O Ano Da Morte de Ricardo Reis

September 17, 2017 | Author: Elaine Guimaraes | Category: Death, Portugal, Love, Time, Perspective (Graphical)
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O ano da morte de Ricardo Reis (José Saramago) O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago tem a característica marcante da intertextualidade. Já no título do livro, que resume o conteúdo básico e conduz o fio narrativo, percebemos a retomada de um dos heterônimos de Fernando Pessoa, Ricardo Reis. Enquanto intertextual, o personagem retomado irá apresentar-se de forma diversa. Tecendo um paralelo entre o Ricardo Reis pessoano e o Ricardo Reis que nos é apresentado no livro, notamos claramente as diferenças que mostra a visão do outro sobre o mesmo, ou seja, como o autor, que se revela como narrador onisciente estando presente em todas as situações, revendo o passado e antevendo o futuro e principalmente tomando conhecimento dos pensamentos e sentimentos passados no "eu" de cada personagem, vai recriar em perspectiva e personalidade diversa o mesmo Ricardo Reis. É importante ressaltar que a representação social e a máscara corpórea de ambos os Reis, vão ser as mesmas: "Um homem grisalho, seco de carnes" (página 15) , a modificação é tão somente interior e subjetiva, marcando a diferença dos autores, o poeta Pessoa que o cria e o escritor Saramago que o recria. Ao Ricardo Reis pessoano podemos atribuir a seguinte definição: é um espectador do mundo que não se envolve sentimentalmente nas suas tragédias: "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa e não estamos de mãos entrelaçadas." Tem a concepção de amor como algo espiritual e imaculado que não se realiza no plano material, por isso sua musa Lídia é incorpórea. "Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive." É comedido e correto, suas odes são rigorosamente metrificadas e nelas retoma o período clássico. É monárquico e revela-se conservador. Na retomada de sua personalidade por Saramago, o personagem perde algumas caraterísticas básicas, motivo de cobrança para Fernando Pessoa que ressurge do mundo dos mortos: "você afinal desilude-me, amador de criadas, cortejador de donzelas, estimava-o mais quando você via a vida à distância que está" (página 183). "gestos que parecem querer recompor umas feições, restituí-las aos seus lugares de nascença, refazer o desenho, mas o artista tomou a borracha em vez do lápis, onde passou apagou, um lado da cara perdeu o contorno, é natural, vai para seis meses que Fernando Pessoa morreu." (página 330)

Podemos observar que assim como o poeta Fernando Pessoa (na perspectiva fictícia), tem os seus contornos físicos dissipados ao longo do romance pelo decorrer dos nove meses de falecimento (embora no plano real a matéria também deteriore), tecendo um paralelo com o embrião humano que leva nove meses para ser gerado, o seu heterônimo retomado vai também dissipando a sua personalidade ao longo desse período. "alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular" (página 22) "formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular" (página 47) O Reis de Saramago deixase contagiar pelas coisas mundanas, já não é tão coerente e objetivo. Surge uma Lídia camareira do Hotel Bragança com quem ele mantém relações, a sua musa se corporifica e ele deixa de "fruir o momento que passa" como espectador, para realizá-lo carnalmente. "quem será que não quer dormir em mim, o corpo inquieto, de quem, ou o que não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro, ou esta parte de mim que cresce, meu Deus, as coisas que podem acontecer a um homem." (página 99) Aparece também a personagem Marcenda por quem Ricardo Reis se apaixona, passando à expectador já que aguarda a sua presença de todos os meses, as cartas, e por fim uma decisão de unir-se à ele que não se concretiza. "e este ainda queixoso só porque não recebeu de Marcenda uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas" (página 269) E ao final do romance ele se deixa contagiar totalmente pelos acontecimentos do mundo quando chora a morte de Daniel, irmão de Lídia. "e entra em casa, atira-se para cima da cama desfeita, escondeu os olhos com o antebraço para poder chorar à vontade, lágrimas absurdas que esta revolta não foi sua, sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo" (página 411) Atendo-se aos exemplos propostos na questão, observamos a mudança de perspectiva futura da citação de Os Lusíadas (Camões) e das retomadas dessa citação no início e do final do romance abordado. Os Lusíadas data de 1572, encaixando-se no período da Literatura Renascentista: "Literatura Renascentista: Marcada pela consolidação do capitalismo mercantilista (século XV a meados do século XVI), é muito livre em relação às imposições morais , levando uma atitude de epicurismo e busca de uma moral naturalista. Nasce uma atitude antropocentrista, semelhante à da Antigüidade clássica, em oposição ao teocentrismo medieval. A natureza é o modelo básico para o conhecimento humano." (Almanaque Abril, vol.1 (1975) – São Paulo: Ed. Abril, 1974 – Anual 1995, página 678) Como pudemos observar na citação esta época era favorável à Portugal que possuía sua economia voltada para as explorações marítimas, e tinha posição geográfica favorável. Era o mundo a ser conquistado e explorado em favor e em nome da pátria portuguesa como aconteceu. Portugal detinha não só o poder, mas as condições para obtê-lo; a perspectiva de ascensão era total : "Onde a terra se acaba e o mar começa". Já O Ano da Morte de Ricardo Reis romance contemporâneo do século XX, retrata um período onde imperava a

