Novo Cristianismo - Saint-Simon
October 7, 2020 | Author: Anonymous | Category: N/A
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O Novo Cristianismo Henri de Saint-Simon 1825
Tradução: Cacildo Marques São Paulo – SP
O Novo Cristianismo Henri de Saint-Simon - 1825 Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, 1760 – 1825. Aquele que ama seu próximo cumpriu a lei. Tudo se resume nestas palavras: Ama a teu próximo como a ti mesmo. S. Paulo, Epístola aos Romanos. Prefacio do tradutor Henri de Saint-Simon escreveu o presente trabalho em 1825. Publicou o “Primeiro Diálogo” e pretendia produzir ainda um Segundo e um Terceiro Diálogos, mas morreu naquele mesmo ano. Hoje, no terceiro milênio, temos de ler seu trabalho sem perder de vista em nenhum momento o contexto em que ele desenvolveu suas ideias. Depois de ter participado de guerras nas colônias americanas contra a Inglaterra, residiu algum tempo na Espanha e voltou à França, quando se deparou com a Revolução, da qual veio a ser um ativo participante, renunciando inclusive a seu título de conde e abraçando a causa republicana. Nos seus anos finais, porém, a França vivia a fase da restauração da monarquia, com a Casa de Bourbon reinstalada no trono, na pessoa de Carlos X, após a queda de Napoleão Bonaparte. Este breve livro mostra que ele entendeu claramente onde se situava o problema daqueles reveses. A chave estava na religião. Por isso ele propõe uma reestruturação profunda nela, e não sua abolição, como antes fizeram alguns líderes durante a Revolução, e como fez mais tarde seu secretário Augusto Comte, criador da Igreja Positivista, uma religião ateia, que cultiva o objeto “humanidade” como o “Grande Ser”, no lugar de uma divindade. Na mesma linha, também os hegelianos lançaram mão das ideias de Saint-Simon e abstraíram dela o aspecto religioso judaico-cristão, o que facilitou em muito sua penetração na Ásia, na forma da filosofia do materialismo histórico. Saint-Simon estava certo em grande parte de suas críticas e propostas, e muitos de seus reclamos, como também os de Tolstói mais à frente, foram ouvidos e incorporados pelo Vaticano, ainda que depois de mais de um século. Não se pode ter a pretensão de modificar com rapidez uma instituição tão antiga quanto a Igreja Católica. Podemos lembrar a proposta de correção do calendário juliano, feita pelo frade cientista Roger Bacon, mas adotada só depois de três séculos, em 1582, pelo Papa Gregório XIII.
. Em 1965, no papado de Paulo VI, o Vaticano deu por encerrado o período de três anos de trabalho do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII com o objetivo de proceder a uma reformulação imensa do catolicismo romano. Um dos pontos da mudança foi a adequação da Igreja aos novos tempos, exatamente um dos itens apontados como uma necessidade por Saint-Simon. Não se construiu aí a religião perfeita, porque talvez isso jamais venha a existir, mas a modificação foi de tal monta que resultou instituída uma terceira Igreja, dentro da história católica, levando-se em conta que a primeira foi a de Pedro e a segunda, que trouxe uma nova natureza à instituição, foi a de Constantino, o Grande, que não foi papa, mas criou um novo culto. Esta natureza trazida por Constantino, que foi a associação da Igreja ao poder de César, é que se desfez em 1965, e é um ponto que não podia ser imaginado por Saint-Simon. O que ele propôs foi que a Igreja se sobrepusesse ao poder de César, sob o novo cristianismo. Ora, talvez isso venha a funcionar num século ou num milênio futuro, mas nos séculos anteriores, desde Constantino, a participação da Igreja no poder temporal, em qualquer que fosse o nível, mostrou-se desastroso. Quanto à ordem jesuíta, que ele acusa de encarnar com mais rigor o espírito da deformação da Santa Sé daqueles tempos, ela é que forneceu, em 2013, um papa, o primeiro papa daquela ordem, empenhado a retirar do trono papal o caráter de corte imperial secular que Saint-Simon diz ter sido instalada desde a ascensão de Leão X, em 1513. Certamente, o ponto central da proposta de Saint-Simon, que é o da tarefa primordial dos clérigos, não alcançou ainda a abrangência que ele pregou, o que faz seu texto ainda muito atual, mas, quanto à proposta de relação com o poder de César, a Igreja fez algo melhor, decidindo-se pela total separação religião-Estado. Com isso a Igreja se libertou, para poder condenar, por exemplo, as formas de morte programada que os governos seculares praticam. Contrário a essa tendência, os religiosos da Pérsia mudaram o nome do país para Irã e lá instalaram o sistema de submissão de César ao clero, em 1979, resultando isso no grande problema mundial do século XXI. Outro ponto em que o Vaticano foi além quanto ao sistema proposto por Saint-Simon foi a abolição da vitaliciedade, algo que ele não via como um problema. Hoje, os bispos católicos aposentam-se aos 75 anos de idade, os párocos têm mandato de seis anos em suas comunidades, com possibilidade de apenas uma recondução, e, finalmente, o próprio papa deixou de ter mandato vitalício, conforme sinalizado em 2013 na renúncia de Bento XVI, hoje papa emérito, um dos grandes teóricos da reforma do Concílio Vaticano II, como padre Joseph Ratzinger, em sua juventude. (Cacildo Marques, São Paulo - Butantã, janeiro de 2014.) Prefácio O fragmento que agora se apresenta ao leitor deveria ter sido parte do segundo volume de 'Opiniões Literárias, Filosóficas e Industriais', mas a questão
tratada aqui é tão importante em si mesmo, e tão associada às condições políticas presentes, que se decidiu por sua publicação de forma separada, e de imediato. O objeto principal do diálogo seguinte é este: recordar às pessoas e aos reis o verdadeiro espírito do cristianismo, numa época em que eles se afastaram completamente daquele espírito; uma época em que são aprovadas leis em sacrilégio, quando católicos e protestantes buscam na Inglaterra algum modo de encerrar uma luta longa e dolorosa entre si. Meu objetivo também é tentar definir o papel que o sentimento religioso joga na sociedade, numa época em que todos os homens estão conscientes disso, ou de algum modo sentem a necessidade de respeitar isso nos outros; numa época em que os mais eminentes escritores estão preocupados em encontrar origem, manifestações e desenvolvimento disso, enquanto, por outro lado, os teólogos tentam sufocar isso sob o peso da superstição. Os ministros das diferentes seitas cristãs que se consideram umas às outras como heréticas, e certamente o são, em diferentes graus, pelo verdadeiro padrão moral do cristianismo, não se negarão a reagir a uma tal acusação, e contra a obra na qual ela é desenvolvida. Mas não é para eles em primeira instância que este trabalho foi escrito. Foi escrito para todos aqueles que, rotulados de católicos, protestantes, protestantes luteranos, protestantes reformados, anglicanos ou judeus, veem a religião como tendo por objetivo essencial a moral; para todos aqueles que, garantindo-se a mais vasta liberdade de culto e dogma, estão longe de enxergar a moral com indiferença, e sentem necessidade ininterrupta de purificá-la e aperfeiçoá-la, e de estender seu domínio sobre todas as classes da sociedade, preservando seu caráter religioso. Finalmente, foi escrito para aqueles que percebem que há algo verdadeiramente sublime, divino, no cristianismo primitivo - a predominância da moral sobre a lei, quer dizer, sobre o culto e o dogma; que percebem que o propósito do culto e do dogma é fixar a atenção dos fiéis na moral divina. Deste ponto de vista, críticas ao catolicismo, ao protestantismo e a outras seitas cristãs são indispensáveis, desde que é evidente que nenhuma delas realizou a visão do fundador do cristianismo. Esse desejo de purificar a moral, de simplificar o culto e o dogma, impele muitas pessoas a formar uma seita particular de protestantismo; por exemplo, a religião denominada reformada, como a transição inevitável para uma nova ordem religiosa, ou até mesmo como a forma final. Eles fundamentam essa opinião nos elementos desta forma particular de religião que a traz para mais perto do espírito do cristianismo que qualquer outra, e eles se levantarão certamente para rechaçar quaisquer traços que eles julguem nivelá-los ao protestantismo. Há só uma resposta a este argumento: a espécie humana não é confinada à imitação. Acontece frequentemente que enquanto nós apreciamos os benefícios derivados de uma época anterior, de adotar uma convicção particular, ou uma instituição, nossa aprovação do que já foi realizado deveria ser acompanhada pela construção de uma convicção e de uma instituição ainda melhores. Qualquer erro neste ponto é prejudicial, embora passageiro.
Quanto àqueles que consideram as ideias de divindade e revelação como conceitos que podem ter sido de algum valor em tempos de ignorância e barbárie, mas seu uso no século XIX como contrário à filosofia; que pensam que podem refutar o autor deste livro por uma zombaria voltairiana, esses provavelmente tentarão achar em seus pretendidos sistemas filosóficos uma definição de moral mais universal, mais simples e mais popular que o princípio cristão. E se eles não conseguem substituí-la pela pura razão e pela lei natural reveladas nos corações dos homens, não há dúvida de que restaria uma mera discussão sobre palavras; em todo caso, logo eles veriam quanta incerteza e quanto vazio há em sua linguagem. Se eles persistirem duvidando da excelência sobre-humana do princípio cristão, pelo menos teriam de respeitá-lo como o princípio de maior universalidade que os homens alguma vez puseram em prática, como a mais elevada concepção que foi produzida em dezoito séculos. Diálogo Entre um Conservador e um Reformador Primeiro Diálogo Conservador. Tu acreditas em Deus? Reformador. Sim, eu acredito em Deus. C. Acreditas que a religião cristã tem uma origem divina? R. Sim, eu acredito. C. Se a religião cristã é de origem divina, ela não é suscetível de melhoria; contudo em teus escritos tu conclamas aos artistas, aos industriais e aos cientistas a aperfeiçoar essa religião. Assim, tu entras em contradição, pois tua opinião e tua fé estão em oposição. R. A oposição que crês apontar entre minha fé e minha opinião é apenas aparente; nós temos de distinguir o que o próprio Deus disse do que a Igreja tem dito em seu nome. As palavras de Deus não são certamente objeto de melhoria, mas o que a Igreja diz em nome de Deus consiste em um corpo de conhecimentos que está aberto à melhoria, como qualquer outro tipo de conhecimento humano. A teologia precisa ser atualizada de tempos em tempos, assim como a física, a química e a fisiologia. C. Que parte do cristianismo tu consideras divina, e que parte consideras humana? R. Deus disse que 'os homens devem tratar-se uns aos outros como irmãos'. Este princípio sublime inclui tudo aquilo que é divino na religião cristã. C. O quê? Tu reduzes a um único princípio tudo aquilo que há de divino no cristianismo! R. Naturalmente Deus reportou tudo a um único princípio, e de um mesmo princípio ele necessariamente deduziu tudo - caso contrário, Sua vontade, no entendimento dos homens, não teria tido coerência. Seria blasfêmia afirmar que o Todo-poderoso fundamentou Sua religião em princípios variados.
