: isto foi assumido por Cristo, que nasceu e morreu, e foi assim que bebeu da torrente ao longo do caminho (Exposição do Salmo 109).

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III

ANTOLOGIA

Santo Inácio de Antioquia, nas cartas dirigidas aos cristãos de Filadélfia e de Roma, ao mesmo tempo que viajava para a capital do império para aí dar o testemunho supremo de amor a Cristo, considerava o seu martírio um sinal da misericórdia divina. Meus irmãos, sinto por vós um grande amor e, cheio de felicidade, procuro fortalecervos. Não eu, mas Jesus Cristo, pois, prisioneiro, tenho ainda bastante temor, porque ainda sou imperfeito.

Mas a vossa oração a Deus aperfeiçoar-me-á para

misericordiosamente alcançar a herança (Carta aos cristãos de Filadélfia 5, 1).

❈ Sinto vergonha de vir a ser contado entre os que são seus. Na verdade, eu não sou digno porque sou o último, sou como um aborto. Mas alcancei misericórdia para ser alguém, caso atinja Deus (Carta aos cristãos de Roma 9, 2). São Clemente Romano, escrevendo em nome da Igreja da Urbe, dirigiu um convite à caridade e à unidade dos cristãos de Corinto. Na grande oração que colocou já quase no final da sua carta, enalteceu a bondade misericordiosa de Deus. Obedeçamos, pois, à sua grandiosa e gloriosa vontade. Tornemo-nos suplicantes da sua misericórdia e da sua bondade, prostremo-nos e convertamo-nos à sua piedade, abandonando a vaidade, a discórdia e os ciúmes que levam à morte (Carta aos cristãos de Corinto 9, 1).

❈ Tu, Senhor, criaste a terra, Tu, fiel em todas as gerações,

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justo nos teus juízos, admirável na força e na magnificência, sábio ao criar, inteligente ao estabelecer as coisas criadas, bom nas coisas visíveis, benévolo para os que confiam em ti, misericordioso e compassivo, perdoa as nossas iniquidades e as injustiças, as quedas e as negligências. Não contes os pecados dos teus servos e das tuas servas … e dirige os nossos passos para caminharmos na santidade do coração. (Carta aos cristãos de Corinto 60, 1-2). São Policarpo de Esmirna, ao escrever aos cristãos de Filipos, exortou-os a fugir dos vícios e a viver a misericórdia divina com uma vida coerente e no perdão; as exortações foram particularmente dirigidas aos presbíteros que guiavam a comunidade cristã. Os presbíteros sejam indulgentes e misericordiosos com todos, chamem os afastados e visitem todos os enfermos sem esquecer a viúva, o órfão e o pobre, e sejam solícitos no bem perante Deus e os homens… Se rezamos ao Senhor para nos perdoar, devemos também nós perdoar. Todos nos encontramos sob o olhar do Senhor e de Deus e todos deveremos nos apresentar no tribunal de Cristo. Cada um prestará contas de si (Carta aos Filipenses 6, 1.2). São Justino, filósofo palestiniano e mártir em Roma, é autor de algumas das mais famosas apologias da fé cristã no decurso do século II. No seu texto, lembrou que a misericórdia divina se espalha sobre justos e injustos sem distinções, e convidou a rezar sinceramente também pelos inimigos. Rezemos por todas estas coisas, para que possas experimentar a misericórdia de Cristo. Com efeito, Ele ensinou-nos a orar pelos nossos inimigos, quando disse: «Sede mansos e misericordiosos como também o vosso Pai Celeste é misericordioso». 57

