Origens da Indústria Textil
Short Description
Breve descrição das origens da tecelagem e da relação dos padrões textéis com a decoração da cerâmica e da olaria....
Description
A tecelagem e os têxteis no tecido da História História, por José Guilherme Abreu 1. Origens da tecelagem
A produção têxtil é uma das mais antigas atividades realizadas pelo homem. Remontando à Pré-História, Pré-História, achados arqueológicos demonstram que por volta de 40.000 a.C. utilizavam-se esquírolas de osso para fixar peles sobrepostas, naquela que constituiria a primeira evidência de revestimento protetor do corpo humano. Técnica arcaica de junção e fixação de peles, a mesma seria posteriormente aperfeiçoada pelo recurso à técnica da cosedura, mediante o emprego de agulhas de osso, e usando como linha as crinas de equídeos. e quídeos. Derivada da costura e tendo como horizonte cultural a vida recolectora, a tecelagem é uma atividade anterior à cerâmica, tendo provavelmente a sua invenção sido concomitante com a da cestaria, já que o ato de entrelaçar o fio tem correspondência com o ato de entrelaçar galhos ou fibras vegetais, tendo a mais antiga fibra vegetal, de linho, sido encontrada na região do Cáucaso, na Geórgia, remontando a sua idade a cerca de 30.000 a.C. A tecelagem surge portanto portanto ainda antes da da sedentarização, com a invenção do sistema sistema que a possibilita: a estrutura formada pela teia e a trama, como explica Carlos Bastos: Quando o homem primitivo fixou no solo dois paus verticais, superiormente unidos por um terceiro, e deste último suspendeu uma série de filamentos grosseiros, aos quais encadeou, alternando-os, outra série longitudinal, a fim de construir uma esteira, havia inventado a proto-tecelagem. Bastaria aperfeiçoar o quadro e adelgaçar a matéria-prima para conseguir fabricar o seu primeiro tecido, na acepção rigorosa da palavra. A teoria fundamentada no entrecruzamento da teia e da trama fora descoberta, o método de a aplicar, se ainda era pouco prático, evolucionaria depois conforme as necessidades da manufactura e a perícia do artífice.1
Com origem comum à cestaria, algumas texturas de tecido viriam a ser transpostas como recurso decorativo para a cerâmica, visto as primeiras evidências do uso dos têxteis corresponderem a impressões de tecidos impressos sobre a superfície do barro, sendo as mais antigas as que foram descobertos na estação arqueológica de Pavlov, situada na República Checa, estimando-se remontar a cerca de 29.000 a.C., de acordo com os estudos do professor Jiri Svodoba, da Universidade de Brno. Para lá destas evidências arqueológicas indiretas, será preciso esperar um pouco mais de dez mil anos para encontrarmos as primeiras amostras têxteis. A mais antiga correspondendo a um fragmento encontrado na gruta de Guitarrero, Guitarrero, na cordilheira dos Andes, no Perú, fragmento esse que segundo o arqueólogo Edward Jolie remonta a uma data compreendida entre 12.100 a.C. e 11.080 a.C. ( fig. fig. 1 )
Fig. 1- Fragmento de tecido de
1 BASTOS, Carlos,
Guitarrero, Guitarrero, c. 12.100-11080 a.C., Perú
Indústria e Arte Têxtil , 1960, Porto, p. 3
Os têxteis na Antiguidade
O linho e lã foram as mais antigas fibras utilizadas na Bacia do Mediterrâneo. Trabalhadas no seu estado natural, essas fibras forneceram inicialmente tecidos de textura bastante irregular. Porém, à medida que se difundiu a prática da fiação, foram-se obtendo tecidos mais uniformes. Tecidos mais perfeitos começaram a ser produzidos, na Índia a partir da fibra do algodão, por volta do século XVIII a.C., em Hallus, na região de Karnakata. Foi, porém, na China, durante a Dinastia Shang, séculos XVII a XI a.C., que se propagou a utilização do fio de seda, embora este fosse já conhecido no Neolítico, por volta de 3000 a.C. Falando sobre a tecelagem da seda, a professora Carmen García-Ormaechea Quero, da Universidade Complutense de Madrid, explica algumas das suas característicass: Depois do esmerado cultivo da amoreira, a recoleção do casulo de seda é levada a cabo antes que a crisálida o rompa. O primeiro passo da sua manufatura consiste em selecionar manualmente os casulos de acordo com a sua textura e forma (que devem ser perfeitas), o seu peso (que determina a extensão do filamento), e a sua cor (que pode variar entre matizes brancas, amareladas e cor-de-rosa). Uma vez selecionados, os casulos são “cosidos” (em água a 90º C) para além de matar a crisálida, eliminar la sericina (segregação pegajosa que ajuda o verme a consolidar o casulo) e poder finalmente retirar o filamento (fibrina). O filamento de um só casulo pode ultrapassar um quilómetro de longitude!
Além do seu comprimento, outra importante qualidade do filamento é a sua resistência, ainda que isso possa parecer incrível, visto ser praticamente invisível. De facto, regra geral utilizamse entre quatro a dez filamentos para formar um fio de seda. Relativamente à sua resistência, importa dizer que até ao aparecimento das fibras sintéticas, a seda foi a tela mais forte, pelo que na Segunda Guerra Mundial os paraquedas eram feitos de seda. Introduzidos na Europa através do tráfico comercial, os têxteis orientais, chineses e persas, impuseram-se pela sua superior qualidade e sumptuosidade. Quer o brocado, quer o damasco são tecidos de seda de proveniência oriental, sendo os brocados mais antigos produzidos em Yunjin na China, no início da era Cristã, enquanto o damasco era originário do Vietname, este último caracterizando-se por ser um tecido no qual, por um lado, a trama serve de fundo e a urdidura forma os desenhos, sucedendo o inverso no lado oposto, considerando-se como anverso o que tem o fundo brilhante, e mate os desenhos. Na Europa, o gosto pela moda oriental chegou à Grécia, como se observa no Vaso de Chiusi , onde Penélope tece uma tela decorada com figuras aladas e cavalos alados (fig. 2).
Fig. 2- Vaso de Chuisi Daire , séc. V a.C.,
Ao caráter requintando romano, em que as singelas túnicas dos gregos acabariam por ser substituídas por togas de seda luxuosamente decoradas com franjas e bordaduras de ouro importadas do Oriente – aurum phrigium –, viria a suceder o gosto bizantino pelo cerimonial,
com os tecidos decorados com motivos semelhantes aos que aparecem na ourivesaria, nos marfins e em miniaturas de caráter cerimonial, decorados com aplicações de ouro e pedras preciosas. Na época carolíngia os tecidos bizantinos tornaram-se muito apreciados na Europa e a sua difusão foi favorecida pelo comércio através de Veneza e Salerno até ao século XI, quando na Itália começaram a estabelecer-se as primeiras oficinas. Os burgueses de Veneza compravam largas quantidades de seda de grande qualidade, o que favoreceu a instalação de uma importante manufatura têxtil que conheceu o auge, a partir dos séculos XIV-XV. Depois da pilhagem das cidades gregas pelos cruzados, os tecelões emigraram para a corte da Sicília e outras cidades italianas, sendo que por seu intermédio a arte têxtil bizantina difundiu-se pelo Ocidente a partir do século XII, constituindo uma das bases principais da indústria têxtil italiana e europeia, durante a Idade Média. Têxteis medievais portugueses
De acordo com Carlos Bastos, a tecelagem da seda teria sido introduzida no território português pelos muçulmanos, tal como refere: À semelhança dos califas e emires maometanos, os reis e nobres da Península Hispânica também instalaram nos seus palácios e castelos um tiraz privativo em que serviam os tirazeiros ou tecelões da especialidade.2
De acordo com a Lei das Almotaçarias de Além-Douro 3, em 1253 produziam-se no reino tecidos de seda, e na História Eclesiástica de Braga de D. Rodrigo da Cunha, citada por Carlos Bastos, pode ler-se a seguinte passagem: Entrando o Janeiro da era de Christo, estando o arcebispo (D. Silvestre Godinho) em Chaves, deu foral aos moradores de Ervedelo, onde lhes assina as propriedades que lhe haviam de pagar foro, faz muito caso das amoreiras, e manda que por nenhuma via se venda a sua folha para fora do Couto, e que do sirgo que se criar lhe pagarão a sua parte em casulo.4
Invocando a mesma Lei das Almotaçarias, Sousa Viterbo observa no entanto que Portugal dependia fortemente da produção têxtil dos outros povos, como explica: Ali se designam as fazendas pelos nomes das terras donde provinham: ‘panno tinto de gam ou de ruans ou de ipli, engres, triquintane, gamelim, grisay, bifa, abouuila, lila, brúgia, valenciana, tornay, chartres’. Séculos depois, no reinado de D. Manuel, ainda nos mandados de pagamento se fala em convados de bristol, londres, rouen, etc. Às feiras de Castella, à de Medina principalmente, se mandavam buscar muitos produtos e os mercadores e f abricantes do reino vizinho, incluindo os mouros de Granada, acudiam às nossas feiras.5
Não podem deixar de ser significativas as lacunas terminológicas a que se refere Sousa Viterbo. Por elas se infere o fraco desenvolvimento da produção têxtil em Portugal, na primeira e na segunda Dinastias, embora isso não signifique a inexistência de atividade têxtil no reino, mas apenas que essa atividade era pouco significativa, sendo que de acordo com Carlos Bastos “no reinado de D. Dinis a tecelagem nacional aparece comprovada em documentos 2 BASTOS, Carlos, A
Arte Ornamental dos Tecidos , Porto, 1954, p. 61.
3 Lei
das Almotaçarias de Além-Douro de 26 de Dezembro de 1253. Armando de Castro no artigo Seda, do Dicionário de História de Portugal diz: “De harmonia com esta lei de D. Afonso III, o preço da braça da melhor corda grossa de seda fabricada em Portugal foi fixado em três soldos e igual comprimento de cordão redondo em um soldo, estipulando-se ainda que a melhor ourela de seda se não vendesse por mais de 15 dinheiros .” 4 BASTOS, Carlos, A 5 SOUSA
Arte Ornamental …,
pp. 62-63.
VITERBO, Francisco Marques de, Artes industriaes e industrias portuguesas; Industria têxtis e congéneres , 1904, Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 6-7.
indiscutíveis ”6,
fundamentando essa afirmação com o inventário e contas da Casa Real de Dinis, transcrito no Arquivo Histórico Português por Braancamp Freire, onde se faz menção a cendais de seda (uma espécie de véus) provenientes de Lisboa, como o autor explica: O cendal era um tecido de seda, leve e ligeiro, manufacturado em ponto de tafetá com fio de finíssima espessura. Como se verifica, o seu fabrico em Lisboa estava bastante divulgado nas oficinas muçulmanas, embora se importassem cendais de proveniência estrangeira. A ornamentação em faixas policromáticas algumas delas lavradas a fio de ouro, parece dominar quaisquer outros tipos decorativos mercê da proveniência mourisca da mão de obra e da tradição berbere geometrizante.7
Embora de caráter excecional e repercutindo técnicas e temáticas exóticas (mouriscas e judaicas), a tecelagem em Portugal ainda assim parece ter alcançado resultados de rara excelência, como sucede com a capa de asperges e o manto que a Rainha Santa Isabel ofereceu à Colegiada de Roncesvalles, no Reino de Navarra. Não tendo sido possível encontrar uma imagem da referida preciosidade, limitamo-nos a transcrever a sua descrição, a partir de um inventário da Arte de Navarra. Outro objeto de arte notável é uma capa pluvial, bordada e doada à Casa Real há 600 anos atrás, por Santa Isabel de Portugal, esposa do rei D. Dinis I, que o bordou, assim como um formoso manto para a estátua de Nossa Senhora, venerada na Colegiada de Roncesvalles. A capa apresenta uma soberba imagem lavrada com sedas coloridas, e fios de ouro e prata, que é a proteção usada para evitar a deterioração da moldura de ouro, sob vidro. Representa o calvário com a Magdalena de lado, de joelhos, aos pés da cruz, em que expira o Redentor, e para a esquerda, em segundo lugar, a Santíssima Virgem, sentando-se com S. João e as Marias, aparecendo por detrás Nicodemos e José de Arimateia, que trouxe os vasos para a unção sagrada, acompanhado de outros homens santos. À esquerda, entre vários pilotos, vê-se o Centurião, e em terceiro lugar vêem-se as cruzes onde estão pregados o bom e o mau ladrão, com Jerusalém ao longe, deixando ver-se o céu, o Sol e a Lua entre grupos de nuvens. Esta rica composição de grande interesse para o estudo do imaginário e da arte de desenho no final do século XIII, apresenta semelhanças marcantes com o estilo das iluminações que corriam em Castela, no tempo do rei D. Afonso, o Sábio, sob a influência da arte francesa.8
Um pouco mais antiga, importa referir a Mitra proveniente da Igreja da Ermida , em Castro Daire, que integra a coleção de paramentos do Museu Nacional de Arte Antiga . (fig. 3 e 4)
Fig. 3- Mitra de Castro Daire , séc. XIII, MNAA,
6 BASTOS, Carlos,
Indústria e Arte Têxtil , …p. 162.
7 BASTOS, Carlos,
Indústria e Arte Têxtil , …p. 163.
8 MADRAZO,
Fig. 4- Mitra de Castro Daire , séc. XIII, MNAA)
Pedro de , España. Sus Monumentos Y Artes. Su Natureza E Historia. Navarra y Logroño , Tomo I, 1886, Barcelona, Editorial Daniel Corteza, pp. 456-457.
