Oliveira, Joao Pacheco-Laudo Sobre Caxixos

February 8, 2018 | Author: Rodrigo Lopes | Category: Anthropology, Oral History, Trials, Sociology, Discourse
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OS CAXIXÓS DO CAPÃO DO ZEZINHO: UMA COMUNIDADE INDÍGENA DISTANTE DE IMAGENS DA PRIMITIVIDADE E DO ÍNDIO GENÉRICO

RELATÓRIO ENCAMINHADO À FUNAI FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO EM CUMPRIMENTO DO CONTRATO DE CONSULTORIA DGEP 30/2000

João Pacheco de Oliveira Museu Nacional/UFRJ

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2001

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SUMÁRIO

Apresentação ..............................................................................03 Um novo gênero de saber administrativo....................................05 Laudos antropológicos e outros gêneros ....................................07 Uma estratégia para a execução de laudos .................................15 Um mau paradigma para o reconhecimento de direitos .............18 A crítica das fontes e o uso diferenciado da História .................23 O lugar da arqueologia nos laudos antropológicos ....................26 As situações etnográficas ...........................................................29 O antropólogo como inquisidor .................................................30 Outras condições para o trabalho etnográfico............................37 A situação observada em campo................................................41 O etnônimo Kaxixó....................................................................42 A identidade de “indígena” ......................................................47 A conceituação de "índio".........................................................51 Conclusão: As bases para o reconhecimento étnico ................56 Referências bibliográficas ........................................................59 Anexo: Relatório de Atividades

APRESENTAÇÃO

Em 1994, por solicitação da FUNAI, foi elaborado o “Laudo Antropológico sobre a Comunidade denominada Kaxixó” (23 p.) por Maria Hilda Baqueiro Paraíso,

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então mestre em Ciências Sociais e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Nesse texto a autora

concluía que

os assim

denominados Kaxixó “no momento não formam uma comunidade indígena como é pensada jurídica e antropologicamente” (Paraíso, 1994,p. 20). Em 1999, em cumprimento de demanda da Procuradoria Geral da República no estado de Minas Gerais, foi redigido por Ana Flávia Moreira da Silva, antropóloga da 6ª Câmara do MPF/MG e mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, o trabalho intitulado “A História Tá é Ali, Sítios arqueológicos e etnicidade: os Kaxixó de Martinho Campos e Pompéu, MG” (187 p.), que chega à conclusão diametralmente oposta, reconhecendo os autodenominados Kaxixó como apresentando as características socioculturais necessárias para sua classificação como uma “comunidade indígena”. Tendo em vista as inúmeras manifestações sobre tal assunto, bem como a existência de posições contrárias assumidas por diferentes instituições e organismos públicos, as quais se reportam para efeitos de legitimação a essas análises antropológicas divergentes, a agência indigenista oficial, FUNAI,

propôs-me a

realização de uma consultoria antropológica que lhe fornecesse “uma avaliação técnica detalhada dos laudos antropológicos existentes sobre a comunidade Kaxixó”, oferecendo-lhe “parâmetros e subsídios (...) no sentido de decidir sobre o reconhecimento formal da identidade indígena da comunidade autodenominada Kaxixó” (cláusula 1.1). O parecer que se lerá a seguir tem portanto como finalidade refletir sobre o processo político-administrativo de reconhecimento dos Kaxixó, priorizando uma análise crítica do conhecimento existente e acumulado na agência indigenista sobre o assunto (sejam saberes produzidos por iniciativa da FUNAI ou de outras equipes e instituições,

todos

no

entanto

disponibilizados

e

incorporados

ao

material

administrativo). À diferença de um estudo monográfico sobre uma população ou coletividade específica, baseado primordialmente seja em bibliografia específica seja em atividades entendidas como de campo, esse parecer não tem tais fontes como seu foco principal e dinâmico. A pesquisa de campo e bibliográfica foi ao contrário dirigida para pontos bem específicos, identificados a partir da leitura e análise preliminar dos laudos existentes, que nortearam o processo de investigação. O ponto de partida foram justamente os dados e interpretações antagônicas, que se buscou explicar seja por sua relação com os

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cânones da investigação antropológica e histórica, seja com a dimensão implícita das conceitualizações, hipóteses e estratégias de pesquisa adotadas, seja ainda por sua coerência interna. O acesso ao campo e aos documentos escritos resultam do desejo de verificar a base empírica de determinadas informações, contextualizar melhor certos fragmentos de discurso, conectar estratégias sociais e atores sociais específicos, explicitar certos argumentos e representações e acompanhar sua distribuição entre a população considerada. O trabalho de campo e a pesquisa bibliográfica, ao permitirem especificar contextos e qualificar interlocutores, funcionaram assim como instrumentos para o aprofundamento da compreensão de situações etnográficas específicas e dos produtos de conhecimento (os laudos) daí derivados. Em um relatório anexo, entregue anteriormente (fevereiro/2001) à FUNAI, estão descritas as atividades de pesquisa desenvolvidas. Durante o período de campo contei com a valiosa colaboração da historiadora Paula Caleffi, da UNISINOS (RS), com quem também discuti durante a preparação desse parecer, contribuindo em especial na crítica à utilização de material histórico. A responsabilidade pela análise apresentada nesse parecer, sobretudo por eventuais lacunas ou distorções, é inteiramente minha.

UM NOVO GÊNERO DE SABER ADMINISTRATIVO

Foi na segunda metade da década de 80 que a expressão “laudo antropológico” começou a ser utilizada de modo sistemático, indicando um novo gênero de saber administrativo, centrado na articulação entre um solicitante – uma autoridade judiciária – e um perito – um especialista independente e altamente qualificado. Em 1987 tramitavam no STF 54 ações contra a União, requerendo vultosas indenizações pelas medidas administrativas de reconhecimento da posse indígena sobre a área do Parque do Xingu. O argumento utilizado era que tratava-se de terras devolutas que teriam sido legitimamente vendidas a particulares pelo estado de Mato Grosso; ou seja, que no momento dessa venda não era mais registrada presença indígena. Estimavase que o montante das indenizações pretendidas poderia chegar a 102 bilhões de dólares – então cerca de um terço do PIB brasileiro. Duas dessas ações inclusive, no valor de 6 milhões de dólares, já haviam sido julgadas e perdidas pela União (Peter, Cynthia – “Saque contra a União”, revista Senhor, 22/12/1987).

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A Procuradoria Geral da República, alarmada com o que parecia ser uma verdadeira “indústria de indenizações” - que envolvia um único escritório de advocacia e um conjunto de perícias técnicas realizadas em geral por engenheiros, utilizando-se muitas vezes apenas das técnicas de sobrevôo e da leitura de livros de viagem procurou cercar-se de documentação que comprovasse a continuidade da presença indígena na região. A consulta aos arquivos da agência indigenista revelou-se insuficiente para a instrução dos processos. Paradoxalmente os melhores subsídios procediam, seja de mapas de 1954 do Departamento de Aeronáutica Civil/DAC (localizando índios entre os paralelos 14 e 19) e de plotagens realizadas pela Divisão de Serviços Geográficos/DSG do Exército (lançando dúvidas sobre a incidência dessas glebas dentro dos limites do Parque), seja de uma cuidadosa argumentação de natureza histórica e antropológica desenvolvida por antropólogos e lingüistas indicados pela Associação Brasileira de Antropologia e que há muitos anos realizavam estudos com os povos e culturas da região xinguana. No ano seguinte entrou em vigor um protocolo de intenções entre a PGR e a ABA para a realização de estudos e laudos periciais voltados para subsidiar e apoiar tecnicamente os trabalhos do Ministério Público Federal na defesa da União em causas judiciais atinentes às terras indígenas. A colaboração entre antropólogos, juizes e procuradores ampliou-se rapidamente para outras áreas indígenas, bem como para outras questões judiciais. Na 17ª Reunião Brasileira de Antropologia já um Grupo de Trabalho iniciava os debates sobre o tema. A referência mais permanente e importante nessa matéria no entanto foi o Seminário intitulado “A Perícia Antropológica em Processos Judiciais”, promovido pela ABA em São Paulo, de 2 a 4 de dezembro de 1991, com a colaboração do Ministério Público Federal, da FINEP, da Comissão Pró-Índio (SP) e da USP (através da Faculdade de Direito e do Departamento de Antropologia, local onde se realizou o encontro. Nessa ocasião foram reunidas duas dezenas de especialistas (antropólogos e advogados) que apresentaram comunicações e debateram exaustivamente suas experiências. Disso resultou a elaboração de um livro, publicado em 1994 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, com o mesmo título do seminário, que teve extensa circulação e constitui-se ainda atualmente em matéria de consulta e leitura obrigatória no que toca à temática dos laudos antropológicos. Criou-se no âmbito da ABA uma tradição de discutir essa temática nos encontros nacionais, o que iria desdobrar-se em

debates nas posteriores reuniões

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bianuais da associação (1994, em Niterói; 1996, em Salvador; 1998, em Vitória; e em 2000, em Brasília), além de outros fóruns mais específicos

(como o Seminário

realizado na UFF, em junho/2000 e a oficina em Ponta das Canoas (SC), em novembro/2000). Do ponto de vista do Ministério Público Federal, além de outros encontros mais gerais, caberia destacar os seminários de procuradores e antropólogos integrantes da 6ª Câmara, realizados nos últimos anos (Cuiabá, 1995 até Florianópolis, 2001).

LAUDOS

ANTROPOLÓGICOS

E

OUTROS

GÊNEROS

DE

SABER

ADMINISTRATIVO

Tal recuperação histórica é imprescindível para uma avaliação adequada dos dois laudos existentes sobre os Kaxixó, produzidos em contextos muito distintos. Foi somente a apresentação e discussão de laudos e reflexões específicas em sucessivos contextos acadêmicos e profissionais, aliada à circulação progressiva da coletânea organizada pela ABA/Comissão Pró-Índio (1994) entre os antropólogos (especialmente aqueles encarregados da feitura de laudos), que conduziu a um relativo consenso sobre a natureza de um laudo. É necessário ter presente que isso só veio a ocorrer na segunda metade da década de 90, de certo modo coincidindo com a renovação do Protocolo ABA/PGR (1996), com a ampliação do quadro técnico de antropólogos do MPF e com a extensão da requisição de laudos aos casos de coletividades “remanescentes de quilombos”(e não apenas às terras indígenas). O trabalho elaborado por Maria Hilda Baqueiro Paraíso, datado de novembro de 1994, resulta de uma pesquisa iniciada em meados de 1993. No período imediatamente anterior a autora havia realizado três trabalhos sobre diferentes situações indígenas em Minas Gerais – Xakriabá, Krenak e Maxakali. Ainda que as finalidades, os contextos de produção e as estruturas narrativas fossem absolutamente diversas, os três produtos são igualmente denominados de “laudos”. O primeiro destinava-se a comprovar a identidade étnica dos Xakriabá, que tinham sido objeto de mortes, violências e crueldades por parte de regionais; visava fundamentar o Ministério Público e os advogados de acusação dentro de um processo de enquadramento de não indígenas por crime de genocídio. Seguia a forma de um texto corrido, com uma conceituação sobre identidade étnica; com reflexões sobre racismo,

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preconceito e miscigenação; uma breve trajetória histórica; e terminando com um capítulo sobre organização social. Já o laudo Krenak era composto em resposta aos quesitos formulados pelas quatro partes intervenientes no processo (o Juiz Federal, a PGR, a FUNAI e o advogado dos fazendeiros). À diferença dos Xakriabá existia uma extensa documentação sobre a história do contato desde o século XVI até as últimas décadas, bem como sobre a atuação local das agências indigenistas (SPI e FUNAI) e de seu relacionamento com as autoridades estaduais. A extensão e intensidade das informações contidas no laudo sobre os Krenak (114 p.) revela-se como muito superior ao laudo Kaxixó, pois resultou de um trabalho com duração de 13 dias de uma equipe integrada por três estudantes de Ciências Sociais da UFBA, além de dois antropólogos da FUNAI, um do MPF e um indigenista. O terceiro laudo era uma tentativa de elaboração de subsídios para uma possível e futura demanda fundiária dos Maxakali quanto ao caráter descontínuo das duas áreas em que se distribuem. Nesse caso o trabalho foi iniciado a partir da bibliografia etnológica e da tradição oral dos Maxakali, sendo concluído com o produto de buscas documentais. 1 O trabalho realizado sobre os Kaxixó apresentava, por sua vez, uma característica bem distinta dos três anteriores, destinando-se não a uma instância jurídica, mas sim administrativa. Tratava-se de subsidiar a FUNAI na tomada de decisão quanto ao reconhecimento (ou não) dessa coletividade como indígena, decisão que implicaria no início de um processo de proteção e assistência que resultaria na regularização de terras, na presença de indigenistas e em atuação em educação e saúde. Os recursos para a implementação da viagem bem como o apoio logístico (viatura, motorista e técnico-indigenista da região) provinham do órgão indigenista, que era quem dava o enquadramento político e material mais geral à investigação e aos contatos realizados. Ou seja, a atividade do antropólogo era concebida como integrando a maquina administrativa, como um instrumento direto de ação indigenista. É nesse sentido – de uma Comissão encarregada de resolver uma questão administrativa - que pode ser entendida a menção feita logo no início do texto quanto às “dificuldades que vínhamos enfrentando para encontrar dados relativos ao grupo”, sendo então proposta a

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Como Alvarez (2000) veio a descrever anos depois, a questão da reunificação das duas áreas Maxakali é um processo social bem mais complexo do que uma simples agregação territorial, o que recomendaria mais pesquisa de campo e maior cautela ao tentar “antecipar” demandas indígenas.