Possamos observar que Deus onipotente é manso e misericordioso, faz resplandecer o sol sobre justos e injustos, e envia a chuva sobre santos e malvados (Diálogo com Trifão 96). Santo Hilário de Poitiers refletiu sobre o tema do perdão cristão comentando o diálogo entre Jesus e São Pedro no capítulo 18 do Evangelho de São Mateus. A Pedro, que lhe perguntava se tinha de perdoar sete vezes a um irmão que pecava contra ele, respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete». Ele formou-nos para imitar totalmente a sua humildade e a sua bondade, e, para cortar os acessos dos nossos movimentos desordenados, fortalece-nos com o exemplo da sua misericórdia. De fato, Ele oferece, pela fé, o perdão para todos os nossos pecados. Os vícios que nos são próprios não mereciam certamente perdão. Portanto, o perdão é total porque o Senhor perdoa também os pecados cometidos contra Ele após a nossa conversão mediante a confissão…, ou seja, através do dom do Batismo, concede a graça da salvação aos seus inimigos e perseguidores. Ensina-nos igualmente que devemos conceder o perdão sem medida nem conta, e devemos pensar não quantas vezes devemos perdoar, mas deixar de nos indignar contra os que pecam contra nós, todas as vezes que precisemos nos indignar. Em qualquer caso, esta constância em perdoar ensina-nos que não deve existir em nós espaço para o ressentimento, porque Deus nos concede, por dom seu, mais do que por mérito nosso, o perdão completo de todos os nossos pecados. Não é conveniente limitar com um número, como prescreve a Lei (cf. Gn 4,24), o perdão a conceder, quando Deus, através da graça do Evangelho, nos concedeu um perdão sem limites (Comentário a São Mateus 18). São Basílio, bispo de Cesareia da Capadócia, falou aos seus correspondentes sobre a alegria do Pai pelo pecador arrependido, reencontrado como a ovelha perdida e como o filho pródigo das parábolas de Lucas. Todo o afastamento de Deus comove o Pai celeste como o pai da parábola, e qualquer conversão acarreta alegria para ele e para toda a família de Deus. Nem faltou uma suave repreensão a quem, embora membro desta família, mas ainda demasiado duro no coração, se julga acreditar bem firme na fé em Deus, e no entanto não se consegue alegrar com o Pai da misericórdia. 58

O bom pastor sai à tua procura, deixando as outras ovelhas que não se tresmalharam. Se tu te entregas a ele, ele não hesitará e não desdenhará na sua bondade de te tomar nos seus ombros, alegrando-se por ter encontrado a ovelha que se perdera. Além disso, o pai está à espera do teu regresso errante. Volta saltando para cima dele, e quando estiveres ainda longe dele, correndo ao teu encontro, ele lançar-se-á ao teu pescoço e com afetuosos abraços te apertará, já purificada pelo teu arrependimento… Ele diz: «Em verdade vos digo, há maior alegria no Céu, perante Deus, por um pecador que se arrepende». E se houver alguém que creia estar seguro e proteste porque foste de imediato acolhida, o bom pai em pessoa falará em tua defesa, dizendo: «Devíamos fazer festa e alegrar-nos, porque esta minha filha estava morta e agora voltou à vida, estava perdida e foi encontrada» (Cartas 46). São Gregório Nazianzeno, bispo e doutor da Igreja, que foi mestre de São Jerônimo, descreveu desta forma as obras de misericórdia num famoso sermão seu que reflete sobre o amor para com os pobres. «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (Mt 5,7). A misericórdia não ocupa o último lugar nas bem-aventuranças. Observa ainda o seguinte: «Bem-aventurado quem cuida do fraco e do indigente» (Sl 40,2), e igualmente: «Bemaventurado quem tem piedade e empresta» (Sl 111,5). Noutro lugar, lê-se igualmente: «Durante todo o dia o justo compadece-se e empresta» (Sl 36,26). Conquistemos esta bênção... procuremos ser benevolentes. Nem sequer a noite suspenda os teus deveres de misericórdia. Não digas: «Quando voltar, vou ajudar-te». Nenhum intervalo se interponha entre o teu propósito e a obra de beneficência. Com efeito, a beneficência não consente demoras. Divide o teu pão com o faminto e faz entrar os pobres na tua casa (cf. Is 58,7), e faz isto com ânimo alegre e zeloso. Disse-te o Apóstolo: «Quando fizeres obras de misericórdia, fá-las com alegria» (Rm 12,8), e a graça do benefício que ofereces ser-te-á, então, duplicada pela solicitude e prontidão. De fato, o que dás com ânimo triste e por constrição não é agradável e não tem nada de simpático. Quando praticamos as obras de misericórdia, devemos estar contentes e não tristes: «Se afastares de ti a mesquinhez e as preferências», ou seja, a mediocridade e a discriminação, mas também as hesitações e as críticas, a tua recompensa será grande.

