O PRINCIPIALISMO NA BIOÉTICA

September 19, 2017 | Author: Iuiuscaesar | Category: Crime & Justice, Justice, Law Of Obligations, Bioethics, Utilitarianism
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O PRINCIPIALISMO NA BIOÉTICA Alexandre Jorge Alexandre Bieluczyk Regiano Bregalda1 1.

Introdução

Os princípios básicos que orientam a experimentação com seres humanos nas ciências do comportamento e da biomedicina foram introduzidos a partir de 1974, pelo Congresso NorteAmericano. A preocupação surgiu com os escândalos do caso Tuskegee e especialmente com os experimentos da II Guerra Mundial. Como resolução foi publicado o relatório Belmont Report e três princípios para justificar as normas para os procedimentos de experimentação: 1) respeito pelas pessoas; 2) a beneficência; e 3) justiça. Normatizando somente a experiência com seres humanos, e não com outros animais e nem com o meio ambiente, os princípios não foram acolhidos com a máxima aprovação pela sociedade científica. Cinco anos depois, os bioeticistas Beauchamp, seguindo tendências éticas utilitaristas, e Childress, defensor do deontologismo, refletiram e aprofundaram os três princípios estabelecidos em 1974 e acrescentaram o princípio da não-maleficência, como distinção da beneficência. “Uma razão para fazer essa distinção é a de que os deveres negativos da não-maleficência possuem algumas especificidades que parecem torná-los prioritários em relação aos deveres de beneficência” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 28). O principialismo é uma teoria mista, isto é, agrupa princípios deontológicos (nãomaleficência e justiça) e teleológicos (beneficência e autonomia). Num primeiro momento, o principialismo fundamenta-se nos princípios deontológicos, com base na teoria frankena ou até mesmo de Hume. Por não apresentar um caráter rigoroso, como a ética kantiana ou utilitarista de Mill, o principialismo é denominado de prima facie (cada princípio vale enquanto considerações morais não estiverem em jogo. Ex: a promessa vale, enquanto o dever da justiça não emergir) compõem de deveres não absolutos e não metafísicos. “Deste modo, o principialismo distingue-se tanto da ética de Kant quanto da ética de Mill onde os princípios éticos fundamentais (o Imperativo Categórico e o Princípio da Utilidade) possuem validade absoluta” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 29). No segundo momento, é importante salientar que princípios não são regras, mas prescrições universais ou gerais. 1

Acadêmicos do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo.

2. Os princípios da bioética 2.1 Respeito á autonomia Autonomia na perspectiva principialista não tem a conotação da ética kantiana da autoimposição de leis, mas trata-se de respeitar a liberdade e a capacidade do sujeito de escolher. Segundo Beauchamp e Childress para uma ação ser autônoma necessita de três elementos: 1) a intencionalidade; 2) o conhecimento; e 3) a não-interferência. Nesse sentido, entende-se a autonomia como um processo construtivo que o ser humano vai edificando a partir de uma série de condições biológicas, psíquicas e socioculturais. A conceitualização apresentada livra-se de alguns problemas teóricos encontrados em outras linhas conceituais, que apontam a autonomia como um querer de segunda ordem. Assim, torna-se mais objetivo a apresentação dos pressupostos que fundamentam o princípio do respeito à autonomia, pontuados na sequência: 1. Que o desejo do agente seja de primeira ordem, ou seja, que suas deliberações sejam pautadas na autonomia e no respeito à mesma (de si e do outro); 2. Não existe uma ação autônoma sem que haja intencionalidade e conhecimento, isto é, a autonomia liga-se a um sujeito da ação que sofre interferências. “A possibilidade de um indivíduo de autodeterminar-se a agir é o que importa para caracterizá-lo como autônomo, como pessoa.” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 31). 3. A autonomia não é absoluta e sempre está ligada com a responsabilidade. “Por conseguinte, a autonomia não é sinônimo de liberdade irrestrita, mas de autodeterminação” (p. 32). 4. O dever de respeitar a capacidade do outro de deliberar sobre suas ações. “Devemos respeitar as visões dos indivíduos e seus direitos na medida em que seus pensamentos e ações não causem dano sério para outras pessoas.” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 32). 5. Da liberdade, isto é, “as ações autônomas não devem estar sujeitas a coações pelos outros.” O respeito à escolha das pessoas devem ser respeitadas com profunda obrigação. 6. O respeito à pessoa enquanto tal e não a autonomia, isto é, a pessoa deve ser compreendida como um princípio ético fundamental. 7. O consentimento como validade do respeito à pessoa, exige três componentes: 1) precondições; 2) elementos informativos; e 3) elementos consensuais. Nos casos dos pacientes

desprovidos de tais condições seus representantes devem assumir o consentimento, partindo do princípio dos melhores interesses do representado. 8. Impedimento do paternalismo, ou seja, a negação da liberdade do outro e manifestação dos interesses próprios. Pontuado, de forma genérica, os elementos fundamentais em torno do princípio do respeito à autonomia, podemos recorrer à ordem constitucional brasileira que garante o direito à autonomia ao prescrever que nenhum cidadão é obrigado a fazer algo senão de acordo com a lei. Isso justifica o poder de deliberação dos sujeitos com condições de autonomia. 2.2 Não- maleficência O princípio da não-maleficência, não citado no Relatório Belmont, vincula-se ao princípio da maleficência, por defender o bem das outras pessoas sem provocar danos com intencionalidade. Passou a ser distinguido na ética biomédica e é encontrado no juramento hipocrático primum non nocere (em primeiro lugar, não causar dano). Embora, as divergências em relação à temática, o princípio da não-maleficência pode ser definido da seguinte maneira: “Não causes danos aos outros” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 39) nem intencionalmente, nem desnecessariamente. Nesse sentido, percebe-se uma obrigação do agir em favor do bem. Sem nenhuma sobrevalorização de um princípio sobre o outro, o principialismo da nãomaleficência expõe-se não de modo a priori, mas reforça a ideia da obrigação de fazer o bem aos outros, ou na impossibilidade de fazê-lo, evitar o mal, o dano. Assim, diferencia do princípio da beneficência que procura respeitar o interesse dos outros. “Se refletirmos, todavia, mais atentamente sobre a relação entre o princípio da nãomaleficência e o da beneficência, percebemos que parece existir uma passagem gradual entre o não causar dano e o agir no interesse dos outros. Quer dizer, em primeiro lugar devemos evitar o mal e, então, fazer o bem” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 40).

Nesse sentido, se pudéssemos colocar uma hierarquia de princípios, primeiramente não se deveria causar dano; depois prevenir o mal; remover o mal; e promover o bem. Para tanto, no intuito de fundamentar a ideia do fazer bem aos outros, se faz necessário esclarecer o que significa o conceito de dano. A discussão proposta no interior do princípio em questão aceita a ambigüidade do termo que representa tipos de males das dimensões físicas, psicológicas, moral e até material.

Devido à ambigüidade, o princípio da não-maleficência só possui validade prima facie e deve ser contraposto aos outros princípios, principalmente da beneficência. Referindo-se ao profissional e não ao paciente, o princípio da não-maleficência defende a posição do bem em primeiro lugar a pessoa. Nesse sentido, algumas perguntas da área médica podem ser feitas: 1) deixar alguém morrer depois de uma parada cardíaca, isto é, não reanimá-lo é causar-lhe dano?; e 2) assistir alguém no processo de morrer é causar-lhe dano? A questão que norteia as problemáticas gira em torno da diferença entre matar e deixar morrer. As questões mencionadas são difíceis de responder, pois envolvem a análise de um conjunto de princípios que proporcionam o exame harmônico das situações, como da reverência à vida. “Isto mostra duas coisas importantes: (i) que os quatros princípios do chamado ‘principialismo’ devem funcionar juntos e de maneira harmônica, complementando-se um ao outro; (ii) que talvez seja necessário introduzir outros princípios nessa teoria da bioética” (DALL’ AGNOL, 2004, p. 43). 2.3 Beneficência O termo beneficência significa “fazer o bem aos outros”. Nesse sentido, a beneficência é o princípio elementar da bioética e de caráter teleológico, edificado a partir do utilitarismo. Na abordagem teórica que nos guia, o princípio da beneficência não exige uma distinção do princípio da utilidade como dos autores de Principles of Biomedical Ethics, mas nos obriga a agir em benefício dos outros. Levando ao pé da letra, a beneficência poderia ser resumida na seguinte máxima: Faça o bem aos outros. Nesse sentido, os profissionais da saúde estariam obrigados a fazer o possível para restabelecer a saúde do paciente, mesmo em casos de riscos. Embora, a obrigatoriedade seja explícita, os deveres da beneficência não se enquadram em alguns sistemas éticos por assumir uma relação particular ou por ser considerada além-dever. O que pode ser dito, é que a beneficência é assumida como sendo prima facie, enquanto focada no profissional da saúde. A beneficência divide-se em: 1) geral ao relacionar com todas as pessoas de forma indistinta e imparcial; e 2) específica por estar relacionada com pessoas em que se estabelecem relações especiais. No caso específico, o grau de obrigatoriedade é maior e não deve ser confundido com caridade, mas com o dever da beneficência. “Ele/a (profissionais da saúde) tem o dever de agir em

função do bem do paciente, isto é, de seu bem-estar, da promoção de sua saúde e da sua prevenção da doença” (DALL’ AGNOL, 2004, p.45). Na perspectiva da beneficência podem-se citar algumas regras que se aproximam do princípio da não-maleficência, como: 1) proteger e defender os direitos dos outros; 2) prevenir dano; 3) remover as condições que irão causar dano aos outros; 4) ajudar pessoas deficientes; e 5) resgatar pessoas em perigo. Embora, aja certa aproximação é necessário fazer uma diferenciação. As regras da não-maleficência são proibições de ações, que visam não causar danos aos outros. Enquanto, a beneficência no âmbito geral não trata de condições jurídicas, apenas a censura moral; e a de cunho específica indica a ação em benefício de outrem. A linha divisória do princípio da não-beneficência e da beneficência é tênue e difícil de encontrá-la. No entanto, é preciso ter o cuidado para não cair em seu limite denominado de paternalismo, restringindo ações autônomas. “Um ponto teórico importante relacionado com uma teoria ética pluralista como o principialismo é a limitação recíproca entre os princípios. Por exemplo, aceitar o princípio do respeito à autonomia significa limitar a abrangência do princípio da beneficência” (DALL’ AGNOL, 2004, p.47). Por essa via, o paternalismo só se torna justificável quando a vida do agente estiver em extremo perigo. Diante, da limitação e da própria complexidade dos princípios, de alguns casos deve ser escolhido um deles para guiar de forma coerente e a harmônica a ação. “Parece que a aplicação conjunta de princípios é possível e que é cada situação particular que vai decidir qual deles tem mais força” (DALL’ AGNOL, 2004, p.48). 2.4 Justiça De todos os princípios da bioética, o da justiça é o mais complexo e polêmico. Por justiça entende-se tratar bem os iguais e diferentemente os desiguais é um princípio formal da justiça presente já no pensamento aristotélico. Por não apontar o que é igualdade e nem quem são os iguais, podemos reformular o conceito de justiça formal dizendo: trate equitativamente às pessoas. Dessa designação formal surgem algumas leis, como: 1) respeite cada pessoa na sua individualidade; 2) trate os direitos de todos igualmente; e 3) considere os interesses e as necessidades específicos de cada indivíduo.

O segundo entendimento de justiça restringe-se ao campo material, ou seja, é uma conceitualização estabelecida a partir dos seguintes critérios: 1) a cada um de modo igual; 2) a cada um segundo a necessidade; 3) a cada um segundo o mérito; 4) a cada um segundo a contribuição individual; e 5) a cada um segundo as ‘leis’ do mercado. Nessa perspectiva, podemos encontrar as diversas ideologias e linhas teóricas que partem dessa conceitualização material de justiça, como: utilitaristas, comunitaristas, igualitárias, etc. A partir do conceito de justiça material emergem duas questões no campo da bioética: 1) a igualdade de oportunidades – gênero, raça, idade, nacionalidade, etc, não é critério para distribuir bens e nem para proporcionar oportunidades; e 2) dar conta de um padrão mínimo – ou o cuidado assistencial para todos. Nesse sentido, podemos apresentar o conceito de justiça material da seguinte maneira: distribua eficazmente os bens segundo a necessidade. Dentro das ideias apresentadas, percebe-se que a justiça material perpassa duas outras dimensões: política e social. 3. Principais dificuldades da teoria principialista Algumas dificuldades rondam a teoria principialista na relação entre profissionais e pacientes. Vejamos: 1) formalismo dos princípios: construções categóricas que tornaria inoperante para conduzir a ação; 2) generalismo dos princípios: quanto mais universais mais distantes das práticas humanas; 3) não dão conta de casos particulares; 4) rigidez dos princípios: pretendem valer para sempre; 5) desvalorização epistêmica desses princípios para valerem como prima facie, ganhando a ambigüidade entre o objetivo e subjetivo. Embora, o principialismo encontra dificuldades na exposição teórica da sua estrutura não é o caso de abandonar por completa as suas formulações, muito menos de reduzir a uma teoria do senso comum. Outras oposições infundadas são direcionadas ao principialismo, por exemplo: 1) a ética das virtudes que busca defender a ideia de que existem outros elementos da vida moral mais fundamentais que os princípios, isto é ética das virtudes. Baseada num modo de ser a partir dos costumes, do caráter, etc, a crítica feita ao principialismo não se sustenta, pois o principialismo não

é compatível com as virtudes; 2) a axiologia que defende que os valores são mais importantes do que os princípios abstratos da ação; 3) no Brasil entende-se o principialismo como “Made is USA” como uma provocação para edificarmos uma bioética latino-americana. No entanto, esse argumento é uma falácia genética, pois não se pode reduzir a justificação de uma teoria a seu contexto originário; 4) a crítica ao principialismo por não estar fundado numa metafísica também não se sustenta. Em busca de uma solidificação a bioética não está privada a uma corrente teórica, mas deve ser pensada, reformulada e ampliada por várias correntes que possibilitam o diálogo e a abertura no processo edificado. 4. A questão da validade dos princípios A veracidade, a privacidade, a confidencialidade e a fidelidade seguem as normas elementares do principialismo, ou seja, orientam-se pelo valor da prima facie e não são absolutas. Nessa perspectiva, a validade revela um campo misto do principialismo – relação entre o deontológico e o teleológico. Os princípios são guias de ação que exigem o julgamento na aplicação, dependendo do caráter do agente. “princípios devem justificar tanto regras particulares de ação quanto modos de ser, virtudes” ( DALL’ AGNOL, 2004, p. 56). O princípio prima facie representa um avanço na busca pelos alicerces da ética biomédica e da bioética em geral. 5. Problematização A partir dos fundamentos apresentados da bioética principialista elencamos algumas problemáticas em torno dos alicerces que guardam os elementos necessários da metodologia ideada para abordar questões concretas da vida. A problemática que emerge tem origem dos próprios princípios, das articulações e do próprio principialismo. Os princípios apresentam objetividade na linguagem e são acessíveis tanto aos profissionais como aos leigos. Contudo, na medida em que exige um aprofundamento começa a surgir as dificuldades. Por exemplo: pelo princípio da autonomia a vontade do sujeito precisa ser respeitada,

isto é, o consentimento do indivíduo é indispensável em qualquer tipo de tratamento. No entanto, nem sempre essa vontade é tão livre como se projeta, pois muitas das decisões são frutos da manipulação e alienação oriundos dos profissionais ou então do próprio indivíduo. A solução da problemática não está no jogo das informações, mas na forma categórica do princípio da autonomia. Absolutizar o princípio da autonomia excluindo a manipulação e a alienação seria reconhecer a legitimidade da exploração e conceder a legitimidade para praticá-la. Para amenizar o valor absoluto da autonomia pode-se recorrer aos princípios da maleficência ou não maleficência que também apresentam seus perigos. Fazer o bem e não causar danos pode desencadear o paternalismo, isto é, agir em favor do outro sem o consentimento do mesmo. Nesse sentido, faz-se necessário perguntar quem vai definir o que é o bem ( o sujeito atuante ou o beneficiário) e o que se entende por bem. A primeira questão exige um diálogo entre os dois princípios em questão com o princípio da autonomia, tarefa nada fácil; e a segunda pressupõe no jogo outros princípios, assim como outros valores, interpretações etc. Assim, os princípios da maleficência e não maleficência pela necessidade da participação de outros elementos para discutir o que é válido acaba perdendo sua neutralidade e sua operatividade. O princípio da justiça também apresenta suas problemáticas no que tange a equidade no acesso aos recursos. Depende de uma filosofia política que ajude a refletir a neutralidade e a operatividade da justiça. Aplicando os quatros princípios nem sempre vamos ter êxito, e pelo contrário, muitas vezes pode-se perceber a inoperância dos mesmos. Por exemplo: 1) em casos de aborto ou eutanásia, as formulações fundamentais do principialismo não desencadeiam soluções. Tomando o princípio da autonomia teríamos que admitir o aborto e eutanásia como voluntários, praticáveis a pedido da vontade do sujeito. Isso chocaria com o princípio da maleficência ou não maleficência tais como são entendidos pelos intervenientes; 2) em casos da vontade do sujeito de tratar-se de uma grave doença e precisa esperar meses e anos em filas para o atendimento médico. O princípio da vontade choca-se com o princípio da justiça, da maleficência e da não maleficência. Enfim, podemos perceber que os fundamentos do principialismo entram em conflito com as singularidades e suas diversas circunstâncias. Daí surge à casuística que busca evitar o subjetivismo por meio de um aparelho metodológico amplo, ignorando a participação efêmera no processo de decisão e deliberação.

5. Referência DALL’AGNOL, Darlei. Bioética: princípios morais e aplicações. DP&A: Rio de Janeiro, 2004. p.27-60.

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