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um de seus líderes “algumas possibilidades de solução para o problema vivido pela comunidade” (p. 2). Cabe notar que naquele contexto histórico existia uma outra modalidade de saber administrativo – os antigos relatórios de grupos de trabalhos para identificação de terras indígenas – que em muito se aproximavam da estrutura do laudo Kaxixó elaborado por Paraíso (1994), inclusive respondendo pelos seus limites. Eram muito raras as cobranças administrativas quanto a textos ou documentos de reconhecimento étnico, isso sendo focalizado dentro do relatório de identificação de terras, esse sim considerado um componente indispensável e fundamental ao processo de assistência. Em geral o reconhecimento dessa coletividade como indígena não passava de uma parte menor do relatório de identificação, quando não se limitasse a ocorrer via alguma carta, informação técnica ou relatório genérico de viagem. À diferença de um trabalho de campo realizado por antropólogo, as atividades a serem desenvolvidas na identificação de terras indígenas estavam sempre associadas a uma equipe interdisciplinar e a múltiplas instâncias (FUNAI, INCRA, institutos estaduais de terras, por exemplo) de governo. O tempo de trabalho de campo não é concebido segundo as expectativas de uma pesquisa antropológica, que exige a construção uma relação densa e prolongada com a comunidade, mas como o tempo meramente técnico de execução das atividades cartográficas, do levantamento fundiário ou ainda das comissões políticas de arbitragem (Oliveira & Almeida, 1998). Compartilhado com profissionais de outras formações técnicas, o tempo em campo revela-se como muito limitado e insuficiente, afetando profundamente o modo de condução da investigação, que passa a operar com contatos muito seletivos e dirigidos dentro da comunidade, privilegiando líderes e intermediários (isto é, informantes que se apresentam exclusivamente como porta-vozes da coletividade). No caso da pesquisa realizada por Paraíso, o tempo total de trabalho de campo reduziu-se a dois dias (2 e 3 de junho de 1994), que incluíram igualmente visita às cidades próximas (Martinho Campos, Pompéu e Pitangui), contatos institucionais, visita a antiga sede de fazenda de D. Joaquina e busca de documentos. A relação direta com a comunidade Kaxixó limitou-se a uma visita de algumas horas ao Capão do Zezinho (manhã do dia 2); de resto houve uma breve e pouco frutífera visita ao “bairro” Várzea do Galinheiro, na periferia de Pompéu (manhã de 3), além de uma rápida passagem pelos sítios arqueológicos (tarde do dia 2) e de uma conversa em Pompéu para acertos finais com o vice-cacique sobre os desdobramentos futuros do trabalho (p. 1 e 2).

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As críticas formuladas ao antigo padrão de relatório de identificação de terras indígenas 2 aplicam-se perfeitamente ao laudo Kaxixó elaborado por Paraíso. Não houve qualquer esforço no sentido de levantar ou obter dados básicos que permitissem uma caracterização etnográfica mínima da comunidade visitada. Não se sabe quantas são as famílias e casas que integram a comunidade Capão do Zezinho, nem quais são as relações que essas pessoas mantém entre si nem com outras localidades vizinhas. Não é apresentado sequer um censo de população, um mapa da aldeia, fragmentos genealógicos de qualquer natureza, nem mesmo uma simples transcrição de depoimentos de informantes variados. Uma comunidade deve ser construída pelo pesquisador através da observação positiva das pessoas que as integram, dos nexos que as unem, das interações que realizam, dos interesses e valores que perseguem, das estratégias que colocam em prática no cotidiano. Não é correto operar com uma totalidade retificada e desprovida de conteúdos concretos, limitando-se a enquadrá-la (ou recusá-la) como um mero exemplar de uma noção genérica de “comunidade indígena”. Na dimensão cronológica a diretiva seguida por Paraíso se expressa através de uma história construída principalmente a partir de fontes historiográficas genéricas 3 , lidas com pressa e superficialidade, à contraluz das narrativas sobre o massacre colonial e a dizimação dos modos de vida e das culturas autóctones. Também nos antigos relatórios de identificação uma grande atenção é dedicada aos primeiros contatos, sobre os quais é mais comum a existência de registros escritos (afinal são as crônicas da conquista!), enquanto pouco existe disponível sobre o passado imediato (as relações de dominação cotidiana ou as práticas administrativas). O laudo de Paraíso igualmente discorre com vagar sobre a história mais remota, descrevendo desde as primeiras entradas na região (1601-1602) até a instalação do capitão Inácio em Buriti da Estrada em 1748, em um relato que se estende praticamente por toda a parte III (“pequeno quadro da ocupação histórica e das relações interétnicas” – p. 5-11). Ao contrário não há qualquer indicação efetiva sobre o que se passou nos últimos duzentos e cinqüenta anos. A ausência de menção à “índios” em relatos de viajantes e documentos administrativos não é algo que deva gerar surpresa ou estranhamento, pois não se trata de uma população bravia e arredia, nem mesmo missionarizada em relativo isolamento, 2 3

Vide Oliveira, 1998 e PPTAL/FUNAI, 1999, entre outros. Como Basílio de Magalhães, John Hemming, entre outros.

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mas sim inserida em relações econômicas e políticas de dominação! O que não nos pode de maneira alguma levar a pré-julgar que tais famílias e pessoas não construam uma identidade diferenciada, nem mantenham uma sociabilidade própria, inclusive com concepções muito distintas do universo social circundante. A utilização de fontes específicas, de documentos efetivamente comprobatórios, é muito rara e casual. Não é realizada uma interpretação cuidadosa das fontes citadas, de seus limites e de sua positividade, inexistindo um exercício de peneiramento e crítica das fontes consultadas. A história funciona assim como um simples discurso legitimador do que já se supõe conhecer. Ao cabo o produto de uma investigação como essa é menos uma peça técnica de conhecimento, fundada em procedimentos correntes na Antropologia, e mais a recomendação de uma dada modalidade de ação indigenista, acompanhada de justificativas para a sua adoção. Os dados, métodos e conceitos da Antropologia limitam-se a um papel totalmente secundário, servindo apenas para evidenciar a dificuldade em reconhecer a comunidade Kaxixó como indígena e estabelecer um território comum compartilhado (p. 20). Paralelamente a autora encaminha propostas e soluções administrativas alternativas, como é o caso da requisição de indenização pelos Kaxixó por sua condição de “descendentes de escravos africanos”, vindo a ser tais valores aplicados na aquisição de terras contíguas, que pudessem permitir a manutenção da unidade social da terra que ocupam (p. 20-21). Em contraste com as indefinições de estilo e finalidades contidas no laudo de Paraíso, o trabalho elaborado por Ana Flávia Moreira dos Santos apresenta-se como um exercício rigoroso de utilização de conceitos e métodos da Antropologia no sentido de produzir subsídios técnicos à tomada de uma decisão por autoridade jurídica ou administrativa. Construído a partir de um contexto intelectual em que os debates teóricos sobre os laudos antropológicos já estão muito mais consolidados, a autora não demonstra qualquer indefinição ou ambigüidade quanto à natureza e às finalidades de um laudo, afastando-se totalmente de outros tipos de saberes administrativos, acadêmicos ou de vulgarização. Em primeiro lugar cabe observar que os dados etnográficos apresentados são qualitativamente distintos do laudo de 1994. A investigação foi realizada através de um maior número de visitas ao campo, que se prolongaram por um período de mais de um ano, implicando em contatos expandidos e regulares com a grande maioria das famílias integrantes da comunidade. Nessas ocasiões dados puderam ser solicitados, testados e

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corrigidos, havendo ocasiões em que tais visitas se desdobraram em uma imersão total e convivência continuada com a comunidade (ainda que por períodos limitados). Cabe mencionar o importante material etnográfico e histórico produzido por equipe conjunta do CEDEFES/ANAÍ, coordenado por Vanessa Alvarenga Caldeira, do qual participaram Alenice Mota Baeta, arqueóloga, Isabel Missagia de Mattos, doutoranda de Antropologia da UNICAMP, e José Augusto Laranjeiras Sampaio, antropólogo. Além de extensa pesquisa bibliográfica e documental foram realizadas em um período de onze meses, de fevereiro de 1998 a janeiro de 1999, seis visitas à comunidade, cada uma delas implicando em uma permanência de três dias. Dessa atividade resultou um relatório intitulado Kaxixó: Quem é esse povo? , com 77 páginas, 11 anexos e 46 fotografias (totalizando 159 p.), que fornece subsídios relevantes. Em grande parte os resultados dessa investigação foram incorporados e estão refletidos na argumentação utilizada por Santos (1998). Uma dos pontos de maior interesse no laudo apresentado por Santos (1998) é o esforço de crítica e contextualização das fontes documentais utilizadas por Paraíso. Uma leitura acurada da bibliografia e uma consulta muito mais extensa a arquivos e especialistas, possibilitou importantes retificações no que concerne a categorias, localidades, eventos e personagens mencionados no laudo de 1994. Como resultado disso a sua reconstrução histórica é muito fina, consistente e persuasiva, procedendo a demonstrações e especificando claramente os seus limites, o que confere ao texto um caráter exemplar.

UMA ESTRATÉGIA PARA A EXECUÇÃO DE LAUDOS

Dentro do movimento de contextualização histórica dos debates sobre os laudos antropológicos foi apontado no capítulo anterior a influência exercida por outros saberes administrativos na feitura concreta de alguns laudos realizados na primeira metade da década de 90. Tal esforço de contextualização tem prosseguimento nesse capítulo com as concepções expostas pela autora de um desses laudos (Paraíso, 1994) – que participou ativamente dos debates e discussões realizadas sobre os laudos antropológicos no âmbito da ABA (1990 e 1991) – nesses contextos. No Seminário acima mencionado, ocorrido na USP em 1991, Paraíso apresentou comunicação em sessão intitulada “A Construção da Perícia Antropológica: Metodologia e Objetivos”, coordenada pelo prof. Orlando Sampaio Silva.

