O Ensino Da Gramática - John de Salisbury (Tradução de Rafael Falcón)
March 19, 2017 | Author: Everson Veras | Category: N/A
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gramatica...
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O ensino da gramática, John de Salisbury POR RAFAEL FALCÓN /FILOSOFIA, REVISTA / MAR 2014 Tradução
dos
capítulos
23
e
24
do
Tomo I do “Metalogicon” (1159) Capítulo 23. Quais os principais meios para o exercício da filosofia e da virtude; e como a gramática é seu fundamento. São principais, para o exercício de toda filosofia e virtude, a leitura, o ensinamento, a meditação e o trabalho constante. Ora, a leitura
possui
como
sua
matéria-prima
os
textos
escritos.
O
ensinamento, por sua vez, também diz respeito, a princípio, aos escritos; não obstante, avança ainda rumo a coisas que não foram escritas, mas que se refugiaram nos arcanos da memória, ou que se notam pelo entendimento do objeto por si mesmo 1. Já a meditação se estende até ao que é desconhecido, e frequentemente se eleva a coisas incompreensíveis, desvelando tanto os aspectos manifestos do assunto, quanto os secretos.2 O quarto item, isto é, o trabalho constante, embora seja limitado pela compreensão pré-existente, e ainda que necessite de conhecimento, pavimenta o caminho para o entendimento, de vez que há “bom entendimento para todos que o põem em prática” 3. Os arautos da verdade, está escrito, “proclamaram as obras de Deus, e compreenderam seus feitos”4. De resto, o conhecimento precede, pela própria natureza, a prática e o cultivo da virtude: pois ela não “corre sem saber aonde vai”, tampouco “golpeia o ar” 5 na guerra que faz aos vícios. Ao contrário, “ela enxerga aonde vai e para onde distende o arco”6. Não segue corvos ao acaso com lama e um tijolo.
A
leitura,
o
ensinamento
e
a
meditação
dão
à
luz
o
conhecimento. Daí resulta que a gramática, que é fundamento e raiz do conhecimento, lança, por assim dizer, uma semente como que no sulco da natureza, mas apenas depois que a Graça preparou o terreno. Essa semente – desde que acorra a Graça cooperante – transforma-se num tronco de sólida virtude e cresce de muitas formas, até que frutifique em boas obras; e daí os homens bons “recebem esse nome, e realmente o são” 7. Contudo, somente a Graça, que opera o querer e o realizar do bem 8, faz um homem bom; e é ela, mais do que qualquer outro fator, que comunica aos seus escolhidos a capacidade de escrever e falar corretamente, e lhes administra diferentes artes. Não se deve desprezá-la quando ela se oferece benignamente a nós, que dela necessitamos; pois se for desprezada, com justiça ela se retira, e não resta, a quem a desprezou, motivo algum de queixa.
Capítulo 24. Sobre a prática da leitura e da preleção, com uma explicação do método de Bernardo de Chartres e de seus seguidores Quem aspira, pois, a tornar-se um filósofo, aplique-se à leitura, ao ensinamento e à meditação, bem como à realização de boas obras, para que o Senhor não se enfureça e lhe tome o que parecia possuir9. Ora, a palavra “leitura” é equívoca. Ela pode referir-se tanto à atividade do professor e do aluno quanto à ocupação de investigar algum escrito por conta própria. A uma, isto é, ao que se comunica entre professor e aluno, chamemos (para usar o termo de Quintiliano) de “preleção”; à outra, à que diz respeito ao escrutínio meditativo, chamemos diretamente de “leitura”. Segundo a autoridade do mesmo Quintiliano, durante a preleção o professor de gramática deverá chamar atenção
até aos
menores
detalhes: requeira
que
se
discriminem as partes do discurso, depois de desmontar o verso, e as
características dos pés, que devem ser observadas nos poemas 10. Destaque as expressões bárbaras, as impróprias e outras que tenham sido compostas contra a lei do discurso. Mas não o faça como se reprovasse os poetas, aos quais muito se deve perdoar pela obrigação do metro – de modo que os defeitos, num poema, devem ser estimados com o nome de virtudes. De fato, a mesquinhez das obrigações muitas vezes rouba o louvor da virtude, pois não se lhes pode negar o assentimento sem alguma perda11. Que
mostre
os
metaplasmos,
esquematismos
e
tropos
oratórios12, a multiplicidade de dicções – quando houver – e tais e tais diferentes
técnicas
discursivas,
e
por
meio
de
frequentes
admoestações mande tudo isso à memória dos alunos. Examine os clássicos e (sem despertar o riso dos alunos) arranque-lhes suas plumas; as quais, para obter cores mais belas, eles tomaram (como o gralho da fábula13) de várias disciplinas, e com elas cobriram suas obras. Quanto mais e com mais abundância alguém se tiver imbuído de
muitos
conhecimentos,
tanto
mais
plenamente
conseguirá
perceber a elegância dos clássicos, e com tanto mais clareza conseguirá ensinar. Eles, de fato, pordiácrisis14 – que nós podemos chamar “ilustração” ou “picturação” – uma vez que tivessem tomado a matéria-bruta dos fatos históricos, dos argumentos, das ficções poéticas ou outra qualquer, com tal riqueza de conhecimentos e tal graça de composição e de tempero15 a trabalhavam, que o produto final parecia uma imagem, por assim dizer, de todas as artes. Pois que a gramática e a poética espalham-se inteiras e ocupam a superfície inteira daquilo que é exposto. A este campo, como se costuma dizer, a lógica, trazendo as cores da demonstração, acrescenta seus métodos em ouro fulgurante; a retórica, nos argumentos persuasivos e no brilho do discurso, emula o candor da prata. A matemática é trazida pelas rodas de seu quadrívio 16 e, pisando nos passos das outras, teceu ela as suas cores e galhardias com rica variedade. A física, tendo explorado os desígnios da natureza, tira de seu estoque uma variada galhardia de cores. Porém, a mais proeminente de todas as partes restantes da filosofia, digo, a
ética, sem a qual nem o nome de filósofo subsiste, antecede todas as outras pela graça do decoro que confecciona. Examina Virgílio ou Lucano e, não importa que filosofia professes, ali encontrarás um condimento dela17. Assim, segundo a capacidade do aluno ou a diligência e engenho do professor, permanece firme o fruto da preleção dos clássicos. Quem seguia esse costume era Bernardo de Chartres, este que, em nossos tempos, é uma fonte transbordante das letras na França. Ao ler os clássicos, mostrava o que fosse simples e ajustado à forma da regra: as figuras da gramática, cores retóricas, advertências a sofismas; e se alguma parte do excerto proposto à leitura remetia a outras disciplinas, ele interrompia a exposição para explicá-las; mas o fazia não para ensinar tudo de uma vez, e sim de modo a dispensarlhes no tempo apropriado, de acordo com a capacidade dos ouvintes, a medida necessária de conhecimento. E que o brilho da oração ou vem da propriedade 18 – isto é, quando se ajunta elegantemente o adjetivo ou verbo ao substantivo – ou da transferência, quer dizer, quando a fala (com uma justificativa plausível) é conduzida a significados alheios; tais conceitos ele inculcava, se a ocasião se apresentasse, nas mentes dos ouvintes. E já que a memória se firma e o engenho se apura pelo exercício, exortava-os, uns por conselhos, outros por golpes e castigos, a imitar o que ouviam. Além disso, cada um era obrigado a explicar, no dia seguinte, algo que houvesse escutado no anterior, e uns diziam mais, outros menos; pois para eles “o dia seguinte é um discípulo do anterior”. O exercício vespertino, que se chamava declinação, era repleto de tão grande riqueza gramatical que, se alguém o frequentasse por um ano inteiro, contanto que não fosse um retardado mental, teria às mãos o método de falar e escrever, e não teria mais como desconhecer o significado das palavras de uso comum. Mas uma vez que nem escola, nem dia algum deve ser desprovido de religião, sempre se dispunha uma matéria que
edificasse a fé e os costumes, e por onde os presentes, reunidos como que numa leitura conventual (collatio), fossem animados para o bem.
O
último
elemento
desta
declinação,
quer
dizer,
da collatiofilosófica, era uma conferência sobre os caminhos da piedade religiosa; depois, recomendavam-se as almas dos falecidos ao seu Redentor, pelo oferecimento devoto do salmo, o sexto dos penitenciais, e na oração do Senhor19. Para aqueles a quem se indicavam os exercícios primários (praeexercitamina)20, na imitação de prosa ou de poesia, ele escolhia poetas ou oradores como modelos e ordenava que se imitassem os passos deles; mostrava tanto as conexões entre as coisas ditas quanto as conclusões elegantes de períodos. Contudo, se alguém remendasse o brilho de seu próprio trabalho com um tecido alheio 21, após pegá-lo no furto, Bernardo ralhava com ele; mas quase nunca lhe infligia algum castigo. Ele ralhava nessas circunstâncias, contudo, apenas se a inepta adaptação o merecia; então ordenava e fazia embarcar – com moderada indulgência – rumo à expressão da imagem dos autores imitados22. De fato, dizia ele, quem imita os mais velhos torna-se digno da imitação dos pósteros. Também ensinava e imprimia nos corações, entre os primeiros rudimentos, que virtude havia na economia 23; qual havia na dispensa apropriada das matérias que se usam para compor elogios; qual era a diferença entre a simplicidade e, por assim dizer, a anemia da linguagem, onde é que se encontrava a abundância louvável, onde o excessivo, onde a medida de tudo. Aconselhava que percorressem as obras historiográficas e os poemas com grande diligência, aqueles que não fossem impelidos por alguma espora a fugir24; e exigia de cada um, com diligente insistência, como uma dívida diária, algo que tivesse guardado na memória25. Porém, costumava dizer: “deve-se fugir do conhecimento supérfluo; é suficiente ler o que escreveram os autores ilustres; pois que correr atrás do que foi dito por algum homem desprezível provém, ou duma inquietude excessiva, ou de gabolice vazia 26. Isso retarda e destrói a inteligência, que com mais proveito permaneceria desocupada para outros estudos; ora, aquilo que nos retira o que
temos de melhor, por isso mesmo não nos é útil, e não a chamemos pelo nome de ‘bem’”. De fato, sacudir todos os papiros e revirar todos os escritos, mesmo os indignos de leitura, é tão pertinente quanto dar atenção às estórias das velhas. Como disse Agostinho, no De Ordine, “quem pode suportar que um homem seja visto como ignorante por nunca ter ouvido sobre o voo de Dédalo, quando aquele que o disse não é considerado mentiroso, o que lhe deu crédito não é tolo, e o que perguntou não é desavergonhado? Ou quanto àquilo que costumo lamentar muito em nossos amigos, que se não responderem como era chamada a mãe de Euríalo, são acusados de insciência; aos outros, porém, que lhes fazem essas perguntas, eles não ousam chamar de tolos, inúteis e curiosos”. Isto dizia ele com elegância e verdade. E por isso é com razão que os antigos contavam, entre as virtudes do gramático, ignorar algumas coisas27. E porque na exercitação primária dos alunos nada é mais útil do que habituar-se ao que se faz com técnica, escreviam muita prosa e poesia todos os dias, e se exercitavam comparando seus trabalhos uns com os outros; nada é mais útil à eloquência do que esse exercício, nem mais proveitoso ao conhecimento, além de trazer muito benefício à vida, se a dedicação a ele for regida pela caridade, se o avanço literário for serviçal da humildade. De fato, “não pode um mesmo homem servir às letras e aos vícios carnais”28. Segundo a forma de seu mestre é que os meus preceptores na gramática, Guilherme de Conches e Ricardo, conhecido como o Bispo (atualmente arquidiácono de Coutances), um homem nobre na vida e na conversação29, por algum tempo formaram seus discípulos. Mas um pouco depois, devido ao fato de que as opiniões criaram preconceitos contra a verdade, e os homens preferiram parecer, em lugar de ser filósofos, e os professores das artes prometiam transfundir aos ouvintes a filosofia inteira 30 em menos de três ou dois anos, vencidos pela força da multidão ignorante, cederam 31. Desde então, o estudo da gramática tem recebido cada vez menos tempo e diligência. Donde resulta que aqueles que lucram com todas as artes, tanto as liberais como as mecânicas, já não conhecem a primeira; e
sem ela, em vão se avança às outras. É claro que outras disciplinas ajudam a educar-se nas letras, mas a gramática tem o privilégio singular de conferir o nome de letrado. Por isso Rômulo a chama de literatura, Varrão por sua vez deliteração, e aquele que a professa, digo eu, é chamado letrado. Na Antiguidade era chamado de mestre32, como em Catulo: “Um presente, Sylla, te dá o mestre”33. Por isso é razoável dizer que aquele que despreza a gramática não apenas não é um mestre, como não tem o direito de chamar-se nem de letrado. NOTAS DE RODAPÉ
1.
Há, portanto, uma continuidade: a leitura é o início, o ensinamento a complementa por meios não-escritos. Esses meios dizem respeito, primeiro, ao ensino oral, que é mais completo e detalhado que o escrito; segundo, à percepção do objeto de discurso (res), que contém muitas informações ausentes do texto. Nenhum manual de micro-ondas explicará, por exemplo, o que é uma tomada ou como se encaixa o plugue nela. A primeira informação normalmente advém pela audição de outros seres humanos, e a segunda é evidente pela própria visão do objeto. 2. Supõe-se sempre, entre os autores antigos e medievais, que não se pode compreender um texto sem meditá-lo. A ideia de que se possa simplesmente ler algo e obter uma compreensão automática, instantânea, concomitante com o ato de leitura, parecer-lhes-ia absurda e até ridícula. Para cada frase, há um espaço necessário de meditação, que permite a passagem da superfície verbal (signum) para o conteúdo completo (res).
3.
“O temor do Senhor é o começo da sabedoria; é bom entendimento para todos que o põem em prática” (Salmos, 110, 10). 4.
5.
6.
“Todo homem teve medo; e proclamaram as obras de Deus, e compreenderam seus feitos” (Salmos, 63, 10). “Eu, porém, não corro como quem não sabe aonde vai, nem luto como quem golpeia o ar” (Coríntios, 1, 9, 26).
“Há, por acaso, um alvo rumo ao qual contrais e distendes teu arco? Ou segues corvos ao acaso, com tijolo e lama, seguro de que acertarás seus pés, e vives de improviso?” (Pérsio, III, 60-2). A sátira de Pérsio bem se aplicaria a um sem-número de santarrões, desde a Idade Média até o século XXI, que gritam aos quatro ventos que é mais importante a moral que o
saber. Esses fazem confusão entre os pedantismos acadêmicos – que de fato pouco interessam à virtude – e o conhecimento contemplativo, que é premissa de qualquer ação moral. Por isso nunca faltarão retratos satíricos da piedade artificial de alguns energúmenos, que parecem ansiosos por pôr em prática um conhecimento que não chegaram a adquirir. De fato, consideram a moral uma ciência tão simples que são incapazes de aceitar que ela tenha tais requisitos intelectuais como os que John de Salisbury lhe atribui. 7.
“Vede que amor nos dedicou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus, e que realmente o sejamos” (João 1, 3, 1). 8. “Deus opera em nós o querer e o realizar segundo o seu prazer”(Filipenses, 2, 13). Contra os santarrões ignorantes, que poderiam negar ao conhecimento seu primado sobre a virtude, remetendo-a à Graça, John lembra que não apenas a virtude, mas o próprio conhecimento e até o desejo de conhecer são intimamente dependentes do Espírito Santo. Em seguida, porém, ele nos lembrará que os dons do Espírito não podem ser desprezados; e esta é precisamente a omissão dos néscios que, sob pretexto de moralizar suas ações, recusam-se a aplicar-lhes a inteligência – dom do Espírito.
9.
“Àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado” (Mateus, 25, 29). Agora John não fala mais ao moralista ignorante, mas ao intelectual especulativo; suas descobertas devem resultar em boas ações. Lembre-se ele de que sua inteligência lhe foi dada pela Graça, e pode ser-lhe tirada; não abandone as boas obras, substituindo-as pelos estudos teóricos, porque ambos os pesos devem estar em equilíbrio para agradar a Deus. 10. Partes do discurso (partes orationis) são as classes das palavras, como substantivo, adjetivo, etc. Antes de apontá-las, o aluno deve “soltar o verso” (versum solvere), isto é, reordená-lo como se prosa fosse. Também deve observar os pés, isto é, as unidades métricas do poema, que em latim eram constituídas da alternância entre sílabas breves e sílabas longas. 11.
Nossos críticos literários fariam bem em aprender, com John de Salisbury, a não condenar tão prontamente a gramática dos poetas.
12.
Nomes diversos para o que chamamos figuras de linguagem. 13. Numa fábula famosa de Fedro, Graculus Superbus et Pavo, o gralho (ave esquisita e feia) veste-se com penas de pavão e, invadindo um grupo deles, tenta passar-se por igual. É imediatamente percebido na farsa, e leva uma terrível surra. A moral diz respeito a não se comportar como alguém que não se é, mas não parece que John queira insinuar que os poetas são
falsos ou pedantes por ornar-se com as artes. Ele recorda a imagem do gralho sem associá-la ao componente moral. 14.
O termo grego não tem nada que ver com a tradução latina. John não sabia grego, e está citando erroneamente algum termo de manual retórico. 15.
Compositio e condimentum são termos da culinária, aplicados metaforicamente às artes literárias. 16. O quadrivium era o curso superior de estudos, composto de aritmética, geometria, música e astronomia. Todas essas disciplinas podem ser entendidas em subordinação à matemática, pois eram abordadas do ponto de vista abstrato – por exemplo, em “música” não se aprendia a tocar flauta, mas a lidar com as proporções matemáticas envolvidas. A metáfora da matemática sendo levada pelas disciplinas é uma brincadeira com a quadriga, uma carruagem suntuosa conduzida por quatro cavalos. 17.
Os conflitos das escolas filosóficas geralmente não são contradições completas, mas exposições distintas de percepções reais, que embora se contradigam na superfície verbal, como o grave contradiz o agudo, encontram sua unidade de fundo na harmonia última da realidade. É essa harmonia que as intuições dos poetas comunicam, tornando possível que elas tragam em si “condimentos” de todas as filosofias possíveis. John recorda-nos que a gramática parece abranger, de certo modo, todas as artes, até mesmo a ética.
18.
No sentido de “atribuir uma propriedade a algo”, como fica claro a seguir. 19.
20.
Isto é, o Pai-Nosso.
Os προγυμνάσματα, exercícios preparatórios, visavam a desenvolver diversas capacidades discursivas que seriam aproveitadas na fase dos discursos retóricos completos. Praticava-se a narração, vários tipos de argumentação, louvores e vitupérios.
21. “Os inícios solenes, e que prometem grandes coisas, muitas vezes, para que mais brilhem, são remendados com pano púrpura” (Horácio, Ars Poetica, 14-16). Refere-se Horácio a poemas que começam com trechos grandiloquentes, que porém foram enxertados, isto é, inseridos de modo artificial, sem combinar com o conjunto. John de Salisbury trabalha sobre a imagem, sugerindo que os alunos plagiavam autores clássicos (“pano alheio”), e que o plágio era mais visível por causa da inadequação com o restante do texto. Considerando o restante do parágrafo, provavelmente está implícito, aqui, que um plágio bem inserido no novo contexto não era
considerado furto. Certamente essa era prática comum na Antiguidade, como se vê pelo dito atribuído a Virgílio, de que era mais fácil roubar a clava de Hércules que um verso de Homero. Virgílio, de fato, “emprestou” muitos versos homéricos, mudando-os de contexto e modificando-os. A técnica do empréstimo foi praticada pela maioria dos poetas até o século XIX e, depois, retomada por modernistas de pendor clássico como T. S. Eliot. 22. A metáfora da escrita como “embarcar para a guerra” era muito utilizada para referir-se à poesia épica, que se destacava tanto pelo tema bélico (“as armas e os varões assinalados”) quanto pela dificuldade intrínseca da escrita. Como o poeta épico, escrevendo em tal gênero, se submetia a grandes riscos, sua “jornada” se comparava à dos heróis que eram objeto de seu próprio poema. Aqui, John retoma a imagem, aplicandoa à imitação dos clássicos em geral (e não só dos épicos), para ressaltar que imitar um clássico, tentando superá-lo com seus próprios versos, é uma empreitada perigosa. O prêmio, porém, é grande – como ressaltava Bernardo de Chartres. Cf. a fala de Dante a Virgílio: “tu se’ solo colui da cu’ io tolsi/ lo bello stilo che m’ha fatto onore” (Comm., I, 86-87). Que admirador de Dante não se sentiria ofendido, se um professor lhe dissesse que seu estilo era todo imitado de Virgílio? Porém não é um professor, e sim o próprio Dante quem o declara. 23. Provavelmente no sentido de “organização do discurso”, dizendo respeito a algo como a dispositio retórica, mas talvez com um sentido um mais amplo: a relação entre as partes, a adequação de cada parte ao todo, etc. 24. O sentido parece ser que as obras não devem ser percorridas com pressa, como um cavalo que corre desesperadamente, movido por golpes de espora. Ao contrário, devem ser estudadas com vagar e atenção. 25.
Mais uma vez, John ressalta a atenção que tinha Bernardo de Chartres para com a memória, exigindo que todos os dias os alunos lhe mostrassem algo que haviam memorizado. É bom lembrar que não se tratava da memorização de informações abstratas, mas depassagens literárias, de poesia ou prosa.
26. Isto é, desejo de gabar-se por conhecer muitas coisas (mesmo que insignificantes). Alguns de nós diriam “pedantismo”. Quanto à inquietude, ela é bem conhecida de certos estudantes tão bem-intencionados quanto desorientados que, para não se sentirem estúpidos, perseguem conhecimentos fáceis e inúteis. 27.
A frase é de Quintiliano (Inst. I, 8, 18): “mihi inter virtutes grammatici habebitur aliqua nescire”. John visivelmente a citou de cabeça, pois trocou algumas palavras (e.g.nescire por ignorare). Isso mostra com que força se imprimiu na sua mente o texto de Quintiliano.
28. “Não pode um mesmo homem gostar de ouro e das Escrituras, apreciar vinho e entender os Profetas e Apóstolos” (S. Jerônimo, Epistulae, III, 61, 3). 29. Uma alusão ao vir bonus dicendi peritus, definição do orador, originalmente enunciada por Catão: “um homem nobre e habilidoso no discurso”. A frase ficou famosa por meio de Quintiliano, que se valeu dela para condensar sua filosofia pedagógica – segundo a qual só poderia ser considerado um homem educado aquele que fosse, ao mesmo tempo, formado no discurso e na moralidade (dicere et agere). Esse componente duplo da pedagogia de Quintiliano é adaptado por John de Salisbury com a expressão vita et conversatio. Se e como é possível unir, no mesmo processo pedagógico, o domínio técnico da arte retórica ao desenvolvimento da moralidade, é uma questão que vem sendo discutida há algum tempo, e que exigiria um artigo à parte. 30. Trata-se de uma metáfora: prometem transfundir a filosofia como se faz uma transfusão de sangue. A ideia é absurda porque a filosofia não pode ser “transfundida” de uma pessoa para a outra: tem de ser mediada pela linguagem. Ora, se o discípulo não é devidamente treinado nas artes do trivium, ele não tem o nível de consciência e de domínio técnico da linguagem necessário para proceder à alta filosofia. 31. Não fica claro se Guilherme e Ricardo desistiram de ensinar, pela falta de alunos, ou se cederam ao mesmo método degenerado, e passaram a ensinar as doutrinas filosóficas sem passar pelas artes preparatórias do trivium. 32. litterator, “Aquele que faz ser letrado”, o “letrador”. 33. Catulo, Liber, 14, 9.
Texto publicado e disponível em: http://revistaterminal.com.br/a-pratica-daleitura-no-metalogicon-de-john-de-salisbury/
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