O Inescrito em PDF

March 4, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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COMO A BALEIA VEIO A SER: UMA RELEITURA DE UM CONTO DE KIPLING NOS QUADRINHOS D’O INESCRITO  RESUMO: O Inescrito, HQ de Mike Carey e Peter Gross, explora as diferentes camadas que compõem o universo literário, do processo criativo à recepção e à sobreviva da obra. A narrativa é, então, construída no tênue equilíbrio entre a realidade e a ficção, e nas próprias fronteiras desta última. Para a tessitura dessa malha narrativa, autores, filmes, livros e personagens são convocados de diversas maneiras, possibilitando uma rede dialógica entre eles. O  protagonista, Tom Taylor, é também inspiração para o personagem principal de uma série de livros juvenis, tal qual Harry Potter, escrita por seu pai. A ligação existente Tom e Tommy é a chave de passagem para transitar entre os diversos mundos narrativos, tornando-se um dos elos entre a ficção e a realidade. Outro ponto de contato importante, que funciona como uma conexão entre as diversas narrativas, é o Leviatã, representado pelo arquétipo da baleia. Tal arquétipo é frequente ao longo de toda a obra, assim como o é na história literária, desde o livro bíblico de Jonas até Moby Dick . Na  HQ, a baleia está intimamente ligada ao poder das narrativas, fazendo delas seu alimento e, assim,  possibilitando a sobrevivência ou o apagamento das mesmas. Uma dessas narrativas que se inscrevem na HQ é o conto De onde veio a garganta da baleia, de Rudyard Kipling, uma fábula sobre o sistema de alimentação das baleias, que foi reescrita na história Como a baleia veio a ser , quando a imagem da baleia é introduzida pela primeira vez n’O Inescrito. Neste artigo, analisar-se-á como a história inscrita na HQ ressignifica e atualiza a sua anterioridade, sob a perspectiva dos Estudos da Tradução, e considerando o  processo tradutório como um processo de criação e interpretação, que possibilita inesgotáveis releituras. PALAVRAS-CHAVE: Tradução Intersemiótica; História em Quadrinhos; O Inescrito Inescrito   O presente artigo terá como enfoque a análise do volume 1 da história em quadrinhos (HQ), O Inescrito  (The Unwritten1), escrita e ilustrada por Mike Carey e Peter Gross, respectivamente , chamado de  Tommy Taylor e a identidade falsa  (Tommy Taylor and the  Bogus Identity), com especial atenção à tradução intersemiótica do conto de Rudyard Kipling,  How the Whale got his throat , traduzido no Brasil por  De onde veio a garganta da baleia,   e  presente na história intitulada  How the whale became became ou, em português, Como a baleia veio a  ser .

A escolha feita baseia-se no fato de que esta história representa a introdução, na HQ, de

dois elementos fundamentais para o desenvolvimento da narrativa: o arquétipo da baleia e a camarilha, que explicaremos mais tarde. Através de conceitos dos Estudos da Tradução e da Teoria dos Quadrinhos, analisaremos como a história inscrita na HQ ressignifica e atualiza a sua anterioridade, considerando o processo tradutório como um processo de interpretação e reescrita, que  possibilita inesgotáveis releituras, além de observar a possível relação que a  HQ  pode 1 A

história começou a ser publicada nos Estados Unidos em 2009, pela Vertigo/DC Comics, em revistas mensais (posteriormente encadernadas em 11 volumes – o último foi lançado nos EUA em maio de 2015). No Brasil, a série começou a ser editada em volumes encadernados pela Panini Comics (o planejamento é de publicar a tradução da série em 12 volumes, dos quais 10 já foram lançados).

 

 

estabelecer com tais estudos. Mas antes de nos fixarmos no desenho do objeto cuja análise  propomos aqui, é preciso clarificar algumas algumas noções. Primeiramente, o que seria uma HQ?  Se hoje sabemos muito bem identificar uma HQ quando nos deparamos com uma, a verdade é que não existe um consenso em relação a sua definição. Embora os quadrinhos já existam há muito tempo, somente em meados dos anos 70, quando começaram a ganhar mais espaço, principalmente entre o público adulto, surgiram teorias buscando entendê-los melhor.  Nos anos 80, Will Eisner, em Quadrinhos e Arte Sequencial , a fim de que os quadrinhos fossem levados a sério, formulou uma definição. Para ele, o os quadrinhos seriam uma arte sequencial, com ou sem texto, definido por uma sucessão de imagens, comunicando “numa linguagem que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público” (Eisner, 1999, p.7). Assim, ele buscava, também, acrescer os estudos na área, tão pouco explorados academicamente.  Nos anos 90, Scott McCloud (1993, p.9), em  Desvendando os Quadrinhos, definiria os quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador. ”, ampliando a definição dada por Eisner. Muito foi, e ainda é ponderado, a respeito do que seria a HQ, se um gênero próprio ou um gênero literário. Para o pesquisador e docente Paulo Ramos, estendendo ainda mais o conceito: (....) os quadrinhos compõem um campo maior, denominado hipergênero, que agrega elementos comuns aos diferentes gêneros quadrinísticos, como o uso de umaà presença linguagem comtextuais elementos visuais (RAMOS, e verbais escritos, e )a tendência deprópria, sequências text uais narrativas 2011, s.p. s.p.)

Desta forma, segundo o professor da Unifesp, poder-se-ia entender história em quadrinhos como “o grande rótulo” que reúne diversas características, agrupando textos dos mais diversos gêneros, quando apresentem tendência narrativa e linguagem específica. Assim, dada a sua amplitude e, ao mesmo tempo, precisão, esta é a definição aqui adotada para a análise de O Inescrito.  No momento de ler uma HQ, precisamos entender um pouco sobre sua linguagem. Primeiramente, sabemos que as histórias são organizadas, geralmente, uma após a outra, numa sucessão de quadros. No entanto, alguns quadrinhos fogem a esse padrão, misturando /eliminando dos quadros, em nome do estilo ou da necessidade do autor. McCloud (1995,

 

 

 p.67) define a especificidade dos quadros para a história: “os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado e momento dissociados, mas a conclusão nos permite conectar os momentos e concluir mentalmente uma realidade continua e unificada” Logo, segundo o autor norte-americano, muito aconteceria no espaço entre os quadros, que somente a interpretação poderia unir, entrelaçando imagem e texto à bagagem do leitor e tudo aquilo que a própria narrativa fornece. Isso contraria uma antiga ideia tradicionalista de que os quadrinhos seriam uma forma linear, pouco capazes de utilizar diversas camadas de interpretação dentro de uma mesma história. Sabemos, porém, que a leitura de um quadrinho, bem como de outros textos, é um processo complexo, que envolve diversos fatores e que permite múltiplas interpretações. Os quadrinhos são, dessa forma, “vitais para diversificar nossas percepções do mundo” (MCCLOUD, 1995, p. 19). Em O Inescrito, a narrativa é construída através de outras narrativas, numa relação, muitas vezes, de tradução intersemiótica, tornando o processo de interpretação ainda mais complexo. Pode-se dizer que a obra explora as diferentes camadas que envolvem o universo literário: do processo criativo à recepção e à sobrevida de uma obra e na qual a narrativa será construída no tênue equilíbrio entre a realidade e a ficção, e nas fronteiras que as separam,  bem como nas fronteiras dos diversos universos ficcionais. Para tanto, diversos autores, filmes, livros e personagens são utilizados na tessitura dessa complexa malha narrativa, explicita ou implicitamente, possibilitando o estabelecimento de uma rede dialógica entre eles.

Como bem definiu Christina Meyer, professora da Universidade de Hannover

(Leibiniz Universität Hannover): O Inescrito é um campo de testes para citações e alusões intertextuais e intermidiáticas, assim como é um playground pós-moderno para desconstruções genéricas. A narrativa em O Inescrito não é simplesmente estabelecida através das suas inter – e metatextualidade mas, mais importante, por meio de uma rede de sugestões genéricas. Através de pistas genéricas inscritas no texto (verbal e visualmente), O Inescrito oferece  princípios de narrar histórias que outras formas gráfica gráficass não oferece oferecem. m.  (MEYER, 2013, p.279)

De certa forma, pode-se dizer que esta HQ é uma história formada por diferentes histórias, e que traz já no título ou na capa alguma referência explicita a outros textos, como

 

 

Leviatã, Metropolis, Mil e uma Noites, Frankenstein2 etc. Tais referências dão as pistas para a compreensão da formação dessa narrativa constituída de diversas histórias, de diferentes gêneros e épocas, épocas, evidenciando evidenciando,, assim, a figura do au autor, tor, segundo Bak Bakthin, thin, enquanto “um orquestrador de discursos discursos pré-existentes”, pois, como ensina Robert Robert Stam (1979, p. 23) sobre a obra do pensador russo, “ (...) as palavras, incluindo as palavras literárias, sempre vêm da  boca de outro, a criação artística nunca nunca é ex nihilo, mas sim basea baseada da em textos an antecedentes”. tecedentes”.  Nessa concepção, concepção, a relação entre textos textos,, entre mídias, deixa de ser pensada pensada de maneira  biunívoca para ser pensada através de uma relação intertextual, fazendo com que todos os textos sejam vistos enquanto originais, já que nunca são iguais, o que, numa tradução, tiraria o  peso do texto de partida como único original. Não é à toa que Samoyault (2008, p. 16) traz a concepção de intertextualidade tal como desenvolvida pelo próprio Bahktin e por Kristeva,  para quem “(...) todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absor ção e transformação de um outro texto”.  Entendendo-se que O Inescrito  acontece através da reescrita de várias narrativas literárias e cinematográficas, é preciso esclarecer o termo tradução intersemiótica. Ele foi cunhado pelo linguista russo Roman Jakobson como a tradução de textos construídos em sistemas de signos verbais diferentes, a exemplo da relação que analisaremos aqui, entre o conto de Kipling, linguagem verbal, e a HQ, que utiliza linguagem tanto visual quanto verbal, constituindo uma linguagem única. Apesar de ter atentado para outras possibilidades tradutórias, o linguista acreditava que a tradução propriamente dita era apenas a interlingual, mostrando que estava inserido no  pensamento tradicionalista. Segundo este pensamento, a tradução estaria ligada à linguística, considerada como o transporte de uma língua a outra, e o tradutor, apenas um transportador, mantendo-se invisível e buscando ser “fiel” ao texto de partida e à sua “essência”. Dessa forma, traduzir sempre implicaria em perda, pois nunca alcançaria o original , tido como sagrado e, portanto, intocável e inalcançável. Contudo, no fim dos anos 60, com o pós-estruturalismo, começa-se a questionar conceitos que por muito tempo estiveram ligados l igados à tradução, como os de original   ee fidelidade.  Jacques Derrida foi um dos teóricos fundamentais para esta problematização, trazendo à luz

2

 Orpheus in the Underworlds, Leviathan, Starway to Heaven, Citizen Taylor etc.

 

 

novos conceitos que serão de suma importância para se pensar a tradução. Alguns dos conceitos que utilizaremos são os de suplemento e de rastro. Este último seria a (...) unidade de um duplo movimento de propensão e retenção em que um elemento sempre se relaciona com outro, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca de sua relação com o elemento futuro... Forma-se um tecido em que nenhum elemento é autossuficiente autossuficien te a ponto de ter em si um significado” (DERRIDA, 1972).

Dessa forma, o rastro  permite que um texto mantenha o diálogo com o outro, como um vínculo estabelecido, permitindo com que identifiquemos um enquanto releitura de sua anterioridade. O  suplemento, por sua vez, se relaciona com a impossibilidade de completude de um texto, possibilitando inúmeras interpretações/leituras possíveis de um mesmo texto, não como uma complementação complementação,, mas ampliando suas significações.  Nessa perspectiva, a tradução passa a ser vista como um amálgama de intertextos, rastros e significações, relacionando-se com tudo aquilo à sua volta e com tudo aquilo que o escritor-tradutor carrega consigo, suas experiências, seu inconsciente. Dessa forma, a ttradução radução não mais poderia ser pensada como um simples transporte de significados. Para Robert Stam: (...) o termo para adaptação, enquanto “leitura” da fonte do romance, sugere assim como qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação, que serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. A metáfora da tradução, similarmente sugere um esforço integro de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos típicos de qualquer tradução” (2003, p.27)

E é através desse processo e das conexões intertextuais narrativa, que a HQ nos  permite pensar a importância importância das histórias nnaa constituição do mundo e do próprio in indivíduo. divíduo. É  por meio de suas leituras e releituras que estas sobrevivem ao longo do tempo, ainda mais fortes, pois é no momento da leitura, da interpretação, que a obra se abre ao mundo, que ela existe. Aqui, podemos pensar no conceito derridiano de suplemento, no qual a obra não é vista como algo fechado e sim como inacabada, na medida em que permite múltiplas interpretações, adiando seu fechamento. O tradutor, então, sendo um ser único, que carrega sua própria bagagem, não seria um transportador de significados, mas, antes de tudo, um leitor, que apropriando-se do texto, deixa suas marcas nele, atualiza-o e ressignifica-o. ressignifica-o.   Considerando a tradução enquanto um exercício de interpretação, as possibilidades tradutórias de uma história possibilitam seu trânsito pelo (s) mundo (s), em diferentes meios e

 

 

gêneros, chegando a locais os mais inesperados. Dessa maneira, a HQ atualiza os diversos textos literários e cinematográficos com que dialoga e permite que estes alcancem um novo  público, em um novo contexto. Como exemplo exemplo - que desenvolveremos mais tarde, trazemos trazemos o conto de R. Kipling,  De onde a baleia veio a ser , antes, escrita para o publico infantil, mas que, atualizada pela HQ, chega a um público juvenil-adulto - pois ainda que a HQ seja vista  por muitos como um produto majoritariamente atrelado ao público infantil, é o público jovem e adulto que mais o  o  consome3. Antes de explorarmos mais profundamente a relação entre o conto de Kipling e a HQ, vamos conhecer um pouco sobre alguns pontos importantes da narrativa.  narrativa.  O Inescrito nos apresenta a trama de Tom Taylor, suposto filho de Wilson Taylor, o famoso escritor da série de livros juvenis intitulada Tommy Taylor. Assim como Harry Potter, a série, que se tornou mundialmente famosa e arrecadou milhares de fãs, traz como  protagonista um jovem feiticeiro e seus dois ffieis ieis companheiros, fato que veremos se repetir no próprio Inescrito, com Tom / Tommy e seus amigos. Além da referência ao próprio Harry Potter, que, por sua vez, pode ter sido inspirado na figura de Tim Hunter, de Neil Gaiman, o  personagem de Tommy parece ter sido inspirado em Tom 4, o que leva os fãs dos livros a transformá-lo numa espécie de subcelebridade, constantemente comparando-os e confundindo-os. Segundo Carey, em entrevista para O Globo (FONSECA, 2012), umas das inspirações para a composição do personagem veio de também de “Christopher Milne, filho do autor britânico A. A. Milne, criador do Ursinho Pooh. Ele foi a referência para o  personagem Christopher Robin no universo de seu pai e carregou o fardo de ser comparado a figuras de ficção”.  ficção”.  Até certo ponto, diferenciamos as figuras de Tommy e Tom, enquanto  personagem do livro e personagem da HQ, e os próprios mundos em que se inscrevem, compreendendo os limites e os elos entre eles, limites os quais vão se diluindo a medida que a história se desenvolve. A ligação existente entre Tom e Tommy, porém, é mais forte do que imaginávamos e funciona como uma das pontes entre os diversos mundos narrativos, que se tocam e se afastam muitas vezes ao longo das histórias. Sabendo que esses mundos narrativos, bem como 3

 O selo da Vertigo, um seguimento da DC Comics, é para um público adulto, “desaconselhável para menores”, como encontramos escrito na revista 4  Uma abordagem sobre isso pode ser encontrada na imprensa: http://omelete.uol.com.br/games/artigo/duelo-de-bruxosharry-potter-x-tim-hunter/

 

 

os personagens, são constituídos de linguagem, podemos pensa-los à luz do que diz Terry Eagleton (1983, p. 195) sobre a linguagem, que esta “passa a assemelhar-se muito mais a uma teia que se estende sem limites, onde há um intercâmbio e circulação constante de elementos, onde nenhum dos elementos é definível de maneira absoluta e onde tudo está relacionado com tudo”.  tudo”.  Um outro conceito a que esse trânsito narrativo remete, com suas devidas ressalvas, é o já referido conceito derridiano de rastro, que traz as marcas da sua anterioridade num novo texto, permitindo liga-los, e reconhecer a relação entre eles. O rastro existente entre os textos,  bem como o próprio rastro que liga Tom e Tommy, serviria como o acesso, o caminho, que leva Tom a transitar entre esses diversos “locais”. Dessa forma, uma rede de conexões existiria entre os mundos, e a sua definição de cada um deles ocorreria através das diferenças entre eles.  eles.  Após o desaparecimento de Wilson, que deixou inescrito o derradeiro livro da série, Tom, sem saber que rumo tomar, participa das convenções realizadas pelos fãs. Durante uma das convenções, uma jornalista, Lizzie Hexam, questiona sua identidade, acusando-o de não ser quem ele diz que é, o que o deixa desnorteado. A questão feita por ela, “Quem é você? ”, é o gatilho para o início da jornada de Tom e é a partir desta pergunta que o personagem vai em  busca de sua origem, tentando encontrar a resposta que não conseguiu dar à jornalista, sem saber, ainda, que não há uma origem para onde se voltar, mas que, assim como ele, ela é formada de vários fragmentos de história.  No inicio dessa jornada, jornada, Tom nos introduz alguns dos dos conhecimentos que que possui e que foram ensinados pelo seu pai, como o conhecimento de toda a “geografia literária”, ou seja, ele sabe localizar as obras literárias no tempo e espaço, bem como os locais presentes nas  próprias obras, sejam eles fictícios ou não. Esses “endereços” são, também, o caminho para adentrar fisicamente as narrativas, narrativas, i.e., o próprio Tom Taylor transita no cenário de um conto ou de um filme. Após as quatro primeiras histórias, há uma pausa nos acontecimentos com Tom Taylor  para dar lugar a Como a baleia veio a ser , uma pequena história que traz como protagonista o escritor Rudyard Kipling, e na qual a biografia do autor se mistura às obras escritas por ele, ressaltando características que estiveram ligadas às mesmas, como sua fama de ter enaltecido o Império Britânico e sua missão colonizadora. Suas relações com outros autores também

 

 

estão presentes no texto, como o confronto ideológico com Oscar Wilde, através do poema resposta  Ave Imperatrix! 5, e sua relação com Mark Twain. A família do autor é parte fundamental nessa trama, tendo em vista que seus filhos influenciaram bastante a escritura das obras, sendo algumas destas dedicadas a eles, principalmente aos dois que perdeu, ainda  jovens. Dessa forma, os autores, Mike Carey e Peter Gross, vão entrelaçando vidas e ficções na reescrita da vida de Kipling, bem como na própria HQ.  Nessa história, dois componentes de suma importância para a narrativa da HQ são introduzidos. O primeiro deles é a Camarilha, ainda sem ser nomeada, mas que, mais tarde, descobrimos se tratar de uma organização secreta que tenta exercer um papel regulador no  processo de escritura e sobrevivência das obras, buscando manipular escritores, leitores e a disseminação das obras. O segundo, é o arquétipo da baleia, que se apresentará através de várias narrativas que fazem parta da história literária, desde o livro bíblico de Jonas até Moby Dick. Essa figura está intimamente ligada ao poder das narrativas, uma vez que faz dessas seu alimento e, assim, permite a sobrevida ou o apagamento das mesmas. A história se inicia com o próprio Kipling que, pela caracterização, já está mais velho, numa conversa com Mark Twain, apresentado como Clemens, seu verdadeiro sobrenome. No quadrinho, Kipling é o narrador da sua própria história, como se ele tivesse, de algum lugar, contando sua versão “inescrítica”  da sua vida e obra, através de narrações em off, recordatórios e balões e da utilização de letra cursiva, que produzir um efeito de diário, aumentando a intimidade entre sua história e o leitor. As primeiras páginas estão em tons de cinza, tornando-as mais sombrias e mostrando a tristeza e sobriedade do momento e do assunto que está sendo discutido: Kipling relembra a morte da sua filha, que será explicada nas páginas seguintes. Na sequência, as cores se abrem e vemos o jovem escritor na Índia, exercendo a profissão de jornalista. Lá, ele é abordado por um misterioso homem chamado Locke, que o sugere escrever sobre grandes temas, como o império britânico, no que Kipling afirma, durante um diálogo na página 115: “Meu grande desejo é espalhar nosso bom exemplo pelo mundo afora, mas não há como escrever um texto de notícias a respeito”. Locke continua: “Mesmo assim, seus contos e  poemas... não são de certa forma notícias? ”, e Kipling: “Acredito que sejam fábulas. Os 5

 Em 1881, Oscar Wilde escreveu Ave Imperatrix, poema que traz a queda do Império Impér io Britânico, já que este era a fa favor vor da república, o poema de Kipling traz a Rainha Victoria e a tentativa de assassinato que esta sofreu.

 

 

homens dizem as grandes verdades por meio de fábulas quando a simples fala não é capaz de abrangê-la”. Locke, então, menciona seus amigos influentes, garantido que podem eliminar todos empecilhos que o impedem de ser o autor que gostaria de ser. Em troca de favores, Kipling aceita a proposta, desde que tenha todo tempo que precisar para se dedicar à escrita. Meses depois, ou alguns quadrinhos à frente, vemos a promessa ser cumprida e o autor começar a fazer grande sucesso. De volta à Londres, sabe-se que Oscar Wilde reina no meio literário, e isto é visto como um empecilho empecilho para o ssucesso ucesso almeja almejado do por Kipling. Aqui, Wilde é retratad retratadoo lado a lado com o personagem que criou, o jovem Dorian Gray. Para resolver essa situação, Locke e seus amigos, “cuidam” de Wilde, acusando-o de sodomia 6, então crime na Inglaterra. Assim, com a queda de Wilde, Kipling ascende em meio aos versos de O fardo do homem branco (“The White Man´s Burden”),  poema

escrito por ele. Ilustrações, versos e narrações se encontram e se complementam numa bela imagem não só da ascensão do criador de Mogli, mas do próprio Império Britânico. Enquanto o autor está recebendo r ecebendo as glórias do seu sucesso,

embaixo, em preto, vemos as sombras de homens segurando enxadas e trabalhando na terra, fazendo um paralelo com a ascensão do próprio Império Britânico, cuja base da glória foi a exploração de terras e homens.  homens.  Ao se mudar para os Estados Unidos, conhece Clemens, que conta que também havia sido abordado por um homem misterioso que tentou recrutá-lo e diz: “Parecem ter certo interesse na forma como as histórias são contadas. E em quando. E em como” (p.122). Mostrando o interesse dessa associação em controlar as histórias e os escritores, afetando a  produção e percepção da obra, na medida que interfere no que deve ser escrito, no como e quando, a exemplo do que acontece no mercado editorial, que acaba ditando o que merece ser  publicado ou traduzido, traduzido, de acordo acordo com a época e outros fatores ssocais, ocais, culturais e históricos. O primeiro problema aparece quando Kipling recusa o pedido de Locke para que ele escreva, ainda nos Estados Unidos, um poema sobre o novo império que está se erguendo. Contrariando Locke, ele decide deixar os Estados Unidos. No entanto, a repentina doença da sua filha faz com que a viagem seja adiada. Enquanto isso, Kipling tentava encontrar inspiração para continuar escrevendo, mas esta o tinha abandonado. Como castigo para sua recusa de escrever sobre o tema sugerido, Locke o pune ao mandar sufocarem sua filha – 6

 Oscar Wilde foi acusado de sodomia em 1895, época em que a homossexualidade era considerada crime Inglaterra.

 

 

aqui, mais uma vez, o autor trabalha os limites entre realidade e ficção, “reescrevendo” eventos como o da morte da filha de Kipling a partir dos pressupostos fantásticos da história em quadrinhos. Com isso, ele volta à Inglaterra. Após um longo período sem inspiração, ela ressurge na forma de uma grande baleia, marcando o início da reescrita do conto  De onde veio a garganta da baleia. Esta emerge das profundezas das águas, grande e imponente.

Em tons de azul, a história de abre para nós através da infinitude do oceano, deixando  para trás os tons amarelados do lampião que iluminava a noite do autor. Para contar essa história, ainda que haja quadros, na primeira e maior imagem da história, o texto se integra à ela, formando um todo.

Figura 1 – Primeira aparição da baleia na história. Fonte: CAREY, Mike, GROSS, Peter. O Inescrito. São Paulo: Panini, 2012.

Essa é a introdução do conto de Kipling,  Just so stories, de 1902. Aqui, o autor é mostrado debruçado em sua mesa, enquanto escreve a história que será contada. Suas letras, contendo fragmentos do conto, se misturam ao desenho, mostrando o poder de se contar uma história. Nesse momento o mundo vai se construindo juntamente com a narrativa.

 

 

Ao lado do cetáceo que se levanta, está oo   Peixe-Astuto, que, numa conversa

aparentemente amistosa, recomenda que esta experimente comer um ser humano, indicando a localização de um marinheiro que estava sozinho no meio do mar. A baleia, então, resolve seguir os conselhos do Peixe e engole o marinheiro. Quando percebe estar dentro da barriga da baleia, o homem começa a pular, gritar e dançar. Irritada com toda essa movimentação, que lhe deu soluços, tenta expulsá-lo em vão, pois seu alimento se recusava a voltar para o mar. Tentando tirar vantagem da situação, o marinheiro inicia uma negociação: ele deixaria o ventre da baleia somente quando esta o levasse de volta a sua terra t erra natal. Desejando resolver a situação, o grande mamífero aceita a proposta e se põe a nadar. Enquanto isso, o homem constrói uma grade que, posta na garganta da baleia, a impossibilitaria de engolir grandes alimentos. Dessa forma, a história se caracteriza fábula – definição que o próprio Kipling usou para se referir aos seus textos- para explicar o sistema de alimentação de algumas  baleias, que ocorre através da filtragem da água, eliminando as impurezas que estão em suspensão. O conto inscrito nessa história pode ser lido em, no mínimo, três níveis: a do próprio conto de Kipling, que serviu de texto de partida para Como a baleia veio a ser , a do conto na reescrita da biografia de Kipling, por ele mesmo, e do conto para a história da HQ como um todo. Para esta última, torna-se importante na medida em que explica a função que o arquétipo da baleia terá enquanto filtrador de histórias, alimentando-se delas ou fazendo com que continuem flutuando no grande mar que é o mundo, podendo, algumas vezes, ter seu rumo modificado pela astúcia do homem. Assim, dentro daquilo que se pode chamar de sua “biografia inescrita”, e de acordo com as falas do Kipling-personagem do quadrinho, nessa história, ele seria o Peixe-Astuto, enquanto o homem seria o espirito humano e Locke – e tudo aquilo que ele representa – seria a baleia, fazendo com que a fábula servisse como uma declaração de guerra à tentativa de controle das histórias e dos próprios escritos. Kipling agiria como o Peixe-Astuto na medida em que, através de suas palavras, bem como o peixe levou a baleia a ser enganada pelo marinheiro, ele através do poder da sua literatura, tocaria o espirito humano, no poder que exercem sobre o homem e no poder que o homem pode exercer sobre estas, contando-as e recontando-as. Assim, a associação secreta teria seu poder limitado. Kipling passa a escrever,

 

 

sem a supervisão da camarilha, histórias infantis “em que protagonistas pequenos e indefesos derrotavam agressores maiores e mais poderosos” (p.130). Logo depois, quando seu filho seu filho fil ho desaparece, Kipling, abatido, aconselhado por sua mulher, busca novamente ajuda de Locke. Este que nega seu pedido, afirmando que seu tempo já passou e que não havia mais nada que ele pudesse ou quisesse fazer pelo escritor e seu filho. Ao descobrir que seu filho estava morto, sente-se engolido pela baleia, juntamente com a imagem de seus dois filhos, que aparecem na escuridão do interior do mamífero. Esse momento marca, de certa forma, seu silenciamento e consequente apagamento e falta de  pertencimento àquele tempo. No entanto, já na última página, o jovem Wilson Taylor, aparentemente nos anos 70 (a julgar pela caracterização do personagem e da época: calça  boca de sino, cores vibrantes, vibrantes, escânda escândalo lo de Watergate estampad estampadoo na banca de revista, símbolo símbolo hippie etc), entra numa livraria, na qual encontra um livro, que podemos supor ser de Kipling. Surpreso, ele segura o livro nas mãos.

Figura 2 – Wilson Taylor encontra Rudyard Kipling. Fonte: CAREY, Mike, GROSS, Peter. O Inescrito. São Paulo: Panini, 2012.

 

 

A narração do criador de Mogli continua durante toda essa sequência de quadros,

como um seguimento do passado encontrando-se com o presente. Ele fala que finalmente entendeu como o poder funciona, mas que não ousaria, em vida, desafiá-lo, e só somente após a sua morte tudo poderia mudar. Esse é o último quadro da narrativa. Nele, vemos o sr. Taylor  prestes a abrir o livro e romper o silêncio de Kipling, permitindo que este seja interpretado e reinterpretado por ele e por toda uma nova geração, em um novo contexto. Assim, podemos dizer que ao se sentir engolido pelo baleia, o autor morreu para renascer, inúmeras vezes, sob novos e diferentes olhares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho buscou analisar as relações entre o conto  De onde veio a garganta da baleia,

escrito em 1902, apresentado enquanto uma fábula, e sua releitura presente n’O  

 Inescrito,

intitulada Como a baleia veio a ser. Para tanto, adotamos a perspectiva da tradução

enquanto interpretação e atividade criativa, e consideramos o texto como um amálgama de significações, rastros e intertextos. A HQ, então, dialoga não só com a obra de Kipling e sua  biografia, mas também com inúmeros outros textos, que fazem parte da construção da narrativa. Percebemos que nesse completo processo de tradução e reescrita, O Inescrito se apropria do texto de Kipling e o atualiza, levando-o a um novo público, dentro de um novo contexto e época. Portanto, ele suplementa o texto de Rudyard Kipling, ao fazer uma nova interpretação da obra e, assim, revitalizá-la, possibilitando sua sobrevivência.

 

 

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