Os Instintos e Suas Vicissitudes
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OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES (1915)
Esta é uma resenha do texto de igual título, de Freud, contido na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. XIV. Ela não visa substituir a leitura do texto original – que é aconselhada -, mas apenas facilita-la. Os trechos entre [.....] e em itálico são de nossa autoria. [O termo “instinto” está aqui no lugar do alemão “Trieb”, usado mais freqüentemente por Freud, embora no alemão exista exist a também a palavra “Instinkt”. No sentido aqui aq ui
empregado o termo difere da conotação que os biólogos dão a ele. Significa muito mais uma impulsão geral, sem objeto definido e sem esquemas pré-formados de execução. Mais recentemente tem-se preferido traduzir “Trieb” por pulsão. Uma desvantagem está em que enquanto o termo alemão pertence à linguagem cotidiana o termo português é de uso erudito.
Quando escreveu o presente artigo (concluído em abril de 1915) Freud ainda não havia chegado à hipótese do instinto de morte, que só formalizará em 1920, no texto “Além do Princípio do Prazer” (vol. XVIII, da Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974). Freud se recente de não haja uma teoria clara sob os instintos e que ele próprio não tenha conseguido chegar a ela. Em algum momento chega a dizer que “a teoria dos instintos é, por assim dizer, a nossa mitologia” – Conferência XXII - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVI, Imago Editora, 1974 ]. O instinto, em psicologia, é um conceito básico que corresponde a idéias abstratas que provieram das mais diferentes fontes, que não são, no entanto, infensas às observações. Examinemo-lo de vários ângulos: A fisiologia nos proporciona uma diferenciação entre estímulo e arco reflexo. Examinemos o conceito de instinto a partir do de estímulo: nem todo estímulo psíquico é um instinto: a luz que incide na retina é de natureza diferente da secura da membrana da faringe, [que provoca a sede]. De um instinto, podemos dizer: · * é um estímulo que se origina dentro do organismo e que conduz a ações que têm o objetivo de removê-lo [A “ação específica” é, conforme o “Projeto para uma Psicologia Científica” - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. I, aquela ação capaz de eliminar o estímulo]. · * não é um estímulo que age de forma passageira, mas sim de modo constante. Pode ser repetido sem afetar, contudo, o que julgamos necessário para afastá-lo Um estímulo instintivo gera um estado que melhor seria descrito como necessidade, estado este que pode ser eliminado por uma alteração adequada da fonte, dando origem ao estado a que chamamos satisfação. Num esquema: necessidade---------leva à----->satisfação
INSTINTO [O instinto é, pois, a força psicológica que conduz do estado de necessidade ao da satisfação] A diferença entre um estímulo e um instinto permite uma primeira distinção entre mundo interno e mundo externo porque o psiquismo cedo aprende que a fuga muscular pode ser aplicada a certos estímulos [que são externos] e não a outros [que são internos]. Dos estímulos instintuais, então, pode-se afirmar duas características: * são internos (ou seja, nenhuma tentativa de fuga pode prevalecer contra eles) * atuam de modo constante Mas isso se complica com um postulado: O sistema nervoso é um aparelho que tem por função livrar-se de estímulos. Isso não pode ser aplicado aos estímulos instintuais. Em relação a eles o sistema nervoso [não pode simplesmente elimina-los e] tem de produzir modificações do mundo externo de modo a propiciar as satisfações exigidas por esses estímulos. Podemos, por isso, afirmar que os instintos e não os estímulos externos constituem as forças que levaram o sistema nervoso ao seu grau de desenvolvimento atual. Verificamos que o aparelho psíquico é regido pelo princípio do prazer, [que significa, em última análise, a tendência para se desfazer de estímulos], mas as relações entre prazer-desprazer e estímulos não é apenas quantitativa. Nada existe que impeça supor que o que atualmente é um instinto tenha sido um estímulo [externo], em épocas passadas, tendo se transformado ao longo da filogênese. Da biologia [sabemos que] o instinto nos aparece como um conceito limite entre o físico e o mental, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e como medida das exigências feitas à mente no sentido de trabalhar para atender às necessidades do corpo. Examinemos, agora, alguns termos referentes aos instintos: pressão (drang): quantidade da exigência [de trabalho] feita à mente finalidade (ziel): Satisfação. Corresponde a alterações na fonte de estimulação, visando eliminá-la. Embora a finalidade última permaneça sempre a mesma, são possíveis satisfações intermediárias.Também podemos falar de instintos inibidos em sua finalidade, quando um instinto é impedido no caminho da sua satisfação e tem de ser defletido: são satisfações parciais. objeto (objekt): aquilo em relação a que a satisfação é atingida. * é o mais variável do instinto.
* originalmente não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por estar adequado à satisfação * pode ser uma parte do próprio corpo do indivíduo * pode mudar ao longo das vicissitudes do instinto * pode acontecer que um único objeto sirva à satisfação de vários instintos ("confluência") * uma adesão muito grande do instinto a seu objeto, se conhece como fixação. fonte (quelle): É o processo somático que dá origem a uma representação mental. Sendo assim, é a sede corporal do impulso. Não se sabe se esses processos são de natureza química ou se são devidos a outras forças, mecânicas, por exemplo. Parece mais razoável supormos que os diferentes instintos que reconhecemos na mente sejam produtos de um fator quantitativo ou de alguma função dessa quantidade do que sejam de várias qualidades. O que distingue os impulsos uns dos outros é a sua fonte. [Ou seja, o instinto seria uma força que assume qualidades específicas segundo a fonte de que se origina, tal como e eletricidade, sendo uma energia, pode manifestar-se como luz, calor ou movimento, na dependência do aparelho a que se ache ligada]. Quantos e quais são os instintos? Freud propôs dois grupos: * instintos autopreservativos ou do ego * instintos sexuais Tal classificação não tem o caráter de postulado inevitável. Ela surgiu da visão de que nas neuroses de transferência há uma oposição entre o instinto sexual e o autopreservativo. Pode ser que o estudo das outras neuroses, sobretudo das narcisistas, nos imponha uma outra visão dos instintos, mas por hora nada nos induz a não fazermos a oposição acima entre instintos sexuais e autopreservativos. [Freud alega aqui que considera pouco crível que pudesse chegar a outra idéia sobre os instintos, partindo da psicologia. Melhor seria – diz ele, - levar a ela conhecimentos oriundos de outras fontes. A contribuição da biologia não vai contra a distinção entre impulsos sexuais e impulsos do ego. Em 1920, no entanto, levando em consideração a agressividade e a repetição, ele mesmo propôs uma modificação revolucionária, segundo a qual a oposição se daria entre os instintos de vida e de morte, alterando, assim, de maneira fundamental a presente classificação – (Conforme “Além do Princípio do Prazer”, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. XVIII)]. A biologia ensina que a sexualidade é de natureza diferente das outras funções do indivíduo, pois suas finalidades ultrapassam o ser individual e visam a conservação da espécie. Mas, além disso: · de um ponto de vista, o indivíduo é a coisa principal, sendo seu papel na conservação da espécie, secundário.
· de outro ponto de vista, o indivíduo é um apêndice da espécie A sexualidade também se diferencia dos demais instintos por uma química própria. [A descoberta dos hormônios confirmou isso]. O estudo dos instintos só pode ser feito por meio das pesquisas psicanalíticas, sendo difícil o estudo deles a partir da consciência. O estudo das neuroses de transferência possibilitou o conhecimento [da dinâmica e evlução] dos impulsos sexuais. É de esperar-se que o estudo das outras neuroses traga novos aportes sobre os impulsos do ego, embora não seja de se esperar que estas condições sejam comparáveis às que existiram até aqui. [Além disso], os instintos sexuais [se diferenciam dos demais porque]: * são numerosos, * emanam de várias fontes orgânicas, * atuam independentemente uns dos outros, a princípio, e só alcançam a síntese, posteriormente, * visam, a princípio, o prazer do órgão. Só quando a síntese é alcançada é que eles se colocam a serviço da reprodução, tornando identificáveis como sexuais, * inicialmente são ligados aos instintos auto-preservativos, dos quais só aos poucos se separam, conservando contudo parte deles associadas aos instintos do ego, aos quais emprestam componentes libidinais, * são capazes de agir vicariamente, uns pelos outros, * são capazes de mudar de objetos. [Nesses tópicos estão contidas as idéias de que os instintos sexuais são, a princípio, instintos parciais (orais, anais, sádicos etc.) que caminham em direção a uma síntese sobre a “primazia dos genitais” e que visam, em primeiro lugar, o prazer e só ao fim
dessa síntese, são colocados a serviço da reprodução]. Ao longo de seu desenvolvimento, no correr da vida os instintos sexuais ficam sujeitos às seguintes vicissitudes: * reversão ao oposto * retorno em direção ao próprio ego * sublimação * repressão
· Visto que esse texto não tratará da sublimação nem da repressão, abordará os outros dois destinos dos instinto que podem ser consideradas como defesas porque impedem os instintos de levar adiante suas finalidades. [Esses tópicos foram tratados em trabalhos separados. O texto sobre repressão figura como apêndice a este trabalho. O texto sobre sublimação é um dos cinco textos metapsicológicos perdidos, mas o assunto é tratado também em “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. XIV]. · reversão ao oposto: pode ser dividida em dois processos: transformação de atividade em passividade, como na transformação do sadismo em masoquismo ou do voyeurismo em exibicionismo e reversão do conteúdo em seu oposto, como na mudança do amor em ódio · retorno em direção ao próprio ego: Torna-se plausível pela observação de que o masoquismo é o sadismo retornado em direção ao próprio indivíduo, da mesma forma que o exibicionismo abrange o olhar para o próprio corpo. [Freud mudará de opinião em 1924 e postulará a existência de um masoquismo erógeno, primário. “O Problema Econômico do Masoquismo”, Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Editora Imago, 1974, vol. XIX]. O retorno em direção ao próprio ego afeta o objeto dos instintos, mantendo-se a finalidade. A reversão ao oposto afeta, principalmente, a finalidade do instinto. A reversão ao oposto e o retorno em direção ao próprio ego às vezes coincidem, como nos exemplos acima. Temos o par sadismo/masoquismo, no qual tanto a finalidade quanto o alvo são afetados. Assim, * o sadismo visa um objeto externo * esse objeto é abandonado e substituído pelo eu do indivíduo, operando-se uma mudança na finalidade do instinto, de ativa para passiva * uma pessoa externa é novamente procurada mas tem que ter agora o papel de sujeito, em virtude da modificação operada na finalidade do instinto. Isto é o masoquismo. [Num desenho: (fase a) agressão--------------------> objeto (sadismo) \
\ (fase b) \ \/ (fase c) sujeito (masoquismo)] Na neurose obsessiva, a modificação só vai até a fase "b" [Isto é, torna-se um masoquismo atenuado, um masoquismo moral]. Nosso conceito do sadismo fica ainda mais difícil se considerarmos que a sua finalidade aparente é de infringir dor, além de humilhar e dominar. Uma criança sádica não tem o desejo de infringir dor nem se apercebe de estar fazendo isso. Quando o sadismo se transforma em masoquismo a sensação de dor beira a excitação sexual. Uma vez que a finalidade masoquista seja estabelecida, se estabelece a finalidade sádica de causar dor, retrogressivamente, uma vez que a dor infringida a outra pessoa é fruída masoquisticamente pelo sujeito através da identificação com o sofredor. A dor é, então, masoquistica só podendo ser instintual na pessoa originalmente sádica. A piedade é uma formação reativa contra o sadismo. A mesma coisa acontece com a escopofilia e com o exibicionismo. Apenas que aqui se pode imaginar uma fase anterior à fase "a". Uma fase auto-erótica em que o olhar tem um objeto no próprio corpo, servindo, assim, a ambas as fases do par de oposto. Essa fase está ausente no sadismo que é, desde o início, dirigido para fora, embora não seria impossível imagina-la na tentativa da criança de dominar seus próprios músculos. Em ambos os casos podemos supor que a reversão da atividade à passividade e a conseqüente volta sobre si mesmo não atinge a totalidade dos instintos e que a finalidade original permanece inalterada, em alguma medida. Com relação ao voyeurismo, tanto a etapa auto-erótica quanto a ativa e passiva posterior, convivem uma com a outra. O fato de que o impulso ativo seja observado lado a lado com seu oposto, passivo, é bem assinalado pelo termo ambivalência, criado por Bleuler. A experiência mostra que a acentuada ambivalência dos seres humanos atuais se deve ao desenvolvimento dos instintos e que, no passado, os aspectos ativos foram mais atuantes do que são hoje. [Não confundir Bleuler com Breuer. Bleuler era um psiquiatra da Clínica de Burgholzi, em Zurich, na Suíça, onde trabalhava Jung. Ele hoje é conhecido por ter introduzido na psicopatologia o termo “esquizofrenia”, em 1908. Foi um dos
primeiros psiquiatras a aplicar métodos psicanalíticos às suas pesquisas. Na primeira década dos anos 1900 Jung foi seu assistente e ambos fizeram parte da Sociedade Psicanalítica de Viena]. Ficamos tentados a denominar de narcisismo a fase inicial durante a qual os instintos encontraram satisfações auto-eróticas. A fase preliminar do voyeurismo pode ser descrita, então, como narcisista. [Na verdade existe uma diferença entre narcisismo e auto-erotismo. Freud tinha descrito o narcisismo no ano anterior a esse texto de 1915 e a idéia dele, embora já viesse sendo gestada há muito tempo ainda não tinha sofrido um
total amadurecimento. (Ver “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” - Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. XIV ). Em texto posterior, de 1923 (“O Ego e o Id” - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora, 1974, vol. XIX) Freud estabelece mais claramente a diferença]. Uma mudança do conteúdo pode ser exemplificada pela antítese entre o amor e o ódio. O amor tem três antíteses e não apenas uma: · amar x odiar (sujeito - objeto) · amar x ser amado (ativo - passivo) · amar, odiar x indiferença (prazer-desprazer) O ego de puro prazer: o ego busca tornar interno tudo o que conduz ao prazer e externo tudo que o contraria, tornando-se, assim, um ego de puro prazer. Faz isso através de dois mecanismos: introjeção [põe para dentro de si todo o bem] e projeção [põe para fora de si todo o mal]. Duas observações: · O amor e o ódio não são adequados para descrever relações entre instintos e seus objetos, mas entre eles e o ego total. [O instinto não ama ou odeia; apenas deseja. Quem ama ou odeia é o ego]. · O amor se concentra afinal nos objetos que satisfazem os instintos sexuais ou os instintos sexuais sublimados. Descrevamos, agora, a gênese do amor e do ódio: do amor amamos aquilo que satisfaz os instintos a primeira fase é incorporativa depois, sobrevém o dano ou o aniquilamento a princípio, não se distingue do ódio. Só depois da síntese da sexualidade se torna oposto do ódio do ódio é mais antigo que o amor. Provém do ego narcisista primordial guarda relações íntimas com os instintos autopreservativos
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