O Filme i Daniel Blake Como Instrumento de Apresentação de Conceitos Da Sociologia

November 17, 2018 | Author: MirelaFonseca | Category: Jürgen Habermas, Sociology, Public Sphere, Communication, State (Polity)
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Ensaio para disciplina sociologia IV...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dilaze Mirela Gonçalves Fonseca Semestre 2016.2

O FILME “I DANIEL BLAKE” COMO INSTRUMENTO DE APRESENTAÇÃO DE CONCEITOS DA SOCIOLOGIA

Disciplina Sociologia IV Professora: Iara Maria de Almeida Souza

Salvador, 2017

“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer   acontecimento em qualquer lugar e a qualquer  tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os  povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um  povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão  pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.” ~ Martin Heidegger  Introdução à Metafísica

(1889-1976),

em

Analisar uma obra difere por princípio da análise da realidade. Uma obra fílmica permite o uso de recursos imagéticos imaginários em um ambiente controlado pelo roteiro e pela direção, até mesmo a interpretação das personagens é avaliada e testada pela direção. Já a realidade é confrontada a todo momento por diversas teorias, conflitam-se perspectivas acerca da existência de um roteiro, da necessidade de uma direção, de quem é capaz de  interpretar e avaliar. Este texto pretende apresentar considerações sobre o pensamento de Habermas e Giddens na abordagem do filme “I, Daniel Blake”. O filme em questão durante os 3 minutos iniciais em tela  preta1 nos convida a um diálogo2 entre uma “profissional da área de saúde”, que aplica um 1

A ausência de imagem remete à impessoalidade do atendimento. O suposto diálogo poderia ser a representação de um atendimento de telemarketing, mas ao seu final o diretor mostra que é um atendimento face a face. Os longos 3 minutos iniciais do filme apresenta duas perspectivas opostas: a de Daniel Blake, impaciente com as questões metódicas que lhe são impostas, e a da “profissional da área da saúde” que desempenha uma ação técnica-racionalizada no recolhimento de informações que irão compor a solicitação de seguro desemprego. Ora, o questionário apresenta uma série de problemas de saúde hipotéticos que, de acordo com o enquadramento do sujeito, servem para a avaliação positiva ou negativa do direito social. 2

A noção de diálogo me parece imprópria mas mantive no texto para demarcar que, em geral, entendemos por diálogo uma interação ou discussão entre duas partes onde ambas possuem uma linguagem que não apenas pode ser  interpretada, assimilada e questionada, mas também pressupõe uma certa equiparação de poder ou paridade. No trecho em questão, dos 51 segundos aos 3 minutos de filme, o controle da conversa esteve em apenas uma das partes, nesta  parte as regras técnicas do trabalho (HABERMAS, 1980, 320-321) foram representadas pelo procedimento da atendente, esta que também não possui o controle deste diálogo. Blake sofre um ataque cardíaco e por isso fica impossibilitado de desempenhar funções de trabalho, com isso é impelido a buscar o auxílio de uma empresa privada nomeada pelo governo na mediação de recursos públicos. A atendente, a Amanda, é uma trabalhadora de tal empresa  privada e, como tal, se encontra sob certa vigilância no atendimento que a obriga a seguir o procedimento padronizado.

