o Prólogo Do Poema de Parmênides
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Análise do prólogo do poema de Parmênides...
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UNIRIO – UNIVERSIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ALUNO: Alexander Rodrigues do Amaral CURSO: Letras – Bacharelado Bacharelado DISCIPLINA: Filosofia Antiga PROFESSOR: Ana Flaksman DATA: 03/07/2017 A IMPORTÂNCIA COESIVA E FILOSÓFICA DO PRÓLOGO EM SOB R E NATUREZA , DE PARMÊNIDES
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Acredita-se que Parmênides nasceu numa família rica e influente da Eleia, por volta do ano 512 a.C. É tido como um seguidor de Xenófanes e fundador da Escola Eleática, um dos pilares da filosofia grega gr ega antiga, da qual destacam-se nomes consagrados como o de Zenão de Eleia e Melisso de Samos, e que viria a influenciar fortemente Platão, que lhe dedicou os diálogos Parmênides e Sofista, bem como a Física e a Metafísica de Aristóteles. De sua obra, nos chegam apenas fragmentos de seu poema intitulado Sobre a Natureza , por meio de citações e comentários de Simplício, citações de Sexto Empírico, de comentários de Platão e Aristóteles e algumas cópias de filósofos posteriores, tais como Teofrasto, Proclo, Clemente de Alexandria, dentre outros. Ao longo de quase mil anos, esses trechos circularam entre elogios, críticas e comentários, compondo um perfil filosófico de Parmênides como um metafísico unitarista e imobilista que defendia a unidade e rejeitava as opiniões dos mortais como parte do campo da verdade. Tal perfil, na modernidade, é amplamente problematizado como veremos adiante. A edição crítica dessa obra, editada inicialmente por Hermann Diels e Walther Kranz em 1951, é a de maior prestígio atualmente (SANTORO, 2011, p. 59). A partir dessa edição, observa-se que o poema de Parmênides se divide estruturalmente em três partes bastante distintas entre si, tanto do ponto de vista linguístico, como também em termos de conteúdo filosófico. A primeira parte é usualmente chamada de prólogo ou proêmio e descreve a viagem de um jovem à presença de uma deusa inominada. Na segunda parte, essa deusa apresenta o caminho da verdade, numa longa argumentação de cunho ontológico e metafísico. A parte final, por sua vez, detalha, ainda na voz dessa deusa, o caminho das opiniões dos mortais (COSTA, 2007, p. 93). Essas diferenças tão fortemente marcadas contribuíram para a construção de uma argumentação voltada para a mera (e consideravelmente problemática) oposição entre os conceitos de verdade e opinião na obra parmenídica.
A importância coesiva e filosófica do prólogo em Sobre a Natureza, de Parmênides Alexander Rodrigues do Amaral
O objetivo do presente ensaio é analisar especificamente o prólogo do poema (fragmento 1), em suas imagens, linguagem, alegorias e referências, buscando evidenciar a relação complexa entre todos esses elementos e a própria doutrina filosófica de Parmênides. Muitas vezes deixado de lado pelos comentadores de Parmênides, o proêmio abre o poema com uma linguagem notadamente poética que dialoga diretamente com a tradição na qual o autor se inseria. Os versos hexâmetros dactílicos eram a forma de expressão típica da poesia épica de Homero e Hesíodo (MUNIZ, 2007, p. 37) e não dos seus colegas filósofos que preferiam a prosa como forma de transmitir suas reflexões. Esse diálogo direto com o próprio modo de pensar do grego clássico tem um objetivo multifacetado. Primeiramente, é possível que essa seja uma estratégia para atrair a atenção do seu público, uma vez que a poética se tratava de um modelo consagrado à época. Assim, Parmênides aproximaria a sua audiência do tipo textual filosófico até então pouco difundido ( Ibidem, p. 38), dando um impulso de popularidade ao gênero. Por outro lado, é possível entender essa linguagem como uma tentativa de dialogar com as tradições poéticas e filosóficas anteriores, deixando evidente seu conhecimento acerca das doutrinas que cita. Ao referenciar figuras como Homero, por meio do tema clássico da viagem, mote principal da Odisseia, ou filósofos como Anaximandro e Heráclito, que já haviam tratado dos temas da justiça, por exemplo, Parmênides prepara o debate com as suas próprias teses, detalhadas na parte ontológica do poema (COSTA, 2007, p. 94-95). É ainda possível compreender essa adesão à poética como