Agora, de acordo com este princípio dado aos homens por Deus como um guia para sua conduta, eles devem organizar sua sociedade do modo que seja mais vantajoso para o maior número; eles devem visar a esse objetivo em todos os seus empreendimentos e ações, promover prontamente e o mais completamente possível o bem-estar moral e físico da classe mais numerosa. Eu digo que nisto, e somente nisto, consiste a parte divina da religião cristã. C. Eu admito que Deus tenha dado aos homens um único princípio. Eu admito que Ele tenha ordenado que os homens organizem sua sociedade de modo a garantir para a classe mais pobre a melhoria mais rápida e mais completa de sua condição moral e física; mas eu te mostrarei que Deus deixou diretrizes para a espécie humana. Antes de voltar ao céu, Jesus Cristo encarregou seus apóstolos e sucessores de guiar a conduta do gênero humano, ensinando-lhes o modo como eles deveriam levar a cabo o princípio fundamental da moral divina, mostrando-lhes os meios para tirar as conclusões corretas. Reconheces a Igreja como uma instituição divina? R. Eu acredito que o próprio Deus fundou a Igreja Cristã; sou dotado do mais profundo respeito e da maior admiração pelo comportamento dos pais desta Igreja. Os líderes da Igreja primitiva pregavam corajosamente a união de todo o povo, eles o exortaram a viver de um modo pacífico; declararam positiva e energicamente aos poderosos que seu primeiro dever era empregar todos os seus recursos na melhoria mais rápida da condição moral e física dos pobres. Esses líderes da Igreja primitiva compilaram o melhor livro que já foi publicado, o catecismo primitivo, no qual eles dividiram as ações dos homens em dois tipos, as boas e as más, quer dizer, aquelas que são conformes com o princípio fundamental da moral divina e aquelas que são contrárias a esse princípio. C. Desenvolve tuas ideias, e diz-me: consideras que a Igreja Cristã é infalível? R. No caso de a Igreja ter como líderes homens que são os mais capazes de dirigir as energias da sociedade para o propósito divino, eu creio que a Igreja pode ser considerada infalível, sem inconveniente, e que a sociedade age sabiamente deixando-se conduzir por ela. Eu considero os pais da Igreja como tendo sido infalíveis para a época em que eles viveram; enquanto o clero de hoje parece a mim, de todas as corporações, aquela que comete os maiores erros - enganos que são os mais prejudiciais à sociedade; e sua conduta mostra-se diretamente contrária ao princípio fundamental da moral divina. C. Em teu modo de ver, então, a religião cristã está numa situação péssima? R. Muito pelo contrário. Nunca foi tão grande o número de bons cristãos, mas hoje eles se encontram quase todos na categoria do laicismo. A religião cristã perdeu, após o século XVI, sua unidade de ação. Depois daquele tempo não existiu mais um clero cristão. Todos os clérigos que hoje tentam impor suas opiniões, sua moral, seus cultos e seus dogmas acima do princípio da moral que o gênero humano recebeu de Deus são hereges, porque suas
opiniões, sua moral, seus dogmas e seus cultos estão, em maior ou menor grau, em oposição à moral divina. O clérigo que é o mais poderoso de todos é também aquele cuja heresia é a mais forte. C. O que acontecerá à religião cristã se, como tu pensas, esses homens responsáveis por ela se tornaram os hereges? R. O cristianismo se tornará a religião universal e única. Serão convertidas a Ásia e a África; os membros do clero europeu se tornarão bons cristãos, e abandonarão as diferentes heresias que eles apoiam hoje. A verdadeira doutrina do cristianismo, quer dizer, a doutrina mais universal que pode ser deduzida do princípio fundamental da moral divina, será percebida, e imediatamente as diferenças de opiniões religiosas desaparecerão. A doutrina cristã até aqui só tem dado à sociedade uma organização parcial e incompleta. Os bens de César permaneceram independentes dos bens atribuídos à Igreja. 'Dai a César o que é de César' - tal é a famosa máxima que separou os dois poderes. O poder temporal continuou fundamentando seu poder na lei do mais forte, enquanto a Igreja manteve que a sociedade só deveria reconhecer como legítimas as instituições que apontam para a melhoria da condição da classe mais pobre. A nova organização cristã fundará instituições temporais como também espirituais sob o princípio de que todos os homens devem tratar-se uns aos outros como irmãos. Dirigirá todas as instituições, de qualquer natureza, para a melhoria do bem-estar da classe mais pobre. C. Sobre quais evidências fundamentas esta opinião? O que te faz acreditar que um único princípio moral virá a governar todas as sociedades humanas? R. A moral mais universal, a moral divina, tem de se tornar a única moral; é consequência de sua natureza e de sua origem. O povo de Deus, que recebeu a revelação antes do aparecimento de Jesus, aquele que mais amplamente se espalhou sobre toda a superfície do globo, sempre sentiu que a religião cristã, fundada pelos pais da Igreja, estava incompleta. Aquelas pessoas sempre afirmaram que uma grande era chegará, à qual eles deram o nome de messiânica, uma era na qual a doutrina religiosa será apresentada nas condições mais universais de que ela é capaz, que regulará igualmente as ações do poder temporal e do poder espiritual, e que então toda a espécie humana terá a mesma religião e a mesma organização. Em resumo, eu tenho uma ideia clara da nova doutrina cristã, e eu procederei a expô-la; então passarei em revista todas as instituições espirituais e temporais que existem na Inglaterra, na França, na Alemanha, a do norte e a do sul, na Itália, na Espanha, na Rússia, na América do Norte e na América do Sul. Compararei as doutrinas destas diferentes instituições com a que é derivada do princípio fundamental da moral divina, e eu farei todo homem de boa fé e de boas intenções compreender facilmente que, se todas essas instituições forem dirigidas com o propósito de promover o bem-estar moral e físico da classe mais pobre, eles farão prosperar todas as classes e todas as nações com a maior velocidade possível.
Eu sou um reformador porque eu tiro as consequências mais diretas do princípio fundamental da moral divina - um passo que não havia sido dado até agora. Aqueles que, como eu, têm o mesmo zelo pelo bem-estar público, mas são governados pelo espírito conservador, limitem sua tarefa a essa de impedir que homens percam de vista o princípio que eu desejo estender. Reunamos nossos esforços. Eu exporei minhas ideias; combatam-nas quando lhes parecer que eu me afastei da orientação dada aos homens pelo Todo-poderoso. É com grande confiança que empreendo esta tarefa. O melhor teólogo é aquele que faz a aplicação mais geral do princípio fundamental da moral divina; o melhor teólogo é o verdadeiro papa, o vigário de Deus na terra. Se as deduções que eu fizer estiverem corretas, se a doutrina que eu vier a expor estiver sã, eu terei falado em nome de Deus. Entrarei então no assunto. Começo examinando as diferentes religiões que existem no momento, e comparando suas doutrinas com a que é derivada diretamente do princípio fundamental da moral divina. As religiões O novo cristianismo será composto de grupos semelhante a esses que compõem as diversas associações heréticas que existem hoje na Europa e na América. O novo cristianismo, como as associações heréticas, terá sua moral, seu culto e seu dogma; terá seu clero, e sua hierarquia. Mas, apesar desta semelhança de organização, o novo cristianismo será purgado de todas as heresias que existem hoje. A doutrina da moral será considerada pelos novos cristãos como a mais importante; o culto e o dogma serão considerados apenas como características secundárias, com a finalidade de fixar a atenção dos fiéis todas as classes sobre a moral. No novo cristianismo toda a moral será derivada diretamente deste princípio: 'Os homens devem tratar-se uns aos outros como irmãos'. E este princípio; que pertence ao cristianismo primitivo, sofrerá uma transfiguração pela qual será proclamado como o propósito de toda a atividade religiosa. Este princípio, regenerado, será proclamado como segue: a religião deve guiar a sociedade para o grande propósito de melhorar tão depressa quanto possível a condição da classe mais pobre. Os fundadores do novo cristianismo e que devem liderar a nova igreja, devem ser aqueles homens que são os mais capazes de contribuir com seus esforços para a melhoria do bem-estar da classe mais pobre. As funções do clero serão limitadas a ensinar a nova doutrina cristã, a cujo aperfeiçoamento os líderes da Igreja devem se aplicar continuamente. Eis, em poucas palavras, o modo como o verdadeiro cristianismo deve se desenvolver nas condições presentes. Compararemos esta concepção de instituições religiosas com as religiões hoje existentes na Europa e na América. Desta comparação faremos facilmente ressaltar que todas as religiões hoje denominadas
cristãs são nada mais que heresias, quer dizer, elas não apontam diretamente para a melhoria, o mais rapidamente possível, do bem-estar da classe mais pobre, que é o objetivo exclusivo do cristianismo. A religião católica A associação católica apostólica romana é a maior de todas as sociedades religiosas europeias e americanas, e ainda possui várias grandes vantagens sobre as outras seitas às quais estão ligados os habitantes destes dois continentes. Ela sucedeu imediatamente a sociedade cristã, o que lhe dá um certo verniz de ortodoxia. Seu clero herdou uma grande parte das riquezas acumuladas pelos clérigos cristãos nas vitórias incontáveis que eles obtiveram durante quinze séculos, lutando por uma aristocracia de talento contra uma aristocracia de nascimento, e afirmando a supremacia religiosa dos homens pacíficos sobre os homens militares. Os líderes da Igreja Católica retiveram a soberania da cidade que durante vinte séculos dominou o mundo, primeiro por meio das armas, em seguida pela onipotência da moral divina. É no Vaticano que os Jesuítas delineiam hoje os meios para dominar a espécie humana por um sistema odioso de misticismo e astúcia. A sociedade católica apostólica romana é ainda inquestionavelmente muito poderosa, embora tenha sido consideravelmente enfraquecida depois do pontificado de Leão X, que foi seu fundador. Mas o poder que esta associação possui não é só uma força material, e é mais por meio de astúcia que ela se mantém. A força espiritual, a força moral, a força cristã, que lhe deram franqueza e lealdade, estas lhe faltam completamente. Em uma palavra, a religião católica apostólica romana não é mais que uma heresia cristã, uma porção do cristianismo degenerado. Eu digo que os católicos são hereges, e eu provarei. Provarei que o renascimento do cristianismo lançará fora a Inquisição, e livrará a sociedade dos Jesuítas e de suas doutrinas maquiavélicas. O verdadeiro cristianismo comanda todos os homens que se tratem uns aos outros como irmãos. Jesus Cristo prometeu vida eterna àqueles que mais contribuírem para a melhoria da condição da classe mais pobre no sentido moral e físico. Assim, os líderes da Igreja Cristã devem ser escolhidos no meio dos homens que sejam os mais capazes de dirigir os empreendimentos com vistas a aumentar o bem-estar da classe mais numerosa; e o clero deve ocupar-se principalmente de ensinar aos fiéis a conduta que eles devem ter para promover o bem-estar da maioria da população. Examinemos agora como a Sagrada Congregação esteve composta desde Leão X, fundador da Igreja católica apostólica romana. Examinemos o conhecimento que a congregação exige daqueles que são admitidos ao sacerdócio. Vejamos quais são os melhoramentos moral e físico que a classe pobre experimentou nos Estados eclesiásticos, que deveriam servir de modelo a outros
governos. Finalmente, examinemos o ensino que é dado pelo clero católico aos fiéis de sua comunhão. Eu desafio o papa, que reivindica ser cristão, que reivindica ser infalível, e assume o título de Vigário de Jesus Cristo, a responder claramente e sem recurso a locuções místicas, as quatro acusações de heresia que eu trarei agora contra a Igreja católica. Eu acuso o papa e sua Igreja de heresia, primeiro, na conta seguinte. O ensino dado pelo clero católico aos leigos de sua comunhão é vicioso, porque não guia sua conduta em vias cristãs. O cristianismo propõe aos fiéis como objetivo neste mundo melhorar a condição moral e física do pobre tão depressa quanto possível. Jesus Cristo prometeu vida eterna àqueles que trabalharem com o maior zelo para a melhoria do bem-estar da classe mais numerosa. O clero católico, como qualquer clero, deve, pois, ter como missão a tarefa de despertar o zelo de todos os membros da sociedade para trabalhar pelo bem comum. O clero deve usar de todos os meios intelectuais e todos os seus talentos em todos os lugares para mostrar ao leigo nos sermões e nas discussões familiares que a melhoria da existência da classe mais baixa traz inevitavelmente o aumento do real bem-estar das classes mais altas; pois Deus considera todos os homens, até mesmo os ricos, como Seus filhos. Então o clero deve, no ensino dado às crianças, nos sermões feitos aos fiéis, nas preces que endereçam aos céus, em todos os aspectos de seu culto e de seus dogmas, fixar a atenção de sua congregação neste fato importante: que a imensa maioria da população possa desfrutar de uma existência moral e física muito mais satisfatória que aquela de que ela desfruta no momento, e que o rico, aumentando o bem-estar do pobre, melhorará sua própria existência. Eis a conduta que o verdadeiro cristianismo ordena ao clero. Será agora fácil mostrar as falhas no ensino dado pelo clero católico aos que aceitam suas crenças. Se nós inspecionamos a massa de trabalhos escrita sobre o dogma católico com a aprovação do papa e da Sagrada Congregação, se nós examinamos todas as preces sancionadas pelos líderes da Igreja, para serem recitadas pelos fiéis, tanto leigos quanto eclesiásticos, em nenhuma parte acharemos o propósito da religião cristã afirmado claramente. As ideias de moral encontram-se em pequeno número daqueles escritos, e não constitui um corpo coerente de doutrina: eles se espalham por esta massa enorme de volumes que são principalmente compostos de repetições tediosas de certas concepções místicas - concepções que não dão nenhuma orientação e que, pelo contrário, tiram da mira os princípios da moral sublime de Cristo. Seria injusto desferir uma acusação de inconsistência contra a enorme coleção de preces aprovadas pelo papa. Deve ser reconhecido que a escolha destas orações esteve baseada em um plano sistemático; deve ser reconhecido que a Sagrada Congregação guia os fiéis a um objetivo, mas está claro que este objetivo não é o propósito cristão, mas um herético, que é o de persuadir os leigos de que eles não podem governar suas próprias ações por sua própria inteligência, e que eles devem
se pôr sob a direção do clero, sem que o clero tenha qualquer obrigação de mostrar uma maior capacidade que aquela que possui. Todas as partes do culto e todos os princípios do dogma católico têm obviamente como objetivo reduzir o leigo à dependência absoluta do clero. A primeira acusação de heresia que eu trago contra o papa e contra sua Igreja, sobre o mau ensino que eles dão aos católicos, está então provada. Eu acuso o papa e os cardeais de heresia nesta segunda conta: eu os acuso de não possuir os conhecimentos que lhes tornariam capazes de guiar os fiéis à salvação. Eu os acuso de fornecer uma má educação aos seminaristas, e de não assegurar a eles a instrução de que eles precisam para se tornar pastores dignos, capazes de guiar os rebanhos que lhe devem ser confiados. A teologia é a única matéria de conhecimento ensinada nos seminários, a única ciência que o papa e os cardeais acreditam-se obrigados a cultivar. A teologia é o conhecimento requerido pelo líder da Igreja àqueles que, como vigários, bispos, arcebispos, etc., destinam-se a guiar a conduta dos fiéis. Agora eu pergunto: o que é teologia? E eu acho que é a ciência da discussão das questões relativas ao dogma e ao culto. Esta ciência é inquestionavelmente a mais importante de todas para os clérigos heréticos, sendo esperado que ela lhes forneça os meios de limitar a atenção dos fiéis sobre minúcias, e de fazer os cristãos desviarem-se do grande propósito terrestre a que eles devem se propor para obter a vida eterna, quer dizer, a melhoria, do modo mais rápido possível, da condição moral e física da classe pobre. Mas a teologia não deveria ter muita importância para um clero verdadeiramente cristão, que só deveria considerar o culto e o dogma como acessórios para a religião, enfatizando a moral como a única verdadeira doutrina religiosa, e deveria usar o dogma e o culto apenas como meios, úteis às vezes, para concentrar sobre ela a atenção de todos os cristãos. O clero católico romano foi ortodoxo até a ascensão de Leão X ao trono papal, porque até aquela época ele era superior aos leigos em todas as ciências cujo progresso tenham contribuído para o aumento do bem-estar da classe mais pobre. Desde então ele se tornou herético, porque não cultivou nada mais que teologia, e porque se permitiu ser ultrapassado pelos leigos nas artes, nas ciências exatas e na esfera industrial. A acusação de heresia que eu trago contra o papa e os cardeais, quanto ao mau uso que eles fazem de sua inteligência e quanto à educação ruim que eles dão aos seminaristas, está provada então. Eu acuso o papa de agir de modo herético em uma terceira conta: eu o acuso de ter uma conduta governamental mais oposta aos interesses morais e físicos da classe mais pobre de seus súditos temporais que qualquer príncipe laico frente a seus súditos pobres. Que se olhe ao longo de toda a Europa e se constatará que a administração dos Estados papais é a mais viciosa e anticristã.
Grandes territórios, que foram parte do domínio de São Pedro e que uma vez produziram grandes colheitas, foram depois convertidos em pântanos pestilentos pela negligência do governo papal. Uma grande parte do território, se não submergiu na água, mantém-se inculta, o que não se deve atribuir à esterilidade da terra, mas à falta de incentivo ao ofício da agricultura nos Estados papais. Esta ocupação, que não oferece consideração nem lucro suficiente, é pouco procurada; os homens que possuem habilidade ou capital evitam-na. O papa não só reteve o monopólio de todos os produtos agrícolas importantes, mas também de todos os bens de primeira necessidade, e ele concede estes monopólios aos cardeais que ganham o favor dele. Finalmente, não há nenhuma atividade de fabricação nos Estados papais, embora os bons custos de mão de obra pudessem fazer o desenvolvimento das fábricas lucrativo. Isto é somente devido às falhas da administração. Todos os ramos da indústria acham-se paralisados. Os pobres precisam de trabalho, e morreriam de fome se as fundações religiosas, quer dizer, governamentais, não os alimentassem. Os pobres alimentados por caridade, alimentam-se mal; assim, suas condições físicas são deploráveis. Sua condição moral está até mesmo mais miserável desde que eles vivem na ociosidade, que é a mãe de todos os vícios e do banditismo de cuja infelicidade o país está infestado. A terceira acusação de heresia que eu trago contra o papa, quando ao modo vicioso e anticristão com que ele governa seus assuntos temporais, está então provado. Eu acuso o papa e todos os cardeais, acuso todos os papas e cardeais que vieram depois do século XV, de heresia nesta quarta conta: acuso-os de ter permitido a formação de duas instituições diametralmente opostas ao espírito cristão, que são a Inquisição e a ordem dos Jesuítas. Eu os acuso de ter desde então, quase sem interrupção, protegido estas instituições. O espírito do cristianismo é doçura, bondade, caridade, e acima de tudo, honestidade; suas armas são a persuasão e o exemplo. O espírito da Inquisição é de despotismo e ganância, suas armas são a violência e a crueldade. O espírito da organização jesuítica é o egoísmo, e é por meio da astúcia que eles se esforçam para alcançar seu objetivo, que é o de exercer completo domínio sobre o clero, como também sobre os leigos. A ideia da Inquisição é radicalmente viciosa e anticristã. Mesmo que a Inquisição tivesse matado dentro de seus autos-de-fé só aqueles que fossem culpados de se opor à melhoria moral e física dos pobres, até mesmo neste caso (que teria condenado à morte a totalidade da Sagrada Congregação), ela teria sido herege, desde que Jesus não permitiu nenhuma exceção, proibindo o uso de violência em sua Igreja. Mas a heresia da Inquisição teria sido venial neste caso comparada à heresia que eles mostraram em suas atividades cruéis.
As condenações pronunciadas pela Inquisição foram baseadas apenas em crimes artificiais contra o culto ou o dogma, que deveriam ter sido considerados não mais que como ofensas secundárias, não como crimes passíveis de pena de morte. Essas condenações sempre tiveram por objetivo fazer o clero católico todopoderoso, sacrificando a classe dos pobres aos leigos ricos e poderosos, sob o entendimento de que esses últimos se deixaram dominar em todas as coisas pelo clero. Quanto à Companhia de Jesus, o célebre Pascal analisou tão bem o espírito, a conduta e os propósitos, que eu farei não mais que reportar os fiéis às 'Cartas Provinciais'. Eu somente acrescentarei que a nova Companhia de Jesus é infinitamente mais desprezível que a velha, porque tenta restabelecer aquela preponderância do dogma e do culto sobre a moral, preponderância que foi destruída pela Revolução, enquanto que os primeiros Jesuítas apenas se esforçaram para manter os abusos que já se tinham introduzido na Igreja a esse respeito. Os Jesuítas antigos defendiam uma ordem de coisas que existia; os Jesuítas novos se rebelam contra a nova ordem de coisas, mais moral que a antiga, que tende a se estabelecer. Os missionários atuais são verdadeiros anticristos, pois pregam um código de moral completamente oposto àquele do Evangelho. Os apóstolos eram os defensores dos pobres; estes missionários são os defensores dos ricos e poderosos contra os pobres, que só acham defensores agora entre os moralistas laicos. A religião protestante A civilização europeia alçou grandes voos a partir do século XV. Grandes descobertas e rápido progresso foram alcançados em muitos campos de utilidade prática, e isso se deu quase que exclusivamente devido ao trabalho laico. A descoberta da América deveu-se ao gênio perseverante de Cristóvão Colombo; leigos portugueses abriram uma rota nova para a Índia contornando o Cabo da Boa Esperança; a imprensa foi criada e aperfeiçoada por leigos; Dante, Ariosto e Tasso eram leigos; Leigos eram também Rafael, Miquelângelo e Leonardo da Vinci. As três grandes leis das quais Newton deduziu os fenômenos do Universo foram formuladas primeiro por Kepler, um leigo. Os Médicis, que aumentaram e estimularam o comércio europeu, que desenvolveram a agricultura e a indústria, eram leigos; e eles adquiriram tal prestígio social que sua família subiu ao grau de uma casa real, e eles tiveram um papel que poderia ser descrito como preponderante no poder temporal. Os leigos alcançaram uma clara superioridade sobre os clérigos, enquanto que as ciências ditas profanas ultrapassaram os limites em que se achavam enclausuradas as deduções tiradas pela Igreja dos princípios da moral divina fundados por Jesus. O papa e os cardeais já não possuíam a capacidade necessária para guiar o clero cristão, e o clero cristão não estava mais em condições de guiar os fiéis.
De outro ponto de vista, a corte de Roma perdeu nesse período muito do apoio que tinha obtido até então na classe dos plebeus contra a dos patrícios, e na classe populares contra a nobreza e os poderes feudais. O fundador divino do cristianismo ordenou a seus apóstolos um esforço ininterrupto para elevar as classes mais baixas da sociedade, e minorar a importância daqueles que se achavam investidos do poder de comando e legislação. Até o século XV a Igreja seguiu exatamente esse preceito cristão. Quase todos os cardeais e papas vinham da classe plebeia, e frequentemente eles surgiam de famílias ligadas às ocupações mais subalternas. Por essa política o clero se esforçou com perseverança para diminuir a importância e o prestígio da aristocracia hereditária, e sujeitá-la a uma aristocracia intelectual. Ao término do século XIV a Sagrada Congregação mudou completamente seu objetivo. Renunciou à orientação cristã para adotar uma política completamente mundana; o poder espiritual deixou de lutar contra o poder temporal; já não se identifica mais com as classes sociais mais pobres, e não mais trabalha para dotá-las de importância; já não se esforça mais para impor uma aristocracia intelectual à aristocracia hereditária. Adotou um plano cujo propósito era preservar o poder e as riquezas adquiridas pelos esforços da igreja militante, e desfrutar desse poder e dessa riqueza sem esforço e sem cumprir qualquer função útil à sociedade. Para atender a esse propósito, a Sagrada Congregação se pôs sob a proteção do poder temporal contra o qual tinha lutado anteriormente, e fez com os reis um pacto profano: “Nós usaremos toda nossa influência com os fiéis para estabelecer em vosso favor o poder absoluto; nós declararemos que vós sois reis pela graça de Deus; nós ensinaremos o dogma da obediência passiva; nós estabeleceremos a Inquisição pela qual vós tereis a vossa disposição um tribunal que não está sujeito a nenhuma regra; nós criaremos uma nova ordem religiosa nova a que chamaremos a Companhia de Jesus”. “Esta Companhia estabelecerá um dogma diametralmente oposto àquele do cristianismo, e se encarregará de subordinar aos olhos de Deus os interesses dos pobres aos interesses dos ricos e poderosos”. “Em troca destes serviços, e de nossa subordinação ao poder temporal que é profano em sua origem porque suas propriedades são fundadas na lei do mais forte, e como compensação a nossa traição para com os pobres, a quem nosso divino fundador nos ordenou defender os interesses e fazer valer os direitos, nós vos exigimos que preserveis a propriedade ganha pelo trabalho apostólico da igreja militante, e nós vos exigimos que nos mantenhais no usufruto de nossos privilégios honoríficos e pecuniários concedidos por vossos antecessores”. Esse pacto profano, concebido pela Sagrada Congregação ao término do século XV, foi executado, em suas linhas principais, no começo do século XVI. Foi nesse momento que Leão X ascendeu ao trono papal, um evento notável nos anais da religião, e um evento até hoje não explorado suficientemente pelos pensadores cristãos.
Os primeiros chefes da Igreja eram escolhidos pelos fiéis, e o motivo exclusivo para a eleição deles era seu zelo para com o bem dos pobres, e sua habilidade para descobrir meios de melhorar a condição moral e física da classe mais numerosa. Quando os chefes da Igreja obtiveram a soberania de Roma e fizeram dela a capital do mundo cristão, quando foi centralizado o poder sacerdotal nas mãos de um papa, o fator controlador nas eleições papais era a habilidade do candidato escolhido pela Sagrada Congregação de esmagar a aristocracia hereditária sob o peso da aristocracia intelectual. Mas os motivos para a eleição de Leão X foram muito diferentes, ao contrário daqueles que guiaram os eleitores anteriores, cujas intenções eram mais ou menos cristãs. Naquela ocasião os cardeais agiram sob o plano que tinham adotado, como eu já mostrei. Eles se propuseram unicamente a preservar ao clero suas riquezas e a aumentar seus privilégios mundanos. Leão X era da natureza dos materiais dos quais os reis são feitos, consequentemente não satisfatória para se fazer um papa. Na realidade, toda a sua conduta mostra que ele se prendeu mais a seus direitos de nascimento que àqueles derivados do papado. Ele organizou o círculo cerimonial junto à pessoa dele como o de uma corte que tivesse um chefe laico. Sua irmã teve em Roma um palácio e uma corte de princesa, não em virtude do parentesco dela com o papa, mas da posição dela como filha do príncipe laico de posição mais importante na Itália. Leão X era protetor de poetas, pintores, arquitetos, escultores, e estudantes. Ele protegeu todos os gregos eruditos que se refugiaram na Itália naquele momento, mas ele agia nisso como um príncipe temporal, e só para obter fruição para ele e acrescentar um brilho mundano a seu reinado. Um verdadeiro papa teria tirado proveito do avanço da civilização europeia em toda esfera importante nesse período para harmonizar o trabalho dos estudantes, artistas e grandes líderes industriais com os interesses do clero e dos pobres, contra as reivindicações hereditárias do poder temporal, profano em sua origem, como eu expliquei acima, porque suas propriedades originais foram fundadas no direito de conquista, quer dizer, na lei do mais forte. As primeiras indulgências papais foram concedidas em troca de trabalhos socialmente benéficos, como a construção de pontes, estradas, etc. As indulgências posteriores foram concedidas a fiéis de uma época em que a autoridade papal, tendo acumulado grande riqueza e poder temporal, tinha já começado a sofrer declínio moral. Os papas desviaram de seu propósito original as somas que provinham da venda de indulgências, e as usaram para satisfazer seus caprichos ou secundar sua ambição sacerdotal; entretanto eles ainda tinham cuidado para dar a suas atividades um propósito aparente de bem público. Leão X alterou completamente isso; ele tirou a máscara, e declarou publicamente que os lucros das indulgências plenárias, que ele ordenava que os dominicanos vendessem em nome da Santa Sé, deveriam ser usados para pagar os vestidos da irmã dele.
Leão X empreendeu explorar o papado como se fosse essencialmente um poder temporal; ele desejou taxar os fiéis exatamente do mesmo modo como teria feito se ele possuísse os direitos de um príncipe laico sobre eles. Em suas relações diplomáticas com Carlos V, Leão X se comportou muito mais como um príncipe da Casa de Médici que como um papa. O resultado foi que o papado deixou de ser uma fonte de apreensão para o Imperador, e Carlos V, que não se sentia mais contido pela autoridade eclesiástica, que era capaz apenas de opor uma barreira à ambição dos príncipes laicos, concebeu o plano de estabelecer em seu proveito uma monarquia universal, projeto que foi reavivado por Luís XIV e por Bonaparte. De Carlos Magno até o século XVI, nenhum príncipe europeu laico tinha tentado levar a cabo um tal projeto. Tal era a condição da única religião que existia então na Europa, quando Lutero começou sua revolta contra a corte de Roma. Os trabalhos deste reformador dividiram-se naturalmente em duas partes – a primeira, criticando a religião papal; a segunda, apontando para o estabelecimento de uma religião separada daquela governada pela corte de Roma. A primeira parte do trabalho de Lutero foi exequível e foi levada a cabo completamente. Por sua crítica à corte de Roma, Lutero prestou um importante serviço à civilização; sem ele, o papado teria sujeitado o espírito humano completamente a ideias supersticiosas, suprimindo todos os princípios morais. A Lutero devemos a destruição de um poder espiritual que não estava mais em harmonia com as condições sociais. Mas Lutero não podia lutar contra as doutrinas ultramundanas sem tentar reorganizar por si mesmo a religião cristã. É na segunda parte de suas reformas, na parte construtiva de seu trabalho, que Lutero deixou a seus sucessores muito por fazer; a religião protestante, como concebida por Lutero, é ainda nada mais que uma heresia. Certamente Lutero tinha razão ao dizer que a corte de Roma tinha abandonado as diretrizes dadas por Jesus a seus apóstolos, proclamando que o culto e os dogmas estabelecidos pelos papas não eram apropriados para fixar a atenção dos fiéis na moral cristã, e que, ao contrário, sua verdadeira natureza era a de ser apenas acessórios para a religião; mas, proclamando essas verdades indubitáveis, Lutero errou ao concluir que a moral deveria ser ensinada aos fiéis de seu tempo da mesma forma que os pais da Igreja ensinaram-na a seus contemporâneos. Ele não tinha base para concluir que o culto deveria ser despojado de toda a beleza de que as artes pudessem enriquecê-lo. A parte dogmática da reforma de Lutero é falha. A reforma está incompleta, e precisa passar por uma reformulação. Eu acuso os luteranos de heresia nesta primeira conta: acuso-os de adotar uma moral muito inferior àquela que deve ser apropriada aos cristãos na fase presente de sua civilização. Como a opinião pública dos europeus é favorável ao protestantismo, enquanto que é desfavorável ao catolicismo, eu tenho de demonstrar a heresia protestante com muita severidade, o que me obriga a tratar essa questão de um modo muito geral.
Jesus deixou a seus apóstolos e sucessores a tarefa de organizar a espécie humana do modo mais favorável à melhoria da sorte dos pobres, recomendando ao mesmo tempo a sua Igreja usar não mais que métodos de doçura, persuasão e demonstração para chegar a este propósito. Seriam requeridos muito tempo e muito trabalho para cumprir essa tarefa; assim, não é surpreendente que ela não tenha sido ainda realizada. Que parte dessa tarefa coube a Lutero? Como Lutero se encarregou disto? Eis os dois pontos que eu desejo clarificar. Para este propósito, eu examinarei sucessivamente quatro importantes fatos. (1) Qual era a organização da sociedade quando Jesus deu a seus apóstolos a missão de reorganizar a espécie humana? (2) Qual era na ocasião a organização da sociedade quando Lutero fez sua reforma? (3) Qual era a reforma completa de que a religião papal precisava para retomar a diretriz dada por Jesus a seus apóstolos, quando Lutero se rebelou contra a corte de Roma? (4) Em que consistiu a reforma de Lutero? A análise destas quatro questões principais levará inevitavelmente à conclusão de que os luteranos são hereges. (1) À época em que Jesus deu a seus apóstolos a missão sublime de organizar a espécie humana no interesse da classe mais pobre, a civilização ainda estava em sua infância. A sociedade foi dividida em duas classes principais: os mestres e os escravos. A classe dos mestres foi dividida em duas castas: a dos patrícios, que faziam as leis e preenchiam todos os postos públicos importantes, e a dos plebeus, que estavam sujeitos à lei que eles não tinham feito, e normalmente executavam as tarefas subalternas. Nem mesmo os maiores pensadores puderam conceber uma organização da sociedade em outras bases. Não existia ainda um sistema de princípios morais, uma vez que ninguém tinha descoberto ainda um modo de relacionar todos os princípios morais a um único princípio. Não existia ainda nenhum sistema religioso, desde que todas as religiões oficiais reconheciam um grande número de deuses, que inspiravam aos homens sentimentos diversos e mesmo opostos entre uns e outros. O coração humano não se tinha ainda elevado à consciência dos sentimentos filantrópicos. A noção de patriotismo era o princípio mais geral engendrado pelas mentes mais generosas, mas o sentimento patriótico era extremamente circunscrito, por causa da pequena extensão dos territórios e a pequena importância das populações das nações da antiguidade. Uma só nação, a nação romana, governava todas as outras, e o fazia arbitrariamente. O tamanho do planeta era desconhecido, de forma que nenhum plano geral podia ser concebido para melhorar a propriedade territorial da espécie humana.