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«Então a tua luz brilhará como a aurora e as tuas feridas vão sarar rapidamente» (Is 58,8). E quem é que não deseja a luz e a saúde? Por isso, ó servos de Cristo, seus irmãos e coerdeiros, se considerardes que a minha palavra merece alguma atenção, escutai-me: até que possamos fazê-lo, visitemos Cristo, tratemos de Cristo, alimentemos Cristo, vistamos Cristo, hospedemos Cristo, honremos Cristo não apenas com a nossa mesa, como alguns fizeram, nem somente com os unguentos, como Maria Madalena, nem apenas com uma sepultura, como José de Arimateia, nem com as coisas próprias para a sepultura, como Nicodemos, que amava Cristo só pela metade, e nem sequer com ouro, incenso e mirra, como fizeram os Magos. Porque o Senhor de todos quer a misericórdia, e não o sacrifício, e porque a misericórdia vale mais do que milhares de cordeiros gordos, ofereçamos-lhe, pois, esta nos pobres e naqueles que hoje vivem abatidos na terra. Deste modo, quando chegar a nossa vez de partir, seremos acolhidos nos tabernáculos eternos, na comunhão com Cristo Senhor, ao qual seja a glória pelos séculos. Amém (Sermão 14, 38.40). São Cromácio, bispo da antiga Aquileia, viveu entre os séculos IV e V. É autor de um Comentário ao Evangelho de São Mateus e de numerosas homilias que são um testemunho precioso da fé e da vitalidade da Igreja que ele presidia com doutrina e caridade. O Senhor desperta-nos com numerosas solicitações, tanto no Antigo como no Novo Testamento, para que pratiquemos a misericórdia. Mas neste texto temos a síntese dessa bem-aventurança para justificar a nossa fé. O seu ensinamento vem-nos diretamente da voz do Senhor, quando disse: «Bemaventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia». O Senhor das misericórdias disse que os misericordiosos são bem-aventurados. Com isto quer dizer que ninguém pode alcançar misericórdia do Senhor se por seu lado não tiver usado de misericórdia. Diz-se noutro lugar: «Sede misericordiosos como o Pai Celeste é misericordioso» (Comentário a São Mateus 17,6).

❈ «Se a vingança de Caim valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete» (Gn 4,24). 60

Pedro pensava que, se um irmão o ofendesse, perdoar-lhe sete vezes era mais do que suficiente, tantas vezes quantas as vinganças de Caim! Mas o Senhor pensava de outra forma. Ele é a misericórdia em pessoa; quer que entre os irmãos se use o mesmo critério que Ele usava; quer que entre irmãos reine a paz e a concórdia a todo o custo…, e deu uma indicação clara de quanto ele de coração deseja a caridade fraterna. Se, de fato, o Filho de Deus, pela sua divina bondade, nos perdoou todos os nossos pecados, nos perdoou todos os delitos que pudemos cometer, nos perdoou por um dom de misericórdia extraordinária; quanto mais não deveremos nós perdoar qualquer falta que o irmão possa ter cometido contra nós! Só assim podemos dizer que imitamos verdadeiramente o exemplo que o Senhor nos deixou (Comentário a São Mateus 59,3). Santo Ambrósio, bispo de Milão, mostrou-nos como o Pai Celeste, na imagem do pai da parábola de Lucas, corre ao encontro do filho arrependido para lhe dar muito mais do que o seu arrependimento pudesse alguma vez esperar. Ele corre ao teu encontro, porque já te ouve enquanto estás a refletir de ti para ti no segredo do coração. Quando ainda estás longe, ele vê-te e começa a correr. Ele vê o teu coração, corre para que ninguém te embarace, para enfim te abraçar. Ao correr ao teu encontro, está presciente, no abraço, a sua misericórdia e, quase diria, a sensibilidade viva do amor paternal. Lança-se ao teu pescoço para levantar quem jazia por terra e para fazer com que quem estava oprimido pelo peso do pecado e inclinado para as coisas da terra dirigisse novamente o olhar para o céu, para aí procurar o próprio criador. Cristo lança-se ao teu pescoço, porque te quer tirar o peso da escravidão do pescoço e impor-te um jugo suave (Exposição do Evangelho de São Lucas 7, 229-230). São João Crisóstomo, de origem antioquena e patriarca da capital imperial, Constantinopla, uma das grandes testemunhas do Evangelho até o dom supremo da sua própria vida, deixou-nos lições de misericórdia efetiva através da sua generosidade e do empenho constante em favor de todas as misérias, espirituais e materiais, dos seus fiéis. «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia». 61