ditadura no Ocidente, representada em Portugal por Salazar, a perspectiva dos acontecimentos era diferente, e o verso comentado anteriormente é retomado invertido: "Aqui o mar acaba e a terra principia". Podemos tomar a citação do ponto de vista do personagem que retorna à Portugal de navio, o "Highland Brigade" (cujo o nome inglês não é apresentado gratuitamente pois revela a opressão exercida em Portugal pela Inglaterra), e para ele que chega depois de dezesseis anos a terra recomeça renovada pelas mudanças. Mas também da perspectiva histórica fazendo uma alusão à perda do extenso império português marítimo e colonial, Portugal regressando depois de muitos anos e conquistas, como uma criança que tenta armazenar a água nas mãos e o elemento líquido escorre surpreendentemente pelos dedos e ela regressa de mãos vazias porém com o aprendizado que adquiriu na experiência. Ao final do livro a frase conclusiva "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera" podemos entrever na primeira oração o final da utopia revolucionária marítima, o fim dos sonhos de grandeza, reconquistas e transformação em grande potência mundial. E na segunda oração, a espera pela libertação da miséria e do subdesenvolvimento do país, espera de uma revolução que libertasse o país da opressão que a ditadura salazarista exercia em 1936 em Portugal. Diante destas três frases, pudemos observar a variação da perspectiva semântica, pois no verso de Camões podemos interpretar terra como um Portugal dinâmico que sai aventurando-se pelo mar promissor que trará a riqueza e a ascensão, e nos de Saramago o mar tem uma conotação de algo findo que nada mais oferece nem promete e a terra um Portugal passivo e expectador dos acontecimentos; da perspectiva ideológica, no século XVI em plena ascensão Portugal posicionava-se "quase no cume da cabeça da Europa toda" e no século XX é o quintal da Europa, colocando-se em posição inferior; e da perspectiva estética, na inversão de terra-mar para mar-terra.

(Por Daniela Sirigni - Pós-Graduada, Bacharel e Licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Do Rio a Lisboa com Saramago e Ricardo Reis Letras de Hoje. Porto Alegre, v.25, n.3, p.75-84, setembro de 1990 Leonor Simas-Almeida Brown University - USA

Nexos textuais entre Ficção e História – e/ou Anti-História – são constantes, e facilmente observáveis, em O ano da morte de Ricardo Reis, da autoria de José Saramago e publicado em 1984, o romance que escolhi como tema das reflexões aqui presentes. Ricardo Reis, um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa, é a personagem central, conforme o título deixa prever. Fernando Pessoa, seu criador em primeira instância, é, como igualmente seria previsível, integrado

