O desconcerto do mundo na poesia de Camões

April 12, 2024 | Author: Anonymous | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Download O desconcerto do mundo na poesia de Camões...

Description

O TEMA DO DESCONCERTO DO MUNDO Marcia Arruda Franco (USP) O tema consiste na matéria do discurso a ser competentemente reelaborada, conduzida e disposta, pelo orador, a partir do estado da questão, com o firme propósito de criar credibilidade, de instruir, deleitar e mover o seu público. O conhecimento aprofundado da matéria é fundamental para a bene virtus do discurso. Estudar a matéria do discurso poético faz com que o poeta seja além de um filólogo atento à construção verbal, um conhecedor, espécie de filósofo, capaz de conduzir o seu tema nos diversos registros, de acordo com a intenção discursiva. No código poético, a matéria ou tema se conduz por determinados tropos, figuras e metaplasmos. O assunto tratado deve espelhar-se no esforço de alteração fonética do corpo de palavras e expressões, a fim de ser criada a melodia ou melopeia dos versos. Impossíveis, adynaton, antítese, oximoro, paradoxo, contradição, repetição são figuras paradigmáticas do tema em questão. A relevância da musicalidade e da plasticidade no código poético provoca um estranhamento para a descodificação dos significados lexicais da poesia, confundidos pelos tropi, pela homofonia, pela exigência das rimas, etc. O emprego de figuras de linguagem e de pensamento, que,

como um grão mais vivo, rompem a linearidade discursiva, pretende, na pena camoniana, dizer de forma concertada o desconcerto. O canto poético

permitiria ao

poeta

“gritando

desvarios

em

versos

concertados” influir no peito que não sente, fazendo com que o sentimento amoroso em todos os leitores e ouvintes se torne evidente ou se avivente: “Eu cantarei de amor tão docemente / por uns termos em si tão concertados / que dous mil acidentes namorados / faça sentir ao peito que não sente”. Trata-se de uma composição declamada ou cantada, ao sabor das modulações e nuances das vozes que a recitavam, numa performance, para um publico em presença, em circunstâncias do cotidiano cortês, nas praças públicas, em estalagens, em datas comemorativas, em variadas cerimônias do Estado monárquico, etc., como meio de comunicação eficaz. No plano da história da literatura, o código temático desempenha um papel esclarecedor na definição dos períodos literários e dos estilos de época, uma vez que o tema, historicamente determinado, como um lugarcomum, recebe um novo significado, por assim dizer, privativo de seu próprio tempo. No período literário conceituado como Maneirismo português, entre os poetas contemporâneos de Camões, o tema do desconcerto do mundo, no registro satírico, é tratado junto a temas clássicos e

medievais, como, por exemplo, o Florebat olim e o mundo às avessas, entre a nostalgia pelo passado e o lamento do presente, e também é desenvolvido como exercício da sátira aos tempos — sátira política e religiosa ao império lusíada e ao século XVI. O modo satírico permite ao poeta argüir o mundo frente ao ideal ético e cristão lusitano. Na sociedade de corte quinhentista, o discurso satírico, por ser uma crítica severa da realidade, ao reprovar acontecimentos ou um estado de coisas, desfruta de uma legitimidade oscilante, e há limites legais e religiosos para o maldizer em trovas de figuras públicas, isto é, para a prática da sátira política, sendo o infrator punido com a prisão. Certo, o fim último da sátira é ser morigerante, promover o retorno ao concerto do mundo cristão; todavia o ideal cristão havia de contrariar interesses mercantilistas no Oriente, naqueles tempos de cismas e perseguições religiosas, quando se forjou não apenas a categoria de cristão-novo, em que árabes e judeus viravam católicos, mas também a de novos cristãos protestantes. Na sátira portuguesa quinhentista, cujo referente está nas viagens marítimas, na revolução que provocaram na ordem do mundo,

relativamente

a

práticas

mercantilistas,

a

costumes

alimentares e comportamentais, a valores religiosos e sociais da Europa, ou Cristandade, aparecem conjugados

os temas do

desconcerto, da tempestade, do labirinto, da mudança, entre outros.