Na minha opinião, aqui Jesus fala de todos os que exercem a misericórdia, não somente com suas riquezas, mas também com as obras. Com efeito, são muitos os modos de realizar a misericórdia, mas tal mandamento tem uma ampla extensão. E qual é a sua recompensa? «Porque» – disse Jesus – «alcançarão misericórdia». À primeira vista, parece que a recompensa é igual ao bem que se fez, mas na realidade é infinitamente maior. Os homens exercem a misericórdia como homens e obterão em troca a misericórdia do Deus do universo. A misericórdia humana e a divina não são iguais: entre elas há a distância que existe entre a maldade e a bondade (Comentário a São Mateus 15,4). São Cirilo, bispo de Alexandria, teve grande influência no êxito do Concílio de Éfeso de 431. Ao contrário de muitos teólogos, que ao longo dos séculos pouco falaram de misericórdia – colocando-a entre outras tantas propriedades divinas, depois daquelas consideradas mais importantes por derivarem da essência metafísica de Deus –, refletiu sobre o modo como os Padres tiveram o papel central da misericórdia na revelação divina. Próxima das virtudes já mencionadas temos a misericórdia. Ela é ótima, e muito do agrado de Deus, e é indicada em sumo grau às almas piedosas. É suficiente reter em nossa mente que a misericórdia é um atributo da natureza divina. «Sede misericordiosos», disse, «como o vosso Pai Celeste é misericordioso» (Comentário a São Lucas. Homilia 29). São Máximo, chamado «o Confessor» porque soube orgulhosamente defender a ortodoxia cristã, com a palavra, com os escritos e com a vida, descreveu a misericórdia como a condescendência de Deus para com os pecadores. Todos os pregadores da verdade, todos os ministros da graça divina e todos os que desde o início até o fim dos nossos dias nos falaram da vontade salvífica de Deus, dizem que nada é mais caro a Deus e tão conforme o seu amor como a conversão dos homens através de um arrependimento sincero dos pecados. Para reconduzir os homens a si, Deus fez coisas extraordinárias, e até deu a máxima prova da sua infinita bondade. Por isso, o Verbo do Pai, com um ato de inexprimível humilhação e de incrível condescendência, fez-se carne e dignou-se habitar entre nós. 62

Agiu, padeceu e disse tudo o que era necessário para nos reconciliar a nós, inimigos e adversários de Deus Pai. Chamou novamente à vida os que tinham sido excluídos. O Verbo divino não só curou as nossas doenças com o poder dos milagres, mas tomou também sobre si a enfermidade das nossas paixões, pagou o nosso débito mediante o suplício da cruz, como se fosse culpado, Ele, o inocente. Libertou-nos de muitos e terríveis pecados. Além disso, com muitos exemplos, estimulou-nos a ser como Ele na compreensão, na cortesia e no amor perfeito para com os irmãos. Por isso disse: «Não vim chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento» (Lc 5,32). E ainda: «As pessoas que têm saúde não precisam de médico, mas só as que estão doentes» (Mt 9,12). Disse ainda ter vindo para procurar a ovelha desaparecida e ter sido enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel. Também, através da parábola da moeda perdida, aludiu, ainda que veladamente, a um aspecto particular da sua missão: Ele veio para recuperar a imagem divina deturpada pelo pecado. Recordemos ainda o que disse numa outra parábola sua: «Declaro-vos: haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte...» (Lc 15,7). O bom samaritano do Evangelho curou com azeite e vinho e enfaixou as feridas daquele que tinha caído nas mãos de salteadores e ficou despojado de tudo e abandonado, ensanguentado e meio morto na estrada. Montou-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, pagou o necessário e prometeu pagar o restante no seu regresso. Cristo é o bom samaritano da humanidade. Deus é aquele pai afetuoso que acolheu o filho pródigo, se inclinou sobre ele, foi sensível ao seu arrependimento, o abraçou, o revestiu de novo com os ornamentos da sua paterna glória e não o censurou de nada do que este tinha feito. Chama ao aprisco a ovelha que se tinha afastado das outras cem ovelhas de Deus. Depois de a ter encontrado quando vagueava pelos montes e pelos vales, não a reconduziu à força para o aprisco nem com gritos ameaçadores, mas a pôs aos ombros e restituiu-a incólume ao resto do rebanho, com ternura e com amor. Disse: «Vinde a mim, vós todos que estais cansados de carregar o peso do vosso fardo, e Eu vos darei descanso» (Mt 11,28). E ainda: «Carregai a minha carga» (Mt 11,29). A carga são os mandamentos ou a vida vivida segundo os preceitos evangélicos. Mas, quanto ao peso, talvez pesado e molesto para o penitente, acrescentou: «A minha carga é suave e o meu fardo é leve» (Mt 11,30). Ao ensinar-nos a justiça e a bondade de Deus, deu esta ordem: Sede santos, sede perfeitos, 63