na diegese, onde ocupa também lugar preponderante. "Aqui o mar acaba e a terra principia" (1), significando o fim do caminho marítimo percorrido pelo navio que trouxe Ricardo Reis do Rio a Lisboa, é a chave (frase) que abre a narrativa e há-de fechá-la também em variante sinônima - ou que o seria se não tivesse entretanto enriquecido a sua carga semântica ao longo de mais de quatrocentas páginas -: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera" (2). A posição destacada destas frases no discurso narrativo conferindo-lhe circularidade, e a elas conferindo o estatuto de lapidares - de modo nenhum poderia ler-se como casual. Intertexto camoniano, porém invertendo de modo explícito a lógica do verso épico "Onde a terra se acaba e o mar começa" (3), desde logo a sua conotação, a meu ver, contraria a ideologia da expansão marítima e tece o fio ideológico que atravessa e conduz o sentido pluridimensional desta obra. Nessa medida, direi que este romance dá conta de uma das linhas mestras da narrativa portuguesa contemporânea: a busca de uma nova identidade para um país órfão da sua História de portugueses-marinheiros, "saturado de sal" o "desempregado de mar" (4), durante séculos aprisionado em sonhos de grandeza passada e mitos que a Literatura ajudou a consolidar, ou que ela mesma instituiu. O novo imaginário português repensa Portugal, adotando variados percursos, cuja invariante é o diálogo com as tradições nacionais, literária e histórica, no sentido de uma esperança nova que se quer enraizada no espaço metropolitano. Saramago elegeu como protagonista de uma intriga complexa (e simultaneamente linear) aquele dos heterônimos que voluntariamente - de acordo com a ficção pessoana - se expatriara no Brasil desde 1919. Trouxe-o de volta à pátria portuguesa, onde chegou em 29 de dezembro de 1935, precisamente um mês após a data autêntica da morte de Fernando Pessoa. A própria personagem invoca a notícia desta morte como principal motivo do seu retorno a Portugal, volvidos dezesseis anos de ausência. Quanto às razões do narrador, eu arriscaria associá-las ao desejo de trazer Portugal, confrontado com os seus próprios limites territoriais, de regresso a si mesmo. Diria entretanto que este narrador chamou a si empresa ousada - iconoclasta diriam outros - quando decidiu apropriar-se da ficção de outrem. "Outrem" sendo neste caso Pessoa, o poeta mitificado, em cujo imaginário se intromete a imaginação de um escritor do presente. Arrojado feito, o de quem assim desafia sólidos pressupostos, legendárias leituras que os estudos pessoanos já sedimentaram. Todavia, este processo de "mise-en-abîme", ou de incorporação de uma ficção literária alheia noutra ficção literária, já fora legitimado pelo modernismo, enquanto afirmação da capacidade de auto-suficiência da

literatura como sistema dotado de coerência interna e, por isso, autônomo em relação à vida. Apenas acontece que esse caráter autonômico é aqui (pósmodernisticamente, apetece dizer) neutralizado, pela intrusão constante de referências histórico-sociais do universo extraliterário. Por outro lado ainda, dir-se-ia que Fernando Pessoa, ao fragmentar a própria identidade na plurivocidade dos seus heterônimos, criou uma ficção que, como qualquer ficção, não esgota todas as possibilidades de criatividade, deixando portanto em aberto as vias que os receptores poderão percorrer e, a seu modo, preencher. Traçou por exemplo os perfis biográficos dos vários poetas a quem atribuiu obras distintas, apontou as respectivas datas de nascimento, mas omitiu os óbitos (com excepção para Alberto Caeiro, o único dos heterônimos mais conhecidos cuja morte atestou). Deste modo os deixou, sobrevivendo-lhe nas suas existências fictícias. Saramago arrogou-se então o direito de fixar ele próprio a data da morte de um deles, Ricardo Reis, sobre quem escrevera Pessoa em carta datada de 13 de janeiro de 1935, "nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil". Mas, como se disse já, Saramago fê-lo regressar a Portugal, para residir em Lisboa, durante vários meses, até ao momento em que ele mesmo decide reunir-se pela morte ao poeta seu criador primeiro. Espero poder demonstrar, na seqüência deste texto, a simbologia de que, do meu ponto de vista, se reveste essa morte, logo anunciada no título do romance. A ficção pessoana e o próprio Fernando Pessoa serão pois tratados no livro de Saramago como tema de ficção, porém enquadrada em coordenadas históricas, cuja referencialidade factual é por sua vez ambigüizada, não só pela sua convivência em termos igualitários com a fantasia literária, mas também por quase exclusivamente se basear no noticiário jornalístico da época, selecionado e comentado pelo narrador deO ano da morte de Ricardo Reis. Assim, num múltiplo padrão ficcional se entrecruza o tempo histórico, como se a instância narradora quisesse diluir uma categorização nítida dos termos Ficção e História. Em suma, conferindo à História o tratamento que este autor privilegia e que, nas suas próprias palavras, consiste em: "entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante" (5). Falamos portanto de leitura histórica pela via do romance, a qual - e volto a citar José Saramago - "introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil ao entendimento do nosso presente como a demonstração efetiva, provada e comprovada, do que realmente aconteceu..." (6) Decerto virá a propósito chamar à cotação mais uma frase emblemática: "Sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da verdade" (7) - que, presente neste romance, "expõe o nervo da concepção romanesca saramaguiana" (8). Trata-se novamente de intertexto de uma escrita

prestigiada das letras portuguesas, a de Eça de Queirós neste caso, e que, também de novo, subverte o sentido que na sua formulação original - "sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade" - lhe atribuíra Eça, quando definia as coordenadas do realismo literário no séc. XIX. Considero pertinente acrescentar que a fantasia literária em Saramago reveste variadas formas (das quais teremos ocasião de apreciar exemplos), entre elas se incluindo uma omnipresente componente irônica, uma vez que, como em dado momento neste mesmo livro se diz: "A ironia é sempre máscara" (9). E, para voltarmos às relações entre História e Ficção, dir-se-á que a revisitação de Pessoa é levada a cabo por um narrador que contempla o passado com os olhos postos no "entendimento do presente", usando a expressão de que o mesmo Saramago se serve. Esse narrador opta por aquele dos heterônimos na aparência menos promissor como herói romanesco. Autor de odes neo-clássicas, Ricardo Reis é o poeta contemplativo por excelência, o mesmo que aos deuses pagãos pede apenas a graça de nada desejar, e cuja filosofia de vida se condensa no verso seu, que serve de epígrafe a este romance: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Nesta opção de Saramago manifesta-se a ironia, algo perversa, que enforma a quase totalidade do discurso narrativo nesta obra. Creio, porém, que tal opção tem outro mais profundo significado, já que aquele Ricardo Reis, uma vez tornado de certa maneira ator involuntário no palco do espetáculo quotidiano do mundo, será posto à prova, verificando-se afinal constituir a personagem ideal para denunciar, a cada passo, a inviabilidade de alguém estar vivo, quando se obstina em afetar a quietude e impossibilidade reservadas aos deuses. Tanto assim que, embora sem o admitir explicitamente, será aquela mesma inapetência do querer, que há-de conduzi-lo a escolher a morte como o mais adequado desfecho para o drama de a "vida não pode(r) ser não vida"(10). Submetido a julgamento, o avatar de Ricardo Reis irá revelar a sua ataraxia como profundamente inadequada a qualquer forma de existência humana. Em particular, inadequada a um tempo de graves sismos sociais, a década de 30, e ao espaço onde lhe é proposto viver, a Lisboa do Estado Novo no seu apogeu. Curiosamente, o próprio Fernando Pessoa irá de alguma maneira assumir o papel de juiz do seu heterônimo. Impõe-se neste momento um parêntesis para brevemente se esclarecer o modo como surge no romance, contracenando com Ricardo Reis, um Fernando Pessoa morto. Para obter este efeito, Saramago recorre ao processo que frequentemente se tem apelidado de "realismo mágico". Acontece simplesmente que Fernando Pessoa visita Ricardo Reis no Hotel Bragança, onde este se hospedara nos primeiros tempos da sua estada em Lisboa. Vem cumprir preceitos sociais, retribuindo a visita que Ricardo Reis lhe fizera no cemitério dos Prazeres, e da qual ele tivera conhecimento embora se encontrasse ausente nesse particular momento. Perante a relativa surpresa de

Ricardo Reis, informa-o de que podem os mortos deambular livremente no mundo dos vivos, durante os primeiros oito meses do "post-mortem", mais ou menos o tempo de uma gestação, sublinha. A partir desta altura, os encontros entre ambos serão freqüentes, ainda que inesperados nas mais das vezes, até ao momento do encontro definitivo. Antes porém dessa apoteose, cada um vive, parcialmente independente do outro, a sua forma específica de existência. Subsiste no entanto, em tal autonomia, um certo equívoco, implícito na resposta de Fernando Pessoa quando Ricardo Reis quer saber por que razão só para ele se torna visível: "Porque eu quero que me veja, e afinal de contas, se refletirmos bem, quem é você?"(11) Importa notar o que melhor distingue este "realismo mágico": a total ausência de restrições, por parte da instância narradora, na aceitação do sobrenatural dentro do "cosmos" da obra, sem cuidar de reconciliá-lo com a lógica de verosimilhança, i.e., sem preocupações de coerência com o mundo exterior. Dissemos que Fernando Pessoa assume função judicativa relativamente a Ricardo Reis; fá-lo com um direito novo que lhe deu a morte, uma lucidez especial, ou a autoridade que um morto pode ter sobre um vivo, pela sua experiência cumulativa de vida e morte. Será pois revestindo tal estatuto de superioridade relativa que, por diversas vezes, funciona como uma espécie de voz da consciência de Ricardo Reis, confrontado com a própria indiferença e egoísmo, ou "à la limite" com a acusação de não passar de fingimento de si mesmo. Constantemente põe em dúvida a coerência dos princípios por que se rege Ricardo Reis, chamando a sua e nossa atenção para pequenas e grandes cobardias quotidianas. Procurando despertá-lo do seu alheamento do mundo, dir-lhe-á por exemplo (em conversa "duas vezes improvável" porque registra como produto da imaginação de Ricardo Reis): "só estando mortos assistimos, e nem disso podemos estar certos, morto sou eu (...) e contudo não me sinto como se apenas assistisse (...) o pior, porque é irremediável definitivamente, é o gesto que não fiz, a palavra que não disse (...) Não há sossego no mundo, nem para os mortos nem para os vivos (...) os vivos ainda têm tempo para dizerem a palavra, para fazerem o gesto (...) morre-se de a não ter dito, morre-se de o não ter feito, é disso que se morre, não de doença" (12). Note-se o fato importante de que a si mesmo julga Fernando Pessoa, ou seja, munido da distanciação que a morte lhe proporciona, julga o que fez ou se absteve de fazer em vida. Semelhante atitude auto-crítica se manifesta quando, aludindo à "importância das contradições", declara: "uma vez fui eu ao ponto de admitir que a escravatura fosse uma lei natural da vida das sociedades sãs, e hoje não sou capaz de pensar sobre o que penso do que então pensava e me levou a escrevê-lo" (13). Também os leitores da sua obra poética são submetidos a avaliação: "se o Quinto Império foi em mim vaguidade, como pode ter-se transformado em certeza vossa, afinal acreditaram tão facilmente no que eu disse, e mais sou esta dúvida que nunca disfarcei" (14).

Retomando os juízos pessoanos sobre Ricardo Reis, convoque-se agora uma personagem feminina de primacial importância no romance. Refiro-me a Lídia, a criada de hotel que, ironicamente, Saramago transforma em versão animizada de uma das musas inspiradoras das odes reisianas. Ela e Marcenda são as duas mulheres, (quase completa antítese uma da outra), que irão cruzar-se na vida de Ricardo Reis. Muito interessante seria determo-nos na respectiva análise, mas isso constituiria matéria bastante para outro ensaio. Apenas se diga, acerca de Lídia, que lhe são atribuídas qualidades excelentes, das quais destaco a completa generosidade do amor que dedica a Ricardo Reis. Generosidade que ele naturalmente aceita, mas se dispensa de retribuir. A condição de humilde mulher do povo aparenta constituir o principal obstáculo à rendição afectiva de Ricardo Reis, que a ama fisicamente embora continue aspirando, contraditoriamente, ao ideal de platonismo amoroso e à mulher espiritualizada que as suas odes decantam. Por isso, quando Fernando Pessoa faz esse comentário sarcástico: "afinal a tão falada justiça poética sempre existe (...) tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio", ele responde: "veio o nome de Lídia não veio a mulher". De novo cabe ao seu interlocutor chamá-lo à razão: "Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio sábio e puro espírito". E Ricardo Reis concorda enfim: "É duvidoso de fato" (15). Na verdade cada vez mais a personagem será envolvida em contradições e dúvidas, geradas pela sua filosofia existencial. E, se nunca de modo explícito a ela renuncia, excepto porventura na opção final da morte, o seu comportamento íntimo e exterior irá refletindo consideráveis mudanças, mesmo que delas não tome abertamente consciência. A notícia da carnificina em Addis-Abeba, lida nos jornais, ainda o fará evocar os seus antigos versos de louvor implícito àqueles jogadores da Pérsia, que impávidos continuavam o seu jogo de xadrez, "Quando a invasão ardia na cidade (...) e "Violadas as mulheres eram postas/Contra os muros caídos,/ Traspassadas de lanças, as crianças/ Eram Sangue nas ruas..." (16) Todavia, já no final do romance, após ele mesmo testemunhar em Lisboa a derrota dos marinheiros que intentaram rebelar-se contra a Ditadura, Ricardo Reis "atirase para cima da cama desfeita (...) para poder chorar à vontade" (17). Isso apesar de, ainda assim, achar absurdas as suas lágrimas "que esta revolta não foi sua, sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, hei-de dizê-lo mil vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e outro vença" (18). Certamente cansado de "este longo fastídio de existir", que o quotidiano finalmente lhe ensinara a reconhecer como "fingimento de lhe chamar serenidade" (19), e talvez receoso de estar a ponto de perder a capacidade de alheamento, vai pois encontrar-se com o que, já no início da narrativa, fora anunciado como "morte definidora", aquela que vem "desobrigar do compromisso, que esse sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negamos" (20). Porque vou concluir em breve direi antes que muitas foram as omissões a que

tive de submeter este texto, na tentativa de limitar-lhe a extensão. Não poderei contudo abster-me de algumas observações finais que me permitam estabelecer nexos lógicos com as minhas afirmações iniciais. Associei a vinda de Ricardo Reis para Portugal com um dos traços distintivos da mais recente narrativa portuguesa, a mencionada busca, pela via do literário, de uma renovada identidade para a cultura lusitana. Levarei ainda mais longe essa associação se considerar que a morte da mesma personagem poderá equivaler, por deslocação metonímica, à proclamação, profecia, ou mero desejo do fim do imobilismo nacional (21). A nota de esperança que encerra a narrativa ajuda-me a fundamentar esse ponto de vista. E para tal contribui também uma outra referência, que agora invoco. Trata-se de Adamastor, o símbolo camoniano com tanta insistência nomeado ao longo das páginas deste romance. N’"Os Lusíadas", Adamastor - metáfora mitológica do Cabo da Boa Esperança - representava os perigos afrontados pelos portugueses na epopéia das Descobertas e, por inerência, a glória que alcançaram na vitória sobre tais perigos. Assumia ainda outra dimensão, lírica essa, oculta na sua aparência gigantesca e aterradora, porém desvendada quando conta aos navegantes a história das suas origens; ele havia sido o gigante apaixonado por Tétis, ninfa dos mares, e porque ousara amá-la fora para sempre transformado em rocha dura (22). Em, O ano da morte de Ricardo Reis, o mesmo Adamastor é só a estátua mal talhada em pedra bruta, e toda a ênfase é posta naquela segunda dimensão, i.e., no desgosto causado pela eterna petrificação. Para Ricardo Reis esta estátua - erguida tão perto da casa que ele veio habitar no Alto de Santa Catarina - torna-se sua referência obrigatória. Dir-se-ia que, até certo ponto, ele se identifica com este Adamastor, cujo rictus facial parece conter um grito, durante séculos adiado. No final da narrativa, o Ricardo Reis, "nervoso e inquieto" (23) que desceu ao jardim para olhar os barcos implicados numa conspiração contra o Governo (segredo que Lídia lhe confiara, e ela própria soubera pelo irmão, um dos marinheiros revoltosos) está completamente só, Adamastor já não lhe serve de apoio: "Era o único ser vivo no alto de Santa Catarina, com Adamastor já não se podia contar, estava concluída a sua petrificação, a garganta que ia gritar não gritará, a cara mete horror olhá-lo" (24). Mas, em contraste com este paralisado desespero, a esperança de libertação e mudança, implícita na última frase do romance, é ainda reforçada pelas precedentes palavras "réquiem", que acompanham a partida definitiva de Ricardo Reis: O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera (25).

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