questionário à situação de Daniel Blake e este protagonista da história, que precisa operar diversos  procedimentos para receber o seguro social. A abordagem planificada no filme expõe algumas relações entre trabalho, desigualdade social e econômica, estrutura burocrática de acesso a amparo social e também sugere diferentes perspectivas e ações acerca das conflitos vividos pelas personagens. A percepção e ação destas personagens notadamente variam de acordo com as especificidades de posição social, sexo e geração. Daniel Blake, seu vizinho “China”, a imigrante Katie possuem algo em comum? O que difere Ann dos demais atendentes da terceirizada do governo? Possuem posições diferentes na cidade certamente e a análise de suas  situações varia dependendo das forma que articulamos sujeito e objeto, agência e estrutura, indivíduo e sociedade.  Na história da sociologia institucionalizada podemos destacar os trabalhos de Durkheim, que apresentou a dicotomia indivíduo e sociedade, sendo o social um todo externo e coercitivo, sob este aspecto podemos destacar que todos os indivíduos da cidade estão sujeitos às estruturas que  possuem a função de organizar recursos sociais e econômicos; e os trabalhos de Weber, que  procurou destacar as ações ideais, dotadas de  sentimento e contingência, na realidade complexa e infinita, sob tal aspecto podemos nos centrar nas ações racionalizadas da agência do governo e na ação social do banco de alimentos da igreja. Na ciência social de nossa formação histórica Habermas e Giddens são dois importantes teóricos que se dedicaram à tentativa de compor uma  síntese entre agência, que em geral destaca aspectos da ação de partes, e da estrutura, que privilegia aspectos de uma suposta totalidade. O filme “I, Daniel Blake” será analisado neste trabalho relacionando alguns conceitos trabalhados na turma de Sociologia IV de forma crítica. Na sociologia contemporânea 3, diversos pensadores consideram não adequada a classe social como categoria analítica e explicativa da sociedade de estruturação capitalista, a justificativa parece ser que nossa formação histórica, marcada pela articulação de “grupos minoritários”, oposição à racionalização burocrática, flexibilização do trabalho, inovações tecnológicas e ampliação da comunicação, é um quadro de constantes transformações e desencaixes no tempo e espaço que coloca o sujeito na dificuldade de se reconhecer ou se organizar em torno de sua classe social. Habermas e Giddens são exemplos destes pensadores contemporâneos, Habermas propõe compreender a modernidade capitalista através de uma racionalidade interna à práxis comunicativa no mundo da vida, dotada de argumentação normativa recíproca 4 e Giddens propõe que a modernidade seja analisada interpolando de forma complexa sua extensão globalizante e sua intencionalidade de disposições individuais 5 numa reflexividade institucional. Neste sentido, 3

A noção contemporânea possui internamente a pretensão de afirmar um constante tempo presente. Na análise partimos de que os objetos que encontramos na vida social já eram objetos considerados e analisados antes mesmo de nos tornarmos sujeitos, assim o passado influencia o presente; o sujeito pensa e age podendo interferir nestes objetos dependendo das suas práticas na vida cotidiana, ou seja algo do passado se reproduz e algo é criado; como há este elemento criativo não é tudo reprodução e desta forma, o futuro não pode ser determinado mas é passível de transformação dependo das formas que as práticas cotidianas se relacionam com o que foi encontrado do passado. Assim se faz fundamental a análise de como os sujeitos sociais interiorizam a realidade social encontrada e como expressam suas demandas nesta mesma realidade, no tempo presente. 4

 (HABERMAS, 2012, p. 35-36)  (GIDDENS, 2002, p. 9)

5

Habermas destaca a ação dos sujeitos, não individualizados, na construção e transformação da realidade social e Giddens trata da estruturação social mediante ação reflexiva que conflita o conteúdo das formas institucionais preestabelecidas renovando, por sua vez, a vida social cotidiana. Cenário de Giddens:

Giddens propõe abordagem sociológica numa teoria da estruturação, em sua análise assume a noção de totalidades abertas, o mundo da vida se relaciona com  sistemas abstratos que influenciam e condicionam nossa experiência. Tais sistemas abstratos incluem meios de troca com valor padrão e sistemas especializados que incluem relações sociais de sujeitos instrumentalizados técnica e cientificamente e a constituição do “eu” subjetivo inserido nestes sistemas.  No livro “Modernidade e Identidade”, Giddens propõe uma reflexão acerca do “eu” da modernidade tardia, permeado por inconstâncias do presente e pela necessidade de lidar com o quadro institucional e novos desafios que não precisaram ser enfrentados pelas gerações anteriores. A modernidade tardia possui internamente um descompasso que destaca o papel da agência que se relaciona reflexivamente com as instituições sociais.  Neste sentido, em “I, Daniel Blake”, no arranjo de Giddens, a forma burocrática e ineficiente com relação aos seus próprios fins seria um acidente em que uma geração tendo encontrado determinadas estruturas articulou técnicas e tecnologias transformando parcialmente tais estruturas sucessivamente no tempo. A questão geracional talvez fique mais evidente nesta

abordagem, podemos perceber a forma como Ann, funcionária de idade mais próxima de Blake, o atende com cuidado e compreensão 6, enquanto a funcionária mais próxima da idade de Katie, a atende assumindo as regras da instituição como se fosse as suas próprias 7. Na socialização de uma geração para outra há diferenças na experiência coletiva mediada e a própria linguagem assumida de forma imediata é um reflexo das diferentes relações sociais no tempo-espaço. É importante destacar que na sociologia considerada contemporânea, a linguagem ocupa posição relevante na compreensão dos fenômenos sociais, a partir disso, a objetividade na análise sociológica é defendida como forma de alcance do real. Giddens se afasta das perspectivas que tratam do sujeito como determinados pelo mundo objetivo sem qualquer elemento subjetivo na reflexividade da atividade social: mesmo que os agentes não possam justificar suas atitudes, no nível discursivo-argumentativo, sua racionalidade é inerente à sua prática cotidiana. A consciência  prática, em Giddens, difere da discursiva e inconsciente, o eu é um objeto de análise na modernidade que é também reforçado e transformado na vida cotidiana.  Neste sentido é se torna relevante um senso de confiança ou segurança ontológica para equilíbrio  psicológico deste “eu” moderno. O indivíduo moderno em seu mundo da vida possui duas historicidades, uma se refere a sua biografia individual outra ao processo de estruturação das instituições sociais. As instituições sociais são estruturas de tal forma que não dependem diretamente da ação individual, possui processo próprio que pode ser tratado em relação a outras estruturas sociais no tempo e espaço.

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 Exemplo aos 14 minutos e 16 segundos do filme “I, Daniel Blake”  Exemplo aos 15 minutos e 30 segundos do filme “I, Daniel Blake”

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 No filme “I, Daniel Blake” todas as vezes que tentou intervir num atendimento padronizado em repartição, com exceção do atendimento de Ann, não obteve resultados esperados. Da mesma forma que ações particulares não podem intervir, de forma mecânica, nas instituições e estruturas, o  próprio sentido resultante dos processos sociais não pode ser definido. A sociedade de risco de Giddens se trata justamente de uma noção derivada da fenomenologia de Husserl: como a sociedade moderna delegou a organização e análise dos processos sociais à ciência, e esta não consegue dar conta de todas as questões relevantes no mundo da vida, a ciência estaria irremediavelmente em descompasso com o cotidiano; o avanço técnico e científico toma uma dimensão de descontrole e ameaça com relação à natureza em geral e ao humano em particular, num futuro impreciso, não-coerente, indeterminado, assim como o próprio mundo da vida no presente. Cenário de Habermas:

 No livro “Teoria do Agir Comunicativo”, Habermas propõe uma discussão acerca das relações entre racionalidade da ação e racionalização social. Para Jürgen Habermas a comunicação possui certo caráter normativo e se baseia mais em associações discursivas que em fatos propriamente 8, e neste sentido é preciso separar analiticamente as ações prático-morais, que definem a interação no mundo da vida, das ações racionais com relação a fins, que correspondem ao agir comunicativo orientado  por normas válidas obrigatoriamente. A construção e emissão da opinião pública se daria mediante a comunicação, por onde sujeitos sociais demandariam seus interesses, e a concretização destes interesses possui implicações pragmáticas que orientam uma longa cadeia de pretensões de validade, que não necessariamente seguem em sua argumentação padrões lógicos e normativos 9. A cidade seria, em Habermas, um exemplo de espaço de sociabilidade burguesa, com fluxo de indivíduos e instituições privadas se relacionando com o espaço público. O mundo da vida se relaciona com o sistema de forma utilitária, grupos se apropriam de espaços estratégicos, constituindo uma esfera pública a partir de um processo de deliberação que relaciona poder de argumentação e poder de busca pelo consenso. Os indivíduos e instituições privadas 10 poderiam influenciar nesta esfera pública se beneficiando de certa autonomia na estrutura social, difundindo 8

 No filme “I, Daniel Blake” podemos perceber que a comunicação do Estado para acesso à informação pública e distribuição de bens sociais recorre ao meio de comunicação virtual. É emblemática a situação apresentada dos 27-30 minutos em que Blake tenta se cadastrar no seguro desemprego através do computador, ferramenta que não domina nem em sua engenharia nem em sua operação. A comunicação estatal no filme assume tal caráter normativo e expõe uma dificuldade geracional. É possível dizer que por mais que o argumento de substituição do atendimento pessoalizado por  máquinas agilize e amplie a comunicação, não é tão planificado quanto se espera a acessibilidade a tais máquinas. Ainda que de forma prescritiva se recomende a criação de cursos para instrumentalizar a população para lidar com este tipo de acesso caímos no paradigma que considera que o sistema, dotado de ações racionais com relação a fins, coloniza o mundo da vida mediante relação entre inovação tecnológica e argumento de “progresso” e “ampliação” no acesso a recursos públicos. No filme, ao identificarmos a dificuldade de Blake em conseguir os serviços que necessita, podemos  perceber que esta “ampliação de acesso” é mais uma associação discursiva que baseada na obtenção de resultados concretos. Aos 35 minutos e 56 segundos China diz: “Eles só ficam te enrolando. Estou te alertando, vão te marterizar o quanto podem. Não é por acaso. Faz parte do plano. Quantos não aguentam e desistem.” 9

Habermas faz uma crítica aos socialistas burocratas, que mesmo supostamente possuindo a intenção de constituir um novo quadro institucional, ao utilizarem o argumento técnico-científico, além de confundir práxis e técnica,  privilegiaram a manipulação técnica legitimando o próprio sistema de referência dominante. (HABERMAS, 1980, p. 339) 10

(HABERMAS, 1980, p. 336)

modos de socialização e estabelecendo suas formas de relação com a propriedade e o conhecimento. Ainda, as deliberações políticas não recorreriam a instâncias do poder estruturado e se realizaria o  princípio da soberania democrática, neste sentido o direito é o fio que liga sistema e mundo da vida. Habermas no ponto da pressuposição de análise da sociedade baseado em certa planificação de acesso e situação ideal de fala aproxima-se mais dos pontos do pensamento pragmático de Mead.  No pragmatismo, com relação à ação, a “determinação de um fim só pode ser o resultado de  ponderações sobre as resistências que uma conduta variamente orientada em diversas direções encontra”11. A escolha se encontraria reduzida ao impulso predominante frente à variedade de impulsos e determinações que o agente encontra e assim, a estrutura da ordem social estaria baseada nos princípios de autogoverno democrático e comunicação irrestrita dentro da comunidade científica.  Na filosofia política desta tradição teórica pragmática, a análise não pode partir do antagonismo entre indivíduo e Estado, mas sim das relações constituídas pela comunicação entre os membros afetados por estas discussões. Mead, na noção de sujeito constituído dialogicamente, propõe que cada indivíduo reage conforme recebe estímulos, e a partir destes, responde apropriadamente a eles.  Na política, como desdobramento destas influências teóricas, teríamos que cada problema coletivo obteria uma resposta coletiva conforme uma reação em cadeia fosse estabelecida. A ordem social teria como condição essencial a comunicação de seus membros, e o uso de sistemas simbólicos formaria uma totalidade que vincularia as singularidades de cada indivíduo. Habermas resgata esta noção de sistemas simbólicos, mas não como a noção de representação coletiva idealizada, como um quadro institucional baseado em normas que servem de suporte às interações verbalmente mediatizadas12. O filme “I, Daniel Blake” expõe a problemática do solapamento do Estado de bem-estar social e intensa burocratização de processos, além disso, podemos pensar que a própria indústria cultural e  publicidade possuem um caráter normativo que orienta a prática em esferas sociais específicas: não se pode dizer que às situações apresentadas no filme não influenciam a tomada de atitude dos sujeitos sociais que têm acesso à este recurso 13. O filme, ou qualquer outro campo argumentativo, não podem ser considerados, no pressuposto de Habermas, apenas uma dominação racional instrumental crescente como em Weber. A ação racional instrumental também pode ser identificada como uma estratégia de emancipação 14. É desta forma que o próprio filme “I, Daniel Blake” é um instrumento de debate pois apresenta um quadro onde podemos destacar pontos de nossa realidade específica. A atenção pode ser voltada ao  processo de privatização de serviços e precarização do trabalho acompanhada da racionalização de  processos que continua servindo de barreira ao acesso de grande parte da população aos recursos  públicos. Neste sentido é possível dizer, junto com Marcuse, que a técnica e a ciência são na raiz dominadoras em seu conteúdo político, pois não há no mundo da vida um contrato social que 11

(GIDDENS, 1999, p.132-142)

12

(HABERMAS, 1980, p. 321)

13

 É necessário refletir sobre os impactos das propagandas de consumo na sociabilidade moderna, pois se trata de determinada forma de se relacionar com objetos.  Agitprop e comunicação contra-hegemônica são colocadas em prática por diversos grupos que propõem uma alternativa à sociedade capitalista. 14

legitime as estruturas ocidentais, nem é possível identificar um consenso moral entre trabalhadores  precarizados, donos de meio de produção. Habermas propõe que se diferencie analiticamente ação prático-moral e ação comunicativa e interação e trabalho, a tarefa que seria da sociologia na abordagem mundializada seria reparar e reconstruir as condições para um entendimento mútuo universal, mas a legitimidade da ordem estatal, formal, depende das condições de expressão e reconhecimento por parte de grupos sociais nesta esfera pública. A comunicação, da forma que se apresenta na atualidade, entre novas tecnologias, técnicas e  práticas, têm um papel central na articulação e no reconhecimento de grupos sociais globais. Podemos perceber diversas análises que fazem críticas às formas de organização que em sua forma reproduziram o modelo burocrático hierarquizado, como sindicatos por exemplo, somado a isso diversos sujeitos sociais reivindicam internacionalmente suas demandas específicas, deslocando às formas de articulação para organizações supostamente mais horizontais, não-burocráticas, não-governamentais. Na reivindicação por melhores condições de vida e de trabalho que tipo de acordo prático-moral ou racional com relação a fins é possível para que haja uma ação coletiva suficientemente forte para reverter o quadro de retrocessos de direitos e ampliação de privatizações? O filme apresenta um quadro pessimista, quando Blake grita ou pixa a repartição, esta que representa um empecilho imediato, nada acontece. Os cidadãos que testemunham o idoso transgredir a ordem, aplaudem e tiram fotos com ele. Mas nada cai do céu em seu auxílio. Ele é levado pela polícia e isto serve quase como um aviso a qualquer um que queira, individualmente, transgredir a ordem social supostamente pactuada. Eu no cenário de “I, Daniel Blake”:

Daniel Blake sofreu um ataque cardíaco e ficou impossibilitado de conseguir através da sua força de trabalho seu sustento. No estado de bem estar social este é um caso totalmente plausível na obtenção de seguro social. Uma série de processos de avaliação negaram tal seguro ao Blake que, como alternativa, procurou o seguro desemprego. Apesar de não se encaixar no conjunto de pré-requisitos do seguro desemprego, não podia ficar sem renda. Foi num atendimento na terceirizada do governo que conheceu Katie e seus dois filhos. Ela vinha de Londres e não conhecia bem a cidade. Chegou atrasada e perdeu seu horário marcado, por isso não  pôde se cadastrar num benefício. O momento que Blake e Katie se conhecem é quando Blake faz uma fala, em voz alta na repartição, em sua defesa: “Quem é o próximo? Você se importa que ela seja atendida antes de você?” “Não” responde o próximo. Mas o gerente de atendimento diz “Isso não tem nada a ver com o senhor”. Eles são expulsos e não se ouve mais nenhuma voz solidária. O filme “I, Daniel Blake”, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, apresenta uma  problemática, a burocratização de processos, que é vivida por qualquer classe social. O roteirista e diretor do filme mostram o impacto na vida de algumas amostras da população a decadência do estado de bem-estar social e a precarização do trabalho. O audiovisual permite uma construção realista dotada de efeitos que podem capturar o espectador e colocá-lo numa posição específica de compreensão. “I, Daniel Blake” nos convida à identificação: durante o filme compartilhamos momentos longo de espera de atendimento, impaciências, frustração e desânimo quando vimos que Katie precisou recorrer à prostituição.

Será que o filme é capaz de despertar alguma ação além daquela que já estabelecemos como um hábito? A inconformação com a burocracia é evidente não apenas nas construções estéticas e também na realidade encontramos alguns outros elementos presentes no filme: Crianças ansiosas  por conta de constantes mudanças, trabalho não formalizado como alternativa às péssimas condições trabalhistas, mulheres que precisam recorrer à prostituição para se sustentar (conheço  pessoalmente uma delas), idosos se desgastando em busca de recursos para sobrevivência. Enfim, nada de novo foi apresentado pelo filme além do momento climax: quando Daniel pixa na parede externa da repartição: “Eu, Daniel Blake, exijo que remarque data do recurso. E mudem a música do telefone”. Tal atitude ganhou apoio da população em que passava pela cidade. Blake foi preso, depois solto, se deprime durante um tempo, consegue uma data para apresentação do recurso, mas morre pouco antes de consegui-lo. Nada muda. Quando entramos no curso de Ciências Sociais, nas aulas e corredores, brincar dizendo que “pensávamos que poderíamos mudar o mundo”. A Universidade então seria mais um espaço de adequação à ordem estabelecida? Nossa tarefa é nos adequarmos e nos formarmos? O tom destas  perguntas não pretende ser uma espécie de crise existencial proporcionada pela modernidade como colocado por Giddens no livro “Modernidade e Identidade”. O tom é de convite a quem lê o texto: qual o acordo possível para nos organizarmos com a finalidade de reverter o quadro de perda de direitos e encolhimento da esfera pública? Quando entrei na Universidade tinha curiosidade acerca do que levava “as pessoas a agir”, sair do curso habitual, não de forma aleatória ou em despropósito como na loucura, mas entorno de ação coletiva que reconhece sua posição ou  status na sociedade e consegue mover-se politicamente na tentativa de superação dos problemas e hierarquias sociais. O ponto de conflito parece ser entre as perspectivas que se encontram na tentativa de superar o dualismo cartesiano. Pragmatismo e utilitarismo. A racionalidade e o ideal normativo se encontram na ideia de ação autorregulada, pois não poderíamos partir da dúvida cartesiana. A dicotomia entre indivíduo e sociedade do pensamento durkheimiano e do funcionalismo foi atualizada pela noção de que o sujeito não é determinado pela estrutura social, mas sua ação se conflita, recria e constrói a todo momento uma nova estrutura. Historicamente, as filosofias e ciências sociais se manifestam politicamente como sujeitos que  possuem determinados argumentos de autoridade em favor de causas sociais. O apelo à verdade das relações sempre estimulou a reflexão sobre a vida cotidiana à população que possui acesso a tais discussões e as que são influenciadas de alguma forma no interior da estrutura social. A própria abordagem acadêmica pode despertar sentimentos que criem mal-estar, medo ou repulsa e sentimentos de conformidade e esperança ao tratar de um problema social. Não se pode definir as intenções de uma ação nem prever seus desdobramentos, como trata Giddens da sociedade de risco. É preciso compreender a complexidade de um contexto para relacionar as perspectivas e suas  propostas de ação e os resultados diretos ou ocasionais desta ação. Um sentido político pode ser  evidenciado considerando a complexidade de condições objetivas e subjetivas para não recair em uma interpretação histórica muito limitada. Mas também não podemos recair em um relativismo completo sobre significados da ação, porque o meio social é compartilhado de diversas maneiras. As discussões sobre a filosofia da ação ou argumentos contundentes na consideração de fenômenos sociais não farão com que os problemas sociais se resolvam. A superação dos problemas sociais aos

quais convivem na cidade não é resultado da discussão teórica ou no reconhecimento de grupos sociais marginalizados como sujeitos sociais no campo da teoria. Uma fagulha pode ser pensada se na consideração de uma realidade específica relacionada à ação coletiva organizada, construindo na vida cotidiana um debate ativo e ação conjunta. A negociação  possível nas relações desiguais na sociedade não pode servir para silenciar a opressão violenta e conduzir para a ideia de que individualmente se pode agir para superar sua própria situação, o advogado que pegou a causa de Blake não daria conta dos seus múltiplos em  situação  parecida. Podemos perceber que a  situação pode estar estruturada como um problema social . E a organização social vista como estabilidade regulatória muitas vezes marginaliza, criminaliza, nega e violenta o que provoca um conflito nos valores sociais hegemônicos, Blake foi preso e solto por não ter  antecedentes criminais e se fosse um negro ou prostituta? A experiência social de grupos marginalizados, oprimidos ou explorados em uma determinada organização social demonstra o quanto não se pode utilizar as táticas e estruturas permeadas irremediavelmente dos valores que mantém a ordem moral da desigualdade social, ou seja, tentar  superar um problema social legitimando a mesma estrutura que o define e a noção deontológica  prevalece sobre a crítica aos limites institucionais e à posição do pesquisador nesta realidade material. Grandes transformações não virão da Universidade, principalmente em se tratando de país  periférico... mas o que temos feito? BIBLIOGRAFIA: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: UNESP, 1999. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2002 HABERMAS, Jürgen. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980 HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: martinsfontes, 2012

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