sede misericordiosos como o vosso Pai celeste (cf. Lc 6,36); «perdoai e sereis perdoados» (Lc 6,37) e ainda: «Tudo o que desejais que os outros vos façam, fazei-o também a eles» (Mt 7,12) (Carta 11). Isaac de Nínive, também chamado o Sírio, natural do Golfo Pérsico e mais tarde bispo, por pouco tempo, de Nínive, é muito venerado em todo o Oriente cristão. Partindo dele, esta antologia abre com um autor do final da era patrística e com um autor nestoriano, de fora da unidade religiosa calcedonense que ainda sobrevivia, depois de séculos de desencontros e de tensões, dentro dos confins do Império Romano, já territorialmente reduzido e com a sua capital sobre as rivas do Bósforo. O texto, muito belo, lembra-nos que a misericórdia deve superar a justiça, e que ao homem misericordioso não são poupadas as tribulações para entrar no Reino de Deus, como também não foram ao Filho de Deus e aos seus discípulos. Mas eu digo que, se o misericordioso não superar a justiça, não é misericordioso. Isto é, deverá ser misericordioso com os homens não só dando do que é seu, mas também suportando a injustiça voluntariamente e com alegria. Portanto, não afirmará nem exigirá justiça completa nas suas relações com o próximo, mas terá misericórdia dele. E assim, depois de ter vencido a justiça com a misericórdia, poderá pôr a coroa, não a dos justos segundo a Lei, mas a dos perfeitos segundo a nova aliança. Também a Lei antiga manda dar ao pobre alguma coisa do que nós possuímos, dar-lhe roupa se o virmos nu, amar o próximo como a si mesmo, não cometer iniquidades e não defraudar; mas as normas perfeitas da nova aliança pedem mais… O Evangelho não te pede só suportar com alegria a injúria dos bens e das outras coisas fora de ti, mas dar também a vida por amor ao próximo (Sermões ascéticos 4). Um comentador anônimo do Evangelho de São Mateus recomenda-nos que não queiramos ser mais espertos do que Deus. Mente a si mesmo aquele que, quando reza, diz «perdoo», e não «perdoai-nos» as nossas ofensas. Pode rezar, mas não pode ludibriar ou enganar Deus, e assim não receberá o perdão se antes não o tiver doado. Com que esperança reza alguém que conserva dentro de si ódio contra outro de quem talvez tenha recebido uma ofensa? Como mente a si mesmo quando reza!... Diz com efeito: «Perdoo», e não perdoa; assim pede a Deus o perdão que a si não será concedido. 64

Portanto, se aquele que foi ofendido reza sem esperança em Deus, se não tiver perdoado ao autor da ofensa, de que modo pensas que reza aquele que não só não recebeu ofensa de outro, mas, agindo injustamente, ofende e oprime os outros? Por isso, muitos, não querendo perdoar aos que cometem pecados em relação a eles, recusam rezar deste modo. São tolos: em primeiro lugar, porque quem não reza como Cristo ensinou não é discípulo de Cristo; em segundo lugar, porque o Pai não ouve de boa vontade uma oração que não tenha sido prescrita pelo Filho. O Pai conhece os sentimentos e as palavras do Filho e acolhe não o que é fruto de uma apropriação indevida pelo homem, mas o que é exposto pela sapiência de Cristo. Portanto, podes rezar, mas não podes ludibriar ou enganar Deus nem receber o perdão se primeiro não o concedeste (Obra incompleta sobre São Mateus. Homilia 14). Antiga «Homilia sobre o Sábado Santo»: proposta no ofício das leituras do Sábado Santo, no dia em que a Igreja está em silêncio, ainda na contemplação da morte de Jesus e na esperança da sua ressurreição. O que aconteceu? Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos. Deus morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos. Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte, Ele que é, ao mesmo tempo, seu Deus e seu Filho. Entrou o Salvador onde eles estavam, levando nas suas mãos a arma vitoriosa da cruz. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, batendo no peito, cheio de admiração, exclamou para todos os demais: «O meu Senhor esteja com todos». E Cristo respondeu a Adão: «E com o teu espírito». E tomando-o pela mão, levantou-o, dizendo: «Desperta, tu que dormes; levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará». «Eu sou o teu Deus que por ti me fiz teu filho, por ti e por estes que nasceram de ti; agora digo e, com todo o meu poder, ordeno àqueles que estão na prisão: “Saí”; e aos que jazem nas trevas: “Vinde para a luz”; e aos que dormem: “Despertai”». «Eu te ordeno: Desperta, tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos. Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te,