uma busca por validação do seu discurso. Ao invés, portanto, de partir diretamente para argumentação lógica, Parmênides prefere ambientar suas teses num canto divino, agregando assim toda a potência do discurso teológico ainda presente e influente na Grécia clássica (SANTOS, 2000, p. 65-66). Nada mais expressivo do contexto ideológico e cultural em que se situa o autor. Para cumprir esse esforço poético, já no prólogo, o filósofo eleata elabora uma série de alegorias, todas passíveis de diferentes interpretações que acrescentam ao poema riqueza de linguagem e múltiplas possibilidades de interpretação filosóficas ou religiosas. Esse trecho inicial do poema descreve a viagem de um jovem até a morada de uma deusa inominada que lhe apresenta a verdade. A referência mais imediata que surge diante desse tema da viagem é a Odisseia, de Homero. Nessa leitura mais imediata, o jovem levado à presença da deusa da verdade seria um duplo de Odisseu, o herói errante que almeja o retorno à sua casa. Segundo
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Muniz (2007, p. 41), a errância é um termo central para Parmênides, uma vez que o caminho buscado pelo herói (e também pelo filósofo), o caminho verdadeiro, passa pelo erro, pelas aparências, pelo engano. Esse trajeto errático seria a essência do pensamento parmenídico descrito no poema, pois ao jovem é dito pela deusa que tudo deve ser aprendido. Nesse todo, incluem-se não apenas a verdade real, mas também toda a errância ao seu redor, as aparências e as opiniões dos mortais que, apesar de não se constituírem como a verdade, possuem um modo de “aparentemente” ser que complementa a noção de realidade (SANTOS, 2000, p. 70). Em consonância com essa referência à tradição épica, destaca-se a imagem das Helíades, as filhas do Sol, que acompanham o eu-lírico do proêmio em sua viagem. A presença desses entes, que guiam o viajante que desconhece o caminho a percorrer, remete em primeiro lugar a uma viagem por um espaço celestial de luz e revelação da verdade a ser clarificada pelo Sol que a tudo ilumina (BERNABÉ, 2013, p. 44). Ademais, essas figuras podem ser lidas como equivalentes das musas que inspiram os aedos a cantar. Além de dar à luz esse canto, a imagem das filhas do Sol indica uma jornada que parte da escuridão para a luz, da noite para o dia. Mais do que uma questão temporal, trata-se de uma experiência de purificação e de conhecimento, baseada nos preceitos das deusas da Justiça ( Díke) e da Norma (Themis), as quais a deusa inominada menciona como o caminho que deve ser seguido (SANTORO, 2007, p. 86-88). Uma outra leitura plausível dessa viagem em busca da verdade é de que a trajetória descrita no proêmio em busca do conhecimento segue o rumo das trevas e não da luz. Segundo análise de Gabriele Cornelli (2005, p. 96), essas imagens indicam uma aproximação entre a filosofia e a katábasis, ou a descida ao mundo dos mortos. O prólogo, nesse sentido, seria a descrição de um rito de iniciação, em que o jovem percorre um caminho acompanhado de forças não-humanas, as filhas do Sol, tal como no mito de Fédon, em que o caminho para o Hades não é simples e carece de guias divinos. É um percurso cheio de bifurcações, o que dialoga com a dupla narrativa da deusa que descreve tanto o caminho da verdade, como o das opiniões ( dóxa). Cornelli aponta ainda outras referências que indicam que o jovem Parmênides do prólogo está a bordo do carro do Sol, percorrendo o caminho em direção ao mundo dos mortos, mesmo caminho que o Sol percorre à noite, até chegar ao umbral descrito na Teogonia. Díke, a deusa da Justiça, é a guardiã dessa porta na
mitologia de Hesíodo, mas no poema
de Parmênides, uma deusa inominada o recebe do outro lado do portão, um espaço outro,
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longe do lugar dos mortais, o próprio Hades ( Ibidem, p. 97-98). Ao final do prólogo, essa deusa anuncia a verdade ( Alêtheia), que em grego remete à antítese do esquecimento ( Lête), nome dado ao rio que percorre o mundo subterrâneo dos mortos e cuja água é bebida por todos antes de retornar a uma nova vida. Parmênides, o sábio jovem filósofo, percorre esse caminho mesmo estando vivo. Ele é agraciado pela deusa inominada com a dádiva da verdade e com o dever de retornar ao mundo dos mortais para revelá- la “por todas as cidades” (DK 28 B1, 3) .
Essa imagem, aponta por fim Cornelli, conjuga dois
expedientes fundamentais para o homem grego – o misticismo e a cidade – levando a crer que este lugar citadino, privilegiado da política, coexiste com a filosofia e a mitologia ( Ibidem, p. 100). Essa ampliação da relação entre verdade e realidade, acrescentada dos mistérios, das opiniões dos mortais, das errâncias que se percorrem em busca do conhecimento, está anunciada no final do proêmio. A determinação da deusa é clara: “Terás, pois, de tudo aprender” (DK 28 B1, 28). Não basta, portanto, ao filósofo aprender apenas o caminho
da verdade. Sem o outro caminho, o das opiniões, o da tradição que Parmênides demonstra conhecer bem, o caminho que se pretende superar, não seria possível sequer compor uma verdade unívoca (COSTA, 2007, p.96-97). O proêmio anuncia, assim, a coerência que existe entre as três partes do poema, apesar das evidentes diferenças entre os dois caminhos descritos nas suas duas partes finais. Como explica Alexandre Costa, a estrutura da obra é fundamental para a compreensão da intenção filosófica de Parmênides. O seu primeiro movimento é o de estabelecer um diálogo com a tradição poética e filosófica, por meio de referências, alusões e menções, evidenciando assim a sua própria trajetória de formação. Em seguida, vem o anúncio da bifurcação que lhe obriga a optar por permanecer no campo da reverência ao passado ou superá-lo, ultrapassando suas limitações e atingindo a verdade. Apesar dessa evidente hierarquização do caminho anunciado pela deusa na segunda parte do poema como o da verdade, Parmênides ainda necessita da parte final, a descrição do caminho das opiniões. Uma não existiria sem a outra, haja vista que seria inviável a elaboração da verdade, uma novidade apresentada pelo poema, sem o esforço de negação do que lhe antecedeu, ou seja, toda uma tradição filosófica baseada em equívocos e desconhecimento. A pormenorização de cada um desses caminhos se faz necessária para esclarecer dialogicamente a segurança inequívoca e uníssona do conhecimento
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verdadeiro e imortal, em comparação ao pseudoconhecimento mutável e constantemente equivocado das opiniões dos mortais. Além dessa inter-relação, é importante notar que toda a noção de saber e conhecimento para a tradição, seja filosófica ou teológica, aponta para o conhecimento do real, da physis. Portanto, a unidade inequívoca e imutável da verdade anunciada parece se tornar
algo inatingível ou, pelo menos, não observável na realidade que se movimenta e muda a cada instante. Diante desse impasse, Parmênides opta por manter as opiniões como parte integrante do pensamento, uma vez que seria virtualmente impossível inserir-se na realidade sem opinar sobre ela, mas ao mesmo tempo, inventa um artifício de construção de um conhecimento que se afasta da physis, uma verdade abissalmente autônoma em relação à realidade e hermeticamente fechada em si mesma. Essa é, ainda segundo Costa, mais uma justificativa para a cisão entre as duas partes finais do poema que, em realidade, tratam de objetos distintos. Na parte a respeito da verdade, Parmênides trata de um objeto idealizado, “a unidade de um ente puramente conceitual e por isso limitado”, enquanto que na parte final trata do real e da “multiplicidade dos entes fenomenais” ( Ibidem,
p. 111). Eis a grande inovação da filosofia parmenídica: pela
primeira vez se esboça a distinção entre, de um lado, o que atualmente se conhece como ciência pura, que tem caráter abstrato, mantendo-se sempre apartada da realidade e cujo saber independe da physis; e, do outro lado, as ciências da natureza, sempre condicionadas pela própria realidade que buscam descrever e cujos saberes são atualizados constantemente de acordo com as mudanças de paradigma que lhe impõe a história. Não é à toa, portanto, que Parmênides revolucionou o pensamento pré-socrático. Sua obra estabelece precedentes que servirão de base para elaborações não apenas de pensadores imediatamente posteriores a ele, como Platão e Aristóteles, mas também de filósofos mais recentes, como Hegel e Nietzsche. A reelaboração das opiniões acerca de seu poema, até a contemporaneidade, cumpre exatamente o papel que o Eleata nos determinou – o aperfeiçoamento contínuo do conhecimento por meio do duplo caminho do pensar.
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REFERÊNCIAS BERNABÉ, Alberto. Filosofia e mistérios: leitura do proêmio de Parmênides. Archai. Brasília, n. 10, p. 37-58, jan.-jul. 2013. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017. CORNELLI, Gabriele. O caminho de Parmênides: sobre a filosofia e katábasis no prólogo do Poema. Hypnos. São Paulo, n. 14, v. 10, p. 93-101, 1. sem. 2005. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017. COSTA, Alexandre. O sentido histórico-filosófico do Poema de Parmênides. In. REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFRJ. n. 1, v. 1, 2007, Rio de Janeiro. Anais de filosofia clássica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 92-128. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017. MUNIZ, Fernando. A odisseia de Parmênides. In. REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFRJ. n. 1, v. 1, 2007, Rio de Janeiro. Anais de filosofia clássica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 37-44. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017. SANTORO, Fernando. Filósofos clássicos I: Parmênides e Xenófanes, fragmentos. Rio de Janeiro: Hexis/FBN, 2011. __________. Os nomes dos deuses. In. REVISTA DO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFRJ. n. 1, v. 2, 2007, Rio de Janeiro. Anais de filosofia clássica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 83-90. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017. SANTOS, José Trindade. Da natureza – Parmênides. Brasília: Thesaurus, 2000.
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