No celebre soneto Verdade, Amor, Razão, Merecimento, a ordem racional e cristã do mundo é confrontada com o desconcerto vivenciado no cotidiano, onde “[...] Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / têm do confuso mundo o regimento”, e se conclui que o mais seguro é crer em Cristo. No soneto Correm turvas as águas deste rio, a cosmologia cristã parece ser radicalmente questionada, ao serem postos em xeque o providencialismo e a solução fideísta da religião cristã: “Tem o tempo a sua ordem já sabida; / o mundo, não; mas anda tão confuso, / que parece que dele Deus se esquece. // Casos, opiniões, natura e uso / fazem que nos pareça dessa vida / que não há nela mais que o que parece.” Tal argüição radical do fundamento religioso da vida e do destino humanos é negada no episódio da maquina do Mundo, n’Os Lusíadas, nas redondilhas Babel e Sião e no soneto Vós outros, que buscai repouso certo, que resgatam o concerto da cosmologia cristã. Neste, o desconcerto do mundo é um desacerto ou desacordo com os mistérios da vontade divina, pois “[...]o que a Deus é justo e evidente / parece injusto aos homens, e profundo”. A injustiça do mundo cotidiano seria verdade profunda de Deus, inapreensível para a consciência humana. Como justiça divina, não absolve do castigo os que honraram o desconcerto do mundo, e descreram da existência de Deus; tais serão

punidos como viciosos, e advertidos contra o perigo do juízo final: “dedicai, se quereis, ao desconcerto / novas honras e cegos sacrifícios;/ que, por castigo igual de antigos vícios, /quer Deus que andem as cousas por acerto. // Não caiu neste modo de castigo / quem pôs culpa a Fortuna, quem somente / crê que acontecimentos há no mundo. // A grande experiência é grão perigo”. Não caiu, isto é, não se deu conta. O mundo cotidiano no império lusíada está em desconcerto relativamente aos valores bíblicos, pois os bons são castigados e os maus são recompensados, como nos diz o poeta na celebérrima Esparsa ao Desconcerto do Mundo: “Os bons vi sempre passar / no mundo graves tormentos; / e, para mais me espantar, / os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos. /Cuidando alcançar assim / o bem tão mal ordenado,/ fui mau, mas fui castigado. / Assim que, só para mim / anda o mundo concertado”. O desconcerto do mundo não funciona para o sujeito poético, que quando não se comporta bem recebe o mal em dobro. Do mesmo modo, nas oitavas sobre o desconcerto do mundo: só o louco pode deixar de notar o desconcerto; se pudesse seguir o melhor caminho, o poeta preferiria ter a consciência dobrada. O tema em questão encontra um tratamento filosófico na epistola a Dom António de Noronha, mas há muitos outros lugares da poesia camoniana onde reaparece.

Na sátira conhecida como os Disparates das Índias, o desconcerto é evidente na instituição do Estado da Índia: “Este mundo es el camino / ado hay ducientos vaus / ou por onde bons e maus / todos somos del merino / mas os maus são de teor / que des que mudam a cor, / chamam logo a Elrei compadre,/ e enfim, dejadlos, mi madre, / que sempre tem um sabor / de quem torto nasce tarde se endireita”. As estrofes ou disparates, misturando ou não trechos da língua castelhana e da portuguesa, se concluem por um ditado, em prosa ou verso. O poeta satiriza os diversos tipos sociais europeus nas lides do Oriente, acusando-os de reverterem os valores de Cristo; desde os novos ricos e janotas aos conselheiros reais e ao próprio vice-rei, todos andam por caminhos tão maus e alheios às virtudes cristas: “Ó vós, que sois secretários / das consciências reais, / que entre os homens estais / por senhores ordinários: / porque não pondes um freio / ao roubar, que vai sem meio / debaixo de bom governo? / Pois um pedaço de inferno / se vende a Mouro e a Judeu. // Porque a mente afeiçoada / sempre à real dignidade / vos faz julgar por bondade / a malicia desculpada. / Move a presença real / uma afeição natural, / que logo inclina ao juiz / a seu favor; e não diz / um rifão muito geral / que ‘o abade,donde canta, dai janta’?”. Em Goa, como mercadores árabes e judeus viveriam os europeus e portugueses, sob a corrupção do clero, da magistratura e

do vice-reinado. O poema se conclui com referência a exemplo bíblico cristão, a expulsão dos vendilhões do templo, a fim de advertir os mercadores portugueses e europeus no Oriente, no século XVI, de sua própria conduta. Numa espécie de coda, por meio da apóstrofe ao leitor-ouvinte, o poeta desnuda o caráter apenas comercial, e de refração da fé crista, presente na empresa lusíada: “E vos bailais a este som? / Por isso, gentis pastores, / vos chama a vos mercadores / um que só foi pastor bom”. Outra composição satírica, em que o mundo às avessas manifesta-se pela ótica do embriagado pelo vinho indiano, é a zombaria que fez aos moradores de Goa, na entrada de Francisco Barreto no vice-reinado da Índia. Ao contrário das virtudes assinaladas aos cavaleiros e varões em Os Lusíadas, na zombaria camoniana, os praguentos, em trechos de prosa, assinalam cada galante do jogo de canas com os vícios da bebida e da corrupção. A rubrica da composição, numa de suas versões reza: “Zombaria que fez sobre alguns homens a que não sabia mal o vinho, fingindo que em Goa, nas festas que se fizeram a sucessão de um governador, saíram a jogar as canas estes certos galantes com divisas nas bandeiras e letras conforme suas tenções e inclinações”. O trecho final em prosa amplia o alcance da zombaria ou sátira política, ao ironizar os inúmeros