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obra das minhas mãos; levanta-te, minha imagem e semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e Eu em ti, somos um só». «Por ti, Eu, teu Deus, me fiz teu filho; por ti Eu, o Senhor, tomei a tua condição de servo; por ti Eu, que habito no mais alto dos Céus, desci à terra e fui sepultado debaixo da terra; por ti, homem, me fiz homem sem forças, abandonado entre os mortos; por ti, que saíste do jardim do paraíso, fui entregue aos judeus no jardim, e no jardim fui crucificado. Vê no meu rosto os escarros que por ti suportei, para te restituir o sopro da vida original. Vê no meu rosto as bofetadas que suportei para restaurar à minha semelhança a tua imagem corrompida».

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Coordenação de desenvolvimento digital: Guilherme César da Silva Revisão: Célia Nogueira, Iranildo Bezerra Lopes, Caio Pereira Tradução: Mário José dos Santos Capa: Edizione San Paolo Desenvolvimento digital: Daniela Kovacs Conversão EPUB: Paulus Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Os padres da Igreja e a Misericórdia [livro eletrônico]; Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização [organizador]; [tradução: Mário José dos Santos] – São Paulo: Paulus, 2015 1,1Mb; ePUB Título original: La Misericordia nei Padri della Chiesa © Pontificio Consiglio per la Promozione della Nuova Evangelizzazione © PAULUS Editora, Portugal, 2015 © PAULUS – 2016 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 paulus.com.br • [email protected] [Facebook] • [Twitter] • [Youtube] eISBN 978-85-349-4339-0

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Os Salmos da Misericórdia Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização 9788534943406 136 páginas

Compre agora e leia O livro consiste num importante instrumento pastoral para ajudar a oração e a reflexão dos peregrinos do Ano Santo da Misericórdia. Foram selecionados dez Salmos em que o tema da Misericórdia emergisse em toda a sua valência existencial e significado teológico, no espírito da Bula Misericordiae vultus, em que o Papa Francisco afirma: “Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: 'É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura’ (103,3-4). [...] A misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor, como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até o mais íntimo das suas vísceras” (MV, n. 6).

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Pastoral da Escuta Pereira, José Carlos 9788534937078 96 páginas

Compre agora e leia A Pastoral da Escuta é um braço da Pastoral da Acolhida. O agente dessa Pastoral escuta atentamente as necessidades e desabafos da pessoa, e busca apontar caminhos de solução. Este subsídio apresenta os passos necessários, as ferramentas para auxiliar na implantação e manutenção da Pastoral da Escuta. A obra se coloca dentro do espírito do Documento de Aparecida e das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, com a intenção de contribuir no processo de evangelização e para o estado permanente de missão das comunidades paroquiais. Diz o autor: "Os avançados meios de comunicação, a tecnologia e a informática criam modalidades de interação que não substituem o contato pessoal, o olho no olho, a presença física de alguém que ouça gratuita e desinteressadamente”.

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Índice Rosto Apresentação I - A misericórdia, o estilo de vida cristão II - Santo Agostinho: pregador da misericórdia III - Antologia Santo Inácio de Antioquia São Clemente Romano São Policarpo de Esmirna São Justino Santo Hilário de Poitiers São Basílio São Gregório Nazianzeno São Cromácio Santo Ambrósio São João Crisóstomo São Cirilo São Máximo Isaac de Nínive Um comentador anônimo Antiga «Homilia sobre o Sábado Santo»

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