O Efeito Borbolete - Euclides

January 28, 2019 | Author: Euclides | Category: Nature, Ciência, Science (General)
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O Bofe de Lobisomem e o Efeito Borboleta

Euclides 2009/2010

Se o doutor Francelino Souza Pinto não fosse um pneumologista teria, como todo mundo, pensado que aquilo era um pulmão. Tinha de fato quase o tamanho e a forma de um pulmão de adulto, o aspecto externo seroso, o tecido esponjoso. Como já ia em parcial decomposição exalava putrecina cujo odor se mesclava ao ar frio e ainda enevoado da manhã que se ia estabelecendo. Cinco pessoas contraídas, embrulhadas em casacos e cachecóis, gorros de lã ou chapéus, conforme o caso. As duas mulheres usando gorros e os homens de chapéus enterrados até onde as orelhas permitiam. - é pequeno prá ser de boi. Filinto era açougueiro de profissão. - grande prá ser de porco... - seria de gente? Especulavam em voz baixa e quase gutural de gargantas afetadas pelo frio. Ainda não era cinco e meia e o céu estava limpo de uma noite de geada fraca que tirou os cafeicultores da cama mais cedo que de costume. A palidez do levante refletida na atmosfera era uma luz esmaecida, mas que se firmava decidida nos últimos minutos. Os dois lampiões quase não eram mais necessários e só eram mantidos acesos agora pelo calor que emanavam. - tropecei nele quando ia buscar o burro no pasto... fez um buf! na ponta da bota e quase caio. O cheiro já estava no ar um pouco antes de topar com ele. - tá apodrecendo de pouco ainda. Disse a voz de dona Ludmila, abaf abafad adaa na conc concha ha da palm palmaa da mão mão cujo cujo pole polega garr e indi indica cado dorr apertavam as narinas. - é de gente com toda certeza! Era o Fragoso, que usava um bigodão basto e amarelado que lhe destacava o nariz redondo e vermelho. Bochechas gordas, suíças fartas e cabelo ralo. - o que pensam que seja? Desta vez foi o doutor, que estava calado fazia uns minutos. - teve uma vez, lá no Vau Velho, prosseguiu o Fragoso ignorando o doutor, faz uns quinze ou vinte anos acho, que apareceu “umas coisa” assim no pasto da fazenda do finado Lutércio...

- tô lembrada... era menina inda, mas lembro do falatório. Meu pai não deixou ir ver. O povo dizia que era tudo de gente... - Tudo? Tinha mais de um? - Tinha, diz que tinha. Só entranhas, nada de pedaço de corpo. - e como acabou tudo? O que se descobriu? O doutor interessou-se. - nada! Acabou que foi tudo juntado e enterrado e só. Teve que ninguém mais viu o Manelão depois disso. Uns diziam que era o Manelão o autor daquilo, outros que aquilo era o próprio Manelão espalhado. - Credo em cruz... O frio arrefeceu um pouco que a hora mais fria da madrugada já ia passando. Na ausência total de nuvens a luz não refletia difusa como de costume, mas vinha do nascente esticando as primeiras sombras de comprido pelo chão. Fragoso apagou o lampião de um sopro. O outro já havia sido apagado, apesar do frio. O Filinto era cioso do querosene. Dona Ludmila persignou-se mais uma vez e pegou o braço da nora: - vamos minha filha, que a cabra já está reclamando das tetas cheias. A várzea larga de capim baixo servia para a cria dos bichos, uns soltos, outros guardados em cercadinhos, conforme o dono ou tipo de bicho bicho.. Ca Casa sa ali, ali, ning ningué uém m fazi fazia. a. O ribe ribeir irão ão cost costum umav avaa ench encher er na estação das águas e a várzea ficava encharcada. Na maior parte do ano era seca e ali se tinha a criação de sustento ou de serviço. Os meninos brincavam de pega-pega e nos dias quentes nadavam no rio. - e isso? Fez o Filinto esticando o queixo na direção do achado. - urubu logo dá conta... - e se for de gente? Sabe como é.... um crime. - Não sei o que é, mas não se trata de um pulmão humano. O pulmão direito tem três lóbulos e o esquerdo dois. Como é fácil de ver isso é uma peça só, sem lóbulos. Falou devagar, quase descrendo de si, o doutor.

O achado do “bofe de lobisomem”, como acabaram sendo conhecidas as estranhas vísceras coincidiu com o sumiço do Abud. Quando a vida de caixeiro-viajante começou a minguar os trocados por culpa do cres cresci cime ment nto o dos dos muni municí cípi pios os e da aber abertu tura ra de estr estrad adas as que que as  jardineiras cumpriam semanalmente, leva-e-traz de gentes e coisas, o Abud desistiu, por fim, de viajar. As mercadorias vinham de trem, da capital e, das estações mais importantes nas cidades que faziam o pólo ólo de uma viz vizinha inhan nça, ça, seg seguia uiam, agora gora pela pelass jard jardin inei eira ras, s, encomendadas por comerciantes locais que se iam estabelecendo. Era o fim do nomadismo mercantil. Contava então uns trinta e cinco anos de idade, dezoito dos quais na estrada desde que começou a viajar com o pai, o velho Abud. Filho mais novo de irmandade grande, cada um foi para um lado, casando ou buscando o ganho da vida. Depois da morte da mãe passou a acompanhar o pai, até que também o velho se foi e ficou só na estrada com as malas velhas, uns panos de algodão e alguma seda, uns perfumes, que sempre vendiam bem, correntes e medalhinhas de ouro e coisas que em geral as senhoras apreciavam. Pois sumiu o Abud... já cinquentão, solteiro, só e sumido. O armarinho, que funcionava num anexo da casa perto da praça, não abriu. Da casa ninguém respondeu aos chamados. Quan Quando do ve veio io a tard tardee vizi vizinh nhos os preo preocu cupa pado doss fora foram m à dele delega gaci ciaa de polícia. No começo o delegado, cioso da vida íntima do turco, como era chamado o filho de libaneses, conjeturou que o homem podia ter viajado ou, sei lá, estava em algum lugar e podia não querer ser incomodado. - mas e se estiver muito doente? - ou mesmo morto! - se estiver muito mal e precisando de ajuda? Os argumentos eram fortes. O homem vivia só. Tanto podia ter ido à cidade vizinha atrás de uma mulher da vida, afinal todos têm as suas necessidades e era isso que pensava no íntimo o delegado, porém podia ser uma situação de emergência. Resolveu que podia bater à porta, ao menos. - seu Abud! Ó de casa, seu Abud!

De dentro o cachorrinho arranhou a porta e choramingou com aquele quase silvo fino que fazem os cães tristes. Isso foi decisivo. Porta arrombada entraram todos. Havia lá umas seis ou sete pessoas. Fora um certo desalinho, uma panela e um prato sujos na pia, a cama desfeita, tudo estava no lugar. Roupas nos armários, comida na despensa, tudo com aparência comum de normalidade. O Abud não estava. A mala em cima do guarda-roupa sugeria que nada tinha levado consigo. O cãozinho foi levado pelo Josias para ser alimentado. A porta que fora arrombada foi consertada a expensas do delegado. - Vamos esperar. Mais cedo ou mais tarde ele volta e explica tudo. Não voltou.

- ora! Aquilo não era o pulmão do turco... - vai saber como? - não tem nada a ver com o caso do Manelão. - que Manelão? - foi muito antes de você vir para cá: um mistério. Nova Novame ment ntee foi foi rele relemb mbra rada da a hist histór ória ia do sumi sumiço ço do Ma Mane nelã lão o no mesmo dia em que se encontraram as tais vísceras. -Teoria do caos. Era no bar do outro lado da praça. Está claro que o lado que não tinh tinhaa refe referê rênc ncia ia era era o lado lado da Ma Matr triz iz.. Nã Não o tinh tinhaa porq porque ue era era a referência. O lado oposto era o outro lado. - como assim? - nunca ouviu falar do “efeito borboleta”? - isso é feito borboleta? O que tem borboleta a ver com o caso? Não bebeu demais? A opinião geral, expressa apenas nos semblantes, era praticamente a mesma. O Tadeu era meio cheio de empáfia, ledor de muita coisa, gostava de impressionar. Já não estava a falar coisa com c om coisa... - a maioria de vocês sabe jogar damas, não é?

- Ó Camilo! Um café forte, rápido! Riso geral, menos o Tadeu, é claro, c laro, que amarrou a cara, contrariado. - tá bom, tá bom. O que tem a ver borboleta e jogo de damas com o sumiço do turco? - pode ter tudo... - vai falando. Vamos ver até onde a gente agüenta. Mais risos. O Tadeu empertigou-se na cadeira, entre ofendido e agarrando a oportunidade de resgatar os brios. - pois é a Teoria do Caos. Um pequenino e corriqueiro evento pode desencadear mudanças drásticas no destino das coisas no Universo. Perguntei das damas porque é um exemplo fácil de ver. Logo no começo do jogo você tem muitas escolhas que pode fazer. Cada uma delas levará a um jogo e resultado diferente, não é? Até aí não havia porque discordar. Um ou dois fizeram um gesto de confirmação com a cabeça. Ponto para o Tadeu que prosseguiu em voz mais alta: - o ponto central é que dependendo das circunstâncias, cada evento, um acontecimento qualquer, desencadeia outro e assim por diante. Um acon aconte tecim cimen ento to qual qualqu quer er,, mesmo mesmo que que seja seja corr corriq ique ueir iro, o, pode pode acabar desencadeando uma série de eventos cujo resultado deixe de ser desprezível desprezível e nunca se saberá encontrar toda a série de eventos. eventos. O fato inicial nunca será ligado com o resultado final. Agora as expressões à volta da mesa já mostravam curiosidade. - É uma teoria muito moderna que explica certos fatos que em principio nos parecem estranhos. - sei, sei.... - Vou Vou dar dar um ex exem empl plo. o. Prime rimeir iro: o: você vocêss se lemb lembrram daqu aquele ele aviãozinho que andou por aqui prá fazer chuva? Todo Todo mun mundo lemb lembrrav avaa. Na Naqu quel elee ano a seca seca foi foi muit muito o for forte e prolongada e as lavouras dessa parte do estado ficaram seriamente comprometidas. O governo então contratou um semeador de nuvens na esperança de remediar a situação e dar satisfação aos eleitores da região.

- Então, o pó que o aviãozinho jogava nas nuvens era o iodeto de potássio, um produto químico que junta às gotinhas de água que estão nelas, as nuvens, e elas vão crescendo e ficando mais pesadas até caírem como chuva. - Caramba! Foi mesmo. Me lembro agora que o nome era esse: “seilá-o-quê” de potássio. A sacaria que chegou ficou lá no galpão do Menotti. - Foi. Uma chuvinha de merda... perdi o milho quase todo. - foi muito pouca mesmo. - mas ninguém pode negar que chover, choveu, né? O Tadeu retomou as rédeas da conversa: - Prá chover tem de ter vapor de água na atmosfera. Quanto mais vapor, mais chuva. Mas vamos à teoria do caos... Lá do balcão o Camilo perguntou: - caos é bagunça, né seu Tadeu? - Isso. Falta de ordem. Então, imaginem uma menininha brincando com com uma bola ola na calç calçad adaa. Enq Enquan uanto isso isso,, desc descee pela pela rua um caminh caminhão ão carrega carregado do de iodeto iodeto de potássio potássio.. Nesse Nesse momento momento uma borboleta passa voando bem junto do nariz da menina, que surpresa, deixa cair a bola que rola para a rua. A menina faz menção de correr atrás da bola, o que assusta o motorista do caminhão c aminhão e o faz dar uma guinada brusca. O caminhão derrapa e perde a direção chocando-se contra a bomba de um posto de gasolina e tombando. - desgraceira, meu Deus! - A gasolina derramada incendeia e começa a queimar o iodeto de potássio que vaporiza e sobe para atmosfera. Lá no alto, um vento forte de sudoeste leva os vapores vinte quilômetros adiante onde encontra nuvens grandes. O que acontece? - uma baita aguaceiro! - Isso Isso mesm mesmo.U o.Uma ma chuv chuvaa muit muito o fort fortee e ines inespe pera rada da que que faz faz rios rios transbordar e tudo o mais. Entenderam? - Foi a borboleta né seu Tadeu? Parece que o Camilo pensava que era um jogo de adivinhação.

- A borboleta foi o pivô de uma série de circunstâncias encadeadas que resultaram no aguaceiro numa cidade vinte quilômetros longe. Ningué Ninguém m poderi poderiaa explic explicar ar aquela aquela chuva, chuva, meteor meteorolo ologist gistaa nenhum nenhum poderia. Para todos seria um mistério, um fenômeno. - Então... cada vez que um “bofe de lobisomem” aparece, alguém desaparece? A conclusão do Fragoso foi acompanhada pelas caras de espanto geral. Lá da porta, uma voz com um sotaque conhecido exclamou: - Bucha bida!! Heim? Era o Abud que acabava de voltar.

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