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Posteriormente essa comunicação, como todas as demais do Seminário, foram reelaboradas pelos participantes e disponibilizadas amplamente através da publicação de 1994. O texto com o qual Paraíso (1994b) participou dessa coletânea, chamado “Reflexões sobre Fontes Orais e Escritas na Elaboração de Laudos Periciais” (p. 4251), foi seguramente redigido antes da preparação do Laudo Kaxixó – no qual ela utiliza extensamente tal publicação – e oferece uma indicação precisa das preocupações da autora durante a realização do laudo Kaxixó. Nesse artigo Paraíso procura demonstrar que, na formulação de um laudo pericial, “o antropólogo vê-se obrigado a ultrapassar essas limitações impostas por informações viciosas (sic) da História Oficial” (1994b, p. 44). As duas dificuldades básicas seriam “o caráter ideológico da produção histórica” (idem, p. 43) e a “falta de credibilidade” atribuídas ao uso das fontes orais (idem, p. 47). Sobre o primeiro ponto a sua postura é bem clara: “Para a nossa sociedade, as fontes escritas, produzidas, portanto, por seus representantes, são as verídicas. A análise crítica da ideologia e interesses do autor em fornecer tal versão é considerada como dispensável. É como se pelo fato de ter sido escrito, e por “brancos”, lhes garantisse a sonhada neutralidade axiológica. Particularmente se corrobora a versão que beneficia os ocupantes nacionais das áreas indígenas” (idem, p. 46). Quanto ao uso das fontes orais – ainda que a autora lembre ao início que as imprecisões de que costumam ser acusadas podem também ser atribuídas às fontes escritas (idem, p. 43) – ela recomenda ao antropólogo, dada à suspeição que sobre elas se abate, um uso “com parcimônia”: “O grande achado estratégico é encontrar informações da tradição oral que se cruzam e são confirmadas pelas fontes documentais escritas, o que quase nunca ocorre com a freqüência desejada” (idem, p. 47). No laudo Kaxixó, Paraíso adota essa mesma estratégia de investigação e argumentação. “Sabíamos, antecipadamente, que encontraríamos dificuldades na elaboração do laudo. Uma delas seria a identificação e localização da documentação referente ao grupo e a de compatibilizar esses dados obtidos através da memória do grupo. Por outro lado sabemos que os dados do segundo tipo, devido à supervalorização da escrita na nossa sociedade, necessitam de pontos de confluência com informações documentais para serem aceitas como prova pericial” (1994,p.3). Há uma contradição entre as duas dificuldades apontadas no artigo de 1994: a primeira aponta para uma crítica geral, que refere-se à natureza dos dados históricos; a segunda é formulada de maneira pragmática, com a intenção de ajustar-se aos

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preconceitos e etnocentrismos. Ainda que os dois textos (o artigo e o laudo, respectivamente 1994b e 1994) reflitam uma postura comum, neles operam duas sintonias bem distintas em termos de tom e de ênfase. No primeiro, de caráter mais geral e destinado a um foro acadêmico, a conjunção entre fontes orais e documentais é vista como uma solução feliz; no segundo texto, há uma diretiva nitidamente autodefensiva. Isso se expressa por meio de uma grande preocupação com o descrédito e as penalidades que podem incidir sobre o perito em função de “informações inverídicas” (p.3) ou da apresentação de “dados que não podem ser comprovados” (p.4). Os riscos de uma perícia são bastante acentuados por Paraíso: “Além do descrédito profissional, tal atitude poderá implicar, segundo a lei, em inabilitação para o exercício de novas perícias e na possibilidade de ser processado criminalmente (art. 147 do CPC)” (p. 3). Há uma diferença muito grande, contudo, entre afirmações inverídicas (por Paraíso listadas como resultantes de “má fé, negligência, imprudência ou imperícia” – p.3) e outras que apresentam grandes dificuldades para ser comprovadas. A impossibilidade de comprovação pode ser circunstancial ou decorrer da própria natureza dos dados ou dos processos históricos que os geraram, como iremos considerar a seguir, mas nada permite estabelecer uma igualdade entre verdade e fonte documental. O temor pela responsabilidade processual implicada na perícia leva a uma concepção totalmente distorcida dos objetivos e limites desse gênero de saber jurídico e administrativo. Nessa linha Paraíso define a natureza do laudo que está iniciando: “...produzir informações que permitam a formulação de um julgamento por parte dos interessados, evitando a fragilidade de apresentar dados que não podem ser comprovados” (p. 4). Ao realizar tal opção o antropólogo e o historiador declinam do exercício de análise e de crítica para lançar-se de braços abertos na falsa segurança de uma narrativa compatível com a história oficial, que naturaliza os fenômenos históricos, legitima os interesses dominantes e inviabiliza o reconhecimento de direitos de grupos e populações que foram objeto de largos processos de dominação.

UM MAU PARADIGMA PARA O RECONHECIMENTO DE DIREITOS

A história, seja ela baseada em documentos ou na oralidade, é uma construção interpretativa. Na perspectiva dessa disciplina é importante compreender quais foram os paradigmas teóricos conceituais que nortearam as análises presentes nos dois laudos,

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bem como as escolhas em que implicaram essas abordagens, haja visto que estas definições são responsáveis pelos caminhos percorridos pelas pesquisas e obviamente pelos diferentes resultados atingidos por elas. Estas escolhas constituem-se no que White chama de meta-história, ou seja, - aqueles paradigmas que apesar de não estarem explicitados, são responsáveis pela construção do discurso histórico (White, 1995 p.11). Em termos de uma demografia histórica o Brasil constituiu-se como um ponto de convergência de grupos populacionais oriundos de três continentes, portadores de uma grande diversidade cultural interna. Tanto os indígenas americanos como aqueles provindos do continente africano são grupos de tradição oral - suas histórias não constam de códices escritos, mas sim de uma memória apreendida, exercida e reelaborada coletivamente. O processo de conquista e colonização estabeleceu entre esses três grupos formadores da nacionalidade uma relação assimétrica de poder. A verdade torna-se monopólio destes grupos de origem européia, expressando-se através da escrita. Apesar de todas as transformações ocorridas na sociedade brasileira, nota-se a persistência de traços do pensamento colonial quando continua a atribuir-se status de verdade somente à documentos escritos em detrimento da tradição oral. Desse modo privilegia-se a forma de registro histórico proveniente de apenas um dos continentes em detrimento do aporte oriundo dos dois outros grupos formadores da nacionalidade. Ao historiador – e ainda mais especialmente ao antropólogo – cabe precisamente conduzir uma crítica da naturalização dessa lógica etnocêntrica de estabelecimento de verdades e explicitando as escolhas políticas que isso supõe 4 . O laudo produzido por Paraíso – ainda que em outro texto (1994b, p.46), anteriormente citado, ela pareça concordar com o argumento acima exposto - reproduz uma postura colonialista de estabelecimento de “programas de verdade” (Veyne, 1984, p. 39) 5 . Isso deixa bastante claro o lugar do discurso histórico na construção do texto, como aparece em dois parágrafos transcritos na nota a seguir 6 . Apesar da reunião com 4

Desde Platão que a questão de legitimação da ciência se encontra indissociavelmente conexa com a legitimação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a uma e outra autoridade são de natureza diferente. (Lyotard,1989, p.26). 5 No mesmo sentido ver também Veyne, 1995 e Foucault, 1979. 6 “No outro dia na parte da manhã, deslocamo-nos para o Capão do Zezinho, onde reside o núcleo principal do grupo Kaxixó. Toda a comunidade participou da reunião, emitindo opiniões e fornecendo informações sobre a sua história.” (p. 2) “Seguindo a orientação das referidas lideranças, visitamos a antiga sede da fazenda de Dona Joaquina Bernarda de Abreu Castelo Branco, e o cartório em busca de certidões que pudessem indicar a

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os Kaxixó e as informações que os mesmos lhe transmitiram sobre sua história, Paraíso pretende encontrar nas certidões do cartório indicações da identificação étnica dos mesmos, parecendo ignorar que as identificações estão integradas em sistemas de classificação, que são distintos de acordo com o agente classificador e com o contexto ao qual a classificação está referida.

Cabe recordar como a questão é focalizada em um artigo por diversas vezes citado em Paraíso (1994): na realização dos laudos periciais o antropólogo deve privilegiar a pesquisa sobre as categorias e práticas nativas, pelas quais o grupo étnico se constrói simbolicamente, bem como as ações sociais nas quais ele se atualiza. A agente classificatório e o objeto primário de sua etnografia devem ser o próprio grupo investigado. As classificações (étnicas, de classe, etc) utilizadas por outros agentes sociais devem ser consideradas na medida em que afetam os circuitos de interação de que participam os membros daquele grupo, possibilitando a definição por esses de várias e diversificadas estratégias simbólicas e sociais. Ao invés de trabalhar com classificações étnicas operadas genericamente pela sociedade regional, o antropólogo deve explorar as incongruências internas aí verificadas, percebendo que elas constituem parte de um campo de luta em que estão envolvidos todos esses atores” (Oliveira, 1994, p.121) 7 . A autora ao contrário entende estes “dados escritos”, como conhecimento objetivo simplesmente por estarem grafados, desconhecendo que um documento é uma produção que comunica algo, e que “las formas de comunicación no son portadoras neutras o indiferentes de información sino que transmiten sus propios mensajes” (Burke, p.18). Uma estrutura verbal em forma de discurso narrativo não pode ser neutra, os dados assim produzidos constituindo-se no máximo em uma dimensão estratégica selecionada, mas nunca a verdade objetiva em sua totalidade.

identificação étnica dos registrados, a Igreja matriz e o Fórum que não pudemos visitar por encontrar-se fechado”. 7

Santos (1999, p. 126) faz esta mesma citação no laudo por ela produzido, mas integrado a uma argumentação e uso absolutamente pertinente.

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Em outro ponto de seu laudo Paraíso enuncia argumentos para a crítica das fontes, deixando entrever as razões para uma possível desqualificação das fontes não escritas:

Não podemos esquecer que as notícias escritas estão condicionadas ao contato interétnico e de que as informações advindas da memória grupal, além de imprecisas, são difíceis de serem identificadas espacialmente e não são consideradas como confiáveis num processo jurídico (Paraíso, p. 5). Tal afirmativa torna absolutamente claro o paradigma de análise escolhido pela autora - a redução da tradição oral à uma imprecisa “memória grupal”. Referindo-se à dimensão espacial, denota desconhecimento da existência de formas de construção histórica e de apropriação do espaço e do tempo que não passam pela lógica da escrita e nem pela racionalidade da cultura ocidental (a qual a autora parece ignorar que também é uma construção) 8 . Com a sua definição de perícia (p. 4) já mencionada anteriormente, Paraíso desconsidera as fontes orais como válidas, questionando implicitamente todo um arcabouço de conhecimentos históricos/antropológicos produzidos pelos chamados africanistas a partir da tradição oral 9 . Como bem nos recorda Vansina (1985, p.166), não é correto estabelecer uma relação de tal modo assimétrica entre os dois tipos de fontes. “A questão é que o relacionamento entre as fontes escritas e orais não é aquele da prima-dona e de sua substituta na ópera: quando a estrela não pode cantar, aparece a substituta: quando a escrita falha, a tradição sobe ao palco. Isso está errado”. Segundo Philippe Joutard, emérito estudioso da história oral enquanto teoria, método e prática: “(...) la tradicion oral es um discurso dinâmico, em constante contato com la actualidade más contenporanea y que, por lo tanto, es por completo uma expression de la história” . (Joutard, 1999, p. 157). A tradição oral diferencia-se da reminiscência pessoal, que seria uma evidência oral específica das experiências de vida do informante, bem como da memória pessoal da testemunha, pois tais fatos e evidências não passam de geração em geração, exceto de modo esmaecido, como nas narrativas familiares privadas (Prins, 1992, p.172).

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Ver a este respeito a obra “A invenção da razão”, de F. Chatêlet. Citamos apenas como exemplo Vansina e Fabian, que têm uma extensa produção, entre muitos outros.

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Os historiadores orais tem plena consciência das diferenças que envolvem os dois fenômenos, principalmente no que diz respeito à tradição oral ser aprendida e reelaborada coletivamente, e a memória pessoal estar relacionada com a experiência pessoal de uma testemunha sobre determinado episódio. Assim devem ser tratados como fenômenos que exigem abordagens diferenciadas, sendo um equívoco completo transformar a história oral em terreno privilegiado da subjetividade, da imprecisão ou da arbitrariedade. Paraíso comete um equívoco também ao afirmar que as informações orais não são consideradas como confiáveis num processo judicial, desconhecendo inteiramente uma bibliografia relativamente extensa que descreve e analisa diversos casos de utilização de depoimentos e história oral em processos jurídicos chaves na história da humanidade. Isso ocorreu, por exemplo, no Tribunal de Nuremberg, onde foram acusados diversos oficiais militares e cientistas. Algumas dessas condenações estavam essencialmente baseadas em depoimentos de prisioneiros e parentes das vítimas dos campos de concentração, relatos que de forma alguma constam da documentação escrita produzida pelo III Reich, mas que nem por isso podem ser descartados como menos verdadeiros que os relatórios oficiais (von Plato, 1998, p. 7-22; Roseman, 1998, p. 3344). Situações similares se registraram em muitas outras regiões do mundo, gerando investigações de grande importância para o funcionamento da justiça nesses países, permitindo o estabelecimento de responsabilidades por parte de funcionários de regimes totalitários. Exemplos recentes de aproveitamento de fontes orais em processos judiciais podem ser encontrados em reconstituições de eventos históricos feitas a partir de depoimentos orais (coletivos e individuais) de sul africanos vítimas da política de apartheid (Grossmann, 1999, p. 131-149) ou na localização de corpos e no estabelecimento de paternidade, dos desaparecidos e de seus filhos, respectivamente, vítimas do regime militar argentino (Catela, 1998, p. 87-104) 10 . A linha de argumentação adotada por Paraíso em realidade conduziria o investigador a ignorar todo o imenso esforço feito por historiadores e antropólogos para registrar a história das coletividades marginalizadas, perseguidas e discriminadas, cuja presença foi minimizada ou mesmo suprimida da história oficial. O reconhecimento dos direitos de pessoas que pertencem a essas coletividades dependerá portanto 10

Prins (1992) cita inúmeros exemplos de casos em seu artigo intitulado “História Oral”, cuja a primeira edição em português é de 1991, anterior ao laudo produzido por Paraíso.

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necessariamente do estabelecimento de critérios de legitimação de uma história produzida a partir de uma memória coletiva e individual.

A CRÍTICA DAS FONTES E O USO DIFERENCIADO DA HISTÓRIA

Ao tomar o registro escrito como base de verdade na sua tentativa reducionista de legitimar a memória do grupo ou a tradição oral, Paraíso parece ignorar uma prática fundamental do trabalho do historiador, que é proceder a chamada crítica interna do documento. Isso é tanto mais grave quando observamos que as fontes utilizadas pela autora em sua análise, são fontes bibliográficas e de cunho historiográfico, caracterizando-se

por

conterem

primordialmente

interpretações

sobre

uma

documentação consultada. O uso de fontes escritas não pode confundir-se com uma mera colagem de fragmentos de livros e documentos, mas exige uma crítica interna do material utilizado, onde se desvele as condições que envolveram a sua produção social, indagando no mínimo por quem, quando e com que objetivo foi produzido. Não são poucos os cuidados que o pesquisador deve ter ao manusear e utilizar as fontes bibliográficas e arquivísticas. O exercício de crítica é o espaço que se abre para a relativização das mesmas, das verdades nelas construídas e através delas publicizadas. Um esforço semelhante tem sido realizado por exemplo por antropólogos brasileiros que, inspirados em uma sociologia da produção intelectual (Bourdieu, 1974), têm proposto uma leitura nova dos relatos

de viajantes ou de fontes administrativas

(Almeida, 1983; Oliveira, 1987 ; e Lima, 1998). Nesse sentido é importante incorporar uma visão crítica do processo de produção de conhecimento, como em termos muito simples e diretos nos propõe Schaf:

O sujeito que conhece “fotografa” a realidade com a ajuda de um mecanismo específico, socialmente produzido, que dirige a “objetiva” do aparelho. Além disso, “transforma” as informações obtidas segundo o código complicado das determinações sociais, que penetram em seu psiquismo mediante a língua em que pensa, pela mediação da sua situação de classe e dos interesses de grupos que a ela se ligam, pela mediação das suas motivações conscientes ou subconscientes e, sobretudo, pela mediação da sua prática social, sem a qual o conhecimento é uma prática especulativa (Schaff, 1995 p. 82).

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Entrando na análise do segundo laudo produzido sobre os Kaxixó, o mesmo aponta, com muita exatidão para essa fragilidade existente no trabalho de Paraíso (1994) e explicita caso a caso os pontos em que isso ocorre. Notoriamente entre as páginas 49 e 137, Santos (1999) utiliza-se de procedimentos teórico metodológicos absolutamente pertinentes, realizando uma crítica das fontes escritas existentes (o que lhe permite inclusive compreender os motivos dos “silêncios” da documentação), procedendo a um tratamento adequado da tradição oral da coletividade estudada. É o que podemos verificar pela citação abaixo: Ao iniciar a análise dos relatos acerca do passado Kaxixó, enfatizei o propósito de tomá-los em si mesmos, na tentativa de apreender a lógica de sua articulação interna e os sentidos atribuídos às categorias que os conformam. De um discurso aparentemente caótico, vimos surgir, desta forma, um quadro ordenado de categorias através do qual os Kaxixó pensam seu passado e a si mesmos, narrativa que é, a um tempo, mito de origem e reflexão sobre a experiência histórica do grupo (Santos, p. 49). Partindo de diretrizes adequadas, a autora não tenta reduzir uma à outra as narrativas históricas orais e escritas, ou seja, inviabilizar a história de uma coletividade de tradição oral ao subordiná-la à legitimação pela história documental escrita pela sociedade nacional. Ao contrário vai buscar compreendê-las em suas lógicas distintas, analisando a partir disso suas possíveis congruências. A autora parte do princípio que as duas narrativas devem ser entendidas a partir do mesmo status de verdade e jamais tenta submeter a verdade contida na tradição oral à sua possível duplicação em documentos escritos.

(...) creio poder afirmar, com base nos dados acima apresentados, que os relatos sobre o passado Kaxixó demonstram ser congruentes com o processo de ocupação e colonização da região em que historicamente o grupo se insere. Devo enfatizar que a intenção não é a de procurar "provas históricas" que permitam "confirmar" - ou não- os referidos relatos, trata-se apenas de ressaltar que, embora estes expressem uma experiência histórica particular, configurando necessariamente uma versão distinta de outras versões sobre o passado local, não demonstram ser incompatíveis ou incongruentes com o disposto nas fontes consultadas sobre a história do Distrito de Pitangui, marco primeiro da colonização neo-brasileira naquela região(Idem, p.68).

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O

LUGAR

DA

ARQUEOLOGIA

NOS

LAUDOS

ANTROPOLÓGICOS

A utilização de vestígios arqueológicos no laudo de Paraíso apenas repete a escolha do paradigma acima criticado, que requeria a existência de documentação escrita para comprovar a tradição oral. Como antes havia uma visão ingênua e naturalizadora da história documental, aqui a autora supõe que os objetos possam falar por si mesmos sobre o passado indígena, atribuindo a uma prospecção arqueológica uma missão impossível – “esclarecer as dúvidas que se estabeleceram entre a tradição oral e os dados documentais” (p. 17). A perspectiva segue sendo a mesma, a verdade histórica produzida por uma coletividade através de seus relatos orais não vale por si só, mas necessita ser validada através de uma “prova” engendrada pela sociedade envolvente. A arqueologia também trabalha com interpretações. Entre as pessoas e coletividades que produziram um objeto e o objeto propriamente dito, susceptível de observação contemporânea, existe uma cultura que lhe engendrou significações e finalidades. É sobre essa cultura, que está ancorada em um contexto histórico e em um nicho ecológico muito distantes dele, que o arqueólogo elabora as suas hipóteses e busca formular suas explicações. Não é possível esquecer que a arqueologia trabalha no cruzamento entre pelo menos duas culturas, a da criação do objeto e a que o interpreta, movida esta última por teorias e concepções atuais, que ocupam um papel central no desvendamento da significação dos resíduos do passado 11 . Esse procedimento de buscar legitimar a posse dos grupos indígenas sobre determinados territórios apelando para a antigüidade dessa ocupação não é de forma alguma coerente com os termos da atual Carta Constitucional, que conceitua “terra indígena” através da noção de “ocupação tradicional” e não por meio da idéia de imemorialidade. Laudos ou quesitos que insistam demasiadamente na apresentação de provas arqueológicas como evidencia de antigüidade de ocupação territorial podem vir a 11

É o que nos explica Hodder: “Por ello las teorias que uno defiende sobre el pasado dependem muchísimo del proprio contexto social y cultural de uno. Trigger (1980), Leone (1978) y otros han demostrado con gran acierto cómo las interpretaciones cambiantes del pasado dependen de los cambiantes contextos sociales y culturales del presente. Los individuos en el seno de la sociedad actual utilizan el pasado en sus estrategias sociales. En otras palavras, es en los contextos culturales e históricos donde se concibe y manipula la relación datos-teoria. (Hodder, 1988 p.30).

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ser considerados irrelevantes ou mesmo inconstitucionais, pois estariam baseados em uma argumentação invalida e inadequada. O que por si só deveria recomendar maior cautela ao atribuir um papel decisivo á investigação arqueológica em laudos relativos à terras indígenas. Essa discussão sobre o lugar de argumentos arqueológicos na definição de áreas de ocupação indígena pode nos permitir dirimir as dúvidas sobre uma das razões apontadas por Paraíso para concluir pelo não reconhecimento étnico dos Kaxixó – ela afirma que por serem de origens distintas, eles nunca compartilharam um território comum (p. 20). A base para essa conclusão é uma rápida visita aos locais indicados por seu Djalma e Jerri Adriani, isso em resposta as indagações da antropóloga que solicitava “provas” da antigüidade da ocupação. Essa busca levou Paraíso a percorrer, entre outros ainda menos especificados, três sítios: um pasto com uma aguada e duas mangueiras antigas; alguns fogões de barro enterrados no chão; e um cruzeiro. Sobre os fogões de barro a autora diz haver consultado “alguns arqueólogos na Bahia e em São Paulo que nos afirmaram ser estes fogões típicos de negros e não de índios” – p. 15), sem descrever melhor tais objetos, nem indicar como os apresentara aos arqueólogos, quais foram esses especialistas ouvidos e qual o exato teor de suas manifestações. Os dois outros locais são descritos de forma sumária, estritamente na ótica de um observador externo à comunidade. “Visitamos, ainda, um cruzeiro, onde afirmam estarem enterrados os membros da comunidade que teriam sido mortos na luta pela terra e onde Jerry Adriani teria sofrido um atentado. O local não se diferencia de qualquer outro cruzeiro no interior de Minas Gerais” (p. 15). Certamente o que se deveria esperar de um antropólogo não seria uma descrição tão concisa e externa, mas uma apresentação de como a coletividade atual (os Kaxixó) fala e pensa sobre esse cruzeiro, bem como sua significação para a vida das pessoas. Componentes físicos do espaço, tal qual os sítios arqueológicos, não podem servir em si mesmos como “prova” de ocupação tradicional daquela área por populações contemporâneas. Por outro, lado a ausência desses sítios não poderia de modo algum ser utilizada como “prova” da inexistência dessa presença, uma vez que a área pode ter sido objeto de destinações econômicas sucessivas que a tenham descaracterizado fortemente. Contrasta inteiramente com isso o tratamento dado aos sítios arqueológicos pelo laudo elaborado por Santos (1999), de grande originalidade e interesse antropológico, onde tais vestígios de populações ameríndias primevas são considerados sempre em sua

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relação com a coletividade Kaxixó atual. A ressignificação feita pelos Kaxixó dos sítios arqueológicos presentes no atual território por eles ocupado demonstra uma vivacidade de sua tradição oral, remetendo à existência de fortes laços de interação social que permitem a comunidade reelaborar constantemente sua tradição a partir de um contexto presente, o que se coaduna plenamente com o critério legal de ocupação tradicional.

AS SITUAÇÕES ETNOGRÁFICAS

Ao falar em situação etnográfica (Oliveira, 1999, p.61-62 e 9) objetiva-se chamar atenção para as condições concretas de realização da pesquisa antropológica, buscando apreender os padrões de interação e as mútuas percepções e expectativas que caracterizaram o encontro entre o pesquisador e os pesquisados. O que significa buscar proceder a uma etnografia da situação de pesquisa, recuperando o etnógrafo e a sua etnografia em uma dimensão real respectivamente de ator e de ação social, afastando-se de construções naturalizantes e elaboradas a posteriori sobre uma relação entre dois personagens idealizados e inexistentes - um “coletor” (de dados e relatos) e um “informante” (um ser passivo, que apenas reage, de maneira pontual e quase automática, às perguntas formuladas). Os laudos sobre os Kaxixó (1994 e 1999) foram elaborados por profissionais identificados e que se auto-identificam como antropólogos, sendo fundamental portanto perceber que ainda que a pesquisa bibliográfica e em arquivos tenha sido uma parte importante do trabalho de investigação contido nos laudos, tais leituras vieram a fazer sentido justamente face às diferentes experiências vividas na situação etnográfica. O foco desse capítulo será assim uma tentativa de explicitação e reflexão sobre as condições sociais que permitiram a produção dos dados etnográficos nos laudos realizados sobre os Kaxixó. Em um primeiro movimento é possível perceber, através dos próprios textos, quais as finalidades que os autores atribuíam ao “encontro etnográfico” (Asad, 1973); em seguida procura-se ver as conexões existentes entre os métodos e objetivos declarados do pesquisador e as modalidades concretas de ordenamento dos processos interativos por ele utilizadas; servindo-se por fim das vozes nativas (sejam essas resultante de um outro trabalho de campo, sejam essas contidas de maneira marginal na própria etnografia considerada) resgata-se a dimensão das escolhas nativas, mostrando como os discursos e atitudes desses decorrem igualmente de avaliações que realizam

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face ao trabalho do etnógrafo, bem como das estratégias adaptativas que nessas circunstâncias puderam elaborar face a um processo dirigido de interação.

O ANTROPÓLOGO COMO INQUISIDOR

Em capítulos anteriores já foram identificadas as estratégias maiores presentes na realização do trabalho de Paraíso (1994); caberia complementar buscando como se dá a nível da própria narrativa a construção de seus personagens. O texto de autoria de Paraíso sugere ao leitor uma atitude de permanente suspeita face aos seus interlocutores Kaxixó. A impressão que passa é de forte desconfiança, tanto quanto à veracidade dos fatos relatados quanto à própria consistência lógica do discurso. O adjetivo “confuso” é repetido diversas vezes, sendo inclusive aplicado ao depoimento do seu Djalma como um todo (“é uma narrativa confusa, com alguns pontos que nos parecem extremamente estranhos” – p.12). A seguir Paraíso estranha a precisão com que é indicado o ano (1601) da expedição de André de Leão e Glimmer, a primeira a penetrar na região; em uma descrição de combates entre índios e bandeirantes ela questiona a “estranha precisão” da referência a “cinco” enfrentamentos; face à menção a um personagem histórico específico, Paraíso faz igualmente um outro comentário crítico: “(também desconhecemos grupos que identifiquem com tanta clareza um personagem tão distante, no tempo, como Antônio Taques de Taubaté, sem que ele tenha tido uma relação direta com a trajetória do grupo)”. Paraíso indica ainda uma “contradição” entre a afirmativa de que os “gentios” (da hoje Fazenda Crisciúma) e os “índios caboclos” (da hoje Várzea do Galinheiro) eram “unidos” e disso extrai a conclusão de que eram “grupos distintos” (p. 13). Na realidade tais fatos não poderiam de forma alguma lançar uma suspeição de princípio sobre a memória histórica dos Kaxixó, mas sim sobre as inadequadas condições de realização de uma pesquisa antropológica. Desde 1986, quando em uma reunião com sindicalistas haviam formulado pela primeira vez publicamente a sua condição de indígenas, os Kaxixó têm mantido contato com dezenas de pesquisadores, advogados, indigenistas, entre outros, que lhes propiciaram acesso a livros e documentos sobre a história da região. Diversos membros da comunidade têm também uma educação letrada, que lhes permite acompanhar e conhecer grande parte das

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discussões havidas nos últimos anos sobre a origem dos Kaxixó. Não pode causar estranheza portanto que datas e fatos da historiografia tenham sido incorporadas aos relatos orais, que freqüentemente são ouvidos (e também ditos) por pessoas que não partilham apenas do universo da oralidade. O recurso à repetição é um instrumento freqüente de geração adicional de sentido nos mitos e nos contos populares, o narrador mantendo pleno controle sobre o número de provas e as características de cada uma delas. Também a riqueza da enunciação (salientando em cada caso aspectos distintos) permite que um mesmo grupo seja ora apresentado como uno, ora como distinto. O que é sugerido como fraudulento ou ilógico resulta da tentativa de imposição de uma leitura arbitrária e exterior, que tropeça nos instrumentos e figuras de retórica, desconhecendo que está lidando com narrativas. É fundamental atentar ainda para um fato insólito - as avaliações acima realizadas sobre a narrativa de seu Djalma não procedem de uma interlocução ocorrida no trabalho de campo, mas resultam de uma fita gravada por outros pesquisadores em uma data e contexto não especificado no laudo – “o depoimento de Djalma de Oliveira, gravado por Geralda Soares, do CEDEFES (...) (p. 12). Tão somente ouvindo uma fita gravada por outrem e em condições não conhecidas, a pesquisadora não tinha qualquer condição de esclarecer suas dúvidas e dialogar com o narrador. Nessas circunstâncias é a caracterização do relato como “confuso” que soa como apressada e leviana. Para caracterizar melhor a situação etnográfica é preciso ouvir o relato dos Kaxixó sobre a visita da antropóloga. “Ela veio com uma outra pessoa aí. É antropóloga, né ? Naquele tempo com ela foi muito difícil, compreendia pouco as perguntas. Eu falava de um jeito e ela fazendo de outro. Ela fez muita pressão aí na gente. Fazia pressão de um jeito que a gente compreendia pouco, não entendia direito.” (Pedro , entrevista junto com a esposa, casa do Zezinho, 25-01-2001). “Não foi assim como a gente vê na televisão, quando vem um lá do governo, o Fernando Henrique, os políticos, que chega com foguete, para visitar. `Vamos vê o povão!´. Não é igual a Maria Hilda, não. Ela chegou aqui como quem está procurando um ladrão” (Seu Djalma, em sua casa, Capão do Zezinho, 25-01-2001). “Ela chegou aqui muito braba. Era uma brabeza só!” (Marilda, reunião na escola, Capão do Zezinho, 25-01-2001). Além do registro feito por todos sobre a brevidade da visita (algumas horas, como já foi dito anteriormente), o mais repetido era sobre a dificuldade de comunicação, seguido pela sensação de imposição e suspeita. “Ela trabalhou como um

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delegado, que vem atrás de um ladrão. Foi igual a um delegado, que veio aqui atrás de um ladrão, que roubou o nosso tio, lá do outro lado do rio” (Seu Djalma, reunião na escola, Capão do Zezinho, 25-01-2001). É de supor que em sua fala de apresentação, no intuito de mostrar a complexidade de uma perícia, a antropóloga tenha usado para descrever o seu trabalho a imagem de “advogado do diabo”. Isso transparece em descrições da comunidade sobre o início da reunião com a antropóloga:

“Eu sou o advogado do diabo, agora os

diabinhos vão ter que falar. Eu quero saber quem que vai vestir a camisa de índio?” (Seu Djalma, reunião na escola, 25-01-2001). O resultado foi devastador em uma comunidade muito católica, onde as pessoas não mencionam o nome do demônio e evitam referir-se abertamente às entidades malfazejas. “Ela não era o capeta não, ela era o demônio contra os capetas” (Cristina, casa de Zezinho, 26-01-2001). Na última entrevista realizada com Zezinho, em sua casa, o tema do laudo voltou à baila, tendo ele feito o seguinte paralelo: “porque ela chegava e ao invés de falar, ouvir nós, conversar – como vocês, que fala, conversa, escuta – ela foi logo dizendo: Eu não tenho nada que contar, não! O senhor é que tem que contar prá eu!´ Aí você vai falar o quê?” (Zezinho, 26-01-2001). Os questionamentos diretos e a velocidade com que eram conduzidas as conversas, agravados pelos problemas de comunicação, acabaram por gerar tensões e mesmo acusações dentro da comunidade. “Chegava um e ela logo dizia: ´Agora você que vai dar a notícia`. `Mas notícia de quê?´ Tanta coisa que ela perguntava, eu não entendia. ´Eu não sei como é essa história de aldeia, de tribo´. Foi aí que eu falei assim... (Geni, reunião com a comunidade, 25-01-2001). Voltando-se para o líder da comunidade, complementa com um desabafo irônico: “O Djalma diz que fui eu que pus o caso a perder” (idem). A desconfiança mútua parece ter sido a tônica dessa relação entre antropóloga e comunidade, pois a própria antropóloga menciona as resistências e perplexidades de seu Djalma – achando que devia “dar outras informações e dados que não aqueles que eu estava solicitando” (Paraíso, 1994, p. 14); em lugar de alterar suas estratégias de pesquisa, ela conclui estar diante de um depoimento manipulado, que teria sido “instruído” por terceiros (p. 14). Em um texto escrito anteriormente Paraíso faz uma analogia entre o trabalho do antropólogo envolvido em uma perícia e aquele do detetive. “Então o nosso trabalho termina sendo, também, um pouco o de um detetive, onde a intuição aliada à leitura

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sistemática de todos os documentos que nos chegam às mãos terminam por nos permitir entender o processo de invasão das terras indígenas” (Paraíso, 1994b, p.51). Essa singular percepção da natureza da atividade científica poderia até mesmo receber uma leitura positiva, evocando por exemplo Ginsburg (1989a) ao apontar o “paradigma indiciário” como uma alternativa para a pesquisa histórica. A intenção de que essa atitude “detetivesca” – exercida, diz a autora, em proveito dos indígenas (para descrever as “invasões das terras indígenas”) - devesse presidir a investigação histórica, termina por ser paradoxalmente invertida nas frases finais do último parágrafo do texto acima citado. “O que procuramos fazer ao elaborar um Laudo é documentar ao máximo as nossas afirmativas. Reproduzir documentos, mapas e todas aquelas provas documentais que possam comprovar a veracidade das nossas afirmativas para que não possamos vir a ser acusados de idealistas, comprometidos, loucos vítimas de pesadelos” (idem, p. 51). É como se o pesquisador imperceptivelmente mudasse de papel nessa trama, passando de investigador à condição de um réu virtual, sobre o qual muitas suspeitas e acusações poderão incidir, enquanto simultaneamente os informantes tornam-se suspeitos. Há um componente curioso na descrição dos Kaxixó sobre o comportamento da antropóloga, contrastando com a “brabeza” que lhe é unanimemente atribuída. Fala seu Djalma: “A Maria Hilda tava com medo de ser morta”. Pergunta do entrevistador: “ É ?” Resposta de seu Djalma: “É. Ela falou para mim, que esse negócio de laudo era muito perigoso. Uma vez, ela tava lá na Bahia, não sei onde, quando ela foi descer do avião já tava lá a Polícia para matar ela. Era os fazendeiros que tinham marcado isso pra ela. Aí teve que andar depressa e voltar pra Brasília na mesma hora, no mesmo avião. Então é por isso que ela tinha medo” (Djalma, Capão do Zezinho, 26-01-2001). Também em conversa com Zezinho ela falou sobre outros laudos que fizera e das “perseguições dos fazendeiros”. Essa preocupação com a penalização do perito também transparece no próprio laudo kaxixó (p.3 e 4), como já havíamos comentado, só que limitado à esfera legal. A situação de tensão, aliada à dificuldade em encontrar documentação escrita comprovatória sobre identidade e território Kaxixó, parece haver feito Paraíso transplantar o método detetivesco da pesquisa com documentos para o plano da antropologia, passando a nortear por ele a sua atuação em campo. O que ainda haveria a provar com um trabalho de campo ? O reconhecimento dos Kaxixó como indígena já havia sido inviabilizado pelo insucesso da pesquisa

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documental realizada anteriormente e ainda que a sua “tradição oral” pudesse ser rica e consistente, não haveria como comprová-la pelo cruzamento de fontes escritas. Do ponto de vista de resultados práticos a ida ao campo seria quase uma mera formalidade, pois de qualquer modo não poderia transformar o laudo em um parecer positivo; uma solução administrativa teria que ser buscada em outra direção (a via das indenizações como descendentes de escravos). É impossível não lembrar aqui da provocativa analogia que estabelece Ginsburg (1989b) entre a figura do antropólogo e a do inquisidor. As “confissões” que o antropólogo busca em seu trabalho de campo são interpretações “iluminadas” da realidade vivida pelo seu outro (os “nativos”), seja pela capacidade heurística ou pela exemplaridade dessas interpretações. Não podem jamais ser equiparadas à comprovação de culpas ou ao desvendamento de manifestações sociais (tidas a priori como simulações). Mais que detetivesca a relação de Paraíso com os seus depoentes Kaxixó é inquisitorial, subtraindo-lhes qualquer resíduo de verdade e contrapondo-os às provas documentais e as suas observações diretas. O inquérito – qualquer quer seja seu resultado –e além de criar uma visão muito negativa sobre os inquisidores, termina por traumatizar e desvalorizar as suas próprias vítimas. Seu Djalma ao início de nossa conversa foi peremptório: “Maria Hilda disse que eu era confuso, escreveu isso no laudo. É melhor não falar comigo, que eu não quero atrapalhar nada” (Seu Djalma, casa do Zezinho, 25-01-2001). Ainda que em uma comunidade muito religiosa as críticas pessoais sejam evitadas, recai sobre os antropólogos uma avaliação bastante negativa. “Achei ela uma boa pessoa (...) Agora esse negócio de antropólogo, ela não fazia a coisa certa” (Pedro, 25-01-2001). Vanessa Caldeira em uma entrevista concedida no CEDEFES, em 23-012001, lembrava de seu primeiro encontro, em Brasília, com uma delegação de Kaxixó, que foi cercado de desconfiança pelo fato de ela haver se apresentado a eles como “antropóloga”.

OUTRAS CONDIÇÕES PARA O TRABALHO ETNOGRÁFICO

Quais foram os fatores determinantes da produção de outras bases de dados etnográficos disponíveis sobre os Kaxixó ? Ou seja, quais foram as situações etnográficas das quais resultaram esses trabalhos ? Estamos em realidade falando do laudo elaborado por Ana Flávia Moreira da Santos (Santos, 1999) e do levantamento

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realizado pelo CEDEFES/ANAÍ, do qual resultou a publicação Kaxixó: Quem é esse povo? (1999), ambos realizando os seus trabalhos de campo durante o ano de 1998. Cabe mencionar primeiro o trabalho realizado pela equipe CEDEFES/ANAÍ, pois seu início (fevereiro e março de 1998) antecedeu a perícia ambiental (abril de 1998) e sua conclusão e publicação (janeiro de 1999) também precedeu em vários meses a apresentação do laudo de Santos (novembro de 1999). Isso inclusive possibilitou que os resultados da pesquisa CEDEFES/ANAÍ chegassem ao conhecimento de Santos e pudessem ser utilizados na elaboração de seu laudo. A sua origem foi uma solicitação dos Kaxixó ao CEDEFES, feita em 1997, para que os auxiliassem a reunir e divulgar os seus relatos sobre o passado. Contando com recursos limitados, uma equipe de quatro pesquisadores em história, antropologia e arqueologia , realizou seis visitas à comunidade Kaxixó durante o ano de 1998, ali permanecendo de cada vez por um período de três dias. Durante esses períodos em campo foram realizadas muitas entrevistas e observação participante.