Em resumo, o cristianismo, seus princípios morais, seu culto e seus dogmas, seus seguidores e seus ministros, começaram a perceber que eles estavam completamente fora da organização social, assim como de seus usos e costumes. (2) Na época em que Lutero fez sua reforma, a civilização tinha feito grandes progressos. Com o estabelecimento do cristianismo, a sociedade tinha alterado completamente sua face; a organização da sociedade se achava agora fundamentada em novas bases. A escravidão estava quase completamente abolida; os patrícios já não monopolizavam o direito de fazer as leis, nem o de exercer todos os cargos importantes; o poder temporal, profano em sua origem, já não dominava o poder espiritual, e o poder espiritual não estava mais nas mãos dos patrícios. A corte de Roma tinha se tornado a principal corte da Europa; com o estabelecimento do papado, todos os papas e quase todos os cardeais eram escolhidos na classe plebeia. A aristocracia intelectual tinha precedência sobre a aristocracia das riquezas, como também sobre a aristocracia hereditária. A sociedade tinha de forma combinada um sistema religioso e um sistema de moral, pois o amor a Deus e o amor ao próximo davam o caráter unitário aos sentimentos mais generosos dos fiéis. O cristianismo tinha se tornado a base da organização social; tinha substituído a lei do mais forte; o direito de conquista já não era considerado como o mais legítimo de todos os direitos. A América tinha sido descoberta; e a espécie humana, tendo alcançado conhecimento da extensão de seus domínios, estava em posição de fazer um plano geral de empreendimentos projetado para tirar o melhor partido da exploração do planeta. As atividades pacíficas tinham sido desenvolvidas e a precisão adquirida; as artes tinham começado a renascer; as ciências experimentais e a indústria começavam a se expandir. O sentimento filantrópico, a verdadeira base do cristianismo, tinha substituído o patriotismo em todos os corações mais generosos. Se todos os homens não agiam uns em relação aos outros como irmãos, pelo menos eles todos admitiam que eles deveriam considerar-se uns e outros como crianças de um mesmo pai. (3) se Lutero tivesse podido completar sua reforma, ele teria concebido e proclamado a seguinte doutrina, dizendo ao papa e aos cardeais: “Vossos antecessores aperfeiçoaram adequadamente a teoria do cristianismo, e a propagaram suficientemente. Os europeus a absorveram; agora vós deveis ocupar-vos da aplicação geral dessa doutrina. O verdadeiro cristianismo deve fazer os homens felizes, não apenas no céu, mas também na terra”. “Já não deveis manter os olhos dos fiéis fixados em ideias abstratas; é empregando convenientemente as ideias materiais, combinando-as para fazer a espécie humana obter o mais alto grau de felicidade atingível na terra, que vós alcançareis a realização do cristianismo, religião geral, universal e única”.
“Vós já não deveis limitar-vos a pregar aos fiéis de todas as classes que os pobres são as crianças queridas de Deus; vós tendes de usar corajosa e energicamente todos os poderes e métodos adquiridos pela igreja militante para melhorar rapidamente a existência moral e física da classe mais numerosa. O trabalho preliminar e preparatório do cristianismo terminou; a tarefa que vós tendes a cumprir é muito mais satisfatória que aquela realizada por vossos antecessores. Esta tarefa consiste em estabelecer o cristianismo universal e final; consiste em organizar toda a espécie humana de acordo com o princípio fundamental da moral divina”. “Para cumprir esta tarefa, vós tendes de fazer deste princípio a base e o propósito de toda instituição social”. “Os apóstolos tiveram de reconhecer o poder de César; eles tiveram de dizer que dessem a César o que é de César porque eles não eram suficientemente fortes para lutar contra ele, e tiveram de evitar fazer dele um inimigo”. “Mas hoje a posição comparativa dos poderes espirituais e temporais está completamente mudada, graças ao trabalho da igreja militante, e vós deveis declarar então aos sucessores de César que o cristianismo já não reconhece o direito deles ao domínio sobre os homens, um direito fundado na conquista, na lei do mais forte”. “Vós deveis declarar a todos os reis que o único modo de fazer a monarquia legitima é considerá-la como uma instituição cujo objetivo seja o de impedir os ricos e os poderosos de oprimir os pobres; vós deveis dizer a eles que o dever exclusivo deles é o de melhorar a condição moral e física da classe mais numerosa, e que toda despesa ordenada por eles na administração da riqueza nacional que não seja estritamente necessária é um crime e faz deles inimigos de Deus”. “Vós possuís toda a força necessária para compelir o poder temporal a aceitar esta aplicação do cristianismo; vossa supremacia é reconhecida por todos os poderes, e vós controlais o clero espalhado sobre toda a superfície da Europa. Os clérigos sempre terão uma influência predominante nas instituições temporais de todo o povo, se eles definitivamente trabalharem para a melhoria das condições dos pobres, que são em todos os lugares a classe mais numerosa”. “Eu passo a outra questão, e tenho esta segunda reclamação contra vós, Santo Padre. Sempre que duas nações cristãs estão em guerra uma contra a outra, elas estão ambas erradas, pois o divino fundador do cristianismo mandou todos os homens se tratarem uns aos outros como irmãos, e proibiu-os de usar quaisquer outros meios para resolver suas diferenças a não ser aqueles da persuasão e da demonstração”. “Vós deveis usar todo vosso poder papal, toda a influência do clero em todas as nações, para prevenir guerras; contudo, longe de agir deste modo, vós permitis ao clero das nações em guerra invocar ao lado delas o Deus das Batalhas, que não pode ser outra coisa senão uma divindade do paganismo; vós permitis que ambos os lados cantem o Te Deum no período pós-batalha. Vossa conduta a esse respeito, como a do clero, é sacrílega”.
“A união faz a força. Uma sociedade cujos membros entram em guerra uns contra os outros tende à dissolução. Vós haveis de exigir do clero a unidade de ação”. “E há outra unidade até mesmo mais importante a estabelecer - eu quero falar da unidade de propósito para os esforços dos cristãos, de toda a espécie humana. Há um propósito bem claro, bem universal, bem positivo, bem físico, que vós deveis apresentar ao gênero humano, para fazer o cristianismo prevalecer sobre o islamismo e sobre o budismo, da China e da Índia; sobre todas as religiões, e sobre todas as instituições temporais”. “O propósito geral que vós deveis apresentar aos homens em seus trabalhos é a melhoria da condição moral e física da classe mais numerosa; e vós deveis criar uma forma de organização social satisfatória para o encorajamento deste trabalho, e assegurar sua preponderância sobre todos os outros empreendimentos, por importantes que possam parecer”. “Para melhorar tão rapidamente quanto possível a condição da classe mais pobre, a circunstância mais favorável será aquela em que se achará uma grande quantidade de tarefas a executar, e em que os trabalhos exigirão o maior desenvolvimento da inteligência humana. Vós tendes o poder de criar estas condições. Agora que o tamanho de nosso planeta é conhecido, vós deveis fazer os cientistas, os artistas e os industriais prepararem um plano geral de empreendimentos projetados para tornar o domínio da espécie humana tão produtivo e agradável quanto possível em todos os sentidos”. “A imensa massa de empreendimentos que vós iniciareis imediatamente contribuirá mais efetivamente para a melhoria da sorte dos pobres que qualquer caridade poderia fazer, por mais abundante que fosse; e desse modo os ricos, longe de se empobrecerem por concessões pecuniárias, estarão mais enriquecidos, assim como os pobres”. “Até agora o clero, em suas atividades, ofereceu aos fiéis apenas um propósito metafísico, o paraíso celeste, e nisto resulta que os clérigos adquiriram poderes completamente arbitrários, dos quais eles têm abusado, da maneira mais extravagante e mais absurda. Alguns convenceram seus seguidores de que eles têm de flagelar a carne com açoites para atingir o paraíso; outros lhes exigiram que se martirizem com cilício, outros recomendaram jejum; uns dizem que eles têm de comer peixe, e se privar de carne; outros, que eles têm de pronunciar diariamente uma enorme quantidade de preces, principalmente quase todas insignificantes, e têm de escrever em um idioma ignorado pela maioria dos fiéis; outros dizem que eles têm de gastar grande parte do dia ajoelhados na igreja. São coisas que não contribuem, de nenhum modo, para a melhoria da sorte dos pobres”. “Essa conduta da Igreja era possível e inevitável nos dias iniciais da religião; mas hoje, quando nossas ideias neste assunto ficaram mais claras e mais precisas, a manutenção de tais mistificações será desonrosa à corte de Roma. Indubitavelmente todos os cristãos aspiram à vida eterna, mas o único modo de obter isso consiste em trabalhar nesta vida pelo bem-estar da espécie humana”.
“Santo Padre, a espécie humana sofre neste momento uma grande crise intelectual. Três novas atividades apareceram: as artes ressurgiram, a ciência está a ponto de predominar sobre todos os outros ramos do conhecimento, e as grandes organizações industriais promoverão a melhoria da sorte dos pobres mais diretamente que qualquer dos passos levados ate aqui pelos poderes temporais ou espirituais”. “Estas três atividades são de natureza pacífica; então é de seu interesse, e do interesse do clero, juntar-se a essas forças. Por esta união, vós podereis em pouco tempo e sem dificuldade organizar a espécie humana do modo mais favorável à melhoria da existência moral e física da classe mais numerosa. Por estes meios, o poder de César, que é profano em sua origem e em suas reivindicações, será completamente destruído”. “Se, pelo contrário, vós condenardes como profanas, ou como pouco agradáveis aos olhos de Deus, as artes, as ciências e as grandes organizações industriais; se vós tentardes manter vossa dominação sobre o gênero humano pelos métodos que vossos antecessores empregaram para adquiri-la na Idade Média; se vós continuardes a apresentar as ideias místicas como as mais importantes para a felicidade do gênero humano, então os artistas, os cientistas e os industriais estarão aliados a César contra vós. Eles abrirão os olhos das pessoas comuns sobre o absurdo de vossas doutrinas, sobre o abuso monstruoso de vosso poder, e então vós não tereis nenhum outro recurso para manter vosso lugar na sociedade, a não ser o de lançar mão dos instrumentos do poder temporal. César vos forçará a opor-vos ao progresso da civilização, mantendo as pessoas ocupadas com ideias místicas e supersticiosas, e privando-as, até onde possível, da educação nas artes, nas ciências experimentais e na organização industrial. Ele vos fará respeitar o poder temporal, contra o qual vós tendes estado em luta até o presente, desviando-vos de vosso grande pleito; pregar obediência passiva aos reis, estabelecer a regra de que eles não devem conta de seus atos a Deus e que, em nenhum caso, seus súditos podem negarlhes obediência sem com isso cometer crime. Eis os meios pelos quais vós preservareis vossa honra e vossa riqueza”. “Resta-me ainda, Santo Padre, falar-vos de um ponto muito importante”. “A unidade do papado, que não tem tido outra escolha que não a unidade de comando, bastou até aqui para coordenar as diferentes classes do clero, porque o clero (e uma porção do laicato) ainda era ignorante. Hoje em dia, esta unidade não pode mais prover um adequado liame; vós tendes de estabelecer claramente a unidade dos propósitos materiais dos trabalhos da Igreja. O papado tem de prestar contas de suas ações publicamente, e claramente mostrar como suas ações contribuem para a melhoria da existência moral e física da classe mais numerosa”. “Os papas têm de deixar de agir de acordo com motivos que eles guardam em segredo”. (4) Lutero era um crítico extremamente enérgico e capaz, mas foi apenas neste âmbito que ele mostrou habilidade marcante. Ele demonstrou vigorosa e completamente que a corte de Roma tinha abandonado os verdadeiros caminhos do
cristianismo; ele provou que, por um lado, Roma estava tentando constituir-se em um poder arbitrário, e que, por outro, buscou aliar-se aos poderosos contra os pobres; e que, então, os fiéis têm de obrigá-la a se reformar. Mas a parte de seu trabalho relacionada à reorganização do cristianismo foi muito inferior ao que deveria ter sido. Em vez de dar os passos necessários para aumentar a importância social da religião cristã, ele fez retroceder essa religião a seu ponto de partida. Ele deixou fora a reorganização social. Em consequência, reconheceu que o poder de César era o poder do qual todos os outros poderes emanam; e somente preservou para sua igreja o direito de petição humilde ao poder temporal. Por esses passos, ele consagrou as atividades pacíficas a manterem-se eternamente na dependência dos homens das paixões violentas e das capacidades militares. Desse modo, ele encerrou a moral cristã nos estreitos limites que o estado da civilização tinha imposto aos primeiros cristãos. A acusação de heresia que eu trago contra os protestantes, em relação à moral que eles adotaram, moral que está muito abaixo do nível presente de nossa civilização, está provada então. Eu acuso os protestantes de heresia na segunda conta: eu os acuso de terem adotado um culto defeituoso. Quanto mais a sociedade progride moralmente e fisicamente, mais os trabalhos manuais e intelectuais se subdividem; assim, no curso de seu trabalho diário, a atenção dos homens fixa-se em coisas de interesse cada vez mais especializado, como as artes, a ciência e o progresso da indústria. Disso resulta que, quanto mais a sociedade progride, mais necessário é que o culto seja aperfeiçoado; pois o culto tem por finalidade lembrar aos homens, quando eles se juntam periodicamente em dia de descanso, os interesses comuns a todos os membros da sociedade, os interesses comuns da espécie humana. O reformador Lutero e, após sua morte, os ministros das igrejas reformadas, deveriam ter buscado fazer o culto o mais adequado possível para lembrar os fiéis de seus interesses comuns. Eles deveriam ter buscado os meios e as condições mais favoráveis para desenvolver entre os fiéis o princípio fundamental da religião cristã, de que todos os homens devem tratar-se uns aos outros como irmãos, para habituar seu espírito com este princípio, e treiná-los a aplicar isto em todas as relações sociais, a fim de impedir que os homens percam totalmente de vista este princípio de vida, por mais especializadas que possam ser suas ocupações diárias. Ora, para chamar a atenção dos homens quanto a ideias desse tipo e dar-lhes um impulso forte há duas grandes maneiras: fazer excitar neles o terror pela via dos males terríveis que resultarão para eles se eles saem da conduta prescrita a eles, ou apresentar-lhes o incentivo dos usufrutos que seguirão a seus esforços ao longo dos caminhos postos ante eles.
Nestas duas circunstâncias, para produzir os resultados mais efetivos e mais úteis será necessário combinar todos os meios e todos os recursos oferecidos pelas artes. O pregador que naturalmente usa a eloquência, que é a primeira das artes, deve fazer tremer sua audiência descrevendo o estado miserável do homem que, nesta vida, merece a condenação das pessoas; ele deve mostrar o braço de Deus levantado contra os homens cujos sentimentos não são dominados pela filantropia. Ou então ele deve estimular em sua audiência os sentimentos mais enérgicos e mais generosos, fazendo-os sentir que a felicidade que vem de ser estimados pelas pessoas está acima de que qualquer outra forma de felicidade. Os poetas devem ajudar no trabalho dos pastores; eles devem produzir para o culto pequenos poemas a serem recitados em harmonia, de maneira a transformar todos os fiéis em instrutores uns dos outros. Os músicos devem enriquecer com seus acordes os poemas religiosos, e imprimir-lhes um caráter musical que penetre as profundezas da alma. Os pintores e escultores devem fixar no templo a atenção dos cristãos sobre as ações mais eminentemente cristãs. Os arquitetos devem construir os templos de maneira que os pregadores, os poetas, os músicos, os pintores e os escultores possam, à vontade, fazer nascer na alma dos fiéis os sentimentos de terror e os sentimentos de alegria e esperança. Estas são obviamente as linhas básicas que devem ser dadas ao culto, e os meios que devem ser empregados para fazê-lo útil à sociedade. O que fez Lutero a esse respeito? Ele reduziu o ritual da igreja reformada à simples pregação; fez de todos os sentimentos cristãos o mais prosaico possível; baniu de seus templos todos os ornamentos de pintura e escultura, e suprimiu a música, dando preferência aos edifícios religiosos, cujas formas são as mais insignificantes, e, por conseguinte, suprimiu os meios apropriados a despertar favoravelmente o coração dos fiéis para um sentimento forte dirigido ao bem-estar público. Os protestantes não deixarão de objetar obviamente que, enquanto os católicos têm muitos cânticos e se seus santuários estão enfeitados com os melhores trabalhos de pintura e escultura, os sermões do ministério reformado têm sobre suas congregações um efeito muito mais benéfico que todos os sermões dos padres católicos, cujo objetivo principal é sempre fazer os fiéis da comunhão papal dar tanto dinheiro quanto possível para a manutenção da igreja e do clero, e que, em consequência, é impossível negar a superioridade do culto protestante sobre o culto católico. A isto eu respondo: o objetivo de meu trabalho não é apontar qual das duas formas de religião é a menos herética. Eu empreendi mostrar que elas são ambas heréticas, em graus diferentes; quer dizer, que nenhuma delas é a religião cristã. Eu tentei mostrar que depois de quinze séculos o cristianismo foi abandonado; eu empreendi restabelecer o cristianismo em seu rejuvenescimento. Eu me proponho
fazer chegar a esta religião (eminentemente filantrópica em caráter) uma purificação que a livrasse de todas as crenças e práticas supersticiosas e inúteis. O novo cristianismo é chamado a alcançar o triunfo dos princípios da moral universal na luta que vai contra as forças que têm por objetivo obter um bem particular em vez do bem público. Esta religião rejuvenescida é chamada a organizar todas as pessoas em um estado de paz permanente, unindo-as contra a nação que tente fazer seu bem particular em detrimento do bem geral de toda a espécie humana, e mobilizando-as contra qualquer governo tão anticristão que sacrifique os interesses nacionais ao interesse privado dos governantes. Ela é chamada a juntar entre os fiéis os cientistas, os artistas e os industriais, e fazer deles os diretores gerais da espécie humana, como também dos interesses particulares de cada uma das pessoas individuais. Ela é chamada a pôr as artes, as ciências experimentais e a indústria à frente dos estudos sagrados, considerando que os católicos os puseram entre os ramos profanos de estudo. Finalmente, ela é chamada a pronunciar anátema sobre a teologia, e a condenar como ímpia qualquer doutrina que tente ensinar aos homens outro modo de obter a vida eterna que não seja o de trabalhar com todo o seu poder para a melhoria das condições de vida de seus semelhantes. Eu tenho mostrado claramente qual deve ser o culto, para cumprir o propósito de lembrar aos cristãos, no dia de descanso, sobre a moral cristã. Eu tenho provado conclusivamente que o culto protestante foi privado dos meios secundários mais efetivos para semear nas almas dos fiéis a paixão pelo bem público. Assim, eu declaro provada esta segunda acusação de heresia contra o protestantismo. Eu trago contra os protestantes uma terceira acusação de heresia: eu os acuso de adotar um falso dogma. Na infância da religião, à época em que as pessoas ainda estavam afundadas na ignorância, sua curiosidade não as incitava ao estudo dos fenômenos da natureza. A ambição do homem não tinha sido elevada a ponto de ele querer dominar seu planeta e de modelá-lo para sua vantagem própria; Os homens tinham então poucas necessidades das quais eles tivessem consciência clara, mas eles eram agitados pelas paixões mais violentas, fundadas sobre desejos e impulsos vagos, e principalmente sobre um pressentimento do poder que eles eram chamados a exercer sobre a natureza. O comércio, que depois civilizou o mundo, só existia em forma rudimentar; cada pequena tribo vivia em um estado de hostilidade permanente frente ao resto da espécie humana, e os habitantes de uma cidade não tinham nenhuma ligação moral com os membros de sua própria cidade. Assim, a filantropia ainda não podia existir nessa época, a não ser como uma ideia especulativa. Nessa mesma época, todas as nações estavam divididas em duas grandes classes, a dos mestres e a dos escravos. A religião podia ter um efeito forte apenas sobre os mestres, pois só eles tinham a capacidade de livre escolha. A moral não podia ser outra coisa que não o aspecto menos desenvolvido da religião, pois não havia nenhuma reciprocidade de direitos e deveres entre as duas grandes classes da sociedade. O culto e o dogma tinham de apresentar-se com muito maior importância
que a moral. As práticas religiosas, assim como os argumentos sobre o propósito dessas práticas e as crenças sobre as quais elas eram baseadas, eram os aspectos da religião que habitualmente deveriam ocupar os ministros dos altares e a massa dos fiéis. Em resumo, o lado material da religião jogava um papel tanto mais considerável quanto mais a instituição esteve mais próxima de suas origens; enquanto que o aspecto espiritual adquiriu hoje maior importância na medida em que a inteligência do homem vem se desenvolvendo. Hoje o culto deve ser considerado apenas como um meio de chamar a atenção dos homens, e seus dias de descanso, sobre os sentimentos filantrópicos, e o dogma não deveria ser concebido senão como uma coleção de comentários tendo por objeto a aplicação geral dessas considerações e desses sentimentos para com os grandes desenvolvimentos políticos que possam surgir, ou para facilitar aos fiéis a aplicação dos princípios morais em suas relações. Eu examinarei agora o que Lutero pensava sobre o dogma, em suas próprias palavras, e o que ele prescreveu aos protestantes a esse respeito. Lutero considerou o cristianismo como tendo sido perfeito em sua origem, mas que se deteriorou continuamente desde o tempo de sua fundação. Como um reformador, ele concentrou-se completamente nos erros cometidos pelo clero durante a Idade Média, e negligenciou o imenso progresso que os ministros dos altares legaram à civilização, e a importante posição social que eles fizeram adquirir os homens ocupados dos trabalhos pacíficos, diminuindo a força e o prestígio do poder temporal, aquele poder profano que tende por sua natureza a sujeitar os homens ao império da força física, e a governar as nações em seu próprio benefício. Lutero ordenou aos protestantes estudar o cristianismo nos livros escritos na época de sua fundação, e particularmente a Bíblia. Ele declarou que não reconheceria nenhum dogma que não tivesse sido exposto nas Escrituras Sagradas. Esta declaração de Lutero era tão absurda quanto seria se os matemáticos, físicos, químicos e todos os outros homens de ciência declarassem que suas particulares ciências deveriam ser estudadas nas primeiras obras que trataram do assunto. O que eu disse há pouco não é de nenhuma maneira contrária à crença na divindade do fundador do cristianismo. Jesus só poderia falar com os homens no idioma que eles podiam entender na ocasião em que Ele lhes falou. Ele deixou na mão dos apóstolos a semente do cristianismo, e fez sua Igreja responsável pelo desenvolvimento desta semente preciosa; Ele deixou à Igreja o dever de abolir todos os direitos políticos derivados da lei do mais forte, e todas as instituições que apresentassem obstáculo à melhoria da condição moral e física dos pobres. É observando os efeitos e analisando-os cuidadosamente que se adquirem os dados suficientes para poder juntar sobre as causas um julgamento fechado e preciso. Eu adotarei este caminho, e examinarei as dificuldades principais que surgiram a partir do erro que Lutero cometeu ao fixar a atenção dos cristãos exclusivamente sobre a Bíblia, de uma maneira muito especial. Deste exame, seguirá
naturalmente a conclusão de que minha terceira acusação de heresia contra a religião protestante está provada. Quatro grandes inconvenientes são o resultado da preocupação excessiva dos protestantes com o estudo da Bíblia. (1) Esse estudo da Bíblia os fez perder de vista as ideias positivas e os interesses presentes; deu-lhes um gosto pela pesquisa sem propósito e uma forte tendência para a metafísica. No norte de Alemanha, o berço do protestantismo, o vazio das ideias e dos sentimentos predomina nas escritas de seus filósofos mais famosos, e de seus romancistas mais populares. (2) Esse estudo da Bíblia manchou a imaginação por suas lembranças dos vários vícios vergonhosos que desapareceram com a civilização, como a bestialidade e o incesto em todas as formas concebíveis. (3) Esse estudo da Bíblia fixa a atenção em motivos políticos contrários ao bem-estar público; encoraja os governantes a estabelecer na sociedade uma igualdade que é absolutamente impraticável. Impede os protestantes de trabalhar por um sistema político no qual os interesses comuns sejam administrados pelos homens mais capazes na ciência, nas artes e nas combinações industriais, sistema social este que é o melhor que a espécie humana pode atingir, uma vez que contribuirá diretamente e efetivamente para a melhoria da condição moral e física dos pobres. (4) Esse estudo da Bíblia encoraja a crença de que ele é o tipo mais importante de estudo, disso resultando a formação das sociedades bíblicas, que enviam ao público todos os anos milhares de exemplares da Bíblia. Em vez de usar suas energias para favorecer a produção e a propagação de uma doutrina apropriada à fase presente da civilização, estas sociedades, que se pretendem cristãs, dão aos sentimentos filantrópicos uma falsa direção, contrária ao bem-estar público. E, acreditando servir ao progresso do espírito humano, elas vão, pelo contrário, retroceder, se essa escolha for possível. Nestes quatro fatos, eu concluo que minha terceira acusação de heresia contra os protestantes, com relação ao dogma, está firmemente provada. Eu tive de criticar o protestantismo com a maior severidade, para fazer os protestantes sentirem que a reforma de Lutero é incompleta, e como ela é inferior ao novo cristianismo; mas, como eu disse antes de começar minha análise sobre o trabalho de Lutero, estou não obstante profundamente ciente dos grandes serviços que ele prestou à sociedade na parte crítica de sua reforma, apesar de seus numerosos erros. Além disso, minha crítica é dirigida contra o protestantismo na medida em que ele é considerado pelos protestantes como sendo a reforma final do cristianismo; ela está bem longe de atacar o gênio obstinado de Lutero. Quando consideramos o tempo no qual ele viveu, as circunstâncias que ele teve de enfrentar, temos de admitir que ele fez na ocasião tudo o que era possível fazer para iniciar a reforma e estabelecê-la. Enfatizando que a moral deve fixar a atenção dos fiéis mais que o culto e o dogma (apesar do fato de que a moral protestante não está no mesmo nível de esclarecimento da civilização moderna), Lutero preparou o caminho para a reforma da religião cristã. Contudo, não é como um aperfeiçoamento do
protestantismo que se deve considerar o novo cristianismo. A nova forma em que apresento os princípios do cristianismo primitivo é completamente diferente das melhorias de todo tipo que o cristianismo aprovou até hoje. Aqui eu concluo. Penso, senhor Conservador, ter exposto a ti de maneira suficientemente clara minhas ideias sobre a nova doutrina cristã, para que possas, desde já, formar sobre ela um primeiro julgamento. Diz-me se achar que captei o verdadeiro espírito do cristianismo, e se meus esforços para rejuvenescer esta religião sublime não são de um tipo que venha a alterar sua primitiva pureza. C. Eu segui atentamente tua exposição. Enquanto falavas, minhas próprias ideias ficaram mais claras, minhas dúvidas desapareceram, e eu sentia crescer meu amor e minha admiração pela religião cristã. Meu apreço para com o sistema religioso que civilizou a Europa não me impediu de perceber que ele é passível de aperfeiçoamento, e, neste ponto, tu me convenceste completamente. É evidente que o princípio moral de que 'todos os homens devem tratar-se uns aos outros como irmãos', dado por Deus a sua Igreja, inclui toda a gama de ideias que tu expressas neste preceito: 'toda a sociedade deve esforçar-se para melhorar a existência moral e física da classe mais pobre, e deve organizar-se da maneira mais apropriada para alcançar este grande propósito'. É igualmente certo que na origem do cristianismo este princípio tinha de ser expresso em termos da primeira fórmula, e que hoje a segunda fórmula é que deve ser usada. Quando da fundação do cristianismo, como disseste, a sociedade estava dividida em duas classes de natureza política completamente distinta, a dos mestres e a dos escravos, que formavam, por assim dizer, duas espécies humanas distintas, embora vivendo entremeada uma à outra. Era então completamente impossível estabelecer alguma reciprocidade nas relações morais entre as duas espécies; assim o divino fundador da religião cristã limitou-se a anunciar seu princípio moral de maneira a tornar obrigatório a todos os indivíduos da espécie humana, sem poder estabelecê-la como um laço para trazer juntos os mestres e os escravos. Vivemos agora uma época em que a escravidão foi completamente abolida; os homens são agora politicamente da mesma espécie, e as classes só são distintas através de diferenças de nuances. Tua conclusão deste estado de coisas é de que o princípio fundamental do cristianismo deve ser formulado de modo apropriado a tornar obrigatório para as massas a consideração de uns em relação aos outros, sem que ele deixe de valer para o indivíduo em suas relações pessoais. Eu considero tua conclusão legítima e da maior importância. E desde agora, como novo cristão, eu uno meus esforços aos teus para a propagação do novo cristianismo. No entanto, a esse respeito, eu tenho algumas observações a fazer sobre a marcha geral de teus trabalhos. A nova fórmula na qual tu expressas o princípio do cristianismo abraça todo o teu sistema sobre a organização social, sistema que se encontra agora fundado em argumentos filosóficos baseados na ciência, na arte e na indústria, como também no
sentimento religioso mais universalmente estabelecido no mundo civilizado, o cristianismo. Bem, então, este sistema, objeto de todos os teus pensamentos, por que não o expor primeiro do ponto de vista religioso, que é o mais elevado e o mais popular? Por que tu o endereças aos industriais, aos cientistas e aos artistas em vez de ir diretamente às pessoas da religião? E, neste momento, por que perdes um tempo precioso a criticar os católicos e os protestantes, em vez de estabelecer tua doutrina religiosa em seguida? Queres que digam de ti, como disseste de Lutero: a crítica dele foi boa, mas a doutrina era pobre? As forças intelectuais do homem são muito pequenas; estão concentradas em dirigir-se a um único propósito que pode levar a obter um grande efeito e um resultado importante. Por que começas usando tuas energias para criticar, em vez de começar com uma doutrina? Por que não investir corajosa e francamente na questão do novo cristianismo? Tu descobriste o modo de curar a indiferença religiosa na classe mais numerosa; pois os pobres não podem ser indiferentes a uma religião cujo propósito expresso é o de melhorar sua existência física e moral tão rapidamente quanto possível. Considerando que tiveste sucesso em reproduzir o princípio fundamental do cristianismo em uma forma completamente nova, seguramente teu primeiro propósito não deveria ser o de espalhar o conhecimento deste princípio revitalizado na classe que tem o maior interesse em adotá-lo? Como essa classe é em si mesma muitíssimo mais numerosa que todas as outras juntas, teu sucesso seria infalível. Deverias ter começado por arregimentar um grande número de seguidores como apoio a teu ataque aos católicos e aos protestantes. Finalmente, desde que tivesses uma convicção clara do poder, da riqueza, e da atração irresistível de tua teoria, deverias desenvolvê-la imediatamente em uma doutrina religiosa, sem precauções preliminares e sem qualquer inquietude em ver obstáculos políticos, ou perigo de refutação. Tu disseste: “A sociedade deve ser organizada sob o princípio da moral cristã; todas as classes devem contribuir com todo o seu poder para a melhoria da condição moral e física dos indivíduos que compõem a classe mais numerosa; todas as instituições sociais devem contribuir o mais diretamente e o mais energicamente possível para esse grande propósito religioso. No estado presente das luzes e da civilização, nenhum direito político deve estar mais baseado na lei do mais forte sobre os indivíduos, ou no direito de conquista sobre as massas. A monarquia já não é mais legítima, a menos que os reis usem seu poder para fazer os ricos contribuírem com a melhoria da condição moral e física dos pobres”. Que obstáculos uma semelhante doutrina pode encontrar? Aqueles que estão interessados em apoiar não são muitíssimos mais numerosos que aqueles que têm interesse em impedir sua admissão? Os partidários desta doutrina se apoiam no princípio da moral divina, enquanto que seus oponentes não têm nenhuma arma para opor a não ser os hábitos
derivados de uma era de ignorância e de barbárie, sustentados nos princípios do egoísmo jesuítico. Em resumo, eu acho que tu deves propagar imediatamente tua nova doutrina, e preparar missões para enviar a todas as nações civilizadas, fazendo-as adotá-la. R. Os novos cristãos devem ter o mesmo caráter e devem seguir o mesmo caminho que os cristãos da igreja primitiva; eles devem usar toda a força de sua inteligência para espalhar sua doutrina. Somente através da persuasão e da demonstração eles devem trabalhar para a conversão de católicos e protestantes; é por meio da persuasão e da demonstração que eles terão sucesso em conduzir esses cristãos extraviados a uma renúncia às heresias com as quais a religião papal e a religião luterana estão infectadas, para adotar francamente o novo cristianismo. O novo cristianismo, como o cristianismo primitivo, será apoiado, será ajudado, e será protegido pela força da moral e pela onipotência da opinião pública. Se por infortúnio sua introdução conduzir a atos de violência, a condenações injustas, serão os novos cristãos a sofrer esses atos de violências e condenações injustas; mas em nenhuma circunstância eles serão vistos a empregar a força física contra seus oponentes, ou a agir como juízes ou como carrascos. Tendo achado os meios de rejuvenescer o cristianismo, por trazer à tona uma transfiguração de seu princípio fundamental, minha primeira providência foi tomar, e tinha de ser assim, todas as precauções necessárias para assegurar que a introdução da nova doutrina não viesse a excitar a classe pobre a atos de violência contra os ricos e os governantes. Eu tive de me dirigir primeiro aos ricos e aos poderosos para os dispor favoravelmente à nova doutrina, mostrando a eles que isso não era contrário a seus interesses, porque seria obviamente impossível melhorar a existência moral e física dos pobres por quaisquer outros meios que não aqueles que também viessem a aumentar a felicidade dos ricos. Eu tive de mostrar aos artistas, aos cientistas e aos líderes industriais que seus interesses eram essencialmente iguais àqueles da massa do povo, que eles pertencem à classe dos trabalhadores (da qual eles também são líderes naturais) e que a gratidão da massa do povo aos serviços que eles lhe poderiam prestar seria a única recompensa digna de seu glorioso trabalho. Eu tive de insistir muito sobre este ponto, sabendo que é da maior importância, pois é o único modo de dar às nações os líderes que realmente merecem confiança, líderes que são capazes de modelar suas opiniões e coloca-las em condições de julgar saudavelmente as medidas favoráveis ou contrárias aos interesses da maioria. Finalmente, eu tive de mostrar aos católicos e aos protestantes o momento exato em que eles tomaram o caminho errado, para lhes facilitar os meios para retomar a direção certa. Eu tenho de insistir neste ponto, porque a conversão do clero católico e dos protestantes dará poderosos apoios ao novo cristianismo.
Depois desta explicação eu retomo o cerne de meu tema; não pararei para examinar todas as novas seitas religiosas do protestantismo. A mais importante delas, a religião anglicana, é totalmente ligada às instituições nacionais da Inglaterra, podendo ser considerada corretamente apenas no conjunto em relação a suas instituições, e esta análise deve vir quando eu passar em revista, como prometi, todas as instituições espirituais e temporais da Europa e da América. O cisma grego permaneceu até agora fora do sistema europeu, e eu não tratarei dele. Além disso, todos os pontos fundamentais na crítica dessas diferentes heresias estão contidos na crítica ao protestantismo. No entanto, eu não tenho por propósito demonstrar apenas as heresias do catolicismo e do protestantismo. Para rejuvenescer o cristianismo, não é suficiente fazer triunfar todas as filosofias religiosas antigas. Eu também tenho de estabelecer sua superioridade científica sobre todas as doutrinas dos filósofos que estão fora da religião. Eu devo adiar esta linha de pensamento para uma discussão posterior; mas, enquanto isso, eu apresento uma síntese do conjunto de meu trabalho. A espécie humana nunca deixou de progredir, mas ela não tem procedido hoje da mesma maneira, nem tem usado os mesmos métodos, para aumentar a massa de seus conhecimentos e para aperfeiçoar a civilização. A observação prova, ao contrário, que, do décimo quinto século ao dia de hoje, a espécie humana usou um método muito diferente daquele que se seguiu do estabelecimento do cristianismo até o décimo quinto século. Do estabelecimento do cristianismo até o décimo quinto século, a espécie humana estava principalmente preocupada com a coordenação de seus sentimentos gerais, com o estabelecimento de um princípio universal e único, com a fundação de uma instituição universal projetada para sobrepor uma aristocracia de intelecto sobre uma aristocracia de nascimento, e assim subordinar todos os interesses particulares ao interesse geral. Ao longo desse período, o estudo e a observação dos interesses privados, os fatos particulares e os princípios secundários foram negligenciados, e foram criados na maioria dos espíritos, formando-se uma opinião preponderante sobre este ponto, que os princípios secundários devem ser deduzidos dos fatos gerais e de um princípio universal - uma visão puramente especulativa, desde que o intelecto humano não tem os meios para estabelecer generalizações suficientemente precisas para que seja possível deduzir, como consequência direta, todas as especialidades. É fato importante que as observações que eu apresentei neste diálogo estão relacionadas, na análise do catolicismo e do protestantismo. Depois da dissolução da autoridade espiritual da Europa, causada pela rebelião de Lutero, a partir do século XVI, o espírito humano desligou-se das ideias universais e se dedicou a aspectos particulares, ocupando-se da análise de fatos individuais, de interesses privados das diferentes classes da sociedade: tem-se esforçado para dominar os princípios secundários nos quais deve fundar os diferentes ramos do conhecimento. Durante este segundo período, prevaleceu a visão de que a discussão de princípios universais e de interesses universais da
espécie humana seja vaga e metafísica, não podendo contribuir eficazmente para o progresso das luzes e para o aperfeiçoamento da civilização. Assim o espírito humano tem seguido, depois de quinze séculos, um caminho muito distinto daquele que tinha seguido até aquela época; e certamente os progressos importantes e significativos que se seguiram em todas as direções de nossos conhecimentos provam irrevogavelmente quanto nossos antepassados medievais estavam errados subestimando o estudo dos fatos particulares, dos princípios secundários e dos interesses privados. Mas é igualmente verdade que um maior dano à sociedade resultou do estado de abandono no qual foi deixado, desde o século XVI, o estudo dos princípios universais e dos interesses universais. Essa negligência deu origem ao sentimento do egoísmo, que passou a ser dominante em todas as classes e em todos os indivíduos. Este sentimento, dominante em todas as classes e em todos os indivíduos, facilitou a César os meios para recuperar muito da força política que ele tinha perdido antes do século XVI. É a este egoísmo que nós devemos atribuir a doença política de nossa época, doença que aflige todos os trabalhadores úteis à sociedade; que permite aos reis absorver uma grande proporção dos salários dos pobres, em despesas pessoais, e naquelas de seus cortesãos e de seus soldados; que permite à monarquia e à aristocracia hereditária usurpar grande parte da estima que deveria ir para os cientistas, os artistas, e os industriais, em virtude de seus serviços positivos prestados diretamente à sociedade. É então desejável que os trabalhos que têm por objeto o aperfeiçoamento dos conhecimentos relativos aos fatos gerais, aos princípios universais e aos interesses gerais devem prontamente ser retomados e devem ser encorajados pela sociedade, no mesmo nível daqueles que têm por objeto os fatos particulares, os princípios secundários e os interesses privados. Tal é o esboço das ideias que devem ser desenvolvidas em nossa segunda discussão que terá como objeto uma explicação do cristianismo do ponto de vista teórico e científico, e a demonstração da superioridade do sistema cristão sobre todas as filosofias particulares, tanto religiosas quanto científicas. Finalmente, em um terceiro diálogo eu lidarei diretamente com o novo cristianismo, ou o cristianismo definitivo. Eu exporei sua moral, seu culto e seu dogma; proporei uma profissão de fé para os novos cristãos. Eu farei ver que esta doutrina é a única doutrina social que pode convir aos europeus no estado presente de suas luzes e de sua civilização. Eu provarei que a adoção desta doutrina oferece o melhor e o mais pacífico meio para remediar as enormes inconveniências resultantes da invasão do poder espiritual pela força física, desde o século XVI, e para fazer cessar essa invasão, reorganizando a autoridade espiritual em novas bases e dando-lhe a força necessária para pôr um freio às reivindicações ilimitadas do poder temporal. Eu provarei ainda que a adoção do novo cristianismo, fazendo marchar de frente os trabalhos relativos às generalidades dos conhecimentos humanos, é o que tem por objeto o aperfeiçoamento das ciências especializadas, promovendo o
progresso da civilização de maneira infinitamente maior que por qualquer outra medida. Eu concluo este primeiro diálogo declarando francamente o que eu penso da revelação cristã. Nós somos certamente superiores a nossos antepassados nas ciências de uma utilidade positiva e especial. Foi somente depois do século XVI, e principalmente com o começo do último século, que nós fizemos progresso considerável em matemática, física, química e fisiologia. Mas há uma ciência muito mais importante para a sociedade que as ciências físicas e matemáticas: a ciência na qual a sociedade é fundada, aquela que lhe serve de base, isto é, a moral. Ora, a moral tem seguido uma marcha absolutamente oposta àquela das ciências físicas e matemáticas. Há mais de dezoito séculos que seu princípio fundamental foi produzido, e desde então nenhuma pesquisa dos homens de maior gênio pôde descobrir um princípio superior em universalidade ou precisão àquela formulada pelo fundador do cristianismo. Eu irei mais adiante e direi que quando a sociedade perdeu de vista esse princípio, e deixou de usá-lo como um guia para sua conduta, ela prontamente caiu sob o jugo de César, quer dizer, sob o império da força física, que o princípio do cristianismo tinha subordinado à força intelectual. Eu pergunto agora se a inteligência que produziu, dezoito séculos atrás, o princípio regulador da espécie humana, e produziu isto quinze séculos antes de qualquer progresso importante feito nas ciências físicas e matemáticas, pergunto se ele não tem obviamente um caráter sobre-humano, e se pode haver alguma prova maior da revelação divina do cristianismo. Sim, eu acredito que o cristianismo é divinamente instituído, e eu sou persuadido de que Deus estende uma proteção especial àqueles que se esforçam para subordinar todas as instituições humanas ao princípio fundamental desta doutrina sublime. Estou convencido de que eu estou cumprindo uma missão divina ao recordar às nações e reis o verdadeiro espírito do cristianismo. Completamente confiante na proteção divina especialmente dada aos meus trabalhos, de uma maneira especial, eu tomo a ousadia de criticar a conduta dos reis da Europa, que se aliam sob o nome sagrado de Santa Aliança. Eu lhe dirijo diretamente a palavra, e ouso dizer-lhes: “Príncipes, qual é a natureza e qual é o caráter, aos olhos de Deus e dos cristãos, do poder que vós exerceis?” “Quais são as bases do sistema social que vós vos esforçais para estabelecer? Que medidas tomais para melhorar a condição física e moral da classe pobre?” “Vós vos dizeis cristãos, e ainda fundais vosso poder sobre a força física; vós ainda sois os sucessores de César, e vós vos esqueceis que os verdadeiros cristãos têm como objetivo final de seus esforços a abolição do poder da espada, do poder de César, que, por sua natureza, é essencialmente transitório”. “Contudo, este é o poder no qual vós empreendestes para fundar a ordem social! Segundo vós, só a este poder pertence a iniciação de todas as melhorias
exigidas pelo progresso das luzes. Para apoiar este sistema monstruoso, vós mantendes dois milhões de homens sob armas, fazeis adotar vossos princípios todos os tribunais, obrigais os clérigos, tanto católicos quanto protestantes ou gregos, a professar a heresia de que o poder de César é o princípio regulador da sociedade cristã”. “Recordando ao povo a religião cristã pelo símbolo de vossa união, fazendo-o usufruir uma paz que é sua primeira necessidade, vós não conseguis obter nenhum reconhecimento da parte deles; Vossos interesses pessoais são muito proeminentes nos esquemas que vós apresentais como sendo de interesse comum. O poder supremo europeu que reside em vossas mãos está longe de ser um poder cristão, como ele deveria ser. Sempre que vós estais em ação, exibis o caráter e as insígnias da força física, da força anticristã”. “Todas as medidas importantes que vós tendes tomado desde vossa união na Santa Aliança tiveram o efeito de piorar a condição da classe pobre, não só para a geração atual, mas também para as gerações futuras”. Vós elevastes os impostos, vós os elevastes todos os anos a fim de cobrir o crescimento das despesas ocasionais de vossas forças armadas e o luxo de vossos cortesãos”. “À classe de vossos súditos à qual vós dedicais uma proteção especial é a da nobreza, uma classe que, como vós, funda todo o seu poder na espada”. “Porém, vossa conduta censurável pode ser desculpada em certos cumprimentos. Uma coisa que vos conduziu a erro foi o elogio dado a vossos esforços unidos para subverter o poder do César moderno”. “Lutando contra ele, vós agistes de uma maneira verdadeiramente cristã; mas isso é unicamente porque a autoridade de César, que foi adquirida por Napoleão através de conquista, teve nas mãos dele muito maior poder que nas vossas, que os receberdes por herança. Vossa conduta também pode ser desculpada: é que foram aos clérigos para vos lançarem à beira do precipício, enquanto que eles se lançaram junto convosco”. “Príncipes, escutai a voz de Deus, que vos fala por minha boca. Tornai-vos bons cristãos; parai de considerar os exércitos mercenários, a nobreza, os padres heréticos e os juízes perversos como vossos principais apoiadores; unidos em nome do cristianismo, entendei como deveis realizar todos os deveres que o cristianismo impõe àqueles que detêm o poder. Lembrai-vos de que o cristianismo vos ordena usar todos os vossos poderes para aumentar tão rapidamente quanto possível o bemestar social dos pobres!” ****************************** A. Sautellet e Cie, en face la Bourse. Bossange Père, Rue de Richelieu, nº 60. PARIS, 1825. Imprimerie de Lachevardière Fils, Rue de Colombier, nº 30.
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