Tratando-se de um dos mais antigos e melhor conservados tecidos portugueses, a Mitra de Castro Daire foi retirada de um arcaz da Ermida do Paiva para figurar na Exposição de Arte Ornamental de 1882, que antecedeu a criação do Museu Nacional das Janelas Verdes, em Lisboa. Restaurada em Julho de 1971 no Instituto José de Figueiredo, a mesma foi descrita pela Doutora Natália Correia Guedes, como se segue: A mitra, de damasco branco com decoração lanceolada, é constituída por três peças unidas por costuras laterais (não respeitando, portanto, o rectângulo único) e mantêm no entanto, na decoração, a faixa vertical que primitivamente se justificava como disfarce da costura central. A ornamentação geométrica executada com fios de ouro e seda obtida com elementos circulares, envolvendo um motivo floral estilizado (tulipa), elemento comum na gramática decorativa românica. Delimitam a sucessão dos círculos, duas orlas bordadas a ouro, formando faixas dispostas perpendicularmente. A junção das partes laterais é feita com seda verde e carmim, em ponto de espinha. Duas tiras forradas de damasco branco, denominadas “orelhas”, pendem da parte posterior, decoradas com idêntico desenho e terminando em franja carmim. Debruando a base da mitra, nota-se um brocado estreito de veludo carmim, espolinado a ouro.9
Segundo a mesma investigadora, a Mitra de Castro Daire “ constitui um exemplo do maior valor histórico” e “o seu bordado, modulação e tecido a definem como exemplar de gosto requintado ”10. Exemplar portanto de grande valor, a Mitra de Castro Daire integrava o hábito branco da Ordem Premonstratense, e foi executada uma réplica da mesma (fig. 5), pelos alunos do Curso de Restauro de Têxteis do Instituto de Artes e Ofícios de Torres Vedras, da Universidade Autónoma de Lisboa que foi apresentada no Colóquio “ Mosteiro da Ermida. A Ermida do Paiva no Portugal Medieval ” que se realizou recentemente em Castro Daire, em 26 de Novembro de 2012.
Fig. 5- Réplica da Mitra de Castro Daire , 2012, IAO de Torres Vedras
9 GUEDES, 10 Idem,
Natália Correia, A Mitra de Castro Daire , in, Revista O Observador , Lisboa, 1972.
ibidem.
Indústria manufatureira
A partir do século XVII, verifica-se um extraordinário desenvolvimento das artes mechanicas , resultantes da introdução do fabrico em série e da racionalização da produção, que sucediam à produção artesanal e ao fabrico peça-a-peça. A tecelagem passava assim de uma atividade manual realizada a uma escala oficinal, para uma atividade mecânica empreendida a uma escala fabril, sendo implementadas estas inovações no âmbito da orientação mercantilista, com que por toda a Europa se pretendia inverter os saldos negativos da balança comercial, causados pela hegemonia comercial holandesa. O maior divulgador destas novas orientações foi Duarte Ribeiro de Macedo, e as suas ideias encontraram eco nas medidas promovidas pelo Conde de Ericeira, Vedor da Fazenda e ministro de D. Pedro IV, como observa Sousa Viterbo: A dynastía de Bragança, terminada a lucta da autonomia nacional, consagrou-se a promover o desenvolvimento das nossas fabricas, e já no reinado de D. Pedro II se observava esse benéfico impulso, que se tem pretendido atribuir exclusivamente, com menos verdade e justiça, a D. José I, ou ao seu omnipotente ministro.11
O Marquês de Pombal – esse omnipotente ministro – foi o grande promotor das manufaturas têxteis, devendo-se à sua iniciativa a ampliação da Real Fábrica das Sedas da Cotovia (ou do Rato), criada em 1731, no reinado de D. João V, graças à iniciativa de Robert Godin, que a converteu num vasto complexo de instalações fabris, delimitado pelo largo do Rato e pela Rua da Escola Politécnica e estendendo-se, de acordo com plano de edificação do Bairro das Águas Livres, até à Praça das Amoreiras, onde seria plantado um jardim de amoreiras, e instalações para dormitório de operários, as mesmas onde se aloja atualmente o Museu da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Este vasto complexo funcionou, então, como cellula-mater , a partir da qual proliferaram muitas outras, onde se produziam os mais variados artefactos, designadamente louças. Um texto coevo de Francisco Xavier da Silva descreve a Fábrica das Sedas, nestes termos: A da seda, situada em hum grande edifício, que de novo se edificou no sitio da Cotovia, em que se trabalha com tanta perfeição, que não cedem os tecidos ás mais delicadas e vistosas sedas, e a todo o género de telas, tessús, e estofos de ouro e prata, que se lavrão nas mais celebradas fabricas da Europa.
Sobre o volume de produção da Real Fábrica das Sedas, nos seus melhores anos, Acúrsio das Neves informa: No princípio do anno de 1784, o numero de teares de seda em actividade tinha chegado a 236, tendo-se fabricado naquelles 6 annos 11.875 peças que com todas as despezas custarão 723.133$584 rs., e se carregarão para venda em 833.133$477.12
Essencialmente, a Real Fábrica das Sedas produzia estofos de seda, veludos, damascos, gorgorões, brocatéis, chamalotes, cetins, pelucas, tafetás, galões de ouro e de prata, ou de seda bordada, tendo-se desenvolvido para tanto o ensino do desenho, com aplicação dos princípios do debuxo à produção de tecidos, o que evidencia a complexidade crescente da arte de tecer, na medida em que tal exigia o conhecimento da mecânica dos teares, as técnicas de fabrico dos diferentes tecidos e a cópia dos motivos ornamentais, tirados do natural ou de gravuras, havendo para isso “um lente o qual ensinará aos descipulos todas as matérias da 11 SOUSA VITERBO, Francisco Marques de, Artes 12 NEVES,
industriaes …, p. 7.
José Accursio das, Noçoes historicas, economicas, e administrativas sobre a producção e manufactura das sedas em Portugal e particularmente sobre a Real Fabrica do subúrbio do rato e suas anexas , 1827, Lisboa, Imprensa Regia, p. 309.
theoria, e pratica pertencentes à Arte du Debucho, tomando sobre si o provimento de Plantas e flores que necessarias forem para copiar do natural; Fará uma lição de prática, sobre as quadrículas, e regras fiundamentais da Arte.” Mau grado estes avanços, a Real Fábrica das Sedas passaria por várias vicissitudes que não cabe aqui enunciar, sendo que talvez a que mais a prejudicou tenha sido a retirada da Corte para o Brasil, já que eram precisamente a Corte e a Patriarcal, os seus principais clientes. Mas o desenvolvimento têxtil do século XVIII não se confinaria às sedas. Além desta indústria, importa salientar o desenvolvimento da tecelagem do linho e da lã em Portugal, como é reconhecido por autores estrangeiros, como Henry Carcenac, que se refere aos têxteis portugueses enviados para a Exposição Universal de Paris de 1867. Sobre os lanifícios portugueses, o relatório de Henry Carcenac menciona a Fábrica de Lordello do Ouro, no Porto, informando que “ a manufatura de Lordello por meio de 2160 fusos de fiação e dos seus teares mecânicos e manuais, ocupa 242 operários e produz 250 quilos de lã por dia; o salário é de 240 a 280 reis por cada dia de 12 horas de trabalho para os homens, 120 a 200 reis para as mulheres, e de 80 réis para as crianças, que entram nas fábricas a partir dos 8 a 9 anos de idade .”13
Dos novos mecanismos movidos ainda manualmente, importa referir o tear jacquard , de 1801, importante inovação que viria a revolucionar a tecelagem de padrões complexos, e que funcionava de forma programada por intermédio de um sistema de cartões perfurados que constituía, na verdade, uma antecipação da lógica binária da computação moderna. Igualmente relevante tornava-se a produção dos têxteis em algodão, sendo que a matériaprima inicialmente provinha de Cabo Verde, cuja cultura e preparo do algodão na ilha Brava, refere Sousa Viterbo ter “conhecimento por duas cartas de D. Manuel”. Posteriormente importado da Índia, o emprego do algodão, com a sua alvura, viria a ser preferido pela burguesia liberal emergente, pois harmonizava-se melhor com os valores de Igualdade, Fraternidade e Liberdade que apelavam à simplificação da indumentária e dos motivos decorativos, coisa que contrastava com a Corte portuguesa, como observava Madame Junot, zombando da indumentária da então Princesa do Brasil, D. Carlota Joaquina, no trecho que transcrevemos: Ela usava um vestido de chiffon Linde bordado com algodão e ouro, como nós teríamos juntado muitas partes para fazer cortinas... O seu cabelo era meio encaracolado à grega, e estava adornada com uma profusão de joias admiráveis como pérolas e pedras preciosas que eu tinha visto na época em que ainda era jovem, quando nós tivemos a nossa revolução, que nega todas as guarnições deste género.14
Apesar do desacerto da ornamentação rocaille da indumentária de D. Carlota Joaquina, serve esta descrição para mostrar que a realeza portuguesa usava tecidos indianos em receções oficiais, o que não acontecia em França e em Inglaterra, sendo esta preferência pelos algodões motivada por razões de ordem climática. Ao mesmo tempo, porém, por essa preferência anuncia-se a passagem para a fase seguinte: a da tecelagem industrial, onde o algodão viria a constituir a principal matéria-prima.
13 CARCENAC,
Henry, Des laines et des plantes textiles en Portugal et dans les colonies , textiles végétaux et des laines en Italie, en Espagne et en Portugal , 1869, Paris, p. 136. 14 TEIXEIRA, Madalena Braz,
1869, Paris, e também, Des
Bordado de Tibaldinho , In, Catálogo da Exposição no Museu Nacional do Traje , Edição da Câmara Municipal de Mangualde, Instituto Português de Museus e Museu Nacional do Traje, 1998.
De resto, relativamente ao uso do algodão, essa não seria a única originalidade portuguesa, já que segundo o testemunho de Gaston Appert, citado por Sousa Viterbo, “os portuguezes é que introduziram o algodão no Império Japonez”.15 Os têxteis industriais
A indústria têxtil surgiria com a transformação da manufatura em maquinofatura, através de um processo gradual e complexo de modernização dos meios e processos de produção. Em 1738 surgiu a lançadeira volante, inventada por John Kay, que introduziu maior velocidade no funcionamento dos teares, embora continuasse a fiação a ser manual, e usando apenas rodas de fiar de um só fio. Em 1764, surge a fiadeira contínua, spinning-jenny , de Higgs, já com seis fusos, a qual viria a ser melhorada por J. Hargreaves, em 1767, adquirindo a partir de então a capacidade de utilizar 80 fusos, embora só produzisse fio de trama. Tratava-se de uma pequena máquina, ainda de tração braçal, mas que podia ser usada na atividade doméstica, o que lhe assegurou um êxito imediato, calculando-se que, por volta de 1788, existissem cerca de 20.000 jennies em Inglaterra. O passo seguinte foi dado ainda por Higgs que resolveu o problema do fio de urdidura em algodão, de forma a substituir o linho então usado para esse efeito, ao aplicar à jenny cilindros estiradores, sendo necessária já a energia animal ou hidráulica para mover a máquina, facto que levaria a designá-la de water frame : uma máquina que era capaz de produzir um fio duro, em processo contínuo. Depois de aperfeiçoado por Arkwright, o bastidor ou contínuo acabaria por dar origem àquela que pode ser considerada a primeira fábrica moderna, em 1771. Para a sua rentabilização, foi necessidade dar mais rapidez à cardagem, o que se resolveu melhorando tecnicamente os instrumentos já utilizados, mediante a introdução de uma manivela e um pente, tendo registado em 1775 a patente de uma máquina de cardar por cilindros. O bastidor já exigia muito mais do que a energia braçal, pelo que se tornou uma prática fazer a sua instalação junto aos rios, construindo açudes ou aproveitando antigos moinhos, para usufruir da energia hidráulica. Com o fio macio e frágil da jenny , abundante na indústria doméstica, e o fio mais grosso e forte produzido no bastidor, era possível urdir e tramar só em algodão, surgindo assim as chitas, panos leves e baratos, que marcaram o arranque da primeira revolução industrial. Por sua vez, em 1785, Cartwright registava um tear integralmente mecânico, graças à aplicação da força motriz do vapor, fazendo aumentar a capacidade de produção da tecelagem, que, com a generalização e desenvolvimento do equipamento, traz novas exigências de fio. Mas aí, já em 1775 Samuel Crompton começara a desenvolver uma máquina que comportava tanto elementos da jenny como da water frame , a qual pelo seu caráter híbrido viria a ser designada mule , a qual produzia um fio fino e forte, próprio tanto para trama como para urdidura, facto que possibilitava a produção de diferentes tipos de tecido, mediante a combinação dos diversos tipos de fios. A partir de 1785, após se terem extinguido as patentes de Arkwright, as mules tiveram uma expansão imediata, principalmente após a aplicação da energia de vapor às máquinas de fiar, primeiramente aos bastidores, depois às mules , em 1790. Graças à máquina a vapor patenteada em 1767, por James Watt, foi possível dispensar a energia hidráulica, construindo-se grandes fiações no interior das cidades, e já não apenas junto a quedas de água. No entanto, a opção pela energia hidráulica manter-se-ia muito para além de 1800, por um lado devido a questões económicas, em virtude das fiandeiras ou dos
15 SOUSA VITERBO, Francisco Marques de, Artes
industriaes …, p. 12.
teares movidos a vapor terem de ser construídos em ferro e o ferro ser um material raro e caro até cerca de 1850. Mau grado as inovações referidas, o desenvolvimento técnico da fiação e da tecelagem dependia antes de mais da produção de rama de algodão de boa qualidade e em grande quantidade. Em 1793, surgiu nos Estados Unidos uma máquina de descaroçar algodão que viria a substituir o trabalho manual, até então, realizado pelos escravos, facto que permitiu ampliar e acelerar a preparação da matéria-prima e contribuiu para o aumento de produção do algodão americano, capaz de responder à procura das fábricas inglesas. Por volta de 1833, a mudança da manufatura para o sistema fabril, no que dizia respeito ao algodão, avançava rapidamente em toda a indústria têxtil. Em muitas regiões inglesas, porém, a indústria artesanal coabitaria com o sistema fabril. A tecnologia difundiu-se aos outros países europeus e os novos progressos técnicos provocaram o arranque industrial, não sendo Portugal exceção. Nascia assim no País um fenómeno completamente novo que aniquilou algumas das manufaturas portuguesas, obrigando a uma adaptação à nova realidade. Predominavam, então, as pequenas oficinas e o artífice de pouco dinheiro era o tipo de industrial mais comum. As unidades maiores eram ou estatais ou construídas com empréstimos do governo. Pioneira deste novo ciclo do algodão, foi a Fábrica de Fiação do Rio Vizela que entrou em laboração no ano de 1845, em Negrelos, Santo Tirso, como refere Jorge Fernandes Alves: Liderada por um técnico francês, Eugene Cauchoix, que arrasta consigo um grupo de industriais de tecelagem e de negociantes do Porto, os quais comparticipavam do capital e asseguravam o escoamento ao fio produzido pelas fábricas de tecelagem que detinham, esta fiação representa uma tentativa, com sucesso, de produção mecanizada de produção de fio, a partir do aproveitamento da energia hidráulica.
Assiste-se assim a uma “deslocalização” fabril das cidades, neste caso do Porto, para as zonas rurais, determinada essencialmente pelos menores custos de produção que os aproveitamentos hidráulicos propiciavam, desenvolvendo-se uma procura de lugares servidos por cursos de água suscetíveis de aproveitamento hidráulico motriz, ao mesmo tempo que aprestavam vantagens noutros domínios, como preço dos terrenos e disponibilidade de mão-de-obra, que compensavam o afastamento dos mercados. A partir de 1870 observa-se a criação de outras fábricas algodoeiras no Vale do Ave, com a instalação da Fiação do Bugio, em Fafe, datada de 1873. Do Porto, vão então partir mais algumas iniciativas fabris para a província, destacando-se na direção da bacia do Ave, a Companhia Rio Ave, que estabeleceu uma Fábrica de Fiação e Tecelagem, em Retorta, Vila do Conde (1878), deslocalizando a indústria das cidades para a província. Quadro nº 1 - Indústria têxtil do Vale do Ave face à dimensão nacional
Pelos dados apresentados, verifica-se o peso do setor algodoeiro no Norte do País, e designadamente no Vale do Ave. No início da década de 1950 verifica-se uma revitalização da indústria algodoeira, com a criação de dezoito fábricas novas, e ampliação de setenta e sete instalações, o que se traduziu por um aumento de produção e da consequente procura de mercados, tendo a produção, apesar das limitações, crescido cerca de 50% entre 1947-1957. Este aumento da capacidade de produção não teve, durante muito tempo, correspondência no abastecimento de algodão ultramarino, e como este era efetuado em regime de cotas, levava a indústria, na impossibilidade de importar algodão do estrangeiro, a optar por laborar abaixo da sua capacidade de laboração, sendo que entre 1948/1956, o setor algodoeiro só utilizava cerca de 60% ou 70% da sua capacidade. A partir de 1960, com o crescimento do setor algodoeiro na zona norte do país, desenvolveuse uma atividade comercial considerável, então, com as colónias, tanto na aquisição de matérias-primas como no escoamento da produção têxtil. A Revolução dos Cravos e a consequente descolonização vieram portanto alterar o quadro em que operava o setor, como explica Alves: Traumático foi, sem dúvida, o difícil processo relacionado com a perda do mercado colonial, a reconversão produtiva para mercados mais exigentes, em paralelo com o despertar sindical do operariado envolto em forte ideologização, tudo no após 25 de Abril de 1974. Vendo fugir-lhe segmentos como a fiação e a produção de menor qualidade, por imposição do reordenamento da economia global, a indústria têxtil do Vale do Ave aposta agora noutros segmentos do mercado a jusante, como a confecção, e, sobretudo, na qualidade da produção, de que durante tanto tempo andou arredia, ao mesmo tempo que incorpora mais valor acrescentado a produtos destinados aos mercados internacionais, dinâmica ancorada num conjunto algo restrito de unidades bem apetrechadas, bem como nas virtualidades do franchising.
Os têxteis como Arte
Uma resenha sobre a História da tecelagem e dos têxteis em Portugal não poderia finalizarse sem fazer referência à arte do Bordado e da Tapeçaria, a partir dos seus exemplos mais notáveis: o Bordado de Castelo Branco e as Tapeçarias de Portalegre. Começando pelo último, importa referir que a história das tapeçarias de Portalegre é uma história recente. Data de 1946, quando dois amigos, Guy Fino e Manuel Celestino Peixeiro, resolveram fazer reviver a tradição dos tapetes de ponto de nó, em Portalegre, tendo Manuel do Carmo Peixeiro, pai de Manuel Celestino, desafiado os dois jovens a fazer tapeçaria mural com um ponto inventado por ele, anos antes, enquanto estudante têxtil em Roubaix. A primeira tapeçaria surgiu logo em 1948, sob cartão de João Tavares. Pintores consagrados como Júlio Pomar, Maria Keil, Guilherme Camarinha, Renato Torres, Lima de Freitas, foram dos primeiros a colaborar com a Manufatura de Tapeçarias. O reconhecimento e a aceitação da tapeçaria de Portalegre só aconteceram em 1952, pela mão dos próprios tapeceiros franceses que se deslocaram a Portugal para a grande exposição “A Tapeçarias Francesa da Idade Média ao Presente”. Guy Fino, aproveitando a ocasião, resolveu pôr em confronto as duas técnicas, expondo simultaneamente no SNI duas grandes tapeçarias sob cartão de Guilherme Camarinha que tinham sido tecidas para o Governo Regional da Madeira. Os técnicos franceses, convidados a visitar esta exposição, admiraram a técnica e a perfeição conseguida com o ponto de Portalegre. Estavam lançadas as tapeçarias de Portalegre
Tapeçaria mural decorativa, a tapeçaria de Portalegre é única desde logo pela técnica usada para traduzir o cartão do pintor, sendo este ampliado para a dimensão final sobre um papel quadriculado próprio, em que cada quadrícula representa um ponto (desenho de tecelagem). Seguidamente, é feita a escolha das cores, fazendo a equivalência entre o original e as mais de sete mil cores da paleta de lãs da Manufatura. As cores escolhidas são indicadas no desenho de tecelagem através de um número de referência, sendo as diversas zonas de cor coloridas com aguadas indicativas, de modo a auxiliar as tecedeiras na identificação da trama a usar. Uma vez pronto, o desenho de tecelagem constitui o original para as tecedeiras. É então suspenso no tear, juntamente com os novelos de lã. A Tapeçaria de Portalegre é tecida manualmente, em teares verticais, do lado do avesso, começando pela base. A trama decorativa, de lã, envolve completamente os fios da teia, correspondendo a uma densidade de 2.500 pontos/dm2. Finalmente, em relação aos Bordados de Castelo Branco, importa referir que o seu ressurgimento ocorreu no primeiro quartel do século XX, a partir do momento em que Maria da Piedade Mendes (1888?-1984) encontrou um conjunto de colchas de linho bordadas a seda, guardadas em arcas herdadas pela sua família, as quais viriam a servir de modelo para os trabalhos que desenvolveu ao longo da vida com uma perfeição notável. No ano de 1929, ao participar na Sexta Sessão do IV Congresso Beirão, realizada em Castelo Branco, Maria Júlia Antunes, professora do Liceu Infanta D. Maria em Coimbra, apresentou a sua tese Rendas e Bordados das Beiras onde faz referência aos “bordados albicastrenses, genéricamente chamados a frouxo”, pela primeira vez divulgados em público com a designação que os associa à cidade beirã. Alguns dos elementos destes bordados são o pássaro bicéfalo que representa as Duas Almas Num Corpo Só; as árvores que representam a Vida; os dois pássaros – os Desposados; os Cravos alegorizam o Homem; as rosas – a Mulher; os lírios – a Virgindade; os corações – o Amor; as gavinhas – a Amizade; o galo – a Virilidade; as romãs e as pinhas – a união e a solidariedade indissolúvel da Família; as frangas e os galaripos – a Prole bendita e os lagartos – o amuleto da felicidade sempre muito desejada, entre outros. Considerações finais
Pela breve resenha apresentada, podemos aperceber-nos das origens, da história e do valor socioeconómico e artístico dos têxteis no âmbito da atividade humana. Seja pela sua utilidade seja pela sua sumptuária ou pela sua simbólica, os têxteis, além do entrecruzar fio, ajudam igualmente a tecer a História da própria Humanidade, a qual por sua vez não deixa de ser também urdida e tramada.
View more...
Comments