beberrões do Império lusíada que estimavam terem entrado no jogo de canas: “Muitos outros homens ilustres quiseram ser admitidos nestas festas e canas; e que se fizera memória deles, conforme suas qualidades, mas infinita escritura fora, segundo todos os homens da Índia são assinalados; e por isso estes bastem para servirem de amostra do que há nos mais”. Para os biógrafos seiscentistas de Camões, Faria e Sousa e Severim de Faria, as duas sátiras causaram em 1556 a prisão do poeta em Goa, atestada pelo conhecido retrato. Em Os Lusíadas, quando Vênus requesta Cupido para ferir as nereidas, e o desvia do seu propósito, este se preparava para castigar o mundo rebelde, pretendia punir e submeter “a mal regida gente”. Cupido vê na desordem social os mesmos defeitos salientados nas sátiras camonianas e com sua seta pretende ferir eticamente a empresa mercantil portuguesa, “[...] pretende //Fazer ũa famosa expedição/ Contra o mundo rebelde, por que emende / Erros grandes que há dias nele estão, / Amando cousas que nos foram dadas / Não pera ser amadas, mas usadas” (Os Lusíadas, IX.25.3-8) “[...] vê do mundo todo os principais / Que nenhum no bem público imagina;/ Vê neles que não tem amor a mais / Que a si sómente, e a quem Filáucia ensina; / Vê que esses que frequentam os reais / Paços, por verdadeira e sã doctrina, /

Vendem adulação, que mal consente / Mondar-se o novo trigo florescente. // Vê que aqueles que devem à pobreza / Amor divino, e ao povo caridade, / Amam somente mandos e riqueza,/ Simulando justiça e integridade; / Da feia tirania e de aspereza / Fazem direito e vã severidade; / Leis em favor do Rei se estabelecem, / As em favor do povo só perecem. // Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, / Senão o que somente mal deseja. / Não quer que tanto tempo se releve / O castigo que duro e justo seja. / Seus ministros ajunta, por que leve / Exércitos conformes à peleja / Que espera ter co a mal regida gente / Que lhe não for agora obediente.” (Os Lusíadas, IX.27-29). O tema do desconcerto do mundo, em revolta e confusão, pelo avesso, como tempestade marítima que tudo revolve e subverte, encontra-se ainda no Labirinto do autor queixando-se do mundo. A nau do Império lusíada “corre sem vela e sem leme”. Nesta peça lúdica da lírica camoniana, a sintaxe dos versos e a disposição estrófica são construídas como peças soltas a serem remontadas em múltiplas direções de leitura, de cima para baixo, de baixo para cima, pelas estrofes ímpares, pelas pares, emparelhando-se versos de mesma posição, reagrupados em quintilhas ou décimas, etc. Na estrutura do labirinto não só a ordem linear do texto é subvertida, mas o corpo fonético, diacrítico e morfológico do léxico sofre uma alteração

significante, a fim de se adaptar a determinada direção de leitura. Pela repetição alternada de dois versos (v.18 = v.30 e v.20 = v.28): “posto que se detiveram” e “sempre castigo tiveram”, a significação geral de advertência não é afetada, permanecendo a única saída do labirinto o arrependimento e a vida virtuosa. Por meio da figura de repetição, a mensagem cristã, movendo o crente ao arrependimento, inspirandolhe o temor, e ameaçando o pecador com a punição, mantém-se, em qualquer direção assumida de leitura. Por exemplo, na ordem normal, de cima para baixo, a última quintilha adverte a nobreza: “Os que nunca trabalharam, / tendo o que lhe não convém,/ se ao inocente enganaram, / perderão o eterno bem / se do mal não se apartaram”. Pela leitura emparelhada dos versos finais de cinco décimas, de cima para baixo, os que exploraram os justos e os inocentes são castigados: “disfarçados se acolheram.// [...] os que o justo profanaram. // [...]sempre castigos tiveram. // [...] posto que se detiveram // [...] se do mal não se apartaram.” Da perspectiva da sátira religiosa, em diversos passos da obra camoniana e dos maneiristas seus contemporâneos, o mundo em desconcerto é simbolizado como Babilônia, por exemplo, nos sonetos Cá nesta Babilônia, donde mana ou Na ribeira do Eufrates assentado. Babilônia

