O CONTO DA VINGANÇA
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O CONTO DA VINGANÇA
Apagava a vela sempre sempre que terminava o serviço, serviço, era o amor que ditava seus impulsos, seus braços habilidosos se moviam com tanta destreza que os peritos nunca desconfiaram que se tratara de um semianalfabeto, procuravam por cirurgiões, biólogos, ortéticos e todos os estudiosos do corpo humano. Eu acompanhei sua história, não que eu fosse contemporâneo dele, mas meu avô conhecia alguém que conheceu alguém que o conheceu intimamente, talvez a única que não despertou nele o amor necessário para instigar sua vocação, talvez, inclusive, esse tenha sido o motivo que a fez revelar esses fragmentos históricos. Tratava-se de um homem alto, bonito e extremamente amável, fora criado pela tia, Dona Tânia, uma mulher muito sábia, negra forte com vocação para a curandería, era também a parteira da região, nunca frequentara uma sala de aula, mas sabia como poucos todos os caminhos do labirinto do corpo humano, cada encruzilhada, cada atalho, cada árvore com vista para a saída. Ensinou tudo que sabia a seu sobrinho, todas as noites eles se sentavam a porta da casa simples de taipa, construída pela própria Dona Tânia, e num conversar sem fim, cheio de desenhos no chão de terra terr a batida e sem nenhuma anotação para a posteridade, o pequeno garoto dócil foi adquirindo o conhecimento acumulado através de anos de experiência pela sua tia, mas não ousava tocar um dedo sequer em qualquer outra pessoa que não fosse a Dona Tânia, tinha muito medo do sangue alheio, sentia-se muito a vontade com o seu próprio sangue e com o sangue que sua tia utilizava para comprovar suas técnicas apuradas, sangue esse que ela tirava do próprio corpo, mas r epudiava o DNA que não fosse o de sua família. Dona Tânia só se deu conta da limitação do sobrinho, quando o levou para assistir ao parto da filha de sua amiga, Dona Zefa, o garoto moreno aclarou sua pele assim que se deparou com uma gota de sangue que escorria da gestante. Dona Tânia não se absteve a continuar repassando todo seu conhecimento para o sobrinho, mas teve que elaborar novos métodos para realizar suas consultas. A dedicação foi tamanha, que em poucos meses a curandeira da região já não necessitava mais de panos úmidos para limpar os resquícios da sua passagem. O garoto assimilou muito bem os ensinamentos da tia, aprendeu todas as artimanhas necessárias para se tornar um bom curandeiro, com a vantagem de prescrever ervas que perduravam muito seus efeitos. O tempo o deixou ainda mais curioso, recolhido e taciturno. Buscando aperfeiçoar os ensinamentos de Dona Tânia, o agora já moço, se deparou com a necessidade de realizar novos experimentos, mas a fobia ao sangue alheio limitava seus objetos de estudo a seu próprio corpo e ao corpo de sua tia. A automutilação começou a fazer parte da sua rotina, era flagrado constantemente fazendo cortes em suas pernas e braços, cobrindo-os com um espesso casaco de lã para disfarçar as cicatrizes e estancar o sangue que jorrava em grande velocidade. velocidade. À medida que as suas suas teorias eram comprovadas, sua vontade de pesquisar aumentava ainda mais, as ideias afloravam feito erva daninha, porém em seu corpo já não cabiam mais cortes e perfurações, o garoto se viu obrigado a realizar seus testes no corpo de sua tia. Consciente de que Dona Tânia não cederia seu corpo para os experimentos do sobrinho, o jovem decidiu, como sendo a solução mais óbvia, matar a velha negra que lhe passara no sangue e na terra terr a o dom de curar.
Para prolongar suas pesquisas, o garoto conservou o corpo da tia em um velho poço pouco profundo, cheio de sal, que ficava atrás da sua casa e já havia sido desativado há muito tempo. Não demorou muito para ele perceber que seriam necessários muitos testes para satisfazer a sua curiosidade, para tanto, empreendeu todo o corpo da tia numa tentativa de reproduzir em outras pessoas o sangue da sua família. A comunidade abrangida por Dona Tânia não estranhou o sumiço da curandeira, já esperavam mesmo que a velha desaparecesse uma hora ou outra por conta da idade, por poucos dias houve burburinhos de que a tia do misterioso garoto havia partido para outra locação após repassar a seu sobrinho todos os mistérios da curandería e do parto, afim ajudar mais pessoas a livrarem-se dos males que assolavam aquela região por aquele tempo. Foram espalhados cartazes de agradecimentos a Dona Tânia por todos os cantos da comunidade, preces de felicidade a velha entoaram muitas vezes pela madrugada, sem que, no entanto, o jovem cientista se comovesse com os cânticos e faixas. A casa de taipa, com o tempo e a ajuda da comunidade, foi-se transformando num laboratório cheio de quinquilharias que o próprio rapaz planejara e construíra para suas pesquisas de acordo com o aparecimento das necessidades. Um ano após matar sua tia, o jovem conseguiu, enfim, encontrar o método perfeito para transfigurar o sangue alheio num sangue familiar, conhecido e acalentador. O método consistia na diluição de uma substancia, preparada com o sangue de sua tia, em qualquer outro líquido que, quando ingerido, atacava o sangue rival de maneira tão ferrenha que este não resistia por mais de cinco minutos a transformação. Com a substancia em mãos, o rapaz tratou de realizar experimentos em campo, não encontrou dificuldades para atrair as mulheres da comunidade, mesmo as que ainda não o conheciam fisicamente, pelo fato de se manter muito tempo trancado no seu íntimo laboratório e só sair para atender os chamados mais urgentes, já o conheciam de ouvir falar, era um jovem atraente, bonito, misterioso e muito culto, diferente de todos aqueles matutos da comunidade que muito frequentemente confundiam os buracos na hora de consumar o ato nupcial. O rapaz tinha plena noção do quanto era atraente às mulheres, sabia exatamente o que deveria fazer para realizar seus experimentos e o fazia com extrema cautela e confiança, era um ato de sedução tão natural e ao mesmo tempo tão intenso que não houve uma sequer a resistir. Certa noite, procurando um novo corpo para um novo empreendimento, ele fez-se presente na festa de comemoração à colheita bem sucedida da comunidade. Assim que pôs o pé direito no terreiro festivo, os olhares femininos voltaram-se, como que perfeitamente coreografados, para o rapaz que acabara de chegar, eram poucos gestos envolvidos no ritual de atração, primeiro ele avaliava quais os melhores corpos para seu projeto, se era do seu interesse estudar a derme, escolhia as mais cheinhas, se era de seu interesse o estudo dos órgãos internos, as mais magras se encaixavam melhor ao seu perfil. Depois de escolhido o seu objeto de estudo, um andar consciente e perfeitamente ritmado marcava o inicio da captura, a escolhida não esboçava qualquer reação ao flerte, parecia hipnotizada ao dançante passo que se aproximava com tempo tão bem definido de chegada, era uma dança consciente para ele e totalmente involuntária e envolvente para ela, que
mesmo não estando previamente a par dos passos executados, sabia muito bem o que deveria fazer para deixar-se envolver pelo atraente cientista. Em pouco tempo, os dois já estavam envolvidos numa outra dança, esta agora mais reservada, no quarto, ainda de taipa, iluminado por velas de meio corpo que ao rolar dos amantes marcava o ritmo num compasso que, por vezes, lembrava uma valsa bem lenta e, noutras vezes, se assemelhava a um rock agressivo e visceral. O ato carnal era realizado com tanta intensidade e entrega que, desconhecendo os motivos que o levaram a praticá-lo, podíamos ser levados a confundi-lo facilmente com amor, e era exatamente isso que sua vitima era induzida a acreditar, e creria tão cegamente que não pudera se inibir a aceitar qualquer exigência do rapaz, a tal substância chegara a ser suplicada pela moça que temia mais a possibilidade de não ter mais o jovem por perto do que o confortante abraço da morte. Aqueles gestos de súplica despertaram no rapaz um sentimento tão diferente de tudo o que já havia experimentado, tão novo e excitante que a próxima vitima já não tinha mais um propósito científico, o prazer da súplica substituíra por inteiro a sede de conhecimento do jovem. Numa tarde quente, o choro dos homens da comunidade que andavam em marcha, num coro berrante por sua mulheres que haviam desaparecido misteriosamente, despertou no rapaz o instinto de que em breve desconfiariam dele e deixariam de acreditar na versão espalhada, que consistia na proliferação de uma doença causada pela contaminação da colheita passada e que atingia tão somente as mulheres da comunidade, fazendo-as transformarem-se em pequenos grãos de areia que eram achados em potes de vidro ao lado da casa de onde provieram. De fato, não demorou muito para que os homens da comunidade encontrassem o poço desativado, cheio com os corpos de suas mulheres, exalando um cheiro forte, salgado, diferente dos odores comuns da comunidade. A essa altura, o rapaz já estava andando em direção a qualquer lugar longe dali. Como nunca sairá da sua comunidade, o jovem não fazia ideia do caminho que deveria seguir, passou dias andando sem rumo e sem perspectiva de encontrar alguém naquele horizonte cheio de nada. No dia em que o desespero parecia alcançar níveis absurdos, o rapaz avistou uma casa solitária, habitada por uma mulher muito bonita, ele havia encontrado Rosa. Com ela, o jovem aprendeu a controlar seus impulsos, amava-a com menos intensidade, temendo que a súplica por seu amor pudesse redespertar nele o desejo de matar. Numa noite de bebedeiras, o casal se amou comedidamente, sentindo que o rapaz não se envolvia por completo, Rosa o questionou sobre o que o motivava a não se entregar por inteiro a ela, o jovem, ainda muito debilitado por conta da bebida, lhe revelara toda sua história, investindo especial atenção aos detalhes da sedução e do amor que ele praticara anteriormente. Aquelas revelações instigaram Rosa de tal maneira que ela lhe exigiu com extrema insistência para que ele a amasse da mesma forma que havia amado todas as mulheres da sua comunidade. O rapaz se recusou a impelir em Rosa todas as suas técnicas amorosas, despertando nela um instinto raivoso, como se estivesse se vingando por ele ter amado mais a outras mulheres do que a ela própria. A vingança culminou no suicídio do jovem cientista, que encurralado num canto da casa de Rosa, inseriu em seu peito o facão utilizado, em outros
tempos, para separar das suas amantes a única parte que a substancia não conseguia atingir, o coração.
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