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Na formulação da equipe o texto que resultou não foi nem um laudo nem uma dissertação, mas sim algo muito despretensioso, redigido em linguagem simples, “um apanhado da nossa história”, que pudesse informar ao grande público sobre o que são e o que pensam os Kaxixó. Apesar dessa modéstia12 é importante observar que o trabalho, executado por profissionais bastante experientes e todos igualmente com inserção ou formação acadêmica, fornece grande parte dos dados necessários a uma etnografia básica dos Kaxixó, contendo mapas, genealogias, um censo por casas e famílias, informações sobre a vida econômica e as múltiplas esferas da vida social, bem como transcreve narrativas orais, descreve algumas situações sociais e reproduz muitos documentos relevantes para a compreensão dessa população. O trabalho (77 p. e 11 anexos) tem grande importância e contribuiu bastante para esclarecer a história e os projetos dos Kaxixó em relação ao seu próprio futuro. Por sua vez o laudo de Santos (1999) começou com uma perícia ambiental, motivada por denúncia realizada por Jerry Adriane de Jesus à Procuradoria da República no estado de Minas Gerais no ano de 1997

sobre os prejuízos que

desmatamentos procedidos por uma empresa (Agropéu) estariam causando à sítios arqueológicos e a fauna local. A equipe encarregada desse trabalho foi composta por um arqueólogo, um engenheiro-florestal e duas antropólogas da PGR. A perícia ambiental e a visita a três sítios arqueológicos foi realizada em uma primeira visita, em 03-04-1998; em uma segunda fase, apenas com a participação dos peritos em antropologia e arqueologia, foram feitas, em um período de quatro dias (05 a 08-05-1998) entrevistas e visitados outros cinco sítios apontados pelos Kaxixó. A razão da presença de Ana Flávia Moreira Santos (que havia concluído recentemente um trabalho acadêmico sobre indígenas do estado de Minas Gerais, a dissertação de mestrado em Antropologia Social intitulada Do terreno dos caboclos do Sr. João à Terra Indígena Xakriabá: as circunstâncias da formação de um povo. Um estudo sobre a construção social de fronteiras, defendida na Universidade de Brasília, 1997) na equipe se devia à investigação não dos prejuízos arqueológicos ou ambientais, tarefas assumidas por outros técnicos, mas sim ao interesse da PGR em investigar o contexto em que a denúncia se inseria, incluindo a relação que aquela população 12

Trata-se de fato de uma forma de escrita antropológica que busca valorizar ao máximo as vozes nativas e a polifonia, opção narrativa que não se aproxima de um “dossiê” (a suposta similaridade decorreria apenas da quantidade de documentos reproduzidos em anexos), nem tão pouco de “uma produção dos próprios indígenas” (pois inclui um complexo trabalho de pesquisa, seleção, edição e compatibilização dessas múltiplas vozes em um texto único).

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mantinha com os sítios arqueológicos e as condutas sociais prevalecentes na região, incluindo as relações entre índios e não-índios (Santos, 1999, p.2). Posteriormente devido a um requerimento do mesmo Jerry Adriane de Jesus, acatado pela PGR/MG, o objeto do estudo foi ampliado, passando a ser a própria etnicidade Kaxixó. Por solicitação expressa do Procurador Álvaro Ricardo de Souza Cruz o estudo deveria incluir “uma análise detalhada” do laudo de Paraíso,1994. Em que medida essas condições de pesquisa diferem daquelas do laudo realizado por Paraíso ? Ainda que em um primeiro momento haja uma similaridade entre a situação etnográfica de Santos e aquela dos grupos de trabalho interdisciplinares para identificação de terras, isso não mais ocorre na etapa seguinte, em que a antropóloga pode dedicar-se a suas atividades específicas de investigação. Duas diferenças bem mais importantes devem ser ressaltadas. Uma, de que o ritmo e as finalidades do trabalho estão mais claramente associadas a uma perícia – onde é central a atividade de produzir dados – e não a um estudo que é simultâneo à tomada de decisões sobre uma questão muito disputada (como a definição dos limites das terras indígenas) e que implica em complexas gestões políticas junto aos regionais e a instâncias de governo. A segunda, que o material etnográfico que resultou desse período de trabalho de campo não foi o único que subsidiou a elaboração do texto, tendo sido complementada por freqüentes contatos que, ao longo de quase dezoito meses, puderam corrigir, esclarecer ou ampliar aquela base anterior de dados. “Ao longo de todo o período de elaboração do trabalho mantive contato freqüente com os Kaxixó, por telefone ou pessoalmente, na figura de Jerry Adriane e Djalma Vicente de Oliveira (cacique), ocasiões em que tive oportunidade de esclarecer dúvidas surgidas durante a preparação deste relatório” (Santos, 1999, p. 3). Menos que uma questão quantitativa (ter maior número de dias em campo), o contraste nas condições de pesquisa entre Paraíso (1994) e Santos (1999) é qualitativo implicando na criação de um espaço de escuta (ao invés das perguntas diretas, respondidas com simples afirmativas e negativas) e na possibilidade de uma interlocução mais continuadas28 (os contatos posteriores ao trabalho de campo). Na visão da comunidade do Capão do Zezinho os contatos com a pesquisadora também transcorreram calmamente, sem notícia de atritos ou pesquisa antropológica.

apreensões suscitados pela

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Tais fatores, associados à consolidação dos debates sobre laudos antropológicos, permitem compreender o forte contraste que se estabeleçeu entre os dois laudos em termos de rigor na formulação, fundamentação empírica, de qualidade narrativa e até mesmo cuidados na apresentação. O que se expressa por um simples cotejamento de quaisquer partes do laudo de Paraíso, com 23 p., e de Santos, com 187 p. Merece também destaque a amplitude da pesquisa histórica e do embasamento teórico de Santos (1999), refletida em uma bibliografia bem mais extensa e completa do que a de Paraíso (1994). A SITUAÇÃO OBSERVADA EM CAMPO

Como os Kaxixó em outras ocasiões imaginaram o trabalho do antropólogo a partir de sua experiência com a realização do laudo de Paraíso, parecia natural que a primeira aproximação fosse entendida dentro de tais expectativas. Efetivamente essas associações não deixaram de ser percebidas durante a recente visita ao Capão do Zezinho, permitindo compreender o contexto geral de apreensão e explicar algumas de suas colocações iniciais. “Nós não somos um bando de preguiçosos, que não gosta de trabalho”, afirma seu Djalma em uma das nossas primeiras conversas, aparentemente contrapondo-se às declarações de um ex-prefeito de Pompéu, que os acusava de pretender viver do fornecimento de “cestas básicas” e de serem “falsos índios”. Mais adiante manifesta seu cansaço e revolta não tanto face às visitas ou as pesquisas, mas a permanente condição de suspeição em que os Kaxixó são colocados nessas ocasiões. “Aquilo investiga a gente de todo jeito! Vai longe saber o que a gente é, se matou, se roubou, se a gente deixou de pagar, se não trabalha... Enquanto não investigar a gente mesmo, apurar tudo até o final, diz que não resolve nada mesmo!” Um pouco além comenta de modo crítico e explicito a multiplicidade de laudos, pareceres e documentos sobre o reconhecimento dos Kaxixó, ressalvando ao fim, com sua índole conciliatória, a sua disposição em colaborar. “Tanta gente passou por aqui! Tá certo que cada vez vem um mais graduado, vem outro, vem outro. Cada um num caminho só, na mesma coisa... É que talvez um sozinho não dá conta de fazer tudo mesmo” As duas mais fortes razões mencionadas por Paraíso para recusar o reconhecimento dos Kaxixó como indígena seria a inexistência de uma “crença comum na origem indígena” (p. 18); um outro ponto indicado seria a pouca importância da

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identificação como indígena na articulação da comunidade (p. 17). A seguir irei focalizar separadamente cada um desses pontos, partindo das observações de campo e apoiando-me nas entrevistas ali realizadas. Ainda que a base de dados fornecida por Santos (1999) e CEDEFES/ANAI (1999) permitisse por si só a refutação das conclusões de Paraíso (1994), preferi – dado que esse material já está amplamente disponível apresentar os dados novos de forma a ampliar os registros etnográficos existentes sobre os Kaxixó.

O ETNÔNIMO KAXIXÓ

Iniciando com a primeira objeção, quero desde logo deixar claro que minha impressão foi completamente diversa de Paraíso, parecendo-me que os resultados a que chegou decorrem do modo como conduziu a investigação. Quando em uma relação direta e específica se pergunta aos moradores do Capão do Zezinho se eles são Kaxixó, todos, inclusive os jovens e as crianças, respondem que sim. Isso decorre de uma opção social e política adotada pela comunidade em um contexto contemporâneo (os últimos 15 anos). Mas não é correto de modo algum retificar o que é dinâmico, seletivo e situacional, como é o caso da identidade. Se formos aplicar essa questão ao passado certamente não obteremos a mesma resposta. Em uma conversa fizemos uma pergunta direta: ´O seu pai já falava em Kaxixó?`. A resposta veio com bastante precisão: “Não. Meu pai falava assim: ‘nós é gentio, nós somos verdadeiro descendente de gentio’ (Pedro, casa do Zezinho, 25-012001). Muitas outras categorias identitárias – como “índio caboclo”, “povo do mato”, povo do tio”, “povo da mãe Joana”, entre outros - são utilizadas por outros membros da comunidade. No trabalho elaborado pela equipe do CEDEFES/ANAI há uma tentativa de ordenar e dar um uso preciso a todas essas categorias, referenciando-as aos diferentes segmentos dessa coletividade. A questão de saber se esse é realmente um sistema classificatório integrado ou se ocorre uma sobreposição de diferentes classificações é de interesse estritamente acadêmico; adotar uma ou outra posição exigiria um tempo muito maior de trabalho de campo do que aquele de que se dispunha.. Para as finalidades desse laudo essa não é de modo algum uma questão relevante. O que importa é notar que em todos esses usos e categorias é sempre resguardada uma distintividade étnica. Ou seja, mantém-se a distinção e contraste

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entre o “nós” e o “eles”, ainda que as categorias para operar tal distinção possam mudar ao correr do tempo, bem como que em certos contextos as referências étnicas sejam nuançadas e indiretas (pois no passado algumas dessas identidades eram fortemente estigmatizadas e de uso quase clandestino). As autodenominações, como a de Kaxixó, são fruto de convenção social, podendo ser mudadas, criadas e abandonadas pelas coletividades que as utilizam para referenciar-se. Mesmo sem que os seus portadores sejam capazes de explicar perfeitamente sua significação e origem podem ser muito eficientes na geração e justificação de práticas sociais, possuindo inclusive um elevado valor ético e afetivo. “Longe de ser uma profunda expressão da unidade de um grupo, um etnônimo freqüentemente resulta de um acidente histórico, que é conceitualizado como um ato falho, associado a um jogo de palavras e com efeito de chiste. Muitas vezes um grupo dominado não é mantido como uma unidade isolada, mas é incorporado a outras populações (igualmente dominadas ou, inversamente, frações da população dominante), sendo dividido, subdividido e somado a outras unidades de diferentes tipos. Esquartejado, montado e remontado sob modalidades diversas e em diferentes contextos situacionais, qual a continuidade histórica [leia-se aqui em termos de uma mesmo etnônimo que atravesse diferentes conjunturas históricas – JPO, 2001] que um tal grupo dominado pode ainda apresentar?” (Oliveira, 1994, p. 123). Retificando o que é em si mesmo apenas uma convenção, uma atribuição, um ato classificatório, Paraíso interroga diretamente os informantes sobre a origem dessa auto-denominação – Kaxixó – supondo que eles devessem apresentar explicações claras sobre o assunto. “Inclusive queríamos saber como se dera a atribuição do nome Kaxixó, já que esta não consta de qualquer documento ou relação de tribos indígenas de Minas Gerais”(p. 14). A ausência de referências anteriores torna-se um indício de inautencidade e coloca no ar a suspeita de que a atribuição desse nome fora feita do exterior. Realmente nem nos laudos, documentos ou na comunidade foi possível encontrar uma explicação única para o surgimento do termo Kaxixó. Paraíso no entanto apresenta apenas uma versão (que por isso mesmo ganha foro de verdade): “Após muitos diálogos e discussões, o padre Gerônimo e o membro do CEDEFES criaram o nome Kaxixó, que, segundo membros da comunidade, seria uma forma sincrética de Kaiapó (ka) e Pataxó (xixó), grupo com o qual mantinham intensa relação” (Paraíso, 1994, p. 14).

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O padre Jerônimo Nunes, em uma declaração redigida em Portugal, para onde já havia retornado, nega totalmente essa versão, afirmando que estivera uma única vez na comunidade do Capão do Zezinho, acompanhando

o presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Pompéu, que falava aos moradores da localidade sobre conflitos fundiários recentes. Chocado com “a aparente passividade do grupo, insisti por três vezes para que o líder silenciasse e eles contassem a sua história. Foi um longo silêncio até que o Sr. Djalma de Oliveira afirmou: ´nós somos índios`. A minha pergunta sobre a identidade desse povo, respondeu: ´Kaxixó`. E começou a contar a história das fazendas, escravidão, jagunços, chegada das empresas de eucaliptos, etc.” (apud CEDEFES/ANAI, p. 95-97) 13 . Geralda Soares, a primeiras integrante do CEDEFES a ter contato regular com os Kaxixó, em uma entrevista recente, declara-se estarrecida com a versão apresentada no laudo de 1994, dizendo desconhecer inteiramente a procedência atribuída à hipótese sincrética (Kayapó + Pataxó) mencionada por Paraíso. Ela reafirma que ouviu pela primeira vez o nome Kaxixó mencionado pelos próprios moradores do Capão do Zezinho, acrescentando que em princípio pensava que era “caxixe”, uma planta muito comum na beira do rio Pará, ou que fosse “Carijó”, porque eles falavam muito sobre os Carijó de Ibitira, um “pessoal com o qual são aparentados”. Mas seu Djalma sempre corrigia, dizendo-lhe que era “caxixó” (CEDEFES, 23-01-2001). A versão apresentada por Paraíso é recusada igualmente pela comunidade, que não se atribui qualquer parentesco com Kayapó, mas sim com “índios bravos”, moradores das matas, os quais algumas vezes identificam com os Xavantes; quanto aos Pataxó, os contatos foram circunscritos no tempo, limitados a um único e polêmico indígena que, faz mais de sete anos, visitou a localidade por algumas semanas. A origem do termo Kaxixó ninguém sabe exatamente, mas isso de forma alguma afeta os membros da coletividade. O que importa é que sabem perfeitamente a opção política e social que isso significa, que a aceitam e incorporam. Se o visitante insistir muito com a pergunta certamente irão sugerir: “fale com o Djalma”. Isso ocorre não porque o vejam como o inventor do nome, mas sim porque ele é o porta-voz legitimado da memória do grupo, uma pessoa profundamente admirada por sua “inteligência”, habilidade em “contar as histórias”, pela idade avançada e por ser nativo dali. Reconhecido assim como o maior conhecedor das pessoas, dos lugares e 13

Há um erro na data da declaração – 15/03/1994 – que é logo posterior ao laudo de Paraíso (novembro/1994), devendo ser portanto 15/03/1995.

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das ervas do mato. Em suma, seu Djalma goza de uma ampla e plena legitimidade, admiração e respeito, atitude compartilhada por parentes moradores das cercanias. Qual a explicação que seu Djalma dá para esse nome? O que significa também não sabe, mas diz que foi com a sua mãe que aprendeu. “Agora nós pode falar que nós é Kaxixó mesmo. Mas de primeiro, a mãe falava, contava nós desde menino: ‘cês fala assim: índio caboclo da Várzea do Galinheiro, e não é! Nós chama é Kaxixó. Mas não pode falar até hoje. Cês não precisa inventar, falar isso que cês vai ser morto! Não pode falar não!’ Nosso bisavô explicava tudo’ (apud CEDEFES/ANAI, 1998, p.37). Seu Djalma, tendo sofrido longamente uma situação comum a pessoas e coletividades que sofreram pesados estigmas e discriminações, adotando como estratégia o ocultamento de sua identidade, expressa dessa maneira sua satisfação em poder externalizar uma identidade há muito escondida. É interessante notar que, à diferença das ONG’s, da FUNAI, da PGR e do próprio movimento indígena, seu Djalma sempre escreve o nome da comunidade “Caxixó” (com c, e não com k). Acredito que seja mais razoável acompanhar esse uso freqüente e autorizado registrado no plano local, optando por referir-se a eles em textos escritos

como “Caxixós” (e não Kaxixó). Não vejo razão para insistir em uma

imposição exotizante, pois no momento é na língua portuguesa que os membros dessa coletividade se exprimem (inclusive com muita precisão e poesia, como é possível verificar nas transcrições de entrevistas).

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A IDENTIDADE DE “INDÍGENA”

O uso da identidade de “indígena”, tal como a questão do etnônimo, não pode ser analisado da maneira simplista como o faz Paraíso em seu laudo (1994). Toda identidade é situacional, seu uso depende de contextos históricos e varia de acordo com os diferentes segmentos de uma população. Pretender que a sua utilização dentro de uma coletividade seja constante e homogênea corresponderia a uma verdadeira “ingenuidade sociológica” (Gluckman & Devons, 1964), que necessariamente conduz o pesquisador à conclusões errôneas. Os moradores do Capão do Zezinho manifestam por muitas maneira sua incorporação da identidade de “indígena”. A mais ampla e difusa, descrita extensamente no laudo de Santos (1999), é através da atitude de respeito que mantém com relação aos sítios arqueológicos, que consideram como prova de que aquela área foi habitada em um passado remoto por populações autóctones, distinta dos colonizadores portugueses. A áurea de poder e de sacralidade de que estão investidos os fragmentos se expressa de modo extremo em relatos sobre a capacidade que lhe é atribuída de remover doenças incuráveis (Pedro, casa do Zezinho, 25-01-2001). Os que desempenham funções de liderança na comunidade, como os chefes de família e os mais velhos, expressam nos variados contextos de que participam a sua firme adesão à identidade de indígena. As reuniões públicas são o locus privilegiado dessas manifestações. Além disso os Kaxixó participam ativamente do movimento indígena brasileiro. Muitos dos seus membros têm participado de diversas mobilizações indígenas (assembléias, cursos, marchas) realizadas em diferentes regiões do país. Até mesmo uma Assembléia Regional da APOINME (Associação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas e Espirito Santo) já foi realizada no Capão do Zezinho. Os jovens e uma parte das mulheres tem uma menor participação nesses contextos e estão menos informados do projeto político dos mais velhos. Aparece aqui e ali uma atitude de riso, desconfiança ou mesmo de vergonha. Conta-se que alguns rapazes e moças que faziam parte da comitiva Kaxixó que participou das manifestações sobre os 500 Anos em Coroa Vermelha, não quiseram sair do ônibus depois de serem pintados por Jerry Adriane. Em contraste Seu Djalma atravessou entre duas fileiras de policiais militares para ingressar no local da Conferência Indígena. Ao ser chamado por

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uma pesquisadora sua conhecida (preocupada com a sua segurança física) respondeu taxativo: “Não. Isso é coisa nossa, só de índio mesmo!” Por certo essa diferença de atitudes nada têm de excepcional no mundo contemporâneo, onde há um sentimento crescente de que as bandeiras políticas usuais (como o próprio indigenismo) não contemplam totalmente as múltiplas expectativas geracionais e de gênero. Atitudes de hesitação e ambigüidade também devem ser correlacionadas à pressões externas. Algumas mulheres jovens queixaram-se da dificuldade que sentiam seus maridos para conseguirem emprego como diarista nas fazendas da região; diz-se que há uma ameaça dos gerentes de não darem trabalho aos que se digam como indígenas. Embora no momento inexista um clima de aberta hostilidade dos regionais contra os Kaxixó, nota-se que estão sendo permanentemente vigiados, tudo que ocorre no Capão do Zezinho de algum modo passa pelo controle dos regionais. Na reunião que fizemos com a comunidade fez-se presente um dono de terras da região. Alguns pescadores de Ibitira e Martinho Campos, com quem havíamos cruzado no caminho para o Capão do Zezinho, indagaram depois a membros da comunidade sobre as finalidades da nossa visita e sugeriram que tivessem “muito cuidado com os estranhos”. Em passado recente registrou-se inclusive uma agressão direta ao vicecacique Jerry Adriane. Algumas autoridades na região têm procurado ridicularizar o movimento dos Kaxixó, dirigindo-lhes críticas indiretas. Um parente dos Kaxixó residente em Ibitira comentou conosco que “os fazendeiros não acreditam mesmo nessa história de Kaxixó”. Durante a conversa ele mesmo evitou tomar uma posição clara sobre o assunto, mas mostrou-nos, com orgulho, num álbum de fotos de família, seus avós que dizia ser “puro caboclo brabo”, “índio verdadeiro”. Em seguida comentou: “Aqui tinha diversos lugares... Crisciúma, Varginha, Campo Alegre, Grota Funda, Logradouro... Tudo isso era lugar deles: 40 famílias, 30 famílias, 15 famílias, né? Tudo foi saindo, ficou só um restinho lá...” A avaliação feita por Paraíso no laudo de 1994 de que a comunidade não tinha uma posição coesa e única sobre a sua condição indígena é, por um lado, contraditada pelos fatos acima descritos, de outro resulta de uma visão esquemática e superficial do que seja o fenômeno étnico. Uma identidade genérica, como a de indígena, naturalmente está mais distante do universo dos indígenas reais (que pertencem a coletividades e culturas específicas)

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do que as autodenominações, que respondem a apelos éticos e afetivos muito mais diretos e mais fortes. É mais simples e verdadeiro dizer-se “Kaxixó” do que “indígena”. Além disso essa identidade genérica pressupõe um aprendizado de categorias – entre as quais estão “tribo”, “aldeia”, “cacique”, “pajé”, entre outras – que não procedem dessas coletividades, mas que lhes foram impostas no passado através de uma relação tutelar com o Estado brasileiro. Supor que populações que não tiveram essa relação com o Estado, possam exibir a sua condição de “indígena” (isto é, de “índio genérico”) e responder a questões que exijam um conhecimento não sobre as suas tradições, mas sobre essa cultura genérica da “indianidade”

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é um verdadeiro contra-

senso. Os informantes Kaxixó não poderiam de forma alguma responder a perguntas do perito sobre o que é “aldeia”, “tribo” ou mesmo “índio” porque a sua experiência histórica e cultural é outra, vivendo “como mão de obra dispersa pelas fazendas” (Paraíso, 1994, p. 18), sem estar jamais na condição de população tutelada pelo Estado. A ingenuidade de tais perguntas – para a qual os Kaxixó não poderiam ter mesmo resposta! – permite explicar uma aparente contradição do laudo, que por um lado recusa o reconhecimento étnico da coletividade naquele contexto, mas por outro lado afirma que “talvez se tivessem aguardado mais alguns anos para solicitar o reconhecimento tivessem obtido um parecer favorável” (p. 20). É porque entende o processo de etnogênese de uma forma muito particular, que Paraíso considera que “este processo de etnogênese está inconcluso” (p. 20). À diferença dos textos por ela citados (Oliveira, 1994 e Grunewald, 1994), bem como da própria bibliografia sobre etnogênese (Banton, 1979; Sider, 1976; Goldstein, 1975, entre outros), que se ocupa de uma análise socio-genética da formação das unidades sociais, na visão de Paraíso a etnogênese seria apenas um “processo de ajustamento às exigências estabelecidas pela sociedade nacional para reconhecê-lo como indígena” (p. 19). Ou seja, por etnogênese Paraíso compreende apenas o aprendizado de uma “indianidade”, um simples processo de mimetização das práticas do indigenismo tutelar, de transformação de uma população que se imagina como diferenciada e originária na imagem do “índio genérico”. A dimensão das escolhas – chave para qualquer estudo sobre etnicidade e etnogênese – é relegada ao esquecimento, 14

A forma de presença e atuação da agência indigenista junto aos povos indígenas acabou por instaurar um conjunto geral de relações econômicas e políticas que se repetem apesar do enorme contraste entre as diferentes tradições culturais dos povos indígenas envolvidos nesse processo. Tal forma de intervenção cria um conjunto de normas e regularidades que atravessam populações indígenas muito distintas; é a esse “modo de vida característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor” que chamei de

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a identidade passa a ser descrita apenas como uma questão de performance, com a transmissão e encenação de um script arbitrário e exterior aos atores.

A CONCEITUAÇÃO DE “ÍNDIO”

A questão de fundo é a definição de indígena com a qual opera a investigadora. Se o leitor aceitar a situação paradigmática indicada por Paraíso (p. 18) para definir uma sociedade indígena – “uma comunidade local que se desagregou em função do processo de expansão da sociedade nacional” – não poderá de forma alguma considerar uma população dispersa como indígena. Ou seja, povos caçadores, que vivem em pequenos grupos e se deslocam por um território amplo, não caberiam nessa definição! Coletividades e famílias que foram encapsuladas em fazendas, como os Guarani Kayowá e Ñandeva, de Mato Grosso do Sul, só poderiam ser considerados como “índios” se exibirem uma indianidade genérica, e não os elementos constantes de sua cultura atual! Povos ainda sem contato, como os Curubos do vale do Javari, não seriam “ainda” indígenas, só o seriam depois da pacificação e da territorialização! Uma definição tão restritiva e circular torna a ação indigenista prisioneira de si mesma, incapaz de aceitar o desafio da diversidade histórica e cultural dos povos indígenas, limitando-se ao espaço do reconhecimento (isto é, do conhecimento daquilo que já está dado). Portanto não são apenas as populações que foram territorializadas segundo a atuação do Estado ou das missões religiosas que devem ser reconhecidas como objetos de direito, mas também aquelas que, lançando mão de múltiplas estratégias adaptativas, tentaram de algum modo preservar valores por eles partilhados, construindo uma sociabilidade e um projeto de futuro calcados em sua peculiar relação com o passado. Um outro aspecto da visão equivocada de Paraíso sobre a conceituação de indígena merece ser comentado. A menção à desarticulação, compatível com outras noções que operam em termos de patologia (como desorganização, destribalização, anomia, aculturação) parece trazer de volta o velho modelo integracionista, em que a condição de indígena é transitória, mera ponte para a condição de não indígena – isto é, de pessoas, famílias e coletividades que estariam plena e definitivamente assimilados ao universo do branco.

“indianidade” (Oliveira, 1988, p. 14).

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Como foi comentado anteriormente, a Constituição de 1988 modificou radicalmente esse paradigma assimilacionista e exige uma nova forma de conceituação do que seja indígena. Está formulado em um artigo de grande circulação, citado inclusive por Paraíso, que sociedade indígena é “toda coletividade que por suas categorias e circuitos de interação distingue-se da sociedade nacional, e reivindica-se como ´indígena´. Ou seja, concebe-se como descendente de população de origem précolombiana” (Oliveira 1994, p.126 e 1998, p.282) 15 . Tal como exposto na Convenção 169, da OIT, de 1991, a condição de indígena não advém de parâmetros externos, mas sim de um processo interno de auto-definição. “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente convenção” (item 2, art. 1º)

Não é de modo algum necessário que essas populações vivam ainda hoje fora da ação do sistema de mercado, da malha fundiária ou das religiões ocidentais; o que é relevante é que tais coletividades de algum modo se concebam como descendentes de populações que assim viveram. 16 Isto é, são indígenas as coletividades que se concebem como distintas da sociedade nacional por descenderem de população de origem précolombiana 17 . Nessa perspectiva e face ao atual quadro jurídico-constitucional é fundamental repensar a função e utilidade dos chamados “laudos de reconhecimento étnico”. Diferente do entmólogo que identifica exemplares individuais e os classifica em espécies, famílias e variedades, o trabalho do antropólogo não pode corresponder ao de um especialista que proceda a identificação de uma coletividade étnica com base em dados morfológicos ou estruturais. A natureza do processo cognoscitivo é diversa, pois é diversa a natureza da relação entre sujeito e objeto de conhecimento. Se pretender insistir em copiar modelos naturalizantes, o antropólogo terá a sua disposição apenas duas alternativas, ambas equivocadas e arbitrárias: 15

Paraíso (1994, p. 4-5) transcreve parcialmente essa definição em seu laudo, mas de uma forma truncada (inclusive não há fechamento nas aspas da citação). Sobretudo omite a explicitação final – “Ou seja, concebe-se como descendente de população de origem pré-colombiana” - substituindo-a por uma interpretação sua, que parece, na contramão de Barth (1969), reafirmar uma definição substancialista de grupo étnico. 16 Essa formulação está mais extensamente desenvolvida em artigo intitulado “Três teses equivocadas sobre o indigenismo brasileiro”, publicado na coletânea Política Indigenista. Leste e Nordeste Brasileiros (FUNAI, 2000). Para a noção de identidades originárias, ver Oliveira, 1999. 17 Ver nesse sentido a proposta encaminhada em maio de 2001 pela ABA ao deputado Luciano Pizzatto,

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a) tomar as coletividades indígenas já assistidas pelo Estado como paradigma da condição de indígena, procedendo ou não ao reconhecimento de indivíduos e grupos em função da medida em que absorveram essa cultura da “indianidade” e se aproximam da imagem do “índio genérico”;

relator do projeto de lei No. 2.057/91, que reformula o Estatuto do Índio.

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b) baseando-se em descrições oferecidas pela literatura etnológica ou por fontes históricas, limitar-se-á a verificar em que medida os indígenas atuais podem ser ainda considerados como integrantes de culturas autênticas e distintas. Enquanto nessa segunda linha a tarefa atribuída ao antropólogo é meramente a de compatibilizar a representação, bastante difusa e

generalizada, do índio como

primitivo, com a sua existência atual (ou seja, a missão inglória de tornar verosimilhantes o preconceito e a realidade, para isso construindo um conjunto de indicadores supostamente técnicos e objetivos), o laudo elaborado por Paraíso caminha decididamente na primeira direção,

enredando-se em uma visão circular, onde os

resultados dos mecanismos de ação indigenista passam a ser pré-condição para a sua própria aplicação. Ao contrário o que o antropólogo pode fazer é descrever e interpretar um processo de formação de unidades sociais que se desdobra no tempo, estudando-o em suas múltiplas dimensões, estabelecendo, à guisa de subsídios para uma decisão governamental, as condições e possíveis conseqüências de uma intervenção indigenista. Os estudos antropológicos preliminares podem fornecer uma base muito valiosa para a elaboração de um programa adequado, respeitoso e eficiente de ação indigenista junto a uma população específica, apresentando um amplo e imprescindível painel etnográfico, histórico e cultural - sem o qual uma agência governamental não poderá delinear uma política indigenista lúcida e diferenciada. De certo modo isso já se está consolidando nos últimos cinco anos no âmbito dos processos de definição de terras indígenas; seria muito positivo igualmente que tais estudos passassem a subsidiar também a própria política de assistência (educação, saúde e sobretudo desenvolvimento) desenvolvida pela FUNAI em parceria com outros organismos públicos (ou não), sem esquecer o papel crucial hoje desempenhado pelas organizações indígenas.

CONCLUSÃO AS BASES PARA O RECONHECIMENTO ÉTNICO

Não é de surpreender que os dois laudos feitos por antropólogos sobre os Kaxixó cheguem a conclusões antagônicas, uma vez que são produzidos em contextos muito diferentes, referindo-se a modalidades inteiramente distintas de utilização de conceitos e

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métodos da história e da antropologia. Como já foi antes exposto de forma extensa e meticulosa, o texto elaborado por Paraíso aproxima-se não tanto de um laudo antropológico, preocupado com a produção de dados etnográficos em resposta aos quesitos propostos pelas instâncias judiciárias, tal como tem sido executado nos últimos anos, mas sim de outro gênero de saber administrativo, os antigos relatórios de identificação de terras indígenas, que funcionam como verdadeiras comissões administrativas de arbitragem e resolução de conflitos. Os laudos de 1994 e 1999 contrastam flagrantemente pelo simples cuidado na preparação do texto, pela extensão e pelo grau de elaboração existente, pela quantidade de material etnográfico fornecido e fontes históricas consultadas, pela bibliografia teórica de apoio e por sua efetiva incorporação na análise avançada. Quanto mais se pratique a comparação mais se tornam evidentes as limitações e imprecisões do texto de 1994, contrastando com o fôlego e o rigor do laudo de 1999. As diferenças são tão nítidas e marcantes que reforçam a impressão de que não se trata de peças comparáveis e referidas a um mesmo gênero de saber administrativo, mas sim de iniciativas distintas em termos de seus meios e fins. Não cabe porem de modo algum personalizar essa avaliação – que não deve ser entendida como um julgamento sobre a obra (enquanto conjunto de trabalhos) e a competência de seus autores. Na realidade o laudo Kaxixó (1994) contrasta bastante com o laudo Krenak (1989); embora sejam ambos de mesma autoria, o Krenak é muito mais elaborado e fundamentado, implicando inclusive em uma pesquisa de campo realizada em equipe (conforme já foi dito anteriormente). No que toca ao uso das fontes históricas, o texto de 1994 adota uma postura colonialista e arbitrária, elegendo as fontes escritas como as únicas bases legítimas para a reconstituição de uma verdade histórica. Os relatos orais são totalmente ignorados como instrumentos de trabalho do historiador, bem como é inexistente a prática da crítica de fontes. O apelo a material arqueológico pretenderia superar os limites da história escrita oficial, mas acaba por retificar os sítios arqueológicos e repetir as distorções acima criticadas. Ao contrário, o laudo de 1999 realiza uma leitura muito mais criteriosa das fontes escritas, apresenta com muito cuidado os relatos orais e explora as inter-relações e compatibilidades entre ambos; focaliza ainda o material arqueológico a partir de sua significação para a população sediada especificamente nessa área.

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Quanto à natureza do trabalho antropológico, igualmente o texto de 1994 parece resultar de uma situação de pesquisa extremamente frágil e inapropriada, marcada por um contato muito rápido e superficial, por extrema dificuldade de comunicação, pela formulação de questões inadequadas e extemporâneas. O resultado final de uma atividade detetivesca e inquisitorial revelou-se como altamente falseador, além de gerar uma visão muito negativa dos antropólogos e de seus procedimentos de trabalho. Ao contrário o laudo de 1999, criando boas condições para o exercício do trabalho de campo,

oferece amplos subsídios etnográficos, valorizando os discursos e

conhecimentos da população estudada. A leitura do material existente sobre os Kaxixó (em especial os laudos de Paraíso, 1994 e Santos, 1999) juntamente com a experiência direta de visita à comunidade, de interlocução com a maioria de seus integrantes e com alguns habitantes de núcleos urbanos adjacentes,

não nos deixou qualquer margem de dúvida – as

famílias e pessoas que moram no Capão do Zezinho se assumem enquanto indígenas, têm sua interação cotidiana articulada por múltiplas redes sociais (parentesco, trocas econômicas, práticas religiosas e lazer), que se caracterizam como densas e em grande parte sobrepostas, compartilhando nessa medida representações sobre si mesmos e sobre o meio circundante. Ou seja, as famílias e pessoas do Capão do Zezinho se pensam como uma comunidade, com um modo de vida peculiar, e atribuem a causa disso a uma origem étnica comum (distinta dos “estrangeiros”, isto é, “nós”, os “brancos”). As narrativas sobre as origens, a descendência dos “gentios”, o tempo da escravidão, a “escola” de jagunços e a formação das fazendas e núcleos urbanos da região são conhecidas e partilhadas por muitos e os mais expressivos membros dessa coletividade. Há relações de parentesco muito próximas entre os membros da comunidade, bem como estão operantes circuitos internos de redistribuição e reciprocidade que lhes permitem inclusive incorporar pessoas de fora (por casamento), apropriar-se coletivamente de bens individualizados (os terrenos individuais obtidos mediante escritura, posse ou como licença de ocupação de terra devoluta) e desenvolver diversas atividades em múltiplas formas de associação. Os sítios arqueológicos, dos quais se sentem como fiéis e respeitosos guardiães, materializa para eles o seu vínculo histórico com populações originárias. Nos últimos anos estabeleceram uma auto-identificação como indígenas partilhada firmemente pelas pessoas mais influentes da comunidade. Em que pese a

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frustração pelo laudo de não reconhecimento (1994) e o cansaço por um período prolongado de mobilizações e expectativas sem resposta (1986-2001), essa pequena coletividade mantém a sua opção pela via étnica (indígena) e estão crescentemente integrados ao movimento indígena brasileiro. É o que se pode apreender por ações e publicações mais recentes 18 , que mostram a crescente participação dos Kaxixó nos atuais temas e perspectivas do campo indigenista brasileiro.

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18

Vide Secretaria de Educação/MG, 2000; Prezia, 2001 e os registros sobre as mobilizações políticas do ano passado, contidas no Relatório de Atividades, em Anexo.

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