opõe-se,

exemplar

e

simbolicamente,

nas

famosas

redondilhas Sôbolos os rios que vão, como mundo terrestre, a Jerusalém celeste, a ser cantada, não com “frauta ruda”, contra ou no desconcerto do mundo babilônico, mas sim com “lira dourada”, em harmonia ou concerto com a doutrina crista. Nestas afortunadas redondilhas, Babel e Sião, que glosam o salmo Super Flumina Babylonis, ao crente é oferecida a via da ascese cristã como forma de concerto do mundo, por meio de uma cristianização da filosofia platônica. Este tratamento do tema foi generalizado na época. Na lírica maneirista, o tema do desconcerto refere-se também ao mundo subjetivo, resultante da consciência do desconcerto do mundo. O sujeito, dividido ou dilacerado entre a razão e o desejo, entre os valores cristãos e a vida da corte, entre o decoro e as paixões, no desconcerto do mundo, se reconhece em desconcerto. Tal estado do sujeito também se traduz, por exemplo, pela imagem do labirinto em Martim Castro do Rio ou Rodrigues Lobo. O desconcerto subjetivo descreve, para o bem e para o mal, o estado amoroso, a visão da amada provoca no sujeito amante um tipo de subversão da ordem racional, evidenciada pela construção de impossíveis, com as figuras do oximoro e da antítese, como no soneto de Camões, imitado de Petrarca, Tanto do meu estado me acho incerto. O desconcerto do sujeito amoroso, por exemplo, no soneto de Dom

Manuel de Portugal, Que desconcerto amor foi ordenar, procura na comunhão amorosa o concerto subjetivo, encontra ordem sob a aparente desordem. O mesmo em Manda-me Amor que cante docemente: “[...] era razão ser a razão vencida. / Assi que, quando a via ser perdida, / a mesma perdição a restaurava; / e em mansa paz estava / cada um com seu contrário num sujeito / Ó grão concerto este!” N’Os Lusíadas, imputados a Vênus, e não a Cupido, consideram-se indignos os “amores mil desconcertados”, provocados pelos “tiros desordenados”, de “moços mal destros”, por não só levarem a práticas homoeróticas, como ao sexo entre senhores e pastoras, e entre senhoras e “baixos e rudos” (Os Lusíadas, IX.34 e 35). O tema, nas Oitavas a Dom António de Noronha sobre o desconcerto do mundo, recebe um tratamento erudito, de coturno, de reflexão moral. Críticos as consideram quase uma composição escolar. Demócrito — não Paulo — o disse: só ha dois deuses, Pena e Benefício. Platão e Cesar são reprovados do ponto de vista da visão de mundo cristã. Com a anedota de Trasilau, loucura e inconsciência não são saídas para o desconcerto. O sujeito poético optaria pela vida bucólica, de estudos, numa casa senhorial culta, mas o ideal da aurea mediocritas lhe fora negado. Por meio de outra emulação de Horácio, a série de perguntas retóricas que abre a composição, ao longo das três primeiras

oitavas, logra reverter o sentido do nil admirari, da epistola 6ª do livro 1, na qual, para construir e conservar a felicidade e a saúde, ninguém deveria admirar-se de nada, e sim, pelo caminho da virtude, desfrutar de amor e jogos. Na intuição critica de A. J. Saraiva, as oitavas de Camões nos ensinam, porém, que, nos Tempos Modernos, se espantar com o desconcerto do mundo é ter consciência. BIBLIOGRAFIA AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de, Maneirismo e Barroco na Lírica Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971; ALMEIDA, Isabel, Poesia Maneirista, Lisboa, Comunicação, 1998; CAMÕES, Luis de. Lírica Completa. Organização de Mº de Lurdes Saraiva. Lisboa, IN-CM, 1980, 3 Vols. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto, Porto Editora, s.d. CASTRO, Aníbal Pinto de, “Os códigos poéticos em Portugal do renascimento ao barroco”, Revista da Universidade de Coimbra, 1984, vol. 31, pp. 505-531; FRAGA, Mª do Céu, Os Gêneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, Universidade de Coimbra, 2003; LOURENCO, Eduardo, Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa, 1983; SARAIVA, Antonio Jose, Luís de Camões, Publicações Europa America, 1971; SENA, Jorge de, Trinta Anos de Camões, Lisboa, Edições 70, 1980, vol. 1

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF