O estatuto da ética em Deleuze

December 24, 2018 | Author: alextdsfoz | Category: Gilles Deleuze, Time, Sociology, Further Education, Ciência
Share Embed Donate


Short Description

Download O estatuto da ética em Deleuze...

Description

RESISTÊNCIA E REINVENÇÃO: O ESTATUTO DA ÉTICA EM DELEUZE  Jorge Luiz Viesenteiner 1

1.Considerações iniciais “Um dia o século será deleuzeano”: de modo bastante profético, assim Michel Foucault se refere a propósito da envergadura que a filosofia de Gilles Deleuze ainda receberia, na medida em que seu pensamento fosse gradativamente sendo maturado mundo afora, inclusive no Brasil. Professor na Université Sorbonne Paris VIII – VIII  – fundada no bairro Vincennes após o maio de 1968 –, o pensamento de Deleuze (1925-1995) passou a exercer  uma profunda influência nas últimas décadas não apenas no âmbito da filosofia, mas também na política, artes, cinema e psicanálise.   Numa entrevista publicada em setembro de 19882, Deleuze faz um auto-esboço cronológico de sua trajetória intelectual que consiste em três períodos. O primeiro, grosso modo, inscrito entre 1952-1970, inicia-se com livros de história da filosofia a partir de um comentário que Deleuze faz de filósofos como D. Hume, Nietzsche, Kant, H. Bergson e Espinosa. Embora comentários, os livros de história da filosofia não se limitam a ser apenas meio de reproduzir reproduzir o que pensou determinado determinado autor. autor.3 Antes disso, Deleuze direciona seus comentários de modo que eles se convertem num programa preparatório de sua própria filosofia.4 O segundo período é marcado decisivamente pelos dois volumes de “Capitalismo e Esquizofrenia”, vale dizer, O Anti-Édipo (1972) – escrito logo após o fervor político do maio de 68 – e Mil Platôs (1980) – uma continuação e finalização de algumas questões iniciadas n’O n’O Anti-Édipo –, ambos escritos em parceria com Félix Guattari. Ao longo dos anos 80 Deleuze esboça seu terceiro e último momento intelectual registrado, segundo o   próp própri rioo Deleuz Deleuze, e, sob sob a rubr rubric icaa das das refl reflex exões ões sobr sobree “pin “pintu tura ra e cinem cinema, a, de image imagens ns aparentes” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 11). As reflexões sobre o estatuto da ética

1

Professor do depto. de filosofia da PUCPR e pesquisador da Universidade de Greifswald/Alemanha. É autor  de A Grande Política em Nietzsche . (Annablume Editora). 2 Littéraire , a entrevista se chama “Signos e Acontecimentos”. In: ESCOBAR, Publicada na revista Magazine Littéraire Carlos H (org.).  Dossiê Deleuze . Rio de Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30. 3 Em O que é filosofia (1997, p. 74), Deleuze escreve: “A história da filosofia é comparável à arte do retrato.  Não se trata de ‘fazer parecido’, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou”. 4 Dois textos marcam o fim da primeira fase:  Diferença e Repetição (1968) e Lógica do sentido (1969).

se situam em torno dos textos do segundo período, com especial atenção ao texto de 1980: Mil Platôs. Platôs. Segundo Deleuze (1997, p. 10), “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”. O exercício filosófico precisa lançar luz sobre as estruturas da cultura, do mundo, o homem, a morte, etc., a fim de que se converta em práxis de resistência. Quando Deleuze (1988a, p. 225) pergunta: “Que é um pensamento que não faz mal a ning ninguém uém,, nem aquel aquelee que que pensa pensa nem nem aos aos out outro ros? s?”, ”, na reali realida dade de enfa enfati tiza za que que um  pensamento precisa violentar, precisa se dirigir ao encontro de algo que force a reflexão e, sobretudo, que se imponha como resistência. Pensar, inclusive, também significa ser violentado por forças externas; o exercício do pensamento não brota de um “Eu” metafísico e abstrato, mas do encontro com forças que rompam as nossas cercas, que esvaziem nossos punhados de convicções ilusórias que só têm valor na medida em que nos dão uma falsa sensação de segurança: “que violência se deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar, violência de um movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu?” (DELEUZE, 1997, p. 73). O pensamento, pois, ao ser exercício de fabricar conceitos, deve violentar e sacudir as teias de aranha da estabilidade e quietude e, neste aspecto, ele se configura também como capacidade capacidad e de resistir.5 O texto Mil Platôs expressa muito bem essa práxis filosófica inventora de conceitos.  Na verdade, podemos nos referir a ele como a operacionalização de um projeto de filosofia que consiste precisamente em criar novos conceitos, modos de vida e formas de resistência. Trata-se de um livro que experimenta ao fabricar conceitos, especialmente porque Deleuze o pensou, junto com F. Guattari, como livro que expressa resistência ou máquina de guerra contra os espaços pré-fabricados: “Estão nos fabricando um espaço literário, bem como um espaço espaço jud judici iciári ário, o, econômi econômico, co, pol políti ítico, co, complet completame amente nte reacion reacionári ários, os, pré-f pré-fabr abrica icados dos e massacrantes (...). A mídia desempenha nisso um papel essencial, mas não exclusivo. É muito interessante. Como resistir a esse espaço literário que está se constituindo? Qual seria o papel da filosofia nessa resistência a um terrível novo conformismo?” (DELEUZE, 1992,  p. 39).

5

Cf. Deleuze (In: ESCOBAR 1991, p. 10): “A filosofia não é comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva: ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária na medida em que não cessa de criar novos conceitos”.

Mil Platôs é uma cartografia, uma geografia do pensamento, do desejo, da política, da ética e da linguagem, que pretende desvendar quais são esses espaços pré-fabricad pré-fabricados, os, a fim de resistir a eles. 6 Cada um dos títulos do livro compõe platôs, um experimento ou resistência que podem “ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão, que só deveria ser lida no final”. Um platô não é uma metáfora, mas sim “zonas de variação contínua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma região, e se fazem sinais uns aos outros” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 16). Cada título ou platô significa o traçado de um mapa de circunstâncias que possuem datas fictícias e ilustrações. Como fala Deleuze (1992, p. 38), trata-se de “um livro ilustrado” que se interessa pelos “modos de individuação”, ou seja, os processos de codificação do homem bem como as  produções de signos que vão compor os espaços pré-fabricados da cultura contemporânea, que nos seqüestra e controla a todo instante. É possível entrar por qualquer lugar do livro, como um rizoma, sem uma entrada ou saída específica, mas que todo lugar se soma para decodificar as estruturas fixas e rígidas do homem e da cultura contemporânea.   Não Não por por acas acasoo os plat platôs ôs (tít (títul ulos os)) do livr livroo são são aleat aleatór ório ioss e pode podem m ser ser lido lidoss independenteme independentemente nte uns dos outros. Trata-se Trata-se de um livro nômade sem lugar fixo e estável, estável, sem momento histórico definido e, por isso, não capturável. É comum seqüestrar o que é estável, mas o aleatório e nômade escapa a todo instante dos aparelhos codificadores da sociedade. Assim é Mil Platôs: Platôs: não é constante, nem capturável, nem estável e, sobretudo, sobretudo, não é um livro que não oferece riscos; ao contrário, ele violenta, rompe as cercas da falsa segurança, força-nos a pensar e, sobretudo, a resistir para inventar novas possibilidades de vida. Em Mil Platôs, Platôs, Deleuze faz da própria escrita um processo de resistência e liberação, o que ele chamou de traçar uma linha de fuga: “Escreve-se sempre para dar a vida, para libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso que que a ling linguag uagem em não não seja seja um sist sistem emaa homo homogên gêneo, eo, mas mas um desequ desequil ilíb íbri rio, o, semp sempre re heterogêneo” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 14s.). Para Deleuze, escrever é criar, e criar é resistir para que se inventem novas formas de vida que escapam às codificações e seqüestros. 6

Para Deleuze (1992, p. 47), na medida em que Mil Platôs é um livro que leva a termo um projeto filosófico que fabrica conceitos, é preciso compreendê-lo também como um livro que não mais pretende dizer a essência ou fundamento das coisas, como o foi a tradição filosófica. Deleuze supera esse modelo, uma vez que o conceito está relacionado à circunstâncias e, portanto, tem interesse em construir uma geografia, um mapa ou cartografia das mais variadas linhas, fluxos, signos e códigos que atuam ao mesmo tempo sobre o homem e a cultura.

Investigar o estatuto da ética em Deleuze significa compreendê-la tal como essas características do livro Mil Platôs, Platôs, mas que nos interessam apenas duas questões principais que, em resumo, podem ser apresentadas nos seguintes termos: a) ética é a decodificação das linhas que nos atravessam e nos codificam a fim de sermos capazes de resistir a elas; e  b) na medida em que se resiste resiste aos mais variados variados modos de produção produção de subjetividad subjetividade, e, de tipos codificados, essa resistência já é uma criação e, neste caso, a ética é também resistência que reinventa novos modos de existência e novas formas de vida. Em suma, a ética em Deleuze pode ser compreendida através de dois movimentos que implica em resistência e reinvenção.

2. Ética e Rostidade: resistir ao Rosto para reinventar a vida Tomemos o sétimo platô de Deleuze intitulado “Ano zero – rostidade”. Quando Deleuze fabrica o conceito de Rosto quer se referir também ao que ele denomina de  processo de subjetivação. Trata-se de um gigantesco projeto que constrói signos, códigos, territórios e que depois se encarrega de transferi-los e gravá-los nos homens, de modo que aos poucos cada homem vai ganhando um Rosto. Rosto. Logo de início, é importante importante dizer que a  produção social do Rosto não significa individualizar cada rosto concreto em particular, ou seja, produzir o Rosto concreto de João, Maria, José, etc. Ao contrário, segundo Deleuze os rostos concretos individuados se produzem e se transformam numa grande unidade comum, construído através das codificações que a cultura produz, até desembocar no grande Rosto. Assim, ao invés de construirmos um rosto próprio somos metidos e gravados em um Rosto  produzido culturalmente: “Introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um” (DELEUZE, 1996, p. 44). Em outras palavras, isso significa que se não formos capazes de construirmos um projeto ou modo de existência próprio, a cultura sempre se encarregará de nos vender uma forma pronta e, ao comprarmos, pagamos caro por isso. Mas o que é um Rosto, afinal? Deleuze nos diz que é um “sistema muro-branco –  buraco negro”, negro”, um modelo que conjuga dois eixos: um de significância (o muro branco) “sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias”, e outro de subjetivação (o buraco negro) “onde aloja sua consciência, sua paixão, suas redundâncias” (DELEUZE, 1996, p. 31). 31). Todo siste sistema ma muro muro brancobranco-bura buraco co negro negro é produzi produzido do por “máqui “máquinas nas abstra abstratas tas”” responsáveis pela construção do Rosto:

Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade , que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens. Não esperemos que a máquina abstrata se pareça com o que ela produziu, com o que irá produzir (DELEUZE, (DELEUZE, 1996, p. 33).

A máquina abstrata não tem forma, embora seja ela que crie os mais variados códi código goss e sign signos os cult cultur urai ais, s, um umaa máqu máquin inaa de bina binari riza zaçã çãoo soci social al:: bran branco co/n /neg egro ro,, homem/ homem/mul mulher her,, adulto/ adulto/cri crianç ança, a, rico/p rico/pobre obre,, europe europeu/l u/lati atino no americ americano, ano, homemhomem-úti útillconsumidor/homem-desempregado. O engraçado é que a máquina abstrata mesma não tem um rosto, e por isso Deleuze fala que a máquina de rostidade nunca vai se parecer com o que ela produz. Ela está em toda parte ao mesmo tempo em que não podemos capturá-la. É como se disséssemos que, atualmente, o inimigo não possui mais fisionomia. Se no século XVIII quiséssemos fazer uma revolução, atacaríamos diretamente o inimigo, por exemplo, o Rei. A cultura contemporânea possui máquinas produtoras de códigos mas que oculta o nome dessa máquina produtora de normas, regras, signos, códigos, etc. Não por acaso temos dificuldades em lutar contra algo, pois sequer conseguimos identificar quem é o inimigo. O sistema não tem rosto, embora produza o Rosto.7 O mecanismo oculto que a máquina abstrata emprega para produzir Rosto (o sistema muro branco-buraco negro) é um grande agenciamento de poder que opera mais ou menos assim: ao mesmo tempo em que a cultura contemporânea necessita convencer que se vive um momento de extrema liberalização, paradoxalmente, sentimo-nos reprimidos como nunca antes. É como se disséssemos que para controlar e dominar melhor uma pessoa  precisamos antes falar que ela é livre. É uma máquina abstrata que opera sem ser vista e,  por isso, extremamente perigosa. Podemos nos referir ao Capital contemporâneo, por  exem exempl plo, o, como como um umaa gran grande de máqu máquin inaa abst abstra rata ta que que está está alia aliada da às suas suas prin princi cipa pais is engrenagens: as Corporações, com seu regime de signos, códigos, condutas, regras, enfim, com a produção de seus lugares comuns ou territorializações, como fala Deleuze. A máquina abstrata de rostidade é fabricante dos códigos (os significantes), e das subjetivações (a formatação da consciência): “essa máquina é denominada máquina de rostidade porque é produção social do rosto, porque opera uma rostificação de todo corpo, de suas imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os mundos e meios”. 7

Impossível deixar de mencionar dois textos de Deleuze em que ele abre ab re melhor esse diálogo, através de uma lúcida lúcida interp interpret retaçã açãoo das socied sociedade adess de contro controle le atuais atuais:: “Contr “Controle ole e Devir Devir”” e “ Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, ambos publicados no Brasil no livro Conversações (1992).

(DELEUZE, 1996, p. 49). Segundo Deleuze, a subjetividade do homem é alfinetada e introduzida no muro branco. Na medida em que a máquina abstrata produz os territórios – o lugar lug ar comum comum dos signos signos,, das codificaçõ codificações, es, das morali moralizaç zações ões,, etc. etc. – ela também também vai alfinetando cada homem nesse grande regime de signos, dando a eles um grande Rosto unitário. Podemos perceber, portanto, que a máquina abstrata (o capital e suas corporações) opera por “identificação” do diferente, quer dizer, um processo que torna igual o diferente ou fabrica a cópia ao invés do original, num imenso projeto de “mesmificação” que consiste em nascer original para morrer cópia. Temos nossa subjetividade subjetividade produzida produzida e compramos compramos bem caras as codificações codificações que nos vendem. Mas qual é esse grande Rosto? Qual é esse grande muro branco de códigos que a máquina abstrata produz para depois imprimir nossa subjetividade nele? Segundo Deleuze (1996, p. 43) “é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. O rosto é o europeu típico”.8 Trata-se do típico homem   branco branco,, europe europeu, u, cumpri cumpridor dor de suas suas funçõe funçõess sociai sociaiss e deveres deveres,, além além de produt produtivo ivo e consumidor consumidor.. Essa máquina de rostificaçã rostificaçãoo vai julgar e escolher escolher quais os Rostos que serão ou não adequados, para depois se encarregar de rostificá-los: Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os  primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser  cristiani cristianizados, zados, isto é, rostific rostificados. ados. (...) O racismo racismo procede procede por determinação determinação das variaçõe variaçõess de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (DELEUZE, 1996, p. 45)

  Na Na noss nossaa cult cultur uraa cont contem empo porâ râne nea, a, como como já diss dissem emos os antes antes,, o Capi Capita tall e seus seus tentáculos, as Corporações, podem ser analisados como a grande máquina abstrata de rostidade, capaz de transformar em culpados aqueles que na verdade são suas vítimas. Ele é resp respon onsá sável vel por por levar levar a cabo cabo o proce process ssoo de homo homogen genei eiza zaçã çãoo de todo todoss os home homens ns,, imprimindo seus buracos negros no grande muro branco de significantes, com todo cortejo de codificações e signos, confiscando cada pessoa para enfiá-la no grande Rosto. Virtual e 8

Não por acaso o título do texto é “Ano zero – rostidade”. Segundo Deleuze, a grande máquina de rostidade começa no ano zero, com Cristo, através do imenso projeto civilizatório de cristianização do mundo que construiu e penetrou em todas as estruturas culturais. Neste caso, podemos falar que o cristianismo rostifica quando imprime a subjetividade dos diferentes no mesmo muro branco de seus códigos e signos. Em todo caso, essa mesma máquina de rostidade opera também em várias estruturas sociais. Tome-se, Tome-se, p.ex., o caso do racismo ou mesmo da produção social do “louco”.

invisível, o capital opera produzindo as territorializações necessárias para que todos sejam comportadamente rostificados. O mais interessante é que essa máquina produtora de códigos se encarrega de sobrecodificar todo aquele que pretenda “fugir” do código ou do Rosto. Deleuze se refere a esse processo como um mecanismo empregado pelos agenciamentos de poder despóticos que re-territorializa tudo que pretende se desterritorializar, quer dizer, todos os desvios  padrões  padrões são imediatamen imediatamente te re-discipl re-disciplinari inarizados: zados: “Ora, são esses agenciamentos agenciamentos de poder, poder, essas formações despóticas ou autoritárias, que dão à nova semiótica os mesmo de seu imperialismo, isto é, ao mesmo tempo os meios de esmagar os outros e de se proteger de

qualquer ameaça vinda de fora” (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo é nosso). Vejamos um exemplo para entendermos como o capital sobrecodifica os desvios do Rosto. Originalmente, quando a cultura hip-hop é importada para o Brasil, ela se pretendia um mo movi vime ment ntoo alte altern rnat ativ ivoo e desv desvia iant ntee em rel relação ação aos aos agen agenci ciam amen ento toss de pode poder  r  estabelecidos. Para o capital, uma ameaça externa. Cria seus próprios códigos e signos, linguagem e estilo de vida no interior dos guetos do país. Surge como suposta resistência montada contra a máquina de produção do Rosto. Imediatamente, porém, o capital se encarregou de sobrecodificar essa desviança que a cultura havia criado. É como se o capital dissesse: “Isso mesmo! Eu não valho nada! Critiquem-me pois eu sou um monstro”. O que ocorre depois é que essa máquina abstrata confisca a cultura hip-hop e a vende sob a forma de um novo modo de vida. Cria uma grife, um modismo, recodifica a linguagem alternativa em mais um objeto vendável, mais uma engrenagem da grande máquina. O inconformismo e a indignação desviantes do jovem do gueto, p.ex., são comprados e sobrecodificados na medida em que o capital vende a ele um estilo de vida, ou seja, dá a ele um Rosto. De alguém desviante ou desterritorializado, o capital o converteu em alguém recodificado e novamente territorializado, pois teve sua indignação seqüestrada depois de ser metido num Rosto: a máquina abstrata do capital acabou de homogeneizar e sobrecodificar a ameaça vinda vinda de fora fora.. Em suma suma:: o capi capita tall prod produz uz capi capita tall mesm mesmoo daqui daquilo lo que que o pret preten endi diaa inicialmente destruí-lo; ele rostifica novamente o desviado. E o que é pior: por ser uma máquina abstrata, tudo ocorre como se nada estivesse acontecendo. Como foi dito antes, nunca nunca fomos fomos tão seqües seqüestr trados ados,, contro controlad lados os e rostif rostifica icados dos,, ao mesmo mesmo tempo tempo em que, que,   par parad adox oxal alme ment nte, e, tamb também ém fala falamo moss mu muit itoo de libe libera rali liza zaçã ção: o: “O désp déspot otaa ou seus seus

representant representantes es estão por toda parte. É o rosto rosto visto visto de frente, visto por um sujeito sujeito que, ele mesmo, não vê propriamente, mas, antes, é tragado pelos buracos negros” (DELEUZE, 1996, p. 51s.). Essa máquina abstrata não atua mais sobre o corpo diretamente, mas sobre desejo. Ela produz desejo desejo e o vende sob a forma de modo de vida. Assim, Assim, se o preço do silêncio silêncio e da adaptação custa preço baixo, comodidade ou um estilo de vida, a máquina abstrata se encarrega de produzir um Rosto para fazer falar precisamente o silêncio. Pensemos na clássica imagem de Che Guevara estampada nas camisetas: o símbolo por excelência do capital transformado em código vendável, em signo do capital. Isso é paradoxal!!! E é assim que a máquina abstrata do capital sobrecodifica as ameaças externas, imprimindo-as novamente no grande Rosto. Deleuze fez esse prognóstico em Mil Platôs: Platôs: Os corpos corpos serão serão discip disciplin linados ados,, a corpor corporeid eidade ade será será desfei desfeita ta (...). (...). Produzir Produzir-se-se-áá uma única substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslancharse-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro. (...) A desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto; a descodificação do corpo implica uma sobrecodificação pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo é nosso).

A frustração, os medos e o convencimento de que a vida é dura são alguns dos operadores gerenciados pelo capital. A máquina de rostidade antes de suprir desejos, precisa  produzir um exército de homens cansados do mundo e da vida, a fim de que ela possa   produzir mais desejo sobre essa matéria-prima frustrada e esgotada. Daí o porquê da atuação dessa máquina abstrata sobre o desejo humano. Em  Diálogos – publicado com Claire Parnet em 1977 e, portanto, três anos antes de Mil Platôs – Deleuze escreve: Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o  padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os  poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. (DELEUZE, (DELEUZE, 1998, p. 75)

É como se a matéria-prima sobre a qual atua a máquina de rostidade fossem  precisamente as frustrações e impotências. Deleuze volta a reafirmar essa hipótese em Mil   Platôs,  Platôs, dizendo que a defesa do capital e a administração de toda segurança “tem por  correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular    permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma

macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança” (DELEUZE, 1996, p. 94). A produção do Rosto, portanto, está relacionada com a máquina abstrata que, por  sua vez, relaciona-se com os agenciamentos de poder para produzirem socialmente esse Rosto: “É por isso que não cessamos de considerar dois problemas exclusivamente: a relação do rosto com a máquina abstrata que o produz; a relação do rosto com os agenciamentos de poder que necessitam dessa produção social” (idem, p. 50). Diante do imperialismo da máquina abstrata produtora do rosto, uma pergunta se impõe: “Como sair do buraco negro? Como atravessar o muro? Como desfazer o rosto?” (idem, p. 56). A questão é complexa e abre espaço para outra longa reflexão. Em todo caso, o primeiro passo é compreender que não há possibilidades para conservadorismos: “Não   podemos voltar atrás”, diz Deleuze, visto que somente do interior do próprio Rosto  poderemos nos desrostificar: “É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro branco que os traços de rostidade poderão ser liberados” (idem, p. 59). Da mesma forma que Deleuze compreende Mil Platôs – um livro nômade, não capturável e que põe em curso uma práxis que resiste e escapa às codificações –, assim também também Deleuze reconhece reconhece a tarefa do homem contemporâneo e, de modo geral, da ética: ética: resistir às codificações, ao Rosto. Segundo Deleuze, o próprio homem precisa se converter  em algo clandestino e nômade, pois resistir é precisamente se tornar imperceptível.9 Ao invés de se render aos gozos da submissão irrestrita, das territorializações e rostidades, Deleuze insiste em perder o Rosto e escapar às codificações, ou melhor, desterritorializar-se desterritorializar-se ou traçar uma linha de fuga. Mais ou menos como se disséssemos que traçar uma linha de fuga fuga ou se torn tornar ar imper imperce cept ptív ível el sign signif ific icaa um cert certoo ocul oculta tame ment ntoo aos aos disp dispos osit itiv ivos os rostificadores e codificantes. Fugir não é se acovardar e nem transportar um eu: Deleuze pensa numa “viagem imóvel” própria dos nômades que são capazes de renunciar a todo lugar fixo, a qualquer  território ou porto seguro. Tornar-se imperceptível é renunciar a ser metido no muro dos significantes e das codificações, no Rosto. Aliás, significa ser capaz de se desprender de si 9

É possível falar também em impessoalidade, ou ainda, “uma vida”. O número especial da Revista  Philosophie, publicada em 1995, traz o artigo de Deleuze intitulado  A imanência: uma vida... , em que se fala em substituir a “vida do indivíduo”, marcada pelas subjetivações e rostidades, por uma “vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior ou exterior (...): vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal”. (DELEUZE, 1997, p. 17s.).

mesmo, ou seja, aprender a trair 10: traidor de seu próprio reino, de si mesmo, das próprias convicções, das verdades absolutas, dos desejos mesquinhos, pois quem possui é possuído. O traidor é capaz de criar e, portanto, de resistir: “É que trair é difícil, é criar. É preciso   perd perder er sua sua ident identid idade ade,, seu seu rost rosto. o. É prec precis isoo desap desapar arece ecerr, torn tornar ar-s -see desc descon onhe heci cido” do”11 (DELEUZE, 1998, p. 58). Trair as rostidades, as codificações que nos rotulam, a subjetividade que nos  produzem. Trair a si próprio e ao território, pois quem permanece preso a um único e fixo território não é o nômade e clandestino, mas o covarde, o reprodutor do Rosto e das codificações. Por isso trair é resistir. Cada vez que traímos, escapamos de permanecer fixo e idêntico; e cada vez que resistimos, tornamo-nos imperceptíveis e nômades. Um dos estatutos da ética, pois, é precisamente resistir ao Rosto, ou escapar dos processos de rostificação empenhados pela máquina abstrata. Em outros termos, para além de todos os mecanismos que a máquina abstrata do capital emprega para nos rostificar, através dos seus tentáculos e engrenagens que penetram em toda estrutura social codificando-a, isso não deve ser um argumento contra nossa principal possibilidade: a resistência.12 Resistir ao Rosto não é uma fórmula que se esgota em si mesma, pois ela precisar  dar um passo e mais e caminhar para a reinvenção ou criação e novas formas de vida. A resistência é o mecanismo para a reinvenção dos espaços pré-fabricados pelo Rosto, para a criação de novas possibilidades de vida, para a reinvenção de novos modos de existência, e nisso nisso consiste consiste o segundo estatuto estatuto da ética. ética. Neste ponto Deleuze considera considera o homem como obra de arte: a vida mesma é obra de arte que precisa ser reinventada a cada instante: “tratase de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo temp tempoo étic éticas as e estét estétic icas as que que cons consti titu tuem em mo modo doss de exist existên ênci ciaa ou esti estilo loss de vida” vida” (DELEUZE, 1992, p. 123). Deleuze vê na resistência e na criação de novos modos de existência, mais do que uma simples reinvenção ética: ele também vê uma estética: “mas se

10

Segundo Deleuze (1998, p. 58), trair é traçar a linha de fuga, ou seja, tornar-se imperceptível e nômade para  perder o Rosto: “Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, limá-lo pacientemente (...): a linha de fuga, não a viagem nos mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (...). Ser, enfim, desconhecido, como  poucas pessoas são, é isso trair”. 11 Cf. entrevista já citada In: ESCOBAR (1991, p. 17): “Criar não é comunicar mas resistir”. 12 No comentário que Deleuze faz a Michel Foucault, ele se refere ao homem como “foco de resistência” (DELEUZE, (DELEUZE, 1988b, p. 113), desde que esse homem compreenda a si mesmo como alguém sempre em vias de se fazer, in-acabado e, portanto, nômade.

há nisso toda uma ética, há também uma estética (...), a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência” (DELEUZE, 1992, p. 126). O estatuto da ética em Deleuze resume duas esferas: por um lado, resistir aos espa espaço çoss prépré-fa fabr bric icad ados os,, ao mu muro ro branc brancoo das codi codifi fica caçõe çõess e ao bura buraco co negro negro das das subjetividades: resistir ao Rosto; e, por outro lado, a resistência implica a criação de novas formas de vida: a reinvenção da própria vida. Resistência e reinvenção, portanto, são as linhas gerais com as quais podemos pensar o estatuto da ética em Deleuze. De leuze.

Questões para debate 1. O que significa Rostidade? 2. Faça uma análise relacionando ética, máquinas abstratas e Rosto. 3. O que significa pensar a ética como resistência e reinvenção?

Filmografia The Corporation. Corporation. Dir.: Mark Achbar e Jennifer Abbott. EUA, 2003. Surplus. Surplus. Dir.: Erik Gandini. 2003.  El taxista ful . Dir.: Jordi Rediu e Norbert Llaràs. Barcelona, 2005.

Textos para pa ra discussão Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, rostidade, que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens. Não esperemos que a máquina abstrata se pareça com o que ela produziu, com o que irá produzir. (DELEUZE, 1996, p. 33). Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo   bbur urac aco. o. Deve Devem m ser ser cris cristi tiani anizad zados os,, isto isto é, rost rostif ific icad ados os.. (... (...)) O raci racism smoo proce procede de por  determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora  para apagá-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser  como nós, e cujo crime é não o serem (DELEUZE, 1996, p. 45).

Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita (...). Produzir-se-á uma única substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco, crav cravad ados os no bura buraco co negr negro. o. (... (...)) A dest dester errritor itoriiali alizaçã zaçãoo do cor corpo im impl plic icaa um umaa reterritor reterritorializ ialização ação no rosto; rosto; a descodificaç descodificação ão do corpo implica uma sobrecodifi sobrecodificação cação pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49). Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e  pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. (DELEUZE, 1998, p. 75). É que trair é difícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se tornar-se desconhecido (DELEUZE, 1998, p. 58).

Sugestões de leitura DELEUZE, G. Diferença G. Diferença e Repetição. Repetição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988a.  _______. Foucault   _______. Foucault . São Paulo: Brasiliense, 1988b.   _______. (c/ F. GUATTARI). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.  ______. O que é a filosofia?. filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. C. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.  ______. Conversações. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.  ___  _____ ___. _. “ Post-scriptum sobre sobre as socied sociedades ades de contro controle”. le”. In: Conversações. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.  ______. Signos e Acontecimentos. Acontecimentos. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossiê (org.).  Dossiê Deleuze. Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30.  ______. “A imanência: uma vida...”. In: VASCONCELLOS, J. Deleuze: imagens de um filósofo da imanência. Londrina: EDUEL, 1997.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF