Novo Comentário Bíblico Vida Atos

November 16, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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©2022, Pablo Deiros     Editora Vida Rua Conde de Sarzedas, 246 – Liberdade CEP 01512-070 – São Paulo, SP Tel.: 0 xx 11 2618 7000 [email protected] www.editoravida.com.br

Todos os direitos desta obra reservados por Editora Vida. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte. Todos os grifos são do autor.     Scripture quotations taken from Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, NVI ®. Copyright © 1993, 2000, 2011 Biblica Inc. Used by permission. All rights reserved worldwide. Edição publicada por Editora Vida, salvo indicação em contrário.    

Editor responsável: Gisele Romão da Cruz Tradução: Judson Canto Editor-assistente: Amanda Santos Revisão de tradução: Sônia Freire Lula Almeida Revisão de provas: Josemar de Souza Pinto Revisão de línguas originais: Marcos de Almeida Diagramação: Arte Vida e Claudia Fatel Lino Projeto gráfico e capa: Arte Vida Conversão para ebook: Cumbuca Studio

Todas as citações bíblicas e de terceiros foram adaptadas segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

1. edição: abr. 2022 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Deiros, Pablo A. Atos : o evangelho do Espírito Santo / Pablo Deiros ; tradução Judson Canto. -- 1. ed. -- São Paulo : Editora Vida, 2022. -- (Novo comentário bíblico Vida ; 4) Título original: Comentario biblico espanico: Hechos ISBN 978-65-5584-238-8 e-ISBN: 978-65-5584-237-1 1. Bíblia - Ensinamentos 2. Cristianismo 3. Deus (Cristianismo) - Conhecimento 4. Espírito Santo 5. Jesus Cristo 6. Literatura devocional 7. Moral cristã I. Canto, Judson. II. Título III. Série. 21-75318 CDD-248.29 Í

Índices para catálogo sistemático: 1. Espírito Santo : Ação : Experiência religiosa : Cristianismo 248.29 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 21-75318 CDD-248.29

SUMÁRIO ÍNDICE DE TABELAS APRESENTAÇÃO DA SÉRIE ABREVIATURAS LIVROS DA BÍBLIA APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO Como é o livro? Quem foi Lucas? Por que ele escreveu o livro de Atos? Quando escreveu o livro de Atos? Quem foram seus primeiros leitores? Qual é a mensagem essencial do livro de Atos? Qual é o desafio permanente do livro de Atos? Como devemos ler o livro de Atos hoje? UNIDADE UM: O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM (1.1—8.4) CAPÍTULO 1: JESUS SE VAI E OS DISCÍPULOS FICAM DEDICATÓRIA E PRÓLOGO (1.1-3) Dedicatória (1.1) Prólogo (1.2,3) A PROMESSA DO PAI (1.4-8) O poder do Reino (1.4,5) A natureza do Reino (1.6,7) O testemunho do Reino (1.8) A ASCENSÃO E A EXALTAÇÃO DE JESUS (1.9-11)

A ascensão de Cristo (1.9,10a) A exaltação de Cristo (1.10b,11) O significado teológico da ascensão e exaltação de Cristo O RETORNO A JERUSALÉM (1.12-14) Os discípulos e as circunstâncias (1.12-14) A oração e o avivamento (1.12-14) O DISCURSO DE PEDRO (1.15-22) O contexto do discurso (1.15) A introdução ao discurso (1.16) O desenvolvimento do discurso (v. 16c-20) A conclusão do discurso (1.21,22) O primeiro sermão apostólico (1.15-22) A ESCOLHA DE MATIAS (1.23-26) A proposta (1.23) Oração (1.24,25) As sortes (1.26a) Os resultados (v. 26b) CAPÍTULO 2: O PENTECOSTE A VINDA DO ESPÍRITO SANTO (2.1-4) O dia de Pentecoste (2.1) A manifestação do Espírito Santo (2.2-4) O TESTEMUNHO DO ESPÍRITO SANTO (2.5-13) O avivamento nas ruas (2.5-12) O avivamento no coração (2.5-13) A MENSAGEM DO ESPÍRITO SANTO (2.14-36) O pregador apostólico (2.14-21) A mensagem apostólica (2.22-36) A REAÇÃO AO ESPÍRITO SANTO (2.37-40) O clamor (2.37) A resposta (2.38) A exortação (2.39,40) A COMUNIDADE DO ESPÍRITO SANTO (2.41-47)

As experiências de uma igreja renovada As características de uma igreja renovada As relações de uma igreja renovada (2.42-47) CAPÍTULO 3: A PERSEGUIÇÃO O MOTIVO (3.1-10) O milagre (3.1-10) Esperança (3.1-10) A EXPLICAÇÃO (3.11-26) O sermão e o pregador (3.11-26) O humano e o divino (3.11-26) AS CONSEQUÊNCIAS (4.1-22) Os apóstolos e a oposição (4.1-22) O testemunho e as testemunhas (4.1-22) A ORAÇÃO (4.23-31) As características da oração da igreja (4.23-31) As características da igreja que ora (4.23-31) A COMUNIDADE (4.32-35) A comunidade do Reino (4.32-35) Os sinais do Reino (4.32-37) A GENEROSIDADE (4.36—5.11) A generosidade de Barnabé (4.36,37) A mesquinhez de Ananias e Safira (5.1-11) A POPULARIDADE (5.12-16) Houve grande temor (5.11,13a) Havia um grande poder (5.12,15) Houve uma forte reação (5.13b,16) Houve um ótimo resultado (5.14,16c) A PERSEGUIÇÃO (5.17-41) Os fatos (5.17-41) A interpretação dos fatos (5.17-41) A MISSÃO (5.42) O tempo da missão

O lugar da missão A natureza da missão O centro da missão CAPÍTULO 4: O CONFRONTO O MINISTÉRIO DOS SETE (6.1-6) O problema em Jerusalém (6.1-6) O ministério do serviço (6.1-6) A DIFUSÃO DA PALAVRA (6.7) A avaliação (6.7a) O crescimento (6.7b) A PRISÃO DE ESTÊVÃO (6.8-15) A personalidade de Estêvão (6.8-15) O caráter de Jesus (6.8-15) O DISCURSO DE ESTÊVÃO (7.1-53) A missão de Deus (7.1-53) O período patriarcal (v. 1-16). A missão da igreja (7.35-38) A MORTE DE ESTÊVÃO (7.54-60) O testemunho de Estêvão (7.54-60) Nosso testemunho (7.54-60) A DISPERSÃO DOS CRENTES (8.1-4) A igreja perseguida e dispersa (8.1-4) A igreja dispersa e missionária (8.1-4) UNIDADE DOIS: O TESTEMUNHO NA JUDEIA E EM SAMARIA (8.5—12.25) CAPÍTULO 5: O MINISTÉRIO DE FILIPE O EVANGELISTA FILIPE (8.5-8) O evangelista (8.5-8) O ministério (8.5-8) O MAGO SIMÃO (8.9-25) Quatro tipos de relações (8.9-25)

Quatro passos para uma nova vida (8.9-25) O EUNUCO ETÍOPE (8.26-40) Filipe e o eunuco etíope (8.26-40) O Espírito Santo e o obreiro cristão (8.26-40) CAPÍTULO 6: A CONVERSÃO DE SAULO O RELACIONAMENTO DE SAULO COM CRISTO (9.1-9) A conversão de Saulo de Tarso (9.1-9) O chamado de Saulo de Tarso (9.1-9) O RELACIONAMENTO DE SAULO COM SEUS IRMÃOS CRISTÃOS (9.10-19) As novas convicções de Saulo (9.10-19) O chamado missionário de Saulo (9.10-19) O RELACIONAMENTO DE SAULO COM A IGREJA DE DAMASCO (9.20-25) Um pregador dedicado (9.20-25) Um pregador corajoso (9.20-25) O RELACIONAMENTO DE SAULO COM A IGREJA DE JERUSALÉM (9.26-30) Saulo chega à igreja de Jerusalém Saulo une-se à igreja de Jerusalém (9.26-30) A SITUAÇÃO DA IGREJA (9.31) O avanço da igreja (9.31) A situação da igreja (9.31) CAPÍTULO 7: O MINISTÉRIO DE PEDRO O TESTEMUNHO A ENEIAS (9.32-35) O evangelho e o ministério apostólico O evangelho e as enfermidades (9.32-35) O TESTEMUNHO A DORCAS (9.36-43) O evangelho e as pessoas O evangelho e a dor (9.36-43) O TESTEMUNHO AO CENTURIÃO (10.1-8) O contexto A personagem (10.1,2) A experiência (10.3-6)

Os testemunhos (10.7,8) O TESTEMUNHO A PEDRO (10.9-23a) Um servo útil (10.9-23a) Um servo disposto (10.9-29) O TESTEMUNHO A CORNÉLIO (10.23b-48) O testemunho a um gentio (10.23b-48) O testemunho a um inimigo (10.24-48) O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM (11.1-18) O relatório (11.1-18) A interpretação dos fatos (11.1-18) O TESTEMUNHO EM ANTIOQUIA (11.19-30) O testemunho em Antioquia (11.19-30) A igreja de Antioquia (11.19-30) O TESTEMUNHO SOB PERSEGUIÇÃO (12.1-25) A perseguição promovida por Herodes (12.1-19) A morte de Herodes (12.20-25) UNIDADE 3: O TESTEMUNHO ATÉ OS CONFINS DA TERRA (13.1—28.31) CAPÍTULO 8: O TESTEMUNHO NA FRÍGIA E NA GALÁCIA A MISSÃO EM ANTIOQUIA DA SÍRIA (13.1-3) A vocação missionária de Antioquia (13.1-3) A obra missionária mundial (13.1-3) A MISSÃO EM CHIPRE (13.4-12) Um bom itinerário missionário (13.4-12) Uma boa experiência missionária (13.1-12) A MISSÃO EM ANTIOQUIA DA PISÍDIA (13.13-52) As experiências dos missionários (13.13-52) A mensagem dos missionários (13.23-39) A MISSÃO EM ICÔNIO (14.1-7) A pregação (14.1,3) A reação (14.2,4-6) O resultado (14.1-7)

A MISSÃO EM LISTRA E DERBE (14.8-20) O ministério apostólico (14.8-20) O ministério de evangelização (14.8-20) A MISSÃO NO RETORNO A ANTIOQUIA DA SÍRIA (14.21-28) Os apóstolos missionários (14.21-28) A tarefa missionária (14.21-28) A MISSÃO EM DEBATE (15.1-35) O concílio da igreja (15.1-35) O governo da igreja (15.1-35) CAPÍTULO 9: O TESTEMUNHO NA EUROPA (I) O DESENTENDIMENTO ENTRE PAULO E BARNABÉ (15.36-41) Quando os líderes se desentendem (15.36-41) Quando os líderes não se entendem (15.36-41) A NOVA EQUIPE MISSIONÁRIA (16.1-10) Por que Paulo foi para a Europa? (16.1-10) Por que Paulo escolheu Timóteo? (16.1-3) O MINISTÉRIO EM FILIPOS (16.11-40) Três convertidos filipenses (16.11-40) Três conversões interessantes (16.11-40) O MINISTÉRIO EM TESSALÔNICA (17.1-9) Um costume (17.1b,2) Uma mensagem (17.3) Um resultado (17.4-9) O MINISTÉRIO EM BEREIA (17.10-15) A recepção da mensagem O aprofundamento da mensagem O MINISTÉRIO EM ATENAS (17.16-34) Os cenários para a pregação do evangelho (17.16-34) A discussão na sinagoga (v. 17a) O debate na praça (v. 17b,18) A mensagem da pregação do evangelho (17.24-32) Os resultados da pregação do evangelho (17.32-34)

A práxis da pregação do evangelho (17.16-34) O MINISTÉRIO EM CORINTO (18.1-18a) O servo cristão e seu perfil (18.1-18a) O servo cristão e seu Deus (18.5-11) O MINISTÉRIO NO RETORNO A ANTIOQUIA (18.18b-22) As equipes missionárias (18.18b-22) A estratégia das equipes missionárias (18.18b-22) CAPÍTULO 10: O TESTEMUNHO NA EUROPA (II) APOLO EM ÉFESO (18.24-28) Apolo: um bom mestre (18.24-28) Um bom mestre sabe aprender (18.24-28) PAULO EM ÉFESO (19.1-22) O lugar (19.1-22) Três questões e três ministérios (19.1-22) PAULO EM ÉFESO II (19.23-41) Os contrastes (19.23-41) As personagens (19.23-41) PAULO NA MACEDÔNIA E NA GRÉCIA (20.1-6) A peregrinação de Paulo (20.1-6) A peregrinação de Paulo e a de Jesus (20.1-6) PAULO EM TRÔADE (20.7-12) O culto dominical (20.7-12) O dorminhoco domingueiro (20.7-12) PAULO EM ÉFESO III (20.13-16) O roteiro de Paulo (20.13-16) Os planos de Paulo (20.13) A pressa de Paulo (20.14-16a) O propósito de Paulo (20.16b) PAULO EM MILETO (20.17-38) O discurso de Paulo (20.17-35) A despedida de Paulo (20.36-38)

PAULO RUMO A JERUSALÉM (21.1-16) O itinerário de Paulo (21.1-16) A personalidade de Paulo (21.13) CAPÍTULO 11: O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM A CHEGADA DE PAULO A JERUSALÉM (21.17-26) O apóstolo na igreja da cidade (21.17-26) Ministério na igreja da cidade (21.17-26) A PRISÃO DE PAULO EM JERUSALÉM (21.27-36) O preço do ministério apostólico (21.27-36) O custo do ministério apostólico (21.27-36) A DEFESA DE PAULO EM JERUSALÉM (21.37—22.16) O discurso de Paulo (21.37—22.16) A imitação de Paulo (22.14,15) A VISÃO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.17-21) Revelação Reconhecimento Reiteração O INTERROGATÓRIO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.22-29) Os preconceitos sectaristas dos judeus O rigor judicial romano Universalismo teológico cristão (22.22-29) O JULGAMENTO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.30—23.11) Defesa perante o Conselho judaico (22.30—23.11) Relacionamento com o Senhor (23.11) A CONSPIRAÇÃO CONTRA PAULO EM JERUSALÉM (23.12-22) A conspiração dos judeus (23.12-15) Conspirações contra os cristãos (23.12-22) CAPÍTULO 12: O TESTEMUNHO EM ROMA PAULO EM CESAREIA (23.23-35) PAULO PERANTE FÉLIX (24.1-27) Um processo injusto (24.1-27)

Uma consciência limpa (24.16) PAULO PERANTE FESTO (25.1-12) As audiências do acusado (25.1-12) As oportunidades do acusado (25.1-12) PAULO PERANTE FESTO E AGRIPA (25.13—26.32) O testemunho do evangelho (25.13—26.32) A obra do evangelho (26.18) PAULO A CAMINHO DE ROMA I (27.1-12) Uma viagem com destino Uma viagem com propósito Uma viagem com significado PAULO A CAMINHO DE ROMA II (27.13-26) A fé vitoriosa é posta à prova A fé vitoriosa é um dom de Deus PAULO A CAMINHO DE ROMA III (27.27-44) Uma situação dramática (27.27-44) Um homem dinâmico (27.27-44) PAULO A CAMINHO DE ROMA IV (28.1-10) Na ilha de Malta (28.1-6) Perto do fogo (28.2) PAULO CHEGA A ROMA (28.11-16) Escalas até Roma (28.11-16) Poder em ação (28.11-16) PAULO DÁ TESTEMUNHO EM ROMA (28.17-31) Uma pessoa que ensina o evangelho (28.17-28) Um evangelho que muda as pessoas (28.17-31) Pessoas capazes de mudar o mundo (28.23) BIBLIOGRAFIA NOTAS REMISSIVAS

Í N D I C E D E TA B E L A S Tabela 1: O progresso da missão de acordo com Atos Tabela 2: Os doze apóstolos de acordo com os evangelhos sinópticos e Atos Tabela 3: Moisés e Cristo Tabela 4: Pessoas cheias do Espírito Santo em Atos Tabela 5: O evangelho, paixão de multidões Tabela 6: Sinais milagrosos Tabela 7: Deus e o ocultismo Tabela 8: O Espírito Santo e o obreiro cristão Tabela 9: O caminho Tabela 10: Relacionamentos e deveres fraternos Tabela 11: Cronologia da vida de Paulo (5-43 d.C.) de acordo com Atos Tabela 12: Em que consiste o serviço social cristão? Tabela 13: Visões em Atos Tabela 14: O arrependimento para a vida Tabela 15: Imposição de mãos na Bíblia Tabela 16: Deus e o coração humano Tabela 17: Distúrbios relacionados com a proclamação do evangelho Tabela 18: Testemunhas do Reino detidas ou presas

Tabela 19: Consciência Tabela 20: A dinastia idumeia: os Herodes

A P R E S E N TA Ç Ã O D A S É R I E

P

ara alguém que pregou e ensinou Novo Testamento por mais

de meio século, escrever um comentário exegético e expositivo sobre o assunto é coroar seu ministério profético e de ensino de maneira maravilhosa. Com esta série de comentários, não pretendo competir com as obras clássicas e eruditas de que, graças ao Senhor, já dispomos em nosso idioma. Mas é meu objetivo contribuir para a edificação da igreja com o todo de meus estudos, meditações e comunicação da Palavra de Deus no Novo Testamento (1Coríntios 14.3). O Senhor muito tem me abençoado por meio de cada passagem dessa segunda parte da Bíblia, e é minha oração e meu desejo compartilhar com meus leitores os incalculáveis tesouros com que o Espírito Santo me agraciou por meio da leitura, do estudo, da pregação e do ensino da Palavra. Assim como toda tradução do texto bíblico corresponde a uma interpretação, qualquer explanação desse texto consiste num entendimento revestido da experiência pessoal de seu expositor. No meu caso, a maior parte do material que compartilho nesta série é resultado de minhas experiências pessoais como pastor e mestre da Palavra, mas também de tudo que aprendi com o ministério profético e de ensino de outros porta-vozes do Senhor. O leitor atento será capaz de detectar ambos os aspectos, que permeiam cada livro deste Comentário do Novo Testamento.

Um elemento significativo de minha contribuição nesse campo bastante explorado é a perspectiva pela qual me aproximo do texto do Novo Testamento. Faço-o como cidadão latino-americano que vive e atua neste belo continente, bem imbuído de sua cultura e visão de mundo. Identifico-me com uma fé evangélica e com tudo que ela significa para mim como herdeiro da Reforma Protestante, especialmente no contexto da tradição anabatista. Minha perspectiva é essencialmente missiológica, pois entendo que o eixo da vida e da ação do cristão e da igreja é e deve ser o cumprimento da missão cristã no mundo de acordo com a vontade revelada de Deus. Além disso, meu compromisso é com a proclamação de um evangelho integral, que consiste em anunciar as boas-novas a respeito de Jesus a todos os homens, na totalidade do ser e dos relacionamentos de cada um. Minha abordagem exegética do texto bíblico procura seguir as pautas mais recentes da hermenêutica, e minha exposição tem por objetivo apresentar ferramentas úteis aos que têm hoje a responsabilidade de ensinar e pregar com diligência e clareza. Graças ao Senhor, hoje temos ferramentas extraordinárias e extremamente úteis para realizar essa tarefa com precisão. Para esta série de comentários, escolhi aquele que me parece o melhor texto disponível em nosso idioma: a Nova Versão Internacional. Penso que essa tradução satisfaz plenamente a necessidade de ter à mão um texto claro e preciso que garante uma grande fidelidade ao significado e à mensagem dos escritores originais. Por isso, recomendo ao leitor e aluno que utilize este Comentário com o texto da NVI — em particular, com a Bíblia Nova Reforma, que tive a honra de editar em 2017. Em todo caso, a tarefa

exegética foi realizada com base no texto original grego e apoiada nas melhores fontes secundárias disponíveis.1 O leitor notará que de vez em quando introduzo na língua original (grego) uma palavra ou frase em letras latinas e a transcrição geralmente aceita. Faço isso para que o leitor com certo acesso instrumental ao grego do Novo Testamento disponha de mais um auxílio em sua compreensão e para que quem não teve a oportunidade de estudar esse idioma seja de alguma forma introduzido a ele. Esta série de comentários exegéticos e expositivos do Novo Testamento consiste numa obra em vários volumes, escrita por um conhecido teólogo, historiador e biblista latino-americano argentino. Não tenho a pretensão de ser um estudioso nesse campo, mas apenas alguém que pregou e ensinou expositivamente com rigor exegético todo o Novo Testamento de uma perspectiva missiológica e segundo uma disposição homilética. Esta coleção enfatiza a compreensão e a exposição do texto bíblico a fim de fornecer aos leitores materiais confiáveis que o ajudem a pregar e ensinar o Novo Testamento no contexto latino-americano atual. O mundo de fala hispânica sofre de um alarmante déficit de pregação e ensino expositivo do texto bíblico. A maioria dos que exercem esse ministério não possui a formação necessária à exegese ou à exposição adequada da Palavra. Este comentário espera preencher as seguintes necessidades: • Contribuir de forma significativa e instrumental com materiais para uma comunicação fácil e clara. • Oferecer ao leitor as melhores e mais recentes ferramentas para a compreensão do texto bíblico.

• Permitir que pregadores e mestres usem todo o Novo Testamento em suas exposições, não apenas as passagens mais conhecidas. • Elevar o nível de compreensão do texto bíblico e melhorar a capacidade de exposição em nosso idioma. • Ajudar o leitor da Bíblia a ter uma experiência mais satisfatória na leitura e na compreensão da Palavra de Deus. O Comentário do Novo Testamento foi escrito para pessoas com um nível médio de educação (secundária) e comprometidas com algum ministério na igreja (pastoral, docente, evangelístico, missionário, de serviço etc.). Também será de valor para todo crente que deseje ler e estudar a Palavra de Deus com inteligência, sob a orientação do Espírito Santo. Este Comentário, por sua vez, apresenta uma abordagem singular do texto bíblico, de uma perspectiva hispano-americana e pastoral com ênfase nos aspectos exegético e expositivos e com abundantes elementos homiléticos. Isso proporcionará aos pregadores e mestres da Palavra em nosso idioma ferramentas úteis no cumprimento da missão de proclamar “toda a vontade de Deus” (Atos 20.27). — PABLO A. DEIROS

1. Barbara ALAND et al. (Orgs.), The Greek New Testament.

A B R E V I AT U R A S O presente livro utiliza a Nova Versão Internacional (NVI), da Sociedade Bíblica Internacional, para todas as citações bíblicas. Em outros casos, segue-se o texto grego ou outras versões da Bíblia, indicadas pelas siglas correspondentes. As abreviaturas utilizadas são as seguintes: BA

Santa Biblia: La Biblia de las Américas, 1986.

BJ

Bíblia de Jerusalém.

Gr.

The Greek New Testament. Deutsche Bibelgesellschaft, 2002.

BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia. NA

El Libro de la Nueva Alianza: El Nuevo Testamento, 1967.

NVI

Nova Versão Internacional.

RVR Santa Biblia, versión Reina-Valera, revisión, 1960. RV95 Santa Biblia, versión Reina-Valera, revisión, 1995. VP

Dios habla hoy, Versión Popular, 1979.

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2Tm

3João

3Jo

2Coríntios

2Co

Tito

Tt

Judas

Jd

Gálatas

Gl

Filemom

Fm

Apocalipse

Ap

A P R E S E N TA Ç Ã O De todos os livros do Novo Testamento, nenhum apresenta de maneira tão dinâmica quanto Atos a ação do Espírito Santo no mundo por meio da igreja, o Corpo de Cristo. Em tempos como os que estamos vivendo, quando a autoridade e o poder que a comunidade de fé recebeu pelo Espírito são tão vitais para que esta cumpra sua missão, é fundamental considerar a experiência carismática dos primeiros cristãos. Se a igreja hoje pretende cumprir no mundo a missão que lhe foi confiada por seu Senhor, ela deve se espelhar no exemplo desafiador dos primeiros cristãos e de suas comunidades de fé. A análise exegética e a exposição e aplicação do texto do livro de Atos podem ser de grande ajuda para nos orientar na tarefa que temos em mãos e, acima de tudo, para nos ensinar sobre os recursos de que dispomos para realizá-la. Não é muito correto intitular o livro “Os atos de todos os apóstolos”, como no antigo documento conhecido como Cânon Muratoriano (Roma, 180-200), porque praticamente se limita ao progresso do evangelho no trajeto de Jerusalém a Roma e não contempla o trabalho de todos os apóstolos. Na verdade, pelo que se lê em Atos o principal agente desse processo de testemunho cristão foi o apóstolo Paulo. Em certas ocasiões, o próprio Lucas esteve presente nos acontecimentos registrados, como indicam as passagens da terceira pessoa para a primeira pessoa no plural.

Essas passagens, caracterizadas pela mudança pronominal, são conhecidas como passagens “plurais”. São três no total: 16.10-17; 20.5—21.18; 27.1—28.16. Lucas teve amplo acesso às fontes mais diretas de informação, em especial no curso de suas viagens com Paulo e principalmente se a tradição do século II for verdadeira, a qual apresenta Lucas como nativo de Antioquia da Síria. Alguns autores pensam que ele pode ser o “homem da Macedônia” de Atos 16.9. Ainda assim, Lucas era um gentio herdeiro da tradição de historiadores e biógrafos gregos. Sua qualidade como historiador é notável. William M. Ramsay afirma que “a história de Lucas é insuperável no que diz respeito à fidelidade” e que ele “merece um lugar entre os maiores historiadores”.1 É provável que o livro de Atos tenha sido escrito não muito tempo depois do último fato relatado, ou seja, os dois anos da prisão de Paulo em Roma (28.30). A nota otimista com que o relato é encerrado parece indicar um período anterior à perseguição promovida por Nero no ano 64, embora alguns estudiosos apontem para uma data muito posterior. Na Introdução, examinaremos com mais detalhes as questões relacionadas com a autoria e com a data da composição do livro. Um objetivo claro do livro de Atos — e de fato em toda a narrativa de Lucas — é fazer uma apologia do evangelho cristão. Lucas demonstra que em todo o império romano as autoridades responsáveis admitiam que o cristianismo não era contrário à lei. O procônsul de Chipre mostrou-se favorável a Paulo e Barnabé (13.712). Os magistrados de Filipos pediram desculpas a Paulo e Silas pelo tratamento inadequado (16.35-40). Em Éfeso, Paulo contava

entre os amigos as principais autoridades da província da Ásia (19.31); o escrivão da cidade defendeu Paulo contra as acusações do povo (19.35-40). Gálio, governador da Acaia, recusou-se a julgar as acusações dos judeus de Corinto contra Paulo, por considerar que o assunto não era da competência da lei romana (18.12-17). Em Cesareia, os governadores Félix e Festo e o próprio rei Herodes Agripa II declararam acreditar na inocência do apóstolo (24.22-27; 25.14-22; 26.31,32). Por que, então, o processo de testemunhar o evangelho cristão era acompanhado de tantas dificuldades? Lucas responde apontando para os líderes judeus em todo o império romano. Todos os ataques aos cristãos mencionados por ele foram instigados por líderes judeus, à exceção do açoitamento e da prisão em Filipos e da revolta em Éfeso. Nos dois últimos casos, a reação ocorreu porque a proclamação do evangelho afetou certos interesses dos gentios. Paulo e seus companheiros viajavam de uma cidade para outra e iam de sinagoga em sinagoga anunciando as boas-novas para a salvação “primeiro do judeu”. Quase sempre, porém, a mensagem apostólica era rejeitada nesses contextos, e os apóstolos tiveram de se concentrar nos gentios. Assim, quando Atos relata o avanço do testemunho do evangelho nas comunidades gentias do império, registra também a rejeição por parte da maioria das comunidades judaicas. Paulo resume de forma dramática essa rejeição citando Isaías 6.9,10 no final do livro (28.26,27), palavras citadas também pelo próprio Jesus, com o mesmo sentido. Ao se analisar com atenção este dinâmico livro do Novo Testamento, o mais importante é observar o papel de protagonista do Espírito Santo, que acompanha a igreja no cumprimento da

missão a ela confiada pelo Senhor. Foram crentes cheios do Espírito Santo que abriram o sulco para a semeadura do evangelho e levaram a semente “até os confins da terra”. Cada episódio desses atos redentores contou com a presença e a ação poderosa do Espírito por meio de crentes consagrados ao serviço do Reino de Deus. O resultado foi um crescimento numérico tremendo, uma expansão geográfica notável e um aprofundamento impressionante do alcance da missão. O livro termina com a personagem mais proeminente (o apóstolo Paulo) pregando o Reino de Deus e ensinando sobre o Senhor Jesus Cristo sem temor e “sem impedimento algum”, justamente por estar cheio do Espírito. Essa história continua até hoje, pois, ungida pelo Espírito Santo, a igreja proclama e ensina o evangelho eterno.

1. Pablo A. DEIROS, Llenos del Espíritu Santo: exégesis y exposición de Hechos de los Apóstoles, p. 16.

INTRODUÇÃO Este livro, chamado Atos dos Apóstolos a partir do século II, é a continuação da história dos princípios do testemunho cristão no mundo. Sua primeira parte é o terceiro evangelho. O livro começa com uma referência de Lucas, seu autor, à primeira parte de sua obra, que trata, declara ele, “de tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. Desse modo, podemos inferir naturalmente que a segunda parte trata do que Jesus continuou a fazer e a ensinar após a ressurreição, mediante o Espírito Santo, por meio dos apóstolos e de seus discípulos. Sem dúvida, em Atos é dado grande destaque ao papel desempenhado pelo Espírito Santo do dia de Pentecoste em diante. Justo L. González define o livro de Atos como “o Evangelho do Espírito”.Atos é o único livro do Novo Testamento apresentado como continuação de um dos evangelhos sinópticos, o de Lucas. Não ocorreu a nenhum outro escritor continuar seu relato da vida e do ministério de Jesus em um segundo livro, para assim dar continuidade à sua história. Assim como no primeiro volume (o Evangelho de Lucas) Jesus é a personagem principal, no  segundo volume da mesma obra (Atos dos Apóstolos) o protagonista é o Espírito Santo, o Espírito de Jesus. Justo L. González: “Se fossem realmente os ‘Atos dos apóstolos’, Lucas teria nos informado o que cada um dos apóstolos fez após a ascensão do Senhor. Mas não; Lucas não apresenta outro protagonista nesse segundo

livro além do Espírito. Enquanto continuamos a aguardar o Reino, os atos do Espírito continuam, e é precisamente isso que dá valor e autoridade ao livro de Atos. Se fossem apenas anedotas sobre os apóstolos ou sobre a igreja primitiva, poderia ainda ser muito inspirador, mas não passaria de um livro interessante apenas por sua antiguidade. Contudo, não é assim. O mesmo Espírito, cuja ação vemos em Atos, continua a agir entre nós; continuamos vivendo os tempos dos atos do Espírito; vivemos, por assim dizer, o capítulo 29 de Atos; e, enquanto continuarmos vivendo estes tempos, esse livro será a Palavra de Deus para nosso benefício e orientação”.1

Há dois motivos fundamentais para considerarmos o livro de Atos “o Evangelho do Espírito Santo”. Primeiro: é o que se vê já nos primeiros versículos do livro. O Evangelho de Lucas, embora o Espírito Santo tenha certa proeminência nele, é obviamente o evangelho de Jesus Cristo. De fato, mais que qualquer outro evangelista, Lucas dá destaque à operação do Espírito por meio de Jesus. No entanto, ele inicia Atos fazendo referência a um “livro anterior”, no qual registrou “tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (1.1). Em seguida, ele aponta para além da ascensão, a fim de mostrar a obra continuada por meio dos seguidores de Jesus. O Senhor prometeu a vinda especial do Espírito Santo (João 14.16,17). Antes da ascensão, Jesus ordenou a seus discípulos que aguardassem o cumprimento dessa promessa (1.4). “Dentro de poucos dias”, eles seriam “batizados com o Espírito Santo” (v. 5). Pelo poder que receberiam dele, iriam evangelizar o mundo (v. 8). Assim, o que Jesus havia começado entre seus discípulos seria continuado pelo Espírito por meio deles. Segundo: a expressão “o Evangelho do Espírito Santo” deriva do lugar de destaque ocupado pelo Espírito no livro de Atos. Embora reconheça tal proeminência, Frank Stagg ressalta que o objetivo de Atos não é apresentar esse Evangelho do Espírito Santo.2 Stagg

lembra que, com exceção de 28.25, onde é citado em conexão com a profecia, o Espírito Santo não é mencionado após 21.11. Ele está certo. No entanto, à luz das passagens anteriores, a obra do Espírito Santo não pode deixar de ser percebida no restante do livro. Obviamente, não podemos isolar as referências ao Espírito de outras também importantes, como as que se fazem a Deus, ao anjo do Senhor e ao “Senhor”. Em Atos, como no restante da Bíblia, são mencionadas ainda determinadas características da Divindade — às vezes separadamente, às vezes identificadas umas com as outras. Além disso, é provável que, com relação a Atos, a intenção de Lucas não fosse escrever um tratado sobre o Espírito Santo. O livro serve a diversos propósitos, mas parece que o objetivo principal era mostrar como o evangelho superou os vários preconceitos difundidos pelo mundo greco-romano até o ponto em que a mensagem do Reino de Deus começou a ser pregada “sem impedimento algum” (28.31). Esse êxito surpreendente foi, sem dúvida, a obra do poder do Espírito. Assim, quanto ao lugar central do Espírito Santo nas páginas de Atos, vale a pena uma consideração cuidadosa, ainda que não exaustiva, das experiências nelas registradas e de seu significado para nós hoje. Ao longo dos séculos, este livro teve uma enorme influência sobre a igreja e seu testemunho no mundo. O calendário eclesiástico celebra desde tempos antigos as festas de Pentecoste e da Ascensão, como resultado da segunda obra de Lucas, o livro de Atos dos Apóstolos. Além disso, as narrativas de Pedro, Estêvão e Paulo enriquecem nossa compreensão dos apóstolos da igreja primitiva. Contudo, acima de tudo, a grande personagem desse livro é o Espírito Santo. Páginas e páginas apresentam como se

desenvolve sua ação por meio do povo de Deus, à medida que avança o testemunho do evangelho cristão, especialmente na bacia do mar Mediterrâneo, até chegar à capital do império romano, a cidade de Roma. Carlos Mraida: “Uma igreja em permanente reforma é uma igreja em renovação permanente, e essa renovação é resultado da obra do Espírito Santo. Tem-se dito, com acerto, que o livro de Atos dos Apóstolos deveria chamar-se Atos do Espírito Santo, porque o sujeito e protagonista do livro é a terceira pessoa da Trindade. Desde o anúncio de sua vinda, pela boca de Jesus (1.8), passando pelo seu derramamento no Pentecoste e pelo nascimento da igreja e seguindo pelo crescimento e expansão universal desta, sempre se está tratando de atos poderosos do Espírito Santo. O livro de Atos contém 28 capítulos; no entanto, uma igreja em permanente reforma é uma igreja que está escrevendo o capítulo 29 e os capítulos seguintes, continuamente aberta aos atos do Espírito Santo em cada momento e em todo lugar”.3

COMO É O LIVRO?

O livro de Atos é visto pela maioria dos estudiosos como uma continuação do Evangelho de Lucas.4 No entanto, o livro de Atos dos Apóstolos contém histórias singulares, que atraem a atenção do leitor da primeira à última página. Em suma, embora o livro possa muito bem ser considerado o segundo volume de uma obra em duas partes, ele tem personalidade e possui características distintas, que fazem dele uma obra literária única no Novo Testamento. Edgar J. Goodspeed: “Onde se pode encontrar, em 40 páginas, tal variedade de surpreendentes acontecimentos — provações, lutas, perseguições, fugas, martírios, viagens, naufrágios, resgates — situados no incrível panorama do mundo antigo — Jerusalém Antioquia, Filipos, Corinto, Atenas, Éfeso, Roma? E com tais cenários e contextos — templos, tribunais, prisões, desertos, navios, mares, quartéis, teatros? Existe uma ópera com tanta variedade? Um espectro impressionante de cenas e ações passa diante dos olhos do historiador. E em todos eles vemos a mão providencial que fez e guiou esse grande movimento para a salvação da humanidade”.5

O segundo volume da obra de Lucas compreende uma parte importante do Novo Testamento e sempre exerceu grande influência na configuração do cristianismo histórico. Portanto, a obra completa de Lucas tem duas partes e foi escrita pelo mesmo autor. A primeira parte ou o primeiro volume é o Evangelho de Lucas, e a segunda parte ou o segundo volume é o livro Atos dos Apóstolos. Não obstante, não se trata de um livro único com duas seções ou divisões. Como John Nolland observa: “Dizer que temos a parte um e a parte dois da mesma obra, portanto, pode ser um exagero e não faria justiça às diferenças óbvias entre os livros”.6 Além disso, o fato de haver dois volumes, por assim dizer, talvez atenda não tanto a razões literárias quanto a questões práticas. Como explica Graham

N. Stanton: “O Evangelho de Lucas e Atos são os dois escritos mais longos do Novo Testamento. Cada um deles deve ter preenchido um rolo de papiro comum de quase 10 metros de comprimento. Essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais Lucas-Atos foi escrito em dois volumes em vez de um”.7 No entanto, Atos é para o Novo Testamento o que os livros de Josué a 2Reis representam para o Antigo Testamento, ou seja, uma narrativa histórica. A narrativa histórica bíblica se baseia em fatos históricos, mas o enfoque não está na sequência cronológica ou no registro exaustivo de cada acontecimento. O autor faz uma seleção de alguns episódios que explicam quem é Deus, quem somos, como podemos estar em comunhão obediente com Deus e como Deus quer que vivamos e sirvamos em seu Reino. O problema ao se interpretar a narrativa histórica bíblica é que os autores nem sempre declaram no texto o propósito ou esclarecem a mensagem principal. Também nem sempre se explica como emular os fatos registrados. Desse modo, é importante que o leitor faça algumas perguntas. 1) Por que esse fato específico foi registrado? 2) Como ele se relaciona com o material bíblico que o antecede? 3) Qual é a verdade teológica central comunicada pelo autor? 4) Qual é a importância do contexto literário? (Ou seja, o registro que o precede ou se segue a ele, ou se a questão é tratada em outro lugar.) 5) Qual é a extensão do contexto literário? O livro de Atos não é um tratado de teologia cristã, mas um livro de história, mas de história narrativa. Isso significa que devemos ter cuidado para não transformá-lo em uma fonte primária de doutrinas, embora não lhe falte certo conteúdo teológico. No entanto, muito do que Lucas registra são meros acontecimentos sem outro significado

senão o da própria narrativa histórica, embora como tal possa ilustrar verdades registradas em outras partes da Bíblia. O mero registro de algo que ocorreu não significa que seja uma expressão da vontade de Deus para todos os crentes em todos os momentos (p. ex., suicídio, poligamia, guerra santa, incesto, crueldade, violência etc.). A narrativa histórica exige o uso de uma abordagem hermenêutica específica.8 A história narrativa, como gênero literário, é a prática de escrever em um formato que se baseia no relato histórico, mas não necessariamente em uma sequência cronológica que se fundamente em acontecimentos e que gire em torno de indivíduos, como também de certas ações e intenções. A narrativa histórica de Lucas enfoca estruturas ou tendências gerais e rompe com a cronologia rígida (embora não a exclua) sempre que o historiador entendeu que uma ideia ou um conceito seria mais bem explicado dessa forma. Portanto, o autor fez uma seleção muito cuidadosa e sensata dos acontecimentos de seu interesse particular e que melhor se ajustavam a seu objetivo geral. Esse tipo de metodologia histórica, por sua vez, pode se valer de diferentes recursos sociológicos, políticos, econômicos e religiosos para demonstrar que seres humanos comuns sob a orientação e a capacitação do Espírito Santo podem ser protagonistas de fatos significativos.

QUEM FOI LUCAS?

Consideramos Lucas o autor do binômio Lucas-Atos no comentário de seu evangelho. No entanto, é apropriado acrescentar algumas informações, especialmente relacionadas com a autoria desse livro de Atos. Para definir o autor de um livro bíblico, é necessário prestar atenção tanto nas evidências internas (verificadas no próprio texto bíblico) quanto nas externas (transmitidas pela tradição da igreja). As considerações internas concentram-se no prólogo, nas seções em que o autor usa a primeira pessoa do plural (“nós”) e nas três menções à pessoa de “Lucas” no Novo Testamento. Uma vez tratadas essas questões, será possível determinar se o autor de Atos é mesmo “o médico amado” (Colossenses 4.14) e companheiro de ministério do apóstolo Paulo. Assim, cabe discutir se o autor é um cristão gentio ou judeu. Por fim, para estabelecer a questão da autoria de Lucas, a evidência externa da tradição da igreja irá se somar à evidência interna. O prólogo

O texto de Atos não revela a identidade de seu autor, mas isso não significa que seja um trabalho anônimo. De fato, há nove livros no cânon do Novo Testamento que são anônimos como documentos públicos ou pelo menos não contêm uma indicação explícita de quem os escreveu (Mateus; Marcos; Lucas; João; Atos; Hebreus; 1, 2 e 3João). Uma vez que o prefácio de Lucas 1.1-4 e o de Atos 1.1,2 são endereçados a um destinatário específico, é possível supor que o remetente era conhecido. Isso encontra apoio na

prática comum da Antiguidade.9 De fato, Lucas 1.2, ao se referir aos relatos de acontecimentos na igreja primitiva “conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra”, dá a entender que o autor não é um dos Doze nem um dos primeiros discípulos de Jesus. Portanto, em Atos 1.1 a referência é “a respeito de tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. Sobre esse fato, Joseph A. Fitzmyer observa: “Da própria narrativa evangélica, deduz-se que o autor não foi uma testemunha ocular do ministério de Jesus, mas que dependeu dos que o presenciaram (Lucas 1.2). Pelo contrário, ele era um cristão de segunda ou terceira geração”.10 No entanto, F. F. Bruce argumenta que a declaração: “Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo”, no prólogo do evangelho, implica que o autor esteve envolvido em alguns dos acontecimentos sobre os quais escreve em Atos.11 O uso da primeira pessoa do plural

Talvez o argumento de Bruce deva ser vinculado às seções em que o autor utiliza o pronome pessoal “nós” em Atos. Nas chamadas seções “nós” (a viagem de Trôade a Filipos, 16.10-17; a viagem a Jerusalém, 20.5-15; 21.1-18; a viagem pelo mar de Cesareia a Roma, 27.1—28.16), o autor de Atos dá a entender que acompanhou o ministério de Paulo por algum tempo. Em 16.6-10, a mudança da terceira pessoa do plural para a primeira pessoa do plural é bastante perceptível. Tradicionalmente, essas passagens eram vistas como relatos de primeira mão da própria experiência do autor. Talvez tenham sua origem em uma espécie de diário pessoal do autor, que ele mais tarde usou para compor o livro de Atos. Para

David J. Williams, é uma possibilidade convincente, uma vez que “as passagens são escritas em um estilo indistinguível do restante do livro. Ou então, se ele usou o trabalho de outra pessoa, devemos supor que o reescreveu em profundidade, a ponto de eliminar todos os vestígios do estilo original, e ao mesmo tempo de forma tão descuidada que nem sempre se lembrou de substituir a primeira pessoa pela terceira”.12 Alguns estudiosos contestam o entendimento tradicional, alegando que as seções “nós” são um gênero antigo relacionado com as viagens marítimas e que o autor não estava necessariamente presente nos acontecimentos.13 No entanto, Hemer e Fitzmyer já demonstraram que essa evidência documental não existe.14 Outros estudiosos têm dificuldades para aceitar o envolvimento pessoal do escritor nas seções “nós”, em razão de certas contradições históricas entre Atos e as cartas de Paulo (p. ex., o Concílio de Jerusalém; comp. 15.1-29 com Gálatas 2.1-10). Outros ainda percebem uma diferença tão óbvia na teologia das epístolas paulinas e do livro de Atos que consideram quase impossível aceitar que o autor de Atos tenha sido um companheiro de Paulo. Em resposta a essas objeções, pode-se apontar o fato de que o escritor das seções “nós” foi um dos muitos companheiros de viagem de Paulo, não necessariamente um de seus discípulos mais próximos. Além disso, o tempo que passou com Paulo pode ter sido mínimo, e a obra, sem dúvida, foi escrita alguns anos após os acontecimentos. Fitzmyer adverte os comentaristas de não interpretarem com exagero as seções “nós”, pois é evidente que Lucas não era um companheiro inseparável de Paulo: “Quer dizer,

se tomarmos as seções narradas na primeira pessoa do plural — sem forçá-las, como faz Ireneu —, podemos admitir perfeitamente que Lucas foi companheiro ou colaborador de Paulo por determinado período, mas, é claro, não era de modo algum uma associação ‘inseparável’ ”.15 Além do mais, os dois autores tinham objetivos diferentes em seus escritos, embora o sistema de crença subjacente fosse o mesmo, ou seja: Cristo é o Senhor (Filipenses 2.5-11; Lucas 24.25,26; Atos 2.33,36); a salvação é pela fé (Efésios 2.8; Lucas 18.13,14; Atos 15.11) e operada pelo poder do Espírito Santo (1Coríntios 12.13; Romanos 8.9-11; Atos 1.8). Se presumirmos que o escritor das seções “nós” em Atos era companheiro de Paulo, então uma comparação entre a lista dos colaboradores de Paulo e os companheiros de viagem em Atos durante o período das seções “nós” poderia indicar possíveis associados. Na verdade, se removermos das seções “nós” os nomes mencionados na terceira pessoa durante as viagens (cf. 20.4,5), Lucas continua sendo uma forte probabilidade. Nolland conclui que as seções “nós” de Atos “são mais bem explicadas como indicativas da presença pessoal do autor”.16 Bruce concorda com ele, ao observar que “é uma inferência razoável que o narrador fosse um dos companheiros de Paulo nos períodos cobertos por essas seções”.17 O conceito tradicional

O conceito tradicional de que o autor de Atos era companheiro de Paulo (de acordo com Colossenses 4.14; 2Timóteo 4.11; Filemom 24; e com as seções “nós” em Atos) enfrenta dois desafios.

O primeiro desafio. Consiste no fato de que o perfil de Paulo em Atos não corresponde ao das epístolas. Por esse motivo, o argumento é que o autor não pode ter sido companheiro de Paulo.18 Por um lado, há discrepâncias históricas. De acordo com I. Howard Marshall, “a maioria dos estudiosos nega que Lucas, ‘o médico amado’, tenha sido o autor, principalmente porque ele comete erros históricos que um colega de Paulo não poderia ter cometido”.19 Por outro lado, há discrepâncias teológicas. A teologia de Paulo, de acordo com Lucas em Atos, parece um pouco diferente da teologia de Paulo nas epístolas. Por isso, Eduard Schweizer está convicto de que a identificação tradicional “não é provável, visto que Atos discorda em muitos pontos das informações fornecidas pelas cartas de Paulo e pouco tem a dizer sobre a longa permanência em Éfeso, quando Lucas estava com Paulo”.20 Donald Juel concorda com essa opinião: “Considero improvável que nosso ‘Lucas’ tenha sido um médico que viajou com Paulo”.21 Philipp Vielhauer, em particular, discorre sobre as principais diferenças entre a teologia de Paulo em Atos e nas epístolas.22 Ele classifica essas diferenças em quatro categorias: teologia natural, a Lei, cristologia e escatologia. Em suma, ele acredita que nas três primeiras categorias Lucas reflete um período posterior a Paulo, enquanto em sua escatologia o autor de Atos é pré-paulino. É possível que haja diferenças entre a teologia de Paulo e o “paulinismo” de Atos, mas isso não deve ser atribuído ao alegado fato de que Lucas não teve uma relação pessoal com o apóstolo. Gerhard A. Krodel sugere que “o autor de Atos, ainda muito jovem, pode ter sido um companheiro de viagem de Paulo. Ao escrever cerca de quarenta anos depois, cometeu alguns erros e gerou

discrepâncias que se tornam óbvias quando comparamos sua narrativa com as informações contidas nas cartas de Paulo”.23 Além disso, o tempo em que Lucas esteve com Paulo pode ter sido limitado, com base na evidência das seções “nós” e no fato de que sua relação era de trabalho, não de discípulo e mestre. Para Fitzmyer, não há evidência de que Lucas tivesse lido qualquer uma das cartas de Paulo, o que poderia explicar alguns dos enigmas de Atos, como o número de visitas de Paulo a Jerusalém após sua conversão (cf. 11.27-30; 12.25; 15.1-12). O comentarista observa: “Se essa interpretação [...] for válida de alguma forma, ficaria evidente que Lucas não acompanhou Paulo durante a maior parte da atividade missionária do apóstolo ou, mais precisamente, durante o período em que Paulo escreveu suas cartas mais importantes”.24 Em sua conclusão sobre a relação teológica entre Lucas e Paulo, Fitzmyer oscila entre confiança e cautela. Joseph A. Fitzmyer: “Lucas não esteve na companhia de Paulo enquanto este se esforçava para formular a essência de sua concepção teológica ou para captar o verdadeiro significado do evangelho. Assim se explicaria a enorme diferença entre o Paulo descrito no livro de Atos dos Apóstolos e o Paulo revelado em suas cartas. [...] Se Lucas não estava entre os companheiros de Paulo durante os anos cruciais em que o apóstolo enfrentou os judaizantes e se, além disso, não teve a oportunidade de ler as cartas de Paulo, não é de esperar que a imagem que guardava de seu mestre — bastante idílica em vários aspectos — fosse sensivelmente diferente daquela que nos apresentam os escritos do próprio Paulo?”.25

Além disso, alguns fatos históricos registrados em Atos parecem ter sido reunidos de propósito. Seriam essas anomalias coerentes com alguém que tenha sido companheiro próximo de Paulo? Werner Georg Kümmel simplifica demais a situação ao dizer que Lucas não poderia ter sido companheiro  de Paulo em suas viagens

missionárias por ter se enganado sobre o número de  vezes que Paulo foi a Jerusalém, por não mencionar a defesa que Paulo fez da missão gentílica na Galácia (v. Gálatas 2.1-10) e pela ausência, nos escritos de Paulo, das restrições mencionadas em Atos 15.22-29. Kümmel conclui: “Não pode haver dúvida de que, nos três pontos essenciais mencionados a respeito da informação sobre a atividade de Paulo, o autor de Atos está tão mal informado que dificilmente poderia ter sido um companheiro de Paulo em suas viagens missionárias”.26 Kümmel pode não ter dúvidas de que o autor de Atos não era um dos companheiros de Paulo, mas John Nolland discorda dessa conclusão. Ele considera Lucas bastante seletivo em sua apresentação em Atos, a fim de ajustar sua mensagem, a ponto de reorganizar os acontecimentos, como faz em seu evangelho. Parece que Nolland está se referindo a Kümmel quando afirma: John Nolland: “A teologia de Lucas foi, sem dúvida, forjada à parte da teologia de Paulo, mas a antítese aguda que às vezes se argumenta provém de uma exposição bem estreita de Paulo e do que, em certos pontos, vem a ser uma leitura pouco generosa de Lucas. […] Lucas simplificou Paulo e mudou o centro de gravidade da teologia paulina que ele descreve na direção de sua própria teologia e provavelmente de uma teologia cristã, ‘média’ de seu ambiente, mas não falsificou Paulo”.27

O segundo desafio. Consiste em que o autor de Atos dá a impressão de pertencer a um período pós-paulino, em razão de dois fatores. Por um lado, a perda de esperança no retorno imediato de Cristo. Marshall argumenta ser fato indubitável que a igreja primitiva esperava que a parúsia (a segunda vinda de Cristo) ocorresse de imediato. Mesmo assim, os primeiros cristãos mudaram seu pensamento no início desse período, e essa mudança é evidenciada

pelo fato de que o próprio Paulo modificou seu pensamento de que a volta do Senhor ocorreria enquanto ele ainda vivia (comp. 1Tessalonicenses 4.13-18 com Filipenses 1.19-26). Portanto, qualquer crise em torno da demora da parúsia teve lugar durante o próprio período paulino.28 Por outro lado, houve a evolução para um cristianismo institucional. Já  se sugeriu que Atos apresenta os conceitos e os interesses da igreja na última década do século I. Isso é às vezes denominado “catolicismo primitivo”. No  entanto, há pouquíssima evidência a favor dessa afirmação, visto que quase não há interesse nas regras de fé, nas formulações doutrinárias, no desenvolvimento do ministério da igreja ou nos sacramentos, todos os quais característicos de um catolicismo primitivo.29 Uma comparação de Atos com escritos próprios do “catolicismo primitivo”, como visto em Clemente de Roma e em Inácio de Antioquia, mostra que isso é falso.30 A igreja em Atos é guiada pelo Espírito Santo, não por algum governo humano, e totalmente livre de qualquer sistema legal, clerical ou litúrgico. Robert Maddox: “Para Lucas, a igreja como instituição é notavelmente livre e espontânea nos impulsos de sua vida comunitária. Nem os apóstolos nem Tiago exerceram uma liderança autoritária sobre a igreja de Jerusalém, tampouco Paulo ou qualquer outro em outros lugares. A igreja é dirigida não por autoridades institucionais, e sim pelo Espírito Santo. Pelo Espírito, a Igreja é consolidada, mas também disciplinada e purificada, e ao mesmo tempo permanece aberta às misteriosas e sempre novas exigências da vontade de Deus. Tampouco há vestígios de um alto sacramentalismo”.31 Um cristão gentio

Passemos agora da evidência interna da autoria (ou não) do “médico amado” e companheiro de Paulo, mencionado no Novo

Testamento, à consideração de circunstâncias étnicas, educacionais e espirituais. Muitos estudiosos acreditam que o autor de Atos foi alguém de origem pagã que se converteu ao cristianismo. Seria um cristão gentio bem preparado, por causa da sofisticação de seu estilo no idioma grego. O prólogo estilizado dá testemunho da linguagem culta do escritor, o que, sem dúvida, reflete sua formação e a séria intenção literária de sua obra. Fitzmyer afirma: “Vê-se que ele é uma pessoa culta, um bom escritor, familiarizado com as tradições literárias do Antigo Testamento — especialmente em conformidade com a tradução grega da Bíblia (LXX) — e com as técnicas literárias do helenismo”.32 Graham N. Stanton, por sua vez, argumenta que “as habilidades literárias de Lucas podem ser discernidas ao longo dos dois volumes, inclusive as fontes escritas ou as tradições orais das quais depende mais estritamente. A extensão de seu vocabulário, o estilo refinado e a perícia literária diferem de Marcos tanto quanto um jornal de qualidade hoje difere de sua contraparte de circulação massiva”.33 Um prosélito judeu

A outra possibilidade a ser considerada é que Lucas pode ter sido um cristão judeu. Pode-se concluir também, com base na evidência em Atos, que o autor era um convertido do judaísmo ao cristianismo e familiarizado com as Escrituras do Antigo Testamento e sua fraseologia. “Indiretamente, a linguagem e o estilo do evangelista expressam um bom domínio do grego, mas ainda assim vários estudiosos estão convencidos de que ele era judeu.”34 Ellis apoia essa ideia, pois “o balanço das probabilidades favorece o conceito de que Lucas era um judeu helenístico”.35 Isso, por sua vez, levou à

conclusão de que  o judeu cristão Lúcio, mencionado em Romanos 16.21 como um dos parentes de Paulo, não é outro senão Lucas, o autor de Atos. Juel pensa mais ou menos da mesma forma: “A tradição descreve Lucas como um gentio. Atualmente, estou inclinado a pensar nele como um judeu, ou pelo menos como um prosélito do judaísmo”.36 Talvez Juel vá longe demais ao pensar que Lucas foi circuncidado e talvez seja melhor dizer que ele não era mais que um temente a Deus. Schweizer descreve Lucas como alguém que “conhecia e usava a Bíblia grega e seu estilo. Antes de seu batismo, pode ter sido um prosélito, ou seja, um gentio que frequentava o culto judaico e guardava os principais mandamentos sem aceitar a circuncisão”.37 De acordo com Krodel, “Lucas era um gentio extraordinário, mergulhado no estudo do Antigo Testamento e sensível aos sentimentos e necessidades dos crentes judeus. [...] À luz do conteúdo de sua obra, parece-me que Lucas pode ter sido um judeu helenístico ou um prosélito do judaísmo. No mínimo, ele temia a Deus”.38 Podemos sintetizar as evidências bíblicas a respeito da identidade de Lucas, principalmente como fiel companheiro de ministério do apóstolo Paulo, se observarmos o seguinte: ele é o autor do evangelho que leva seu nome (Lucas 1.1-4); ele é o autor do livro de Atos (1.1,2); possivelmente era médico (Colossenses 4.14); alguns o consideram o “homem da Macedônia”,que Paulo viu em uma visão em Trôade (16.9,10); navegou com Paulo de Trôade para a Europa (16.11); acompanhou Paulo a Filipos (16.12-15); viajou com Paulo de Filipos a Trôade, onde permaneceram alguns dias (20.6-12); acompanhou Paulo em sua viagem a Jerusalém

(20.13—21.16); acompanhou Paulo para ver Tiago e os anciãos de Jerusalém (21.17,18); acompanhou Paulo até a Itália (27.1,2); esteve com Paulo durante sua prisão em Roma (2Timóteo 4.11).

POR QUE ELE ESCREVEU O LIVRO DE ATOS?

As razões que se podem apresentar em resposta a essa pergunta são as mesmas que podem ser dadas com relação ao Evangelho de Lucas, além das diferenças de gênero e estilo. Tanto uma obra quanto a outra se projetam como testemunho do ministério de Jesus na história, na força do Espírito Santo. O material, por sua vez, serve de recurso fundamental para que as comunidades de fé, às quais o livro se dirige, saibam de onde vêm e para onde vão em seu compromisso com o Reino de Deus. Testemunho histórico

Muitos estudiosos sustentam que Lucas escreveu Atos para oferecer uma verificação confiável da autenticidade dos fatos ocorridos após a ascensão de Jesus e da tradição oral transmitida concernente à obra do Espírito Santo. Com isso, tinha o propósito de alentar a confiabilidade do ensino a respeito do testemunho dos primeiros cristãos e seu avanço no mundo. Robert H. Stein entende que Lucas tentou assegurar a seus leitores a autenticidade de seu relato por meio de vários recursos, entre eles a prova de milagres (2.43; 5.12; 6.8; 8.13; 14.3; 15.12), e o maior de todos era a própria ressurreição de Jesus (2.24-36), seguido pelo crescimento da igreja em Atos (1.5; 2.41,47; 4.4; 6.7; 9.31; 11.21,24; 12.24; 14.1,21; 16.5; 19.20).39 Desse modo, Lucas escreveu com a intenção de oferecer uma contribuição apologético-histórica a favor da fé e da ação das primeiras comunidades cristãs. Alguns autores afirmam que Atos foi escrito como uma apologia histórica em defesa da fé cristã e das comunidades de fé espalhadas por todo o império romano. Era

muito importante que, em seu confronto com um mundo hostil, os crentes conhecessem as raízes históricas de sua fé. Os fatos ocorridos nas primeiras décadas do testemunho cristão, por sua vez, serviram de incentivo e motivação para o enfrentamento dos novos desafios que surgiam por todo o império romano, especialmente a partir de meados da década de 60. Mesmo não sendo um historiador profissional, Lucas demonstrou grande perícia em sua pesquisa e na redação de sua narrativa histórica. De fato, é notável a precisão de suas informações com respeito a personagens e acontecimentos, atestadas por historiadores antigos, contemporâneos e posteriores a ele. Entre os dados históricos que Lucas registra com precisão, merecem ser mencionados os seguintes: a fome nos tempos de Cláudio (11.28; 44-48 d.C.); a morte de Herodes Agripa I (12.20-23; primavera do ano 44); Sérgio Paulo como procônsul (13.7; nomeado no ano 53); a expulsão dos judeus de Roma por ordem de Cláudio (18.2; c. do ano 49); Gálio como procônsul (18.12; nomeado no ano 51 ou 52); Félix como procônsul (23.26; 24.27; exerceu o cargo por volta dos anos 52-56); substituição de Félix por Festo (24.27; c. 57-60); presença de oficiais romanos na Judeia, como os procuradores Pôncio Pilatos (26-36), Marcelo (36-37) e Marulo (37-41). No ano 41, o sistema de procuradoria na administração romana foi alterado para um modelo mais prático. Nesse ano, o imperador romano Cláudio nomeou Herodes Agripa I como uma espécie de rei vassalo. Após a morte de Herodes Agripa I (em 44), o sistema de procuradoria foi restabelecido até 66, primeiramente com Antônio Félix e depois com Pórcio Festo. Lucas parece bem a par de todas essas informações históricas essenciais. O mesmo pode ser dito de

seu conhecimento dos nomes dos imperadores romanos de Augusto (nascimento de Jesus) a Nero (Paulo em Roma). A exatidão histórica de Atos foi confirmada por descobertas arqueológicas modernas, especialmente com relação aos títulos dos oficiais do governo e da administração romanos. Por exemplo: o uso do termo stratēgoí (“magistrados”, 16.20,22,35,36,38), também usado com relação aos oficiais da guarda do templo (Lucas 22.4,52; Atos 4.1; 5.24-26); a palavra politárchai (“oficiais [autoridades] da cidade”, 17.6,8); o vocábulo prōtōi (“homem principal”, 28.7).40 Lucas não se inibe ao registrar as tensões internas da igreja primitiva, como, por exemplo, ao mencionar a dissensão entre Paulo e Barnabé por causa de João Marcos (15.39). Tudo isso reflete uma pesquisa cuidadosa e uma produção histórico-teológica objetiva, equilibrada e positiva por parte do autor dos Atos. Expansão geográfica

É bem evidente a intenção de Lucas ao registrar o rápido crescimento numérico e a ampla expansão geográfica dos seguidores de Jesus, desde suas raízes judaicas até seu ministério mundial e do cenáculo ao palácio de César. A tabela a seguir (“O progresso da missão de acordo com Atos”) ilustra os vários aspectos da expansão geográfica do testemunho cristão, de acordo com o padrão estabelecido em 1.8, que é a grande comissão segundo Atos dos Apóstolos (Mateus 28.19,20). Lucas, em consonância com o esboço que elabora em 1.8, desenvolve seu relato da ação do Espírito Santo por meio da igreja destacando três círculos geográficos, mas também mostrando um alcance cada vez mais amplo no cumprimento da missão. Nesse

sentido, o livro se desdobra reiterando e elaborando Lucas na estrutura erigida sobre três versículos. 1) De acordo com 1.4, Jesus “deu-lhes esta ordem: ‘Não saiam de Jerusalém, mas esperem pela promessa de meu Pai, da qual falei a vocês’ ”. 2) De acordo com 8.1, “naquela ocasião desencadeou-se grande perseguição contra a igreja de Jerusalém. Todos,exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judeia e de Samaria”. De acordo com 9.15, Paulo é descrito como um “instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel”. O ministério de Paulo em Éfeso é resumido em Atos 19.10: “Isso continuou por dois anos, de forma que todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor”. Mais tarde, Paulo repete o que lhe foi dito por Jesus: “Vá, eu o enviarei para longe, aos gentios” (22.21). Paul Hertig e Robert Gallagher: “É importante ver Atos 1.8 não só como um esboço de Atos, mas também como um indicador dos propósitos missionários de Deus dentro da narrativa. A forma da narrativa é centrífuga, e a progressão da missão é teológica, apoiada em uma terminologia geográfica. Há muitas reuniões em Jerusalém nas quais as testemunhas retornam a fim de explorar um pouco mais os fundamentos teológicos de uma missão que inclui os que estão nos ‘confins da terra’ (Atos 11.1-8; 15.1,2; 21.17-19; 22.21)”.41 TABELA 1: O progresso da missão de acordo com Atos Três etapas

Personagens principais/ Acontecimentos/ Progresso

TESTEMUNHOS A JUDEUS E PROSÉLITOS Testemunho Os Doze, Pedro e João como principais. Seus ouvintes eram “em Jerusalém” homens provenientes de 14 regiões, 5 delas no Oriente e 2 na (cap. 1—5) África. Em um único dia, 3 mil se converteram. O número de convertidos logo chegou a 5 mil. Testemunho

TESTEMUNHO A SAMARITANOS, SIMPATIZANTES GENTIOS

“em toda a Judeia e Samaria” (cap. 6—12)

E PAGÃOS — Os Sete, Estêvão e Filipe como principais. Estêvão foi martirizado, e os líderes se espalharam pela Judeia e por Samaria. — Pedro na Judeia (Lida e Jope) e em Samaria (Cesareia). Pedro batiza um soldado romano simpatizante do judaísmo e sua família. Pedro é aprisionado por Herodes, escapa da prisão e foge de Jerusalém.

TESTEMUNHO AOS GENTIOS Testemunho Profetas e mestres de Antioquia comissionam Barnabé e Paulo. “até os confins Paulo como principal. As três viagens missionárias de Paulo, da terra” (cap. sua prisão em Jerusalém, sua defesa em Cesareia e sua 13—28) chegada a Roma.

Além disso, a extensão geográfica do testemunho cristão é expressa de várias formas em Atos. Por um lado, são mencionadas as principais cidades do império romano e seus limites nacionais. Em Atos, são citados 32 países, 54 cidades e 9 ilhas do mar Mediterrâneo. As cidades mais importantes são Jerusalém, Antioquia da Síria e Roma (cf. 9.15). Por outro lado, Lucas atrai a atenção do leitor ao mencionar as personagens-chave. Na verdade, o livro pode ser dividido em duas partes, uma que considera o ministério de Pedro e outra que destaca o ministério de Paulo. Além deles, são nomeados outros 95 cristãos, entre os quais se distinguem Estêvão, Filipe, Barnabé, Tiago (irmão de Jesus), Silas, Timóteo e outros. Além disso, duas ou três formas de linguagem escrita parecem se repetir em Atos, as quais refletem a maneira em que o autor decidiu estruturar sua obra. Vejamos. 1) Resumos narrativos:  em Jerusalém (1.1— 6.7); na Palestina (6.8—9.31); a caminho de Antioquia (9.32—12.24); a caminho da Ásia Menor (12.25—16.5); a caminho da Grécia (16.6—19.20); a  caminho de Roma (19.21—28.31). 2) Informações de crescimento: 2.47; 5.14;

6.7; 9.31; 12.24; 16.5; 19.20. 3) Dados numéricos: 2.41; 4.4; 5.14; 6.7; 9.31; 11.21,24; 12.24; 14.1; 19.20. Argumento apologético

Ernst Haenchen entende que o propósito de Atos é apresentar uma apologia política a favor de Roma, bem como um incentivo missionário aos gentios, que não viviam mais sob a lei judaica.42 F. F. Bruce, por sua vez, observa que, na época em que Lucas escreveu, o cristianismo era amplamente suspeito de constituir um movimento contrário à lei e à ordem do império romano e que “Lucas se propõe a lidar com essa dificuldade”.43 Outros levam um passo adiante a conclusão sobre o caráter apologético de Atos e acreditam que a obra serviu a uma defesa apologética de Paulo contra Nero. No entanto, não é fácil ver Atos como um documento em defesa de Paulo diante dos tribunais de Nero, uma vez que grande parte da obra não faria sentido com relação ao cumprimento desse propósito (p. ex., a viagem de Paulo e seu naufrágio, para não mencionar a ênfase na pessoa e na obra do Espírito Santo).44 Além disso, se Lucas escreveu para os cristãos, a narrativa talvez sugerisse à igreja que Roma não representava ameaça alguma para ela. Robert Maddox afirma que a igreja, na época em que Lucas escreveu, tinha uma atitude agressiva com relação ao governo romano. A apresentação de Lucas tem “o cuidado de chamar a atenção para a inocência política dos cristãos e assume uma visão geralmente otimista do governo imperial”.45 A responsabilidade dos cristãos era “viver em paz com o poder soberano tanto quanto possível” e abraçar “um estilo de vida sóbrio e inofensivo e uma

atitude de respeito para com o governo”.46 Um exemplo disso é que, em Atos, Lucas expressa uma visão favorável do governo romano. O império romano não é inimigo da causa cristã. Pelo contrário, Lucas reconhece a importância da contribuição romana para o avanço do evangelho por meio das cinco contribuições mais importantes em boa parte do século I : PAX, LEX, VIA, REX, ARS. No caso do apóstolo Paulo, seu protagonista apostólico, é evidente a quíntupla contribuição romana para o avanço do testemunho cristão (lat. pax, lex, via, rex, ars). O fato de se locomover em um vastíssimo território sob um mesmo governo e uma mesma cultura deu a ele enormes vantagens para tornar mais eficaz seu ministério na Palestina, na Ásia Menor e na Europa. Em Atos, Lucas destaca exatamente esses fatores com relação ao líder da equipe missionária da qual fazia parte e atuava como cronista. Não fosse a “paz romana”, garantida pela presença de legionários por todo o império, Paulo não teria conseguido exercer seu ministério missionário. O mesmo pode ser dito das rotas de comunicação por terra e por mar que cruzavam todo o império, pois facilitavam bastante o deslocamento de viajantes como Paulo e outros apóstolos. O próprio Paulo beneficiou-se da lei do império (o direito romano) e de sua estrutura de governo e de administração, como cidadão romano e em seu apelo a César. A arte e a cultura romanas também constituíam um fator importante ao permitir que a mensagem do evangelho se expressasse de várias maneiras, conforme ilustrado por Atos em mais de uma ocasião. Desse modo, alguns autores destacam a abordagem apologética de Lucas em seu relato no livro de Atos. Por um lado, e como parece fazer em seu evangelho, Lucas não é inimigo da estrutura política e social

mais importante e poderosa do mundo, de onde escreve. Em seu relato, o império romano não é percebido como inimigo por excelência da comunidade cristã nem como o maior obstáculo para a propagação do evangelho. Pelo contrário, os apóstolos e Paulo parecem desempenhar com muita liberdade a tarefa missionária e aproveitar ao máximo as vantagens oferecidas pela estrutura imperial e pelo mundo romano, especialmente no caso de Paulo. Pax. Por um lado, havia a paz romana (pax). É difícil que uma ideia se propague em meio a situações de conflito. O império romano estava em paz quando o cristianismo surgiu. Orígenes de Alexandria (185-254), um dos principais biblistas e teólogos do cristianismo antigo, afirma: “Deus estava preparando as nações para seu ensino. [...] Jesus nasceu no reinado do imperador Augusto (27 a.C.-14 d.C.), que incorporou muitos reinos em um único império romano. As guerras entre reinos rivais teriam entorpecido a difusão dos ensinos de Jesus por toda a terra”.47 O apóstolo não teria conseguido viajar como viajou sem as vantagens oferecidas pela paz predominante no Mare Nostrum (Mediterrâneo), que lhe permitiu deslocar-se do Oriente para o Ocidente sem passaporte, uma vez que não teve de cruzar fronteiras nem atravessar territórios em turbulência militar. Lex. Por outro lado, havia a lei romana (lex). A existência de um único código jurídico no império (o direito romano) foi um fator crucial na unificação do diversificado mundo romano. No entanto, a legislação romana não era um instrumento rígido, pois dentro de uma ampla margem de uniformidade a administração no âmbito local era flexível, tolerante e aberta. Além disso, muitos residentes das províncias desfrutavam a condição de cives romani (“cidadãos

de Roma”), com todos os seus direitos e deveres. Paulo era um deles (22.25-29), o que lhe proporcionou enormes vantagens em seu trabalho missionário. O fato de Paulo ser cidadão romano de nascimento era uma grande vantagem diante dos inevitáveis conflitos com as autoridades locais e romanas. Além disso, o direito romano, que ele conhecia muito bem, sempre trabalhou a seu favor. Via. Além disso, havia as comunicações romanas por terra e mar (via). As rotas de comunicação terrestres e marítimas estendiam-se desde a Inglaterra até a China. Em todo o mundo do mar Mediterrâneo, as estradas e as vias marítimas, a paz, a lei e a ordem romanas incentivavam o povo a viajar, tanto a negócios quanto por lazer, com uma liberdade e um conforto desconhecidos até os tempos modernos. As rotas terrestres, construídas em pedra, com drenagem, pontes e postos regulares para a reposição de montarias e descanso dos viajantes, eram basicamente para uso militar. Eram vias rápidas e bem cuidadas. As rotas marítimas eram principalmente comerciais, e muita gente transitava por elas. Atos 27.37 dá uma ideia do número de passageiros de um navio romano de grande calado. Os navios desse período cruzavam o Mediterrâneo e iam de Gibraltar (Espanha) a Roma em sete dias e de Roma a Alexandria (Egito) em dezoito dias. O périplo ao Extremo Oriente começava com uma viagem a Alexandria, que seguia pelo Nilo e depois por terra até a costa ocidental do mar Vermelho, para depois continuar pelo mar da Arábia até a África Oriental ou até a Índia. Sem essas comunicações, as viagens missionárias de Paulo e de outros cristãos teriam sido impossíveis. As estradas e as vias navegáveis construídas e desenvolvidas pelas legiões romanas, percorridas pelos apóstolos e especialmente por Paulo e seus

companheiros, conectavam os principais pontos do império como um verdadeiro aparelho circulatório. Rex. Havia também o governo romano (rex). O governo era o talento supremo dos romanos. Para eles, a política e o governo eram uma arte na qual alcançaram alto grau de sofisticação. O forte governo centralizado de Roma proporcionava paz e proteção no âmbito de todo o império. Os soldados romanos protegiam as vilas e as cidades dos ataques externos e garantiam o desenvolvimento do comércio e das missões cristãs. A unidade política do império romano tornava a bacia do Mediterrâneo um mundo unificado, regido pela mesma autoridade. Missionários como Paulo, Timóteo, Silas, Tito e outros não necessitavam de passaporte para empreender suas viagens missionárias. E foi graças à sua condição de cidadão romano que Paulo pôde apelar a César e chegar a Roma (22.21-25). Ars. Por fim, havia o talento romano (ars). A palavra latina ars significa “habilidade”, “talento”, e no plural (artis) refere-se a qualidades intelectuais ou morais, como inclinações ou conduta. Em todos esses aspectos, os romanos copiaram os gregos, mas alcançaram níveis de desenvolvimento únicos e surpreendentes. No campo da educação, enfatizavam os aspectos práticos, com pouca instrução livresca, e criaram um sistema escolar complexo. A literatura escolar desenvolvia temas da história e da filosofia, com ênfase na retórica. Embora a pintura e a escultura seguissem de perto o modelo grego, foi popularizada e orientada para destacar o patrimônio histórico de Roma, especialmente caracterizado pelo retrato. No entanto, o gênio romano e sua extraordinária habilidade técnica se expressavam acima de tudo na arquitetura. Estruturas

como a abóbada e o arco romano revolucionaram as técnicas de construção e permitiram a construção de edifícios e estruturas monumentais (pontes, aquedutos, circos, anfiteatros, basílicas, templos, fóruns). Todos esses elementos foram adaptados e usados pelos cristãos na elaboração de suas primeiras formas de arte e arquitetura. De fato, em Atos, especialmente com relação ao pensamento e ao ministério de Paulo, há vários exemplos desse talento romano. O tema da construção ou edificação aparece repetidas vezes nos escritos de Paulo (Romanos 15.20; 1Coríntios 3.10,12; 8.1; 10.23; 14.4,17; Gálatas 2.18; Efésios 2.20,22; 4.16; 1Tessalonicenses 5.11), assim como a metáfora da igreja como um edifício (1Coríntios 3.9; 2Coríntios 5.1; Efésios 2.21). O próprio Lucas usa a linguagem típica da arquitetura romana (9.31). Na verdade, as maiores dores de cabeça e os impedimentos ao ministério de Paulo entre os gentios não eram os romanos nem os pagãos gentios, mas os judeus. Eram os judeus e os judaizantes que perseguiam o apóstolo e procuravam sua morte. É por isso que, ao responder sobre o motivo das desordens que ocorriam sempre que o evangelho era pregado, F. F. Bruce argumenta que Lucas culpa os líderes judeus e suas comunidades por rejeitarem as boasnovas de Cristo. Apenas em duas ocasiões em Atos, os ataques aos cristãos partiram dos gentios, e em ambos os casos os incidentes estavam relacionados com o fato de que seu meio de subsistência estava ameaçado (16.16-21; 19.23-27). Stein argumenta que “a veemente defesa da inocência de Paulo em Atos 21—28 é voltada não tanto às autoridades romanas, e sim mais para demonstrar aos leitores de Lucas que a rejeição judaica à mensagem apostólica e a subsequente perseguição à igreja se deram exclusivamente por

causa da dureza de coração deles”.48 Isso não quer dizer que Lucas estivesse contra os judeus. O cristianismo era o cumprimento do judaísmo, e Paulo era o modelo de judeu seguidor da Lei. De fato, Jacob Jervell sugere que Lucas está tentando construir uma relação positiva entre o cristianismo e o judaísmo.49 Robert L. Brawley sustenta “que Lucas responde apologeticamente ao antagonismo judaico e professa a conciliação”. Além disso, “ele atrai para o cristianismo aqueles que considera judeus autênticos e para o judaísmo os cristãos autênticos”.50 Por fim, Eduard Schweizer declara que “é menos concebível que ele [Lucas] estivesse atacando o judaísmo: ele enfatiza que Jesus pregou repetidas vezes no contexto da adoração judaica”.51 Portanto, Lucas não investe contra o judaísmo, mas aponta com clareza a responsabilidade dos judeus mais recalcitrantes, que criam obstáculos à propagação do evangelho cristão. Mais uma vez, com relação às várias experiências ocorridas com Paulo, isso é evidente em todo o livro de Atos. Por exemplo, o governo romano queria libertar o apóstolo (24.23,26,27; 25.18,19; 26.32), mas os judeus não aceitaram essa decisão. Repetidas vezes, no livro de Atos, Lucas descreve a oposição aos mensageiros do evangelho como proveniente da comunidade judaica (4.1-22; 5.17-40; 7.1—8.3; 9.1,2,23-25; 13.50; 14.19), ao passo que funcionários do governo se mostram favoráveis a Paulo e a outros cristãos ou pelo menos declaram a inocência deles (13.7,12; 16.37-39; 18.12-17; 19.31,3541; 24.22—25.25; 26.30-32; 28.30,31), e os romanos fazem o possível para proteger os seguidores de Cristo (18.12-17; 19.3537,40).

Por sua vez, outros estudiosos, como Charles H. Talbert, acreditam que o livro de Atos foi escrito como defesa contra o gnosticismo. No entanto, seus argumentos se baseiam em evidências duvidosas, como os escritos do gnóstico conhecido como Simão, o Mago.52 Não parece haver base suficiente para afirmar que os escritos de Lucas pretendiam ser antignósticos.53

QUANDO ESCREVEU O LIVRO DE ATOS?

Como é o caso com vários outros livros do Novo Testamento, há duas possibilidades de datação para o livro de Atos: uma data mais antiga e uma data mais recente. Iremos considerar com mais detalhes cada uma dessas possíveis datas de composição. Data mais antiga: 60-70 d.C.

Se houve um pequeno lapso de tempo entre a composição do Evangelho de Lucas e o livro de Atos, então o trabalho com a cronologia de Atos nos levará aos anos 60 a 62 d.C., aproximadamente. Ou seja, a data mais antiga seria após os dois anos da primeira prisão de Paulo em Roma. Em consonância com esse fato, o final de Atos é um mistério que pode apoiar uma data mais antiga para a obra. Por que o capítulo 28 termina sem falar da morte de Paulo? Lucas sabia da morte do apóstolo ou estava escrevendo antes da morte de Paulo? Caso não o soubesse e tenha registrado apenas o que era de seu conhecimento, isso situaria a obra no início da década de 60. Earle E. Ellis argumenta que o fim repentino de Atos 28 mostra que Lucas compôs sua obra antes do morte de Paulo.54 Isso não parece correto, uma vez que uma data antiga para os “muitos” relatos da vida de Jesus é improvável (Lucas 1.1), e as referências à destruição de Jerusalém (a versão lucana de Marcos 13 em Lucas 19.43,44; 21.20) não podem ser anteriores ao ano 70. Contudo, se o autor sabia da morte de Paulo, por que não a relatou? O argumento de que Lucas não sabia da morte de Paulo, uma vez que não a relatou, não leva em consideração os padrões

literários usados pelo escritor para comunicar sua mensagem. Quanto a isso, destacam-se os paralelos entre a prisão, a morte e a ressurreição de Jesus, comparados com o naufrágio e resgate de Paulo. Em palavras simples, o autor alcançou o que se propôs alcançar. O propósito de Atos não era escrever uma biografia de Pedro ou de Paulo. Por exemplo, Lucas não dá continuidade à história de Pedro depois que o papel do apóstolo na expansão geográfica do evangelho foi cumprido. O mesmo tratamento é dado pelo autor a Barnabé, em 15.39. O mesmo ocorre no caso de Paulo. Depois de ter cumprido sua missão como agente da propagação do evangelho na capital gentia do mundo (Roma), não havia necessidade de continuar a história. Um dos principais objetivos de Lucas — mostrar como o evangelho se espalhou desde a capital judaica de Jerusalém até a capital gentia de Roma, onde os judeus rejeitaram a mensagem e os gentios a receberam — foi alcançado. F. F. Bruce, em consonância com essa linha de raciocínio, observa: “Quer a execução de Paulo tenha sido um incidente na perseguição neroniana, quer não, o fato de não ser mencionado em Atos não é um argumento decisivo para a datação do livro. O objetivo de Lucas foi alcançado quando ele trouxe Paulo a Roma e o deixou ali pregando livremente o evangelho”.55 Além disso, Graham N. Stanton argumenta que Lucas não só deixa de mencionar a morte de Paulo, como também não menciona a perseguição de Nero aos cristãos em Roma, no ano 64. Se o tivesse feito, como poderia Lucas ter descrito Roma e seu império de maneira tão favorável? Talvez a resposta seja que o autor escreveu alguns anos após esse período, quando esses

acontecimentos já não eram tão importantes. Além disso, a ausência de uma menção explícita em Atos à queda de Jerusalém pode sugerir uma data anterior ao ano 70. I. Howard Marshall sugere que “como um todo, uma data não muito distante de 70 d.C. parece atender a todos os requisitos”.56 Data mais recente: 70-90 d.C.

A data mais recente seria anterior à primeira referência a LucasAtos na literatura cristã primitiva. No entanto, não se sabe quando isso ocorreu. O que pode ser dito é que, pelo fato de Lucas ter usado Marcos como fonte para sua primeira obra, o Evangelho de Lucas deve receber uma datação posterior a Marcos, e Atos veio após o primeiro volume, ou seja, o evangelho. A questão é quanto mais tarde. De acordo com a tradição, João Marcos escreveu seu evangelho nos últimos anos da década de 60, após a morte de Pedro. Werner Georg Kümmel sugere que, “uma vez que nenhum argumento convincente pode ser aduzido para os anos anteriores ou posteriores a 70, devemos nos limitar a dizer que Marcos foi escrito por volta de 70”.57 Como temos a informação de que Pedro foi martirizado por Nero entre 65 e 67, isso levaria à conclusão de que Lucas-Atos foi escrito algum tempo depois do ano 70. O ano da destruição de Jerusalém é a chave para determinar a data de Lucas-Atos. Argumenta-se que, pelo fato de as profecias registradas de Jesus a respeito da queda de Jerusalém refletirem a interpretação de um acontecimento recente (v. Lucas 13.35a; 19.4144; 21.20-24; 23.28-31), Lucas escreveu após a destruição de Jerusalém por Tito Vespasiano, no ano 70. A maioria dos estudiosos entende que o registro de Lucas 21.20, onde se fala de “Jerusalém

rodeada de exércitos”, e de Lucas 19.43, onde é dito que “seus inimigos construirão trincheiras contra você, a rodearão e a cercarão de todos os lados”, refletem o conhecimento do local e da captura de Jerusalém. Seguindo essa ideia, Joseph A. Fitzmyer observa: “De minha parte, [...] ousaria dizer que as passagens ‘proféticas’ do discurso apocalíptico de Marcos sofreram uma reformulação deliberada, de acordo com o que o pobre Lucas, que escrevia de fora da Palestina, conhecia sobre o destino da cidade sitiada e por fim devastada pelos romanos”.58 Robert H. Stein concorda com a opinião de Fitzmyer: “Parece que as profecias de Jesus sobre a destruição de Jerusalém foram escritas à luz do conhecimento dessa destruição”.59 O salto da destruição do templo para a destruição da cidade entre Marcos e Lucas também pode indicar uma interpretação posterior do acontecimento (comp. Marcos 13.1,2 com Lucas 13.35a; 19.43,44; 21.20). John Nolland argumenta que grande parte da abordagem de Lucas ao julgamento da cidade, em vez de ao templo, é uma resposta à crítica judaica mais ampla da deslealdade cristã ao judaísmo, do qual o templo era símbolo.60 John Nolland: “Pode ser que o grau de enfoque no templo dê conta de uma data não muito posterior ao tempo de sua destruição. Tomadas em conjunto, essas considerações [...] sugerem uma data para o evangelho entre o final da década de 60 e o final da década de 70 do século I, embora não seja possível ser rigoroso nem mesmo quanto aos limites dessa faixa”.61

Como se vê, é difícil datar a composição de Lucas, conforme evidenciado pela variedade de opiniões dos estudiosos que se baseiam em hipóteses entrelaçadas. Bruce é prudente em seu ponto de vista quando sugere que “a situação histórica, geográfica e política pressuposta por [...] Lucas-Atos como um todo é

inequivocamente a do século I, não a do século II”.62 Também observa: “É difícil fixar a data de composição de Atos com mais precisão que em algum ponto dentro do período flaviano (69-96 d.C.), possivelmente em meados desse período”.63 A princípio, Fitzmyer tem o cuidado de determinar uma data mais precisa: “Por enquanto, [...] creio ter estabelecido distância suficiente entre Paulo e Lucas para que se possa admitir a identificação tradicional de Lucas e ao mesmo tempo considerar os escritos lucanos uma obra composta mais para o final dos anos 80”. Mais tarde, porém, ele concorda em datar Lucas-Atos em algum momento entre os anos 80 e 85, à semelhança de Kümmel e Juel.64 Com um argumento diferente, mas chegando à mesma conclusão, está Schweizer: “Visto que Atos trata Paulo como uma personagem principal, mas não sabe nada de suas cartas, dificilmente pode ter sido escrito após o final do século I. Portanto, a data mais provável para o evangelho é por volta do ano 80”.65 Por fim, Stein segue Kümmel e Fitzmyer e defende uma data posterior, com base em três fatores. Primeiro: as passagens que predizem a destruição de Jerusalém, ocorrida no ano 70, “são provavelmente mais bem compreendidas se escritas após o fato”. Segundo: os “muitos” relatos mencionados em Lucas 1.1, que sugerem a necessidade de algum tempo para a produção de uma pluralidade de relatórios escritos. Terceiro: o relatório favorável do governo romano, que “sugeriria uma data alguns anos após a perseguição de Nero, em meados da década de 60, e antes da perseguição sob Domiciano, em 95-96 d.C.”.66 Se isso for correto, então os textos de Lucas-Atos podem ter sido escritos por volta de 80-85, mas as evidências são escassas.

QUEM FORAM SEUS PRIMEIROS LEITORES?

O que podemos aprender sobre o público-alvo do autor, com base no texto?A evidência bíblica sugere que Lucas escreveu a um público gentio, mais especificamente cristãos gentios tementes a Deus, ou seja, simpatizantes do monoteísmo judaico. A resposta à pergunta sobre quem foram os primeiros leitores do livro de Atos pode ser obtida de uma análise do prólogo (1.1,2), da consideração do possível local de onde ele escreveu seu livro e quais as fontes que utilizou. O “querido Teófilo”

Teófilo é mencionado na introdução ao evangelho e também no prólogo do livro de Atos (“excelentíssimo” em Lucas 1.3; “estimado” em Atos 1.1). De acordo com Joseph A. Fitzmyer, deve-se considerar o mesmo destinatário para Atos e para o terceiro evangelho.67 À luz do texto, não é possível identificar um grupo mais amplo de leitores, o que é incomum em dedicatórias antigas. Visto que o título “excelentíssimo” também é usado pelo autor com relação aos governadores romanos Félix (23.26; 24.3) e Festo (26.25), presume-se que Teófilo era provavelmente um cristão gentio de certa proeminência.68 Além disso, uma vez que Teófilo significa “amigo de Deus”, já se sugeriu que se trata de uma personagem fictícia. Stein rejeita essa ideia dizendo que “é muito mais provável que Teófilo fosse uma pessoa real”.69 Graham N. Stanton é mais preciso quando afirma que “não há razão para duvidar de que Teófilo foi uma pessoa real”.70 F. F. Bruce adiciona uma localidade específica ao sugerir

que Lucas “teve uma recepção garantida entre o público leitor inteligente de Roma, do qual Teófilo provavelmente fosse um representante”. Além disso, sem dar explicações, o mesmo autor afirma que “a publicação de Atos e sua circulação entre as igrejas do Egeu [alcançou] um público mais amplo que aquele ao qual Lucas dirigiu primeiro sua história”.71 Portanto, é muito provável que Teófilo fosse um gentio “temente a Deus” — prosélito ou adepto do judaísmo. Adepto é alguém partidário de uma ideia, crença ou causa e que lhe dá apoio. É alguém que faz parte de um grupo ou de uma sociedade. Pode ser o seguidor de um líder, de um partido, de uma profissão ou de uma religião. No judaísmo, era o gentio que havia aceitado o monoteísmo ético, a maior parte da ética do judaísmo e algumas de suas práticas religiosas, mas rejeitava a circuncisão e não cumpria as leis cerimoniais. Os fariseus ocupavam-se de fazer proselitismo, a fim de ganhar adeptos para sua seita (Mateus 23.15). Em Atos, esses adeptos são chamados “tementes a Deus”. Muitos deles se tornaram cristãos. É o caso de alguns dos participantes do Pentecoste (2.5-11), de Nicolau de Antioquia (6.5), do eunuco etíope (8.26-39), de Cornélio (10.1,2,22), dos gentios da sinagoga de Antioquia da Pisídia (13.14-16,26), dos fiéis que passaram a seguir Paulo e Barnabé em Antioquia da Pisídia (13.43) e de Tício Justo (18.7). Essas pessoas, que simpatizavam com o monoteísmo ético judaico, mostraram boa disposição em aceitar a mensagem cristã. É provável que Teófilo fosse um crente gentio, proveniente do judaísmo, como um homem “temente a Deus”, que ainda não havia sido batizado. Se for assim, seria alguém como tantos que demonstram profundo interesse pela fé cristã, mas sem estar

plenamente comprometidos com ela. Entre os evangélicos da América Latina, são os chamados “simpatizantes” ou “amigos do evangelho”. O lugar de onde Lucas escreveu

O lugar da composição de Atos é incerto. Antioquia da Síria tem algum apoio tradicional, por causa do conhecimento de Lucas sobre a comunidade da igreja de Antioquia, conforme Atos (cf. 11.19,20; 13.1-4; 14.26-28; 15.1-3,13-40; 18.22,23). As características da igreja de Antioquia correspondem às de Lucas-Atos, ou seja, o evangelho é pregado aos gentios e há preocupação com os pobres. No entanto, de igual modo, a tradição mais antiga dá credibilidade à Acaia como possível lugar para a redação. Os Prólogos antimarcionitas observam: “Enquanto existiam evangelhos, o de Mateus, composto na Judeia, e o de Marcos, na Itália, ele [Lucas] foi movido pelo Espírito Santo e compôs seu evangelho inteiramente nas regiões ao redor da Acaia”.72 No entanto, não temos ideia de onde Lucas escreveu seus dois volumes. Nos tempos modernos, algumas sugestões inteligentes incluem a Ásia Menor, a Beócia, Cesareia, Decápolis, Filipos, Roma e Síria.73 Donald Juel arrisca propor que, “se os livros foram escritos pelo companheiro de Paulo, Roma pode parecer o contexto mais provável para sua composição, uma vez que o ‘nós’ ocorre no capítulo final de Atos, que fala da chegada de Paulo à capital imperial”.74 E. Earle Ellis: “Com a morte de Paulo, Lucas retorna ao Oriente, incentivado por Teófilo a concluir seu projeto. Ele tem uma cópia de Marcos e a maior parte de seus materiais em mãos. A estes acrescenta (em Antioquia? Cf. Atos 11.27) oráculos recentes dos profetas de Jerusalém, que nesses

tempos de crise comunicam com eloquência a Palavra de Deus às igrejas. Agora com suas fontes completas, Lucas se estabelece na Grécia e começa a trabalhar”.75

A maioria dos estudiosos dedica pouco espaço a essa questão e reluta em tirar conclusões definitivas. John Nolland admite que “Lucas é, sem dúvida, um homem com perfil cosmopolita, mas hesito em avançar além disso”.76 Marshall sugere: “Se soubéssemos quem era Teófilo, a situação poderia ser muito mais clara, mas seus paradeiros são tão obscuros quanto os do próprio Lucas”.77 Stein resigna-se à conclusão de que “todas essas sugestões são bastante especulativas e, em última análise, de pouca ou nenhuma importância e valor para a compreensão de Lucas-Atos”.78 Joseph A. Fitzmyer concorda com isso quando observa: “Quanto ao local onde a narrativa evangélica de Lucas pode ter sido escrita, estamos entrando no reino da conjectura pessoal. A única coisa que parece certa é que não foi composta na Palestina. [...] Em última análise, o lugar não importa muito, já que a interpretação do Evangelho segundo Lucas e do livro de Atos dos Apóstolos não depende do local em que foram escritos”.79 As fontes que utilizou

Como Lucas produziu o texto de Atos? De quais possíveis fontes ele fez uso para compor os dois livros? Embora seja conveniente começar pela análise das fontes por trás da composição do evangelho, nossa discussão a respeito das fontes de Atos será breve, por questão de espaço. No entanto, à luz da análise das fontes do evangelho, pode-se concluir que o autor de Lucas-Atos tinha pouco (se é que algum) conhecimento das cartas de Paulo. Sem dúvida, Atos foi escrito antes de as cartas paulinas passarem a

circular como uma coleção.80 Isso descartaria as epístolas paulinas como possível fonte para Lucas. Então, o que ele usou? Juel vê o autor de Atos “navegando por águas desconhecidas, e, embora pudesse ter fontes à sua disposição, é muito mais difícil isolá-las”.81 Uma das razões para isso é que “o estilo é uniformemente lucano e, portanto, não temos um critério para distinguir entre fontes e redação”.82 E. Earle Ellis apoia essa opinião quando observa: “É provável que em Atos, como faz no evangelho, Lucas extraia [os fatos] de documentos mais antigos, e nos discursos ofereça pelo menos a essência do que foi dito nas várias ocasiões. Ao mesmo tempo, a contribuição do próprio Lucas para sua forma e conteúdo é bem evidente”.83 Assim, Lucas pode ter se utilizado de certas fontes escritas de Jerusalém para os primeiros 15 capítulos da história da igreja primitiva. Para algumas partes do livro, como nos cap. 1—12 e 15, ele pode ter usado fontes em aramaico.84 Isso parece ser especialmente provável com relação aos primeiros cinco capítulos do livro e a 9.31—11.18 e 12.1-17, que narram as façanhas de Pedro, nos quais os discursos e partes da narrativa contêm expressões aramaicas semelhantes às do evangelho. No entanto, algumas fontes helenísticas também podem ser detectadas em 6.8—8.40 e 11.19-26 e até mesmo uma coleção de Atos de Pedro em 9.32—11.18 e 12.1-17.85 Também é possível que o autor tenha utilizado tradições diferentes para a construção de suas listas de nomes (cf. 1.13; 6.5; 13.1), bem como material tradicional para a composição de seus discursos. David John Williams: “Embora Lucas tenha exercido a prerrogativa editorial de cortar e polir o material que lhe chegou às mãos, ele foi extremamente fiel às suas fontes. Portanto, é razoável supor que em Atos ele outra vez se

serviu de material mais antigo e não foi menos fiel em transmiti-lo do que tinha sido em seu evangelho”.86

Para as narrativas na primeira pessoa do plural, na segunda metade do livro, Lucas provavelmente usou o próprio diário de viagem como fonte, bem como registros do itinerário de Paulo e Barnabé (13.13—14.26) e da viagem de Paulo (18.22,23). Werner Georg Kümmel acredita que Lucas teve um ou mais itinerários disponíveis para os cap. 16—18, nos quais a narrativa era na primeira pessoa do plural.87 I. Howard Marshall parece bastante seguro sobre esse ponto, especialmente porque sua conclusão se baseia na mesma suposição, embora dois parágrafos antes ele recomende a seus leitores que sejam “cautelosos por parte de qualquer um que se aventurar no mesmo campo”. Ele declara: “Parece fora de questão que algum tipo de itinerário ou alguns itinerários estejam por trás dessas seções [cap. 13—28], ainda que os limites e conteúdos de tais fontes não possam ser definidos com precisão”.88 Além disso, Marshall é mais cauteloso que Nolland e Bruce ao afirmar que Lucas é o autor das passagens na primeira pessoa do plural. No entanto, ele é mais categórico em sua opinião, ao comentar que “várias explicações têm sido oferecidas para o uso de ‘nós’ nessa parte de Atos, mas apenas uma faz sentido, ou seja, o que se utilizou foi uma fonte de alguém que realmente participou dos acontecimentos descritos”.89 Se Lucas, o médico amado, é o autor de Lucas-Atos, então outra possível fonte de seus materiais foram as pessoas que ele encontrou em suas viagens e que estariam envolvidas nos fatos narrados (comp. com Lucas 1.3). Uma vez que Paulo desempenha um papel tão importante em sua obra, com certeza o apóstolo

forneceu algumas informações ao escritor. Além disso, havia outros entre os primeiros cristãos, como Timóteo, Áquila, Priscila, Silas e todos os que faziam parte do círculo de Paulo. Todos eles podem ter contado a Lucas algumas histórias sobre as aventuras de Paulo. Na verdade, Lucas não carecia de informantes de quem pudesse extrair material.90 Barnabé também era um candidato provável como fonte de informação, especialmente se Lucas fosse de Antioquia (4.36,37; 9.26,27; 11.22,26). Outro líder com quem Lucas esteve foi Filipe de Cesareia (21.8), de quem provavelmente coletou informações para os cap. 6—8 e 10. Ele também esteve com Mnasom, “um dos primeiros discípulos” (21.16), que pode tê-lo informado acerca dos acontecimentos dos primeiros capítulos de Atos. Lucas também fez contatos pessoais em Jerusalém (21.17).91 Enquanto esteve com Paulo em Roma, pode ter tido a oportunidade de conversar com Marcos, cuja casa em Jerusalém fora o centro de operações nos primeiros dias do movimento. Marcos pode lhe ter dado informações sobre a igreja de Jerusalém e as atividades de Pedro (v. Colossenses 4.10; Filemom 24). No entanto, depois de sugerir as suposições mencionadas anteriormente, ainda estamos “quase completamente no escuro no que diz respeito às fontes de Atos”.92 Lucas pode ter tido fontes para o livro de Atos, embora seja difícil detectar de que maneira as utilizou. Em todo caso, uma coisa parece certa: Lucas imprimiu um estilo próprio em sua obra.

QUAL É A MENSAGEM ESSENCIAL DO LIVRO DE ATOS?

Uma vez que o Evangelho de Lucas e o livro de Atos foram provavelmente um único volume em sua versão original ou pelo menos foram concebidos por seu autor como uma obra em dois volumes, o prólogo do evangelho (Lucas 1.1-4) também serve de prólogo para Atos.93 Embora Lucas não tenha sido testemunha ocular de todos os acontecimentos que narra, é notável o cuidado e a precisão com que os investigou e registrou, apoiado nos próprios referenciais históricos, literários e teológicos. Assim, tanto em seu evangelho quanto em sua narrativa histórica em Atos, ele pretendia mostrar a realidade histórica e a confiabilidade teológica de Jesus e de sua igreja (Lucas 1.4). Pode ser, como já foi dito, que a mensagem de Atos seja o tema do cumprimento da missão desimpedida e sem ameaças (a última ideia expressa no livro, 28.31). Essa mensagem foi elaborada pelo uso de vários termos e frases.94 Portanto, o evangelho do Reino não é um plano B, uma saída de emergência ou uma novidade no desígnio de Deus, e sim algo predeterminado por ele desde a eternidade e anunciado com antecedência por todos os profetas da Antiguidade (2.23; 3.26; 4.28; 13.29). Uma ponte literária

O livro de Atos estabelece um elo indispensável entre os relatos da vida e do ministério de Jesus (os evangelhos), a pregação desses atos redentores em Atos (a igreja primitiva) e sua interpretação e aplicação nas cartas apostólicas que se seguem. A contribuição mais significativa da igreja cristã em seu primeiro

século de vida foi a produção, a distribuição e a preservação de duas coleções de escritos, que viriam a ser os documentos canônicos do Novo Testamento: os evangelhos e as epístolas (esp. as do apóstolo Paulo). O livro de Atos é a ponte entre as duas coleções de testemunhos do evangelho do Reino. No entanto, com as primeiras heresias cristológicas do início do século II, o valor conectivo do livro de Atos tornou-se cada vez mais evidente. O livro de Lucas revela o conteúdo e o propósito da pregação apostólica (gr. kērygma) e os resultados maravilhosos que tal pregação produziu pelo poder do Espírito Santo. O avanço entre os gentios

Além disso, na época em que Lucas escreveu sua obra, o evangelho já havia penetrado profundamente nos círculos gentios. Era preciso mostrar a essa gente alheia às tradições judaicas que o evangelho do Reino proclamado e vivido por Jesus não se tratava de mera expressão do judaísmo inconformista ou de uma tentativa de organizar uma seita separatista, e sim de algo novo com raízes profundas no passado, mas com um futuro brilhante. Desse modo, Lucas escreveu para gentios iluminados, como o “excelentíssimo Teófilo”, provavelmente um oficial romano, e talvez o tenha feito em lugares proeminentes no império romano, a fim de lhes demonstrar a grandeza e a universalidade do evangelho a que ele mesmo aderira. Para isso, Lucas utiliza fibras de uma cor muito particular ao tecer sua tapeçaria histórica. Por um lado, ele sintetiza amplamente alguns discursos importantes, proferidos em ocasiões especiais, por conspícuos representantes da tradição cristã, como Pedro (2.14-40; 3.12-26;

4.8-12; 10.34-43), Estêvão (7.2-53) e especialmente Paulo (13.1641; 17.22-31; 20.18-35; 22.1-21; 23.1-6; 24.10-21; 26.1-23). Em todos esses casos, os pregadores deixam claro que a morte de Jesus foi obra dos líderes judeus e que Jesus não era um subversivo ou inimigo do império romano. Na mesma linha, Lucas destaca a boa imagem e o apreço das autoridades romanas pelos cristãos, de modo que não havia motivo para discriminá-los ou persegui-los. O governo romano nada tinha a temer dos seguidores de Jesus. Por outro lado, Lucas destaca os contatos que os líderes cristãos tiveram com altas autoridades romanas, que, de modo geral, se dispuseram a ouvi-los e os trataram com certa tolerância, como o governador Sérgio Paulo (13.7,12); os altos magistrados de Filipos (16.35-40); Gálio, governador da Acaia (18.12-17); os asiarcas ou autoridades da província da Ásia em Éfeso, como o escrivão da cidade (19.23-41, esp. v. 31); Cláudio Lísias, o comandante das tropas romanas em Jerusalém (23.15-30); o governador Félix (24.1-27); o governador Pórcio Festo (25.1-22); o rei Herodes Agripa II (26.32); Públio, a principal autoridade da ilha de Malta (28.7-10). Um registro da pregação apostólica

Embora o objetivo principal de Lucas fosse oferecer uma história narrativa, nem por isso deixou de lado os elementos teológicos da mensagem cristã. Apesar de Atos não pretender ser um livro de doutrina, ele registra os elementos essenciais da pregação apostólica primeva, que C. H. Dodd denomina “o kērygma”, ou seja, as verdades essenciais a respeito de Jesus. Isso nos ajuda a entender como as primeiras testemunhas concebiam a essência do

evangelho, especialmente com relação à morte e à ressurreição do Senhor. Quando os discursos ou sermões de Pedro são comparados com os de Paulo, é possível descobrir que o último não foi um inovador, mas um fiel comunicador das verdades do evangelho e da mensagem apostólica (o kērygma). Desse modo, em todo o seu relato Lucas quer mostrar a maneira dinâmica e poderosa na qual a mensagem do Reino proclamada por Jesus (o evangelho) passou de um contexto estritamente judaico e nacionalista para se tornar uma mensagem universal, dirigida aos seres humanos em todo o mundo. O roteiro desse processo é bem delineado no início do livro (1.8).95 Assim, a mensagem de Lucas parece concentrada em mostrar como o testemunho do evangelho, em suas primeiras décadas de vida, se espalhou pelo mundo conhecido. Ele encerra seu registro histórico da mesma forma: “[Paulo] pregava o Reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo,abertamente, sem impedimento algum” (28.31). Essas palavras servem de conclusão para seu livro e, ao mesmo tempo, de introdução a um novo livro de fatos, que continua a ser escrito e pode preencher ainda algumas páginas antes que o Senhor retorne. O Evangelho do Espírito Santo

Em última análise, a mensagem de Atos é que o testemunho do evangelho, capacitado pelo Espírito Santo, se espalhe por todos os cantos do mundo e atinja todos os povos “abertamente, sem impedimento algum”, de acordo com o propósito eterno de Deus. Não há barreiras, fronteiras, dificuldades, impedimentos ou ameaças que possam detê-lo, pois as testemunhas desse evangelho agem

cheias do Espírito Santo e com o objetivo de chegar “até os confins da terra”. Nesse processo maravilhoso, o Espírito Santo se destaca como personagem principal de Atos, à semelhança de Jesus, o Filho do homem, no Evangelho de Lucas. Na verdade, o Espírito Santo aparece mais de 50 vezes em Atos, embora haja 11 capítulos que nem sequer o mencionam. Ele é mencionado com mais frequência na primeira metade do livro, onde Lucas parece estar citando outras fontes (possivelmente escritas na língua aramaica). No entanto, Atos é o livro do Novo Testamento com mais referências à pessoa e à obra do Espírito Santo, especialmente com relação à plenitude de seu poder e autoridade. A negação dessa evidência por alguns comentaristas é mais o reflexo de seus preconceitos e pressupostos teológicos que de uma análise objetiva. Penso que se equivoca quem afirma que Atos não é para o Espírito Santo o que os evangelhos são para Jesus. Escolhi dar o subtítulo “O Evangelho do Espírito Santo” a este comentário de Atos justamente pelo papel de protagonista que o Espírito exerce em tudo que Lucas apresenta em sua narrativa histórica. A propósito, isso não significa que Atos seja um tratado de pneumatologia e que seja a melhor base bíblica para isso. A ênfase de Lucas no Espírito Santo não é teológica, mas praxiológica, ou seja, tem mais a ver com a obra que com a pessoa do Espírito. É precisamente a abordagem praxiológica de Lucas em Atos que deixa alguns teólogos mais tradicionais desconfortáveis. Em última análise, a maioria dos comentaristas reconhece que Atos não é um livro destinado a ensinar doutrina.96 Uma evidência disso é a tentativa de fundamentar uma teologia de conversão em Atos, que pode resultar em conclusões incompletas ou parciais, uma

vez que a ordem e os elementos da conversão diferem neste livro, e é difícil estabelecer qual padrão seguir. Na verdade, o melhor material para desenvolver uma teologia ou doutrina cristã é encontrado nas epístolas, especialmente as escritas por Paulo. Ainda assim, convém lembrar que alguns estudiosos (como Hans Conzelmann) veem Lucas reorientando propositadamente as escatologias iminentes do século I com uma abordagem menos urgente da parúsia tardia. O Reino agora está aqui transformando vidas com todo o seu poder e manifestando a plenitude do poder de Deus. Portanto, Lucas parece posicionar suas lentes sobre o funcionamento de uma igreja em constante crescimento, que causa impacto na sociedade, em vez de se concentrar na esperança futura. Um evangelho universal

Outro possível componente da mensagem de Lucas em Atos é a questão do motivo da rejeição dos judeus a seu Messias, enquanto as comunidades de fé da Diáspora se tornavam cada vez mais gentias. É interessante que esse assunto só será discutido em detalhes mais tarde, por Paulo, em Romanos 9—11. Em várias passagens de Atos, destaca-se a natureza mundial e universal do evangelho e da igreja. Jesus envia seus seguidores “até os confins da terra” (1.8), e, página após página, é possível ver os judeus rejeitando seu Messias, enquanto os gentios o acolhem e o reconhecem como Senhor. Por fim, a mensagem chega a Roma, a capital ecumênica do mundo conhecido. Também é possível que a mensagem de Lucas se preste a demonstrar a diversidade desse evangelho universal. Desse modo,

encontramos na primeira parte de Atos um cristianismo judaico, representado pelo ministério apostólico de Pedro, e, na segunda parte, um cristianismo gentio, representado pelo ministério apostólico de Paulo. Parece que Lucas está tentando sugerir que é possível o convívio de ambas as expressões da fé cristã e que elas podem crescer juntas; que não são necessários nem convenientes o confronto e a competição; que a unidade é possível na diversidade; que a evangelização do mundo exige a participação de ambos os grupos.

QUAL É O DESAFIO PERMANENTE DO LIVRO DE ATOS?

De acordo com Lucas, o objetivo do evangelho do Reino é que Jesus reine em toda a criação, que seja o Rei (Senhor) de tudo e de todos. Para alcançar esse objetivo, a igreja de Jesus Cristo, que está sujeita a ele e o reconhece e confessa como o único Senhor, deve cumprir uma tarefa quíntupla. É possível perceber nisso a ênfase missiológica fartamente evidenciada por Lucas ao longo de sua narrativa histórica. À semelhança do plano de trabalho que o Senhor designou a Paulo como apóstolo dos gentios (26.18), a igreja deve cumprir essas cinco tarefas. Não há outra maneira de cumprir no mundo a missão a ela atribuída. As cinco tarefas

Quais são as cinco tarefas que dão sentido à existência histórica da igreja e expressam a essência de sua missão no mundo? Primeira: abrir os olhos dos incrédulos, que por natureza e por causa do Diabo não podem ver “a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus” (2Coríntios 4.4). Sem essa iluminação da mente pela obra do Espírito Santo, é muito difícil para o ser humano entender o evangelho do Reino e desejar aceitá-lo e segui-lo. Segunda: fazer que os incrédulos se convertam “das trevas para a luz” (26.18), uma vez que em sua condição decaída eles não podem ver o Cristo, que é a Luz do mundo e o único capaz de suprir suas necessidades. Trata-se de uma mudança de ambiente ou de atmosfera, que implica uma mudança verdadeira e radical de visão de mundo.

Terceira: levar os incrédulos a se converterem “do poder de Satanás para Deus” (26.18), pois só com essa mudança de pacto e de influência eles poderão alcançar Cristo. Essa mudança é fundamental, pois envolve o repúdio consciente de tudo que até então controlava a vida deles. A igreja primitiva incentivava os candidatos a seguidores de Jesus a renunciar, por meio de uma aliança solene, “ao Diabo e todas as suas obras”. Os evangélicos de hoje devem retornar a essa prática dos primeiros cristãos, para que os novos crentes venham a se comprometer e a permitir que o Senhor controle a vida deles. Quarta: fazer que os incrédulos, por meio da fé em Cristo, “recebam o perdão dos pecados” (26.18). Esse perdão, que é um dom da igreja de Deus, só é possível quando ocorre a mencionada mudança de pacto. A palavra grega que Lucas utiliza aqui para “perdão” é áfesis. É importante observar que o foco em seu significado (o mesmo que em afíēmi e apolýō) incide na culpa do malfeitor, não no próprio mal. O que é perdoado não é a ação de fazer o mal, e sim a culpa resultante de tal ação. Quinto, permitir que os incrédulos recebam “herança entre os que são santificados” (26.18). Depois que forem devidamente dados os quatro passos anteriores, o novo crente obtém seu ingresso no corpo de Cristo e, por meio do batismo, se compromete com uma congregação local de seus seguidores. Uma mensagem

Quando a igreja prega e vive o evangelho na sequência que delineamos, o que ela faz é afirmar que Cristo é o Rei e o Senhor. O elemento principal nessa sequência evangelizadora é o fato de o

evangelho ser uma Pessoa: Cristo. Recebê-lo (João 1.11,12) significa submeter-se voluntária e conscientemente a uma nova autoridade, que reinará sobre toda a vida e por toda a vida: a autoridade de Cristo como Senhor. Desse modo, pregar o evangelho é pregar o Reino de Deus, e toda vez que se anuncia o Reino de Deus o evangelho é proclamado. A Declaração de Quito afirma: “Todo o conselho de Deus e a manifestação de seu Reino se nos dão a conhecer por meio do evangelho”.97

COMO DEVEMOS LER O LIVRO DE ATOS HOJE?

A maneira mais produtiva de ler o livro de Atos nos dias atuais é dando atenção a alguns de seus temas exclusivos. Se todo o nosso interesse por esse livro se resumir à reconstrução histórica de sucessivos episódios do testemunho cristão em suas três ou quatro primeiras décadas de existência, obteremos uma visão muito parcial de seu valor. Atos destaca algumas realidades fundamentais para nosso melhor desempenho na missão que temos de cumprir no mundo de hoje. Quais são alguns desses elementos fundamentais para o bom desempenho da igreja no mundo em nossos dias? Os quatro Pentecostes

Uma forma produtiva de entender o desenvolvimento da obra de Lucas é observando os episódios de derramamento do Espírito Santo nos vários setores humanos implicados em 1.8. Desse modo, é possível detectar quatro experiências relacionadas com o cumprimento da “promessa do Pai” (1.4), do batismo “com o Espírito Santo” (1.5) ou da descida do Espírito Santo sobre os crentes (1.8): o Pentecoste judaico, o Pentecoste samaritano, o Pentecoste gentio e o Pentecoste universal. O Espírito Santo no Pentecoste judaico. Em 2.1-41, encontramos o primeiro grande acontecimento de Atos, que tem como protagonista o Espírito Santo e Jerusalém como cenário. O episódio é apresentado como o ato inaugural da ação do Espírito no seio da igreja e, como tal, considerado o dia de seu nascimento. Por sua importância, convém destacar oito questões, cuja análise poderá

nos ajudar a entender melhor o papel do Espírito nesse acontecimento. O significado do Pentecoste. A palavra significa “quinquagésimo” ou “número cinquenta”. Foi o nome que os judeus de língua grega deram à “festa das semanas”. Essa festa era a segunda das três principais festas da colheita e exigia a presença de judeus piedosos no templo (Êxodo 34.22; Deuteronômio 16.10; Números 28.26; 2Crônicas 8.13). A primeira era a festa dos pães sem fermento, e a terceira era a festa das cabanas ou dos tabernáculos (Deuteronômio 16.16). A festa do meio era chamada “festa das semanas” porque ocorria uma semana de semanas (sete semanas) após a festa da colheita dos primeiros frutos, quando um dos feixes recém-colhidos era movido diante do Senhor (Levítico 23.10-16; Deuteronômio 16.9,10). O Pentecoste era a festa da colheita, que acontecia cinquenta dias após a Páscoa. Nos tempos do Antigo Testamento, a maioria dos judeus não tinha uma ideia muito clara do simbolismo do dia de Pentecoste. Mais tarde, como indica o Talmude, eles começaram a observá-lo como o dia de comemoração da promulgação da Lei no monte Sinai. Desse modo, a festa celebrava duas ocasiões: a colheita e a outorga da Lei no Sinai. Ambos são símbolos da colheita dos frutos do Espírito e da nova lei de Deus para seu povo. A ocasião do Pentecoste. Por que o Espírito Santo esperou até o Pentecoste para se manifestar? Por que não o fez antes? Talvez por ser necessário que a obra redentora de Cristo fosse consumada primeiro, em sua morte, ressurreição e ascensão. Depois que Cristo realizou essas ações redentoras fundamentais, o poder redentor foi liberado na vida dos seres humanos. Era preciso que o kairós da

manifestação do poder redentor de Deus em Cristo se manifestasse primeiro e então fosse seguido pelo kairós da manifestação do poder redentor de Deus por intermédio do Espírito Santo. Assim como Cristo se manifestou “quando chegou a plenitude do tempo” (Gálatas 4.4), o Espírito se manifestou “chegando o dia de Pentecoste” (2.1). Isso significa que ele não foi derramado em um momento qualquer (gr. chrónos), mas na hora precisa (gr. kairós), em que Deus decidiu cumprir sua promessa de dotar os seguidores de Jesus do poder necessário ao cumprimento da missão (1.4-8). A importância do Pentecoste. O Pentecoste é tão importante para a fé cristã quanto a morte e a ressurreição de Cristo. Se a obra de Cristo na cruz e o túmulo vazio constituem o aspecto histórico da redenção, a manifestação do Espírito Santo constitui seu aspecto experiencial. E não pode haver um aspecto sem o  outro: ambos estão intimamente relacionados e dão sentido um ao outro. O Pentecoste representa o poder redentor da cruz e da ressurreição e se faz real na experiência pessoal do ser humano. O Espírito Santo não veio para tomar o lugar de um Cristo ausente, mas para tornar real o Cristo vivo e presente em nós. Não se trata, portanto, de propor uma escolha entre Cristo e o Espírito Santo. Tampouco é Cristo e o Espírito Santo, mas Cristo é conhecido e manifesto por meio do Espírito Santo. Frederick Dale Bruner: “O parágrafo inicial de Atos [1.1-5] estabeleceu os termos normativos pelos quais o Espírito Santo deve ser entendido no restante do livro. Esse parágrafo é o léxico do Espírito em Atos. Assim como a frase de abertura une o Espírito Santo à obra de Jesus, o parágrafo inicial reveste o Espírito com um nome apropriado: a promessa. Desde o início, o Espírito Santo é a maneira de Jesus trabalhar em sua igreja (v. 1,2), e a igreja irá recebê-lo livre, inclusiva e indicativamente — como uma promessa (v. 4,5)”.98

As manifestações do Pentecoste. Em Atos 2.1-4, Lucas registra cuidadosamente a variedade, a diversidade e o caráter dessas manifestações; todas sinais tangíveis e visíveis do Espírito invisível. A primeira manifestação do Espírito foi como vento ou sopro, símbolo de poder, e como o de uma tempestade. Foi um sinal audível da presença do Espírito, e o som deve ter sido impressionante. Jesus já havia usado a imagem do vento para ilustrar o caráter do Espírito, quando disse: “O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito” (João 3.8). A segunda manifestação do Espírito foi como fogo. Era um sinal visual e lembrava as palavras de João Batista em Lucas 3.16: “Ele [o Messias] os batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Simbolizava o juízo, a purificação e o testemunho ardente dos discípulos. O fogo indica a necessidade de cada pessoa que deseja ser usada por Deus para a evangelização do mundo experimentar seu poder, viver em sua presença e caracterizar-se por sua santidade. A terceira manifestação do Espírito foi “noutras línguas”. Foi um sinal oral e remetia às palavras de Jesus registradas em João 14.12: “Digo a verdade: Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai”. Cheios do Espírito Santo, os discípulos no aposento foram capacitados para pregar a uma variedade de pessoas na própria língua delas e ao mesmo tempo — algo que Jesus nunca pôde fazer durante seu ministério terreno. C. Peter Wagner: “É notável para mim que o primeiro milagre registrado após a ascensão de Jesus seja uma obra que, até onde percebo, o Espírito Santo nunca realizou por meio de Jesus. Jesus nunca falou uma língua que não aprendeu, mas seus discípulos sim. Na verdade, eles falavam entre si

em pelo menos 15 outras línguas, e aqueles com quem falavam os entendiam como em sua língua nativa. Pode-se debater se essa é uma ‘obra ainda maior’, mas com certeza foi muito diferente de tudo que já havia acontecido”.99

Os efeitos do Pentecoste. Em Atos 2.14-40, Lucas registra em detalhes algumas das manifestações sobrenaturais da experiência do Pentecoste. Uma das mais marcantes foi o fenômeno das línguas. Os discípulos foram capacitados a falar em outras línguas e em dialetos desconhecidos para eles, a fim de comunicarem o evangelho às multidões de visitantes que estavam em Jerusalém por causa da festa (2.9-11). Além disso, os discípulos tiveram a coragem renovada para encarar o compromisso de proclamar o evangelho do Reino. Já não temiam mais as autoridades e com intrepidez afirmavam seu compromisso de fidelidade ao Senhor (2.12-15). Ao mesmo tempo, o enchimento do Espírito e seus efeitos sobre os discípulos evidenciavam a graça posta em operação por ele. Isso se refletiu em duas ações que, desde então, têm sido a essência da vida e do testemunho da igreja no cumprimento de sua missão: a proclamação do evangelho do Reino e o batismo dos fiéis (Mateus 28.19,20). Frederick Dale Bruner: “Os meios usados por Lucas até esse ponto [Atos 2] para definir o dom do Espírito — com verbos (indicativo, voz passiva, segunda pessoa do plural inclusiva), substantivos (‘promessa’, ‘dom’) ou mesmo preposições (‘sobre’) — apontam todos eles para a pura graça e divindade do Espírito — o Espírito Santo. E esse Espírito Santo, em consonância com os nomes que lhe são conferidos em Atos, é dado pelos ‘meios da graça’. Esses meios, estabelecidos como os primeiros frutos do Pentecoste, são a pregação cristã (2.5-37) e seu selo, o batismo cristão (2.38-41)”.100

A mensagem do Pentecoste. A síntese do discurso de Pedro, que Lucas registra em 2.14-40, representa o conteúdo do que todo o grupo dos primeiros cristãos comunicou à multidão reunida. Na mensagem de Pedro, encontramos o evangelho em essência. Pedro demonstra uma nova compreensão de Jesus, que ele não teve durante o tempo de sua peregrinação com o Senhor. É interessante que Jesus seja o centro da mensagem, não o Espírito Santo. No sermão de Pedro, há quatro divisões principais. Em primeiro lugar, os grandes dias prometidos pelos profetas finalmente chegaram, e a nova era messiânica amanheceu. De acordo com Pedro, as profecias foram cumpridas em Jesus (2.16-21; comp. com Joel 2.2832). Em segundo lugar, a nova era chegou por meio do mesmo Jesus que foi crucificado, ressuscitado e exaltado (2.23-35; cf. v. 2224,32,36). Em terceiro lugar, esse Jesus é também o Messias, o Ungido de Deus, e já foi exaltado como Senhor (2.36). Antes ele era o Cristo limitado e local, mas agora foi engrandecido com senhorio e poder universais. Em quarto lugar, uma vez que essas verdades são um fato, os seres humanos devem se arrepender, ser perdoados e batizados e receber o Espírito Santo (2.38,39). O batismo simboliza a passagem para um novo estado de perdão por causa do arrependimento. Os resultados do Pentecoste. Iniciando com o que será uma constante em seu livro, Lucas tem a preocupação de fazer uma síntese estatística e uma avaliação geral de toda a experiência. Em Atos 2.40-42, ele registra informações que demonstram resultados surpreendentes. Esse resumo dos fatos desempenha um papel importante, pois, além de mencionar personagens e incidentes específicos, Lucas se propôs fazer uma síntese que nos ajudasse a

ver o panorama do que havia acontecido. Não foi por ter o autor bíblico algum interesse na estatística como um fim, mas por entendê-la como um instrumento que permite uma avaliação concreta dos resultados dessas operações espirituais do Espírito e das tarefas que, cheios dele e por obediência, executamos em nome de Jesus. Justo L. González: “Por todo o livro de Atos, encontramos vários ‘resumos’ ou sumários [...] (além desse, os mais extensos são 4.32-35 e 5.12-16, mas há muitos outros, mais breves: 6.7; 9.31; 19.20; 28.31 etc.). [...] Quanto à função desses resumos, deve ficar claro: Lucas busca um equilíbrio entre a narração de incidentes particulares e a declaração mais generalizada do que está acontecendo”.101

O propósito do Pentecoste. O Espírito Santo desceu para morar com os crentes de forma permanente e enchê-los de poder e autoridade, a fim de que pudessem cumprir sua missão no mundo. Desse modo, o Espírito deu início à formação de um novo organismo: a igreja. O Pentecoste marca o dia do nascimento histórico da igreja cristã. A presença viva do Senhor ressuscitado por meio do Espírito Santo, que outorgava a seus seguidores o poder necessário para dar testemunho dele em todo o mundo, é o que constitui a igreja. No Pentecoste, cumpriram-se as promessas de Deus a seu povo, tornaram-se realidade também as promessas de Jesus, e os discípulos saíram em missão equipados com o Espírito Santo. A partir do Pentecoste, os seguidores de Jesus passaram a confiar no poder sobrenatural do Espírito Santo para cumprir sua missão, o que explica a surpreendente eficácia de seu testemunho cristão. Kenneth S. Latourette: “Os discípulos, como outros homens e cristãos de todos os séculos, continuaram a ser humanos. No entanto, havia neles um

poder, uma vida que veio a eles por meio de Jesus, a qual operava uma transformação moral e espiritual. Esse poder e essa vida eram contagiosos. O relato da operação desse poder e dessa vida nos séculos seguintes é a história do cristianismo”.102

O Espírito Santo no Pentecoste samaritano. A vida e o serviço de Filipe constituem uma espécie de marco na história da igreja primitiva. Foi como a peça de uma engrenagem que permitiu uma virada substancial na vida e no testemunho dos primeiros cristãos. A perseguição que se seguiu ao martírio de Estêvão (8.1-3) levou à dispersão dos cristãos de Jerusalém e à abertura de um importante espaço missionário para que o testemunho de Cristo se expandisse por toda a região. Ocorreu assim a primeira jornada evangelizadora de Filipe, que se apresenta como o primeiro evangelista em massa da igreja primitiva. Desse modo, a essência de todo o relato de 8.425 é eminentemente missionária por natureza e evidencia o Espírito Santo como o grande agente dessa missão. W. Ward Gasque: “O Espírito está no comando. O Espírito garante a continuidade com Jesus e é a fonte da autenticidade da missão cristã. Portanto, a teologia de Atos está centrada na missão. A igreja existe não para si mesma, e sim para o mundo, para dar um testemunho corajoso do que Deus fez e está fazendo em Jesus. [...] A ênfase está no crescimento da igreja por meio da proclamação da palavra”.103

Em 8.4-25, somos apresentados a uma sequência de episódios ocorridos nos primeiros dias do testemunho cristão em Samaria. A cidade foi abalada não só pela pregação de Filipe, mas especialmente pelos “sinais milagrosos que ele realizava” (8.6). Em meio ao rebuliço resultante de atos redentores tão surpreendentes, Lucas destaca a presença de certo Simão, que aparece como um ator humano dissonante em um contexto em que a poderosa

operação do Espírito Santo era tão evidente. A passagem destaca três níveis de relações, todas elas ligadas à ação do Espírito. A relação entre Simão e Filipe. Por um lado, estava a relação entre Simão e Filipe (8.9-13). A influência de Simão na cidade era grande (8.9-11). Sua ocupação era a prática da feitiçaria. Não se tratava de truques inocentes para entretenimento, mas de rituais satânicos, nos quais, sob o pretexto da religião, a fraude se mesclava com o poder demoníaco. O perfil religioso de seu negócio tenebroso é evidenciado pela opinião popular: “Este homem é o poder divino conhecido como Grande Poder” (8.10). Por esse motivo, suas ações causavam grande impacto sobre a população, “impressionando todo o povo”, e este “dava-lhe atenção” e “o seguiam, pois ele os havia iludido”. Ou seja, eram pessoas enfeitiçadas, presas pelos laços demoníacos e pelo ocultismo. A influência de Simão, porém, começou a enfraquecer (8.12). Havia se manifestado um poder maior que as forças que ele parecia controlar. Tratava-se nada menos do que o poder das “boas-novas do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo” (Romanos 1.16; Lucas 11.2022). O resultado foi imediato: os samaritanos creram e foram batizados, ou seja, firmaram uma nova aliança, dessa vez com o Deus verdadeiro. Desse modo, a influência de Simão foi neutralizada pela pregação do evangelho, e o agente das trevas sofreu uma transformação inesperada (8.13). Essa transformação foi o resultado de sua aceitação do evangelho. Simão creu e foi batizado. Infelizmente, limitou-se a ser um “seguidor” de Felipe e admirador dos “grandes sinais e milagres que eram realizados”.

A relação entre os apóstolos e a igreja samaritana. Por outro lado, a passagem apresenta a relação entre os apóstolos e a igreja samaritana iniciante. Os apóstolos receberam notícias do que estava acontecendo em Samaria (8.14) e atuaram imediatamente. Avaliaram o acontecido como algo importante, como uma extensão significativa do evangelho além do judaísmo, e enviaram dois líderes de destaque, como Pedro e João. O propósito era que ministrassem aos novos crentes de modo que eles fossem cheios do Espírito Santo, tal como havia acontecido com eles no dia de Pentecoste. Os apóstolos oraram (8.15,16) para que os samaritanos fossem cheios do Espírito e recebessem os dons carismáticos necessários, a fim de que pudessem funcionar como igreja. Quando os apóstolos Pedro e João chegaram à cidade de Samaria, muitos dos samaritanos já eram crentes. Eles foram enviados de Jerusalém exatamente porque “aprenderam que os samaritanos haviam aceitado a palavra de Deus” (Atos 8.14). Quando uma pessoa aceita a palavra do Senhor, ou seja, quando recebe a Cristo como Salvador e Senhor, recebe do Espírito Santo a plenitude e pode-se dizer que tem o Espírito Santo. Quando Pedro e João oraram por eles, não era para que recebessem o Espírito Santo pela primeira vez, porque eles já o haviam aceitado, mas para que o Espírito Santo os preenchesse (Efésios 5.18). Quando o Espírito Santo enche uma pessoa (no pentecostalismo, essa experiência é chamada de “batismo do Espírito Santo”, mas na realidade é uma unção do Espírito Santo), geralmente há manifestações sobrenaturais como línguas, quedas, milagres, sinais, maravilhas. Foi exatamente isso que chamou a atenção de Simão, que queria comprar a unção do Espírito Santo que os apóstolos transmitiam

pela imposição de mãos. Este é um ponto muito importante da doutrina porque há muita confusão sobre isso na América Latina. O Espírito Santo é recebido com a conversão (Atos 2.38; 1Coríntios 12.3; Efésios 1.13). No entanto, os dons do Espírito se manifestam com o enchimento (Atos 2.4; 19.6). A ministração da oração apostólica foi mediante a imposição de mãos (8.17). A imposição de mãos (19.6) era uma prática comum desde a Antiguidade, como meio de comunicação espiritual (Deuteronômio 34.9). Os receptores de tal ministração foram “eles”, ou seja, todos os crentes samaritanos. O enchimento do Espírito foi uma experiência pessoal e espiritual, mas, como se costuma dizer, teve manifestações externas evidentes. De fato, Simão se viu tentado a comprar o poder de Deus ao ver “que o Espírito era dado com a imposição das mãos dos apóstolos” (8.18). A relação entre Simão e o dom do poder do Espírito Santo. Por fim, havia a relação entre Simão e o dom do poder do Espírito Santo (8.18-24). Por causa de sua mentalidade de mago, Simão pensava que os apóstolos administravam o poder do Espírito Santo pela imposição de mãos. Por isso, pediu: “Deem-me também este poder, para que a pessoa sobre quem eu puser as mãos receba o Espírito Santo” (v. 19). A passagem inteira é importante para entender o dom do poder do Espírito Santo e, de fato, constitui a única instrução negativa e independente que temos sobre o tema do Espírito Santo em Atos. Simão queria o poder do Espírito para 1) obter maior poder espiritual; 2) por isso, estava disposto a fazer um sacrifício dispendioso para conseguir esse poder; 3) no entanto, teve de enfrentar as consequências dessa busca espúria de poder espiritual. Examinemos cada um desses aspectos em detalhes.

Em primeiro lugar, Simão ficou impressionado com o que viu o Espírito Santo realizar, ou seja, dar poder. Por esse motivo, desejou obter e conferir esse poder a outros, ou seja, ser uma espécie de administrador (mediador) do poder do Espírito Santo. Tal intenção e seu subsequente juízo servem de grave advertência: o desejo de obter e conceder o dom do Espírito Santo fundamentalmente em razão de adquirir mais poder é muito perigoso. Não é o poder do Espírito que devemos desejar, mas o próprio Espírito Santo. Em segundo lugar, Simão estava disposto a fazer um sacrifício considerável para obter o dom do poder do Espírito. Não foi simplesmente uma oferta financeira descabida que Pedro repreendeu, e sim o “conceito” ofensivo (gr. epínoia, “pensamento”, “propósito” [v. 22]; cf. gr. nomízō, “intenção”, “propósito”, “pensamento”, “atitude” [v. 20]) de que o dom do Espírito podia ser obtido (gr. ktáomai) por meios humanos (gr. dià chrēmátōn). Em terceiro lugar, a atitude de Simão não merecia ser classificada de outra forma senão como “maldade” ou má intenção (v. 22). Por isso, o único caminho que ele tinha diante de si era o da “amargura”, por estar “preso pelo pecado”. A única possibilidade de escapar do juízo divino era arrepender-se e implorar ao Senhor por seu perdão. Lamentavelmente, Simão não conseguiu se libertar da mentalidade de mago e continuou apelando aos supostos taumaturgos (Pedro, João e Filipe) para resolver seu problema: “Orem vocês ao Senhor por mim”. Sem dúvida, Simão ainda não tivera um conhecimento pessoal da graça do Senhor. Paul Hertig e Robert Gallagher: “Em Atos, Samaria torna-se outra vez um ponto-chave intermediário entre a missão aos judeus e aos gentios ao propagar o evangelho no mundo gentio por meio do ministério de Filipe (8.440). Esse episódio samaritano contém dois temas sobrepostos que

impulsionam o povo de Deus ao mundo. 1) A expansão até Samaria lançou a segunda fase do programa de Atos 1.8. A missão samaritana, de acordo com Lucas, representa a etapa intermediária do movimento evangélico, a conexão entre a missão em Jerusalém e a missão no mundo. Os samaritanos, que eram uma mistura racial, estavam a meio caminho entre judeus e gentios. 2) O primeiro contato com uma teologia não judaica [ocorreu] no encontro de Filipe com Simão, o mago, no qual este tentou comprar o Espírito Santo (Atos 8.9-24)”.104

O interessante sobre o segundo Pentecoste, em Samaria, é que, à semelhança do primeiro, em Jerusalém, o derramamento do Espírito Santo sobre os samaritanos resultou em uma grande expansão do testemunho do evangelho. No v. 25, Lucas insere um de seus frequentes resumos ou avaliações sobre o avanço do Reino: “Tendo testemunhado e proclamado a palavra do Senhor, Pedro e João voltaram a Jerusalém, pregando o evangelho em muitos povoados samaritanos”. O Espírito Santo no Pentecoste gentio. Em 10.44-46, somos informados de outra experiência coletiva do enchimento do Espírito Santo. Dessa vez, o fenômeno espiritual ocorreu em um contexto mais tranquilo. Pedro foi enviado à casa de Cornélio, depois de ter tido uma visão que o convenceu de que o evangelho era também para os gentios (10.9-43). Pedro proclamou o evangelho, e o Espírito desceu. Para surpresa de todos, Deus concedeu seu Pentecoste aos gentios e o fez de forma tão surpreendente que Pedro e seus companheiros judeus ficaram atônitos, sem palavras. A história é cheia de surpresas e chama a atenção por três motivos. O propósito desse Pentecoste. Não há dúvida de que o propósito desse episódio, que ocorreu na casa de Cornélio, era ensinar a igreja — de forma tão dramática quanto no caso do Pentecoste

samaritano — que Deus aceita todos os seres humanos, à parte da observância de quaisquer prescrições legais, e lhes concede livre e gratuitamente o dom do Espírito Santo pela fé. Quanto a isso, é interessante notar a semelhança entre esse episódio e o ocorrido em Jerusalém. A intervenção divina foi idêntica e resultou na introdução dos gentios na igreja, assim como aconteceu com os judeus em Jerusalém (“como nós”, 10.47; cf. 11.15). Isso significa que judeus e gentios estavam no mesmo nível na igreja. John Rea: “A primeira missão aos gentios foi um acontecimento de importância fundamental no cumprimento do mandato de Cristo de pregar o evangelho a todas as nações. É evidente que Deus agiu de modo soberano na conversão de Cornélio e sua família e no batismo deles com o Espírito. Antes disso, o Senhor agiu a fim de preparar o centurião romano e o apóstolo judeu para seu primeiro encontro. Ele deu uma visão a cada um e falou a um por meio de um anjo e a outro por meio do Espírito”.105

A evidência desse Pentecoste. Como em Jerusalém, a evidência do enchimento do Espírito era que os crentes falavam em línguas e louvavam a Deus (v. 45,46). Não poderia haver uma demonstração mais vigorosa aos céticos crentes “defensores da circuncisão” de que o evangelho também era para os gentios. As línguas constituíam um sinal da autenticidade da operação do Espírito não por serem esperadas, obrigatórias ou frequentes: era justamente o contrário. O único antecedente que Pedro e seus companheiros conheciam era o ocorrido em Jerusalém, no dia de Pentecoste. As línguas aqui vinham deixar claro que Deus queria que os gentios fizessem parte de seu povo com os judeus. C. Peter Wagner: “Embora o dom pentecostal de línguas na fase I (Atos 2) fosse especificamente destinado à proclamação do evangelho aos representantes dos muitos grupos étnicos presentes em Jerusalém na ocasião, o dom de línguas aqui, na casa de Cornélio, parece ter sido uma

confirmação da validade das primeiras conversões de gentios. Falar em línguas — nesse caso em particular, a evidência física inicial do enchimento do Espírito Santo — foi o bastante para Pedro ordenar o batismo imediatamente”.106

O surpreendente nesse Pentecoste. Pedro e seus companheiros foram apanhados de surpresa quando os gentios começaram a falar em línguas (“ficaram admirados”, v. 45). É interessante que o falar em línguas é mencionado em Atos 2 e 10, mas em ambos os casos se trata de uma experiência não procurada, não esperada nem solicitada. Causa surpresa também o fato de as línguas terem ocorrido no momento da conversão, experiência que parece ter envolvido “todos os que ouviam a mensagem” (v. 44). É surpreendente ainda que os novos crentes foram batizados em água logo após terem vivenciado essas experiências espirituais profundas (v. 46-48). Com relação ao batismo, o enchimento ou a unção do Espírito Santo pode vir imediatamente antes do batismo (pelo menos nesse caso singular), logo após o batismo (cf. 19.5,6) ou no momento do batismo (2.38), mas nunca, em nenhum lugar do Novo Testamento, à parte do batismo. Frederick Dale Bruner: “A conexão íntima entre o batismo e o Espírito, estabelecida no Pentecoste (2.38,39) e dramaticamente confirmada em Samaria (8.14-17), encontra expressão outra vez aqui em Cesareia. Uma vez que, evidentemente, era impossível para os apóstolos associar o dom do Espírito Santo com outra coisa senão o batismo, os novos convertidos foram batizados de imediato (10.48)”.107

O Espírito Santo no Pentecoste universal. Em 19.1-10, encontramos uma nova experiência coletiva de enchimento do Espírito Santo, com resultados surpreendentes. O cenário do fenômeno é a cidade de Éfeso, e o apóstolo Paulo surge como

protagonista nesse episódio. Sua primeira visita a Éfeso ocorreu no final de sua segunda viagem missionária. Ele havia deixado Corinto com Priscila e Áquila, mas, ao chegar a Éfeso, o casal resolveu permanecer ali enquanto o apóstolo continuou sua jornada até Cesareia e por fim, depois de passar por Jerusalém, chegou a Antioquia na Síria (18.18-22). Depois de um tempo em Antioquia, Paulo “partiu dali e viajou por toda a região da Galácia e da Frígia, fortalecendo todos os discípulos” (18.23). Mais ou menos na mesma época, Apolo, orador e evangelista muito capaz, chegou a Éfeso e começou a pregar com ousadia a respeito do Senhor Jesus (18.2426). Logo depois, ele partiu para a província da Acaia e continuou seu ministério em Corinto (18.27). Enquanto Apolo pregava em Corinto, Paulo, depois de percorrer “as regiões altas”, voltou à cidade de Éfeso para animar os crentes (19.1). Ele havia deixado Priscila e Áquila à frente da igreja durante sua breve visita anterior. Mas agora, ao retornar, encontrou um grupo de 12 discípulos que tinham vivenciado apenas parte da mensagem do evangelho (19.1-7). Ao que parece, eram crentes em Cristo (como os samaritanos, 8.14-17), razão pela qual são chamados “discípulos” e tinham sido batizados. É estranho que eles não tivessem ouvido falar do Espírito Santo, de modo que possivelmente Paulo não estava lidando aqui com o desconhecimento da existência do Espírito, e sim com a falta de uma consciência plena da presença ativa do Espírito, de que a promessa do batismo “com o Espírito Santo” (1.5) já fora cumprida e de que seu poder estava acessível a todos os que cressem.108 A singularidade do novo Pentecoste. Já observamos três Pentecostes. 1) Em Jerusalém, ocorreu o derramamento inicial do

Espírito (2.1-13). 2) Mais tarde, em Samaria, Pedro e João chegaram de Jerusalém para impor as mãos aos crentes samaritanos que receberam o Espírito (8.14-17). 3) Em Cesareia, o Espírito desceu sobre todos os que ouviram a pregação de Pedro na casa do gentio Cornélio (10.44-48). Como já foi dito, cada um desses Pentecostes mostra o progresso da missão (de acordo com o esboço de 1.8) de Jerusalém para Samaria (além dos limites da Judeia) e Cesareia (aos gentios, ao longo da costa palestina do Mediterrâneo). O quarto Pentecoste, ocorrido em Éfeso, leva a divulgação do evangelho um passo adiante, pois “todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor” (19.10). Desse modo, cada Pentecoste serviu como catalisador para aumentar a difusão do evangelho. Nos três primeiros Pentecostes, pelo menos um apóstolo de Jerusalém (um dos Doze) esteve presente para confirmar a obra do Espírito e transmitir a plenitude do Espírito por meio da imposição de mãos. No segundo e no terceiro, a obra do Espírito foi autenticada em outras terras e uniu os crentes através das barreiras culturais. No quarto Pentecoste, porém, a presença de um dos Doze ou de um apóstolo de Jerusalém já não foi necessária. Agora que o evangelho se espalhava amplamente, foi Paulo, o apóstolo dos gentios, quem começou a obra do Espírito em novas terras. Stephen J. Pettis: “Esse incidente é um lembrete da abrangência do evangelho. Uma compreensão parcial do evangelho provavelmente levará a um cristianismo superficial. Seria esse o problema que os efésios estavam enfrentando com o surgimento dos ensinamentos dos nicolaítas (Apocalipse 2.6,15)? Teriam alguns membro dessa igreja começado a construir a vida sobre uma compreensão parcial da liberdade cristã por meio da graça e acabado em uma vida de devassidão, em um cristianismo predisposto a se

envolver com a sociedade pagã? A contextualização não pode ser mero comprometimento. Sem dúvida, Priscila e Áquila não pretendiam plantar uma igreja libertina, mas os líderes precisam ser cuidadosos”.109

A necessidade do novo Pentecoste. Em 19.4, Paulo tenta corrigir a situação espiritual dos novos crentes de Éfeso e lhes ensina como passar de um evangelho de arrependimento para um evangelho de poder. Explica-lhes que  o batismo de João foi um batismo de arrependimento e de fé no Messias que estava por vir, mas era apenas o primeiro passo em um processo que tinha como finalidade a transformação total da vida. João confrontou o povo com os pecados deles e os conclamou a fugir do juízo vindouro (Lucas 3.214). Bruce classifica esse batismo como “pré-pentecostal” e afirma que foi mais um batismo de expectativa que de cumprimento — um batismo que antecipava a plenitude do Messias que estava por vir.110 João Batista proclamou a salvação que viria com Cristo e também anunciou que traria algo mais: o batismo “com o Espírito Santo e com fogo” (Lucas 3.16). Agora, mais que tratar de seguir todas as instruções da Lei, Cristo traria consigo a vida cheia de graça e de esperança que vem com a submissão a Deus e é a única fonte de autoridade e de poder para o crente. Judeus, samaritanos e gentios já haviam experimentado essa efusão de poder quando foram cheios do Espírito Santo. Agora chegava a vez dos discípulos de Éfeso. Eles também descobriram a autoridade e o poder do Espírito depois de se submeter ao senhorio de Cristo (“eles foram batizados no nome do Senhor Jesus”, 19.5) e receber, por meio da imposição das mãos do apóstolo Paulo, o enchimento do Espírito (19.6a). Como em 2.1-4 e 10.44-47, eles também falaram com uma habilidade que antes não possuíam, tanto na forma quanto no

conteúdo (“começaram a falar em línguas e a profetizar”, 19.6b). Em razão do que os apóstolos haviam experimentado no Pentecoste judaico, não havia como negar ou duvidar da autenticidade dessa experiência. O elemento-chave nesse caso é que o conhecimento intelectual de Cristo foi transformado em um relacionamento dinâmico e poderoso. A luta pessoal para crescer na fé e ser piedoso foi substituída por total submissão e obediência a Deus. John Rea: “Falar em línguas e profetizar eram sinais exteriores e visíveis da presença e do poder do Espírito Santo. A validação por meio desses sinais era tão importante para esses discípulos quanto para os crentes no dia de Pentecoste. A experiência da manifestação da substanciosa presença do Consolador por meio das línguas era coerente com a experiência que os 120 tiveram no dia de Pentecoste, com a de Cornélio e sua família e provavelmente com a dos convertidos samaritanos, como também com a de Saulo de Tarso”.111

Resultados do novo Pentecoste. Como no Pentecoste anterior, aqui também houve como resultado expansão e impacto poderosos do evangelho (19.8-12). Foi incrível o que o Espírito pôde fazer por meio de Paulo e da congregação que se desenvolveu sob sua liderança em Éfeso. O restante do cap. 19 relata algumas das experiências mais notáveis da poderosa operação do Espírito Santo ao longo do livro. Desde o fato de que “Deus fazia milagres extraordinários por meio de Paulo” (19.11), até as experiências de que “o nome do Senhor Jesus era engrandecido” e “muitos dos que creram vinham, e confessavam, e declaravam abertamente suas más obras” (19.18), e ainda o relatório, segundo o qual “dessa maneira a palavra do Senhor muito se difundia e se fortalecia” (19.20), tudo provava o novo poder e a autoridade com que os efésios serviram ao Senhor cheios do Espírito Santo.

Arthur F. Glasser: “Lucas não atribuiu o crescimento da igreja a métodos evangelísticos específicos. Quando alguém se convertia, Deus obtinha a glória porque é a obra do Espírito Santo que liberta o ser humano do domínio das trevas e o transfere para o Reino de seu amado Filho (Colossenses 1.13). A superintendência divina dos apóstolos era evidente em todos os lugares, pois operava na contramão do que consideravam o melhor a fazer em seguida (p. ex., Atos 16.6-10; 22.17-21). Em todos os lugares, Lucas ilustrou o que Paulo ensinaria mais tarde (em Colossenses 1.24-29), a saber, que a igreja não cresce sem pagar um preço. Esse preço, embora pago com sofrimento, produz como resultado direto o crescimento da igreja (Atos 4.23; 5.40-42; 8.1-4; 14.22)”.112 Crentes cheios do Espírito Santo

Repetidas vezes, encontramos cristãos em Atos sendo cheios do Espírito Santo, pessoal ou coletivamente, e atuando com poder e autoridade na comunicação do evangelho do Reino. Além disso, Jesus foi muito claro e contundente quando prometeu: “Receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês” (1.8). Essa promessa foi cumprida, e todo crente autêntico sabe que recebeu do Senhor o poder necessário para fazer, em nome de Jesus, a vontade de Deus para sua vida. Quando o crente é cheio do Espírito Santo (Efésios 5.18), esse poder aflora e passa a operar plenamente. “Revestidos do poder do alto” (Lucas 24.49), os crentes podem experimentar a manifestação do poder do Espírito em dois aspectos. Poder sobre o pecado: o que somos. O pecado exerce poder sobre todas as pessoas. O pecado, de fato, controla a vida do ser humano natural, ou seja, aquela pessoa que ainda não reconheceu Cristo como Salvador e Senhor (Romanos 3.9,10). Como a Bíblia ensina, o ser humano natural não tem o Espírito Santo. É de fora que o Espírito procura convencê-lo de pecado, e, a menos que

nasça de novo, o “homem natural” está preso a essa condição. Além disso, o pecado quer continuar controlando a vida do crente, se ele for um ser humano carnal, ou seja, se, apesar de crente, ainda for governado pelos impulsos dos desejos não submetidos ao senhorio de Cristo, e muitas vezes obtém êxito. Como a Bíblia ensina, o ser humano carnal (“homem carnal” ou “crente carnal”) já tem o Espírito Santo em seu ser, mas está em luta constante, por causa do domínio e poder da carne (Gálatas 5.17). Em mais de uma ocasião, a carne é vitoriosa, enquanto o Espírito Santo se entristece no interior. O crente carnal está bem ciente dessa luta entre a carne e o Espírito, entre a velha natureza e a nova, e trata de se controlar. Ele se esforça ao máximo, mas muitas vezes é derrotado. Ele ora, chora em vão e por fim exclama: “Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?” (Romanos 7.24). O pecado é controlado na vida do ser humano espiritual (“homem espiritual” ou “crente espiritual”), que pode viver uma vida vitoriosa, cheia do Espírito Santo. Em vez de enfrentar o poder do pecado com recursos próprios, o crente espiritual apela para um Poder superior ao dele e ao do pecado que tenta dominá-lo. Por fim, descobre que Deus, por meio do Espírito Santo, já fez provisão suficiente para que ele viva uma vida de vitória. Não é mais o pecado que controla a situação, e sim o Espírito Santo. Desse modo, Paulo pode afirmar em Romanos 8.1,2: “Agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus, porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte”. O pecado, que exerce poder sobre todos os seres humanos, não consegue dominar o crente controlado pelo Espírito Santo. Essa foi

a experiência de Paulo. Em Romanos 7.14-24, o apóstolo descreve sua experiência sob a Lei, quando queria servir a Deus e procurava fazer o melhor com a força de sua vontade, mas fracassava miseravelmente. Essa passagem descreve o religioso de hoje, crente ou não, que ainda não descobriu o poder do Espírito Santo e quer cumprir a Lei e servir a Deus por esforço próprio, mas sem resultados. Por fim, Paulo descobriu o segredo de uma vida vitoriosa sobre o pecado: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Romanos 7.25). Cristo era a fonte de sua vitória, e o Espírito Santo era seu agente poderoso: “A lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte” (Romanos 8.2). Ele faz “em nós” o que não poderia ser feito por nós (Romanos 8.4). É interessante que até o final do cap. 7 o Espírito Santo raramente aparece em Romanos (é mencionado apenas uma vez), mas no cap. 8 Paulo faz várias menções a ele (18 vezes). Agora o pecado deixou de reinar em seu corpo mortal (Romanos 6.12), pois passou a ser controlado pelo poder do Espírito Santo. O crente cheio do Espírito vence o poder do pecado. Deus promete em Ezequiel 36.27: “Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a agir segundo os meus decretos e a obedecer fielmente às minhas leis”. Aqui está o segredo da vitória. Existe Alguém que já habita o crente, exerce domínio e faz a obra. Foi isso que Paulo não conseguiu realizar por esforço próprio em Romanos 7, mas o que Deus, pelo poder de seu Espírito, realizou em Romanos 8. O crente deve reconhecê-lo e se render a ele. Desse modo, o crente carnal se torna um crente espiritual quando passa a ser dominado e controlado pelo poder do Espírito Santo. O desejo pela velha vida desaparece; e já não lhe apetecem as coisas do mundo. O crente

espiritual supera os conflitos do crente carnal. Quais são esses conflitos? O crente carnal vive muito próximo do território inimigo e, às vezes, deseja passar para o outro lado. Além disso, o crente carnal anda em círculos e transita da fronteira egípcia até Canaã. Quando se aproxima do Egito, começa a desejar seus alhos-porós e suas cebolas; quando se aproxima de Canaã, sente o desejo de caminhar mais perto de Deus e anseia pela terra que mana leite e mel. Poder no serviço: o que fazemos. O crente carnal não pode ser usado por Deus no serviço espiritual. Há tanto controle do eu sobre sua vida que Deus não o pode controlar. Somente uma vida cheia do Espírito Santo pode prestar um serviço cristão frutífero. É impossível servir no Reino de Deus sem o equipamento adequado, e esse equipamento ou recurso fundamental é o enchimento do Espírito Santo. O poder para o serviço — aquilo que fazemos para o Senhor — só pode ser encontrado nessa experiência. Precisamos ser cheios do Espírito Santo para testemunhar com poder (1.8). Do contrário, nosso testemunho será estéril. Sem a “demonstração do poder do Espírito” (1Coríntios 2.4), não pode haver resposta de fé ao nosso testemunho. No entanto, quando estamos cheios do poder do Espírito temos condições de proclamar a Palavra de Deus “corajosamente” (4.31). Deus pode fazer muito mais por meio de um ministério realizado na plenitude do Espírito Santo que por milhares de atividades realizadas no poder da carne. Além disso, precisamos ser cheios do Espírito Santo para orar com poder. Como Paulo explica: “O Espírito nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Romanos 8.26). Por

isso, o apóstolo exorta: “Orem no Espírito em todas as ocasiões, com toda oração e súplica” (Efésios 6.18). Como estão nossas orações? A oração de um crente cheio do Espírito tem direção certa, é ousada e recebe resposta. Orar no Espírito significa ter acesso ao trono de Deus. É uma verdadeira oração de poder. Os sinais e maravilhas

Os “sinais” e as “maravilhas”, assim como os “milagres”, ocupam um lugar muito especial na narrativa histórica de Lucas (2.19,22,43; 4.16,30; 5.12; 6.8; 7.36; 8.6,13; 14.3; 15.12), geralmente seguidos do espanto e da admiração de quem os presenciou (2.43; 3.10; 8.68,13). Os sinais religiosos. Sinais e maravilhas espirituais são operações sobrenaturais do Espírito Santo que têm por objetivo manifestar sua poderosa presença no meio de seu povo. O sinal é uma espécie de portador ou canal da revelação de Deus. Os milagres são sinais, mas nem todos os sinais e fenômenos maravilhosos são milagres. Em sua realidade essencial, os sinais podem ser algo comum e natural, mas que envolvem ou representam uma função ou um valor importante como indicativo da presença do sobrenatural e do divino. A palavra indica a existência passada, presente ou futura de algo, de um acontecimento ou de uma condição. Pode ser algo natural, cultural ou religioso. O sinal religioso é aquele que funciona como veículo para a revelação divina. A palavra “sinal” provém do grego sēmeīon (de onde vem a palavra “semáforo”) e aparece sozinho, em par com “maravilhas” (gr. téras) ou em trilogia com “prodígios e maravilhas” (gr. dýnameis) em mais de 70 passagens do Novo Testamento, especialmente nos evangelhos e em Atos. Somente no

Evangelho de João ocorre 17 vezes, enquanto nos escritos de Paulo aparece em 8 passagens. Em anos mais recentes, como também atestado pela história dos mais importantes despertamentos e avivamentos ao longo da história do cristianismo, tem se verificado um grande número dessas assombrosas manifestações, descritas de formas diversas e com nomes diferentes: “riso santo”, “quedas”, “pó de ouro celestial”, “dança com anjos”, “manifestações angélicas”, “voos celestiais”, “visões”, “sonhos espirituais”, “tremores espirituais”, “levitação espiritual”, “embriaguez espiritual”, “línguas”, “cânticos espirituais”, e assim por diante. Os variados “meios”, embora entendidos como legítimas manifestações da obra do Espírito Santo, têm sido objeto de infindáveis controvérsias e divergências. Em razão da sua natureza e da espontaneidade sazonal, seu estudo é difícil, mas não impossível. A missiologia espiritual contempla-os do ponto de vista de sua contribuição para o cumprimento da missão da igreja. A igreja existe para promover o Reino de Deus, que não é um lugar, mas o governo soberano de Deus sobre toda a realidade criada. A expressão “Reino de Deus” refere-se ao “reinado” ou “governo soberano” de Deus, especialmente no coração do ser humano, e à redenção de vidas. Jesus trouxe o Reino de Deus quando veio ao mundo em sua encarnação. Ele desafiou o controle do Diabo sobre a humanidade e a natureza e o derrotou. Não obstante, a batalha continua, e o prêmio final é a vida plenamente humana da criatura humana. Os sinais dão testemunho do poder de Deus para realizá-lo em Cristo. Os sinais do Reino. A evangelização é a proclamação do Reino de Deus na plenitude de suas bênçãos e promessas (salvação). Jesus pregou o Reino e demonstrou sua realidade com os sinais que lhe

são próprios. Os sinais do Reino validam a evangelização e tornam evidente o triunfo do Rei sobre o príncipe das trevas (1João 3.8; Mateus 12.29; Lucas 11.22). 1) O primeiro sinal do Reino foi e continua sendo o próprio Jesus no meio de seu povo (Lucas 17.21; Mateus 18.20), cuja presença traz alegria, paz e um clima de celebração (João 15.11; 16.33; Marcos 2.18-20). 2) O segundo sinal do Reino é a pregação do evangelho. Não havia um evangelho do Reino a proclamar até que Cristo veio. No entanto, agora que ele veio, as boas-novas do Reino devem ser pregadas a todos, especialmente aos pobres (Lucas 4.18,19; 7.22). A pregação do Reino direciona as pessoas ao próprio Reino. 3) O terceiro sinal do Reino é a libertação do domínio das trevas. As influências malignas dos demônios e dos poderes espirituais da maldade devem ser destruídas. A demonização é uma condição real e terrível. A libertação só é possível em um encontro de poder, no qual o nome de Jesus é invocado e prevalece. 4) O quarto sinal do Reino são os milagres de cura e o exercício do poder divino sobre a ordem criada (Lucas 7.22). Esses sinais manifestam a realidade do Reino e antecipam o fim de qualquer injustiça, dor ou sofrimento e da própria morte. Os milagres não devem ser uma exceção, mas algo frequente, como aconteceu durante o ministério de Jesus e dos apóstolos (João 14.12; Hebreus 2.3,4; 2Coríntios 12.12). 5) O quinto sinal do Reino é o milagre da conversão e do novo nascimento. Onde quer que alguém se converta (1Tessalonicenses 1.9,10) e haja um encontro de poder que traga libertação espiritual, aí o Reino de Deus está presente. O poder de Deus para a salvação manifestase no evangelho (Romanos 1.16) e nos que foram salvos (26.18) e já desfrutam o mundo vindouro (Hebreus 6.5). 6) O sexto sinal do

Reino é o povo do Reino, em quem o conjunto de qualidades se manifesta na imitação de Cristo, que é o fruto do Espírito (Gálatas 5.22,23; Romanos 14.17), o qual também se expressa em boas obras de amor e na evangelização. 7) O sétimo sinal do Reino é o sofrimento, pois foi necessário que o Rei sofresse para entrar em sua glória. Ele sofreu por nós para nos dar o exemplo (1Pedro 2.21), de modo que sofrer por causa da justiça ou de nosso testemunho de Jesus e sobreviver valorosamente a tal sofrimento é um claro sinal do Reino (Filipenses 1.28,29; 2Tessalonicenses 1.5). Os sinais e seu propósito. O propósito dos sinais (milagres, maravilhas, prodígios, manifestações do poder divino) é demonstrar a superioridade do poder de Deus e sua soberania sobre toda a criação. A igreja foi comissionada para dar testemunho da presença e da realidade desse Reino divino (Lucas 17.20,21). A intenção de Deus de criar uma nova ordem mundial (ou seja, o Reino de Deus na sociedade e no mundo) não será alcançada sem que os seres humanos ingressem no Reino por meio do arrependimento pessoal e da fé pessoal em Jesus Cristo como Salvador e Senhor. Com esse propósito, a proclamação do Reino de Deus seguida de sinais e maravilhas é uma tarefa crucial que a igreja deve realizar no poder do Espírito Santo (1.8; 2.42,43; 4.29-31). O que a igreja deveria estar fazendo em seu ministério aos corpos, mentes, emoções, espíritos e estruturas sociais e relacionais humanos? A missiologia espiritual busca responder a essa pergunta de uma perspectiva missiológica, levando em consideração a natureza do Reino de Deus. No centro de toda visão abrangente da missão cristã, está a noção do “agora, mas ainda não”, que define o caráter do Reino de Deus. Com base nessa compreensão do Reino, reconhecida por

uma variedade de cristãos, extrapolamos a noção de que as manifestações das operações espirituais/sobrenaturais de fato anunciam o advento do “ainda não”. O Reino de Deus entra em confronto com os reinos deste mundo quando a igreja cumpre sua missão de proclamar o evangelho do Reino, cura os enfermos e expulsa os demônios em ações redentoras acompanhadas de “sinais” ou manifestações espirituais. É nessas ocasiões que o incrível poder do Reino de Deus é demonstrado e se manifesta. O Espírito Santo e a missão

Atos é um documento bíblico fundamental para entender o papel do Espírito Santo no avanço da missão cristã no mundo. Uma série de considerações sobre o Espírito Santo na expansão missionária é ilustrada de maneira abundante em Atos. Nos parágrafos anteriores, analisamos uma das expressões mais eloquentes do papel do Espírito Santo, especialmente sua unção ou enchimento dos crentes e da igreja na expansão missionária. É pela sua intervenção poderosa, por meio de homens e mulheres sujeitos ao senhorio de Cristo, que a Palavra do Senhor cresce e se difunde com poder avassalador (19.20). Quando Deus opera por meio do Espírito no desenvolvimento da missão e seu povo reage com obediência, a Palavra vai adiante para produzir transformação na vida do povo e na sociedade, e o nome do Senhor é glorificado. Isso, por sua vez, leva à manifestação do poder de Deus. A chave para as manifestações de seu poder está na relação dinâmica com ele por meio de seu Espírito Santo. Quando o Espírito nos enche e nos guia no cumprimento da missão, ele também nos ajuda a manter vivo o relacionamento com o Senhor, a anunciar essa relação e a convidar

outros a vivê-la. A presença e a obra do Espírito são fundamentais para a expansão missionária do testemunho cristão. O Espírito Santo guia os crentes no cumprimento da missão. Uma característica marcante do livro de Atos é o papel que o Espírito desempenha na orientação sobre a estratégia missionária. Os discípulos atendem aos sussurros do Espírito, mesmo quando não entendem o motivo ou as circunstâncias de sua obediência. No entanto, o Espírito atua como um estrategista celestial que tem uma visão completa do campo da missão e garante aos missionários a oportunidade e a eficácia de seus labores. Os exemplos da liderança do Espírito Santo sobre os discípulos no cumprimento de sua missão são abundantes e enchem as páginas do livro de Atos, e cada exemplo mostra a participação direta do Espírito na estratégia missionária. Primeiro caso: Filipe. Filipe foi conduzido até o eunuco para lhe pregar o evangelho. Diz o relato: “O Espírito disse a Filipe: ‘Aproxime-se dessa carruagem e acompanhe-a’ ” (8.29). É interessante que Lucas parece ter inserido esse episódio para evitar a suposição de que somente os apóstolos podiam participar da condução de alguém a uma conversão genuína e completa. Logo após a experiência em Samaria, Filipe, impelido pelo Espírito (v. 29), juntou-se ao eunuco etíope e, depois de uma conversa sobre um texto do Antigo Testamento, deu-lhe testemunho de Jesus. Evidentemente, Filipe fez referência ao batismo em seu testemunho, porque o eunuco propôs: “Olhe, aqui há água. Que me impede de ser batizado?” (v. 36). Ambos entraram na água (gr. eis, “dentro de”), e Filipe o batizou (v. 38). Como sabemos que o Espírito Santo estava presente de forma ativa e encheu o eunuco? Porque foi ele

quem organizou o encontro (v. 29) e quem o encerrou (v. 39a). É bem provável que ele também tenha sido a fonte da alegria (gr. chaírō) com a qual o etíope continuou seu caminho: “O eunuco não o viu mais e, cheio de alegria, seguiu o seu caminho” (v. 39b). Em várias passagens do Novo Testamento, a alegria é considerada parte do fruto do Espírito (11.23,24; 13.52; o contexto de 2.46; Gálatas 5.22 etc.). Segundo caso: Pedro. Outro caso interessante é o de Pedro, que foi conduzido à casa de Cornélio depois de ter uma visão e vivenciar circunstâncias estranhas. Também aqui o texto afirma: “O Espírito lhe disse: ‘Simão, três homens estão procurando por você. Portanto, levante-se e desça. Não hesite em ir com eles, pois eu os enviei’ ”(10.19,20). Como já foi dito, essa experiência marcou o início da missão aos gentios. Não somos informados se Pedro percebeu a voz do Espírito em sua mente, no íntimo, ou se ouviu uma voz falando com ele. Ambas as experiências são caminhos válidos para perceber a voz do Senhor por meio de seu Espírito. Chamam a atenção aqui a precisão e o detalhamento das instruções. O Espírito nos orienta de forma inequívoca no cumprimento da missão que o Senhor nos confiou. Terceiro caso: Paulo e Barnabé. Os dois apóstolos foram enviados como missionários. Aqui o Espírito Santo fala aos líderes da igreja de Antioquia, da mesma forma que nos casos anteriores: “Disse o Espírito Santo: ‘Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado’ ” (13.2). Como no caso anterior, a voz do Espírito foi ouvida em um contexto de oração e de busca espiritual, enquanto os profetas e mestres de Antioquia “adoravam o Senhor”. É provável que nesse caso a mensagem tenha vindo por meio de

uma declaração profética de um dos líderes. Há testemunhos suficientes no Novo Testamento de que os primeiros cristãos eram especialmente sensíveis às comunicações do Espírito nos períodos de oração e jejum. Nessa ocasião, a mensagem divina instruiu os líderes da igreja a que separassem Barnabé e Saulo para a tarefa especial que o Espírito lhes havia designado. É digno de nota que os dois homens dedicados ao trabalho missionário eram os líderes mais destacados e talentosos da igreja. Quarto caso: o Concílio de Jerusalém. O quarto exemplo é encontrado no registro da decisão do Concílio de Jerusalém, que foi orientada pelo Espírito Santo. De acordo com o texto, os homens reunidos no conclave declararam: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós [...]” (15.28). Essas palavras falam do papel dinâmico do Espírito, que participava ativamente das deliberações dos líderes, e também do papel da igreja como veículo da ação do Espírito. Os participantes do Concílio estavam tão conscientes de serem cheios e controlados pelo Espírito Santo que lhe deram prioridade e o reconheceram como o autor principal da decisão que tomaram. Diante das graves decisões que devemos tomar todos os dias enquanto tentamos cumprir a missão que o Senhor nos confiou, a orientação precisa do Espírito Santo é fundamental não só para evitar erros, mas também para fazer sua perfeita vontade. C. Peter Wagner: “Devemos agradecer a Deus que ‘pareceu bem ao Espírito’ (15.28) levar os apóstolos e os anciãos em Jerusalém a afirmar que só existe um evangelho, e é só pela graça. Sobre essa base, a unidade do corpo de Cristo foi resguardada, e assim se garantiu a futura interação dinâmica dos crentes judeus e gentios, apoiados na única Palavra de Deus. O veículo missionário que o Espírito Santo construiu no dia de Pentecoste continuou a ser multicultural e multirracial. Seus membros continuaram a

sentir a obrigação de se amarem e servirem mutuamente enquanto evangelizavam as nações”.113

Quinto caso: a viagem missionária de Paulo pela Ásia Menor. Esse exemplo é encontrado na ocasião em que o Espírito impediu Paulo e seus companheiros de pregar a Palavra na província da Ásia e mais tarde não lhes permitiu entrar na Bitínia. O relato indica, respectivamente, que foram “impedidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra” e que “o Espírito de Jesus os impediu” (16.6,7). As viagens missionárias de Paulo mostram uma combinação extraordinária de planejamento estratégico e grande sensibilidade à direção do Espírito Santo. Às vezes, essa orientação assumia a forma de impulso interno ou de imposição de circunstâncias externas, ou a voz do Senhor diretamente apontava ou fechava o caminho. Essa combinação de experiências diretas com o Espírito se destaca no contexto da experiência de Paulo em 16.6,7. Os missionários haviam deixado Listra, onde Timóteo se juntara a eles. Ao que parece, haviam tentado entrar na província da Ásia com a intenção de pregar a Palavra ali, mas o Espírito os impediu, e eles se viram obrigados a passar pela região da Frígia e da Galácia. É provável que algum profeta de Listra tenha sido o veículo para comunicar a vontade do Espírito. F. F. Bruce: “O Espírito, como se pode observar, deu a eles uma ampla advertência para que alterassem seus planos. Já que a província da Ásia não seria por enquanto o campo de sua atividade evangelizadora, então era natural que fixassem o olhar mais ao norte e pensassem na altamente civilizada província da Bitínia, no noroeste da Ásia Menor, com suas cidades gregas (das quais Nicomédia e Niceia eram as mais importantes) e colônias judaicas. Então, em vez de tomar a rota ocidental para Éfeso [na província da Ásia], eles viraram para o norte em Antioquia da Pisídia, cruzaram a cordilheira de Sultan Dag, subiram a Filomélio e dali rumaram para o noroeste, por uma das duas rotas possíveis que passavam pela Frígia

asiática. Poderíamos imaginar com segurança o restante da viagem, se não fôssemos informados de que eles receberam um segundo aviso divino, que os orientou a ficar longe da Bitínia”.114

Há vários destaques nessa experiência. Primeiro: o fato de o Espírito Santo impedir a pregação da Palavra é impressionante. Segundo: é notável que o Espírito Santo não permita a penetração do evangelho em novos campos missionários. Terceiro: é impressionante que Lucas se refira ao Espírito de maneiras diferentes em apenas dois versículos sucessivos: “o Espírito Santo” e “o Espírito de Jesus”, o que suscita uma questão teológica interessante. No entanto, como explicaremos mais tarde, é o mesmo Espírito e a mesma pessoa da Trindade. Sexto caso: a viagem de Paulo a Jerusalém. O Espírito Santo impeliu Paulo a ir a Jerusalém, e isso era tão evidente que o apóstolo declarou: “Agora, compelido pelo Espírito, estou indo para Jerusalém” (20.22); “o Espírito Santo me avisa que prisões e sofrimentos me esperam” (v. 23). Isso pode ser entendido de vários modos. Em primeiro lugar, pode significar que Paulo sentiu uma necessidade interna de ir a Jerusalém. Nesse caso, “espírito” seria o espírito humano. Em segundo lugar, pode significar que Paulo já sabia que seria preso  em Jerusalém. Nesse caso, as declarações seriam um anúncio do que ocorreria em Jerusalém, ou seja, Paulo vivia “no espírito” o que seria seu futuro. Em terceiro lugar, o que é mais provável, a palavra grega pneūma nessas frases refere-se ao Espírito Santo. Com isso, Paulo quer dizer que foi o Espírito Santo quem o impeliu a ir a Jerusalém para ser preso, pois já havia sido avisado diversas vezes (“em todas as cidades”).

O Espírito Santo utiliza-se de vários meios para guiar os crentes no cumprimento da missão. É notável o número de possibilidades que encontramos no livro de Atos, com relação aos métodos para cumprir a missão a nós confiada. Uma leitura rápida revela uma grande variedade. Obviamente, no espaço disponível, não podemos fazer outra coisa senão apontar alguns dos métodos mais comuns e notáveis. Em todos eles, o Espírito Santo aparece como o agente fundamental no processo de guiar os crentes no cumprimento dos eternos propósitos redentores de Deus. Ele o faz por meio de uma impressão direta e individual. Esse tipo de operação do Espírito é mencionado com frequência nas páginas de Atos. Um dos casos mais notáveis está relacionado com as instruções do Espírito Santo a Filipe. O texto diz: “O Espírito disse a Filipe [...]”. Em seguida, vem a indicação precisa do que ele teria de fazer: “Aproxime-se dessa carruagem e acompanhe-a” (8.29). Há três detalhes a serem observados nessa experiência. Primeiro: o Espírito fala e revela a vontade de Deus. Deus fala hoje, por incrível que pareça, e o faz por meio da operação do Espírito Santo. Deus não está mudo. Ele falou e fala por meio de sua Palavra, que é, por sua vez, a obra do Espírito Santo (2Timóteo 3.16; 2Pedro 1.21). Deus fala ao coração humano, ao ser humano interior, ao aplicar sua Palavra. A Palavra sem o Espírito é seca e inútil e termina em legalismo. O Espírito sem a Palavra é incompreensível e termina em subjetivismo. Desse modo, o Espírito e a Palavra constituem o duplo método que Deus usa para se comunicar com o ser humano. Segundo: o Espírito exige um coração obediente. O coração humano deve ser receptivo e obediente. Não há comunicação autêntica se não há um bom emissor e um receptor atento. Filipe

era um servo receptivo e obediente. Já havia provado que era assim em Samaria (8.26,27) e o demonstrou também agora. Terceiro: o Espírito dirige a estratégia de trabalho. O que o Espírito Santo diz a um deve concordar com o que ele diz a outro. Eis uma questão: por que o Espírito enviou Filipe ao deserto?A resposta óbvia parece ser que era porque ele havia de antemão combinado um encontro com o eunuco (8.27,28). O coração do etíope foi preparado para a mensagem do evangelista, e isso por determinado tempo. Portanto, percebemos nesse caso a importância metodológica de ouvir, obedecer e seguir a voz do Espírito Santo para cumprir com mais eficácia a missão. Outro caso que vale a pena considerar é o de Pedro, com relação a seu depoimento na casa de Cornélio. Pedro teve uma visão impressionante enquanto orava, que se repetiu três vezes (10.9-16). Quando a visão terminou, Pedro estava perplexo, sem conseguir atinar com o significado da visão. Enquanto ainda refletia sobre ela, o Espírito lhe falou: “Simão, três homens estão procurando por você. Portanto, levante-se e desça. Não hesite em ir com eles, pois eu os enviei” (10.19,20). A precisão com que o Senhor se dirigiu ao seu servo é impressionante. Pedro provavelmente ouviu o Espírito como uma voz interior ou como uma forte impressão em sua mente. No entanto, o que ele percebeu foi tão claro e contundente que o apóstolo atendeu à ordem de imediato, embora provavelmente ainda não estivesse muito certo sobre o significado da visão (v. 21). Um terceiro caso interessante sobre o Espírito “falando” a um servo seu é visto em Paulo, de acordo com 20.22-24. O apóstolo sentiu-se compelido a ir a Jerusalém, embora estivesse ciente de que dificuldades o aguardavam ali. Escrevendo aos crentes de

Roma sobre seu plano de visitar Jerusalém, ele expressou algumas reservas quanto à sua recepção ali, por isso pediu oração, para que ficasse “livre dos descrentes da Judeia e que o meu serviço em Jerusalém seja aceitável aos santos” (Romanos 15.31). Esses temores cresciam à medida que, de porto em porto, durante sua viagem à Palestina, o Espírito Santo lhe garantia que “prisões e sofrimentos” o aguardavam (20.23). Não sabemos se essas advertências do Espírito foram impressões diretas na mente ou no ser interior de Paulo, ou se foram mensagens proféticas entregues a ele pelos profetas das igrejas visitadas, como ocorreu mais tarde em Tiro e em Cesareia (21.4,11), ou ambas as experiências. Em todo caso, o Espírito falou claramente a seu servo sobre o que lhe aconteceria quando chegasse a Jerusalém e como tudo resultaria em um maior testemunho “do evangelho da graça de Deus” (20.24b). Ele o faz por meio do diálogo entre cristãos. Aqui encontramos um caso interessante, que já analisamos: a experiência do Concílio de Jerusalém (15.28). Note-se que, nesse caso, o Espírito Santo comunica a vontade e a direção de Deus para a missão não a um indivíduo, mas a um grupo de crentes, e o faz em meio às suas deliberações na busca de encontrar sabedoria de Deus para decidir o que ele queria. Evidentemente, cada participante do conclave era alguém cheio do Espírito Santo, de modo que a decisão que tomaram refletia a expressão da plena consciência de que estavam agindo sob a orientação do Espírito e a convicção de que a igreja é o veículo das operações do Espírito. Era tal a certeza de estarem dominados e controlados pelo Espírito que ele é citado como o

primeiro gestor e autor da decisão: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós [...]” (15.28). Ele o faz por meio de visões. Há vários casos de visões importantes em Atos, por meio das quais o Espírito Santo dá orientações precisas sobre o curso da missão. Talvez o caso mais importante, dadas as suas consequências posteriores, seja o da visão que Paulo teve de um homem da Macedônia, em Trôade (16.9,10). Assim como no caso de Pedro em Jope, na casa de Simão, o curtidor, aqui ocorreu também uma visão com uma voz que indicava ao apóstolo um novo rumo no cumprimento da missão, nada menos que o início do testemunho cristão na Europa. Embora o v. 9 não mencione especificamente o Espírito Santo como aquele que falou com Paulo, é possível atribuir um papel importante ao Espírito nessa experiência, à luz de sua intervenção nos versículos anteriores (v. 6-8). John Rea: “Em uma visão, a pessoa perde a noção de seu ambiente natural. O Espírito de Deus controla de tal maneira os sentidos da pessoa que ela parece realmente ver, ouvir e sentir o que está sendo revelado. [...] A visão que Paulo recebeu naquela noite em Trôade é frequentemente denominada ‘chamado macedônio’. Devemos ter o cuidado de observar que não se trata do momento em que ele foi chamado para servir ao Senhor. Ele começou a pregar o evangelho em Damasco alguns dias após sua conversão, assim que foi curado e cheio do Espírito (Atos 9.17-22). Não precisamos de uma visão ou de outra orientação divina especial para obedecer à grande comissão de nosso Senhor ressuscitado. [...] Paulo já havia servido a Deus como mestre, evangelista e apóstolo por vários anos e agora estava em sua segunda viagem missionária. Essa visão foi dada para fornecer uma orientação positiva após uma série de proibições divinas”.115

Ele o faz por meio da oração. O exemplo por excelência nesse caso é a experiência da igreja de Antioquia (13.1-3). Essa congregação era singular e especial em termos missiológicos.

Quanto a isso, três aspectos se destacam: 1) o ministério dessa congregação desempenhou um papel muito importante no avanço das missões transculturais, entre os gentios; 2) essa congregação era uma igreja local etnicamente mista; 3) a igreja de Antioquia foi a agência missionária que enviou Paulo e Barnabé e à qual eles tinham de prestar contas. Uma das características marcantes dessa igreja era seu ministério de oração, especialmente exercido por seus líderes, que eram profetas e mestres. Tem-se a impressão de que esses crentes eram bastante sensíveis à comunicação do Espírito durante seus períodos de oração e jejum. Como profetas, estavam acostumados a receber revelações diretas de Deus, por isso não tinham dificuldades para reconhecer a voz do Espírito quando ele lhes dava alguma orientação concreta sobre a missão a cumprir. Como mestres, podiam provar qualquer revelação recebida com “a palavra profética mais segura” (2Pedro 1.19, RVR). Em todo caso, foi durante a oração que o Espírito lhes falou: “Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado” (13.2). Convencidos de que o Espírito havia falado com eles e dado essas instruções verbais da parte de Deus, os líderes obedeceram imediatamente (13.3). O Espírito Santo é nosso ajudador, por meio da oração, no cumprimento da missão que temos pela frente (Romanos 8.26,27). Portanto, devemos crescer, como indivíduos e como igrejas, em nossa sensibilidade à liderança do Espírito Santo quando estivermos unidos em oração e jejum. Crescimento numérico

O número de versículos em Atos que fazem referência ao crescimento numérico da igreja é impressionante, tanto com relação ao número de novos crentes quanto ao de novas congregações. A sequência é notável: 1. Um grupo de cerca de 120 pessoas no início (1.15). 2. No Pentecoste, todos na multidão ali reunida os ouviram falar em sua língua materna (2.6). 3. No Pentecoste, cerca de 3 mil pessoas se uniram à igreja (2.41). 4. A cada dia, o Senhor adicionava ao grupo os que iam sendo salvos (2.47). 5. O número dos que creram chegou a cerca de 5 mil (4.4). 6. Os crentes eram uma “multidão” (4.32). 7. O número dos que criam e aceitavam ao Senhor continuou a aumentar (5.14). 8. O número dos discípulos aumentou (6.1). 9. A Palavra de Deus espalhou-se, e o número de discípulos se multiplicou (6.7). 1 0. A igreja desfrutava paz e estava crescendo em número (9.31). 11 . Todos os que viviam em Lida e Sarona se converteram ao Senhor (9.35). 1 2. Um grande número creu e se converteu ao Senhor (11.21).

1 3. As igrejas se fortaleciam na fé e cresciam em número dia a dia (16.5). 1 4. Um bom número de mulheres proeminentes e muitos gregos tementes a Deus juntaram-se a Paulo (17.4). 1 5. Milhares de judeus creram (21.20). Nos capítulos que se seguem, tentaremos desvendar o significado desse escrito de Lucas, por meio de uma consideração exegética. Da mesma forma, procuraremos apresentar o texto bíblico em toda a sua riqueza e aplicá-lo a situações concretas da vida e do testemunho da igreja hoje. Por certo, não será possível nos aprofundarmos em todas as passagens, mas buscaremos o entendimento mais amplo possível do maior número delas.

1. Hechos, in: Justo L. p. 344.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

2. The Book of Acts: The Early Struggle for an Unhindered Gospel, p. 4-6. 3. Atos dos Apóstolos: rumo a uma igreja em renovação permanente, in: Bíblia Nova Reforma: edição de estudos e referência, p. 1633. 4. V. Henry J. CADBURY, The Making of Luke-Act. Cadbury foi o primeiro estudioso moderno a insistir em que os dois volumes devem ser lidos e interpretados juntos. 5. An Introduction to the New Testament, p. 187-188. 6. Luke 1—9.20, p. xxxiii. 7. The Gospels and Jesus, p. 81. 8. Gordon D. FEE & Douglas STUART, How to Read the Bible for All Its Worth: A Guide to Understanding the Bible, p. 78-93, 94-112.

9. John NOLLAND, Luke 1—9.20, p. xxxiv. 10. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 71. 11. Commentary on the Book of the Acts, p. 18-19. 12. Acts, p. xvii. 13. Vernon K. ROBBINS, By Land and by Sea: The We-Passages and Ancient Sea Voyages, in: Charles H. TALBERT (Org.), Perspectives on Luke-Acts, p. 215242. 14. V. Colin J. HEMER, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, p. 308-364; Joseph A. FITZMYER, Luke the Theologian: Aspects of His Teaching, p. 17-32. 15. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 92. 16. Luke 1—9.20, p. xxiv. 17. Commentary on the Book of Acts, p. 19. 18. Comp. Earle E. ELLIS, The Gospel of Luke, p. 42-52, com I. Howard MARSHALL, Luke: Historian and Theologian, p. 74-76. 19. The Present State of Lucan Studies, in: Malcolm J. ROBERTSON & William L. LANE (Orgs.), The New Testament Student, v. 6, p. 105. 20. The Good News According to Luke, p. 6. 21. Luke-Acts: The Promise of History, p. 6-7 22. On the “Paulinism” of Acts, in: Leander E. KECK & J. Louis MARTYN (Orgs.), Studies in Luke-Acts, p. 35-50. V. tb. Ernst HAENCHEN, The Acts of the Apostles: A Commentary, p. 112-116. 23. Acts, p. 14. 24. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 93. 25. Ibid., p. 93, 97. 26. Introduction to the New Testament, p. 180. 27. Luke 1—9.20, p. xxxvi. 28. I. Howard p. 34.

MARSHALL,

The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text,

29. David J. WILLIAMS, Acts, p. xxv. 30. Joseph A. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 53-59. V. tb. Atos 2.42-47; 4.32-35; 5.12-16; 6.1-6; 14.21-23; 15.22-29; 20.18-35. 31. The Purpose of Luke-Acts, p. 185. 32. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 71. 33. The Gospels and Jesus, p. 100. V. Marcos 5.41.

34. Earle E. ELLIS, The Gospel of Luke, p. 51-52. 35. Ibid., p. 53. 36. Luke-Acts, p. 7. 37. The Good News According to Luke, p. 6. 38. Acts, p. 15. 39. Luke, p. 40-42. 40. V. Adrian N. SHERWIN-WHITE, Roman Society and Roman Law in the New Testament: The Sarum Lectures 1960-1961. 41. Introduction: Background to Acts, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 10. 42. The Acts of the Apostles, p. 106. 43. Commentary on the Book of the Acts, p. 20. 44. Ibid., p. 10-13. 45. The Purpose of Luke-Acts, p. 97. 46. Ibid., p. 96. 47. Apud Pablo A. DEIROS, Historia global do cristianismo, p. 43. 48. Luke, p. 41. 49. Luke and the People of God: A New Look at Luke-Acts. 50. Luke-Acts and the Jews: Conflict, Apology, and Conciliation, p. 155, 159. 51. The Good News According to Luke, p. 7. Comp. Jack T. in Luke-Acts.

SANDERS,

The Jews

52. Luke and the Gnostics: An Examination of Lukan Purpose. V. Atos 8.9-24. 53. Joseph A. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 33-34. 54. The Gospel of Luke, p. 56. 55. Commentary on the Book of Acts, p. 22. 56. The Gospel of Luke, p. 35. 57. Introduction to the New Testament, p. 98. 58. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 106. 59. Luke, p. 25. 60. Luke 1—9.20, p. xxxviii. 61. Ibid., p. xxxix. 62. Commentary on the Book of Acts, p. 18. 63. Ibid., p. 12.

64. Joseph A. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 29, 107. Werner Georg KÜMMEL, Introduction to the New Testament, p. 151; DONALD JUEL, LukeActs, p. 7. O último observa: “Os dois volumes juntos, e Atos em particular, parecem refletir acontecimentos entre 80 e 95 d.C., como hoje entendem os historiadores, [...] parece provável que Lucas e Atos foram escritos entre 80 e 90 d.C.”. 65. The Good News according to Luke, p. 6. 66. Luke, p. 25. 67. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 109. 68. Robert H. STEIN, Luke, p. 26. 69. Ibid. 70. The Gospels and Jesus, p. 85. 71. Commentary on the Book of Acts, p. 23, 25. 72. Kurt ALAND, Synopsis Quattuor Evangeliorum, p. 533. 73. Sugere-se Roma com base no uso de Marcos por Lucas. V. Robert H. STEIN, Luke, p. 27. Sugere-se a Síria com base no uso da fonte Q por Lucas. V. I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 35. 74. Luke-Acts, p. 8. 75. The Gospel of Luke, p. 62. 76. Luke 1—9.20, p. xxxix. 77. The Gospel of Luke, p. 35. 78. Luke, p. 27. 79. El Evangelio según Lucas, v. 1, p. 108. 80. F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 25. 81. Luke-Acts, p. 3. 82. Gerhard A. KRODEL, Acts, p. 39. 83. The Gospel of Luke, p. 5-6. 84. David John WILLIAMS, Acts, p. xix-xx. 85. F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 25. 86. Acts, p. xix. 87. Introduction to the New Testament, p. 176. 88. Luke, p. 67-68. 89. Ibid., p. 68. 90. David J. WILLIAMS, Acts, p. xix-xx.

91. E. Earle ELLIS, The Gospel of Luke, p. 29. 92. I. Howard MARSHALL, Luke, p. 68. 93. F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 18. 94. Walter L. LIEFELD, Interpreting the Book of Acts, p. 23-24. 95. Frank STAGG, The Book of Acts, p. 1-18. 96. Gordon D. FEE & Douglas STUART, How to Read the Bible for All Its Worth, p. 94-112. 97. CLADE III, Todo el evangelio para todos los pueblos desde América Latina, p. 855. 98. A Theology of the Holy Spirit: The Pentecostal Experience and the New Testament Witness, p. 159. 99. Extendiendo el fuego, p. 86. 100. A Theology of the Holy Spirit, p. 169. Grifo do autor. 101. Hechos, in: Justo L. hispanoamericano, p. 79-80.

(Org.),

GONZÁLEZ

Comentario

bíblico

102. Historia del cristianismo, v. 1, p. 95. 103. A Fruitful Field: Recent Study of the Acts of the Apostles, Interpretation, v. 42, n. 2, p. 127. 104. Introduction: Background to Acts, in: Paul Mission in Acts, p. 13.

HERTIG

& Robert GALLAGHER (Orgs.),

105. El Espíritu Santo en la Biblia: un comentario bíblico y exegético, p. 295. 106. Iluminando el mundo, p. 85. 107. A Theology of the Holy Spirit, p. 193. 108. F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 385-387. 109. The Fourth Pentecost: Paul and the Power of the Holy Spirit, in: Paul & Robert L. GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts, p. 251.

HERTIG

110. Commentary on the Book of Acts, p. 386. 111. El Espíritu Santo en la Biblia: un comentario bíblico y exegético, p. 307. 112. Announcing the Kingdom: The Story of God’s Mission in the Bible, p. 275. 113. Blazing the Way, p. 29. 114. Commentary on the Book of Acts, p. 326. 115. El Espíritu Santo en la Biblia, p. 302-303.

UNIDADE UM

O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM (1.1—8.4)

O Evangelho de Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos foram

escritos pelo mesmo autor: Lucas. Não há dúvidas de que Lucas, talvez o único escritor gentio na Bíblia, se propôs contar a história do início do testemunho cristão e o subsequente crescimento das igrejas cristãs por toda a Palestina, Ásia Menor e partes da Europa. Para isso, ele utilizou dois rolos de papiro, cada um com cerca de 10 metros de comprimento por 30 centímetros de largura. No primeiro rolo, registrou o ministério terreno de Jesus, começando com seu nascimento em Belém da Judeia e terminando com sua morte, sepultamento e ressurreição em Jerusalém. No segundo rolo, Lucas prossegue com o relato do avanço do movimento cristão. Ele oferece nos primeiros versículos algum material de seu evangelho, o suficiente para estabelecer a conexão entre este e a segunda parte de sua mensagem. Por esse motivo, muitos comentaristas consideram o Evangelho de Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos uma única obra em dois volumes, e alguns estudiosos costumam unir os dois livros sob o título Lucas-Atos. O Evangelho de Lucas fala da obra redentora que Jesus começou a fazer entre os seres humanos durante seu

ministério terreno. O livro de Atos fala da obra redentora que Jesus continuou a fazer entre os seres humanos, após sua ascensão, por meio do testemunho de seus seguidores, no poder do Espírito Santo. Assim, em Atos encontramos o registro da expansão do evangelho não só por diferentes áreas geográficas do mundo conhecido, como também — e talvez mais importante — através das fronteiras das diferenças de cultura, raça e nacionalidade e por todas as áreas da vida humana. O processo que resultou nesse poderoso e abrangente avanço desencadeou-se do reconhecimento  de uma tarefa, mas também da escolha de uma equipe e de um programa de orientação para levá-la a efeito. Nos primeiros 26 versículos de Atos, o autor delineia cada um desses aspectos e não só apresenta um claro esboço da obra que irá produzir, como também um quadro bem detalhado da tarefa a que se dará seguimento, à medida que os seguidores de Cristo cumprem sua missão no mundo, no poder do Espírito Santo. Na verdade, graças aos resumos editoriais inseridos no livro é possível reconstruir a essência do pensamento lucano e a estrutura que montou com o abundante material coletado em suas pesquisas. Basicamente, o autor quer mostrar como se deu a transição do tempo de Cristo — o centro da história — para o tempo da igreja. Dessa forma, ele registra o intercâmbio pessoal entre o Cristo ressurreto e os apóstolos durante os “quarenta dias” em que apareceu a eles até a ascensão (“o dia em que foi elevado aos céus”, 1.2), a qual encerra esse lapso de tempo “que garante a continuidade da história salvífica e sobretudo do escaton, último e

definitivo ato intervencionista de Deus por meio de Jesus na história”.116 De certa forma, a transição do tempo de Cristo para o tempo da igreja, movida pela ação Espírito Santo, é uma questão proposta no próprio título do livro. Convém lembrar que não havia título na versão original de Atos e que a igreja primitiva lhe atribuiu vários nomes no decorrer do tempo. No entanto, o nome pelo qual finalmente veio a ser conhecido foi “Atos dos Apóstolos”, título que parece remontar a meados do século II. Talvez fosse mais apropriado chamá-lo “Atos do Espírito Santo por meio da igreja”.

116. Luis Fernando RIVERA, El nacimiento de la iglesia: Hechos 1—2.41, Revista Bíblica, v. 31, n. 131, p. 35.

CAPÍTULO 1

J E S U S S E VA I E O S DISCÍPULOS FICAM 1.1-26 O Senhor prometeu a seus discípulos: “dentro de poucos dias vocês serão batizados com o Espírito Santo” (1.5b). Assim, selou o destino glorioso do testemunho cristão no mundo até ao dia de sua volta. A partida de Jesus teria terminado em desastre não fosse ele ter deixado uma promessa, que o Pai cumpriu fielmente em poucos dias. Desse modo, a primeira seção do livro bem merece o título “O batismo com o Espírito Santo prometido pelo Pai”. A seção inteira serve de transição entre o Evangelho de Lucas e o livro de Atos. Enquanto o evangelho indica os feitos poderosos que Deus realizou na pessoa de Jesus Cristo e por meio dele, Atos representa a ação continuada de Deus por meio do Espírito Santo. Na verdade, o foco do livro parece recair sobre os atos do Espírito Santo, e não é por acaso que ele é citado duas vezes no parágrafo inicial, tanto nas “instruções por meio do Espírito Santo”, dadas aos apóstolos, quanto na expectativa de serem “batizados com o Espírito Santo” que viria.

DEDICATÓRIA E PRÓLOGO (1.1-3)

No primeiro volume de sua obra (o Evangelho segundo Lucas), o autor descreve a atividade de Jesus até que se aproximou de Betânia com seus discípulos e se afastou deles na ascensão. Uma das instruções de Jesus a seus seguidores foi que eles não deixassem Jerusalém, mas esperassem ali a “promessa do Pai”, ou seja, o batismo com o Espírito Santo, que lhes daria o poder necessário para o cumprimento de um ministério mundial. Nos melhores manuscritos, o título é simplesmente “Os atos”. Talvez devêssemos entendê-lo como “Os atos do Cristo ressurreto”, visto que ele continua a trabalhar por meio do Espírito Santo. Em Atos 1.1,2, Lucas informa que Jesus foi elevado ao céu “depois de ter dado instruções por meio do Espírito Santo aos apóstolos que havia escolhido”. Isso mostra que o autor entendia já desde o prólogo de sua obra que o Espírito Santo era o agente especial da autoridade divina na nova dispensação. F. F. Bruce: “A implicação das palavras de Lucas é que seu segundo volume será um relato do que Jesus continuou a fazer e a ensinar após sua ascensão — por meio de seu Espírito em seus seguidores. A expressão ‘a fazer e a ensinar’ resume bem a dupla questão dos evangelhos canônicos: ela consiste na obra e nas palavras de Jesus”.1 Dedicatória (1.1)

As primeiras palavras de Lucas em seu livro são: “excelentíssimo Teófilo”, que é a pessoa a quem ele dedica seu trabalho. Na Introdução, já analisamos essa personagem. Veremos agora o conteúdo de sua dedicatória. À primeira vista, parece uma forma estranha de iniciar um livro, mas veremos que é natural, se nos

lembrarmos de que Lucas escreveu outro livro, o evangelho que leva seu nome. Lucas escreveu no evangelho sobre “o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (Atos 1.1). O mundo foi transformado não por uma simples história, mas por uma ação contínua do Cristo vivo, que não parou de trabalhar e de ensinar. O que é o livro de Atos? É o primeiro fragmento da história do cristianismo, ou melhor, da história do testemunho cristão no mundo. É o primeiro capítulo da história que trata do que Jesus continuou a fazer e a ensinar por meio de seus seguidores. No Evangelho de Lucas, Jesus começa sua obra; em Atos, ele dá continuidade a ela. Tudo que ele começou a fazer e ensinar ainda o mantém ocupado. Ele continua fazendo e ensinando a mesma coisa por meio de seu corpo na história, que é a igreja. Lucas escreveu (v. 1a). O autor diz: “Em meu livro anterior” (gr. tòn mèn prōton lógon). O uso de lógon (“algo dito”; “palavra”; “dito”; “mensagem”; “ensino”; “livro”) para um livro ou tratado de narrativa histórica é comum no grego clássico (Heródoto e Platão). Assim, no primeiro volume de sua obra escrita, Lucas tratou da vida e do ministério de Jesus (“escrevi a respeito”, gr. epoiēsámēn, aoristo médio indicativo de poiéō, indicando uma ação intelectual). Três considerações se destacam nessa síntese da obra pelo autor. A definição da tarefa. Lucas, como escritor gentio, escreve a outro gentio para lhe mostrar como o ministério da redenção exercido por Jesus é agora responsabilidade de todos os crentes, tanto judeus quanto gentios. Lucas diz: “Escrevi a respeito”. Sua tarefa consiste em fazer referência a Jesus — essa foi a ordem que ele deu aos apóstolos (Lucas 24.47; Mateus 28.29,20). Lucas também define nossa tarefa hoje. Não precisamos escrever um evangelho ou um

livro de Atos atualizado, mas temos de continuar a nos referir a Jesus como o Salvador e Senhor da humanidade. O alcance da tarefa. O Evangelho de Lucas e o livro de Atos são dedicados a Teófilo (“amante de Deus” ou “amigo de Deus”). De acordo com alguns estudiosos, Lucas na verdade escreve “a todos os que amam a Deus”. Outros afirmam que ele se dirige a uma pessoa importante (“excelentíssimo Teófilo”, Lucas 1.3) que talvez tenha se convertido entre um livro e outro. É interessante que Lucas tenha omitido o título ou apelativo “excelentíssimo” em Atos. A tarefa de pregar em nome de Jesus a todas as nações cabe a todos os crentes, quer sejam eles os “mais excelentes” quer não, ricos ou pobres, instruídos ou não instruídos, homens ou mulheres, conhecidos ou desconhecidos. Em contrapartida, a tarefa não consiste em apresentar um evangelho fragmentado, mesquinho, tendencioso ou distorcido. Lucas foi fiel ao se referir a “tudo [gr. perì pántōn] o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. Devemos ter cuidado para não apresentar um evangelho sob medida para o consumidor ou de acordo com interesses mesquinhos. A natureza da tarefa. Trata-se nada menos que de uma continuação do que Jesus começou a fazer e a ensinar. Quando ele retornou para o Pai, seu trabalho, em um sentido muito real, apenas havia começado. Essa tarefa deveria ser continuada pela igreja até que ele voltasse. Isso representa uma enorme responsabilidade para nós, hoje, como testemunhas do evangelho. Lucas escolheu fazer isso escrevendo dois livros. E nós, como faremos? Weldon Viertel: “A declaração de que os apóstolos receberam instruções do Espírito Santo após a ressurreição de Jesus indica que a obra do Jesus encarnado e a obra do Cristo ressurreto eram uma só. Lucas não pensa em

um evangelho de Cristo e em um evangelho do Espírito Santo. Ele ressalta que o evangelho de Cristo continuou após sua morte e ressurreição”.2

Jesus começou (v. 1b). O autor declara que, em seu evangelho, faz referência a “tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (gr. pántōn hōn ērxato ho Iēsoūs poieīn te kaì didáskein). Assim, Lucas sintetiza nos três primeiros versículos do livro de Atos todo o ministério de Jesus, não só para nos informar a respeito dele, mas também para antecipar e ilustrar a tarefa que devemos realizar hoje em seu nome. Quando contemplamos o evangelho e Atos como um todo, o que aprendemos? Há pelo menos quatro considerações que aprendemos do relacionamento de Jesus com as multidões no início de seu ministério de milagres e ensino. Quando Jesus começou, ele atraiu multidões. Durante seu ministério, Jesus viveu cercado de multidões. As massas que o seguiam não eram compostas de nenhum tipo especial de pessoas ou de uma classe específica. Dos evangelhos sinópticos, Marcos é o que mais dá destaque ao número de pessoas que acompanhavam Jesus durante todo o seu ministério e à variedade de pessoas: pobres, pescadores, fariseus, publicanos, prostitutas, donas de casa, e assim por diante. Nesse aspecto, Lucas extraiu muita informação de Marcos. O que podemos dizer sobre os dias atuais? Aquele foi o começo... e depois? Jesus perdeu o poder de atrair multidões e pessoas dos mais variados tipos? Jesus ainda é o mesmo: ele continua tão admirável quanto no começo. Então, como é possível que haja igrejas vazias? Onde estão as multidões seguindo Jesus por causa do testemunho da igreja? A única explicação é que Jesus não está ali. Não é ele quem está fazendo e ensinando. Se as

multidões não virem Jesus, não se aproximarão. O problema, portanto, não é como atrair pessoas para a igreja, e sim como mostrar Cristo presente nela. É ele quem atrai as multidões. Não são nossos líderes, nem templos, nem programas, nem espetáculos religiosos, nem publicidade, nem qualquer outro recurso carnal o que atrai as pessoas. Devemos confessar que, muitas vezes, temos ocultado Jesus atrás das cortinas do clericalismo, do eclesiasticismo, do denominacionalismo, do organizacionalismo, do personalismo, do elitismo, do espiritualismo, do autoritarismo e de inúmeras outras antefaces. É hora de deixarmos Jesus “fazer e ensinar”, pois só assim as multidões começarão a segui-lo. Que ele seja o único a agir; que as pessoas o vejam e ouçam; que ele seja o único a ter o controle. Então, pessoas de todo tipo virão a ele e o seguirão. Ele continua a atrair multidões ainda hoje. Quando Jesus começou, ele foi atraído pelas multidões. Onde quer que houvesse uma multidão, lá ia ele. Jesus ministrava onde as pessoas estavam. Ele não era um eremita (Mateus 9.35,36). Quando ia a Jerusalém para a festa das cabanas ou da Páscoa, não o fazia para cumprir um preceito religioso ou apenas para celebrar, mas porque havia mais pessoas a quem ministrar. Jesus não conseguia ficar longe do povo. Ele era atraído por eles — pecadores, pobres, oprimidos, doentes, marginalizados —, e ele os atraía. Jesus se aproximava das pessoas sem se importar como elas eram. Ele as via não só como eram, mas como poderiam ser. Ele amava a todos, mesmo em meio ao pecado e à degradação em que viviam. O que para outros era causa de repulsa, para ele era motivo de atração (Lucas 4.18,19).

Jesus mudou? Não! Quem parece ter mudado é seu corpo neste mundo, a igreja. A igreja deve se sentir atraída pela multidão. Devemos ir, em nome de Jesus, aonde as pessoas estiverem. Se quisermos encontrar Jesus, busquemo-lo entre as pessoas e em suas necessidades, porque é lá que ele está. Se quisermos viver perto de Jesus, devemos nos aproximar das multidões e de suas dores e senti-las. Quando uma igreja experimenta a compaixão de Jesus, então experimenta um avivamento. Temos pedido a Deus que nos reavive, quando o avivamento é na verdade uma decisão nossa (v. Isaías 51.9; 52.1). Quem deve acordar: o Senhor ou a igreja? Deus nunca dormiu. Nós é que devemos despertar e ir aonde as pessoas estão. Quando Jesus começou, ele conheceu as multidões. Ele conhecia as possibilidades e as agonias do povo. Jesus nunca repreendeu as multidões, e sim aqueles cujas ideias as estavam prejudicando. Ele as conhecia em seus pecados e dores, em suas capacidades e possibilidades. Ele conhecia cada um na multidão (João 2.23-25). Ele conhece as multidões hoje. Para nós, as pessoas podem ser meros números; as multidões, massas anônimas. Mas não para Jesus. Ele conhece cada ser humano individualmente. Qual é a importância disso? É que, apesar de tudo, ele amou todos os seres humanos e cada um em particular — e morreu por todos. A igreja deve conhecer as multidões da mesma forma e amá-las como Jesus as ama. Quando Jesus começou, as multidões o conheceram. Não de forma perfeita, é claro, mas pelo nome, por ouvi-lo com atenção e, acima de tudo, por ver os atos maravilhosos que ele fazia. Quanto

mais o conheciam, mais insatisfeitos ficavam com qualquer um que não fosse ele (João 12.19). O povo conhecia seu poder, sua sabedoria, seu amor, sua compaixão por eles, sua misericórdia e sua capacidade de aceitá-los como eram. Isso não mudou. Ele ainda é o mesmo Jesus para as multidões. As pessoas sabem onde está o poder de Deus para salvar, curar e libertar. Elas não podem ser enganadas por muito tempo, porque sabem distinguir entre o poderoso evangelho de Jesus e as vãs filosofias dos homens ou as propostas religiosas de feitura humana. As pessoas sabem discernir se o Cristo que pregamos é o Cristo de poder ou não (1Coríntios 1.23,24). O “Cristo crucificado” e que “é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” é o Cristo que as multidões precisam conhecer hoje. “Tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” é um grande desafio para nós hoje, porque ele deve continuar fazendo e ensinando por meio de nós, seu corpo, a igreja. Ele começou dizendo: “Eu sou a luz do mundo” (João 8.12). E acrescentou: “Vocês são a luz do mundo” (Mateus 5.14). Ele quer agora continuar em nós o trabalho que começou. Estamos dispostos a ser seus instrumentos? Ele quer atrair multidões por meio de nós. Estamos fazendo isso? Ele quer que as multidões nos levem à compaixão. Isso está acontecendo? Ele quer que conheçamos as pessoas e suas necessidades. É o que está ocorrendo? Ele quer que o mundo saiba que somos filhos e que estamos unidos (João 17.21). É isso que o mundo vê em nós? Prólogo (1.2,3)

É interessante que todos os episódios de Lucas-Atos fazem parte de uma narrativa unitária em torno de um propósito unificador — o Reino de Deus — ao qual o autor se refere com frequência (Lucas 7.30; Atos 2.23; 4.28; 5.38,39; 13.36; 20.27). Esse propósito era bem conhecido, e os leitores também são informados dele. É com relação a esse propósito que os vários incidentes adquirem significado. Eles representam etapas particulares em sua concretização ou ilustram a resistência humana a ele.3 O que Jesus fez (v. 2,3). Tanto o Evangelho de Lucas quanto o livro de Atos são caracterizados por sua ênfase à práxis da fé. Eles não apresentam ideias abstratas nem investigações teológicas inseridas em algum vácuo histórico-contextual. Pelo contrário, Lucas demonstra grande habilidade como historiador ao compor sua narrativa com base na investigação, na busca de testemunhos e na pesquisa dos fatos (Lucas 1.3). Desse modo, Atos é uma pesquisa, a indagação que se faz para descobrir a realidade de algo, uma vez que só se pode pesquisar o que é real. A pesquisa de Lucas concentrou-se nos feitos de Jesus e de seus seguidores, de modo que a realidade apresentada por ele é constituída  de atos especificamente humanos já realizados, ou seja, por res gestae, acontecimentos concretos. Dos fatos relacionados com Jesus, quais são os que Lucas tem em mente e apresenta em sua obra? Ele morreu (v. 3a). Lucas informa: “Depois do seu sofrimento” (gr. metà tà patheīn autòn). Lucas usa o verbo patheīn (“sofrer”, “suportar”, “suplantar”, “experimentar”) para se referir especificamente aos sofrimentos de Cristo associados à sua morte (17.3; 26.23). A paixão de Cristo foi o primeiro acontecimento

concreto da história da salvação que Lucas desejou narrar e compartilhar. Leon Morris: “O propósito de Deus para a salvação humana foi realizado por meio do sofrimento. Atos deixa claro que os sofrimentos de Cristo são o caminho para as bênçãos cristãs. Isso não significa que esses sofrimentos tenham sido aumentados ou magnificados de alguma forma. Uma alusão comum é aos primeiros, com referência aos apóstolos, a quem ‘depois do seu sofrimento, Jesus apresentou-se [...] e deu-lhes muitas provas indiscutíveis [...]’ (Atos 1.3). Aqui, as horríveis agonias da crucificação são reunidas em uma única palavra. As referências às previsões proféticas da Paixão [...] são do mesmo tipo. Assim também as passagens em que os primeiros pregadores fazem referência a elas, como a declaração de Paulo a Agripa, das quais se utilizou para esclarecer: ‘Não estou dizendo nada além do que os profetas e Moisés disseram que haveria de acontecer: que o Cristo haveria de sofrer e, sendo o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, proclamaria luz para o seu próprio povo e para os gentios’ (Atos 26.22,23)”.4

Ele ressuscitou (v. 3b). Lucas registra: “Jesus apresentou-se a eles e deu-lhes muitas provas indiscutíveis de que estava vivo”. Com essa frase, o autor afirma a realidade da ressurreição de Jesus e sintetiza suas várias aparições ao longo dos quarenta dias transcorridos antes da ascensão. As “provas indiscutíveis” (gr. en polloīs tekmēríois) são as que funcionaram como sinais (gr. tékmar, “sinal”). Antes que pudessem proclamar Jesus como Filho de Deus e Salvador do mundo, os discípulos deveriam estar bem convencidos de que não serviam a um líder morto, mas a um Senhor vivo. O Senhor ressurreto apareceu a eles muitas vezes durante aqueles quarenta dias. Definitivamente, o túmulo estava vazio (Lucas 24.1-12; João 20.1-9). O Novo Testamento registra nada menos de dez aparições: a Maria Madalena, no jardim (Marcos 16.9-11; Mateus 28.1-7; João 20.10-18); a outras mulheres (Mateus 28.9,10); a dois homens, no caminho de Emaús (Lucas 24.13-32;

Marcos 16.12,13); a Pedro (Lucas 24.34; 1Coríntios 15.5); aos Onze no cenáculo (“aposento”; Marcos 16.14); aos Onze e aos que estavam reunidos com eles no cenáculo (Lucas 24.33-49); aos discípulos, ao pôr do sol de um domingo (João 20.19); aos discípulos, em uma casa com a presença de Tomé (João 20.26); a seis discípulos que pescavam (João 21.1-14); aos Onze, em uma montanha (Mateus 28.16,17); a mais de 500 discípulos (1Coríntios 15.6); a Tiago (1Coríntios 15.7); aos discípulos, na ascensão (Lucas 24.50,51); a Paulo (9.1-19; 1Coríntios 15.8). E, sem dúvida, houve outras aparições. O fato da ressurreição de Jesus sempre foi o fundamento do evangelho cristão (Romanos 10.9). Leon Morris: “O sofrimento não é a última palavra. O sofrimento não é o fim, mas o meio para o fim, e esse fim é a vitória. Talvez a nota dominante em Atos seja a da vitória. Os primeiros cristãos eram pessoas que haviam passado pela comovente experiência da primeira Sexta-feira Santa, quando Jesus morreu. Eles haviam depositado todas as esperanças nele, e sua morte os atingiu como o golpe de um martelo. Contudo, logo aconteceu a ressurreição, totalmente inesperada. Eles levaram algum tempo para se ajustar ao novo fato. No início, acharam difícil de acreditar. No entanto, depois que tiveram certeza disso, toda a sua perspectiva foi transformada. A mensagem da ressurreição permeia todas as pregações antigas. Claramente, ela cativou a imaginação dos pregadores, e eles a proclamavam com poder e convicção”.5

Ele ascendeu (v. 2a).6 Lucas diz: “[...] até o dia em que foi elevado aos céus” (gr. áchri hēs hēméras […] anelēmfthē). O verbo analambánō é usado frequentemente em referência à ascensão de Jesus (Marcos 16.19; Atos 1.2,11,22; 1Timóteo 3.16), com ou sem a expressão “aos céus”. É o mesmo verbo usado em conexão com a transferência de Elias para o céu, na LXX (2Reis 2.11). Lucas registra a ascensão de forma especial e usa o episódio como elemento de conexão entre seu evangelho e Atos. A ascensão está

relacionada com o domínio e a eficácia salvadora do Senhor. A rejeição e a morte de Jesus é sua condição prévia e necessária. Vêse manifesta a exaltação do crucificado como Senhor e Messias em suas aparições após sua ressurreição e em sua partida para assentar-se à direita de Deus. Essa era a primeira verdade que os judeus que o haviam rejeitado e matado deveriam saber (2.36). 1) De acordo com Lucas, a ascensão aponta para três direções, que são o cerne de Atos e indicam a base do desígnio de Deus e o pressuposto da obra do Espírito. a) O senhorio de Jesus. O título “Senhor” é característico de Atos, de capa a capa (28.31). b) A salvação de Jesus. O senhorio de Cristo tem consequências salvadoras, expressas no perdão dos pecados e na concessão do Espírito. c) O sofrimento de Jesus. A condição necessária para o senhorio e a salvação é o sofrimento que ele experimentou em sua paixão redentora. 2) De acordo com Lucas, a ascensão exalta Jesus a uma posição de divindade, como base para seu papel de mediador divino, e o faz estabelecendo-o como Senhor. Deus, por ser Deus, não pode ser diminuído nem rebaixado: ele só pode ser exaltado. A exaltação de Jesus exalta a Deus como Deus, assim como o plano de Deus exalta o papel de Jesus como mediador. No entanto, a vontade divina requer o sofrimento de Jesus para que ele seja exaltado. 3) De acordo com Lucas, a ascensão resulta em perdão e salvação. Quanto a isso, quatro elementos devem ser observados. a) Os padrões humanos e divinos são consistentes: o ser humano mata, mas Deus ressuscita; o homem faz o mal, mas Deus o transforma em bem. b) A necessidade do sofrimento de Jesus repousa parcialmente na esfera do pecado humano. Os seres

humanos rejeitam o maravilhoso dom de Deus: Jesus, “o Santo e Justo” (3.14). c) O contexto da linguagem sobre o plano divino para o sofrimento de Jesus é sempre associado à aliança de Deus com Israel, não com os gentios. d) Desde o início, o propósito de Deus era alcançar as nações por meio de Israel, mas, diante do mau resultado, agora o faz por meio da igreja. O que Jesus ensinou (v. 2b,c,3b,c). Ao longo de seu livro, principalmente em suas sínteses sobre várias questões apostólicas, Lucas apresenta os principais temas do ensino de Jesus durante seu ministério terreno. De maneira mais concreta, Lucas se refere aqui ao que ele lhes ensinou durante os quarenta dias entre a Paixão e a ascensão. Nesses versículos, Lucas relaciona alguns aspectos importantes de seu ensino. Ele ensinou por meio do Espírito Santo (v. 2b). Lucas diz: “[...] depois de ter dado instruções” (gr. enteilámenos, “mandar”, “ordenar”, “dar ordens”). O mandamento em pauta é a grande comissão da qual Jesus incumbiu os apóstolos antes de subir ao céu (João 20.21-23; Mateus 28.16-20; Marcos 16.15-18; 1Coríntios 15.6; Lucas 24.44-49). De todos os seus ensinos, esse foi um dos mais importantes, porque previa a continuidade e a persistência de todos os outros pelo testemunho fiel de seus seguidores. Essa instrução precisa não foi dirigida apenas aos Doze, e sim a todos os crentes, mas os Doze eram os principais responsáveis por executála. Observe-se que, de acordo com Lucas, Jesus deu essa ordem a seus seguidores “por meio do Espírito Santo” (gr. dià pneúmatos hagíou). Jesus viveu e ministrou o tempo todo cheio do Espírito Santo. Todas as suas ações e os seus ensinos foram realizados no poder do Espírito e por meio do Espírito. Seus ensinos, em

particular, foram marcados pelo poder e  pela autoridade que o Espírito Santo lhe concedeu. Essa mesma autoridade e esse poder para ensinar é o que temos agora para cumprir nossa tarefa (1.8). Ele ensinou os apóstolos que escolhera (v. 2c). Lucas diz: “[...] aos apóstolos que havia escolhido” (gr. toīs apostólois […] hoùs exeléxato). Lucas usa o mesmo verbo (gr. eklexámenos) para se referir à escolha dos Doze por Jesus (Lucas 6.13). Sem dúvida, Jesus tinha ainda muito a ensinar àqueles a quem escolhera como continuadores de sua tarefa no mundo. Agora eles tinham diante de si um quadro muito mais amplo da obra redentora de Deus por meio de Jesus e uma compreensão mais profunda de seu senhorio. Não obstante, cabe aqui a pergunta: o que Jesus ensinou aos “apóstolos que havia escolhido”? As escolas gnósticas que floresceram no século II diziam que ele lhes dera determinadas noções esotéricas, não registradas na literatura canônica, das quais essas escolas eram guardiãs e intérpretes (isso é ensinado em Pistis Sophia, escrito gnóstico de meados do séc. II). A tradição da igreja, ao contrário, afirmava que essas instruções estavam relacionadas com a ordem eclesiástica e com a observância do domingo como dia de culto (isso é ensinado na Didaquê, escrito cristão do início do séc. II). Lucas, porém, parece indicar que Jesus continuou a instruí-los nas mesmas questões que haviam sido o conteúdo fundamental de seu ensino antes da Paixão, a saber, o Reino de Deus.7 Ele ensinou apresentando provas convincentes (v. 3b). Lucas diz: “[...] e deu-lhes muitas provas indiscutíveis” (gr. en polloīs tekmēríois). Essas “provas indiscutíveis” estavam relacionadas basicamente com a realidade de que ele não estava morto, mas vivo; de que não era um fantasma ou uma “alma penada”, e sim o

mesmo Jesus com quem haviam compartilhado quase três anos de ministério. Acima de tudo, essas provas tinham precisamente o objetivo de comprovar que ele era o mesmo Jesus que eles tinham visto crucificado e morto, envolto em lençóis e sepultado em um túmulo selado, mas que agora estava vivo outra vez. De acordo com o registro evangélico, parece que Jesus fez um grande esforço para atestar a realidade de seu corpo físico vivo e completo. Lucas, em particular, e talvez por causa de sua condição de médico, destaca esse fato (Lucas 24.36-44). Jesus ocupou espaços (“apresentou-se entre eles”, v. 36a); falou (“e lhes disse: ‘Paz seja com vocês!’ ”, v. 36b); mostrou-lhes as mãos e o pés (“Vejam as minhas mãos e os meus pés”, v. 39a); desafiou-os a tocá-lo e a examiná-lo (“Toquemme e vejam”, v. 39b); declarou ter carne e ossos (“um espírito não tem carne nem ossos, como vocês estão vendo que eu tenho”, v. 39c); comeu (“Deram-lhe um pedaço de peixe assado, e ele o comeu na presença deles”, v. 42,43). De acordo com Mateus, as mulheres “abraçaram-lhe os pés” (Mateus 28.9). De acordo com João, ele teve de pedir a Maria Madalena que o soltasse (João 20.17); soprou sobre os discípulos (João 20.22); desafiou Tomé a tocá-lo no flanco e a examinar suas mãos (João 20.27); pediu comida aos discípulos (João 21.5); preparou-lhes um desjejum (João 21.9,10,12) e compartilhou-o com eles (João 21.13). Ele ensinou a respeito do Reino (v. 3c). Lucas diz: “[...] falandolhes acerca do Reino de Deus” (gr. légōn tà perì tēs basiléias toū theoū). Assim, depois de definir a tarefa que estava pondo na mão de seus seguidores, Jesus passou quarenta dias preparando-os para a obra que tinham pela frente. A instrução sobre o Reino foi fundamental. Jesus preparou seus discípulos para a tarefa de

testemunhar, por isso estava “falando-lhes acerca do Reino de Deus”. Não sabemos os detalhes sobre o conteúdo dessa instrução, mas encontramos uma pista em Lucas 24.27: “Começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras”. Toda a Bíblia fala de Jesus. O plano de Deus para todas as épocas não depende total e exclusivamente da fidelidade de seu povo eleito, Israel. O Messias é Jesus, não Israel. Desde a eternidade, Deus planejou enviar seu Filho para cumprir a missão redentora (1Pedro 1.19,20). Portanto, quando Israel falhou em cumprir a missão designada, Deus não mudou seus planos, mas, em vez disso, foi adiante em seu propósito de salvar a humanidade por meio de Jesus Cristo e por meio do testemunho da igreja, o novo Israel. Desse modo, Lucas põe em evidência seu propósito de mostrar que o Reino de Deus era diferente da esperança nacionalista judaica, por ser antes uma realidade espiritual universal. A instrução de Jesus a respeito do Reino de Deus finalmente foi entendida e aplicada como deveria. Atos começa com uma compreensão mundana e política do Reino (refletida na pergunta dos discípulos, 1.6) e termina com uma proclamação poderosa e espiritual a respeito dele (refletida na pregação e no ensino de Paulo, 28.31).

A PROMESSA DO PAI (1.4-8)

As palavras de Jesus nesses versículos fazem parte do processo de preparação de seus discípulos para a propagação da mensagem do evangelho. Por meio delas, o Cristo ressurreto dá as instruções finais a seus discípulos antes de ser levado ao Pai. Um elementochave do que Jesus comunica a eles é o que ele chama “promessa de meu Pai” (gr. tēn epaggelían toū patrós), ou seja, o Espírito Santo (v. João 14.26; 15.26,27; 16.12,13). Jesus preparou seus discípulos prometendo-lhes o dom do Espírito Santo (Atos 1.4,5). Isso não foi uma improvisação nos propósitos de Deus. Essa promessa já havia sido anunciada pelos profetas (Ezequiel 11.19; Joel 2.28; Isaías 32.15). O último dos profetas, João Batista, foi muito claro ao fazer o mesmo anúncio (Mateus 3.11). Enquanto o batismo de João era de arrependimento e fé para o perdão dos pecados, o batismo com o Espírito Santo seria de poder e autoridade para o serviço do Reino. A experiência prometida era de uma saturação da personalidade sob a influência e o controle de Deus, de modo que a pessoa humana e a Pessoa divina trabalhassem juntas na realização dos propósitos eternos. Observe-se o cenário dessa instrução, que é o de uma reunião íntima (gr. synalizómenos, “comer junto”, “congregar”, “estar com”) à mesa, muito provavelmente no conhecido cenáculo, em Jerusalém, onde já haviam participado de outras refeições. Muitos dos grandes ensinos de Jesus foram ministrados enquanto comiam. Além disso, o que ele lhes comunicou não foi uma recomendação, mas uma ordem (“deu-lhes esta ordem”, gr. parēngeilen autoīs) revestida de solenidade: “Não saiam de Jerusalém”. Sem dúvida, Jesus queria

que seus seguidores estivessem todos no mesmo lugar, a fim de experimentarem juntos o cumprimento da “promessa do Pai”, o batismo com o Espírito Santo, como ele havia previsto (João 14.26; 15.26,27; 16.12,13). É interessante o pedido implícito de paciência quando o Senhor lhes ordena: “Esperem pela promessa de meu Pai”. Geralmente, as grandes bênçãos espirituais não ocorrem na vida do crente individual ou da igreja da noite para o dia, mas após um processo de preparação. Nesses versículos, encontramos nas palavras de Jesus uma promessa brilhante como a luz da manhã e generosa como o orvalho ao anoitecer. É a estrela da esperança, cujos raios de luz perfuram as nuvens negras e espessas de uma noite longa e escura. É como uma manhã quente de primavera após um longo e rigoroso inverno. É uma voz de esperança em meio ao desespero. É estridente como um grito de batalha e musical como uma orquestra celeste. A promessa do Pai é esta: “Dentro de poucos dias vocês serão batizados com o Espírito Santo” (v. 5b). Se hoje sentimos a necessidade de um grande avivamento e oramos por ele, precisamos voltar e ler e a estudar as condições que precederam, realizaram e deram continuidade ao derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecoste. No Novo Testamento, o lugar mais importante em um avivamento é ocupado pelo Espírito Santo. Essa realidade está gravada em letras de ouro nas páginas da Palavra de Deus. A história do cristianismo publica esse fato ao som de trombetas, em tons inconfundíveis. É tudo tão óbvio que ficamos surpresos quando percebemos quão pouco nos dispomos a estar sob a dependência dele e quão levianamente refletimos sobre sua importância. O Espírito Santo não é apenas

indispensável para o avivamento: é ele quem o provoca. A Bíblia não só registra que o Espírito Santo foi prometido aos crentes, mas afirma categoricamente que a obra de Deus não pode ser feita de outra forma (Zacarias 4.6). A Bíblia discorre sobre a promessa do Espírito Santo e sua vinda com poder, bem como sobre a ocorrência do poderoso avivamento que se seguiu. A ordem estabelecida por Deus é esta: promessa, expectativa, cumprimento. Se nos convencêssemos de que dependemos inteiramente do poder de Deus para o avivamento, sem dúvida preenche- ríamos as condições para experimentá-lo. Sem o poder do Espírito, o avivamento é impossível. Nesse sentido, a responsabilidade de ser testemunha de Jesus, ou seja, de anunciar o evangelho do Reino, envolve três aspectos, que devemos considerar à luz dessa passagem. O poder do Reino (1.4,5)

Chama a atenção no v. 4 a ênfase sobre Jerusalém: “Não saiam de Jerusalém” (gr. apò Hierosolumōn mē chōrízesthai). Como destaca Luis Heriberto Rivas: “Entre os escritores do Novo Testamento, Lucas é o que demonstra maior interesse pela cidade de Jerusalém: todos reconhecem que ele estruturou sua obra (o evangelho e o livro de Atos) de tal forma que toda a história estivesse centrada em Jerusalém”.8 É ali que o evangelho começa e termina (Lucas 1.8; 24.52,53) e onde a pregação do evangelho por todo o mundo deve começar (Lucas 24.47; Atos 1.8). Luis Heriberto Rivas: “Lucas refere-se a Jerusalém para mostrar a continuidade entre o povo de Israel e o povo da igreja. Em Jerusalém, está a origem, o ponto de partida, mas o horizonte é outro: a universalidade. Esquivando-se dos que sugerem que a igreja substitui Israel, Lucas mostra

com sua obra que a igreja está na continuidade de Israel. Aos cristãos provenientes do paganismo, Lucas ensina que agora estão arraigados a um povo que é o depositário das promessas de Deus”.9

A promessa (v. 4). Jesus ordenou a seus discípulos: “Esperem pela promessa de meu Pai” (gr. allà periméneintēn epangelían toū patrós). A partida de Jesus teria terminado em desastre, não fosse ele ter deixado uma promessa, que o Pai cumpriu fielmente poucos dias depois. Quando o Senhor também prometeu aos discípulos: “Dentro de poucos dias vocês serão batizados com o Espírito Santo” (v. 5b), selou o destino glorioso do testemunho cristão no mundo até o dia de seu retorno. Assim, a primeira seção de Atos bem merece o título “O batismo com o Espírito Santo prometido pelo Pai”. A seção inteira serve de transição entre o Evangelho de Lucas e o livro de Atos. Enquanto o evangelho indica os feitos poderosos que Deus realizou na pessoa de Jesus Cristo e por meio dele, Atos representa a ação continuada de Deus por meio do Espírito Santo. Na verdade, o foco do livro parece recair sobre os atos do Espírito Santo, e não é por acaso que ele é citado duas vezes no parágrafo inicial, tanto nas “instruções por meio do Espírito Santo”, dadas aos apóstolos (v. 1), quanto na expectativa de serem todos os crentes “batizados com o Espírito Santo”. A preparação (v. 5). Jesus disse a seus discípulos: “Vocês serão batizados com o Espírito Santo” (gr. hymeīs dè en pneúmati baptisthēsesthe hagíōi). Jesus preparou seus discípulos prometendo-lhes o cumprimento da “promessa de meu Pai”, ou seja, o batismo “com o Espírito Santo”. Como já foi dito, não se tratava de uma espécie de plano B nos desígnios eternos de Deus, pois por meio dos profetas ele já se havia comprometido a fazê-lo, e o

próprio João Batista o anunciou (Mateus 3.11). O batismo de arrependimento para a salvação era um; o batismo de poder para a missão é outro. Podemos descrever essa experiência (Efésios 5.18) como uma saturação da personalidade sob a influência e o controle de Deus, por meio de seu Espírito Santo, de modo que a pessoa humana e a Pessoa divina trabalhassem juntas. No grego, há um contraste evidente entre João, que batizou com água (Lucas 3.16), e os discípulos, que seriam batizados com o Espírito Santo (v. 5) cerca de dez dias depois (no Pentecoste). Ambas as expressões são instrumentais, portanto o uso da preposição “com” (gr. en) é apropriado. A pregação de João Batista anunciava o Messias como alguém que batizaria “com o Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3.11; Lucas 3.16). O termo “fogo”, que Lucas utiliza no evangelho, mas omite em Atos, por se tratar de uma aposição gramatical a “Espírito Santo”, ressalta a profundidade da ação deste, que tende a purificar as almas apagando os pecados.10 A natureza do Reino (1.6,7)

A pergunta (v. 6). Diante de um anúncio tão tremendo, os discípulos pareciam estar preocupados com algo mais. A pergunta deles é a prova de sua total falta de compreensão: “É neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?” (gr. ei en tōi chrónōi toútōi apokathistáneis tēn basileían tōi Israēl). Eles não faziam ideia de que a dimensão temporal do Reino de Deus não é cronológica (gr. chrónos, o tempo mensurável pelo relógio, a medida do tempo), mas providencial (gr. kairós, o tempo oportuno segundo o desígnio de Deus, considerado ocasião, em vez de extensão). Sem dúvida, os judeus estavam pensando no advento de um reino terreno, porque

havia muito tempo achavam-se cativos na própria terra sob a opressão romana e queriam governar a si mesmos, de forma independente. Os discípulos, mesmo depois da ressurreição, pareciam alimentar ainda a expectativa política popular, que sonhava com a restauração do período glorioso dos dias de Davi e Salomão (v. 6). Na verdade, eles não estavam inquirindo acerca do Reino de Deus (gr. tēs basileías toū theoū), mas sobre o reino de Israel. A resposta (v. 7). Jesus respondeu à preocupação política dos discípulos indicando a “santa ignorância” como necessária: “Não compete a vocês saber” (gr. Ouch humōn estin gnōnai, v. 7a). Será que o próprio Jesus desconhecia a resposta a essa pergunta? Se ele era divino, devia ser onisciente também. Então, por que não respondeu com base em seu conhecimento sobre “os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade”? A resposta de Jesus dá a impressão de que ele tinha informações mais precisas, mas não julgou importante compartilhá-las com os discípulos no momento. Antes que pudessem compreender plenamente o Reino de Deus e suas datas, era necessário que amadurecessem na fé e trocassem seus anseios políticos e mundanos por uma visão mais clara do Reino. Os discípulos não conseguiam pensar em outro reino senão o de Israel (v. 6). Por isso, Jesus não lhes respondeu de forma direta, mas esclareceu que a pergunta correta não era “quando?”, mas “como?”. O Reino não seria restaurado pela repentina destruição dos inimigos de Israel, mas pelo fiel testemunho dos que o reconhecessem como Salvador e Senhor. Na verdade, o Reino será consumado com a segunda vinda de Cristo. A expressão “os

tempos ou as datas” (gr. chrónous ē kairoùs, v. 7) refere-se à segunda vinda de Cristo (1Tessalonicenses 5.1,2). Assim, aos discípulos de Jesus não é dado saber a cronometragem desse acontecimento, embora possamos discernir os tempos e perceber sua proximidade. Enquanto isso, Jesus reina no coração e na vida de todos os seus seguidores. O testemunho do Reino (1.8)

Em 1.8, temos outra prévia da promessa do Espírito e uma síntese da história que Lucas irá narrar em sua obra. É bem provável que Jesus tenha restringido sua resposta aos discípulos (v. 7) pelo fato de a pergunta deles não ser o cerne da questão na época. A conjunção “mas” (gr. allà) não deve ser interpretada como uma contradição entre o que acaba de ser dito e o v. 8, porque é uma diversativa (não uma adversativa). Ou seja, deve ser traduzida por “em vez disso”, “antes”, “por outro lado”. Trata-se, na verdade, de uma expressão transitória, que muda o foco da atenção da afirmação anterior para algo com outro significado, talvez mais importante, como: “Receberão poder [...] e serão minhas testemunhas”. O v. 8 é, de fato, o mais importante de todo o livro, pois apresenta dois elementos muito significativos sobre o testemunho cristão. É um testemunho poderoso. A vinda do Espírito e sua recepção pelos crentes daria início a uma nova experiência do poder de Deus. O poder do Espírito Santo. Lucas destaca nas palavras de Jesus sua compreensão da natureza do poder do Espírito Santo. A promessa de Jesus era: “Receberão poder” (gr. lēmpsesthe dýnamin), e esse poder não é um fluido, uma energia ou uma

influência, mas uma pessoa — o Espírito Santo. De acordo com Jesus, esse poder só se torna efetivo com a presença e com a operação da pessoa do Espírito Santo na vida do crente (“quando o Espírito Santo descer sobre vocês”, gr. epelthóntos toū hagíou pneúmatos ef’ hymās). Não é possível dar um testemunho poderoso do evangelho sem estar cheio do Espírito Santo. Para testemunhas cristãs, estas são as perguntas-chave: 1) Como experimentar o poder do Espírito Santo? A resposta bíblica a essa pergunta é: se orarmos e pedirmos ao Pai (Lucas 11.13); se confessarmos nossos pecados a Deus (Salmos 51.3,4,11); se aceitarmos com arrependimento e obediência o que Deus fez por nós (2.38). 2) Por que devemos experimentar o poder do Espírito Santo? A resposta bíblica a essa pergunta é: para convencer o mundo do pecado (João 16.8); para converter muitos do pecado ao Senhor (11.21); para comunicar o evangelho a todo o mundo (1.8b). 3) Por que devemos experimentar o poder do Espírito Santo? A resposta bíblica a essa pergunta é: porque o Espírito Santo pode fortalecer nossa vida (1.8a); porque o Espírito Santo pode trazer vitalidade às nossas igrejas (2.4); porque o Espírito Santo pode nos ajudar a proclamar a palavra de Deus sem medo (4.31). O poder do testemunho cristão. Lucas destaca nas palavras de Jesus sua compreensão da natureza do testemunho do Reino. Era para ser um testemunho poderoso, por causa da intervenção do poder de Deus, o Espírito Santo. O evangelho a ser comunicado em cumprimento da missão designada pelo Senhor a seus seguidores no mundo é um evangelho de poder. Além disso, esse poderoso testemunho é aquele dado pelo Espírito Santo a respeito de Cristo

por meio dos crentes. Não somos nada além de canais de tal manifestação sobrenatural, desse poder para a salvação das nações. Esse testemunho tem em Jesus Cristo o único tema e conteúdo (“serão minhas testemunhas”, gr. ésesthe mou mártyres). Ou seja, não testificamos de nós mesmos, de nossos credos ou tradições, de nossas instituições ou programas, de nossas atividades ou credenciais. Somos testemunhas dele porque ele é, de modo exclusivo, o conteúdo e o propósito de nosso testemunho. É um testemunho global. O v. 8 é importante porque apresenta praticamente o esboço de todo o livro de Atos. Os apóstolos começaram sendo testemunhas em Jerusalém (cap. 1—7), depois na Judeia e na Samaria (cap. 8—9) e até os confins da terra, o que incluía Cesareia, Antioquia, Ásia Menor, Grécia e Roma (cap. 10— 28). Mesmo assim, Roma não deve ser considerada “os confins da terra”. O testemunho tem alcance global, ou seja, é muito mais que de alcance mundial. Este tem a dimensão geográfica e pode ser desenhado no mapa, enquanto o primeiro tem a dimensão integral e abrange todas as esferas da vida humana. Seu alcance geográfico. Esse testemunho deve começar onde estivermos, ou seja, em nossa “Jerusalém”, nossa cidade. E, a partir daí, deve avançar para outras partes do país (“Judeia”), para os países vizinhos (“Samaria”) e “até os confins da terra”. Em seu alcance geográfico, é um testemunho global ou ecumênico, ou seja, atinge todo o mundo habitado. Martinho Lutero: “Tal pregação [disse Jesus] começa no meu povoado, com aqueles que querem ser salvos mediante sua lei e seu culto e prossegue dessa forma através de todo o império romano e por todos os rincões do mundo onde há idolatria; repreende e reprova todo o conjunto e lhes diz que ‘esta é a ordem que eu, Senhor do céu e da terra, lhes dou: que devem crer

em mim. Esta é minha pregação, que desse modo deve percorrer todo o mundo, desimpedida e irresistivelmente, sem levar em conta que os judeus não creem nisso e ainda se escandalizam, e os amaldiçoarão e os entregarão ao Diabo, e que os pagãos, além disso, se atreverão a reprimi-lo com violência’ ”.

Seu progresso espiritual. Esse versículo resume o conteúdo do livro e mostra o mapa espiritual que será percorrido ao longo de suas páginas. Atos é o desenvolvimento espiritual desse versículo. Vemos nele o papel dos cristãos, que não é outro senão o de testemunhas. Vemos também nessas palavras o campo missionário dos cristãos, que é o mundo inteiro — “até os confins da terra”. Vemos ainda o poder dos cristãos para cumprir sua missão, que é o Espírito Santo. O Senhor nos capacita a fazer o que ele espera de nós. Paul Hertig e Robert L. Gallagher: “Este esboço de três partes indica a pulsação de Atos. O Espírito Santo capacita dinamicamente a igreja primitiva em seus estágios infantis em Jerusalém, então a amadurece e a transforma em uma força missionária que se estende até os confins da terra e incorpora judeus e gentios em uma comunidade universal e multicultural. A igreja começa em Jerusalém com uma missão centrípeta: ela atrai amorosamente o povo para sua comunidade dinâmica; então, se expande para a Judeia e Samaria com uma missão centrífuga que corajosamente se aventura no mundo gentio”.11

Sua dimensão missiológica. A referência à grande comissão nesse versículo é significativa. É o único que menciona a grande comissão em Atos, antes da ascensão do Senhor (foram dadas em outras ocasiões as comissões de Mateus 28.19,20; Marcos 16.15; Lucas 24.47,48). É claro que a missão dos seguidores de Jesus é dar testemunho dele. O “poder” (gr. dýnamis) prometido nada mais é que o poder para testemunhar de Cristo (João 15.26,27; Lucas 24.45-49). Esse é o poder que vem sobre o crente quando ele é

“cheio” do Espírito Santo. É também o poder miraculoso pelo qual ele pode fazer milagres. A vinda do Espírito Santo sobre os discípulos e a condição de estarem cheios dele são ações simultâneas (cf. 2.4). Observe-se o contraste entre o “poder” político que os discípulos tinham em mente (v. 6b) e esse “poder”, que capacita testemunhas de Cristo (“minhas testemunhas”) em todo o mundo, em resposta a seu imperativo. O termo grego geralmente traduzido por “testemunha” (mártys ou mártyros) é encontrado 13 vezes em Atos (1.8,22; 2.32; 3.15; 5.32; 6.13; 7.58; 10.39,41; 13.31; 22.15,20; 26.16), e seu significado básico é “alguém que dá testemunho”. A expressão “e até os confins da terra” (gr. héōs eschátou tēs gēs) ocorre com frequência na LXX nas referências a terras distantes. Carlos Mraida: “Devemos trabalhar rumo a uma igreja que se renove pela visão do Espírito Santo: ‘[...] receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra’ (1.8). A ênfase desmedida e quase exclusiva no crescimento numérico da igreja tem substituído a visão expansiva do Reino, que começa em nossa Jerusalém sem se deter até chegar aos confins da terra. Isso tem acontecido por causa de uma visão direcionada para o local, com o propósito de concentrar os recursos humanos, econômicos e estratégicos no crescimento da membresia. Uma igreja em reforma permanente, porém, longe de temer a expansão missionária, empenha-se em promovê-la, porque acredita que há maior felicidade em dar do que em receber, e que a congregação local cresce em força, em recursos materiais e na formação de novos líderes quando investe além de sua igreja local”.12

Deus nos confiou a enorme tarefa de sermos suas testemunhas no mundo mediante a pregação de seu evangelho. Para cumprir essa tarefa, ele nos equipou com a prova de sua ressurreição, com a participação em seu Reino e com o poder do Espírito Santo. O

trabalho que temos pela frente consiste em nada menos que dar um testemunho vivo da presença de seu Reino em todos os lugares. Sua dimensão eclesiológica. Uma tremenda propagação do evangelho no poder do Espírito Santo se dá por meio da igreja, mas não apenas em qualquer igreja, mas em uma igreja global. Essa igreja não pode ser denominacional ou sectária; não pode nem deve ser institucionalizada, ou seja, governada pela “tradição dos anciãos” ou por uma burocracia clerical. Essa igreja, cheia do poder do Espírito Santo, é a única que pode saturar o mundo com o evangelho do Reino. A Igreja serve aos propósitos de Deus no mundo cheia do Espírito Santo, e o Espírito Santo é o poder da igreja. Por quê? 1) O Espírito Santo é o poder da igreja porque é seu criador. Ele põe o crente em uma relação correta com Deus (João 3.5), e consegue isso porque nos convence de pecado (João 16.8), nos garante que somos filhos de Deus (Romanos 8.14) e nos ajuda a confessar Jesus como Senhor (1Coríntios 12.3). Além disso, ele põe os crentes em um relacionamento correto uns com os outros (Efésios 4.3-6). 2) O Espírito Santo é o poder da igreja porque é seu capacitador. Ele nos ajuda a entender a Palavra de Deus (João 14.26); ele nos dá os dons necessários para servir ao Senhor (1Coríntios 12.4-12); ele nos permite conhecer a vontade de Cristo (João 16.13-15); ele nos guia na adoração a Deus (Efésios 5.18-20); ele nos ajuda quando oramos ao Pai (Romanos 8.26,27). Carlos Mraida: “Devemos trabalhar rumo a uma igreja que se renove pelo poder do Espírito Santo: ‘Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês’ (1.8). Quanto à forma, há um nível de mudanças que é necessário. Consiste na adaptação a novas realidades, a novos recursos e a

novas tecnologias, bem como às mudanças que a sociedade experimenta, diante das quais a igreja não pode se fechar. Alguém poderia chamar ‘inovação’ a esse nível de mudança nas formas, mas, com respeito à transformação da realidade, há um nível mais elevado, transcendente e definitivo: é quando falamos de mudanças profundas na vida das pessoas, da família e da sociedade. A esse nível mais elevado podemos chamar ‘renovação’. Ambos os níveis são necessários, porém o segundo, o da renovação, torna-se indispensável. Muitas propostas de mudança constituem apenas inovação, não renovação, porque obviamente é mais simples analisar as mudanças e adaptar-se a novas realidades. A renovação, porém, prescinde da operação do Espírito Santo e de sua manifestação poderosa. Só uma igreja em permanente reforma poderá causar mudanças profundas no continente latino-americano, porque o poder do Espírito Santo é derramado sobre uma igreja sedenta e faminta da presença e da operação poderosa do Espírito”.13

Desse modo, como já foi dito na Introdução, Atos é uma narrativa histórica, mas de caráter seletivo. Ou seja, Lucas não tem a intenção de fazer uma crônica de fatos históricos relacionados com os primeiros cristãos. Em vez disso, seu propósito parece ser encadear várias experiências históricas para mostrar a maneira maravilhosa pela qual, sob a orientação e o poder do Espírito, os primeiros cristãos deixaram de ser uma seita judaica dominada pelo medo para se tornar um povo de todas as raças e línguas que, sob o poder do Espírito, levou a mensagem do evangelho até o último ser humano de sua geração.

A ASCENSÃO E A EXALTAÇÃO DE JESUS (1.9-11)

O fato histórico da ascensão do Senhor ao céu faz parte da proclamação do evangelho do Reino, somada à proclamação de seu nascimento, vida, ministério, morte, sepultamento e ressurreição. O significado teológico desse fato histórico é imenso e deve ser reavaliado pela comunidade de fé, a fim de medir a obra redentora de Cristo e sua continuação por meio do “outro Jesus”, o Espírito Santo. A ascensão de Cristo (1.9,10a)

O que é a ascensão de Cristo? Quando falamos da ascensão de Cristo, referimo-nos a esse fato na vida de nosso Senhor ressurreto, pelo qual ele se separou visivelmente de seus discípulos para retornar ao céu (“foi elevado às alturas”, gr. epērthē), a morada de Deus. O verbo epáirō significa “levantar”, “alçar”. Em Lucas 24.51, temos a frase “foi elevado ao céu” (gr. aneféreto), enquanto em 1.2,11 e em 1Timóteo 3.16 a frase é “foi recebido” (gr. analēmfthēis). Parece que nesse momento apareceu uma nuvem (gr. nefélē) que “o encobriu”(gr. hypélaben auton) ou “o recebeu”. A ideia do verbo (gr. hypolambánō, “separar”, “tirar”) é retirá-lo de baixo, ou seja, como se fosse sustentado pela nuvem. A nuvem o escondeu ou o transportou? A experiência é bem semelhante à de Elias, que “foi levado aos céus num redemoinho” (2Reis 2.11). Portanto, o termo “ascensão” é utilizado para se referir ao momento em que o Cristo ressurreto partiu da terra para o céu (Marcos 16.19; João 20.17), onde voltou a assumir sua posição de autoridade à direita de Deus Pai “nas regiões celestiais” (Efésios

1.20,21). A ascensão de Cristo foi um fenômeno visível e corporal, acompanhado de uma nuvem (1.9-11). O Senhor retornará do céu à terra da mesma forma que a deixou (1.11; 3.20,21). O anúncio da ascensão faz parte da mensagem apostólica ou kērygma, que prega o nascimento, a vida, o ministério, a morte, a ressurreição, a ascensão e a segunda vinda de Cristo como ações redentoras de Deus na história (1Timóteo 3.16). Como ocorreu a ascensão de Cristo? A ordem dos elementos gramaticais no texto grego deve ser alterada para representar melhor a ordem dos acontecimentos. Isso significa que, em primeiro lugar, Jesus encerrou sua fala; em segundo, que ele ascendeu ao céu; em terceiro, que os discípulos estavam assistindo; em quarto, que uma nuvem ocultou ou recebeu Jesus. É interessante caracterizar cada uma dessas ações. Em primeiro lugar, o texto menciona o quadro da ascensão. A expressão “tendo dito isso” situa a ascensão como o clímax da experiência de instrução de Jesus a seus discípulos, que começou no v. 4. Em segundo lugar, há o agente da ascensão, que é Deus, como sugere o uso da voz passiva (“foi elevado”; cf. 1.2a). Em terceiro lugar, existem as testemunhas da ascensão, que não são outros senão os discípulos que “olhavam” para ele. O verbo “olhar” ou “observar” ocorre frequentemente de forma contínua, para enfatizar a duração do processo (“enquanto eles olhavam”). Em quarto lugar, a realidade da ascensão é expressa no fato de que ele “foi elevado aos céus” (v. 2) ou “às alturas”, a tal ponto que “uma nuvem o encobriu da vista deles”. A estrutura do quarto parágrafo do cap. 1 é relativamente simples, pois consiste em três elementos básicos. Primeiro: uma cláusula de

transição, que vincula os acontecimentos desse parágrafo ao anterior, ou seja, o fato de os discípulos estarem olhando para o céu. Segundo: a introdução de dois novos participantes na cena, que são “dois homens vestidos de branco” (gr. idoú ándres dýo pareistēkeisan autoīs en esthēsesileukaīs). Terceiro: o que essas personagens disseram aos discípulos. De acordo com o estilo grego polido, a cláusula introdutória depende da frase seguinte e serve para fazer a ligação desta com a anterior. No entanto, a primeira cláusula deve ser mantida separada da segunda. A impressão é que enquanto olhavam para cima duas pessoas se aproximaram por baixo (dois planos da realidade: vertical e horizontal). Observe-se que os discípulos estavam com “os olhos fixos no céu” (gr. hōs atenízontes ēsan eis tòn ouranòn). Essa expressão é tipicamente lucana (o verbo utilizado por ele aparece 14 vezes no Novo Testamento, das quais 12 ocorrem em Lucas). Significa “olhar para algo com intensidade”. Além disso, a forma do verbo e seu significado dão destaque à atenção com que os discípulos olhavam para o céu enquanto Jesus “subia”. O que nos ensina a ascensão de Cristo?14 A doutrina neotestamentária sobre a ascensão de Cristo ensina três verdades fundamentais acerca do Senhor ressurreto: ele é Rei, Sacerdote e Profeta. Primeira: Cristo é Rei, ou seja, compartilha o trono de Deus, e toda a autoridade lhe foi concedida no céu e na terra (Mateus 28.18; Marcos 16.19; Atos 2.33; Romanos 8.34; 1Coríntios 15.25; Efésios 1.20; Hebreus 1.3,13; 1Pedro 3.22; Apocalipse 3.21). Ele reina na glória, embora sua verdade seja conhecida apenas pelos que creem nele. Sua plena manifestação deve esperar por sua parúsia. Segunda: ele é Sacerdote, ou seja, intercede por nós à

direita de Deus (Romanos 8.34; Hebreus 7.25; 9.24; 1João 2.1). A carta aos Hebreus é a que expõe com maior amplitude e mais detalhes a ideia de Cristo como o Sacerdote que nos conecta com o próprio Deus. Terceira: Cristo é Profeta, ou seja, o enviado de Deus que nos trouxe sua Palavra (João 6.14) e veio cumprir a profecia que anunciava um profeta semelhante a Moisés (Deuteronômio 18.15,18). Contudo, a aliança que ele veio propor era muito superior ao pacto de Moisés, e essa nova aliança, após a ascensão, era algo que seus discípulos teriam condições de honrar com a ajuda do Espírito Santo. A exaltação de Cristo (1.10b,11)

O que aconteceu no céu? Os discípulos ficaram olhando para Jesus enquanto ele subia ao céu, até que se perdeu no infinito. Contudo, a Bíblia relata em outros lugares o que aconteceu no céu quando Jesus chegou. A exaltação de Cristo significa aquele ato de Deus pelo qual o Cristo ressurreto e ascendido recebeu seu lugar de poder e de honra à direita do Pai nas regiões celestiais. A respeito disso, o apóstolo Paulo escreve aos filipenses: “Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Filipenses 2.9). Em outra de suas cartas, acrescenta: “Esse poder ele exerceu em Cristo, ressuscitando-o dos mortos e fazendo-o assentar-se à sua direita, nas regiões celestiais, muito acima de todo governo e autoridade, poder e domínio, e de todo nome que se possa mencionar, não apenas nesta era, mas também na que há de vir” (Efésios 1.20,21). O que aconteceu na terra? Lucas diz que na terra e “de repente” dois homens vestidos de branco se aproximaram dos discípulos. Os

“dois homens vestidos de branco” pareciam anjos, já que a vestimenta branca é a tradicional desses seres na tradição judaicocristã. A maneira em que eles se acercaram dos discípulos foi “de repente”, ou seja, apareceram do nada. Como podiam saber que eram “dois homens”, não duas mulheres? Não há resposta a essa pergunta no texto, embora geralmente na Bíblia os anjos sejam personagens masculinas ou, pelo menos, se parecem com homens e são frequentemente chamados assim. Mais importante é o que disseram aos discípulos, em sua maioria “galileus”, ou seja, da Galileia. A expressão “para o céu” é repetida três vezes (v. 10,11a,11b), mas pode ter significado diferente: o céu como a morada de Deus ou apenas o firmamento. Jesus foi elevado ao céu, enquanto os discípulos observavam a cena atentamente. A promessa dos anjos é precisa: “Este mesmo Jesus [...] da mesma forma [...]”. Aquele que irá voltar não é outro senão o que foi levado, e a maneira pela qual retornará não é outra senão aquela em que  partiu. O Cristo ressurreto retornará nas nuvens “com poder e grande glória”, com o mesmo corpo de sua ressurreição. Ele saiu envolto em nuvens e voltará cercado de nuvens (Mateus 24.30; 27.64; Marcos 13.26; 14.62; Lucas 21,27; v. 1Tessalonicenses 4.17; Apocalipse 1.7). O Cristo que agora está exaltado no céu é o Cristo que é esperado na terra. O significado teológico da ascensão e exaltação de Cristo

O próprio Jesus Cristo predisse sua ascensão e exaltação em muitas ocasiões. Na verdade, esses fatos estavam o tempo todo em sua mente. Os escritores do Novo Testamento também registram esse grande acontecimento com muitos detalhes. Marcos relata

que, “depois de lhes ter falado, o Senhor Jesus foi elevado aos céus e assentou-se à direita de Deus” (Marcos 16.19). Lucas registra o depoimento das testemunhas oculares dos acontecimentos, dizendo que Jesus conduziu seus discípulos a Betânia, “ergueu as mãos e os abençoou”. E acrescenta: “Estando ainda a abençoá-los, ele os deixou e foi elevado ao céu” (Lucas 24.50,51). Estêvão, o primeiro mártir cristão, no momento de sua morte teve uma visão do Cristo ressurreto e exaltado. De acordo com o registro de Lucas, ele, cheio do Espírito Santo, “levantou os olhos para o céu e viu a glória de Deus, e Jesus em pé, à direita de Deus”. Isso o levou a exclamar: “Vejo os céus abertos e o Filho do homem em pé, à direita de Deus” (7.55,56). Os apóstolos ensinaram e pregaram esses grandes fatos e experiências como verdades que faziam parte da mensagem (kērygma) que deviam comunicar ao mundo. A riqueza teológica por trás do relato desses versículos leva-nos a quatro considerações teológicas sobre o texto. A necessidade da ascensão e da exaltação de Cristo. Ambas as experiências não foram fatos isolados e desconexos no conjunto das ações redentoras de Deus por meio de Cristo. A morte, o sepultamento, a ressurreição, a ascensão e a exaltação constituem uma continuidade de acontecimentos salvíficos, mas, acima de tudo, das experiências pessoais de Cristo que evidenciavam sua dupla natureza de Deus-homem. Nesse contexto importante, esses fatos foram necessários por vários motivos. A natureza do corpo ressurreto de Cristo os requeria. Um corpo físico glorificado como o dele não poderia permanecer na terra. Não que houvesse alguma impossibilidade física, pois seu corpo físico era perfeito e, além disso, não estava sujeito às limitações que

afetam o corpo humano, porque o corpo dele fora glorificado. O condicionamento era espiritual e missiológico. A estratégia missiológica do Cristo ressurreto-ascendido-exaltado tirou a missão de seus ombros e colocou-a sobre os ombros de cada um de seus seguidores em todos os tempos e em todos os lugares. Antes de sua morte, ele havia visitado casa por casa e percorrido cidade por cidade em toda a região da Galileia. Mas, agora, quanto tempo levaria para fazer o mesmo “até os confins da terra”? Embora seu corpo ressurreto e glorificado pudesse viajar grandes distâncias em um curto espaço de tempo, tal empreendimento se mostraria praticamente impossível. No entanto, por meio de seus discípulos cheios do Espírito a tarefa poderia ser realizada de maneira mais intensa e eficaz, sob sua direção e sob a coordenação celestial. A personalidade única de Cristo os requeria. Assim como sua entrada no mundo foi maravilhosa, sua saída também deveria ser. A ascensão seguida de sua exaltação consolidou o significado de sua ressurreição e deu-lhe acesso ao título de Senhor. Ele deixou de ser mera figura histórica para se tornar o Senhor da história e do mundo. Essa posição única e exaltada, de acordo com o apóstolo Pedro, foi o resultado de sua ressurreição-ascensão-exaltação (2.36; 5.31,32). Ele já era Senhor antes desses acontecimentos, mas agora, depois deles, está se manifestando como o Senhor que sempre foi, embora de maneira mais evidente para nós. Ascendido e exaltado, ele detém o senhorio sobre o Universo, sob a autoridade de Deus. Como Senhor, está envolvido em uma verdadeira campanha para subjugar os inimigos e colocá-los sob seus pés. O livro de Apocalipse descreve em cores vivas essa luta e seu resultado glorioso. Paulo também faz referência a esse momento

(1Coríntios 15.25-28), registrado ainda em Hebreus 10.12,13. Sua personalidade única como Príncipe e Salvador continua a operar em todo o Universo e no mundo ainda no cumprimento de seu programa de redenção, trazendo arrependimento e perdão dos pecados, ao passo que seus seguidores continuam comprometidos com ele obedecendo-lhe em tudo e dando testemunho de seu Reino, cheios do Espírito Santo (5.31,32). A obra redentora de Cristo os requeria. Essa obra redentora não havia terminado com a ressurreição. A ascensão e a exaltação de Cristo concluíram o processo de sua ação redentora. Com o tempo, a igreja entendeu o significado redentor desses acontecimentos e os encadeou como parte de um processo unificado de fatos redentores. Já em 1Timóteo 3.16, Paulo parece resumir “o mistério da piedade” em termos que concluem com a exaltação de Cristo, “manifestado em corpo, justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as nações, crido no mundo, recebido na glória”. O Credo apostólico expressa a mesma ideia: “Ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu, e está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso”. Karl Barth: “Com a expressão ‘está sentado à direita de Deus Pai’, entramos obviamente em um novo tempo, que é nosso hoje, o tempo da igreja, o tempo vindouro, aberto e fundado pela obra de Cristo. O registro desse fato constitui no Novo Testamento a conclusão dos relatos da ressurreição de Jesus Cristo. Quase correspondendo ao milagre do Natal, é uma linha relativamente tênue a que no Novo Testamento fala da ascensão de Cristo. Em algumas passagens, menciona-se apenas a ressurreição e, em seguida, diretamente o lugar à direita do Pai. Também no evangelho a ascensão é mencionada com relativa moderação. Trata-se desse passo, da virada do tempo da revelação para o nosso tempo [...]. Essa identidade de Deus e do homem em Jesus Cristo é o conhecimento, a revelação do conhecimento com a qual a obra definitiva de Jesus Cristo atingiu seu ponto final”.15

O testemunho dos crentes os requeria. À pergunta “Onde está Cristo?”, eles poderiam responder: “Nós o vimos subir ao céu e está sentado à direita do Pai”. Não seria necessário indicar onde ele residia, quantos anos tinha, que idioma falava ou qualquer outro detalhe de sua vida deste lado da eternidade.Ele havia ressuscitado e ascendido ao céu, mas estava vivo e presente na vida de seus seguidores por meio de seu Espírito Santo. Ele fora enviado pelo Pai, tornara-se homem como qualquer outro e agora, ressurreto e ascendido, continuava a enviar seus discípulos em missão ao mundo (João 20.21). Ele é o Apóstolo ascendido e exaltado (Hebreus 3.1), que envia os seus como apóstolos para testemunhar a todo o mundo que ele é Salvador e Senhor. A adoração dos crentes os requeria. O ministério terreno de Jesus foi puramente local, mas o Cristo ascendido e exaltado pode ser adorado por todos os seres humanos ao mesmo tempo, em qualquer lugar do Planeta. Como um homem situado no tempo e no espaço, o poder e a influência de Cristo estavam sob severas restrições (Lucas 12.50). Foi necessário que ele partisse (João 16.7), para que pudesse retornar na pessoa universal do Espírito Santo, que estaria com seus discípulos em todos os lugares e épocas (João 14.16,26; 15.26; 16.7,13,16), o que incluía “até o fim dos tempos” (Mateus 28.20). Hoje ele é anunciado e adorado em todo o mundo, pelo fato de agir em todos os lugares pelo seu Espírito. A vinda do Espírito Santo os requeria. O próprio Jesus declarou: “É para o bem de vocês que eu vou. Se eu não for, o Conselheiro não virá para vocês; mas, se eu for, eu o enviarei” (João 16.7). Assim, os escritores do Novo Testamento concordam em que a

concessão do Espírito Santo foi adiada até depois da ressurreição, da ascensão e da exaltação de Cristo, fatos com os quais está intimamente conectada. Especialmente Lucas apresenta de maneira singular um relato detalhado dos acontecimentos em torno da ascensão e da exaltação de Jesus e da vinda do Espírito Santo. Além disso, parece que Lucas tenta encaixar sua narrativa em um elaborado esquema teológico. Alan Richardson: “Lucas enfatiza um período de ‘espera’ entre a ressurreição e a vinda do Espírito (Lucas 24.49,53). Em Atos 1.3, lemos que Jesus apareceu aos apóstolos ‘por um período de quarenta dias’, após os quais há mais uma espera (1.4). Parece que a ascensão ocorreu no final dos quarenta dias (1.9-11), e os apóstolos voltaram para Jerusalém (1.12; v. Lucas 24.52). Então, no dia de Pentecoste, sete semanas após o dia da ressurreição de Cristo, o Espírito desceu sobre os apóstolos; a casa em que eles estavam reunidos se encheu de ‘um som, como de um vento muito forte’, e ‘o que parecia línguas de fogo’ pousou em cada um dos apóstolos (Atos 2.1-3). […] Assim, apenas Lucas entre os escritores do Novo Testamento registra os detalhes e as datas da ressurreição e da ascensão de Cristo e da vinda do Espírito como acontecimentos históricos distintos. A igreja elaborou seu calendário conforme esse modelo, e, em razão da devida observância litúrgica das verdades de nossa salvação, isso tem se provado de valor acima de qualquer estimativa. Contudo, o esquema lucano parece basear-se mais na reflexão teológica que na reminiscência histórica, e é provável que o relato joanino preserve o ensino apostólico mais primitivo nessa questão. [...] Lucas-Atos parece apresentar a verdade do evangelho por meio de uma exposição brilhantemente estilizada da história que expressa a verdade teológica profunda na forma de narrativa”.16

A natureza da ascensão e da exaltação de Cristo. Esse é um dos problemas teológicos mais complexos e difíceis de resolver. Tem havido muita discussão entre os especialistas sobre o assunto, e o debate continua. De acordo com Rudolf Bultmann, ambos os episódios, assim como as histórias em torno do túmulo vazio, nada mais são que lendas construídas pela necessidade de superar o

escândalo da cruz.17 A teologia evangélica, porém, aceita a historicidade desses eventos e seu alto significado teológico, como aspectos da obra redentora de Cristo a nosso favor. A Bíblia ensina que Jesus Cristo ascendeu em forma corporal e visível. De acordo com Lucas, a voz dos dois homens vestidos de branco foi ouvida claramente perguntando aos discípulos, atordoados: “Galileus, por que vocês estão olhando para o céu?” (1.11). Lucas também apresenta em seu evangelho a ascensão como uma experiência física e visível: “Estando ainda a abençoálos, ele os deixou e foi elevado ao céu” (Lucas 24.51). De alguma forma que nos é desconhecida, Jesus Cristo adentrou fisicamente os céus ou foi levado ao céu, o lugar da morada divina. Hebreus 4.14 registra o fato desta forma: “Temos um grande sumo sacerdote que adentrou os céus, Jesus, o Filho de Deus”. Não entendemos esse mistério. Em parte alguma da Bíblia se explica como isso aconteceu ou se descreve com clareza o lugar de sua ocorrência. Paulo limita-se a afirmar: “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus, a fim de encher todas as coisas” (Efésios 4.10). A verdade é que ele foi transladado para uma esfera de realidade distinta da que conhecemos no momento. A Bíblia ensina que Jesus Cristo assumiu seu lugar à direita do Pai. De acordo com Paulo, Deus o fez “assentar-se à sua direita, nas regiões celestiais” (Efésios 1.20). No entanto, ele não ocupou esse lugar de honra, governo, autoridade, poder e domínio sem lutar com os principados e potestades do mal. Nesse sentido, Deus, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Colossenses 2.15). “Direita de Deus” é uma expressão que indica a autoridade e

o poder do Cristo exaltado. Pedro e os outros apóstolos deixaram claro em seu testemunho perante o Conselho judaico e o sumo sacerdote que Deus, pelo seu poder, “o exaltou, elevando-o à sua direita como Príncipe e Salvador, para dar a Israel arrependimento e perdão de pecados” (5.31). O propósito da ascensão e da exaltação de Cristo. Todos esses acontecimentos salvíficos ocorreram de acordo com um plano traçado pelo próprio Deus desde a eternidade e executado no tempo (gr. kairós) com uma intencionalidade específica. É por isso que esses acontecimentos mostram Jesus Cristo em dois papéis fundamentais no processo redentor. Jesus Cristo, o precursor. Em Hebreus 6.19,20, lemos: “Temos essa esperança como âncora da alma, firme e segura, a qual adentra o santuário interior, por trás do véu, onde Jesus, que nos precedeu, entrou em nosso lugar, tornando-se sumo sacerdote para sempre”. Isso significa que o primeiro propósito pelo qual Jesus Cristo entrou no céu foi para ser um precursor. O precursor é a pessoa que entra em um lugar antes daqueles que o seguem. É alguém enviado para observar, como uma espécie de explorador ou espião. No Antigo Testamento, o sumo sacerdote não era um precursor, porque ninguém podia segui-lo ao Lugar Santíssimo no tabernáculo ou no templo. Contudo, o povo de Cristo pode seguir seu Senhor aonde quer que ele vá. Não há lugares proibidos para os filhos de Deus. Jesus Cristo, o preparador. Jesus Cristo, por um lado, foi preparar lugar para seu povo, como ele mesmo prometeu: “Vou preparar lugar para vocês” (João 14.2). Por outro lado, Jesus Cristo agora se apresenta diante de Deus, em nome de seus seguidores. Ele é o

mediador e o intercessor dos crentes: “Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples representação do verdadeiro; ele entrou nos céus, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor” (Hebreus 9.24). Por fim, Jesus Cristo assumiu seu lugar à direita do Pai para preencher todas as coisas, enquanto aguarda o dia em que terá o domínio universal. Seu objetivo é preencher tudo (Efésios 4.10) com seu poder e autoridade. Desde sua ascensão e exaltação, ele preenche todas as coisas com sua presença, ou seja, não é mais um Cristo local ou localizado, e sim cósmico. Tendo obtido a vitória, Cristo espera para recolher o despojo, o butim definitivo. Como lemos em Hebreus 10.12,13: “Quando esse sacerdote acabou de oferecer, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à direita de Deus. Daí em diante, ele está esperando até que os seus inimigos sejam como estrado dos seus pés”. O resultado da ascensão e da exaltação de Cristo. Os extraordinários acontecimentos da obra redentora de Cristo não foram sem consequências para nós. O resultado de tudo isso é maravilhoso e é um resultado quádruplo. Um acesso confiado a Deus. Por um lado, a ascensão e a exaltação de Cristo garantem ao crente uma entrada livre e confiante à presença de Deus (Hebreus 4.14-16). Ele é o caminho para o Pai (João 14.6), mas está ao lado do Pai e ali nos representa. Ele continua a advogar a nosso favor perante o trono de Deus. Karl Barth: “O que significa a ascensão ao céu? [...] A ascensão significará, em qualquer caso, que Jesus deixa o espaço terreno, o espaço, pois, que nos é compreensível e para o qual ele veio por nossa causa. Jesus não pertence mais a este espaço como nós pertencemos, o que não significa que seja estranho para ele ou que este espaço não seja também seu. Pelo

contrário, por estar acima deste espaço, ele o preenche e se faz presente nele, mas, naturalmente, não mais da maneira em que ocorreu durante o tempo de sua revelação e de sua obra terrena. A ascensão não quer dizer, por exemplo, que Cristo tenha passado para aquele outro terreno do mundo criado, para o terreno do incompreensível. ‘À direita do Pai’ não se refere apenas à passagem do compreensível para o incompreensível do mundo criado. Jesus se afasta na direção do mistério, oculto aos seres humanos, do espaço divino. O céu não é o lugar de estada de Jesus, mas ele está com Deus. O Crucificado e Ressurreto acha-se ali onde Deus está. O objetivo de sua obra na terra e na história é ir para lá. Na encarnação e na crucificação, trata-se da humilhação de Deus; na ressurreição de Jesus Cristo, trata-se da exaltação do ser humano. Como portador da humanidade e nosso representante, Cristo se acha agora onde Deus está e é como Deus. Nossa carne e nossa forma humana de ser foram nele elevados a Deus. Para cima com ele! Nós com Deus e com ele! Eis o fim de sua obra”.18

Uma esperança de vida eterna. Por outro lado, a ascensão e a exaltação de Cristo afirmam a esperança segura da vida eterna. É assim que Paulo entendia, pois afirma: “Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna nos céus, não construída por mãos humanas” (2Coríntios 5.1). A ascensão e a exaltação de Cristo dão ao crente a garantia de que ele tomará seu lugar no céu, com um corpo semelhante ao corpo glorioso do próprio Cristo ressurreto. Uma providência divina para o crente. Os fatos da ascensão e da exaltação de Cristo inspiram confiança na providência divina para crer que todas as coisas contribuem para o bem do crente. Olhando para o Cristo ascendido e exaltado, o crente pode dominar as circunstâncias e ser superior a tudo que o rodeia (Colossenses 1.18). Por fim, esses acontecimentos declaram o fato de que Cristo foi feito Cabeça da igreja. Cristo sujeita todas as coisas a si por causa da igreja (Efésios 1.22). Ele é a plenitude do Pai para a igreja

(Colossenses 2.9,10). Cristo concedeu o Espírito Santo à igreja (João 7.38,39). Cristo concede os dons espirituais de que a igreja precisa para cumprir seu ministério (Efésios 4.8,11,12). Um evangelho de salvação completo. É um erro bastante comum reduzir os atos redentores de Deus a um ou dois acontecimentos, sem levar em conta todas as suas ações como integrantes de seu projeto salvífico a favor da humanidade. Muitas vezes, a ênfase exagerada ou exclusiva na cruz ou no túmulo vazio faz que outros fatos de grande significado sejam negligenciados no processo da obra salvadora de Deus por meio de Cristo. Reconhecer a importância da ascensão e exaltação de Cristo nesse processo abrangente ajuda a obter uma compreensão mais ampla do assunto. O evangelho — as boas-novas da salvação que pregamos — não só gira em torno da morte e da ressurreição de Jesus, mas também está relacionado com outros acontecimentos importantes. O evangelho resume-se no anúncio dos seguintes acontecimentos: Deus amou o mundo pecador (amor divino); para reconciliá-lo consigo mesmo, enviou seu Filho, que se fez homem pleno para cumprir sua missão (encarnação); Cristo deu sua vida pelo perdão dos nossos pecados morrendo em uma cruz miserável (morte propiciatória); ele foi sepultado (sepultamento), mas, ao terceiro dia, foi ressuscitado com poder (ressurreição); durante quarenta dias, ele permaneceu na terra dando provas de que estava vivo; depois, ascendeu ao céu (ascensão) e lá foi exaltado por Deus Pai (exaltação). No céu, ele intercede por nós diante de Deus (intercessão); do céu, ele voltará para recolher os seus e estabelecer definitivamente seu Reino por toda a eternidade (segunda vinda). Essa é a única mensagem (evangelho) que pode

nos dar uma salvação verdadeira, pois é o que o próprio Deus tem feito na história para operar nossa salvação.

O RETORNO A JERUSALÉM (1.12-14)

Ao que parece, as ações descritas nos v. 3-11 ocorreram em Jerusalém e nos arredores da cidade. Como vimos, a passagem começa com uma reunião íntima (uma refeição), muito provavelmente no cenáculo em Jerusalém. Nesse cenário, Jesus ordenou aos apóstolos que não saíssem da cidade (v. 4). É provável que, depois desse almoço ou jantar (v. Mateus 26.30; Marcos 14.32; Lucas 22.39; João 18.1), eles tenham se encontrado de novo com o Cristo ressurreto, mas dessa vez um quilômetro fora da cidade, no monte das Oliveiras (de acordo com o Evangelho de Lucas, foi em Betânia, Lucas 24.50), onde continuaram a conversar com Jesus até que ele “foi elevado às alturas” (v. 6-11). Quando questionados pelos dois homens de branco lhe perguntaram sobre o que estavam fazendo ali (v. 11), eles se lembraram da ordem de Jesus para não deixar Jerusalém e “então [...] voltaram”. No entanto, “quando chegaram” ao cenáculo (“subiram ao aposento onde estavam hospedados”, v. 13), viram-se diante da necessidade de resolver o que lhes parecia um problema urgente: escolher alguém para substituir Judas Iscariotes. Esse parágrafo é bem claro e conciso, embora envolva algumas relações semânticas um tanto complexas. É um parágrafo de transição, cujo objetivo é preparar o terreno para a seção seguinte, que trata da seleção do sucessor de Judas Iscariotes. Nesse parágrafo de transição, Lucas faz três coisas. Em primeiro lugar, ele estabelece uma conexão com o acontecimento precedente, enquanto adiciona informações sobre o local de sua ocorrência. Em  segundo lugar, identifica as pessoas que participaram da

experiência e que seriam protagonistas do acontecimento maior que se seguiria. Em terceiro lugar, apresenta a comunidade de crentes como uma forma de preparar o leitor para os acontecimentos descritos no restante dos cap. 1 e 2. Lucas é um narrador de primeira linha, a julgar pela maneira em que vai semeando os detalhes que mais tarde usará de modo mais específico. Os discípulos e as circunstâncias (1.12-14)

A partícula “então” (gr. tóte) no início do v. 12 serve para ligar o enunciado que se segue ao acontecimento precedente, enquanto a cláusula como um todo transporta a ação do cenário da ascensão para o contexto da cidade de Jerusalém, já mencionada em 1.4. Um tempo de transição (v. 12-13a). A expressão “quando chegaram” (gr. hóte eisēlthon, v. 13a) é uma declaração típica de transição que prepara o cenário para tudo que se segue. A menção ao “monte chamado das Oliveiras” sugere que foi ali, “perto da cidade, cerca de um quilômetro”, que teve lugar a ascensão, que certamente ocorreu ao ar livre — sem dúvida, na encosta oriental da montanha, entre Jerusalém e Betânia (Lucas 19.28,29,37;v. Zacarias 14.4; Marcos 11.1). No entanto, não era ali (“aqui”, segundo os anjos) que deveriam ficar, mas em Jerusalém, de acordo com a ordem que o Senhor lhes dera (v. 4). Além disso, é provável que a ascensão tenha ocorrido em um dia de sábado (lit., “à distância da caminhada de um sábado”, gr. sabátou échon hodón), uma vez que a frase expressa a interpretação rabínica de várias passagens do Antigo Testamento (Êxodo 16.29; Números 35.5; Josué 3.4), e um judeu não podia percorrer mais que essa distância nesse dia. O “aposento” ou “quarto do andar superior” (de

acordo com o gr., eis tò hyperōion) só é mencionado nesses termos no Novo Testamento em 9.37,39; 20.8. Os onze apóstolos estavam temporariamente alojados nesse lugar (o “aposento onde estavam hospedados”, gr. ēsan kataménontes), talvez desde a última ceia com Jesus e durante os quarenta dias em que o Senhor “apareceulhes [...] falando-lhes acerca do Reino de Deus” (1.3). Esse lugar ficava na casa de Maria, mãe de João Marcos, e se tornou o ponto de encontro central da igreja de Jerusalém (cf. 12.12). Uma equipe apostólica incompleta (v. 13b). São listados os nomes de 11 apóstolos. Judas Iscariotes, que já havia cometido suicídio, não é mencionado. À exceção de Pedro, João e Tiago, os nomes nessa lista não serão mencionados outra vez (outras listas de apóstolos são encontradas em Mateus 10.2-4; Marcos 3.16-19; Lucas 6.13-16). Os nomes dos Onze no texto grego estão agrupados de forma um tanto incomum. Os quatro primeiros formam uma unidade, com cada nome ligado pela conjunção “e” (gr. kaì); enquanto os quatro que se seguem aparecem em pares (cada par ligado por “e”); os três seguintes são mencionados em série (também ligados por “e”) com identificação especial. “Tiago, filho de Alfeu”, talvez seja “Tiago, o menor”, cuja mãe, Maria, estava entre as mulheres na cruz de Jesus e com as quais foi ao túmulo (Mateus 27.56; Marcos 15.40; 16.1; Lucas 24.10). “Simão, o zelote”, era membro do partido nacionalista judeu, que defendia a expulsão violenta dos romanos. “Judas, filho de Tiago”, é sempre mencionado depois de “Tiago, filho de Alfeu”, e não há razão para considerá-lo irmão de Tiago (v. Lucas 6.16, na RVR); ele também era conhecido pelo nome de Lebeu ou Tadeu (Mateus 10.3; Marcos 3.18). As únicas palavras registradas a respeito dele são encontradas em

João 14.22. Não há evidências no Novo Testamento que permitam identificar esse Judas como o irmão de Tiago em Marcos 6.3 ou em Judas 1. TABELA 2: Os doze apóstolos de acordo com os evangelhos sinópticos e Atos Mateus 10.2-4

Marcos 3.16-19

Lucas 6.13-16

Atos 1.13,26

1

Simão, Pedro

Simão, Pedro

Simão, Pedro

Pedro

2

André

Tiago

André

João

3

Tiago

João

Tiago

Tiago

4

João

André

João

André

5

Filipe

Filipe

Filipe

Filipe

6

Bartolomeu

Bartolomeu

Bartolomeu

Tomé

7

Tomé

Mateus

Mateus

Bartolomeu

8

Mateus

Tomé

Tomé

Mateus

Tiago, filho

Tiago, filho

Tiago, filho

Tiago, filho

de Alfeu

de Alfeu

de Alfeu

de Alfeu

10 Tadeu

Tadeu

Simão, o zelote

Simão, o zelote

11 Simão, o zelote

Simão, o zelote

Judas, filho de

Judas, filho

Tiago

de Tiago

12 Judas Iscariotes

Judas Iscariotes

Judas Iscariotes



9

Uma participação unânime (v. 14). Esse versículo apresenta um surpreendente retrato do grupo. Desejamos que seja a fotografia de cada igreja que se desenvolve como autêntica comunidade de fé,

reunida em torno de Jesus. Três considerações podem ser observadas nessa descrição. Uma participação apostólica. “Todos” (gr. pántes) esses homens que haviam sido escolhidos por Jesus como seus apóstolos e estavam em um mesmo espírito (gr. homothýmadon; de hómoios, “o mesmo”, “semelhante”, “igual”, e thymós, “mente”, “espírito”). Ou seja, juntos, no mesmo espírito ou de comum acordo, eles compartilhavam a prática da oração regular ou frequente (“se reuniam sempre”, gr. ēsan proskarteroūntes; “eles perseveravam na oração”, BJ). Hoje diríamos: “Eles entraram com tudo na oração”. O vocábulo karterós traz a ideia de forte, constante, persistente; o verbo karteréō significa “permanecer firme”, “perseverar”. Como precisamos de líderes como estes hoje, que façam da oração seu ministério mais importante! Que diferença notável faria na vida e no testemunho das igrejas! Uma participação feminina. O texto diz: “com as mulheres” (gr. sýn gunaixìn). É notável que Lucas mencione “as mulheres” como participantes da prática regular da oração. É provável que as mulheres em questão não fossem as esposas dos apóstolos, mas algumas do grupo que havia servido Jesus durante grande parte de seu ministério (Marcos 15.40,41,47; 16.1; Mateus 27.55,56,61; 28.1,9,10; Lucas 8.2,3; 23.49,55,56; 24.1,2,22; João 20.1,11-18). É provável que houvesse muitas outras mulheres não mencionadas nessa primeira congregação cristã de 120 membros em Jerusalém. A estrutura do texto é interessante, porque divide sintaticamente os apóstolos (“todos”) (“com”) as mulheres, até mesmo Maria, e (“com”) os irmãos de Jesus.

Uma participação filial. O texto diz: “com [...] Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (gr. kaì Mariàm tēi mētri tò Iēsou kaì toīs adelfoīs autoū). Deve-se ter em mente que essa frase aparece em um típico resumo editorial, de que Lucas se utiliza para unir a ação de cenas sucessivas em Atos. Esse resumo, como já foi dito, parece uma fotografia grupal, em que Maria e os irmãos de Jesus ocupam um lugar de destaque. 1) Maria, a mãe de Jesus. É interessante que, à semelhança de Marcos e Mateus, Lucas não menciona Maria ao lado da cruz (v. João 19.25-27). No entanto, sua presença é bastante notada entre os apóstolos após a ascensão de Jesus e antes do Pentecoste. Maria fazia parte do grupo, porém se destacava pela relação particular com Jesus e porque Lucas demonstra determinada predileção por ela (Lucas 1.26-56; 2.1-52; 8.19-21). No entanto, ela não é mencionada de novo em nenhuma outra parte de Atos. Isso é indicação suficiente de que a menção a ela nesse contexto é mais que um fato histórico e contém algum significado literário e teológico. O que Lucas está tentando comunicar com a menção a Maria? O evangelista provavelmente deseja enfatizar que ela era uma crente. Em nenhum lugar do Novo Testamento, é rotulada como descrente. Além disso, Lucas destaca sua fé e submissão à vontade divina desde o anúncio do nascimento de Jesus (1.46-55) e, diferentemente de Marcos e Mateus, mostra que ela (com os irmãos de Jesus) satisfazia os requisitos para ser membro da família escatológica de Jesus. João, em seu evangelho, retrata Maria como crente ao lado da cruz (João 19.25-27). Raymond E. Brown: “Visto que as mulheres, Maria e os irmãos estão  associados aos Onze em 1.14, a maioria presume que eles também estão associados aos Doze no Pentecoste, ainda que Lucas não o

especifique, satisfeito em mostrar Maria, quando a menciona pela última vez unânime com os que compunham a nascente igreja pentecostal em sua dedicação à oração, que tanto marcaria a vida daquela igreja (Atos 2.42; 6.4; 12.5). Pode ser que ele não soubesse muito sobre sua vida ulterior, mas teve o cuidado de lhe traçar um perfil coerente desde o primeiro anúncio das boas-novas até a véspera do advento do Espírito, que impulsionaria sua difusão, de Jerusalém, até os confins da terra (Atos 1.8). A primeira resposta de Maria às boas-novas foi: ‘Sou serva do Senhor; que aconteça comigo conforme a tua palavra’. A verdadeira relevância de Atos 1.14 é lembrar ao leitor que sua atitude não mudou”.19

2) Seus irmãos. Marcos 6.3 menciona o nome de alguns irmãos de Jesus (Tiago, José, Judas e Simão) e indica que ele também tinha irmãs, embora não as cite pelo nome. É preciso lembrar que Marcos, Mateus e Lucas não fazem distinção entre Maria e os irmãos quando narram o ministério de Jesus. O problema é João 7.5, que apresenta os irmãos de Jesus como descrentes, o que constitui um julgamento definitivo na literatura joanina. No entanto, é provável que todos tenham se convertido após a ressurreição. Na verdade, Paulo menciona o aparecimento de Jesus a Tiago, seu irmão (1Coríntios 15.7), que se tornou um líder proeminente na igreja de Jerusalém. O estranho é que Lucas menciona os “irmãos” de Jesus em Atos (1.14), mas não torna a mencioná-los no decorrer da história registrada em sua obra nem esclarece que Tiago, líder da comunidade cristã em Jerusalém (12.17; 15.13; 21.18), era irmão de Jesus (Gálatas 1.19). A oração e o avivamento (1.12-14)

A oração é absolutamente indispensável para viver a experiência de avivamento. Nenhum outro fato é mostrado com tanta clareza na Palavra de Deus. A proclamação do evangelho do Reino no dia de Pentecoste (Atos 2) e os surpreendentes resultados que se

seguiram foram precedidos pela oração dos discípulos, e a oração penetrou essa experiência. Os apóstolos, com as mulheres, Maria, mãe de Jesus, e seus irmãos, reuniram-se no cenáculo e ali oravam com frequência e persistência. Simples assim. Eles não discutiam sobre oração, apenas oravam. Não pregavam nem ensinavam sobre oração, apenas oravam. Não estavam ali para organizar uma reunião ou uma vigília de oração, apenas oravam. Eles não oravam por um avivamento, mas o receberam porque estavam orando. A oração é o espírito de uma igreja viva e o segredo de uma fé cristã robusta. A oração é o requisito supremo para o avivamento, o próprio epítome da extensão do Reino de Deus. A ordem que aparece no livro de Atos é a seguinte: oração unida e contínua, derramamento do Espírito Santo, proclamação do evangelho do Reino, recepção alegre da mensagem com fé e 3 mil pessoas que passaram da morte para a vida. Isso foi apenas o começo, porque o avivamento continuou. O Senhor pode fazer o mesmo entre nós hoje se nos lançarmos ao avivamento com oração. Por isso, convém fazer algumas considerações sobre oração e avivamento. O lugar de oração no avivamento. A oração deve preceder o avivamento. A ordem do primeiro avivamento foi essa, de acordo com o Novo Testamento (1.12-14). A ordem divina, como registra Atos, situa a oração em primeiro lugar. Só teremos avivamento hoje se os filhos de Deus orarem da mesma forma que os primeiros cristãos. Além disso, a oração deve penetrar o avivamento (2.1,2). Nesse movimento de evangelização, o povo de Deus permanecerá mudo diante de um mundo ferido e pecador se não orar (Marcos 9.28,29). O sucesso de qualquer avivamento reside na oração do povo de Deus.

Charles G. Finney: “A oração é um elo essencial na cadeia de causas que levam ao avivamento, tanto quanto a verdade. Alguns têm usado zelosamente a verdade para converter as pessoas, embora deem pouca ênfase à oração. Eles pregam, falam e distribuem folhetos com grande zelo e depois se perguntam por que obtêm tão pouco êxito. E a razão é que eles se esqueceram de usar a outra parte dos recursos [para o avivamento], que é a oração eficaz. Eles ignoram o fato de que a verdade, por si mesma, jamais surtirá efeito sem o Espírito de Deus e que o Espírito é dado em resposta à oração”.20

O significado da oração no avivamento. Há orações que não fazem sentido porque não passam de um exercício litúrgico ou mecânico, carente de intencionalidade e de propósito. A oração que abre as portas para o avivamento é como a dos que estavam reunidos no cenáculo, no aguardo do cumprimento dos planos divinos. É uma oração significativa e, como tal, impõe determinadas condições. A oração deve ser respeitosa. Já perdemos a reverência pelas coisas divinas. Saímos de nossos locais de culto, e nenhum mistério profundo e inefável está refletido em nosso rosto. Podemos cantar melodias edificantes, mas, quando saímos para a rua, nosso semblante não difere da face daqueles que deixaram os teatros e outros locais de entretenimento. Nada há em nós que sugira termos experimentado algo estupendo e numinoso! A oração deve ser prazerosa. Como sugere a Palavra: “Alegremse [...] todos os que se refugiam em ti; cantem sempre de alegria! Estende sobre eles a tua proteção. Em ti exultem os que amam o teu nome” (Salmos 5.11). Por que eles deveriam se alegrar? Porque Deus é um Pai amoroso que nos ouve. Então, por que muitas vezes oramos como se fôssemos obrigados? A oração encontra sua fonte de alegria na convicção de que o amor de Deus foi derramado em

abundância sobre seu povo. Quando comtemplamos através das lentes da oração a grandeza do amor e da misericórdia de Deus por nós, não podemos deixar de nos encher daquela alegria transbordante, que é a alegria cristã (Salmos 16.11). A oração deve ser penitente. Deus responde à oração do penitente. Foi assim com Davi (Salmos 51.1-3,7-10,13). Esse também foi o caso do ladrão na cruz (Lucas 23.42,43). Devemos lembrar e tornar a cantar o conhecido hino de outros tempos: Como sou pecador, Sem mais confiança do que teu amor; Já que me chamaste, acudi; Cordeiro de Deus, eis-me aqui.21 A proposição que se segue é indiscutivelmente verdadeira: a oração nos fará parar de pecar ou o pecado nos fará parar de orar. A oração deve ser intercessora. A oração atinge seu apogeu quando é uma oração de intercessão. Jó foi abençoado quando orou pelos amigos (Jó 42.10). Paulo admoestou os cristãos de Éfeso a orar uns pelos outros e também por ele (Efésios 6.18,19). A prioridade na intercessão deve ser a oração pela igreja e a súplica para que Deus derrame o avivamento de seu Espírito sobre ela. E. M. Bounds: “Todos os verdadeiros avivamentos nascem da oração. Quando o povo de Deus se mostra preocupado com o estado da religião, a ponto de se prostrar dia e noite em súplicas fervorosas, a bênção certamente cairá. Tem sido assim ao longo dos séculos. Cada avivamento de que temos algum registro foi saturado com oração. [...] E assim poderíamos continuar citando ilustração após ilustração para mostrar o lugar da oração no avivamento e demonstrar que todo movimento poderoso do Espírito de Deus teve sua origem no quarto de oração”.22

O poder da oração no avivamento. A oração é indispensável para o avivamento. Quando a igreja se apresenta como um corpo diante de Deus buscando conhecer sua vontade e desejando obedecer a ela, o Senhor responde enviando um poderoso avivamento. Para tanto, essa oração deve atender a determinados requisitos. A oração poderosa deve ser feita com integridade. Isso significa que deve partir de um coração devoto e de uma vida coerente (Tiago 5.16). Há determinadas condições para que uma oração seja atendida. O salmista adverte: “Se eu acalentasse o pecado no coração, o Senhor não me ouviria” (Salmos 66.18). Conta-se que um grupo de missionários e líderes indianos certa vez perguntou a Mahatma Gandhi como o cristianismo poderia causar impacto na vida nacional da Índia. Ao que o sábio líder respondeu: “Em primeiro lugar, devo sugerir que vocês, cristãos, comecem a viver como Jesus Cristo viveu. Então, todos vocês devem praticar sua religião sem modificá-la”. Como é importante viver como Cristo viveu! Se hoje não se sente o poder do Pentecoste não é por faltar poder a Deus, mas porque nos falta piedade (Tiago 4.3). A oração poderosa deve ser feita com sinceridade. Se a oração for superficial ou se não passar de rotina, formalidade, prática somente de lábios, mas não do coração, ela não pode ser poderosa. Orar é difícil, e é por isso que oramos tão pouco. Devemos ser na oração o que Charles Dickens pôs na boca de sua personagem no livro David Copperfield: “O que quero dizer é simplesmente que, a qualquer coisa que tenha me dedicado, a ela me dediquei totalmente; que, tanto nos grandes projetos quanto nos pequenos, sempre estive completamente com toda a minha vontade”.

C. S. Lewis: “Oramos não para que Deus esteja disposto a conceder sua graça, mas para estarmos dispostos a recebê-la. Não oramos para exaltar a boa vontade de Deus, mas para abrir nossa alma em hospitalidade. Oramos não para criar um clima de amizade, mas para deixá-lo entrar; não para aplacar Deus, mas para nos apropriarmos dele. Não oramos nos dirigindo a um Deus relutante, mas apelamos relutantes a um Deus prestativo e doador”.23

A oração poderosa deve ser feita com fé. Os discípulos no cenáculo oraram com fé. Jesus nos convida a orar com fé. Ele diz: “Tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim sucederá” (Marcos 11.24). Elias orou com fé, e já sabemos o resultado (Tiago 5.17,18). A Palavra é muito clara ao afirmar que “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hebreus 11.6). John Maxwell: “A falta de fé tem um impacto incrivelmente negativo na vida do cristão. Sem fé, a oração carece de poder. O próprio Jesus não pôde realizar nenhum milagre em Nazaré porque o povo não tinha fé (Marcos 6.16). [...] A fé é realmente uma questão de confiança. Jesus disse: ‘Tudo o que pedirem em oração, se crerem, vocês receberão’. As pessoas geralmente relutam em depositar sua confiança em Deus. Contudo, todos os dias elas confiam nos outros sem questionar, ostentando uma fé que Deus gostaria de receber delas”.24

O DISCURSO DE PEDRO (1.15-22)

Após alguns acontecimentos de grande impacto emocional vividos pelos seguidores de Jesus depois da ressurreição e da experiência inesquecível de sua ascensão, alguém tinha de quebrar o silêncio. As vozes ouvidas no cenáculo foram dirigidas a Deus por um tempo, mas alguém precisava dizer algo na direção horizontal. Alguém tinha de se pronunciar ao pequeno rebanho que havia ficado sem seu Pastor e estava orando desesperadamente a Deus à espera de orientação. Esse alguém não poderia ser outro senão Pedro, o discípulo que estava sempre pronto a dizer alguma coisa. A estrutura do discurso nesses versículos consiste em várias partes. Primeira: uma seção introdutória (v. 15), que apresenta a estrutura do discurso e a narrativa que se segue. Segunda: uma introdução à narrativa a respeito de Judas Iscariotes (v. 16b). Terceira: um parêntese sobre os acontecimentos associados a Judas, como uma espécie de lembrete (v. 16a,17-19). Quarta: uma declaração das Escrituras (v. 20), citada por Pedro (que é apresentado no v. 15). Quinta: a conclusão sobre o que se deveria fazer (v. 21,22). As transições entre as várias seções apresentam algumas dificuldades. No entanto, a estrutura do pequeno parágrafo de abertura é simples (v. 15-17), pois o primeiro versículo prepara o terreno para o discurso especificando tempo, lugar, participantes e orador. As dificuldades com a narrativa nos v. 16 e 17 estão mais relacionadas com a ordem linguística que com seu caráter histórico. O contexto do discurso (1.15)

Os dias foram passando enquanto o grupo dos Onze, as mulheres, Maria e os irmãos de Jesus perseveravam em oração. A expressão “naqueles dias” (gr. en taīs hēmérais taútais) é indefinida (cf. 2.18; 9.37) e usada por Lucas aqui e em outras duas passagens (6.1; 11.27) como indicativo de transição para uma nova experiência ou do começo de uma nova história. Aparentemente, Pedro interrompeu o encontro dos “irmãos” (gr. adelfōn), ou seja, aqueles que já pertenciam à comunidade cristã. A expressão é usada com frequência em fontes judaicas e não judaicas para indicar membros de uma comunidade religiosa específica. Parece evidente que “naqueles dias” o grupo havia crescido muito, a tal ponto que Lucas, em uma declaração entre parênteses, informa que eram “cerca de cento e vinte pessoas” (lit., “a multidão de nomes era como de”, gr. ēn óchlos onomátōn epì tò autò hōsei hekatòn eíkosi). Ou seja, vários outros “nomes” (pessoas) foram acrescentados à lista dos v. 13 e 14. O lugar parece ser o mesmo cenáculo onde se reuniam regularmente para orar. A expressão “entre” (gr. en mésōi) pode significar “no mesmo lugar” (cf. 2.1) O orador foi o apóstolo Pedro. A introdução ao discurso (1.16)

O apelo (v. 16a). Pedro inicia seu discurso aparentemente evitando a linguagem inclusiva: “Irmãos [...]” (gr. Ándres adelfoí; lit., “irmãos homens”), mas parece claro que não exclui as mulheres presentes, visto que a expressão era genérica (v. “homens da Judeia”, 2.14; “[homens] israelitas”, 2.22; “irmãos [homens]”, 2.29). De forma alguma, as mulheres foram excluídas de seu discurso. O texto bíblico (v. 16b). É interessante que Pedro comece citando um texto bíblico. “A Escritura” (gr. tēn grafēn) refere-se a um texto

ou passagem bíblica, não a todo o Antigo Testamento. Nesse sentido, a tradição reformada de iniciar um sermão com a leitura de uma passagem das Escrituras tem bom fundamento bíblico aqui. Nesse caso, Pedro provavelmente está citando dois salmos de Davi (Salmos 69.25; 109.8). De acordo com essa predição, “era necessário que se cumprisse” (gr. édei; “era necessário”, BJ) o indicado nas Escrituras, ou seja, que ocorresse o que ocorreu. A expressão aparece em muitas outras passagens do Novo Testamento e indica algo necessário ao cumprimento de propósitos divinos. O tempo verbal indica que essa necessidade já havia sido satisfeita no momento em que Pedro falava, ou seja, fora cumprida com as ações de Judas. A ideia básica do verbo “cumprir” é preencher algo, mas aqui é usado no sentido mais amplo: “dar sentido completo a” ou “tornar realidade”. O desenvolvimento do discurso (v. 16c-20)

O contexto histórico (v. 16c,17). O significado primário das passagens bíblicas a que Pedro faz referência (cf. v. 20) tem seu contexto original no Antigo Testamento. No entanto, uma vez que o caráter e as ações de Judas são semelhantes aos refletidos nessas passagens de Salmos, Pedro pode dizer que essa passagem se aplica a Judas. É muito típico da maneira segundo a qual os primeiros cristãos interpretavam o Antigo Testamento. Eles o liam à luz dos acontecimentos conectados com a vida e o ministério de Jesus. Além disso, observe a sequência na ordem causal da predição a respeito de Judas: ela tem sua origem no Espírito Santo, passa “por boca de Davi” como instrumento, continua com o registro na “Escritura” e acaba interpretada por Pedro como uma predição já

cumprida e aceita pela fé “entre os irmãos”. Em todo caso, é surpreendente que Jesus tenha escolhido e chamado Judas para ser seu discípulo, para se juntar ao grupo apostólico e participar de seu ministério (v. 17). O conteúdo do argumento (v. 18-19). Os v. 18 e 19 estão entre parênteses, e o autor os insere na história para benefício do leitor. Pedro não precisava fazer esse esclarecimento a seus ouvintes, pois o caso era bem conhecido de todos. O mesmo ocorre com o esclarecimento do v. 19. A NVI está correta ao colocar os dois versículos entre parênteses, para indicar que eles provavelmente não faziam parte do discurso original de Pedro, mas que se trata de um comentário editorial de Lucas ou de um editor posterior. A estrutura desse parágrafo é narrativa. A frase “com a recompensa que recebeu pelo seu pecado” (gr. ektēsato chōríon ek misthoū tēs adikías) é literalmente “recompensa da maldade”. A frase ambígua implica dinheiro não merecido ou obtido por se fazer algo errado. Com esse dinheiro, Judas comprou um terreno (cf. 4.34; 5.3,6; 28.7) e foi aí onde se suicidou. Não há como harmonizar o relato aqui com Mateus 27.5-8. Uma possibilidade é que os chefes dos sacerdotes considerassem as 30 moedas de prata legalmente possuídas por Judas e comprassem o terreno em questão no nome dele, propriedade que o traidor não conseguiu desfrutar porque foi ali que “caiu de cabeça, seu corpo partiu-se ao meio, e as suas vísceras se derramaram”.25 É provável que quando Lucas visitou Jerusalém, no ano 57, alguns dos muitos que tomaram conhecimento do caso (“Todos em Jerusalém ficaram sabendo disso”, v. 19a) lhe contaram a história da morte de Judas, e ele a inseriu em seu relato.

O conselho bíblico (v. 20). No v. 20, Lucas retorna ao discurso de PedroA cláusula “porque” (gr. gár) refere-se ao v. 16 e assim oferece a razão pela qual foi necessário que Judas servisse “de guia aos que prenderam Jesus”. A expressão “está escrito” (gr. gégraptai) é clássica, como fórmula introdutória para citações do Antigo Testamento. O primeiro texto citado é Salmos 69.25, que está no plural, mas Pedro cita no singular porque se aplica a Judas. A segunda passagem (Salmos 109.8) é quase uma citação exata da LXX. Enquanto o primeiro texto expressa o desejo de que a casa ou lugar de Judas permaneça vazio, o segundo expressa a necessidade de alguém ocupar seu lugar no serviço. Dessa forma, as citações bíblicas servem de transição para os versículos seguintes. Observe-se também a natureza imperativa desses textos, que dá força e autoridade à decisão que o grupo de crentes teve de tomar. A conclusão do discurso (1.21,22)

Esses versículos constituem uma espécie de conclusão para as seções anteriores e servem de introdução ao parágrafo final (v. 2326). Observe-se que a cláusula “portanto” (gr. oūn) é enfática. No grego, esses versículos formam uma estrutura frasal bastante complexa, que tem o verbo como primeira palavra, no v. 21, e o sujeito como as últimas três palavras, no v. 22. A NVI faz uma reestruturação do texto e põe o verbo e o sujeito no início do período [gramatical]. A necessidade (v. 21a). Pedro diz: “É necessário [...]” (gr. deī). De acordo com Pedro, era “necessário” (cf. v. 16) que alguém do grupo maior se unisse ao grupo apostólico e assumisse o lugar de Judas

no serviço. Qual era a necessidade imperativa? Que alguém se juntasse ao grupo dos Onze para completar o significativo número de 12 apóstolos. Observe-se o uso repetido de “nós” no parágrafo (no gr., aparece quatro vezes). Esse “nós” se refere especificamente ao grupo apostólico, mas no contexto mais amplo da passagem o “nós” abrange todos os “crentes” (v. 15). As condições (v. 21b-22). O texto é de natureza narrativa e apresenta uma série de acontecimentos em sucessão, que vão desde os dias de João Batista, passando pela ressurreição, até a ascensão do Senhor. Assim, a pessoa a ser escolhida tinha de cumprir determinadas condições. 1) Devia ser “testemunha de sua ressurreição”. 2) Devia ser alguém que tivesse feito parte do grupo apostólico durante todo o tempo em que o Senhor Jesus “viveu entre nós” (RVR: “entrava e saía entre nós”; a frase é um semitismo que significa “viver ou estar com alguém”). 3) Devia ser alguém que tivesse participado do grupo já na época em que João pregava seu batismo. Isso pode significar desde o tempo em que João iniciou seu ministério ou a partir do momento em que Jesus foi batizado por João. O relato paralelo de 10.37 parece apoiar a primeira interpretação. 4) Devia ser alguém que tivesse testemunhado a ascensão (“o dia em que Jesus foi elevado dentre nós às alturas”). Observe-se a precisão dos requisitos. O protocolo da eleição do substituto de Judas acatou todas as previsões possíveis e não deixou espaço para o subjetivismo no processo seletivo. Luis Fernando Rivera: “O procedimento do evangelista ao elaborar a primeira intervenção de Pedro revela sua técnica literária e nos proporciona elementos fundamentais para a interpretação de seu pensamento. Em uma primitiva comunidade de irmãos (1.15), Pedro, o primeiro irmão (v. 16), exerce seu cargo de serviço (diakonía, v. 17) e supervisão (episkopē, v. 20),

para dar lugar a Deus na eleição de um novo apóstolo ou enviado para dar testemunho da vida de Jesus e, em particular, de sua ressurreição. A apresentação traça uma elaboração helênica, pois o argumento só é comprovado na LXX, e a forma de expressá-lo é inteligível nesse ambiente. [...] A composição remete-nos a um ambiente helênico, que reinterpreta e acomoda os dados e peças mais primitivos da tradição. O próprio Lucas é o arquiteto de uma hagadá (narrativa religiosa) nucleada em torno das Escrituras”.26 O primeiro sermão apostólico (1.15-22)

Sabemos que o tempo entre a ressurreição e a ascensão exerceu enorme influência na vida do apóstolo Pedro. As aparições do Senhor permitiram a esse discípulo, que o havia negado, entender o que até então ele não havia captado acerca de seu Reino. Acima de tudo, foi, sem dúvida, nesse período que o grande apóstolo compreendeu mais plenamente o propósito do Mestre para sua vida. Esses dias de grande euforia e entusiasmo, porém, foram seguidos pelos dez dias posteriores à partida de Jesus para o céu. Nesse curto espaço de tempo, os discípulos mantiveram-se na expectativa do cumprimento da “promessa de meu Pai”, para iniciar seu ministério como testemunhas de Cristo com poder, “até os confins da terra”. Essa seção do cap. 1 apresenta algumas das preocupações que assaltavam os primeiros cristãos, mas também suscita várias questões em nossa mente hoje. Basicamente, são três questões que giram em torno da figura de Pedro. Sua posição (v. 15). Como parece ser sempre o caso, Pedro é mencionado em primeiro lugar na lista de nomes dos discípulos presentes à reunião (comp. v. 14 com Mateus 10.2-4 etc.). Além disso, como parece ter ocorrido em ocasiões anteriores, Pedro tomou a palavra de forma decisiva, rápida e ousada: “Pedro

levantou-se entre os irmãos [...] e disse [...]” (gr. anastàs Pétros en mésōi tōn adelfōn eīpen). A imagem de Pedro refletida nessas palavras é coerente com o que lemos dele nos evangelhos. Contudo, como acontecera nos outros casos, não teria sido a atitude de Pedro um pouco precipitada ou mesmo carente de sabedoria? Na verdade, Jesus foi muito claro quando instruiu os discípulos a que aguardassem a promessa do Pai (v. 4) antes de fazer qualquer outra coisa. Mesmo assim, eles não esperaram uma resposta à oração que fizeram em busca de orientação divina, mas lançaram a sorte para tomar sua decisão. Evidentemente, ainda não estavam cheios do Espírito Santo, por isso não agiam sob sua direção e controle. Sua declaração (v. 16-20). O discurso improvisado de Pedro, registrado nos v. 16 e 17, com a referência bíblica correspondente, limita-se a apresentar o caso de Judas, que “foi contado como um dos nossos e teve participação neste ministério”. Sem dúvida, essa declaração (a primeira palavra apostólica ao grupo de crentes após a ascensão) não tinha relação alguma com “a promessa de meu Pai” nem com a missão que eles deveriam cumprir como testemunhas. Ao que parece, esse pronunciamento estava tão fora de lugar que Lucas se sente na obrigação de fazer um comentário explicativo e inseri-lo no meio das palavras de Pedro (v. 18,19) e também de oferecer uma base bíblica adequada (v. 20). Além disso, certa ideia de necessidade ou obrigação é percebida nas palavras petrinas (“era necessário que se cumprisse a Escritura”, v. 16a; “é necessário”, v. 21). Tem-se a impressão de que Pedro recebeu uma ordem divina para incitar a congregação a decidir de determinada maneira. A questão é se tal ordem existiu. Na verdade, a única

ordem divina explícita saiu dos lábios do Cristo ressurreto e foi bem específica: “Não saiam de Jerusalém, mas esperem pela promessa de meu Pai [...] e serão minhas testemunhas”. Esse tem sido o caso ao longo dos 20 séculos de história da igreja cristã. Os crentes sempre estiveram mais preocupados com questões organizacionais e institucionais e com a estrutura e o poder da liderança que em obedecer às claras ordens do Senhor à sua igreja. Sua sugestão (v. 21,22). Sem dúvida, as palavras de Pedro registradas por Lucas são um resumo do que ele deve ter argumentado. Em suma, o que Pedro sugere é que se complete o número dos Doze com “um dos homens que estiveram conosco durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós”. Tratava-se de cumprir um oráculo divino? Era uma necessidade simbólica manter o número 12, tão significativo no imaginário judaico? Foi uma tentativa humana de corrigir um fato imponderável como a deserção de Judas? Foi o primeiro vislumbre da institucionalização e do organização eclesial? Em todo caso, a sugestão de Pedro exigia que o candidato a substituto de Judas de alguma forma tivesse as qualidades de um apóstolo, conforme entendido na época: 1) experiência pessoal com o ministério terreno do Senhor Jesus e 2) conhecimento pessoal da ressurreição de Cristo. É interessante que essas qualidades são exclusivas daquela geração de seguidores de Jesus. Na verdade, elas desqualificavam Paulo para a inclusão entre os Doze, de acordo com as palavras dele mesmo em Gálatas 1.11-24; 1Coríntios 15.5-11.

A ESCOLHA DE MATIAS (1.23-26)

Essa passagem registra a primeira decisão da igreja (1.23-26). Toda primeira decisão é sempre fonte de grande ansiedade e nem sempre é a melhor. Mas Deus, que “[conhece] o coração de todos” (v. 24), é sempre paciente com nossa impaciência humana e carnal. De maneira maravilhosa, ele é capaz de sobrepujar nossas limitações e cumprir seu propósito redentor, apesar da imaturidade de nossas decisões e principalmente de nossos métodos. A passagem ilustra essas verdades de forma eloquente. Esses versículos apresentam quatro considerações a serem observadas com relação à primeira decisão da igreja de Jerusalém que podem nos ajudar como crentes e como comunidades de fé a tomar nossas decisões no Senhor. A proposta (1.23)

Depois do discurso de Pedro, o grupo de crentes (o “nós” maior no contexto) propôs dois nomes para ocupar o lugar de Judas no serviço: Barsabás e Matias. Após a eleição de Matias, nenhum deles é mencionado outra vez no Novo Testamento. O sujeito da frase é oculto, mas, sem dúvida, se refere a todo o grupo de crentes, como já foi dito, como também é evidente nos versículos seguintes. O número. É interessante que se manteve para a liderança da igreja o número de 12. Isso talvez simbolizasse que a igreja era o novo Israel. De acordo com a Mixná, o número de cargos abertos à liderança dentro da congregação correspondia a um décimo dos membros. Nesse caso em particular, a congregação consistia em

120 membros e aparentemente aplicou o procedimento indicado pela tradição dos líderes religiosos judeus.27 Assim, como se pode ver, várias são as questões que se destacam na primeira decisão da igreja cristã. Os candidatos. A decisão dos irmãos foi propor apenas dois candidatos (gr. éstēsan dýo, v. 23), dos vários que provavelmente atendiam ao perfil sugerido por Pedro (v. 21,22). Em ambos os casos, tratava-se de pessoas desconhecidas, à luz da evidência bíblica. Não podemos deixar de nos perguntar por que apenas dois candidatos. Qual é a razão de uma lista tão reduzida? Será que entre os 120 ali reunidos não havia outros que também se qualificavam (v. 15)? O primeiro dos dois candidatos era “José, chamado Barsabás, também conhecido como Justo” (gr. Iōsēf tòn kaloúmenon Barsabbās hos epeklēthē Ioūstos). Esse Barsabás não é o “Judas, chamado Barsabás”, de 15.22. Tudo que sabemos dele é que Eusébio de Cesareia o menciona, assim como Matias, como parte do grupo dos Setenta.28 Eusébio registra que Papias, em sua obra em cinco volumes intitulada Explicações das sentenças do Senhor, refere-se a “outro fato portentoso referente a Justo, apelidado Barsabás, pois aconteceu que este bebeu uma poção mortal sem que, pela graça do Senhor, sofresse qualquer dano”, como na promessa de Jesus em Marcos 16.18. A isso, Eusébio acrescenta: “Depois da ascensão do Salvador, os sagrados apóstolos puseram esse Justo junto com Matias e oraram sobre eles para que a sorte completasse seu número em lugar do traidor Judas; conta-o o livro dos Atos [...]”.29 O segundo candidato era “Matias” (gr. Maththían). Seu nome significa “presente de Yahweh”. Em torno dele, correm

algumas histórias, mas essas tradições não são confiáveis. Eusébio diz que ele fez parte do grupo dos Setenta e foi o primeiro apóstolo a ser escolhido por sorteio para o apostolado, no lugar do traidor Judas.30 Eusébio também menciona um Evangelho segundo Matias como um dos escritos heréticos, mas também faz referência a Clemente, que afirmava ter preservado vários ditos do apóstolo, um dos quais ele cita. A questão é que esse evangelho foi perdido e não está claro de onde Clemente extraiu a tradição sobre Matias.31 Em alguns casos, ele é confundido com Mateus; enquanto Clemente de Alexandria o identifica com Zaqueu, e os Reconhecimentos clementinos, com Barnabé. Oração (1.24,25)

Eles oraram ao Senhor (v. 24a). Diante da necessidade de tomar uma decisão importante, a comunidade de crentes orou mais uma vez. É difícil saber se a oração do grupo foi dirigida a Deus Pai ou a Jesus, uma vez que “Senhor” (gr. Sỳ kýrie, “tu, Senhor”) pode referirse a um ou a outro. No entanto, 1.2 indica que foi Jesus quem escolheu os outros apóstolos “por meio do Espírito Santo”, e é bem provável que nesse caso os crentes tenham pedido a Jesus que fizesse a escolha. Ou seja, a oração deles pode ter sido: “Senhor, mostra-nos aquele que escolheste” (gr. anádeixon hòn exeléxō). Nessa oração ao Senhor, é como se eles presumissem que Deus já havia feito uma escolha, e tudo que eles queriam saber era sua vontade. Curiosamente, eles se referem a Deus como esquadrinhador ou conhecedor de corações (gr. kardiognōsta, vocativo singular; cf. 15.8). Deus conhece bem o coração humano.

Eles oraram por duas coisas (v. 24b,25a). A frase consiste em duas partes. O primeiro é o reconhecimento geral de que o Senhor sabe das motivações humanas: “Tu conheces o coração de todos” (gr. kardiognōsta pántōn). O segundo é o pedido específico por orientação para escolher o sucessor de Judas: “Mostra-nos qual destes dois tens escolhido” (gr. anádeixon hòn exeléxō ek toútōn tōn dýo héna). Na verdade, o que estavam pedindo era apenas uma confirmação do que o Senhor já havia decidido. Ou seja, eles estavam pedindo ao Senhor: “Qual dos dois tu escolheste?”. O “ministério apostólico” (gr. tēs diakonías taútēs kaì apostolēs) em questão não se tratava de cargo, posto, função ou posição, mas de assumir um lugar na obra como apóstolo, ou seja, a responsabilidade de fazer a tarefa de um apóstolo. A expressão é uma ampliação e melhor qualificação da frase semelhante do v. 17. Eles oraram por algo concreto (v. 25b). A realidade é que Judas havia deixado seu lugar no serviço apostólico, e alguém deveria ocupar a vaga. A oração deles não era um desvario místico nem um pedido ambíguo ou genérico, mas algo muito específico e concreto. A igreja hoje precisa desse tipo de oração, que não seja cheia de rodeios, mas trate de questões específicas, e com os pés no chão. A expressão “o lugar que lhe era devido” (gr. eis tòn tópon tòn ídion; “seu próprio lugar”, RVR) significa que Judas foi para o lugar mais adequado para ele, ou seja, teve o que merecia, a punição devida por sua traição. Em todo caso, é interessante que a oração tenha sido feita depois que os dois candidatos foram apresentados (v. 24,25). Alguém poderia pensar que uma decisão tão importante deveria ser abonada com oração antes mesmo de se propor algum candidato. Teriam eles agido corretamente? Por que Deus não teve

permissão de fazer a proposta entre os muitos candidatos potenciais que certamente estavam na congregação? As sortes (1.26a)

Causa estranheza o fato de se ter chegado a uma escolha definitiva não pelo voto do grupo, nem mesmo pelo exercício do consenso sob a orientação do Espírito Santo, mas por sorteio. Seria usual essa forma de decisão entre os seguidores de Jesus? Seria essa a melhor maneira de conhecer a vontade de Deus sobre qualquer assunto na igreja? Como já vimos, a prática não era nova. Na realidade, o ato de lançar sortes para conhecer a vontade divina a respeito de alguma questão perpassa as páginas da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos. No Antigo Testamento, as sortes eram objetos de forma e material desconhecidos usados também de maneira não conhecida, mas com o objetivo de determinar a vontade de Deus. Os povos do antigo Oriente Médio, especialmente os sacerdotes, muitas vezes tomavam decisões difíceis e importantes lançando sortes no chão ou tirando-as de uma bolsa. No antigo Israel, era um método tradicional de tomar decisões ou de conhecer a vontade divina (Levítico 16.8-10; Números 26.55,56; 33.54; Josué 14.2; 1Samuel 14.41,42; Neemias 10.34; 11.1; Provérbios 16.33; Isaías 34.17; Jeremias 13.25; Joel 3.3). Não sabemos exatamente como eram essas sortes, mas é provável que fossem pedras coloridas (semipreciosas) ou pequenos ossos. Também não sabemos como eram interpretadas ou quais critérios hermenêuticos se usavam para captar a mensagem. Sabemos que provavelmente se acreditava que Deus (ou deuses) intervinha na maneira em que caíam quando eram lançadas ou na

posição em que ficavam (Provérbios 16.33). Portanto, lançar a sorte era uma forma de determinar a vontade de Deus. De acordo com essa tradição, Deus ordenou que a terra prometida fosse dividida e distribuída entre as tribos de Israel por sorteio (Números 26.52-56; 33.54; 34.13; Josué 13.6; 14.2; 15.1; 16.1; 17.1,2,14; 18.6,8,10,11; 19,1,9,10,17,24,32,40,51; 21.4-6,8,10,20,40; 23.4; Ezequiel 45.1; 47.22; 48.29). Em outros casos, a sorte foi lançada para escolher entre indivíduos, famílias ou clãs (1Samuel 14.41,42; 1Crônicas 6.54,61-65; 24.5-7,31; 25.8-31; 26.13,14; Jonas 1.7; Naum 3.10), para organizar o trabalho a ser feito (Neemias 10.34; 11.1; 13.15; Ester 3.7; 9.24) ou para distribuir bens (Salmos 22.18; Ezequiel 24.6; Amós 7.17; Obadias 11; Miqueias 2.5). O salmista ficou feliz com o que lhe caiu por sorte (Salmos 16.5), assim como o sábio (Provérbios 1.14; 16.33; 18.18). No Novo Testamento, a prática de lançar a sorte continuou e com o mesmo propósito, ou seja, discernir a vontade de Deus, incluindose a experiência inicial da igreja. Em Marcos 15.24, essa prática é mencionada pelos soldados romanos que crucificaram Jesus e assim repartiram suas poucas vestes (Lucas 23.34; João 19.24). No serviço sacerdotal do templo, as sortes eram lançadas para estabelecer os turnos de serviço (Lucas 1.8). É interessante que os primeiros cristãos, quando sentiram a necessidade de nomear alguém para ocupar o lugar de Judas, o traidor, não apelaram para a oração a fim de buscar a orientação do Espírito Santo. Em vez disso, usaram essa prática comum em sua cultura (1.26). Uma possível explicação é que eles ainda não haviam sido cheios do Espírito (1.8; 2.4) e, consequentemente, não possuíam dons de revelação como a palavra de conhecimento ou a palavra de

sabedoria. Na verdade, após o Pentecoste não se menciona a continuação dessa prática como forma de conhecer a vontade de Deus. Em todo caso, a ação parece expressar um nível um tanto imaturo ou no mínimo inadequado de espiritualidade, à luz de experiências espirituais tão profundas como a ressurreição e a ascensão do Senhor, que eles haviam vivenciado. O procedimento. O texto diz que os crentes “tiraram sortes” para escolher entre os dois nomes. O significado preciso dessa frase não está claro, mas a frase seguinte (“a sorte caiu sobre Matias”) ajuda a esclarecê-lo. Quando as duas frases são tomadas em conjunto, elas parecem indicar que a escolha foi feita de maneira similar à utilização de Urim e Tumim nos tempos do Antigo Testamento.32 Os nomes, depois de escritos em pedras, eram colocados em uma vasilha, que então era sacudida. A primeira pedra a cair indicaria quem fora escolhido. A expressão “lançar sortes” encerra essa ideia. Dessa forma, Matias “foi acrescentado aos onze apóstolos” (gr. kaì synkatepsēfísthē metà tōn héndeka apostólōn). A expressão grega aparece apenas aqui no Novo Testamento. Originariamente, o verbo significava “escolher (por voto) com”, mas nesse versículo seu significado parece ser apenas “foi adicionado (aos onze apóstolos)”. Enfim, a comunidade de crentes reconheceu Matias como um dos Doze e, como cada um deles, também foi escolhido por Jesus. A avaliação. Nem todos os estudiosos concordam em sua avaliação da ética de “lançar sortes” para uma decisão cristã. Comentaristas renomados como Edward M. Blaiklock e F. F. Bruce parecem não estar de acordo. O primeiro diz: “O lançamento de

sortes era uma disposição da Lei (Levítico 16.8) e, como tal, uma prática de imaturidade [teológica e ética]. Crisóstomo foi o primeiro a observar que esses acontecimentos se deram antes do Pentecoste. O Espírito da verdade tornou essas ações obsoletas”.33 F. F. Bruce: “A sorte, então, foi lançada: Matias foi indicado como o homem que ocuparia a vaga. O número dos apóstolos foi restaurado para 12. Foi a deserção de Judas, não o mero fato de sua morte, que fez surgir a vaga; nenhuma providência foi tomada para nomear o sucessor de Tiago, filho de Zebedeu, quando este morreu pela espada do carrasco, alguns anos depois. Ao contrário de Judas, ele foi fiel até a morte e podia esperar reinar com Cristo na ressurreição, mesmo que não (como ele tivesse esperado) na vida presente”.34

Também é interessante, como já foi dito, que, antes do Pentecoste, os discípulos dependessem de lançar sortes para obter orientação divina. Após o Pentecoste, os crentes tornaram-se a comunidade do Espírito Santo e passaram a depender dele para receber orientação de Deus. Essas questões que nos intrigam devem ser entendidas à luz do fato de que “até então o Espírito ainda não tinha sido dado” (João 7.39) e que tanto os apóstolos quanto os crentes ainda não haviam recebido o cumprimento da “promessa de meu Pai”, ou seja, o batismo com o Espírito Santo. Embora tivessem convivido com o Filho de Deus, eles ainda não haviam tido a experiência de ter a vida cheia do Espírito de Deus. Eles ainda estavam intimamente apegados à tradição do antigo pacto e não haviam alcançado um entendimento mais amplo da nova aliança. Na verdade, foi só depois do Pentecoste (cap. 2) que o Espírito Santo encheu cada crente com o poder prometido pelo Cristo ressurreto e os conduziu a uma percepção e compreensão mais profundas da ação do Espírito Santo no meio de seu povo. Na

verdade, Atos nunca mais menciona a prática de lançar a sorte para tomar uma decisão. Não há lugar para “boa sorte” ou para o acaso no Reino de Deus. Os resultados (v. 26b)

Os resultados do ocorrido. Ao considerar como se procedeu para preencher a vaga deixada por Judas e principalmente o método de lançar sortes, devemos ter em mente que para os judeus da época a prática não tinha relação alguma com azar, muito menos com jogos de azar. Em vez disso, era o método usado nos tempos do Antigo Testamento para ter acesso à vontade de Yahweh. A escolha recaiu sobre alguém. Como já foi dito, a frase em grego é extremamente ambígua e nos surpreende, porque não contém nenhuma referência à vontade ou à ação de Deus. Se algo parece claro é que a necessidade de tomar uma decisão foi forçada pelo fato de se ter escolhido dois candidatos. Isso tornou necessário recorrer a Deus em busca de orientação antes de escolher um deles. O sorteio foi resultado disso. A questão é que, depois de todo esse complicado processo, um dos dois candidatos foi por fim eleito: Matias. O que teria acontecido se as sortes falhassem, fossem confusas ou mal lançadas? O escolhido foi um discípulo totalmente desconhecido para nós. Carecemos totalmente de informações bíblicas sobre Matias. Não há referência anterior ou posterior a ele em todo o Novo Testamento. Por inferência, presumimos que foi alguém que acompanhou os apóstolos “durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre” eles e que foi “testemunha de sua ressurreição” (v. 21,22). Em todo caso, apesar da obscuridade que o rodeia,

Matias devia ter o perfil necessário para ser contado entre os Doze. Como indica uma placa aos soldados desconhecidos: “Quem eram, ninguém sabe; o que eram, todo mundo sabe”. O escolhido foi reconhecido com os onze apóstolos. Ao que parece, o processo terminou bem, e o que Pedro havia solicitado com tanta veemência (“é necessário”, v. 21) foi deferido. No entanto, o procedimento sugerido por Pedro e usado pela congregação teria sido o correto? Deus não deveria ter tido a oportunidade de fazer as coisas à sua maneira e, com o tempo, preencher o vazio escolhendo, chamando e estabelecendo Paulo como o número 12 no colégio apostólico? Em última análise, de acordo com Apocalipse 21.14 existem apenas “doze fundamentos” no muro da cidade celestial, nos quais constam “os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”. Diante do exposto, podemos nos perguntar: quais são os doze nomes na parede da cidade celestial? O nome de Judas Iscariotes está ali? Ou o de Matias? Ou o de Paulo? A avaliação do ocorrido. À luz desses resultados, pode-se pensar que talvez Pedro tenha agido outra vez impulsivamente, sem pensar, em vez de apenas “esperar”, como o Cristo ressurreto ordenou (v. 4). No entanto, não nos esqueçamos de que, em todo caso, os dois candidatos propostos, embora desconhecidos para nós, eram homens considerados crentes de tal fé e caráter por todos os membros da congregação que poderiam muito bem fazer parte dos Doze. Além disso, também é verdade que, embora seja Deus quem tem a última palavra, há uma parte de legítima responsabilidade humana nas decisões cardeais tomadas na comunidade de fé. Os crentes apresentaram dois candidatos e pediram a Deus sua bênção final sobre quem fosse escolhido. Além

disso, assim como a decisão pecaminosa, humana e fatal de Judas o desqualificou para o exercício do apostolado, a decisão espiritual, humana e abençoada dos crentes foi o método escolhido para a eleição de seu sucessor. Em todo caso, como foi dito no início, permanecem várias questões que parecem não ter uma resposta possível. Contudo, para nossa experiência espiritual, faríamos bem em relevar o fato de que, por meio dos acontecimentos registrados nessa passagem, a igreja cristã em Jerusalém acabou recebendo cinco coisas importantes: 1) um dom maravilhoso, que foi o Espírito Santo de Deus, para lhes ensinar todas as coisas, mesmo aquelas que na época não entendiam ou não faziam muito bem (João 14.26); 2) uma grande necessidade, que se viu satisfeita com a humildade e a paz de espírito com que acataram o que entenderam ser uma escolha feita pelo próprio Senhor; 3) uma grande regra, que aplicaram descansando naquele que “[conhece] o coração de todos” diante de uma importante decisão a tomar, na certeza de que a solução de nossos problemas sempre virá dele (v. Êxodo 14.13); 4) uma louvável atitude, caracterizada pela fé simples e pela obediência amorosa à vontade do Senhor; 5) uma grande obra, que foi destacar o testemunho da ressurreição e da experiência viva de Jesus por meio do Espírito Santo na vida dos crentes.

1. Commentary on the Book of Acts, p. 32. Grifo do autor. 2. Los Hechos de los Apóstoles, p. 12-13. 3. Robert C. TANNEHILL, Israel in Luke-Acts: A Tragic Story, Journal of Biblical Literature, v. 104, n. 1, p. 69. 4. The Cross in the New Testament, p. 127-128.

5. Ibid., p. 131. 6. Sobre esse assunto, v. Paul Varo MARTINSON, The Ending Is Prelude: Discontinuities Lead to Continuities, in: Robert L. GALLAGHER & Paul HERTIG (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 318320. 7. F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 33-34. 8. Jerusalén en el pensamiento cristiano, Revista Bíblica, v. 35, n. 148, p. 161. 9. Ibid. 10. Manuel

DE TUYA,

Evangelios, in: Biblia comentada, v. 5, p. 58-59; v. Paul van IMSCHOOT, Baptême d’eau et baptême d’Ésprit Saint, Ephemerides Theologicae Lovanienses, n. 13, p. 653-666.

11. Introduction: Background to Acts, in: Paul Mission in Acts, p. 9. Grifo do autor.

HERTIG

& Robert

GALLAGHER

(Orgs.),

12. Atos dos Apóstolos: rumo a uma igreja em renovação permanente, in: Bíblia Nova Reforma: edição de estudos e referência, p. 1633. 13. Ibid. 14. Alan RICHARDSON, An Introduction to the Theology of the New Testament, p. 200-203. 15. Bosquejo de dogmática, p. 198, 200. 16. An Introduction to the Theology of the New Testament, p. 116-117. 17. Teología del Nuevo Testamento, p. 89-90. 18. Bosquejo de dogmática, p. 198-199. Grifo do autor. 19. María en el evangelio de Lucas y en los Hechos de los Apóstoles, in: Raymond E. BROWN et al. (Orgs.), María en el Nuevo Testamento, p. 174. 20. Revivals of Religion, p. 49-50. 21. Himnario Bautista, hino 211. 22. Purpose in Prayer, p. 121-123. 23. C. S. LEWIS, How to Pray: Reflection and Essays (San Francisco, CA: HarperOne, 2018), p. 131. 24. Compañeros de oración, p. 64. 25. V. Eugène JACQUIER, Les Actes des Apôtres. 26. El nacimiento de la iglesia: Hechos 1—2.41, Revista Bíblica, v. 31, n. 131, p. 36. 27. T. C. SMITH, Acts, p. 23. 28. História eclesiástica, 1.12.

29. Ibid., 3.39.15. 30. Ibid., 2.1. 31. Ibid., 3.25; 3.29. 32. As “sortes” eram elementos (palitos ou dados) que faziam parte do éfode, um instrumento divinatório que servia para consultar o Senhor. Continha duas sortes chamadas Urim e Tumim, às quais se dava um significado convencional. A sorte tirada trazia a resposta divina. Tratava-se, portanto, de uma resposta com “sim” ou “não” (v. 1Samuel 23.10-12), e a consulta às vezes era longa. O manejo das sortes era reservado aos sacerdotes levíticos (Números 27.21; Deuteronômio 33.8). O uso [de Urim e Tumim] foi descontinuado após o reinado de Davi, e não foi restaurado (v. Esdras 2.63; Neemias 7.65). No entanto, os nomes estavam vinculados a um detalhe da vestimenta do sumo sacerdote (v. Êxodo 28.30; Levítico 8.8). 33. The Acts of the Apostles: An Historical Commentary, p. 53. 34. Commentary on the Book of Acts, p. 51-52. A Mixná é originariamente a doutrina da Lei transmitida oralmente, em oposição à Lei escrita (Torá).

CAPÍTULO 2

O PENTECOSTE 2.1-47 De acordo com o esboço apresentado por Lucas para o desenvolvimento de seu livro em 1.8, o testemunho cristão deveria começar na cidade de Jerusalém. Dentro dessa populosa cidade havia um lugar que operou funcionalmente como ponto de encontro da primeira comunidade cristã: a casa do cenáculo (“aposento”). Essa espaçosa sala, na parte superior de uma grande casa, acessada por uma escada externa, foi palco de vários acontecimentos fundamentais na história cristã. Ali o Senhor celebrou sua última ceia com os discípulos (Marcos 14.15). Ali apareceu ressurreto, primeiramente a dez discípulos (João 20.19), e depois com a presença de Tomé (João 20.24,26-29). Ali os discípulos continuaram a encontrá-lo em várias ocasiões antes da ascensão (1.3-5) e, em obediência à sua orientação, continuaram a fazê-lo depois (1.13). Como já foi dito, é bem provável que essa casa pertencesse à mãe de João Marcos (12.12), que seria o autor do primeiro evangelho. No entanto, é possível que quando chegou o dia de Pentecoste os discípulos já não coubessem mais no aposento da casa de Maria, mãe de João Marcos, e talvez se tivessem mudado para um local mais aberto e público, como o ambiente do templo, que talvez

ficasse perto dessa casa. Onde quer que se localizasse o “lugar” em que “estavam todos reunidos”, ali ocorreu a experiência do Pentecoste e teve início o testemunho cristão ao mundo (2.1). O primeiro período — inauguração e desenvolvimento do testemunho cristão — estava centrado na cidade de Jerusalém e deixa claro que, a partir da chegada do “dia de Pentecoste”, foi inaugurada uma nova era na história da salvação. Na verdade, é a primeira vez que os Doze, representando o novo Israel, se dirigem às 12 tribos de Israel para lhes dar testemunho do Cristo ressurreto. Desse modo, o lançamento da nova comunidade de fé e de sua missão no mundo ocorreu em um momento especial e determinado, “o dia de Pentecoste”. A partir daí, a ação missionária da igreja passou a ser caracterizada pelo matiz “pentecostal” da experiência, ou seja, a celebração festiva de uma grande colheita. Portanto, nos primeiros oito capítulos de seu livro Lucas destaca de forma especial o crescimento numérico da igreja de Jerusalém e seu impacto sobre toda a cidade. Eddie Gibbs: “Cinquenta dias se passaram desde a Páscoa, quando Cristo foi morto e ressuscitou dos mortos como as ‘primícias’. Ele fora aquela semente que havia caído na terra para que muitas sementes pudessem aparecer em seu devido curso (João 12.24). A festa de Pentecoste incentivava essa expectativa, pelo fato de ser a festa em que as primeiras espigas de trigo maduras eram apresentadas ao Senhor, em antecipação à colheita que viria (Êxodo 23.16; 34.22; Levítico 23.15-21; Números 28.2631)”.1

O outro elemento que se destaca nos primeiros capítulos do livro é o repetido processo de renovação espiritual dos crentes, como resultado da poderosa irrupção do Espírito Santo. O Pentecoste era um festival que proclamava a renovação da aliança de Deus com

seu povo, Israel.2 Esse processo teve um novo começo com o novo Israel no dia de Pentecoste, e a partir de então se repete cada vez que o Espírito irrompe batizando os crentes com poder e autoridade para cumprir sua missão e manifestando-se de múltiplas maneiras por meio de sinais, maravilhas e milagres. Essa presença ativa e poderosa do Cristo vivo com seus discípulos, por meio do Espírito Santo, é o que explica como conseguiram saturar a cidade de Jerusalém com o evangelho e como se prepararam para levá-lo a novas fronteiras, de acordo com o propósito revelado de Deus. No presente capítulo, iremos considerar basicamente o testemunho na cidade de Jerusalém, que logo se espalharia pelos seus arredores. A ação aconteceu principalmente na área do templo, o que permitia juntar um grande número de pessoas, como as que se reuniam durante esse primeiro período de testemunho cristão. O Pentecoste adquire uma transcendência maior quando o vemos recortado do contexto histórico em que ocorreu. O período não podia ser mais negro e desanimador para os primeiros discípulos, mas o poder de Deus foi manifesto. Encontramo-nos hoje em uma situação semelhante e devemos ter em mente duas questões. Por um lado, existe a necessidade de avivamento em nossos dias. Precisamos de avivamento porque o mal é audaz e flagrante em todos os lugares (Romanos 3.9-12). Precisamos de avivamento porque a frieza tem destruído o poder espiritual de muitos cristãos e igrejas (Apocalipse 3.15-20). Precisamos de avivamento porque a falta de amor pelos perdidos tem caracterizado muitos cristãos (Ezequiel 33.1-9). Precisamos de avivamento porque ganhar almas é o principal dever dos cristãos (Mateus 28.18-20). Por outro lado,

existe a possibilidade de um avivamento em nossos dias. Teremos um avivamento hoje se nos humilharmos sinceramente diante do Senhor (2Crônicas 7.14). Teremos um avivamento hoje se tudo que fizermos for pela salvação dos perdidos (João 15.16). Teremos um avivamento hoje se pregarmos a Bíblia e vivermos de acordo com o que ela ensina (Hebreus 4.12). Teremos um avivamento hoje se estivermos dispostos a pagar o preço de proclamar o Reino de Deus (Lucas 9.23-26). Portanto, há esperança e expectativa se de fato aguardamos um novo e grande avivamento. Essas esperanças não são sonhos vãos, porque têm como base a Palavra de Deus e suas promessas. Precisamos de um avivamento pentecostal também hoje. O coração de muita gente anseia por um despertamento desse tipo, e muitos têm se esforçado a fim de criar as condições espirituais para que ele ocorra. As circunstâncias difíceis pelas quais estamos passando incitam-nos à esperança, longe de extingui-la. Se Deus pôde cumprir a promessa de um batismo com o Espírito Santo no Pentecoste, pode fazer isso hoje também. Ele pode nos dar hoje um Pentecoste novo e global (Joel 2.28), porque ele é o mesmo “ontem, hoje e para sempre” (Hebreus 13.8).

A VINDA DO ESPÍRITO SANTO (2.1-4)

O cumprimento da “promessa do Pai” (1.4) ocorreu em uma data muito especial do calendário judaico. Assim como não é por acaso que a morte e a ressurreição de Cristo ocorreram no ambiente da Páscoa, protótipo de todas as intervenções libertadoras de Deus, tampouco carecem de sentido o ambiente e as características com que Atos apresenta a vinda do Espírito Santo sobre a comunidade dos crentes. A festa de Pentecoste, em seu processo de historicização relativamente tardio, já era considerada por determinados grupos contemporâneos como a festa da aliança, em memória da promulgação da Lei no Sinai, da constituição de Israel como povo de Deus. Em vez de uma lei exterior, o Novo Povo recebeu uma lei interior: “Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu” (Romanos 5.5). O Espírito Santo é a Nova Lei do Novo Povo. O derramamento do Espírito manifesta a fidelidade de Deus à sua promessa e, por sua vez, o compromisso do povo se expressa na aceitação da Nova Lei.3 O dia de Pentecoste (2.1)

O dia. A frase “chegando o dia de Pentecoste” (gr. en tōi synplērousthai tēn hēméran tēs pentēkostēs; lit., “quando se cumpriu o dia de Pentecoste”), em 2.1, marca uma interessante indicação temporal. Essa súbita manifestação do Espírito (“de repente”, gr. áfnō; v. 2) ocorreu em um dia determinado, “o dia de Pentecoste”. Tratava-se de uma data especial porque era o dia da solene festa das semanas, celebrada cinquenta dias após a Páscoa,

por ocasião do recolhimento dos primeiros frutos da colheita do trigo e de sua apresentação no templo (Deuteronômio 16.9-12). É interessante que essa festa da colheita (Êxodo 23.14-16) também se tornou a festa da renovação da aliança ou do pacto (v. 2Crônicas 15.10-13). Esse novo significado religioso-litúrgico é o cenário do relato de Lucas, que evoca a outorga da Lei no Sinai. Assim, passado o período de cinquenta dias entre a Páscoa e o Pentecoste (daí o nome), aconteceu o derramamento do Espírito Santo. Provavelmente, esse dia caiu no Sabbath judaico, ou seja, no dia de sábado. As pessoas. O texto diz que “estavam todos reunidos num só lugar” (gr. ēsan pántes homoū epì tò). Geralmente, considera-se que eram os apóstolos (mas e os outros discípulos?) os que estavam reunidos “num só lugar”, como Jesus os havia instruído. A maioria dos estudiosos católicos considera provável que o grupo apostólico apresentado em 1.13,14 era o mesmo que se reunia na casa costumeira de Jerusalém e que não parece provável que os “cento e vinte” de 1.15-26 estivessem lá. Já os estudiosos protestantes entendem que, embora o texto não seja explícito sobre quem são “todos” ali reunidos, a palavra também aparece no v. 4 (“todos ficaram cheios do Espírito Santo”) e inclui as mulheres e os outros discípulos mencionados em 1.13,14. De acordo com Justo L. González, “foi sobre todos eles, não apenas sobre os Doze, que o Espírito desceu”.4 A igreja só começou a se expandir depois que o Espírito desceu sobre ela. É certo que nos tempos do Antigo Testamento o Espírito Santo operava de várias maneiras no mundo. Ele foi ativo na criação da terra (Gênesis 1.2); teve de lidar com a maldade humana

antes do Dilúvio (Gênesis 6.3); operou de maneira maravilhosa na vida de José (Gênesis 41.38); encheu Bezalel de sabedoria (Êxodo 31.3); encheu Moisés e os líderes do povo de Israel (Números 11.17,25,26,29); manifestou-se poderosamente por meio dos profetas (Isaías 48.16; 63.10-14; Zacarias 4.6). Agora, porém, ele estava se revelando de uma forma nova e única, como o próprio Espírito de Jesus, fazendo-se presente nos crentes, mais que apenas estando com eles. A manifestação do Espírito Santo (2.2-4)

O grande protagonista desse episódio fundamental foi o Espírito Santo. A palavra grega pneūma é a mesma para “Espírito” e “vento” ou “respiração” (v. João 3.8). Os grandes servos do Senhor no Antigo Testamento tinham uma vida espiritual profunda, embora sua espiritualidade não estivesse necessariamente relacionada com o Espírito Santo, e sim com Deus como Pai e Criador. É o que se vê refletido especialmente em Salmos. Em Atos, Lucas mostra-o como uma pessoa ativa em vez de uma influência espiritual da parte de Deus. Ele é descrito não só como um ser real, mas também como alguém universal, que está em todos os lugares e em cada pessoa. Ele é a terceira pessoa da Trindade. Portanto, Lucas tem o cuidado de especificar seu nome trinitário: Espírito Santo (gr. pneúmatos hagíou). É interessante a variedade e a riqueza dos fenômenos experimentados, que tornaram evidente a atuação do Espírito Santo. A casa onde estavam reunidos encheu-se do ruído (evidência audível) de uma rajada de vento (símbolo do Espírito Santo vindo com poder; v. Ezequiel 37.9-14; João 3.8), línguas

como que de fogo (evidência visível) pousaram em cada um deles (talvez algo como a “sarça em chamas” de Êxodo 3.2-6; v. Mateus 3.11; Lucas 3.16) e todos foram cheios do Espírito Santo (evidência espiritual). A experiência teve sua expressão no fato de cada um começar a falar em diferentes idiomas (prova oral). Quando pensamos na nova relação do Espírito Santo com os crentes, dois pontos se destacam nessa passagem: a manifestação do Espírito Santo veio “sobre cada um deles” (v. 3b); a manifestação do Espírito Santo ocorreu em todos eles (v. 4a). Observe-se a dupla ênfase, que reforça o paralelismo. Veio sobre cada um deles (v. 3b). Essa manifestação se expressou de várias formas, todas elas no plano das experiências sensoriais, ou seja, percebidas por meio dos sentidos físicos. Não se tratou de mera explosão emocional, de algum surto histérico ou de um êxtase místico. Cada um dos presentes experimentou o mesmo e pôde testemunhar fenômenos comuns vividos por igual, sem nenhum tipo de discriminação ou exceção. Houve uma manifestação audível (v. 2). O texto diz: “veio do céu um som, como de um vento muito forte” (gr. egéneto ek toū ouranoū ēhos hōsper feroménēs pnoēsbiaías, v. 2a). O que os presentes sentiram não foi uma rajada de vento, mas o ruído (gr. ēchos) como se fosse o bramido ou o rugir das ondas do mar (Lucas 21.25) ou o ruído de um tornado. Tratava-se de um fenômeno auditivo, não de algo que pudessem perceber corporalmente. Contudo, há um jogo de palavras entre o ruído provocado por um vento forte (gr. pnoēs) e o ruído produzido, nesse caso, pelo vento de Deus, o pneúmatos (o vento) hagíou (o Espírito Santo). Em João 3.5-8, a palavra pneūma pode ser aplicada tanto ao vento quanto ao Espírito. O rugido

causado pelo vento “encheu toda a casa na qual estavam assentados” (gr. eplērōsen hólon tòn oīkon oū ēsan kathēmenoi, v. 2b). O verbo eplērōsen era usado para se referir ao ato de encher um recipiente, como um tanque, uma banheira ou um batistério. Desse modo, pode-se dizer que, assim como um tanque se enche de água, o Espírito encheu a casa em que foram batizados com ele os crentes ali reunidos, em cumprimento do que Jesus dissera em 1.5. No entanto, a imagem de “um vento muito forte” veio a ser um verdadeiro símbolo de vida, pois no imaginário hebraico tinha conotações de purificação e vitalidade, ou seja, era vento ou sopro de vida (Ezequiel 37.1-14; João 3.8). Houve uma manifestação visível (v. 3). O texto diz: “E viram o que parecia línguas de fogo” (gr. ōfthēsan autoīs diamerizómenai glōssai hōsei pyrós, v. 3a). É provável que os discípulos tenham visto uma grande chama semelhante (gr. hōsei) ao fogo (não necessariamente fogo real), que de repente se dividiu ou se dispersou em várias direções, “que se separaram e pousaram sobre cada um deles” (gr. ekáthisen ef’ héna hékaston autōn, v. 3b). Observe-se que foi isso que esses homens e mulheres viram, ou seja, era um fenômeno visível. Como no caso do vento, onde a ênfase não está em sentir sua rajada, mas em ouvir seu ruído, aqui também a ênfase não está na queima pelo fogo, mas em ver línguas que “pareciam” ser de fogo. Essas línguas que pareciam de fogo eram símbolos de poder. Como tal, representavam um poder energizante e aqueciam o coração com a própria presença de Deus (Êxodo 3.1-5). O fogo é um elemento simbólico de rico significado. Para os judeus, o fogo sempre foi um símbolo da presença divina (Êxodo 3.2; Deuteronômio 5.4). Nenhum símbolo poderia ser mais adequado

para expressar a energia purificadora e refinadora do Espírito. João Batista havia profetizado que o Messias iria batizar com o Espírito Santo e com fogo (Mateus 3.11). O formato das chamas (semelhantes a “línguas [gr. glōssai] de fogo”) aqui está relacionado com o dom de línguas (gr. glōssai, Isaías 5.24; v. Isaías 6.6,7). Houve uma manifestação oral (v. 4b,c). O texto diz: “Começaram a falar noutras línguas” (gr. ērxanto laleīn hetérais glōssais, v. 4b). Os antecedentes do fenômeno da glossolalia são encontrados no antigo profetismo israelita (Números 11.25-29; 1Samuel 10.5,6,1013; 19.20-24; 1Reis 22.10). No presente caso, de acordo com a interpretação do próprio Pedro (v. 17-21), o que ocorreu foi o cumprimento da profecia de Joel 2.28-32. O falar em línguas é conhecido pelo termo técnico “glossolalia”, que deriva da palavra grega glōssa, que significa “língua”, e do verbo laleō, que significa “falar”. A palavra glōssai (“línguas”) aparece em apenas dois livros do Novo Testamento: Atos e 1Coríntios. Também é mencionada em Marcos 16.17: “Falarão novas línguas”. A palavra “glossolalia” é aplicada de duas maneiras: como a habilidade de falar línguas ou dialetos desconhecidos; como a habilidade de falar uma linguagem sobrenatural e celestial (“línguas [...] dos anjos”, 1Coríntios 13.1; as “línguas” de 1Coríntios 12.10; 14.2-9; Atos 10.46; 19.6). Nessa passagem, a referência é ao primeiro tipo de “línguas”, ou seja, os idiomas de uso comum, embora desconhecidos daqueles que falam pelo poder do Espírito Santo. Trata-se, portanto, de um dom do Espírito Santo que permite aos crentes falar em idiomas estrangeiros (gr. hetérais) ou novos (gr. kainaís). Foi o que aconteceu no Pentecoste, conforme Atos 2. Nesse caso, trata-se mais especificamente de xenolalia (de xénos, “estrangeiro”, “de

fora”) ou heteroglossolalia (gr. héteros, “de outro tipo”). Essas são as “línguas dos homens” que Paulo menciona em 1Coríntios 13.1a. Observe-se que isso ocorreu depois que os crentes foram todos cheios do Espírito Santo, ou seja, os discípulos cheios do Espírito receberam dele essa habilidade extraordinária (“conforme o Espírito os capacitava”, gr. kathōs tò pneūma edídou apofthéngesthai autoīs; v. 4c). Essa habilidade sobrenatural era um símbolo da ação redentora de Deus, uma vez que o conteúdo da mensagem não era outro senão o evangelho do Reino. Além disso, eles se expressaram

“noutras

línguas”

(gr.

hetéraisglōssais). Sem dúvida, de todos os fenômenos experimentados nesse dia, o mais significativo foi o dessas “outras línguas”, pois foi essa capacidade de comunicação que permitiu aos crentes proclamar o evangelho a povos que falavam outros idiomas. Observe-se que essa forma de glossolalia (mais precisamente, xenoglossolalia, ou seja, a capacidade de falar em línguas desconhecidas ou estrangeiras pelo poder do Espírito Santo) difere das línguas (a glossolalia propriamente dita) mencionadas em 1Coríntios 12 e 14 (ou seja, glossolalia espiritual, a capacidade de se expressar em fonemas inspirados pelo Espírito Santo que não se conformam a nenhum padrão racional da linguagem humana). F. F. Bruce: “Não só as palavras de quem fala estão além de seu controle consciente de forma parcial ou completa, como também são pronunciadas em uma língua sobre a qual ele não tem domínio em circunstâncias normais. Não precisamos ir além do Novo Testamento para encontrar outra forma de glossolalia — foi um ‘dom espiritual’ grandemente valorizado pela igreja de Corinto. Paulo, ao tratar desse ‘dom’ (1Coríntios 12.3ss; 14.2ss), não nega que seja uma manifestação do Espírito Santo, mas lamenta a importância indevida que lhe davam seus convertidos de Corinto. Na maneira em que era praticada pela igreja de Corinto, a glossolalia era proferida em um discurso que nenhum ouvinte conseguia entender, a menos que algum dos presentes

recebesse o correlativo dom espiritual de interpretação. É fácil imaginar os abusos a que essa variedade do fenômeno poderia levar. No dia de Pentecoste, porém, as palavras pronunciadas pelos discípulos em seu êxtase divino foram imediatamente reconhecidas pelos visitantes de muitas terras que as ouviram”.5

Ocorreu em todos eles (v. 4a). Essa manifestação do Espírito Santo ocorreu em todos eles, uma vez que “todos ficaram cheios do Espírito Santo”. Nesse caso em particular, a experiência não foi apenas sensível, mas também profundamente espiritual. Todos experimentaram o enchimento do Espírito Santo. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo” (eplēsthēsan pántes pneúmatos hagíou), ou seja, todo o seu ser estava saturado da presença e da força do Espírito, que assumiu o controle. A alma deles foi preenchida com a presença de Cristo, de modo que suas emoções estavam sob o senhorio dele, bem como sua vontade e faculdades mentais. O próprio centro de seu ser (o coração) foi impregnado com o amor do Senhor, de modo que não só os sentimentos foram entregues a ele, mas também o próprio espírito, a essência da condição deles como pessoas humanas. Para funcionar de forma sobrenatural, o corpo deles também deixou de estar sob o controle da mente, da vontade e das emoções. Foi desse modo que “começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava” (v. 4b). Em suma, toda a vida desses crentes foi afetada pela irrupção do Espírito, que ocupou plenamente cada área de sua pessoa: espírito, alma e corpo (1Tessalonicenses 5.23). Observe-se que “todos” aqui (gr. pántes) inclui os Doze, todos os discípulos do sexo masculino e do sexo feminino e também Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos. Ninguém foi excluído dessa experiência carismática, cujo propósito era conceder poder e

autoridade a todos os seguidores de Jesus, para que pudessem ser testemunhas até os confins da terra (1.8). À luz dessa realidade bíblica tão evidente, não dá para entender como ainda existem evangélicos que afirmam ser bíblicos em sua fé e excluem as mulheres do ministério cristão. Além disso, não foram somente os apóstolos e os homens da congregação que receberam o dom de línguas para pregar o evangelho. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo”, e todos “começaram a falar noutras línguas”, o que incluía as mulheres. É hora de acabar com o abuso de não permitir que as mulheres preguem e ensinem na congregação com base em preconceitos machistas, que não coadunam com o evangelho do Reino. É tempo de deixarmos de blasfemar contra o Espírito Santo (pecado imperdoável) ao negar ou não levar em conta que ele também capacitou as mulheres para a missão cristã e ao fechar as portas do ministério cristão para o qual ele as chamou. Que tipo de enchimento eles experimentaram? Essa questão é importante não só para avaliar a experiência dos 120 crentes no cenáculo, mas principalmente para avaliar nossas experiências hoje. Em nossos dias, fala-se muito da necessidade de encher-se do Espírito, e há muitos testemunhos a respeito disso. No entanto, é preciso distinguir entre o enchimento autêntico e o enchimento falso. 1) O enchimento autêntico do Espírito Santo é caracterizado por vários elementos. Ele causa admiração e espanto (3.10); satura a cidade em que ocorre com o ensino cristão (5.28); produz sabedoria na igreja (6.3); é acompanhado da fé (6.5); expressa a graça e o poder de Deus (6.8); manifesta-se em boas obras (9.36); conduz à alegria (13.52).

2) O enchimento falso é caracterizado por vários elementos. Ele mente para o Espírito Santo (5.3); produz inveja (5.17); resulta em engano e fraude (13.10); dá origem ao ciúme (13.45); causa furor (19.28).

O TESTEMUNHO DO ESPÍRITO SANTO (2.5-13)

Cheios do Espírito Santo, os crentes saíram às ruas, onde depararam com uma realidade diferente da realidade do cenáculo. As ruas da cidade estavam cheias de “judeus, devotos a Deus, vindos de todas as nações do mundo” (v. 5). Provavelmente, muitos desses judeus eram peregrinos que estavam na cidade por ocasião da festa religiosa, enquanto outros seriam residentes permanentes, muitos dos quais vieram da Diáspora (“todas as nações do mundo”). Com essa afirmação, Lucas faz um parêntese necessário para explicar o que virá a seguir em seu relato. O que se segue é o testemunho do Espírito Santo por parte de seguidores de Jesus cheios de seu poder e autoridade, que causava espanto ao declarar as “maravilhas de Deus” na língua de “cada um”. O avivamento nas ruas (2.5-12)

A renovação da igreja, que foi cheia do Espírito Santo, habilitada e equipada para o cumprimento da missão evangelizadora, ocorreu no cenáculo. Era o lugar de retiro e encontro com o poder e a autoridade concedidos pelo Espírito. No entanto, o avivamento evangelístico, ou seja, o cumprimento da missão de ser testemunhas do evangelho do Reino perante o mundo, no poder do Espírito Santo, não ocorreu no cenáculo, mas nas ruas. A mensagem de salvação deve ser proclamada no lugar onde se encontram as pessoas que precisam de Cristo. O contexto (v. 5). Devemos ter em mente os dois contextos aos quais esse versículo se refere.

O contexto geográfico: Jerusalém. A Cidade Santa (“Jerusalém”, gr. Ierousalēm) é de grande significado simbólico como o cenário em que ocorreu o derramamento do Espírito Santo e a fundação da igreja cristã. Convém lembrar que o Novo Testamento apresenta várias profecias a respeito da cidade, que se cumpriram em Jesus, o Messias de Israel, e por meio dele. Nos evangelhos, Jerusalém é apresentada em imagens contrastantes e até irônicas. Por um lado, é “a cidade do grande Rei” (Mateus 5.35) e a “cidade santa” (Mateus 4.5; 27.53). Por outro lado, é a cidade que mata os profetas e apedreja os que a ela são enviados (Lucas 13.34). Enquanto alguns aguardavam a “redenção de Jerusalém” (Lucas 2.38), a cidade e seus habitantes enfrentariam um terrível juízo, por não reconhecerem o tempo da visitação divina de Jesus (Lucas 19.4144). Com efeito, a missão de Jesus terminou com a rejeição por parte dos governantes de Jerusalém e com a morte dele fora dos muros da cidade (Marcos 8.31; 10.32-34; cap. 14-15). Agora, porém, dentro de seus muros e quase no próprio templo, Jerusalém recebe uma nova visitação divina, dessa vez com o derramamento do Espírito Santo sobre a pequena comunidade de discípulos de Jesus. Mais uma vez, ela é confrontada com o evangelho do Reino e a tem a oportunidade de se arrepender e crer. O contexto humano: residentes e peregrinos. O texto grego identifica-os como homens (gr. ándres), mas já vimos que essa palavra nem sempre é usada com conotação de gênero, mas com referência a pessoas em sentido geral, de modo que também inclui as mulheres. O verbo no imperfeito ativo do indicativo dá a entender que eles eram moradores da cidade (gr. katoikéō, “residir em algum lugar”; kaitoikía indica local de residência; cf. v. 14; 4.16; 7.4;

9.22,32). Talvez alguns tenham vindo a Jerusalém para morar, ao passo que outros estavam ali apenas temporariamente, por ocasião das festas, uma vez que a mesma palavra aparece no v. 9, em que são mencionadas pessoas que residiam fora da Palestina. Os feriados judaicos da Páscoa e do Pentecoste atraíam um grande número de pessoas de fé judaica, peregrinos provenientes de vários lugares, que se juntavam aos locais nas celebrações. O contexto religioso: judeus piedosos. O texto identifica os presentes como “judeus [...] devotos” (gr. Ioudáīoi […] eulabeīs). Eles eram pessoas reverentes (de eu, “bom”, e lambánō, “tomar”, “colher”, “escolher”), ou seja, pessoas que tomaram, escolheram ou possuíam algo bom (v. LXX, Levítico 15.31; Miqueias 7.2). No caso do judaísmo do século I, a expressão implica uma atitude reverente para com Deus e com a tradição dos líderes religiosos (a tradição oral que se tornou o Talmude). Eram pessoas piedosas e religiosas (8.2; 22.12; Lucas 2.25) que estavam em Jerusalém precisamente porque eram religiosas e devotas a Deus. Eram judeus (ortodoxos, prosélitos e/ou adeptos) “de todas as nações do mundo” (gr. apò pantòs éthnous tōn hypò tòn ouranón; lit., “de todas as etnias debaixo do céu”). A expressão parece um tanto exagerada, mas destaca o fato de que todo judeu do sexo masculino era obrigado a comparecer às três principais festas anuais (Levítico 23) no templo (Deuteronômio 16.16). Nesse caso, como sugerido, provavelmente eram peregrinos de toda a região ao redor do mar Mediterrâneo que tinham vindo a Jerusalém para celebrar a Páscoa e que permaneceram até o Pentecoste entre os moradores, que haviam se instalado em algum lugar próximo da cidade

A multidão (v. 6a). A multidão reuniu-se em torno dos discípulos “ouvindo-se o som” (gr. genomenēs dè tēs fōnēs). Isso pode se referir ao que acontecia quando foi ouvido o som de vento, como de um redemoinho (v. 2; fōnē originariamente indicava um som como o do vento [João 3.8] ou de um instrumento [1Coríntios 14.7,8,10] e mais tarde passou a se referir à voz humana) ou aos brados de louvor a Deus dos crentes em várias línguas (v. 4). Ao que parece, foram os gritos dos crentes em outras línguas que atraíram o povo. Foi a curiosidade que os reuniu em torno dos discípulos. Observe-se que foi a multidão que veio aos cristãos, que provavelmente já estavam em algum pátio do templo se expressando em voz alta. A casa no cenáculo devia ficar nas proximidades de um desses pátios. Ali o povo se aglomerou (gr. synēlthen, aoristo de synérchomai, “juntar-se”, “reunir-se”, “congregar-se”), ou seja, estavam agrupados ou amontoados (Lucas 8.45; 19.43; 22.63). Sem intenção e sem fazer o menor esforço, os primeiros cristãos inauguraram uma congregação na rua, em um dos pátios do templo! O fenômeno (v. 6b-8). A multidão aglomerada dessa forma “ficou perplexa” (gr. synechýthē). O verbo synchéō ou synchunō significa “confundir”, “atordoar”, “estar confuso e atordoado”. No v. 7, Lucas acrescenta a observação de que os presentes ficaram “atônitos e maravilhados” (gr. exístanto kaì ethaúmazon). O primeiro termo está no imperfeito médio, e o segundo, no imperfeito ativo; ambos os termos falam de emoções crescentes. A perplexidade e a admiração cresciam à medida que vivenciavam o fenômeno. O reverso de Babel.6 O mesmo verbo é usado em Gênesis 11.7,9 (LXX), em conexão com a confusão de línguas na torre de Babel. Como já foi dito, o Pentecoste é o reverso simbólico do

nacionalismo, que começou com a torre de Babel, punido, em primeiro lugar, pela rejeição da humanidade pecadora à vontade de Deus, que era dispersar os seres humanos pelo mundo, e, em segundo lugar, pela intenção de organizar um único povo com um só idioma e um governo mundial. Com relação a isso, é importante observar que o verbo gr. diamerízō (“dividir”; repartir”, “dividir entre”) que aparece no v. 3 (“se separaram”) é um termo raro, mas também usado em Deuteronômio 32.8 (LXX) vinculado com a dispersão da torre de Babel. No Pentecoste, as pessoas viram sua nacionalidade (etnia) afirmada e sua língua respeitada, mas unidas em uma mesma experiência produzida pelo Espírito Santo. Essa experiência, por sua vez, é uma prévia do que acontecerá com o estabelecimento definitivo do Reino de Deus: “Depois disso olhei, e diante de mim estava uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas. E clamavam em alta voz [em que língua?]: ‘A salvação pertence ao nosso Deus, se assenta no trono, e ao Cordeiro!’ ” (Apocalipse 7.9,10). O milagre do Pentecoste. O fenômeno que surpreendeu o povo foi que “cada um os ouvia falar em sua própria língua” (gr. hóti ēkouon eīs hékastos tēi idíai dialéktōi laloúntōn autōn). O que aconteceu? Em que consistiu o milagre? Há duas explicações possíveis: ou o milagre ocorreu ao falar, ou o milagre ocorreu ao ouvir. No primeiro caso, os crentes, graças ao poder do Espírito Santo, puderam falar em línguas e dialetos desconhecidos para eles (essa é a interpretação tradicional, com base na frase “começaram a falar noutras línguas”, v. 4 ) No segundo caso, os crentes se

expressavam em aramaico (e talvez alguns deles em grego), mas o povo ouvia o que eles diziam na própria língua ou dialeto de cada um (com base na frase “os ouvimos, cada um de nós, em nossa própria língua materna”, v. 8) Na verdade, qualquer uma das duas alternativas (ou ambas) é atestada pelo texto bíblico. No entanto, a frase “os ouvimos, cada um de nós” parece indicar que o milagre ocorreu principalmente ao ouvir, não tanto ao falar (v. 8,11b). Em termos práticos, isso seria o mais conveniente. Cento e vinte pessoas falando em diferentes idiomas ao mesmo tempo, e em alta voz, teriam criado uma confusão ainda maior que o próprio milagre. Além disso, como já foi sugerido, essa experiência foi o reverso teológico do ocorrido na torre de Babel (Gênesis 11), o idioma em que se expressaram deve ter sido um só, mas com entendimento diverso, ou seja, cada um ouvia em seu idioma (gr. dialéktō). Além disso, como poderia alguém cuja língua materna era diferente do aramaico palestino discernir o sotaque galileu dos que falavam (v. 7b)? Lucas usa o termo “dialeto” com frequência em Atos (1.19; 2.6,8; 21.40; 22.2; 26.14). É empregado no sentido de linguagem, mas nesse contexto “dialeto” pode ser o significado que se pretende dar ao termo. Assim, os judeus piedosos ouviram falar de Jesus, o Messias, na língua materna (v. 8), ou seja, a primeira língua aprendida por uma pessoa na infância (gr. en hēi egennēthēmen). Não é de surpreender que tenham ficado espantados, pois o fenômeno foi um sinal que confirmou a autenticidade e a autoridade da nova mensagem de Deus. Os idiomas (v. 9-11a). A lista apresentada aqui não é tanto de idiomas variados, mas de diferentes regiões, ou seja, a base não é linguística, mas geográfica. A intenção parece mostrar quão ampla

era a diáspora judaica e quantos de seus representantes se faziam presentes em Jerusalém na ocasião. Havia judeus de todos os lugares, ou seja, vivendo “entre os gentios” (cf. 21.21). A lista considerada como um todo permite estabelecer cinco divisões de natureza geográfica. 1) Judeus do Oriente ou da Babilônia, como os “partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia”; 2) judeus da Síria, como da “Judeia e Capadócia, do Ponto e da província da Ásia, Frígia e Panfília”; 3) judeus da África, como os do “Egito e das partes da Líbia próximas a Cirene”; 4) judeus de Roma, como “visitantes vindos de Roma”; 5) judeus de outras regiões, como “cretenses e árabes”. À parte dessa lista de caráter linguístico, surge outra, de cunho religioso, composta por dois grupos: “judeus (ortodoxos) e convertidos ao judaísmo” (prosélitos). O último grupo talvez incluísse os “prosélitos de porta” ou adeptos, gentios que aceitavam o monoteísmo ético judaico, mas que não eram circuncidados. A pregação (v. 11b). O que os crentes falavam e pregavam não eram frases sem nexo, mas idiomas compreensíveis ou, pelo menos, os que as ouviam captavam um discurso compreensível e coerente. Seus ouvintes admitiram que os ouviram falar “em nossa própria língua” (gr. akoúomen laloúntōn autōn, v. 11). A forma em que o milagre é apresentado faz que pareça o reverso da “confusão de línguas” do relato da torre de Babel em vez de uma manifestação da glossolalia típica mencionada por Paulo em 1Coríntios 12—14, como já foi dito. De acordo com a interpretação tradicional, o milagre estava no fato de os discípulos receberem, pelo Espírito Santo, a capacidade de falar esses idiomas, não em que os ouvintes de alguma forma adivinhassem ou percebessem o que diziam.7 Uma

interpretação mais atual insiste em que o milagre consistiu no fato de os ouvintes entenderem com clareza a mensagem que ouviram, como se comunicada na língua deles. A frase “nós os ouvimos declarar” parece apoiar a segunda interpretação. Convém lembrar que, de acordo com Paulo, “a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo” (Romanos 10.17). No entanto, essa “palavra de Cristo” proclamada no Pentecoste consistia nas “maravilhas de Deus” (gr. tà megaleīa toū theoū), ou seja, suas obras poderosas, que manifestam sua majestade e magnificência. E a maior obra de Deus foi a que realizou em Cristo e por meio dele para nossa salvação. Essa “maravilha” divina também convida a todos, sem distinção de raça, nacionalidade, sexo, idioma ou cultura, a aderir ao Reino de Deus pela fé em Cristo como Salvador e Senhor, e a constituir assim um novo Reino, com um só Rei e que fala um mesmo idioma, a linguagem do amor. Carlos María Aguirre: “Não se fala uma língua incompreensível para os ‘de fora’, que precise ser interpretada, e sim uma língua que cada um entenda como sua. É a manifestação do Espírito como força que une os homens, que o pecado divide e confronta. O Novo Povo não é um gueto de iluminados, porque a força que os anima é um dynamis fraterno, que se estende até onde alcança a paternidade de Deus e abraça os que se beneficiam da libertação de Cristo”.8

A avaliação (v. 12,13). O que aconteceu, muito provavelmente, foi isto: os discípulos começaram a louvar a Deus cheios do Espírito, e suas expressões de êxtase foram ouvidas pelos peregrinos no templo, que ficaram surpresos ao perceber que muitas das palavras não eram faladas em aramaico ou em grego, mas nos dialetos locais do Egito, da Ásia Menor e da Itália. No entanto, convém

lembrar que o conteúdo da mensagem comunicada é mais importante que a forma ou o meio de comunicação, ou seja, os discípulos proclamavam “as maravilhas de Deus” (v. 11). Esta é a maneira de Lucas se referir aos atos redentores de Deus na história, e o último era importante em um mundo que estava aberto para aceitar fenômenos sobrenaturais sem crítica (cf. 8.13,19; 1Coríntios 12.1-3). John Rea: “Convém lembrar que o Espírito Santo já habitava nos apóstolos, visto que na noite anterior à sua ressurreição o Senhor Jesus Cristo soprou seu Espírito sobre eles, para que se tornassem membros da nova criação (v. João 20.21-23) Esse relacionamento novo e mais profundo consistia na união do Espírito Santo com o espírito deles. A partir daquele momento, eles estavam espiritualmente unidos ao Cristo ressurreto (1Coríntios 6.17; Romanos 8.9)”.9

A multidão ali reunida reconheceu o sotaque de quem falava: “Não são galileus?” (v. Mateus 26.73), e todos ficaram espantados com o fato de pessoas tidas como ignorantes conseguirem se comunicar no idioma de cada um deles. A lista em questão é bem extensa e se refere a territórios muito distantes, até mesmo fora do império romano (como a Pártia). O texto menciona “judeus” e “convertidos ao judaísmo” (v. 11), ou seja, pessoas ligadas à religião judaica e com determinado grau de globalização, uma vez que podiam se comunicar entre si (v. 10-12). Diante dessa tremenda experiência coletiva, cada um tirou as próprias conclusões e manifestou diferentes atitudes. Perplexidade. Muitos estavam “atônitos e perplexos” (gr. exístanto dè pántes kaì diēpóroun) diante da experiência com um fenômeno sobrenatural, incompreensível e além de qualquer registro conhecido. O vocábulo diēpóroun é o imperfeito médio do verbo

diaporeō (“estar muito perplexo”, “questionar-se”). Alguns na multidão estavam totalmente desnorteados, ou, como diz o ditado popular, “mais perdidos que cego em tiroteio”. Como se não bastasse, eles estavam exístanto (de exístēmi, “admirar-se”, “estar assombrado ou surpreso”). Eles não podiam deixar de se perguntar: “Que significa isto?” (gr. ti thélei toūto eīnai). Zombaria. Outros “zombavam” (gr. diachleuázontes, v. 13). A zombaria (o escárnio; chleúē significa isso) consistia em dizer que “beberam vinho demais”, e nisso se referia tanto aos que falavam outras línguas quanto aos que as entendiam, porque não conseguiam captar o aspecto milagroso da experiência. Ou seja, para esses observadores críticos (não participantes), tudo que estava acontecendo era uma escandalosa reunião de malucos, um verdadeiro show de horrores ou uma vergonhosa manifestação de histeria em massa. O avivamento no coração (2.5-13)

O que aconteceu na rua, com todos os fiéis pregando, foi uma expressão do que se passava no coração de cada um deles. Todos pregavam para o aglomerado de gente, porque estavam cheios do Espírito Santo, ou seja, do amor compassivo de Deus pelos perdidos. Com a vinda do Espírito Santo, uma profunda compaixão entrou no coração dos primeiros cristãos, o que é evidente em todas as páginas do livro de Atos. Quem ler o livro inteiro com isso em mente, ficará surpreso com a compaixão dos primeiros cristãos. Desde o dia de Pentecoste e por todo o século I da era cristã, era possível seguir esses crentes apenas pelo calor da chama de sua

compaixão. A compaixão foi um fator dominante em sua eficácia na proclamação do evangelho do Reino. Se quisermos um avivamento como o vivenciado pelos primeiros cristãos, devemos experimentar o ardor de compaixão pelos perdidos. Só então nossa religião se mostrará viva, apaixonante, dinâmica e convincente. Devemos confessar que não temos compaixão e que esta é nossa maior necessidade. Portanto, é fundamental reconhecer a importância da compaixão cristã diante do desafio do testemunho cristão no mundo atual. Com respeito à compaixão, há duas questões a serem consideradas. A compaixão é inseparável do testemunho cristão. Deus é compassivo.A Bíblia revela-o da seguinte maneira: “Tu, SENHOR, és Deus compassivo e misericordioso, muito paciente, rico em amor e em fidelidade” (Salmos 86.15). Ele não quer que os pecadores se percam. É o que revela nossa experiência, na mesma medida experimentada pelo filho perdido. Em sua famosa parábola, Jesus ressalta que o jovem, “estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou” (Lucas 15.20). Jesus foi compassivo durante todo o tempo de seu ministério terreno. Vemos expressões disso em Mateus 9.36 e 23.37. Portanto, a igreja deve ser compassiva. A igreja dos primeiros dias o era. Se não sentirmos compaixão diante dos perdidos, não há nada que possa dar vida à igreja. Se a igreja for reacendida pelo amor e pela compaixão pelos perdidos ao nosso redor, eles também serão.O templo de madeira de uma pequena igreja pegou fogo, e ouviu-se um vizinho descrente comentar: “Esta é a primeira vez que vejo esta igreja em chamas”. Toda testemunha deve ser compassiva. Nossas igrejas arderão em compaixão quando nossa vida estiver em

chamas. Apenas uma coisa é necessária para testemunhar: compaixão pelos perdidos. Quais as características da compaixão cristã? Se uma atitude de amor para com as pessoas que não conhecem Cristo é tão importante para estarmos em condições de experimentar um novo Pentecoste, vale a pena conhecer algumas das características dessa compaixão. A compaixão cristã é consumidora. Alguém disse: “A história deixa claro que em todas as suas grandes eras a humanidade teve uma ponte sobre o abismo de destruição que a ameaçava e andou sobre o corpo de algum fanático que fez de si mesmo uma estrada real para sua raça”. Diz-se de John Wesley que “ele estava sem fôlego correndo atrás de almas”. De Martinho Lutero foi dito: “O céu abalou um frade, e aquele frade abalou o mundo”. Nosso eu deve ser queimado no altar de Deus, inflamado de compaixão pelos que ainda estão sem Cristo. É desse batismo com fogo que as igrejas evangélicas na América Latina necessitam. Percebe-se hoje em todo o continente frieza, indiferença ou falta de paixão pela evangelização. Muitas igrejas passam anos olhando para o próprio umbigo ou girando em torno de si mesmas, ao passo que o mundo ao redor vive um caos de pecado e corrupção. A compaixão cristã é corajosa. Jesus exercitou uma compaixão corajosa, assim como Paulo, William Carey e tantos outros heróis da fé. O amor move o impossível. Não foi fácil para aquela companhia de crentes refugiados no cenáculo, temerosos de sofrer o mesmo destino de seu Senhor, sair a pregar o evangelho do Reino justamente a muitos dos que haviam gritado ao reclamar a morte de Jesus de Pilatos, apenas cinquenta dias antes: “Crucifica-o!

Crucifica-o!”. Só mulheres e homens cheios de coragem e do Espírito Santo poderiam descer as escadas de seu lugar seguro para as ruas e para um pátio do templo e se expor em plena luz do dia, ainda por cima em um sábado, à multidão de peregrinos que transitavam ali. A compaixão é animadora e contagiosa. Foi assim com a igreja primitiva, assim ocorreu nos dias de John Wesley e assim pode acontecer em nossos dias. Sem dúvida, o fato de terem todos participado da experiência no cenáculo, ido juntos para a rua e pregado a mesma mensagem encheu de ânimo o grupo de crentes, que carecia de experiência na evangelização das massas. Eles se encheram de ânimo ao fazer o que nunca haviam feito e, à medida que o faziam, mais esforço e entusiasmo investiam. Quando a igreja se lança unida e em obediência ao Senhor, cheia do Espírito Santo e com uma mensagem que proclama as maravilhas de Deus, os crentes se sentem animados, e isso contagia outros, que passam a seguir o mesmo caminho no cumprimento da missão.

A MENSAGEM DO ESPÍRITO SANTO (2.14-36)

O grande protagonista de tudo que aconteceu até agora é o Espírito Santo. Ele se apresenta como o grande tradutor do evangelho para todas as nações, mas também é o grande comunicador do evangelho a todos os povos. Sua ação poderosa sempre se verifica por meio de instrumentos humanos. Nessa passagem, o instrumento em particular é o apóstolo Pedro, que toma a palavra — em primeiro lugar, para responder às zombarias dos que não conseguiam perceber que algo milagroso acontecia com o fenômeno das línguas; em segundo lugar, para interpretar o episódio profeticamente; em terceiro lugar, para proclamar o evangelho cristão. O pronunciamento de Pedro no dia de Pentecoste é o primeiro dos grandes discursos apostólicos que encontramos em Atos. Nesses discursos, Lucas não só apresenta sua compreensão da teologia cristã, como provavelmente reflete materiais antigos e tradicionais. Em todo caso, as palavras registradas são uma excelente ilustração do que pode ter sido a pregação apostólica e de seu conteúdo essencial.10 A mensagem do apóstolo, por sua vez, é um bom exemplo de comunicação elaborada para maior benefício dos ouvintes. O pregador apostólico (2.14-21)

O mesmo homem que negou Jesus por medo e vergonha agora se levanta para falar “em alta voz” (gr. epēren tēn fōnēn autoū, v. 14), em uma surpreendente manifestação de coragem e de autoridade (cf. 2.4; 4.8,31). No entanto, Pedro não era um pregador

solitário. Estava “com os Onze” (gr. sýn toīs héndeka) e com o restante da pequena comunidade cristã — e não estava falando apenas em seu nome, mas como representante dessa comunidade.O testemunho na igreja primitiva sempre foi corporativo em vez de individual. Além disso, o contexto em que ele falava era internacional. Nesse sentido, o milagre revelou a natureza contextual da missão da igreja, que dessa forma foi capacitada pelo Espírito a penetrar qualquer contexto cultural e a ser ouvida e compreendida ao se arraigar ao idioma e à cultura de qualquer povo. Como Darrell L. Guder observa, o Pentecoste começou com o conceito de que a história do evangelho “será contada em todas as línguas” e que “a expansão da igreja será gloriosamente multicultural”.11 Sua pregação foi contextual (v. 14,15). Pedro, com forte sotaque galileu, provavelmente falava em grego (ou talvez em aramaico), já que quase todos podiam entender esse idioma. Em todo caso, o apóstolo apresentou seu discurso de maneira muito inteligente, ao se referir ao acontecimento imediato que abalara a multidão. Em vez de se envolver em argumentos apologéticos ou buscar justificativas de ocasião, ele imediatamente passou a citar as Escrituras e a usálas como chave hermenêutica para o ocorrido. O público judaico ficou surpreso ao ouvir as Escrituras não em hebraico, o idioma da Torá, mas nas línguas da diáspora judaica. No entanto, as promessas de Deus não eram apenas para eles, mas também “para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar” (v. 39; v. Efésios 2.17). Com isso, Lucas mostra seu espírito missionário e universalista, interessado na difusão da mensagem para além de Israel.

Sua pregação foi bíblica (v. 16-21). Observe-se que Pedro começou seu testemunho público citando uma passagem das Escrituras (Joel 2.28-32). A estrutura na qual ele desenvolveu seu discurso é totalmente profética. Na verdade, o próprio Pedro descreveu o fenômeno das línguas como profecia. Isso significa que o ser humano pode servir como voz de Deus para declarar a Palavra de Deus, sem nenhum tipo de discriminação (v. 17-21). No Antigo Testamento, a capacitação do Espírito era restrita a determinadas pessoas-chave, em ocasiões específicas. Agora, porém, o Espírito Santo estava sendo derramado sobre toda a humanidade. A declaração de Moisés (Números 11.29) transformouse em palavra profética nos lábios de Joel, que encontrou seu cumprimento na experiência dos discípulos e no testemunho de Pedro. Desse modo e com base em uma citação bíblica, Pedro explicou o estranho comportamento dos discípulos (v. 14-21) àquela hora do dia (“nove horas da manhã”). Afirmou que eles estavam sob a influência do Espírito, cujo derramamento fora prometido havia muito tempo, no Antigo Testamento, de acordo com as passagens messiânicas conhecidas por todos (Números 11; Isaías 44; Ezequiel 39; Salmos 105; Joel 2, principalmente). O comportamento dos discípulos era coerente com essas previsões. Israel sempre entendeu o cumprimento da profecia — a vinda do que fora prometido — como um sinal da obra de Deus e da autenticidade do vaso ou do instrumento pelo qual ele resolveu operar. Por causa da história e da cosmovisão de Israel, citar esses textos foi uma boa maneira de chamar a atenção dos judeus piedosos reunidos ali. Como precisamos de uma pregação bíblica na América Latina hoje!

O púlpito evangélico latino-americano hoje padece pela trágica ausência da exposição clara e eficaz da Palavra de Deus. Devemos recuperar a herança da Reforma e pôr em evidência outra vez o princípio protestante sola Scriptura como o eixo central da pregação cristã. Sua pregação foi cristocêntrica (2.21). Este versículo, citado da profecia de Joel, é um dos mais importantes de toda a Escritura: “E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (gr. pās hós àn epikalésētai tò ónoma kyríou sōthēsetai). Ao citá-lo, Pedro pôs Cristo no centro de sua mensagem e expressou três verdades fundamentais do evangelho. A declaração de um fato apavorante. Esse fato é que os pecadores sem Cristo estão perdidos, uma realidade suficiente para deixar qualquer um apavorado. 1) Esse fato deve nos deixar apavorados. Por quê? Porque perdição significa isolamento eterno (Romanos 3.23); porque perdição significa separação eterna (Mateus 25.41); porque perdição significa sofrimento eterno (Lucas 16.24-26). 2) Esse fato deve nos despertar. Por quê? Porque Deus nos pôs como sentinelas para anunciar o perigo (Ezequiel 3.17-19); porque Deus nos pôs como embaixadores para anunciar a salvação (2Coríntios 5.20). A imposição de uma responsabilidade inevitável. Essa responsabilidade consiste no dever dos cristãos de ganhar os perdidos para Cristo. 1) Se quisermos ganhar os perdidos, essa responsabilidade deve ocupar o primeiro lugar em nossa vida. Por quê? Porque para isso

Cristo veio ao mundo (Lucas 19.10); porque para isso fomos salvos (1Pedro 2.9,10); porque a igreja existe para isso (Marcos 16.15,16). 2) Se quisermos ganhar os perdidos, devemos ter um amor profundo por eles. Por quê? Porque esse amor nos constrange (2Coríntios 5.14); porque esse amor nos impulsiona (18.5). 3) Se quisermos ganhar os perdidos, temos de manifestar o espírito de Cristo ao tratar com eles. Por quê? Porque somos enviados do Senhor (João 20.21); porque somos filhos do Senhor (Filipenses 2.14-16a). 4) Se quisermos ganhar os perdidos, precisamos trabalhar para atraí-los a Cristo. Por quê? Porque esse era o método de André (João 1.40-42); esse era o método de Filipe (João 1.43-46); esse foi o método de Jesus (João 1.47-51). A realidade de uma provisão admirável. Essa provisão consiste no fato de que em Cristo os perdidos têm salvação. 1) A única esperança de salvação que os perdidos têm é a obra de Cristo. Por quê? Porque ele venceu o pecado (Apocalipse 3.21); porque ele venceu a morte (1Coríntios 15.54-57). 2) A única esperança de salvação que os perdidos têm é a fé em Cristo. Por quê? Porque seu nome é o único pelo qual podemos ser salvos (4.12); porque ele é o único mediador entre Deus e os seres humanos (1Timóteo 2.5). A mensagem apostólica (2.22-36)

Embora no Novo Testamento tenhamos apenas um pequeno esboço ou uma síntese das mensagens pregadas pelos apóstolos, não há dúvidas quanto ao conteúdo da mensagem apostólica. Ao estudar cuidadosamente esses sermões ou discursos, descobrimos

que a pregação apostólica ou kērygma era uma proclamação acompanhada de um convite. Além da pregação e do convite, podemos considerar outros elementos que os compunham e hoje deveriam ser componentes necessários e indispensáveis de nossa tarefa de dar testemunho, para que ela seja eficaz. É possível fazer uma síntese do kērygma apostólico com base em uma variedade de temas, como: 1) a profecia e a promessa foram cumpridas em Cristo (2.16-21); 2) a era messiânica começou, e o Reino de Deus chegou (2.25-28,30,31,34,35); 3) Jesus foi aprovado por Deus, mas foi morto pelos perversos (2.22,23); 4) Jesus, o Santo e Justo, autor da vida, foi rejeitado e morto (3.14,15a); 5) os ímpios mataram Jesus pendurando-o em um madeiro (5.30); 6) Jesus morreu, mas Deus o ressuscitou no terceiro dia (10.40); 7) Jesus foi exaltado pelo poder de Deus (2.33); 8) Deus o exaltou como Príncipe e Salvador (5.31); 9) Deus enviou o Espírito Santo (5.32); 10) a fé em seu nome é saudável e segura (3.16); 11) não há salvação em nenhum outro nome (4.12); 12) quem crê nele recebe perdão dos pecados (10.43). De todas essas questões, as que mais se destacam na pregação de Pedro são as seguintes: Tinha Cristo como centro (v. 22-36). Por todo o Novo Testamento, o denominador comum da mensagem apostólica é seu caráter cristocêntrico. Paulo declara: “Nós [...] pregamos Cristo crucificado” (1Coríntios 1.23). Pedro foi o pioneiro a fazer essa abordagem fundamental, em seu discurso no dia de Pentecoste. A morte de Cristo (v. 22,23). Depois de citar a passagem de Joel, Pedro torna a se concentrar na morte de Jesus de Nazaré (v. 22). Seus ouvintes haviam estado em Jerusalém naqueles dias e com certeza tinham conhecimento dos fatos relacionados com a

crucificação de Jesus. Ao que parece, eles sabiam que ele havia operado maravilhas, e os rumores a respeito dele ainda não haviam desaparecido. O pregador começa identificando Jesus como proveniente de Nazaré, a cidade em que fora criado: “Jesus de Nazaré foi aprovado por Deus diante de vocês por meio de milagres, maravilhas e sinais”. Nesse ponto, Pedro profere uma palavra de repreensão: “Vocês [...] o mataram, pregando-o na cruz” (gr. prospēxantes aneílate; lit., “crucificando-o, o mataram”, v. 23). E prossegue com a apresentação do kērygma pré-lucano da igreja de Jerusalém (Cristo viveu, morreu e ressuscitou). Pedro sabe que há entre os ouvintes pessoas da região, que haviam presenciado os acontecimentos e eram responsáveis pela ausência de resposta. Isso nos lembra que milagres, sinais e maravilhas (gr. dynámesi kaì térasi kaì sēmeíois), mesmo realizados pelo próprio Senhor, não garantem uma resposta positiva à sua mensagem (v. 22; v. Lucas 10.13; 17.17). Em seguida, o apóstolo direciona sua mensagem para a responsabilidade de seus ouvintes pela ocasião e pelo tipo de morte de Cristo. Embora eles o tivessem entregado às autoridades romanas, Deus operou segundo os propósitos divinos. A vindicação do Filho de Deus é evidenciada pela ressurreição e pelo túmulo vazio. A ressurreição de Cristo (v. 24-32). Com plena convicção, Pedro afirma a ressurreição como um fato óbvio operado pelo próprio Deus: “Deus o ressuscitou” (gr. ho theòs anéstēsen). O resultado dessa ação divina extraordinária foi que, dessa forma, ele o livrou dos “laços da morte” (gr. lúsas tàs ōdīnas toū thanátou), ou seja, das armadilhas ou redes da morte, à semelhança dos artefatos usados pelos caçadores para capturar suas presas. Jesus ficou livre da

morte. Na continuação de seu discurso, Pedro cita as passagens de Salmos 16.8-11 e 132.11 (da LXX) para fundamentar a ressurreição de Cristo. Observe-se o uso constante das Escrituras como textos de apoio à sua exposição. De acordo com ele, as palavras de Davi não podiam encontrar seu cumprimento nele próprio, pois ele morreu, e seu corpo foi sepultado em uma tumba, que ficava em um local conhecido em Jerusalém. Jesus também morreu e foi sepultado, mas seu túmulo agora estava vazio, com a pedra removida para que todos vissem. Pedro introduziu nesse ponto a própria experiência como aval para suas afirmações. O que ele e outros haviam experimentado eram uma evidência incontestável: “Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato” (v. 32). A ressurreição de Cristo foi a mensagem central da igreja primitiva e seu argumento mais contundente. A ascensão de Cristo (v. 33b). Pedro não menciona explicitamente a ascensão de Jesus, apenas a pressupõe, pois foi após sua ressurreição que ele ascendeu ao céu e foi de lá que enviou o Espírito Santo. Depois de ressuscitar, Jesus permaneceu na terra quarenta dias, e depois foi para o céu, a fim de ser exaltado e de lá cumprir a “promessa de meu Pai” enviando seu Espírito à terra para conceder poder e autoridade a seus discípulos. Era exatamente o que estava acontecendo, no momento em que Pedro estava pregando. Mais uma vez, o apóstolo voltou a explicar o comportamento estranho dos que saíram do cenáculo para invadir as ruas, cujas expressões qualquer pessoa conseguia entender em seu idioma. De acordo com Pedro, isso ocorreu porque o Jesus ascendido “derramou o que vocês agora veem e ouvem” (gr. exécheen toūto ho hymeīs [kaì] blépete kaì akoúete, v. 33b).

A exaltação de Cristo (v. 33a,34-36). Na conclusão, Pedro menciona o último ponto da mensagem apostólica, que afirma que Cristo foi “exaltado à direita de Deus” (gr. tēi dexiāi oūn toū theoū hupsōtheís), como consta de alguns manuscritos. O termo “exaltado” significa “levantado” (João 12.32). Uma das mais acirradas controvérsias teológicas da história do cristianismo é o que se conhece por filioque, relacionado com a proveniência do Espírito Santo. A polêmica acabou levando ao cisma teológico entre o Oriente e o Ocidente (1054). Enquanto no Ocidente era confessado que o Espírito procedia “do Pai e do Filho”, no Oriente dizia-se que procedia “do Pai por meio do Filho”. No primeiro caso, a expressão “e do Filho” (Latim - filioque) foi adicionada à fórmula do Credo niceno (325) para indicar a dupla origem do Espírito Santo. Enquanto isso, em Constantinopla (Bizâncio), a adição foi rejeitada por constituir uma violação ao Credo niceno-constantinopolitano, embora as razões para a rejeição fossem mais políticas que propriamente teológicas. Passagens como o v. 33 e outras (João 15.26; 16.7; Gálatas 3.14) parecem apoiar a teoria da dupla procedência do Espírito Santo, ou seja, o Espírito foi enviado pelo Pai e pelo Filho. Nesse ponto, mais uma vez Pedro cita as Escrituras em apoio ao que está afirmando. Nesse caso, ele apela para um salmo de coroação (Salmos 110.1) e explica que Davi não está se referindo à própria exaltação (v. 34,35). Essa profecia teve seu cumprimento em Jesus e em mais ninguém. A conclusão parece óbvia: “Portanto, que todo o Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo” (v. 36).

Charles Van Engen: “Pedro faz quatro coisas ao mesmo tempo em seu discurso. Em primeiro lugar, articula cuidadosamente sua mensagem para responder à pergunta imediata dos ouvintes: como explicar o comportamento estranho destas pessoas àqueles que as estão ouvindo falar em sua língua nativa. Em segundo lugar, ele apresenta seus argumentos de apoio extraídos de uma fonte que seus ouvintes consideram confiável: o Antigo Testamento. Em terceiro lugar, ele age de acordo com a própria experiência e dá testemunho do que ele e outros presenciaram. Em quarto lugar, Pedro declara a mensagem básica do evangelho: que Jesus é o Cristo”.12

Proclama o evangelho de Cristo (v. 22-24). Não pode haver mensagem apostólica se não houver proclamação apostólica do evangelho de Cristo. O evangelho é o conteúdo da mensagem cristã. Paulo assim se refere a esse evangelho: “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1.16). Esse evangelho é único e é o mesmo, desde que seja o evangelho apostólico, de acordo com o Novo Testamento. Um evangelho concreto. Observe-se que a pregação apostólica não se prendia tanto a conceitos abstratos, e sim a fatos ocorridos no tempo e no espaço, ou seja, na história humana. Quanto a isso, é importante observar como Pedro combina sua experiência subjetiva com sua compreensão objetiva da verdade revelada, conforme registrado nas Escrituras. Jesus é o Cristo não só porque Pedro testemunhou a ressurreição, mas também porque a ressurreição é o cumprimento das profecias. Da mesma forma, os discípulos estavam agindo de maneira estranha porque haviam experimentado o cumprimento dessas promessas, que anunciavam o derramamento do Espírito Santo. A fé cristã tem como base fatos históricos sobre a pessoa e a obra de Cristo. No entanto, as pessoas também precisam ouvir e

entender as grandes verdades da revelação antes de poder crer em Cristo. Foi assim que os apóstolos proclamaram que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo (2Coríntios 5.19). Os apóstolos ensinavam as doutrinas da morte, da ressurreição e da soberania de Cristo (1Coríntios 15.3,4) e exortavam o povo ao arrependimento e à fé no Senhor (2.38; 3.19). Isso significa que, ao comunicar o evangelho, tanto a verdade proposicional quanto a experiência existencial devem ser entretecidas uma com a outra, como a urdidura de uma tela ou de uma tapeçaria. Experiência sem verdade não tem sentido. Proposições lógicas sem experiências transformadoras são irrelevantes. Um evangelho integral. O evangelho consiste na proclamação das “boas-novas” de forma integral, e isso inclui a ideia de informar as pessoas sobre os atos redentores de Deus por meio de Jesus Cristo, mas também de manifestar o poder do Reino de Deus na vida delas. Em Mateus 10.7,8, Jesus instrui: “Por onde forem, preguem esta mensagem: O Reino dos céus está próximo. Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça; deem também de graça”. O evangelho trata de transmitir às pessoas as instruções de que necessitam para se sentirem abençoadas ao aceitá-lo. Portanto, ao proclamar o evangelho, devemos fazê-lo de forma lógica e racional, com um apelo à consciência e à razão de quem nos ouve. Poderemos errar se fizermos o convite antes de proclamar a mensagem. Cada uma de nossas exortações deve corresponder a um ensino do Reino, pois, do contrário, obteremos conversões vazias. Por isso, é preciso explicar muito bem o plano de salvação (2Timóteo 2.15). No entanto, o ensino (gr. didachē) do

evangelho deve estar acompanhado de ações redentoras de poder (“curar”, “ressuscitar”, “purificar”, “expulsar”). O evangelho é a força de Deus para a salvação integral do ser humano (corpo, alma e espírito). Dá testemunho da ressurreição de Cristo (v. 25-28). O espaço e o interesse que Pedro dedica a seu testemunho da ressurreição de Cristo são impressionantes. O apóstolo refere-se a esse fato como algo muito real e concreto. Dois pontos se destacam aqui. Um fato profetizado. Pedro volta a citar as Escrituras (Salmos 16.8-11), para fundamentar biblicamente seu testemunho sobre a realidade da ressurreição de Cristo. Ao citar esse salmo, Pedro está atestando seu caráter messiânico (v. Paulo em 13.36) e afirmando que ele se refere diretamente a Jesus. Dessa forma, a ressurreição do Senhor era a esperança do salmista e dos crentes do Novo Testamento. A palavra “esperança” (gr. elpídi) não aparece nos evangelhos, mas é usada em Atos para descrever a fé dos crentes na futura consumação das promessas do evangelho (23.6; 24.15; 26.6,7; 28.20). De acordo com Pedro, essa esperança foi plenamente cumprida quando Jesus deixou o túmulo vazio. Paulo usa a palavra com frequência em seus escritos, mas especialmente com relação ao eterno plano redentor de Deus. No v. 27, é feita a menção ao “sepulcro” (gr. háidēn, o lugar dos mortos; equivalente ao hebr. sheol no Antigo Testamento). Assim, de acordo com o v. 27b, Jesus de fato morreu, mas sem sofrer “decomposição” (Salmos 49.15; 86.13), porque ressuscitou. Um fato fundamental. A ênfase de Pedro na realidade da ressurreição não se baseia apenas nas Escrituras e em sua experiência, como testemunha, mas na certeza de que se trata de

um fato fundamental para a fé apostólica. Tudo que aconteceu depois (ascensão, exaltação e derramamento do Espírito Santo) não faria sentido se Cristo tivesse continuado no sepulcro. Sua ressurreição foi o início de um processo de proclamação do evangelho da redenção que agora contava com nada menos que a assistência do Espírito Santo. Também para Paulo, a ressurreição de Cristo é o fato essencial que dá sentido à fé cristã (1Coríntios 15), daí a necessidade de seu testemunho ocupar o centro da mensagem apostólica (1Coríntios 15.12-14). Glorifica a pessoa de Cristo (v. 29-36). A declaração de que Jesus de Nazaré era o Senhor e o Messias caiu como uma bomba entre os judeus e os prosélitos a quem Pedro pregou no Pentecoste. Afirmar isso era blasfêmia para eles, motivo pelo qual Pedro estava tão preocupado em citar passagens do Antigo Testamento como base para suas afirmações. A mensagem apostólica glorifica a pessoa de Jesus Cristo por meio de um anúncio quádruplo, de acordo com a pregação de Pedro no Pentecoste. Anuncia um Cristo vivo (v. 29-32). Ao contrário de Davi, que “morreu e foi sepultado”, mas não saiu da sepultura, Cristo voltou à vida porque “Deus ressuscitou este Jesus”. Não é fácil para nós hoje seguir a análise que Pedro faz desse salmo, porque ele está usando métodos hermenêuticos rabínicos (como faz o autor da carta aos Hebreus). Pedro provavelmente já tinha ouvido na sinagoga esse argumento sobre a vinda do Messias e agora sabia, por experiência, que aquelas palavras proféticas se referiam a Jesus de Nazaré. Assim, Pedro mostra que o salmo 16, embora de alguma forma se refira a Davi (esp. v. 10), não fala apenas dele. Em vez disso, de acordo com o apóstolo, o salmista Davi era um profeta “e sabia que

Deus lhe prometera sob juramento que poria um dos seus descendentes no trono” (v. 30). Os judeus acreditavam que Deus falava por meio dos profetas. Moisés foi chamado “profeta” (Deuteronômio 18.18). No Antigo Testamento, os livros de Josué, Juízes, 1 e 2Samuel e 1 e 2Reis eram conhecidos no cânon judaico como Profetas Anteriores. Após a morte do último profeta, Malaquias, os rabinos entenderam que a revelação havia cessado. É nesse sentido judaico do termo (como autor das Escrituras) que Davi é considerado profeta. Já nos tempos antigos, Deus havia revelado a Moisés (Gênesis 49) que o Messias viria da tribo de Judá. Em 2Samuel 7, Deus revelou que o Messias viria da linhagem real de Davi. No salmo 110, Deus também revela que ele seria da linhagem sacerdotal de Melquisedeque (Salmos 110.4). Além disso, Pedro combina várias citações bíblicas (2Samuel 7.11-16; Salmos 89.34; 132.11) para afirmar que “Deus lhe prometera [a Davi] sob juramento que poria um dos seus descendentes no trono”. Isso mostra que o plano de Deus desde os tempos antigos por fim se cumpriu em Jesus de Nazaré. Sua morte e sua ressurreição não foram um plano de emergência, mas o plano de redenção que Deus predeterminou desde antes da fundação do mundo (Efésios 2.11— 3.13). Portanto, o Messias, o Ungido, não seria apenas filho de Davi e Rei de Israel, mas o Filho de Deus, e se assentaria em seu trono celestial (salmo 110). Essa é a razão pela qual ele ressuscitou. Sua vida não poderia terminar na sepultura nem seu corpo ser corrompido. Cristo vive! Anuncia um Cristo exaltado (v. 33a). O poder de Deus que o tirou do sepulcro foi o mesmo que o exaltou. É interessante que Pedro, mesmo não sendo um teólogo cristão maduro nem tendo ao menos

uma teologia acabada, expresse em seu discurso uma verdade teológica tão importante quanto a doutrina da Trindade. Ele faz isso mencionando as três pessoas divinas nos v. 32 e 33: Jesus (Deus Filho), Deus Pai e Deus Espírito Santo. Embora a palavra “trindade” não apareça na Bíblia, o conceito de um Deus trino e uno é sugerido de capa a capa. Além disso, a Trindade é afirmada ao considerar a divindade de Jesus e a personalidade do Espírito Santo. A Bíblia comunica esse conceito ao mencionar as três pessoas da Trindade em um único contexto (Atos 2.32,33; Mateus 28.19; 1Coríntios 12.46; 2Coríntios 1.21,22; 13.14; Efésios 4.4-6; 1Pedro 1.2). Nesse caso, a associação de Jesus (“este Jesus”) com a recepção “do Pai” (“ele recebeu do Pai”) e com o Espírito Santo prometido explica por que ele foi “exaltado à direita de Deus” (v. 33a). Anuncia um Cristo manifesto (v. 33b). O Cristo vivo continua vivo e presente no meio de seu povo por meio do Espírito Santo, o “outro Jesus”. A experiência do Pentecoste e a de cada crente e da igreja hoje são o verdadeiro testemunho do derramamento de sua presença real por meio do Espírito Santo. Tal manifestação não foi algo abstrato ou imaginário no decorrer dos séculos. Uma história do Espírito Santo mostrará como por toda a história do testemunho cristão o Espírito se manifestou de formas concretas e poderosas entre o povo do Senhor. Cada geração de crentes foi capaz de testificar do que foi visto e ouvido (“o que vocês agora veem e ouvem”, v. 33b). Foi por meio das operações do Espírito Santo que o Cristo vivo não só esteve em estreito contato com os seus, como também operou seu plano redentor através dos tempos. Anuncia um Cristo que é Senhor e Messias (v. 34-36). “Senhor” (Kýrios) refere-se a alguém que tem poder e autoridade. Tanto os

judeus quanto os romanos entendiam dessa forma. Na verdade, “Jesus é o Senhor” é a mais antiga confissão cristã. “Messias” é uma transliteração da palavra hebraica que significa “ungido” e é traduzida para o grego por Cristo (gr. Christós). O nome expressa o vínculo da igreja com o Israel do Antigo Testamento e também a fé que reconhece Jesus Cristo como o Salvador do mundo. A começar pela ressurreição, os primeiros pregadores anunciaram que Jesus era o Messias por designação divina (Romanos 1.3,4).

A REAÇÃO AO ESPÍRITO SANTO (2.37-40)

A obra do Espírito Santo não só encheu os pregadores do evangelho com poder, mas também operou poderosamente no coração dos ouvintes. O tremendo testemunho de Pedro (e dos outros crentes) não poderia ficar sem uma resposta da multidão. O clamor (2.37)

Todos os que ouviram a mensagem apostólica “ficaram aflitos em seu coração” por causa de suas palavras, ao perceber que haviam crucificado aquele a quem Deus havia feito “Senhor e Cristo” (v. 36b). A expressão “aflitos em seu coração” (gr. katenýgēsan tēn kardían; lit., “sentiu o coração perfurado ou traspassado”) traduz um termo grego incomum, que significa “atravessar”, “aguilhoar”, “golpear”. A raiz do verbo é empregada em João 19.34, com relação ao lado perfurado de Jesus. No contexto não bíblico, a palavra refere-se a cavalos batendo com os cascos no chão. Ou seja, a multidão ficou profundamente abalada com as palavras de Pedro. O coração deles foi quebrantado. Em determinado sentido, o discurso de Pedro golpeou (perfurou) seus ouvintes com a verdade do evangelho, ou seja, conduziu-os à necessária convicção de culpa, que o Espírito Santo opera no coração humano e que precede a salvação (João 16.8-11). Foi por isso que expressaram seu sentimento de culpa em uma pergunta desesperada: “Irmãos, que faremos?” (gr. tí poiēsōmen, ándres adelfoí). Observe-se a mudança radical de atitude por parte deles, alguns dos quais zombavam dos crentes antes do discurso de Pedro, dizendo que “beberam vinho demais” (v. 13); agora eles

os chamam “irmãos”. Uma pergunta tão carregada de culpa e angústia como essa exigia uma resposta adequada. É interessante que toda vez que o evangelho do Reino é anunciado no poder do Espírito Santo o resultado seja esse (v. os casos do etíope, 8.34-36; de Cornélio, 10.33; do carcereiro de Filipos, 16.29,30). A resposta (2.38)

A resposta de Pedro foi contundente: “Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado” (gr. Metanoēsate kai baptisthētō hékastos hymōn, v. 38). A propósito, isso exigiu algumas mudanças importantes na vida pessoal de “cada um de vocês”. Mudança de opinião. Pedro disse a eles: “Arrependam-se” (gr. metanoéō, “arrepender-se”, “sentir pesar ou remorso”, “mudar de ideia”). Não se trata de mero remorso ou de sentir e lamentar o pecado cometido, embora a ideia esteja implícita. Tampouco é uma simples admissão intelectual ou racional dos fatos. O arrependimento é uma mudança radical na forma de pensar, que resulta em uma mudança de curso de vida, como consequência de uma mudança nos valores que a sustentam. Trata-se de uma mudança profunda no ser interior da pessoa (em seu “coração”, Romanos 2.5). Para os ouvintes de Pedro, isso significava uma mudança sincera na maneira de pensar a respeito de Jesus de Nazaré, ou seja, deixar de vê-lo como o filho de um carpinteiro ou como um impostor religioso e aceitá-lo como Senhor de sua vida e como o Messias Salvador que fora anunciado. Pedro estava dizendo a eles: “Vocês crucificaram Jesus. Agora devem coroá-lo no coração como Senhor e Messias”. Isso era prioritário e fundamental.

Mudança de associação. Pedro disse a eles: “Cada um de vocês seja batizado” (gr. baptízō, “batizar”; “lavar-se de forma ritual”). O batismo é a expressão visível da mudança interna produzida pelo arrependimento. Ele é secundário e incidental. No entanto, não é um batismo qualquer, pois na época havia vários tipos bem conhecidos de abluções (o batismo dos essênios, o de João Batista, o dos prosélitos judeus). O batismo a que Pedro se refere aqui é identificado como aquele que se realiza “em nome de Jesus Cristo”. A expressão não designa uma fórmula batismal específica, mas indica com quem é firmado o compromisso batismal e a natureza desse batismo. Ou seja, são batizados aqueles que reconheceram que Jesus é o Messias e Senhor. Observe-se a mudança de número de “arrependam-se” (plural; v. RVR, BJ, BA) para “seja batizado” (singular; v. RVR, BJ) e de pessoa (da segunda para a terceira). De acordo com Archibald T. Robertson, “essa mudança marca uma ruptura no pensamento aqui”, que muitas traduções não preservam.13 A primeira coisa que todos devem fazer é uma mudança radical e completa no coração e na vida. Em seguida, cada um deve ser batizado depois que essa mudança ocorrer, e o ato do batismo deve ser realizado “em nome de Jesus Cristo”, de acordo com o próprio mandamento de Jesus (Mateus 28.19). O uso de “nome” (ónoma) significa “no nome”, ou seja, na autoridade daquele que é nomeado. Charles C. Ryrie: “Uma vez que o batismo significa associação com a mensagem, com o grupo ou com a pessoa relacionada com sua autorização, o batismo em nome de Jesus Cristo significava para aquelas pessoas romper os laços com o judaísmo e associar-se às mensagens de Jesus e de seu povo. O batismo era a linha de demarcação. Ainda hoje, para um judeu, não é a profissão do cristianismo, nem a frequência aos serviços cristãos, nem a aceitação do Novo Testamento que o excluem definitivamente da

comunidade judaica e o apontam como cristão, e sim a submissão às águas do batismo”.14

Mudança de identidade. Pedro disse a eles: “[...] em nome de Jesus Cristo” (gr. epì tōi onómati Iēsoū Christoū). Essa expressão idiomática provém do aramaico e reflete Joel 2.32. Refere-se à pessoa ou ao caráter de Jesus. Ser batizado em seu nome expressa simbolicamente a identificação total do crente com ele, especialmente com sua morte e ressurreição. É possível que na igreja primitiva a fórmula batismal repetida pelo catecúmeno no momento do batismo fosse: “Creio que Jesus é o Senhor” (Romanos 10.9-13). Essa era uma declaração teológica e uma expressão de confiança pessoal nele. Na grande comissão (Mateus 28.19,20), encontramos a fórmula trinitária, que, ao longo dos séculos e até o presente, tem sido a mais utilizada. Em todo caso, devemos ter cuidado para não cair no sacramentalismo e pensar que a eficácia do batismo depende da fórmula teológica utilizada, ou seja, se alguém é batizado apenas “em nome de Jesus” ou “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O mais importante não é o título nem a forma, e sim o coração de quem é batizado. Mudança de condição. Pedro disse a eles: “[...] para perdão dos seus pecados” (gr. eis áfesin tōn hamartiōn hýmōn). A expressão “para perdão dos seus pecados” merece uma explicação, pois tem sido objeto de controvérsias sem fim, caso seja interpretada de forma sacramentalista ou evangélica. Por si mesmas, as palavras podem expressar uma finalidade, porque esse é o uso da preposição grega eis em 1Coríntios 2.7 (“para a nossa glória”) e em inúmeras outras passagens do Novo Testamento. No entanto, em Mateus 10.41,42 (eis ónoma profētou […] díkaion […] mathētoū), a

preposição não encerra a ideia de finalidade, mas se refere à base, ao fundamento ou à razão de algo (“porque ele é profeta’’; “porque ele é justo”; “porque ele é meu discípulo”).Ou seja, se alguém “receber” determinados tipos de pessoas, “não perderá a sua recompensa”. Em Mateus 12.41, a mesma preposição é usada nesse sentido. Os ninivitas se arrependeram “com a [por causa da] pregação de Jonas”. Em suma, a interpretação depende da vertente teológica do intérprete, ou seja, se ele acredita que o batismo é essencial para a remissão dos pecados ou não. De minha parte, creio que a expressão não afirma que o perdão dos pecados seja fruto da prática do batismo, já que todo o Novo Testamento ensina que os pecados são perdoados pela fé em Cristo. A preposição “para” (gr. eis) significa “por causa de” (v. Mateus 10.41,42; 12.41). Por isso, creio que Pedro aqui exige o batismo de todos os que já haviam se arrependido e crido e indica que seja feito em nome de Jesus Cristo com base no perdão dos pecados, que já haviam recebido dele. Mudança de vida. Pedro disse a eles: “[...] e receberão o dom do Espírito Santo” (gr. kaì lēmpsesthetēn dōrean toū hagíou pneúmatos). A expressão é muito rica em significado. O dom em questão consiste (8.17) no Espírito Santo (genitivo de identificação). No entanto, o dom não é apenas a pessoa do Espírito: é também tudo que o Espírito opera na vida de quem o recebe. A primeira tarefa do Espírito Santo na vida de uma pessoa é a regeneração, ou seja, o Espírito opera o novo nascimento. É isso que significa “nascer do Espírito” (João 3.5-8). Ninguém pode ser crente se não tiver o Espírito Santo, e se alguém recebeu o Espírito é porque é crente. É o Espírito quem dá testemunho ao nosso espírito de que

somos filhos de Deus (Romanos 8.16), e ninguém pode dizer que Cristo é o Senhor, a não ser pelo Espírito (1Coríntios 12.3). O Espírito Santo é “a promessa” feita por Jesus (1.4), que Deus também fez por meio de Joel (v. 18) aos judeus e a seus descendentes (v. 17). Observe-se que os gentios (“os que estão longe”) estão incluídos nessa promessa (v. Isaías 49.1; 57.19; Efésios 2.13,17). Dessa forma, Deus convida à salvação todos os seres humanos, de todas as nações, onde quer que estejam, sejam eles judeus ou gentios. Pedro provavelmente não entendia o alcance dessas palavras na época, pois mais tarde teve de mudar de ideia a respeito disso (9.43; 10.1-48). A exortação (2.39,40)

As palavras que provavelmente encerram o discurso de Pedro no Pentecoste são de uma dramaticidade enorme: “Salvem-se desta geração corrompida!” (gr. sōthēte apò tēs geneās tēs skoliās taútēs, v. 40b). A ideia que torna esse convite um apelo urgente é que aquela geração perversa estava se precipitando no abismo. O apóstolo, portanto, convida os que não querem perecer com ela a sair do meio daquela gente para ser um povo separado. Esse convite também é válido para nós hoje, se quisermos um avivamento nestes tempos do fim. O povo de Deus deve ser um povo separado. A igreja deve viver separada do mundo, ou seja, dessa ordem de realidade que se opõe à vontade de Deus, e deve fazê-lo por dois motivos: para a salvação do mundo e para o serviço de Deus. Paulo, escrevendo aos coríntios e citando as Escrituras, aconselha: “Saiam do meio deles e separem-se [...]. Não toquem em coisas impuras, e eu os receberei” (2Coríntios 6.17). Uma religião

mundana jamais causará impacto em um mundo endurecido pelo pecado. Crentes transigentes jamais inspirarão um mundo ímpio a buscar a Deus. Certa vez, um fervoroso budista falava a uma grande plateia na Índia, quando percebeu a presença de muitos cristãos. De repente, ele declarou: “Se vocês, cristãos, vivessem como Cristo, muito em breve a Índia estaria aos pés dele”. Para que as nações do mundo sejam de fato levadas aos pés do Rei dos reis e Senhor dos senhores, nós, cristãos, devemos primeiramente estar prostrados aos pés de Cristo. Pedro implorou aos que ouviram sua mensagem no dia de Pentecoste que se salvassem de uma geração corrompida para alcançar a salvação e para que também aquela geração ímpia tivesse um exemplo e ouvisse um testemunho acerca do Reino. Portanto, se quisermos ser instrumentos na salvação de uma geração ímpia, devemos ser salvos dessa geração. Antes que um avivamento final venha sobre todo o planeta, devemos deixar o mundanismo e viver uma vida diferente. O que caracteriza essa vida diferente? Separação do pecado. Para ter um avivamento hoje, é preciso separar-se do pecado. O clamor no v. 38 é: “Arrependam-se [...] cada um de vocês”. A separação do pecado é difícil, mas necessária, se quisermos um avivamento hoje. Muitos não querem ser diferentes do mundo, por isso nossas igrejas estão frias e sem paixão pelas almas. Por que devemos nos separar do pecado? O pecado é fatal. A separação do pecado é um imperativo absoluto para um serviço eficaz (2Coríntios 6.17). O pecado é o que separa o homem de Deus e o incapacita para seu serviço (Isaías 59.2). O pecado não é um mito, mas uma terrível realidade. Por

isso, Paulo admoesta: “Odeiem o que é mau” (Romanos 12.9). Infelizmente, em muitas igrejas evangélicas da América Latina a palavra “pecado” nem é mais mencionada, porque alguns a consideram de mau gosto. São poucos os sermões que denunciam com clareza o pecado e exortam os ouvintes ao arrependimento. Bem diz o ditado popular que “quem cala consente”, e é isso que está acontecendo hoje em nossas comunidades com relação ao pecado. Parece que, quanto mais pecado, menos são os que se arrependem. O pecado paralisa. Um dos maiores perigos, se não o mais grave que ameaça as nossas igrejas, é que o chamado para viver uma vida consagrada e longe do pecado não está sendo levado a sério. No entanto, essa exigência diz respeito a todos nós que confessamos Cristo como Senhor. “A promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar” (v. 39). Muitos pensam que não há razão para nos separarmos do mundo, por acreditarem que o mundo ao nosso redor é cristão e amigo ou pelo menos não nos persegue. A Bíblia, porém, diz o contrário: “Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12.2). Adolf von Harnack, proeminente estudioso do século XIX, afirma: “Nunca a igreja teve tanta influência no mundo como quando foi separada do mundo”. Sem dúvida, por terem se conformado com o mundo, muitos não se diferenciam do mundo como filhos de Deus. O mundo infiltrou-se em nossas fileiras. Devemos, portanto, atentar outra vez para a admoestação divina que nos incita a ser “puros e

irrepreensíveis, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e depravada” (Filipenses 2.15). A denúncia contra o mundo. Para haver um avivamento hoje, é necessário denunciar o mundo. A principal razão pela qual há tanto mundanismo em nossas igrejas hoje é que não há uma atitude firme contra ele. Não estamos denunciando o mundo e seus pecados, e nisso todos somos responsáveis. Os líderes são responsáveis. Pedro denunciou com firmeza e coragem os pecados do povo em sua mensagem no Pentecoste, e houve arrependimento. A Bíblia exorta os líderes do povo de Deus a cumprir esse ministério (Isaías 58.1). Portanto, o primeiro responsável pela frieza de uma igreja é o pastor ou a liderança. Contudo, também é verdade que cada crente é responsável. De acordo com o Novo Testamento, a igreja não é só o líder, mas um corpo com muitos membros. A Bíblia exorta os crentes a lutar contra o pecado e a aceitar a disciplina ao cometê-lo (Hebreus 12.4). Ela também nos exorta a aceitar a disciplina do Senhor (Hebreus 12.5,6). Portanto, todo crente ou membro de igreja é responsável pela frieza desta. É hora de mudar essa situação de uma vez por todas em nossas igrejas. Devemos ser capazes de desenvolver uma santa intolerância ao pecado, ao mesmo tempo que amamos o pecador e o convidamos ao arrependimento. A proclamação da mensagem. Para que haja um avivamento hoje, é necessária a proclamação de uma mensagem clara e firme. Pedro, em seu sermão, exortou insistentemente o povo “com muitas outras palavras” (v. 40). Não é suficiente nos separarmos do pecado e denunciá-lo. É preciso proclamar a mensagem positiva do evangelho com toda a integridade. Devemos proclamar a

mensagem de Deus com espírito de obediência (Isaías 61.1-3). É uma mensagem de alegria, liberdade, esperança e salvação. Contudo, também devemos proclamar a mensagem de Deus com espírito de luta. Nossa pregação deve estar envolvida em uma nota de urgência. Nossa proclamação deve ter a paixão e o entusiasmo de quem sabe o que está pregando e como isso é importante para o bem de todos. Não há maneira pela qual o mundo possa ser transformado, a não ser por meio do evangelho de Jesus Cristo. A consagração ao Senhor. Para se ter um avivamento hoje, é preciso que haja consagração ao Senhor. Isso está explícito em nosso texto: “Os que aceitaram a mensagem foram batizados, e naquele dia houve um acréscimo de cerca de três mil pessoas. Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações” (v. 41,42). Era o calor radiante de corações totalmente consagrados que conferia eficácia à vida, à pregação e ao serviço dos primeiros cristãos. Como era a consagração deles ao Senhor? Era total (v. 41). Não há outra maneira de obter convicção e segurança. Ou estamos dentro do Reino de Deus ou estamos fora. Ou vivemos sob o senhorio de Cristo ou estamos expostos aos ardis do príncipe deste mundo. Ou entregamos totalmente a vida ao Senhor ou nada teremos. Cristo não se contenta com apenas uma parte do que comprou integralmente ao preço de seu precioso sangue. Conta-se que uma mulher cristã, nos piores tempos de  perseguição na China comunista, estava prestes a ser executada, quando as testemunhas a ouviram dizer a seus algozes: “Não precisam chorar por mim. Eu sei por que eu morro. Mas vocês sabem para que vivem?”.

Era incondicional (v. 42). Percebe-se isso observando a vida e o testemunho dos primeiros cristãos. Podemos recolher ao longo da história do cristianismo experiências de homens e mulheres que procederam da mesma forma. Suas ações eram um reflexo de sua consagração incondicional ao Senhor. Não tem valor para o Reino de Deus a proposta de determinados candidatos a discípulos de Jesus: “Eu te seguirei, mas [...]”. Submeter-se ao senhorio de Cristo significa estar disposto a obedecer-lhe em tudo. Deus está conclamando seu povo hoje para a maior consagração que esta geração já conheceu. Deus está nos chamando, nos recrutando e nos enviando para salvar o mundo da condenação. A salvação do mundo ainda não se consumou, apenas começou. Ainda há milhões de perdidos vivendo nas trevas da horrível morte do pecado. Eles precisam do evangelho que o Senhor nos mandou pregar. Essa imensa multidão de homens e mulheres a caminho do inferno deve nos motivar a viver uma vida purificada do pecado, a lutar sem trégua contra ele, a pregar a mensagem de salvação e a nos dedicar totalmente à tarefa.

A COMUNIDADE DO ESPÍRITO SANTO (2.41-47)

A igreja de Jesus Cristo está crescendo de maneira maravilhosa em muitas partes do mundo e particularmente na América Latina. Em alguns casos, o crescimento tem sido explosivo, mas, quando a igreja cresce rapidamente, há o risco de cair em certa superficialidade, que tende a fazer dos resultados obtidos fenômenos meramente temporários. Em outros casos, a igreja não está crescendo. Pelo contrário, em algumas partes do mundo parece estar perdendo sua influência. A respiração é irregular, o crescimento é interrompido e a vitalidade espiritual encontra-se estagnada. As igrejas nessa situação precisam de uma urgente renovação espiritual. Hoje muito se fala em renovação da igreja. Fala-se de renovação espiritual, de renovação teológica, de renovação litúrgica, de renovação estrutural, de renovação carismática e até mesmo de renovação pastoral. Na verdade, a igreja de Jesus Cristo hoje precisa ser renovada em todas as dimensões de sua vida e ministério. No entanto, alguns crentes têm uma visão tão estreita que buscam apenas uma renovação parcial, não de toda a vida e ministério da igreja. Além disso, todos concordamos que essa renovação é impossível sem a poderosa obra do Espírito Santo. Portanto, a questão fundamental é: como é uma igreja renovada pelo Espírito Santo? Quais são as evidências da presença e do poder do Espírito Santo em uma igreja autenticamente renovada? E o mais importante: minha igreja é uma igreja renovada pelo Espírito Santo?

A resposta a essas perguntas se encontra em Atos 2.41-47, onde Lucas descreve a igreja de Jerusalém, a primeira igreja cristã, aquela em que pela primeira vez o Espírito Santo encheu o corpo de Cristo com seu poder. A igreja de Jerusalém é paradigmática como modelo e ilustração de uma comunidade de fé renovada pelo Espírito Santo. O retrato dessa igreja local (igreja da cidade) em Atos 2.41-47 é mais que eloquente no incentivo a que hoje a imitemos. Com base na descrição de Lucas, aprendemos que uma igreja cheia do Espírito Santo é aquela que manifesta: 1) as experiências de uma igreja renovada; 2) as características de uma igreja renovada; 3) as relações de uma igreja renovada. As experiências de uma igreja renovada

No impressionante testemunho de Lucas sobre as experiências da comunidade dos crentes nessa passagem, várias questões se destacam. Por viver a experiência cristã como comunidade do Espírito Santo, oito resultados foram obtidos desse tipo de comunhão. Todos foram batizados (v. 41). Observe-se que o batismo não era opcional, nem uma espécie de aquisição meritória ou a recompensa por uma decisão de fé, tampouco uma improvisação ou evento casual. O texto diz: “Os que, [pois]” (gr. hoi mèn oūn), que é uma frase comum em Atos, tanto sem antítese (1.6; 5.41; 8.4,25; 9.31; 11.19; 16.5) quanto com antítese (8.25; 13.4; 14.3; 17.17; 23.31; 25.4). A partícula oūn conecta-se com o precedente, como resultado do sermão de Pedro, enquanto mèn aponta para o que se segue. Quem foi batizado? O texto diz claramente: “Os que aceitaram a mensagem [...]” (gr. apodexámenoi tòn lógon autoū), ou seja, todos

os que, arrependidos de seus pecados, reconheceram Jesus como seu Messias e Senhor. O verbo apodexámenoi está no particípio aoristo médio do verbo apodéchomai (“acolher com agrado”; “receber”, “aceitar”). Há três usos característicos desse verbo: 1) dar as boas-vindas a uma pessoa; 2) aceitar algo ou alguém como verdadeiro e corresponder de maneira apropriada; 3) reconhecer a verdade ou o valor de algo ou de alguém.15 Lucas usa essa palavra com frequência (Lucas 8.40; 9.11; Atos 2.41; 18.27; 24.3; 28.30). O evangelho é uma Pessoa que deve ser bem-vinda à vida de alguém, a verdade que deve ser crida sobre essa Pessoa e uma vida como a que essa Pessoa viveu. Os três aspectos são cruciais. Por que foram batizados? Esse batismo não foi um rito de iniciação ou de purificação, mas um testemunho obediente de sua experiência de fé. O batismo de todos os que creram foi o primeiro passo lógico de obediência ao Senhor, uma vez que cada um assumiu o compromisso de fé e de segui-lo. Atos ilustra com vários casos essa sequência imediata de conversão e batismo (os convertidos em Samaria, 8.14-17; o etíope, 8.35-39; Saulo, 9.17,18; Cornélio e sua família, 10.44-48; o carcereiro e sua família, 16.3033). O fato de que todos “foram batizados” (gr. ebaptísthēsan), ou seja, imersos na água, indica que os batizados eram crentes e adultos que aceitaram o batismo com responsabilidade. Isso provavelmente aconteceu em um dos vários tanques que ficavam perto do complexo do templo, como o tanque de Betesda ou o de Israel. O que aconteceu com os batizados? O texto diz que com os batizados “houve um acréscimo” (gr. Prosetéthēsan; lit., “foram agregados ou adicionados”) à igreja. Isso significa que “cerca de

três mil pessoas” (número redondo) se juntaram aos 120 crentes já arrolados. Não é dito se foram batizadas por Pedro ou pelos Doze, nem mesmo se todos foram batizadas no mesmo dia, embora seja isso o que a linguagem utilizada parece indicar (o batismo ocorreu “naquele dia”, gr. en tēi hēmérai ekeínēi). Convém lembrar que o batismo não era um rito regular ou obrigatório na religião judaica. Os prosélitos se batizavam, mas o batismo não era exigido dos judeus. Portanto, o batismo em massa no Pentecoste foi uma experiência nova para a cidade e atraiu muita atenção. Todos sabiam do batismo de João e talvez soubessem também que Jesus foi batizado por ele. Além disso, para os primeiros discípulos o batismo era uma ordenança de Jesus para todos os seus seguidores (Mateus 28.19; Marcos 16.16). O Novo Testamento não admite a possibilidade de crentes não batizados. Com isso, houve uma ruptura com o judaísmo e o início de um novo povo de Deus. Por ser um ato de testemunho público, o batismo não só anunciava a fé do catecúmeno (Jesus é o Messias e Senhor), mas também a integração e o compromisso com a comunidade de fé, a igreja. A ação foi um verdadeiro salto de fé e de responsabilidade. Todos permaneceram firmes (v. 42). Todos “se dedicavam” (gr. ēsan proskartyroūntes) está no imperfeito, o que indica uma ação contínua e persistente. Lucas usa esse conceito com frequência (1.14; 2.42,46; 6.4; 8.13; 10.7). Lucas registra em detalhes as áreas em que esses crentes manifestavam sua fidelidade firme e persistente. Ao fazer isso, descreve as quatro colunas que servem de suporte à igreja de Jesus Cristo. Essas quatro práticas devem ser ensinadas aos novos crentes, ao mesmo tempo que devem ser convidados a participar ativamente delas. Os novos crentes

pentecostais estavam famintos pela verdade e por participar da comunhão dos santos. No ensino dos apóstolos. Beirando a obsessão, os primeiros crentes dedicavam-se a absorver o máximo possível dos ensinos dos apóstolos (gr. tēi didachēi tōn apostólōn). Isso se refere tanto à atividade pedagógica dos Doze quanto ao conteúdo das instruções que eles transmitiam. Embora Lucas não especifique o conteúdo desse ensino, certamente incluía o kērygma, que sintetizava as obras, as palavras e as promessas de Jesus, o Messias (cf. 2.42; 4.2,18; 5.21,25,28,42).16 Na comunhão. No v. 42, há três expressões mais ou menos claras e uma ambígua. Trata-se da “comunhão” (gr. tēi koinōníai). Várias interpretações foram propostas para o termo nesse contexto. De acordo com alguns estudiosos, koinōníai é uma forma grega que, nesse caso, pode ser traduzida por “comunidade de bens”, ou seja, compartilhar com todos tudo que se tem (cf. v. 44). Jacques DuPont faz uma análise literária minuciosa do termo, o que nos permite esclarecer as nuances com que Lucas descreve o fato surpreendente da comunidade de bens na igreja primitiva.17 A interpretação mais tradicional e aceita indica que o termo se refere à relação interpessoal de amor que une os crentes. Como tal, essa comunhão é o resultado da obra do Espírito Santo nos crentes. É ele quem promove o amor fraternal e produz a unidade “pelo vínculo da paz” (Efésios 4.3). Outros entendem que se refere à ceia do Senhor como ato essencial da comunhão cristã (1Coríntios 10.16), no sentido de participação mútua na refeição comum, o agápē (festas de amor fraterno). Em todo caso, essa comunhão está relacionada com a participação de todos os crentes na vida litúrgica

da igreja e na partilha dos bens comuns. A koinōnía é o âmbito no qual os crentes, na oração, expressavam sua comunhão com os apóstolos e sua unidade uns com os outros no serviço cristão. Como tal, expressa o que os crentes têm em comum e o que compartilham com os outros.18 O vocábulo koinōnía, assim como o conceito que representa, é muito variado no Novo Testamento. Em suas páginas, podemos ver a koinōnía como comunhão (2.42); como sinal de companheirismo (Gálatas 2.9); como coleta (Romanos 15.26); como participação nos sofrimentos de Cristo (Filipenses 3.10); como solidariedade generosa (2Coríntios 9.13); como o ato de repartir (Hebreus 13.16); como comunhão com Jesus Cristo (1Coríntios 1.9); como ter comunhão (1João 1.3,6,7); como a comunhão do Espírito (2Coríntios 13.13,14); como comunhão com o sangue de Cristo (1Coríntios 10.16); como comunhão no Espírito (Filipenses 2.1); como o companheirismo que brota da fé (Filemom 6); como o privilégio de participar (2Coríntios 8.4); como cooperação no evangelho (Filipenses 1.5); como comunhão da luz com as trevas (2Coríntios 6.14). No partir do pão. A expressão (gr. tēi klásei toū ártou) provavelmente se refere à ceia do Senhor. Alguns entendem que se trata de uma refeição comum, como em Lucas 24.35, já que o mesmo verbo (gr. kláō) é usado com relação ao partir do pão em uma refeição comum (Lucas 24.30) ou à ceia do Senhor (Lucas 22.19). Archibald T. Robertson: “Geralmente se supõe que os primeiros discípulos davam muita importância ao partir do pão nas refeições normais, muito além de nossa oração de agradecimento, e que no início eles esticavam a refeição com a celebração da ceia do Senhor, uma combinação chamada agapai, ou

‘festas de amor’. Não há dúvida de que a eucaristia nesse tempo era precedida invariavelmente de uma refeição comum, como era o caso quando a ordenança foi instituída. Isso levou a alguns abusos, como em 1Coríntios 11.20. Portanto, é possível que aqui se faça referência à ceia do Senhor após uma refeição normal”.19

Na oração. A expressão (gr. taīs proseuchaīs) é ambígua, mas com certeza se refere tanto à oração coletiva ou comunitária quanto à oração privada. Não há na igreja atividade mais relevante, uma vez que a oração (comunhão com Deus) é a fonte de poder e de autoridade para qualquer outra ação em que a comunidade de fé esteja envolvida. Infelizmente, é um aspecto da vida da igreja que tem sido bastante negligenciado no cotidiano de muitas assembleias cristãs. Muito se fala sobre oração, embora muito pouco ela seja praticada. No entanto, em anos mais recentes (desde a década de 1970), graças à enorme influência da espiritualidade evangélica coreana (cultos diários de oração matinal, montanhas de oração etc.), vários movimentos e ministérios de oração surgiram nos níveis regional e global. Todos estavam cheios de temor (v. 43). Algo que não era de admirar. As coisas que se viam e ouviam todos os dias eram surpreendentes, e não havia antecedentes para elas. Na frase “todos estavam cheios de temor” (gr. egíneto dè pásēi psychēi fóbos, v. 43), o verbo está no médio imperfeito, ou seja, eles continuavam a se espantar. O povo não deixava de se admirar, enquanto as maravilhas e os sinais se sucediam in crescendo, operados pelos apóstolos. Esse “temor” reverente (gr. fóbos) era uma emoção perfeitamente normal e saudável nos crentes (1Pedro 1.17; 2.17). Nesse caso, o espanto foi motivado pelos muitos sinais e maravilhas que os apóstolos realizavam. A presença e o poder de

Deus foram a causa desse ambiente de admiração, que levou até pessoas não convertidas a perceber o momento sagrado e transcendente que estavam vivenciando. Todos permaneciam juntos (v. 44a). Lucas registra que “os que criam mantinham-se unidos” (gr. pántes hoi pisteúontes ēsan epì tò autò). A frase tem conotação espacial, ou seja, eles estavam juntos no mesmo local que em 2.1. O motivo por trás dessa associação e de tanto companheirismo é que eles “criam”, ou seja, haviam recebido a Palavra pregada por Pedro e pelos apóstolos. Esses crentes depositaram sua fé em Jesus e agora, como discípulos dele, estavam fazendo o possível para ficar juntos em um só lugar. O que complicou essa disposição para se ajuntar foi o rápido crescimento da comunidade de fé. Talvez no início tenha sido possível reunir todos eles em um único ponto de encontro, no lugar mais aberto do complexo do templo, que era o pátio dos gentios. Aos poucos, porém, eles tiveram de se distribuir pelas casas dos fiéis da cidade, enquanto muitos voltavam a seus lugares de origem e ali abriam novas comunidades de fé. Todos tinham tudo em comum (v. 44b,45). Lucas informa que eles “tinham tudo em comum” (gr. eījon hápanta koinà). Essa afirmação revela a profunda preocupação que os primeiros convertidos sentiam diante das necessidades alheias. Seguiam o exemplo de Cristo, “que, sendo rico, se fez pobre [...] para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos” (2Coríntios 8.9). Ao mesmo tempo, trata-se de uma rejeição ao egoísmo individualista, que reivindica o interesse pessoal como prioridade sobre qualquer outra coisa.

A prática. Sem dúvida, muitos dos peregrinos que vieram a Jerusalém para a festa e se converteram no dia de Pentecoste decidiram ficar na cidade para aprender um pouco mais sobre o caminho cristão. Isso criou necessidades econômicas, de hospedagem e de alimentação que eram prementes no momento e que precisavam ser atendidas de alguma forma. Não há evidência de que esse “estar junto”, “ter tudo em comum” e “compartilhar comida” tenha sido uma prática regular e dilatada no tempo (exceto o incidente em 5.1-11). Tudo parece indicar que foram medidas emergenciais. Além disso, o experimento inicial da “comunidade de bens” não foi de todo bem-sucedido ou pelo menos não se sustentou por muito tempo (4.32—5.11). Aliás, Lucas não registra essa prática como uma espécie de princípio universalmente aplicável, e sim como uma tentativa de resolver uma situação de emergência com uma atitude de fé e de amoroso cuidado mútuo. Seja qual for o caso, é um excelente exemplo de como uma comunidade de fé, sob a orientação do Espírito Santo, pode lidar com situações de emergência social. Esses primeiros cristãos tinham grande amor uns pelos outros e sabiam como expressá-lo de maneira prática. A aplicação. Estamos precisando urgentemente desse tipo de amor prático nas igrejas evangélicas da América Latina, especialmente em contextos de grande necessidade causada por crescente pobreza, falta de emprego, precariedade sanitária e educacional, migração forçada de pessoas, violência, e assim por diante (João 17.11,21-23). Contudo, é preciso esclarecer que a comunidade de bens dos primeiros cristãos não deve ser entendida em sentido jurídico, como uma espécie de condomínio (4.32). Seu

significado genuíno implica apenas que o legítimo dono considera sua propriedade como um patrimônio cuja administração ele simplesmente controla, e que os irmãos necessitados podem solicitar o que precisam, como se lhes pertencesse. Quanto a isso, pode-se dizer que esse tipo de koinōnía cristã ultrapassa o conceito de ofertas, de simples esmola ou de assistencialismo. No v. 45, lemos que eles estavam “vendendo suas propriedades e bens”. Esse fato marca a tônica ativa do início da koinōnía. No entanto, a afirmação de Lucas é na verdade uma generalização, porque nem todos se desfizeram de seus bens com integridade, como o próprio escritor registra (5.1-11). Contudo, devemos ter cuidado para não minimizar o fato. Na verdade, de acordo com 6.1, uma espécie de “serviço diário” foi logo organizado, especialmente a favor das viúvas. Isso implica não só uma organização prévia da própria comunidade, mas também o elevado preço de uma caridade generosa e desinteressada. Além disso, está esclarecido que a participação nos recursos era “conforme a sua necessidade” (v. 45b). Essa frase, por sua vez, determina o significado dessa comunidade de bens. A koinōnía não era simples renúncia ascética, nem fruto da espera escatológica. Pelo contrário, era um ato de solidariedade fraterna e um ideal de caridade que se erigia sobre novas bases — o ideal de amizade e de solidariedade de determinados povos antigos, como os gregos. No entanto, a verdadeira explicação dessa koinōnía cristã primitiva é dada em Atos 4.32: “Uma era a mente e um o coração”. Esse testemunho de Lucas mostra que, nas primeiras assembleias cristãs, havia uma harmonia perfeita e plena união de espírito e que, como é dito na continuação do versículo, essas características

comunais eram o suporte genuíno da koinōnía. Ou seja, a comunidade de bens era determinada, em todos os sentidos, por uma comunhão generosa de todos os crentes, com base na fé em Cristo. Todos estavam comprometidos (v. 46,47a). A igreja primitiva era caracterizada por sua unidade de propósito (1.14; 2.46; 4.24; 5.12). Isso não significa que todos pensassem a mesma coisa ou que concordassem absolutamente em tudo, mas que o coração e a mente de todos estavam de tal forma entrelaçados nas prioridades e nos valores do Reino de Deus que as preferências e as agendas pessoais eram deixadas de lado. Isso é visto no hábito de se encontrarem “todos os dias” (gr. kath’ hēméran). Essas reuniões diárias aconteciam em dois cenários muito particulares. No templo (v. 46a). De acordo com o registro de Lucas, “no [...] templo” (gr. en tōi hierōi). Provavelmente, o local de encontro específico no monte do templo foi o pórtico de Salomão (3.11; 5.12), sobre o muro oriental do complexo do Templo, que fica de frente para o monte das Oliveiras. Jesus havia ensinado ali (João 10.23). Tratava-se de uma extensa linha de colunas cobertas localizada no lado leste do pátio dos gentios, no templo de Herodes.20 Os rabinos ensinavam ali, e era um lugar grande, que podia acolher um grande número de pessoas para ouvir seus ensinos. Devemos ter em mente que os primeiros cristãos eram judeus que frequentavam o templo e também as sinagogas, pelo menos até os rabinos instituírem uma fórmula de maldição e exclusão (por volta do ano 70) que obrigava os membros das sinagogas a amaldiçoar Jesus, que foi a causa da ruptura entre a igreja e o judaísmo. Os primeiros cristãos mantiveram sua adoração semanal, mas, em vez de se

reunirem no sábado, passaram a fazê-lo no domingo, para comemorar a ressurreição de Jesus. Nas casas (v. 46b). De acordo com o registro de Lucas, “partiam o pão em casa” (gr. klōntés te kat’ oīkon árton). É provável que “partiam o pão” seja uma expressão técnica para se referir à ceia do Senhor (Lucas 22.19), especialmente, como já se demonstrou, no contexto das refeições fraternas ou “festas do amor fraternal” (20.7; 1Coríntios 11.17-22; 2Pedro 2.13,14; Judas 12) da igreja primitiva. Contudo, a expressão não deixa de ser também uma referência à comunhão cotidiana à mesa compartilhada nas casas dos crentes (Lucas 24.30,35). Essa prática, tão bem documentada por Lucas, lança por terra todo o dogmatismo denominacional em torno da ceia do Senhor. Há denominações que celebram a ceia todos os domingos, uma vez por mês ou uma vez por ano, e afirmam ter base bíblica para isso. Outros defendem, com argumentos semelhantes, a prática da comunhão restrita, semiaberta ou aberta. Há quem não compartilhe a ceia com quem não seja membro “em plena comunhão” de uma congregação em particular, o que é um eufemismo sem sentido bíblico ou teológico. Para outros, a ceia só pode ser presidida e administrada por um pastor ordenado (não por uma mulher). Tem de ser com vinho (suco de uva fermentado) ou qualquer outro líquido e com pão cozido ou qualquer outro elemento feito com farinha. Alguns afirmam que a ceia é somente para os batizados, os adultos, e só pode ser celebrada dentro do templo. Muitas igrejas evangélicas cometem o erro de vetar a participação na ceia como forma de disciplina ou de exclusão (excomunhão). A maior parte das tradições dogmáticas denominacionais são

invenções humanas, sem relação alguma com a prática dos primeiros cristãos. Na unidade (v. 46c). A unidade dos crentes encontra expressão tangível na participação cotidiana à mesa da comunhão, ou seja, no “partir do pão” e nas “orações” (v. 42). De modo especial, o partir do pão demonstrava vividamente a unidade essencial dos crentes no plano social. Se fosse possível tirar uma fotografia do encontro em torno da mesa das refeições comunitárias e da celebração da ceia do Senhor, a imagem seria eloquente. Ao redor da mesa, símbolo universal da família unida e da amizade sincera, estavam pessoas de diversos níveis de educação, cultura, raça, condição econômica e relevância social. De forma dramatizada, partir o pão em comum significava que em Cristo não havia Oriente nem Ocidente, servo ou livre, homem ou mulher, judeu ou gentio, porque todos eram um nele.21 Tudo isso eles faziam “com alegria e sinceridade de coração” (gr. en agalliásei kaì afelótēti kardías; lit., “com alegria e simplicidade de coração”). Santos Yao: “À primeira vista, a descrição da igreja de Jerusalém assemelha-se à das seitas judaicas contemporâneas, como os essênios. No entanto, um exame mais cuidadoso revela seu caráter distintivo. A comunhão à mesa na igreja de Jerusalém é singularmente inclusiva. Pecadores, cobradores de impostos e pessoas marginalizadas da periferia da sociedade judaica descobriram sua aceitação incondicional à mesa de comunhão da igreja. Na participação cotidiana nas refeições ‘de casa em casa’, não apenas foram derrubadas as barreiras sociais, mas também as econômicas, que antes separavam os ricos dos destituídos (2.46)”.22

No louvor a Deus (v. 47a). De acordo com o registro de Lucas, “louvando a Deus” (gr. ainoūntes tòn theòn). O compromisso dos primeiros crentes no louvor coletivo ao Senhor estabelecia uma grande diferença quanto ao que os judeus normalmente faziam no

templo, uma vez que a adoração ali era mais individual e íntima. No caso dos crentes, a atitude corporativa no louvor não ocorria apenas nas casas, onde seria mais lógico, mas também no templo, mesmo quando os crentes compareciam em massa ao local para juntos louvarem a Deus. O verdadeiro louvor a Deus é sempre comunitário. O grato reconhecimento por quem ele é e por sua obra redentora não é fruto de uma soma de solistas, e sim de um coro polifônico que, com alegria e singeleza de coração, exalta seu nome acima de todos os outros nomes. Isso é típico do louvor evangélico a Deus na América Latina, onde a perfeição musical (hinários com partitura e polifonia harmonizada) acompanhada de instrumentos caros e de execução complicada (piano e órgão) não é o que o caracteriza, e sim o canto entusiasmado, acompanhado de palmas e instrumentos populares e estridentes, gritos de alegria e exclamações de louvor (“Glória a Deus!”; “Aleluia!”; “Amém!”). Todos desfrutavam a estima do povo (v. 47b). Todos estavam “tendo a simpatia de todo o povo” (gr. échontes chárin pròs hólon tòn laón, v. 47b). A frase refere-se à aceitação dos primeiros cristãos por parte do povo de Jerusalém. Todos os diferentes tipos e níveis da sociedade tinham os primeiros crentes em alta conta. Os cristãos não eram uma ameaça para as autoridades romanas nem para a paz que suas legiões mantinham à ponta da espada. Conforme discutido na Introdução, esse propósito apologista pode ter sido um dos mais importantes por trás de Atos. Também ainda não havia um rompimento radical com o judaísmo rabínico que motivasse uma reação judaica oficial contra a igreja incipiente. Além disso, a comunidade de fé de Jerusalém foi a primeira igreja cristã. Embora a palavra “igreja” (gr. ekklēsía) não apareça nessa

passagem (só mais adiante, em 5.11), a comunidade que emergiu do Pentecoste apresentava características bem definidas. Esses crentes se destacavam: 1) pelo ensino dos apóstolos, que deve ter consistido principalmente na interpretação dos fatos e do significado da vida, da morte, da ressurreição, da ascensão e da exaltação de Jesus; 2) na comunhão, pois compartilharam bênçãos espirituais em Cristo e os bens materiais; 3) no partir do pão, que não é outra coisa senão a lembrança do Senhor por meio da ceia pascal ou eucaristia; 4) nas orações. Nenhuma dessas características da comunidade de fé primitiva representava um perigo para Roma ou para a religião judaica oficial. Todos vivenciavam o crescimento numérico (v. 47c). Todos experimentaram a continuidade da obra, pois “o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (v. 47c). Observe-se que era “o Senhor” quem “lhes acrescentava” (gr. ho kýrios prosetíthei). O verbo está no imperfeito ativo, que denota uma ação contínua, ou seja, o Senhor ia acrescentando pessoas ao grupo. Isso ressalta a soberania de Cristo, cujo desejo é a salvação de todos os seres humanos. No entanto, ele faz isso por meio de seus discípulos, que, confiando em seu poder e em sua autoridade por meio de seu Espírito Santo, proclamam o evangelho do Reino, curam os enfermos e expulsam demônios em seu nome. Observese também que o crescimento numérico da comunidade de fé era uma experiência cotidiana (“diariamente”, gr. kath’ hēméran). Além disso, o povo acrescentado não estava aderindo a um movimento amorfo ou ambíguo, mas se integrando à comunhão dos santos (gr. epì tò autó, “a eles”; lit., “juntos”). A expressão aparece no grego clássico e no koinē (LXX e 1.15; 2.1,47; 1Coríntios 11.20; 14.23) e

significa “vir juntos” ou “juntar-se”. Aqui se refere à reunião com os outros crentes, ou seja, à assembleia dos convocados em nome do Senhor (gr. ekklēsía). Contudo, não eram meros números — diferentemente do que se vê com frequência nos dias de hoje, mero produto de estratégias de crescimento da igreja —, pois os que se juntavam ao grupo de  crentes eram eles próprios crentes (“os que iam sendo salvos”, gr. toùs sōizoménous). Isso significa que a salvação é um processo que se desenvolve em três dimensões temporais: passado, presente e futuro. A salvação começa com crer-confiar-depositar fé todos os dias. É uma relação iniciada por Deus-Espírito Santo (João 6.44,65), mas que deve ser uma experiência permanente. Fomos salvos, estamos sendo salvos e seremos salvos. A salvação não é uma passagem para o céu ou um seguro de vida celestial, mas um relacionamento de fé diário e crescente com o Senhor. Esse avivamento evangelístico fazia parte do cotidiano: não era como os de hoje, que na melhor das hipóteses ocorrem de vez em quando. Como se pode perceber, em uma igreja renovada pelo Espírito Santo, como a igreja de Jesus Cristo na cidade de Jerusalém, os crentes compartilharam de forma plena várias experiências comunitárias: todos foram batizados (v. 41); todos permaneceram firmes (v. 42); todos estavam cheios de temor (v. 43); todos permaneciam juntos (v. 44a); todos tinham tudo em comum (v. 44b); todos repartiam seus bens entre si (v. 45); todos se reuniam no templo e nas casas (v. 46); todos louvavam a Deus (v. 47a); todos desfrutavam a estima do povo (v. 47b); todos estavam comprometidos (v. 47c).

As características de uma igreja renovada

Uma das questões mais marcantes que vemos no Novo Testamento é o processo contínuo de renovação espiritual na igreja primitiva. Em Atos (2.41-47), temos um quadro descritivo desse desenvolvimento. Na leitura da passagem, podemos distinguir cinco características de uma igreja renovada, à luz da experiência da primeira igreja cristã em Jerusalém. Essas características são: ensino, comunhão, serviço, adoração e pregação. Ensino (didachē). No v. 42, lemos que os primeiros cristãos “se dedicavam ao ensino dos apóstolos”. Essa primeira característica é surpreendente.Poucos pensariam que a primeira característica de uma igreja cheia do Espírito Santo é ser uma igreja que estuda. O texto diz que eles permaneciam firmes (“se dedicavam”) no estudo da doutrina dos apóstolos. O Espírito Santo abriu uma escola em Jerusalém. Essa escola contava pelo menos 3 mil alunos, e os apóstolos eram seus professores. Os novos convertidos não estavam imersos em uma experiência mística que pudesse levá-los a desprezar o intelecto. Não havia anti-intelectualismo entre eles. Não desprezavam a teologia nem negligenciavam a instrução, pois tinham o Espírito Santo como guia. Eles sabiam que Jesus havia autorizado os apóstolos a serem mestres da igreja, por isso se submeteram à autoridade deles como tal. Como perseverar no ensino dos apóstolos hoje? Como nos submeter à autoridade apostólica? O ensino dos apóstolos chegou até nós em sua forma final nos escritos do Novo Testamento, que é precisamente o ensino apostólico escrito. Quando o cânon do Novo Testamento foi estabelecido, nos séculos II e III, o teste da

canonicidade de qualquer livro era sua apostolicidade. Era o reconhecimento da apostolicidade de um livro que lhe conferia autoridade espiritual. É urgente que em nossos dias recuperemos uma compreensão adequada da autoridade única dos apóstolos. Eles estavam cientes disso. Sabiam que Jesus lhes concedera uma autoridade única, e a igreja primitiva reconhecia esse fato. Inácio de Antioquia (98-117) afirma: “Não vos dou ordens como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado”. A primeira marca de uma igreja cheia do Espírito é sua submissão ao ensino dos apóstolos, conforme registrado na Bíblia. Isso caracteriza uma igreja verdadeiramente bíblica, uma igreja neotestamentária e apostólica. Tal igreja deseja profundamente conformar sua compreensão da fé e de sua vida cristã ao ensino único e infalível — em questões de fé e prática — dos apóstolos de Jesus Cristo. Além disso, constitui uma comunidade de pessoas organizadas e regidas pelos princípios da autoridade apostólica, que encontram na comunidade uma resposta plena. Rudolf Schnackenburg: “Uma perspectiva que caracteriza o conjunto das comunidades da igreja primitiva: elas se consideravam uma comunidade fraterna, na qual todos estavam sujeitos ao mesmo Senhor e vinculados uns aos outros por um serviço fraterno. Por isso, seus dirigentes, fossem apóstolos com plena autoridade, fossem líderes carismáticos designados pelo Espírito, fossem homens escolhidos pela comunidade, estavam tão amalgamados à própria comunidade que parecia ser ela quem de fato agia. Sem a anuência da comunidade, as decisões mais importantes certamente seriam impensáveis”.23

Comunhão (koinōnía). No v. 42, lemos que os primeiros cristãos “se dedicavam [...] à comunhão”. Koinōnía é a comunhão do Espírito Santo. Não havia comunhão antes do Pentecoste. Havia amizade, camaradagem, companheirismo (2.1), mas não comunhão. A igreja

é uma koinōnía do Espírito. Essa palavra expressa o caráter comunitário da Igreja cristã. No âmago da palavra koinōnía está o adjetivo koinós, que significa “comum”. Ou seja, a igreja é uma comunidade de fé e de vida, na qual compartilhamos o que temos em comum. A primeira coisa que temos em comum é o Senhor e sua graça salvadora; no entanto, o vocábulo koinōnía expressa também um conceito trinitário. É dessa forma que o apóstolo João o utiliza em 1João 1.3: “Proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo”. Isso significa que temos o mesmo Deus como Pai, o mesmo Cristo como Salvador e Senhor e o mesmo Espírito Santo como Consolador. Além disso, como João também indica, uma igreja cheia do Espírito Santo é aquela em que se vive e se age em um clima de profunda comunhão com o Senhor e com os outros. Serviço (diakonía). Há uma descrição bem detalhada e precisa dessa característica nos v. 44 e 45: “Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade”. Há uma relação estreita entre koinōnía e diakonía. A koinōnía expressa o que compartilhamos dentro da comunidade de fé, ou seja, o que temos em comum. A diakonía expressa o que compartilhamos fora da comunidade de fé, ou seja, o que damos aos outros. Diakonía é nosso serviço em comum a favor dos demais, por meio de nós mesmos ou de dinheiro, bens, talentos, presentes, e assim por diante. A diakonía é uma expressão de koinōnía, porque onde não há generosidade não há companheirismo (comunhão). Lucas fala dessa generosidade no v. 44, quando ressalta que eles “tinham tudo

em comum [koiná]” e o repartiam de acordo com a necessidade de cada um. Carlos Mraida: “Em terceiro lugar, devemos trabalhar rumo a uma igreja que se renove como uma comunidade do Espírito Santo: ‘Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum’ (2.44). Deus não mudou seu método. Ele continua dizendo que a melhor maneira de transformar a humanidade é por uma comunidade diferente, que experimenta a koinōnía do Espírito Santo. Por isso, a igreja primitiva transformou a realidade de seu tempo. A sociedade latino-americana precisa dizer sobre a Igreja: ‘Vejam como se amam!’; ‘Essas pessoas, sim, têm algo a dizer à nossa nação fragmentada, atacada e dividida, porque não há necessitados entre eles’; ‘Esses cristãos podem nos ensinar a reconstruir o tecido social da nossa nação, porque têm todas as coisas em comum. Eles são uma família’. A igreja em permanente reforma, mais que buscar sistemas e métodos, renova a koinōnía de maneira visível e, assim, se converte em comunidade alternativa capaz de transformar a realidade”.24

Que significado tem isso para nós hoje? Jesus continua a convocar alguns de seus seguidores à pobreza evangélica voluntária pela causa do Reino e, para isso, lhes dá o dom da pobreza voluntária. Esses fiéis são como Madre Teresa de Calcutá, que com sua pobreza serviu ao Senhor com alegria e sem amarras. No entanto, não são todos os crentes que Jesus conclama para esse serviço. Em Jerusalém, a venda de propriedades e a distribuição de seu produto eram voluntárias. O pecado de Ananias e Safira foi fingir que estavam doando tudo, quando estavam apenas entregando uma parte. Mais que ganância, isso caracterizava engano e hipocrisia. A propriedade era deles, e o dever do casal era administrá-la como bons mordomos do Senhor. Sua oferta deveria ser voluntária, não ocultar propósitos espúrios (5.4). Contudo, embora nossa diakonía deva ser voluntária, ela não deve ser mesquinha nem esporádica.

Adoração (leitourgía). Nos v. 46 e 47a, lemos que os primeiros crentes “continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em casa e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus”. Lucas descreve o notável equilíbrio da adoração desses primeiros cristãos. Uma adoração formal e informal. A adoração no templo é um exemplo do primeiro tipo. O texto informa que eles “se dedicavam [...] à oração” (v. 42). Essas orações não eram aquelas que correspondem à devoção privada, e sim à adoração pública. É surpreendente que os discípulos continuassem a adorar no templo, em Jerusalém. Na verdade, eles não participavam dos sacrifícios regulares, porque sabiam que o sacrifício de Jesus havia sido suficiente, mas se dirigiam para lá na hora da oração (3.1). A adoração de casa em casa é um exemplo do segundo tipo. Mas o que se fazia nas casas dos crentes? De acordo com o texto bíblico, a ceia do Senhor era celebrada (“partiam o pão”), a comunhão cristã era vivenciada intensamente (“participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração”), Deus era louvado (“louvando a Deus”), ensinava-se a doutrina dos apóstolos e o evangelho era pregado (cf. 5.42). Precisamos de um equilíbrio entre formalidade e informalidade. Uma adoração reverente e alegre. O louvor dos primeiros cristãos era alegre. Convém lembrar que uma das expressões do fruto do Espírito Santo é a alegria, o gozo (Gálatas 5.22). O culto cristão não deve parecer um velório, porque não seguimos um morto, mas o Cristo vivo. Cada culto deve ser uma celebração alegre dos atos poderosos de Deus em Cristo Jesus. A alegria deve ser a característica mais evidente no culto ao Senhor. No entanto, a

alegria dos primeiros cristãos não era irreverente. O v. 43 lembra que “estavam cheios de temor” por causa do que acontecia no meio deles (“sobreveio temor a toda pessoa”, RVR). A expressão referese a um temor reverente pelas coisas divinas. O nível de enchimento do Espírito Santo não é medido pelos decibéis que emitimos. Às vezes, sua presença impõe um silêncio reverente (Habacuque 2.20). Precisamos de um equilíbrio entre alegria e reverência. Proclamação (kērygma). A passagem termina com uma avaliação maravilhosa: “E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (v. 47b). Sem evangelização, a igreja se torna egocêntrica e morre. Vários são os fatos a serem observados com respeito à evangelização, ou seja, a proclamação do evangelho do Reino. É Jesus quem evangeliza. Ele, Cabeça e Senhor da igreja, é quem adiciona a ela os que vão sendo salvos. Ele é quem dá crescimento à igreja (Efésios 4.16; Colossenses 2.19). Somos apenas instrumentos em suas mãos. Ele é a chave para o crescimento de seu Reino e da igreja. Orlando E. Costas: “Embora o crescimento seja, sem dúvida, um dom de Deus (1Coríntios 3.7; Atos 2.47), é uma dádiva que deve ser esperada como as primícias do futuro e a evidência do poder do Espírito. Em todo o Novo Testamento, existem inúmeras referências que, direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, transmitem a imagem do crescimento. [...] Além dessas imagens, temos o exemplo de Jesus e a experiência da igreja primitiva. [...] Jesus formou uma comunidade como sinal e como fruto de uma nova ordem. A formação dessa comunidade está ligada à sua pregação (v. Marcos 1.14-20; 3.13-15). Jesus se dedicou a treinar essa comunidade [...] e a capacitou a pregar e a expulsar demônios. [...] Ele a envia aos confins da terra a dar testemunho de seu Reino e a discipular as nações (Atos 1.8; Mateus 28.18)”.25

Jesus faz duas coisas ao mesmo tempo. Ele acrescenta pessoas à igreja e as salva. Ele acrescenta à igreja os que está salvando. Não os salva sem os adicionar à igreja, e não os adiciona à igreja sem os salvar. Salvação e filiação à igreja são ações que caminham juntas. A propósito, não somos salvos por sermos membros da igreja, mas, se somos salvos, certamente somos membros da igreja. Jesus evangeliza todos os dias. A evangelização da igreja de Jerusalém não era ocasional nem esporádica. Sua evangelização era contínua. Devemos esperar e trabalhar por novos crentes cada dia e todos os dias. Ao repassar essas cinco características de uma igreja renovada ou cheia do Espírito Santo, é interessante notar sua relação com cinco vínculos principais. Primeiro: os primeiros cristãos se relacionavam com os apóstolos. Eles se mostravam ansiosos por receber instruções apostólicas. Uma igreja cheia do Espírito é uma igreja ansiosa por aprender dos apóstolos e por se submeter a eles em obediência, ou seja, é uma igreja apostólica. Segundo: os primeiros cristãos tinham laços uns com os outros. Eles perseveravam na comunhão. Uma igreja cheia do Espírito é uma igreja saturada de amor fraternal. Terceiro: os primeiros cristãos estavam em permanente conexão com as necessidades dos demais. Eles cuidavam dos necessitados. Uma igreja cheia do Espírito é aquela que serve por amor ao próximo e o faz com generosidade. Quarto: os primeiros cristãos mantinham um relacionamento com Deus. Eles o adoravam no templo e nas casas com alegria e reverência. Uma igreja cheia do Espírito é uma igreja que adora. Quinto: os primeiros cristãos faziam contato com os perdidos. Eles estavam comprometidos com uma evangelização

continuada. Uma igreja cheia do Espírito é uma igreja missionária, porque o Espírito é o Espírito missionário. Sua igreja tem sido renovada no Espírito Santo? As relações de uma igreja renovada (2.42-47)

De acordo com Atos 2.42-47, os primeiros cristãos em Jerusalém mantinham cinco relacionamentos simultâneos, uma vez que se relacionavam com os apóstolos, entre si, com as necessidades dos outros, com Deus e com os perdidos. Eles se relacionavam com os apóstolos. Lemos no registro bíblico que eles “se dedicavam ao ensino dos apóstolos” (v. 42). Eles também acompanhavam com admiração “muitas maravilhas e sinais [...] feitos pelos apóstolos” (v. 43). Estavam juntos e tinham tudo em comum, pois, “vendendo suas propriedades e bens”, “traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos” (2.44,45; 4.32-35). A submissão à autoridade e ao ensino apostólico sempre foi uma condição para a renovação espiritual. De acordo com C. Peter Wagner, essa é uma das características mais evidentes dos novos odres que estão configurando a igreja no novo paradigma apostólico: “Estamos vendo uma transição de uma autoridade burocrática para uma autoridade pessoal, de uma estrutura legal para uma estrutura relacional, de controle para coordenação e de liderança racional para liderança carismática”.26 Tinham laços uns com os outros. Eles permaneceram firmes na comunhão, no “partir do pão” e nas “orações” (v. 42). “Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum” (v. 44). Por fim, “todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo” (v. 46).

O amor mútuo é um mandamento que deve ser obedecido ao cumprirmos nossa missão no mundo. A razão da harmonia e do amor na igreja é missiológica, não estética, tampouco ética. Francis A. Schaeffer: “Em João 17, o ponto é que, se um cristão individual não demonstra amor por outros cristãos verdadeiros, o mundo tem o direito de julgar que o tal não é cristão. Aqui [João 17.21-23] Jesus está declarando algo muito mais incisivo, muito mais profundo: não podemos esperar que o mundo acredite que o Pai enviou o Filho, que as pretensões de Jesus são corretas e que o cristianismo é verdadeiro, a menos que o mundo veja algo real da singularidade dos cristãos autênticos”.27

Estavam em permanente conexão com as necessidades dos demais. A razão pela qual desfrutavam “a simpatia de todo o povo” (v. 47) era que, por causa da pregação do evangelho, da cura dos enfermos, da expulsão de demônios e do serviço misericordioso aos necessitados, eles se mantinham conectados com as necessidades dos que viviam ao seu redor. Os habitantes de Jerusalém “ficaram perplexos e muito admirados” pelo que ocorrera ao aleijado de nascença que ficava junto da porta chamada Formosa (3.1-10). O epítome da unção de uma pessoa ou de um ministério acha-se no próprio Jesus. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos” (Lucas 4.18). Não haverá verdadeira renovação espiritual, a menos que a igreja se relacione com os que estão em necessidade. Mantinham um relacionamento com Deus. Sua ocupação diária não era apenas a oração, porque também passavam um bom tempo, todos os dias, no templo ou louvando a Deus em casa, onde “partiam o pão [...] e juntos participavam das refeições, com alegria

e sinceridade de coração” (v. 46,47). Onde quer que o Espírito Santo traga renovação, existe adoração abundante. Precisamos estar cientes de que o relacionamento com Deus na adoração não é apenas um exercício vertical, mas também envolve uma atitude horizontal. Isso se expressa de duas maneiras: adoramos a Deus louvando a ele e servindo ao próximo. Darrell L. Guder: “Precisamos aprender como a adoração nos chama de maneira concreta e nos envia ao serviço de Cristo e por que é uma faceta de nossa missão. Para que isso aconteça, a adoração deve ser principalmente o encontro do povo com o Deus que envia. Encontramos o Deus missionário que está formando o povo de Deus para sua vocação, ou seja, para ser uma bênção às nações”.28

Faziam contato com os perdidos. Seu contato com os perdidos não era ocasional, mas frequente. Na verdade, era uma relação cotidiana, que resultava em conquistar diariamente para o Reino os contatados: “O Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (v. 47). A realidade é que a maioria de nós tem inúmeras oportunidades todos os dias de estar em contato com pessoas que ainda se acham nas trevas do pecado. Uma igreja renovada está sempre em busca dos descrentes para lhes anunciar a salvação em Jesus Cristo.

1. The Launching of Mission: The Outpouring of the Spirit at Pentecost, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 19. 2. V. James D. G. DUNN, Pentecost, in: Colin Testament Theology, v. 2, p. 783-787.

BROWN

(Org.), Dictionary of New

3. V. comentários sobre o Pentecoste judaico na Introdução.

4. Hechos, in: Justo L. p. 34.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

5. Commentary on the Book of Acts, p. 57. 6. J. G. DAVIES, Pentecost and Glossolalia, Journal of Theological Studies, n. 3, p. 228-229. O relato do Pentecoste depende do relato de Babel. 7. Charles C. RYRIE, Los Hechos de los Apóstoles, p. 16. 8. La iglesia: entre ayer y mañana, Revista Bíblica, v. 34, n. 146, p. 340. 9. El Espíritu Santo en la Biblia: un comentario bíblico y exegético, p. 252. 10. V. C. H. DODD, The Apostolic Preaching and Its Development; F. F. The Speeches in Acts.

BRUCE,

11. The Incarnation and the Church’s Witness, p. 50. 12. You Are My Witnesses: Drawing from Your Spiritual Journey to Evangelize Your Neighbors, p. 46. 13. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 34. 14. Los Hechos de los Apóstoles, p. 20. 15. Johannes P. LOUW & Eugene A. NIDA, Greek-English Lexicon of the New Testament: Based on Semantic Domains, v. 2, p. 28. 16. Everett F. HARRISON, Acts: The Expanding Church, p. 65. 17. Études sur les Actes des Apôtres, p. 574. O autor retoma o tema da koinōnía em Nouvelle Revue Théologique, n. 91, p. 897-915 (1969). 18. The Spirit, the Church, and the World: The Message of Acts, p. 83. 19. Word Pictures in the New Testament, p. 38. 20. Antiguidades judaicas, 19.7.3; 19.8.2. 21. Gary L. CARVER, Acts 2.42-47, Review and Expositor, v. 87, n. 3, p. 476. 22. Dismantling Social Barriers through Table Fellowship: Acts 2.42-47, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts, p. 32. 23. La colaboración de la comunidad, por el consentimiento y la elección, según el Nuevo Testamento, Concilium, n. 77, p. 28. 24. Atos dos Apóstolos: rumo a uma igreja em renovação permanente, in: Bíblia Nova Reforma: edição de estudos e referência, p. 1633-1634. 25. Christ Outside the Gate: Mission beyond Christendom, p. 46. 26. The New Apostolic Churches, p. 20. 27. The Mark of the Christian, p. 15. 28. Darrell L. GUDER (Org.), Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America, p. 242.

CAPÍTULO 3

A PERSEGUIÇÃO 3.1—5.42 É possível que quem se esforça para fazer o bem acabe recebendo o mal? Não é uma lei do Reino de Deus que colhemos o que plantamos? Como é possível um indivíduo ou um grupo sofrer perseguição ou ser hostilizado por agir para o bem dos outros? Convém lembrar que o mundo em que vivemos não é governado pelas leis do Reino de Deus, mas tem códigos próprios. Assim como o mundo crucificou seu Salvador e Senhor, os líderes do mundo são capazes de aprisionar e perseguir os que ministram cura integral ao ser humano. Os três capítulos de Atos que iremos comentar neste capítulo tratam dessa questão. À medida que, sob a liderança de seus apóstolos, se aventuravam nas ruas com sua mensagem e sua práxis redentoras em nome de Jesus, os cristãos de Jerusalém passaram a enfrentar a oposição dos que queriam manter a todo custo o status quo e não pretendiam abrir mão do poder que haviam conquistado. Na realidade, a experiência dos primeiros cristãos e seus líderes estava se revelando muito semelhante ao que Jesus vivenciara quanto ao confronto com as autoridades religiosas estabelecidas. A situação foi se agravando na proporção em que os cristãos, por causa de suas boas obras, iam ganhando

popularidade, visibilidade social e apreço por parte das massas populares da cidade. Nos casos verificados nesses três capítulos de Atos, não foi a teologia nem a liturgia dos primeiros cristãos a causa do conflito, mas a proclamação do evangelho do Reino de Deus em palavras e ações. Eram as ações deles, em especial, o motivo da profunda irritação entre as autoridades religiosas judaicas, uma vez que institucionalmente jamais fizeram algo comparável ao que os apóstolos e seus seguidores realizavam. O confronto era inevitável, mas o resultado final não poderia ser outro senão um êxito retumbante das fileiras cristãs na guerra espiritual contra as forças das trevas. A proclamação e a compaixão por fim venceram a batalha, e os crentes, depois de provar a eficácia de seu método, continuaram a aplicá-lo (5.42).

O MOTIVO (3.1-10)

O motivo da perseguição descrita nesses três capítulos foi um milagre ocorrido na área do templo, em Jerusalém. Ações milagrosas exercem grande atração e despertam a admiração não só dos não crentes, mas também dos que creem e as praticam. No entanto, deve-se ter em mente que o evangelho cristão não é apenas um evangelho de glória, mas também um evangelho da cruz. Não é incomum na história do testemunho cristão que uma ação poderosa e sobrenatural do povo de Deus provoque uma reação violenta e repressora. É o que relata a passagem que iremos analisar nesta seção. O milagre de cura narrado em Atos 3 é apresentado de maneira semelhante à descrição dos milagres de cura registrados nos evangelhos. Descreve-se a interação entre quem cura e quem é curado, revela-se o tipo de doença, destaca-se a participação da pessoa curada no milagre, definem-se as etapas do processo de cura, constata-se que a cura ocorreu de fato e é ressaltado o efeito do milagre sobre as testemunhas circunstanciais.1 Como Evvy Hay Campbell observa: “Com uma mudança de local e de personagens, o terceiro capítulo leva os leitores mais a fundo nos dias incríveis da igreja primitiva, quando os milagres eram abundantes, a evangelização não podia ser suprimida e o conflito com os líderes judeus, que se viam profundamente ameaçados por ambos, eram inevitáveis”.2 O milagre (3.1-10)

O milagre começa com Pedro e João indo ao templo à hora da oração. Os dois eram figuras proeminentes da comunidade cristã de Jerusalém. Haviam sido companheiros como pescadores (Lucas 5.10) e testemunhas da transfiguração (Lucas 9.28) e estavam presentes durante a agonia de Jesus no Getsêmani (Marcos 14.33). Jesus os designou para preparar a última ceia (Lucas 22.8), e ambos correram juntos para o túmulo vazio a fim de ver o que havia acontecido (João 20.4). Após a ressurreição, os dois receberam uma palavra de Jesus sobre seus respectivos futuros.3 Nesse episódio, Pedro foi a voz ativa. No entanto, foi João quem mais tarde cumpriu o papel exigido de segunda testemunha de Jesus diante do Conselho judaico (4.1-15).4 Além dessa associação de longa data, o que pode explicar o motivo de irem juntos ao templo naquela tarde, Pedro e João seguiam o costume dos discípulos de Jesus de andar aos pares (Lucas 10.1). Na verdade, durante todo o ministério da igreja primitiva, os crentes trabalharam em equipe (13.2; 2Timóteo 4.9,11). Se tomarmos como referência o milagre ocorrido, a passagem pode ser dividida em três partes. As circunstâncias do milagre (v. 1-3). Mais uma vez, o complexo do templo seria o cenário de uma nova manifestação do poder de Deus para salvação e cura em nome de Jesus. O lugar. O v. 1 diz que eles “estavam subindo ao templo”, porque ele se erguia sobre uma colina que dominava a cidade e consistia em pátios ou terraços em diferentes níveis, que ascendiam até o lugar mais sagrado. Durante os sacrifícios da manhã e da tarde, que ocorriam pouco depois do amanhecer e no meio da tarde, queimava-se incenso, símbolo das orações ascendentes dos fiéis (Lucas 1.9,10). A porta conhecida como Formosa era possivelmente

a porta de Nicanor, feita de bronze de Corinto, que ligava o átrio dos gentios ao átrio das mulheres.5 Sua localização era estratégica, uma vez que a tesouraria do templo ficava no pátio das mulheres, e todos os que por ali passavam, sem dúvida, possuíam algumas moedas. O aleijado. Ao lado da porta Formosa, havia um homem, aleijado de nascença. O pobre sofredor era conhecido pelo infortúnio que sofrera e por se posicionar todos os dias em um local de muito movimento. Sua aflição era ainda maior porque “era colocado ali todos os dias” não para o bem dele, mas “para pedir esmolas aos que entravam no templo”. Com certeza, o produto de sua coleta não ficava com ele. A esmola era obrigatória para o povo de Israel (24.17), e cuidar dos pobres era considerado um dever de todo judeu. A Lei exigia que se fizesse justiça aos pobres (Êxodo 23.6), aos necessitados (Êxodo 22.25-27) e também às viúvas e aos órfãos (Êxodo 22.22,23). Além disso, os que vinham à tarde para a oração tinham de passar pela porta Formosa e não deixariam de dar algo ao pobre aleijado, para mostrar um pouco mais de sua piedade. As características do milagre (v. 4-7). A interação dos discípulos com o aleijado teve início no rotineiro pedido de esmolas por parte do homem. Os dois olharam fixamente para ele, e Pedro ordenou ao aleijado que olhasse para eles (contato visual; cf. 13.9). O homem olhou para eles com atenção, na esperança de receber algo especial, então Pedro pronunciou a conhecida frase: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, ande” (v. 6). O homem provavelmente conhecia Jesus, por isso a ordem de Pedro não lhe soou estranha. Observese ainda o contraste entre o que o apóstolo possuía e o que não

possuía. Além disso, a segurança de Pedro em suas palavras é notável, já que ele não pediu a Jesus para curar o enfermo, apenas liberou o poder divino da cura ao pronunciar o nome de Jesus.6 No entanto, Pedro não usou o nome do Senhor como fórmula mágica nem para avivar no aleijado a lembrança do ministério de Jesus, e sim como uma expressão de seu poder e de sua presença como o Jesus vivo, “que canaliza a energia vivificante de Deus para os pobres e aleijados, como fazia antes de sua partida”.7 Desse modo, o que ocorreu foi uma prova da continuação do ministério de Jesus na igreja. O método terapêutico seguido por Pedro foi o contato físico: ele tomou o homem pela mão direita e o ergueu. A maneira pela qual o homem se levantou (“os pés e os tornozelos do homem ficaram firmes”) por certo chamou a atenção de Lucas como médico (v. Lucas 13.10-17). A questão é que a cura do aleijado foi instantânea e completa (v. 7). As consequências do milagre (v. 8-10). Como resultado desse milagre, três fatos aconteceram. O homem ficou muito feliz. Assim que seus pés e tornozelos se fortaleceram, ele começou a pular: “De um salto pôs-se em pé e começou a andar” (gr. exallómenos éstē kaì periepátei). Evvy Hay Campbell: “Embora muitos comentários pulem essa seção e se detenham em uma análise aprofundada da explicação de Pedro sobre o incidente, é a parte do relato [na qual se diz que o homem] ‘pôs-se em pé e começou a andar’ a que mais me impressiona (3.8). [...] O grego diz literalmente: ‘Saltando, plantou-se firme no chão e começou a andar’. O verbo ‘andar’ ou ‘caminhar’ ocorre quatro vezes nessa passagem. O segundo uso de ‘saltar’, em 3.8, refere-se não ao ‘salto’ inicial, mas simplesmente ao fato de ele estar ‘saltando e louvando a Deus’, ou seja, cumprindo a profecia de Isaías 35.6: ‘Os coxos saltarão como o cervo’ ”.8

O homem começou a louvar a Deus. Ele exaltava a Deus pelo que este lhe havia feito. Reconhecia assim a verdadeira origem do milagre. A maneira mais eficaz de pregar o evangelho do Reino de Deus é fazendo acompanhar a exposição da mensagem de ações poderosas, em nome de Jesus. Argumentos racionalistas e discurso lógico podem convencer as pessoas, mas só a manifestação do poder de Deus irá levá-las à conversão. O povo da América Latina está precisando ver e ouvir mais acerca do poder de Deus que da palavra humana, por mais bem articulada. O povo ficou admirado e perplexo. O resultado do tremendo milagre não podia ser outro senão o espanto e o ékstasis (lit., “estar fora de si”) do povo (v. 10). O inimaginável havia acontecido. Um ato de compaixão fora realizado por meio do poderoso nome de Jesus. Não havia dúvida quanto à realidade da cura do aleijado, que se apegou a Pedro e a João (v. 11). O milagre causou tanto alvoroço no templo que logo o povo “correu até eles, ao lugar chamado pórtico de Salomão”, na área sul do templo (João 10.23). Esperança (3.1-10)

Nos dias em que vivemos, não só há portas fechadas, como se tem a impressão de que a cada dia mais portas se fecham. Ao que parece, não há saída para a crise que nos envolve. O que podemos esperar disso? A história do mendigo aleijado de nascença, que pedia esmolas na porta do templo, hoje nos anima a dizer a nós mesmos: “Atreva-se a esperar”. Para esse homem, que nascera com uma deficiência física e já estava na casa dos 40 anos, parecia não haver mais esperança. Seu defeito congênito fechava todas as portas para ele. Um dia, porém, na porta chamada Formosa, um

portal de esplendor e de esperança abriu-se para ele. Naquele dia, Pedro e João dirigiram-se ao templo por volta das 3 horas da tarde. Ao entrar, tiveram a atenção atraída para um homem que pedia esmolas. Foi então que Pedro lhe disse: “Olhe para nós!”. O homem fixou os olhos neles, na expectativa de receber alguma coisa... e recebeu. Observe-se agora que foi o coxo quem teve a atenção atraída. Eis uma grande verdade vista nessa experiência: o que chama nossa atenção é o que nos prende. Há muitas oportunidades e bênçãos na vida que simplesmente nos escapam por falta de atenção. Perdemos possibilidades enormes, apenas por ausência de foco em nossa visão. O aleijado “olhou para eles com atenção, esperando receber deles alguma coisa”. Sem expectativa, não há bênção. Se o necessitado não estiver atento ao que Deus deseja fazer na vida dele, mesmo alimentando a esperança de que ele o faça, nada acontecerá. Se alguém deseja de fato que Deus o abençoe, deve ter a ousadia de esperar. Qual é seu grau de expectativa hoje? Você é um daqueles que já não esperam receber nada de Deus? Está entre os que sabem que Deus tem algo para lhes dar, mas põem limites ao poder de Deus? Ou faz parte do grupo de homens e mulheres de fé que se aproximam de Deus na esperança de receber todas as bênçãos que o Senhor preparou para eles? Atreva-se a esperar. Nosso texto ensina sobre a necessidade da esperança e nos orienta a considerá-la em três direções. A esperança do Senhor voltada para nós. O Novo Testamento registra dois exemplos desse fato.

O caso de Pedro. Este foi o homem a quem Jesus, olhando fixamente, disse a certa altura de sua vida: “ ‘Você é Simão, filho de João. Será chamado Cefas’ (que traduzido é ‘Pedro’)” (João 1.42). É interessante aqui o contraste entre “você é” e “[você] será”. A primeira expressão (“você é”) refere-se a Simão, o homem fraco e instável, de caráter volátil e impulsivo. A segunda expressão (“[você] será”) refere-se a Pedro, a rocha firme, o homem fiel e maduro na fé. Jesus sabia que, com os recursos da graça de Deus e o poder do Espírito Santo de Deus, Pedro seria transformado. Por isso, não importa qual tenha sido sua inconstância, instabilidade ou falta de firmeza, ele pode transformar você. Só ele pode dizer: “Você é” e despertar sua esperança afirmando: “Você será”. Portanto, atreva-se a esperar. Abandone os altos e baixos de sua vida, renuncie ao cristianismo mercurial e permita que o Senhor lhe dê estabilidade. Ele lhe oferece a condição de rocha. É o lhe promete e o que espera de você. O caso de Zaqueu. Era o homem que cobrava impostos, a quem Jesus também olhou fixamente e disse: “Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em sua casa hoje” (Lucas 19.1-10). Jesus estava cruzando a cidade de Jericó quando conheceu esse homem, o chefe dos cobradores de impostos e muito rico. No entanto, é evidente que Zaqueu era um homem desprezado, marginalizado, suspeito e odiado. Por esse motivo, era um homem triste, solitário e ressentido. Quando chegou ao lugar onde Zaqueu o esperava para vê-lo passar, Jesus parou, voltou-se para a árvore em que o publicano estava empoleirado e, fixando nele o olhar, chamou-o pelo nome: “Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em sua casa hoje” (Lucas 19.5). É provável que ninguém o chamasse pelo nome havia

anos. Zaqueu não podia acreditar que alguém estava querendo comer em sua casa. Por isso, desceu correndo da árvore e, quando o fez, já era um homem transformado. Ele havia recebido em sua vida Jesus, que por fim usou a experiência para afirmar: “O Filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lucas 19.10). Crê que o Senhor pode parar à sua frente, olhar para você e chamálo pelo nome? Crê que ele é capaz de pôr fim à sua solidão, miséria, desprezo e baixa autoestima? Crê que ele pode se tornar seu melhor amigo e salvá-lo? Crê que você é a pessoa em quem Jesus deposita grandes esperanças? Ele espera o melhor de você. Ele tem grandes planos para sua vida. Ele quer lhe fazer preciosas promessas. Ouse esperar nele, porque o Senhor, sim, espera em você. Nossa esperança voltada para os outros. Foi o que aconteceu com o aleijado de nosso texto, que “olhou para eles com atenção, esperando receber deles alguma coisa” (v. 5). Observe-se que, para o aleijado, Pedro e João eram apenas dois seres humanos e potenciais doadores de esmolas. Enquanto não tinha luz nem discernimento espiritual, o aleijado não foi capaz de ver nos dois apóstolos nada além de dois seres humanos entre os milhares que entravam e saíam pela porta Formosa. Ao mesmo tempo, cheios da luz e da compaixão de Jesus, Pedro e João não foram capazes de ver no aleijado nada além de um homem condenado a sofrer por causa de sua deficiência. Naquele momento, porém, o poder de Deus estava para intervir na vida dos três homens para produzir um milagre. Pedro e João seriam usados como instrumentos de redenção. A mão curadora de Deus tocaria o aleijado. Temos de confessar que muitas vezes não esperamos a bênção de Deus por

meio de outros seres humanos. Hesitamos em permitir que outros ministrem a favor de nossas necessidades. Relutamos em dar e receber ajuda de outras pessoas. Assim, devemos aprender, pela perspectiva do aleijado, a esperar especialmente a bênção de Deus.

o

melhor

dos

outros,

Nossa esperança voltada para o Senhor. Ele é nossa única esperança. Em Salmos 62.5, lemos: “Descanse somente em Deus, ó minha alma; dele vem a minha esperança”. Nos versículos que se seguem ao nosso texto (v. 11-16), Pedro faz uma interpretação da cura do aleijado. O que o apóstolo está tentando explicar? Parece que ele está dizendo: “Não olhe para nós. Disse a este homem que olhasse para nós, porque seríamos os agentes humanos por meio dos quais o poder milagroso de Deus fluiria. Se vocês, porém, querem uma explicação do que ocorreu, não olhem para nós, como se tivéssemos curado este homem pelo nosso poder. Foi uma ação de Deus”. Atreva-se a esperar no Senhor no lugar onde ele está agindo. Espere algo do Senhor, porque é ele quem dá esperança. Ele é o Senhor de toda esperança. Espere no Senhor quando parecer que não há mais esperança. Ele é o Deus de Abraão. Não havia esperança de que Abraão e Sara, sua esposa, tivessem um filho. Eles já eram bem idosos. Sara riu-se da promessa divina, mas Abraão confiou na promessa de Deus, ou seja, ele creu em Deus. Espere no Senhor quando não houver mais esperança, porque nele há esperança. Espere no Senhor mesmo que a providência divina pareça estar contra você. Ele é o Deus de Isaque. Deus ordenou a Abraão que sacrificasse seu filho Isaque. Em Gênesis 22.7,8, lemos que Isaque perguntou ao pai sobre o sacrifício, e Abraão respondeu

que no momento certo Deus iria providenciá-lo. Abraão confiou no Senhor, no Deus de toda esperança, em quem podemos confiar em todos os momentos. Espere no Senhor quando tudo parecer estar contra você, até você mesmo. Ele é o Deus de Jacó. Seu pior inimigo pode ser sua personalidade, como aconteceu com Jacó. A luta com o anjo em Peniel é uma ilustração disso (Gênesis 32.27,28). Jacó, o enganador, o suplantador, o trapaceiro, tornou-se Israel, aquele que lutou com Deus e venceu. Atreva-se a esperar no Senhor apesar das dificuldades. Dificilmente você enfrentará mais dificuldades em sua vida que o aleijado da porta Formosa. Esse homem era incapacitado desde o nascimento (v. 2a). Sem dúvida, ele era objeto de exploração por terceiros, que lucravam com sua miséria por meio da mendicância (v. 2b). O aleijado era uma máquina de mendigar, um especialista nessa prática (v. 3). Era um pobre coitado que não podia louvar a Deus no templo, pois não tinha permissão para entrar por causa de sua condição (ele ficava na porta). Por isso, assim que foi curado, a primeira coisa que fez foi ingressar no templo (v. 8,9). Não importa quais sejam suas dificuldades, o Espírito Santo é aquele que pode erguer você hoje e fazê-lo pular de alegria em louvor a Deus. Ele é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Ele é o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.

A EXPLICAÇÃO (3.11-26)

O que acontecera ao aleijado na porta Formosa exigia uma explicação, e a explicação foi apresentada por Pedro em uma mensagem que pregou no pórtico de Salomão, ponto de encontro de toda a comunidade dos crentes. Portanto, a passagem apresenta o sermão de Pedro nesse lugar após a cura do aleijado na porta Formosa. O texto é uma síntese precisa do discurso do apóstolo, pois o milagre ocorreu às três horas da tarde, e o sermão foi interrompido ao pôr do sol (4.1-3). Houve tempo para um discurso de mais de uma hora, por isso podemos supor que os fatos e argumentos foram muito mais amplos que os referidos no texto. Ao que parece, desde o Pentecoste até imediatamente após esse sermão de Pedro cerca de 2 mil pessoas mais se converteram (4.4). É bem provável que um bom número de conversões tenha ocorrido graças a esse sermão. Muitos dos que ouviram a mensagem e se converteram uniram-se à igreja de Jerusalém, motivo pelo qual o conteúdo do sermão ainda era lembrado por vários irmãos muitos anos depois. Não é estranho pensar, pois, que Lucas se baseou em várias fontes para reconstruir o esboço do famoso sermão de Pedro no pórtico de Salomão. O sermão e o pregador (3.11-26)

O nível de entusiasmo e de espanto das muitas pessoas que testemunharam o milagre da cura do aleijado estava no auge quando Pedro começou a falar: “Israelitas [...]” (gr. Ándres Israēlītai). O apóstolo estava apelando para o nome da aliança, portanto não apenas soava familiar, como também foi uma forma amigável e

formal de iniciar seu discurso. Há três questões a serem observadas nesse episódio. Os ouvintes (v. 11,12a). Que eram? Não era o mesmo público do dia de Pentecoste, formado na maioria por peregrinos interessados no fenômeno das línguas (2.6), que haviam ficado perplexos, “atônitos e maravilhados” (2.6,7). O auditório do pórtico de Salomão era formado por uma multidão heterogênea de adoradores, transeuntes e, sem dúvida, também por muitos dos que haviam participado da crucificação de Jesus e clamado a Pilatos: “Crucificao! Crucifica-o!”. Agora, porém, “o povo ficou maravilhado” diante de um novo e inexplicável fenômeno. Portanto, apesar das diferenças, os dois grupos demonstravam o mesmo estado de espírito e estavam espantados, prontos para ouvir, atentos aos apóstolos e ansiosos por interrogá-los. Talvez eles se sentissem culpados pela crucificação e pela rejeição a Jesus e estivessem com medo da ira de Deus. Pedro percebeu o estado emocional deles: “Vendo isso [...]” (gr. idōn dè, v. 12a). Por isso, deu uma resposta à preocupação do povo. A boa mensagem é aquela que traz uma resposta às inquietações do povo, não a que atende aos interesses do pregador. O sermão (v. 12b-26). O tema não foi o milagre como milagre, e sim o caráter messiânico de Jesus, conforme comprovado pelo milagre e seus efeitos. Foi um sermão totalmente cristocêntrico, como todo bom sermão apostólico. Quatro fatores se destacam no sermão de Pedro. O sermão apontava para os fatos. Os fatos do evangelho foram postos frente a frente com as palavras das Escrituras. A agência humana parecia totalmente sob o controle da soberania divina (v.

12b). O milagre fora um sinal do poder divino e devia ser atribuído ao nome de Cristo (v. 16). Assim como o povo era um agente inconsciente no cumprimento das profecias, os apóstolos eram apenas ministros que proclamavam o evangelho, ou seja, os atos redentores de Cristo. O pregador cristão deve se concentrar em expor os fatos da redenção operada por Cristo e nunca dar lugar a especulações nem a fantasias. Não são as dúvidas do pregador nem sua eloquência floreada que interessam ao povo, e sim conhecer a Cristo de forma viva e real por meio da mensagem. O sermão conclamava ao arrependimento e à fé. O fundamento desse chamado é a proximidade do Reino de Deus. Se Deus estava agindo dessa maneira na história, não havia outra atitude a tomar senão o arrependimento e a fé (v. 19a). O sermão que não termina com um claro apelo ao arrependimento e à fé é perda de tempo e de oportunidade. O povo precisa encontrar uma nova vida em Cristo, não saber o nível de conhecimento do pregador. Mais evangelho e menos enciclopédia é o que falta nos púlpitos evangélicos de hoje, embora se deva admitir que em muitos deles ambas as coisas se destacam por sua ausência. O sermão anunciava o dia da graça. Depois de apontar a culpa do povo pela crucificação de Jesus, o pregador abriu uma porta de esperança (v. 19b-21).Tempos de refrigério e de restauração sobreviriam aos que se convertessem. Cristo foi enviado para salvar, não para condenar (João 3.17). O sermão apelava à fé, não ao medo, e incitava os ouvintes a acreditar e a viver. É fácil cair no psicologismo, na mensagem de autoajuda e no entretenimento de um talk-show. O povo precisa da graça perdoadora e restauradora

de Deus, não de massagem espiritual, para “se sentir melhor”. Se o sermão não for uma mensagem de graça, então é uma desgraça. O sermão tinha um esboço. O sermão cristocêntrico é aquele que fala a respeito de Cristo. Pedro elaborou seu sermão em torno desse eixo fundamental e ordenou suas ideias à maneira de um esboço homilético, que podemos seguir ainda hoje. Basicamente, as palavras do apóstolo podem ser organizadas em dois pontos principais e alguns subpontos, como segue. 1) Cinco títulos. Pedro faz uso de cinco títulos messiânicos ou designações únicas com relação a Jesus. Por um lado, apresenta Cristo como “servo” de Deus (3.13a), que identifica Jesus de Nazaré como o Messias, o Servo do Antigo Testamento (Isaías 42.1-9; 49.113; 52.13—53.12). Isso significa que Jesus de Nazaré, na condição de Messias, não foi um conquistador ou líder político, mas alguém que “haveria de sofrer” (v. 18b). Por outro lado, apresenta Cristo como “Jesus, o Nazareno” (v. 6). Esse título vincula o Messias ao homem de Nazaré, muito conhecido daquela gente. Além disso, de acordo com Pedro, Cristo é o “Santo” (v. 14a), título que expressa seu caráter divino. Ele também é o “Justo” (v. 14b), título que lhe dá destaque como o Salvador. Por fim, ele é “o autor da vida” (v. 15a), título que afirma ser ele o Criador de todas as coisas. 2) Seis afirmações. Pedro faz seis declarações teológicas muito importantes com relação a Jesus, que sintetizam o kērygma apostólico. Ele afirma que Cristo foi anunciado (v. 18a,21-25), glorificado (v. 13b), entregue à morte (v. 13c), rejeitado (v. 13d), morto (v. 15a) e ressuscitado (v. 15b). O pregador (v. 12-26). Há quatro fatores que se destacam sobre Pedro como pregador cristão à luz dessa passagem.

Observemos sua fé. Pedro pregou permeado de um espírito de fé, mas não em si mesmo ou no aleijado, e sim em Cristo. O poder e a piedade não são nossos, mas de Deus (v. 12b). Somos meros vasos de barro. A excelência do poder provém de Deus. A forte convicção que deu ousadia ao pregador não era simples eloquência natural nem energia física, mas uma fé bíblica que repousava no cumprimento das promessas de Deus. Observemos sua clareza. Pedro foi direto em seu apelo e o fez com clareza. Ele não teve medo de encarar seus ouvintes e de falar com eles olhando-os nos olhos. Ele falou diretamente à consciência deles e assim lhes tocou o coração. Ele os acusou de terem crucificado o Messias e assim denunciou o pecado deles. Obtemos maior êxito em nosso testemunho quando somos diretos em nossa mensagem e falamos com sinceridade e honestidade ao coração do povo. Observemos seu amor. Não vemos em Pedro uma atitude desumana de pressão psicológica nem uma tentativa de criar culpa e temores doentios. Pedro dirigiu-se aos ouvintes com amor e simpatia. Ele os tratou como irmãos, ao considerá-los “israelitas” (v. 12), ao fazer menção do “Deus dos nossos antepassados” (v. 13), ao chamá-los “irmãos” (v. 17) e ao reconhecer seus privilégios únicos (v. 25,26). Ele afirmou que o que eles haviam feito fora por ignorância (v. 17). Por fim, esclareceu que, apesar de tudo, eles podiam ser abençoados e salvos, porque havia uma “saúde perfeita” para todos os que desejassem obtê-la pela fé em Cristo (v. 16). Observemos sua sabedoria. Pedro falou com sabedoria celestial e inspirado pelo Espírito Santo. A ordem de sua exposição foi estabelecida por Deus. Tudo começou com uma palavra dura (v. 13-

16). Ele prosseguiu com uma exposição bíblica (v. 17-24) e concluiu com um convite amoroso (v. 25,26). Justo L. González: “O caráter literário e o estilo desse discurso diferem notavelmente do sermão de Pedro no Pentecoste. [...] Isso pode ser visto nos títulos que Pedro atribui a Deus (‘Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó’, ‘Deus dos nossos antepassados’ [3.13]); a Jesus (‘autor da vida’ [3.15], ‘Servo’ [3.13,26]), ‘o Santo e Justo’ [3.14], e aos seus ouvintes (‘herdeiros dos profetas’, ‘[herdeiros] da aliança’ [3.25]). Além disso, [...] [há] várias outras palavras que não são as que Lucas utiliza normalmente. Isso implica que, ao registrar esse discurso, Lucas fez uso de materiais muito antigos, provavelmente da igreja primitiva”.9 O humano e o divino (3.11-26)

O sermão ou discurso de Pedro apresenta em tons claros dois aspectos fundamentais que intervêm dinamicamente em toda grande manifestação do poder redentor de Deus: o humano e o divino. A consideração desses dois polos, que operam em todos os fenômenos sobrenaturais, lança uma luz mais forte sobre o assunto, para que possamos entendê-los melhor. O elemento humano. Nosso texto exala humanidade em muitas de suas instâncias. O elemento humano é bem expresso em cinco elementos da natureza humana. As emoções. O homem que fora aleijado, cheio de alegria e de gratidão, ficou tão emocionado que se agarrou a Pedro e João e não mais os largou. Quanto ao povo, maravilhado, “correu até eles, ao lugar chamado pórtico de Salomão” (v. 11). A expressão emotiva da fé é um componente importante da espiritualidade e deve ser devidamente valorizada. As emoções são experiências complexas, de natureza consciente, que despertam respostas fisiológicas e psicológicas, tanto agradáveis quanto desagradáveis, habitualmente

caracterizadas por sentimentos fortes, tensão ou excitação. Nós, seres humanos, somos emocionais. Deus nos criou com a capacidade de sentir raiva, medo, alegria, amor, quietude, e assim por diante. Na América Latina, a importância das emoções para viver a fé e comunicá-la é cada vez mais reconhecida nos meios evangélicos. A instrumentalidade. Diante da comoção popular por causa do milagre ocorrido, Pedro viu-se na obrigação de esclarecer que ele e João haviam sido apenas instrumentos de Deus para a cura do mendigo aleijado. Não podemos fazer nada por nós mesmos. O máximo de que podemos nos orgulhar é de ser instrumentos nas mãos de Deus, seus colaboradores.Dependemos da ajuda divina e de seu poder para o êxito de nossa missão. Não é nosso poder nem nossa piedade que faz o trabalho, e sim o amoroso e compassivo poder de Deus. A única coisa que nos compete é que “somos testemunhas” (gr. oū hēmeīs mártyrés esmen, v. 15c) dos atos poderosos de Deus, como a ressurreição de Cristo. O pecado. Não há testemunho mais eloquente da humanidade que o pecado humano. A rejeição a Jesus por parte dos que o julgaram, condenaram e o sentenciaram à morte, fatos bem conhecidos de todos os que ouviam Pedro na ocasião, revelava o pior da maldade humana. Além disso, a ignorância espiritual e moral também é própria da condição humana: “Eu sei que vocês agiram por ignorância, bem como os seus líderes” (gr. oīda hóti katà ágnoian epráxate hōsper kaì hoi árchontes hymōn, v. 17). Afinal, qual foi o pecado do povo? Eles entregaram, negaram e mataram Jesus, o Filho de Deus, “o Santo e Justo” e “o autor da vida”. Contudo, eles agiram dessa forma por ignorância, sem saber quem

estavam crucificando. Mesmo assim, permaneciam em uma ignorância culpada quanto à origem, natureza e missão de Cristo. Ou seja, não tinham desculpa. E qual é nosso pecado? Muitas vezes, “não sabemos o que estamos fazendo”. No entanto, nossa ignorância espiritual e moral não nos isenta do julgamento divino. Somos seres humanos e, como tais, pecadores (Romanos 3.23), na condição de “destituídos da glória de Deus”. O arrependimento. Deus não precisa se arrepender, mas o homem sim, porque é pecador. Por essa razão, Pedro admoesta seus ouvintes: “Arrependam-se, pois, e voltem-se para Deus [gr. metanoēsate oūn kaì epistrépsate], para que os seus pecados sejam cancelados” (v. 19). O arrependimento era o que o povo de Jerusalém precisava; ou seja, a mudança de mente e de atitude; é o que nós, como seres humanos pecadores, precisamos. A fé. É próprio do ser humano experimentar a fé e a necessidade dela. Afinal, é por causa dessa capacidade de confiar no amor de Deus manifesto em Cristo que o homem pecador pode encontrar o caminho para uma nova vida. Como diz Pedro: “Pela fé no nome de Jesus, o Nome curou este homem que vocês veem e conhecem. A fé que vem por meio dele lhe deu esta saúde perfeita, como todos podem ver” (v. 16). Pedro afirma que foi a “fé no nome de Jesus” (gr. epì tēi pístei toū onómatos autoū, “em seu nome”) que concedeu a cura completa ao aleijado, que eles conheciam. “Arrependimento diante de Deus e fé no Senhor Jesus Cristo” é o testemunho apostólico do evangelho e a fórmula divina para reconciliar o homem pecador com o divino perdoador (20.21). O elemento divino. Em suas palavras, Pedro deixa três fatores claros.

Deus é o Senhor da história. De acordo com Pedro, é “o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus dos nossos antepassados” que “glorificou seu servo Jesus” (gr. edóxasen tòn paīda autoū Iēsoūn, v. 13a). O Deus dos nossos pais é o autor da história da salvação e é quem está por trás de cada fato histórico. As coisas não acontecem por acaso. É Deus quem administra a história e a orienta para o cumprimento de seu propósito redentor, como quando os judeus entregaram Jesus à morte e o rejeitaram “perante Pilatos, embora ele tivesse decidido soltá-lo” (gr. krínantos ekeínou apolýein, v. 13b). Deus é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Conhecemos Deus dessa forma, ou seja, por meio de Cristo e como seu Pai celestial. Pedro argumenta sobre isso ao ressaltar que Deus, o Pai, anunciou o advento de seu Filho e seu sofrimento: “Foi assim que Deus cumpriu o que tinha predito por todos os profetas, dizendo que o seu Cristo haveria de sofrer” (v. 18; cf. v. 20-25). Foi Deus, o Pai, quem o enviou: “Enviou-o primeiramente a vocês, para abençoá-los, convertendo cada um de vocês das suas maldades” (v. 26). Foi também Deus, o Pai, quem o ressuscitou: “Deus o ressuscitou dos mortos” (v. 15). Foi ainda Deus, o Pai, quem o ascendeu (v. 21) e o glorificou (v. 13). É Deus quem concede a bênção da conversão. Não há mérito humano na atitude de se voltar para Deus (gr. en tōi apostréfein). A fé salvadora não é uma obra humana, que nos faça dignos do perdão divino. A fé que nos conduz à salvação também é um dom da graça de Deus. É ele quem nos dá a bênção (gr. eulogoūnta hymās). A iniciativa no processo de conversão é sempre de Deus.

Cristo é “o autor da vida” (v. 15), “o autor da salvação” (Hebreus 2.10; 5.9) e o “autor e consumador da nossa fé” (Hebreus 12.2).

AS CONSEQUÊNCIAS (4.1-22)

Um maravilhoso ato de amor e de compaixão ocorrera no pátio do templo. O poder do Deus, que era adorado naquele ambiente sagrado, havia se manifestado de maneira assombrosa. Todos ficaram perplexos ao ver o mendigo aleijado pulando, caminhando e louvando a Deus por sua cura milagrosa. No entanto, o establishment religioso, composto pelos sacerdotes, o capitão da guarda do templo e os saduceus, não parecia muito feliz. Na verdade, os religiosos “estavam muito perturbados” (gr. diaponoúmenoi, particípio presente passivo de diaponéomai: “estar muito chateado, ressentido ou indignado”). As consequências não demoraram muito a recair sobre Pedro e João. Os apóstolos e a oposição (4.1-22)

Essa foi, em onze anos, a primeira das cinco ocasiões em que a igreja apostólica de Jerusalém enfrentou oposição. No entanto, longe de desanimá-los, o conflito os impulsionou, e a igreja continuou a crescer. O relato das consequências do milagre da cura do aleijado na porta Formosa pode ser dividido em cinco partes. A prisão dos apóstolos (v. 1-4). Assim como os fariseus foram os grandes oponentes de Jesus nos evangelhos, os saduceus eram os principais adversários dos apóstolos em Atos. Por não crerem na doutrina da ressurreição, que os apóstolos pregavam, os saduceus os atacavam sem piedade. O texto é claro ao indicar a razão desse ódio: “Eles estavam muito perturbados porque os apóstolos estavam ensinando o povo e proclamando em Jesus a ressurreição dos mortos” (v. 2). Na verdade, o motivo da raiva deles era duplo. Eles

resistiam à proclamação da ressurreição, mas também se ressentiam do fato de os apóstolos ensinarem essa doutrina. Por isso, foram ao encontro deles “enquanto [...] falavam ao povo” (gr. laloúntōn autōn pròs tòn laòn). Foi, sem dúvida, um ato premeditado, porque não os interromperam para indagar acerca do que ocorrera com o aleijado, agora saudável. Ou seja, estavam ali apenas para prendê-los. Foi por isso que se apresentaram com o capitão da guarda do templo. Então, aconteceu algo paradoxal: enquanto os dois apóstolos passavam a noite na prisão, cerca de 2 mil pessoas passaram a noite desfrutando uma nova liberdade (v. 4). A pregação dos apóstolos (v. 5-12). No dia seguinte, a composição do clero reunido era ainda mais impressionante. Do grupo dos inquisidores agora faziam parte “as autoridades, os líderes religiosos e os mestres da lei” (gr. toùs árchontas kaì toùs presbytérous kaì toùs grammateīs), além do “sumo sacerdote, bem como Caifás, João, Alexandre e todos os que eram da família do sumo sacerdote” (v. 5,6). Se Pedro e João quisessem agendar uma audiência com algum desses homens (ou com todos juntos) para discutir a responsabilidade deles pela morte de Jesus e a realidade de sua ressurreição, jamais seriam atendidos. No entanto, agora toda a aristocracia religiosa e política de Jerusalém estava ali reunida para perguntar aos servos de Deus: “Com que poder ou em nome de quem vocês fizeram isso?” (gr. en poíai dynámei ē en poíōi onómati epoiēsate toūto hymeīs, v. 7). Mais uma vez, Pedro tomou a palavra, porém cheio do Espírito Santo, como por ocasião do Pentecoste e no pórtico de Salomão (v. 8). A mensagem de Pedro no texto grego é apresentada em 92

palavras, mas com certeza foi muito mais longa. O pregador acusou seus juízes e apresentou quatro argumentos. Por um lado, chamou a atenção deles para o fato de que o milagre fora uma boa obra (“em favor de um aleijado”, v. 9). Por outro lado, afirmou que a cura fora obra de Jesus Cristo, o Nazareno, que havia sido crucificado por eles, mas ressuscitado por Deus (v. 10). Em seguida, estabeleceu uma base bíblica para a rejeição deles, ao lembrar o que fora predito no Antigo Testamento (v. 11; v. Salmos 118.22). Por fim, convidou-os a encontrarem eles mesmos a salvação no único “nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (gr. oudè gàr ónomá estin héteron hypò tòn ouranòn tò dedoménon en anthrōpois en hōi deī sōthēnai hēmās, v. 12). A sobre-eminência dos apóstolos (v. 13-17). Os membros do Conselho judaico mostraram-se “admirados” (gr. ethaúmazon) diante deles. Ficaram impressionados “vendo a coragem” (gr. tēn parrēsían, “franqueza”, “clareza”, “confiança”, “firmeza”, “inteireza”; v. 13a) dos apóstolos. Estavam surpresos por vê-los se expressar de forma tão inteligente, uma vez que “eram homens comuns e sem instrução” (gr. hóti ánthrōpoi agrámmatoi eisin kaì idiōtai, v. 13b). Acima de tudo, ficaram intrigados por serem homens que evidentemente “haviam estado com Jesus” (gr. hóti autoīs Iēsoū ēsan, v. 13c). Além disso, estavam perturbados porque “o homem que fora curado” os acompanharia (v. 14). O que aquele mendigo aleijado estava fazendo ali no Sinédrio? A questão é que, diante de tudo isso, “nada podiam dizer contra eles” (gr. oudèn eīchon anteipeīn). Assim, concluíram que não havia outra coisa a fazer senão mandá-los embora, para que pudessem deliberar entre si. Na

verdade, o nível de confusão, contradição e conflito dos membros do Conselho judaico era notável (v. 16,17). A penalidade dos apóstolos (v. 18-20). O Conselho judaico sentiuse compelido a fazer algo para deter o que parecia incontrolável, ou seja, o testemunho e a ação dos apóstolos e seus seguidores acerca da ressurreição de Jesus. No entanto, nem mesmo isso eles conseguiram na reunião do Sinédrio, pois, ao impor o silêncio como uma pena (“que não falassem”; gr. kathólou mē fthéngesthai, “não falem nada”), os apóstolos fizeram exatamente o que acabara de lhes ser proibido, ou seja, falar e ensinar em nome de Jesus. A resposta deles foi direta: “Não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (gr. ou dynámetha gàr hēmeīs hà eídamen kaì ēkoúsamen mē laleīn, v. 20). O poder dos apóstolos (v. 21,22). Os poderosos da época não sabiam o que fazer diante do novo poder que os apóstolos representavam. Seu poder e prestígio não foram suficientes para negar o que era evidente quanto ao novo poder em operação (v. 16). Então, deixaram ir os apóstolos, admitindo assim uma grande derrota nesse choque de poder espiritual. Eles os deixaram ir não porque buscavam a justiça e a verdade, mas por não poderem derrotá-los por causa do povo. No fundo, portanto, o que se vê nessa passagem é uma luta pelo poder, em que o poder que agia nos apóstolos é vitorioso. A vitória do poder de Deus resultou em todos “louvando a Deus pelo que acontecera”, pois um aleijado de quarenta anos “fora curado milagrosamente”. Os confrontos de poder não se limitaram aos tempos apostólicos, mas se repetiram continuamente ao longo da história do testemunho cristão, até hoje.

O testemunho e as testemunhas (4.1-22)

Essa passagem chama nossa atenção para duas questões relacionadas com a proclamação do evangelho do Reino: o testemunho e as testemunhas. O testemunho (v. 1-12). O que é o testemunho cristão? É a descrição que faz o crente de sua experiência pessoal a respeito do impacto de Jesus e da nova vida que vem com ele. Usado com sabedoria e poder, o testemunho é uma parte importante da evangelização e uma condição para sua eficácia. No Novo Testamento, há uma rica teologia de testemunho. O testemunho é uma exigência intrínseca do dinamismo da fé (2Coríntios 4.13). Consiste, acima de tudo, no pronunciamento querigmático, a proclamação direta e pública do propósito divino da salvação de todos em Jesus. Em Atos, porém, há uma forma de testemunho que não é pregação: o testemunho de vida. A conversão de não crentes resultava tanto da qualidade de vida dos cristãos quanto de sua pregação (5.12-16). O bom comportamento é a chave para um bom testemunho (1Pedro 2.12). No entanto, a pregação e o testemunho de vida não estão em oposição, e no uso comum o “testemunho cristão” também designa a proclamação explícita do evangelho e as boas obras realizadas em nome do evangelho (curas, milagres, sinais). O testemunho cristão consiste em reconhecer Cristo publicamente (Mateus 10.32; Lucas 12.8); anunciar tudo que Deus fez (Salmos 9.1; 26.7; Isaías 40.2; Jeremias 51.10); estar pronto para defender o evangelho (1Pedro 3.15); confessar oralmente que Cristo é o Senhor (Romanos 10.9); declarar a grandeza do nome do Senhor (Salmos 22.22; Hebreus 2.12); fazer brilhar a luz do

evangelho (Mateus 5.14-16; Marcos 4.21,22). Com relação ao testemunho apostólico nessa passagem, dois fatores se destacam. O contexto. O testemunho apostólico não foi dado no vácuo, mas em determinado contexto. Acontecia em um contexto de grande oposição e perseguição. Quando Jesus enviou os Doze, alertou-os precisamente de que isso iria acontecer (Mateus 10.16-18). A história do testemunho cristão ao longo dos séculos comprova o cumprimento literal dessas palavras. Os crentes testificaram muitas vezes à custa da própria vida. A palavra “mártir” provém do termo grego mártys, que significa “testemunha”. Seguir Jesus e anunciá-lo como o Messias significa estar exposto o tempo todo a provações e sacrifícios e enfrentar a rejeição dos que não creem, especialmente os religiosos recalcitrantes. Quando Pedro e João deram seu testemunho diante do povo, o sistema religioso voltou-se contra eles de forma violenta, mas os apóstolos não se intimidaram, convictos que estavam da promessa do Senhor (Mateus 10.19,20). O conteúdo. O testemunho apostólico tinha um conteúdo singular e claro: Jesus Cristo de Nazaré, o Senhor crucificado e ressuscitado, é o único Salvador. Pedro, cheio do Espírito Santo, anunciou esse fato ao mesmo Conselho judaico perante o qual Jesus comparecera e que o havia condenado à morte. Os religiosos de sempre queriam construir um caminho de salvação próprio, por isso dão nome (denominam) às suas instituições, aos seus ritos, credos e dogmas, às suas estruturas de poder e aos códigos de conduta como caminhos de redenção. Diante dos superiores hierárquicos do templo, dos saduceus e de outros líderes religiosos da nação judaica, Pedro declarou solenemente o cerne do evangelho: “Não há salvação em nenhum outro [nome,

denominação, sistema religioso], pois, debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (v. 12). Este é o testemunho cristão básico! As testemunhas (v. 13-22). Quatro fatores se destacam em Pedro e João como testemunhas do evangelho do Reino. Sua bravura. Causa-nos admiração o fato de terem falado perante o Conselho judaico e ainda julgado seus juízes. Viraram a mesa e de acusados passaram a ser acusadores, tanto do povo quanto das autoridades. Os apóstolos os declararam culpados pela crucificação de Cristo, e o fizeram sem rodeios. De onde vinha tanta coragem e firmeza? Da certeza de que estavam dizendo a verdade, pois eram testemunhas de que Cristo vivia e de que milagres eram realizados em seu nome, tão maravilhosos e reais quanto os que ele realizara durante seu ministério terreno. Essa coragem também provinha do Espírito Santo, do qual foram cheios. Deus não lhes dera um espírito de timidez, mas de poder, amor e domínio próprio (2Timóteo 1.7). Por isso, não tinham medo de quem podia matar o corpo, mas não a alma (Mateus 10.28). Seu impacto. Causa-nos admiração o fato de seus juízes terem ficado impressionados com a eloquência dessas testemunhas, que nunca tiveram um treinamento rabínico profissional (v. 13a) e falavam com a sabedoria e a autoridade de seu mestre Jesus. Causou-lhes admiração também a maneira pela qual citavam e aplicavam as Escrituras não sendo rabinos, nem escribas ou mestres da lei. Essas testemunhas sabiam de que estavam falando por experiência. Seu mestre havia sido Jesus, e eles repetiam o que tinham ouvido Jesus dizer. Homens simples deixaram envergonhados e sem palavras os especialistas da religião e os

manipuladores das chaves herméticas da teologia. O Cristo vivo deve ter ficado muito feliz com tal atuação (Mateus 11.25,26). Geralmente, é a gente comum que melhor responde ao evangelho e melhor o expõe por meio de seu testemunho de vida (1Coríntios 1.26-29). Não se trata de um pedido de desculpas pela ignorância e pela falta de educação. É, isto sim, uma afirmação de que a experiência da fé (conhecimento pessoal de Deus) é o princípio da sabedoria e de todo o conhecimento (Salmos 111.10; Provérbios 1.7; 9.10). Sua afiliação. Causa-nos admiração o fato de outras pessoas reconheceram o relacionamento entre os apóstolos e Jesus (v. 13b). Pelas palavras deles, seus juízes os identificaram como seguidores de Jesus e membros de seu grupo. “A fruta não cai longe do pé”, devem ter pensado alguns sacerdotes e saduceus. Eles já haviam passado pela experiência de enfrentar Jesus no templo, e agora seus seguidores falavam a mesma língua e agiam com a mesma determinação. Não é possível ser uma testemunha eficaz do evangelho do Reino sem ter estado com Jesus. Devemos viver apegados a ele como os ramos à videira; escutar sua voz mediante a leitura dos evangelhos e pela revelação do Espírito; sentir o calor de sua pessoa; cultivar sua amizade para que os outros possam reconhecer que estivemos com Jesus (v. 13b). Sua lealdade. Causa-nos admiração sua lealdade à mensagem que proclamavam (v. 18-20). Com ameaças, seus juízes tentaram intimidá-los, para “que não falassem nem ensinassem em nome de Jesus”. Em resposta, eles perguntaram se era justo obedecer a eles em vez de obedecer a Deus. Quantas vezes o cristão depara com dilemas semelhantes! Por um lado, está o mundo a lhe prometer mil

coisas atraentes, desde que fique de boca fechada e não viva como discípulo de Jesus. Por outro lado, está Deus, que lhe ordena ser corajoso e pregar o evangelho a todas as pessoas. Martinho Lutero encontrou-se um dia diante da Dieta de Worms (abril de 1521) para prestar conta de suas convicções e de seus escritos. O papa, o imperador, os príncipes e senhores e os superiores hierárquicos da igreja pressionaram-no a se retratar do que havia declarado em seus livros. No entanto, longe de ceder, Lutero manteve sua posição e se recusou a fazê-lo. Foi assim que teve início a Reforma! Martinho Lutero: “Como Vossa Sereníssima Majestade e Vossas Senhorias pedem uma resposta simples, eu a darei de uma forma que não esteja dotada de chifres nem de dentes. Se não me convencem mediante o testemunho das Escrituras nem por um arrazoamento evidente (visto que não acredito no papa nem nos concílios apenas, pois contam que cometem erros frequentes), continuo sujeito às passagens das Escrituras aduzidas por mim, e minha consciência está cativa da Palavra de Deus. Não posso nem quero me retratar de nada, uma vez que não é prudente nem correto agir contra a consciência. [...] Que Deus me ajude!”.10

A ORAÇÃO (4.23-31)

A oração dos discípulos nessa passagem está dividida basicamente em três partes. Em primeiro lugar, eles se submeteram à soberania de Deus e lhe pediram que julgasse a ordem do Conselho judaico de não falar nem ensinar em nome de Jesus (v. 18). Em segundo lugar, os servos do Deus soberano pediram que ele lhes concedesse a capacidade sobrenatural de continuar pregando a Palavra de Deus “corajosamente.” (v. 29). Tratava-se de um eco da promessa de Jesus nos evangelhos, segundo a qual a sabedoria inspiradora do Espírito Santo estaria disponível a eles quando fossem julgados por sua fé. Em terceiro lugar, eles clamaram a Deus para continuar a operar curas milagrosas “por meio do nome do teu santo servo Jesus” (v. 30). As características da oração da igreja (4.23-31)

Assim que saíram do Sinédrio, os apóstolos dirigiram-se até o local onde um grupo de discípulos estava reunido, para lhes contar tudo que havia acontecido. Lucas não dá detalhes sobre o fato (onde, quem e como). Contudo, a unidade entre eles parece evidente (1.14; 2.44-46; 4.32; 5.12a; 15.25). Foi assim que o grupo se pôs a orar em voz alta, e oravam ao Pai. O interesse de Lucas não está nos detalhes do encontro, mas no conteúdo da oração, que expressa a mentalidade da igreja primitiva. A prática da oração em relação direta com a missão é muito necessária hoje. A oração da comunidade de fé apresentava diversas características. Uma oração de invocação (v. 24a). “Soberano” (gr. Despotés, v. 24a) é uma expressão superlativa que traduz a palavra grega

despotés, usada para expressar a relação de dependência e submissão absolutas de um escravo com relação ao seu senhor (1Timóteo 6.1,2; Tito 2.9; 1Pedro 2.18). Depois de serem ameaçados por um grupo autoritário como o Sinédrio, os crentes puseram Deus em seu trono soberano. O Senhor era soberano também sobre o Conselho judaico e sobre as circunstâncias pelas quais estavam passando. A vida deles dependia desse Soberano Senhor, não do Conselho judaico. Uma oração de reconhecimento (v. 24b). Os crentes reconheceram Deus como aquele que criou “os céus, a terra, o mar e tudo o que neles há” (gr. sỳ ho poiēsas tòn ouranòn kaì tēn gēn kaì tēn thálassan kaì pánta tà en autoīs, v. 24b; v. Êxodo 20.11). Com isso, eles estavam reconhecendo a soberania de Deus sobre sua criação. O Deus que criou o Universo é também o Deus que criou um novo povo para si. Os discípulos faziam parte da comunidade da nova aliança (Jeremias 31.31-34; Ezequiel 36.24-28) e já viviam na era do Espírito Santo (2.17,18; 1Pedro 2.9,10), por isso não dependiam de instituições humanas, mesmo as religiosas. Como herdeiros das promessas da nova aliança com o Criador, não tinham nada a temer dos seres humanos. Uma oração de submissão (v. 25-28). Esses versículos mostram que os crentes eram submissos ao plano de Deus. Enquanto oravam, o Espírito revelou a eles o significado de Salmos 2.1,2, aplicado à crucificação de Cristo. A responsabilidade imediata por tal ação recaía sobre Herodes, Pôncio Pilatos, os gentios e o povo de Israel (v. 27), embora a responsabilidade final pesasse sobre toda a humanidade pecadora e estivesse entretecida com os

desígnios eternos de Deus. Tudo aquilo aconteceu para mostrar “o que o teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que acontecesse” (gr. poiēsai hósa hē cheír sou kaì hē boulē [sou] proōrisen genésthai, v. 28). Com isso, estavam reconhecendo a soberania de Deus sobre a humanidade. Robert L. Gallagher: “O ponto principal a respeito do salmo 2 é este: Davi profetizou a rejeição e a morte de Jesus, o Messias, e os primeiros crentes haviam sido testemunhas desses acontecimentos. O desafio das nações fazia parte do plano predeterminado de Deus, e isso daria ao Filho de Deus autoridade real sobre as nações do mundo. Isso produziria nas nações pessoas que obedeceriam e adorariam de boa vontade ao rei e juiz de Deus [Cristo]. Em tudo isso, a soberania de Deus sobre a humanidade se destacou na mente daqueles que oravam em Atos 4, quando citaram o salmo 2”.11

Uma oração de petição (v. 29,30). Esses versículos mostram um triplo pedido dos crentes. Em primeiro lugar, eles oraram para que Deus lidasse com as ameaças de seus perseguidores. Observe-se que eles não pediram que os problemas acabassem ou que a perseguição tivesse fim, mas que Deus avaliasse a situação e administrasse justiça de acordo com sua vontade. Em segundo lugar, eles rogaram a Deus que lhes desse coragem para proclamar a Palavra sem medo. Sua oração era missiológica, não egoísta, e expressava a preocupação deles em cumprir a missão, não em como sobreviver à perseguição. Em terceiro lugar, eles imploraram a Deus que continuasse a fazer milagres em nome de Jesus. Até aquele ponto, as curas, sinais e maravilhas eram a chave para a incrível propagação do evangelho na cidade e o espantoso crescimento numérico da comunidade de fé. Os discípulos estavam dispostos a continuar sendo instrumentos nas mãos de Deus nessa

estratégia evangelizadora. Com isso, estavam reconhecendo a soberania de Deus sobre a situação que enfrentavam. Uma oração de poder (v. 31). O v. 31 mostra que a oração da igreja era uma oração de poder. Por isso, “depois que oraram” (gr. kaì deēthéntōn autōn) houve mais um derramamento poderoso do Espírito Santo. O que aconteceu foi muito semelhante à experiência do Pentecoste, em especial quanto a manifestações visíveis, audíveis e espirituais. O ocorrido, por sua vez, foi uma resposta imediata de Deus aos pedidos deles, acima de tudo em termos missiológicos, uma vez que “anunciavam corajosamente a palavra de Deus” (gr. eláloun tòn lógon toū theoū metà parrēsías). As características da igreja que ora (4.23-31)

Suponhamos que a igreja hoje experimente um período de oposição e que os líderes de nossas igrejas sejam convocados a comparecer diante da Suprema Corte da nação e recebam ordens para deixar de pregar o evangelho e desistir de fazer o bem em nome de Jesus. Como nos sentiríamos? Reagiríamos com ódio, com medo ou com indiferença? Agiríamos como os primeiros cristãos e nos voltaríamos para Deus, a fim de buscar nele a força necessária para enfrentar as dificuldades do momento? Nosso texto apresenta o primeiro relato detalhado da vida íntima da igreja. É como se nosso olhar se introduzisse no interior da primeira comunidade de fé, e o quadro que visualizamos é admirável. Vemos nele a igreja como um corpo com relação ao mundo exterior, mas também como uma entidade com relação a Deus. Frustrados em seus esforços para obrigar os apóstolos a abandonar o compromisso de pregar o evangelho, o Conselho judaico hesitou em

tomar uma decisão que provocasse uma reação popular (2.47; 4.21). Pedro e João deixaram o Sinédrio com a plena consciência das graves ameaças das autoridades (4.21). Como a jovem igreja lidou com a situação e que lições podemos hoje extrair dessa experiência? Há três fatores a serem observados. A paz da igreja (v. 23). Após as tempestades da perseguição (4.122), Pedro e João devem ter sentido certa paz quando “voltaram para os seus”. Também podemos imaginar a paz na congregação ao ouvir o relato deles e saber que estavam bem e continuavam firmes na fé. Duas considerações se destacam aqui. A afinidade que os unia. Por trás dessa experiência estava o cumprimento de determinada lei de associação. É interessante que os apóstolos, seguindo sua inclinação natural, “voltaram para os seus” (gr. ēlthon pròs toùs idíous). Observe-se o senso de identidade e pertencimento que a frase contém. O Conselho dos governantes e líderes eram “os outros”, os estranhos, os estrangeiros, mas a comunidade de fé era a nova família a que pertenciam e onde encontravam paz. Contudo, há também o apelo da sensibilidade, uma vez que os apóstolos valorizavam os ouvidos abertos e o coração receptivo de seus irmãos na fé, e “contaram tudo o que os chefes dos sacerdotes e os líderes religiosos lhes tinham dito”. A solidariedade que os unia. Instintivamente, os apóstolos ansiavam por contar tudo o que fora dito a eles. A razão desse relatório é que não foram apenas Pedro e João os presos, mas toda a igreja. Não era a causa dos dois apóstolos, mas a causa de todos. Como testemunhas de Jesus, todos estavam solidários na missão de proclamá-lo. O v. 32 informa que “uma era a mente e um o

coração” e que “ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham”. A RVR diz que “eles tinham todas as coisas em comum”. Isso se aplicava aos seus bens, ideais e valores, mas especialmente em relação a Cristo, porque todos eles tinham Cristo como Senhor de sua vida. Ele era objeto de um afeto comum; era o sujeito de uma pensamento comum; era a causa de uma ação comum; era a fonte de uma graça comum. A petição da igreja (v. 24-30). Essa oração está registrada nos v. 24-30. A resposta da igreja primitiva ao relato das ameaças do mundo não foi o medo, nem o contra-ataque, nem a reação violenta, mas a oração. Essa oração ou petição continha dois elementos importantes. Adoração (v. 24-28). Cientes da grandeza de Deus, eles o honraram por seu poder soberano. Assim, declararam: “Ó Soberano” (v. 24a). Ele é Soberano (v. 1Timóteo 6.15; Judas 4; Apocalipse 1.5). Deus é o Rei supremo. A palavra grega utilizada aqui, como já foi dito, é despótes, de onde vem nossa palavra “déspota”. Ele é o Senhor, e esse título reconhece a Deus como monarca absoluto sobre todas as coisas. Ele está no controle das circunstâncias, e isso explica a fé dos crentes de Jerusalém e sua oração. Eles também o honraram por seu poder criador (v. 24b). Ele é o Originador do mundo. O Credo apostólico confessa: “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra”. Essa convicção, quaisquer que sejam as palavras usadas para expressála, está no cerne de toda fé no Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Eles o honraram também por seu poder revelador (v. 25,26).

Ele é o Autor da Palavra. Na vida da igreja primitiva, a Palavra de Deus e a oração sempre andaram juntas (6.4; Efésios 6.17,18). Os crentes no cenáculo não separavam sua fé em Deus de sua fé em Jesus como o Messias. Os v. 25 e 26 foram extraídos de Salmos 2.1,2, que é um salmo messiânico. A palavra escrita e a palavra encarnada ocupavam um lugar de proeminência na oração da igreja de Jerusalém. Eles o honraram ainda por seu poder providencial (v. 27,28). Ele é o Senhor da história. Deus, em seu propósito eterno, escolheu enviar seu “santo servo Jesus” ao mundo, para que por meio dele o mundo pudesse ser salvo. A oposição dos governantes e a rejeição por parte do povo não iriam impedir o cumprimento do propósito eterno de Deus de entregar seu Filho como resgate pelos pecados do mundo. Súplica (v. 29,30). Nesse ponto, a igreja de Jerusalém apresentou ao Senhor, em oração, as ameaças recebidas. Observe-se o ânimo deles: oraram com ousadia e grande paixão, pois “levantaram [...] a voz a Deus” (gr. hoi dè akoúsantes […] ēran fōnnen pròs tòn theòn). Eles também oraram em total concordância, “juntos” (gr. homothymadòn, v. 24). Observemos seu conteúdo. O que eles pediram? É interessante que não tenham pedido proteção a Deus, e sim capacidade “para anunciarem a tua palavra corajosamente” (v. 29). Também não pediram tranquilidade, mas utilidade, ou seja, poder “para curar”. Tampouco pediram aceitação social ou popularidade, mas capacidade para “realizar sinais e maravilhas por meio do nome do teu santo servo Jesus” (v. 30). Carlos Mraida: “Devemos trabalhar rumo a uma igreja que se renove na ousadia e nos sinais do Espírito Santo:

‘Agora, Senhor, considera as ameaças deles e capacita os teus servos para anunciarem a tua palavra corajosamente. Estende a tua mão para curar e realizar sinais e maravilhas por meio do nome do teu santo servo Jesus’ (4.29,30). Pelo menos duas coisas são necessárias para que se produza impacto numa cidade: uma igreja que sinta paixão por evangelizar e uma igreja com grandes sinais e milagres que possam sacudir o ceticismo do povo. Conforme cresce e se estabelece, a igreja corre o risco de se acomodar, porque já tem seus templos cheios, seus programas implantados, suas necessidades e seus orçamentos garantidos. Em um processo lento, porém crescente, a igreja vai perdendo seu fio evangelizador, seu empenho na missão e por fim o impacto que o poder do Espírito Santo produz na sociedade. Muitas vezes, idealizamos a igreja primitiva, porém vemos em Atos 4 que essa igreja está pedindo ousadia e sinais, e só se pede o que não se tem. Por isso, aquela igreja pedia que Deus lhe concedesse a libertação do medo e que estendesse sua mão com sinais e prodígios. Eles sentiam que eram uma igreja sem ousadia para pregar, pois estavam paralisados pelo medo, daí o isolamento em que estavam. Não havia no meio deles sinais que causassem impacto à sociedade. Uma igreja em permanente reforma é uma igreja que pede continuamente uma renovação da ousadia e dos sinais e, como aquela primeira igreja, experimenta a resposta maravilhosa do Espírito Santo que a impulsiona com uma nova intrepidez na missão, respaldada por sinais, milagres e maravilhas”.12

O poder da igreja (v. 31). O texto informa que “depois de orarem, tremeu o lugar em que estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus”. Uma experiência semelhante à do dia de Pentecoste ocorreu ali. Como naquele dia, a experiência foi resultado de uma oração. Observe-se que a transmissão do poder do Espírito foi imediata (“depois de orarem”), palpável (“tremeu o lugar em que estavam reunidos”), evidente (“todos ficaram cheios do Espírito Santo”) e eficaz (“anunciavam corajosamente a palavra de Deus”).

O potencial da igreja (v. 23-31). Portanto, essa passagem apresenta um retrato e uma possibilidade, que revelam o potencial da igreja. Um retrato. Como já se sugeriu, esses versículos nos permitem fazer o que as meninas fazem com uma casa de boneca: erguer o telhado para ver o que há lá dentro. Quando olhamos para a igreja de Jerusalém nesse momento de sua história, deparamos com um quadro maravilhoso e detalhado. O que vemos? Vemos um grupo de pessoas que amam e conhecem uns aos outros. Vemos uma restrição ao egoísmo próprio, que resulta em maior glória de Deus e no bem-estar do próximo. Vemos uma expressão de Cristo na unidade do amor e da fé nele. Vemos uma manifestação de poder na ousadia da pregação e na beleza da comunhão entre os irmãos. Uma possibilidade. A visão geral da vida e do testemunho da igreja primitiva em Jerusalém mostra seu enorme potencial como congregação de testemunhas do evangelho de Cristo. O que tudo isso significa para nós hoje? Qual a possibilidade de vivenciarmos experiências semelhantes em nossos dias? Não há motivo para que essa operação do Espírito Santo, verificada há mais de dois mil anos naquela comunidade de fé, não possa se repetir entre nós hoje, se estivermos dispostos a permitir que o Senhor pinte um retrato semelhante ao daquela congregação. Isso implica a necessidade de pedir poder do alto, e devemos fazê-lo de coração, de forma unânime, inteligente e abnegada. Implica também a possibilidade de receber poder do alto, e devemos esperar que todos sejamos cheios do Espírito Santo, se quisermos prestar um serviço especial na proclamação corajosa da Palavra de Deus. De que maneira, então, o retrato da igreja primitiva mostrado nesses

versículos se verá refletido em nossa igreja local hoje? Somos uma igreja em paz, apesar dos conflitos? Somos uma igreja em oração? Somos uma igreja cheia do poder de Deus? Não será possível anunciar a Palavra de Deus com ousadia se a paz, a petição e o poder não fizerem parte da experiência de nossa comunidade de fé. Alejandro J. Desecar: “A comunidade dos crentes nutre-se da fonte do Espírito. Mais ainda: por orientar a ação missionária e criar ministérios dentro da igreja, por dar nova vida a quem crê no Senhor morto e ressuscitado, por promover a unidade da igreja — em uma palavra, por constituir sua vida interior, o Espírito Santo é a atmosfera que a igreja respira. Ele é seu verdadeiro motor interno”.13

A COMUNIDADE (4.32-35)

Os primeiros dias da vida da igreja primitiva foram extraordinários. Foram dias de grande emoção para os que assumiram o compromisso de seguir Jesus. Ao chegar ao final do cap. 4 e início do cap. 5, encontramos uma comunidade cristã que havia começado a experimentar a realidade de que nada era capaz de deter o Reino de Deus, nem mesmo os poderes mundanos, religiosos e políticos, como o Sinédrio (o Conselho judaico). As portas do Hades, como Jesus havia dito, não conseguiam resistir ao embate com a igreja e seu firme testemunho do evangelho. Deus se manifestou fisicamente outra vez, agora sacudindo o lugar onde os crentes oravam (4.31). Na ocasião, já havia muitos novos crentes, que não tinham experimentado o poder de Deus no dia de Pentecoste. Agora tiveram a oportunidade de ver e sentir o que os 120 discípulos haviam experimentado no cenáculo. Mais uma vez, “todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus”. É nesse contexto de intensas experiências espirituais que devemos entender a práxis da fé daqueles crentes como comunidade do Reino. A comunidade do Reino (4.32-35)

A maneira em que Lucas apresenta a comunidade do Reino nesses versículos é interessante, pois ele descreve como ela foi formada. Lucas menciona uma variedade de membros ativos e comprometidos dessa comunidade. Todos os crentes (v. 32). Afirma-se “da multidão dos que creram” (gr. toū dè plēthous tōn pisteusántōn, v. 32) que eles eram de um só

sentir e pensar (“uma era a mente e um o coração”, gr. ēn kardía kaì psychē mía; lit., “um só coração e alma”) e agia com surpreendente solidariedade. Não é possível fazer uma distinção precisa entre “coração” e “mente” aqui (v. Marcos 12.30), apenas se pode dizer que a expressão indica uma atitude unânime de pensamento e afeto. Como já foi dito, tal atitude, como grupo de crentes, era refletida em sua concepção da realidade total, a tal ponto que “ninguém [gr. oude heīs] considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham” — quanto ao uso e exploração, não em termos de domínio ou título de propriedade. Era uma comunidade de uso, não de domínio. Cada um era dono de seus bens, mas estes estavam a serviço de todos, conforme a necessidade do momento. Era desse modo que eles “compartilhavam tudo o que tinham” (gr. all’ ēn autoīs hápanta koiná). É impossível entender essa prática da comunidade de bens sem levar em conta que não foi fruto de imposição, e sim de uma atitude de amor solidário de pessoas que de fato se consideravam membros de um só corpo, o corpo de Cristo. A necessidade de um membro era a necessidade de todos, e a bênção recebida por alguém devia ser compartilhada com todos os que precisassem de ajuda. Essas ações também não eram entendidas como obras meritórias, sacrifícios de renúncia ou voto de pobreza. Os primeiros cristãos não exaltavam a pobreza como virtude nem faziam da generosidade imposta uma medida para forçar uma igualdade. Os fiéis compartilhavam seus bens como expressão de ação de graças a Deus pelas bênçãos recebidas e como forma de servi-lo na vida dos irmãos em necessidade (Mateus 10.40-42; 25.34-40).

Os apóstolos (v. 33a). Afirma-se dos apóstolos que “com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar da ressurreição do Senhor Jesus” (gr. kaì dynámei megálē apedídoun tò martýrion hoi apóstoloi tēs anastáseōs toū kyríou Iēsoū). Observe-se a relação entre o testemunho da ressurreição e o grande poder com que testemunhavam, especialmente após a resposta de Deus à sua oração (v. 31). Sem dúvida, a questão da ressurreição de Jesus era o assunto mais doloroso para os saduceus e o motivo pelo qual Pedro e João foram presos (v. 1-3). Todos os crentes e apóstolos (v. 33b-35). Afirma-se de toda a comunidade do Reino, ou seja, de todos os crentes e seus líderes que “grandiosa graça estava sobre todos eles” (gr. cháris te megálē ēn epì pántas autoús), de modo que não havia necessitados entre eles. A abundância da generosidade do amor divino provocou uma generosidade enorme entre os crentes, de modo que “não havia pessoas necessitadas entre eles” (gr. oudè gàr endeēs tis ēn en autoīs). Convém lembrar que essa comunidade já constituía uma grande multidão, o que resultou em uma práxis nada fácil de ser realizada. No entanto, adotou-se o mecanismo segundo o qual os irmãos que possuíam bens imóveis (casas ou terrenos) sem uso vendiam-nos e entregavam o dinheiro da venda aos apóstolos “que o distribuíam segundo a necessidade de cada um” (gr. diedídeto dè hekástōi kathóti án tis chreían eīchen). É notável o fato de que, logo após descrever uma experiência espiritual tão profunda quanto a do v. 31, Lucas passe a considerar questões materiais e previdenciárias. Na verdade, o espiritual e o material não estão assim tão separados na vida cristã, como em geral se supõe. A solidariedade comunitária dos primeiros crentes

era a expressão direta da realidade de que “todos ficaram cheios do Espírito Santo” e da “grandiosa” (gr. megálē) graça de Deus que haviam experimentado. A partilha de bens na comunidade de fé não deve ser entendida como uma imposição, e sim como um acordo voluntário. Não deve ser classificada como uma espécie de “comunismo cristão”, uma vez que o direito de propriedade, como já foi dito, não estava abolido. A comunidade não controlava os bens até que fossem entregues aos apóstolos. Além disso, a distribuição dos recursos não era feita em partes iguais, mas de acordo com a necessidade de cada um, e nem todos contribuíram com a mesma quantia. Friedrich W. Horn argumenta que a expressão plena do idealismo refletido por Lucas não é o comunismo rígido, mas uma comunhão amorosa, na qual as necessidades dos crentes eram atendidas por meio dessas ofertas. De acordo com ele, Lucas via o ideal como o desapego da atração idólatra pelos bens e sua utilização positiva na forma de doações aos necessitados.14 Em suma, a experiência suscita o dilema sobre o que o cristão deve fazer com seus bens. Deve doar todos eles ou usá-los com sabedoria? Ao discorrer sobre essa passagem, David Peter Seccombe defende a prudência e a solidariedade na administração dos bens pessoais, pois entende que essa é a percepção de Lucas, tanto em seu evangelho quanto em Atos.15 Os sinais do Reino (4.32-37)

Depois de descrever a maravilhosa experiência de oração da igreja, Lucas muda o curso de seu relato e, como de costume, faz uma pausa para que se contemple o quadro mais amplo. Nesses versículos, o autor de Atos avalia o comportamento em geral da

recém-nascida congregação e mostra um estilo de vida que refletia os valores do Reino de Deus. A vida deles revelava o que podemos denominar “os sinais do Reino”. Desde o início de sua existência como comunidade de fé, os crentes incorporaram duas práticas de fundamental importância em seu modo de viver: 1) eles compartilhavam generosamente seus bens materiais uns com os outros; 2) eles davam um testemunho poderoso do evangelho de Jesus. Como resultado, “grandiosa graça estava sobre todos eles”. Deus correspondeu à dedicação e à consagração daqueles crentes derramando sua mais rica bênção. Generosidade e testemunho: essas duas características da igreja da cidade de Jerusalém eram sinais de que a presença do Reino de Deus estava no meio deles. O texto em estudo dá especial destaque à generosidade da congregação. É sobre esse sinal em particular, resultante da presença do Reino no estilo de vida da igreja primitiva, que convém ponderar de maneira mais acurada. Nosso texto reflete três aspectos dessa generosidade: o início, a provisão e a prática. O princípio da generosidade (v. 31,32). Duas questões se destacam nesse aspecto. A questão de que o Reino de Deus se manifesta por meio de sinais. Essa afirmação suscita duas outras questões, que precisam ser respondidas para entendermos melhor o princípio da generosidade cristã. A primeira pergunta que precisamos responder é: o que vem a ser o Reino de Deus? O Reino de Deus é o coração da mensagem cristã. É isso que pregamos. Como Jesus ensina em Mateus 24.14: “Este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações”. É também o que oramos, uma vez

que acompanhamos Jesus em sua oração-modelo e clamamos: “Venha o teu Reino” (Mateus 6.10). No entanto, se é isso que pregamos e oramos, como saber se nossa pregação está surtindo efeito e quando nossas orações são respondidas? A única maneira é observando os sinais tangíveis da presença do Reino entre nós. O Reino de Deus está presente no mundo por meio das comunidades de crentes que reconhecem Jesus Cristo como Senhor de sua vida e manifestam os sinais do Reino que caracterizam o estilo de vida cristão, individual e coletivamente. A segunda pergunta que precisamos responder é: como o Reino de Deus se manifesta? Os sinais do Reino evidenciam a realidade e a vigência do Reino de Deus. Quando Jesus iniciou seu ministério público, ele o fez proclamando: “Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo” (Mateus 4.17). No início de seu ministério, Jesus pregou na sinagoga de Nazaré e ali tornou pública sua agenda citando Isaías 61.1,2, que é uma lista de sinais do Reino. A lista inclui: • • • •

Pregar o evangelho aos pobres. Curar os quebrantados de coração. Proclamar a liberdade aos cativos. Restaurar a visão aos cegos.

• Libertar os oprimidos. • Instituir o ano da graça do Senhor. Durante seu ministério, João Batista enviou dois de seus seguidores a Jesus a fim de interrogá-lo sobre a vinda do Reino. A pergunta dos discípulos a Jesus foi: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar algum outro?”. A resposta de Jesus a essa

questão fundamental não foi um discurso, nem um credo, nem uma declaração de fé, nem um código ético, e sim ações redentoras: “Naquele momento Jesus curou muitos que tinham males, doenças graves e espíritos malignos, e concedeu visão a muitos que eram cegos. Então, ele respondeu aos mensageiros: ‘Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos veem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas-novas são pregadas aos pobres’ ” (Lucas 7.19-23). Mais uma vez, Jesus respondeu fazendo referência a uma lista de sinais do Reino: • • • • • •

Curar os enfermos. Expulsar demônios. Fazer os coxos andarem. Purificar os leprosos. Restaurar a audição dos surdos. Ressuscitar os mortos.

Mais tarde, Jesus enviou seus discípulos a pregar o evangelho por todo o mundo, com a promessa de que sua proclamação seria acompanhada de sinais da presença do Reino: “Vão pelo mundo todo e preguem o evangelho a todas as pessoas. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado. Estes sinais acompanharão os que crerem: em meu nome expulsarão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal nenhum; imporão as mãos sobre os doentes, e estes ficarão curados” (Marcos 16.1518). Observe-se que nessa declaração vários sinais do Reino são

citados de novo e alguns que ainda não haviam sido mencionados, como: • Falar novas línguas. • Pegar serpentes com as mãos. • Sobreviver a substâncias venenosas. Onde quer que o Reino de Deus esteja presente, haverá manifestações de seus sinais. A questão de que a generosidade é um sinal do Reino de Deus. A generosidade caracterizou a igreja de Jerusalém desde seu primeiro dia de existência. A última vez que Lucas abriu um parêntese para descrevê-la e avaliá-la foi depois do dia de Pentecoste, quando ele menciona a generosidade como estilo de vida da congregação de Jerusalém (2.44,45). Agora ele a descreve outra vez, após uma experiência semelhante à do Pentecoste, e de novo a generosidade se destaca como sinal da presença do Reino: “Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham” (4.32). A generosidade é um sinal do Reino que caracteriza uma igreja cheia do Espírito Santo (4.31). O próprio Jesus ensinou a considerar secundários os bens materiais. Ele disse: “Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e onde os ladrões arrombam e furtam” (Mateus 6.19; v. Lucas 12.32-34). Só uma igreja cheia do Espírito Santo pode obedecer ao ensino de Jesus e agir da mesma forma que a igreja de Jerusalém (4.32b). A generosidade, como sinal do Reino, não significa desprezo pelas coisas materiais. O princípio da generosidade não consiste em

deixar de lado os bens materiais, mas em que não os ponhamos em primeiro lugar. Jesus não ensinou a abandonar nossos bens, e sim a pôr o Reino de Deus em primeiro lugar (Mateus 6.33). Se buscarmos primeiramente o Reino de Deus e seus valores, não nos faltarão “todas essas coisas”, ou seja, os bens materiais. Com eles, temos a oportunidade de abençoar outras pessoas com as bênçãos que recebemos do Senhor (Gênesis 12.1-3). A provisão de generosidade (v. 33,34a). Três questões se destacam nesse aspecto. Deus nos dá a capacidade de ser generosos (v. 33a). A expressão “com grande poder” (v. 33a) aplica-se não só à pregação dos apóstolos, mas também à prática do princípio da generosidade como sinal do Reino de Deus. Na verdade, todos os sinais do Reino são manifestações do poder de Deus. A menos que o poder de Deus preencha nossa vida, não conseguiremos exercer o princípio da generosidade de forma sobrenatural. Além disso, o Novo Testamento apresenta a generosidade como um dom do Espírito Santo. É o que o apóstolo Paulo qualifica como o dom da generosidade ou da liberalidade ao ensinar sobre os dons do Espírito: “Se é contribuir, que contribua generosamente” (Romanos 12.8). O dom da liberalidade é a capacidade que Deus concede aos membros do corpo de Cristo de contribuir generosa e alegremente com seus bens materiais para a obra do Senhor. Essa é uma graça (um dom) que todo crente pode exercer e desfrutar. Paulo adverte os coríntios: “Assim como vocês se destacam em tudo: na fé, na palavra, no conhecimento, na dedicação completa e no amor que vocês têm por nós, destaquem-se também neste privilégio de contribuir” (2Coríntios 8.7).

Deus provê os recursos para sermos generosos (v. 33b). A generosidade cristã é exercida com o que se recebe imerecida e plenamente da parte de Deus. Foi o que aconteceu com os primeiros cristãos: “Grandiosa graça estava sobre todos eles” (v. 33b). De modo sobrenatural, Deus põe em nossas mãos o que ele deseja que lhe ofereçamos (1Crônicas 29.14; 2Coríntios 9.8-11). Ser um bom mordomo é devolver a Deus com liberalidade o que ele confiou de forma generosa à nossa administração. Deus produz resultados se formos generosos (v. 34a). Quando a generosidade é exercida como dom do Espírito Santo, o resultado é que todas as necessidades são atendidas. Essa foi a experiência da igreja de Jerusalém, porque “não havia pessoas necessitadas entre eles” (v. 34a). Quando todas as necessidades são atendidas, surgem ainda outros resultados positivos e inesperados. Um deles é a ação de graças dirigida a Deus, como ocorreu no caso da coleta que Paulo arrecadou para os crentes de Jerusalém (2Coríntios 9.1214). Nesse episódio, outro resultado inesperado foi a alegria, “pois Deus ama quem dá com alegria” (2Coríntios 9.7). Além disso, a generosidade conduziu a uma prosperidade maior, uma vez que se cumpriu uma lei que devemos recordar: “Aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semeia com fartura também colherá fartamente” (2Coríntios 9.6). Vale lembrar também o que Paulo ensina em Gálatas 6.7b,9,10: “O que o homem semear isso também colherá. [...] E não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo próprio colheremos, se não desanimarmos. Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé”.

A prática da generosidade (v. 34b-37). Nesses versículos, verificamos duas questões a serem consideradas com relação à generosidade cristã. A prática coletiva da generosidade cristã (v. 34b,35). “Os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o punham aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um” (v. 34b,35). Quatro fatores chamam nossa atenção nesse texto. 1) Observe-se a venda de bens imóveis para ofertar: “Os que possuíam terras ou casas as vendiam”. Os crentes de Jerusalém decidiram implementar o princípio da generosidade com a venda de seus bens. Contudo, não devemos confundir o princípio com a prática: vender terras e casas não é a única forma de exercer o princípio da generosidade. O importante era a atitude de desapego dos bens e a disposição de pôr o que possuíam a serviço de Deus. 2) Observe-se a oferta de dinheiro em espécie: “Traziam o dinheiro da  venda”. O dinheiro é mais fácil de administrar e de aplicar às necessidades da igreja, especialmente na assistência aos pobres. É bom incentivar os crentes a preparar sua oferta de sacrifício em dinheiro, não em outros tipos de bens. 3) Observe-se a entrega da oferta aos apóstolos: “[...] e o colocavam aos pés dos apóstolos”. Os apóstolos são os responsáveis por exercer liderança geral sobre toda a igreja e suas congregações supervisionando e coordenando os ministérios. Eles são verdadeiros administradores ministeriais. Os apóstolos recebem a visão de Deus para a igreja em determinado tempo e lugar e a comunicam ao povo. São os responsáveis pela visão geral da igreja na cidade. Deus deu a Paulo a visão da oferta de sacrifício em favor

dos santos de Jerusalém (cap. 18) e pôs sob a autoridade dele sua administração (18.18-21) Hoje, como no passado, os autênticos apóstolos sabem cumprir esse ministério. 4) Observe-se a administração do que foi oferecido de acordo com a necessidade: “[...] que o distribuíam segundo a necessidade de cada um”. O critério de administração da oferta era atender às necessidades mais urgentes da congregação e de seus membros. A oferta sacrificial tem um destino específico, que resulta da decisão da congregação, e deve ter como prioridade os mais necessitados. A prática individual da generosidade cristã (v. 36,37). Esses versículos mostram um dos líderes da igreja de Jerusalém: José, chamado Barnabé.O nome José significa “alguém a quem Deus ajuda”, e o apelido Barnabé significa “filho da exortação (alento)” ou “filho da consolação”. Tanto o nome quanto o apelido combinavam perfeitamente com seu caráter e com sua personalidade. Desse homem em particular, é dito que sua disposição e sua virtude serviam de alento e de consolo aos aflitos, pelo fato de ser um homem rico e muito abençoado (ajudado) por Deus nas coisas materiais. 1) O caso de Barnabé (v. 36). Lucas menciona Barnabé como personagem proeminente em Atos mais de 20 vezes. Essa é a primeira menção a ele. Lucas escolhe Barnabé como exemplo de crente que sabia manifestar, pela sua generosidade, os sinais do Reino. Lucas classifica Barnabé como “um homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé” (11.24). Já o v. 36 descreve a pessoa de Barnabé. Diz que era levita, provavelmente judeu helenístico, ou seja, nascido e criado fora da Palestina (natural “de Chipre”) e de cultura grega. Barnabé era um grande motivador, ou seja, era bom

em consolar, exortar, encorajar e confortar os outros. Por isso, os apóstolos chamavam-no Barnabé, que significa “consolador” ou “filho da consolação”. 2) A contribuição de Barnabé (v. 37). O texto diz que ele “vendeu um campo que possuía, trouxe o dinheiro e o colocou aos pés dos apóstolos”. Observe-se que ele procedeu exatamente como outros membros da congregação: vendeu um imóvel para fazer doação e depois trouxe o dinheiro em espécie e depositou sua oferta aos pés dos apóstolos. Certamente, sua oferta foi bastante generosa e atendeu de tal forma às necessidades da igreja de Jerusalém que seu gesto mereceu uma menção especial. A Bíblia é muito clara sobre a importância de compartilhar os bens que possuímos, especialmente com os necessitados: é melhor dar do que receber (20.35); a doação deve ser feita com generosidade (Deuteronômio 15.7-11); dar aos pobres e necessitados é um mandamento bíblico (Provérbios 31.20); a doação deve ser feita com amor, caso contrário será inútil (1Coríntios 13.3); dar é sinal de salvação (Lucas 19.8,9); a doação deve ser feita sem hipocrisia e em segredo (Mateus 6.1-4); encher as mãos para dar e receber mais é da vontade de Deus (Provérbios 11.24); dar aos pobres é ter um tesouro no céu (Mateus 19.21); dar aos pobres o que possuímos nos torna limpos (Lucas 11.41); dar é um dever moral (Levítico 25.35-38).

A GENEROSIDADE (4.36—5.11)

A questão da generosidade, nesse momento da vida da comunidade do Reino em Jerusalém, era tão significativa que merece uma consideração mais detalhada e profunda da parte de Lucas. O evangelista faz uma pausa nessa passagem para estabelecer um nítido contraste entre a generosidade de Barnabé e a mesquinhez de Ananias e Safira. A generosidade de Barnabé (4.36,37)

Se há uma palavra que descreve Barnabé plenamente é “generoso”. As passagens de Atos em que esse homem é mencionado revelam essa verdade. São três as passagens e estão relacionadas com a venda de algumas de suas terras para benefício dos necessitados em Jerusalém (4.36,37); com a apresentação do suspeito Saulo de Tarso aos apóstolos em Jerusalém (9.26,27); com o desentendimento entre ele e Paulo por causa de Marcos, quando insistia em dar uma nova chance ao desafortunado jovem (15.3640). Todas essas passagens apresentam Barnabé como um homem generoso. Barnabé era um homem de mãos generosas (4.36,37). Ele vendeu sua propriedade e pôs o dinheiro à disposição dos apóstolos. Por um lado, a generosidade de Barnabé não deve ser medida pelo que ele deu, mas pelo que guardou para si. A generosidade não é a quantia em uma soma, e sim a quantia em uma subtração. Valem mais as moedas dos pobres que as cédulas dos ricos quando aqueles, ao doar, retiram do que necessitam para viver (como a viúva pobre, Marcos 12.41-44). Por outro lado, a

generosidade de Barnabé teve sua expressão em uma vultosa oferta. Ele não só doou todo o dinheiro obtido com a venda de terras, como fez uma grande doação. Costumamos achar que é mais fácil para os ricos doar muito dinheiro, mas não é assim. Quem tem mais quer mais ainda. Além disso, Barnabé mostrou quanto era generoso ao doar todo o produto da venda do terreno. Somos capazes de fazer algo assim? Às vezes, nem mesmo doamos o que podemos dar. Barnabé era um homem de mente generosa (9.26,27). Ele ofereceu o calor de sua amizade e sua confiança a Saulo de Tarso, quando todos desconfiavam deste. Barnabé tinha a mente aberta para o próximo. Não é comum alguém que é generoso com sua riqueza ser também generoso na maneira de julgar o próximo. Barnabé tinha a mente tão aberta quanto suas mãos. Saulo, o perseguidor, havia se convertido e procurava se relacionar com os cristãos em Jerusalém, a quem ele havia acossado com fúria e crueldade. Suas mãos estavam manchadas de sangue, e seu coração “respirava ameaças de morte contra os discípulos do Senhor” (9.1). Era natural que os crentes suspeitassem dele e tentassem evitá-lo. Não fosse por Barnabé, Paulo teria sido um crente, mas jamais teria se tornado o grande apóstolo que foi. Mais tarde, quando se iniciou o testemunho em Antioquia, na Síria, Barnabé foi buscá-lo, integrou-o à obra e lhe deu total apoio. Foi ele quem apresentou Paulo ao ministério. Além disso, Barnabé tinha a mente aberta a novas ideias. Os pensamentos de Paulo eram considerados revolucionários pelos judeus ortodoxos de Jerusalém, mas Barnabé os entendia e apoiava.

Barnabé era um homem de coração generoso (15.36-40). Ele foi paciente e compreensivo com relação ao seu parente João Marcos. Talvez essa tenha sido a circunstância mais dolorosa de sua vida, quando teve uma discussão muito séria com Paulo. Barnabé queria que Marcos os acompanhasse em sua segunda viagem missionária, mas Paulo se mostrou duro e intransigente, por causa da deserção do jovem na primeira viagem (13.13). A divergência foi tão grande que eles se separaram para nunca mais se encontrar, pelo que sabemos. No entanto, a igreja deve à generosidade do coração de Barnabé ter um apóstolo Paulo e um evangelho como o de João Marcos. Na verdade, por fim o próprio Paulo concordou com Barnabé (2Timóteo 4.11). Não deveríamos também cultivar esse espírito em nossa vida? Seja generoso de mãos, mente e coração. Esta é a tripla mensagem da generosidade de Barnabé. A mesquinhez de Ananias e Safira (5.1-11)

Os milagres narrados no Novo Testamento quase sempre tinham como propósito mostrar a misericórdia de Deus para com os seres humanos. Nesse caso, porém, a intenção da ocorrência sobrenatural foi mostrar a justiça de Deus. O incidente produziu uma sensação de profundo temor reverencial (“grande temor”, gr. egéneto fóbos mégas) em toda a igreja (gr. ef’ hólēn tē ekklēsían) e em “todos os que ouviram o que tinha acontecido” (gr. kaì epì pántas toùs akoúontas taūta). Não é um bom negócio mentir a Deus ou a seus filhos. O pecado da hipocrisia. O pecado do casal foi a hipocrisia, o mesmo que Jesus condenou fortemente nos fariseus e pelo qual

foram punidos. A ação, levada a efeito de comum acordo, tinha como objetivo construir uma imerecida reputação de generosidade e desprendimento. Não foi um roubo, porque ninguém lhes negou os direitos de propriedade sobre seus bens, nem eles foram obrigados a contribuir para o fundo de assistência aos necessitados. O problema é que pretendiam parecer o que não eram e fazer o que não estavam dispostos a fazer. Por isso, Pedro acusou Ananias de agir sob a influência de Satanás, o pai de toda mentira. O pecado em parceria. Ananias não agiu sozinho. Ele tinha a esposa como cúmplice, tão responsável quanto ele por suas mentiras e por sua hipocrisia. A punição pode parecer excessiva, mas o pecado cometido (mentira, hipocrisia e falsidade) seria mais letal para a comunidade de fé naquele momento que o ocorrido com o infiel casal. Deus não trata a mentira com leviandade e adverte fortemente contra sua prática (Apocalipse 21.8,27). É provável que a razão do castigo fosse que, ao fingir que doavam tudo, podiam reivindicar o auxílio do fundo comum. Assim, teriam feito um bom negócio: ficariam com“parte do dinheiro” da venda de seus bens e ainda viveriam à custa da igreja. Pecado na igreja. A mentira de Ananias e Safira mostra que a igreja não é perfeita e que há pecado nela, mas também nos incentiva a purificar a igreja do pecado, para que o poder do Senhor se manifeste plenamente nela, e assim muitos sejam conquistados para o Reino de Deus. O juízo de Deus sobre o pecado existente na igreja é necessário e saudável, embora às vezes não seja plenamente compreendido. O juízo derramado pode ser uma preparação para o derramamento do poder e da graça de Deus. A

igreja deve ser purificada e permanecer pura se quiser cumprir sua missão redentora no mundo. Quanto mais profunda for a obra da graça divina em meio ao povo de Deus, mais poderosa será a ação da igreja no mundo. Em contraste direto com as mentiras e a hipocrisia de Ananias e Safira está a generosidade de Barnabé. Ele foi um dos principais contribuintes para o fundo de ajuda aos necessitados. Barnabé era levita e um cipriota rico, mais tarde designado como “apóstolo” (14.14), cujo dom espiritual era a exortação (11.23). Crisóstomo assim o identifica: “Ele recebeu dos apóstolos o nome de Barnabé, que significa ‘filho da consolação’. Esse apelido me parece lhe ter sido dado por causa de sua virtude e disposição para consolar os aflitos”.A passagem inteira é uma severa advertência contra a mesquinhez, a ganância e o apego aos bens materiais.

A POPULARIDADE (5.12-16)

A popularidade dos apóstolos cresceu exponencialmente, por causa dos sinais e prodígios que realizavam no meio do povo, mas isso não continuaria sem uma reação por parte dos líderes religiosos judeus. Esses religiosos já haviam sido obrigados a convocar uma reunião plenária do Sinédrio para condenar Jesus à morte (Mateus 26.57-68; Marcos 14.53-65; Lucas 22.67-71; João 18.12,13,19-24). No caso de Pedro e João, por não terem cumprido a ordem que lhes fora dada, foram necessárias duas reuniões para tentar silenciá-los, mas sem sucesso. Sem surpresa, os homens que confrontaram os apóstolos “ficaram furiosos e queriam matá-los” (v. 33). Todo o processo terminou com os apóstolos “alegres” (v. 41) e os líderes judeus cheios de frustração e de vergonha por não terem conseguido impedir os crentes “de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo (v. 42). Vê-se na passagem um ciclo semelhante ao de 4.131, no qual os sinais e prodígios realizados desencadearam os ciúmes e a inveja dos líderes religiosos, que os prenderam e os levaram às barras do tribunal, embora o resultado do julgamento tenha sido uma espécie de motivação para que os crentes intensificassem seu compromisso com a proclamação do evangelho do Reino. Coerente com seu estilo, Lucas abre esse ciclo de perseguição, julgamento, libertação e crescimento com outro de seus “resumos editoriais” que sintetizam o testemunho dos crentes. Nesse caso, a ênfase recai quase exclusivamente sobre os sinais e prodígios que aconteciam no meio do povo e, por conseguinte, sobre a crescente popularidade dos cristãos. A ação parece ainda estar concentrada

no pórtico de Salomão, e Pedro aparece como a personagem mais proeminente. Assim, após uma digressão em seu relato para apresentar o caso do pecado e juízo de Ananias e Safira (v. 1-11), Lucas prossegue mostrando o avanço vitorioso da igreja no cumprimento de sua missão. Em nosso texto (v. 12-16), Lucas apresenta um quadro do que aconteceu aos crentes em Jerusalém, uma vez que o juízo de Deus foi executado no âmbito da igreja. Com esses versículos aprendemos que, quando Deus santifica sua igreja, grandes coisas acontecem como consequência imediata. Lucas menciona quatro grandes fatores. Houve grande temor (5.11,13a)

Esse temor apoderou-se de toda a igreja (v. 11a). Essa atitude de profundo temor veio primeiro sobre a igreja, a comunidade do Reino. Observe-se que é a terceira vez que algo “grande” é mencionado em Atos (a expressão aparece no total de seis vezes; cf. 4.33; 5.5). Não é de surpreender, portanto, que um temor solene tenha caído sobre toda a Igreja. Não se tratava de pânico ou medo, mas de profunda admiração pelo sagrado. Podemos nos perguntar por que Deus agiu com um juízo tão terrível. Talvez tenha sido pela gravidade do primeiro pecado notável na igreja e pela necessidade de total transparência por parte de todos os seus membros. A imaturidade da igreja exigia uma compreensão completa da natureza do pecado e da santidade de Deus. Esse temor veio sobre todos os que souberam do fato (v. 11b). Esse temor reverente sobreveio também a todos os que “ouviram falar desses acontecimentos” (v. 11b). Eram simpatizantes,

chegados à comunidade de fé, que descobriram o ocorrido e, por isso, sentiram o mesmo temor que os fiéis. Esse grande temor veio sobre o povo em geral (v. 13a). Esse temor reverente apoderou-se ainda de todo o povo, de modo que, “dos demais, ninguém ousava juntar-se a eles”. Eram pessoas que não pertenciam ao círculo da igreja. Ou seja, não estavam incluídas no “todos” do v. 12b, que indica unanimidade. Eram os judeus ortodoxos e líderes religiosos não convertidos. A religiosidade deles os fez olhar o grupo de discípulos cristãos com muita reverência e espanto, de tal forma que não ousavam se juntar a eles. Estavam mais sob o controle do preconceito que o da fé. Justo L. González: “Como no caso anterior, aqui podemos ver também o contraste entre o ‘povo’ e os poderosos. Pela mão dos apóstolos — ou seja, usando-as como instrumento, milagres eram realizados ‘no meio do povo’ (5.12), e ‘o povo os [tinha] em alto conceito’ (5.13). No entanto, o último versículo também fala ‘dos demais’, que não ousavam ‘juntar-se’ a eles. A palavra que a RVR (assim como VP, BJ, BA e NBE) traduz por ‘juntar-se’ não significa ‘aderir’, no sentido de se tornarem membros da igreja, mas ‘aproximar-se’, ‘ficar ombro a ombro’. O texto não diz quem eram os ‘demais’, embora todo o contexto pareça concordar com Martin Dibelius, que sugere serem os ‘principais’ ou ‘chefes’ do povo. Caso afirmativo, o texto está sugerindo que as lideranças religiosas e sociais exerciam tal pressão sobre seus membros que nem mesmo os que desejavam se aproximar dos discípulos ousavam fazê-lo (o que nos lembra o caso de Nicodemos, que procurou Jesus ‘à noite’)”.16 Havia um grande poder (5.12,15)

A perseguição mais uma vez desencadeada seria o resultado direto das coisas que estavam acontecendo dentro e fora da comunidade de fé. O mais importante era que “os apóstolos realizavam muitos sinais e maravilhas no meio do povo” (v. 12a).

Ninguém podia negar a realidade dos milagres ocorridos, e isso enfurecia os saduceus. Além disso, outro fator irritante para os líderes religiosos era a unidade dos crentes, que se evidenciava toda vez que eles iam “reunir-se no pórtico de Salomão” (v. 12b). Se os membros do Conselho judaico acharam que a dissolução do grupo ocorreria caso silenciassem seus líderes, cometeram um grande erro. Não só falharam em silenciar os líderes, como ainda o testemunho público da comunidade de crentes adquiriu mais intensidade. Esse grande poder se manifestava no que os discípulos faziam (v. 12a,15). Os apóstolos realizavam muitos “sinais e prodígios” no meio do povo, basicamente milagres de cura. A expressão aparece várias vezes em Atos e quase sempre como evidência da presença do Reino de Deus. Produziu-se assim um verdadeiro sucesso de público (v. 15). O texto não diz que a sombra de Pedro curava, mas parece que auxiliava na fé, necessária a quem queria ser curado. Em todo caso, até a sombra de um grande servo de Deus é uma fonte de encorajamento e conforto quando o poder divino é manifesto. Não havia nenhum poder mágico na sombra de Pedro. O gesto era uma expressão de fé misturada com superstição, como em vários casos narrados nos evangelhos (Mateus 9.20; Marcos 6.56; João 9.15) e como ocorreu mais tarde com os lenços e aventais de Paulo (19.12). É notável como Deus honra a fé do ser humano, mesmo quando imperfeita, imatura e misturada com superstição, desde que expresse uma confiança sincera nele! Na verdade, à luz do contexto desses versículos, eram poucos os devotados à

superstição e à magia. A questão é que todos os que foram conduzidos ao reino da fé “eram curados” (v. 16). Esse grande poder se manifestava no que os discípulos eram (v. 12b). Eles eram um povo separado e magnificado aos olhos dos demais, como a verdadeira igreja de Cristo. Os incrédulos sabiam distingui-los como uma comunidade singular, uma vez que “ninguém ousava juntar-se a eles”. No entanto, eram um povo unido e tinham seu ponto de encontro especial para dar testemunho público de sua fé. Esse local era o pórtico de Salomão, onde ocorreu o milagre da cura do aleijado. Houve uma forte reação (5.13b,16)

A questão é que, longe de a filiação se liquefazer (apesar dos preconceitos e dos temores de muitos, v. 13), o número dos que criam e aceitavam o Senhor continuou a aumentar (v. 14). Tudo isso só jogou mais lenha no fogo do ódio, da inveja e dos ciúmes do establishment religioso judaico, concentrado no Conselho judaico. Esses versículos nos levam a fazer duas perguntas. Primeira pergunta: quem reagiu? A resposta: o povo (v. 13b). Deus geralmente trabalha de baixo para cima. As grandes mudanças espirituais e morais quase sempre têm início no meio do povo. Os ricos e poderosos tendem a resistir ao Reino de Deus. Os habitantes das cidades vizinhas (v. 16) também reagiram ao testemunho cristão do evangelho. Vale ressaltar que essa é a primeira notícia que temos, em Atos, de uma expansão do testemunho cristão para fora dos limites de Jerusalém. Não se pode ocultar o evangelho.

Segunda pergunta: como eles reagiram? O texto diz que eles reagiram com louvores e elogios. O povo tratava-os com reconhecimento e respeito e falava bem dos discípulos (2.47), mas o texto diz também que eles reagiram com fé. Essa fé se expressava no fato de lhes trazerem os enfermos e endemoninhados para serem curados. O povo vinha em busca de uma solução para suas necessidades físicas e espirituais. Houve um ótimo resultado (5.14,16c)

O resultado da poderosa manifestação do Reino de Deus foi duplo. O texto menciona os que creram (v. 14). A esse respeito, três fatores merecem atenção. Em primeiro lugar, observemos sua fé. Essa fé fora posta pelo Senhor (cf. 11.24: “muitas pessoas foram acrescentadas ao Senhor”). Em segundo lugar, observemos seu número. O número dos que aceitavam a fé era significativo. A comunidade de discípulos estava em um processo de crescimento numérico permanente. O verbo está no imperfeito, o que indica uma ação contínua, ou seja, “continuava aumentando”. O crescimento numérico da primeira comunidade cristã em Jerusalém foi notável: “o número” era “cada vez maior” (“maior número”, BJ; “grande número”, RVR, RVR95). O termo “multidões” — plural no grego — só aparece aqui em todo o Novo Testamento. Em terceiro lugar, observemos sua variedade. Tratava-se de homens e mulheres. Lucas dá destaque ao lugar das mulheres na igreja (1.14). O texto menciona os que foram curados (v. 16c). Lucas ressalta que “todos eram curados”. Se Deus tem o poder de salvar todos os

perdidos, tem igualmente o poder de curar todos os enfermos. Para o amoroso poder de Deus, não há diferença. Isso significa que não há enfermidade que ele não possa curar com seu poder. Significa também que não há enfermo que ele não possa curar com seu amor. Como consequência da tragédia purificadora de Ananias e Safira, o pecado foi transformado em um novo batismo de zelo, devoção, espiritualidade e poder para os primeiros cristãos.

A PERSEGUIÇÃO (5.17-41)

Quanto maior a pressão contrária, maior o crescimento e o impacto do evangelho no povo. É uma lei do Reino, que se evidenciou por toda a história do testemunho cristão. Tertuliano dizia, já no final do século II: “Ceifando, vocês nos semeiam; somos mais quanto mais sangue vocês derramam; que o sangue dos cristãos é semente. Muitos há entre vocês que exortam à tolerância da dor e da morte. [...] Mas essas palavras não têm achado tantos discípulos quanto têm ensinado os cristãos com suas obras”.17 Essa passagem reitera a validade dessa lei do Reino. Os fatos (5.17-41)

Parece um fato comprovado que a história se repete. O que surpreende nessa passagem é que ela se repita de modo semelhante em um espaço de tempo tão curto. Como no caso anterior (4.1-22), deparamos aqui com (5.17-41) prisão (5.17-21a), pregação (5.21b-39) e penalidade (5.40,41). Prisão (v. 17-21a). Mais uma vez, o sumo sacerdote, seus partidários e os saduceus, todos cheios de inveja, são os responsáveis por prender os apóstolos e pô-los em uma prisão comum. Pedro e João tornam-se mais uma vez os alvos da represália. O “partido [gr. haíresis] dos saduceus” era o grupo ao qual alguns judeus pertenciam, em razão de certas convicções e interesses políticos e religiosos. Haíresis significa “seita”, “partido religioso”, “facção”. Expressa uma escolha ou a livre opção do povo. O vocábulo provém de hairéō, que significa “escolher”, “preferir”, “tomar para si”, e a partir daí se refere a uma opinião ou a um

princípio escolhido (v. 2Pedro 2.1). Mais tarde, a palavra passou a designar os partidos ou as várias facções que se formaram (Gálatas 5.20;1Coríntios 11.19). Aqui o termo se aplica aos saduceus, mas também é usado com relação aos fariseus (15.5; 26.5) e aos próprios cristãos (24.5-14; 28.22). Ao que parece, a perseguição nesse momento foi contra todos os apóstolos, não só contra Pedro e João, como em 4.1-22. Como já foi dito, o que tirava os saduceus do sério era o testemunho apostólico da realidade da ressurreição de Jesus. Para os religiosos, o problema era a popularidade desses homens comuns, que, ao realizar as obras milagrosas, obtinham mais sucesso no meio do povo que aqueles que se consideravam mediadores de Deus. Depois de prendê-los, sem dúvida planejavam se reunir na manhã seguinte para julgá-los e castigá-los, mas Deus tinha outros planos: enviou seu anjo para abrir de forma sobrenatural a prisão e libertá-los, a fim de que pudessem continuar sua obra, ou seja, anunciar o evangelho do Reino de Deus. Em suma, que seguissem fazendo exatamente o que os membros do Conselho judaico os havia proibido de fazer.De fato, assim que foram libertos, continuaram a comunicar “ao povo toda a mensagem desta Vida” (v. 20). Pregação (v. 21b-39). Mais uma vez, Pedro reiterou o que já havia afirmado no primeiro julgamento: antes, era necessário obedecer a Deus que aoshomens (v. 29) — e repetiu a mensagem do evangelho (v. 30-32). A insistência em tal conduta por parte dos acusados, longe de levar ao arrependimento, endureceu ainda mais o coração dos juízes, que “ficaram furiosos e queriam matá-los” (v. 33). A questão é que eles estavam prestes a cometer um grave erro

judicial. Já haviam feito anteriormente planos para matá-los, por isso os haviam acusado de curar um aleijado de nascença por meio de poderes demoníacos (4.7). Agora, porém, o Conselho judaico queria matá-los com base na acusação de que haviam desobedecido à ordem de manter a boca fechada, só que isso não implicava a pena capital. Nesse momento, interveio sabiamente um dos membros do Conselho judaico, Gamaliel, que trouxe um pouco de bom senso à deliberação. Na noite anterior, Deus havia usado meios sobrenaturais para libertar seus apóstolos; agora utilizava um meio natural, a intervenção de Gamaliel, para impedir a sentença de morte contra eles. Gamaliel era neto de Hillel e fora mestre de Saulo (22.3). Mais tarde, tornou-se presidente do Sinédrio e o primeiro dos sete rabinos a ser chamado “rabã”. Alguns acreditam que ele fora um dos mestres que ouviram o menino Jesus no templo (Lucas 2.47) e que era um discípulo secreto, como José de Arimateia e Nicodemos, mas não há evidência disso. O certo é que ele era um fariseu e mestre da lei (nomodidáskalos) que acreditava na ressurreição e, por isso, se opunha aos saduceus. Seu conselho foi uma expressão de sabedoria humana: “Soltem-nos!”. Ou seja: “Não vamos criar problemas”. Gamaliel não manifestou interesse em investigar os fatos que os apóstolos anunciavam, mas quis evitar os erros cometidos no passado, como nos casos de certo Teudas e de “Judas, o galileu” (v. 36,37). Gamaliel agiu mais como um oportunista teológico que como discípulo de Cristo. Para ele, uma política contemporizadora era mais conveniente que o fanatismo irresponsável e ilegal.

Penalidade (v. 40,41). Mesmo assim, os apóstolos não escaparam de sofrer um castigo, pelo menos para justificar a prisão deles. Assim, os líderes judeus os açoitaram e, pela enésima vez, ordenaram que “que não falassem no nome de Jesus” (v. 40). Os açoites foram uma punição por sua desobediência às ordens do Sinédrio (v. Deuteronômio 25.2,3). Longe de desanimar, os apóstolos encheram-se de alegria, ou seja, sentiram-se honrados com a desonra a que foram submetidos. Para o Conselho judaico, o remédio foi pior que a doença, pois, tão logo puderam, os apóstolos retomaram seu ministério apostólico de ensino e proclamação das boas-novas “no templo e de casa em casa” (v. 42). A interpretação dos fatos (5.17-41)

O juízo sobre Ananias e Safira trouxe bênçãos e um novo avivamento sobre a igreja de Jerusalém. No entanto, teve também outros efeitos. A experiência significou uma prova de fé para os fiéis, conquistou a admiração de muitos e obteve o apoio de uma multidão de “homens e mulheres”. As autoridades, porém, não permaneceriam passivas diante de tais acontecimentos. A oposição ativa não se fez esperar. O texto de 5.17-41 registra a segunda perseguição enfrentada pela primeira igreja de Jerusalém. O relato bíblico do ocorrido merece nossa reflexão, a fim de que possamos extrair desses episódios algumas lições que nos ajudem a cumprir melhor a missão que o Senhor nos confiou para os dias de hoje na América Latina. O relato. Sete temas se destacam nessa passagem. Primeiro tema: a prisão (v. 17,18). A ira do sumo sacerdote e de seus partidários (“membros do partido dos saduceus”, v. 17) era

significativa. O texto diz que eles “ficaram cheios de inveja”. A prisão dos apóstolos foi muito mais que um procedimento preventivo, pois foi executada com violência (“mandaram prender os apóstolos”). Eles foram retirados à força do lugar onde estavam alojados e lançados “em uma prisão pública” (v. 18). Segundo tema: a libertação (v. 19,20). A libertação dos apóstolos foi milagrosa. Quem os tirou da prisão foi ninguém menos que “um anjo do Senhor” (v. 19). Foi também uma libertação desafiadora, pois o anjo lhes ordenou que fossem falar ao povo nada menos que no templo (v. 20a). Por último, foi uma libertação redentora, uma vez que o anjo lhes deu a oportunidade de proclamar “toda a mensagem desta Vida” (v. 20b). Terceiro tema: o resultado (v. 21-25). Destaca-se como resultado a obediência (v. 21) dos apóstolos, que, libertos à noite, começaram a pregar pela manhã. Há também a surpresa dos guardas ou carcereiros (v. 22,23) e a dúvida dos oficiais (v. 24). Em última análise, o resultado final foi a consternação de todos (v. 25), tanto “na prisão” quanto “no templo”. É quase cômico que quando as autoridades “mandaram buscar os apóstolos na prisão [...] os guardas não os encontraram ali” (v. 22) porque ambos estavam no templo desde o amanhecer ensinando o evangelho (v. 21). Além de não poderem ser silenciados, eles agora não podiam ser mantidos no calabouço! A perplexidade era total. O pobre capitão da guarda do templo não sabia explicar o que acontecera, tampouco os chefes dos sacerdotes, que haviam convocado o Sinédrio para aquela manhã (v. 24). Em suma, todos os juízes estavam no tribunal, mas os prisioneiros haviam desaparecido! Não é de surpreender,

portanto, que esses hierarcas ficassem “imaginando o que teria acontecido”. O vexame diante de todo o povo não poderia ser maior. Quarto tema: o julgamento (v. 26-28). Observe-se o cuidado em não usar de violência (“sem o uso de força”, v. 26). Observe-se também a acusação: “Demos ordens expressas a vocês para que não ensinassem neste nome. Todavia, vocês encheram Jerusalém com sua doutrina e nos querem tornar culpados do sangue desse homem” (v. 28). Os apóstolos foram acusados basicamente de três coisas. Foram acusados de insubordinação: “Demos ordens expressas a vocês para que não ensinassem”. Foram acusados de proselitismo: “Vocês encheram Jerusalém com sua doutrina”. Foram acusados de dolo: [...] nos querem tornar culpados do sangue desse homem”. Eles os prenderam outra vez e, quase em um tom de desamparo, novamente os proibiram de que “ensinassem neste nome”, mesmo reconhecendo o êxito que haviam obtido nessa empreitada quando afirmaram: “Vocês encheram Jerusalém com sua doutrina” (v. 28). Em suma, eles foram mais uma vez acusados de duas coisas:1) de terem desobedecido à ordem que lhes fora dada; 2) de terem acusado os líderes judeus da morte de Jesus. Quinto tema: a defesa (v. 29-33). Dois fatores se destacam aqui. Por um lado, a resposta dos apóstolos (v. 29-32). Pedro e os apóstolos responderam enfatizando o princípio da obediência a Deus (v. 29); o fato da ressurreição de Cristo (v. 30a); o crime da morte de Cristo (v. 30b); o fato da ascensão de Cristo (v. 31) para ser Príncipe e Salvador e conceder arrependimento e perdão. Por outro lado, o testemunho “destas coisas”, uma vez que os apóstolos foram testemunhas e o próprio Espírito Santo também testemunhava esses acontecimentos.

Sexto tema: a sugestão (v. 34-40). A recomendação de Gamaliel parecia sábia e baseada na experiência. Era preciso ter cuidado, diante das experiências anteriores, e considerar a natureza dos fatos ocorridos, ou seja, “se [...] for de origem humana” ou “se proceder de Deus”. O grupo concordou com uma sentença bastante leve: chicoteá-los, silenciá-los e deixá-los em liberdade (v. 40). Sétimo tema: as consequências (v. 41). Quais as consequências de todos esses acontecimentos? A primeira consequência foi a alegria pela afronta sofrida “por causa do Nome” (v. 41). A segunda consequência foi a ação, ou seja, o testemunho diário no templo e nas casas. Apesar da proibição, os apóstolos “não deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo” (v. 42) As lições. Três forças agiam aqui. O espírito do erro. Esse espírito está exemplificado no sumo sacerdote e se expressou de quatro maneiras. Em primeiro lugar, pela animosidade (v. 17,33,40). É o típico conflito mundo-igreja. Em segundo lugar, pela violência (v. 18). O uso da força é o único argumento do mundo. Em terceiro lugar, pelo medo (v. 24). Eles temiam o crescimento potencial do novo grupo e, com isso, a perda do poder que detinham. Em quarto lugar, pela falsidade (v. 28). Observe-se que na reunião do Conselho judaico não é dita uma única palavra sobre a libertação milagrosa dos apóstolos, operada por Deus (v. 19). Para o mundo e para os descrentes, é sempre mais conveniente ignorar o sobrenatural. Os saduceus não acreditavam no sobrenatural, pois eram racionalistas (cf. v. 17; 4.1,2). Observe-se também que eles nem mesmo queriam pronunciar o nome de Cristo (cf. v. 28,40). Era evidentemente um medo supersticioso.

O espírito da neutralidade. Esse espírito está exemplificado em Gamaliel e se expressou de quatro maneiras. Em primeiro lugar, pela possibilidade. Seu argumento tinha certo peso, pois se baseava em um antigo recurso: o teste do tempo. Contudo, não exprimia toda a verdade, porque muitos sistemas errôneos podem durar séculos, mas nem por isso provam que são de Deus (v. 39). Em segundo lugar, pela falsidade, ou seja, a ideia de que algo é autêntico se for bem-sucedido. Em suma, tratava-se da prova do êxito. De acordo com esse argumento, Cristo não era de Deus, porque havia morrido na cruz como o pior dos fracassados. Em terceiro lugar, pela indiferença, ou seja, não dar muita importância ao assunto e deixálo morrer no esquecimento, mas não é possível permanecer neutro ou indiferente a Cristo e ao seu poder. Em quarto lugar, pela covardia, ou seja, evitando comprometer-se com alguma causa, seja ela qual for. No entanto, se a causa de Cristo era de Deus, Gamaliel deveria ter se comprometido com ela em vez de ignorar suas exigências. Ao que parece, esse homem nunca teve a intenção de se comprometer com Cristo ou com os apóstolos. O espírito da verdade. Esse espírito está exemplificado em Pedro e se expressou de quatro maneiras. Em primeiro lugar, pela coragem (v. 20,29), ou seja, a disposição de obedecer a Deus, independentemente do custo que isso represente. Em segundo lugar, pela fidelidade (v. 31-33), ou seja, por meio de um testemunho pleno e vigoroso em meio a circunstâncias difíceis. Em terceiro lugar, pela constância (v. 41,42), ou seja, com uma ação alegre e constante. Em quarto lugar, por meio do realismo (v. 20,41), ou seja, os apóstolos viviam o que pregavam. Eles não consideravam a vida como sua (“a mensagem desta Vida”, v. 20; Gálatas 2.20) e estavam

dispostos a “serem humilhados por causa do Nome” (v. 41). À semelhança de Pedro e dos demais apóstolos, precisamos estar cheios do Espírito da verdade. Para isso, temos o poder de Deus (v. 31), que ressuscitou Jesus (v. 30) e o exaltou à direita do Pai (v. 31). Também temos o poder do nome de Jesus (v. 41) e o poder do Espírito Santo (v. 32), que nos acompanha e dá testemunho conosco. O espírito de uma boa disposição. À luz da experiência da igreja primitiva, é fundamental que o cristão desenvolva disposição para enfrentar a perseguição com uma atitude vitoriosa. A Bíblia destaca várias questões relacionadas com o crente diante da perseguição, importantes o bastante para serem levadas em conta no desenvolvimento de uma boa disposição para enfrentá-la. 1) Devemos entender que a perseguição é resultado da ignorância a respeito do Pai e de Cristo (João 16.2,3). 2) Devemos estar cientes de que todos os que desejam levar uma vida santa sofrerão perseguição (2Timóteo 3.12). 3) Devemos aceitar que a perseguição é empreendida por quem é “nascido de modo natural”, ou seja, por pessoas carnais (Gálatas 4.29). 4) Devemos reconhecer que os crentes sofrem perseguição por causa do Senhor (Jeremias 15.15). 5) Devemos presumir que a perseguição resulta do ódio a Cristo e ao Pai (João 15.20,24). 6) Devemos ter em mente que a perseguição virá sobre os que pregam o evangelho (Gálatas 5.11). 7) Devemos ter por certo que a perseguição ocorrerá quando a Palavra do Senhor for espalhada (13.49,50). 8) Devemos entender que a perseguição ocorre por causa da Palavra (Mateus 13.21). 9) Devemos supor que a perseguição provém da obsessão fanática e fundamentalista do perseguidor (26.9-11). 10) Devemos estar

inteirados de que a perseguição ocorre por causa da arrogância dos ímpios (Salmos 10.2).

A MISSÃO (5.42)

A década de 1990 começou com um desafio generalizado entre os cristãos evangélicos de todo o mundo: evangelizar o Planeta até o ano 2000. Essa preocupação, que começou a ser gerada na década anterior, transformou-se em um anelo quase universal. Ao longo daqueles anos, cada vez mais crentes e igrejas trabalharam com tenacidade para tornar realidade o cumprimento da promessa de Deus a Abraão, segundo a qual por meio dele e de seus descendentes, ou seja, seus filhos de fé, todas as famílias ou povos da terra seriam abençoados. Milhões de cristãos em todo o mundo proclamaram o evangelho durante aquela década, para cumprir a visão de João em Apocalipse 7.9,10. No entanto, a última década do século XX passou, e as grandes expectativas para o ano 2000 não se cumpriram. O século XXI está bem avançado, e o desafio de completar a missão cristã no mundo permanece. A ordem de Jesus à sua igreja foi que até seu retorno os crentes façam discípulos dele “de todas as nações” ou de todos os povos do mundo. Além disso, deu a entender que não voltaria até que todas as nações do Planeta tivessem a oportunidade de conhecer o evangelho (Mateus 24.14; Marcos 13.10). Isso foi dito pelo Senhor há dois mil anos. Desde então, com maior ou menor dedicação, a igreja tem mantido o compromisso com a tarefa de divulgar as boas-novas. No entanto, nunca estivemos tão perto do cumprimento da promessa de Deus a Abraão e do cumprimento da ordem de Jesus como nos dias de hoje. Milhões de cristãos em todo o mundo estão convencidos de que todo o Planeta pode ser saturado com o evangelho antes do glorioso retorno de Cristo. Cada

vez mais crentes estão trabalhando duro para que isso aconteça. Estamos fazendo isso também? De que maneira estamos comprometidos com a missão? O versículo de nossa reflexão incentiva-nos a pensar outra vez na missão que a igreja tem a cumprir, para que os objetivos do Reino de Deus sejam realizados. Ao meditar sobre esse importante texto, convém considerar quatro questões fundamentais relacionadas com a missão cristã no mundo: o tempo, o lugar, a natureza e o centro da missão que nós, como igrejas de Jesus Cristo, temos no mundo. O tempo da missão

O texto informa que os primeiros cristãos trabalhavam “todos os dias” (gr. pāsán te hēméran) para cumprir a missão designada pelo Senhor e acrescenta que eles “não deixavam” (gr. ouk epaúonto) de fazê-lo. O v. 42 é um resumo conclusivo de toda a seção anterior (5.12-41). O triunfo dos apóstolos em seu confronto com o establishment religioso de Jerusalém é evidenciado pelo fato de eles terem retornado ao templo, o local de sua prisão (v. 25), para continuar fazendo, sem pausa, o que lhes fora proibido, ou seja, anunciar que Jesus era o Messias. Três questões se destacam nessa atitude de constância no cumprimento da missão. O cumprimento da missão requer tempo. Dar testemunho do evangelho exige dedicação e esforço. A evangelização e o discipulado são tarefas que demandam tempo. Devemos calcular o custo do discipulado não apenas nos aspectos do trabalho físico e intelectual e das finanças, mas também do tempo a ser investido (Lucas 9.23). O cumprimento da missão requer a mordomia cristã de nosso tempo (Efésios 5.15,16). Pregar o evangelho não pode ser

uma atividade regulada por dias especiais, eventos esporádicos ou circunstâncias particulares. A evangelização não pode ser reduzida a uma simples tarefa na longa lista de “atividades da igreja” afixada nas portas dos templos evangélicos. Diferentemente de qualquer outra atividade humana ou eclesiástica, a evangelização deve ser, para os fiéis, como respirar, comer e descansar ou como o pulsar do coração, ou seja, uma ação permanente e vital. O cumprimento da missão requer tempo consagrado. Quanto tempo devemos dedicar ao cumprimento da missão? De acordo com o relógio religioso, o crente tem o dever de reservar uma cota de seu tempo para dedicá-lo a Deus, daí nos referirmos ao Dia do Senhor, ou a um período diário reservado para a comunhão pessoal com ele, ou a um momento de leitura e meditação na Palavra. De acordo com o relógio de Deus, porém, todo o tempo pertence a ele, e o crente pode reservar uma parte desse tempo para si (Colossenses 4.5). Temos de dar ao tempo um caráter sagrado. Devemos também perguntar a Deus quanto tempo dispomos (Salmos 39.4; 90.12) e ter em mente que tudo o mais pertence a ele. O cumprimento da missão requer tempo integral. Os primeiros cristãos entenderam isso com clareza. Para eles, não havia dias sagrados e dias seculares, um dia para o Senhor e o restante para eles. Esses homens e mulheres não atomizavam nem classificavam seu tempo, porque “todos os dias” eram propícios à pregação de Cristo. Para eles, todas as horas pertenciam ao Senhor e eram adequadas ao testemunho. Por isso, eles “não deixavam” de fazê-lo. Eles não estabeleciam recessos nem tinham descanso. O

testemunho deles era contínuo: eles testemunhavam “todos os dias” e em todos os momentos. No turbilhão em que vivemos hoje, sem tempo para nada e com a agenda entupida, é crucial entender que somos mordomos do tempo que Deus nos concede e que devemos usá-lo de acordo com a vontade divina e para a glória dele, dando nisso prioridade ao seu Reino (Mateus 6.33). O lugar da missão

O texto informa que os primeiros cristãos cumpriam a missão designada pelo Senhor “no templo e de casa em casa” (gr. en tō hierōi kaì kat’ oīkon). Quanto ao local da missão, três considerações são dignas de nota aqui. Não é definido pelo tipo de lugar, mas pela natureza da missão. Qualquer lugar é propício para ensinar e pregar Jesus Cristo. Para a missão, não há lugares sagrados nem profanos. De acordo com 1Pedro 3.19 e o Credo apostólico, o Cristo ressuscitado foi pregar “aos espíritos em prisão”. Seja qual for o significado preciso dessa expressão, não é exatamente um lugar muito desejável ou qualificado. Portanto, é o ensino e a pregação de Jesus Cristo que define um lugar como de missão. Esse lugar pode ser o “templo”, a casa de Deus, no qual se presume que Deus habita, onde está sua gloriosa presença e onde ele é adorado comunitariamente. Esse lugar pode ser também uma casa, a morada do ser humano, ou seja, onde este vive ou esteja presente. Deus está em toda parte, e cada espaço é um solo sagrado no qual o testemunho dos crentes dá ao Espírito Santo a oportunidade de fazer sua obra de regeneração, cura e libertação.

É um e muitos ao mesmo tempo. Na Antiguidade, os judeus acreditavam que havia apenas um lugar onde Deus podia ser adorado e servido, e esse lugar era o templo, em Jerusalém. Parece ser assim que a samaritana entendia (João 4.20). Jesus, porém, respondeu com uma visão diferente sobre a adoração verdadeira e o local dessa adoração (João 4.21-24). Servimos ao Senhor em um lugar e em muitos lugares. (Observe-se o uso do singular e do plural no texto.) O templo não é mais o lugar único e exclusivo onde Deus habita (1Coríntios 3.16; 6.19; 2Coríntios 6.16). De acordo com Paulo, nosso corpo é o templo de Deus, portanto o templo é qualquer lugar em que estejamos. De igual modo, a igreja, como corpo de Cristo e comunidade do Reino, é o templo de Deus, e Deus habita, ou seja, está presente onde quer que a igreja cumpra sua missão. Assim, quando nos reunimos, Deus está presente; quando saímos pelo mundo, ele está presente também. Servimos ao Senhor tanto nos concentrando quanto nos espalhando. É múltiplo em suas funções. Com certa frequência, repete-se a frase: “Reunimo-nos para adorar; saímos para testemunhar”. O templo é o lugar de adoração a Deus, e o lar é o lugar de testemunho para o mundo. No entanto, não é isso que diz o texto. O testemunho bíblico é que os primeiros cristãos faziam a mesma coisa — ou seja, davam testemunho — tanto no templo quanto de casa em casa. Nas casas dos crentes, exerciam-se todos os ministérios da igreja, de acordo com o Novo Testamento: adoração, proclamação, ensino, comunhão e serviço. Devemos romper com os preconceitos e as manias eclesiocêntricas relacionadas com o templo, que reduzem a missão ao âmbito dos edifícios eclesiásticos. Pensar que a missão só é cumprida no templo e em um culto de

uma hora no domingo é uma expressão de idolatria e constitui desobediência à ordem do Senhor. A natureza da missão

O texto informa que os primeiros cristãos cumpriam com persistência a missão designada pelo Senhor: “Não deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo”. Duas considerações devem ser observadas nessas palavras. A mudança na ordem de ação. A grande comissão nos ordena: “Façam discípulos [...] ensinando-os” (Mateus 28.19,20); “Vão [...] e preguem” (Marcos 16.15). Devemos pregar em nome de Jesus (Lucas 24.47). A questão que surge da leitura dessas várias expressões é saber o que vem primeiro: pregar ou ensinar. A variante é uma indicação de que ambos são importantes. Pregamos ensinando e ensinamos pregando. Isso é o que fazemos, especialmente quando nosso testemunho é dado no ambiente de nossa casa, onde é mais fácil realizar de forma simultânea a proclamação e o discipulado. Os movimentos da igreja doméstica e da igreja em células nas últimas décadas têm ajudado bastante a entender o potencial desses loci (lat., “locais de ação”) para o cumprimento da missão e o crescimento do Reino. Os componentes da ação. Ensino e pregação são os dois elementos fundamentais. Foi assim no próprio ministério de Jesus, que ensinou e pregou o tempo todo (Mateus 4.23; 9.35; 11.1). O ensino (gr. didaskalía) tem Jesus Cristo como conteúdo essencial. Ele é o evangelho que o ensino cristão comunica. Quanto à natureza desse ensino, observe-se que não se trata de informação,

mas de formação, ou seja, de “fazer discípulos”. A pregação (kērygma) tem como conteúdo o evangelho de poder, ou seja, o testemunho proclamado do poderoso amor de Jesus (1Coríntios 1.23; 2.2). Quando o evangelho é proclamado verbalmente no poder do Espírito Santo, Jesus se faz presente e é recebido pela fé. A combinação dinâmica dessas duas ações (ensino-pregação) é como a mistura de enxofre e potássio, ou seja, é explosiva. O centro da missão

O texto informa que, para os primeiros cristãos, o centro da missão não era outro senão o próprio Jesus Cristo. Tudo girava em torno da declaração “Jesus é o Messias” (gr. Christòn Iēsoūn). Jesus é o objeto direto dos gerúndios “ensinando” (gr. didáskontes) e “evangelizando” (gr. euangelizómenoi), já “o Messias” ou “o Cristo” (gr. tòn Christòn Iēsoūn) é o acusativo predicativo. De acordo com Archibald T. Robertson, “essas palavras oferecem a substância da pregação apostólica primitiva, como mostram esses primeiros capítulos de Atos: Jesus de Nazaré é o Messias da promessa. Gamaliel abriu as portas da prisão para eles, e eles aproveitaram ao máximo a oportunidade que agora lhes pertencia”.18 Isso significa que é Jesus Cristo quem nos envia. Não agimos por conta própria ou em nome da igreja, mas em nome de Jesus Cristo (João 20.21).É de Jesus Cristo que recebemos autoridade e poder para cumprir a missão. Ele mesmo disse: “Receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas” (1.8). Se os crentes não tiverem plena convicção de que estão agindo em nome de Cristo, sua ação estará reduzida a mero esforço humano. Se saírem para ensinar e evangelizar sem a clara

consciência de que são embaixadores de Cristo (2Coríntios 5.20), não terão o poder nem a autoridade para empreender tal ação. Não somos enviados ao mundo pela igreja particular, a igreja local (da cidade), nem pela denominação, nem por uma agência missionária ou por uma instituição religiosa, mas pelo Messias-Ungido, Jesus Cristo. Isso significa que é Jesus Cristo quem nos capacita. É ele quem nos concede o Espírito Santo para esse fim (João 16.7), bem como os dons espirituais (Efésios 4.7,8) e a autoridade de que precisamos (Lucas 9.1,2). Sem ele, até os melhores e mais sinceros esforços para ensinar e pregar o evangelho serão inúteis. A causa do Reino deve ser levada adiante com os recursos do Reino, e esses recursos são encontrados em Jesus Cristo. É nele que tudo podemos, pois é ele quem nos fortalece (Filipenses 4.13). Além do mais, ele foi muito claro quando advertiu: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem em mim. Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma” (João 15.4,5). Isso significa que é Jesus Cristo quem age. É em seu nome, ou seja, nele que o evangelho se anuncia e que há salvação, cura, libertação e poder. É ele quem faz a obra do Espírito Santo que atua por meio de nós. Somos apenas instrumentos em suas mãos para fazer o que ele se propôs fazer. Somos como vasos nas mãos do oleiro, a quem o Senhor deseja usar para o cumprimento de seus

propósitos eternos (Romanos 9.20,21,23,24), como bem expressa um antigo hino evangélico: Aonde guiar-me, meu Senhor Te seguirei por seu amor É Tua mão que me conduz Por mim ferida sobre a cruz. Guia-me sempre, meu Senhor Guia meus passos, Salvador Tu me comprastes sobre a cruz Rege-me em tudo, meu Jesus.19 Isso significa que Jesus Cristo é a mensagem. Não ensinamos e pregamos sobre Jesus Cristo: nós pregamos Jesus Cristo. Damos um testemunho contextualizado de suas palavras e ações de poder. Quando falamos de uma mensagem, referimo-nos ao significado ou conteúdo total de um discurso, aos conceitos e sentimentos que o autor ou emissor pretende que o leitor ou receptor entenda e receba. Os conteúdos básicos do evangelho, à medida que são comunicados para serem recebidos e aceitos, têm seu eixo e significado em Jesus Cristo. O centro da mensagem cristã é Jesus Cristo (1Coríntios 1.23), basicamente sua morte, sepultamento, ressurreição, ascensão e retorno em glória. Quando comunicamos a mensagem cristã, o que fazemos é apresentar Jesus Cristo às pessoas, para que o conheçam pessoalmente e saibam o que ele fez e faz por amor a elas.

1. Everett F. HARRISON, Acts: The Expanding Church, p. 68.

2. Holistic Ministry and the Incident at the Gate Beautiful: Acts 3.1-26, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 38. 3. Everett F. HARRISON, Acts, p. 69. 4. Ernst HAENCHEN, The Acts of the Apostles: A Commentary, p. 201. 5. William NEIL, The Acts of the Apostles, p. 83. 6. Ernst HAENCHEN, The Acts of the Apostles, p. 200. 7. F. Scott SPENCER, Acts, p. 48. 8. Holistic Ministry and the Incident at the Gate Beautiful: Acts 3.1-26, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts, p. 41. 9. Hechos, in: Justo L. p. 88.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

10. Actas y hechos del Dr. Martín Lutero, agustino, en la Dieta de Worms, in: Carlos WITTHAUS (Org.), Obras de Martín Lutero, v. 1, p. 271-272. 11. From “Doingness” to “Beingness”: A Missiological Interpretation, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 49. 12. Atos dos Apóstolos: rumo a uma igreja em renovação permanente, in: Bíblia Nova Reforma: edição de estudos e referência, p. 1634. 13. El Espíritu Santo o la dinámica interna de la iglesia, Revista Bíblica, v. 32, n. 135, p. 33. 14. V. Glaube und Handeln in der Theologie des Lukas, p. 77. 15. V. Possessions and the Poor in Luke-Acts. 16. Hechos, in: Justo L. hispanoamericano, p. 116-117.

GONZÁLEZ

(Org.),

Comentario

17. Apología, 50. 18. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 71. 19. Guia-me sempre, meu Senhor, Harpa cristã, hino 141.

bíblico

CAPÍTULO 4

O CONFRONTO 6.1—8.4 Conflitos e confrontos são tão naturais para a raça humana quanto o ar que respiramos. A igreja, por ser uma comunidade de pessoas, não está isenta de sofrer todo tipo de confrontos, internos ou externos. O grande desafio para a comunidade de fé não é tanto como viver sem conflitos, e sim como enfrentá-los e resolvê-los de forma madura, responsável e de acordo com a vontade de Deus. A vida interna e o testemunho público da igreja dependem da capacidade da comunidade de fé para resolver essas expressões de dissidência e alcançar uma experiência generalizada da shalom (paz), interna e externamente. A longa passagem que iremos analisar neste capítulo diz respeito precisamente à maneira pela qual a igreja de Jerusalém, cheia do Espírito Santo, conseguiu emergir incólume dos confrontos e conflitos em que se achou envolvida. A narrativa inicia-se pelas dificuldades surgidas dentro da comunidade do Reino, devidas à marginalização de alguns de seus setores. O conflito em 6.1-7 surgiu de uma necessidade humana básica: a distribuição diária de alimentos aos necessitados. Essa situação, na realidade, mascarava um conflito mais profundo: o choque de mentalidades entre cristãos judeus e cristãos helenísticos, que, por sua vez, era

uma expressão do confronto de duas cosmovisões diferentes, a hebraica e a grega. Em todo caso, não foi difícil resolver o confronto interno na comunidade de fé, como os acontecimentos bem demonstram. Mais agudo e sério foi o confronto externo da comunidade de crentes com a sociedade na qual estava inserida. Nesse caso, o conflito foi profundamente religioso, com sérias implicações políticas. Não é de estranhar que Lucas dedique uma enorme quantidade de versículos para tratar do assunto (6.8—8.3). Se, no primeiro caso, os apóstolos conseguiram lidar com a situação de conflito e mediá-la, no segundo caso os fatos escaparam ao seu controle. Estavam fora de suas possibilidades de mediação, e eles próprios sofreram as consequências, pois só eles puderam permanecer em Jerusalém (8.1), ao passo que a maior parte dos crentes se dispersou “pelas regiões da Judeia e de Samaria”.

O MINISTÉRIO DOS SETE (6.1-6)

É importante observar que na época, pelo que sabemos, havia apenas uma igreja na cidade de Jerusalém. Essa única congregação era a comunidade do Reino em Jerusalém, a igreja de Jesus Cristo nessa cidade, composta por inúmeras congregações domiciliares e que crescia rapidamente, graças ao testemunho apostólico de todos os crentes. Entre seus membros, havia muitas viúvas, que tinham de ser sustentadas pela congregação por causa da grande necessidade que tinham. O grupo já era bem numeroso, embora pareça que ainda carecesse de uma identidade própria dentro do judaísmo. Marcelino Legido López: “O maior problema interno das comunidades é o da unidade. A aceitação da graça do Senhor é um caminho. Nem sempre é absoluta. Em muitas ocasiões, é relativizada. [...] A fé, que é a obediência extática, às vezes se torna uma apropriação concêntrica. Os irmãos têm seu enclave no mundo e entendem esse enclave como a insistência absoluta. Em alguns casos, é sua posição nas relações socioeconômicas e sociopolíticas; em muitos outros, também é sua posição nas relações socioculturais e sociorreligiosas. Por não se entregarem inteiramente ao Senhor para acolher sua filiação, não conseguem participar de sua fraternidade. Cada um busca o que é seu, do seu ponto de vista. Envolve-se no que é seu, e existe dessa perspectiva. É assim que surgem as tensões entre os irmãos na comunidade e em seus grupos. Às vezes, entre ricos e pobres; outras, entre judeus e gregos; já outras, entre fortes e fracos; outra ainda, entre sábios e ignorantes. A apropriação do dom conduz à idolatria, que se transforma em confronto e em opressão. A fraternidade, então, passa a conviver não apenas com as ‘facções’, mas também com os ‘confrontos’. Nós a descobrimos durante a busca pela unidade, pela aceitação absoluta do dom que lhe fora dado de forma absoluta. Constituída na comunhão da unidade e chamada para consumá-la, ela tem no conflito, assumido a partir do Senhor, seu verdadeiro caminho para a comunhão consumada”.1

Todo grupo humano com objetivos definidos e ideais a alcançar terá necessariamente alguma forma de organização. A divisão de tarefas, a determinação de responsabilidades e os mecanismos de coordenação constituem os elementos imprescindíveis para o bom funcionamento de um grupo. Ao mesmo tempo, é a melhor maneira de contornar os conflitos que inevitavelmente surgirão. O problema em Jerusalém (6.1-6)

Era de esperar que, mais cedo ou mais tarde, uma comunidade com tão grande número de membros enfrentasse dificuldades em sua interação pessoal e entre os subgrupos que a compunham. Foi o que ocorreu na igreja em Jerusalém. O texto evidencia três fatores: 1) o problema (v. 1); 2) a proposta (v. 2-4); 3) os procedimentos (v. 5,6). O problema (v. 1). Como é normal em qualquer grupo humano, os problemas não demoraram a surgir, à medida que o grupo de crentes crescia. No caso da igreja de Jerusalém, os judeus helenísticos (de língua grega) “queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento” (v. 1). Essa situação não representava um problema banal: era uma questão bem complexa. Um problema cultural. Na ocasião, a grande maioria dos novos crentes que se filiavam à igreja eram todos judeus, mas havia uma grande brecha cultural entre eles: alguns eram judeus de língua aramaica, e outros de língua grega. Os primeiros provavelmente constituíam a maioria e foram os responsáveis por dar à congregação da cidade seus primeiros contornos organizacionais. Para isso, seguiram o único modelo que conheciam: a sinagoga

tradicional. Os primeiros núcleos cristãos foram estruturados de acordo com esse modelo, que, no entanto, se mostrou insuficiente e inadequado após um influxo mais significativo de crentes helenísticos. Embora houvesse algumas sinagogas helenísticas em Jerusalém, as estruturas aplicadas foram as tradicionais. Um problema demográfico. O conflito era inevitável, não só por causa da diversidade cultural de um grupo numeroso, mas também porque o crescimento do grupo havia esgotado todas as possibilidades de um bom funcionamento. O crescimento numérico causou desatenção, e isso levou a um aumento de conflitos, que, por sua vez, resultou em dissidência e em formação de subgrupos. A tensão entre judeus de raiz hebraica e judeus helenísticos atingiu seu ápice. De acordo com James D. G. Dunn, a tensão estava aumentando e eclodiu em determinado momento, ou seja, quando o número de discípulos aumentou.2 Assim, fortalecidos por seu crescimento numérico, os crentes helenísticos levantaram a bandeira da denúncia contra o tratamento injusto e discriminatório às suas viúvas por parte da minoria judaica, que evidentemente se considerava proprietária exclusiva dos recursos. Paul Hertig: “O termo ‘helenístico’ significa ‘que fala grego’ (6.1). Como o grego era a língua internacional do século I, a maioria das pessoas que viviam nas cidades mais importantes da Palestina falava e entendia grego em algum nível. Paulo, por exemplo, refere-se a si mesmo como hebreu, mas falava grego (2Coríntios 11.22; Filipenses 3.5). Assim, Dunn presume que o termo ‘helenístico’ se referia aos que falavam principalmente grego, em contraste com os judeus nativos de Jerusalém, que falavam principalmente aramaico, embora também pudessem falar um pouco de grego. Desse modo, o contraste entre ‘helenísticos’ (hellēnistōn) e ‘hebreus’ (hebraíous), em 6.1, indica diferenças de idioma e, portanto, de preferências culturais. Os helenísticos eram judeus da Diáspora com uma disposição helenística em particular que retornaram e passaram a residir em Jerusalém. Possivelmente,

foram atraídos à terra santa e ao templo e tinham mais fervor por sua herança judaica que por sua cultura helenística”.3

A proposta (v. 2-4). O problema atingiu tal dimensão que os apóstolos tiveram de dar atenção ao caso e apresentá-los a “todos os discípulos” (gr. tò plēthos tōn mathētōn eīpan), a fim de discuti-lo e eventualmente chegar a uma decisão. Assim, reuniram todos os discípulos e ressaltaram o papel principal dos apóstolos, que era o ministério da Palavra de Deus (v. 2-4). Ou seja, os apóstolos fizeram um diagnóstico da situação e perceberam que o mais grave não era a desatenção para com as viúvas de língua grega, e sim o fato de que o alimento espiritual de todos estava correndo sério risco. A proposta dos apóstolos evidencia a gravidade e o perigo potencial desse fato não só para eles, na condição de líderes comunitários, como também para a comunidade e para o cumprimento de sua missão. À luz desse diagnóstico, os apóstolos apresentaram a proposta de delegar a solução do problema à congregação: “Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Passaremos a eles essa tarefa” (v. 3). São dignos de nota a especificidade de sua proposta e o ato de delegarem a decisão final à assembleia dos crentes, embora tenham estabelecido determinados limites ou condições morais, espirituais e de capacidade para os potenciais candidatos. A proposta dos apóstolos deixou “todos” satisfeitos (v. 5a). Observe-se que a decisão foi tomada por unanimidade, não por maioria de votos. Não existe em parte alguma do Novo Testamento o conceito de governo congregacional, definido pelo voto da maioria. Essa interpretação da democracia é bem recente e corresponde à filosofia e à prática política da democracia norte-americana, que é

muito deficiente. A igreja que toma decisões com base no voto da maioria (metade mais um) sempre correrá o risco de ter a oposição de uma minoria (metade menos um). Esse entendimento do governo congregacional não é bíblico e já se provou como principal fonte de conflitos, divisões e cismas nas igrejas que o adotaram. No Novo Testamento, o que impera é o consenso e a unanimidade, sob a orientação do Espírito Santo. Foi assim que a assembleia dos crentes finalmente escolheu sete irmãos que atendiam aos requisitos impostos pelos apóstolos, os líderes da comunidade. Tem-se a impressão de que os sete escolhidos se tornaram uma espécie de mediadores oficiais no conflito. A tradição da igreja qualifica-os como “diáconos” e passou a considerar a posição que ocupam como um ofício ou ministério eclesiástico. Na verdade, a palavra grega diákonos geralmente significa “aquele que serve”. O vocábulo designa um servo designado para qualquer tarefa. Nas Escrituras, o termo também se aplica a qualquer pessoa que assume uma atitude de serviço, em qualquer ordem. Em nosso texto, refere-se aos “sete” homens nomeados “para servir às mesas” (gr. diakoneīn trapézais). No entanto, é importante observar que os apóstolos também são considerados “diáconos” no v. 2 (“servir às mesas”, gr. diakoneīn trapézais). Jürgen Roloff: “A estrutura organizacional que eles escolheram mantinha-se dentro dos parâmetros judaicos habituais. O grupo de sete homens correspondia à estrutura de liderança na sinagoga local, um conselho de sete anciãos como líderes da congregação. A tarefa do grupo dos Sete também era análoga: deviam representar a congregação na arena pública e cuidar da organização da vida interna da comunidade”.4

Os procedimentos (v. 5,6). A solução surgiu da visão dos apóstolos e era bem pragmática. Cada passo dado foi bem pensado e revelou a sabedoria com que os apóstolos, sob a orientação do Espírito Santo, abordaram o problema. Eles foram escolhidos (v. 5). O procedimento seguido culminou com a nomeação de sete irmãos, que tinham a responsabilidade de resolver o problema que havia surgido e aliviar os apóstolos nessa questão. É interessante que todos os sete tenham nomes gregos (v. 5), ou seja, pertenciam ao mesmo grupo cultural e étnico das viúvas — em suma, eram helenísticos, “de fala grega” (6.1). Além disso, diferentemente de comitês, comissões e grupos de tarefa que escolhemos hoje, esses sete (número perfeito) homens foram escolhidos para servir, não para discutir; para trabalhar, não para falar; para agir, não para planejar; para ajudar e obedecer aos apóstolos, não para os manipular ou competir com eles. Quem eram esses homens tão qualificados? 1) “Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo” (gr. ándra plērēs písteōs kaì pneúmatos hagíou), é o primeiro na lista de líderes escolhidos para trazer paz à comunidade, em meio a esses conflitos. Seu nome significa “coroa”. Ele conhecia tão bem as Escrituras que seus oponentes judeus não puderam refutá-lo (6.10) quando ele declarou que Jesus era o Messias. Saulo de Tarso ouviu seu discurso perante o Conselho judaico, no qual acusou seus líderes de rejeitar o caminho de Deus, como seus ancestrais haviam feito (6.12—7.53). Saulo cuidou das roupas dos que o apedrejaram até a morte e fizeram dele o primeiro mártir cristão; também foi testemunha de seu discurso final e vitorioso. É possível que o testemunho de Estêvão tenha sido usado por Deus como

preparação para a conversão de Saulo. Estêvão foi um dos primeiros cristãos a entender o cristianismo como algo muito superior a uma seita judaica. A perseguição que eclodiu após sua morte obrigou os crentes a abandonar Jerusalém, a ponto de ficarem apenas os apóstolos (8.1). 2) “Filipe” é o segundo na lista dos nomeados. Seu nome significa “amante dos cavalos”. Após o martírio de Estêvão, Filipe levou o evangelho

a

Samaria,

onde

desenvolveu

um

ministério

extraordinário caracterizado por todos os tipos de sinais e prodígios (8.5-13). Dali, foi levado para o sul, até a estrada de Jerusalém a Gaza, onde apresentou o evangelho a um oficial africano e o batizou (8.26-28). Mais tarde, o Espírito Santo o conduziu a Azoto (Asdode) e, a partir daí, exerceu um ministério itinerante até se estabelecer em Cesareia (8.39,40). Por quase vinte anos, ficamos sem notícias dele, até que Paulo se hospedou em sua casa na última viagem do apóstolo a Jerusalém (21.8). Filipe tinha quatro filhas solteiras que eram profetisas (21.9). É a última menção dele nas Escrituras. 3) “Prócoro” é o terceiro na lista dos nomeados, e seu nome significa “regente do coro (ou da dança)”. É mencionado apenas nessa lista de ajudantes ou servos. O mesmo se aplica a “Nicanor”, cujo nome significa “conquistador” ou “aquele que vence”; a “Timom”, cujo nome significa “honorável”; a “Pármenas”, cujo nome significa “fiel” ou “constante”. “Nicolau, um convertido ao judaísmo, proveniente de Antioquia”, é alguém de quem temos outras informações além do nome (que significa “conquistador da cidade ou do povo”). Era, sem dúvida, um gentio helenístico que se havia tornado prosélito, ou seja, que se convertera ao judaísmo (sem ser circuncidado), em sua cidade natal, Antioquia. Alguns dos pais da

igreja o vinculam à seita herética dos nicolaítas (Apocalipse 2.6,15). Seu nome, porém, é muito comum, e não há fundamento suficiente para relacioná-lo a essa seita, que era muito ativa na Ásia Menor e se caracterizava pela promiscuidade e por todo tipo de abusos sexuais e excessos. Roger W. Gehring: “Muitos estudiosos do Novo Testamento [...] presumem que os helenísticos formaram um conselho de liderança na igreja de Jerusalém, análogo ao da sinagoga. No entanto, a questão é como exatamente esses homens foram considerados aptos para tal tarefa de liderança. Onde eles adquiriram a experiência necessária para cumprir as responsabilidades de tal ofício? Embora não se possa demonstrar com certeza absoluta, é bem possível que pelo menos alguns dos sete fossem proprietários e/ou líderes ou mestres de igrejas domésticas antes de serem escolhidos para o cargo. Alguns deles tinham o dom de ensinar e as habilidades de liderança equivalentes às que um pai de família teria obtido de sua educação e da experiência como chefe da casa”.5

Eles foram apresentados (v. 6a). Diferentemente dos “diáconos” de muitas igrejas evangélicas de hoje, esses homens dependiam diretamente dos apóstolos para o cumprimento de sua tarefa. A assembleia formada por todos os crentes escolheu esses sete servos qualificados, então “apresentaram esses homens aos apóstolos” (gr. hoùs éstēsan enōpion tōn apostólōn), para aprovação definitiva. Essa certificação era baseada em quem eles eram como crentes, na manifestação de seus dons, em sua experiência no serviço, em seu caráter e nas relações que mantinham com a multidão formada por todos os crentes. Acima de tudo, tinham de ser homens cheios do Espírito Santo e dispostos a se submeter à autoridade espiritual dos apóstolos. Em alguns casos nos dias de hoje, os “diáconos” formam o corpo governante da igreja local — quando não são considerados donos dela — por pertencerem às

famílias fundadoras ou às mais poderosas, ou por serem os mais ricos ou mais influentes da congregação. Isso não é bíblico e constitui uma grave ofensa ao Senhor da igreja e à congregação do Reino. Os apóstolos oraram por eles e lhes impuseram as mãos (v. 6b). A eleição dos Sete e sua aprovação pelos apóstolos foram atos seguidos de sinais e gestos simbólicos, pelos quais lhes foi concedida e reconhecida autoridade para agir no cumprimento do ministério que lhes fora confiado. Os gestos simbólicos usados para confirmá-los em sua tarefa foram a oração e a imposição de mãos (gr. proseuxámenoi epéthēkan autoīs tàs cheīras). Os apóstolos impuseram as mãos neles em oração não como um gesto mágico, mas para expressar o encargo da visão e interceder pelo poder do Espírito Santo. É interessante que essa é a primeira vez que a imposição de mãos é mencionada no Novo Testamento. No Antigo Testamento, era um ato simbólico frequente para indicar 1) a transmissão da culpa (Levítico 1.4; 8.14; 16.21); 2) a comunicação de bênçãos (Gênesis 48.14); 3) a nomeação para um cargo (Números 8.10; 27.18,23). No Novo Testamento, ocorre em 13.3; 1Timóteo 4.14; 5.22. É um ato pelo qual alguém é empossado em uma responsabilidade para a qual foi designado pela igreja. Não se trata de um ato sacramental nem de uma comunicação mágica de poderes espirituais. Assim, o problema em Jerusalém foi tão bem resolvido, que não é de estranhar que a obra continuasse a crescer (v. 7). O ministério do serviço (6.1-6)

Ao longo dos séculos, a igreja cristã interpretou de diferentes maneiras o ministério do serviço dos chamados “diáconos”. Mediante uma exegese e uma aplicação um tanto inadequadas, essa passagem tem sido usada para apoiar o ofício e a ordem eclesiástica dos diáconos, pois tanto o verbo quanto o substantivo, conforme usados nessa passagem, se aplicam a qualquer ministério de serviço da igreja. Na verdade, como já foi dito, o vocábulo também se aplica aos apóstolos, além de aos sete irmãos designados para determinada tarefa (“o ministério [diaconia] da palavra de Deus”, v. 2,4). Há um grande número de homens e mulheres chamados diákonos (“servos”) no Novo Testamento: Cristo (Romanos 15.8); Febe (Romanos 16.1); Apolo e Paulo (1Coríntios 3.5); Epafras (Colossenses 1.7); Paulo (Colossenses 1.23b,25); Tíquico (Colossenses 4.7); Timóteo (1Tessalonicenses 3.2); Onesíforo (2Timóteo 1.16-18); Onésimo (Filemom 10-13); os profetas (1Pedro 1.10-12). Com relação ao ministério do serviço, há duas questões a serem consideradas. O ministério da igreja. Se é para conhecer a natureza do ministério do serviço, devemos primeiramente entender a origem desse ministério e a natureza do ministério da igreja, na qual ele se baseia ou encontra seu âmbito de desenvolvimento. Ou seja, a autoridade que capacita qualquer crente a cumprir o tão necessário ministério do serviço é a igreja. Três considerações se destacam com relação ao ministério da igreja. A origem da igreja. A única entidade que Jesus fundou enquanto esteve na terra foi a igreja, a comunidade de seus discípulos reunida em seu nome. Em Jesus, está a origem histórica da igreja, e nele também se encontra a origem espiritual dela. Ele é o fundamento da

igreja, sobre o qual ela é construída (1Coríntios 3.10,11). A igreja não é uma instituição ou uma organização religiosa, mas uma comunidade de pessoas chamadas a estar juntas e unidas por um propósito. A igreja tampouco é uma denominação, ou seja, uma associação proposicional que reúne pessoas com objetivos mais ou menos comuns identificadas por um nome e por sua peregrinação histórica. A igreja é uma assembleia (gr. ekklēsia) de homens e mulheres que atenderam ao chamado de Jesus para serem seus discípulos (“todos os discípulos”: gr. tò plēthos tōn mathētōn eīpan, v. 2). A membresia da igreja. A igreja é composta de seres humanos pecadores. Isso significa que ela não é o “céu” nem o Reino de Deus e está limitada e depende inteiramente do poder do Senhor (João 15.5) para dar frutos dignos. Contudo, é preciso esclarecer que a igreja é formada por seres humanos regenerados. Só os que nasceram de novo podem ser membros da igreja (1Coríntios 1.2). Isso significa que ela deve refletir essa verdade em sua vida e em sua ação (Colossenses 2.6). A melhor definição de igreja é a de Paulo, quando diz que ela é o “corpo de Cristo” (Romanos 12.4,5; 1Coríntios 10.16,17; 12.12-27; Efésios 1.22,23; 2.14-16; 3.6; 4.4,12,16; 5.23,30; Colossenses 1.18,24; 2.19; 3.15). A democracia da igreja. A igreja do Novo Testamento é uma democracia muito diferente das outras, especialmente das democracias modernas de caráter representativo ou regidas pelo voto da maioria dos cidadãos. A democracia, no sentido mais amplo, é um sistema de convivência social, pelo qual um grupo ou sociedade humana se organiza com base na participação livre e responsável de todos os seus componentes na tomada de decisões

e na execução do que foi decidido. Como tal, a democracia é a melhor forma de ter uma sociedade na qual se imponham valores supremos, que contribuam para o desenvolvimento da pessoa humana. Isso significa que a democracia é o estilo de vida que respeita o exercício de todos os direitos inerentes ao ser humano. A democracia, como a conhecemos hoje em grande parte do mundo, não existia na época do Novo Testamento. No entanto, com uma análise do conteúdo mais profundo e central das exortações bíblicas é possível dizer que há certa razão em considerar, do ponto de vista da exegese, o conceito democrático de governo da igreja como o mais adequado ao pensamento neotestamentário. Aplicado à igreja, isso significa que todos os membros do corpo têm os mesmos direitos, responsabilidades e obrigações sob o governo soberano de Cristo, Cabeça da igreja. Não são os líderes nem mesmo a congregação como um todo que governam, mas o Senhor. É ele quem comanda a igreja e concede poder e autoridade para o exercício de seus vários ministérios e o faz por meio do Espírito Santo, que enche os líderes e os membros da igreja com seu poder para o cumprimento da missão. A práxis da igreja. A palavra grega prāxis significa “prática” ou “ação”.Na discussão filosófica e ideológica contemporânea, significa uma interação dinâmica entre teoria e prática, entre ação e reflexão. A teoria deve ser provada pela prática, e a prática deve ser corrigida pela teoria. O conhecimento não vem apenas do exercício intelectual, mas da experiência por meio do compromisso. Em linguagem teológica, é a aplicação prática das doutrinas cristãs em situações concretas, geralmente de opressão política e econômica. É um conceito-chave das teologias contemporâneas que a doutrina

teórica não constitui uma teologia verdadeira, mas precisa ser efetivada na ação. De acordo com esse conceito, a maior preocupação não deve ser com a ortodoxia (crença correta), mas com a ortopráxis (ação correta). Em missiologia, a práxis refere-se a um processo, não apenas a algo que se faz. Trata-se de fazer, mas com reflexão crítica e introspecção, descobrindo e desenvolvendo novas formas de fazer missão com base na avaliação crítica de nossa prática e teologia missionárias anteriores. A práxis da igreja se vê bem refletida em toda essa passagem, uma vez que a autoridade dos apóstolos, com sua diakonía concentrada no “ministério da palavra”, conseguiu se equilibrar com a diakonía dos Sete, concentrada no serviço às mesas. Desse modo, a fé cristã e a prática do amor se unem de forma perfeita como serviço (gr. diakonía) a Deus e ao próximo. Foi esse equilíbrio que garantiu a difusão da Palavra de Deus e o aumento considerável do número de discípulos (v. 7). O dever da igreja. Seu principal dever é ganhar almas para Cristo. Para isso, a igreja deve preparar seus membros e executar um plano permanente de evangelização e de discipulado. A igreja não foi posta no mundo por Cristo a não ser para se envolver na proclamação do evangelho do Reino, na cura dos enfermos e na libertação dos endemoninhados. A propósito, há muitas outras “atividades” nas quais uma igreja pode exercer seu ministério no mundo, mas mesmo as melhores serão inúteis se não estiverem conectadas com a tripla missão da igreja. Deus não fundou a igreja para que tivesse como prioridade construir templos ou estabelecer clínicas médicas, escolas, programas de alimentação, orfanatos, associações desportivas ou instituições culturais. Também não é o

dever primordial da igreja exercer pressão política a favor da vida e contra o aborto, a favor do casamento heterossexual e contra os casamentos mistos, a favor dos refugiados econômicos, sociais ou políticos e contra as ditaduras e os governos autoritários. Não é o principal dever da igreja defender os direitos das mulheres e das crianças, dos povos nativos, dos pobres e desempregados, dos marginalizados ou das vítimas da injustiça social. Sua missão é proclamar o evangelho, curar os enfermos e expulsar demônios. Todo o restante é muito bom e necessário e deve ser posto em prática, mas não é o dever prioritário da igreja. O programa da igreja. Cristo estabeleceu para sua igreja um programa bem definido, de acordo com Mateus 28.19,20. Esse programa exige a busca de novos discípulos, a inserção deles na comunidade de fé e sua preparação para que se tornem testemunhas eficazes. Se a igreja abandona esse programa, perde a razão de ser. Se não obedecer, porá em risco sua existência e jamais verá a Palavra de Deus se espalhar nem o número de discípulos aumentar de forma considerável em sua cidade, nem mesmo levar seus líderes religiosos, políticos, econômicos, culturais e sociais a obedecer à fé. O ministério do serviço. Uma vez que tenhamos um conceito correto da comunidade de fé sobre a qual o ministério do serviço é afirmado, estaremos em condições de entender melhor sua importância e as condições preenchidas pelos que são chamados pelo Senhor e escolhidos pela igreja para cumpri-lo. Há três questões a serem consideradas aqui. A origem do ministério do serviço. Sua origem histórica foi a necessidade de solucionar um problema específico da primeira

comunidade cristã. Para isso, foram nomeados sete homens em condições excepcionais e aptos a prestar um serviço de excelência. Observe-se que esses sete servos não são chamados “diáconos” nem podem ser considerados um antecedente histórico do que mais tarde passou a ser considerado um cargo eclesiástico e até mesmo uma posição hierárquica no clero. Sua origem espiritual está no fato de que Deus se reserva o direito de escolhê-los por meio de um chamado especial.A igreja deve ser cuidadosa e sensível ao buscar a orientação do Senhor antes de nomear qualquer crente para o ministério do serviço. Os crentes devem ser cheios do Espírito Santo, de modo que reconheçam quem são as pessoas chamadas por Deus, dotadas por ele com o dom do serviço e escolhidas pelo Senhor para o cumprimento dessa tarefa. O significado do ministério do serviço. Provavelmente, foi o apóstolo Paulo quem elevou o termo diákonos (“servo”) a uma dimensão espiritual e o usou pela primeira vez para designar um ministério espiritual específico no âmbito da igreja. A situação social da época fazia que o conceito de servo (gr. diákonos) estivesse inseparavelmente vinculado à condição de escravo de alguém, mas a fé cristã mudou esse pensamento (Mateus 23.11,12). Na verdade, a palavra grega diákonos ocorre cerca de 30 vezes no Novo Testamento, mas em apenas cerca de seis casos é traduzida por “diácono”, como designação de um ofício eclesiástico em particular (Romanos 16.1; Filipenses 1.1; 1Timóteo 3.8,10,12,13). O vocábulo significa literalmente “através do pó” e expressa a condição de humildade exigida da pessoa que assume essa responsabilidade ministerial. No uso mais geral do Novo Testamento, o termo designa

os que servem ao Senhor e à igreja sem pensar em ganho pessoal ou em prestígio. O alcance do ministério do serviço. Trata-se de um ministério que nasce na igreja e está a serviço dela, ou seja, a serviço da comunidade dos fiéis. É a igreja que reconhece e elege esses “servos” (v. 3), e esses “servos” servem à igreja. Eles são responsáveis perante a igreja pelo cumprimento de seu ministério. Aliás, o alcance do ministério do serviço não é exclusivamente a igreja, porque o serviço cristão pode atingir toda a sociedade, mas seu contexto prioritário é a comunidade do Reino. Paulo definiu isso muito bem quando aconselhou: “Não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo próprio colheremos, se não desanimarmos. Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gálatas 6.9,10). Tiago é ainda mais explícito sobre a necessidade de diakonía no seio da comunidade do Reino: “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo” (Tiago 1.27). A isso ele acrescenta, em termos muito práticos: “Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e  um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso?” (Tiago 2.15,16). Como já foi dito, o ministério do serviço surge da própria vida da igreja e como um ministério dentro dela. Dessa perspectiva, o diaconato é uma grande honra, mas também significa uma grande responsabilidade, o que implica o reconhecimento e a exigência de determinadas virtudes, mas também exige uma disposição humilde

para o serviço. A igreja, consciente de sua missão profética no mundo, deve considerar a escolha dos que irão se dedicar ao ministério do serviço uma das experiências mais significativas da vida comunitária.

A DIFUSÃO DA PALAVRA (6.7)

No resumo de Lucas no v. 7, parece claro que a surpreendente difusão da Palavra de Deus foi o resultado da resolução do conflito que, por algum tempo, afligiu a igreja. Sem dúvida, depois que se viram livres do fardo de cuidar das necessidades alimentares das pessoas com menos recursos, os apóstolos puderam se dedicar mais plena e intensamente à sua missão específica, que era anunciar o evangelho do Reino, curar os enfermos e expulsar demônios. Isso fez o número de discípulos aumentar consideravelmente em Jerusalém. Somou-se ao incremento numérico uma ampliação do alcance da comunicação da mensagem, já que “também um grande número de sacerdotes obedecia à fé”. Isso é muito significativo, uma vez que esses sacerdotes faziam parte do clero e do sistema religioso do templo, que até esse momento haviam tentado silenciar duas vezes o testemunho apostólico. Justo L. González: “A passagem termina com outro ‘resumo’ (6.7). O que esse resumo acrescenta aos anteriores é a conversão de ‘um grande número de sacerdotes’. Até agora, Lucas havia mencionado os ‘chefes dos sacerdotes’, que surgiram como inimigos da nova fé. Calcula-se que na época havia mais de 7 mil sacerdotes em Jerusalém, a maioria dos quais vivia em extrema pobreza e, portanto, muito distantes socialmente dos que julgaram Pedro e João no Sinédrio. É possível que Lucas tenha acrescentado a nota sobre os sacerdotes para nos fazer entender que, agora mais ocupados com o ‘ministério da palavra’, os apóstolos conseguiam causar mais impacto entre outros ‘hebreus’ ”.6 A avaliação (6.7a)

É bom que se faça de vez em quando uma avaliação do progresso do Reino de Deus entre nós. Essas avaliações são

importantes para se reconhecer os motivos de gratidão e louvor a Deus pelas bênçãos recebidas e também são ocasiões propícias para corrigir o que precisa ser corrigido e assumir novos desafios para o futuro. Assim, em 6.7, Lucas interrompe sua narrativa, com um resumo do progresso da igreja de Jerusalém até aquele ponto. É a primeira vez que o autor faz algo assim, mas não será a última. Na verdade, Atos apresenta seis desses resumos, inseridos ocasionalmente como marcadores em sua narrativa (6.7; 9.31; 12.24; 16.5; 19.20; 28.31). Desse modo, o livro parece estar dividido em seis partes, cada uma cobrindo um período de aproximadamente cinco anos. Nessa primeira avaliação, imediatamente antes de apresentar o relato sobre o ministério e a prisão de Estêvão, que foi de enorme importância para a igreja de Jerusalém, Lucas dá atenção especial ao crescimento da igreja em número e em popularidade. A frase “a palavra de Deus se espalhava” (gr. ho lógos toū theoū ēúxanen) sintetiza com eloquência o balanço positivo do ministério da igreja. O fato de a palavra de Deus se espalhar significava que a pregação das boas-novas era eficaz em conquistar mais e mais pessoas para a fé em Cristo. A proclamação do evangelho era aceita e recebida com fé pelo povo, e cada vez mais pessoas passavam a aceitar Cristo como o Messias e se juntavam à comunidade de discípulos. Deus estava fazendo maravilhas em meio a seu povo na época! Se olharmos para as igrejas de hoje, para os últimos anos de ministério das nossas congregações, qual será o resultado dessa avaliação? Podemos encerrar o balanço desses anos dizendo que, ao longo desse período, “a palavra de Deus se espalhou” entre nós?

É importante fazermos essa avaliação e respondermos a essas perguntas à luz desse texto e de nossa experiência como igreja. O crescimento (6.7b)

Para fazer uma avaliação adequada da difusão da palavra de Deus, existem dois vetores, apresentados no texto: crescimento quantitativo e crescimento qualitativo. Contra o que muitos consideram não ser importante, necessário ou possível, Lucas mostra que é possível, necessário e importante medir a propagação da Palavra de Deus em uma congregação. Todo o crescimento do Reino é importante para Deus e deveria ser para nós também. Crescimento quantitativo. Infelizmente, nas últimas décadas tem havido muito debate sobre crescimento da igreja. Lucas não está falando aqui do progresso de uma instituição humana ou de uma associação religiosa, mas do crescimento e da difusão da Palavra de Deus, ou seja, do crescimento do Reino de Deus. Vale a pena levar em consideração e avaliar esse crescimento. A avaliação do nível de crescimento do Reino suscita três questões. O que diz o texto? Lemos que “crescia rapidamente o número de discípulos em Jerusalém” (gr. eplēthýneto ho apithmòs tōn mathētōn en Ierousalēm sfódra). Há quatro fatores a serem observados aqui. 1) Observe-se o número. Em 1.20, somos informados de que o total dos discípulos era de 120 pessoas. Depois, em 2.41 temos a informação de que esse número aumentou em 3 mil novos crentes. Em 4.4, o número de homens adicionados foi de 5 mil. Nosso texto indica que esse número crescia de modo constante. 2) Observe-se que se tratava de “discípulos”, ou seja, de “crentes” comprometidos que seguiam Cristo como militantes. Não eram

simpatizantes nem curiosos, e sim indivíduos que haviam depositado sua fé em Cristo e estavam dispostos a segui-lo, reconhecendo-o como único Senhor de sua vida. 3) Observe-se a progressão numérica. O texto indica que o número de crentes “crescia rapidamente” (“se multiplicava grandemente”, RVR). Não se tratava de um aumento por adição, ou seja, de um mais um (um, dois, três), e sim de um aumento por multiplicação, ou seja, de um vezes dois ou vezes três ou mais. Nesse sentido, o crescimento do Reino foi explosivo. 4) Observe-se a localidade do fenômeno. O texto informa que esse notável crescimento ocorreu na cidade de Jerusalém. Não há indicação de que o fenômeno estivesse ocorrendo fora da cidade, nas cidades vizinhas ou além. Isso indica um grau crescente de saturação com o evangelho do Reino na cidade mais populosa da Palestina e a correspondente multiplicação das oportunidades de difusão da Palavra de Deus dali até os lugares mais remotos. O que nos diz essa realidade? Lucas é muito cauteloso ao apresentar os números e por certo tratou de verificar e confirmar as informações coletadas nas várias fontes que utilizou. Seus números não são “evangelísticos” nem “inflados” pelo entusiasmo, pela expectativa ou simplesmente pelo desejo de impressionar Teófilo e os demais leitores. Nesse caso, na hora de elaborar as estatísticas, é muito importante que se verifique a realidade numérica da congregação. Os dados computados ano após ano e de forma comparativa estão relacionados com o crescimento do número de membros, das ofertas, dos lugares estabelecidos para evangelização e discipulado, do número de líderes, do patrimônio material da congregação, do amor fraterno, do número de

missionários, das novas congregações plantadas, e assim por diante. No entanto, os dados mais significativos são aqueles relacionados com o crescimento do Reino, ou seja, quantos passaram da morte para a vida, quantos crentes foram cheios do Espírito Santo, quais mudanças significativas ocorreram na vida das famílias, como se dava o crescimento e a maturidade espiritual da congregação, quão encarnada estava nos discípulos a Palavra de Deus, que grau de compromisso se verificava entre os fiéis, quão abundantes eram os sinais do Reino de Deus na congregação, e assim por diante. O que podemos esperar do futuro? Se a igreja tem crescido em todos os aspectos nos últimos anos, também se pode esperar o mesmo com relação ao Reino de Deus, ou seja, um crescimento maior. O crescimento traz crescimento. Foi o que aconteceu com os primeiros cristãos. Em 6.7, temos a primeira de uma série de seis avaliações positivas. Uma igreja cheia do Espírito Santo e fiel ao cumprimento de sua missão não pode esperar nada além de um crescimento numérico significativo. O normal para qualquer igreja é crescer. Como acontece com qualquer organismo vivo, a falta de crescimento é indício de enfermidade. O crescimento é o resultado lógico da obra de Deus em seu povo e por meio dele. Se Deus trabalha, o resultado de sua ação deve ser evidente. O crescimento de uma comunidade do Reino não depende das fórmulas de crescimento de igreja, da aplicação de estratégias de marketing evangélico, do desenvolvimento burocrático da liderança, de um maior investimento financeiro nem da adição de esforços carnais ao que está sendo feito. O crescimento de uma comunidade do Reino é

um presente de Deus: a igreja cresce com o crescimento que Deus lhe dá (1Coríntios 3.6,7; Efésios 4.16; Colossenses 2.19). Crescimento

qualitativo.

A

avalição

dessa

dimensão

do

crescimento também suscita três questões. O que diz o texto? Lemos que “também um grande número de sacerdotes obedecia à fé” (gr. polýs te óchlos tōn hieréōn hypēkouon tēi pístei). Essa informação é notável, e quatro considerações podem ser observadas aqui. 1) Observe-se o número (“um grande número”; gr. polýs, “muitos”).O fato de tantos sacerdotes ingressarem na comunidade cristã significava que os laços que uniam a maioria dos crentes à ordem do templo seriam fortalecidos. Na verdade, a presença maciça e diária de crentes no monte do Templo, além de não passar despercebida, exercia enorme influência sobre as camadas inferiores do clero judaico, ou seja, de homens menos comprometidos com a manutenção do status quo religioso, com o prestígio pessoal e com a ambição de poder sobre a população. Do ponto de vista sociológico, esses sacerdotes pertenciam, na maior parte, ao mesmo estrato social que a maioria dos cristãos e estavam tão distantes das elites governantes quanto estes. 2) Observe-se quem eles eram. O texto identifica-os como “sacerdotes” (gr. hieréōn), ou seja, oficiais do culto do templo, e a maioria provavelmente residia em Jerusalém, embora alguns possam ter sido monges da comunidade essênia de Qumran ou de outras comunidades judaicas da Palestina. Deve-se ter em mente que na época havia 18 mil sacerdotes e levitas na Palestina, dos quais cerca de 7 mil ou 8 mil eram sacerdotes oficiantes. Além disso, não é dito que eles deixaram de ser sacerdotes depois de se

converter. Não havia razão para isso naquele momento. Os sacerdotes comuns não provinham de famílias ricas e poderosas, como era o caso dos sumos sacerdotes, que foram os principais inimigos ou opositores do evangelho. Muitos sacerdotes comuns eram homens piedosos e de coração humilde, como Zacarias, pai de João Batista. 3) Observe-se o que fizeram. O texto diz que esse grupo “obedecia à fé” (gr. hypēkouon tēi pístei). Nesse contexto, “fé” é sinônimo de “evangelho”, ou seja, das boas-novas de Jesus. Fé não é o assentimento a uma lista de dogmas ou a um credo ou confissão de fé. Também não é o mero sentimento de simpatia por Jesus. Fé é obediência ao senhorio de Cristo e se manifesta em viver de acordo com sua vontade em tudo. 4) Observe-se como eles obedeciam à fé. O verbo “obedecer”, no grego, está no imperfeito, o que indica uma ação que continua ou que se prolonga no tempo. Ou seja, os sacerdotes perseveravam na obediência ao senhorio de Cristo. A frase ressalta o elemento qualitativo na avaliação do testemunho dos primeiros cristãos e indica também um processo profundo e responsável de evangelização e discipulado. O que nos diz essa realidade? É necessário, em nossa avaliação, verificar se continuamos a crescer na adoração ao Senhor em nossa própria congregação. Nosso louvor está mais fervoroso, livre e equilibrado? Há mais espírito de oração pessoal e comunitária? Também é preciso verificar se continuamos a crescer em nosso desenvolvimento espiritual pessoal e comunitário. Como está nossa comunhão fraterna? Continua a se desenvolver em um clima de unidade na diversidade? Está mais forte do que nunca? Como está

nosso progresso na compreensão da vida cristã no que se refere a um discipulado militante? Quanto crescemos nesse aspecto? O interesse dos irmãos em estudar a Bíblia e em se preparar para o serviço tem aumentado de maneira considerável?É possível constatar um aumento nas ofertas e no tempo que os irmãos investem no serviço? Quanto progresso há na compreensão da mordomia integral da vida cristã? Além disso, é preciso verificar se continuamos a crescer em nossa projeção cristã com relação à comunidade em que servimos. Estamos desenvolvendo novos programas evangelísticos que abram a porta para novas e maiores oportunidades de proclamar o evangelho de Cristo? Nossa sensibilidade tem crescido com relação aos que passam necessidades? Estamos aumentando nossos programas de ação social e de transformação da comunidade quanto a justiça, paz e liberdade do Reino? O que podemos esperar do futuro? Mais uma vez: qualquer que seja nossa resposta às perguntas anteriormente apresentadas, o que podemos esperar do futuro é mais do mesmo. Uma igreja cheia de fé e do Espírito Santo não separa o crescimento numérico do crescimento qualitativo. Ambos os elementos caminham juntos, de acordo com o testemunho das Escrituras. O crescimento qualitativo é o resultado direto da obra de Deus (Efésios 4.13-16; Colossenses 2.18,19). Nessas passagens, Paulo refere-se ao crescimento qualitativo. Quase cinco anos após a ressurreição de Cristo, a avaliação de Lucas sobre o desenvolvimento da igreja de Jerusalém é que “a palavra do Senhor continuava crescendo” (RVR). Quantos anos tem sua congregação? Como está o equilíbrio entre o crescimento

quantitativo e o qualitativo? A Palavra do Senhor continua crescendo na cidade em que estão? O crescimento que sua igreja experimenta hoje é integral, ou seja, quantitativo e qualitativo? Orlando E. Costas: “Parece-me que a questão não é se a igreja está crescendo, mas se ela está genuinamente comprometida com a missão do Deus trino em suas situações sócio-históricas concretas. É uma questão de participação efetiva nas lutas contínuas da vida em sociedade, em um compromisso de testemunho total, que, mais que um programa ou um método, é um estilo de vida. Porque, quando isso acontece, a igreja vira de cabeça para baixo. Ela se transforma em um organismo vivo, em um centro dinâmico de treinamento e pesquisa e em uma equipe eficiente, capaz de conduzir multidões a Jesus Cristo. Nessas circunstâncias, a igreja também é virada do avesso. Suas estruturas são postas a serviço do Reino, e sua prática missionária se transforma em um amplo empreendimento, no qual o evangelho é compartilhado em profundidade para dentro e nas profundezas da vida humana para fora”.7

A PRISÃO DE ESTÊVÃO (6.8-15)

A visão dos Doze foi seguida por Estêvão. Os apóstolos pediram à congregação que selecionasse “sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria” (v. 3). Estêvão era um deles, um “homem cheio de fé e do Espírito Santo” (v. 5). A visão de Estêvão veio a ser a mesma que a dos Doze. Isso se torna evidente quando comparamos os v. 8 e 10 com os v. 3 e 10. Estêvão adotou a visão dos Doze. O nome Estêvão pode ser grego ou helenístico, de modo que ele pode ter sido um judeu helenístico. Na verdade, seu nome era profético, pois significa “coroa” e, de fato, ele foi coroado, mas com a coroa do martírio. O material relacionado com ele ocupa um espaço significativo em Atos. A partir de 6.8, Lucas concentra sua narrativa em três temas: a prisão de Estêvão (6.8-15), o discurso de Estêvão (7.1-53) e a morte de Estêvão (7.54-60). O relato da prisão de Estêvão (v. 8-15) está cheio de detalhes. A personalidade de Estêvão (6.8-15)

A personalidade de Estêvão é cativante (v. 8). Ele foi um dos sete escolhidos para servir às mesas (v. 5), mas não demorou em alcançar uma proeminência maior que a de qualquer um dos apóstolos, por causa de seu ministério (v. 8) e principalmente por causa de sua morte. Sua experiência mostra o primeiro confronto entre as forças do mundo e a igreja cristã. Houve uma batalha semelhante antes disso, mas entre o mundo e Cristo — que também terminou em morte. A descrição que Lucas faz de Estêvão não parece exagerada, o que torna sua personalidade cristã ainda mais atraente.

Quem foi Estêvão? (v. 8a). De acordo com Lucas, Estêvão era um “homem cheio da graça e do poder de Deus” (gr. plērēs cháritos kaì dynámeōs). Como crente, ele era “superdotado”, ou seja, a variedade e a abundância de dons do Espírito Santo enriqueceram enormemente seu potencial para o ministério, qualquer que fosse. De fato, Lucas parece sintetizar a riqueza carismática de Estêvão ao mencionar a plenitude da graça divina que atuava nele e as manifestações do poder de Deus que se tornaram evidentes por meio de seus atos. Nesse contexto, a palavra grega cháris indica uma concessão imerecida do amor de Deus, em tal dimensão que impulsiona o crente a servir aos outros em nome dele. A graça de Deus produz qualidades de boa conduta no crente (“boa obra”, 2Coríntios 9.8; 12.9; Efésios 4.7) e o induz a trabalhar em benefício de outros. Também nesse contexto, a palavra grega dýnamis indica o poder de Deus como um poder milagroso. Estêvão entendeu muito bem que o cristianismo era um movimento milagroso do início ao fim. Se os milagres operados pelo poder de Deus não forem levados a sério, será impossível compreender a fé cristã de forma adequada. O testemunho dos primeiros cristãos estava impregnado do elemento milagroso. Depois que os apóstolos atenderam obedientes ao chamado de Deus, “muitas maravilhas e sinais eram feitos” por meio deles (2.43). Pouco depois do Pentecoste, Pedro e João curaram um aleijado de nascença na porta do templo (3.1-10). Mais tarde, a esfera desse ministério milagroso estendeu-se para além dos Doze, até Estêvão (6.8). Ou seja, Estêvão era um servo alinhado com a manifestação da graça e do poder de Deus por meio da comunidade do Reino.

O que Estêvão fazia? (v. 8b). De acordo com Lucas, Estêvão “realizava grandes maravilhas e sinais no meio do povo” (gr. epoíei térata kaì sēmeīa en tōi laōi). O verbo epoíei está no imperfeito ativo e indica uma ação contínua e repetida. Sem dúvida, o ministério do serviço de Estêvão foi além de simplesmente “servir às mesas”. Embora essa tarefa seja nobre e necessária para o bem de toda a comunidade, especialmente dos mais vulneráveis, como as viúvas e seus filhos, como crente “cheio de fé e do Espírito Santo” (v. 5) seus dons o capacitaram para empreendimentos mais transcendentes. Isso explica a sequência de maravilhas ou milagres (gr. térata) da qual Estêvão foi o agente. No entanto, ele não era uma exceção. Como já foi dito, ele estava alinhado com uma práxis que vinha ocorrendo na comunidade do Reino desde o Pentecoste. Na verdade, após seu martírio, os prodígios continuaram por meio de outros membros do grupo dos Sete, como Filipe. Em 8.6, lemos sobre o ministério de Filipe em Samaria, caracterizado por muitos milagres, ao passo que, em 13.50—14.3, somos informados do ministério de Paulo e Barnabé em Antioquia da Pisídia e em Icônio. O comentário de Lucas é que o Senhor “confirmava a mensagem de sua graça realizando sinais e maravilhas pelas mãos deles” (14.3). De acordo com Paulo, os que têm “poder para operar milagres” são uma parte importante da equipe humana que serve ao Senhor na igreja, para a edificação do corpo de Cristo (1Coríntios 12.10,28). Estêvão tinha esse dom em abundância. Isso também é visto na regularidade dos “sinais” (gr. sēmeīa) que ele realizava no meio do povo. Observe-se que o palco de sua ação como “servidor das mesas” se dava no âmbito da reunião da comunidade do Reino, ao

passo que o palco de suas ações prodigiosas estava “entre o povo”, ou seja, nas ruas. A personalidade de Estêvão é ilustrativa. A impressionante quantidade de material bíblico dedicado a ele e a seu ministério pinta um retrato muito nítido da situação de pessoas como ele, que viviam com um pé na cultura greco-romana e com o outro em uma cultura saturada com as antigas tradições judaicas. Estêvão parece ter sido um cidadão de dois mundos: o do helenismo e o do judaísmo. Essa passagem destaca o tipo de conflito cultural vivenciado todos os dias em uma cidade tão cosmopolita como Jerusalém. Assim, não é de admirar a discussão de Estêvão com alguns judeus nacionalistas, que viviam em um contexto grecoromano em conflito com muitas de suas tradições espirituais e étnicas judaicas. O contraste entre duas culturas tão diferentes, o helenismo e o judaísmo, é evidente. Rodney Stark diz que, ao explorar “a marginalidade dos judeus helenizados, em tensão entre duas culturas, podemos notar de que forma o cristianismo se ofereceu para reter muito do conteúdo religioso de ambas as culturas e resolver as contradições entre elas”.8 É interessante que Lucas se esforça para demonstrar a continuidade cultural com o judaísmo ao expressar a maneira pela qual o cristianismo é tanto sua realização quanto seu desenvolvimento. No entanto, Lucas, ao mesmo tempo, valida aspectos do mundo familiar da cultura grecoromana. A personalidade de Estêvão nos desafia (v. 9,10). Ele não era covarde nem tolo. Tinha uma habilidade extraordinária como apologista, e não hesitou em aceitar o desafio de discutir suas convicções com quem quer que fosse. Na verdade, de todos os

apóstolos e dos Sete, foi ele quem se opôs a “membros da chamada sinagoga dos Libertos” (gr. tōn ek tēs synagōgēs tēs legoménēs Libertínōn). O que se destaca nele que nos desafia? Ele era polemista. O texto informa que “alguns homens [‘judeus recalcitrantes’] começaram a discutir com Estêvão” (gr. anéstēsan dè tines [...] syzētoūntes tōi Stefánōi). O verbo grego anístēmi significa “levantar-se”, “pôr-se de pé”, “apresentar-se”, “vir”, ou seja, esses indivíduos saíram ao encontro dele como um bando, a fim de demoli-lo em um debate religioso. Estêvão, porém, não se encolheu e encarou o debate. Sem dúvida, o confronto foi na língua grega; ao que parece, Estêvão dominava muito bem esse idioma. Ele era apologista. Ou seja, era alguém com a capacidade de defender a fé cristã por meio de argumentos lógicos e racionais. Seus oponentes não eram de baixo calibre, pois pertenciam a uma sinagoga judaica chamada dos Libertos. Os libertinos (lat. libertinus) eram judeus libertos ou filhos de libertos, que uma vez foram escravos de Roma. Talvez fossem descendentes dos judeus levados para Roma como cativos por Pompeu quando ele conquistou a Palestina, mas que agora eram livres e haviam se estabelecido em Jerusalém. O grupo era numeroso o suficiente para ter a própria sinagoga. Havia inúmeras sinagogas na cidade de Jerusalém, muitas delas formadas por judeus da Diáspora. Lucas menciona pelo menos cinco delas e as nomeia de acordo com a origem de seus membros na Diáspora: a dos Libertos, a dos judeus de Cirene e a dos de Alexandria, a dos judeus das províncias da Cilícia e a dos da Ásia. Tal variedade de sinagogas é uma indicação de que havia um bom número de judeus helenísticos em Jerusalém. No entanto, Lucas não oferece muitos detalhes sobre esses judeus

helenísticos. Na verdade, é possível que fossem dois grupos bem definidos, pelo uso que ele faz do artigo grego tōn apenas duas vezes (gr. tēn legoménēs Libertínōn kaì Kyrēnaíōn kaì Alexandréōn kaì tōn apò Kilikías kaì Asías). Em todo caso, Estêvão enfrentou todos na condição de apologista cristão helenístico que defendia a fé em Jesus como o Messias prometido. Ele era imbatível. Os oponentes com os quais Estêvão debateu não eram incultos nem improvisados. A sinagoga dos Libertos (v. 9), como as demais (quer duas, quer cinco), eram formadas por pessoas bem-educadas, de fala grega e muito influenciadas pela cultura greco-romana. O próprio fato de sua disposição e predileção pelo debate público era típico dos gregos e dos judeus helenizados (17.16-21; 19.8-10), mas os judeus helenísticos da sinagoga dos Libertos constituíam um grupo isolado. Sua atitude exemplifica o fanatismo de alguns judeus de língua grega provenientes da Diáspora. Seus membros eram judeus provenientes de Cirene, de Alexandria, da Cilícia e da província romana da Ásia. Estêvão, que também falava grego, começou a discutir com eles. É provável que na sinagoga da Cilícia ou entre os expatriados estivesse o jovem Saulo de Tarso, brilhante aluno de Gamaliel, que talvez tenha tido a oportunidade de exercer sua notável habilidade de polemista com Estêvão. No entanto, incapazes de refutar a sabedoria e a unção de Estêvão em público, esses homens conspiraram secretamente para acusá-lo de blasfêmia contra Moisés e contra Deus (v. 10,11). Para isso, recorreram a falsas testemunhas, de modo que obrigaram Estêvão a comparecer perante o Conselho judaico. Mais uma vez, essa instituição de autoridade máxima dos judeus se reuniu para tentar silenciar uma testemunha do Messias ressuscitado. Estêvão

foi acusado de se pronunciar contra os dois principais elementos do fanatismo dos judeus da Diáspora: contra o templo e contra a Lei. Afinal, os judeus helenísticos haviam deixado a Diáspora justamente para residir em Jerusalém, onde estava o templo e onde imperava a Lei de Moisés. O caráter de Jesus (6.8-15)

Nesse antigo relato da igreja, evidenciam-se de maneira maravilhosa duas linhas de pensamento: 1) a comunhão entre Estêvão e Jesus; 2) o testemunho de Estêvão ao mundo. A relação entre essas duas vertentes parece óbvia. Estêvão é visto pela primeira vez, cheio do Espírito, pregando com grande sabedoria e operando maravilhas em Jerusalém. Em seguida, é visto dando testemunho diante do Conselho judaico, que foi o testemunho de Estêvão ao mundo como resultado de sua comunhão com Jesus de Nazaré. Se quisermos causar impacto ao mundo com o testemunho de nossa fé, será necessário que, como Estêvão, mantenhamos uma comunhão íntima com Jesus, de modo que ele seja nosso modelo de caráter. Não podemos apresentar Jesus apenas como uma figura histórica, um mestre de grandes verdades ou um revolucionário social. A proclamação do evangelho passa pela personalidade do pregador, e essa personalidade deve ser modelada de acordo com o caráter de Jesus de Nazaré. A comunhão entre Estêvão e Jesus. Seria possível avaliar o nível dessa comunhão pessoal, expressa conforme o caráter, ou seja, saber em que medida o caráter de Jesus é refletido no caráter de Estêvão? O texto descreve esse homem como alguém “cheio da graça e do poder de Deus” (v. 8). É uma forma abrangente e

definitiva de descrever o caráter desse homem. Nosso pensamento é remetido ao Evangelho de Lucas, à declaração de que Jesus “crescia e se fortalecia [...] e a graça de Deus estava com ele” (Lucas 2.40). Quando precisava descrever o caráter de Jesus, Lucas geralmente o fazia nos parâmetros da “graça” e do “poder”. Estêvão era um homem cheio de ternura e de força, bem como de dons e de poder divinos. Essas duas qualidades não estavam em compartimentos separados: uniam-se em uma única personalidade. O mesmo acontecia com Jesus. Nós o ouvimos dizer às multidões com graça e ternura: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados” (Mateus 11.28), mas também o ouvimos dizer com poder e força: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24). Juan C. Varetto: “[Estêvão] foi um homem que deu em sua vida todo o lugar que correspondia ao Senhor. Ele não teve uma vida espiritual pobre, atrofiada, anêmica ou mesquinha. É importante gravar bem em nossa mente a plenitude da vida cristã que se reconhece quando se diz que ele foi um homem cheio de fé, cheio do Espírito Santo, cheio de sabedoria, cheio de graça e cheio de poder. Esta deve ser nossa meta na vida cristã: ser cheios daquela fé que transforma nossas esperanças em realidade, cheios do Espírito que dá impulso a nossas atividades, cheios da graça de Deus que nos faz ter graça diante dos que nos rodeiam e cheios desse poder que opera maravilhas, demonstrando que o evangelho não é questão de teses frias e cálculos especulativos”.9

Comunhão de caráter entre Estêvão e Jesus. Em Estêvão, encontramos um homem com o mesmo caráter de Jesus. Era um servidor das mesas em Jerusalém, mas em tal comunhão com o caráter de Cristo que a impressão que causava nas pessoas ao redor era de grande graça e beleza de caráter combinadas com grande força de propósito. Esses dois elementos o acompanharam

até o fim. A graça manifestou-se em seu clamor: “Senhor, não os consideres culpados deste pecado” (7.60). O poder também era evidente em suas palavras: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (7.59). O segredo do caráter de Estêvão estava ainda em sua comunhão de caráter com Cristo. Esse fato se manifestou em seu rosto, que “parecia o rosto de um anjo” (v. 15; v. Êxodo 34.29; 2Coríntios 3.18). A menos que aqueles ao nosso redor possam ver o caráter de Jesus em nós, será muito difícil conquistá-los para a comunidade do Reino.

O DISCURSO DE ESTÊVÃO (7.1-53)

O cap. 7 consiste em duas partes principais: a primeira apresenta o discurso de Estêvão (v. 1-53); a segunda apresenta o relato de seu martírio (v. 54-60). O discurso de Estêvão não é uma resposta direta às acusações feitas contra ele (6.13,14). Em vez disso, é um ataque frontal à maneira pela qual os líderes judeus sistematicamente haviam rejeitado os servos que Deus lhes enviara. O discurso termina com fortes argumentos contra as atitudes tradicionais dos judeus com relação ao templo (v. 44-50). No entanto, Estêvão respondeu de forma indireta às acusações que lhe foram feitas, já que dois pontos do discurso tratavam do templo e da Lei mosaica. Estêvão lembra seus ouvintes de que Deus apareceu a Abraão fora da terra prometida antes de entregar a Lei a Moisés e mesmo antes da construção do templo. Ao longo de sua história, porém, o povo judeu rejeitou os enviados de Deus, como José e Moisés. Eles rejeitaram até mesmo o Justo, o Messias, Jesus, acrescenta Estêvão, e isso por causa de sua cega devoção ao templo. A idolatria (ou templolatria) deles não lhes permitiu reconhecer a voz de Deus quando ele lhes falou na pessoa de Jesus Cristo. Dessa forma, a revisão histórica feita por Estêvão percorre a história de Israel desde Abraão até a construção do templo de Salomão. O primeiro mártir cristão concentra-se em três temas principais: 1) o período patriarcal (v. 1-16); 2) Moisés e a Lei (v. 17-43); 3) o tabernáculo e o templo (v. 44-50). A primeira das três seções é uma introdução aos temas centrais; a segunda trata da acusação de

blasfêmia contra Moisés; a terceira trata da acusação de blasfêmia contra o templo. A missão de Deus (7.1-53)

A síntese histórica elaborada por Estêvão em seu discurso apresenta boa parte da história da salvação segundo o Antigo Testamento. Essa história descreve a missão de Deus no mundo para a redenção da humanidade. Deus tem uma missão ativa com a qual tenta fazer que os seres humanos cheguem ao arrependimento por meio da obra realizada por Cristo (Lucas 19.9,10; 2Pedro 3.9). A missão de Deus (lat. missio Dei) é a autorrevelação de Deus como aquele que ama o mundo, o próprio compromisso de Deus neste mundo e com este mundo, a natureza e a atividade de Deus que abrange a igreja e o mundo, no qual a igreja tem o privilégio de participar. Quem lhe serve participa dessa missão, mas é Deus quem a inicia e sustenta. Hoje a igreja é o instrumento de Deus chamado a participar de sua missão. A missio Dei é pura em motivação, meios e objetivos, porque deriva da natureza de Deus. Está centrada em Deus, não na igreja. Refere-se a tudo que Deus faz pela comunicação da salvação. A missio Dei é universal e tem como objetivo a justiça para todas as nações. Ela começou com Abraão, chamado a ser uma bênção para todas as nações (Gênesis 12.1-3). A missio Dei reflete o caráter de Deus como o Deus da justiça (hebr. tsedeqah), que exige justiça social (hebr. mishpat), como foi anunciado pelos profetas. Deus está interessado na justiça social, não apenas na moralidade privada. Por isso, a missio Dei é a atividade de Deus na história da humanidade para resgatar a humanidade de sua

desumanização cultural, política, econômica e social, bem como de sua alienação espiritual com relação a Deus. A expressão missio Dei foi cunhada, em parte, para refutar a ideia tradicional de que a missão se centra na igreja e ressaltar que na verdade se centra em Deus. Em essência, a missio Dei refere-se a tudo que Deus faz para comunicar a salvação, sem deixar de lado o importante papel que ele atribuiu à igreja no processo. Em seu discurso, Estêvão faz referência à missio Dei em três momentos muito importantes da história do povo eleito. O período patriarcal (v. 1-16).

Abraão (v. 2-8). Estêvão começa destacando a figura de Abraão como pai da fé e da nação (v. 2-8). O exemplo de Abraão lembra quatro aspectos fundamentais da fé. 1) O exemplo de Abraão lembra que fé significa obedecer a Deus (v. 2,3). Abraão foi um homem obediente à visão celestial. Foi na Mesopotâmia, longe da terra prometida, que Deus se revelou pela primeira vez ao patriarca. Podemos nos perguntar o que o persuadiu a deixar sua terra natal para empreender uma viagem a um destino desconhecido. A viagem era uma loucura, começando pelo ponto de vista dos cânones que regem a prudência humana (Hebreus 11.8), mas, de acordo com o relato bíblico, foi um ato de autêntica sabedoria, porque Abraão saiu em obediência ao “Deus glorioso”, o Deus majestoso. Isso faz lembrar que devemos ser obedientes à visão celestial (26.19). 2) O exemplo de Abraão lembra que fé significa crer em Deus (v. 4,5). Abraão creu nas promessas de Deus. Observe-se que Abraão levou a sério as palavras que Deus disse a ele. Assim, deixou a

terra dos caldeus (Mesopotâmia) e se estabeleceu em Harã, no vale superior do Eufrates. Ele permaneceu ali até a morte de seu pai. Então, sob a direção divina, continuou sua migração até chegar a Canaã. Observe-se também que Abraão não recebeu o que Deus lhe havia prometido. Deus prometera a posse da terra a ele e à sua posteridade, mas durante toda a sua vida ele viveu como estrangeiro nesse lugar, e a única terra que adquiriu foi a do túmulo de Sara, comprada por determinado preço (Hebreus 11.9,10). Observe-se ainda que Abraão não tinha uma base objetiva sobre a qual apoiar sua fé. Tudo que ele tinha eram as promessas de Deus e agia de acordo com elas (Tiago 2.23; Hebreus 11.11-13). 3) O exemplo de Abraão lembra que fé significa esperar em Deus (v. 6,7). Abraão aprendeu a esperar em Deus. Além de ele não receber como propriedade nem sequer um metro quadrado de terra, Deus ainda lhe revelou que, em vez disso, enfrentaria provações e sofrimentos — e não só ele, mas também seus descendentes. Sua fé foi testada ainda pela revelação de que seus descendentes deixariam aquela terra e iriam para uma terra estrangeira, onde sofreriam opressão e seriam escravos por várias gerações. No entanto, o exílio deles não seria permanente, porque no tempo devido Deus condenaria seus adversários e traria seu povo de volta para adorá-lo na terra de Canaã. A única possibilidade de Abraão enfrentar um futuro desses era descansando em Deus e esperando nele (Salmos 25.3; 42.5). 4) O exemplo de Abraão lembra que fé significa comprometer-se com Deus (v. 8). Abraão assumiu um compromisso com Deus. A única coisa que o patriarca recebeu foi “a aliança da circuncisão” como sinal externo do pacto que Deus havia firmado com ele. A

aceitação desse sinal físico por parte de Abraão, para si e para seus descendentes, foi outra expressão de sua fé em Deus. Desse modo, antes que existisse a religião judaica, já se havia estabelecido um de seus ritos fundamentais. Portanto, quando Isaque nasceu, Abraão circuncidou-o no oitavo dia, e o sinal da aliança foi transmitido de geração a geração: de Isaque para Jacó e de Jacó para seus 12 filhos, ancestrais das 12 tribos de Israel. A circuncisão era a expressão concreta de um compromisso formal de fidelidade e obediência da parte de Abraão para com Deus. José (v. 9-16). Depois de falar de Abraão, Estêvão continua seu discurso falando de José, de seu pai, Jacó, e de seus irmãos “patriarcas” (v. 9-16). José é uma personagem singular, e Estêvão provavelmente o destaca pela grande semelhança com Jesus em seu caráter e em suas ações. José foi vendido por causa da inveja de seus irmãos (Marcos 15.10), mas Deus estava com ele (10.38). Havia fome no Egito, o que representa a condição miserável dos judeus nos dias de Jesus. De igual modo, José deu-se a conhecer a seus irmãos em uma segunda visita, tal como Jesus Cristo se manifestará em sua segunda vinda ao povo de Israel, que, então, o reconhecerá como Senhor. Estêvão apresenta José como um homem honrado. Evidentemente, ele conhecia muito bem a vida e o testemunho de José. Não há história que represente melhor o triunfo da justiça que a de José nem que mostre contrastes tão marcantes entre a desgraça e o êxito. José mostrou ser um servo maduro e um homem honrado. O Senhor estava com ele (Gênesis 39.2,3). José era digno de confiança (Gênesis 39.4). Ele prosperava em tudo o que fazia (Gênesis 39.5,6a). Sabia como resistir às tentações

(Gênesis 39.6b-10). Desfrutava o amor de Deus em situações difíceis, como quando foi preso injustamente (Gênesis 39.19-21a). Era honesto nos negócios (Gênesis 39.23). Dependia de Deus para tudo, como na ocasião em que interpretou os sonhos dos oficiais do rei egípcio e do próprio faraó (Gênesis 40.5-8; 41.15). Agiu como porta-voz de Deus ao interpretar sonhos reveladores (Gênesis 41.28). O Espírito de Deus estava sobre ele (Gênesis 41.38). Assumiu uma grande responsabilidade no comando de toda a terra do Egito (Gênesis 41.45b). Moisés e a Lei (v. 17-43). Nesses versículos, Estêvão apresenta uma das personagens centrais de sua exposição: o libertador do povo de Deus. O povo da aliança (v. 17-19). O período da história hebraica resumido por Estêvão nos v. 17-19 retrata o povo da aliança como uma nação de escravos em uma terra estrangeira. Séculos antes, porém, Deus havia prometido a Jacó, quando este ainda não havia se mudado para o Egito: “Lá [no Egito] farei de você uma grande nação” (Gênesis 46.3). O Egito oferecia muitas vantagens. Os hebreus desenvolveram-se cultural e economicamente durante o período entre seu estabelecimento naquela terra e a época em que foram submetidos à escravidão. Foi por causa dos rigores da escravidão que os hebreus se separaram dos egípcios e fortaleceram sua identidade. Foi também graças a essas condições de vida que eles se voltaram para o Deus de seus pais em busca de libertação. O libertador do povo (v. 20-29). Por muitos anos, o clamor do povo elevou-se aos céus. Será que Deus não se importava com eles? No entanto, Deus estava agindo para responder à oração de

seu povo. Embora tenha permitido as aflições que os hebreus suportaram no Egito, ele também preparou o homem que libertaria seu povo oprimido, providenciaria suas leis e os poria em movimento como uma nova nação. Nos v. 20-29, Estêvão discorre sobre Moisés, o libertador (v. 20-22), as circunstâncias nas quais ele serviu (v. 23-29a) e a preparação que recebeu para sua tarefa (v. 29b). 1) A personalidade de Moisés (v. 20-22). Estêvão fala de Moisés e destaca sua personalidade. O registro bíblico não indica quanto tempo os hebreus viveram sob as duras condições mencionadas no v. 19, mas sabemos que Moisés levou oitenta anos para se preparar. O povo estava mergulhado na escravidão e na opressão. Os hebreus eram tratados sem misericórdia. Eram submetidos a trabalhos forçados, duramente reprimidos e forçados a testemunhar o assassinato dos próprios filhos recém-nascidos. Nos v. 20-22, podemos perceber três etapas importantes na vida de Moisés. A primeira etapa é o nascimento de Moisés (v. 20). Em um contexto de opressão, somos apresentados à vida e à obra da pessoa mais importante de toda a história do Antigo Testamento. Na verdade, alguns historiadores seculares consideram Moisés o maior homem da história universal. Alguém calculou que a sétima parte do Antigo Testamento é dedicada à obra desse servo de Deus. Moisés destacou-se como legislador, estadista, historiador, poeta, profeta, sacerdote, juiz e libertador de seu povo. Moisés não só testemunhou o nascimento da nação de Israel, como de fato foi nele e com ele que Israel nasceu. A Bíblia fala de sua família. O texto diz que “por três meses ele foi criado na casa de seu pai”. A família sempre desempenhou um

papel fundamental na vida de todo grande homem de Deus. Moisés tinha ancestrais levíticos. De acordo com alguns estudiosos, a relação de Moisés com os levitas não seria original, mas o resultado do interesse posterior em relacioná-lo com a família sacerdotal. Embora Moisés tenha cumprido funções sacerdotais, essa não foi a parte mais importante de seu ministério. Essas tarefas eram cumpridas por outros (Êxodo 32.5; 24.5). Temos informações sobre seus pais. Moisés era filho de Anrão e de sua tia Joquebede, da tribo de Levi (Êxodo 6.20). De acordo com o hebraico, o nome Moisés significa “retirado” e é de origem egípcia. Na verdade, vários faraós usaram esse nome (Amísis, Tutmósis). No Egito, o nome Moisés era sempre associado ao de alguma divindade, como no nome Rá-Moisés ou Ramsés. Seus irmãos também são mencionados. Em Êxodo 2.1,2, Moisés aparece como o primogênito de Anrão e Joquebede. No entanto, Moisés tinha uma irmã mais velha (2.7), chamada Maria ou Miriã (Êxodo 15.20) e um irmão mais velho (Êxodo 6.20; 7.7), chamado Arão (4.14). Ambos ocupariam um lugar importante em sua vida e em seu ministério. A Bíblia também fala de seu nascimento. O texto diz que “naquele tempo nasceu Moisés”. Moisés nasceu em circunstâncias adversas para o povo hebreu. O faraó havia decretado a morte de todos os hebreus recém-nascidos do sexo masculino. Durante três meses, a mãe tentou mantê-lo escondido em casa, mas foi obrigada a encontrar um esconderijo em outro lugar. Talvez o receio de ser denunciada por um vizinho pelo choro do filho a tenha levado a agir assim. Observe-se que Moisés era um belo menino. O texto diz que “era bonito aos olhos de Deus” (v. 20, cf. nota).

A segunda etapa é a infância de Moisés (v. 21). Duas considerações se destacam aqui. Por um lado, o texto destaca sua salvação. De forma engenhosa, Joquebede pegou um barquinho ou algum tipo de cesto feito de fibras de papiro, planta muito comum no Egito, e o impermeabilizou. Depois, colocou a criança no cesto e escondeu-o entre os juncos às margens do Nilo. Miriã ficou à beira do rio para vigiá-lo. Uma filha do faraó aproximou-se do local e descobriu o cesto, abriu-o e encontrou o menino. O grito de medo da criança tocou seu coração e despertou nela o desejo de adotar o lindo menino. Por outro lado, o texto destaca sua formação. A sugestão de Miriã — buscar uma hebreia para criar o bebê — permitiu que a própria mãe de Moisés cuidasse da criança. Desse modo, Deus providenciou ao pequeno o cuidado maternal necessário para o desenvolvimento de sua personalidade tão especial, para o cumprimento de sua relevante tarefa na história. A terceira etapa é a juventude de Moisés (v. 22). Há três fatores a serem observados nesse versículo. A primeira é sua condição social. Moisés foi adotado como filho pela filha do rei (v. 21), com o gozo de todos os privilégios e direitos da classe social dominante. O historiador judeu Flávio Josefo diz que Moisés se tornou general do exército egípcio e que a filha do faraó, por não ter filhos naturais, queria torná-lo herdeiro do trono. A segunda é sua cultura. O nome Mosheh é egípcio e significa “um filho” ou “nascer” — não deriva do hebraico Masheh (“tirar”). A palavra hebraica é semelhante à palavra egípcia na pronúncia, mas não no significado. Esse jogo de palavras era comum no Oriente. De acordo com Josefo, a forma grega de Mosheh (Moyses) provém das palavras coptas mo (“água”) e uses (“salvo de”). O nome Moisés é estritamente egípcio e reflete

a cultura na qual foi criado. A terceira é sua educação. O v. 22 afirma que Moisés foi instruído em toda a ciência dos egípcios e que se destacou por sua erudição. Esse conhecimento seria útil para ele no ministério para o qual Deus o chamaria mais tarde. 2) As circunstâncias de Moisés (v. 23-29a). Estêvão fala das circunstâncias em que Moisés serviu a seu povo. Vemos, em primeiro lugar, as circunstâncias do próprio Moisés (v. 23,24). Os anos se passaram. Moisés cresceu e tinha agora 40 anos de idade. Apesar de sua maturidade, ele carregava um sério problema de identidade: por um lado, fora criado e treinado como egípcio na corte do faraó. Por outro lado, é evidente que sua mãe Joquebede semeou nele os elementos que definiam uma identidade hebraica. De certo modo, Moisés considerava os hebreus seus “irmãos”. É provável que ele tenha até mesmo renunciado à condição de “filho da filha do faraó” (Hebreus 11.24). Portanto, diante da injustiça da opressão, Moisés optou pelo mais fraco. Talvez impulsivamente e sem pensar, fez algo que acabou resolvendo seu conflito de identidade e o marcou como hebreu para o resto da vida. Sua opção pelos pobres é avaliada como correta e providencial no registro bíblico (Hebreus 11.24-26). Vemos, em segundo lugar, as circunstâncias dos hebreus (v. 2528)Os ricos e poderosos são geralmente considerados os piores opressores. No entanto, a experiência ensina que muitas vezes não há pior opressor que alguém surgido das fileiras dos oprimidos. Moisés talvez esperasse que seu povo o aceitasse como libertador e juiz e o apoiasse em sua campanha. No entanto, no dia seguinte ao do incidente com o egípcio, Moisés percebeu que os hebreus

sofriam com uma opressão interna, pior que a externa, que tinha como causa o regime explorador egípcio. Vemos, além disso, as circunstâncias dos egípcios (v. 29a). Apesar de ser filho adotivo do faraó, Moisés “fugiu” do Egito. Podemos nos perguntar como pôde o faraó dar preferência a um oficial egípcio, mas não ao filho adotivo de sua filha e potencial herdeiro do trono. Talvez o motivo fosse justamente o último. Moisés e sua ação representaram uma ameaça ao projeto hegemônico do faraó. Além disso, a escolha feita por Moisés revelou que sua identidade egípcia havia sido posta de lado. Ao se identificar com os hebreus, Moisés passou a se identificar também com seus sofrimentos e sua opressão. 3) A preparação de Moisés (v. 29b). Nesse versículo, Estêvão fala da preparação de Moisés. Os planos e os propósitos de Deus transitam acima das circunstâncias humanas. O que, por um momento, pareceu pôr fim à incipiente carreira de Moisés como libertador de seu povo foi o início de um período de preparação, que iria se estender por cerca de quarenta anos. Durante esse tempo, Moisés haveria de experimentar muitas coisas novas. Em primeiro lugar, Moisés teve a experiência de habitar uma nova terra, Midiã, o lugar para onde fugiu. Esse território estava situado imediatamente a leste de Gósen. Era uma enorme península de formato triangular. Fazia sentido que Moisés fugisse naquela direção. Era um terreno árido, uma região desolada entre dois golfos. Ao que parece, Moisés cruzou a península para o lado oriental, perto do golfo de Ácaba. Os midianitas, descendentes de Abraão e de sua segunda esposa, Quetura (Gênesis 25.1,2), viviam ali. A relação entre Moisés e os midianitas é historicamente

plausível, uma vez que a tradição não teria inventado tal coisa, por causa da posterior hostilidade entre israelitas e midianitas (Juízes 6.2; Isaías 9.4). Em segundo lugar, Moisés vivenciou novas circunstâncias, ou seja, “ficou morando como estrangeiro”. Moisés deixou o Egito para salvar sua vida, mas o fez confiando que, de alguma forma, Deus o estava guiando para o cumprimento de seus propósitos eternos (Hebreus 11.27). As novas circunstâncias que ele enfrentou mostraram a direção do caminho que Deus esperava que ele percorresse nos anos seguintes. Em Midiã, ele encontraria refúgio, trabalho, uma família e uma nova compreensão de Deus. Os quarenta anos que Moisés viveu com seu sogro, como pastor de ovelhas, proporcionaram-lhe oportunidades únicas para seu desenvolvimento. Ele teve tempo suficiente para meditar nos ensinos de sua mãe, Joquebede, e digerir o conhecimento egípcio. Pôde também aprender os costumes das tribos do deserto e conhecer a geografia do deserto. Assim, ele agora sabia onde estavam as fontes de água e de alimento. Os anos que passou ali permitiram que ele conhecesse a topografia árida do terreno, através do qual mais tarde guiaria os hebreus. Deus lhe deu um treinamento prático para a liderança de seu povo. Em terceiro lugar, Moisés formou uma nova família, porque “teve dois filhos”. Enquanto seus compatriotas hebreus no Egito o rejeitavam como juiz e libertador, um midianita desconhecido recebeu-o em casa e lhe deu um novo lar. Nessa família, Moisés encontrou um sogro. Reuel era sacerdote dos midianitas e um homem importante entre eles (Números 10.29). Também era chamado Jetro (Êxodo 3.1; 4.18; 18.1-12) e, aparentemente,

adorava ao Deus verdadeiro. Moisés aprendeu muito com o sogro, não só sobre a vida cotidiana e a sobrevivência no deserto, mas também sobre suas crenças e práticas religiosas. Moisés também encontrou uma esposa. Zípora era a companheira ideal para um homem como ele, chamado a cumprir uma tarefa tão difícil — a libertação de todo um povo. Ela era uma mulher de grande coragem e determinação (Êxodo 4.25), que soube sujeitar-se ao marido (Êxodo 18.2) e acompanhá-lo em seu ministério. Não foi fácil para ela dividir a própria vida com um homem sujeito a tantas pressões e exigências. No entanto, ela soube ficar do lado dele, apesar das críticas e da oposição de alguns (Números 12.1). Além disso, Moisés teve dois filhos. Gérson foi o primogênito de Moisés (Êxodo 18.3). Seu nome significa “forasteiro” (em hebr., ger). O segundo filho foi Eliézer (eli, “meu Deus”, e ezer, “ajuda”), cujo significado é “Deus me ajudou” (Êxodo 18.4). Em quarto lugar, Moisés enfrentou novos desafios. Enquanto se preparava no deserto de Midiã, o sofrimento do povo de Deus continuava e aumentava no Egito. O povo começou a se voltar para o Deus de seus pais e a clamar por libertação. A morte do faraó (talvez Seti I) significou o advento de um regime de opressão ainda mais severo (o de Ramsés II). A inserção desses versículos (v. 2029) no relato da vida de Moisés é como uma tela que representa acontecimentos simultâneos. A ideia é que, enquanto o povo orava por libertação, Deus já estava trabalhando na preparação de seu libertador. O encontro com Deus (v. 30-34). Nesses versículos, Estêvão apresenta uma síntese da experiência mais extraordinária de Moisés: seu encontro com Deus no monte Sinai, “nas labaredas de

uma sarça em chamas”. Observe-se que essa experiência fundacional não ocorreu em Jerusalém nem no templo (que não existia então), mas em Midiã, uma terra estrangeira, onde Moisés era um estrangeiro residente. Desse modo, Midiã transformou-se na terra da revelação da santidade de Deus (v. 29-33). O detalhe de Deus, mencionado por Estêvão, no qual ordena que Moisés tirasse as sandálias por estar pisando terra santa (v. 33), indica que a presença de Deus não se limita ao templo nem à Cidade Santa. Sua presença pode ser experimentada no deserto ou em qualquer lugar que Deus queira se revelar. Com isso, Estêvão se defende da acusação de “falar contra este lugar santo”. O líder escolhido (v. 35-38). Nesses versículos, Estêvão observa que o mesmo homem que os antigos judeus rejeitaram foi o que Deus escolheu como líder e redentor de seu povo. Eles o haviam rejeitado uma vez (assim como José fora rejeitado pelos irmãos), mas, na segunda vez que foi ao encontro deles, não tiveram escolha senão aceitá-lo (assim como os irmãos de José, que o reconheceram na segunda vez). O paralelo entre esses episódios e a rejeição a Cristo, da qual os ouvintes de Estêvão tinham culpa, era bem evidente. O verbo grego ernésanto (“rejeitar”) significa “negar”. Ao negar Moisés (ou Jesus), eles haviam rejeitado líderes e libertadores enviados por Deus (v. 52). No  entanto, aquele a quem eles rejeitaram como “líder e juiz” (v. 27,35) era o que fora “enviado pelo próprio Deus para ser líder e libertador deles” (v. 35). Desse modo, Estêvão evidencia o padrão recorrente de Deus, que envia líderes a Israel e o povo de Deus que os rejeita. No entanto, Deus não se detém diante dos que rejeitam os profetas que ele envia para libertar seu povo e continua a avançar com compaixão. Portanto,

toda a autoridade do mensageiro divino que Moisés tinha visto na sarça ardente estava com ele quando este regressou ao Egito para conduzir seu povo à liberdade. Essa libertação ocorreu em meio a “maravilhas e sinais” inquestionáveis, que autenticavam e endossavam o ministério de Moisés (v. 36). Observe-se que o texto atribui quatro ministérios a Moisés, que são os mesmos que Jesus, o Messias, haveria de cumprir: governante ou juiz (v. 35a); libertador ou redentor (v. 35b); profeta (v. 37); mediador (v. 38). A rejeição do povo (v. 39-43). Nesses versículos, Estêvão faz referência outra vez à rejeição a Moisés e a Deus. Mesmo depois do êxodo e da promulgação da Lei, Moisés foi rejeitado outra vez, rejeição que subsequentemente levou à idolatria. A confecção do bezerro de ouro é, muitas vezes, descrita na literatura judaica como “o equivalente nacional do pecado de Adão” e “o arquétipo dos pecados dos gentios” vinculado a “uma licenciosidade sexual inaceitável”.10 O bezerro de ouro, como obra “que suas mãos tinham feito”, repete uma terminologia típica da idolatria (Deuteronômio 4.28; Salmos 115.4; Jeremias 1.16). “A implicação, mais uma vez, é que o povo a que Estêvão se dirige tem mais em comum com os idólatras de Êxodo 32 que com Moisés, o legislador.”11 Paul Hertig: “A confecção do bezerro de ouro deu início a um período de adoração idólatra, durante o qual Israel se orgulhava das obras humanas (v. 48,50). Estêvão dá a entender que, apesar da presença de Deus no deserto, houve nessa época uma forte propensão à idolatria (7.38-43). No entanto, Estêvão também ‘idealizou o período no deserto’ e procurou retornar à ‘pureza relativa’ do período anterior a essa apostasia (7.38,44-46). Assim, Estêvão validou as tradições espirituais dos helenísticos da primeira geração ao relembrar os tempos de pureza, quando Deus era adorado, venerado e seguido durante as duras experiências do deserto”.12 TABELA 3: Moisés e Cristo

Embora Estêvão não estabeleça essa relação em seu discurso, é interessante considerar aqui a relação entre ambos, para fins de comparação. Ao percorrer as páginas da Bíblia, é possível marcar elementos em que ambos parecem estar relacionados. 1. Ambos tiveram a vida salva na infância: Êxodo 2.1-10 e Mateus 2.13-15. 2. Ambos enfrentaram uma batalha espiritual: Êxodo 7.10-13 e Mateus 4.1. 3. Ambos estabeleceram memoriais: Êxodo 12.14 e Lucas 22.19,20. 4. Ambos controlaram o mar: Êxodo 14.21,22 e Mateus 8.26. 5. Ambos foram alvo de críticas: Êxodo 15.24 e Mateus 11.19. 6. Ambos alimentaram uma multidão: Êxodo 16.11-16 e Mateus 14.19-21. 7. Ambos rogaram a Deus que perdoasse o pecado do povo: Êxodo 32.31,32 e Lucas 23.34. 8. Ambos jejuaram quarenta dias: Êxodo 34.28 e Mateus 4.2. 9. Ambos tiveram o rosto resplandecente: Êxodo 34.35 e Mateus 17.2. 10. Ambos tiveram 70 ajudantes: Números 11.16,17 e Lucas 10.1,2.

O tabernáculo e o templo (v. 44-53). Embora fossem espaços construídos por mãos humanas e com recursos materiais, sob a orientação e conforme o projeto de Deus, esses espaços eram tidos como sagrados de modo muito especial. Não só eram consagrados à adoração de Deus, como também eram considerados o lugar na terra onde Deus decidiu habitar entre os seres humanos. De todos os espaços possíveis, o tabernáculo no deserto e o templo em Jerusalém usufruíam um apreço que ia além da admiração de sua arte decorativa, pois recebiam veneração como recintos sagrados. A posição de Estêvão (v. 44-50). Estêvão parece inclinar-se a favor do primeiro como o centro da presença de Deus em meio a

seu povo. Nisso ele reflete a convicção dos primeiros cristãos quanto ao caráter universal do Reino de Deus e sua presença, que transpõe todas as barreiras étnicas e sociais. Além disso, o discurso de Estêvão implica que a adoração a Deus no templo em Jerusalém era apenas temporária. Em suma, o v. 48 indica que a construção do templo foi um desvio do padrão de adoração estabelecido por Moisés. Estêvão dá a entender que a existência do templo se devia a uma rejeição a Moisés e seu modelo de adoração a Deus. Não é de admirar, portanto, que a principal acusação contra Estêvão estivesse relacionada com o templo (6.13,14;cf. 6.11,12,15; 7.5460). A denúncia de Estêvão (v. 51-53). O discurso de Estêvão não foi apenas uma expressão das convicções que lhe pulsavam no coração, mas também de sua fé no Messias, por quem ele estava disposto a morrer. Seus ouvintes não tiveram problemas em aceitar a primeira parte de sua mensagem, mas, quando Estêvão começou a denunciar a desobediência, a idolatria e a hipocrisia religiosa do povo, os ânimos começaram a mudar. A inquietação transformou-se em raiva quando o pregador trovejou sua advertência (v. 51-53). O que mais os incomodou não foi a alusão pessoal, e sim o que entenderam como uma blasfêmia aberta contra a shekhinah, a glória de Deus. Portanto, “ouvindo isso” (v. 54), eles reagiram com descontrolada violência contra ele. A missão da igreja (7.35-38)

O Antigo Testamento é um livro muito antigo e foi escrito no decorrer de muitos anos. Muito do que sabemos a respeito de Moisés chegou até nós por meio do registro das gerações que

vieram depois dele. Nos relatos bíblicos, veem-se refletidos a fé e o espírito dos que interpretaram a vida e a obra do libertador do povo de uma perspectiva histórica. É por isso que não temos na Bíblia uma biografia de Moisés nem uma “história” de seus atos. No entanto, Moisés é uma personagem importante na Bíblia, uma vez que a revelação de Deus está ligada a ele. De certa forma, Moisés é a imagem de Israel. Ele é a personagem mais importante do Antigo Testamento, embora a figura central não seja Moisés, mas Deus. Todos os relatos a respeito de Moisés glorificam a Deus e o apresentam como um homem que soube ser fiel ao Senhor em tudo. Moisés foi chamado por Deus para exercer as funções de governante, libertador, profeta e mediador do povo de Israel. Jesus veio ao mundo para exercer as mesmas funções, só que com relação a toda a humanidade. Ele foi enviado pelo Pai como Juiz, Redentor, Profeta e Mediador, mas ele mesmo disse a seus discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu os envio” (João 20.21). A igreja, como corpo de Cristo na terra, tem essa missão quádrupla, já prefigurada no ministério de Moisés. Portanto, consideraremos aqui a missão da igreja à luz do ministério de Moisés, conforme expressa nos v. 35-38. A igreja tem uma missão julgadora (v. 35a). Moisés era governante e juiz de seu povo. A igreja, à semelhança de Moisés, deve guiar (iluminar) a sociedade e julgá-la, porque é o sal da terra e a luz do mundo. Por um lado, isso significa que a igreja deve descer do monte de Deus para entregar as tábuas da Lei ao povo, como fez Moisés. A revelação divina é o instrumento para pôr diante de todos os padrões de atitude e conduta que devem reger as relações humanas. A Bíblia é o manual necessário para se ter uma

sociedade melhor. Por outro lado, isso significa que a igreja deve criticar o desempenho de grupos e indivíduos à luz da revelação bíblica. Jesus agia assim (Mateus 23.14). Ele denunciou com autoridade os opressores de plantão. Os primeiros cristãos também.Um exemplo disso é o próprio Estêvão e sua declaração corajosa (v. 51-53). Estamos fazendo isso? A igreja tem uma missão redentora (v. 35b,36). Isso significa duas coisas. Em primeiro lugar, significa que a igreja deve contribuir para mudar a vida humana. O melhor da civilização ocidental é fruto da influência cristã exercida por meio da igreja. O que estamos fazendo hoje para tornar a vida humana mais humana? A igreja deve imitar Jesus em sua missão redentora no mundo (10.37,38). A igreja deve reconhecer que sua função redentora envolve a evangelização integral do ser humano. Em segundo lugar, significa que a igreja deve trabalhar para mudar a vida humana. O objetivo principal da igreja é guiar o ser humano a uma experiência direta e pessoal com Cristo. Sua tarefa suprema é criar novas pessoas. Não é tarefa da igreja criar uma nova sociedade, mas criar os criadores de uma nova sociedade. Sua missão por excelência é pregar o evangelho transformador de Cristo. Esta é a melhor contribuição que ela pode oferecer à sociedade. A igreja deve ser capaz de dizer como Pedro: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isto lhe dou” (3.6). A igreja tem a missão de profetizar (v. 37). No cumprimento de sua missão profética, a igreja faz o diagnóstico da situação da sociedade e de sua própria situação. Para isso, dispõe de instrumentos únicos. Por um lado, ela tem a Bíblia, o maior tratado sobre a natureza humana. Por outro, conta com o Espírito Santo, o

maior poder à disposição do ser humano. Também para isso, a igreja proclama determinadas verdades em termos inequívocos. A própria igreja se reconhece pecadora e, portanto, se arrepende descansando na graça perdoadora do Senhor. Além disso, no cumprimento de sua missão profética, a igreja denuncia o pecado do mundo. Nessa questão, ela age como os profetas da Antiguidade (Filipenses 2.14,15). Por fim, está atenta às situações que degradam o ser humano. Em suma, no cumprimento de sua missão profética a igreja anuncia o caminho da salvação. A igreja tem uma missão mediadora (v. 38). Moisés estava na congregação e no monte Sinai. Isso significa duas coisas. Por um lado, significa que a igreja deve ser separada do mundo. Isso implica santidade, algo que se ilustra na imagem do monte Sinai, a montanha sagrada onde Moisés esteve face a face com Deus. Essa separação é necessária. A palavra “igreja” vem do vocábulo grego ekkēsía, que significa literalmente “chamados para fora”. A igreja é a comunidade dos que foram chamados para fora do mundo a fim de se dedicar em santidade ao serviço do Senhor. Essa separação é mais moral e espiritual que física. Além disso, essa separação é essencial, pois só uma igreja que se aparta do mundo para estar com o Senhor e receber deste instruções e poder será capaz de cumprir sua missão. Precisamos da perspectiva do céu para enxergar bem a terra. Essa separação também é uma bênção. Por outro lado, significa que a igreja deve dar seu testemunho perante o mundo. O propósito principal da separação é voltar com força ao mundo para lhe dar as “palavras vivas” que recebemos. Nossa esfera de ação é a sociedade, onde agimos como mediadores do evangelho da redenção.

Em sentido amplo, a missão da igreja consiste, nem mais nem menos, em que a igreja seja igreja. Nesse sentido, a igreja deve se reconhecer e conhecer a si mesma, saber de quem é, a quem serve e o que é. Quando a igreja se concebe como uma comunidade da graça e órgão do propósito redentor de Deus para a humanidade, então pode se tornar o que Deus quer que ela seja: a agência de seu Reino no mundo. A igreja não é o Reino de Deus, mas tem a missão de proclamar o evangelho do Reino de Deus no mundo. Ela deve ser para Deus o que a mão é para o ser humano, ou seja, o instrumento fundamental para sua ação redentora no mundo. A igreja deve reconhecer-se como o corpo de Cristo, o instrumento do propósito de Deus na terra. Sua preocupação constante deve ser libertar-se de todo jugo do mundo dominador, submeter-se de maneira incondicional ao seu único Senhor e se dedicar inteiramente à sua única missão.

A MORTE DE ESTÊVÃO (7.54-60)

Nessa passagem, consideramos a oitava e última experiênciachave da igreja cristã primitiva: seu primeiro mártir. A palavra grega mártys significa “testemunha”. É usada no Novo Testamento para indicar “alguém que testifica”. Isso implica tanto o testemunho de vida quanto o testemunho de morte daquele que testifica de Cristo. Estêvão deu testemunho de Jesus, primeiramente com sua vida e depois com sua morte. No entanto, ao longo dos séculos, aplicamos esse termo a homens e mulheres que selaram com o próprio sangue seu compromisso com Cristo. Em determinado sentido, os que morreram dessa forma pela verdade não se tornaram mártires com a morte, mas morreram porque já eram mártires, ou seja, testemunhas da verdade. Estêvão já era um mártir antes de ser apedrejado. Ele foi o primeiro mártir a selar seu testemunho com o próprio sangue. O testemunho de Estêvão (7.54-60)

Um líder de visão mais ação. Estêvão era um líder de visão mais ação, por isso foi capaz de comunicar sua visão aos ouvintes (v. 55,56). Estêvão estava bem ciente dos riscos que corria se comunicasse o conteúdo da visão que tivera diante de seus detratores. No entanto, ele não deixou de comunicar fielmente sua visão. Além disso, Estêvão era um líder de visão e ação, por isso sua visão o levou a uma dedicação e entrega total. O líder de visão e ação perde a si mesmo para conquistar os outros (v. 57-60). Um líder de espiritualidade e piedade. O v. 58 mostra que ele foi apedrejado. Embora essa pena fosse aplicada a diversos crimes,

era a que se impunha principalmente aos que blasfemavam, ou seja, aos que cometiam crimes religiosos. É interessante notar a justiça humana: condenar como blasfemo um homem de tão extraordinária espiritualidade e piedade, como as que Estêvão de fato vivenciava. Espiritualidade e piedade eram o combustível que impulsionava Estêvão no testemunho de sua fé em Cristo ao mundo. Um líder identificado com Jesus em tudo. É notável a identificação e a semelhança entre Estêvão e Jesus no momento da morte. As últimas palavras do mártir (“Senhor Jesus, recebe o meu espírito”, v. 59) foram praticamente uma citação das últimas palavras de Jesus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas 23.46). Além disso, enquanto seus ouvintes davam vazão à fúria, Estêvão permanecia tranquilo, sob total controle do Espírito Santo e imerso em uma visão celestial maravilhosa. A cena em que Estêvão dá testemunho de sua fé em Cristo, calmo e confiante, em meio a um mar de ódio, violência e caos, contém uma lição poderosa para os cristãos de todos os tempos. A passagem termina com a cortina pondo fim ao longo drama: “Tendo dito isso, adormeceu” (v. 60). A palavra grega koimētérion significa “adormecer”. A metáfora de dormir para a morte é comum em todas as línguas, mas é peculiarmente apropriada aqui (Jesus a usou com relação a Lázaro; v. tb. 13.36; 1Coríntios 15.18). Archibald T. Robertson observa: “Nossa palavra ‘cemitério’ (gr. koimēterion) é o lugar de dormir dos mortos. Knowling aqui denomina ekoimēthē como ‘uma palavra descritiva de descanso e sossego que está em dramático contraste com a fúria e a violência da cena’ ”.13

Nosso testemunho (7.54-60)

Como ser mártires, testemunhas de Cristo, neste mundo tão cheio de confusão e desordem? Como permanecer tranquilo e se manter firme na fé quando tudo ao nosso redor parece desabar? Como é possível ver os céus abertos e a glória de Deus quando a realidade humana crítica de cada dia parece tornar-se cada vez mais patética? Como viver a luminosa visão celestial nesta terra tão cheia de sombras? Ao analisar a experiência de Estêvão, é possível descobrir seu quádruplo segredo para um testemunho de Cristo tão eficaz. Isso nos ajudará a saber que, por mais dramáticas que sejam as circunstâncias ao nosso redor, é sempre possível elevar os olhos para o céu e ver a glória de Deus. Há quatro condições para isso. Boa reputação. Bom testemunho ou boa reputação perante os demais foi o primeiro requisito estabelecido para os sete diáconos. Procuravam-se homens “de bom testemunho” (6.3). Isso significa que deviam ser homens de quem os irmãos falavam bem. A reputação deles era boa, e seus irmãos podiam confiar neles. O bom testemunho é proeminente no Novo Testamento. Atos apresenta exemplos, como os de Cornélio (10.22), Timóteo (16.2) e Ananias (22.12). Em suas cartas, Paulo recomenda o bom testemunho (Efésios 5.15; Colossenses 4.5; 1Tessalonicenses 4.12). Além disso, um bom testemunho é fundamental para a vida cristã, pois é a prova da autenticidade de nossa fé e a expressão dela. Nossa espiritualidade deve ser ética, e a boa conduta dá respaldo à autenticidade da fé. Fé em Deus. Essa fé está ilustrada no discurso de Estêvão. A maneira pela qual ele relata a história hebraica mostra quão real era

Deus para ele. De acordo com Estêvão, Deus é poderoso, fiel, santo, redentor, o Senhor da história e Juiz de seu povo. Além disso, essa fé se manifesta na atitude de Estêvão. Seu olhar constante para o céu expressava uma fé robusta. Essa fé foi recompensada com a contemplação da glória de Deus, o mesmo Deus da glória que havia aparecido a Abraão (7.2). É dessa fé que precisamos hoje. Uma fé que nos ajude a levantar os olhos dos problemas terrenos e fixá-los na glória celestial (Colossenses 3.1,2). Uma fé que nos permita ver com os próprios olhos a glória de Deus. Comunhão com Cristo. Estêvão viveu uma comunhão autêntica e poderosa com o Senhor. Sua comunhão com Cristo foi total e envolvia tanto sua humanidade quanto sua divindade, o Jesus da história e o Cristo vivo. Estêvão anunciou que ele era o Messias (“a vinda do Justo”, v. 52), viu “Jesus em pé, à direita de Deus” (v. 55), e viu o Senhor, “o Filho do homem em pé, à direita de Deus” (v. 56) e morreu dizendo ao Senhor: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (v. 59). Sua comunhão com Cristo foi experiencial, pois não era uma comunhão meramente intelectual ou especulativa, mas com o Cristo vivo, exaltado, reinante e com o Senhor que virá. Precisamos desse tipo de comunhão autêntica e poderosa com o Senhor (Apocalipse 1.18). Enchimento do Espírito. Estêvão era um crente cheio do Espírito Santo. Este era outro dos requisitos exigidos quando se escolheram os diáconos (6.3,5). Contudo, não foi uma experiência única, porque a bênção continuou (6.10). A frase no original do v. 55 é “ser cheio do Espírito Santo”. Isso implica que ele estava permanentemente cheio do Espírito. Era seu estado normal, sua experiência regular.

Por isso, seu julgamento era iluminado, seus sentimentos eram controlados, sua vontade era guiada e sua vida era equipada para o serviço. Devemos buscar o enchimento do Espírito Santo. Essa é a exortação apostólica (Efésios 5.18), mas também o que exige os desafios que enfrentamos no ministério cristão, especialmente como testemunhas de Cristo. TABELA 4: Pessoas cheias do Espírito Santo em Atos

1. Todos os crentes no Pentecoste: 2.4. 2. Pedro perante o Conselho judaico: 4.8. 3. Todos os crentes depois de orar: 4.31. 4. Os sete homens nomeados para servir: 6.3. 5. Estêvão ao contemplar a glória de Deus: 7.55. 6. Saulo durante a ministração de Ananias: 9.17. 7. Todos os que ouviram Pedro na casa de Cornélio: 10.44-46. 8 Barnabé: 11.24. 9 Paulo diante de Elimas: 13.9. 10. Os discípulos de Antioquia da Pisídia: 13.52.

A DISPERSÃO DOS CRENTES (8.1-4)

Os apóstolos em Jerusalém devem ter ficado maravilhados ao verem o progresso do testemunho cristão nesse momento da experiência da igreja. Durante os primeiros anos, a jovem igreja havia sofrido algumas tentativas de oposição e perseguição em escala menor e as havia superado de forma triunfal; continuou a crescer, especialmente em número de crentes. Jerusalém estava saturada de seus ensinos (5.28), e a obra de cuidar e atender às necessidades do verdadeiro povo de Deus era administrada com bons resultados. Foi então que ocorreu uma espécie de terremoto, que provocou grande abalo. Assim como haviam surgido conflitos internos nas comunidades por causa do crescimento numérico e da diversidade, agora eclodia uma perseguição externa, por causa da hostilidade social e política. O que aconteceu foi equivalente a um tsunami espiritual. Já no início, parecia que Satanás havia acordado de repente para atacar o exército do Senhor com todas as suas forças. De repente, a devastação era real no meio do povo de Deus. Muitos eram lançados na prisão, e outros perceberam que não tinham alternativa senão fugir para salvar a própria vida e a família. A organização e a administração que haviam sido estruturadas entraram em colapso. Os apóstolos permaneceram corajosamente em Jerusalém, talvez para cuidar dos poucos cristãos remanescentes e para visitar os que haviam sido lançados nas prisões. Sem dúvida, quando olharam em volta para os poucos discípulos que restaram e para os muitos arrastados para a prisão, provavelmente foram tomados pelo desânimo, ao pensar que talvez

todos os seus sonhos tivessem sido frustrados. A impressão era que haviam voltado à estaca zero, mas não era bem assim. A “grande perseguição” e a “grande lamentação” por Estêvão resultaram em um grande reavivamento. Marcelino Legido López: “As comunidades semeadas no ecúmeno [mundo habitado] acham-se em seguida diante da perseguição. Todas e no curto prazo. Isso lhes parece significar uma ameaça à ordem estabelecida. Seu caminho é uma desestabilização do mundo. Ao projetar sua vida fora do  caminho humilde e insignificante dos irmãos, os líderes da ordem estabelecida ficam alarmados. Eles temem o pior: ser derrubados de seu poder, que dá consistência e direção ao mundo. O problema se apresenta ainda mais grave se levarmos em conta que as fraternidades são pontos minúsculos no emaranhado social e não têm, de acordo com o que consta nos documentos, alternativa histórica para advogar. As comunidades não são uma alternativa para este mundo. Não legitimam a integração, tampouco a subversão, uma vez que estas parecem ser afrontadas pelas relações imanentes de poder deste mundo. Em vez de mudar o mundo por meio da revolução socioeconômica e política, pretendiam originariamente inová-lo e recriá-lo desde as entranhas dos homens até suas últimas estruturas sociais e cósmicas. A rápida e declarada perseguição a esses pequenos fermentos que não pretendem reduzir a graça à história, mas transfigurar a história com a graça, pressupõe que sejam o aguilhão maior que desestabiliza desde as raízes o mundo com a mais radical e grave periculosidade social. Eles arrancam seu fundamento, oferecendo um novo: a graça do Senhor”.14 A igreja perseguida e dispersa (8.1-4)

A estrutura da passagem é clara: Saulo de Tarso como cúmplice (v. 1a); a igreja de Jerusalém perseguida (v. 1b,2); Saulo de Tarso como perseguidor (v. 3); a igreja de Jerusalém dispersa (v. 4). Saulo de Tarso como cúmplice (v. 1a). O elemento dominante no texto é a figura de Saulo de Tarso. A passagem inicia-se apresentando Saul sob uma luz muito sombria. Ele é mencionado no capítulo anterior (7.58), no qual se diz que estava cuidando das

roupas dos que apedrejaram Estêvão. O jovem Saulo, portanto, foi cúmplice desse crime (8.1a). Isso significa que ele era membro do Conselho judaico e que estava bem impregnado do hebraísmo fariseu. Saulo participou do assassinato de Estêvão e o fez de bom grado, “consentindo” (gr. ēn syneudokōn) na morte dele. O próprio Paulo confessaria mais tarde que foi isso que ele sentiu (22.20) quando aplaudiu friamente um crime hediondo, cometendo, assim, um pecado terrível (Romanos 1.32). O quadro não poderia ser mais dramático. A igreja de Jerusalém perseguida (v.1b,2). A NVI está correta ao encerrar o capítulo 7 com a morte de Estêvão: “E, tendo dito isso, adormeceu” (7.60). No entanto, naquele mesmo dia (“Naquela ocasião”, 8.1b; como em 2.41) a vida de todos os crentes em Jerusalém começou a correr perigo. De fato, “desencadeou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém”. A perseguição de Estêvão se dera pelas mãos dos fariseus, mas agora os saduceus se haviam juntado a ela, tornando-a uma “grande perseguição” (gr. diōgmòs mégas). Assim, começou uma verdadeira caça às bruxas (v. Mateus 13.21). A caça aos cristãos obrigou “todos” (gr. pántes) a abandonar a cidade e a dispersar-se, como o grão se espalha quando é semeado. Os únicos que restaram em Jerusalém foram os apóstolos, e podemos nos perguntar por que os fariseus também não os atacaram. Teria sido por causa do conselho de Gamaliel, em 5.34-40? Ou fora a coragem dos apóstolos que os fez permanecer na cidade, apesar do perigo que corriam? Talvez tenha sido uma combinação de ambas as circunstâncias, unidas à popularidade dos apóstolos entre as pessoas comuns.

Os “homens piedosos” (gr. ándres aulabeīs; cf. 2.5) que sepultaram Estêvão (v. 2) não eram necessariamente cristãos. Se fossem, Lucas os teria chamado “discípulos” ou “irmãos”. É provável que o adjetivo seja utilizado aqui como no caso de Simeão (Lucas 2.25) e Ananias (22.12). Seriam judeus religiosos, talvez simpatizantes de Estêvão e da doutrina que ele pregava. A questão é que o sepultamento de Estêvão ocorreu antes que os cristãos fossem dispersos, por isso puderam fazer uma “grande lamentação” (gr. epoíēsan kopetòn mégan; lit., “bater no peito”) por ele. Saulo de Tarso como perseguidor (v. 3). Enquanto judeus piedosos estavam ocupados sepultando Estêvão, Saulo “devastava a igreja” (gr. elymaíneto tēn ekklēsían). O tempo do verbo no grego dá a entender que se trata de uma ação contínua. Isso significa que Saulo não havia abandonado seu fanatismo perseguidor. Como líder da perseguição, ele se comportava como um javali destruindo selvagemente a vinha do Senhor (Salmos 80.13). É provável que Saulo tenha se sentido vitorioso sobre Estêvão, com quem tivera a oportunidade de debater na sinagoga dos Libertos (6.9), em Jerusalém (ele era de Tarso, da Cilícia), a cuja sabedoria e poder espiritual não pôde refutar. A questão é que ele ia com grande ímpeto “de casa em casa”. Observe-se que em Jerusalém havia apenas uma igreja de Jesus Cristo, que se congregava em inúmeras casas particulares (gr. tēn ekklēsían katà toùs oíkous). O que Lucas está informando aqui é que não se tratava de uma simples “assembleia”, mas de um corpo organizado que continuava sendo “a igreja”, embora espalhado pelas casas dos crentes. Pela terminologia usada aqui, tratava-se de uma assembleia dispersa.

Saulo “arrastava” homens e mulheres com violência e os lançava na prisão. É a primeira vez que as mulheres são vistas como vítimas da perseguição contra os crentes. A conduta delas foi heroica, como tem sido ao longo dos séculos (cf. 9.2; 22.4). A imagem de perseguidor acompanharia Paulo pelo resto da vida, como uma lembrança triste e amarga. No entanto, a grande perseguição em Jerusalém, longe de liquidar com o testemunho cristão, encorajou-o e o expandiu: “Os que haviam sido dispersos pregavam a palavra por onde quer que fossem” (v. 4). Jesus havia ordenado a seus discípulos que não saíssem de Jerusalém até que recebessem a promessa do Pai (1.4), mas eles permaneceram ali por muito tempo depois de recebê-la e assim não estavam cumprindo a ordem de levar o evangelho a outros lugares (1.8). A igreja de Jerusalém dispersa (v. 4). Os discípulos foram obrigados a deixar Jerusalém, por causa da oposição de Saulo e dos fariseus. Como resultado, começaram a cumprir a grande comissão em todos os lugares, de um lugar a outro. Eles “pregavam a palavra” (euangelizómenoi tòn lógon), ou seja, evangelizavam e anunciavam a Palavra (a verdade acerca de Cristo). Em 11.19, Lucas explica com mais detalhes a abrangência da obra desses novos pregadores do evangelho. Como Archibald T. Robertson observa: “Eles eram pregadores emergenciais, não clérigos ordenados, mas homens levados à ação por causa do zelo de Saulo contra eles. O sangue dos mártires (Estêvão) já estava se tornando a semente da igreja”.15 A igreja dispersa e missionária (8.1-4)

Como a igreja primitiva lidou com sua responsabilidade de enviar missionários a “todas as nações”? A igreja de Jerusalém foi tão lenta quanto qualquer uma de nossas igrejas hoje em entender o significado pleno da grande comissão. Na verdade, o primeiro movimento missionário foi motivado por uma perseguição, não por iniciativa da igreja. Circunstâncias dramáticas. Em razão dessas circunstâncias angustiantes, alguns crentes “foram dispersos pelas regiões da Judeia e de Samaria” (v. 1b), e outros mais tarde “chegaram até a Fenícia, Chipre e Antioquia” (11.19). Observe-se que com isso o plano traçado pelo Cristo vivo (1.8) começou a ser cumprido. Foi em Antioquia, a terceira cidade do império romano, que os cristãos pregaram o evangelho aos gentios, dos quais muitos se converteram (11.19-21). Quando a igreja de Jerusalém ouviu essa notícia, ficou preocupada e enviou um “missionário” (Barnabé) para ensinar a nova congregação. Barnabé, por iniciativa própria, foi procurar um homem em Tarso (Saulo), que havia conhecido em Jerusalém e que tinha um chamado específico para os gentios (26.16-18). Assim, a primeira “equipe missionária” foi formada com os apóstolos (missionários) Barnabé e Saulo. Êxito esmagador. Esses versículos podem muito bem ser a passagem bíblica que ensina com maior clareza que o sucesso esmagador dos primeiros cristãos consistiu em espalhar o cristianismo. Menos de trinta anos depois dos fatos registrados por Lucas, Paulo escreveu aos colossenses sobre o “evangelho que chegou até vocês” e acrescentou: “Por todo o mundo este evangelho vai frutificando e crescendo” (Colossenses 1.5b,6). Como é possível que em questão de três décadas já houvesse cristãos

pregando o evangelho em todo o mundo ao redor do Mediterrâneo? Em trinta anos, o evangelho alcançou o mundo inteiro, pois todo cristão era um arauto das boas-novas, um enviado (apóstolo) do Senhor a pregar a Palavra. Os primeiros missionários a superar o primeiro círculo traçado por Jesus (“Jerusalém”, 1.8) foram crentes perseguidos forçados a se dispersar, primeiramente pela Judeia e por Samaria e depois por outras regiões, até mesmo fora da Palestina. Esses homens e mulheres de todas as idades saíram de Jerusalém deixando casas e bens para enfrentar a difícil situação de se estabelecer como refugiados em terras estrangeiras. Esses crentes não tinham o dom nem o ministério apostólico, tampouco eram apóstolos, uma vez que o texto é claro ao informar que os Doze permaneceram em Jerusalém (v. 1b). Mesmo assim, trabalhavam para cumprir o mandato apostólico e “pregavam a palavra por onde quer que fossem” (v. 4). Eles agiam como povo missionário ou apostólico de Deus onde entendessem que o Senhor os tinha enviado. A emergente companhia de apóstolos e o povo apostólico que o Senhor está levantando ao redor do mundo hoje tem se tornado uma força transformadora, capaz de levar a cabo a missão que o Senhor designou para a igreja. Esses “apóstolos” (enviados) estão sendo espalhados pelo mundo às dezenas de milhares, à medida que ouvem e obedecem ao chamado apostólico do Senhor dirigido à sua igreja. Muitos deles são refugiados econômicos, políticos, sociais, culturais ou étnicos, forçados a deixar sua cidade ou seu país para se estabelecer em outro lugar, onde encontram oportunidades para proclamar o evangelho e plantar igrejas. No “campo missionário”, descobriram sua vocação celestial para atuar

como agentes do Reino de Deus. É inspirador perceber que esse chamado hoje é para todos os crentes, mesmo para os que não são apóstolos (no sentido de dom e ministério apostólico), mas têm visão de mundo e paixão apostólica por fazer parte desse movimento, em muitos níveis. Isso significa que o ser humano comum pode ser usado por Deus de maneira apostólica, à parte do ofício de apóstolo. Eles podem não ser apóstolos, mas podem ser apostólicos. O registro dos primeiros crentes apoia essa ideia, e a experiência dos perseguidos em Jerusalém a ilustra. Participação plena. Observe-se que foram os membros da igreja de Jerusalém, não os apóstolos, os dispersos e os responsáveis pela expansão do evangelho. Esse fato exige uma ampliação do conceito que temos de ministério apostólico, e esse conceito deve incluir todo o corpo de Cristo. Deus usa homens e mulheres comuns à maneira apostólica. A história tem mostrado que o mundo, muitas vezes, sofre mudanças por pessoas de recursos comuns, mas que possuem virtudes extraordinárias. Entre os que Deus usa dessa maneira, está uma classe especial de pessoas, uma nova geração de cristãos, que pode muito bem ser denominada “povo apostólico”. Juntos, os apóstolos e o povo apostólico formam o que pode ser classificado como “companhia apostólica”. A experiência dos cristãos perseguidos em Jerusalém demonstra que não podemos mais pensar em um modelo apostólico em que apenas alguns apóstolos “oficiais” cumprem a missão apostólica. Temos hoje um novo paradigma, mais bíblico, que reconhece o ministério original dos apóstolos, mas também leva em conta a importância missiológica de um povo apostólico ativo.

David Cannistraci: “Um povo apostólico reunido sob a liderança apostólica e o padrão apostólico surgirá como uma igreja apostólica que mudará o mundo, assim como ocorreu com a igreja primitiva. Como introdução, considere como são essas igrejas:

• As igrejas apostólicas são igrejas cuja principal preocupação é alcançar todas as pessoas com Cristo. [...] • As igrejas apostólicas estão totalmente comprometidas com o senhorio de Jesus. [...] • As igrejas apostólicas são compostas por membros completamente ativos do corpo de Cristo. [...] • As igrejas apostólicas têm um relacionamento intenso com o Espírito Santo. [...]”16

1. Fraternidad en el mundo: un estudio de eclesiología paulina, p. 152-153. 2. The Partings of the Ways: Between Christianity and Judaism and Their Significance for the Character of Christianity, p. 61. 3. Dynamics in Hellenism and the Immigrant Congregation, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 74. 4. Die Kirche im Neuen Testament, p. 77. 5. House Church and Mission: The Importance of Household Structures in Early Christianity, p. 97. 6. Hechos, in: Justo L. p. 128.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

7. Christ Outside the Gate: Mission beyond Christendom, p. 54. 8. The Rise of Christianity, p. 59. Grifo do autor. 9. Los Hechos de los Apóstoles explicado: por medio de platicas y notas, p. 67. 10. James DUNN, The Acts of the Apostles, p. 95. 11. Ibid. 12. Dynamics in Hellenism and the Immigrant Congregation, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in

Contemporary Context, p. 79. 13. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 99. 14. Fraternidad en el mundo, p. 153. 15. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 102. 16. The Gift of Apostle, p. 175-176.

UNIDADE DOIS

O TESTEMUNHO NA JUDEIA E EM SAMARIA (8.5—12.25) A tarefa fundamental da igreja de Jesus Cristo é ser testemunha de sua obra redentora em favor da humanidade. Não existe outra responsabilidade mais transcendente nem outra que a substitua. A obra redentora de Jesus Cristo na cruz deve voltar a ocupar o centro da missão da igreja, da mesma forma que no ponto mais alto e central da torre de um templo cristão geralmente possui uma cruz. Jesus não foi crucificado em uma catedral entre duas velas, mas em uma cruz entre dois ladrões. Ele foi pendurado no madeiro de maldição, no depósito de lixo da cidade de Jerusalém, fora de seus muros, onde todos os caminhos se cruzavam. O lugar era tão cosmopolita que tiveram de escrever em três idiomas a inscrição que colocaram acima de sua cabeça: hebraico, latim e grego. Este foi o lugar onde seus inimigos zombaram dele, onde os ladrões lhe maldisseram e os soldados tiraram sortes de sua túnica. No entanto, foi precisamente ali onde Jesus morreu por todos eles e o motivo pelo qual morreu. É nesse mesmo lugar desprezível no qual a deve tomar a própria cruz e ser testemunha dessa morte redentora.

Como igreja, temos uma missão que cumprir para o Senhor. Trata-se de uma tarefa que enfatiza o conteúdo em detrimento da forma e Cristo em detrimento dos interesses pessoais. Trata-se de uma obra que leva o evangelho além das paredes dos templos, em vez de simplesmente recitá-lo internamente. Este é um trabalho que pode chegar a causar incômodo e a custar um alto preço, como aconteceu com Estevão. É um compromisso que devemos cumprir, utilizando os melhores e mais efetivos métodos para a comunicação da mensagem. Ao longo dos séculos, a igreja cristã fez uso de diversos métodos para cumprir sua missão de pregar o evangelho. Ainda nos primeiros capítulos do livro de Atos, é possível identificar vários modelos ou métodos de evangelização, que, a partir de então, tem sido aplicados com maior ou menor êxito. No entanto, a passagem que consideraremos nesta unidade apresenta vários exemplos de um método que tem sido muito popular ao longo dos séculos e que tem dado excelentes resultados. Trata-se da evangelização massiva ou evangelização em massa. Vários textos mostram o evangelho sendo anunciado às multidões, mas não com o propósito de defender a nova fé, como foram os sermões, ou discursos, de Pedro e de Estevão, mas com o objetivo de tornar conhecidas as boasnovas sobre Jesus Cristo e seu poder de curar e trazer liberdade a toda humanidade. Pelo fato de que, no tempo em que vivemos, a evangelização massiva seja um imperativo necessário, se é que queremos que o Reino de Deus se expanda e as pessoas cheguem a conhecer a salvação em Cristo, seria conveniente atentar para o que esses textos nos ensinam. Quando lemos esses capítulos com atenção,

podemos descobrir a maneira em que a igreja e especialmente algumas personagens destacadas, comunicaram a mensagem do evangelho às multidões. Desse modo, encontramos os testemunhos de Felipe em Samaria (8.4-8); de Paulo em Damasco (9.19-25); de Pedro em Lida e Sarona (9.32-35); de Pedro em Jope (9.36-43); dos cristãos de Chipre e de Cirene em Antioquia (11.19-21). Justo L. González: “A narrativa agora toma um novo rumo. Como resultado da perseguição que se desatou em Jerusalém, devido à morte de Estevão, o testemunho dos cristãos se expande para outras partes da Judeia e de Samaria. Em termos gerais, segue-se o esboço de 1.8: “em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria”. No entanto, essa ordem não é inflexível, uma vez que Lucas narra primeiramente o que diz respeito a Samaria e depois a Etiópia, para passar depois à conversão de Saulo e por último, nesta seção, o testemunho na Judeia. Em certo sentido, toda a seção é como uma ponte entre o que antecede e o restante do livro. Até aqui a atenção do narrador tinha Jerusalém como foco. No episódio de Estevão, apresenta-se um uma nova liderança, não mais hebraica, mas helenista. A partir de então, discorre-se como essa igreja helenista propagou a mensagem além dos limites de Jerusalém chegando à Palestina (e como Pedro, no episódio de Cornélio, demonstrou estar de acordo). Na seção seguinte, o centro de atenção passa a ser Antioquia, onde o narrador permanecerá todo o restante do livro.”

CAPÍTULO 5

O MINISTÉRIO DE FILIPE 8.5-40 Duas questões se destacam no cap. 8 de Atos. Por um lado, o significado missiológico da diáspora dos judeus cristãos helenísticos. Esses crentes de língua grega desempenharam um papel fundamental na expansão da fé cristã fora de Jerusalém e no avanço do programa missionário esboçado por Jesus em 1.8. Eles foram os responsáveis por introduzir no mundo não judeu a fé no Messias Jesus. A perseguição que se desencadeou logo após o martírio de Estêvão ajudou na saída forçada dessas testemunhas, que, espalhadas pelas circunstâncias, não deixaram de dar testemunho de sua experiência de fé. Os crentes dispersos alcançaram as terras da Judeia e de Samaria, bem como a Fenícia, Chipre e Antioquia da Síria (8.1; 11.19), e assim foram proclamando o evangelho em todos os lugares (8.4). Filipe é uma ilustração do que ocorreu em Samaria entre os judeus da Diáspora radicados ali. René Krüger: “Voltando ao termo ‘diáspora’/‘dispersão’ e dando-lhe uma conotação teológico-missionária, Lucas sugere que a diáspora é uma condição e uma plataforma para a expansão universal da mensagem cristã no império romano. Estabelece dessa maneira uma compreensão positiva da situação da diáspora cristã: a dispersão dos fiéis não é um castigo nem uma circunstância acidental, mas a possibilidade, o meio ou a ferramenta para a

proclamação do evangelho e a expansão da fé para além dos círculos judaicos, chegando também aos gregos (Atos 11.20). A diáspora forçada dos primeiros cristãos virá a ser um fator essencial para o anúncio universal do evangelho. Ao contrário do que os inimigos da igreja haviam proposto, a dispersão dos crentes torna-se um veículo para a possibilidade de anunciar Jesus Nazareno por todo o império romano como o Senhor ressuscitado. Assim, repete-se a avaliação teológica positiva da diáspora judaica”.1

Observe-se que os apóstolos não foram os protagonistas dessa expansão ao mundo gentio, porque eles permaneceram em Jerusalém. Sim, foram os cristãos judeus helenísticos espalhados por toda a região que assumiram o papel de evangelistas. É notável que a missão mundial da igreja foi promovida não pelos apóstolos, mas por homens e mulheres como Estêvão e Filipe, pessoas de cultura grega. Eram eles que ‘pregavam a palavra’ (gr. euangelizómenoi tòn lógon; lit., “evangelizavam a palavra”), ou seja, eles proclamaram o evangelho com uma visão cujo alcance era mundial (Mateus 28.18-20). A segunda questão importante nesse capítulo é o caráter massivo da experiência do testemunho. O primeiro dos casos bíblicos de evangelização em massa que esses capítulos (8.1—12.25) apresentam está ligado ao ministério de Filipe, e convém atentar para suas principais características. A vida e o serviço de Filipe constituem uma espécie de pivô na história da igreja primitiva. Seu ministério marca uma mudança de sentido e representa uma guinada substancial na vida e no testemunho dos crentes. A perseguição que se seguiu à morte de Estêvão fez que os cristãos de Jerusalém se espalhassem por lugares até então não alcançados. Dessa forma, nasceu o primeiro circuito evangelizador de Filipe, que bem pode ser considerado o primeiro evangelista da igreja primitiva.

Filipe já foi citado em 6.5. Sua pregação permitiu que os samaritanos em massa reconhecessem Cristo como enviado de Deus, em cumprimento às profecias do Antigo Testamento. À medida que se espalhavam para fora de Jerusalém, os crentes apresentavam as boas-novas acerca de Jesus Cristo a qualquer pessoa que quisesse ouvir. No caso do ministério de Filipe, os resultados de seu testemunho foram surpreendentes. Edward M. Blaiklock: “Essa seção [8.5-40], que é dedicada ao ministério dinâmico e revigorante de Filipe, completa o interlúdio sobre a obra dos judeus helenísticos. Vista como história, fornece a Lucas uma importante transição do ministério de Pedro para o de Paulo. Ele é como Estêvão na doutrina e no parecer, como Paulo em sua evangelização, uma personagem claramente marcada com algo do profeta do Antigo Testamento. Observe-se o frescor de seus métodos. Ele se locomovia daqui para lá sob a influência do Espírito. Sua coragem também é notável. Seguindo o exemplo de Cristo (João 4), levou o evangelho aos samaritanos (v. 5)”.2 TABELA 5: O evangelho, paixão de multidões A palavra “multidão” (gr. óchlos ou sinônimos) aparece com frequência em Atos. 1. A multidão de 120 crentes: Atos 1.15. 2. A multidão que se reuniu no dia de Pentecoste: Atos 2.6. 3. A multidão dos que creram: Atos 4.32. 4. A multidão reunida pelos Doze: Atos 6.2. 5. A multidão que aprovou a eleição dos Sete como diáconos: Atos 6.5. 6. A multidão de sacerdotes que obedeciam à fé: Atos 6.7. 7. A multidão que passou a seguir Filipe, em Samaria: Atos 8.6. 8. A multidão que aceitou o Senhor, em Antioquia da Síria: Atos 11.24. 9. A multidão à qual Saulo e Barnabé ensinaram, em Antioquia: Atos 11.26. 10. A multidão de Antioquia da Pisídia: Atos 13.44,45.

11. A multidão dos judeus que creram, em Icônio: Atos 14.1. 12. A multidão que queria adorar Paulo e Barnabé, em Listra: Atos 14.1114,18,19. 13. A multidão reunida perante o Conselho judaico, em Jerusalém: Atos 15.12. 14. A multidão que se amotinou contra Paulo e Silas, em Filipos: Atos 16.22. 15. A multidão em Tessalônica: Atos 17.8. 16. A multidão de crentes, em Bereia: Atos 17.13. 17. A multidão que creu graças a Paulo, na Ásia: Atos 19.26. 18. A multidão na assembleia, em Éfeso: Atos 19.33-35. 19. A multidão de crentes, em Jerusalém: Atos 21.22. 20. A multidão que queria linchar Paulo, em Jerusalém: Atos 21.27-36. 21. A multidão à qual Paulo pregou: Atos 24.12,18.

O EVANGELISTA FILIPE (8.5-8)

Conhecemos Filipe como um dos sete servidores mencionados em 6.5 (cf. 21.8,9). Ele é chamado “evangelista” e apresentado em três contextos evangelísticos: em Samaria, em diálogo com o eunuco etíope e no ministério na região costeira da Palestina. Os sete “diáconos” de Jerusalém eram judeus helenísticos que tinham grande paixão pela evangelização e, sob a inspiração e a liderança de Estêvão, assumiram tarefas ministeriais nessa área, além das que lhes foram atribuídas pelos apóstolos em Jerusalém. Foi precisamente por causa desse zelo evangelístico que Filipe se mudou pela primeira vez para Samaria. Desse modo, Filipe exerceu esse ministério fora de Jerusalém. A terra onde os samaritanos viviam originariamente ficava bem no centro das tribos de Israel, nos tempos do Antigo Testamento. Quando os assírios invadiram Israel e levaram cativa grande parte da população, em 722 a.C., Samaria ficou desolada. Os poucos judeus que restaram ali lutavam contra a pressão de se misturar com os vizinhos. Por fim, os casamentos mistos vieram a diluir a distintiva identidade judaica de grande parte da população (2Reis 17.24-41). Além disso, os samaritanos construíram um templo próprio, no monte Gerizim, que rivalizava com o de Jerusalém (v. João 4.20). Os líderes religiosos judeus de Jerusalém acusavam os samaritanos de terem perdido a fé. Como resultado, cresceu o ódio contra eles. Esse ódio, acima de tudo étnico, levou os judeus samaritanos e os da Judeia a romper relações algumas vezes (v. João 4.9). Foram os desprezados judeus samaritanos do norte da Judeia que Filipe alcançou com o anúncio do Messias Jesus.

O texto diz que “Filipe [foi] para uma cidade de Samaria” (gr. Fílippos katelthōn eis [tēn] pólin tēs Samareías, v. 5). Não temos certeza quanto à cidade a que o versículo se refere, uma vez que em alguns manuscritos o nome Samaria aparece com artigo definido (“a cidade de Samaria”) e em outros com artigo indefinido (“uma cidade de Samaria”). Seguindo a tradução da NVI, algumas possibilidades foram sugeridas, como Sebaste, Gita (cidade natal do mago Simão, de acordo com Justino Mártir, que era de Samaria), Sicar, a antiga capital de Siquém. Além disso, durante o período romano o termo “Samaria” era usado para se referir à região, e a cidade mais importante era Siquém. Em todo caso, Filipe foi evangelizar o território de um povo desprezado pelos judeus de Jerusalém. Os judeus odiavam-nos porque os consideravam apenas meios-judeus (Esdras 4.1-3), em razão das circunstâncias históricas já explicadas, em conexão com a invasão assíria do século VIII a.C. No entanto, essa mesma população, a que Filipe se dirigiu, já havia sido evangelizada pelo próprio Jesus (João 4). Na verdade, Jesus revelou sua condição de Messias a uma mulher de Samaria e a todo o seu povo. De acordo com João 4.40, Jesus ficou dois dias na cidade, “e, por causa da sua palavra, muitos outros creram” (v. 41). Sem dúvida, esse núcleo de samaritanos crentes deve ter contribuído muito para o extraordinário êxito da missão samaritana empreendida por Filipe. A questão é que agora Filipe se fazia presente nesse lugar para anunciar “o Cristo” (gr. tòn Christón). Esse título está ligado à promessa de Yahweh, no Antigo Testamento, de enviar Alguém que estabeleceria um novo Reino e inauguraria a nova era do Espírito.

Esse fato foi antecipado no ministério de Jesus e especificamente ordenado em suas últimas palavras a seus discípulos (1.8). Em todo caso, Filipe foi evangelizar o território de um povo desprezado pelos judeus de Jerusalém. No ministério de Filipe em Samaria e em sua evangelização massiva dos samaritanos, encontramos um exemplo de como anunciar o evangelho além de nossas fronteiras (geográficas, culturais, sociais, políticas, étnicas etc.). Sua disposição para viajar a Samaria com o evangelho de Cristo inspira-nos a levar esse mesmo evangelho a partes do mundo que podem ser desconfortáveis, desprezíveis ou inaceitáveis para nós. O evangelista (8.5-8)

Filipe é conhecido no livro de Atos como “o evangelista” (gr. toū euangelistoū, 21.8). Essa palavra designa um dos ministérios carismáticos mencionados no Novo Testamento (Efésios 4.11), que teve destacados expoentes, como o próprio Filipe (21.8) e também Timóteo (2Timóteo 4.5). Sua responsabilidade. Sua obra consistia na proclamação do evangelho do Reino de Deus, na cura dos enfermos e na expulsão de demônios (Marcos 3.15; 16.17,18; Lucas 9.1,2; cf. 8.5-8). Evangelistas como Filipe eram missionários que proclamavam a mensagem de salvação aos não convertidos. O evangelista era um mensageiro, um arauto de boas-novas. Proclamava especificamente a boa notícia de que Deus, por meio de Cristo, estava reconciliando consigo o mundo (2Coríntios 5.11-20). Esta era a responsabilidade de Filipe, à luz desse episódio registrado em Atos. Hoje o evangelista é um pregador especializado na proclamação do

evangelho, que geralmente cumpre seu ministério em reuniões especiais ou em campanhas evangelísticas patrocinadas por uma ou mais igrejas particulares ou locais, ou por alguma organização religiosa, com vistas à conversão cristã dos que ainda não são crentes. O evangelista é um cristão dirigido e capacitado pelo Espírito que se dedica continuamente à proclamação pública e pessoal do evangelho, a fim de que as pessoas entreguem a vida a Jesus de forma definitiva. O evangelista geralmente faz parte de um ministério ou de uma organização evangelizadora, que, muitas vezes, leva esse nome. Na América Latina, poucos evangelistas têm organização própria, e as que existem seguem o modelo estabelecido pelo conhecido evangelista internacional Billy Graham, pioneiro nesse tipo. Os evangelistas que exercem seu ministério de maneira mais ou menos informal são muito mais numerosos, com ou sem o apoio de uma igreja local, como talvez fosse o caso de Filipe. Sua ação. A ação missionária de Filipe, como bom representante da evangelização dos judeus cristãos helenísticos, foi dupla. Foi uma ação carismática que encontrou duas formas de expressão: sinais milagrosos e ministério profético, em todas as suas nuances. O texto menciona os “sinais milagrosos” (gr. tà sēmeīa) e a pregação ou proclamação do Messias como uma combinação de ações eficazes para a comunicação da mensagem do evangelho. Sinais milagrosos. O objetivo dos “sinais milagrosos” era chamar a atenção do povo para a mensagem de Cristo (comp. com João 14.11). Os samaritanos viram os “sinais milagrosos” do ministério de Filipe, e isso fez que sua atenção se concentrasse nele e levassem a sério a pregação do evangelista. Os  sinais eram vistos (gr.

blépein) enquanto ouviam a mensagem (gr. tōi akoúein autoùs), e entre o que foi visto e ouvido, o Messias era comunicado ou “lhes anunciava o Cristo” (gr. ekēryssen autoīs tòn Christón). A forma segundo a qual o texto está redigido indica que “a multidão” (gr. hoi óchloi) reagiu de forma autêntica à verdade de Cristo depois de prestar atenção “ao que ele dizia”. A reação dos samaritanos à Palavra foi mais que atenção superficial e fugaz, como ocorre no caso de mero entretenimento produzido por uma boa oratória ou por um discurso eloquente. Além disso, os poderosos “sinais milagrosos” satisfaziam as profundas necessidades do povo, que consistiam em curas e expulsão de demônios, como aconteceu em outras ocasiões (5.16; 19.11-19). A presença de espíritos malignos é mencionada com frequência nos evangelhos e em Atos, e a realidade do mundo espiritual não deve nos surpreender. Paulo assinala que nossa luta “não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Efésios 6.12). Os cristãos hoje devem abordar a realidade de Satanás e seu poder, quer esse poder seja demonstrado em atividades demoníacas, quer em formas de tentação mais sutis, conforme a mentalidade deste mundo, as reivindicações da carne ou da natureza humana não redimida ou a submissão à vontade de Satanás. Ministério profético. Filipe não era um mero taumaturgo, ou seja, um milagreiro ou fazedor de milagres, mas um evangelista, um pregador do evangelho. Sua pregação, porém, era de caráter carismático, tanto quanto sua execução de milagres. Tratava-se de uma pregação profética, no sentido de que, tal como a pregação de

Estêvão (7.2-53), estava fundamentada nas Escrituras dos profetas. Uma boa mensagem evangelizadora precisa ter como conteúdo e substância a Palavra de Deus. Esta é a única maneira de que seja eficaz. Sua pregação também era profética no sentido de que condenava o pecado, anunciava o juízo de Deus e apontava o caminho da salvação, trazendo, assim, uma marca de esperança. Filipe pregava “as boas-novas do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo” (v. 12), conforme o testemunho que havia ouvido dos apóstolos, com a qual se comprometia plenamente. Em outras palavras, sua mensagem era tão poderosa quanto as ações milagrosas que ele fazia no nome do Senhor. O problema de alguns evangelistas hoje é que a ênfase no milagre faz que a atenção das pessoas se reduza a curas e expulsão de demônios, e assim terminam não dando atenção à mensagem de salvação. Um milagre pode resolver um problema temporal, mas somente as boas-novas do evangelho do Reino de Deus podem resolver o problema do destino eterno de uma pessoa. Seu alcance. “A multidão” reuniu-se para participar do ministério de Filipe e lhe “deu unânime atenção”. “Muitos” endemoninhados foram libertos, e “muitos” enfermos foram curados. Não é de estranhar, portanto, que “houve grande alegria naquela cidade” (gr. eegéneto pollē charà en tēi pólei ekeínēi). Essa alegria foi o resultado da aceitação, pelos samaritanos, da Palavra de Cristo anunciada por Filipe e dos “sinais milagrosos” de cura e libertação. Mais uma vez, essa alegria foi o resultado de duas coisas fundamentais: o que o povo viu e o que o povo ouviu. As mesmas manifestações do Espírito Santo haviam acompanhado o ministério de Jesus, dos Doze e dos Setenta e Dois e devem acompanhar nossa experiência

evangelizadora hoje. O livro de Atos destaca com frequência a alegria que acompanha a salvação integral operada por Cristo (2.46; 8.39; 13.48). Anunciar as boas-novas do Reino, curar enfermos e expulsar demônios é compartilhar uma alegria que nunca desaparecerá, pois seu alcance é eterno. F. F. Bruce: “Qualquer que tenha sido a cidade, a visita de Filipe foi marcada por tal expulsão de espíritos malignos dos que estavam possuídos por eles e tais atos de cura em pessoas que estavam paralíticas ou eram aleijadas que muitos deles acreditaram em sua mensagem e ficaram cheios de alegria. Como ocorreu no ministério do próprio Cristo e de seus apóstolos, também no ministério de Filipe essas obras de poder eram ‘sinais’ externos que confirmavam a mensagem que ele anunciava”.3 O ministério (8.5-8)

Na maior parte do mundo, especialmente na América Latina, a missão de evangelizar é realizada em contextos urbanos. Geralmente, nós, cristãos, nos sentimos investidos da responsabilidade de pregar a mensagem do evangelho em metrópoles densamente povoadas e naquelas em que é difícil alcançar as pessoas com a mensagem. Por isso mesmo, a evangelização em massa é um imperativo incontornável, se queremos chegar a “toda criatura” anunciando o Messias. Convém, pois, que façamos uma pausa para analisar com cuidado esse primeiro caso bíblico, a fim de detectar suas principais características. A vida e o serviço de Filipe em “uma cidade de Samaria” constituem uma espécie de articulação na história da igreja primitiva, que estabelece uma mudança de rumo substancial na vida e no testemunho dos crentes. A perseguição que se seguiu à morte de Estêvão levou à dispersão dos cristãos de Jerusalém.

Assim, nasceu o primeiro circuito evangelístico de Filipe, o primeiro grande evangelista da igreja primitiva. O contexto do ministério. O contexto era urbano, uma vez que se trata de “uma cidade de Samaria”, com necessidades tipicamente urbanas. Filipe já tinha experiência nesse tipo de contexto e de necessidades. Convém lembrar que ele era um dos diáconos ou servidores nomeados para distribuir alimentos diariamente às viúvas helenísticas (cap. 6). Vale lembrar também que, para essa tarefa, foram escolhidas pessoas muito especiais, “homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria” (6.3). Até para servir às mesas, ou seja, para trabalhar em refeitórios comunitários, é necessário, como em qualquer ministério urbano, que a pessoa seja de confiança, tenha entendimento e esteja cheia do Espírito Santo. Qualquer tarefa no Reino de Cristo, por mais humilde que pareça e principalmente em um contexto urbano, requer pessoas que tenham bom testemunho, integridade e conhecimento da Palavra de Deus, além de serem cheias do Espírito Santo, e que se portem com grande sabedoria. O caráter do ministério. A responsabilidade de servir às mesas e distribuir alimentos preparou Filipe para cumprir seu ministério em Samaria com humildade. Para que um judeu helenístico como ele anunciasse o evangelho entre os samaritanos, era preciso ser humilde, pois os judeus desprezavam os samaritanos. No entanto, se seu Mestre havia feito isso, por que não ele? Então, ele foi à principal cidade de Samaria e começou a anunciar a boa notícia. Qual era a boa notícia? Consistia na mensagem redentora que ele anunciava e em ações redentoras que ele realizava. Por um lado,

Filipe anunciava o Messias e afirmava aos samaritanos que Deus tinha vindo ao mundo na pessoa de seu Servo, Jesus, o Messias, para transformar a vida deles. À semelhança dos judeus de Jerusalém,

os

judeus

samaritanos

também

esperavam

o

cumprimento de antigas profecias acerca do advento do Messias. Por isso, o povo ouviu-o com atenção. O anúncio do kērygma apostólico é nossa primeira responsabilidade. Por outro lado, Filipe realizou sinais milagrosos. Isso também atraiu as pessoas a Filipe, não só porque sua mensagem era fascinante, mas porque viram os sinais milagrosos que Jesus realizava por meio dele. Pessoas foram curadas, e espíritos imundos tiveram de sair dos endemoninhados, que ficaram livres. Esta é uma boa notícia há dois mil anos e continua sendo para todos hoje. É uma boa notícia para nossos vizinhos e também para nós. Alguém poderia argumentar: “Tudo bem, mas era Filipe no livro de Atos”. Mas quem era Filipe? Era um humilde discípulo de Jesus, que com dedicação servia às mesas em sua igreja e estava disposto a permitir ser usado pelo Espírito Santo para levar as boas-novas até mesmo às pessoas mais desprezadas e marginalizadas. E Deus honrou a obediência e a compaixão de Filipe, apoiando a mensagem deste com sinais milagrosos. Da mesma foram, Deus honrará a sua obediência, a sua fé e a sua compaixão, porque, se Filipe conseguiu, você também pode! A qualidade do ministério. A qualidade do ministério de Filipe naquela cidade de Samaria, bem como a qualidade de qualquer ministério urbano que empreendamos hoje, deve ser caracterizada por quatro elementos. Filipe direcionou seu ministério a muitas pessoas. Não é mais possível pensar em fazer de uma cidade com mais de 100 mil

habitantes “um pequeno povo muito feliz”, como dizia uma antiga canção que aprendi quando criança na escola dominical. Não podemos ficar satisfeitos com escassos resultados. O ministério de qualidade é aquele que atinge “a multidão”. Hoje em dia, qualificaríamos Filipe como evangelista de massas. A grande diferença em seu ministério não era o tamanho do público para o qual ele pregava, mas a dimensão da visão que o inspirou. Filipe queria ganhar aquela cidade de Samaria para o Reino de Deus e não se contentou com menos que isso. Ele entendeu cabalmente uma das principais leis do Reino, que afirma: “Aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semeia com fartura também colherá fartamente” (2Coríntios 9.6). Filipe conseguiu atrair a atenção de todos. O objetivo da evangelização não é que uns poucos se salvem, mas “que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Timóteo 2.4), porque é isso que Deus deseja. Um ministério eficaz e de qualidade visa a “todas” as pessoas, não apenas a algumas, escolhidas arbitrariamente. Também não se limita a evangelizar quem apresente uma resposta mais imediata e compromissada. Na verdade, esse contexto em que Filipe exerceu seu ministério era totalmente adverso para um evangelista judeu, mais ainda para um judeu helenístico. Filipe não estava em Jerusalém, mas em Samaria, uma cidade hostil encerrada em suas tradições. Antes de semear a semente do evangelho, ele precisou limpar o terreno do joio e das pedras do preconceito étnico e religioso, que havia criado um fosso intransponível entre judeus e samaritanos. Filipe libertou muitos endemoninhados. A guerra espiritual não é opcional para o cristão, muito menos para quem tem o dom e o

ministério de evangelista. Satanás continua mantendo as pessoas acorrentadas, mortas em delitos e pecados, trancadas e cegas em sua escuridão. Expulsar demônios não é responsabilidade de especialistas ou daqueles “que acreditam nessas coisas”, mas é dever de cada crente cheio do Espírito Santo (Lucas 9.1,2; 10.19,17; Marcos 16.15-18). O ministério de qualidade nunca deixa de “proclamar liberdade aos presos” nem de “libertar os oprimidos” (Lucas 4.18), até que “muitos” endemoninhados se tornem, de fato, livres em Cristo. Filipe curou muitos enfermos. O texto diz que “muitos” (gr. polloí) foram curados. Seu ministério integral não deixava na mão dos médicos e de outros profissionais o que ele podia fazer em nome de Jesus. Além disso, não se tratava de casos isolados, eventuais ou especiais, e sim de um grande número, porque havia muita gente necessitada. O ministério de qualidade promove a cura a todos os que precisam, não importa quão grave, crônica ou terminal seja a doença. TABELA 6: Sinais milagrosos A Bíblia, de capa a capa, apresenta numerosos exemplos de sinais milagrosos produzidos pelo poder de Deus. 1. Contra o Egito, o faraó e toda a sua família (Deuteronômio 6.22). 2. Quando o Senhor tirou seu povo da escravidão no Egito (Josué 24.17). 3. Contra o faraó, seus servos e todo o seu povo (Neemias 9.10). 4. Os solicitados por alguns fariseus descrentes (Mateus 12.38,39). 5. Os que os fariseus pediram para pô-lo à prova (Marcos 8.11,12). 6. O que Jesus realizou ao transformar água em vinho em Caná (João 2.111).

7. Os que Jesus realizou em Jerusalém durante a festa da Páscoa (João 2.23). 8. Os que Nicodemos reconheceu que Jesus realizava (João 3.2). 9. O que Jesus realizou ao curar o filho de um oficial (João 4.43-54). 10. Os muitos que Jesus realizou na presença de seus discípulos (João 20.30,31).

O resultado do ministério. O resultado do ministério de Filipe naquela cidade de Samaria foi que muitos creram e houve grande alegria naquela cidade. Foi uma alegria geral, porque toda a cidade foi transformada. Por isso, o texto diz: “Houve grande alegria naquela cidade” (v. 8). Também podemos ser portadores de grande alegria para nosso povo e nossa cidade, se nos permitirmos ser usados como instrumentos e testemunhas nas mãos de Deus. Se existe algo de que as cidades latino-americanas estão precisando hoje, é justamente essa alegria que o evangelho proporciona e o poder libertador de Deus, por meio de seus servos cheios do Espírito Santo. Isso é o que faz o ministério de qualidade. C. Peter Wagner: “Havia grande alegria na cidade de Samaria desde o início do ministério de Filipe ali. Nesse ponto, provavelmente não era ainda o gozo da salvação, mas a alegria de terem sido curados e de ver seus entes queridos restabelecidos. Seja lá o que Filipe tivesse ido comunicar, eram ‘boas-novas’, outro termo para o evangelho. Muitos creram. Eles creram nas boas-novas acerca do Reino de Deus que Filipe estava demonstrando diante de seus olhos. O Reino havia chegado, e os samaritanos estavam sendo aceitos nele. Eles selaram seu compromisso por meio do batismo público, e a igreja de Jesus Cristo foi firmemente plantada no meio deles”.4

O MAGO SIMÃO (8.9-25)

Esse episódio, ocorrido nos primeiros dias da igreja de Samaria, gerou opiniões divergentes. Simão, o mago, só é mencionado aqui no Novo Testamento. No entanto, a tradição sempre o considerou um herege, e certas seitas, como os gnósticos, aparentemente seguiam seus ensinamentos. A pergunta natural é se Simão era herege, hipócrita, apóstata ou apenas o que Paulo mais tarde denominaria “crente carnal”. Em todo caso, é possível que Simão tenha sido mais uma vítima das inúmeras lendas acrescentadas à narrativa histórica do cristianismo. A verdade é que muitas figuras históricas não são conhecidas como de fato foram, mas como as gerações que os sucederam desejavam que fossem. Desse modo, para usar um conceito de Carl Jung, Simão transformou-se no arquétipo do crente hipócrita ou do incrédulo infiltrado com a intenção de obter poder e ganhos desonestos à custa dos crentes. Quatro tipos de relações (8.9-25)

Essa passagem merece uma boa análise, principalmente se deixarmos de lado as interpretações conhecidas e a lermos para descobrir as lições atuais que ela encerra. Fazendo isso, encontramos quatro tipos de relações no texto. A relação entre Simão e Filipe (v. 9-13). A influência de Simão na cidade era grande (v. 9-11). Observe-se sua ocupação (v. 9-11). O texto diz que ele “vinha praticando feitiçaria”, ou seja, o que ele fazia não era mera prestidigitação, ou ilusionismo, para entreter crianças em festas de aniversário ou uma plateia de circo, mas ações realizadas sob o

poder satânico para enganar as pessoas. A prática da magia a que se faz referência nessa passagem está relacionada com a pretensão de manipular as forças impessoais da natureza ou poderes pessoais (demoníacos) para impor a própria vontade. Essas práticas geralmente envolviam ritos mágicos e encantamentos. Nesse sentido, os atos de Simão eram uma mescla de fraude e poder demoníaco, sob a aparência de religião, por isso o povo dizia: “Este homem é o poder divino conhecido como Grande Poder” (gr. Hoūtós estin hē dýnamis toū theoū hē kalouménē megálē, v. 10). Daí o grande impacto sobre todo o povo, “do mais simples ao mais rico” (gr. pántes apò mikroū héōs megálou). O mais surpreendente era que Simão, com seus truques, tinha prestígio entre todas as faixas etárias, pois todo o povo “dava-lhe atenção” (gr. hōi proseīchon). As pessoas eram seduzidas, enfeitiçadas e aprisionadas. Os fenômenos ocultistas haviam “iludido” a população de Samaria “durante muito tempo” (gr. dià tò hikanōi chrónōi taīs mageíais exestakénai autoús, v. 11). Observe-se seu declínio (v. 12). A influência de Simão enfraqueceu de repente. Um poder maior que o dele surgiu na cidade, ou seja, apareceu alguém que anunciava “as boas-novas do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo” (gr. euangelizoménōi perì tēs basileías toū theoū kaì toū onómatos Iēsoū Christoū, v. 12). O evangelho é o poder de Deus (Romanos 1.16; v. Lucas 11.20-22), e esse poder se manifestou em toda a sua plenitude por meio das ações milagrosas e da pregação de Filipe. O resultado foi imediato, porque os samaritanos creram e foram batizados, ou seja, firmaram uma nova aliança, diferente do pacto demoníaco que haviam feito com Simão. A influência deste foi neutralizada pela pregação do

evangelho do Reino. A mudança foi radical, pois o povo não só se converteu, como também foi batizado. Lucas destaca que essas experiências alcançaram “tanto homens como mulheres” (gr. ándres te kaì gynaīkes). É interessante que, em alguns versículos antes, se diz que Saulo perseguia “homens e mulheres” (v. 3), e agora o evangelista afirma que homens e mulheres eram salvos. Mais uma vez, a ênfase de Lucas sobre o papel das mulheres é evidente. Deve-se ter em mente que no judaísmo apenas os homens participavam plenamente da vida religiosa, uma vez que só eles eram objeto do rito de iniciação da circuncisão. Em contrapartida, no evangelho homens e mulheres participam do rito cristão de iniciação, o batismo, como testemunho de integração ao povo da nova aliança de Deus em Cristo. Contra isso, Simão não tinha nada a fazer e perdeu sua clientela. Observe-se sua conversão (v. 13). O impacto dos milagres que Filipe realizou e o anúncio da mensagem do evangelho foram tão contundentes que o próprio Simão foi alcançado. Lucas atesta esse fato em uma frase muito simples: “O próprio Simão também creu” (gr. ho Símōn kaì autòs epísteusen) e foi batizado. No entanto, nem todos os intérpretes reconhecem sua conversão, no sentido evangélico mais estrito. Ou seja, de acordo com alguns desses estudiosos, há lugares no Novo Testamento (João 8.31) em que a expressão denota algo inferior a uma conversão (João 8.59). De acordo com essa linha de interpretação, uma fé inicial (como pode ter sido a de Simão) não é suficiente para uma conversão verdadeira ou não é o único critério para tal (Mateus 13.1-23; 24.13). Para que haja uma conversão autêntica e, como consequência, a

salvação, são necessárias a perseverança e a obediência, que são evidências de um verdadeiro relacionamento com Cristo. Todavia, esse argumento é duvidoso, pois exclui da salvação algumas pessoas que presumimos salvas, como Pedro, que negou o Senhor três vezes; como João e Tiago, que pediram fogo do céu sobre os samaritanos; como Tomé, que duvidou teimosamente de sua ressurreição; como João Marcos, que abandonou Barnabé e Paulo em sua jornada missionária. Em outras palavras, nossa ignorância com respeito ao que aconteceu com Simão depois do que essa passagem informa sobre ele não é argumento suficiente para desqualificar sua conversão, por um lapso no início de sua experiência cristã (v. 19,20). Na verdade, Simão foi severamente advertido e disciplinado por dois homens que cometeram graves pecados depois de conhecer Jesus e de se dispor a segui-lo, como Pedro e João (v. 20-23). Seja qual for o caso, parece que Simão aceitou a reprimenda e a disciplina impostas pelos apóstolos (v. 24). A questão é que, por acreditar e ser batizado, a influência de Simão foi notoriamente transformada (v. 13), e não há outra explicação para isso senão que ele tenha aceitado o evangelho. O texto afirma que “o próprio Simão também creu” e mais tarde foi batizado. Essa informação é um indício de que Simão conheceu a experiência da salvação em termos cristãos (Marcos 16.16a). Simão também foi transformado por sua adesão ao evangelho, pois ele “seguia Filipe por toda parte” (v. 13). Aparentemente, ele se tornou um bom crente, “maravilhado [com] os grandes sinais e milagres que eram realizados” (gr. theōrōn te sēmeīa kaì dynámeis megálas ginoménas exístato) e inflamado, como muitos, com o primeiro amor pelo Senhor.

Observe-se o confronto. O que aconteceu naquela cidade de Samaria é um claro exemplo de choque de poder. De acordo com Susan Garrett, esses encontros ou confrontos de poder “não são apenas escaramuças entre profetas e operadores de milagres, mas confrontos entre Satanás e o Espírito de Deus”.5 O poder que operava em Simão era real. “Simão não é apenas um golpista ou charlatão barato”, diz Garrett, “mas alguém muito mais sinistro, dotado do poder de Satanás e disfarçado de ‘Grande Poder de Deus’ ”.6 A única maneira de Filipe alcançar as multidões da cidade era enfrentando esse poder com a palavra do evangelho e com as manifestações de poder do Espírito Santo. Como Paul E. Pierson observa: “A mensagem foi autenticada pelos choques entre o poder curador de Deus e as forças destrutivas do mal. [...] Tais ‘encontros de poder’ acompanhariam frequentemente novas aberturas no livro de Atos e ao longo de toda a história cristã”.7 Susan Garrett: “Satanás ainda tem algum poder, mas é facilmente subjugado quando confrontado pela autoridade divina amplamente maior que os cristãos exercem. A correta admoestação de Pedro reduz Simão de um mágico famoso, impiamente saudado por todo o povo de Samaria como ‘o Grande Poder de Deus’, a um homem débil que teme a própria destruição e pede ao servo do Senhor que interceda por ele”.8

A relação entre os apóstolos e a nova igreja em Samaria (v. 1417). Esses versículos são muito instrutivos, não só quanto à maneira saudável de plantar uma igreja na cidade, mas também quanto à necessária estrutura de autoridade e relacionamento fraterno que deve unir as congregações. Além disso, é um bom exemplo de como manter o caráter apostólico da igreja, ao mesmo tempo que se afirma sua catolicidade e autonomia.

As notícias de Samaria (v. 14). Observe-se que os apóstolos receberam notícias do que acontecia na cidade (v. 14). Quando o relato dos acontecimentos em Samaria chegou a Jerusalém, os apóstolos agiram imediatamente. Eles consideraram importante o que acontecera e entenderam haver ali uma extensão significativa do evangelho além do judaísmo. Então, enviaram dois homens destacados para estabelecer contato direto. Esses apóstolos eram Pedro e João. O primeiro, que pecara por acreditar ser o grande líder dos Doze, agora estava sendo liderado; o segundo, que pedira fogo do céu sobre os samaritanos (Lucas 9.52-56), agora estava ali para ver que aquele povo “havia aceitado a palavra de Deus” (gr. dédektai […] tòn lógon toū theoū). O propósito para o qual foram enviados era ministrar ao povo em oração, para que os samaritanos fossem cheios do Espírito Santo. Eles já eram crentes e tinham o Espírito (v. 12), mas precisavam ser cheios do Espírito Santo para se tornar testemunhas poderosas, como Filipe. A oração dos apóstolos (v. 15-17). Ao chegar, os apóstolos oraram (v. 15,16). Sua oração era para que os samaritanos fossem cheios do Espírito Santo e recebessem os dons carismáticos necessários para funcionar como igreja. O Espírito Santo é recebido plenamente na conversão (2.38; 1Coríntios 12.3; Efésios 1.13). No entanto, uma coisa é ter o Espírito, e outra, bem diferente, é ser cheio do Espírito (Efésios 5.18), ou seja, que o Espírito Santo nos possua. Os dons do Espírito são manifestos em plenitude (2.4; 19.6). Para esse fim, os apóstolos impuseram as mãos neles (v. 17). A imposição de mãos foi o meio usado para que os crentes samaritanos fossem cheios do Espírito Santo (19.6). Essa prática era muito utilizada desde a Antiguidade (Deuteronômio 34.9). Os

destinatários de tal experiência foram os crentes samaritanos, incluindo Simão, embora este aparentemente não tenha ficado cheio do Espírito na ocasião. A fonte da experiência foi o Espírito Santo. Sem ele, não há igreja, nem dons, nem poder. A relação entre Simão e os apóstolos (v. 18-24). O relato do que aconteceu em Samaria entre Simão e os apóstolos é rico em detalhes que falam de como proceder pastoralmente com os novos crentes, especialmente quando estiveram envolvidos com o ocultismo. Esse é o pão de cada dia de qualquer pastor ou líder na América Latina. Observe-se o pedido de Simão (v. 18,19). Simão estava muito impressionado. As manifestações eram semelhantes ao que ele fazia antes de se encontrar com o Senhor, só que do lado oposto, pois agia pelo poder de Satanás. Simão sentiu-se tentado a retornar à vida anterior e aproveitar o poder divino para continuar enganando o povo, ou, pelo menos, a deslumbrá-lo. Seu pecado foi a inveja e a saudade de seu passado. É possível também que tenha acontecido com ele o que às vezes ocorre com pessoas que se converteram após uma vida inteira de atividade no ocultismo. Elas precisam com urgência de um ministério de libertação. Caso contrário, os hábitos que cultivaram antes de conhecer o Senhor virão à tona de forma intermitente. Na verdade, em minha experiência pastoral, especialmente ministrando cura interior e libertação a pastores e líderes, pude verificar que as opressões e os laços demoníacos não desaparecem como em um passe de mágica quando a pessoa vem a Cristo. Este é o primeiro passo no processo de salvação, mas é muito importante romper com os antigos laços, para que a pessoa possa ser cheia do Espírito Santo.Caso contrário, este continuará

habitando o ser interior da pessoa (seu coração ou espírito), mas entristecido, resistido, blasfemado ou apagado. Simão queria comprar o poder de conceder dons sobrenaturais, como se a autoridade para tal ato residisse nele. A palavra “simonia”, que é o pecado de pagar por uma posição religiosa, deriva dessa sua atitude carnal. Na verdade, o que Simão cobiçava nada mais era que a autoridade apostólica (manifesta na imposição de mãos), muito mais que os dons em si (v. 19). É provável que Simão, naquele momento, pensasse que a imposição de mãos fosse um gesto mágico adotado pelos apóstolos. Sem dúvida, tal ideia foi mais uma reação de sua imaturidade espiritual que uma fraude planejada por um homem perverso e não convertido. Observe-se a admoestação apostólica (v. 20-23). A admoestação de Pedro foi dura, mas oportuna (v. 20-23). Pedro, horrorizado, reagiu com veemência e firmeza, o que era típico de sua personalidade. Talvez João tivesse respondido de maneira diferente, com mais amor e flexibilidade. Em todo caso, duas questões merecem destaque nas palavras de Pedro. 1) A acusação (v. 20,21). A expressão “neste ministério” (gr. en tōi lógōi toútōi) se refere à recepção dos dons carismáticos e à autoridade apostólica para impor as mãos e transmiti-los. A expressão não se refere à salvação em si. O diagnóstico de Pedro, embora muito severo, foi necessário: “Seu coração não é reto diante de Deus” (gr. hē gàr kardía sou ouk éstin eutheīa énanti toū theoū; lit., “porque seu coração não é autêntico diante de Deus”). Simão estava em pecado, e sua mente estava ocupada com pensamentos e desejos carnais.

2) A exortação (v. 22,23). Pedro aponta diretamente para o coração de Simão ao exortá-lo: “Arrependa-se dessa maldade e ore ao Senhor” (gr. metanóēson ouk apò tēs kakías sou taútēs kaì deēthēti toū kyríou, v. 22). Essa frase pressupõe que Simão era crente. De fato, Pedro não menciona o poder salvador de Cristo, porque o problema de Simão é o caso típico de qualquer cristão carnal, que Pedro descreve como “maldade”, ou seja, má intenção (gr. hē epínoia tēs kardías sou; lit., “o pensamento do teu coração”). Simão estava na esfera dos pensamentos e das intenções em vez de estar na área da vontade e da ação. Havia apenas um pecado nele: a ambição de querer manipular o poder de Deus. Milhares de pastores hoje cometem o mesmo pecado! O mais grave nesse caso é que Simão foi guiado ao caminho da “amargura” (gr. eis cholēn pikrías; v. Hebreus 12.13-16), que o deixou “preso pelo pecado” (gr. sýndesmon adikías), que não é outra coisa senão uma amarra satânica. Ambos os perigos são próprios dos crentes carnais, não dos incrédulos. Não é a salvação que está em jogo, mas o processo de santificação. Observe-se a resposta de Simão (v. 24). Simão, temeroso, respondeu com humildade (v. 24). Podemos perceber seu arrependimento e sua sujeição à autoridade apostólica expressos na frase: “Orem vocês ao Senhor por mim” (gr. deēthēte hymeīs hypèr emoū pròs tòn kýrion). Observamos também seu medo: “[...] que não me aconteça nada do que vocês disseram”. Com essas palavras, Simão demonstrou que estava levando muito a sério a advertência apostólica. Deus ouve e perdoa o crente arrependido. Simão é o caso típico do crente carnal que precisa de restauração e de cura espiritual. Por isso, em certo sentido, sua resposta é

também o clamor por uma pastoral empenhada e amorosa. Muitas vezes, nós, pastores, somos muito rápidos em condenar a pessoa e em declará-la um caso perdido, quando deveríamos assumir nossa responsabilidade e ajudar o crente pecador a superar seu pecado e encontrar o caminho da santidade progressiva e madura. A relação entre os apóstolos e a evangelização (v. 25). Seu ministério apostólico encontrou expressão no testemunho pessoal (“tendo testemunhado”, gr. hoi mèn oūn diamartyrámenoi). Eles falaram de sua experiência pessoal aos samaritanos. Isso é importante no desenvolvimento de novos discípulos. Além disso, havia a pregação da Palavra de Deus (“[tendo] proclamado a palavra do Senhor”, gr. lalēsantes tòn lógon toū kyríou) a toda a população. Os samaritanos receberam a palavra apostólica, que não era algo inventado ou elaborado pelos apóstolos, mas “a palavra do Senhor”. Com isso, era oferecido um conhecimento mais profundo da fé e da vida cristã após o esforço evangelístico — um passo indispensável. Infelizmente, hoje há pouca evangelização e quase não existe o ensino autorizado dos apóstolos, que cumpra o ministério que o Senhor lhes confiou. O anúncio do evangelho pelos apóstolos também era notável (“pregando o evangelho”, gr. euēggelízonto). Na viagem de volta a Jerusalém, os apóstolos realizaram um trabalho evangelístico “em muitos povoados samaritanos”. Esta é a tarefa mais importante que podemos realizar. Simão, o mago, era mais apóstata que herege; mais um crente carnal que um hipócrita. Sua experiência deve servir de alerta para nós. É possível cair em pecado por causa de velhas tentações, hábitos e desejos ou de uma mentalidade não submissa ao senhorio de Cristo. A regeneração não é necessariamente uma experiência

de renovação. Devemos crescer em Cristo e em sua graça, para viver em santidade. Se pecarmos e houver fel de amargura e prisão da maldade, o remédio é o arrependimento e a fé no Senhor. É bem provável que, assim como os apóstolos continuaram sua carreira servindo ao Senhor como testemunhas, pregadores da Palavra e evangelizadores, Simão fez o mesmo depois de sua amarga experiência de tropeços éticos e teológicos. Além disso, o registro um tanto extenso de sua experiência pode ser indício de que ele se tornou um líder proeminente da comunidade do Reino em Samaria depois que Filipe encerrou seu ministério ali e foi enviado pelo Espírito Santo a outro lugar. Quatro passos para uma nova vida (8.9-25)

A experiência mais espantosa com o evangelismo em massa e o poder registrada no livro de Atos e talvez em todo o Novo Testamento não se deu pelo ministério de um apóstolo, mas por meio de um crente comum como Filipe, que fazia parte dos sete servidores escolhidos pela igreja de Jerusalém para servir às mesas (6.1-7). Ao passar por uma cidade de Samaria, Filipe deparou com um contexto espiritual de alta densidade demoníaca. Ed Murphy: “O notável ministério de evangelização em massa e de poder realizado por Filipe (v. 5-8) estava, sem dúvida, relacionado diretamente com a pessoa e com as atividades de Simão, conhecido na história cristã posterior como Simão, o mago (v. 9-24). Há mais informações a respeito dele no livro de Atos que de qualquer outra pessoa além dos apóstolos. Sua influência não terminou com o relato de Atos. F. F. Bruce diz que ‘Simão, o feiticeiro, ou Simão, o mago (como é geralmente chamado), desempenha um papel extraordinário na literatura cristã primitiva’. B. F. Harris, por sua vez, dá mostras de uma verdadeira compreensão das dimensões do choque de poder e da guerra espiritual desse relato e do livro de Atos em geral. Sob o subtítulo ‘Christianity and Magic in Acts’ [ ‘Cristianismo e magia em Atos’], ele

escreve que Lucas apresenta ‘um tema recorrente em Atos [do] conflito entre o cristianismo e as práticas de magia, tão frequentes no mundo grecoromano do século l’ ”.9

Ao analisar o que aconteceu em Samaria, podemos distinguir quatro passos para uma nova vida em Cristo, com relação a pessoas engajadas em várias manifestações do ocultismo. Espanto. Esse homem chamado Simão era alguém que apelava para algum tipo de magia ou para as artes de adivinhação, a fim de construir uma reputação. Ele obteve muito êxito nesse empreendimento, pois todo o povo de Samaria o chamava “o Grande Poder” divino. É evidente que eles o consideravam um homem muito importante ou mesmo alguém em quem o poder divino parecia operar. Por certo, ele aceitava de bom grado todos esses elogios e lisonjas. No mundo antigo, os adivinhos e os feiticeiros utilizavam-se de vários recursos ocultistas, como astrologia, adivinhação, encantamentos e poções mágicas, a fim de, no exercício de sua profissão, subtrair um bom dinheiro do povo. Deus proibiu todos essas práticas no Antigo Testamento. Mais adiante em Atos, há uma referência a outro mago, chamado Barjesus ou Elimas (13.6-12), mas, dessa vez, é alguém apresentado de uma perspectiva menos favorável. Parece que durante bom tempo Simão desfrutou uma posição de honra única em Samaria. O impacto que causava provavelmente era sentido em todos os níveis da sociedade. Assim, quando Filipe chegou à cidade, o choque de poder entre ele e o homem que deslumbrava a todos com suas artes mágicas foi inevitável. O próprio Simão observava “maravilhado os grandes sinais e milagres que eram realizados” (v. 13).

Hoje, na América Latina, o confronto com pessoas deslumbradas com o ocultismo é quase inevitável. Qualquer evangelista, mais cedo ou mais tarde, deparará com um conflito de poder com as forças das trevas, que mantêm o povo cativo e cego por meio da astrologia, dos horóscopos, da adivinhação, da feitiçaria, da bruxaria, do xamanismo e dos cultos afro-brasileiros e afrocaribenhos. O ocultismo consiste em ensinamentos, artes e práticas relacionados com o oculto e o misterioso. Neles se incluem a bruxaria, a alquimia e a adivinhação. É um movimento que se caracteriza por um conteúdo mágico que se refere a poderes ou energias naturais e sobrenaturais, ainda inexplorados pela ciência “oficial”, e que enfatiza a possível comunicação com os mortos e outros seres extraterrestres. Consiste em práticas esotéricas. Documento de Puebla: “Não se pode desconhecer na América Latina a erupção da alma religiosa primitiva à qual se vincula uma visão da pessoa como prisioneira das formas mágicas de ver o mundo e de atuar sobre ele. O homem não é dono de si, mas vítima de forças ocultas. Nessa visão determinista, não se encontra outra atitude senão colaborar com essas forças ou aniquilar-se diante delas (daí a prática da feitiçaria e o interesse crescente pelos horóscopos em algumas regiões). Alia-se ainda, às vezes, a crença na reencarnação por parte dos adeptos de várias formas de espiritismo e de religiões orientais. Não poucos cristãos, ignorando a autonomia própria da natureza e da história, continuam crendo que tudo o que acontece é determinado e imposto por Deus”.10 Abandono. Simão, que desfrutava a admiração de todo o povo por suas artes mágicas, enfrentou o abandono de seus seguidores depois que eles acreditaram nas “boas-novas do Reino de Deus”,

anunciadas por Filipe. A pregação de Filipe penetrou as trevas do engano de Simão e, como resultado, “tanto homens como mulheres” acreditaram no “nome de Jesus Cristo” e aceitaram o convite para serem batizados. Essa declaração mostra que o evangelho de Jesus Cristo vence os poderes do mal e da falsidade quando é pregado com verdade e poder. Desse modo, os que antes veneravam Simão, seduzidos por seus enganos ocultistas, agora o abandonavam, porque haviam descoberto o verdadeiro “Grande Poder [de Deus]”. Em um contexto como o dessa cidade de Samaria, a única maneira de frustrar o poder das trevas e fazer o povo abandonar o ocultismo e aceitar a luz do evangelho é por meio de um conflito de poder. Os argumentos racionalistas da evangelização evangélica tradicional não vão mudar ninguém.É preciso um evangelista como Filipe, cheio do Espírito Santo e com poder, que desafie as forças ocultas em nome de Jesus e as derrote. Filipe escolheu fazer isso por meio de “sinais milagrosos”, que conseguiram surpreender o próprio Simão. Quando algo assim ocorre, os cativos têm uma disposição mais aberta para acreditar e obedecer ao Senhor. Aceitação. A vitória definitiva ocorreu quando o próprio Simão aceitou a mensagem do evangelho e se submeteu ao batismo. Lucas usa em seu caso a mesma linguagem de conversão que se vê em outros casos (2.38-41).Simão creu e foi batizado. Sua nova fé levou-o a abandonar suas práticas mágicas e a apoiar o ministério de Filipe. Não há razão para duvidar da autenticidade da experiência de fé de Simão. Se Filipe duvidasse que Simão fosse um verdadeiro crente, não o teria batizado, pois é evidente nesse

contexto, como em todo o Novo Testamento, que o batismo é apenas para os crentes. Há uma importante lição aqui para os evangélicos da América Latina. Uma atitude hipócrita tem levado muitas igrejas a rejeitar a autenticidade da conversão de uma pessoa por causa da presença de pecados em sua vida ou pela recorrência das práticas ocultistas a que era habituada antes de sua conversão a Cristo. Erros graves têm sido cometidos ao se rejeitar ou disciplinar com severidade os crentes, em muitos casos novos convertidos, sem lhes dar a orientação pastoral necessária e sem ter o cuidado de ajudá-los a se arrepender e a encontrar uma forma de amadurecer na vida cristã. Em alguns casos, os excessos disciplinares significam para a comunidade religiosa uma perda equivalente ao de almas conquistadas. Em todo caso, é preciso verificar se o problema está nos crentes relapsos ou na igreja, que pode carecer de um programa adequado de discipulado e de cuidado pastoral. Ajustes. Simão começou bem sua vida cristã, mas logo precisou de ajustes para ser cheio do Espírito Santo. E o maior reparo que teve de fazer foi abandonar em definitivo sua mentalidade pagã e ocultista, que tudo resolvia com a aplicação de certas “artes mágicas” ou com dinheiro. Simão ficou tão impressionado com as manifestações do Espírito Santo quando os apóstolos de Jerusalém (Pedro e João) impuseram as mãos nos novos crentes que lhes ofereceu dinheiro para aprender o “truque”. A oferta de Simão foi um impulso da anterior profissão de adivinho. Surgiu o desejo de tornar a cativar o público, e ele não conseguiu pensar em outra forma de aprender a “técnica” dos apóstolos senão oferecendo dinheiro a eles. A reação de Pedro é uma das mais veementes das Escrituras:

“Pereça com você o seu dinheiro! Você pensa que pode comprar o dom de Deus com dinheiro?” (v. 20). O apóstolo chamou-o ao arrependimento e, sem hesitar, mostrou a origem do problema: “Seu coração não é reto diante de Deus”. Os crentes passam a ter o Espírito Santo em seu interior depois que se arrependem de seus pecados e põem sua fé em Cristo como Salvador e Senhor, mas muitos não podem ser cheios do Espírito Santo porque há pecados ocultos na vida deles, áreas de seu ser ainda não submetidas ao senhorio de Cristo, espíritos malignos que exercem autoridade em algumas dessas áreas, desobediência ou confusão espiritual. Nesses casos (como no de Simão), não é a salvação eterna que está em jogo, mas o processo de santificação e uma vida plena em Cristo, cheia do Espírito Santo. A admoestação de Pedro não foi dirigida a um pagão ou descrente, e sim a um crente batizado e irmão na fé, mas que precisava fazer alguns ajustes em sua maneira de entender a obra do Senhor. Nos dias de hoje, há muitos crentes, até mesmo em meio à liderança, que precisam fazer ajustes em sua vida cristã. TABELA 7: Deus e o ocultismo A Bíblia é muito clara ao condenar o ocultismo em todas as suas formas, por ser uma prática contrária à vontade de Deus. 1. Deus não aprova a feitiçaria, nem as artes ocultas, nem a magia (Êxodo 7.11,22). 2. Deus condena severamente (pena de morte) a feitiçaria (Êxodo 22.18). 3. Deus proíbe a adivinhação e os feitiços (Levítico 19.26). 4. Deus é contra a necromancia e o espiritismo (Levítico 20.6).

5. Deus proíbe a prática da adivinhação e da bruxaria ou feitiçaria (Deuteronômio 18.9,10). 6. Deus proíbe a prática de lançar feitiços, atuar como médium espírita ou consultar os mortos (Deuteronômio 18.11,12). 7. Deus diz que as coisas encobertas pertencem a ele (Deuteronômio 29.29). 8. Deus condenou o rei Manassés por ocultismo (2Reis 21.6). 9. Deus induziu Josias a expulsar os médiuns e os feiticeiros (2Reis 23.24). 10. Deus se opõe às necromantes e aos adivinhos (Isaías 8.19,20). 11. Deus frustra os planos das necromantes e dos adivinhos (Isaías 19.3). 12. Deus se opõe aos astrólogos e aos que fazem predições (Isaías 47.13). 13. Deus contradiz os falsos profetas, os videntes, os intérpretes de sonhos, os astrólogos e os feiticeiros (Jeremias 27.9). 14. Deus envergonha e humilha os videntes e os adivinhos (Miqueias 3.7). 15. Deus põe fim à feitiçaria e às adivinhações (Miqueias 5.12).

O EUNUCO ETÍOPE (8.26-40)

Nos cap. 6—8, o dever de ser testemunha em Jerusalém foi transformado no dever de ser testemunha em toda a Judeia e Samaria, por causa da perseguição desencadeada em consequência da morte de Estêvão (comp. 6.7 com 8.1). Desse modo, Estêvão e Filipe, dois dos escolhidos em 6.1-6 para servir, tornam-se figuras-chave. O testemunho de Estêvão levou-o à morte; o testemunho de Filipe resultou em vida e alegria para toda uma cidade samaritana. Tanto um quanto o outro proclamavam Cristo fielmente por onde quer que passavam e por todo o mundo. Nenhum dos dois era apóstolo, mas crentes cheios do Espírito Santo. Filipe destacou-se como pregador de multidões, mas também se mostrava eficaz no evangelismo pessoal, como ilustra a passagem que analisaremos a seguir. Filipe e o eunuco etíope (8.26-40)

A fonte desse relato, sem dúvida, foi o próprio Filipe, a quem o autor conheceu pessoalmente quando se hospedou com Paulo na casa dele, em Cesareia, cerca de vinte anos antes (21.8). Ao analisar essa passagem (8.26-40), quatro considerações se destacam. A pregação de Filipe (v. 26-30). Deus fez prosperar a pregação em massa de Filipe em Samaria (8.6). Agora, Deus usará seu servo para pregar a uma pessoa que, com o tempo, abrirá a porta do evangelho a multidões em sua terra natal, a Etiópia. Três considerações se destacam aqui.

A base: uma revelação divina. A pregação de Filipe foi baseada em uma revelação divina. Um “anjo do Senhor” (gr. Ángelos kyríou) deu-lhe instruções sobre uma viagem para o sul. A estrada para Gaza, antiga fortaleza no caminho para o Egito, era uma “estrada deserta” (gr. epì tēn hodòn [...] haútē estin érēmos), ou seja, um trajeto por áreas desabitadas. A rápida reação de Filipe à ordem divina é percebida no fato de que ele “se levantou e partiu”. Atos registra várias vezes esse tipo de obediência imediata à voz divina (9.20; 16.10). Geralmente, é o Espírito Santo, como grande estrategista, quem dirige os agentes missionários no cumprimento do dever. É o Espírito quem dá impulso à missão. O dom do Espírito é o dom de estar envolvido na missão, porque a missão é consequência direta do derramamento do Espírito. A pneumatologia de Lucas exclui a possibilidade de um mandamento missionário, mas implica, em vez disso, a promessa de que os discípulos estarão envolvidos na missão. O alvo: um funcionário etíope. A pessoa com quem Filipe se encontrou no caminho era um alto funcionário da Etiópia. Ele foi o alvo da pregação de Filipe. O etíope era proveniente do nordeste da África e do sul do Egito, onde havia muitos judeus. O homem era eunuco (gr. eunoūchos), ou seja, um homem castrado, que servia como alto funcionário econômico-financeiro de Candace, rainha dos etíopes. A palavra Kandákēs não é um nome pessoal, mas o título das rainhas da Etiópia (como “Faraó” ou “Ptolomeu”). Como a maioria dos reis possuía um harém, costumava-se castrar os servos, para evitar que incomodassem as mulheres. É provável que a rainha fosse viúva e tivesse herdado do marido o serviço do eunuco. Às vezes, o termo “eunuco” era aplicado a oficiais,

independentemente de sua condição física. Se, nesse caso, se tratava de um homem castrado, o que impunha certas barreiras sociais e religiosas no contexto judaico (Deuteronômio 23.1), o etíope não poderia ser mais que um “prosélito da porta”. A questão é que Filipe o encontrou lendo um pergaminho do livro de Isaías, que, sem dúvida, havia custado muito dinheiro. A direção: o Espírito Santo. Filipe recebeu orientação de Deus a cada passo do caminho, fosse por meio de um anjo do Senhor, fosse pelo Espírito Santo. O plano de Deus é pôr os crentes em contato com os descrentes para que comuniquem o evangelho a eles. O papel de Filipe era pregar e ensinar a respeito de Cristo. Portanto, ele se aproximou do carro em que o etíope estava viajando. A obediência de Filipe à ordem de Deus é mais uma vez evidente, embora Deus estivesse lhe pedindo algo que violava todas as leis cerimoniais e religiosas (v. Lucas 15.20; 19.4; 24.12). Roland Allen: “São Lucas fixa nossa atenção não em alguma voz exterior, mas em um Espírito interior. Essa forma de comando é peculiar ao evangelho.Outros orientam de fora, Cristo dirige de dentro; outros dão ordens, Cristo inspira. [...] Esta é a maneira de dar ordens nos escritos de são Lucas. Não se fala de homens que, sendo quem eram, se esforçaram para obedecer às últimas ordens de um patrão muito querido, mas de homens que, tendo recebido o Espírito, foram impulsionados por esse Espírito a agir de acordo com esse mesmo Espírito”.11

A questão: a pergunta de Filipe. Por fim, Filipe iniciou o contato evangelizador fazendo uma pergunta elementar: “O senhor entende o que está lendo?” (gr. ārá ge ginōskeis hà anaginōskeis, v. 30). Ou seja, a questão hermenêutica é fundamental em qualquer processo de comunicação do evangelho. Muitos acham difícil chegar a Cristo simplesmente porque não entendem nosso vocabulário religioso. Às

vezes, presumimos que a simples repetição de alguns versículos da Bíblia aprendidos de cor é o bastante para que uma pessoa se converta. Trata-se de tomar as palavras da Bíblia como uma espécie de fórmula mágica (“Abracadabra”), que leva automaticamente a pessoa a receber Cristo. A realidade é que alguém pode ter em mãos a melhor versão da Bíblia, lê-la com atenção e, ainda assim, não entender nada. Compreender o testemunho da Palavra e do crente é fundamental para dar origem à fé, porque “a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo” (Romanos 10.17). No caso do eunuco, Filipe supôs que havia sinceridade e honestidade religiosa nesse homem e valorizou sua piedade, expressa na leitura interessada do texto bíblico. O oficial gentio era temente a Deus, mas não podia se tornar judeu, porque a Lei de Israel o proibia por se tratar de um eunuco (Deuteronômio 23.1). No entanto, é provável que, ao ser interceptado por Filipe, ele já tivesse lido no livro de Isaías, apenas três capítulos após a passagem que estava lendo quando o evangelista o contatou (Isaías 56.7,8), que chegaria o dia em que haveria lugar para estrangeiros e eunucos no povo de Israel.Filipe iniciou assim um diálogo evangelístico com alguém que já havia encontrado uma mensagem de esperança nas Escrituras e estava aberto a que essa boa-nova lhe fosse explicada com mais detalhes. A pergunta do etíope (v. 31-35). O oficial etíope estava confuso com o que estava lendo e gostaria de receber respostas a suas indagações. A pergunta inicial de Filipe resultou em um convite para a aproximação e o diálogo. Duas questões se destacam aqui.

A pergunta de Isaías. Essa pergunta é encontrada em Isaías 53.7,8 e citada conforme aparece na LXX. O texto faz parte dos Cânticos do Servo. O livro de Isaías contém quatro dessas canções, nas quais o profeta descreve um “servo do Senhor” que viria representar o Deus vivo, mas seria maltratado por causa disso (Isaías 42.1-9; 49.1-13; 50.4-11; 52.13—53.12). A questão que intrigou os mais piedosos durante séculos foi a identidade do servo que aparece nessas canções. Mesmo entre os antigos judeus, havia a crença de que esses versículos descreviam o Messias que viria, embora apenas uns poucos tenham sido capazes de entender a ideia de que o Ungido de Deus (Cristo) teria de sofrer. Portanto, a pergunta do etíope não é surpreendente. A frase “sua vida foi tirada da terra” (gr. hóti aíretai apò tēs gēs hē zōē autoū) está relacionada com a morte prematura de Jesus. A pergunta do etíope. Ele queria saber o que quase todos os estudiosos da Bíblia querem saber. Isaías descreve a si mesmo em seu ministério como profeta do Senhor? Estaria o profeta descrevendo a nação de Israel, às vezes chamada “servo do Senhor” (v. Isaías 49)? Ou estaria descrevendo o ministério do Messias? O pedido do etíope (“por favor”) expressa certa intensidade e interesse. Isso deu a Filipe a oportunidade perfeita para comunicar a verdade de Deus. Imediatamente, Filipe “anunciou-lhe as boas-novas de Jesus” (gr. euēngelísato autōi tòn Iēsoūn), ou seja, os fatos da vida, a crucificação e a ressurreição do Senhor. A julgar por outras passagens de Atos, a discussão provavelmente incluiu detalhes sobre os milagres de Jesus, sua inocência com relação às acusações feitas contra ele, as audiências

perante o Conselho judaico e perante Pilatos e suas aparições após a ressurreição (2.22-33; 13.23-31). A proposta do evangelizado (v. 36-38). Filipe não só anunciou o evangelho essencial ao etíope, mas também avançou até o ponto de seu ensino que incluía a necessidade do batismo como testemunho de fé e resposta à mensagem do evangelho (2.38; 22.16). O v. 37 não aparece nos melhores manuscritos, como explica a nota de rodapé da NVI. Ainda assim, o texto expressa claramente a fé e a prática da igreja primitiva. É correto supor que a pregação de Filipe enfatizou a necessidade de o etíope depositar sua fé em Cristo, como na pregação de Paulo (16.31; 18.8), e que, por ser agora um crente, não havia motivo para não ser batizado por imersão. A prática da imersão, com seu rico significado simbólico (Romanos 6.1-4; Colossenses 2.12), é atestada pelo fato de que o etíope “deu ordem para parar a carruagem”, e ambos “desceram à água” (gr. katébēsan amfóteroi eis tò hýdōr, v. 38). A aspersão teria tornado tal operação desnecessária. Ou seja, a linguagem do batismo implica a imersão como a forma correta de fazê-lo, uma vez que não haveria necessidade de mergulhar na água se o propósito não fosse a imersão. Observe-se que o batismo é apresentado aqui, como em todo o Novo Testamento, como um ato que acompanha a fé de quem aceitou as afirmações de Cristo como verdadeiras. Observe-se também que não há nenhuma indicação aqui da necessidade de um período para testar ou treinar o crente antes do batismo. Como no caso do carcereiro de Filipos (16.33), o etíope foi imediatamente batizado, com base em sua fé em Cristo. Justo L. González: “Foi então (talvez depois de várias horas) que, vendo água, o eunuco perguntou a Filipe se podia ser batizado. A frase usada aqui

também aparece (traduzida de formas diferentes na RVR) em 10.47 e 11.17. Aparentemente, era a fórmula utilizada antes de se aceitar alguém para o batismo. O v. 37 não aparece nos melhores manuscritos, por isso muitos estudiosos acreditam que ele foi adicionado mais tarde, com a resposta de Filipe, para completar a ação. Em todo caso, a narrativa indica que Filipe respondeu que não havia impedimento. Ambos ‘desceram’ à água e, após o batismo, ‘saíram’ dela. As formas gramaticais usadas no grego implicam que eles entraram na água e que o batismo foi feito na água, não por aspersão. Essa era a forma usual de batismo, como está implícito em Romanos 6.4, Colossenses 2.12 e em outras passagens do Novo Testamento”.12

A jornada dos protagonistas (v. 39,40). A passagem termina como começou: com a orientação divina sobre o percurso a ser seguido pelos protagonistas do episódio. O caminho seguido por Filipe. No caso de Filipe, o Espírito Santo lhe revelou que precisava dele em outro lugar. O texto afirma que “o Espírito do Senhor arrebatou Filipe repentinamente” (gr. pneūma kyríou hērpasen tòn Fílippòn, v. 39). A palavra grega utilizada aqui é a mesma de 1Tessalonicenses 4.17, em que Paulo escreve que, quando Cristo aparecer, os crentes irão ao encontro do Senhor nos ares. No caso de Filipe, não ocorreu o mesmo tipo de “arrebatamento”, contudo foi uma experiência repentina e milagrosa. O fato é que Filipe se foi tão repentinamente quanto apareceu. A jornada de Filipe foi bastante extensa, pois ele “apareceu em Azoto” (Asdode), na costa do Mediterrâneo, e continuou a pregar o evangelho de cidade em cidade até chegar a Cesareia, a próspera cidade do rei Herodes. Ao que parece, ele fixou residência ali, pois cerca de vinte anos depois é outra vez citado naquela cidade (21.8). Roger W. Gehring: “Um dos que deixaram [Jerusalém (8.1)] era membro dos Sete, chamado Filipe. Ele levou o evangelho aos tementes a Deus e samaritanos (8.4-13,26-40), além dos limites prévios do judaísmo. A faixa costeira da Palestina com suas cidades predominantemente gentias, como Gaza (8.26), Asdode e Cesareia (8.40), desempenhou um papel fundamental

em sua missão. É bem provável que Filipe e outros helenísticos tenham alterado de modo progressivo sua abordagem da expansão missionária adaptando-a aos gentios para torná-la ‘livre da Lei’, ou seja, para não responsabilizar os gentios pelas exigências e restrições da Lei. Embora não se possa afirmar com certeza, parece haver alguma indicação de que Filipe agiu como missionário itinerante de casa em casa, conforme a estratégia adotada por Jesus. Em 21.8,9, vemos que Filipe era dono de uma casa em Cesareia. Provavelmente, foi ali que ganhou o título de ‘evangelista’ (21.8). [...] Em sua expansão missionária, Filipe concentrou-se estrategicamente em uma área específica e fixou residência em Cesareia, de onde tinha como alvo as cidades, já mencionadas, da região vizinha. A casa de Filipe parece ter desempenhado um papel importante em seus esforços missionários. Sua residência era possivelmente o ponto de encontro de uma igreja doméstica”.13

O caminho seguido pelo etíope. O etíope, por sua vez, seguiu seu caminho com alegria (v. 39). É assim que Lucas se refere ao compromisso do etíope após o batismo. Quando alguém se converte a Cristo, Atos geralmente vai além de descrever sua fé e seu batismo e mostra-o pronto para servir a Cristo. No caso dos convertidos no dia de Pentecoste, foi a perseverança (2.42); no caso de Simão, foi o fato de que “seguia Filipe por toda parte” (8.13); no caso do etíope, foi que ele, “cheio de alegria, seguiu o seu caminho” (gr. eporeúeto tēn hodòn autoū chaírōn, v. 39); no caso de Lídia, ela convidou os apóstolos para que ficassem em sua casa (16.15). A jornada do etíope foi ainda mais longa que a de Filipe, pois teve de percorrer mais de 2.700 quilômetros para chegar à capital de sua terra, Meroé (atual Sudão), onde pregou o evangelho. A Etiópia era o país cristão mais antigo não só da África, mas de todo o mundo, como ainda hoje. O Espírito Santo e o obreiro cristão (8.26-40)

A característica mais destacada e singular do cristão, sua realidade e fator de maior importância, é o Espírito Santo de Deus. Se isso é aplicável ao cristianismo em geral, tanto mais se aplica ao trabalho e ao testemunho cristãos. O ministério de nosso Senhor começou “no poder do Espírito” (Lucas 4.14). O próprio Jesus instruiu seus discípulos a esperar “até serem revestidos do poder do alto” (Lucas 24.49) para iniciar a missão apostólica. O apóstolo Paulo afirmou que seu ministério era realizado “em demonstração do poder do Espírito” (1Coríntios 2.4). O Espírito Santo é “o Espírito da verdade” (João 14.17). A Palavra de Deus é “a espada do Espírito” (Efésios 6.17). E foi o Espírito Santo quem exerceu controle constante e total sobre todas as operações da igreja cristã registradas no livro de Atos. No caso de Filipe e do eunuco etíope, o Espírito Santo aparece estreitamente relacionado com o serviço cristão. Dois elementos merecem destaque à luz dessa experiência. A relação do Espírito Santo com o obreiro cristão. Essa relação é fundamental e bem ilustrada na vida e no ministério do evangelista Filipe. O Espírito Santo fala e revela a vontade de Deus (v. 29). Deus ainda fala hoje, por incrível que pareça, e o faz por meio da operação do Espírito Santo. Deus não está mudo nem fez silêncio depois que as sociedades bíblicas imprimiram a Bíblia. Deus falou e fala por meio de sua Palavra, que, por sua vez, é obra do Espírito Santo (2Timóteo 3.16; 2Pedro 1.21). Deus fala ao coração humano ao aplicar a Palavra de Deus. A Palavra sem o Espírito é seca e inútil. Se ignorarmos o Espírito em nossa leitura, interpretação e aplicação da Palavra de Deus, facilmente cairemos no legalismo ou

no cego literalismo fundamentalista. Em contrapartida, o Espírito sem a Palavra é incompreensível. Concentrarmo-nos no Espírito Santo e excluir a Palavra inspirada irá nos aproximar perigosamente do subjetivismo ou do relativismo na interpretação. O Espírito e a Palavra constituem o duplo método que Deus usa para se comunicar com o ser humano. O Espírito Santo exige um coração obediente. O coração humano deve ser receptivo e obediente. A comunicação não é possível se não houver um emissor e um receptor da mensagem. Filipe era um servo de Deus receptivo e obediente. Havia sido em Samaria (v. 26,27) e também em seu testemunho ao etíope. Ele soube pôr de lado seus preconceitos e pressupostos e se deixou levar pelo Espírito Santo em sua conversa com o oficial etíope, na única orientação que tinha como meta: levá-lo a um conhecimento salvífico do Messias Jesus. Nesse sentido, não deixa de chamar a atenção o fato de que o homem que Deus usou para ganhar quase uma cidade inteira em Samaria para o Reino foi o mesmo que o Espírito Santo guiou para ganhar uma só pessoa em trânsito rumo a um destino remoto. Muitos são os servos do Senhor que rapidamente se prontificam para ser evangelistas das multidões, mas não são tantos os que fazem o mesmo esforço para ganhar uma única alma para Cristo. O Espírito Santo gerencia a estratégia de serviço. O que o Espírito diz a um concorda com o que diz aos outros. Por que o Espírito Santo enviou Filipe ao deserto? Porque antes havia combinado um encontro com o etíope (v. 27,28). O coração do africano foi preparado para a mensagem do evangelista, e isso levou algum tempo. A capacidade de perceber a ação eterna do

Espírito Santo além dos acontecimentos conjunturais é o que permite que nos integremos à sua sábia estratégia para transformar o mundo com o evangelho da verdade. No tabuleiro de Deus, cada peça ocupa um lugar único e insubstituível e tem uma função estratégica fundamental, com os movimentos que lhe são próprios e característicos. Todavia, só o Senhor é o Mestre que sabe combinar cada movimento, a fim de atingir o objetivo: dar xeque-mate no Inimigo e derrotá-lo na vida do ser humano. De modo que, no que se refere à relação do Espírito Santo com o obreiro cristão, há três condições fundamentais para se levar em conta por parte do segundo: ouvir, obedecer e seguir. Se pudéssemos prestar mais atenção nesses três imperativos, descobriríamos todo o poder do Espírito em atuação por meio de nós, com o objetivo de alcançar outros com a mensagem do evangelho. A obra do Espírito Santo por meio do obreiro cristão. Nesse caso, Filipe representa a igreja pregando o evangelho ao mundo. Vemos aqui quatro questões interessantes. Vemos o evangelho confrontado com o poder pessoal (v. 27). Esse poder é representado pela posição social do etíope. Sem dúvida, ele era um homem de grande influência política e financeira e de status social privilegiado. Esses elementos, que o mundo tanto aprecia e que tantas vezes dão origem a corrupção, enriquecimento ilícito, especulação e orgulho, podem ser utilizados para o bem, sob a direção do Espírito Santo. Não há restrições nem acepções para o poder do evangelho pela operação do Espírito. Vemos o evangelho confrontado com o poder material (v. 28a). O poder material é representado pela carruagem e pela comitiva do

oficial etíope. Sem dúvida, era algo formidável, luxuoso, confortável e adequado a um oficial da realeza. Esses elementos, que hoje cegam tanta gente (escravidão às riquezas, ao luxo, ao prazer e à ostentação), podem ser consagrados a Deus e servir para sua glória. Não há objeto material que não possa ser transformado em bênção ou em expressão do Reino de Deus. O desprezo radical pelos bens materiais reduz as possibilidades de contar com recursos necessários para cumprir a missão. O que precisamos é de uma mordomia adequada, que os disponibilize ao serviço do Reino de Deus. Como o apóstolo Paulo bem sustentou, é “o amor ao dinheiro”, não o dinheiro em si, “a raiz de todos os males” (1Timóteo 6.10). Por isso, seu conselho aos ricos era não depositar “sua esperança na incerteza da riqueza, mas em Deus, que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação” (1Timóteo 6.17). Vemos o evangelho confrontado com o poder espiritual (v. 31-34). O poder espiritual é representado pelo desejo do coração do etíope. Sem dúvida, tratava-se de um homem honesto e sincero, alguém que estava em busca da verdade. Isso, acima de tudo, deve ser usado da melhor maneira em benefício do Reino de Deus, porque há os espiritualmente famintos, que devem ser alimentados com o Pão da vida; há os espiritualmente sedentos, que precisam beber da água da vida; há os espiritualmente cegos, que precisam ser iluminados com a luz do evangelho; há pessoas vazias, que devem ser cheias da graça de Deus; há pessoas tristes, que devem se alegrar com a alegria do Senhor. Desse modo, quando o servo de Deus tem o evangelho do Reino e prega o Filho de Deus no poder do Espírito Santo, os que

precisam da salvação de Deus acabam caminhando com alegria, depois de encontrar o que precisavam e procuraram (v. 39). Keith H. Reeves: “Para concluir, a história do eunuco etíope demonstra a perícia de Lucas como contador de histórias; ele tece os fios de seu material como em uma tapeçaria. Nessa tela bem trançada, o eunuco mais uma vez destaca o interesse de Lucas pelos que se acham fora da corrente religiosa principal sem ser responsável por ela. A preocupação de Lucas com os pobres e oprimidos, que inclui as mulheres, os enfermos e os etnicamente impuros, é bem conhecida. A história do eunuco etíope é apenas mais um exemplo do amplo interesse social de Lucas. As implicações para o ministério são profundas. O relato em Atos mostra a expansão do círculo do povo de Deus para grupos maiores e mais diversos. Barreiras antes consideradas sagradas, como etnia ou deficiências físicas, são removidas. A definição do povo de Deus é expandida para incluir todos os que confiam em Cristo. Embora pareça óbvio para nós hoje que não excluímos ninguém do Reino por causa de fatores étnicos ou de defeitos físicos, isso não estava claro para a igreja primitiva. Essas mudanças ocorreram lenta e dolorosamente, forçaram a destruição de tabus centenários e exigiram uma completa mudança de paradigma por parte dos primeiros cristãos. Embora Lucas estivesse inclinado a minimizar essas lutas, para mostrar que todos são aceitos por Deus, uma leitura cuidadosa de sua narrativa deixa-as bem patentes. Essas lutas são muito mais pronunciadas nas cartas de Paulo, particularmente em sua carta aos Gálatas. O último capítulo ainda não foi escrito. Cada geração deve encarar, por sua vez, as mesmas questões enfrentadas pela igreja primitiva. O povo de Deus está impondo barreiras para o trabalho do Reino? Seriam as mesmas velhas barreiras, como origem étnica ou algum tipo de deficiência, enfrentadas pela igreja primitiva, ou são novas barreiras ao ministério? Nossa pergunta precisa ser a mesma que Pedro mais tarde dirigiu a seu público mais conservador: ‘Pode alguém negar a água, impedindo que estes sejam batizados? Eles receberam o Espírito Santo como nós!’ (Atos 10.47)”.14 TABELA 8: O Espírito Santo e o obreiro cristão Deus não deixa o obreiro cristão sem recursos para levar adiante a obra que confiou a ele. Deus age em seu servo/serva de maneira poderosa.

1. Deus, pelo Espírito Santo, ensina ao obreiro o que responder às autoridades (Lucas 12.12). 2. Deus, pelo Espírito Santo, ensina ao obreiro todas as coisas e o faz lembrar de sua Palavra (João 14.26). 3. Deus, pelo Espírito Santo, guia o obreiro a toda a verdade (João 16.13a). 4. Deus, por meio do Espírito Santo, revela ao obreiro o que está por vir (João 16.13b). 5. Deus, pelo Espírito Santo, dá a conhecer ao obreiro o que este recebeu dele (João 16.14). 6. Deus, pelo Espírito Santo, liberta o obreiro da lei do pecado e da morte (Romanos 8.2). 7. Deus, pelo Espírito Santo, revela ao obreiro as profundezas de seu ser (1Coríntios 2.10). 8. Deus, pelo Espírito Santo, ensina ao obreiro verdades espirituais em termos espirituais (1Coríntios 2.13). 9. Deus, pelo Espírito Santo, dá ao obreiro os dons de que este precisa para poder servir (1Coríntios 12.7-11). 10. Deus, pelo Espírito Santo, dá ao obreiro a Palavra de Deus, que é sua espada (Efésios 6.17).

1. La diáspora: de experiencia traumática a paradigma eclesiológico, p. 85. 2. The Acts of the Apostles: An Historical Commentary, p. 79. 3. Commentary on the Book of Acts, p. 177. 4. Spreading the Fire, p. 213. 5. The Demise of the Devil: Magic and the Demonic in Luke’s Writings, p. 75. 6. Ibid. 7. Themes from Acts, p. 67.

8. The Demise of the Devil, p. 74. 9. Manual de guerra espiritual, p. 369. 10. Parágrafo 308. 11. The Ministry of the Spirit: Selected Writings of Roland Allen, p. 5. 12. Hechos, in: Justo L. hispanoamericano, p. 155.

GONZÁLEZ

(Org.),

Comentario

bíblico

13. House Church and Mission: The Importance of Household Structures in Early Christianity, p. 106. 14. The Ethiopian Eunuch: A Key Transition from Hellenist to Gentile Mission, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 120-121.

CAPÍTULO 6

A CONVERSÃO DE SAULO 9.1-31 A vida cristã é uma experiência individual e social. Ser cristão significa viver um relacionamento pessoal com Cristo, mas também ter um compromisso social, nas relações com outros cristãos, no seio da igreja. Na primeira parte desse capítulo (v. 1-9), Lucas faz referência ao relacionamento pessoal de Paulo com Cristo. Na segunda parte (v. 10-19), encontramos o relacionamento de Paulo com seus irmãos cristãos (Ananias e demais discípulos de Damasco). Na terceira parte (v. 20-25), vemos Paulo como membro comprometido da comunidade cristã de Damasco. Na quarta parte (v. 26-30), Paulo se apresenta como um cristão que busca encontrar seu lugar na igreja de Jerusalém. Lucas já nos apresentou Saulo como testemunha e participante da morte de Estêvão e perseguidor dos cristãos. Mais adiante, ele nos informará que Paulo era fariseu (23.6), educado pelo famoso Gamaliel (22.3) e cidadão romano de nascimento (22.28). O cap. 9 registra o primeiro dos três relatos da conversão de Paulo encontrados nesse livro (22.1-16; 26.9-18). Além disso, nas próprias cartas de Paulo, há várias passagens que se referem à sua conversão e aos acontecimentos subsequentes. Desse ponto em

diante, Paulo se torna a personagem central da obra de Lucas e o modelo por excelência do ministério apostólico. De igual modo, o cristianismo começou a adquirir uma nova identidade, em grande parte em razão do ministério de Paulo. Deixou de ser um movimento de oposição à hierarquia religiosa judaica, centrada no templo de Jerusalém, para se tornar um movimento com perfis próprios. Daqui em diante, será conhecido como “o Caminho” (gr. tēs hodoū). Justo L. González: “É a primeira vez que Atos se refere à fé cristã como ‘Caminho’ (9.2). Não fará isso outra vez senão em 19.9 e depois em 19.23, 22.4, 24.14 e 24.22. Várias dessas referências estão relacionadas com a conversão de Paulo, e todas remetem a algum aspecto de seu ministério. Isso é interessante, uma vez que em suas cartas Paulo nunca se refere à fé cristã como ‘o Caminho’ ”.1

A expressão “o Caminho” funciona praticamente como uma marca registrada do cristianismo. É típico de Lucas em Atos descrever a fé cristã como o novo caminho de vida (19.9,23; 22.4; 24.14,22), o caminho da salvação (16.17) ou o caminho do Senhor (18.25). Nos Profetas, a expressão é usada como uma espécie de definição da vida ou da experiência humana (“o caminho para o Senhor”, Isaías 40.3; “o caminho dos justos” e “o caminho dos ímpios”, Salmos 1.6). Convém lembrar que Jesus se autodenominava “o caminho” (João 14.6), única via de acesso ao Pai. A chamada Epístola de Barnabé apresenta a metáfora “Os dois caminhos”, que sempre foi muito popular. Quando eu era criança, na casa dos meus avós maternos havia um quadro colorido, que me impressionava muito. O título era Os dois caminhos e ilustrava em detalhes o curso da vida dos condenados ao inferno e dos que estavam predestinados a ir para o céu.

O RELACIONAMENTO DE SAULO COM CRISTO (9.1-9)

Essa passagem assinala um ponto culminante no livro de Atos. Ele nos apresenta uma expansão definitiva e sistemática do movimento cristão para além dos primeiros círculos e inaugura o avanço das igrejas cristãs nas cidades da Ásia Menor, onde a influência grega era muito forte. Esse movimento é digno de nota, se levarmos em conta o antagonismo entre hebraísmo e helenismo. Esses versículos registram a conversão e o chamado de Saulo de Tarso. Contudo, devem servir de referência a todo o movimento triunfante de Cristo, por meio de seu Espírito e da igreja. Em certo sentido, não era difícil para os cristãos hebreus evangelizar a Judeia. Seus irmãos segundo a carne viviam nessa província, e, embora seja verdade que os primeiros cristãos não agiram de maneira muito sistemática até serem impelidos pela perseguição, também é verdade que não houve maior rejeição religiosa, à medida que os crentes davam testemunho de sua fé na região. Em Samaria, a tarefa foi um pouco mais difícil. Aí pesavam as velhas tradições e os hábitos de séculos, expressos nesta conhecida frase: “Os judeus não se dão bem com os samaritanos”. No entanto, sob a convicção do Espírito, um homem (Filipe) pregou ali cheio do poder de Deus, e Samaria recebeu o evangelho. No entanto, o trabalho mais difícil estava pela frente. Ao chegar às fronteiras da Palestina, os cristãos estabeleceram contato com as antigas cidades da Ásia Menor, nas quais, a despeito de alguns costumes judaicos, predominava forte influência grega. Uma nova atmosfera e um desafio maior os aguardavam no mundo helenístico. Iriam deparar especialmente com o irreconciliável antagonismo

entre hebraísmo e helenismo. O ideal do hebraísmo era a moralidade, a justiça, a religião e o respeito à Lei. O ideal do helenismo era a cultura, a liberdade da vida humana, a perfeição dos poderes da natureza e o jogo livre de todas as forças da vida pessoal. Se compararmos esses ideais pela perspectiva cristã, perceberemos que não são contraditórios, mas complementares. Contudo, na época eles eram vistos como antagônicos. Os elementos aqui mencionados são fundamentais como base para entender a conversão e a vocação de Saulo de Tarso, hebreu de hebreus, mas com formação helenística e cidadania romana. A conversão de Saulo de Tarso (9.1-9)

A experiência de Saulo na estrada para Damasco assinala um ponto culminante no relato de Lucas. A obra destrutiva de Saulo em Jerusalém e nos arredores estava alcançando sua maior eficácia. Quatro elementos se destacam em sua experiência de conversão. Sua culpa. Saulo não conseguia deixar de se sentir culpado pela morte de Estêvão e pelo que estava fazendo ao perseguir seus correligionários. Assim, tentou esconder o remorso de sua consciência aumentando a intensidade da perseguição. Sua atitude. O v. 1 descreve seus sentimentos para com os “discípulos do Senhor” (gr. eis toùs mathētas toū kyríou). É a primeira vez que a palavra “discípulos” é mencionada em Atos. A frase “ainda respirava ameaças de morte” (gr. empnéōn apeilēs kaì fónou) pinta um retrato de Saulo no qual as ameaças e os assassinatos se tornaram o fôlego de vida desse homem. Na ocasião, Saulo parecia um cavalo de guerra ou um touro de combate bufando ao sentir o cheiro de batalha ou sob a tensão da

carga. Ele soprava sobre os discípulos que restavam a morte que ele já havia inalado da morte de outros. Desse modo, ele exalava o que inalara, ou seja, a morte. Archibald T. Robertson: “Jacó disse: ‘Benjamim é um lobo predador’ (Gênesis 49.27). Aqui o maior filho de Benjamim estava cumprindo essa profecia. O gosto do sangue na morte de Estêvão fora agradável ao jovem Saulo (8.1) e agora ele se deleitava com o assassinato dos santos, tanto homens quanto mulheres. Em 26.11, Lucas cita Paulo dizendo que estava obcecado por eles”.2

Seu ódio. Seu ódio pelos cristãos por certo era muito grande. De outro modo, não se explica como um fariseu fanático como ele tenha contatado o sumo sacerdote, que era um fanático saduceu, para pedir documentos que o autorizassem a perseguir judeus da Diáspora, ou seja, fora de Palestina. Júlio César e Augusto haviam concedido ao sumo sacerdote e ao Conselho judaico jurisdição sobre os judeus em cidades estrangeiras, mas o clero judaico oficial de Jerusalém nem sempre foi reconhecido em todas as comunidades judaicas fora da Judeia. Paulo relata que recebeu dos sacerdotes a autorização necessária para ir a Damasco (26.10) e que foram as mais altas autoridades religiosas dos judeus que o habilitaram a empreender sua ação perseguidora, ou seja, o sumo sacerdote e todo o Sinédrio (22.5). O texto informa que o Senhor está ciente do sofrimento de seus filhos. Não é algo que aconteça fora de seu controle. A menção do sumo sacerdote (Caifás, ou mais provavelmente Jônatas ou Teófilo, filhos de Anás) ajuda a estabelecer a data da conversão de Saulo entre os anos 33 e 38, mais seguramente no ano 35. Como já foi dito, causa espanto que um fariseu como Saulo tenha negociado a autorização para perseguir os cristãos com um saduceu, como era o

sumo sacerdote. Isso mostra a medida extrema de seu ódio contra os cristãos. Portanto, o primeiro responsável pela perseguição aos cristãos foi o fariseu Saulo, embora tenha contado com a cumplicidade e com a autorização do clero saduceu e do Conselho judaico, que fizeram vista grossa a tamanha fúria e a tão tremenda injustiça. Com as “cartas de extradição” (gr.  epístolas) das autoridades judaicas em mãos, Saulo dirigiu-se a Damasco, a fim de prender todos os “que pertencessem ao Caminho”. Nessa ação hostil, Saulo não poupou ninguém, já que reprimiu todos os crentes, “homens ou mulheres” (gr. ándras te kaì gynaīkas). Observe-se a ênfase de Lucas nas mulheres em sua obra (Lucas-Atos) e, nesse caso, como vítimas de perseguição (cf. 8.3; 9.2; 22.4). TABELA 9: O caminho A expressão “o Caminho” contém uma riqueza de significado muito particular na Bíblia. 1. O caminho dos justos (Salmos 1.6). 2. O caminho de santidade (Isaías 35.8). 3. O caminho para o Senhor (Isaías 40.3). 4. O caminho estreito (Mateus 7.14). 5. O caminho, a verdade e a vida, em referência a Jesus (João 14.6). 6. O reto caminho do Senhor (Atos 13.10). 7. O caminho da salvação (Atos 16.17). 8. O caminho do Senhor (Atos 18.25). 9. O novo e vivo caminho (Hebreus 10.20). 10. O caminho justo e verdadeiro (Apocalipse 15.3).

Sua conversão. Muitos crentes chegaram à fé salvadora após um longo processo. É o caso de quem nasceu em um lar cristão e conheceu Jesus desde pequenos. Em casos assim, não é possível indicar a data de conversão ou dizer com precisão o dia e a hora em que se deu o novo nascimento. Em outros casos, como aconteceu com Saulo, vive-se essa experiência de forma dramática, a ponto de ser possível dar detalhes sobre as circunstâncias (“caso encontrasse ali homens ou mulheres que pertencessem ao Caminho, pudesse levá-los presos para Jerusalém”), o lugar (“para as sinagogas de Damasco”) e a hora (“por volta do meio-dia”, 22.6). Uma experiência dramática. Ao ouvir a voz que o interpelava, Saulo entendeu que era a voz de Jesus e que este era o Messias e o Senhor. A partir desse encontro redentor, a vida desse homem começou a mudar radicalmente. A viagem estava quase no fim quando, ao meio-dia (22.6; 26.13), o grupo foi cercado por um brilho repentino do céu. Paulo caiu ao solo (não sabemos se ele caminhava ou ia a cavalo) e ouviu uma voz em aramaico (26.14a). “Saulo” é a forma hebraica antiga de seu nome. Parece que é típico de Jesus (ou de Lucas como escritor?) chamar as pessoas pelo nome duas vezes (v. Lucas 10.41; 22.31). “Senhor”, respondeu ele, reconhecendo que assim estava falando a alguém honrado. Mais tarde, esse nome se tornou a palavra por excelência usada por Paulo para se referir a Cristo. O “eu” na resposta de Jesus é muito enfático, e o uso repetido do verbo “perseguir” no presente enfatiza o erro de Saulo em seu propósito de destruir os cristãos. Todo o horrível peso de seu pecado caiu sobre ele naquele instante. Saulo provavelmente já tinha visto Jesus durante seu ministério terreno, e, por certo, o teria tratado tão severamente como até então

costumava fazer com seus seguidores (2Coríntios 5.16). Ele também conhecia a fé dos cristãos, pois havia testemunhado o martírio de Estêvão e era membro do Conselho judaico. Em sua pergunta e na resposta de Jesus, há forte ênfase no verbo “fazer”, que ressalta o valor de uma fé dinâmica, uma fé em ação. Um homem de ação como Paulo precisava de uma palavra como essa, que fazia referência a seu futuro trabalho, não à sua salvação (v. 22.10,16). Uma experiência pessoal. Saulo teve um encontro pessoal com Jesus que transformou sua vida para sempre e lhe deu um novo rumo. Ele não foi o único a passar por uma experiência desse tipo. Os evangelhos registram o testemunho de muitas pessoas que tiveram um encontro pessoal com Jesus e experimentaram também uma mudança radical em sua vida. A lista é longa, mas vale lembrála, ainda que incompleta: Levi ou Mateus (Mateus 9.9-13); o endemoninhado geraseno (Marcos 5.1-20); Jairo (Marcos 5.2123,35-43); a mulher com hemorragia (Marcos 5.24-34); a mulher siro-fenícia (Marcos 7.24-30); o jovem rico (Marcos 10.17-22); o cego Bartimeu (Marcos 10.46-52); o centurião romano (Lucas 7.110); a mulher pecadora (Lucas 7.36-50); Zaqueu (Lucas 19.1-10); Filipe (João 1.43,44); Natanael (João 1.45-51); Nicodemos (João 3.1-13); a samaritana (João 4.4-26); o paralítico no tanque de Betesda (João 5.1-15). Ninguém pode ser salvo ou experimentar uma nova vida sem ter um encontro pessoal com Jesus, o Salvador e Senhor. Sua consagração. Além de obter a salvação de sua vida e o perdão de seus pecados, Saulo encontrou a solução para sua vida de serviço a Deus, à semelhança do profeta Samuel (1Samuel

3.9,10). Ao perguntar: “Senhor, o que queres que eu faça?” (v. 6, RVR), ele estava oferecendo toda a sua vida ao Senhor em serviço consagrado (22.10). Sua dedicação e a mudança de atitude foram totais ao longo do caminho, mas o sentimento de reajuste e de paz em sua nova postura veio mais lentamente, como era de esperar. Durante a experiência entre Jesus e Saulo, todos os que o acompanhavam também haviam caído ao chão (26.14). No v. 7, ficaram atônitos. Tinham visto a luz (22.9; 26.13) e ouvido a voz (v. 7; de acordo com 22.9, “não entenderam a voz”), mas não viram a imagem de Jesus (v. 7, “não viam ninguém”) nem entenderam o que a voz estava dizendo a Saulo. Aparentemente, há uma contradição entre o v. 7 e 22.9, entre “ouviam” e “não entenderam”. No v. 7, o verbo está no caso ablativo (destaca a mera sensação de ouvir), ao passo que em 22.9 o verbo está no caso acusativo (implica ouvir entendendo o que se ouve).3 É provável que os companheiros de Saulo tenham ouvido a voz, mas sem entender o que ela dizia (v. Daniel 10.7). A frase “por três dias ele esteve cego” é uma alusão ao período em que Jesus passou no túmulo. Saulo ressuscitou de fato para uma nova vida, quando a luz veio novamente sobre ele. Essa experiência de resposta imediata ao chamado de Deus foi clara e específica. Apesar de sua condição de cegueira e de estar atordoado com o ocorrido e assustado com o que ainda iria acontecer em Damasco, Saulo não tinha dúvidas de que o Senhor o havia chamado para uma tarefa única, à qual ele deveria se dedicar com o mesmo fervor e determinação com que se empenhara em perseguir Cristo e seu povo (9.15,16; 22.14,15,17-21; 26.14-18). J. Oswald Sanders: “Desde os primeiros dias de sua vida cristã, Paulo não apenas sabia que era um instrumento escolhido para que Deus comunicasse sua revelação por meio dele, como também tinha uma ideia geral do que

Deus havia planejado para sua vida futura: a) seu ministério o levaria para longe de casa; b) exerceria um ministério especial entre os gentios; c) isso lhe acarretaria muito sofrimento. Pouco a pouco, ele foi se dando conta de que esse chamado não era tanto um novo propósito de Deus para sua vida, mas a culminação de um processo preparatório iniciado antes de seu nascimento”.4

Sua comunhão. A passagem termina informando que Saulo ficou cego por três dias e não comeu nem bebeu. Foi uma ocasião muito especial para sua íntima comunhão com o Senhor. É normal na experiência cristã Deus permitir que passemos por limitações físicas, para que possamos superar a esfera do material e do natural, a fim de ingressar no reino do espiritual e sobrenatural, onde podemos ter um encontro mais íntimo com o Senhor. E. M. Blaiklock: “Saulo foi convertido. Ele seria Paulo, o apóstolo dos gentios. Estava se aproximando da meia-idade, com a vasta tarefa da evangelização mundial pela frente. Deus não parecia estar com pressa. Catorze anos, que Lucas deixa de informar, são mencionados por Paulo (Gálatas 1.15—2.1) como seu período de preparação. Provavelmente, a data mais antiga aceitável de sua conversão na estrada para Damasco é o ano 33. Isso deixaria os anos 33-46 para a visita à Arábia (Gálatas 1.17) e a restauração do homem após a experiência comovente que tivera, e para o ministério inicial em Tarso, Síria, Cilícia e Antioquia, que lhe preparou a mente e o método para a grande investida no mundo pagão. A esplêndida intencionalidade com que Deus forjou sua ferramenta humana é a grande lição desses anos. Os impacientes esquecem-se de que Deus não se limita ao tempo. A conversão foi de longe a influência mais importante na vida de Paulo. Ancestralidade, formação farisaica e educação helenística foram fundidas pela conversão no caráter que o Espírito Santo formou e conformou ao longo dos catorze anos de treinamento. Por fim, no tempo de Deus, a porta se abriu, e os acontecimentos da metade de uma vida adquiriram um significado definitivo e completo”.5 O chamado de Saulo de Tarso (9.1-9)

Saulo nasceu hebreu de hebreus. Tanto o pai quanto a mãe eram hebreus. Não havia mistura em seu sangue, mas ele era de Tarso, cidade grega, a grande cidade universitária de seu tempo. Por volta dos 14 anos de idade, seus pais, ansiosos por não deixar que o jovem Saulo caísse sob as influências helenísticas de Tarso, enviaram-no para cursar o ensino superior em Jerusalém, onde foi treinado sob a tutela de Gamaliel (22.3). Esse homem, nascido em Tarso, recebeu as primeiras e mais fortes influências na atmosfera do helenismo. Sua educação religiosa, porém, veio de seus pais hebreus, que não eram saduceus de corte helenístico, mas fariseus, bem identificados com os ideais do hebraísmo. Assim, Saulo concluiu sua formação em Jerusalém, sob a orientação de um dos maiores mestres da Palestina: Gamaliel. Desse modo, o jovem Saulo foi exposto a um amálgama ideológico maravilhoso: a reunião de forças opostas em uma só pessoa. Esse homem, hebreu de hebreus e fariseu, também era helenístico. A Grécia o havia tocado com sua cultura, seu refinamento, sua poesia e toda a sua glória. Seus pais, em primeiro lugar, e depois seu piedoso e sábio professor Gamaliel legaram a ele a fé monoteísta, a confiança nas Escrituras e uma ética fundamentada na Lei outorgada por Deus. Com tudo isso em mente, podemos retornar a 9.1-9. Esses versículos registram a conversão e o chamado de Saulo. Com relação ao segundo, o texto fala do chamado do Senhor a esse homem especial. Ele seria um instrumento escolhido para levar o evangelho às cidades influenciadas pela cultura grega. Além disso, ele seria o responsável por forjar a fé cristã como a conhecemos em todo o Novo Testamento. Vemos em Saulo a maneira maravilhosa

pela qual o Senhor o preparou antes de chamá-lo para o serviço e como o capacitou para isso dando-lhe vários dons. Deus não improvisa. Ele chama para o ministério, mas primeiro concede dons e prepara a vida de seus servos. Portanto, analisaremos o homem chamado, o chamado do homem e o homem após o chamado. O homem chamado (9.1,2). Há algumas informações sobre Saulo nos cap. 7 e 8. Somos informados de que ele cuidou das vestes dos que apedrejaram Estêvão (7.58). Desse modo, Saulo foi cúmplice desse crime horrendo (8.1), bem como um dos protagonistas ativos contra os cristãos de Jerusalém (8.3). À luz desses fatos, podemos nos perguntar sobre a mentalidade de Saulo. Qual era o estado de espírito desse homem? No v. 1, somos apresentados a um homem bufando de ódio e que ameaçava os crentes. Observe-se que o advérbio “ainda” sugere certa continuidade nessa atitude, apesar das circunstâncias. Quais circunstâncias? O v. 5, na RVR, mostra o Senhor dizendo: “Dura coisa é para ti recalcitrar contra o aguilhão”. Essa frase não aparece nos melhores manuscritos, mas ainda contém uma grande verdade. O que é esse aguilhão? O que Jesus quis dizer com essas palavras, se é que as proferiu? Sem dúvida, ele queria mostrar a Saulo que havia forças divinas poderosas ao redor dele impelindo-o em determinada direção e que ele estava resistindo a elas. Esse homem, com seu excelente pedigree religioso, estava resolvido a liquidar o que considerava uma heresia cristã. Para isso, obtivera cartas do sumo sacerdote e estava a caminho de Damasco, para pôr os crentes na prisão. Contudo, estava investindo contra o aguilhão, como um boi incomodado por picadas de mutucas. Ou seja, estava lutando contra suas melhores convicções.

Por que dizemos que Saulo estava lutando contra as próprias convicções? Lembremo-nos de que o conflito de Estêvão era com os judeus helenísticos, não com os judeus hebreus (6.8,9). Todo o discurso de Estêvão (cap. 7) foi um protesto contra o judaísmo helenístico, não contra o mais piedoso e bíblico farisaísmo, que representava a defesa de uma religião mais espiritual contra o racionalismo postulado pelos saduceus. Ou seja, Estêvão estava lutando contra os saduceus, principalmente contra sua falta de fé na ressurreição. Saulo ouviu a defesa de Estêvão e deve ter concordado com ele. No entanto, foi cúmplice de seu assassinato, apesar de Estêvão, em sua morte, ter confirmado as convicções de Saulo quanto ao espiritual e ao sobrenatural da fé. Saulo, portanto, estava em contradição consigo mesmo. No entanto, sacrificando os próprios princípios religiosos, ele foi procurar o sumo sacerdote (saduceu) a fim de obter o endosso deste para perseguir pessoas que defendiam a maioria de suas convicções, entre as quais a crença na ressurreição e na vida após a morte. Desse modo, sentindo-se afligido por essas forças do passado e por essa perturbação mental, e atormentado por  violar uma convicção crescente nele, foi que Cristo o chamou. O chamado do homem (9.3-6). A primeira fase do chamado de Saulo foi a presença de uma grande luz do céu (v. 3). Era uma luz mais poderosa que a do sol. Foi um momento repleto de resultados tremendos para a totalidade do programa de Cristo com relação ao mundo. Em seguida, vieram as perguntas em forma de diálogo (v. 4,5). Observem-se as perguntas e as respostas. Sempre que o Senhor chama alguém de maneira pessoal, surgem perguntas que exigem

respostas. O Senhor não nos deixa enterrados em nossas interrogações, mas responde com sabedoria a tudo que precisamos saber para que sejamos ativados em seu serviço. 1) O Senhor pergunta a Saulo: “Saulo, Saulo, por que você me persegue?” (Saoul Saoúl, tí me diōkeis). O versículo apresenta a realidade de que Cristo e a igreja são um. Perseguir a igreja é perseguir Cristo. Paulo desenvolveria essa verdade sobre a unidade essencial entre o Senhor vivo e seu povo em várias de suas cartas. Outro possível significado da frase é: “Estou acima de você, no céu. Você não pode abalar minha obra. Você está combatendo nada menos que a marcha do plano redentor de Deus na história humana”. 2) Saulo pergunta ao Senhor: “Quem és, Senhor?” (gr. tís eī, kýrie). A palavra “Senhor” (kýrios) revela o reconhecimento de uma mente treinada diante do supremo e do divino. Os preconceitos se foram, e o antagonismo se diluiu, ante a manifestação divina. A pergunta sobre a identidade da pessoa que o interpelara no caminho de Damasco foi fundamental para Saulo. Supõe-se que ele já estava servindo ao Senhor (Yahweh), mas era necessário que reconhecesse seu tremendo erro e sua contradição, pois estava agindo de maneira equivocada. Saulo precisava entender que o Cristo a quem ele perseguia era o único Senhor. 3) O Cristo vivo lhe responde: “Eu sou Jesus, a quem você persegue”(gr. egō eimi Iēsoūs hòn sỳ diōkeis). Quem era Jesus de Nazaré para Saulo? Obviamente, na época Saulo pensava em Jesus apenas como mais um homem morto e infeliz, mas aquele que julgava estar morto revivera (e estava falando com ele!). E aquele que imaginava ser um pobre coitado estava no centro da

glória celestial. Assim, Jesus não fora um falso messias nem um oportunista sedicioso, mas o Cristo prometido pelos profetas e a resposta de Deus para a redenção de toda a humanidade. A RVR adiciona a frase: “Dura coisa é para ti recalcitrar contra o aguilhão”, e parte do v. 6, seguindo o Textus Receptus, que aqui carece de suporte documental sólido. 4) Por fim, Saulo pergunta: “Senhor, o que queres que eu faça?” (gr. tí poiēsō, kýrie; cf. 22.10). Essa pergunta não consta nos melhores manuscritos do v. 6. Observe-se que Saulo rende sua vontade ao senhorio de Cristo e se submete incondicionalmente em obediência. Temos de reconhecer que Saulo, embora equivocado em suas ações, era sincero em sua motivação. Ele não era um fariseu hipócrita, como os muitos que Jesus denunciou durante seu ministério. Na verdade, ele queria servir ao Senhor e agora descobria como fazê-lo não pelos próprios critérios, mas por receber dele ordens diretas. Observem-se os passos e a sequência. Quais foram os passos no chamado de Saulo e, na realidade, no chamado de qualquer crente a quem o Senhor convoca para seu serviço? 1) O Senhor pergunta o que estamos fazendo. Ele não chama desocupados, mas questiona os planos e os projetos nos quais estamos envolvidos. 2) O Senhor se apresenta a nós como Salvador e Senhor. Ele não usa de rodeios nem nos ilude. 3) O Senhor nos mostra as possibilidades de uma vida inteiramente consagrada a ele. 4) O Senhor põe no coração de quem chama um ideal de serviço. 5) O Senhor nos envia a cumprir uma missão. O homem após o chamado (9.7-9). Jesus deu apenas uma ordem a Saulo, e muito clara: “Levante-se, entre na cidade; alguém dirá o

que você deve fazer” (v. 6). Este é o método do Senhor e parece muito simples, mas o simples não é necessariamente o mais fácil. Estavam esperando por Saulo em Damasco, e quem o esperava eram os que se opunham a Cristo, aqueles que aguardavam seu líder da perseguição contra os “que pertencessem ao Caminho”. Os que pertenciam a Cristo também o esperavam, mas como seu pior inimigo, um homem que respirava a morte deles. A esse homem aguardado com diferentes expectativas em Damasco, o Senhor ordenou que fosse à cidade e ali aguardasse também. Foi assim que Saulo chegou a Damasco: cego, desarmado e impotente, como um escravo de Cristo. Permaneceu assim por três dias, sem comer nem beber, sozinho, pensando, tentando entender o que havia acontecido e procurando digerir o que a voz celestial lhe dissera. O que ele estava pensando? Provavelmente, no que ele mais tarde revelaria em uma de suas cartas: “O que para mim era lucro passei a considerar como perda, por causa de Cristo” (Filipenses 3.7). Saulo estava elaborando sua nova escala de valores. Observe-se como o Senhor estava certo ao escolher esse instrumento humano. O helenismo e o hebraísmo deram as mãos na pessoa de Saulo, que soube levar a fé e a esperança hebraica ao mundo gentio e, assim, inaugurar o cristianismo como o conhecemos. O Senhor chamou Saulo e fez dele o maior dos apóstolos e o construtor do cristianismo. Saulo soube responder ao desafio divino, e sua vida foi um compromisso contínuo de fé e dedicação àquele que o encontrou no caminho de Damasco. Temos recebido o chamado de Deus? O Senhor está nos chamando? Talvez a resposta apressada seja “não”, e com isso provavelmente estejamos agindo como Saulo antes de se encontrar com Jesus, ou seja,

recalcitrando contra o aguilhão da certeza de que, sim, ele está nos chamando. William Booth, fundador do Exército de Salvação, diz sobre o assunto: “O que você acha? ‘Não, não fui chamado’. ‘Não ouvi o chamado’, é o que você deveria dizer. Ele está chamando você desde o momento em que perdoou seus pecados, se é que você foi perdoado, implorando que você seja seu embaixador. O Senhor está chamando você para sua obra? Por que não atende a seu chamado? Diga: ‘Senhor, o que queres que eu faça?’. Ele iluminará a sua vida e lhe mostrará o que fazer”. F. F. Bruce: “Talvez o paralelo moderno mais comovente ao relato da conversão de Paulo seja a história de Sundar Singh sobre sua conversão, após um período de amarga hostilidade ao evangelho. Ele orava em seu quarto, de manhã cedo, quando viu uma grande luz. ‘Enquanto eu orava e olhava para a luz, vi a forma do Senhor Jesus Cristo. Ele tinha uma aparência de grande glória e amor. Se fosse alguma encarnação hindu, eu teria me prostrado diante dela, mas era o Senhor Jesus Cristo, a quem eu havia insultado dias antes. Senti que uma visão como aquela não poderia vir da minha imaginação. Então, ouvi uma voz dizendo em hindustâni: Por quanto tempo você irá me perseguir? Vim para salvá-lo. Você tem orado para saber o caminho certo. Por que você não o toma? Então, o seguinte pensamento me veio à mente: Jesus Cristo não está morto, mas vive e deve ser ele mesmo. Então, caí a seus pés e senti uma paz maravilhosa, que não pude encontrar em nenhum outro lugar. Era a alegria que eu queria ter. Quando me levantei, a visão havia desaparecido por completo, mas depois que ela se foi a paz e a alegria permaneceram comigo desde então’. Há várias circunstâncias que tornam difícil descartar a experiência de Sundar Singh como um sonho ou como o efeito da auto-hipnose. Também é interessante atentarmos para o que ele recorda: ‘Na época, ele não conhecia a história da conversão de Paulo; embora, é claro, em um caso desse tipo não se possa confiar implicitamente na memória humana’. Aqui também não podemos avaliar adequadamente o relato do Sadhu sobre sua experiência sem levar em consideração a vida notável que resultou desde então e os sinais extraordinários que acompanharam seu ministério”.6

O RELACIONAMENTO DE SAULO COM SEUS IRMÃOS CRISTÃOS (9.1019)

Não sabemos como ou quando o evangelho cristão chegou à cidade de Damasco. Contudo, parece evidente que, quando Saulo chegou à cidade, cego e abalado com a experiência que tivera no caminho, já havia uma comunidade cristã estabelecida no local (v. 19). As novas convicções de Saulo (9.10-19)

Depois de ter se encontrado com o Cristo vivo na estrada para Damasco, três convicções inevitavelmente tornaram-se óbvias para Saulo. Uma religião morta. Apesar de seu zelo religioso, suas credenciais institucionais superiores e a convicção de estar fazendo a vontade de Deus (Romanos 9.4,5; 10.2-4), sua vida e suas atividades no judaísmo estavam agora sob o julgamento de Deus. Uma voz do céu o havia corrigido, e não havia mais nada que ele pudesse fazer ou dizer. Ele se apegou tenazmente à Lei mosaica, como se ela possuísse uma autoridade intrínseca e definitiva, mas não se deu conta de que a Lei possuía apenas uma autoridade instrumental e não era um fim em si mesma. Ou seja, a Lei fora outorgada como guia para levar a humanidade à fé em Jesus Cristo (Gálatas 3.1924). No entanto, agora que Cristo tinha vindo e que a mensagem do evangelho havia sido proclamada, rejeitar aquele de quem a Lei falava e venerar a letra acima da Pessoa, que era seu objeto, significava para Saulo retornar “àqueles mesmos princípios elementares, fracos e sem poder” (Gálatas 3.25—4.11).

Um Cristo vivo. Saulo não podia escapar à conclusão de que o Jesus a quem ele perseguia ressurgira, havia sido exaltado e de, alguma forma, estava associado a Deus Pai, a quem Israel adorava. Por isso, teve de rever toda a sua avaliação sobre a vida, sobre o ensino e a morte do Nazareno, porque era indiscutível que Deus o havia vindicado. Desse modo, em vez de desacreditar Jesus como impostor e amaldiçoá-lo como criminoso, Saulo viu-se forçado a concordar com os cristãos em que a morte de Cristo na cruz fora, na verdade, a provisão de Deus para o pecado humano e ocorrera em cumprimento das profecias. De igual modo, não teve escolha senão reconhecer que a ressurreição de Cristo, também em cumprimento das profecias, foi a prova desses fatos e concedeu vida a todos os que o receberam como alguém vivo (1Coríntios 15.3-11). Ao se comprometer com o Senhor ressuscitado, ele descobriu 1) que a antiga tensão entre a promessa da aliança e seu cumprimento antecipado havia chegado ao fim e 2) que a verdadeira justiça e a comunhão íntima com Deus eram possíveis por meio do Messias Jesus. Uma nova vida. Saulo estava bem ciente de que, a partir de seu encontro com o Cristo vivo, havia começado uma nova vida para ele. Todo o seu projeto de vida agora tomava um novo rumo. As muitas páginas de seu impressionante currículo agora serviam apenas de papel usado, no verso das quais escreveria uma história de vida diferente. Ele havia sido designado por Jesus Cristo para ser apóstolo entre os gentios, a fim de lhes comunicar a mensagem do Senhor crucificado e ressuscitado e levá-los à unidade do corpo de Cristo (Romanos 11.13; 15.16; Gálatas 1.11-16; Efésios 3.8). Saulo (mais tarde Paulo) ainda não fazia ideia de que ele diferia dos

primeiros apóstolos quanto ao conteúdo do evangelho. Contudo, havia a convicção estabelecida e firme, refletida em seus escritos, de que o plano da história da redenção lhe fora apresentado de uma nova perspectiva. Ele se referia a isso como “meu evangelho” (Romanos 2.16; 16.25), afirmando sempre que esse evangelho viera a ele por meio de uma revelação dada por Jesus Cristo (Gálatas 1.1,11,12; Efésios 3.2,3). Embora, por meio de outras visões e circunstâncias providenciais, ele tenha entendido com maior clareza que o evangelho envolve a plena igualdade de judeus e gentios perante Deus e a legitimidade de uma abordagem direta ao mundo gentio na missão cristã, era seu hábito relacionar sua comissão aos gentios, firme e diretamente, à sua conversão. Uma oração diferente. “Ele está orando” (gr. idoù gàr proseúchetai). Ananias (v. 10) é mencionado apenas nessa passagem e em 22.12. O nome era comum (5.1; 23.2) e provém do hebraico Hananiah, que significa “Yahweh mostra sua graça” (v. Daniel 1.6). Esse homem tinha boa reputação entre os cristãos e os judeus (22.12). Ele teve uma visão, ou seja, uma representação da realidade enquanto estava acordado, não dormindo (sobre o caso oposto, v. Daniel 7.1). Chamam a atenção os detalhes das palavras de conhecimento (1Coríntios 12.8) que Saulo e Ananias receberam em visão simultânea. Desse modo, Deus respondeu à oração de Saulo por meio de um instrumento humano. O Senhor sempre opera seus milagres mais surpreendentes por meio de instrumentos humanos simples e humildes. De acordo com a indicação precisa do Senhor, Ananias teria de ir à casa de certo Judas, na rua chamada Direita. A rua recebeu esse nome para diferenciá-la de outras que eram curtas e sinuosas. A

outra cidade mencionada é Tarso, situada a leste da planície da Cilícia, onde o rio Cydnus corre impetuosamente. Estrabão observa que Tarso era tão famosa quanto Atenas e Alexandria em termos de filosofia e educação. Saulo tinha crescido ali. O chamado missionário de Saulo (9.10-19)

É interessante que o Senhor falou diretamente a Saulo de Tarso no caminho para Damasco em sua experiência de conversão, mas ordenou a Ananias que apresentasse a mensagem de seu chamado missionário. Duas questões se destacam aqui. 1) O chamado missionário de Saulo veio imediatamente após sua conversão. 2) Deus escolheu usar outra pessoa para entregar a mensagem em vez de falar diretamente a Saulo. A segunda questão é muito significativa. Ananias sabia ouvir o Senhor e falar com ele e aparentemente estava acostumado a obedecer, mesmo em circunstâncias perigosas ou difíceis de entender. Ele também era conhecido como um observador devoto da Lei judaica e um membro muito respeitado na comunidade judaica de Damasco (22.12). Isso daria credibilidade ao chamado que ele estava prestes a comunicar, não só ao próprio Saulo, mas também a toda a comunidade dos crentes damascenos. Muitos latino-americanos que receberam um chamado missionário e que hoje participam ativamente de missões transculturais em várias partes do mundo encontraram orientação, ânimo e consolo na experiência do chamado missionário de Saulo. Cinco considerações se destacam quando lemos esses versículos como ilustração de um chamado para a missão como o que Saulo recebeu.

O fundamento do chamado missionário. O chamado missionário divino tem um fundamento, que é a soberania de Deus. Muitos crentes latino-americanos se perguntam se Deus continua a chamar homens e mulheres para as missões. À luz da experiência de Saulo e de milhares em nossos dias, a resposta é afirmativa. Deus está chamando pessoas para os campos que já estão brancos para a colheita. O movimento missionário não morreu nem está em crise. Há alguns anos, o eixo mudou do hemisfério norte para o hemisfério sul, embora esteja mais dinâmico do que nunca. O tempo das missões modernas acabou, mas agora chegou o tempo das missões globais. E não se trata de uma questão puramente emocional, porque o chamado divino está acima das emoções humanas. É a soberania de Deus sobre a vida dos crentes o que está por trás da escolha de alguns membros do corpo de Cristo para serem enviados até os confins da terra como missionários. A certeza do chamado missionário. Quando Deus chama alguém para as missões, ele não deixa dúvidas quanto à autenticidade de seu chamado. Muitos se perguntam como ter certeza desse chamado antes de embarcar na aventura missionária. A experiência de Saulo mostra que Deus usa meios diferentes, até mesmo com a mesma pessoa, e que, após a comunicação inicial do chamado, ele o confirma e reconfirma. Para isso, devemos estar abertos a visões, revelações e palavras de conhecimento e de sabedoria, ao conselho e à orientação da igreja local, bem como a outros meios, como a pregação, o ensino, a leitura da Bíblia e a oração. Quando Deus chama, ele o faz de várias maneiras e sempre confirma seu chamado.

O ciclo do chamado missionário. É um processo que, muitas vezes, leva bastante tempo. A experiência de Saulo em conexão com seu chamado durou catorze anos e envolveu muitas etapas. A obediência de Saulo em cada uma delas levou à renovação do chamado e a novas evidências deste, com novas confirmações. O ciclo do chamado missionário é um processo que envolve a comunicação divina com o ser humano e nossa resposta obediente a ela. Trata-se de um processo de crescimento e maturação em obediência, intimidade, relacionamento e ministério. A preparação é parte do processo, mas deve estar envolvida em um ministério ativo. Portanto, além do tempo, o ciclo do chamado missionário exige fé considerável, pois nem sempre se sabe para onde ir, o que fazer ou como ir. Os detalhes parecem vir à medida que a pessoa segue seu caminho andando com o Senhor em um ministério ativo. O ciclo também requer paciência, algo muito desafiador para muitos. O candidato a missionário transcultural deve aprender a esperar, como Saulo em Damasco. O caráter do chamado missionário. O chamado missionário é intensamente pessoal. Deus conhece cada ser humano em particular mesmo antes do nascimento e se comunica intimamente com ele. O relacionamento com Deus faz parte da vocação missionária. Assim como Deus chamou Saulo para um relacionamento pessoal e para uma compreensão única da vontade divina, assim também os servos de Deus hoje são chamados da mesma forma. Deus primeiramente convida alguém para um relacionamento íntimo e pessoal e, como resultado, chama-o para dar testemunho a outros na missão. O chamado missionário é uma experiência muito pessoal.

A comunidade do chamado missionário. Deus nos convoca para as missões, mas ele o faz no âmbito da comunidade de fé. Este é o outro lado da moeda. Como pessoas, somos parte de uma família, e Deus parece ter prazer em usar outros membros da família para comunicar e confirmar o chamado missionário de alguns. Na experiência de Saulo, Deus usou cristãos maduros para orientá-lo e para ministrar-lhe. São notáveis em sua experiência os lugares importantes de cada congregação local (Damasco, Jerusalém e outros locais) e o fato de que, após catorze anos de preparação, uma igreja local de Antioquia ter sido a primeira a confirmar seu chamado e, em seguida, enviá-lo com Barnabé ao campo missionário. Para Saulo, o mais importante do chamado missionário que recebeu foi o que o Senhor lhe revelou e confiou como a tarefa à qual ele deveria dedicar toda a vida. Deus o havia chamado “para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” (v. 15). Para conseguir isso, ele teria de pagar um alto preço. O Senhor disse: “Mostrarei a ele quanto deve sofrer pelo meu nome” (v. 16). Sua personalidade como apóstolo e fiel seguidor de Jesus Cristo ficaria ofuscada diante da missão que Deus lhe confiara. Talvez por isso os relatos de sua conversão apresentem alguma diferença entre si. Contudo, não há tal diversidade nos relatos de sua vocação missionária. Em Cristo, Deus o havia transformado em uma nova pessoa, para que, cheio do Espírito Santo, ele fosse às nações com a mensagem do evangelho. Günther Bornkamm: “A partir de agora, não iremos considerar negativo o fato de que Paulo, ao falar de sua conversão e de sua vocação, se mostra esquivo e econômico nas palavras. É precisamente na forma em que descreve a mudança de sua vida que se manifesta o poder histórico da

causa do evangelho a ele revelado e confiado. Isso confirma mais uma vez até que ponto a única coisa verdadeiramente importante para ele era a missão que havia recebido, não sua pessoa”.7

O RELACIONAMENTO DE SAULO COM A IGREJA DE DAMASCO (9.2025)

Os três anos que se seguiram à sua conversão foram passados em Damasco (v. 19-22), importante cidade da “Arábia” bíblica, e arredores. De acordo com a referência paulina à região (Gálatas 1.17,18), tratava-se do território governado pelos nabateus, cuja cidade principal em várias ocasiões foi Damasco. Durante esse tempo em Damasco, Saulo pregou que Jesus era o Filho de Deus e o Messias (v. 20,22) e, ao final de sua estada ali, viu-se forçado a deixar a cidade dentro de um cesto baixado por uma abertura na muralha (v. 23-25; 2Coríntios 11.32,33). Esses versículos já mostram Saulo como pregador. Um pregador dedicado (9.20-25)

É surpreendente a rapidez com que Saulo se envolveu no ministério da pregação. De acordo com o v. 20, “logo começou a pregar” (gr. euthéōs, “em seguida”, “imediatamente”, “no mesmo instante”, “de pronto”). Uma explicação para esse imediatismo no início de seu ministério como pregador do evangelho é o fato de que Saulo era um homem muito bem preparado e profundo conhecedor das Escrituras. Além disso, como rabino, ele conhecia muito bem as técnicas de comunicação da mensagem e do ensino. Sem dúvida, ele teve de rever seus apontamentos, mas nesse processo o Espírito Santo e sua comunhão pessoal e íntima com Jesus o ajudaram. Assim, pouco tempo depois, Saulo começou a pregar nas sinagogas que “Jesus é o Filho de Deus” (gr. Iēsoūn hóti oūtos estin

ho huiòs toū theoū, v. 20) e que “Jesus é o Cristos” (gr. hōs dè eplēroūnto hēmérai hikanaí, v. 22). Como se pode perceber, a estratégia de iniciar o testemunho do evangelho na sinagoga local da cidade foi sua marca registrada desde a primeira hora de seu serviço cristão. A essa altura, parece que os cristãos ainda participavam da adoração nas sinagogas (cf. v. 2), e Saulo aproveitou sua condição de rabino para exercer nas sinagogas de Damasco uma tarefa diferente e oposta à que o trouxera ali. Seu objetivo era provar que Jesus era e é o Filho de Deus e o Messias. Observe-se que entre os v. 22 e 23 há um período de quase três anos, no qual Saulo se retirou para o lugar que ele denomina “Arábia” em Gálatas 1.17,18a. Lucas não menciona isso, o que é de admirar. Em todo caso, Damasco, nos tempos de Paulo, estava sujeita ao rei da Arábia Pétrea, com a qual a Arábia fazia fronteira a leste. Quando se tornou clara a convicção de que o Senhor o usaria entre os gentios, Saulo sentiu a necessidade de corrigir toda a sua maneira de ser para ajustá-la à nova verdade que havia descoberto. William M. Ramsay: “Lucas divide a estada de Paulo em Damasco em dois períodos: uns poucos dias de residência com os discípulos (9.19) e um longo período de pregação (v. 20-23). Repousar um pouco no campo, recuperandose do grave e estafante efeito de sua conversão (a vida de um homem não é revertida repentinamente sem graves consequências para sua capacidade física), é o marco que divide os dois períodos”.8

“Decorridos muitos dias” (gr. Hōs de eplēroūnto hēmérai hikanaí) é uma referência ao período na Arábia. A essa altura, os judeus estavam decididos a matá-lo. Aquele que havia sido um perseguidor dos cristãos teve de fugir para salvar a própria vida (v. 23-25). A menção desse incidente em 2Coríntios 11.32,33 indica que o fato se deu em uma época que Damasco era governada pelo rei nabateu

Aretas. No entanto, a numismática damascena prova que a cidade estava sob o governo direto de Roma nos anos 33 e 34 d.C. Isso significa que a partida de Paulo da cidade, da forma que aconteceu, durante a supremacia de Aretas, provavelmente se deu nos anos finais do imperador Tibério, embora seja possível que tenha ocorrido após a ascensão de Calígula, no ano 37. Com base nisso, a conversão de Saulo, como já se sugeriu, pode ser datada em algum momento entre os anos 32 e 35 d.C. Um pregador corajoso (9.20-25)

Os dias em que vivemos e os desafios que enfrentamos exigem dos líderes uma coragem que nem sempre é percebida. Saulo, como cristão recém-convertido e apóstolo aprendiz, deixa-nos um exemplo do que é ser um pregador corajoso. Seu ministério inicial em Damasco, como parte de seu processo formativo para o ministério apostólico aos gentios, ainda ilustra de forma eloquente a coragem que se exige de quem deseja ser um pregador ousado e frutífero no Reino de Deus. Ao analisar esses versículos, percebemos cinco características de um pregador corajoso. Um desejo: pregação (v. 20). Saulo não esperou muito para começar a pregar aos judeus helenísticos, em suas sinagogas, que Jesus era o Filho de Deus. Era muito perigoso para ele fazer isso, porque os judeus eram muito rigorosos com qualquer suspeito de querer abandonar a religião. O que prova que alguém recebeu de fato o Senhor Jesus Cristo como Salvador? Como no caso de Saulo, é o desejo de falar a respeito do Senhor.

Uma diferença: testemunho de mudança (v. 21). Quão surpresos devem ter ficado os incrédulos judeus quando esse homem, que havia perseguido os cristãos com tanto zelo, começou a pregar-lhes a respeito do próprio Cristo! Quanto maior a mudança que o Senhor opera na vida de alguém, maior o impacto de seu ministério. Daí a força e o impacto especiais do testemunho de fé de figuras públicas ou notórias que viviam de maneira dissoluta. Uma demonstração: profecias cumpridas (v. 22). Saulo ficou mais forte espiritualmente, e os judeus foram incapazes de provar que ele estava errado sobre o que dizia do Senhor Jesus. Como Saulo provou que Jesus era o Messias? Sem dúvida, ele lembrou os judeus das profecias a respeito do Messias no Antigo Testamento e mostrou como elas se cumpriram no Senhor Jesus Cristo. A Palavra de Deus tem grande poder para convencer alguém da verdade do evangelho. Uma ousadia: ministério sob ameaça (v. 23,24). Com base no que Lucas registra em Atos, não temos como saber o que aconteceu durante os “muitos dias” mencionados no v. 23. No entanto, Gálatas 1.16,17 mostra que, durante esse tempo, Saulo esteve na Arábia. Talvez tenha ficado a sós com o Senhor ali, para aprender com ele. Em seguida, voltou para Damasco (Gálatas 1.17) e pregou ainda com maior poder e ousadia, a tal ponto que os judeus, irados, “decidiram de comum acordo matá-lo” (gr. synebouleúsanto hoi Ioudaīoi aneleīn autón, v. 23). Saulo, porém, não interrompeu sua pregação e passou a correr grave perigo — até mesmo sua vida estava em risco, pois queriam “matá-lo” (gr. autòn

anélōsin, v. 24). Talvez tenha sido nessa época que ele sofreu as piores aflições de toda a sua vida e seu ministério. Uma despedida: partida com um objetivo (v. 25). Aparentemente, não foi decisão de Saulo, mas dos irmãos em Damasco, tirá-lo da cidade à noite dentro de um cesto por uma abertura na muralha, já que os portões estavam sendo vigiados. Na opinião dos crentes damascenos, Saulo estaria mais seguro se retornasse para Jerusalém. Para Saulo, foi uma despedida humilhante, e ele nunca a esqueceu (2Coríntios 11.30-33). Desse modo, no início de seu ministério Saulo aprendeu que quem quiser viver uma vida piedosa para Cristo será perseguido (2Timóteo 3.12) e precisa estar disposto a “sofrer pelo [...] nome” do Senhor (v. 16). Isso ainda se aplica aos dias de hoje, e devemos estar preparados para tal. TABELA 10: Relacionamentos e deveres fraternos A Bíblia oferece uma boa orientação a respeito de como devem ser os deveres e os relacionamentos fraternos na comunidade do Reino. 1. Os irmãos não devem caluniar os próprios irmãos (Salmos 50.20). 2. Os irmãos devem viver em harmonia com os demais irmãos (Salmos 133.1). 3. Os irmãos devem reconciliar-se com os demais irmãos (Mateus 5.23,24). 4. Os irmãos devem apontar as faltas uns dos outros (Mateus 18.15-17). 5. Os irmãos devem fortalecer os demais irmãos (Lucas 22.32). 6. Os irmãos não devem levar os demais irmãos a cair (Romanos 14.21). 7. Os irmãos devem restaurar os irmãos surpreendidos em pecado (Gálatas 6.1).

8. Os irmãos não devem prejudicar nem tirar vantagem dos demais irmãos (1Tessalonicenses 4.6). 9. Os irmãos devem respeitar e amar uns aos outros (1Pedro 2.17). 10. Os irmãos devem se esforçar para ter afeição fraterna e amor entre si (2Pedro 1.5,7). 11. Os irmãos devem dar a vida pelos outros irmãos (1João 3.16). 12. Os irmãos devem cuidar uns dos outros (Mateus 25.37-40).

O RELACIONAMENTO DE SAULO COM A IGREJA DE JERUSALÉM (9.26-30)

Com sua conversão, Saulo iniciou um processo de transformação teológica gradual, que o levaria do legalismo fariseu ao pleno desenvolvimento de sua compreensão do evangelho da graça de Deus. Percebe-se aqui certa diferença de enfoque entre o registro de Lucas e o que o próprio Paulo descreve em suas cartas, especialmente em Gálatas e Filipenses. Por exemplo, Lucas não diz nada sobre Saulo ter sido chamado para ser apóstolo, nem que ocuparia um lugar ao lado dos Doze, nem que teria os mesmos direitos. Diz apenas que, cego pela luz da visão na estrada, ele foi milagrosamente curado por Ananias, discípulo piedoso segundo a Lei que vivia em Damasco e que mais tarde o batizou (v. 18; 22.12). Lucas faz Saulo retornar a Jerusalém, onde este recebe uma nova visão quando estava no templo. Nessa visão, o Senhor revela que sua missão é ser enviado por ele “para longe, aos gentios” (22.1721). De acordo com esse relato, a ação missionária de Saulo no mundo pagão começou em Jerusalém, como indica essa passagem (9.26-29). Isso está em contraste com o relato do próprio Paulo em Gálatas 1. Günther Bornkamm: “Em tudo isso, sem dúvida, Lucas não quis dar asas à imaginação, mas retrabalhou as tradições que lhe foram transmitidas oralmente, cuja exatidão deve, apesar de tudo, ser julgada, ponto por ponto, à luz das declarações do próprio Paulo. Como um todo, o quadro certamente mostra os traços característicos da concepção de Lucas sobre a história e a igreja. Acima de tudo, porém, Lucas ignora o que, nas palavras do próprio Paulo, foi o mais decisivo na reviravolta que deu sua vida, e é precisamente aí que reside a discrepância teológica mais profunda. O Paulo de Atos permanece até o fim fariseu piedoso e fiel à Lei, ao passo que o autêntico Paulo, por amor a Cristo, abandonou a Lei como caminho de salvação”.9

Saulo chega à igreja de Jerusalém

É bem provável que essa estada em Jerusalém seja a visita de quinze dias sobre a qual ele fala em Gálatas 1.18-20. Após seu regresso a Jerusalém, Saulo tentou conectar-se com a comunidade judaico-cristã helenística dessa cidade. Suas experiências com as tentativas de se integrar à igreja de Jerusalém ilustram a importância do relacionamento de cada crente com a comunidade de fé. Isso está relacionado com o compromisso essencial do crente com a igreja local, ou seja, a igreja que Jesus Cristo tem em cada cidade (igreja da cidade), quanto a membresia ou a compromisso com ela. No entanto, o ministério aos judeus cristãos helenísticos era negligenciado desde a morte de Estêvão. Saulo ficou com os crentes em Jerusalém e se entregou totalmente à evangelização dos judeus helenísticos. Não é de admirar que tenha acabado enfrentando a mesma oposição que ele mesmo havia liderado em outro momento e parece ter encontrado as mesmas dificuldades que custaram a vida de Estêvão (v. 26-29). Saulo une-se à igreja de Jerusalém (9.26-30)

Quatro pontos se destacam no esforço de Saulo para se relacionar com a igreja local, ou comunidade de crentes, na cidade de Jerusalém. Saulo tentou fazer parte da igreja local (v. 26a). Evidentemente, a igreja de Jerusalém não tinha interesse em passar por outra série de acontecimentos como os que se seguiram à pregação de Estêvão. Talvez por isso, ao perceberem o que estava acontecendo com Saulo, eles “o levaram para Cesareia e o enviaram para Tarso” (v.

30). Ou seja, tentaram se livrar dele para não sofrer outra perseguição, dessa vez por causa de Saulo. Embora da perspectiva de Saulo pareça uma forma de rejeição, sua saída forçada estava nos planos de Deus e tinha a aprovação divina, porque o próprio Saulo tivera uma visão no templo, que não só confirmou seu apostolado aos gentios, como também o alertou sobre a necessidade de fugir de Jerusalém (22.17-21). Ser membro da comunidade de fé é natural. Saulo presumiu que, sendo um homem mudado, deveria se relacionar e se unir àqueles cujas vidas também haviam mudado. O processo natural na vida do cristão é arrependimento, fé, conversão e batismo (Marcos 16.16). Pela fé, tornamo-nos membros da igreja universal, ou seja, do corpo dos crentes em Cristo de todos os tempos e lugares. Por meio do batismo, tornamo-nos membros da igreja local, que é muito mais que uma congregação em particular, pois consiste na soma de todas as congregações que dão testemunho em uma cidade. A ideia de uma denominação ou organização eclesiástica é totalmente contrária ao Novo Testamento e corresponde a desenvolvimentos históricos que não têm mais de duzentos e cinquenta anos. Além disso, é preciso ser membro da comunidade religiosa. É impossível viver a vida cristã isoladamente. Você não pode amadurecer como cristão se estiver sozinho (Efésios 3.17-19). “Com todos os santos” deve ser o estilo de vida de todo cristão. Saulo teve problemas para ingressar na igreja local (v. 26b). Por um lado, ele teve de enfrentar também o medo dos irmãos. O texto diz que “todos estavam com medo dele” (gr. pántes efoboūnto autón). Não é de admirar esse comportamento, apesar de terem se passado três anos desde a experiência de sua conversão (Gálatas

1.18). Alguns crentes de Jerusalém ainda não sabiam ou duvidavam das grandes mudanças operadas naquele que fora perseguidor dos crentes. Talvez as disputas jurídicas entre Herodes e Arquelau tivessem cortado as comunicações entre Jerusalém e Damasco. Ou talvez outros irmãos soubessem das mudanças na vida de Saulo, mas simplesmente não estavam dispostos a aceitá-las, por vários motivos: ressentimento, ódio, preconceito, entre outros. Por outro lado, ele teve de enfrentar as suspeitas dos irmãos. O texto diz: “não acreditando que fosse realmente um discípulo” (gr. mē pisteúontes hóti estin mathētēs). As suspeitas eram graves e dolorosas, mas amplamente justificadas. A suspeita (desconfiança) de terceiros é a experiência mais dolorosa, porque fere nossa dignidade, nossa honra e nossa autoestima. No caso de Saulo, foi o resultado natural de ter feito “todo o possível para me opor ao nome de Jesus, o Nazareno” (26.9-11), como ele mesmo declarou em seu depoimento perante o rei Agripa. Saulo tornou-se parte da igreja local (v. 27). Por recomendação de Barnabé (um crente helenístico), Saulo foi recebido na comunidade de fé de Jerusalém, mas foi obrigado a voltar para Tarso, seu lugar de origem (v. 26-30). Em sua jornada, ele passou pela Síria e pela Cilícia (Gálatas 1.21; Atos 15.41). Saulo permaneceu em Tarso cerca de dez anos antes de ser chamado por Barnabé para ajudá-lo em seu ministério em Antioquia. Deve ter sido um período muito difícil para ele, pois havia deixado a cidade como um promissor estudante rabínico e agora retornava como um cristão desprezado e com ideias consideradas contrárias à mais rançosa tradição hebraica.

Richard N. Longenecker: “Paulo não é mencionado no período entre essas experiências em Jerusalém e seu ministério em Antioquia (Atos 11.25-30), embora, por suas palavras em Gálatas 1.21-24, é quase certo que ele continuou com seu testemunho aos judeus dispersos em Cesareia e em sua cidade natal, Tarso. O calor humano dos cristãos de Cesareia, no final de sua terceira viagem missionária, dá alguma credibilidade a uma associação anterior com Filipe e com os crentes da cidade. Muitas das dificuldades e aflições listadas em 2Coríntios 11.23-27 podem ter surgido de situações enfrentadas em Cesareia e em Tarso durante aqueles dias, porque não encontram lugar nos registros das últimas viagens missionárias em Atos. Talvez a experiência mística de 2Coríntios 12.1-4 também seja desse período de sua vida”.10

Observe-se que Saulo foi integrado à igreja da cidade de Jerusalém (igreja local) graças à simpatia de um amigo. Barnabé tomou-o sob sua responsabilidade (gr. epilabómenos autón; lit., “tomou-o pela mão”) e “o levou aos apóstolos”. É interessante observar que Saulo foi conduzido pela mão por seus companheiros até Damasco (v. 8) e por Barnabé aos líderes da igreja de Jerusalém. Quantos temos levado pela mão aos pés de Cristo e à comunhão da igreja? Além disso, esse acontecimento se deu graças ao testemunho de um amigo. Barnabé apresentou Saulo aos apóstolos e deu a Saulo a oportunidade de descrever a eles “como, no caminho, Saulo vira o Senhor” (gr. diēgēsato autoīs pōs en tēi hodōi eīden ton kýrion). Como Barnabé tinha conhecimento dos detalhes da conversão de Saulo? Como passou a acreditar que ele era seu irmão em Cristo? Provavelmente porque o próprio Saulo lhe contou tudo que acontecera. Isso deve ter feito que sua antiga amizade fosse ainda mais fortalecida e a confiança mútua fosse elevada a um novo patamar. Barnabé confirmou o testemunho de que Saulo tinha visto o Senhor, que tinha ouvido a voz do Senhor e que ele havia falado ousada e livremente no nome do Senhor em

Damasco. Diante do testemunho de Saulo, ratificado por Barnabé, poderia haver dúvidas de que o homem era um cristão autêntico? Saulo desfrutou a condição de membro da igreja local (v. 2830). Isso lhe permitiu usufruir cinco elementos próprios da vida da comunidade de fé da cidade, nesse caso a igreja de Jesus Cristo na cidade de Jerusalém. As condições. Sem dúvida, Saulo reunia as condições necessárias para se integrar à comunidade do Reino na cidade de Jerusalém. Observe-se que, ao contrário do que acontece com o denominacionalismo, em que a membresia da igreja local erroneamente nomeada (p. ex., Primeira Igreja Batista, Igreja Metodista do Redentor ou Igreja Presbiteriana da Ressurreição) é um tipo de associação, filiação ou subscrição institucional. Na igreja da cidade (igreja local), a pessoa se integra de forma espiritual e se soma ao número dos santos. Se alguém se filia a determinada congregação na cidade, ele se integra ao mesmo tempo à igreja local ou à igreja da cidade; da mesma forma, se alguém, por sua vez, está integrado à comunidade do Reino em uma cidade, também deve estar vinculado a determinada congregação, não importa o nome. A propósito, isso está de acordo com o Novo Testamento, não de acordo com a eclesiologia do denominacionalismo. Ora, para ser membro da igreja da cidade e, como consequência, para fazer parte de determinada congregação, é preciso atender a certas condições, que são as mesmas da época de Saulo. 1) É necessária a conversão. Isso significa a visão de Cristo como Salvador, que é uma experiência pessoal com ele. Contudo,

também significa a visão de Cristo como Senhor, que envolve um compromisso sincero com ele. 2) É necessária a comunhão. Para isso, é preciso ouvir Cristo, e a maneira mais imediata e simples de fazê-lo é por meio da leitura da Palavra e da recepção da Palavra, mediante o ensino e a pregação. Para isso, porém, também é preciso falar com Cristo, e a maneira mais imediata e simples de fazê-lo é por meio da oração. 3) É necessária a confissão. Isso significa disposição para dar um testemunho verbal e corajoso a respeito do Senhor. Trata-se do testemunho de lábios que todo crente deve estar disposto a compartilhar com outros. Além disso, significa a disposição de dar um testemunho coerente e concreto a favor do Senhor, ou seja, o testemunho de vida que todo crente deve estar disposto a mostrar aos demais. A corporalidade. Ao se tornar membro da igreja local (a igreja de Jesus Cristo na cidade de Jerusalém), Saulo começou a conhecer e a desfrutar a condição de membro do corpo de Cristo naquela localidade. Desse modo, ele se tornou parte, como membro, de um organismo vivo, a igreja, o corpo de Cristo. O Novo Testamento dá muita importância aos crentes como membros do corpo de Cristo, que é a igreja. Ninguém entendeu essa verdade como o apóstolo Paulo e ninguém como ele a ensinou tão claramente — com certeza, à luz de sua experiência. Entre muitas outras lições sobre essa corporalidade cristã, Paulo ensinou sobre o corpo de Cristo: 1) Os membros são muitos, mas não exercem a mesma função (Romanos 12.4). 2) Os membros formam um só corpo de Cristo (Romanos 12.5a). 3) Os membros são unidos uns aos outros (Romanos 12.5b). 4) Os membros do corpo de Cristo são muitos

(1Coríntios 12.14). 5) Os membros foram colocados por Deus no corpo conforme julgou adequado (1Coríntios 12.18). 6) Os membros são muitos, mas o corpo é apenas um (1Coríntios 12.19,20). 7) Os membros que parecem mais fracos são indispensáveis (1Coríntios 12.22). 8) Os membros devem ter igual cuidado uns com os outros (1Coríntios 12.25). 9) Os membros devem participar do sofrimento e da honra uns dos outros (1Coríntios 12.26). 10) Os membros são membros do corpo de Cristo (1Coríntios 12.27). 11) Os membros são membros da família de Deus (Efésios 2.19). 12) Os membros gentios e judeus são membros do mesmo corpo (Efésios 3.6). 13) Cada membro tem uma atividade própria para fazer o corpo crescer e ser edificado (Efésios 4.16). 14) Os  membros devem falar a verdade uns aos outros (Efésios 4.25). 15) Os  membros são alimentados e cuidados por Cristo (Efésios 5.29,30). A comunhão. Como o texto informa, Saulo “ficou com eles” (gr. ēn met’ autōn eisporeuómenos). Não há maior bênção que estar em comunhão com os irmãos na fé (Salmos 133.1). A aceitação que Saulo recebeu da comunidade do Reino em Jerusalém foi a chave para o crescimento espiritual desse homem, que se tornaria o maior apóstolo de todos os tempos. No entanto, ele não ficou quieto, apenas desfrutando a comunhão dos irmãos, mas de imediato se envolveu com ela, apesar de cercado pela hostilidade de seus antigos “patrões” do clero judaico, “e andava com liberdade em Jerusalém, pregando corajosamente em nome do Senhor”. Isso foi de fato muito corajoso da parte dele, mas não teria sido possível sem o apoio de toda a comunidade de fé local. Embora em seu ministério em Jerusalém ele não dependesse da hierarquia do templo nem enfrentasse o cerne do farisaísmo e seu testemunho

estivesse mais direcionado às sinagogas helenísticas, ele estava sempre em uma zona de risco. Os judeus helenísticos adoravam conversar e discutir, e para Saulo era uma oportunidade maravilhosa de falar no nome do Senhor. Contudo, os judeus de língua grega, embora não fossem tão fechados quanto os ortodoxos fariseus e saduceus, não estavam muito dispostos a permitir que Saulo vencesse o debate. Por isso, “tentavam matá-lo” (gr. hoi dè epecheíroun aneleīn autón, v. 29). Em tais circunstâncias, o apoio amoroso e solidário dos irmãos foi essencial à sua sobrevivência. A comunhão cristã não é apenas festa ou simples comunhão social, mas a capacidade de oferecer cobertura aos que sofrem ameaças e fazer o possível para preservar a integridade deles, arriscando tudo. A confiança. O texto diz que Saulo “andava com liberdade em Jerusalém” (gr. ekporeuómenos eis Ierousalēm). O perseguidor, que antes só entrava e saía ou andava por todos os lugares para prender e encarcerar os cristãos, agora o fazia para a bênção deles. O Senhor tem o poder de nos dar vitória no próprio campo de nossas maiores derrotas. A coragem. Era preciso ter muita coragem para pertencer a uma comunidade de pessoas discriminadas e perseguidas e, apesar disso, persistir no testemunho cristão. O texto diz que Saulo falava “corajosamente em nome do Senhor” (gr. parrēsiazómenos en tōi onómati toū kyríou, v. 29). Ele sempre foi um homem apaixonado e valente, só que agora sua coragem estava bem orientada. O Reino de Deus precisa de homens e mulheres de coragem (Lucas 9.62). O companheirismo. O v. 30 informa: “Sabendo disso [que queriam matá-lo], os irmãos o levaram para Cesareia e o enviaram para Tarso”. O espírito de companheirismo traduz-se em solidariedade e

cooperação. Assim que os irmãos souberam do perigo que Saulo corria em Jerusalém (v. 29), ficaram preocupados com ele. Observese que o texto não diz que “Saulo foi para Tarso”, mas que “o enviaram para Tarso”. Os crentes em Jerusalém cuidaram dele. Como precisamos dessa comunhão responsável entre nós (Gálatas 6.2,10)! TABELA 11: Cronologia da vida de Paulo (5-43 d.C.) de acordo com Atos Ano Lugar

5 d.C.

Tarso

Acontecimento

Texto

Circunstâncias

Atos

ANOS DE

Nascimento de Saulo, infância,

7.58;

PREPARAÇÃO

primeira etapa de sua educação.

Filemom 9

17 d.C. 25 d.C. 35 d.C. 35 d.C. 35 d.C. 35

Jerusalém Discípulo do rabino Gamaliel.

Tarso

Aprendeu o ofício de fazer tendas. Já era rabino.

Jerusalém Consentiu na morte de Estêvão.

Jerusalém

Liderou a perseguição contra os crentes. Recebeu cartas autorizando a

Jerusalém perseguição aos cristãos em Damasco. Caminho

d.C. de

Atos 7.57-60 Atos 8.3

Atos 9.1,2

Teve um encontro pessoal com o

Atos

Cristo ressuscitado.

9.3-6

Damasco 35 d.C.

35 d.C.

Ficou cego por três dias. EncontrouDamasco se com Ananias. Foi curado e batizado. Passou vários dias com os Damasco discípulos em Damasco e pregou nas sinagogas.

Atos 9.9-19a Atos 9.19b22

Viajou para a Arábia, onde passou 3538

Arábia

três anos em retiro e comunhão com Gálatas o Senhor. Mudou sua teologia

1.17 ANOS DE

rabínica.

COMUNHÃO 38 d.C.

38 d.C.

38

“Decorridos muitos dias”, retornou a Damasco Damasco, de onde teve de fugir por causa dos judeus.

Jerusalém

Cesareia

d.C. e Tarso 3843 d.C.

Síria e Cilícia

Atos 9.23-25

Esteve em Jerusalém por duas

Atos

semanas e tentou juntar- -se aos

9.26-29;

crentes. Barnabé o apresentou aos

Gálatas

apóstolos.

1.18,19 ANOS DE

Os cristãos de Jerusalém o levaram

Atos

INICIAÇÃO

para evitar repressão.

9.30

MINISTERIAL

Ministrou nessas regiões.

Gálatas 1.21

A SITUAÇÃO DA IGREJA (9.31)

Deus tem muitas maneiras de trabalhar e produzir bênçãos. Os historiadores informam que, na época da morte de Estêvão e da conversão de Saulo, o imperador romano Calígula tentou obrigar os judeus a adorá-lo como um deus. Para isso, colocou uma imagem dele próprio no templo de Jerusalém.11 Esse horror universal que se abateu sobre os hebreus espalhados por todo o império romano fez que as autoridades judaicas de Jerusalém deixassem de se centrar na pequena seita dos cristãos, que o arquiperseguidor Saulo havia tentado exterminar em vão. O resultado prático dessa nova situação foi que cessou a perseguição dos judeus aos cristãos. Isto, por sua vez, significou que os crentes pudessem desfrutar um momento de alívio. A igreja aproveitou essa fase de bonança e avançou no cumprimento da sua missão apostólica, de tal forma que se desenvolveu espiritual e materialmente, intensa e extensivamente “em toda a Judeia, Galileia e Samaria”. Foi assim até o período mencionado em 12.1, quando Herodes Agripa I deu início a uma nova perseguição. A essa altura, Calígula já havia sido substituído por Cláudio, e com este se iniciou a pressão sobre os judeus da Palestina. Foi nesse contexto que Herodes Agripa I renovou a perseguição contra os cristãos, “vendo que isso agradava aos judeus” (12.3; cf. Marcos 15.15). O avanço da igreja (9.31)

Esse resumo sobre a condição e o avanço da igreja é típico de Lucas (2.44-47; 4.32-35), que aqui usa o singular “igreja” (cf. 5.11), caso em que o plural seria o esperado, por ser o habitual e porque

já existiam igrejas na Judeia, na Galileia e em Samaria (Gálatas 1.22; 1Tessalonicenses 2.14). É provável que a referência seja à igreja de Jerusalém em sua dispersão (8.1,3) ou que Lucas use o termo ekklēsía no sentido geográfico ou coletivo, que cubra toda a Palestina. Muito provavelmente, a palavra designa a igreja como corpo de crentes. R. C. H. Lenski: “O fato de esse corpo agora estar espalhado por três províncias não muda o significado de ekklēsia. O vínculo que une todos esses crentes é o da fé. Mesmo que se estenda até os confins da terra, permanecerá simplesmente he ekklēsía. Há um conteúdo espiritual nesse conceito, mesmo quando aplicado apenas à congregação local, porque os crentes genuínos sempre constituem a igreja, sem levar em conta os meros adeptos”.12

Com esse resumo, Lucas encerra seu relato sobre a conversão de Saulo.A perseguição que se seguiu à morte de Estêvão foi se diluindo com a conversão e a partida do principal perseguidor, Saulo de Tarso. Tão grande é a importância que Lucas dá a esse acontecimento que, apesar do espaço limitado, ele o registra com alguns detalhes em outras duas ocasiões (22.1-21; 26.2-29). Nesse versículo, Lucas de alguma forma apresenta um panorama dos fatos ocorridos imediatamente após a conversão do futuro apóstolo. Em seu resumo, o autor descreve a condição e o avanço da igreja na Palestina nesse momento. A igreja tinha paz. O texto diz que a igreja “passava por um período de paz” (gr. eīchen eirēnēn), ou seja, não se sentia mais medo de ser arrastado para a prisão, sofrer torturas e morrer por causa do nome do Senhor. À medida que a perseguição amainava, os crentes começaram a desfrutar uma eirēnē (“paz”) contínua. É provável que muitos dos discípulos tenham voltado para Jerusalém, ao passo que

os apóstolos agora se animavam a organizar circuitos de pregação fora da cidade. A expressão idiomática eīchen eirēnēn (“tinham paz”) aparece no conhecido versículo de Romanos 5.1. A igreja era edificada. O texto diz que a igreja “se edificava” (gr. oikodomouménē), ou seja, era consolidada de maneira persistente. Um dos resultados do clima de paz que os crentes desfrutavam era a edificação contínua (lat. aedificatio) da comunidade de fé. O conceito de edificação espiritual ou maturidade interna é uma das figuras favoritas de Paulo (1Coríntios 14; Efésios 3) e bastante comum no Novo Testamento. Em 1Pedro 2.5, o apóstolo usa a mesma figura quando fala da edificação de “uma casa espiritual” nas cinco províncias romanas. A igreja se consolida ou é edificada quando os crentes dão testemunho de sua fé, como Pedro ao fazer sua confissão em Cesareia de Filipe (Mateus 16.18). Esse fortalecimento da vida e do testemunho cristãos ocorre por meio da participação na Palavra e da obediência ao Senhor. A igreja obedecia a Deus. O texto diz que a igreja estava “vivendo no temor do Senhor” (gr. poreuoménē tōi fóbōi toū kyríou), ou seja, moldava sua conduta em sujeição e obediência à vontade revelada de Deus. A atitude dos crentes para com o Senhor era de extrema reverência e reconhecimento de seu senhorio sobre eles. O “Senhor”, nessa frase, é Jesus, e isso dá a entender que a igreja não ousava fazer nada que pudesse desagradar ou ofender ao Senhor, a quem reconhecia como Filho de Deus e Messias (v. 20,22). Lenski observa: “Em sua vida e no caminhar diário, os membros tinham Jesus presente com eles”.13

A igreja crescia. O texto diz que a igreja “crescia em número” (gr. eplēthýneto), ou seja, o processo de multiplicação dos crentes, iniciado no dia de Pentecoste, não era interrompido por problemas internos nem por perseguições externas (2.41; 4.4; 5.14; 6.7; 8.25). O crescimento interno era acompanhado pelo crescimento externo. Os crentes continuaram a se multiplicar (gr. eplēthýneto) graças à paz que desfrutavam, à consolidação ou edificação que experimentavam, ao temor do Senhor no qual viviam e ao consolo ou fortalecimento que recebiam do Espírito Santo. Como já foi dito, citando Tertuliano, o sangue dos mártires já estava se tornando a semente fecunda da igreja. Estêvão não deu seu testemunho (martírio) em vão. A igreja era fortalecida. O texto diz que a igreja era “encorajada pelo Espírito Santo” (gr. paraklēsei toū hagíou pneúmatos), ou seja, contava com o incentivo, a orientação e o consolo dele. O Espírito Santo, o Paracleto prometido por Jesus, agia como alguém chamado junto dos crentes, a fim de ajudá-los por  todos os meios possíveis no cumprimento de sua missão. Essa presença do Espírito Santo está com o crente desde o momento de sua rendição a Cristo, embora se manifeste com grande poder quando o crente é cheio do Espírito (Efésios 5.18). Desse modo, a igreja é transformada no poder do Espírito, e o Espírito no poder da igreja, como Jesus prometeu (1.8). A situação da igreja (9.31)

O texto sintetiza a situação da igreja na Palestina entre os dois períodos de perseguição mencionados: o que levou à morte de Estêvão, com a subsequente dispersão dos crentes de Jerusalém, e

o desencadeado mais tarde por Herodes Agripa I. O texto apresenta três elementos em relação à igreja que ajudam a entender nossa situação hoje e nos animam a fazer melhor uso das oportunidades que temos. A condição da igreja. O texto afirma que a igreja “passava por um período de paz”. Tratava-se da paz com relação às dificuldades externas. A paz entre as nações promove o bem-estar. A paz na ordem natural desenvolve recursos. A paz na igreja produz frutos. Ou seja, é essa situação de paz que cria as condições necessárias para a propagação da semente do evangelho, que é a Palavra de Deus (Lucas 8.11). Tratava-se também de paz no que dizia respeito às dissensões internas. Os cristãos judeus e gentios estavam em harmonia. O  poder divisor de Satanás fora neutralizado pelo amor fraternal e pela unidade no Espírito entre os crentes. Muitas vezes, as igrejas não avançam nem crescem não tanto em razão de conflitos externos, mas por causa de dissensões internas. A falta de paz no seio da comunidade de fé é um câncer que corrói os membros um a um e deixa o corpo de Cristo sem forças para testemunhar ao mundo. A atitude da igreja. O texto aponta dois fatos sobre a atitude da igreja. O  primeiro fato é que a igreja estava “vivendo no temor do Senhor” (gr. poreuoménē tōi fóbōi toū kyríou). Isso indica uma conduta que se traduzia em pureza prática. “Vivendo” é uma expressão de vida, mas de uma vida vivida de acordo com a vontade de Deus. Por isso, a Igreja crescia e se consolidava. Um aspecto do desenvolvimento normal de uma criança cheia de vida é crescer saudável e forte. Com o corpo de Cristo, a igreja, sucede o

mesmo. Além disso, essa vida indica uma tendência que se traduzia em poder espiritual. A expressão para viver ou andar no “temor do Senhor” aparece com frequência na Bíblia (v. 2Coríntios 5.11), especialmente no livro de Provérbios (1.7,29; 2.5; 8.13; 9.10; 10.27; 14.26,27; 15.16,33; 16.6; 19.23; 22.4; 23.17). O segundo fato é que a igreja era “encorajada pelo Espírito Santo” (gr. tēi paraklēsei toū hagíou pneúmatos). Isso significa que era o Espírito Santo quem consolava e animava a igreja no cumprimento de sua missão e em sua vida comunitária. É impossível, em dias tão desafiadores como os nossos, cumprir a missão que temos no mundo sem o alento do Espírito. Ele é o poder de que necessitamos para ser testemunhas e proclamar o evangelho com autoridade. O progresso da igreja. O texto afirma que a igreja “se edificava e [...] crescia em número” (gr. oikodomouménē [...] eplēthýneto) por toda a Palestina (Judeia, Galileia e Samaria). Observe-se o progresso vertical. A igreja “se edificava” (Efésios 2.20-22), e isso era resultado da paz que desfrutavam. O fundamento dessa edificação era a fé; o cimento era o amor; o teto era a esperança. Observe-se também o progresso para dentro e para fora. A igreja “crescia em número”. Hoje há quem desqualifique o crescimento numérico da igreja, mas Lucas, em Atos, dá grande importância a esse aspecto e tem o cuidado de fornecer dados estatísticos para comprová-lo. Uma igreja saudável deve crescer numericamente. O crescimento numérico é uma indicação de que essa igreja está dando “muito fruto”, como o Senhor espera (João 15.5; v. Romanos 11.6). No caso da igreja palestina, o crescimento numérico não era mero movimento de massas. Eles não se limitavam a juntar povo, mas a reunir almas para Cristo e seu Reino. Não se tratava apenas

de reunir multidões, mas de sair e procurá-las, o que era resultado de viver “no temor do Senhor”. Além disso, vemos no v. 31 os quatro níveis de experiência que o Senhor espera das congregações cristãs e dos crentes. Em primeiro lugar, a paz. Só uma igreja que vive em paz poderá dar atenção à pureza de sua conduta e de sua doutrina. Em segundo lugar, a pureza. Só uma igreja pura terá poder para derrotar o mal. Em terceiro lugar, o poder. Só uma igreja poderosa será capaz de prosperar neste mundo dominado por Satanás. Em quarto lugar, o progresso. Só uma igreja que prospera poderá atrair pecadores e servir aos santos.

1. Hechos, in: Justo L. p. 159.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

2. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 113. 3. Para uma explicação gramatical dos casos ablativo e acusativo em grego, v. H. E. DANA & Julius R. MANTEY, A Manual Grammar of the Greek New Testament, p. 81-83, 91-95. 4. Pablo el líder: una visión para el liderazgo cristiano, p. 30. 5. The Acts of the Apostles: An Historical Commentary, p. 90. 6. Commentary on the Book of Acts, p. 196-197. 7. Pablo de Tarso, p. 59. 8. St. Paul the Traveler and the Roman Citizen, p. 380. 9. Pablo de Tarso, p. 58-59. 10. The Ministry and Message of Paul, p. 37. 11. Flavio JOSEFO, Antiguidades judaicas, 18.8.2-9. 12. The Interpretation of the Acts of the Apostles, p. 379. 13. Ibid., p. 380.

CAPÍTULO 7

O MINISTÉRIO DE PEDRO 9.32—12.25 Depois de apresentar Saulo de Tarso em seu relato (8.1; 9.1-30), Lucas continua, nessa longa passagem, agora com a descrição do ministério de Pedro. Na seção seguinte, que inicia no cap. 13, Paulo se tornará a personagem dominante no relato de Lucas, como apóstolo aos gentios. No entanto, no serviço apostólico de Pedro já se veem os antecedentes desse ministério, que apontam para o cumprimento da comissão dada por Jesus, que era chegar aos confins da terra (1.8). O apóstolo Pedro é uma das personagens proeminentes do livro de Atos. Por suas palavras e ações, ele ocupa um lugar de destaque nos primeiros 12 capítulos. Seu nome em grego é Pétros e em siríaco é Kēfās, que significa “pedra” ou “rocha”. Com os irmãos Tiago e João, ele fazia parte do grupo mais íntimo do Senhor. Pedro provavelmente nasceu em Betsaida (João 1.44). Era filho de um pescador chamado Jonas ou João e irmão de André, outro discípulo de Jesus. Seu primeiro nome era Simão ou Simeão (Mateus 16.17; Atos 15.14), até que profeticamente Jesus o mudou para Cefas (João 1.42). Ele deixou seu ofício de pescador para seguir Jesus e se tornar um “pescador de homens” (Marcos 1.16-18). Na época, ele

residia em Cafarnaum, perto do mar da Galileia, com a esposa, o irmão André e a sogra (Marcos 1.21,29-31). Ao que parece, ele abandonou seu negócio para seguir Jesus (Marcos 10.28) e foi designado pelo Senhor para ser um dos “doze apóstolos” (Marcos 3.14-16). Pedro era um homem impulsivo, apaixonado, impetuoso e enérgico, que muitas vezes falava sem pensar e parecia sempre tomar a iniciativa. Temos exemplo disso em sua confissão impensada sobre Jesus ser o Messias (Mateus 16.16-18), em sua resistência a Jesus quando este revelou o que o aguardava em Jerusalém (Mateus 16.21-23), em seu respaldo entusiasmado ao Mestre (João 6.67-69), em seu ousado compromisso de não negar o Senhor nem o abandonar (Mateus 26.31-35), em sua negação do Senhor (Mateus 26.69-75), no fato de ter sido o primeiro dos apóstolos a ver Jesus ressuscitado (Lucas 24.34; 1Coríntios 15.5), em seu papel de destaque no dia de Pentecoste (cap. 2) e por ser o primeiro a dar testemunho do evangelho a um gentio (Cornélio, 15.7). À semelhança do que ocorreu com Saulo de Tarso, não encontramos Pedro como apóstolo residente, mas em trânsito. Pedro tinha um itinerário próprio, que o levou por toda a Palestina (Lida, Jope, Cesareia, Jerusalém), e uma peregrinação espiritual particular, de seu cristianismo saturado de hebraísmo a um cristianismo mais helenístico, baseado em uma visão transformadora e em uma revelação revolucionária. No exercício de seu ministério apostólico “extramuros” (fora de Jerusalém), Pedro saltava barreiras e penetrava com o evangelho círculos que estavam fora ou à margem do judaísmo metropolitano. Nesse

sentido, seu progresso no cumprimento da missão não foi apenas geográfico, mas também ideológico. O evangelho ia se expandindo geograficamente, ao mesmo tempo que se abria cada vez mais para os gentios e para outros setores marginalizados da sociedade hebraica. René Krüger: “A primeira proclamação missionária das boas-novas conseguiu aproveitar a configuração da diáspora judaica, que incluía os tementes a Deus e os prosélitos. Contando com outros simpatizantes, samaritanos e marginalizados do judaísmo (enfermos, publicanos, pecadores), essas estruturas formavam uma espécie de periferia em torno do judaísmo; uma zona intermediária ou elo entre o judaísmo mais ou menos ‘puro’ e o mundo pagão. De acordo com o plano geográfico da dupla obra lucana (o evangelho e o livro de Atos), essa periferia marginalizada constitui uma zona de transição pela qual cruzou a difusão do evangelho, que partiu do centro do mundo judaico, Jerusalém, em direção ao centro do mundo gentio, Roma, passando pela Judeia e por Samaria. A abertura universal já fora anunciada no Pentecoste, quando judeus e prosélitos de todas as partes ouviram os apóstolos falando das grandes obras de Deus. Esses judeus da grande diáspora viviam em um sistema sinagogal puramente espiritual, sem templo e sem sacrifícios; além disso, estavam acostumados a conviver com simpatizantes gentios”.1

Pedro, por sua vez, exemplifica o tipo de ministério que os apóstolos exerciam na época. Lucas nada diz sobre os outros apóstolos, mas escolhe Pedro como caso paradigmático, sem dúvida por ter sido ele quem introduziu os primeiros gentios na comunhão da igreja e, com isso, iniciou todo um debate sobre a admissão dos gentios na comunidade dos santos. Na verdade, o batismo do etíope por Filipe foi uma espécie de antecedente a essa ação inclusiva, que continuaria com a incorporação de outros “marginais” à comunidade dos santos.

O TESTEMUNHO A ENEIAS (9.32-35)

A história de Lucas se volta para Pedro, depois de ter passado pelas experiências de Estêvão, Filipe e Saulo. Sua última menção a ele foi por ocasião de seu regresso a Jerusalém, após o episódio de Simão, o mago (8.25). Agora Lucas põe Pedro outra vez em cena como protagonista. Seu relato nesse ponto é muito importante, porque descreve os passos que levaram à entrada oficial dos gentios na igreja cristã, conforme o relato do capítulo 10. Saulo está em seu retiro na cidade de Tarso. Enquanto isso, Pedro irá viver uma série de experiências que o introduzirão em uma nova etapa em seu ministério e na vida da igreja. Os parágrafos que se seguem, até o final do cap. 9, registram o avanço da fé cristã e apresentam dois exemplos do que o evangelho pode fazer na vida do ser humano. Por um lado, encontramos o evangelho e a doença (v. 32-35); por outro, deparamos com o evangelho e a morte (v. 36-43). Em seguida, vem a experiência com Cornélio, à qual Lucas dedica amplo espaço e na qual vemos o evangelho e a salvação dos gentios (10.1—11.18). O texto informa que Pedro estava “viajando por toda parte” (gr. dierchómenon dià pántōn kateltheīn), de modo que o relato da cura de Eneias é apenas uma ilustração do tipo de ministério que o manteve ocupado naquela região da Palestina. No cumprimento de sua obra apostólica, Pedro estava pregando e ensinando quando ocorreu o que Lucas se dispõe a narrar. O evangelho e o ministério apostólico

Pedro é apresentado no exercício de sua tarefa apostólica percorrendo toda a região que incluía a Judeia, a Galileia e Samaria. Sua tarefa era basicamente “visitar os santos” (gr. pròs toùs hagíous). Foi assim que ele chegou a Lida, antigamente conhecida como Lode (1Crônicas 8.12; Esdras 2.33),A cidade estava situada na planície fértil de Sarona (v. 35), a cerca de 16 quilômetros a sudeste de Jope. Era uma cidade de certa importância, na rota de caravanas que ligava a Babilônia ao Egito. Um ministério itinerante. A jornada de Pedro é uma ilustração do estado de tranquilidade e paz que a igreja desfrutava na Palestina (v. 31). O apóstolo podia se locomover de cidade em cidade sem inconveniências nem limitações. Talvez fosse uma viagem de inspeção ou supervisão (8.14,15) cujo objetivo era avaliar o andamento da obra. Em todo caso, era um percurso um tanto longo por cidades e vilas e que provavelmente o levou até Antioquia. Lucas descreve em poucas palavras o bom trabalho realizado por Pedro: “foi visitar os santos que viviam em Lida”. Observe-se que as pessoas visitadas por Pedro eram crentes, mas não estavam ligados à igreja de Jerusalém. Talvez o apóstolo os tenha encontrado por acaso. É provável que fossem convertidos pelo ministério do evangelista Filipe, que pregava na região (8.40). Lucas os chama “santos”, que é a designação dos cristãos. É encontrada pela primeira vez nesse capítulo (v. 13,32,41) e aparece apenas mais uma vez em Atos (26.10), embora seja muito frequente nas epístolas. A palavra significa “consagrados” ou “pertencentes a Deus”. Basicamente, o termo refere-se à posição espiritual a que a pessoa tem acesso por meio da conversão, não à sua condição espiritual. A santificação pela obra do Espírito Santo é o processo

gradual que nos permite chegar a ser o que já somos aos olhos de Deus por meio da obra redentora de Cristo (1Pedro 1.2). Um ministério de cura. Em Lida, Pedro encontrou um paralítico chamado Eneias. O nome é grego, e provavelmente era um judeu helenístico, ou seja, alguém que falava grego. A dúvida é se Eneias era crente. Possivelmente sim, pois parece que fazia parte dos “santos” que o apóstolo estava visitando (v. 32). Nenhuma condição para sua cura está registrada, e o nome de Jesus Cristo não lhe parecia estranho. No entanto, o silêncio a respeito de sua condição espiritual, em contraste com a designação de Dorcas como “discípula” (v. 36), pode sugerir que Eneias não fosse cristão. Talvez Pedro tenha visto nele uma fé incipiente. Em todo caso, tratava-se de um homem necessitado. O texto diagnostica-o como “paralítico” e observa que ele “estava acamado fazia oito anos”. Sua doença, portanto, era antiga, incurável e grave (“acamado”). Lucas era médico, e essas referências mostram seu interesse e seu conhecimento profissional do caso. O v. 34 resume a maneira pela qual Pedro ministrou cura ao paralítico Eneias. É sempre Deus quem cura, mas ele precisa de seus servos. Em seu livro, Lucas destaca a instrumentalidade humana em ação sob o poder de Deus. Observe-se o apelo pessoal de Pedro em sua abordagem: “Eneias, Jesus Cristo vai curá-lo!” (gr. Ainéa, iātaí dè Iēsoūs Christós). A cura era para Eneias. Para ter saúde, o paciente precisa elevar sua autoestima, ainda mais em um caso de paralisia total como o de Eneias. Observe-se também quem cura. Pedro foi muito claro ao dizer: “Jesus Cristo vai curá-lo!”. A ação da cura vem de Deus. É o próprio Jesus Cristo quem cura; o instrumento humano é secundário. Observe-se ainda que a cura

exige uma ação por parte do doente. Pedro deu-lhe uma ordem que lhe instigou o desejo de ser saudável: “Levante-se e arrume a sua cama” (gr. anástēthi kaì strōson seautōi). À ação de cura (“levantese”) somou-se a aceitação da cura (“arrume a sua cama”). O doente deve querer ser curado e aceitar sua cura pela fé. Observe-se, por fim, que a cura foi imediata e completa, pois Eneias “se levantou imediatamente” (gr. euthéōs anéstē). Lucas sempre menciona os resultados de ações milagrosas. O impacto da cura milagrosa de Eneias foi impressionante e teve ampla difusão, não apenas em Lida, mas também em toda a planície costeira de Sarona, que se estendia desde o monte Carmelo até Jope. Pelas suas características e evidentemente porque Eneias era conhecido como “o paralítico”, com muitos anos de sofrimento crônico, “todos os que viviam” na região “o viram” (gr. eīdan autòn pántes hoi katoikoūntes). No entanto, é mais provável que o fato tenha adquirido notoriedade pelo próprio depoimento de Eneias, que após sua cura percorreu toda a região contando o ocorrido. Desse modo, o conhecimento e a convicção uniram-se para dar força ao testemunho pessoal. Não é de admirar que as pessoas que ouviram seu testemunho e viram o que acontecera “se converteram ao Senhor” (gr. hoí tines epéstrepsan epì tòn kýrion). Todos os milagres sempre têm um propósito redentor. O evangelho e as enfermidades (9.32-35)

Em sua primeira carta, o apóstolo Pedro fala da “graça de Deus em suas múltiplas formas” (1Pedro 4.10b). Com isso, ele quer dizer que a graça divina se manifesta de maneiras incrivelmente variadas. Poucas coisas no livro de Atos são mais interessantes que os

muitos exemplos dos diferentes métodos de operação da obra redentora. O testemunho do evangelho do Reino diz respeito a uma salvação integral do ser humano: (1Tessalonicenses 5.23; v. 3João 2).

corpo,

alma

e

espírito

Uma vez que nós, como crentes em Cristo, entendamos a natureza integral da salvação operada por Cristo, estaremos em condições de servir com o evangelho àqueles que precisam. À luz do texto em estudo, a igreja foi dotada de poder e de autoridade para curar os enfermos em nome de Jesus. Em  9.32-35, encontramos quatro elementos relacionados com o evangelho e as enfermidades que faríamos bem considerar em nosso ministério de cura: visitação, enfermidade, cura e testemunho. Visitação (v. 32). A única maneira de enfrentar os problemas e as necessidades do povo é indo aonde ele está, sem esquecer ninguém. Pedro percorreu a região “visitando a todos” (RVR). Quão importante é a visitação aos crentes, especialmente quando estão aflitos ou enfermos! Tiago 5.13-16 contém instruções precisas a esse respeito e estabelece a oração dos líderes da igreja local como um procedimento terapêutico fundamental em favor dos que sofrem. O efeito terapêutico da presença física dos irmãos, suas palavras de ânimo e de esperança, sua demonstração de cuidado e afeto por meio da imposição de mãos e da unção com óleo e sua oração de intercessão são poderosos para produzir a cura. Todas essas ações são eficazes para promover a plena restauração ao corpo doente, quando realizadas em nome de Jesus. Enfermidade (v. 33). Não há doença que o poderoso amor de Deus não possa curar. A paralisia de Eneias era tão severa e crônica

quanto a do aleijado da porta Formosa do templo (3.2). Essa condição o manteve na cama por oito anos e lhe tirou a chance de exercer qualquer atividade religiosa (por estar doente, era considerado impuro). A menos que tenhamos a firme convicção de que o Senhor tem o poder de tratar todo tipo de enfermidade, ainda que terminal ou letal, não poderemos ser instrumentos em suas mãos para trazer cura e aceitação aos que sofrem. Uma vez que ele pode dar vida aos mortos (João 11.25,26), como não dará um fim às circunstâncias que levam à morte? Nós, crentes, recebemos de nosso Senhor poder e autoridade não só para curar os enfermos, mas também para lhes devolver a vida, quando essa for a vontade dele (Mateus 10.8; 11.5; Marcos 16.15-20; Lucas 7.22; Atos 26.8). Cura (v. 34). A vontade final de Deus é nossa saúde plena. No entanto, Deus permite nossa enfermidade, mas não como castigo ou como recurso pedagógico, tampouco para fortalecer nossa fé. A doença (como a morte) não é a vontade de Deus para os seres humanos. Foi o Maligno quem veio “para roubar, matar e destruir”. A vontade de Deus é que tenhamos vida e a tenhamos plenamente (João 10.10). Contudo, mesmo em meio à enfermidade, Deus tem um propósito redentor. Quando oramos pela cura, não devemos fazê-lo para convencer Deus para que cure ou mude sua vontade, mas para demonstrar que estamos dispostos a receber o que ele deseja nos dar, ou seja, saúde plena (shalom) agora ou na vida futura. Então, como orar pela cura? Em Jesus Cristo, temos o direito de pedir o que quisermos (João 14.12-14), ou seja, a cura, não o mero alívio da doença ou da dor. Não devemos estabelecer condições nem orar com pouca fé, dizendo algo como: “Se for da tua vontade, cura”. A condicional é uma expressão de falta de fé, de

dúvida ou de ignorância acerca da vontade amorosa e final de Deus para os seres humanos. O crente deve orar com fé e humildade, conforme a vontade de Deus, que é sempre a melhor para todos. Portanto, é conveniente orar desta forma: “Senhor, conforme a tua vontade, cura”. Além disso, Deus nem sempre nos dá exatamente o que lhe pedimos, mas ele sempre responde. Paulo lhe rogou três vezes que tirasse de seu corpo o espinho cravado por um mensageiro de Satanás (2Coríntios 12.7,8). Não encontramos uma evidência, em todo o Novo Testamento ou na tradição da igreja, de que isso aconteceu, mas é evidente que Deus lhe deu uma resposta clara e mais que suficiente. Ele disse ao seu servo: “Minha graça é suficiente a você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”. Tanto é que o apóstolo descobriu, graças a essas circunstâncias angustiantes, o grande poder da graça do Senhor: “Eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco, é que sou forte” (2Coríntios 12.9,10). Testemunho (v. 35). Os milagres são sinais da poderosa presença de Deus. O objetivo do milagre é trazer glória a Deus e exaltar seu Reino, mas os milagres também são parte integral do evangelho e, como tal, constituem um instrumento-chave para dar testemunho da realidade do Reino de Deus. É  interessante que Lucas, em seu relato, não dá grande destaque ao paralítico curado, mas ao efeito que o milagre produziu: “Todos os que viviam em Lida e Sarona o viram e se converteram ao Senhor” (v. 35).

Pablo A. Deiros: “[Milagre é] um acontecimento que parece desafiar qualquer explicação racional, envolve a superação de leis naturais conhecidas ou a intrusão do sobrenatural no reino natural e é atribuído à intervenção divina. Quanto a ser um acontecimento incompreensível, o que é milagroso para uma época torna-se lugar-comum para outra. Contudo, se Deus é soberano sobre todas as coisas criadas, é lógico pressupor sua liberdade e seu poder para intervir na criação. Jesus apoiou e confirmou sua pregação com milagres para instigar e fortalecer a fé dos ouvintes, mas não para exercer coerção sobre eles. O mesmo deve fazer a igreja hoje. Os milagres são a confirmação de que o Reino de Deus já chegou à terra”.2

O TESTEMUNHO A DORCAS (9.36-43)

Nos versículos finais de Atos 9 (v. 32-42), Lucas nos chama a atenção, em primeiro lugar, para o que o evangelho do Reino pode fazer na vida das pessoas (v. 32-35). Nessa passagem (v. 36-42), podemos ver o que o evangelho do Reino pode fazer diante da morte. O caso da doença e da morte de Dorcas é um dos mais comoventes de todo o Novo Testamento. Sua dramaticidade é realçada pelo fato de a vítima da tragédia ser uma pessoa exemplar, uma crente fiel, alguém que todos amavam. Este é o primeiro caso de ressuscitação mencionado em Atos, e Lucas destaca os resultados de tal milagre. Os primeiros versículos remetem mais uma vez à contradição do sofrimento. Em particular, destacam o paradoxo do drama de pessoas boas sofrendo coisas ruins (v. 36-39a). Na segunda metade do texto, a tragédia da morte é vista com dramaticidade, mas a esperança cristã e o poder do amor de Deus para dar vida brilham com todo o seu resplendor (v. 39b-43). Ao analisar esses versículos, podemos ver a relação do evangelho com o sofrimento, com a morte e com a vida. O evangelho e as pessoas

Quem era Dorcas? Dorcas era uma mulher notável e muito amada. O  nome Tabita significa “gazela” em aramaico. Na cultura popular, esse animal estava associado à graça e à gentileza nas maneiras. No Oriente, a gazela era considerada um símbolo da beleza humana (Cântico dos Cânticos 2.9,17; 4.5; 7.3). A tradução grega do nome é Dorcas, e no hebraico é Zíbia (2Reis 12.1). Dorcas

é a segunda mulher nomeada em Atos depois do Pentecoste (a primeira é Safira, 5.1). O texto descreve sua condição espiritual como “discípula” (gr. mathētria) e acrescenta que ela “se dedicava a praticar boas obras e dar esmolas” (gr. haútē ēn plērēs érgōn agathōn kaì eleēmosynōn hōn epoíei). Era uma mulher que não se limitava a dizer que iria fazer, mas o fazia. É provável que fosse uma mulher de recursos econômicos e que demonstrava grande capacidade naquilo que se propôs. Por esse motivo, alcançou notoriedade e influência. Dorcas evidentemente vivia sozinha, e é provável que fosse uma viúva sem filhos. Ela integra uma honrosa lista de mulheres piedosas e úteis no Novo Testamento, entre as quais as senhoras que serviram a Jesus: Maria, mãe de João Marcos; Lídia, de Tiatira; Priscila; Dâmaris; Febe e outras. Onde Dorcas residia? Ela vivia em Jope (a moderna Jafa, subúrbio de Tel Aviv), que servia de porto para a cidade de Jerusalém, a 60 quilômetros de distância (v. 2Crônicas 2.16) e para toda a Judeia. Era também o único porto entre o Egito e o monte Carmelo. Filipe havia pregado ali quando estava a caminho de Cesareia (8.40). Os primeiros cristãos locais provavelmente eram refugiados de Jerusalém (8.1). Jope era uma cidade importante do ponto de vista estratégico e comercial. O que aconteceu com Dorcas? A mulher caiu enferma e morreu repentinamente, em meio a uma vida útil e inspiradora. Sua morte causou grande impacto em toda a comunidade. Os que haviam sido alvo de seu amor reagiram à tragédia expressando apreço por ela da melhor maneira que podiam, ou seja, oferecendo-lhe uma cerimônia fúnebre digna de honra. Enquanto isso, os crentes

fizeram a coisa certa e mandaram chamar Pedro. O apelo dos cristãos de Jope ao apóstolo era natural e esperado. Lida estava a apenas 16 quilômetros dali, e quem melhor que um apóstolo para apoiá-los em uma situação tão dolorosa? Observe-se que eles enviaram dois homens com seu pedido desesperado, o que mostra a alta consideração deles por Dorcas. Tinham esperança de que Pedro pudesse fazer o que o Mestre havia feito, ou seja, ressuscitar a amada discípula. O pedido mostra também o apreço daquela comunidade de fé por Pedro e a fé que tinham no poder de Deus, provavelmente por terem recebido a notícia da cura de Eneias. O evangelho e a dor (9.36-43)

O evangelho e o sofrimento (v. 36-39a). Talvez a melhor maneira de entender o sofrimento, principalmente na vida do crente, não é tanto fazer especulações filosóficas sobre o assunto, mas analisar cada caso e tratar de se identificar com a experiência. A experiência de Dorcas com a doença e com a morte pode nos ajudar a entender melhor a relação entre o evangelho e o sofrimento humano. Nesse sentido, a passagem bíblica apresenta quatro exemplos a serem considerados. Uma mulher conceituada. Suas boas obras e a ajuda que dava aos pobres caracterizam-na como uma cristã excepcional. Não é de admirar que muitas entidades beneficentes e associações cristãs de mulheres até hoje adotem seu nome. Não se pode atribuir à vontade divina alguém ter seu ministério de misericórdia, exercido em nome do Senhor, interrompido dessa maneira. Seria uma contradição. A doença e a morte são obras do Diabo, que têm como objetivo destruir a coroa da criação de Deus, o ser humano. A isso se

acrescenta, no caso dos crentes, a tentativa demoníaca de impedir o ministério cristão para o bem dos necessitados. Ken Blue: “As Escrituras deixam claro que Deus é contra o sofrimento em geral, mas qual é a melhor maneira de determinar sua atitude com relação à enfermidade e, em particular, à cura? O conceito mais claro e completo da atitude de Deus para com a enfermidade e a cura acha-se em seu Filho, Jesus Cristo. Quando lemos o registro de seu ministério terreno, descobrimos o desejo de Deus nessa questão revelado de forma inequívoca. [...] Se quisermos entender a vontade de Deus, não convém tentar deduzi-la das circunstâncias de um mundo decaído. Tampouco devemos elaborar um conceito abstrato da vontade de Deus apoiado em uma noção antibíblica da soberania divina. Em vez disso, devemos olhar para Jesus, que é a declaração explícita da vontade de Deus”.3

Uma perda irreparável. A doença é grave, mas pode ser curada; já a morte é irreparável, porque, do ponto de vista natural, não há volta e é definitiva. Para as viúvas de Jope, a partida de Dorcas foi trágica, pois não havia outra pessoa que fizesse o que ela fazia (“os vestidos e outras roupas”). Para a comunidade cristã de Jope, o vazio de sua ausência não podia ser preenchido, porque não havia outro membro da igreja que se esforçasse tanto para “praticar boas obras e dar esmolas”. A morte sempre traz essa sensação do definitivo, do irreversível, do vazio impossível de preencher. É por isso que, diante da morte de um ente querido, sempre se derramam lágrimas de impotência e de desespero. Um aforismo anônimo diz: “A morte é o mais forte dos golpes. Exatamente por isso nos foi reservada para o fim”. A situação é mais grave quando, como no caso de Dorcas, a morte é prematura. Uma grande esperança. Em meio à dor e à angústia, os irmãos de Jope permitiram que uma pequena luz de esperança lhes penetrasse o coração ao saber que Pedro se encontrava em uma

cidade vizinha. A notícia fez aumentar essa esperança, a ponto de dois homens serem enviados para lhe pedir que viesse com urgência a Jope. Diante da dor mais profunda, o Senhor sempre tem um servo nas proximidades para encorajar a esperança e motivar um ação redentora. A boa disposição do apóstolo em acompanhar os dois emissários até Jope, seu interesse pessoal e seu trabalho pastoral entre os familiares aumentaram ainda mais a esperança de todos. Uma resposta imediata. Observe-se que a resposta de Pedro foi imediata (v. 39a). O apóstolo era um homem de fé. Era bom tê-lo por perto em um momento difícil como aquele. Pedro reagiu imediatamente à crise e foi com os irmãos sem hesitar, embora talvez nem conhecesse Dorcas pessoalmente. O velório de Dorcas estava sendo realizado em um “quarto do andar superior”, talvez por ser o maior cômodo da casa ou porque uma escada externa facilitasse o acesso. Sem dúvida, o povo de Jope queria expressar seu respeito e apreço por essa grande mulher. Eles colocaram o cadáver ali, depois de lavado de acordo com as leis cerimoniais judaicas para a purificação dos mortos. Era evidente a dor de suas amigas, as viúvas, com quem ela trabalhara e a quem tanto havia ajudado. As mulheres usavam as roupas que Dorcas havia confeccionado para elas. Túnicas e outros tipos de roupa eram testemunhos concretos do amor solidário de Dorcas. Quando Pedro chegou, as mulheres mostraram-lhe (no gr., voz média, “mostrando”) o fruto do amor solidário dessa mulher excepcional. O sofrimento é inevitável, mas Deus sempre tem recursos à disposição para nos ajudar a lidar com a dor. Deus nunca deixa de dar uma resposta às súplicas dos seus servos. Ele não improvisa

nem é apanhado de surpresa pelas circunstâncias. Diante das desgraças inevitáveis e inesperadas da vida, sua providência está em operação permanente para tornar cada experiência pela qual passamos em uma oportunidade de conhecer mais profundamente seu amor e cuidado. O mais interessante é que geralmente o Senhor usa instrumentos humanos como mediadores de sua graça e consolo. O evangelho e a morte (v. 39b). A morte de qualquer ser humano é inexorável. Hebreus 9.27 ensina que o ser humano “está destinado a morrer uma só vez”. A experiência da morte é única, acontece apenas uma vez, contudo é suficiente para que a temamos por toda a vida. Como disse Jean de La Bruyère, moralista francês do século XVII: “A morte vem apenas uma vez, embora se faça sentir em todos os momentos da vida”. Há duas considerações sobre a morte ilustradas na experiência de Dorcas. A realidade da morte. A Bíblia ensina que a morte passa com todos e é inevitável. Eclesiastes 8.8 afirma: “Ninguém tem o poder de dominar o próprio espírito; tampouco tem poder sobre o dia da sua morte”. O próprio Deus conhece muito bem o dia de nossa partida (Deuteronômio 32.39; Jó 14.5). A morte é niveladora e põe todos os seres humanos sob um denominador comum: todos morrem, sem exceção (Jó 1.21; 3.17-19). Por isso, os crentes também adoecem e morrem. A dor da morte. A morte é “a viagem sem retorno” (Jó 16.22b). Do outro lado da morte, Dorcas não podia mais ministrar misericórdia, como fazia do lado de cá com tanto empenho. Como indica Eclesiastes 9.10: “O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai,

não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria”. Os crentes em Jope estavam cientes desse fato, e justamente isso lhes causava profunda dor. Com a morte de uma pessoa querida, os objetos adquirem novo significado, até mesmo as roupas que o morto tenha deixado. Quando um ente querido vai embora, seus pertences são a única coisa que nos restam dele. Dorcas deixou ações dignas, memórias inesquecíveis, gratidão e reconhecimento duradouros. Quanto a nós, o que vamos deixar? O evangelho e a vida (v. 40-43). Acima da enfermidade e da morte, o evangelho é essencialmente uma mensagem de vida. Jesus, a mensagem do evangelho, disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham plenamente” (João 10.10). A vida é sempre vitoriosa sobre a doença e a morte. Por isso, o cristão que entende isso e crê que Jesus Cristo é a ressurreição e a vida enfrenta a doença e a morte com uma atitude diferente. Essa atitude pode ser resumida da forma a seguir. Diante da dor: oração. A oração é o grande recurso para enfrentar a dor. Não oramos para mudar a vontade de Deus, mas para ajustar nossa conduta, em obediência à vontade de Deus, que já conhecemos. Diante da realidade da morte, Pedro agiu como viu Jesus agir. Ele retirou todos do quarto (Mateus 9.24,25), usou as mesmas palavras de Jesus (com exceção de uma única palavra, Marcos 5.41), tomou a mulher pela mão e a levantou (Mateus 9.25). Houve um momento em que Pedro agiu diferentemente de Jesus, mas foi uma ação autoexplicativa: “ajoelhou-se e orou”. Não foi Pedro quem ressuscitou Dorcas, mas o Senhor. O apóstolo reconheceu que o poder não era dele, mas de Deus. Dorcas abriu os olhos, viu Pedro e sentou-se. O mesmo aconteceu com o filho da

viúva de Naim (Lucas 7.15). Então, Pedro a levantou e apresentou-a viva aos irmãos da igreja (os “santos”), especialmente às viúvas, que tanto a amavam. É impossível dar uma explicação racional para o ocorrido. A Bíblia não explica os milagres, simplesmente os relata e declara sua realidade. Diante da morte: vida. O poder da vida sobre a morte está bem ilustrado na experiência de Dorcas e de sua congregação. O texto diz que Pedro “apresentou-a viva” (gr. paréstēsen autēn zōsan, v. 41). A vida é contundente em sua vitória sobre a morte quando o que opera é a fé no Ressuscitado. Essa convicção é a mesma que outra grande mulher cristã, Teresa de Ávila, a grande mística espanhola do século XVI, acalentava no fundo do coração quando escreveu em um de seus poemas: Só com a certeza vivo de que hei de morrer, porque, morrendo, o viver minha esperança assegura. A morte do viver é alcançada: não te demores, que te espero, que morro por não morrer. Diante do mundo: testemunho. Imediatamente depois de Pedro ter apresentado Dorcas viva para “os santos e as viúvas”, o texto declara: “Este fato se tornou conhecido em toda a cidade de Jope, e muitos creram no Senhor” (v. 42). 1) O impacto sobre a população. A declaração de que “este fato se tornou conhecido em toda a cidade de Jope” (gr. gnōston egéneto kath’ hóleēs tēs Ióppēs, v. 42), feita por Lucas, é óbvia. Um

milagre dessa natureza não passa despercebido, muito menos quando envolve uma pessoa de certa notoriedade. O povo descobriu o que aconteceu, e cada um se tornou um propagador da notícia. Nesse sentido, a ressuscitação tinha o objetivo de trazer vida a Dorcas, mas acabou trazendo vida aos que estavam mortos em seus delitos e pecados, uma vez que “muitos creram no Senhor”. Curiosamente, tanto no caso de Eneias quanto no de Dorcas, os resultados foram conversões massivas: “Todos [...] se converteram ao Senhor” (gr. hoítines epéstrepsan epì tòn kýrion, v. 35); “Muitos creram no Senhor” (gr. epísteusan polloì epì tòn kýrion, v. 42). 2) O impacto sobre a congregação. A manifestação do amoroso poder de Deus também afetou profundamente a congregação local. Pedro ficou muitos dias em Jope (v. 43). A expressão “algum tempo” (gr. egéneto hēmeras hikanas meīnai) refere-se não só à sua extensão, mas também ao seu significado, pois a presença de um apóstolo como Pedro era uma grande oportunidade a ser aproveitada para a comunhão e para o testemunho. O próprio apóstolo foi abençoado em tudo isso, pois começou a se libertar das tradições cerimoniais judaicas que lhe impunham limitações. Na verdade, ele ficou em Jope na casa de “um curtidor de couro chamado Simão”. O comércio de couro e o curtume eram considerados atividades impuras pelos judeus, porque envolviam o contato com animais mortos, o que era proibido. A associação de Pedro com seu homônimo Simão mostra que ele já estava superando alguns de seus preconceitos e sendo preparado para as revelações e os desafios que viriam (cap. 10). A vida sempre produz

vida, e o testemunho da vida concede vida aos que estão espiritualmente mortos. Diante da igreja: mudança. A pequena congregação de Jope nunca mais foi a mesma depois da experiência com Dorcas. É interessante que a passagem começa com graça e amor, prossegue com doença e morte, mas termina com vida e salvação. Por mais trágicas que sejam as circunstâncias de nossa vida, permanece a verdade de que “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam” (Romanos 8.28). TABELA 12: Em que consiste o serviço social cristão? Dorcas é considerada no Novo Testamento o exemplo por excelência do que significa o serviço social cristão. É um dos cinco ministérios da igreja (gr. diakonía), de acordo com o Novo Testamento. 1. Consiste em trabalhar duro para ajudar os necessitados (Atos 20.35). 2. Consiste em fazer coletas para os irmãos pobres (Romanos 15.25,26). 3. Consiste em se lembrar dos pobres (Gálatas 2.10). 4. Consiste em servir uns aos outros com amor (Gálatas 5.13). 5. Consiste em fazer o bem aos outros, especialmente aos da família da fé (Gálatas 6.10). 6. Consiste em se compadecer dos presos (Hebreus 10.34). 7. Consiste em praticar a hospitalidade (Hebreus 13.2). 8. Consiste em se lembrar dos presos e dos que sofrem maus-tratos (Hebreus 13.3). 9. Consiste em repartir com os outros o que se tem (Hebreus 13.16). 10. Consiste em atender aos órfãos e às viúvas em suas aflições (Tiago 1.27).

11. Consiste em dar o necessário para suprir as necessidades físicas de quem não tem recursos (Tiago 2.15,16). 12. Consiste em contribuir com o que se pode para ajudar os santos (2Coríntios 8.2-4).

O TESTEMUNHO AO CENTURIÃO (10.1-8)

Finalmente, chegamos a um dos pontos culminantes do livro de Atos. Trata-se da derrota dos preconceitos e do salto definitivo a uma nova dimensão no cumprimento da missão cristã. Nessa passagem, vemos o evangelho penetrar o mundo gentio e demolir as paredes de separação e de discriminação que o impediam. Muita gente em nosso mundo continua lutando para cruzar barreiras raciais, étnicas, culturais, religiosas e sociais. Deus e sua vontade estão muito além disso. Sua imparcialidade não está baseada em condições humanas, mas no fato de que todos os seres humanos foram criados à sua imagem (Gênesis 1.26). Com o envio de Pedro para levar a mensagem de salvação, cruzando-se a linha divisória entre judeus e gentios, foi alcançado o último círculo traçado na estratégia missionária de 1.8. Os sete primeiros capítulos de Atos descrevem como o testemunho cristão se acontecimentos do dia de ministérios de Estêvão e crentes foram dispersos,

espalhou por Jerusalém, desde os Pentecoste até a cura do aleijado e os Filipe. Após o martírio de Estêvão, os saíram de Jerusalém e começaram a

pregar o evangelho aonde quer que fossem, de modo que o testemunho deles cobriu as regiões da Judeia e de Samaria. Nesse processo, converteram-se pessoas interessantes, como os samaritanos, o etíope e Saulo de Tarso, mas, quando chegamos ao cap. 10, Lucas apresenta a figura mais interessante de todas: o gentio Cornélio. Christopher Wright: “Foram necessários anjos e visões para levar Pedro da convicção teológica para a ação prática. Não era fácil deixar para trás uma cosmovisão moldada durante uma vida inteira pelas regras alimentares da

Lei judaica e pelo paradigma de segregação que simbolizavam. A história de Cornélio, o centurião romano temente a Deus de Atos 10 e 11, é descrita com frequência como a conversão tanto de Pedro quanto de Cornélio. Em certo sentido, Cornélio, o centurião romano ‘temente a Deus’, já se havia convertido ao Deus de Israel, mas ainda não conhecia Jesus nem o cumprimento das esperanças de Israel na pessoa de Jesus. Pedro tinha confessado o ‘Cristo, o Filho do Deus vivo’, havia muito tempo, e entendia algo do significado universal desse fato. Contudo, foi só por meio do encontro com Cornélio e de seu testemunho que ele se converteu quanto ao reconhecimento de que ‘Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo’ (Atos 10.34,35) O simples fato de Lucas dedicar dois capítulos a esse relato e depois repetir a história indica quão importante era para sua narrativa. Os comentários surpresos, primeiramente dos companheiros de Pedro e depois da igreja de Jerusalém, não deixam dúvidas sobre a importância do momento, ‘que o dom do Espírito Santo fosse derramado até sobre os gentios’ e que ‘Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos gentios!’ (Atos 10.45; 11.18). O derramamento do Espírito e a concessão do arrependimento e do perdão estavam entre os sinais mais importantes do Reino escatológico de Deus na era messiânica. Se Deus estava concedendo essas coisas às nações, então essa era já devia estar amanhecendo, com todas as devidas implicações universais para todos os povos”.4 O contexto

Judeus e gentios. No mundo greco-romano, judeus e gentios encontravam-se em esferas diferentes e distantes. Os gentios achavam as crenças e os costumes judaicos confusos e estreitos, ao passo que os judeus consideravam os gentios pagãos e imorais. Alguns gentios, no entanto, chegaram à convicção de que o Deus dos judeus era bom e verdadeiro. Alguns desses gentios se convertiam ao judaísmo e eram chamados “prosélitos” (2.10). Outros, que simpatizavam com o judaísmo e aceitavam algumas de suas práticas, eram conhecidos como “tementes a Deus”. Cornélio e sua família são descritos como “religiosos e tementes a Deus” (10.2).

Judeus e romanos. Outro fator importante para entender a história de Cornélio é a situação política na Palestina. Roma governava a área do Mediterrâneo, mas não considerava Jerusalém a capital política da Judeia. A sede do governo romano ficava em Cesareia Marítima (Cesareia junto ao mar), situada a cerca de 80 quilômetros a noroeste de Jerusalém. Os v. 1-8 registram o testemunho de um centurião romano que teve uma visão, na qual um anjo de Deus se aproximou e falou com ele. A visão de Cornélio é surpreendente, pois é a primeira vez que esse homem é mencionado em Atos; também é a primeira vez que se menciona um gentio de origem romana e membro das forças de ocupação do império romano que tem uma visão celestial. A personagem (10.1,2)

Nos primeiros dois versículos, Lucas revela dois aspectos da vida de Cornélio, personagem central dessa história. Sua ficha pessoal (v. 1). Seu domicílio era Cesareia, bela cidade gentia que fora construída por Herodes, o Grande, de 22 a 10 a.C., em homenagem a César Augusto. Seu nome era Cornélio. Quanto à etnia, era gentio. Seu ofício era o de centurião. Isso significa que Cornélio comandava uma coorte, ou seja, uma subunidade de uma legião romana. As legiões eram formadas por cerca de 6 mil soldados, e cada centurião tinha sob seu comando cerca de 80 a 100 homens. O regimento, conhecido como Italiano, tinha o nome que lhe fora dado pelos próprios soldados. Seu currículo religioso (v. 2). A descrição apresenta detalhes relacionados com sua vida espiritual e religiosa. Lucas informa que

“ele e toda a sua família eram religiosos e tementes a Deus” (gr. eusebēs kaì foboúmenos tòn theòn sỳn pantì tōi oíkōi autoū). Isso significa que eram piedosos e viviam de acordo com a Lei mosaica, ou seja, eram “prosélitos de porta”, que não haviam se convertido totalmente ao judaísmo e que não eram considerados judeus, mas gentios. Cornélio era um adepto gentio (um “temente a Deus”), ou seja, alguém que simpatizava com a fé monoteísta e repudiava o paganismo dominante. Além disso, seu caráter devoto e piedoso era visto nas “muitas esmolas ao povo” (gr. poiōn eleēmosýnas pollàs tōi laōi), bem como no fato de que ele “orava continuamente a Deus” (gr. deómenos toū theoū pantós). Cornélio foi um homem generoso nas boas obras de caridade e fiel na prática religiosa. Lucas descreve outros gentios de maneira semelhante (13.50; 16.14; 17.4,17; 18.7). A experiência (10.3-6)

Nos v. 3-8, Lucas relata uma experiência única vivida por Cornélio. Uma revelação (v. 3). Por volta das 3 da tarde, Cornélio teve uma visão (v. 3). É interessante que foi a essa mesma hora que Pedro e João foram ao templo orar (3.1), ou seja, a hora costumeira da oração (havia dois outros horários: ao amanhecer e ao pôr do sol). É provável, portanto, que Cornélio estivesse orando quando teve a visão (v. 30). Essa visão é semelhante a outras narradas na Bíblia. O fato surpreendente é que foi um gentio quem teve a visão. Nela, Cornélio “viu claramente”, ou seja, de maneira inquestionável, “um anjo de Deus” (gr. ángelon toū theoū), que o chamou pelo nome.

R. C. H. Lenski: “Essas visões nunca são meras autossugestões subjetivas ou produções da própria mente. O anjo estava de fato presente, tão real como se uma pessoa estivesse diante de Cornélio. Ele falou de maneira audível, de modo que Cornélio ouviu sua voz e suas palavras. O véu que nos confina a este mundo natural fora removido, e Cornélio teve condições de ver e ouvir esse anjo do mundo celestial. Cada visão é reduzida a limites definidos e não se estende além deles; porque é uma revelação dos fatos e das verdades desejados pelo Senhor e, portanto, não vai além disso. O racionalismo sempre os negará prontamente ou buscará explicações naturais ou patológicas para eles. O saduceísmo ainda está vivo”.5

Uma reação (v. 4). É interessante a reação de Cornélio. “Que é, Senhor?” (gr. tí estin, kýrie, v. 4) é uma expressão de reverente temor diante da presença evidente do divino (Mateus 28.5; Lucas 1.11,12; 2.9). Essa visita angélica foi muito especial, e o anjo o informou imediatamente: “Suas orações e esmolas subiram como oferta memorial diante de Deus” (“para memória diante de Deus”, RVR; v. Levítico 2.2; Filipenses 4.18). Observe-se que para Deus nossas orações e obras de caridade são como uma oferta que entregamos a ele. As primeiras são uma expressão de fé e de amor ao Senhor na dimensão vertical; as últimas são uma expressão de fé e de amor ao Senhor na dimensão horizontal. Ambas são tesouros que se acumulam nos céus (Mateus 6.19-21). Uma instrução (v. 5,6). Cornélio era um religioso muito bom, mas precisava de Cristo. Por isso, o anjo o instruiu a procurar alguém que pudesse conduzi-lo ao Salvador (cf. 11.14). Jope era outra cidade costeira, localizada a cerca de 40 quilômetros ao sul de Cesareia. Ali estava Simão, também conhecido por Pedro. Observese a precisão dos dados fornecidos pelo anjo a Cornélio, que continham até a direção que seus enviados deveriam seguir.

Os testemunhos (10.7,8)

Também é interessante a quantidade de testemunhos pessoais ao longo dessa história: Cornélio deu testemunho de sua visão a dois de seus servos e a um soldado devoto (v. 7,8); os enviados de Cornélio deram testemunho desse fato a Pedro (v. 22); Pedro deu testemunho disso a alguns crentes de Jope (v. 23b); Pedro testemunhou perante as muitas pessoas reunidas na casa de Cornélio (v. 28,29); Cornélio deu testemunho a Pedro de sua visão (v. 30-33); Pedro deu testemunho a todos (v. 34-43). Por que o anjo não ordenou que Cornélio fosse a Jope conversar com Pedro? Porque o testemunho do ocorrido passou de boca em boca por muitas pessoas, e todas acabaram reconhecendo Jesus como Senhor e Salvador. A ênfase no testemunho é típica de Lucas. O substantivo “testemunha” (gr. mártys) é encontrado 13 vezes em Atos (1.8,22; 2.32; 3.15; 5.32; 6.13; 7.58; 10.39,41; 13.31; 22.15,20; 26.16). David J. Bosch: “Sem dúvida, a terminologia em torno de ‘testemunha’ e ‘testemunho’ é crucial para entender o paradigma missionário de Lucas. Em Atos, ‘testemunha’ ou ‘testemunho’ torna-se o termo apropriado para ‘missão’. Até certo ponto, os termos ‘apóstolo’ e ‘testemunha’ são sinônimos. Foi dito aos apóstolos que eles seriam testemunhas de Jesus (Atos 1.2,8). A Cornélio, Pedro afirmou que Jesus foi visto ‘por testemunhas que designara de antemão, por nós que comemos e bebemos com ele depois que ressuscitou dos mortos’ (10.41). Em Antioquia da Pisídia, Paulo relata mais uma vez:‘Por muitos dias, foi visto por aqueles que tinham ido com ele da Galileia para Jerusalém. Estes agora são testemunhas de Jesus para o povo’ (13.31). Tal conceito de ‘testemunha’ é semelhante ao que encontramos no quarto evangelho, quando Jesus diz aos discípulos: ‘Vocês [...] serão minhas testemunhas, porque estiveram comigo desde o início’ (João 15.27, VP). Ao mesmo tempo, o termo ‘testemunha’ expande-se para se aplicar a outros, como Paulo (Atos 22.15; 26.16) e Estêvão (22.20). Portanto, já existe nos escritos de Lucas uma extensão do conceito de testemunha a outras pessoas além dos apóstolos”.6

O TESTEMUNHO A PEDRO (10.9-23a)

É admirável que o apóstolo mais relutante e zeloso das tradições hebraicas tenha sido escolhido pelo Senhor para ser o primeiro a pular o muro da separação entre judeus e gentios. Deus teve de usar um método poderoso para convencer seu servo e levá-lo em uma direção que ele naturalmente não estava disposto a seguir. Em todo caso, Pedro foi o instrumento escolhido para esse grande salto na trajetória da missão cristã. O testemunho de Deus a Pedro foi uma visão poderosa. Um servo útil (10.9-23a)

Pedro foi um discípulo de Jesus atormentado por contradições e ações das quais ele teve de se arrepender mais de uma vez. No entanto, apesar de seu caráter impulsivo e às vezes imprudente, Pedro foi um servo útil para o Senhor. Não é de admirar que ele tenha sido o protagonista de grandes episódios da história do primeiro testemunho cristão, um deles no texto em estudo. Essa emocionante passagem pode ser dividida em três partes. A preparação de Pedro (10.9-16). Da parte do Senhor, percebemse dois elementos nesse processo de preparação. O Senhor preparou Pedro por meio da oração. A oração era uma disciplina espiritual exercida continuamente pelo apóstolo, tal como havia aprendido com o próprio Jesus. Pessoalmente, ele estava convencido de que a oração e o ministério da Palavra eram tarefas inalienáveis e próprias de um apóstolo (6.2,4). Desse modo, enquanto estava na casa de Simão, o curtidor, ele subiu ao telhado

para orar, como era seu costume (v. 9), no horário estabelecido para a oração do meio-dia (a hora sexta; v. Salmos 55.17; Daniel 6.10). O Senhor preparou Pedro por meio de uma visão. O texto diz que enquanto esperava que lhe trouxessem algo para comer, porque estava com fome, “caiu em êxtase” (gr. egéneto ep’autòn ékstasis). O resultado dessa experiência foi que ele teve uma visão (v. 11). O texto destaca três pontos a respeito dessa experiência extática. 1) O texto relata que Pedro, “tendo fome, queria comer” (v. 10a). É estranho que não tenha comido antes ou não conciliasse a oração com jejum, como era frequente. Além disso, parece que seu apetite o despertou de maneira repentina e compulsiva. Em todo caso, Pedro interrompeu seu período de oração e pediu algo para comer. É provável que os cozinheiros tenham demorado mais que o previsto ou que Pedro estivesse jejuando havia muitas horas, mas a questão é que “caiu em êxtase”, o que pode acontecer nessas circunstâncias. 2) O texto descreve a experiência extática e a visão de Pedro (v. 10b,11). A palavra “êxtase” é uma transliteração do termo grego ékstasis e se refere a um estado além da razão e do autocontrole, que passa por uma experiência de profunda emoção. Trata-se de uma exaltação da mente e dos sentimentos que às vezes resulta em um estado de transe ou de quase imobilização, produzido por uma emoção extrema (alegria, medo, raiva, adoração). O estado de êxtase fez que Pedro tivesse uma visão. A palavra “visão” não aparece no v. 11, mas é dito que Pedro “viu o céu aberto” (gr. theōreī tòn ouranòn aneōigménon). Só mais adiante é esclarecido que ele teve mesmo uma visão (v. 17; gr. hórama).

Pablo A. Deiros: “[Visão é] uma imagem visual que impressiona quem a vivencia com seu caráter significativo e objetivo, mas que dispensa qualquer estímulo sensorial ou presença física. É a manifestação de algo imaterial ou transcendente aos sentidos. A visão é diferente do sonho, pois ocorre no estado de vigília. Geralmente, acontece em momentos de oração, êxtase, transe ou experiência mística. É considerada de origem sobrenatural, e seu propósito é a revelação de algo. Seu conteúdo depende de sua cultura religiosa. Seu valor depende de seu conteúdo ético e de sua aplicação à vida prática’’.7

O que Pedro viu foi “algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas” (v. 11). A visão, portanto, era de algo que vinha à terra desde o céu aberto. O lençol era um símbolo de algo de origem celestial: dali desceu (v. 11b) e para lá foi recolhido (v. 16b). O que havia nele (v. 12), porém, eram animais de todo tipo, alguns considerados impuros (de acordo com Levítico 11). Estavam ali quadrúpedes, répteis e aves (peixes não são mencionados). 3) Terceiro, o texto informa que Pedro ouviu uma voz que lhe falava (v. 13)A voz supostamente divina (Pedro chama “Senhor” àquele que lhe fala, v. 14), deu-lhe uma ordem que lhe soou contraditória. Um judeu ortodoxo não podia matar alguns daqueles animais para comer, daí a reação de Pedro. Não era a primeira vez que ele se recusava a cumprir uma ordem do Senhor por lhe parecer contraditória (v. João 13.8). Pedro reconheceu que quem lhe falava era o Senhor, mas não estava disposto a ir além de seus preconceitos para lhe obedecer. Por isso, a voz o repreendeu (v. 15). A tripla reiteração da descida do lençol e da ordem emitida pela voz (v. 16) ressalta o caráter categórico da mensagem divina. A chave para entender o que aconteceu é esta frase: “Não chame

impuro ao que Deus purificou” (gr. há ho theòs ekathárisen, sý mē koínou). Archibald T. Robertson: “Pedro fora criado desde a infância fazendo distinção entre alimentos puros e impuros, e essa nova proposta, embora vinda do Senhor, ia contra toda a sua preparação prévia. Ele não conseguia perceber que alguns dos planos de Deus para os judeus podiam ser temporários. O simbolismo do lençol mostraria finalmente a Pedro que os gentios podiam ser salvos sem a necessidade de se tornarem judeus. Nesse momento, ele se viu em uma turbulência espiritual e intelectual”.8

A decisão de Pedro (10.17-21). Ele escutou o Senhor. Quatro considerações se destacam nesses versículos a respeito da atitude de Pedro. Sua perplexidade. Pedro “estava refletindo no significado da visão” (v. 17a). Ele estava aturdido, sem entender o que tinha visto e ouvido. O verbo está no imperfeito e denota assim o curso de uma ação no passado. Lucas usa esse verbo várias vezes para mostrar algum grau de confusão mental (Lucas 9.7; Atos 2.12; 5.24; 10.17). Pedro não entendeu de imediato o propósito da visão e seu significado específico, embora pudesse descrever cada um dos elementos que a compunham. A palavra grega hórama (“visão”), usada para descrever a experiência de Pedro, é a mesma empregada com relação à experiência de Cornélio (v. 3). Sua reflexão. O apóstolo se esforçou para decodificar o fenômeno e entender seu significado: “Pedro ainda estava pensando na visão” (v. 19a). Enquanto ele estava envolvido nesse processo de reflexão, o Espírito Santo falou a ele. Não nos é dito se foi de maneira audível ou por percepção espiritual, mas o fato é que Pedro recebeu uma mensagem muito precisa: “Simão, três homens estão procurando por você” (gr. Idoù ándres treīs zētoūntés). Mesmo assim, nesse

contexto, a relação exata entre “o Espírito” que falou a Pedro (v. 19) e o “anjo de Deus” que falara a Cornélio em duas ocasiões (v. 3,22) é incerta. Ao que parece, o anjo falou em nome do Espírito Santo, ou ambos (Espírito Santo e anjo) foram identificados da mesma forma que no Antigo Testamento (Êxodo 3.2,4; Atos 8.26,29). Sua atenção. Pedro não se perdeu em seu raciocínio, mas prestou atenção na voz do Espírito Santo, que não explicou o significado da visão, mas lhe deu instruções precisas sobre o que fazer em seguida (v. 19b,20). O “eu” na frase “eu os enviei” (gr. hóti egō apéstalka autoús) é enfático. Na verdade, tudo que o Espírito Santo diz a Pedro é enfático e imperativo — “levante-se”, “desça”, “não hesite”, “[vá] com eles”. Não havia lugar para alternativas. Pedro não teve escolha a não ser acompanhar aqueles homens, pois foi um encontro planejado e dirigido por Deus. O Espírito havia sido o responsável pela visão de Cornélio, pelo envio, da parte deste, dos emissários a Pedro, pela visão de Pedro e agora pela resposta do apóstolo ao pedido deles. Sua disposição. Pedro estava pronto a obedecer ao Senhor, mesmo ainda em meio a certa confusão, e para se pôr à disposição dos três homens que o procuravam. Sua resposta a eles é exemplar e é o que deve ser ouvido de todo servo do Senhor ante de seu chamado: “Eu sou quem vocês estão procurando” (v. 21). Como ele explicaria mais tarde: “Quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (11.17). Ele não estava disposto não só a obedecer a Deus, mas também a servir ao próximo. Nesse aspecto, sua disposição expressa um compromisso total: “Eu sou quem vocês estão procurando” (gr. Idoù egō eimi hón zēteīte). Para coroar sua boa disposição, perguntou imediatamente qual era a tarefa que se

esperava que realizasse: “Por que motivo vieram?” (gr. tís hē aitía di’ hēn páreste). A atitude de Pedro (10,22,23a). O apóstolo tinha apenas uma coisa em mente, que governava sua vontade: obedecer ao Senhor. Pedro não esperou ter uma definição clara do significado de tudo o que havia experimentado (a visão, a voz do Espírito Santo, visitas inesperadas). Sua reflexão sobre essas questões o ocuparia pelo resto da vida (Gálatas 2.11-21). Contudo, de alguma forma, já estava claro para ele que a vontade de Deus era quebrar todas as barreiras entre judeus e gentios. Ao receber por meio de seus visitantes o convite de Cornélio, Pedro começou a encontrar sentido em tudo que tinha visto e ouvido. Prova disso é que “os convidou a entrar e os hospedou” (gr. eiskalesámenos oūn autoùs exénisen, v. 23a). Como observa Ernesto Trenchard: “Antes de entrar na casa de Cornélio como hóspede, ele já havia quebrado o ‘costume’ [judeu] quando recebeu três gentios na casa onde estava hospedado”.9 Um servo disposto (10.9-29)

Há um canal de comunicação desde os lábios do necessitado até os ouvidos de Deus. Conta-se que Dionísio, o Velho, governante de Siracusa, mandou construir para seus prisioneiros uma caverna em forma de orelha, de modo que todas as palavras que dissessem fossem transmitidas a um tímpano central perto de onde ele se sentava. O mundo é como essa caverna. Cada grito, por mais fraco, é ouvido por aquele que inclina o ouvido para ouvir “os gemidos dos prisioneiros”. Cornélio havia apresentado sua súplica e a deixara nas mãos de Deus. A resposta demorou um pouco, porque Deus estava

preparando Pedro de várias maneiras, para que este pudesse superar seus preconceitos e para incumbi-lo de uma tarefa que o apóstolo considerava das mais desprezíveis. Quando isso aconteceu, a oração de Cornélio foi plenamente atendida. Quatro dias se passaram, e então se desenrolou uma cena muito significativa. Ali está Pedro, o judeu zeloso, na casa de um gentio. E não apenas isso, mas está ali para falar dos privilégios comuns de judeus e gentios, de acordo com o amoroso propósito redentor de Deus. Além disso, Pedro não está sozinho. Seis de seus conterrâneos são testemunhas de seu zelo e de seu ministério. Pedro não demonstra orgulho nem indiferença. Faz que entendam que fora atender ao pedido deles sem nenhuma contrariedade, a fim de prestar-lhes o serviço que desejavam. À luz da experiência de Pedro, podemos considerar as virtudes de um servo disposto. Seu louvável silêncio (v. 29a). Pedro disse: “Quando fui procurado, vim sem qualquer objeção” (v. 29a). Pedro estava em silêncio, embora sua missão fosse contrária a seus preconceitos. Ele era judeu e, como tal, considerava os gentios impuros. Se vamos fazer algo significativo para Deus na vida de outras pessoas, devemos suprimir nossos preconceitos, de qualquer ordem (raciais, étnicos, sociais, culturais, religiosos). Em um mundo globalizado como este em que vivemos, especialmente nas grandes cidades da América Latina, é impossível ser seletivo em nosso serviço ao próximo em nome de Jesus. Muito menos devemos cair na armadilha demoníaca de discriminar as pessoas por não estarem de acordo com nossa maneira de pensar, sentir ou viver. A única maneira de cumprir neste mundo tão cosmopolita e diverso a

missão para a qual o Senhor nos designou é fazer o que Jesus faria em nosso lugar, ou seja, amando a todos. Pedro estava em silêncio, embora talvez duvidasse de sua capacidade para cumprir a missão (v. 20). Se ele não hesitou, pelo menos é certo que foi tentado a fazê-lo. As dúvidas invadirão nossa mente, mas não devemos avivá-las nem deixar que escapem de nossos lábios. Diz-se que os leões da dúvida são encontrados perambulando pelo caminho do dever. Coloquemos o dedo da fé nos ouvidos, para não ouvi-los rugindo nem abandonar nossa missão. Cada palavra de réplica ou de queixa é uma fibra com a qual Satanás tece uma corda para amarrar as mãos de quem poderia ser útil no Reino de Deus. Pedro estava em silêncio, embora sua missão fosse imprevista e surpreendente. Pedro não estava pronto para a tarefa para a qual o Senhor o estava desafiando. O sábio disse que há tempo para tudo, e também há tempo para o silêncio. Com certeza, chegará o tempo em que Deus nos mandará falar, fazer ou sofrer. Antes de enviar Pedro para uma missão tão pioneira e transcendente como a que ele teve de cumprir, talvez o mantivéssemos estudando a Bíblia e teologia em um seminário por muito tempo, depois provavelmente o enviaríamos a uma escola de missões transculturais e exigiríamos dele o aprendizado da língua do centurião (latim), entre vários outros requisitos. Na verdade, tudo isso é muito bom e necessário, mas não pode substituir o poder do Espírito Santo nem a autoridade que reside no nome de Jesus. Sua diligência fervorosa (v. 29a). Pedro disse: “Quando fui procurado, vim sem qualquer objeção” (gr. diò kaì anantirrētōs ēlthon metapemftheís, v. 29a). Ele partiu prontamente, no dia

seguinte depois de receber o convite (v. 23b). Acreditamos que fervor, entusiasmo, boa vontade e disponibilidade para o serviço são meios ordenados por Deus para o bom êxito do evangelho, assim como a oração e a fé. Temos essas atitudes exemplificadas no caso de Pedro. Pedro não se demorou por causa dos erros do passado. Se a ordem não fosse explícita, ele poderia ter dito: “Antes de ir como apóstolo aos gentios, vou esperar um pouco, até ter uma vida santa e exemplar. Vou me esforçar para melhorar minha reputação, pelo menos aos olhos dos irmãos na fé”. Penso que a lembrança de sua negação e abandono do Senhor crucificado não saía de sua mente nem por um momento. Essa triste recordação foi o suficiente para ajudá-lo a não cometer aquele erro outra vez. Muitos fecham as portas da oportunidade e do serviço por temer que as pessoas os difamem por seus antigos erros. No entanto, é o medo, não sua história de vida, a real barreira no caminho do serviço. São pessoas como Ártemon. O medo de que algo caísse sobre ele era tanto que designou dois escravos apenas para carregar constantemente dois enormes escudos de bronze acima de sua cabeça. Justamente essa cautela o expunha ao perigo que temia, pois o que com mais probabilidade poderia cair sobre ele eram os próprios escudos usados para sua proteção. Pedro não se demorou por causa de sua inexperiência. Era a primeira vez que atuava como missionário entre os gentios. Nunca antes tivera uma experiência como essa. No entanto, ele foi corajoso. Pedro sabia que tinha uma mensagem no coração e confiava que Deus iria levá-la até os lábios. Um servo do Senhor pode se perguntar, especialmente no início de seu ministério, por

causa de sua inexperiência, de onde virão os recursos para fazer a obra. Todos os servos de Deus ao longo dos séculos, até as figuras bíblicas mais importantes (Moisés, Davi, Jeremias), questionaram a própria capacidade de servir por causa da inexperiência. No entanto, quem recebeu o chamado de Deus para o ministério não deve temer. Se com confiança levar a trombeta do evangelho nos lábios e deixar que Deus toque a melodia, o concerto será maravilhoso. Cada um de nós foi chamado para uma tarefa especial. O dedo de Deus atribui uma “Cesareia” para alguns. Assim, antes de tudo tratemos de conhecer bem sua localização e depois, com todo o fervor, apressemos o passo nessa direção, a fim de cumprir o ministério que o Senhor nos confiou. Sua pergunta direta (v. 29b). Pedro disse: “Posso perguntar por que vocês me mandaram buscar?” (gr. pynthánomai oūn tíni lógōi metepémpsasthé me, v. 29b). Como um bom médico em visita domiciliar, Pedro não perdeu tempo com formalidades vazias. Foi direto ao paciente e perguntou por que fora chamado. Isso nos ensina duas verdades sobre o serviço cristão. Sua pergunta incisiva (v. 29b). Pedro disse: “Posso perguntar por que vocês me mandaram buscar?” (gr. pynthánomai oūn tíni lógōi metepémpsasthé me, v. 29b). Como o bom médico em visita domiciliar, Pedro não perdeu tempo com formalidades vazias. Foi direto ao paciente e perguntou por que o haviam chamado. Aprendemos aqui duas lições sobre o serviço cristão. É importante que o servo do Senhor comece bem sua obra. O servo cristão deve ter uma compreensão plena do caráter de sua missão. Deve ter também um conhecimento cabal das

probabilidades de sua missão. Deve ter, por fim, profunda consciência dos recursos de que dispõe para cumprir a tarefa. O primeiro passo, em qualquer empreendimento humano, é sempre fundamental. O mesmo se aplica à tarefa do Reino de Deus. Quem se lança ao serviço cristão deve fazê-lo com passo firme, seguro, cheio de convicção e com os olhos fixos no objetivo. O corredor que cai na linha de partida dificilmente irá cruzar a linha de chegada. No Reino, não há lugar para certas expressões típicas da América Latina, como: “Bom, vamos ver no que vai dar”. É importante que o servo do Senhor continue a fazer bem seu trabalho. Com que propósito Deus nos chamou para o ministério? Podemos deduzir várias respostas que os crentes dão a essa pergunta. Há quem diga que o líder cristão deve ser um censor. Não é assim. A posição do líder é a de pastor de ovelhas, não de cão ovelheiro. Seu trabalho é cuidar, alimentar e guiar as ovelhas do Senhor, não feri-las, abusar delas ou confundi-las. Outros dizem que o líder cristão deve ser um provedor das necessidades intelectuais dos crentes. Não é assim. É certo que o líder deve estar bem preparado para avivar a mente dos crentes, mas sua missão principal é o coração. Outros ainda entendem que o líder cristão está para ser um bom amigo ou companheiro. Não é assim. De fato, é muito bom que o líder tenha interesse em participar das alegrias e tristezas daqueles a quem serve, mas sua maior responsabilidade é com os pobres e aflitos, com os perdidos e cativos, com os que estão sem Deus e sem esperança neste mundo. O ser humano precisa de salvação, não de socialização. Por fim, não poucos afirmam que o líder cristão está para repetir o credo oficial da denominação diante daqueles a quem serve. Não é assim. O dever

do líder é ensinar a Palavra de Deus, não os sistemas que os humanos fabricaram ao longo do tempo. É vital para o progresso do Reino de Deus que a resposta à pergunta de Pedro seja repetida por todos os crentes ou por toda a comunidade a que servimos: “Nós o chamamos para que exponha e faça cumprir a Palavra de nosso Mestre. Convocamos você para admoestar os desviados, animar os fracos, conscientizar as pessoas do perigo e proclamar o Redentor”. Assim, o servo do Senhor se parecerá mais com Pedro, sua mensagem será tão poderosa quanto a do apóstolo e seu êxito no ministério se assemelhará ao que registra o v. 44: “Enquanto Pedro ainda estava falando estas palavras, o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a mensagem”. TABELA 13: Visões em Atos É interessante verificar a quantidade de visões dadas por Deus a diferentes pessoas, especialmente a seus servos, pelas quais ele deu a conhecer sua vontade. 1. As visões anunciadas pelo profeta Joel com relação aos jovens (Atos 2.17). 2. A visão de Moisés e a sarça em chamas que não era consumida (Atos 7.30,31). 3. A visão de Ananias com relação a Saulo (Atos 9.10). 4. A visão de Saulo com relação a Ananias (Atos 9.12). 5. Cornélio e a visão de um anjo de Deus (Atos 10.3). 6. Pedro e a visão cujo significado ele não conseguia explicar (Atos 10.17). 7. Pedro e a visão cujo significado o levou a refletir (Atos 10.19). 8. Pedro e a visão que teve em um êxtase na cidade de Jope (Atos 11.5).

9. Pedro e a visão que imaginou ter ao ser libertado da prisão (Atos 12.9). 10 . Paulo e a visão de um homem macedônio (Atos 16.9,10). 11 . Paulo e a visão que teve em Corinto (Atos 18.9). 12 . Paulo e a visão que mencionou ao rei Agripa (Atos 26.19).

O TESTEMUNHO A CORNÉLIO (10.23b-48)

O caminho cristão está repleto de encontros que, por sua natureza e significado, constituem marcos significativos na marcha do testemunho cristão. O encontro entre Pedro e Cornélio em Cesareia é um desses acontecimentos únicos. O testemunho a um gentio (10.23b-48)

Essa longa passagem pode ser dividida em quatro partes. A chegada de Pedro à casa de Cornélio (v. 23b-27). É interessante que Cornélio se tornou missionário antes mesmo de ser cristão, pois durante os três dias de espera ele reuniu “seus parentes e amigos mais íntimos” (seu oīkos) para aguardar Pedro. Assim, ao chegar à casa, Pedro encontrou não só uma plateia grande (“reunidas muitas pessoas”, gr. synelēlythótas polloús, v. 27), mas também disposta a ouvir sua mensagem. Sem dúvida, o centurião havia compartilhado sua estranha visão e a mensagem angelical com muita gente (v. 3-6). É evidente que Cornélio fizera propaganda muito positiva do apóstolo entre seus contatos gentios e que ele mesmo tinha Pedro em alta estima, pois se prostrou diante dele “adorando-o” (gr. prosekýnēsen, v. 25; do verbo proskunéō, “prestar homenagem ou reverência” — a alguém reconhecido como superior). Ele não o adorou (diferentemente de como traduz a NVI e a RVR), porque não era idólatra, embora Pedro pareça ter interpretado sua atitude dessa forma (v. 26). Jesus aceitava tal gesto como uma expressão de adoração (Mateus 8.2; Lucas 5.8). Ainda assim, é notável que um centurião romano tenha se prostrado diante de um humilde pescador galileu!

O contato de Pedro com a família de Cornélio (v. 28-33). Esses versículos são muito interessantes, porque apresentam uma estratégia evangelística quase esquecida nos dias de hoje. Em sociedades extremamente individualistas, predomina o evangelismo pessoal ou individual. Em outros casos, foi imposta uma evangelização coletiva ou de massas, estratégia muito atraente, pois alcança um grande número de pessoas com a mensagem, embora os resultados sejam mais voláteis. Temos aqui um caso de evangelização de toda uma família, que, por muitos séculos, foi a estratégia evangelística mais eficaz e com mais resultados permanentes. Pedro estava apreensivo. Tem-se a impressão de que Pedro estava um pouco nervoso (e não era para menos!), porque fala o tempo todo. Já entrou na casa de Cornélio “conversando com ele” (gr. synomilōn autōi eisēlthen, v. 27) e, em seguida, falou aos gentios ali reunidos para explicar a razão de estar apreensivo (v. 28a).No entanto, Pedro estava ali por causa de uma convicção recente: “Deus me mostrou que eu não deveria chamar impuro ou imundo a homem nenhum” (v. 28b). Pedro, por fim, entendeu que o que “Deus purificou” com o sangue de seu Filho Jesus Cristo (1João 1.7; Apocalipse 1.5, RVR) não é mais impuro, tanto no caso dos judeus quanto no dos gentios. Impelido por essa convicção, o apóstolo apressou-se a ir a um lugar proibido, à casa de um gentio, e ainda por cima um oficial do poder de ocupação e opressão de seu povo. Cornélio estava apreensivo. Sem dúvida, Cornélio também estava nervoso diante dos parentes e amigos gentios e sentiu a necessidade de explicar por que estava recebendo em sua casa —

e com tantas honras — um galileu desprezado (v. 30,31). À semelhança de Pedro, Cornélio teve uma visão divina, que o levara a mandar chamar o apóstolo, que estava em Jope (a 48 quilômetros ao sul). São interessantes as semelhanças entre a visão de Cornélio e a de Pedro. A expressão no início do v. 33 (“imediatamente”, gr. exautēs oūn) remete à ordem de Deus no versículo anterior: “Mande buscar em Jope a Simão”. Agora as duas visões encontram seu destino: o chamado de Cornélio une-se à vinda de Pedro. O palco está montado; as personagens estão no palco; a ação está prestes a começar. O público está na expectativa: “Agora estamos todos aqui na presença de Deus, para ouvir tudo que o Senhor te mandou dizer-nos” (v. 33). A expressão obviamente inclui todos do círculo de Cornélio que podiam estar presentes. Assim também foi no dia de Pentecoste (2.1). São notáveis a profunda piedade de Cornélio e dos que estavam com ele e seu senso da realidade da presença de Deus. Cornélio e os seus sabiam muito bem que estavam ali reunidos para ouvir uma mensagem de Deus. Eles estavam ali reunidos com um claro objetivo: “ouvir” a Palavra de Deus. Contudo, não era uma reunião para se entreterem com uma palestra ou para desfrutar a eloquência de um orador. Estavam ali para ouvir “tudo” sobre o evangelho do Reino. E sua postura atenta se fazia acompanhar da disposição para cumprir a Palavra de Deus, conforme fora revelada, ou seja, “tudo que o Senhor te mandou dizer-nos”. O testemunho de Pedro à família de Cornélio (v. 34-43). O apóstolo passou a expor de maneira solene (“começou a falar”) o kērygma, ou seja, a proclamação do evangelho. Na introdução de seu discurso (v. 34,35), ele ressalta 1) que Deus cuida de todos os

seres humanos, sem favoritismo, e 2) que Deus aceita qualquer pessoa que o tema e aja com justiça (v. Romanos 2.7-11). O primeiro ponto de seu sermão. A primeira parte do sermão fala da mensagem enviada por Deus ao povo de Israel (v. 36,37a). Essa mensagem tem seu centro na pessoa e obra de Jesus Cristo, “Senhor de todos” (gr. hoūtos estin pántōn kýrios). Pedro presumiu que aqueles gentios de Cesareia já tinham ciência destes fatos: 1) Deus anunciou a paz por meio de Jesus Cristo; 2) Jesus Cristo não foi apenas o mensageiro da paz divina, mas também o “Senhor de todos” (v. João 13.3; Mateus 11.27); 3) essa mensagem foi proclamada pela primeira vez aos filhos de Israel na Palestina (“aconteceu em toda a Judeia, começando na Galileia”, gr. genómenon hrēma kath’ hólēs tēs Ioudaías, arxámenos apò tēs Galilaías). O segundo ponto de seu sermão. A segunda parte do sermão fala da obra de Jesus de Nazaré (v. 37b,38). Ele foi batizado por João Batista, o que evidenciava sua obediência (v. 37b). Ele foi ungido por Deus com o Espírito Santo, o que evidenciava seu poder (v. 38a). Ele “andou por toda parte fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo Diabo” (v. 38b), o que evidenciava que Deus estava com ele. Ou seja, como diz o antigo hino cristão que Paulo reproduz em 1Timóteo 3.16, ele “foi manifestado em corpo, justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as nações, crido no mundo, recebido na glória”. Tudo isso era evidência de que “Deus estava com ele”. O terceiro ponto de seu sermão. A terceira parte do sermão fala do testemunho apostólico (v. 39-43). Esse testemunho se refere, em primeiro lugar, a “tudo o que ele fez na terra dos judeus e em

Jerusalém” (v. 39). Em segundo lugar, esse testemunho se refere ao que fizeram com ele, ou seja, “o mataram, suspendendo-o num madeiro” (gr. hon kaì aneīlan kremásantes epì xýlou). Em terceiro lugar, esse testemunho se refere ao que Deus fez por ele, isto é, “o ressuscitou no terceiro dia e fez que ele fosse visto” (gr. ēgeíren [en] tēi trítēi hēmérai kaì édōken autòn emfanē genésthai, v. 40). Em quarto lugar, esse testemunho se refere ao que as testemunhas apostólicas deveriam fazer, ou seja, “pregar ao povo e testemunhar que foi a ele que Deus constituiu juiz de vivos e de mortos” (v. 42). Em quinto lugar, esse testemunho se refere ao que os profetas fizeram, ou seja, deram testemunho de que “todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados mediante o seu nome” (v. 43). A resposta da família de Cornélio a Pedro (v. 44-48). A informação registrada nesses versículos comprova nossa afirmação de que a evangelização de famílias inteiras é a mais eficaz e com mais resultados permanentes. A evangelização de famílias inteiras é uma estratégia evangelística que consiste em anunciar o evangelho à família como unidade social, com vistas à sua conversão. Esse método leva em consideração a estrutura social de determinado povo. Onde a estrutura é baseada na família, a evangelização deve visar à comunicação do evangelho por meio das relações familiares. A evangelização de toda a família é um modelo eficaz para o desenvolvimento da missão na América Latina, onde a cultura católica romana de redes de parentesco faz que as estruturas familiares sejam muito fortes. No caso da família de Cornélio, os resultados foram extremamente eficazes. Uma experiência carismática com o Espírito. Em Cesareia, aconteceu exatamente a mesma coisa que em Jerusalém no dia de

Pentecoste, com a diferença de que no primeiro caso o Espírito Santo desceu sobre os gentios que ouviram a mensagem. A Palavra foi recebida com obediência e fé, por isso esses gentios creram em Jesus Cristo (cf. 11.17). A profecia do Senhor foi cumprida de forma extraordinária (João 12.23,24,31,32). As palavras declaradas mais tarde pelo apóstolo Paulo (Efésios 2.11-15) também foram cumpridas: judeus e gentios veriam cair “mediante o sangue de Cristo [...] a barreira, o muro de inimizade” que os separava. Ernesto Trenchard: “O paralelismo com o dia de Pentecoste é exato, pois o Dom celestial caiu sobre os corações preparados, sem a mediação de nenhum ato externo, como a imposição de mãos ou o batismo. Operaram apenas a Palavra apresentada e a fé que a recebeu. Os crentes, cheios do Espírito, falavam línguas e engrandeciam a Deus, como os judeus no cenáculo (2.4,11), para grande espanto das testemunhas que haviam acompanhado Pedro desde Jope. Com certeza, eles imaginavam que os gentios fiéis iriam receber alguma bênção, mas não lhes passou pela cabeça ‘que o dom do Espírito Santo fosse derramado até sobre os gentios’ para engrandecer o Nome de Deus, que foi evidente em 2.4,11”.10

Uma experiência de compromisso com Cristo. A resposta da família de Cornélio não se limitou à experiência carismática de receber o Espírito acompanhado de línguas e de louvores, mas foi além, com o ingresso de todos na família da fé por meio do testemunho público do batismo, exatamente como aconteceu no Pentecoste. Diante da evidência de que eles haviam nascido de novo e recebido o Espírito Santo, Pedro achou apropriado proceder ao batismo dos novos crentes (v. 47). Desse modo, o significado do batismo, que Paulo mais tarde explicaria (Romanos 6.1-5), foi mantido intacto. O selo do batismo é posto sobre a realidade da união e do compromisso do crente com seu Salvador e Senhor, no pleno sentido de sua morte e ressurreição. Trenchard observa que o

batismo foi “em nome de Jesus Cristo” (gr. en tōi onómati Iēsoū Christoū), “já que os convertidos passaram de uma adesão incompleta ao judaísmo para a esfera onde o Nome (autoridade e poder) de Jesus Cristo governava (comp. com 8.16, onde a frase é eis tōi ónoma). O batismo dos crentes foi seguido da catequese, ou seja, do ensino (v. a ordem em Mateus 28.19,20). Para isso, fez-se necessário que Pedro, com seus companheiros, “ficasse com eles alguns dias”. Assim, foi estabelecida uma igreja em Cesareia, que se tornou famosa em épocas posteriores e se caracterizava por seu zelo evangelístico e pelo exercício dos dons espirituais, especialmente o de profecia (21.9-14). O testemunho a um inimigo (10.24-48)

Todo membro da igreja deve entender que todas as pessoas são importantes para Deus e, portanto, demonstrar o amor de forma prática e expressar aceitação com respeito a outras pessoas. Deus não faz acepção de pessoas. Ele não age com favoritismo (10.34; Romanos 2.11; Gálatas 2.6; Efésios 6.9; Colossenses 3.25; 1Pedro 1.17), e nenhum filho de Deus deve agir assim (Tiago 2.1,9). O evangelho do Reino deve ser anunciado “a todas as pessoas”, mesmo àquelas que, por algum motivo, consideramos antagônicas, inimigas ou estranhas. O poder da graça de Deus é tão assombroso que pode reorientar até o que parece imutável. E não há nada mais difícil de mudar que o ser humano e sua maneira de pensar e imaginar a realidade. O significado e a profundidade das mudanças que a mensagem do evangelho opera na vida de alguém, independentemente de nacionalidade, origem ou condição social, política ou econômica,

devem levá-lo a assumir duas atitudes e convergir para certo tipo de comportamento: 1) fazer sua a própria atitude de Deus, ou seja, considerar que todas as pessoas são importantes; 2) criar maneiras pelas quais possa ajudar os outros a se sentirem amados e aceitos. O cap. 10 apresenta um caso riquíssimo em significado, que ilustra essas verdades com eloquência. Na experiência de Cornélio, podemos perceber o desenvolvimento do processo de transformação pessoal que o evangelho opera na vida do indivíduo e em seu meio social. Ao analisar esse episódio, observamos três questões importantes. Cornélio: um militar piedoso e temente a Deus (v. 1,2). É difícil encontrar um soldado que demonstre sentimentos humanos profundos. A vocação militar não se presta ao cultivo desses sentimentos. Na verdade, parte do treinamento militar consiste em desenvolver perícias e estratégias para causar todos os danos possíveis ao inimigo e, se necessário, a morte. Nos tempos bíblicos, isso era ainda mais notório, especialmente no que dizia respeito às legiões romanas. A repressão romana nas províncias do império era brutal e implacável. A sensibilidade de Cornélio, portanto, é surpreendente e comprova a autenticidade histórica da narrativa de Lucas. Cornélio: um gentio alcançado pelo amor de Cristo (v. 30-35). O amor de Deus, da maneira que se manifesta em Cristo, não é discriminatório. Sua graça é plena e abrange todos os seres humanos, sem distinção. Há três considerações a serem observadas aqui.

A petição de Cornélio (v. 30). Sua disposição espiritual é notável, pois o texto (na RVR e na RVR95) indica que ele estava jejuando. Também é notável sua petição, pois ele afirma que estava orando. O jejum e a oração são disciplinas espirituais que costumam caminhar juntas e expressam um profundo grau de piedade e de boa vontade espiritual (Mateus 17.21; Lucas 2.37; Atos 13.2,3; 14.23). A resposta a Cornélio (v. 31,32). Deus respondeu ao pedido do centurião romano de maneiras surpreendentes, e seis considerações se destacam nessa resposta. 1) Observe-se a visão: “apresentou-se diante de mim um homem com roupas resplandecentes”. Uma pessoa de aspecto reluzente (talvez um anjo) e em roupas cintilantes apresentou-se diante dele. 2) Observese a aceitação: Deus ouviu a oração e levou em conta as boas obras que Cornélio havia feito. 3) Observe-se a revelação. O anjo disse-lhe: “Mande buscar em Jope a Simão, chamado Pedro. Ele está hospedado na casa de Simão, o curtidor de couro, que mora perto do mar”. A precisão da revelação divina é impressionante. 4) Observe-se a provisão. Diz a RVR no final do v. 32: “Quando chegar, ele falará contigo”. Deus sempre tem um servo preparado e disposto a agir como seu agente de redenção e bênção. 5) Observe-se a obediência. Cornélio fez exatamente o que lhe foi ordenado: “Assim, mandei buscar-te imediatamente” (v. 33a). 6) Observe-se a atitude. O romano estava disposto a ouvir a Palavra de Deus: “Agora estamos todos aqui na presença de Deus, para ouvir tudo que o Senhor te mandou dizer-nos” (v. 33b). O privilégio de Cornélio (v. 33,34). O oficial romano desfrutava na época um triplo privilégio. Primeiro: ele teve o privilégio de dar a Pedro, um dos apóstolos mais destacados de sua época, uma

oportunidade de mudança. Segundo: ele teve o privilégio de ilustrar um princípio básico do evangelho: as boas-novas do Reino são para todas as pessoas, sem discriminação. Terceiro: ele teve o privilégio de participar do início da propagação mundial do evangelho, completando, assim, o programa delineado pelo Senhor em Atos 1.8. Cornélio: um homem disposto a ouvir o evangelho (v. 33). Na Bíblia, encontramos muitos pregadores e sermões “modelares”. Acaso diz algo a respeito de “ouvintes-modelo”? Sim, a Bíblia está cheia de instruções e exortações aos que ouvem a mensagem. Muitas calamidades sobrevieram à nação de Israel porque o povo não quis ouvir (Isaías 28.12,13; Jeremias 7.13-15; Zacarias 7.13,14; Malaquias 2.2). Algumas das declarações mais solenes de Jesus estão relacionadas com o ato de ouvir, não só sobre o que é ouvido (“Considerem atentamente”, Marcos 4.24; “Vede o que ouvis”, RVR), mas também sobre como se ouve (“Considerem atentamente como vocês estão ouvindo”, Lucas 8.18; “Vede como ouvis”, RVR). Cada uma das cartas às sete igrejas de Apocalipse 2 e 3 termina com a exortação: “Aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas”. Ouvir é muito importante. Assim como o pregador deve se preparar para pregar um bom sermão, os ouvintes devem estar preparados para ouvi-lo, a fim de tirar proveito da mensagem. Para isso, devem pedir a Deus ouvidos atentos, coração receptivo e vontade obediente. Esta foi a atitude de Cornélio e de seus amigos enquanto aguardavam a chegada de Pedro (v. 24). No v. 33, podemos observar três pontos a respeito de ouvir a Palavra de Deus.

Sua determinação em ouvir o evangelho. Os ouvidos de Cornélio e de sua casa estavam prontos para ouvir a mensagem de salvação. A determinação em ouvir tal mensagem manifestou-se de várias formas. 1) Foi uma determinação baseada na obediência. Cornélio obedeceu de pronto à ordem divina de trazer Pedro de Jope: “mandei buscar-te imediatamente”. Ouvir a Palavra de Deus é um imperativo a que devemos obedecer sem hesitação. Há muitos mandamentos do Senhor e palavras de Deus às quais devemos não apenas atentar, mas também obedecer (p. ex., Hebreus 10.25). 2) Foi uma determinação expressa na pontualidade. Não basta comparecer aos serviços comunitários: deve-se também comparecer na hora certa. Pedro pregou muito melhor porque seu público estava na expectativa... e fora pontual! Ninguém chegou tarde ou no último instante, possivelmente perturbando o pregador e os demais. O sermão não é a parte mais importante do culto, mas constitui uma parte significativa. Se a congregação não estiver em uma atitude autêntica de louvor e adoração, Deus não terá a oportunidade de falar. Contudo, uma comunidade de fé que adora “em espírito e em verdade” receberá, sem dúvida, a mensagem de Deus. 3) Foi uma determinação caracterizada pela unanimidade. Na casa de Cornélio, “todos” demonstravam a mesma atitude, que era a disposição para ouvir o testemunho de Pedro. Até que ponto nossas justificativas para não comparecer ao culto comunitário não são desculpas esfarrapadas? Sua reverência ao ouvir o evangelho. Cornélio e sua família estavam concentrados na mensagem que Pedro lhes transmitia,

mas tinham um comportamento muito especial. Em primeiro lugar, portavam-se com humildade — estavam em submissão total (Êxodo 3.5,6,11). Não há outra maneira de entrar na presença de Deus. A Palavra de Deus deve ser recebida com humildade. Em segundo lugar, portavam-se com sinceridade — tinham motivos puros (Lucas 8.18). Não há outra maneira de Deus falar conosco. A Palavra de Deus deve ser aplicada ao coração com sinceridade. Em terceiro lugar, portavam-se com esperança — alimentavam uma grande esperança (Salmos 62.5). Não há outra maneira de a Palavra de Deus nos abençoar. A Palavra de Deus deve ser obedecida, na certeza de que não só o que Deus diz é verdade, mas também que suas promessas serão cumpridas. Seu desejo de ouvir o evangelho. O grupo que ouviu a mensagem de Pedro na casa de Cornélio demonstrou uma atitude mais positiva do que se imagina, com relação ao pregador e sua pregação. Isso era percebido: 1) Em sua postura atenta. A Palavra do Senhor deve ser ouvida com atenção (“para ouvir”). Não devemos comparecer ao culto para ouvir a mensagem simplesmente com a intenção de sermos vistos ou de bisbilhotar a vida alheia. Não devemos esperar que o culto seja um show com boa música e um monólogo agradável e divertido. Não devemos estar no culto como um público passivo ou indiferente. Nossa participação no culto deve culminar na experiência única de “ouvir” a Palavra de Deus. 2) Em sua expectativa. Na casa de Cornélio, o público estava ansioso para “ouvir tudo”. Não devemos estar dispostos a ouvir apenas o que nos agrada, nos convém ou nos anima, e sim a escutar todo o conselho de Deus. Para isso, é preciso superar

preconceitos, às vezes muito arraigados, tanto por parte do pregador quanto por parte dos ouvintes. São preconceitos que impedem a recepção adequada da mensagem: a etnia e a religião (como no caso de Pedro e Cornélio), o status e a riqueza, a educação e a cultura, a experiência religiosa e a espiritualidade, e assim por diante. Os preconceitos só podem desaparecer por meio da comunhão adequada com Deus, em cuja presença os diversificados elementos se encontram sobre uma base comum. Eles também desaparecem quando há reconhecimento dos fatos, especialmente ao se levar em conta a irracionalidade dos preconceitos. Devemos ouvir sem preconceitos, com o coração sensível e aberto à Palavra de Deus. 3) Em sua obediência. Não se trata apenas de ouvir, nem mesmo do preparo do pregador para falar ou do ouvinte para ouvir: a ênfase está no dever. Ou seja, ela recai sobre o que deve ser pregado e o que deve ser ouvido. O que se deve pregar e ouvir não é mera palavra humana, mas a Palavra de Deus. A Palavra vem pelo ouvir, e o ouvir leva à fé, e a fé conduz à obediência. Cornélio: como cristão cheio do Espírito Santo (v. 44-48). Esses versículos ilustram esse fato por meio de três imagens carregadas de emoção e de experiências espirituais profundas, bem como de manifestações surpreendentes. A experiência interior com o Espírito (v. 44). Observe-se que ninguém da família de Cornélio foi excluído da profunda experiência com o Espírito Santo. “Todos os que ouviam a mensagem” foram cheios do Espírito Santo. Isso não significa que o simples fato de ouvir a mensagem do evangelho funciona como mágica para que alguém se converta, nasça de novo e esteja em condições de ser

cheio do Espírito. Nesse contexto, os que ouviram a mensagem foram primeiramente regenerados pelo Espírito, que operou de fora para dentro em seu ser interior, e de lá de dentro os encheu, a fim de que fluíssem como “rios de água viva” (João 7.38), o que se evidenciou no falar em línguas e nos louvores a Deus. É assim que a obra de regeneração do ser humano ocorreu em nosso ser interior, ou seja, no mais profundo de sua interioridade (coração ou espírito), e dali envolve o restante da pessoa humana (sua alma e seu corpo). A manifestação externa do Espírito (v. 45,46). Quando o Espírito Santo desce ou é derramado sobre os crentes, ou seja, sobre os que já têm a plenitude do Espírito Santo habitando seu ser, há sempre evidências externas da autenticidade da experiência. Nesse caso, foram “línguas” e louvores a Deus.As línguas (sejam quais forem) não são evidência de conversão; o fruto do Espírito Santo, sim (Gálatas 5.22-25). As línguas são uma das várias manifestações externas do enchimento do Espírito Santo. Isto é o que acontece: quando o Espírito enche o crente, ele opera dentro dele, ou seja, ocupa todas as esferas de seu ser. Isso significa que o Espírito Santo, que habita plenamente o crente desde o momento em que este recebe Cristo, se converte ou é regenerado, passa a controlar todas as áreas da pessoa. Quando o Espírito enche alguém, ele controla sua alma, que é a sede da vontade, da mente e das emoções, e também o corpo. Eis o motivo de serem estes alguns sinais da plenitude do Espírito: choro, riso, tremor, queda, visões, viagens celestiais, levitação, tontura, desmaio, e assim por diante. A avaliação dos fatos (v. 47,48). Toda experiência espiritual, por mais sublime e profunda, deve ser avaliada, para que se prove sua

autenticidade. Desse modo, a avaliação das experiências espirituais ocorridas na casa de Cornélio deu-se por três meios distintos. Primeiro: fez-se uma consulta necessária. Pedro pediu a opinião dos crentes que o acompanhavam para saber o que pensavam da situação: “Pode alguém negar a água, impedindo que estes sejam batizados?”. Observe-se que a avaliação foi feita com base em algo que já haviam experimentado, ou seja, o processo partiu do conhecido para o desconhecido, do já vivenciado para uma nova experiência. Segundo: obedeceu-se ao mandamento de Cristo acerca do batismo dos crentes. Por isso, Pedro “ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo”. Terceiro; demonstrouse uma prática coerente, que também destacava a realidade do novo nascimento dos gentios e sua nova vida em Cristo. Brotou neles um belo espírito de acolhimento e de solidariedade. Essas reflexões sobre a experiência de um gentio como Cornélio nos ajudam a entender objetivamente a verdade de que, quando alguém se torna cristão, toda a sua experiência, suas formas e seus valores religiosos são reorientados. Além disso, a conversão de Cornélio foi um precedente importante para se resolver a questão das relações entre judeus e gentios. Ficou claro que o evangelho se destina a todos os seres humanos, sem distinção. A igreja é uma comunidade nova, na qual, graças à obra de Cristo, as barreiras que dividem os seres humanos desapareceram (Gálatas 3.26-29).

O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM (11.1-18)

Algo extraordinário havia ocorrido em Cesareia. Como resultado do ministério de Pedro na casa de Cornélio, a igreja de Jesus Cristo fora estabelecida naquela cidade. A notícia espalhou-se como um incêndio por toda a Judeia e não demorou a chegar a Jerusalém. A novidade teria sido motivo de grande alegria em meio à liderança apostólica da cidade, pois Cesareia era uma cidade estratégica e culturalmente distante de Jerusalém. No entanto, longe disso, a informação caiu sobre eles como um balde de água fria ou, pelo menos, suscitou questões e despertou grande preocupação. O local onde se reunia a nova congregação era a casa de um gentio e, para piorar, um centurião romano. Além disso, praticamente todos os seus membros fundadores eram gentios, não judeus. Seria o primeiro grande debate missiológico enfrentado pela igreja de Jerusalém, e a discussão sobre o tema não podia ser evitada. A maneira pela qual as lideranças trataram o assunto é um exemplo de maturidade espiritual e de ousadia intelectual. Para resolver o conflito, foi preciso transpor enormes barreiras religiosas, lançar por terra imensas muralhas de preconceitos étnicos e contornar as limitações da mentalidade tradicional. O relatório (11.1-18)

O processo de digestão do ocorrido, especialmente de uma perspectiva missiológico-teológica, não foi nada fácil. No entanto, o prestígio de Pedro, o peso de sua carreira na comunidade de fé hierosolimitana e sua atitude e experiência foram de grande ajuda, não só para explicar o que acontecera em Cesareia, mas também

para tentar discernir a vontade de Deus por trás dos acontecimentos. Havia muito que explicar aos irmãos, uma vez que cada detalhe do ocorrido chocava-se com a mentalidade dominante entre os crentes judeus em Jerusalém, e o novo sempre provoca medo e põe as pessoas na defensiva. Por isso, a passagem está dividida em três seções. Uma discussão (v. 1-3). A notícia espalhou-se rapidamente por “toda a Judeia”, e um acontecimento como a conversão de um centurião romano e de toda a sua família (oīkos) não passaria despercebido pela comunidade judaico-cristã de Jerusalém. Depois de desfrutar um período maravilhoso discipulando os novos crentes gentios em Cesareia, Pedro teve de encarar uma discussão com o “partido dos circuncisos” (gr. diekrínonto pròs autòn hoi ek peritomēs), que o criticava (v. 2). Já prevendo o debate, Pedro levara consigo “seis irmãos”|(v. 12) de Jope para servirem de testemunhas imparciais no caso. Os judaizantes admitiam a possibilidade de os gentios serem salvos, mas somente mediante o cumprimento das leis judaicas tradicionais, especialmente a circuncisão, como sinal da aliança com Deus. Na verdade, a acusação de seus críticos baseava-se em informações falsas ou distorcidas. Pedro não tinha ido à casa de Cornélio para “comer com eles”, e sim para anunciar-lhes o evangelho do Reino. Um depoimento (v. 4-17). Pedro foi obrigado a “explicar” passo a passo o que havia acontecido. Depoimento é uma exposição ou declaração acerca de algo e, em termos jurídicos, consiste em uma apresentação oral perante um juiz ou um tribunal. Lucas repete todos os fatos, porque foi um acontecimento importante na história

da salvação. O autor faz o mesmo com o relato da conversão de Saulo, repetido três vezes em Atos. Observe-se que Pedro se limita a contar o que ocorreu sem tentar fazer uma interpretação dos fatos ou teologizar sobre eles. O  resumo é preciso, inteligente e persuasivo. Pedro adiciona dois ou três detalhes para justificar seu comportamento. Em primeiro lugar, lembra-os de que ele não foi sozinho à casa de Cornélio: “Estes seis irmãos também foram comigo, e entramos na casa de um certo homem” (v. 12). Em segundo lugar, lembra-os das palavras de Jesus, quando este declarou: “João batizou com água, mas vocês serão batizados com o Espírito Santo” (v. 16). Em terceiro lugar, lembra-os de que tudo fora uma ação de Deus e que, diante disso, ele não teve escolha senão aceitá-lo: “Se, pois, Deus lhes deu o mesmo dom que nos tinha dado quando cremos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (v. 17). Uma decisão (v. 18). O depoimento de Pedro e seus argumentos, respaldados pelo testemunho dos seis irmãos de Jope, fecharam a boca de seus críticos, que “não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus” (gr. hēsýchasan kaì edóxasan tòn theòn) ao tomar conhecimento de que “Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos gentios”. Ernesto Trenchard: “Isso não significa que a admissão dos crentes gentios na igreja deixava de apresentar seus problemas, mas que a obra de Deus, ao lhes abrir a porta da fé por intermédio de Pedro, fora reconhecida pelos guias espirituais de Jerusalém. Os processos de superação de antigos preconceitos e tradições arraigadas são longos e complicados, principalmente quando estão envolvidos com o espírito partidário, que se aproveita de verdades parciais para tentar estabelecer posições carnais. Os menos compreensivos vieram a formar o bloco ‘judaizante’, que mais tarde daria muito que fazer ao apóstolo Paulo. Contudo, podemos louvar ao

Senhor pelo fato de que as doutrinas fundamentais da justificação pela fé e da santificação por meio do Espírito adquiriram maior nitidez de expressão nas epístolas aos Gálatas e aos Romanos, precisamente por terem sido formuladas no calor da luta contra o ‘partido dos circuncisos’ ”.11 A interpretação dos fatos (11.1-18)

Pela perspectiva do Reino de Deus, o que aconteceu na casa de Cornélio? Sem dúvida, tudo que se verificou ali foi teológica e missiologicamente relevante. Os acontecimentos relacionados com a conversão do gentio Cornélio e sua família revestiram-se de um significado teológico e missiológico fundamental. Tratou-se de um grande salto qualitativo e quantitativo do mundo judaico-cristão palestino para o mundo gentio greco-romano. Isso explica a necessidade de Pedro interromper sua jornada missionária ao longo da costa do Mediterrâneo e retornar a Jerusalém para explicar aos demais apóstolos e aos “irmãos de toda a Judeia” (gr. kaì hoi adelfoì hoi óntes katà tēn Ioudaían) o que havia acontecido. Uma vez ali, Pedro narrou em detalhes tudo que acontecera, com a observação de que cada passo fora uma ação de Deus por meio do Espírito Santo, não algo que ele havia orquestrado ou planejado por conta própria. Parecia evidente que algo providencial estava em processo. Charles Van Engen: “Esse relato remete de imediato à descrição lucana da dispersão da igreja de Jerusalém dada a perseguição ali, ao progresso da igreja de Antioquia e ao envio da oferta de Antioquia para Jerusalém. ‘Nessa ocasião’ (12.1), Herodes prende Pedro, Pedro vivencia uma fuga milagrosa da prisão por mãos de outro anjo, e Herodes é julgado por Deus e morre (12.1-24). Mais ou menos na mesma época, Barnabé e Saulo retornaram a Antioquia, onde o Espírito Santo havia formado um novo grupo de líderes. E, ‘enquanto adoravam o Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo’ aos crentes de Antioquia que separassem Barnabé e Saulo para o que seria a primeira de várias viagens através do mundo romano (13.2). Foi inaugurada assim a missão gentia. Que história! Seriam todos esses acontecimentos

meras coincidências? Claramente, Lucas estava tentando descrever uma sequência de fatos tão bem planejada e elaborada que só podia ser obra de Deus”.12

Duas questões se destacam da leitura de Atos 11.1-18: A importância teológica da visão. As visões da parte de Deus, como veículos de sua revelação e de sua Palavra, têm um significado teológico singular. Amós 3.7 observa: “Certamente o SENHOR, o Soberano, não faz coisa alguma sem revelar o seu plano aos seus servos, os profetas”. Deus age de forma redentora na história, e seu plano não está escondido na esfera dos mistérios insondáveis. Ele dá a conhecer seu propósito redentor e também revela seu plano de ação redentora. As visões de Cornélio e de Pedro, como fenômenos extraordinários da comunicação (ou Palavra) de Deus, são ilustrações desse fato. Ambas as visões coincidem em destacar a vontade salvadora de Deus com relação aos gentios, a despeito dos preconceitos e condicionamentos humanos do povo judeu (até mesmo dos cristãos incipientes). Toda a história é o testemunho de um processo crescente de discernimento da vontade divina concernente à salvação dos gentios.13 Além disso, o derramamento do Espírito Santo sobre os gentios foi de uma transcendência teológica crucial, pois significava uma repetição da experiência pentecostal de Atos 2 (Pentecoste judaico) e 8 (Pentecoste samaritano). Deus usou a experiência inaugural de Jerusalém para mostrar a aceitação de outros grupos raciais, étnicos, culturais, sociais e geográficos (v. 17) em seu Reino. Desse modo, a experiência não foi de valor teológico apenas para Cornélio, mas também para Pedro, para os judeus que o acompanharam a Jope e para todos os crentes de Jerusalém. Todos eles aprenderam

algo novo a respeito de Deus por meio desses acontecimentos. De fato, o próprio Pedro foi capaz de recordar e reinterpretar as palavras do próprio Jesus sobre o batismo com o Espírito Santo (v. 16) e relacioná-las com essas experiências. Com isso, pôs em evidência a abordagem ou a forma de fazer teologia dos primeiros apóstolos, a qual se fundamentava nas palavras do Senhor das quais se lembravam, no exemplo de suas ações redentoras e nas referências ao Antigo Testamento (v. Mateus 3.11; Atos 1.5). A importância missiológica da visão. Geralmente, quando Deus se revela por meio de uma visão, é para informar o que ele fará, de modo que possamos nos envolver com ele em sua ação redentora. Como já foi dito, é surpreendente que Lucas repita em detalhes o relato do encontro redentor entre Pedro e Cornélio. O próprio Pedro entendeu o significado profundo de sua visão e de tudo que aconteceu ao associar sua visão a seu significado missiológico em seu depoimento (11.5-17). Esse entendimento fica evidenciado na conclusão de seu relato: “Se, pois, Deus lhes deu o mesmo dom que nos tinha dado quando cremos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (v. 17). É interessante o que ele disse mais tarde aos líderes reunidos no Concílio de Jerusalém: “Irmãos, vocês sabem que há muito tempo Deus me escolheu dentre vocês para que os gentios ouvissem de meus lábios a mensagem do evangelho e cressem. Deus, que conhece os corações, demonstrou que os aceitou, dando-lhes o Espírito Santo, como antes nos tinha concedido. Ele não fez distinção alguma entre nós e eles, visto que purificou os seus corações pela fé” (15.7-9). Desse modo, a visão de Pedro fazia parte da ação redentora de Deus e da obra missionária do Espírito Santo entre os gentios, o

que levou a igreja judaico-cristã de Jerusalém a aceitar sua responsabilidade pela missão gentílica.14 Além disso, o que Deus faz sempre impõe uma exigência sobre o que o ser humano deve fazer. Diante da poderosa manifestação do amor redentor e não discriminatório de Deus, todos os seres humanos, sem exceção, devem se arrepender de seus pecados. Assim como é ele quem dá seu Espírito, provém dele também a oportunidade de “arrependimento para a vida” (gr. tēn metánoian eis zōēn édōken, v. 18). Mas o que vem a ser esse “arrependimento para a vida”? É sentir remorso? É pôr fim ao pecado? É autopunição? O melhor texto do Novo Testamento para entender as diferentes conotações desse conceito é 2Coríntios 7.8-11, onde Paulo usa três palavras gregas diferentes, porém relacionadas entre si. A primeira é “tristeza” (lýpē, duas vezes no v. 8, três vezes no v. 9, duas vezes no v. 10 e uma vez no v. 11). Significa “tristeza”, “dor”, “aflição” ou “pesar” e tem um significado teológico neutro. A segunda é “arrependimento” (metanoéō, v. 9,10), palavra composta por “além” (metá) e “mente” (noūs) que implica uma mente nova, uma nova maneira de pensar, uma nova atitude com relação à vida e a Deus. É o arrependimento propriamente dito. A terceira é “remorso” (metamélomai, duas vezes no v. 8 e uma vez no v. 10), vocábulo composto por “além” (metá) e “cuidado” (mélomai). É usado com relação a Judas em Mateus 27.3 e a Esaú em Hebreus 12.16,17. O termo implica dor pelas consequências, não por ações erradas. TABELA 14: O arrependimento para a vida

1. Pregado por Salomão (1Reis 8.46-51).

2. Pregado por Ezequiel (Ezequiel 14.6). 3. Pregado por Joel (Joel 2.12). 4. Pregado por Zacarias (Zacarias 1.3,4). 5. Pregado por João Batista (Marcos 1.4). 6. Pregado por Jesus (Mateus 4.17). 7. Pregado por Pedro no dia de Pentecoste (Atos 2.38). 8. Pregado por Paulo em Atenas (Atos 17.30). 9. Pregado por Paulo em todos os lugares (Atos 26.20). 10 . Pregado por Pedro em uma de suas cartas (2Pedro 3.9).

O TESTEMUNHO EM ANTIOQUIA (11.19-30)

Antioquia, capital da Síria, era a terceira maior cidade do império romano (depois de Roma e Alexandria). Na época, tinha uma população de meio milhão de pessoas. Antioquia iria se tornar o centro a partir do qual teriam início as missões mundiais. Ali foi organizada a primeira igreja gentia, que se revelou de grande importância para o avanço do Reino na segunda metade do primeiro século cristão e também mais tarde. É difícil imaginar a mudança revolucionária que a propagação do evangelho aos gentios causou nos cristãos judeus, bem como suas enormes consequências. O testemunho em Antioquia (11.19-30)

O v. 19 retorna a 8.4 e prossegue com o relato da dispersão dos crentes que se seguiu à morte de Estêvão. Foi a terceira das quatro maneiras em que ocorreu a expansão da igreja. As duas primeiras se deram por meio do testemunho de Filipe ao oficial etíope e de Pedro a Cornélio. Talvez seja essa a ordem cronológica dos acontecimentos, embora não se saiba o tempo decorrido entre um episódio e outro. No entanto, é bem provável que o testemunho de crentes judeus aos gentios (pessoas de fala grega) em Antioquia (v. 20,21) se deva ao fato de a conversão do gentio Cornélio ter chegado ao conhecimento de todos. A quarta linha de arranjos para o avanço do evangelho entre os gentios foi a conversão de Saulo, que forneceu o instrumento humano para trilhar o caminho que outros haviam preparado. A passagem (11.19-30) mostra quatro momentos cruciais na vida da comunidade de fé de Antioquia.

O nascimento da igreja (v. 19-21). Destaca-se aqui o período de preparação (v. 19), ocorrido por meio da dispersão dos crentes de Jerusalém em razão da perseguição. Por ignorância, a pregação do evangelho do Reino ficou inicialmente limitada aos judeus. Esse período é seguido pelo avanço da congregação (v. 20). Isso aconteceu porque alguns crentes de Chipre e de Cirene obedeceram ao impulso espontâneo de abrir o coração também aos de fala grega. A mensagem era muito simples. Eles pregavam a respeito da pessoa do “Senhor Jesus”, ou seja, os aspectos humanos e divinos do Salvador. O terceiro período foi caracterizado pelo poder demonstrado (v. 21). A manifestação do poder divino era evidenciada na bênção de Deus sobre o testemunho dos crentes. Desse modo, uns poucos crentes desconhecidos e comuns deram início à obra na grande cidade da Síria, que se tornou o centro da cristandade gentia. A nutrição da igreja (v. 22-24). Para que isso acontecesse, havia a necessidade de cooperação (v. 22). Notícias do que estava ocorrendo em Antioquia chegaram à igreja-mãe, em Jerusalém. Os irmãos enviaram a pessoa mais idônea para ajudar na demonstração do interesse deles. Tratava-se de Barnabé, cujo nome significa “consolador” (4.36; lit., “filho da consolação”). Para que isso acontecesse, havia a necessidade de consagração (v. 23). Barnabé logo percebeu o que havia acontecido e se alegrou com isso. No exercício de seu ministério de consolador (ministério de exortação), ele incentivava os irmãos a permanecerem fiéis ao Senhor. Para que isso acontecesse, havia a necessidade de caráter (v. 24). O conselho de Barnabé não vinha dos lábios nem do cérebro, mas do coração e de seu caráter. Ele próprio “era um

homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé” (gr. hóti ēn anēr agathòs kaì plērēs pneúmatos hagíou kaì písteōs). O resultado do ministério de um homem desse calibre espiritual foi uma bênção crescente (resultado qualitativo) e crescimento abençoado (resultado quantitativo). O crescimento da igreja (v. 25,26). A igreja da cidade de Antioquia era saudável e normal. Na condição de comunidade de pessoas e como organismo vivo, essa congregação local cresceu de maneira não forçada, mas como resultado de uma rica vida interna e de seu testemunho. Com relação a esse processo de crescimento, três fatores se destacam. Em primeiro lugar, eles precisavam de ajuda (v. 25). O trabalho era excessivo para ser feito apenas por Barnabé, por isso ele procurou a ajuda do homem certo para a situação: Saulo de Tarso. Observe-se que a atitude de Barnabé com relação a ele era aberta, desprendida, sem ciúmes e não competitiva. A experiência histórica já comprovou que a liderança compartilhada de uma igreja, com equipes ministeriais, é muito mais eficaz que a liderança de uma só pessoa. Quando eu estudava no seminário, ensinaram-me que os oficiais da igreja (particular) são dois: o pastor e os diáconos. Essa afirmação não só é desprovida de base bíblica, como se trata de uma aberração missiológica. Não é possível reunir em uma só pessoa todos os dons, capacitações, talentos e habilidades necessários para liderar a comunidade do Reino. Barnabé e os irmãos de Antioquia foram muitos sábios em perceber isso. Em segundo lugar, eles tiveram de avançar (v. 26a). Os dois líderes se reuniram com a igreja de Antioquia “durante um ano inteiro” (gr. eniautòn hólon). A comunhão com os irmãos e a

ministração do ensino requeriam tempo. Não há necessidade de ficar impaciente na obra do Senhor. O ensino da verdade “a muitos” (gr. óchlon hikanón) não é algo que se faça da noite para o dia. A obra requer discipulado e aprofundamento da experiência cristã. Não seja superficial na obra do Senhor. A superficialidade, que caracteriza a fé de muitas congregações evangélicas na América Latina, é resultado de uma tarefa de discipulado incompleta ou ausente. O interesse obsessivo pelo crescimento numérico resultou em uma fé rasa e superficial, que põe em sério risco a sobrevivência dos frutos obtidos. Em terceiro lugar, eles precisaram de aceitação (v. 26b). O crescimento da igreja atraiu a atenção de muita gente. O testemunho levou os crentes a adquirir um novo nome de identificação: “cristãos” (gr. christianoús, 26.28; 1Pedro 4.16). A palavra contém elementos hebraicos, gregos e latinos. Expressa um conceito hebraico, já que a raiz é equivalente a “Messias” ou “Ungido”, e aponta para o substantivo grego “Cristo”. Inclui ainda a terminação adjetiva latina iani. Essa universalidade lembra-nos a placa da cruz (João 19.19,20). Os cristãos são homens e mulheres de Cristo, os portadores e representantes da cruz. A vitalidade da igreja (v. 27-30). Três considerações podem ser observadas nesses versículos. Havia interdependência (v. 27). Isso é percebido na relação entre a igreja-mãe e a igreja-filha, entre a comunidade de Jerusalém e a de Antioquia, mas também é visto na relação entre a igreja judaica e a igreja gentia. O exemplo desses cristãos, que souberam superar a distância geográfica, conciliar diferenças culturais e sanar discrepâncias étnicas e religiosas, constitui um grande desafio para

nós hoje. Falamos muito de uma América Latina, de um único corpo de Cristo e da necessidade de ser um em Cristo para que o mundo creia. Contudo, continuamos acorrentados ao denominacionalismo. Resistimos à plena unidade cristã e alimentamos preconceitos e medos com relação a outros irmãos na fé. Nossa boca se enche para falar de identidade evangélica latino-americana, mas em alguns casos não somos nem mesmo capazes de solucionar questões tão elementares da comunhão cristã como o batismo e a eucaristia. Pregamos o evangelho muitas vezes com uma atitude tão competitiva que não fica claro se estamos a serviço do Reino de Deus ou de algum reino em particular. Havia instrução (v. 28). O ensino profético chegou por meio de Ágabo, profeta de Jerusalém. Pelo Espírito, ele profetizou uma grande fome. Só em um contexto carismático, no qual se reconheçam os dons do Espírito Santo, um recurso estratégico tão importante quanto o ministério profético estará disponível. Quando uma igreja cerceia os profetas e os silencia, corre o risco de ficar sem a orientação divina necessária para saber o caminho em que deve andar, principalmente em situações de crise. Em Antioquia, além de atentar para a voz dos profetas locais, os crentes souberam abrir os ouvidos aos que vinham de outros lugares que falavam em nome do Senhor e cujo ministério era comprovado. Além disso, havia interesse por parte dos irmãos em reagir de modo concreto à crise anunciada (v. 29,30). Por um lado, percebe-se um grande interesse pessoal, uma vez que decidiram colaborar “cada um segundo as suas possibilidades” (gr. kathōs euporeīto tís). Por outro lado, houve um grande interesse prático, que se efetivou de imediato (“e o fizeram”, gr. ho kaì epoíēsan). Eles não ficaram de

braços cruzados nem passaram o projeto a uma comissão para estudo, mas enviaram “suas ofertas aos presbíteros pelas mãos de Barnabé e Saulo” (gr. aposteílantes pròs toùs presbytérous dià cheiròs Barnabā kaì Saúlou). A igreja de Antioquia (11.19-30)

No cap. 11, é apresentada uma das igrejas mais florescentes de todo o Novo Testamento: a igreja de Antioquia. Tratava-se de uma igreja cristã singular, que fez diferença no curso do testemunho cristão. Na verdade, como lemos no v. 26, os discípulos foram chamados “cristãos” pela primeira vez em Antioquia. Sem dúvida, os seguidores de Cristo em Antioquia tinham um testemunho tão poderoso acerca do Senhor que os pagãos da cidade os designaram de acordo com o nome que anunciavam como Messias e Senhor. Desse modo, a igreja de Antioquia logo se tornou um centro missionário e de evangelização mundial. Foi dessa igreja que partiu a primeira força missionária a levar o evangelho a todo o mundo mediterrâneo e à maior parte do império romano. Foi essa igreja que patrocinou o ministério missionário do apóstolo Paulo e de seus companheiros e que os acompanhou em suas viagens missionárias com suas orações e com apoio financeiro. O que a igreja de Antioquia nos ensina hoje? O que podemos aprender com essa igreja-modelo que nos ajude em nosso desejo de ser uma igreja que passe da renovação para o avivamento e se torne uma igreja verdadeiramente missionária? Um coração evangelizador (v. 19-21). A igreja de Antioquia tinha um coração evangelizador. Aliás, essa igreja nasceu como fruto da

evangelização. Foi fundada por aqueles que haviam sido dispersos por causa da perseguição desencadeada em Jerusalém (v. 19). Alguns desses perseguidos foram para a Fenícia, outros para Chipre e outros para Antioquia, mas não se comportavam como refugiados, a lamentar sua condição, e sim como evangelistas, que aproveitam bem as situações (v. 20). Portanto, em meio a circunstâncias tão adversas, eles não deixaram de pregar as boasnovas a respeito de Jesus e obtiveram resultados notáveis (v. 21). A chave para o crescimento sustentável da igreja está na evangelização. A evangelização é o combustível que move e energiza o crescimento da igreja. Devemos priorizar a grande comissão, se quisermos cumprir com sucesso a missão que o Senhor nos confiou. A tarefa de fazer discípulos requer um enfoque permanente na evangelização. Uma grande visão (v. 22-26). A igreja de Antioquia tinha uma grande visão. Essa igreja assumiu a missão de levar o evangelho às nações. Na época, as comunicações e as viagens eram precárias, mas a igreja de Antioquia não se intimidava diante das circunstâncias nem das dificuldades. A congregação inspirava-se na grande visão que o Senhor lhes dera (13.2b) e soube escolher e capacitar os instrumentos humanos necessários para torná-la realidade (Barnabé e Saulo). Deus sempre nos dá uma grande visão sobre crescimento. As igrejas que mais crescem hoje são as que têm uma grande visão sobre a tarefa de alcançar suas comunidades para Cristo. São igrejas dispostas a marchar com fé e obediência, de acordo com a visão que receberam de Deus. São igrejas dispostas a correr riscos por causa do evangelho. São igrejas que se espalham por toda a cidade, por todo o país e até mesmo por

todo o mundo “contando-lhes as boas-novas a respeito do Senhor Jesus” (gr. euangelizómenoi tòn kýrion Iēsoūn, 11.20b). Um espírito generoso (v. 27-30). A igreja de Antioquia tinha um espírito generoso. Observe-se que essa igreja demonstrou sua generosidade diante da necessidade alheia. Por meio de alguns profetas, chegaram a Antioquia notícias de que uma grande fome viria em pouco tempo (v. 27-30). A igreja não hesitou um segundo quanto ao que fazer e atendeu de imediato a essa necessidade, contribuindo à proporção de suas possibilidades e capacidade. Se quisermos crescer, devemos cultivar o espírito de generosidade. Devemos praticar a generosidade em tudo: dinheiro, tempo, energia, oportunidade, influência, e assim por diante. O crescimento da igreja sempre tem algum custo em todas essas áreas. Deus está disposto a cumprir sua promessa de prover generosa e plenamente a igreja de recursos, se nos mostrarmos generosos com o que recebemos dele (Lucas 6.38). Uma boa equipe de líderes (13.1). A igreja de Antioquia contava com grandes líderes. Essa igreja era dotada de uma liderança excepcional. Lucas, em Atos, registra o nome e o perfil desses líderes. Um deles era Barnabé (11.22-24). Seu nome, como mencionado, significa “filho da consolação”. Barnabé era um judeu helenístico de Chipre e se tornara um importante líder cristão em Jerusalém. Era um homem bom e cheio do Espírito Santo e de fé (v. 24a). Por meio do ministério de Barnabé, muita gente veio a conhecer o Senhor (v. 24b). Outro líder era Saulo, judeu de Tarso, na Cilícia, que havia sido educado como rabino em Jerusalém, sob a tutela do mestre Gamaliel (11.25,26). Na companhia de Barnabé,

Saulo cumpriu um ministério de ensino que alcançou muitas pessoas (v. 26a). O ensino cristocêntrico de Saulo ajudou a estabelecer a identidade dos discípulos de Jesus em Antioquia, que foram chamados “cristãos” (v. 26b). É provável que tenha sido em Antioquia que Saulo amadureceu sua teologia cristã e sua experiência ministerial. Também havia outros profetas e mestres na igreja de Antioquia (13.1). Uma boa liderança é essencial à igreja que deseja crescer. Ela precisa de pastores-mestres e de crentes dedicados que cumpram suas responsabilidades com amor e esforço. A igreja local deve respeitar e amar os homens e mulheres que exercem autoridade espiritual sobre o rebanho (1Tessalonicenses 5.12,13). Um enfoque na oração (13.2,3). A igreja de Antioquia tinha o foco na oração. Essa igreja conhecia muito bem o poder da oração. O Novo Testamento informa como era um culto de adoração nessa igreja (13.2,3). Os encontros religiosos em Antioquia eram saturados de oração. Os cristãos ministravam ao Senhor jejuando e orando. Foi nesse contexto de oração fervorosa que o Senhor deu a eles a visão para as missões mundiais. Precisamos pôr a oração em seu devido lugar, se quisermos crescer como igreja de forma integral. O crescimento integral da igreja é um fenômeno sobrenatural, porque é um dom de Deus (Colossenses 2.19; 1Tessalonicenses 3.12). Para experimentar esse fenômeno sobrenatural, precisamos de um empoderamento sobrenatural, que só pode vir a nós por meio da oração. A igreja de Jesus precisa de crentes que estejam dispostos a assumir a responsabilidade de liderar, conforme os dons recebidos, conforme o chamado do Senhor e conforme o ministério que a igreja

local lhes indique. Se queremos que nossa igreja seja modelo, devemos considerar seriamente as características que fizeram da igreja de Antioquia uma das comunidades de fé mais dinâmicas de seu tempo. Aquela foi uma igreja com um coração evangelizador, com uma visão ampla, com um espírito generoso, com uma boa equipe de líderes e com o foco na oração.

O TESTEMUNHO SOB PERSEGUIÇÃO (12.1-25)

O Herodes mencionado nessa passagem é Herodes Agripa I, que reinou em diferentes regiões da Palestina nos anos 37 a 44. Ele cresceu em Roma e foi amigo de Caio, que seguia o imperador Tibério e que mais tarde se tornou o famoso imperador Calígula. Os judeus aceitavam a liderança de Herodes, pois sua avó (Mariamne) fora uma princesa da linhagem dos asmoneus/macabeus, ou seja, do patriota judeu e do clã da independência. O próprio Herodes era um seguidor estrito do judaísmo (possivelmente por motivos políticos).15 Justo L. González: “Depois do breve ‘parêntese’ sobre Antioquia, Lucas retorna a Jerusalém, de onde relata a morte de Tiago e a prisão de Pedro. Ele informa que isso aconteceu ‘nessa ocasião’ (12.1). No entanto, é difícil pensar que Lucas não tenha mencionado Barnabé e Saulo, caso eles estivessem em Jerusalém durante esse período de perseguição. Talvez o texto queira dizer com ‘nessa ocasião’ que a perseguição ocorreu enquanto tiveram lugar em Antioquia os acontecimentos que se acabaram de narrar e antes de Barnabé e Saulo chegarem a Jerusalém. Além disso, quando a história dos dois enviados de Antioquia é retomada, em 12.25, não há menção da conversa deles com os irmãos de Jerusalém, possivelmente por ter sido uma breve visita, ocorrida logo após a perseguição e por Lucas estar interessado em passar logo a outros acontecimentos de maior importância”.16

A razão pela qual Lucas abre um parêntese em sua narrativa histórica para apresentar Herodes Agripa I é porque esse monarca desempenhou um papel muito importante com relação ao início e ao progresso do testemunho cristão em Jerusalém. A perseguição que ele desencadeou contra os crentes não conseguiu neutralizar a força expansiva da igreja local, embora tenha dado início a uma crise que precisava ser resolvida. Após esses acontecimentos, a

igreja de Jerusalém perdeu o protagonismo da primeira hora e ficou em segundo plano durante os fatos que se verificaram em lugares distantes do cenário hierosolimitano. Lucas destaca nesses versículos basicamente dois acontecimentos relacionados com Herodes (v. 1-25): a perseguição promovida por Herodes (v. 1-19) e a morte de Herodes (v. 20-25). A perseguição promovida por Herodes (12.1-19)

A perseguição desencadeada por Herodes é ilustrada em cinco episódios. O primeiro episódio (v. 1). Esse episódio está relacionado com o fato de que “Herodes prendeu alguns que pertenciam à igreja” (v. 1; lit., “colocou as mãos”, gr. epébalen tàs cheīras). O objetivo era “maltratá-los” (gr. kakōsaí, “afligi-los”, “causar-lhes danos”). Ele fez isso para ganhar o apoio e a aprovação da liderança judaica (cf. v. 3,11). Os líderes romanos faziam o mesmo (24.27; 25.9). Lucas usa o mesmo termo, comum na LXX, várias vezes (7.6,19; 12.1; 14.2; 18.10). É provável que os primeiros presos tenham sido açoitados e torturados, mas não mortos. Oito anos ou mais se haviam passado desde que, com a conversão de Saulo, cessara a perseguição que eclodira após a morte de Estêvão. No entanto, a hostilidade dos fariseus e dos saduceus contra os crentes em Jerusalém continuava ativa. Além disso, certamente as notícias da difusão do Caminho em contextos gentios como Cesareia e Antioquia inflamaram o antigo ódio dos fariseus e do clero do templo contra os cristãos da Cidade Santa. Não é de admirar que tenham recorrido ao método já provado e aprovado de pressionar um corrupto como o rei Herodes

Agripa I a fim de obter a intervenção do poder civil para reprimir os odiados cristãos. O segundo episódio (v. 2). Esse episódio está relacionado com o assassinato de Tiago, irmão de João (v. 2; v. Lucas 5.10; 6.14; 8.51; 9.28,54). Tiago pertencia ao círculo mais íntimo de Jesus (Mateus 17.1; 26.37; Marcos 5.37; 9.2; 14.33; Lucas 9.28). Podemos supor que Pedro apareceu antes de Tiago na lista de líderes cristãos que deveriam ser neutralizados. A sentença de decapitação pela espada era o método normal de execução dos cidadãos romanos, mas igualmente hediondo para os judeus. Observe-se que, diante do vazio deixado por Tiago, a igreja de Jerusalém não sentiu a necessidade de substituí-lo, como aconteceu com Judas Iscariotes (1.15-20). Talvez tenha sido a traição de Judas, não sua morte, o motivo da substituição. Alguns acreditam que o substituto foi Tiago, irmão de Jesus e líder da igreja de Jerusalém, a quem Paulo chama “apóstolo” (Gálatas 1.19), mas é provável que Paulo esteja se referindo aqui ao dom e ao ministério apostólico geral (Efésios 4.11), não ao ministério único e singular dos Doze. O terceiro episódio (v. 3). Esse episódio é o que recebe mais atenção de Lucas. Trata-se da prisão de Pedro, provavelmente também com a intenção de executá-lo. Foi a terceira prisão do apóstolo (4.3; 5.18). Ele só não foi executado imediatamente porque a prisão ocorreu “durante a festa dos pães sem fermento” (gr. ēsan [hai] hēmerai tōn azymōn, v. 3), que durava oito dias (Êxodo 12.18; 23.15; Lucas 22.1) e celebrava a libertação da escravatura no Egito. Herodes adiou a execução de Pedro, mas deixou-o sob a custódia de um total de 16 homens, dia e noite (v. 4), talvez por temer que ele

fugisse de novo (5.19). No entanto, “a igreja orava intensamente a Deus por ele” (gr. proseuchē dè ēn ektenōs ginoménē hypò tēs ekklēsías pròs tòn theòn perì autoū, v. 5). Ou seja, 16 soldados mantinham Pedro trancado, mas havia milhares de cristãos na cidade orando por sua libertação. Não é de admirar, portanto, que a resposta divina tenha sido imediata, “na noite anterior ao dia em que Herodes iria submetê-lo a julgamento” (v. 6a). Apesar da intensa vigilância, que anulava qualquer possibilidade de fuga (“dois soldados”; “duas algemas”; “sentinelas montavam guarda à entrada do cárcere”, v. 6b), Deus se fez presente por meio de um anjo para libertar seu servo (v. 7). São comuns as intervenções sobrenaturais intercambiáveis entre o “anjo do Senhor” (5.19; 7.30,35,38,53; 8.26; 10.3,7,22) e o Espírito Santo (8.29,39; 10.19) por todo o livro de Atos. Ao que parece, o Espírito falava intuitiva ou subjetivamente, ao passo que o anjo se manifestava física e externamente. É interessante a combinação do natural e do sobrenatural nessa história. Chama-nos a atenção a pressa e a urgência do anjo (v. 7b,8), já que ele deveria estar no controle da situação. Você ficaria nervoso? Quem não parecia muito preocupado era Pedro, que dormia tranquilamente e, ao ser acordado pelo anjo, não sabia se estava no meio de uma visão, de um sonho ou da realidade (cf. v. 9,11,12). O quarto episódio (v. 11). Esse episódio está relacionado com a libertação de Pedro e da igreja de Jerusalém. Ao se dar conta do que havia acontecido, Pedro entendeu que o Senhor o havia libertado “das mãos de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava”, ou seja, sua morte (v. 11). No entanto, a igreja também experimentou uma liberação: a da preocupação com Pedro. Os

irmãos estavam reunidos, como de costume, na casa de Maria, mãe de João, também chamado Marcos (12.25—13.13; 15.36-41; Colossenses 4.10; 2Timóteo 4.11; 1Pedro 5.13). Ali acontecera a última ceia de Jesus com os discípulos, ali o Jesus ressuscitado havia aparecido em três ocasiões e ali se dera a vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecoste. Provavelmente se tratasse de uma casa muito espaçosa, pois “muita gente se havia reunido” ali. O único motivo de terem se reunido era a oração (cf. 1.13,14; 2.1,2; 4.23-31). No entanto, embora sua oração fosse persistente e fervorosa (v. 5), não há indícios de que eles esperassem uma resposta imediata e contundente. Quando uma criada da casa, chamada Rode (“rosa”), avisou-os de que Pedro estava na porta da frente, eles retrucaram: “Você está fora de si!”. Rode insistiu e o máximo que conseguiu foi que alguns concluíssem: “Deve ser o anjo dele” (será que já consideravam Pedro morto?). A questão é que ninguém abriu a porta, e Pedro continuou a bater. Quando finalmente “abriram a porta e o viram”, não conseguiram acreditar no que viam. A igreja estava orando para que Deus agisse, mas eles ficaram “perplexos” (v. 16) quando ele os atendeu. Deve ter havido certo alvoroço, já que Pedro se viu obrigado a fazer “sinal para que se calassem” (detalhe fornecido por uma testemunha ocular; cf. 13.16). O relato de Pedro sobre sua libertação acabou libertando seus irmãos da angústia que haviam experimentado por causa dele. O quinto episódio. Esse episódio está relacionado com o grande alvoroço que ocorreu “de manhã” entre os soldados. Ninguém sabia explicar o que acontecera a Pedro nem onde ele estava. Herodes abriu um inquérito administrativo e iniciou uma investigação, que obteve resultados negativos. Em seguida, aplicou as normas em

vigor entre os romanos, segundo as quais o guarda que perdesse um prisioneiro teria de sofrer a mesma punição deste (16.27; 27.42). A frase “ordenou que fossem executados” não é explícita no texto grego, mas deduzida por implicação, por isso algumas versões a põem em itálico (BA). A morte de Herodes (12.20-25)

A morte de Herodes é ilustrada em cinco episódios. Em cada um deles, vemos um retrato diferente de Herodes. Um Herodes furioso (v. 20). O texto diz Herodes “estava cheio de ira” (gr. ēn dè thymomachōn; lit., “se esquentou”, “soltava faíscas”). Isso está relacionado com sua atitude. O incidente histórico mencionado é desconhecido, mas a região de Tiro e Sidom dependia dos produtos agrícolas da Galileia, sobre a qual Herodes governava (1Reis 5.11; Esdras 3.7; Ezequiel 27.17). Por alguma razão, talvez comercial, Herodes ficou louco de raiva, disposto a lutar até a morte contra os representantes das cidades de Tiro e Sidom. É provável que os fenícios tenham conquistado “o apoio de Blasto”, o camareiro do rei, mediante suborno (Mateus 28.14,15). Isso explicaria a fortíssima reação emocional do monarca, conhecido por sua personalidade colérica e por seu comportamento violento. Um Herodes em traje de gala (v. 21a). O texto diz: “No dia marcado [...]” (gr. taktēi hēmérāi). De que dia se tratava? Flávio Josefo fornece detalhes sobre a ocasião da morte de Herodes Agripa I e informa que se tratava do segundo dia da festa em homenagem ao imperador Cláudio, que possivelmente celebrava

seu aniversário.17 O relato de Lucas e o de Josefo se complementam sem contradições, o que prova a exatidão histórica de Lucas. De acordo com o texto, Herodes estava “vestindo seus trajes reais” (gr. endysámenos esthēta basilikēn). De acordo com Josefo, tratava-se de um manto bordado em prata. Podemos imaginar os raios do sol refletindo nesse manto prateado e brilhante e toda a multidão, que enchia o anfiteatro em que essa apoteose acontecia, deslumbrada com tão magnífico espetáculo. A descrição de Lucas está relacionada com a aparência desse monarca corrupto e sensual. Ao que parece, o rei gostava de aparentar poder e importância, daí estar usando “trajes reais” tão chamativos e suntuosos. Um Herodes entronizado (v. 21b). De acordo com Lucas, o desejo de Herodes era estar “em seu trono” (gr. kathísas epì toū bēmatos). Não há rei sem trono, e para Herodes o trono era o símbolo de seu poder autocrático e abusivo. Sentado em seu trono, ele se sentia o dono do mundo e o patrono da verdade e da justiça. Como todo bom ditador latino-americano, além da parafernália de seus símbolos de poder e de sua posição de autoridade, ele precisava fazer longos discursos ao povo (gr. edēmēgórei pròs autoús). Não é difícil imaginar como teria sido seu discurso (gr. agoreúō): seguramente, carregado de promessas que jamais cumpriria, de planos e projetos que só serviriam para aumentar impostos e encher seus cofres e de lisonjas populares e patrióticas nas quais nem ele mesmo acreditava. O interessante é que os três elementos (“trajes”, “trono” e “discurso”) ainda são típicos de qualquer tirano ou ditador, especialmente na América Latina.

Um Herodes deificado (v. 22). Personagens como Herodes adoram ser aclamadas pelo povo e até mesmo receber honras sobre-humanas. De Herodes, passando por muitos imperadores romanos e até nossos dias, abundam os demagogos e tiranos que se deleitam em ouvir a voz do povo, mas não seu clamor por liberdade e justiça, não seus rogos por verdade e paz. Preferem a ovação paga e o rugido fanático que exclama: “É voz de deus, e não de homem” (gr. theoū fōnē kaí ouk anthrōpou, v. 22). Um Herodes comido por vermes (v. 23). O texto diz que, em meio a esse contexto de glória pré-fabricada, “imediatamente um anjo do Senhor o feriu” (gr. epátaxen autòn ángelos kyríou). Por certo, essa é a interpretação teológica lucana de um fato histórico, o qual é bem atestado por Flávio Josefo.A interpretação do autor também é teológica, pelo fato de ele explicar que isso aconteceu porque “Herodes não glorificou a Deus” (gr. anth’ hōs ouk édōken tēn dóxan tōi theōi). A questão é que, como Lucas registra, “ele morreu comido por vermes” (gr. genómenos skōlēkóbrōtos exépsyxen). Isso está relacionado com sua condição final. Nem suas vestes reais, nem seu trono elevado, nem seu célebre discurso puderam salvá-lo do juízo divino por suas crueldades e seus crimes. Não é de admirar que alguém que estivesse tão cheio de ira (v. 20) e fosse tão vaidoso acabasse assaltado pela morte.18 De acordo com Lucas, “um anjo do Senhor o feriu” (v. 23), ou seja, algo semelhante ao que aconteceu com Nabucodonosor e pela mesma razão (Daniel 4.2833). No caso de Herodes, o “anjo do Senhor” provocou sua morte (Êxodo 12.23; 2Samuel 24.16; 2Reis 19.35). Este é um exemplo do juízo divino temporal, ou seja, na dimensão espaçotemporal. De

acordo com Josefo, Herodes sofreu por cinco dias, enquanto sua carne apodrecia e produzia vermes.

1. La diáspora: de experiencia traumática a paradigma eclesiológico, p. 86. 2. Diccionario hispanoamericano de la misión, p. 282. 3. Authority to Heal, p. 39-40. 4. La misión de Dios: descubriendo el gran mensaje de la Biblia, p. 682. 5. The Interpretation of the Acts of the Apostles, p. 396. 6. Misión en transformación: cambios de paradigma en la teología de la misión, p. 150-151. 7. Diccionario hispanoamericano de la misión, p. 433. 8. Word Pictures in the New Testament, p. 137. 9. Los Hechos de los Apóstoles: un comentario, p. 216. 10. Ibid., p. 225. 11. Ibid., p. 228-229. 12. Peter’s Conversion: A Culinary Disaster Launches the Gentile Mission, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 138. 13. The Narrative Unity of Luke-Acts: A Literary Interpretation, p. 128. 14. Lloyd J. OGILVIE, The Communicator’s Commentary: Acts, p. 182-183. 15. V. Flávio JOSEFO, Antiguidades judaicas, 19.7.3; 19.8.2. 16. Hechos, in: Justo L. hispanoamericano, p. 187.

GONZÁLEZ

(Org.),

Comentario

bíblico

17. Antiguidades judaicas, 17.6.8; 19.8.2. 18. Sobre o temperamento e a condição física de Herodes, v. Flávio Antiguidades judaicas, 17.6.8.

JOSEFO,

UNIDADE TRÊS

O testemunho até os confins da terra (13.1— 28.31) A terceira e a última parte do livro de Atos (13.1—28.31) nos mostra o testemunho cristão em plena expansão e procurando chegar “até os confins da terra” (Atos 1.8). O período que cobre esse relato vai do ano 45 até aproximadamente o ano 62, desde a partida de Barnabé e Saulo de Antioquia até a prisão do apóstolo em Roma. O cenário é basicamente a bacia nordeste do mar Mediterrâneo. Esta seção é bem diferente das anteriores. Em primeiro lugar, Pedro e os demais dos Doze praticamente desaparecem do relato (se bem que Pedro reaparece no cap. 15 e Tiago nos cap. 15 e 21), ao passo que Saulo/Paulo passa a ser a personagem central e dominante. Além disso, Jerusalém deixa de ocupar o lugar central da cena, e Antioquia passa a ser o centro da missão, chegando a levar o evangelho a numerosas cidades (Atenas, Corinto, Éfeso etc.) dentro do império romano, até finalmente alcançar sua capital, Roma. Observa-se que Lucas não pretende ser rigoroso em registrar toda a expansão do cristianismo durante essas décadas. Na verdade, ele não diz nada sobre os importantíssimos avanços da fé rumo ao

Oriente partindo de Antioquia (Edessa, o reino de Osroena; Pártia; Pérsia; até chegar à Índia), ou rumo ao sul (Alexandria, norte da África, Arábia, Etiópia etc.). O que esses capítulos apresentam é um resumo bem conciso em torno da figura de uma pessoa: Paulo. Em todo o relato, vemos primeiro a difusão do evangelho com o apóstolo em liberdade (13.1 —21.16); em seguida, observamos o progresso do evangelho, estando ele preso (21.17—28.31). Em relação à primeira parte, destacam-se três viagens missionárias levadas a cabo por Paulo, estando em liberdade. Nessas viagens, chama a atenção a maneira pela qual o apóstolo tinha como objetivo evangelizar cidades inteiras, com uma missão tipicamente urbana. Depois de ele ser preso, Cesareia se transforma no centro de operações, mas apenas como um trampolim para alcançar a meta de Paulo, que era chegar a Roma. Dessa maneira, Lucas desenvolve seu objetivo, que é mostrar como o evangelho se estendeu de seu centro de origem (Jerusalém) e seu contexto nativo (o mundo judaico) até chegar a seu novo centro de expansão no Ocidente (Roma, a capital do império) e seu contexto universal (o mundo gentil). Na verdade, Paulo não foi o único missionário nem se deve a ele o fato de ter chegado “até os confins da terra”, como indicam alguns que afirmam que o apóstolo teria chegado à Espanha e até mesmo à Grã-Bretanha. Na verdade, quando Paulo chegou à capital do império romano, já havia cristãos na cidade de Roma e também no porto próximo de Potéoli (28.13-15). Lucas nem sequer explica como estes haviam chegado a tais lugares da Itália. Tampouco afirma que Paulo foi o único missionário cristão, nem sequer o mais eficaz. Na realidade, Paulo é a personagem central da segunda

parte de Atos, porque o autor do livro teve a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e de participar de seu ministério. Além disso, no Ocidente romano, o apóstolo foi uma grande influência, por meio de suas várias cartas, que foram bem recebidas, reproduzidas, difundidas e que finalmente chegaram a fazer parte do Novo Testamento. A compreensão de Paulo a respeito do evangelho cristão foi o que predominou no mundo mediterrâneo. Desse modo, Paulo se transformou em um protótipo da mensagem e do mensageiro cristãos. Aliado a tudo isso, é necessário deixar claro que toda esta seção não é um mero relato das viagens missionárias de Paulo. Na verdade, antes de sua “primeira viagem missionária” (13.4—14.28), o apóstolo já tinha percorrido “as regiões da Síria e da Cilícia”, próximas a Tarso, sua cidade natal (Gálatas 1.21). De modo que, quando Barnabé foi buscá-lo em Tarso para levá-lo a Jerusalém (12.25), é provável que Paulo estivesse levando a cabo alguma viagem missionária. Justo L. González: “Em todo caso, a tendência de ler todo o restante de Atos como se fosse uma série de ‘viagens missionárias’ de Paulo deve-se não tanto a uma leitura minuciosa do texto, mas ao interesse de algumas sociedades ou de alguns movimentos missionários dos séculos XIX e XX, tentando encontrar em Atos as pautas para seu trabalho, e em Paulo e em suas viagens, o paradigma que os missionários modernos deveriam seguir. Nesse sentido, é interessante observar que a ideia de que toda essa parte do livro de Atos possa ser esboçada em termos das ‘três viagens missionárias’ de Paulo não aparece em nenhum comentarista antigo nem da Idade Média, mas é pura criação do movimento missionário moderno”.19

19. GONZÁLEZ, Hechos, p. 198.

CAPÍTULO 8

O TESTEMUNHO NA FRÍGIA E NA GALÁCIA 13.1—15.35 Essa longa passagem (13.1—15.35) divide-se naturalmente em dois episódios principais: a primeira viagem missionária de Paulo com Barnabé (13.1—14.28) e o Concílio de Jerusalém (15.1-35). Com relação à primeira parte, merece atenção a forma coordenada e eficaz em que Barnabé e Saulo formaram uma equipe de trabalho que atuou não só em assuntos missionários, mas também no desenvolvimento de outros ministérios (diakonían, 12.25), como recolher e enviar ajuda aos irmãos que viviam na Judeia (11.29,30), após a morte de Herodes. Quanto à segunda parte, a convenção apostólica resolveu as grandes questões em torno do que era necessário para ser salvo e dos requisitos para se tornar membro da igreja cristã. Ambas as questões foram fundamentais para a incorporação dos novos crentes gentios que o ministério missionário de Barnabé e Saulo estava produzindo.

A MISSÃO EM ANTIOQUIA DA SÍRIA (13.1-3)

Atos 13 é um dos capítulos mais importantes de toda a Bíblia, pois marca o início do trabalho missionário mundial. Oficialmente, foi decidido que o plano de Deus não era apenas para um grupo de pessoas. O evangelho é para todos, embora tenha um valor prático além do valor histórico. Atos 13 destaca a base bíblica para as missões e transmite uma mensagem muito atual para nós hoje. Justo L. González: “O centro da ação retorna a Antioquia (como fora em 11.19-30), com a volta de Barnabé e Saulo, que trazem consigo João Marcos (25.12). Não somos informados de quanto tempo se passou entre esse retorno e o envio relatado no capítulo 13. Pode-se supor que foi tempo suficiente para Barnabé e Saulo apresentarem o relatório de sua missão e se tornarem conhecidos outra vez como líderes da comunidade de Antioquia”.1 A vocação missionária de Antioquia (13.1-3)

Das todas as igrejas locais — ou seja, igrejas da cidade — mencionadas no Novo Testamento, Antioquia é a que supera todas na questão da vocação missionária. O alcance dos não crentes, tanto judeus quanto gentios, fora da Palestina e até as últimas fronteiras do ecúmeno[mundo habitado], de leste a oeste, encontrou em Antioquia as condições necessárias para tal. Não sabemos de outra igreja local que tenha feito tanto esforço para enviar missionários a outras cidades estratégicas e a todas as direções. A igreja de Antioquia. “A igreja” (5.11) de “Antioquia” (11.19) tinha uma liderança excepcional, constituída de “profetas” e “mestres” (1Coríntios 12.28; Efésios 4.11). A construção gramatical não permite saber se os cinco homens mencionados eram todos profetas e mestres ou se os três primeiros eram profetas e os dois

últimos eram mestres. Em todo caso, esses profetas não eram como os profetas do Antigo Testamento, muitos dos quais puseram sua mensagem por escrito. No Novo Testamento, essa tarefa foi dada aos Doze e a seus auxiliares. Assim como o termo “apóstolo” é preservado como um dom em vigor (Efésios 4.11), porém modificado após a morte dos Doze, o mesmo ocorre com o ministério profético. A tarefa fundamental dos profetas do Novo Testamento é proclamar o evangelho e aplicar suas verdades às situações e necessidades atuais. O dom de mestre é mencionado em 13.1 combinado com o de profecia, mas em Efésios 4.11 está vinculado aos pastores. Em 2Timóteo 1.11, Paulo diz que foi constituído pregador (arauto), apóstolo e mestre, embora como ministérios separados ou independentes (Romanos 12.7; Tiago 3.1). Isso significa que esses dons de liderança podem ser combinados de várias formas, entre vários crentes, para atender às necessidades da igreja. Cada um desses líderes talentosos proclamou o evangelho, mas com enfoque diferente. Os líderes de Antioquia. A chave para qualquer iniciativa missionária, tanto no nível da igreja local (a igreja de Jesus Cristo na cidade) quanto em cada uma de suas congregações, é o tipo de liderança que estava na vanguarda daquelas comunidades do Reino. Quem eram os líderes de Antioquia? Entre eles, destacavamse vários irmãos helenísticos de origens diversas. Simeão, chamado Níger. Seu nome provém do latim niger (“escuro”, “negro”). Esse homem tinha nome judeu e sobrenome romano. É provável que ele transitasse nos círculos romanos. Deduzimos de seu apelido, Níger (“negro”), que fosse de origem africana e um homem negro. Talvez seja o Simão de Cirene

mencionado em Marcos 15.21 (Lucas 23.26). O fato de um negro fazer parte da liderança da igreja mais importante da Diáspora é escandaloso para os cristãos brancos com preconceito racial. Já li comentários os mais absurdos escritos para provar que o Níger (o Negro) era, na verdade, branco. Lúcio de Cirene. Esse homem era outro nativo do norte da África. Seu nome é tipicamente romano, e dele deriva o nome Lucas ou Lucano, em grego. É possível que fosse um dos judeus helenísticos que pregaram aos gentios em Antioquia (11.20). Talvez seja também o Lúcio de Corinto, mencionado em Romanos 16.21 como parente ou conterrâneo de Paulo. O fato de o nome Lucas (gr. Loukās) ser uma forma alternativa de Lúcio ou Lucano levou alguns comentaristas, desde os dias de Orígenes até Adolf Deissmann,2 a identificá-lo como o autor do terceiro evangelho e de Atos. No entanto, isso não é possível, pois Lucas era gentio, ao passo que Lúcio era um judeu helenístico. Manaém. Seu nome é a forma grega do hebraico Manahem e significa “consolador’’. Manaém foi criado com Herodes, o tetrarca (talvez fosse meio-irmão de Herodes Antipas ou alguém que cresceu com ele). Esse homem evidentemente tinha boas conexões aristocráticas e com a corte.Lucas provavelmente obteve desse homem muitas das informações acerca de Herodes Antipas, pois é muito preciso em seu relato sobre esse rei (12.1-23). Todos esses homens foram líderes notáveis e ativos na igreja de Antioquia, cada um contribuindo com seus dons, talentos, habilidades e oportunidades, para que houvesse um melhor desenvolvimento do testemunho cristão naquela cidade.

A dedicação de Antioquia. No texto grego, após o verbo conjugado “separem-me” vem a partícula d’, que denota intensidade (Lucas 2.15; 1Coríntios 6.20), o que dá urgência ao chamado do Espírito (cf. 15.36). A frase “para a obra a que os tenho chamado” está no médio perfeito do indicativo e mostra que é Deus quem chama e capacita para o ministério (1Coríntios 12.7,11). O v. 3, sobre o qual se baseia a prática da ordenação ministerial, é um texto ambíguo. No entanto, é inapropriado como fundamento bíblico para tal, pois na história do cristianismo caracteriza-se mais como prática sacramental que como ato de dedicação ao serviço. Na Bíblia, há muitos exemplos de dedicação ao ministério com a imposição de mãos. A imposição de mãos não era uma espécie de rito de passagem. Esses homens já haviam sido chamados, eram capacitados e atuavam como líderes. Não se tratava também da atribuição de um novo ministério, e sim da expansão do que já estavam fazendo. A ordenação ao ministério não é bíblica, pois tende a fomentar no meio dos crentes a distinção entre o clero ordenado e os leigos (conceito não bíblico). É um rito próprio do paradigma do cristianismo (especialmente na igreja católica romana e no protestantismo tradicional). No Novo Testamento, as palavras gregas klēros (“os chamados”) e laós (“povo”) referem-se a todos os crentes. Todos os crentes são chamados, capacitados e feitos ministros do evangelho (Efésios 4.11,12). Não há evidência bíblica que classifique os crentes em grupos hierárquicos ou em condições distintas. Todos os crentes são aptos para o ministério no corpo de Cristo (1Coríntios 12.7,11) e todos têm um ministério a cumprir. TABELA 15: Imposição de mãos na Bíblia

A prática da imposição de mãos, como gesto simbólico e religioso, é frequente na Bíblia. No entanto, comunica significados diversos, que devem ser levados em consideração. Objetivo no Antigo Testamento 1. Para abençoar (Gênesis 48.13-15). 2. Para dedicação ao sacrifício (Levítico 4.4). 3. Para dedicar ou comissionar um sucessor (Números 27.23). Objetivo no Novo Testamento 1. Para curar (Lucas 4.40). 2. Para dedicar ou comissionar para uma tarefa (Atos 6.6). 3. Para conceder a unção ou o enchimento do Espírito Santo (Atos 19.6). 4. Para conceder dons do Espírito Santo (1Timóteo 4.14). 5. Para cumprir um rito antigo (Hebreus 6.2).

A obra missionária mundial (13.1-3)

Ao ler Atos 13, surgem três questões fundamentais com relação ao trabalho missionário mundial. O mandato missionário. O mandato missionário chegou à igreja de Antioquia no momento mais extraordinário de sua existência. Os líderes estavam orando e jejuando em busca da vontade de Deus. Observe-se que é para a igreja espiritual e cheia do Espírito Santo que vem o chamado, e é esse tipo de igreja que o ouve e obedece a ele. Estamos perto do Senhor quando sentimos o fardo missionário. A recíproca é verdadeira: quando o coração esfria, as missões deixam de ter importância para nós. As missões são sempre resultado de um avivamento espiritual. O coração ardente é o coração missionário.

O poder missionário. O poder que aciona as missões é o Espírito Santo. As missões são obra do Espírito Santo, não das igrejas ou dos crentes. O verdadeiro trabalho missionário é propriedade, preocupação, prioridade e propósito do Deus Espírito Santo. Ele é quem instrui a igreja, chama os missionários e os envia (v. 2). É ele quem realiza a estratégia missionária e conduz seus missionários aonde quer. Ele é quem abre e fecha as portas. A obra missionária. A tarefa a ser realizada também está na esfera do poder de Deus. O Espírito Santo é bem específico na escolha dos obreiros de que sua obra necessita. Sua escolha não foi aleatória. Ele escolheu Barnabé, o filho da consolação, o homem bom e generoso, o servo cheio do Espírito Santo e de fé. Ele também escolheu Saulo, o homem inquieto e de sólida formação bíblica e teológica, o líder por excelência, o varão intrépido. Barnabé, o amoroso; Saulo, o dinâmico. Barnabé, o paciente; Saulo, o genioso. Os melhores líderes de Antioquia foram escolhidos pelo Espírito para a obra missionária. Temos procedido da mesma forma? Não é qualquer coisa, qualquer oferta, qualquer plano ou qualquer pessoa que se adequa à obra missionária. O Espírito sempre escolhe o melhor dos melhores. Norman E. Thomas: “A igreja [de Antioquia] olhou para além de si mesma, para a missão. A igreja de Antioquia era ela própria uma missão. Essa jovem igreja devia seu início a missionários informais. Cresceu com rapidez e floresceu com novos crentes — sem dúvida, novos frágeis seguidores de Jesus. No entanto, a igreja foi abençoada com a forte liderança de uma equipe de ministério transcultural. Tinha os melhores mestres, Saulo e Barnabé, que permaneceram ali ensinando durante um ano inteiro. A igreja fortaleceu-se sob a liderança deles. Então, o Espírito lançou um novo apelo: ‘Irmãs e irmãos de Antioquia, há milhares que ainda não viram a luz de Cristo. Eles não conhecem o amor abnegado e clamam pela reconciliação

que vocês alcançaram. Quem irá como missionário até eles?’. O Espírito acrescentou: ‘Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado’ (13.2), e a igreja de Antioquia atendeu. Ela não enviou uma equipe de juniores. Pelo contrário, enviou seus melhores líderes — Saulo e Barnabé. Ela os enviou sem saber para onde iriam ou se voltariam. A igreja de Antioquia recebeu e enviou missionários. Ele reconheceu as próprias necessidades e atendeu às necessidades dos outros”.3

A MISSÃO EM CHIPRE (13.4-12)

O primeiro fator a se destacar nessa passagem é o papel dinâmico do Espírito Santo. Observe-se que não se trata da autoridade da igreja local, mas da autoridade do Espírito. Em Atos, Lucas põe em evidência a terceira pessoa da Trindade. A nova era messiânica é a era do Espírito. É ele quem chama, concede dons, orienta, convence e enche de poder. Nenhum ministério será permanente ou eficaz sem sua presença e sua bênção. Um bom itinerário missionário (13.4-12)

Os primeiros missionários, separados pela igreja de Antioquia e enviados pelo Espírito Santo (gr. ekpemfthéntes hypò toū hagíou pneúmatos), partiram para sua jornada evangelizadora. O itinerário descrito nesses versículos é surpreendente. De Antioquia a Selêucia (v. 4). Eles deixaram a cidade de Antioquia e partiram para Selêucia, a cidade portuária de Antioquia da Síria, situada a cerca de 24 quilômetros a sudoeste. Seu nome remontava ao general Seleuco, um dos líderes militares de Alexandre, o Grande, que governou a região até a morte do grande monarca. Dali os apóstolos seguiram a rota natural até a ilha de Chipre, local da infância de Barnabé, com numerosa população de judeus. No Antigo Testamento, é conhecido como Quitim. Não foi o primeiro testemunho cristão nessa ilha (cf. 11.19,20). De Selêucia a Salamina (v. 5). Tratava-se de um porto na costa oriental de Chipre, o primeiro da ilha e seu centro comercial. Era natural que fossem para Chipre, uma vez que a casa de um deles

(Barnabé) estava ali. A cidade de Salamina foi a primeira parada dos apóstolos na ilha. Ali os apóstolos “proclamaram a palavra de Deus nas sinagogas judaicas” (gr. katēngellon tòn lógon toū theoū en taīs synagōgaīs tōn Ioudaíōn). Os motivos eram óbvios: 1) os judeus já conheciam o Antigo Testamento; 2) os judeus eram o povo escolhido (Gênesis 12.1-3) e tinham prioridade para receber a mensagem e responder a ela (3.26; 13.46; 17.2; 18.4,19; 19.8; Romanos 1.16); 3) participavam dos cultos da sinagoga gentios que simpatizavam com o monoteísmo judaico e que também conheciam o Antigo Testamento. Era esse o método missionário regular de Paulo onde quer que houvesse uma sinagoga. De Salamina a Pafos (v. 6-12). Depois de pregar nas sinagogas, o grupo missionário, no qual estavam incluídos Barnabé, Saulo e João Marcos (que os acompanhava como ajudante), percorreu toda a ilha de Pafos (v. 6). O texto provavelmente quer dizer que eles se detiveram e pregaram em todas as sinagogas da ilha. A nova Pafos — não a velha cidade fenícia situada a cerca de 11 quilômetros — homenageava Pafiana, a deusa fenícia do amor, também conhecida como Afrodite, Astarte, Vênus, entre outros nomes. A cidade era a capital política oficial de Chipre. Ali eles “encontraram um judeu, chamado Barjesus, que praticava magia e era falso profeta”. Seu nome significa “filho de Josué”. Eles também o chamavam “Elimas, o mágico”. O procônsul romano da ilha era um tal Sérgio Paulo. A historicidade dos relatos de Lucas já foi muito debatida, mas temos aqui um exemplo de sua precisão como historiador. Lucas denomina-o “procônsul” (governador) porque Chipre era uma província senatorial romana. Sabemos que esta era sua condição desde o ano 22, por decreto de Augusto. Também sabemos, por

uma inscrição latina em Solos, que Sérgio Paulo iniciou suas funções no ano 53 d.C. Quanto mais informações a arqueologia extrai do mundo mediterrâneo do século I, mais precisa se mostra a narrativa de Lucas. O governador era “homem culto”. A expressão (andrì synetōi) encerra uma grande variedade de conotações, mas nesse contexto implica que ele era capaz de governar com eficiência. Na verdade, ele não se provou assim tão inteligente, uma vez que era influenciado por Elimas. Sérgio Paulo estava interessado em “ouvir a palavra de Deus” (v. 7), prova de que o evangelho causava impacto não só entre os pobres e ignorantes, mas também entre os ricos e instruídos (como Manaém, 13.1). Também é possível que Lucas quisesse mostrar que o evangelho não representava uma ameaça ao governo romano. Sérgio Paulo converteu-se após um confronto com Elimas, pois o feiticeiro tentava afastá-lo da fé (v. 8). O termo “fé” tem três significados no Novo Testamento: 1) confiança pessoal em Jesus Cristo como Salvador e Senhor; 2) um estilo de vida fiel e piedoso; 3) o conteúdo teológico do evangelho (ou doutrina, Judas 3,20). Aqui parece referir-se ao terceiro significado, por causa do artigo definido e do contexto. Saulo, percebendo que Elimas era um instrumento do Diabo, condenou-o, por sua impiedade, à cegueira temporária. Paulo estava “cheio do Espírito Santo”. O poder do Espírito que guiou a igreja primitiva é descrito como “plenitude” (2.4; 4.8,31; 6.3; 7.55; 9.17; 13.9,52). O enchimento contínuo do Espírito deve ser o estado normal de todos os crentes (Efésios 5.18). Em Atos, essa experiência está associada à ousadia e à clareza na proclamação do evangelho. Foi a partir desse incidente que Saulo começou a

usar seu nome romano, Paulo, uma vez que estava agora em um ambiente gentio. Saulo era seu nome judeu, e Paulo era seu nome romano, mas derivado do grego, que significa “pequeno”. De acordo com o costume, Paulo recebeu ambos os nomes ao nascer. Sem dúvida, os dois nomes não significam duas personalidades, mas apenas que na prática a ênfase de seu ministério aos gentios fez que o apóstolo usasse o nome Paulo (romano de origem grega) com mais frequência. O episódio termina com a conversão do procônsul e seu alegre acolhimento do ensino cristão. Enquanto os olhos de um homem estavam literalmente fechados, os olhos de outro eram abertos metaforicamente. Este é o mistério da fé (João 9). Presume-se que os missionários batizaram o novo crente antes de sair de Pafos. Uma boa experiência missionária (13.1-12)

Nos fatos ocorridos em Chipre, encontramos cinco elementos constitutivos de toda boa experiência missionária. Praticamente se pode afirmar que não existe autêntica obra missionária que não contenha, de algum modo, estes elementos: o envio, a necessidade, os obstáculos, a luta e a salvação. A missão cristã começa com um envio (v. 1-5). Observe-se que os missionários foram designados e separados pela igreja. Foi a igreja que os isentou de outras tarefas, a fim de liberá-los para partir, conforme a ordem do Espírito Santo (v. 2). Foi também a igreja que os dedicou ao novo ministério (v. 3) e proveu às suas necessidades. Observe-se também que os missionários foram enviados pelo Espírito Santo (v. 4). Foi o Espírito Santo quem lhes deu a mensagem que deveriam pregar, o poder pelo qual deveriam fazê-

lo, a autoridade para agir em nome do Senhor e o discernimento para saber com o que agir em cada instância e até mesmo apontou o caminho que deveriam seguir (v. 5). Foi o Espírito Santo quem os encheu de sua presença e de seu poder, o que conferiu impacto e precisão especiais às ações dos missionários (v. 9). A missão cristã continua atendendo às necessidades humanas (v. 6,7). Por um lado, vemos as necessidades do povo em geral. Chipre era uma ilha famosa pela corrupção. Vênus, em sua invocação local (Pafiana), era a deusa favorita da ilha. Seu culto era muito sofisticado, organizado em torno da prostituição sagrada. Pafos era o centro do culto a Vênus. De acordo com Atanásio, a imoralidade era considerada uma virtude em Chipre. Por outro lado, vemos as necessidades pessoais. O procônsul Sérgio Paulo queria ouvir a Palavra de Deus. Os missionários já haviam anunciado a Palavra de Deus aos judeus de Salamina (v. 5). Agora tinham a oportunidade de anunciar a Palavra de Deus a um gentio de Pafos (v. 7). O evangelho precisa ser pregado a todos os seres humanos (judeus e gentios), e a missão cristã é a única que pode atender a essa necessidade. A missão cristã enfrenta obstáculos (v. 6-8). Esses obstáculos são de vários tipos. Há obstáculos físicos. Os missionários tiveram de percorrer “toda a ilha” para chegar ao local da missão. Há obstáculos espirituais. Um deles surgiu quando “encontraram um judeu, chamado Barjesus”. As várias modalidades e expressões do ocultismo são obstáculos muito comuns ao trabalho dos missionários. Mais sutil, porém não menos eficaz, é a obra dos falsos profetas, ou seja, dos pregadores que confundem o povo. O

missionário irá enfrentar uma infinidade de seitas e falsas religiões, muitas das quais até invocam o nome de Jesus (Barjesus significa “filho de Jesus”). Há obstáculos sobrenaturais. O pior inimigo do trabalho missionário é o próprio Satanás (2Coríntios 4.3,4).Na realidade, Barjesus, o “filho de Jesus” (v. 6), era um “filho do Diabo”(v. 10). Nos incrédulos, a obra de Satanás consiste em que ele “arranca o que foi semeado em seu coração” (Mateus 13.19). A missão cristã consiste em uma luta (v. 9-11). Nessa luta ou guerra espiritual, o missionário conta com três recursos fundamentais. Primeiro: o missionário conta com o poder do Espírito Santo (v. 9). Saulo, ou seja, Paulo, agia cheio do Espírito Santo. Sem o poder do Espírito Santo, o cumprimento da missão é impossível. A partir desse momento, Paulo tornou-se o líder da missão, já que seu nome passa a encabeçar o rol dos missionários. O motivo é que ele estava cheio do Espírito, assim como Barnabé (11.24). Segundo: o missionário conta com a arma da verdade (v. 10). Paulo desmascarou Elimas ou Barjesus. Acusou-o de ser mentiroso e ímpio, “inimigo de tudo o que é justo” e “cheio de toda espécie de engano e maldade”. Barjesus revelou-se um verdadeiro “filho do Diabo” (João 8.44). Paulo repreendeu Elimas, e a forma de repreender Satanás e suas obras é com a verdade: “Quando é que vai parar de perverter os retos caminhos do Senhor?” (gr. ou paúsēi diastréfōn tàs hodoùs [toū] kyríou tàs eutheías). É a verdade que cobre nossa retaguarda na luta contra Satanás (Efésios 6.11-18; 1Pedro 5.8,9). Terceiro: o missionário conta com a autoridade do tribunal divino (v. 11). Nesse julgamento, há um veredicto: “A mão do Senhor está contra você” (gr. nÿn idoù cheir kyríou epì se). Observese a força dessa palavra condenatória. Nesse julgamento uma

sentença foi proferida: “Você ficará cego” (gr. ésēi týflos). Observese a segurança dessa declaração. Nesse julgamento, a sentença foi executada: “Você ficará [...] incapaz de ver a luz do sol durante algum tempo” (gr. mē blépōn tòn hēlion áchri kairoū). Observe-se a precisão com que a sentença foi executada. Paulo pronunciou a sentença divina com autoridade celestial. A missão cristã converte as pessoas (v. 12). Missão resulta em salvação. A salvação cristã implica conhecer o poder de Deus (“vendo o que havia acontecido”, gr. tóte idōn). O procônsul “viu” o que aconteceu, ou seja, foi testemunha do ocorrido. É preciso conhecer o poder do evangelho para ser salvo. salvação cristã implica confiança no poder de Deus (“o procônsul [...] creu”, gr. ho anthýpatos gégonos epísteusen). O procônsul creu no evangelho de Cristo ante a evidência de seu poder. O mesmo ocorreu com o carcereiro de Filipos (16.31). A salvação cristã implica o compromisso com o poder de Deus (“profundamente impressionado com o ensino do Senhor”, gr. ekplēssómenos epì tēi didachēi toū kyríou). O procônsul rendeu-se à forma de doutrina e de vida que o apóstolo lhe apresentou. É preciso crescer na fé e amadurecer na doutrina do Senhor (estilo de vida cristão).

A MISSÃO EM ANTIOQUIA DA PISÍDIA (13.13-52) Justo L. González: “A maior parte do que Lucas nos informa sobre essa curta viagem missionária passa-se em Antioquia da Pisídia. Para chegar lá, ‘Paulo e seus companheiros’ [...] foram para Perge da Panfília e de lá para Antioquia. Na Panfília (como esclarece 15.38), sem Lucas explicar o motivo, João Marcos abandonou-os e voltou para Jerusalém. Mais tarde (15.37-40), foi a causa de um desentendimento que levou à separação de Barnabé e Paulo”.4 As experiências dos missionários (13.13-52)

Perge da Panfília era a maior cidade da pequena província costeira romana da Panfília, na metade sul da Turquia. Situava-se vários quilômetros terra adentro, para se proteger dos ataques de piratas. Aparentemente, Paulo não pregou na cidade dessa vez, só mais tarde (14.25). Não há evidência histórica de algum grupo cristão nessa área em um espaço de muitos anos. Paulo limitou-se a passar pela região costeira. Antioquia da Pisídia estava localizada na região étnica da Frígia, na província romana da Galácia. Essa longa passagem registra três acontecimentos importantes para nossa consideração. O líder (v. 13a). A passagem apresenta Paulo como o líder da companhia missionária. Ele deixou de ser o parceiro de Barnabé no ministério para se tornar o líder da equipe missionária, de modo que Barnabé e João Marcos passaram a ser “companheiros” de Paulo (v. 13a). Foi precisamente em Chipre e por causa do papel de liderança de Paulo nos fatos ali ocorridos que a troca de liderança aconteceu. Quando a viagem missionária começou, o elenco era integrado por “Barnabé e Saulo” (v. 4). Então, ao sair de Chipre e entrar na Ásia Menor, os papéis foram alterados de maneira

significativa entre os atores principais e os coadjuvantes: “Paulo e seus companheiros[...]” (v. 13). Assim se mantém até o final de Atos. A frustração (v. 13b). A passagem registra um incidente frustrante para o apóstolo Paulo: pouco depois de chegar a Perge da Panfília, na costa sul da Ásia Menor, João Marcos “os deixou ali e voltou para Jerusalém” (gr. Iōánnēs dè apochōrēsas ap’autōn hypéstrepsen eis Hierosólyma, v. 13b). Quem era João Marcos? Ele é mencionado pela primeira no livro de Atos em 12.12. Muitos acreditam que ele é o “jovem” mencionado em Marcos 14.51. É provável que tenha sido levado a Cristo por Pedro (1Pedro 5.13), mas a expressão [“meu filho”] pode estar exprimindo apenas uma estreita associação no ministério. De qualquer forma, Pedro e Marcos estão ligados um ao outro em antigos escritores. Papias, por exemplo, afirma que Marcos escreveu seu evangelho com base no testemunho de Pedro. Marcos (ou Marcus) era seu apelido latino. Seu nome próprio em hebraico era João, que significa “graça de Deus”. Ambos os nomes aparecem em 12.12 e 15.37, mas João aparece sozinho em 13.5,13, e Marcos também em 15.39 e em outras passagens. Sua mãe era judia, Maria de Jerusalém. Sua casa era ponto de encontro da primeira igreja, em Jerusalém, e foi para onde Pedro se dirigiu depois de ser liberto da prisão (12.12). Nada se sabe de seu pai, mas Barnabé era seu primo (não seu tio, como alguns afirmam; v. Colossenses 4.10, gr.). Foi por essa razão que ele se juntou à primeira equipe missionária. O que fazia João Marcos? Na verdade, o Espírito Santo instruiu a igreja síria de Antioquia a separar Barnabé e Saulo “para a obra a que os tenho chamado” (gr. eis tò érgon ho proskéklēmai autoús, 13.2). Nada é dito a respeito de Marcos, e de fato foram os outros

dois que receberam a imposição de mãos dos líderes da igreja e foram “enviados pelo Espírito Santo” (13.4). De João Marcos, diz-se apenas que era um “auxiliar” (gr. hypērétēn, “assistente”, “ajudante”, “colaborador”, “servente”). A palavra grega significa “remador” de um barco, o que indica uma tarefa invisível e humilde, embora muito necessária e útil. Talvez Marcos tenha ajudado com os preparativos e na assistência pessoal aos apóstolos. É provável que tenha ido com eles por insistência de Barnabé. O que aconteceu com João Marcos? Lucas não explica o motivo de João Marcos ter abandonado a equipe missionária. Talvez não o faça para não expor a imaturidade e a tolice da ação do jovem, que acabou gerando tremenda desavença entre seu parente e Paulo, ou talvez porque Marcos já fosse uma figura conhecida nas igrejas na época em que estava escrevendo e para as quais sua obra era dirigida. A questão é que João Marcos deixou Paulo e Barnabé em Perge da Panfília, no início de uma das etapas mais importantes da jornada missionária dos dois apóstolos, e retornou para sua casa em Jerusalém. Por que ele fez isso? Só podemos fazer suposições. Talvez porque os missionários tivessem avaliado que o trabalho ficaria mais difícil de Perge em diante. Contudo, não é provável que apenas isso tenha feito Marcos desistir de rumar para o interior da Ásia Menor (2Coríntios 11.23-27). Talvez fosse preocupação com a mãe viúva. Paulo, o intrépido, fora além do que Marcos esperava no início da viagem missionária. Convém lembrar que só Paulo e Barnabé foram chamados e enviados pelo Espírito Santo. Teria Marcos se adiantado aos propósitos de Deus? Barnabé equivocou-se em querer levar Marcos com ele na primeira viagem missionária? Talvez

Marcos reprovasse a oferta de salvação aos gentios com a exigência única da fé. Os membros da família de Marcos, como a de Paulo, eram “hebreus de hebreus”. Em 13.5-13, seu nome hebraico, João, está conectado com tudo que aconteceu em Pafos (Chipre), quando um procônsul romano (o gentio Sérgio Paulo) foi convertido. O avanço (v. 14,15). A passagem mostra os primeiros missionários cristãos adentrando uma das regiões mais instáveis e acidentadas de todo o império romano. Antioquia da Pisídia não ficava de fato na Pisídia, mas na Frígia.No entanto, Lucas usa essa denominação para distingui-la de Antioquia da Síria, a cidade de onde os missionários partiram. De qualquer modo, a Pisídiaera uma das regiões em que fora dividida a província romana da Galácia. Estava situada ao norte da Panfília (13.13,14) e tinha mais de 190 quilômetros de comprimento e cerca de 80 quilômetros de largura. A região era perigosa, pois estava saturada de bandidos e apresentava uma topografia irregular (2Coríntios 11.26). Paulo e Barnabé chegaram à região (cerca de 1.000 metros de altura), depois de cruzar a cordilheira do Tauro em Perge. O sermão (v. 16-41). A passagem apresenta o registro mais longo de um sermão pregado por Paulo (v. 16-41). Como era seu costume, Paulo dirigiu-se em primeiro lugar à sinagoga, onde foi convidado pelos líderes a falar, depois de ler a Lei e os Profetas, uma parte importante da ordem do culto da sinagoga nos dias de Jesus. Originariamente, apenas a Lei mosaica era lida, mas Antíoco IV Epifânio proibiu essa prática em 163 a.C. Os judeus então a substituíram pela leitura dos Profetas. Durante a Revolta dos Macabeus, o judaísmo foi restaurado, e tanto a Lei quanto os

Profetas voltaram a ser lidos nos cultos da sinagoga, no dia de sábado (v. 27) A mensagem de Paulo é semelhante em conteúdo ao discurso de Estêvão, que motivou seu martírio. Depois de uma revisão histórica (v. 17-23) que cobria os acontecimentos desde o êxodo até a vida de Davi e, em particular, a promessa de um descendente ao trono desse grande rei, Paulo prossegue até João Batista e seu ministério. Isso lhe serviu de introdução natural à ideia de que Jesus, o Descendente de Davi, era o cumprimento daquela promessa e, como consequência , o Salvador de Israel, o Messias. A partir desse ponto, Paulo apresenta o evangelho cristão conforme se manifesta Jesus Cristo (v. 26-29). É em Jesus Cristo que se cumpre cabalmente o v. 39: “Todo aquele que crê é justificado” por Jesus (gr. en toútōi pās ho pisteúōn dikaioūtai). É uma declaração surpreendente, porque Paulo está dizendo que a Lei mosaica não pode justificar ninguém, mas Cristo oferece plena justificação a todo crente. A decisão (v. 42-48). A passagem apresenta a decisão de Paulo e Barnabé de direcionar seu ministério prioritariamente aos gentios, em vez de aos judeus, como haviam feito até então (v. 42-48). O motivo dessa decisão capital foi que a mensagem de Paulo causara grande impacto. “Quase toda a cidade” (gr. schedòn pāsa hē pólis) é uma hipérbole, porque nem todos se reuniram. Em todo caso, era uma “multidão” (gr. toùs óchlous) de gentios, em número suficiente para provocar a “inveja” dos judeus (v. Mateus 27.18; Marcos 15.10; Atos 17.5), que, “blasfemando, contradiziam o que Paulo estava dizendo” (gr. antélegon toīs hypò Paúlou lalouménois blasfēmoūntes). A reação dos apóstolos foi ousada e corajosa. O

evangelho destinava-se primeiramente aos judeus (Romanos 9— 11), mas Deus incluiu os gentios (3.26; 9.20; 13.5,14; 16.13; 17.2,10,17). Os judeus, porém, rejeitaram a Palavra de Deus. O verbo “rejeitar” é enfático (cf. 7.39; Romanos 11.1,2). “Agora nos voltamos para os gentios” (gr. idoù strefómetha eis tà éthnē) tornouse o padrão da proclamação apostólica do evangelho (18.6; 22.21; 26.20; 28.28; Romanos 1.16). Os resultados (v. 49-52). A passagem apresenta os resultados da pregação apostólica (v. 49-52). Os resultados foram positivos, pois “a palavra do Senhor se espalhava por toda a região” (gr. dieféreto dè ho lógos toū kyríou di’holēs tēs chōras). Todavia, houve também resultados negativos, porque os judeus estavam “provocando perseguição” (gr. epēgeiran diōgmòn) contra os apóstolos por meio da incitação a pessoas ilustres da comunidade. Os apóstolos resistiram aos ataques e os repeliram com um gesto tipicamente judeu e recomendado pelo próprio Senhor (Mateus 10.14; Lucas 9.5; 10.11). Observe-se que os apóstolos não perderam tempo enfrentando os opositores, mas “foram para Icônio”, a maior cidade da Licaônia, situada na província romana da Galácia, a cerca de 150 quilômetros a leste-sudeste de Antioquia da Pisídia e ao norte de Listra. A mensagem dos missionários (13.23-39)

Vale a pena uma análise cuidadosa do argumento de Paulo em seu sermão em Antioquia da Pisídia, de acordo com essa passagem, uma vez que contém a essência do evangelho, expresso em torno da obra redentora do Messias Jesus. Ao fazer isso,

percebemos quatro características importantes relacionadas com o Messias conforme apresentado por Paulo. O Messias anunciado (v. 23-25). Dois temas chamam nossa atenção nesses versículos. Primeiro: falam do mensageiro (v. 23,25). João Batista é apresentado como o precursor do Messias. Sua identidade fica bem clara com a afirmação dele próprio: “Não sou quem vocês pensam” (v. 25a), ou seja, ele não era o Messias aguardado, mas aquele que antecipou sua vinda. Também é notável sua humildade: “Eis que vem depois de mim aquele cujas sandálias não sou digno nem de desamarrar” (v. 25b). Segundo: falam da mensagem (v. 24). A mensagem de João Batista era uma pregação dramatizada por meio do rito do batismo. Era também uma mensagem radical, pois o que estava por trás dela era um chamado ao arrependimento. Era também uma mensagem universal, por ser dirigida “para todo o povo de Israel”. O Messias crucificado (v. 26-29). Paulo ressalta o fato de que Jesus foi crucificado em conformidade com os propósitos de Deus para todos os seres humanos (os “filhos de Abraão” e os “gentios tementes a Deus”, v. 26a). A cruz não foi um acidente: ela fazia parte do plano eterno de Deus (2.23; 3.18; 4.28). A cruz não foi uma improvisação nem uma medida de emergência. Paulo destaca também que Jesus foi crucificado para nossa salvação: “A nós foi enviada esta mensagem de salvação” (gr. hēmīn ho lógos tēs sōtērías taútēs exapestálē, v. 26b). Se Cristo morreu na cruz, é porque não havia outro caminho para nossa salvação. A morte de Cristo não mudou a atitude de Deus para com os seres humanos pecadores. Não devemos contrastar o amoroso Jesus com um Deus

irado e vingativo. Foi pela vontade de Deus que o Messias foi enviado. Foi Deus quem planejou sua vinda ao mundo para nossa salvação. A cruz é uma janela no tempo que nos permite contemplar o amor sofredor que Deus tem por nós desde a eternidade. Além disso, Paulo deixa claro que Jesus foi crucificado por causa de nossa incredulidade (v. 27,28). Não somos diferentes dos habitantes de Jerusalém nem de seus governantes, que “não reconheceram Jesus” (gr. toūton agnoēsantes). O Messias foi rejeitado por todos (v. 27; João 1.11): pelo povo, pelos governantes e pelos religiosos. O Messias foi morto por todos (v. 28). Os judeus o mataram, mas também os gentios. Por fim, Paulo lembra que Jesus foi crucificado em cumprimento das profecias (v. 29). Os primeiros pregadores tinham de mencionar esse fato, porque para os judeus era inaceitável que o Messias fosse crucificado (Deuteronômio 21.23). Para o judeu ortodoxo, a cruz desqualificava Jesus como o Messias. No entanto, as profecias diziam o contrário, pois falavam de sua morte, sepultamento e ressurreição. O Messias ressuscitado (v. 30-37). O texto destaca, em primeiro lugar, o agente da ressurreição (v. 30). Esse agente é Deus. Só o Criador pode dar vida. A ressurreição mostra o poder de Deus que age plenamente em Jesus (Efésios 1.19,20). Portanto, Jesus é o Senhor (2.32,36). O texto também fala das testemunhas da ressurreição (v. 31,32a). Eram os que o tinham visto (v. 31) e os que haviam crido nele (“nós”, v. 32a). O texto destaca ainda a promessa da ressurreição (v. 32b-37). A ressurreição é o cumprimento das profecias. Davi recebeu promessas que obviamente não se cumpriram nele, porque se referiam ao Messias Jesus, que as cumpriu ao ressurgir dentre os mortos. A ressurreição, portanto, não

foi uma improvisação, e sim o resultado de um plano divino que expressa seu propósito eterno de redenção. A ressurreição provou que Jesus era tudo que ele afirmava ser e que tinha o direito de ser chamado Filho de Deus e Senhor. O Messias aceito (v. 38,39). À luz desses versículos, fica claro que devemos aceitar sua vida e obra. A vida e obra de Jesus são boasnovas. É o evangelho de Deus. Os judeus que ouviam Paulo viviam até então de acordo com a Lei mosaica. Ninguém, porém, podia cumprir a Lei de forma cabal, por isso havia sempre um sentimento de fracasso e de culpa. Em Cristo, e por meio de sua vida, morte e ressurreição, temos acesso ao seu poder libertador e perdoador, que nos livra da condenação que merecemos e nos reconcilia com Deus. Devemos aceitar (receber) Cristo se quisermos ser salvos e obter “o perdão dos pecados” (gr. áfesis hamartiōn). Além disso, devemos aceitar o que ele nos oferece, e o que ele nos oferece é justamente “o perdão dos pecados” e o que não conseguimos alcançar nem com nossos maiores esforços, ou seja, “ser justificado” daqueles pecados. Como, porém, aceitar Cristo e o que ele oferece? Confiando nele, ou seja, crendo, pois, “por meio dele, todo aquele que crê é justificado”.

A MISSÃO EM ICÔNIO (14.1-7)

A resistência dos judeus à pregação apostólica em Antioquia da Pisídia e sua oposição sistemática ao ministério de Paulo e Barnabé obrigaram os missionários a deixar a cidade. A equipe apostólica deslocou-se para Icônio, cidade que se gabava de ser mais antiga que Damasco. Em um passado remoto, tivera um rei chamado Nanaco. A expressão “desde os dias de Nanaco” significava “desde o início dos tempos”. Era uma cidade muito cosmopolita, e havia ali uma colônia judaica. Os gregos também eram numerosos, e havia ainda a população nativa. Todos, porém, estavam sob o governo de Roma. Como era de costume, Paulo e Barnabé começaram a pregar na sinagoga local e, como sempre acontecia, obtiveram êxito. No entanto, os judeus que não creram incitaram a turba, e mais uma vez a equipe apostólica se viu forçada a deixar a cidade. Observese que Paulo e Barnabé estavam arriscando a vida cada vez mais. Em Antioquia, os judeus “ficaram cheios de inveja e, blasfemando, contradiziam o que Paulo estava dizendo” (13.45), o que acabou “provocando perseguição contra Paulo e Barnabé”, até que “os expulsaram do seu território” (13.50). Em Icônio, a situação foi ainda mais grave. A multidão de opositores queria “maltratá-los e apedrejá-los” (gr. hybrísai kaì lithobolēsai autoús), de modo que também se viram obrigados a fugir da cidade (14.5,6). Em Icônio, eles escaparam por pouco de um linchamento. Quanto mais longe do mundo civilizado, mais perigo corriam os apóstolos (essa é a primeira vez que Lucas identifica Paulo e Barnabé como “apóstolos”; cf. v. 14). Os servos do Senhor “fugiram para as cidades licaônicas

de Listra e Derbe, e seus arredores” (v. 6). Isso sugere que por algum tempo os apóstolos “continuaram a pregar as boas-novas” (gr. kakeī euangelizómenoi ēsan, v. 7) na região, provavelmente de cidade em cidade. Os missionários Paulo e Barnabé tinham uma mensagem a comunicar, e nada nem ninguém os impediriam de cumprir sua missão. É preciso determinação e coragem para ser cristão e pregar “a mensagem de sua graça realizando sinais e maravilhas” (gr. tōi lógōi tēs cháritos autoū, didónti sēmeīa kaì térata, v. 3). É arriscado nadar contra a corrente e dar testemunho da vida e obra de Jesus Cristo. O relato do ministério apostólico de Paulo e Barnabé em Icônio evidencia dois elementos constantes da missão cristã em todos os tempos: a pregação e a reação. Sempre que alguém está “falando corajosamente do Senhor”, há reações de vários tipos. A pregação (14.1,3)

Eles pregavam o evangelho. O texto informa que o conteúdo da mensagem que os apóstolos proclamavam eram “as boas-novas” (v. 7), ou seja, eles pregavam o evangelho. O que é o evangelho? É o anúncio da vida e obra de Jesus Cristo como Filho de Deus e o Messias prometido para nossa salvação. Por isso, o evangelho que pregamos é “a mensagem de sua graça” (v. 3), a Palavra que nos fala do amor imerecido de Deus por nós. Eles pregavam com ousadia. O texto também informa de que maneira os apóstolos anunciavam o evangelho, ao observar que eles “falaram de tal modo” que sua mensagem causou profundo impacto (v. 1). É interessante que se trata da mesma expressão usada em João 3.16 (“De tal maneira Deus amou o mundo [...]”,

RVR). Os missionários dedicaram muito tempo a esse ministério de proclamação, pois “passaram bastante tempo ali” (v. 3a). Eles exerciam seu ministério de pregação com ousadia (“falando corajosamente”, v. 3b) e com confiança no poder do Senhor (v. 3c). Eles pregavam realizando milagres. O mais importante era que sua proclamação do evangelho do Reino não consistia apenas em palavras, mas também em manifestações surpreendentes do poder de Deus, “realizando sinais e maravilhas” (v. 3d; v. Marcos 16.17,18). Sinais e maravilhas são um complemento muito importante à proclamação verbal do evangelho, uma vez que confirmam a Palavra pregada, complementam a obra redentora de Cristo e atestam a autoridade de quem proclama as boas-novas. A reação (14.2,4-6)

A pregação do evangelho sempre provoca uma reação. Em nosso texto, percebemos uma dupla reação. A reação dos judeus mais recalcitrantes e incrédulos (v. 2,4). Esses judeus “incitaram os gentios e irritaram-lhes o ânimo contra os irmãos” (v. 2b). Os “gentios” eram frígios, grupo étnico conhecido por ser muito temperamental e agressivo. Os judeus souberam explorar essa característica e os instigaram por meio de calúnias e difamação contra os apóstolos e seus novos irmãos na fé. A reação dos judeus incrédulos foi muito dinâmica, pois conseguiram criar um verdadeiro movimento de oposição ao fazer proselitismo de sua causa (v. 4).

A reação dos gentios e das autoridades (v. 5,6). Eles se deixaram levar pelas calúnias dos judeus e se deixaram usar como instrumentos para maltratar e tentar apedrejar os apóstolos. Em nítido contraste com a reação dos judeus e dos gentios descrentes, está a reação de Paulo e Barnabé (v. 6,7). Por motivo de segurança, eles fugiram para regiões ainda não visitadas, mas também o fizeram como parte de sua estratégia missionária. O próprio Jesus havia ensinado que, quando houvesse resistência à recepção do evangelho em algum lugar, o melhor a fazer era ir para onde a mensagem fosse bem recebida (Marcos 6.11). Contudo, o mais importante era que eles “continuaram a pregar as boas-novas” (v. 7). Eles não desanimaram diante das circunstâncias e continuaram a exercer seu ministério com fidelidade. O resultado (14.1-7)

A pregação apostólica não deixou de produzir frutos importantes. O texto informa os resultados da poderosa proclamação do evangelho. No caso da pregação de Paulo e de Barnabé em Icônio, foram múltiplos e frutíferos. Um resultado redentor (v. 1). O texto diz que “veio a crer grande multidão de judeus e gentios” (v. 1). Ou seja, houve salvação para os que creram, e os que creram não foram poucos, e sim uma “grande multidão”, de modo que a colheita foi abundante — os frutos não foram escassos. Foi uma tremenda primeira reunião no local. Um resultado libertador (v. 1). O evangelho conseguiu romper barreiras humanas, como as que existiam entre judeus e gregos, os quais, embora de uma cultura diferente, acolheram Jesus Cristo, o

único Senhor, em seu coração. Não há maior poder reconciliador, unificador e conciliador que o evangelho do Reino. Só o poder de Cristo pode libertar o ser humano do peso de seus preconceitos, prejulgamentos e pressupostos. Só com Cristo no centro da vida é possível testemunhar o milagre de povos os mais diversos convergindo para um mesmo ponto: ele. Um resultado permanente (v. 2b). Isso aconteceu porque os que creram foram integrados a uma nova comunidade de fé, a família de Deus, a igreja, na qual passaram de estranhos e alienados a “irmãos” (v. 2b). O mundo conheceu uma infinidade de projetos utópicos de luta pela unidade, fraternidade e igualdade. Contudo, a Revolução Francesa deu lugar ao Período do Terror, a Revolução Bolchevique resultou em estrondoso fracasso da União Soviética, a Revolução Cubana ocasionou a pobreza e a miséria do povo  de Cuba, e a Revolução Bolivariana redundou no sofrimento de milhões de  venezuelanos. O único projeto revolucionário que alcança os ideais pelos quais milita não é deste mundo: é o Reino de Deus, no qual se ingressa pela fé em Jesus Cristo. Um resultado distintivo (v. 4). Ou seja, criou-se uma nova identidade para os crentes de Icônio, que os diferenciava da população descrente. Ao mesmo tempo, toda a cidade tomou partido ou contra ou a favor dos cristãos: “Alguns estavam a favor dos judeus, outros a favor dos apóstolos” (v. 4). O evangelho sempre causa divisão, porque ninguém consegue ficar neutro diante das boas-novas.

A MISSÃO EM LISTRA E DERBE (14.8-20)

Há campos missionários em que os obreiros cristãos trabalham durante muitos anos com poucos resultados, porém há os que com o tempo colhem os ricos frutos produzidos pela semente do evangelho. O fracasso inicial em alguma área ou de um grupo de pessoas não deve levar ao desânimo. A promessa da Palavra de Deus é que “no tempo próprio colheremos, se não desanimarmos” (Gálatas 6.9). A comissão de Cristo não lança a responsabilidade da resposta à mensagem sobre os ombros do mensageiro. Nosso dever consiste em sermos testemunhas do amor de Deus em Cristo por todo o mundo, qualquer que seja a resposta recebida. O ministério apostólico (14.8-20)

Ao ler o relato dos acontecimentos em Listra e Derbe (8.14-20), deparamos com cinco elementos relacionados com o ministério apostólico de Paulo e Barnabé e que devemos analisar. O poder (v. 8-10). A proclamação do evangelho pelos apóstolos em Listra se fez acompanhar da cura de um paralítico. O homem, aleijado de nascença, ouviu Paulo falar (v. 8,9) e foi curado: “Deu um salto e começou a andar”. Vale ressaltar que foi do apóstolo a iniciativa no processo da cura: “Quando Paulo olhou diretamente para ele e viu que o homem tinha fé para ser curado” (gr. hos atevísas autōi kaì idōn hóti échei pístin toū sōthēnai, v. 9), ordenoulhe que se levantasse. A obediência por fé resultou na bênção imediata da cura (v. 10b). É interessante comparar o caso da cura desse paralítico com o da cura registrada por Lucas em 3.1-10: “um homem paralítico dos pés, aleijado desde o nascimento” (v. 8; 3.2);

“Quando [...] viu que o homem tinha fé” (v. 9; 3.4); “Levante-se! Fique em pé!” (v. 10a; 3.6); “o homem deu um salto e começou a andar” (v. 10b; 3.8a); “Ao ver o que Paulo fizera, a multidão começou a gritar” (v. 11; 3.9,10). A popularidade (v. 11-13). Como resultado do milagre ocorrido, o povo atribuiu o fenômeno aos apóstolos (v. 11). Eles começaram a gritar em seu idioma que dois deuses haviam descido em forma humana (v. 12). Barnabé foi identificado como uma manifestação de Júpiter (o nome latino para Zeus, a principal divindade e deus nacional dos gregos), já Paulo foi identificado como Mercúrio (ou Hermes, a divindade mais eloquente do Olimpo grego). Barnabé foi designado como Zeus provavelmente por ser fisicamente mais alto e imponente que Paulo, ao passo que este se destacava mais pela oratória (1Coríntios 2.1). Em todo caso, para as lideranças religiosas locais tratava-se de uma grande oportunidade de celebrar e obter determinadas vantagens. Por isso, o sacerdote de Zeus, que administrava um templo nos arredores da cidade, organizou imediatamente um festival. Ele “trouxe bois e coroas de flores à porta da cidade” (gr. taúrous kaì stémmata epì toùs pylōnas enénkas, v. 13). É interessante que em 1909 foram encontradas nas ruínas de Listra duas inscrições que mencionam esses dois deuses gregos. O pedido (v. 14-18). Diante da atitude de devoção espasmódica e apaixonada do povo, longe de aproveitar o momento para alimentar o ego, os apóstolos pediram que reconsiderassem sua ação e que pusessem fim àquilo. Três elementos se destacam nesses versículos.

O auditório (v. 14,15a). Nem por um instante os apóstolos pensaram em aceitar a adoração e os sacrifícios do povo. Por isso, “rasgaram as roupas e correram para o meio da multidão” (gr. diarrēxantes tà himátia autōn exepēdēsan eis tòn óchlon krázontes, v. 14). Pelo contrário, pediam ao povo que não os adorasse, uma vez que também eram seres humanos mortais (v. 15a). O apelo (v. 15b). Os apóstolos aproveitaram a ocasião para apelar aos seus ouvintes que deixassem de lado aquelas “coisas vãs” (gr. tōn mataíōn) e se voltassem para o Deus vivo (gr. theòn zōnta) e amoroso, Criador de todas as coisas. É interessante que Paulo comece proclamando verdades elementares da religião natural (“o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há”) e da história universal (“passado”) a esse povo pagão, que vivia no campo ou em um ambiente rural, em vez de apresentar a distintiva mensagem cristã da redenção. Em sua estratégia missionária, Paulo vai do conhecido ao desconhecido. A aplicação da mensagem (v. 15-18). O Deus da natureza (v. 15) e da história (v. 16) é também o Deus da providência (v. 17) e da graça (v. 21-23, em que Listra é mencionada outra vez). A expressão “apesar dessas palavras” indica o método pelo qual os apóstolos tentaram “impedir que a multidão lhes oferecesse sacrifícios” (v. 18). Foi então que ocorreu a irrupção dos perseguidores judeus de Antioquia e de Icônio. A perseguição (v. 19). Mais uma vez, os recalcitrantes e descrentes judeus de Antioquia da Pisídia (13.50) e Icônio (14.5) entraram em cena. Eles convenceram o povo de Listra a se voltar contra Paulo (o orador), usando a mesma estratégia que haviam adotado em Antioquia e em Icônio, e assim “mudaram o ânimo das

multidões” (gr. peísantes toùs óchlous). Paulo acabou apedrejado por esses judeus, com o consentimento da multidão local, que momentos antes queria elevá-lo aos altares. Desse modo, o movimento de oposição judaica conseguiu o que desde muito tempo desejava (14.5). Paulo foi arrastado para fora da cidade, onde sofreu um linchamento. Ele foi deixado ferido ali, porque pensavam que já estava morto. Os judeus acreditavam que haviam encerrado o ministério daquele pregador irritante, mas estavam errados. Bem disse Jesus que, “se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas, se morrer, dará muito fruto” (João 12.24). Foi o que aconteceu com Paulo em Listra (16.1,2): ele não morreu, embora seus agressores acreditassem que estava morto. O programa (v. 20). O primeiro fato mencionado no texto é que Paulo sobreviveu ao linchamento, “se levantou e voltou à cidade” (gr. autòn anastàs eisēlthen eis tēn pólin, v. 20). Deus o ergueu do que poderia ter sido sua morte (7.58,59; 2Coríntios 11.25). No dia seguinte, partiu com Barnabé para Derbe, a cerca de 48 quilômetros dali. Alguns argumentam que essa aparente morte em Listra está relacionada com a experiência que Paulo relata em 2Coríntios 12.2,4. O ministério de evangelização (14.8-20)

Há campos missionários onde se trabalha, mas há poucas decisões de fé. Isso, porém, não deve levar à desilusão. Por fim, o próprio Jesus proclamou intensamente o evangelho do Reino, mas não foram muitos os que o acompanharam até o pé da cruz nem muitos os que se despediram dele em sua ascensão. Antes do derramamento do Espírito Santo, no dia de Pentecoste, os

discípulos em Jerusalém eram apenas 120 pessoas. Se nos sentirmos deprimidos porque nossa obra a favor do Reino não parece produzir os frutos que desejamos, devemos reacender nosso senso de responsabilidade como cristãos, cujo dever é anunciar as boas-novas entre as nações. Deus não nos chamou para produzir determinado resultado, mas para cumprir uma determinada tarefa. A tarefa diante de nós é proclamar o evangelho do Reino, curar enfermos e expulsar demônios (Lucas 9.1,2). Ao nos comprometermos com essa missão, há três fatores que devemos levar em conta: contexto, cultura e conflito. O contexto da missão é a cidade (v. 8-10). Para a maioria dos cristãos da América Latina, o lugar onde se cumpre a missão é uma cidade, como Listra e Derbe, ou quaisquer outras cidades em que Paulo e Barnabé tenham ministrado. Os destinatários de nossa mensagem de salvação, cura e libertação são citadinos com necessidades muito particulares e geralmente dramáticas. As cidades latino-americanas estão cheias de homens, mulheres e crianças como o paralítico de Listra. Alguns estão acamados e incapazes de se mover por causa de doenças, ao passo que outros sofrem por causa da pobreza, da opressão, dos vícios, da depressão, da solidão ou da falta de oportunidade de trabalho, educação, moradia ou serviços. Esses milhões de miseráveis urbanos estão “sentados”, com os braços caídos e a mente obnubilada, à espera de que alguém faça algo por eles. Muitos deles já “ouviram” a mensagem apostólica e possuem algum grau de fé, mas precisam de alguém que “olhe diretamente” para eles a fim de saber se têm fé para serem curados de tudo que os

escraviza. Alguém precisa ir a cada um deles e em nome de Jesus dizer-lhes: “Levante-se! Fique em pé!”. A circunstância da missão é o paganismo (v. 11-18). As cidades latino-americanas estão soterradas na lama do paganismo, do sincretismo, do ocultismo, do secularismo, do materialismo e de todas as formas possíveis de idolatria. Até mesmo a ação redentora de Deus é mal interpretada e decodificada em tais condições, alheia à verdade do evangelho. As multidões vivem na expectativa de que os deuses assumam forma humana e venham visitá-los. Por isso, sacrificam qualquer coisa, a fim de preencher os altares de sua devoção aos deuses ilusórios e passageiros do mundo do entretenimento, da mídia de massa, dos esportes, da política e até mesmo da religião falsa e barata. A criatividade da população para fabricar deuses sob medida e de acordo com seus caprichos é assombrosa. O político mais corrupto, o esportista mais obtuso, a dançarina mais promíscua e o ator mais obsceno são conduzidos facilmente aos altares pelas mãos de pessoas que afirmam acreditar em Deus, mas ignoram quem ele seja e muito menos estão dispostas a lhe obedecer. A cultura urbana latino-americana é pagã. Sua condição é a de um ateísmo prático e funcional, capaz de distorcer as “boas-novas para vocês” por expressões adulteradas do evangelho (“evangelho da prosperidade”, “evangelho do milagre”, “evangelho sem pecado e sem cruz”, e assim por diante). O conflito da missão é a oposição (v. 19,20). Não gostamos de dizer isto, muito menos de reconhecê-lo, mas a verdade da qual toda a história do cristianismo dá testemunho é a mesma que Paulo afirmou há dois mil anos: “Todos os que desejam viver

piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Timóteo 3.12). Estamos tão acostumados a viver um evangelho de glória e sem cruz que ficamos apavorados toda vez que consideramos a possibilidade de sofrer por causa do evangelho. A realidade, porém, é que há oposição, conflitos e perseguição sempre que os cristãos resolvem levar a sério a missão de proclamar Cristo no poder do Espírito Santo em contextos urbanos. “Tome diariamente a sua cruz” (Lucas 9.23) não significa andar com um crucifixo pendurado no pescoço ou com uma cruz presa na lapela do casaco. Carregar a cruz é estar disposto a morrer por Cristo.

A MISSÃO NO RETORNO A ANTIOQUIA DA SÍRIA (14.21-28)

Essa passagem descreve em poucas palavras o caminho de retorno da equipe apostólica. Causa espanto que os missionários não tenham evitado ou contornado as localidades que lhes causaram graves problemas (Derbe, Listra, Icônio, Antioquia da Pisídia) e nas quais sofreram rejeição e violência. Pelo contrário, parece que consideravam pouca coisa os perigos a que, por certo, seriam expostos, em comparação com a bênção de poderem fortalecer os discípulos e animá-los “a permanecer na fé” (gr. parakaloūntes emménein tēi pístei, v. 22). Os apóstolos missionários (14.21-28)

A passagem destaca seis características do ministério dos apóstolos missionários. A persistência dos missionários (v. 21). Paulo continuou exercendo seu ministério com Barnabé e voltou para Derbe. A tarefa ali consistia em um triplo ministério. Era um ministério de pregação e anúncio das “boas-novas”. Era também um ministério de ensino, pois “fizeram muitos discípulos”. Era um ministério de organização de comunidades locais, uma vez que “designaram-lhes presbíteros” (v. 23). A insistência dos missionários (v. 22a). Paulo e Barnabé insistiram em dar ao povo das cidades que os haviam rejeitado (Derbe, Listra, Icônio e Antioquia) uma nova chance de aceitar o Senhor. Os apóstolos retornaram às quatro cidades onde haviam sido perseguidos. Eles não as evitaram, e é possível que tenham

até passado um tempo considerável ali, pois ao partir deixaram congregações ou igrejas locais bem organizadas em cada uma delas (v. 23). A resistência dos missionários (v. 22b). Paulo e Barnabé resistiram às adversidades e as aceitaram como expressão de uma grande verdade acerca do Reino: “É necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus” (v. 22b). Compare a expressão “muitas tribulações” (gr. pollōn thlípseōn; v. João 16.33) com o “jugo suave” e o “fardo leve” de Mateus 11.30. Na verdade, Jesus apresenta nesses textos dois aspectos diferentes da vida cristã muito bem ilustrados na experiência de Paulo. O jugo e o fardo de nosso Senhor referem-se àquilo que ele mesmo põe sobre nós, ao passo que as aflições são provenientes do mundo. Não fazem parte de sua vontade ativa e primária com relação a nós, mas correspondem ao que ele permite como resultado natural de nosso compromisso com ele e com o propósito de promover nosso bem ou o bem de sua causa. A provisão dos missionários (v. 23). A proclamação do evangelho nessas cidades foi eficaz, e muita gente creu. Em pouco tempo, comunidades de fé ou igrejas foram estabelecidas em cada cidade. Os apóstolos escolheram, treinaram e designaram presbíteros em cada igreja. Observe-se que foram os apóstolos que assumiram a responsabilidade de constituir igrejas e sua liderança local. Assim, além de fortalecer os discípulos e animá-los a perseverar na fé (v. 22), os apóstolos estabeleceram presbíteros ou líderes locais para perpetuar a existência das congregações e garantir seu progresso. O Novo Testamento não incentiva o individualismo em questões

religiosas, mas prioriza a cooperação, a ordem, a responsabilidade mútua, a continuidade, o exemplo e, acima de tudo, a unidade. A jornada dos missionários (v. 24,25). A viagem de volta a Antioquia da Síria consistiu num longo percurso, que levou os missionários através da região da Pisídia e os fez passar pela Panfília, Perge e Atália. É interessante que, embora não se mencionem dificuldades nem grandes resultados, os missionários aproveitaram a viagem para fazer o que lhes foi designado, ou seja, haviam “pregado a palavra” (gr. lalēsantes […] tòn lógon, v. 25); eles “proclamaram a palavra de Deus” (gr. lalēthēnai tòn lógon, 13.5; cf. 13.46). A participação dos missionários (v. 26-28). Após a longa viagem de regresso através da Pisídia, Paulo e Barnabé finalmente chegaram a Antioquia da Síria, de onde haviam partido. A chegada deles foi seguida de um período de permanência na cidade, “onde tinham sido recomendados à graça de Deus para a missão que agora haviam completado” (gr. hóthen ēsan paradedoménoi tēi cháriti toū theoū eis tò érgon ho eplērōsan, v. 26; 13.3). O fato de eles estarem em Antioquia permitiu sua presença e participação na assembleia dos crentes da cidade, e esta, por sua vez, deu ocasião a que relatassem o andamento da obra. Como missionários responsáveis, eles apresentaram um relatório maravilhoso de como Deus abrira a porta da fé aos gentios (v. 27). Essa apresentação pode muito bem ser considerada a primeira conferência missionária na história da igreja cristã, com um relatório do campo missionário por parte dos apóstolos Paulo e Barnabé.

A tarefa missionária (14.21-28)

A primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé é de especial importância, porque mostra de que maneira os apóstolos fizeram seu trabalho e como se conduziram diante das dificuldades. A experiência desses apóstolos é uma expressão paradigmática da tarefa missionária a ser executada no mundo atual. Destacam-se nesse relato quatro elementos que não podem faltar em nenhum empreendimento missionário nos dias de hoje. Pregação. Em todas as situações, Paulo e Barnabé se adaptaram ao público que tinham diante de si, como se percebe na forma em que pregaram aos judeus versados na Lei mosaica, na sinagoga de Antioquia da Pisídia (13.14b-43), e na maneira pela qual se expressaram diante dos pagãos e gentios ignorantes em outras cidades (cap. 14). Em ambos os casos, a pregação foi o principal recurso estratégico da tarefa missionária. A pregação dos apóstolos exigia um novo compromisso e uma mudança moral radical na vida de seus adeptos. Tudo isso ia de encontro à atitude costumeira do povo helenístico. Aliás, muitos deles não consideravam a fé necessária para o culto nem a ética essencial à religião. Na concepção deles, a pessoa podia adotar uma nova fé, embora ainda mantendo em algum grau as antigas convicções.5 Personalidade. A atitude pessoal de Paulo e Barnabé como missionários era de simpatia diante da necessidade, de coragem diante do perigo, de persistência diante da oposição e de tato diante de situações delicadas. Os apóstolos tratavam seus ouvintes não cristãos com respeito. Demonstravam paciência e compaixão por aqueles que buscavam uma fé mais satisfatória. Ao mesmo tempo,

deixaram claro que a salvação não era encontrada em ninguém além do Senhor Jesus Cristo. Com a paixão de uma fé firmemente arraigada na certeza de que a salvação ocorre exclusivamente por meio de Jesus Cristo, os apóstolos sabiam adaptar-se a todos os tipos de pessoas e de circunstâncias para alcançar os povos com o evangelho (1Coríntios 9.19-23). Essa capacidade de se adaptar sem perder as convicções básicas é essencial a todo cristão que deseja ser missionário. Ele precisa ter uma personalidade “missionária” para tornar isso possível. Prioridade. O interesse prioritário de Paulo e Barnabé era a evangelização, a proclamação do evangelho àqueles que ainda não eram cristãos. Claramente, o objetivo deles era fazer convertidos. No âmago de sua estratégia missionária estava o propósito de levar o maior número de pessoas possível ao arrependimento de seus pecados e à fé em Jesus Cristo. A conversão era sinal de que a pessoa estava disposta a se comprometer com um discipulado ativo e permanente. Assim, eles batizavam os novos convertidos e os reuniam a outros crentes na comunhão da igreja. Dificuldades e perseguições eram mesmo esperadas, pois essa é a maneira de “entrarmos no Reino de Deus” (gr. eiseltheīn eis tēn basileían toū theoū, v. 22). Stephen Neill: “Durante anos, procurei uma palavra para substituir a hoje muito impopular palavra ‘conversão’ e não a encontrei. Estou bem ciente de todas as objeções possíveis ao termo, mas me perturba a possibilidade de que os que hesitam em usar a palavra possam estar rejeitando também aqueles que a reconhecem. [...] Aqueles de nós que se renderam a Cristo, mesmo tendo uma

formação profundamente cristã, sabem o que significa estar ‘sem esperança e sem Deus no mundo’ (Efésios 2.12). Estamos preparados para usar a linguagem de Paulo, por mais impopular que venha a ser? Queremos que todas as pessoas digam ‘sim’ a Cristo, porém há incontáveis maneiras de dizer ‘sim’ a Cristo que não correspondem à entrega que leva à salvação. Sabemos realmente de que estamos falando? [...] Parece-me que chegou a hora de acabar com os circunlóquios e não ter vergonha de dizer exatamente o que queremos dizer”.6 Provisão. Paulo e Barnabé, como bons missionários, tomaram providências para a continuação e o progresso da obra iniciada em cada cidade. Em cada uma das igrejas que estabeleceram, eles “designaram-lhes presbíteros”, pessoas responsáveis e capazes para liderar os novos crentes. Depois de orar e jejuar, os apóstolos confiaram esses presbíteros aos cuidados do Senhor e puseram nas mãos deles a supervisão das igrejas (v. 23). Essa “provisão” estratégica ainda é aplicável ao nosso mundo urbano. Uma estratégia que não contemple a organização de igrejas e o desenvolvimento de suas lideranças é questionável.7 Marlin Mull: “Uma nova igreja não pode começar de maneira adequada sem evangelização. Não obstante, é possível evangelizar e não plantar uma igreja. Muitos líderes bem-intencionados evangelizam, mas omitem a plantação de igrejas — o método evangelístico mais eficaz — em seu arsenal espiritual. [...] Várias estratégias compiladas de muitas fontes chegam todas à mesma conclusão. As novas igrejas realizam um trabalho evangelístico melhor que as igrejas estabelecidas mais antigas”.8

Perseverança. Paulo e Barnabé conseguiram destacar-se como missionários precisamente por terem aprendido uma das lições mais importantes nesse tipo de trabalho: enfrentar as dificuldades, as

oposições e até as perseguições sem esmorecer no empenho de levar adiante a tarefa missionária. O ministério de proclamação do evangelho acompanhado de sinais e maravilhas (v. 3,9) não só atraía a atenção do povo, como também provocava séria oposição. Os milagres eram a maneira de o Senhor confirmar a verdade da mensagem apostólica (v. 3). Mais que os sinais e os milagres, porém, causava impressão no povo as perseguições que os missionários sofriam e suportavam nessas cidades. Perto do fim da vida, Paulo escreveu a Timóteo para lhe dizer que fora em sua perseverança diante dessas situações que descobriu o segredo de seu êxito missionário (2Timóteo 3.10-13). Desse modo, em presença da fé, nos momentos de fraqueza ou mesmo ao experimentar a frustração e o fracasso, Paulo e Barnabé mostraram firmeza e fidelidade ao seu ministério como missionários. A perseverança acompanhou-os em toda a sua jornada apostólica.

A MISSÃO EM DEBATE (15.1-35)

Um grupo de crentes judeus comprometidos com o judaísmo e com Jesus chegou a Antioquia com seu ensino judaizante. Eles consideravam Jesus o cumprimento do Antigo Testamento (11.2; 15.5; Gálatas 2.12), porém sua teologia punha em risco o evangelho da graça, pois defendiam a prática da circuncisão como necessária à salvação. Eram membros da igreja de Jerusalém (v. 24) e acreditavam que o único caminho para Deus era pelo judaísmo (v. 5), por isso eram conhecidos como judaizantes. De acordo com eles, a fé cristã consistia em crer em Cristo e cumprir a Lei mosaica (v. 5). Paulo e Barnabé debateram muito com eles. Lucas usa a expressão “grande contenda” para mostrar o nível da discussão (Lucas 23.19,25; Atos 15.2; 19.40; 23.7,10; 24.5). O que estava em jogo era nada menos que o próprio cerne do evangelho da graça. Por esse motivo, a igreja de Antioquia (v. 3) decidiu enviar os apóstolos Paulo e Barnabé a Jerusalém para discutir o assunto com os líderes dessa cidade. É interessante que diferentes tipos de liderança eclesiástica são mencionados no cap. 15. Os v. 2, 3, 12 e 22 refletem uma autoridade do tipo congregacional, mas os v. 6 e 23 expressam uma autoridade do tipo apostólico ou episcopal (Tiago) e também mencionam a autoridade dos presbíteros. Não há no Novo Testamento uma estrutura única de liderança eclesiástica, e todas as estruturas clássicas (congregacional, presbiteriana, episcopal) estão representadas. O concílio da igreja (15.1-35)

O texto apresenta todos os atores do episódio e a participação de cada um deles. A participação da delegação de Antioquia (v. 1-4). Era composta por Paulo, Barnabé e alguns outros crentes, entre eles Tito (Gálatas 2.1,3), um grego que provavelmente era irmão de Lucas e não é mencionado em Atos. Essa delegação foi designada “para irem a Jerusalém tratar dessa questão com os apóstolos e com os presbíteros” (gr. pros tous apostólous kai presbutérous eis Ierousalēm peri toū zētēmatos toútou, v. 2). Parece que Tiago, irmão de Jesus, era apóstolo (Gálatas 1.19) e líder dos presbíteros (v. 1Pedro 5.1,2; 2João 1; 3João 1), conforme a ordem típica da liderança da sinagoga. A delegação passou pela Fenícia, que era majoritariamente gentia, e por Samaria, que tinha uma população mista de judeus e gentios. Essas regiões já haviam sido evangelizadas (8.5-25; 11.19), de modo que nas congregações que visitavam podiam relatar “como os gentios tinham se convertido”, e “essas notícias alegravam muito a todos os irmãos”, especialmente os gentios. Ao chegar a Jerusalém, eles foram recebidos pela grande congregação e especialmente por sua liderança (apóstolos e anciãos; cf. 4.22). Todos eles receberam o relatório da delegação de Antioquia, especialmente o de Paulo e Barnabé, sobre “tudo o que Deus tinha feito por meio deles” (gr. hósa ho theòs epoíēsen met’autōn, v. 4). A participação dos irmãos judaizantes (v. 5,6). Alguns fariseus crentes (como Paulo), talvez os mesmos que haviam espalhado seus ensinos em Antioquia (v. 1), manifestaram-se com uma objeção judaizante (v. 5). O uso da palavra “partido” (ou “seita”) em

Atos merece esclarecimento. O termo é repetido várias vezes no livro e é aplicado a grupos de diferentes orientações. É por isso que o “partido religioso dos fariseus” (gr. tēs hairéseōs tōn Farisaíōn, 15.5; 26.5), o “partido dos saduceus” (hē haíresis tōn Saddoukaíōn, 5.17) e até mesmo os cristãos são mencionados como “seita”: a “seita [...] do Caminho” (gr. tēn hodòn haíresin, 24.14), a “seita dos nazarenos” (tōn Nazōraíōn hairéseōs, 24.5) ou simplesmente “esta seita [cristã]” (gr. tēs hairéseōs taútēs, 28.22).9A liderança da igreja de Jerusalém reuniu-se em particular, e “depois de muita discussão” o assunto foi levado a toda a assembleia. Observe-se a ordem para a tomada de decisão: 1) discussão privada dos líderes; 2) discussão aberta; 3) voto pela congregação. A participação de Pedro (v. 7-11). O apóstolo interveio diante de toda a assembleia, composta pelas duas partes representadas (v. 5). É a última menção desse apóstolo em Atos. Pedro relembrou sua experiência com Cornélio (cap. 10—11) e defendeu o evangelho da graça (v. 11) e a aceitação da fé dos gentios. Evidentemente, essa compreensão revolucionária da fé se desenvolveu em Pedro com o tempo, graças a experiências como a conversão dos samaritanos (cap. 8), do etíope (cap. 8) e de Cornélio (cap. 10—11). Deus tinha pleno conhecimento (v. 8) da fé dos crentes gentios e, por esse motivo, concedeu a eles o Espírito Santo. Ele pode estar se referindo ao mesmo tipo de experiência do Pentecoste (“como antes nos tinha concedido”). A mesma manifestação do Espírito ocorreu em Jerusalém, Samaria e Cesareia. Desse modo, havia até então três “Pentecostes”: o judeu, o samaritano e o gentio. A conclusão teológica de Pedro foi que Deus “não fez distinção alguma” entre judeus e gentios (10.28-34; 11.12). Deus não faz

acepção de pessoas. Todos os seres humanos foram criados à sua imagem (Gênesis 1.26,27), e ele deseja que todos sejam salvos (Gênesis 12.3; Êxodo 19.5,6; 1Timóteo 2.4; 4.10; Tito 2.11; 2Pedro 3.9), porque ele ama o mundo inteiro (João 3.16,17). A frase “purificou os seus corações pela fé” (v. 9) é usada na LXX para se referir à purificação levítica e significa a remoção daquilo que nos separa de Deus (cf. 10.15; 11.9). É uma metáfora para a purificação do pecado (Hebreus 9.22,23; 1João 1.7). Negar essa experiência nos gentios era “tentar a Deus” (gr. peirázete tòn theòn, v. 10), ou seja, “tentar com o objetivo de destruir” (de acordo com o gr. peirázō). O “jugo” era usado pelos rabinos para a recitação do Shemá (Deuteronômio 6.4,5), e representa a Lei escrita e oral (Mateus 23.4; Lucas 11.46; Gálatas 5.1). De acordo com Pedro, esse jugo se havia provado inútil com o tempo, porque a humanidade caída não era capaz de cumprir a santa Lei (Romanos 7). A salvação não é pelas obras, mas pela graça; não é pela observância de leis religiosas, mas pelo amor imerecido de Deus (v. 11b). O caminho da salvação é o mesmo para judeus e gentios (Romanos 4; Efésios 2.1-10). TABELA 16: Deus e o coração humano Em Atos 15.8, lemos que “Deus conhece os corações”. A Bíblia relaciona Deus dinamicamente com o coração humano, ou seja, ao ser interior da pessoa. 1. Deus olha para o coração humano (1Samuel 16.7). 2. Deus pesa o coração humano (Provérbios 24.12). 3. Deus sonda o coração humano (Jeremias 17.10). 4. Deus conhece o coração humano (Atos 1.24).

5. Deus examina o coração humano (Romanos 8.27). 6. Deus habita o coração humano (Efésios 3.17). 7. Deus cuida do coração humano (Filipenses 4.7). 8. Deus fortalece o coração humano (2Tessalonicenses 2.17). 9. Deus julga o coração humano (Hebreus 4.12). 10 . Deus escrutina o coração humano (Apocalipse 2.23).

A participação de Barnabé e Paulo (v. 12). “Toda a assembleia ficou em silêncio” (gr. esígēsen dè pān tò plēthos) quando os apóstolos repetiram o relato do que Deus havia realizado “entre os gentios” (gr. en toīs éthnesin). Observe-se que os nomes dos apóstolos estão invertidos, pois se tratava da igreja-mãe de Barnabé. Os “sinais e maravilhas” (gr. sēmeīa kaì térata) foram uma confirmação da presença e poder de Deus por meio do evangelho e de que Deus aceitou plenamente os gentios com base na graça por meio da fé. A participação de Tiago (v. 13-21). Esse Tiago não era um dos Doze, porque este já havia sido assassinado (12.1,2), e sim o irmão de Jesus e autor da carta que leva seu nome. Ele era conhecido como Tiago, o Justo, e “joelhos de camelo”, porque orava de joelhos com muita frequência. Tiago começa com uma referência ao que “Simão” (Pedro; 2Pedro 1.1) afirmara sobre “como Deus, no princípio, voltou-se para os gentios a fim de reunir dentre as nações um povo para o seu nome”. Era o que os profetas apregoavam (Isaías 45.20-23; 49.6; 52.10). O povo de Deus sempre incluiu judeus e gentios (Gênesis 3.15; 12.3; Êxodo 9.16; Efésios 2.11— 3.13). A expressão “para o seu nome” (gr. tōi onómati autoū) pode

ser uma alusão a Jeremias 13.11; 32.20; ou a Isaías 63.12-14. Foi o que de fato aconteceu nas experiências que tiveram lugar em Cesareia pelo ministério de Pedro e na viagem missionária de Barnabé e Paulo, enviados de Antioquia da Síria. Contudo, a despeito de quão grandiosos tenham sido os acontecimentos, era necessário apresentar evidências bíblicas de que tudo estava de acordo com o propósito de Deus. Caso contrário, seria difícil convencer a comunidade judaica de Jerusalém. Parece que Tiago decidiu oferecer tal fundamento bíblico. Isso foi muito importante, uma vez que seria este o grande argumento de Paulo a favor da constituição de um Novo Israel entre os gentios, como ele propõe em Gálatas 3 e Romanos 9—11. Em seguida, Tiago cita Amós 9.11,12 da LXX. O termo “homens” (v. 17) é Edom (a nação) no Texto Massorético, mas a LXX traduz por anthrōpōn (“humanidade”). Tiago cita a LXX porque nesse caso ela se encaixava em seu propósito de expressar a natureza universal da promessa divina de redenção. Nisso, ele concorda com Pedro e Paulo e com a experiência das igrejas gentias. Desde sempre, tinha sido este o plano de Deus (v. 18; Gálatas 3.26-29; Efésios 3.3-6). Tiago conclui com a mesma ideia de Pedro (comp. v. 19 com v. 10), mas acrescenta algumas sugestões (no total de quatro), que visavam 1) assegurar a comunhão da mesa do Senhor nas igrejas mistas e 2) incentivar a possibilidade da evangelização local dos judeus. Tais fatores, porém, não tinham relação alguma com a salvação individual dos gentios, mas visavam fortalecer a comunhão entre os cristãos judeus e gentios. Tiago encerra com palavras que 1) asseguravam aos legalistas que a Torá foi ensinada aos gentios em todos os lugares ou que 2), pelo fato de haver

judeus em todos os lugares, suas convicções deveriam ser respeitadas, de modo que fosse possível evangelizá-los com mais eficácia. A participação de toda a igreja (v. 22-35). Sob a liderança dos apóstolos e presbíteros, a igreja tomou sua decisão final, que foi nomear uma delegação a ser enviada a Antioquia com o propósito de afirmar a unidade (v. 23) em vez de fazer exigências. Alguns foram escolhidos para tal fim. 1) “Judas, chamado Barsabás” (desconhecido), talvez irmão de “José, chamado Barsabás” (1.23). Nesse caso, ambos seriam filhos de alguém chamado Barsabás. 2) “Silas”; ele e Judas eram “dois líderes entre os irmãos” (gr. ándras hēgouménous en toīs adelfoīs). Paulo chama-o Silvano, e ele substituiu Barnabé em sua segunda viagem missionária. Paulo pode tê-lo escolhido para o caso de que, se alguém o acusasse de pregar um evangelho diferente do evangelho dos Doze ou de não ter comunhão com a igreja-mãe, Silas pudesse responder à preocupação ou à acusação deles. A carta enviada pela igreja de Jerusalém revela que os irmãos estavam cientes de que alguns de seus membros, que não tinham autoridade ou mandato oficial, estavam percorrendo as igrejas gentias para exigir o cumprimento da Lei mosaica (v. 1). O verbo “transtornar” (gr. anaskeuázō) é um termo militar que significa destruir uma cidade. O desejo da igreja de Jerusalém, pelo contrário, era a unidade como expressão da presença e da obra do Espírito (v. 28), o que não significava uniformidade, e sim unanimidade (de comum acordo; um só coração e uma só alma). O acordo teológico unificado e homologado tinha de ser publicado em todos os lugares, para que não houvesse mais discussão. Com isso,

a igreja de Jerusalém estava tomando uma decisão teológica fundamental a favor do conteúdo do evangelho. A decisão alcançada foi resultado da participação ativa do Espírito Santo na assembleia. Foi ele quem produziu a unanimidade, o que mostra os dois aspectos da aliança bíblica, ou seja, a ação de Deus e a resposta humana adequada. Desse modo, o evangelho de sola gratia e sola fide foi afirmado, sem desrespeitar a sensibilidade dos judeus. Mesmo assim, alguns requisitos foram apontados para serem levados em conta, os quais, conforme indicado, não tinham relação alguma com a salvação das pessoas, mas com a comunhão entre os crentes judeus e gentios nas igrejas locais. Eles significavam para os gentios uma ruptura completa com seu passado idólatra. É difícil manter em equilíbrio a liberdade e a responsabilidade cristãs, mas é necessário (Romanos 14.1-5,13; 1Coríntios 8.1-13; 10.23-28). O governo da igreja (15.1-35)

De todas as questões teológicas em discussão na atualidade, uma das que suscitam os debates mais acalorados é a eclesiologia e, em particular, as formas de governo da igreja. Eclesiologias tradicionais. Em Atos 15, é possível encontrar exemplos das três formas predominantes de governo eclesiástico, de acordo com as eclesiologias tradicionais. Em última análise, o tipo de governo depende de onde reside a autoridade e de quem toma as decisões fundamentais. Quais são as três formas tradicionais de governo da igreja? Governo episcopal. Nessa forma de governo eclesiástico, a autoridade geralmente está nas mãos do bispo (gr. epískopos) ou

dos bispos. A propósito, a forma mais desenvolvida de governo episcopal é encontrada na igreja católica romana. O bispo de Roma, o papa, é a autoridade suprema. Alguém pode se perguntar se Tiago não atuava em Jerusalém como uma espécie de bispo, presidente ou superintendente geral dos outros líderes daquela igreja (v. 13-21) ou se não era pelo menos um dos líderes mais ilustres ao lado de Pedro e João (v. Gálatas 1.18,19; v. tb. as expressões “homens influentes”, em Gálatas 2.6, e “colunas”, em Gálatas 2.9). Governo presbiteral. A forma presbiteriana de governo concentrase no ofício-chave do presbítero, mas geralmente é o corpo de presbíteros, não o oficial individualmente, que exerce autoridade. Paulo e Barnabé estabeleceram presbíteros (14.23), e Paulo convocou os presbíteros de Éfeso para encontrá-lo em Mileto. Millard J. Erickson observa: “Convém observar [...] que o termo ‘ancião’ (ou presbítero, gr. presbýterous) geralmente aparece no plural, o que sugere que a autoridade dos presbíteros é coletiva, não individual”.10 Evidentemente, os presbíteros (com os apóstolos) exerciam alto grau de autoridade na igreja de Jerusalém (v. 4,6,22,23). Embora no cap. 15 eles sejam mencionados com os apóstolos, convém lembrar que, enquanto os Doze estavam destinados a desaparecer um dia, dada a natureza única de seu ofício, os presbíteros podiam ser renovados de geração em geração e, como consequência, exercer uma liderança mais permanente. Governo congregacional. A forma congregacional de governo estabelece o assento de autoridade na congregação local. Essa igreja é autônoma e democrática (pretende exercer uma democracia direta), e cada membro da congregação em particular exerce o

direito de expressar sua opinião e votar com igual oportunidade e autoridade. Os que defendem o governo congregacional normativo geralmente argumentam que o melhor exemplo desse tipo de governo é a igreja primitiva, na qual a congregação escolheu o sucessor de Judas (1.15-26) e os sete servos para atender às mesas (6.1-6). Outro exemplo é visto na decisão da igreja de Jerusalém de enviar uma carta aos crentes das igrejas gentias (“com toda a igreja, decidiram”, 15.22). No entanto, os que usam esse texto para provar o governo congregacional na igreja de Jerusalém não levam em conta que a carta não foi enviada nem assinada por toda a congregação, mas pelos “apóstolos e presbíteros”, ou seja, seus líderes (v. 23). Há vários grupos cristãos, como os quacres (amigos) e os irmãos livres, que optaram por não ter uma estrutura de governo (pelo menos explicitamente) e que também alegam encontrar nas páginas de Atos o fundamento para sua escolha. Todas as estruturas de governança, como comissões, comitês, conselhos, dirigentes, constituições e estatutos, bem como assembleias ou reuniões de negócios nesses grupos, são eliminados ou reduzidos ao mínimo. Segundo eles, tudo que se precisa para a governança e a tomada de decisões da igreja é confiar no Espírito Santo e esperar que ele fale diretamente à igreja. Na prática, porém, sempre há quem se atribua a voz do Espírito ou que tenha as chaves para sua interpretação. A revolução eclesiológica atual. Uma verdadeira revolução eclesiológica está em andamento em todo o mundo, especialmente no que diz respeito à compreensão da natureza e da missão da igreja. Aos conceitos evangélicos tradicionais de igreja “local” e

igreja “universal”, foram acrescentadas uma redescoberta e uma reavaliação da igreja “da cidade” — significa que Jesus Cristo tem, em cada cidade, uma única igreja (esta seria a “igreja local”), composta por várias congregações particulares, como era o caso de Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Corinto e outras. Esse entendimento eclesiológico implica mudanças muito significativas na estruturação do governo eclesiástico. Em geral, os antigos modelos tradicionais estão sendo substituídos por opções mais neotestamentárias, com base na recuperação dos dons e ministérios que o Espírito Santo distribui nas igrejas. Essa nova compreensão eclesiológica, por sua vez, está pondo em discussão o debate clássico, próprio do paradigma da cristandade e do cristianismo denominacional, a respeito das diferentes formas de governo eclesiástico. A maioria das denominações que ainda sobrevivem foi constituída em torno de uma forma particular e excludente de estruturação de governo eclesiástico. Desde o início do protestantismo, no século XVI, mas especialmente com o surgimento do denominacionalismo como ideologia de política religiosa, a partir do século XVIII, as três formas dominantes de governo eclesiástico têm sido a episcopal, a presbiteral e a congregacional. A propósito, cada denominação defende até a morte seu entendimento particular da questão e afirma ter a interpretação correta e ser a expressão exclusiva e excludente do modelo do Novo Testamento. Mais recentemente, e com a crescente crise de dissolução do denominacionalismo, como produto de uma modernidade decadente, tais afirmações têm sido seriamente postas à prova. Não parece tão claro que seja possível encontrar no Novo Testamento

uma única forma de governo eclesiástico, ou pelo menos uma estrutura consistente e idêntica em todos os seus documentos. Desse modo, não parece possível provar a autenticidade, legitimidade e eficácia de determinado grupo religioso cristão apenas com base na afirmação de que expressa o ensino claro e evidente do Novo Testamento em sua estrutura de governo. Muito menos parece possível tirar conclusões missiológicas, ou seja, afirmar que determinada estrutura de governo garante maior eficácia no cumprimento da missão ou resulta em um crescimento mais significativo. Tampouco parece possível encontrar nas páginas da Bíblia uma estrutura refletida plenamente em qualquer um dos sistemas que ainda prevalecem. Em vez disso, parece que as primeiras comunidades cristãs desenvolveram estruturas de governo que se ajustaram às diversas situações que enfrentaram e lhes garantiram maior eficácia missionária. Millard J. Erickson: “Provavelmente, é seguro dizer que a evidência do Novo Testamento não é conclusiva: em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos uma imagem que guarde estreita semelhança com qualquer um dos sistemas plenamente desenvolvidos de hoje. [...] É possível que naqueles tempos o governo da igreja não fosse realmente muito desenvolvido e que as congregações locais fossem grupos frouxamente entretecidos. Em vez disso, pode muito bem ter havido uma ampla variedade de arranjos de governo. Cada igreja adotava o padrão que [melhor] se ajustasse à sua situação em particular”.11

1. Hechos, in: Justo L. p. 198.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

2. Light from the Ancient East, p. 435-437. 3. The Church at Antioch: Crossing Racial, Cultural, and Class Barriers, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 152-153.

4. Hechos, in: Justo L. p. 205.

GONZÁLEZ

(Org.), Comentario bíblico hispanoamericano,

5. Michael GREEN, Evangelism in the Early Church, p. 144-146. 6. Church of England Newspaper, apud Church Growth Bulletin, p. 145. 7. Roger S. GREENWAY, Apostles to the City: Biblical Strategies for Urban Missions, p. 82-84. 8. A Biblical Church Planting Manual, p. 35. 9. Sobre o vocábulo “seita” e seu conceito, v. Walter BAUER, A Greek-English Lexicon of the New Testament, p. 23; H. SCHLIER, Airesis, in: Gerhard KITTEL (Org.), Theological Dictionary of the New Testament, v. 1, p. 180-185. 10. Christian Theology, p. 1075. 11. Ibid., p. 1084.

CAPÍTULO 9

O TESTEMUNHO NA E U R O PA ( I ) 15.36—18.22 Foi depois do Concílio de Jerusalém que Paulo assumiu o protagonismo por excelência no relato de Lucas, papel que irá desempenhar até o final do livro. A resolução aprovada pelo concílio deu ao apóstolo trânsito livre para exercer sua vocação missionária aos gentios sem maiores dificuldades, pelo menos por parte das lideranças mais prestigiadas, às quais se creditava a custódia do testemunho original. É provável que nos encontremos em algum momento entre os anos 48 e 55, exatamente o período da vida de Paulo sobre o qual suas cartas lançam mais luz. O período sintetizado nessa passagem (15.36—18.22) é o que tradicionalmente se considera a segunda viagem missionária de Paulo. No entanto, o texto revela muito mais que o extenso roteiro do apóstolo. Na verdade, o relato inicia-se não com uma viagem missionária, mas com uma grande desavença entre os dois missionários mais importantes do momento. Desde a chegada dos emissários de Jerusalém (entre eles, Paulo e Barnabé), o clima prevalecente na igreja de Antioquia era de grande regozijo, ânimo e força espiritual (15.30-32). Todavia, após a despedida de Judas e de

Silas, que haviam ficado ali “algum tempo” (gr. poiēsantes dè chrónon, v. 33a), parece que as coisas começaram a se complicar. Paulo e Barnabé continuaram seu ministério de ensino e proclamação da “palavra do Senhor”(gr. tòn lógon toū kyríou, v. 35). No entanto, assim como não é bom para uma igreja a falta de líderes, ter muitos líderes também pode não ser saudável. Uma tribo onde há mais caciques que índios não pode funcionar bem, especialmente se todos quiserem ocupar um lugar de proeminência na liderança. Nessa ocasião, esse pode ter sido o problema de Antioquia, uma vez que o ministério de Paulo e Barnabé era exercido “com muitos outros” (gr. metà kaì hetérōn pollōn, v. 35b).

O DESENTENDIMENTO ENTRE PAULO E BARNABÉ (15.36-41)

O contexto cronológico do incidente, conforme o relato desses versículos, ocorreu por volta dos anos 48 a 55. Foi um período extraordinário na vida e ministério de Paulo, principalmente após o Concílio de Jerusalém e o esclarecimento da situação dos gentios, entre os quais ele agora concentrava quase todo o seu trabalho. É precisamente uma etapa do ministério do apóstolo sobre a qual temos mais informações, à luz de suas cartas. No entanto, esse momento em particular é um dos mais obscuros em sua relação com Barnabé, seu mentor e companheiro de equipe. Ao mesmo tempo, o estremecimento da relação entre ambos traz à tona um dos equívocos mais dolorosos de Paulo. Esse fato não ofusca sua trajetória exemplar como agente missionário, mas evidencia que ele era um ser humano feito de carne e osso. Quando os líderes se desentendem (15.36-41)

Foi de Paulo a iniciativa de empreender uma viagem de confirmação dos crentes conquistados na sua primeira experiência missionária (v. 36). A ideia de dar a João Marcos uma nova oportunidade como ajudante missionário da equipe partiu de Barnabé (v. 37). A divergência quanto à organização da viagem foi de ambas as partes (v. 39). Quando é que os líderes discordam? Quando não é Deus quem toma a iniciativa. Observe-se que não houve a iniciativa divina nessa segunda viagem, como na primeira (13.2). Talvez tenha sido essa a raiz da contenda entre os apóstolos. O motivo de tão lamentável episódio foi o desejo de Barnabé de

levar consigo seu parente (de acordo com alguns, seu sobrinho ou primo) João Marcos, talvez por motivos práticos e, sem dúvida, porque havia aprendido algo com sua frustrante experiência anterior. Quando não há consenso teológico. A forte e persistente oposição de Paulo (v. 38) pode ser evidência de que o tema da salvação pela graça aos gentios talvez fosse o motivo por trás do desentendimento, porque esse assunto preocupava o apóstolo mais que qualquer outro fator (Gálatas 2.4,5,14-21). O próprio Barnabé estava hesitante sobre a mesma questão, antes ou depois dessa época (Gálatas 2.13). Para Paulo, a salvação pela graça por meio da fé era fundamental, e ele não estava disposto a negociar esse princípio. Quando os interesses são díspares. De qualquer modo, talvez seja correto dizer que ambos estavam certos com relação a João Marcos, embora de perspectivas diferentes e em resposta a interesses diferentes. Paulo tinha razão em não querer levar consigo alguém tão preconceituoso e pouco confiável em uma jornada tão difícil. Barnabé tinha razão em querer dar mais uma chance ao jovem parente e desenvolver o potencial do rapaz. Contudo, ambos estavam errados em permitir que “um desentendimento” chegasse a ser “tão sério” (gr. paroxysmòs; lit., “cortante”) que eles “se separaram” (gr. hōste apochōristhēnai autoùs ap’allēlōn, v. 39). O erro foi maior ainda, pois, ao que parece, eles atuavam muito bem juntos no campo missionário e se complementavam de maneira eficaz no exercício do ministério de ensino e pregação. Todavia, cada um foi para seu lado com um projeto missionário próprio: Barnabé partiu para Chipre com Marcos, enquanto Paulo escolheu

Silas e foi para a Síria e a Cilícia. Diferentemente de Barnabé, Paulo foi “encomendado pelos irmãos à graça do Senhor” (v. 40). F. F. Bruce: “O episódio do desentendimento entre Paulo e Barnabé não é do tipo que torna a leitura prazerosa, e o fato de ele não o suavizar pode ser tomado como sinal da honestidade de Lucas, uma vez que, em seu relato, o escritor não põe Paulo do lado certo e Barnabé do lado errado. Especialmente por causa da imparcialidade de Lucas, é inútil tentarmos culpar alguém pela contenda. É certo que muitos argumentam que Lucas não esclarece o verdadeiro motivo da discórdia. Sugerem que, na realidade, ela teve origem no incidente em Antioquia, quando Barnabé se mostrou inclinado a seguir o exemplo de Pedro de ‘afastar-se e separar-se’, o que gerou grande indignação em Paulo [Gálatas 2.12,13]. Pode ser que, na presente ocasião, o atrito entre os dois não tivesse sido tão agudo, não fosse por essa diferença anterior: não podemos dizer. No entanto, o relato de Lucas aqui é perfeitamente honesto e adequado”.1 Quando os líderes não se entendem (15.36-41)

É extremamente grave quando os irmãos na igreja discordam uns dos outros e acabam causando divisões (1Coríntios 3.1-23). Muito mais grave, porém, é quando os que estão em desacordo são os líderes, que se presume serem os responsáveis pela tarefa de guiar a igreja rumo à unidade e ao consenso. O incidente narrado nessa passagem está entre os mais lamentáveis do Novo Testamento, contudo reflete uma realidade bem frequente na liderança cristã latino-americana. A gravidade do impacto. É difícil aceitar que duas pessoas do calibre espiritual e do compromisso cristão de Paulo e Barnabé tenham chegado a um nível tão baixo em seu relacionamento e demonstrado tal incapacidade para resolver o conflito surgido entre ambos. O impacto é ainda maior porque já os vimos trabalhar juntos como uma equipe missionária extremamente eficaz. Além disso,

eles estavam unidos por experiências em comum, nas quais a confiança mútua fora posta à prova mais de uma vez e se mostrara inabalável. Não é possível imaginar como um problema aparentemente de menor importância, como a integração de João Marcos à equipe missionária, possa ter causado tamanho conflito. A magnitude dos protagonistas da divergência suscita de imediato a questão sobre o que de fato aconteceu e qual dos dois estava com a razão. Sem dúvida, os irmãos de Antioquia tiveram a mesma preocupação e ficaram escandalizados com o desentendimento entre os dois servos de Deus a quem tanto deviam. É provável que nesse caso ambos tivessem alguma medida de razão, especialmente se por trás da integração ou não de João Marcos à equipe missionária houvesse algo mais que o voto positivo de Barnabé, por se tratar de um parente seu, ou o voto negativo de Paulo, por ter o jovem os abandonado na Panfília. A intransigência dos envolvidos. Causa espanto que homens tão inteligentes e dedicados à tarefa do Reino de Deus tenham chegado a um desentendimento tão grave. A intransigência de ambas as partes não tem explicação imediata, e a teimosia deles parece absurda. O bom desenvolvimento da missão cristã corria sério risco. A posição de Barnabé não parece tão clara e firme. Ele queria simplesmente levar consigo seu parente João Marcos, talvez para lhe dar uma nova oportunidade e para que, na condição de assistente do binômio apostólico, amadurecesse e aprendesse a fazer o trabalho. Talvez por ser parente do rapaz, Barnabé fosse o mais apto a avaliar aspectos de sua personalidade e possibilidades que escapavam a Paulo. Como “homem bom” e generoso que era, não via motivos para não utilizá-lo.

A posição de Paulo parece mais clara e firme. A tarefa que tinham pela frente era muito dura e exigia coragem e disposição para sofrer. João Marcos não parecia reunir as condições necessárias para enfrentar tais desafios e talvez viesse a desistir outra vez (v. 38). No entanto, Paulo não parece ter uma postura muito boa com relação à bondade, aceitação, compreensão e generosidade de Barnabé. Tem-se a impressão de que ele se fechou em sua opinião por capricho, com uma atitude quase legalista. Além da carnalidade, que de vários modos transparece em toda a experiência, é provável que a forte reação de Paulo se deva a dois fatores. Por um lado, por seu dinamismo, ímpeto e capacitação, Paulo rejeitou de imediato o papel de Barnabé como líder da equipe missionária. Após o confronto com Elimas em Pafos, quando Paulo tomou a iniciativa (13.9), o apóstolo passou a ser o número um no binômio e na equipe missionária (13.13). De alguma forma, isso deve ter afetado Barnabé, uma vez que Chipre era sua terra natal. Se somarmos a essa “frustração” a deserção de João Marcos ao chegar a Perge da Panfília, não é de admirar que Lucas sempre ponha Paulo em primeiro lugar, como aquele que tomava as decisões a respeito da equipe missionária (15.36). Por outro lado, não seria a ideia de levar João Marcos com eles uma tentativa velada, da parte de Barnabé, de retomar o papel de liderança, com o acréscimo de um aliado à equipe missionária? Ambas as posições eram carnais. Em todo caso, ambos podem ter tido motivações carnais por trás de seus argumentos, das quais devem ter se arrependido mais tarde. De fato, o próprio Paulo parece reconhecer que a magnanimidade de Barnabé estava correta, uma vez que João Marcos se tornou “útil” para seu

ministério (2Timóteo 4.11) e acompanhou Paulo em suas prisões (Colossenses 4.10; Filemom 24). Quanto à relação com Barnabé, tem-se a impressão de que em algum momento a divergência entre eles foi resolvida, pois parece que ele e Paulo voltaram a trabalhar juntos ou pelo menos cada um desenvolveu seu ministério sustentando-se com o próprio trabalho (1Coríntios 9.6). Por fim, além da carnalidade demonstrada por ambos os líderes, existe o fato de que eles tinham personalidades muito diferentes. Enquanto Barnabé, em seu ministério, parece mais voltado para as pessoas, Paulo se dedicava mais às tarefas a serem cumpridas. Barnabé atentava para as relações interpessoais. Queria sempre agradar as pessoas, ajudá-las, promovê-las, ganhar seu apreço, animá-las, como havia feito com Saulo. Para ele, o ser era superior ao fazer; o processo era mais importante que o objetivo. Paulo, ao contrário, atentava mais para o objetivo da missão, para a disciplina necessária ao seu cumprimento, para os sacrifícios necessários ao seu progresso e aos recursos necessários ao seu êxito (que incluía as pessoas). Para Paulo, era fundamental a boa execução da tarefa designada (Filipenses 3.13,14; 2Timóteo 4.7; 1Coríntios 9.22). Barnabé era um idealista; Paulo era pragmático. Não se pode dizer que um era bom e o outro era mau. Cada um era como era, servia com fidelidade e obtinha seus frutos. Em todo caso, “na providência de Deus [o desentendimento] foi superado e para melhor, porque o resultado foi que dessa vez houve duas expedições missionárias em vez de uma”.2

A NOVA EQUIPE MISSIONÁRIA (16.1-10)

Como já foi dito, o grande protagonista do livro de Atos é o Espírito Santo.Em quase todas as páginas, é possível ver a poderosa atuação do Espírito como extraordinário estrategista na condução da missão cristã, na formação de equipes missionárias, no treinamento dos agentes missionários e no comando das operações de testemunho cristão. Do outro lado da equação, devese ressaltar que os protagonistas e gestores da estratégia missionária do Espírito Santo eram homens e mulheres submetidos ao senhorio de Cristo que, cheios do Espírito, atuavam usando os dons que haviam recebido dele. Essa incrível associação de poder divino e disposição humana para a obediência resultou em grandes empreendimentos missionários, como a abertura da Europa ao evangelho cristão. O cap. 16 inicia-se com uma série de novidades. Talvez a mais importante tenha sido a penetração do evangelho na Europa e a incorporação de Timóteo à equipe apostólica. Por que Paulo foi para a Europa? (16.1-10)

Várias respostas já foram dadas a essa pergunta, umas derivadas do texto bíblico e outras resultantes da imaginação dos intérpretes. Algumas respostas incursionam pela esfera do sobrenatural. De fato, o próprio texto informa que o Espírito Santo impediu os missionários de pregar a Palavra na província romana da Ásia (v. 6) e mais tarde não permitiu que entrassem na Bitínia (v. 7). Desse modo, obstruídos pelo Espírito Santo ou pelo Espírito de Jesus, não tiveram escolha senão rumar para Trôade, às portas da Europa. No mesmo plano sobrenatural, deve-se incluir a visão de “um homem

da Macedônia” (gr. anēr Makedōn, v. 9) e seu convite para irem ministrar na Europa, embora alguns intérpretes removam o episódio da esfera do sobrenatural e o rebaixem ao plano natural, sob a alegação de que o suposto macedônio não era outro senão Lucas, o evangelista. O argumento “natural” a favor de Lucas é que justamente no v. 10 o autor de Atos passa a incorporar o uso da primeira pessoa do plural: “Preparamo-nos imediatamente para partir para a Macedônia” (gr. euthéōs ezētēsamen exeltheīn). Não falta quem apresente outro motivo mais humano: em Listra, um novo membro grego teria se juntado à equipe missionária — Timóteo. É possível que ele tenha exercido alguma influência sobre Paulo e o animado a entrar na Europa. Muito provavelmente, todos esses fatores humanos e meta-humanos se somaram, uma vez que todos os agentes missionários envolvidos no projeto acabaram “concluindo que Deus nos tinha chamado para lhes pregar o evangelho” (gr. symbibázontes hóti proskéklētai hēmās ho theòs euangelísasthai autoús, v. 10b). Uma nova equipe missionária (v. 1-5). O roteiro de viagem de Antioquia da Síria até a Cilícia incluía, sem dúvida, Tarso, cidade natal de Paulo. Derbe e Listra estavam situadas ao sul da província romana da Galácia. Paulo havia passado pela região em sua primeira viagem missionária (v. 14). A novidade é que em Listra ele conheceu “um discípulo chamado Timóteo” (kaì idoù mathētēs tis ēn ekeī onómati Timótheos, v. 1), filho de uma judia crente (como era também sua avó Loide, 2Timóteo 1.5) chamada Eunice, provavelmente convertida na primeira viagem de Paulo, mas de pai grego (talvez já morto). As pessoas davam bom testemunho dele em sua cidade natal (Listra, embora alguns manuscritos gregos de

20.4 digam que ele era de Derbe) e em Icônio, a cerca de 50 quilômetros ao norte. Paulo quis levá-lo consigo, e Timóteo tornouse seu assistente apostólico por excelência. Para que pudesse trabalhar entre os judeus, Paulo circuncidou-o, não tanto para satisfazer uma exigência da Lei mosaica, mas com um propósito missiológico (1Coríntios 9.20; Atos 15.27-29). A tarefa mais importante nessa etapa da viagem parece ter sido informar as comunidades de fé sobre os acordos firmados em Jerusalém (15.2229). O v. 5 é outro dos resumos editoriais de Lucas (6.7; 9.31; 12.24; 16.5; 19.20; 28.31). Paulo tinha um coração discipulador, ou seja, queria fortalecer a fé dos crentes (14.22; 15.36; 16.5). E. M. Blaiklock: “Lucas considera apropriado mencionar em justaposição a circuncisão de Timóteo e a publicação fiel do decreto de Jerusalém. Por que esses detalhes são destacados? Sem dúvida, por causa da situação posterior na Galácia, conhecida por Lucas no momento em que escrevia, onde a atitude dos judeus foi tal que Paulo se sentiu isento da obrigação de publicar ou fazer cumprir as decisões dos anciãos de Jerusalém. A verdade é que o conselho aos coríntios a respeito dos ‘alimentos sacrificados aos ídolos’ elevou o decreto ao máximo”.3

Uma nova visão missionária (v. 6-10). Ao mencionar a “região da Frígia e da Galácia”, Lucas fala mais em termos étnicos e linguísticos que geográficos ou políticos. A expressão refere-se às fronteiras não oficiais desses grupos étnicos. Observe-se a maneira pela qual o Espírito Santo ou o Espírito de Jesus (usado de forma intercambiável) estava envolvido nas ações e decisões dos apóstolos e da igreja (2.4; 8.29,39; 10.19; 11.12,28; 15.28; 16.6,7; 21.4; Romanos 1.13). “Ásia” é a província romana da Ásia Menor, que era o extremo ocidental da Turquia moderna. A Mísia era uma região étnica a noroeste da Ásia Menor, uma área montanhosa com

várias estradas romanas. Suas cidades mais importantes eram Trôade, Assôs e Pérgamo. A Bitínia ficava a nordeste da Mísia, embora nos tempos de Lucas não fizesse parte de nenhuma província romana, mas constituísse uma unidade política com Ponto. Mais tarde, Pedro evangelizou a região (1Pedro 1.1), onde havia muitas colônias judaicas. Trôade distava cerca de 6 quilômetros da antiga Troia. Fora fundada cerca de quatrocentos anos antes e se manteve como uma cidade grega livre até que os romanos a transformaram em colônia. Era o porto de onde se partia da Mísia para a Macedônia. Enquanto estava em Trôade, Paulo teve uma visão. Não foi a primeira nem a única vez que teve uma experiência desse tipo (cf. 9.3,4,10-12; 16.9,10; 18.9; 22.17; 27.23). Na visão, “um homem da Macedônia” (como ele sabia de onde era?) desafiou-o: “Passe à Macedônia e ajude-nos” (gr. diabàs eis Makedonían boēthēson hēmīn). Muitos acreditam que esse homem era Lucas (v. 10, a primeira das seções “nós”), pois parece que ele se juntou ao grupo missionário nesse ponto (16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1—28.16). O desafio era grande e específico, pois significava levar o evangelho à Europa. A Grécia estava dividida em duas províncias romanas: Acaia, no sul (Atenas, Corinto,Esparta), e Macedônia, no norte (Filipos, Tessalônica, Bereia). “Concluindo” (gr. symbibázō; lit., “reunir” ou “unir”) implica que tudo aconteceu (v. 6,7,9) porque Deus queria levá-los para a Macedônia: “Deus nos tinha chamado para lhes pregar o evangelho”. A orientação do Espírito é sempre para um propósito missiológico. Por que Paulo escolheu Timóteo? (16.1-3)

“Timóteo, junte-se a mim no ministério que o Senhor me deu!” O que o jovem de Listra teria sentido diante de tal convite? É possível que Timóteo fosse um grande admirador de Paulo e considerasse um privilégio especial ouvir seus longos e profundos sermões, tão repletos de verdades divinas. Agora Paulo se dirige a ele, um jovem como qualquer outro em sua pequena congregação no interior da Cilícia, para convidá-lo a compartilhar o privilégio da pregação e do grande ministério que tinha pela frente! Sem dúvida, Timóteo não pensou duas vezes para aceitar a proposta, e assim teve início sua carreira como um dos apóstolos, pastores e evangelistas mais proeminentes da igreja primitiva. No entanto, uma interrogação deve tê-lo acompanhado por muito tempo: “Por que Paulo decidiu me levar com ele?”. Também: “Por que o Senhor me chamou para seu ministério?”. Isso é o que devemos nos perguntar hoje e, ao fazê-lo, iremos descobrir algumas das condições que o Senhor espera encontrar naqueles a quem ele chama para servir em seu Reino. Timóteo era um cristão conhecedor das Escrituras. Ele tinha um bom conhecimento bíblico desde a infância (2Timóteo 3.14-17). Por um lado, esse conhecimento enriqueceu sua vida espiritual (2Timóteo 3.15), imprescindível para os tipos de desafios ministeriais que enfrentaria como parte da equipe missionária de Paulo. Por outro lado, potencializou seus recursos ministeriais (2Timóteo 3.16). Um dos benefícios mais notáveis do contato frequente e do aprofundamento nas Escrituras é a sabedoria que se pode extrair de suas páginas. A sabedoria divina é fundamental para o fiel exercício de uma liderança cristã eficaz. Além disso, esse conhecimento o preparou para a obra que teria pela frente (2Timóteo 3.17). A Bíblia continua a ser o melhor manual para

liderança, embora as teorias e estratégias criadas e desenvolvidas nos últimos anos sobre o assunto prometam altos níveis de eficácia. Timóteo era um cristão de fé. Diz o próprio apóstolo Paulo: “Lembro-me das suas lágrimas e desejo muito vê-lo, para que a minha alegria seja completa. Recordo-me da sua fé não fingida, que primeiro habitou em sua avó Loide e em sua mãe, Eunice, e estou convencido de que também habita em você” (2Timóteo 1.4,5). Sua fé era não fingida, ou seja, tratava-se de uma autêntica, sincera e sensível confiança no Senhor (v. 4,5a). Além disso, era uma fé bem aprendida e ainda mais bem aplicada (v. 5b). Timóteo a herdara de sua avó e de sua mãe, que souberam comunicá-la fielmente a ele, que, por sua vez, soube retê-la, torná-la sua e enriquecê-la na experiência pessoal: era a fé que “habita em você”. Timóteo era um cristão talentoso. Isso significa que, como servo de Deus, ele possuía vários dons do Espírito Santo. Também havia recebido de maneira especial, por profecia, com o intermédio de Paulo e do presbitério da igreja, o dom de evangelista (1Timóteo 4.14; 2Timóteo 1.6; 4.5). É certo ainda que ele tinha vários outros dons, como profecia, ensino, exortação e proclamação, além da vocação apostólica e pastoral (1Timóteo 4.13; 2Timóteo 4.1,2). É provável, portanto, que Timóteo tenha exercido um ministério pastoral e apostólico. Timóteo era um cristão de bom testemunho. Timóteo era bem conhecido por seu bom testemunho (16.2). Os irmãos em Listra e de Icônio falavam bem dele. Ele era conhecido por sua boa conduta e integridade não só na cidade em que residia, mas também era

admirado como bom crente nas cidades vizinhas. A boa conduta é o melhor cartão de visita para um servo do Senhor e sua base de autoridade fundamental. Caso contrário, irá se cumprir o ditado popular: “Suas ações falam tão alto que não me permitem ouvir o que você diz”. Timóteo era um cristão não interesseiro. O próprio Paulo atesta o desapego de Timóteo aos bens materiais e sua preocupação pelos interesses e necessidades do próximo (Filipenses 2.19-21). Como líder, ele sabia da importância do zelo genuíno pelo bem-estar dos crentes, independentemente do custo ou dos próprios interesses. As prioridades de Jesus Cristo eram suas prioridades, por isso ele “foi aprovado” (Filipenses 2.22). Tinha a inteireza de caráter que Paulo tanto apreciava. Na verdade, o apóstolo depositava tal confiança em Timóteo que o considerava seu “cooperador” (Romanos 16.21), “filho amado e fiel no Senhor” (1Coríntios 4.17) e “verdadeiro filho na fé” (1Timóteo 1.2). Em 1Tessalonicenses, Paulo denomina-o “cooperador de Deus e no evangelho de Cristo”, título honorífico que reconhece seu serviço abnegado. Timóteo era um cristão ungido pelo Espírito Santo. É impossível servir a Deus no ministério sem estar cheio do Espírito. Os grandes líderes nas páginas de Atos eram todos homens e mulheres sob o senhorio de Cristo e a unção do Espírito. Por esse motivo, Paulo aconselhou seu colaborador a não negligenciar esse aspecto da vida pessoal e ministerial (1Timóteo 4.14). O “dom” que Paulo menciona pode ser o de evangelista ou o dom do Espírito Santo. Em todo caso, para Paulo era muito importante que esse homem ungido continuasse sob unção, a fim de realizar sua obra com maior poder

e autoridade em Cristo. Por isso, recomenda com firmeza: “Mantenha viva a chama do dom de Deus que está em você mediante a imposição das minhas mãos” (2Timóteo 1.6). A plena atuação do Espírito Santo na vida de seu servo é o que lhe permite pôr de lado o “espírito de covardia” e deixar fluir o espírito “de poder, de amor e de equilíbrio” (2Timóteo 1.7).

O MINISTÉRIO EM FILIPOS (16.11-40)

O antigo nome de Filipos era Crênides (por causa de suas muitas fontes), até que Filipe II da Macedônia a conquistou e deu a ela o próprio nome. Mais tarde, a cidade passou para as mãos dos romanos, com o restante da Macedônia (168 a.C.) e se tornou então colônia romana, encravada no extremo da Europa. Os cidadãos de Filipos gozavam dos mesmos privilégios que os de Roma. Tinham as mesmas leis e direitos dos romanos. A cidade era importante. No v. 12, Lucas descreve-a como “a principal cidade daquele distrito [da Macedônia]” (gr. hētis estìn prōtē[s] merídos tēs Makedonías pólis). Foi nessa cidade que pela primeira vez se pregou o evangelho na Europa. Três convertidos filipenses (16.11-40)

A equipe missionária partiu de Trôade e navegou diretamente para Samotrácia, pequena cidade insular com altitude de mais de 1.800 metros acima do nível do mar, longe da costa da Macedônia. Neápolis era o porto de Filipos, que estava situada a cerca de 15 quilômetros terra adentro. A viagem por mar podia ser feita em um único dia, se o vento fosse favorável. A mesma viagem, em sentido contrário, durou cinco dias (20.6). Filipos não era a capital da Macedônia, e sim uma cidade importante de um de seus quatro distritos. No ano 42, tornou-se colônia, por causa de sua lealdade a Roma e ao desejo de imitar a capital do império. Era habitada por soldados romanos aposentados e por alguns poucos judeus. O ministério apostólico em Filipos durou “vários dias” (gr. hēméras

tinás, v. 12b), talvez pouco mais de uma semana. Como resultado, houve três convertidos notáveis. A primeira conversão em Filipos (v. 13-15,40). A primeira pessoa a se converter foi uma mulher chamada Lídia (v. 13-15,40). De acordo com seu costume e sua estratégia, Paulo saiu no sábado à procura da sinagoga local (13.14; 14.1; 18.4), mas não a encontrou, provavelmente porque não houvesse mais de dez homens judeus para constituí-la. No entanto, soube que um pequeno grupo de mulheres tinha seu lugar de oração na periferia da cidade (gr. éxō tēs pýlēs), possivelmente junto ao rio Gangites (a cerca de 2 quilômetros). De acordo com o costume rabínico, Paulo sentou-se e começou a ensiná-las (Lucas 4.20,21). O texto informa que Lídia era “temente a Deus” (gr. seboménē tòn theón), de modo que podia ser judia, convertida ao judaísmo ou gentia temente a Deus. Ela se reunia com outras mulheres fora da cidade, porque as autoridades consideravam a religião delas uma ameaça. Sua ocupação (“vendedora de tecido de púrpura”, gr. porfyrópōlis) indica certa posição social e riqueza, já que a púrpura era vendida para a aristocracia. Esse comércio estava vinculado à cidade de Tiatira, na província romana da Ásia (v. Apocalipse 2.18). Era proprietária de uma casa grande o bastante para acomodar a equipe missionária. Apesar de sua independência e da vida confortável, Lídia tinha o coração pronto para responder à mensagem de Paulo, porque o Senhor o havia aberto com a exposição de sua Palavra. A mulher aceitou o Senhor e, como testemunho disso, foi batizada com sua família. A sequência entre a fé salvadora e o batismo é frequente em Atos (8.12; 16.31-33; 18.8). O convite de Lídia aos missionários para que se hospedassem em

sua casa é uma evidência da autenticidade de sua fé e da realidade de seu compromisso com o batismo. Depois que um crente autêntico é batizado, sempre surge alguma prova de sua nova vida, como a alegria do etíope (8.39) e a generosidade e alegria do carcereiro (16.34). No caso de Lídia, sua casa foi provavelmente o primeiro local de reunião da nova igreja em Filipos (cf. v. 40). A segunda conversão em Filipos (v. 16-18). A segunda pessoa a se converter foi outra mulher, cujo nome não sabemos (v. 16-18). O v. 16 informa que os apóstolos se dirigiam para “o lugar de oração” (gr. eis tēn proseuchēn). Quando isso aconteceu? “Certo dia” (gr. egéneto dè), não no dia mencionado no v. 13, mas depois. Onde? Provavelmente se tratava do mesmo lugar do v. 13, ou seja, “onde esperávamos encontrar um lugar de oração”, o local onde os judeus costumavam se reunir para orar. A quem eles iriam orar? A Deus. Lídia era “temente a Deus” (v. 14). Assim, a grande ocupação dos apóstolos era a oração. Eram muito dedicados a isso, pois o grego sugere uma ação habitual, seguramente diária. Em certa ocasião, foram interceptados por “uma escrava” (paidískēn tina, v. 16), uma pessoa duplamente escravizada. Por um lado, ela não era dona de seu corpo nem de sua vontade, pois eram propriedade de várias pessoas (“seus senhores”). Por outro lado, achava-se demonizada, ou seja, não era dona de seu espírito nem de sua vontade, pois era propriedade de “um espírito pelo qual predizia o futuro” (gr. échousan pneūma pýthōma; lit., “tinha um espírito de píton”). Píton era a serpente que guardava o lugar sagrado de Delfos, onde os oráculos divinos eram comunicados. Mais tarde, a palavra passou a ser usada para se referir a alguém que possuía o poder de prever o futuro, a quem chamavam “adivinho” (1Samuel 28.7). Considerava-

se Píton inspirada por Apolo, o deus dos oráculos, adorado como um deus pitônico em Delfos, na Grécia central. O texto dá a entender que se tratava de um espírito mau, pois a fazia prever o futuro, ou seja, dizer o que ainda iria acontecer (ocultismo). Suas declarações involuntárias eram consideradas a voz do deus Apolo, de modo que as pessoas a procuravam para “ver a sorte” e pagavam um bom dinheiro por isso. A moça estava muito ocupada nesse trabalho. Incidentes posteriores indicam que os donos da moça eram vários (“seus senhores”, gr. toīs kyríois) e que com isso tinham feito um grande negócio: “Ela ganhava muito dinheiro para os seus senhores com adivinhações” (gr. hētis ergasían pollēn pateīchen toīs kyríois autēs manteuoménē). Eles exploravam sua miséria espiritual com grande ganho material. O negócio da adivinhação era bastante lucrativo. A palavra só aparece aqui no Novo Testamento. Na LXX, refere-se a profetas mentirosos e a formas proibidas de conhecer a vontade de Deus. A habilidade da moça não tinha relação alguma com os dons espirituais da palavra de conhecimento e da palavra de sabedoria (1Coríntios 12.8). O texto informa que a moça “seguia” os apóstolos e “gritando”. Os verbos indicam ações contínuas (v. 18a). Ela ficava esperando os apóstolos para segui-los e perturbá-los, especialmente a Paulo. Da casa de Lídia, onde estavam hospedadas, até o local de oração à beira do rio, todos os dias e por muitos dias a moça agiu dessa forma. Observe-se que os senhores não protestaram contra essa distração de sua escrava, talvez porque lhes desse publicidade gratuita. No entanto, a jovem escrava anunciava com seus gritos três grandes verdades. Em primeiro lugar, declarava quem eram os

apóstolos: “servos do Deus Altíssimo” (Romanos 1.1; Filipenses 1.1; Tito 1.1). Em segundo lugar, declarava a quem os apóstolos serviam: o “Deus Altíssimo” (gr. toū theoū toū hypsístou), título comum entre judeus e gentios (para os judeus era El Elyon, Gênesis 14.18; para os gentios pagãos, era o título de Zeus; para todo o mundo, incluindo Satanás e seus demônios, era um título aplicável a Deus, Isaías 14.14; Marcos 5.7). O título era evidente, pois se referia ao Ser supremo, o Deus que é maior do que qualquer outro deus. Em terceiro lugar, declarava o que eles faziam: “Anunciam o caminho da salvação” (gr. katangéllousin [...] hodòn sōtērías). O anúncio era a proclamação do evangelho (v. 10). O caminho da salvação é o único caminho (João 14.6; Atos 4.12). A atitude de Paulo. No v. 18, dois detalhes chamam a atenção na atitude de Paulo. Primeiro: Paulo “ficou indignado” (gr. diaponētheis dè Paūlos, VP; “cansado”, BJ) Esse verbo aparece apenas aqui e em 4.2. Podemos nos perguntar por que ele não a libertou antes. Talvez porque soubesse do inconveniente que essa ação causaria. Jesus não curou todos os enfermos nem libertou todos os endemoninhados. Há um momento e uma oportunidade para o poder de Deus. Segundo: Paulo “voltou-se e disse [repreendeu] ao espírito [...]” (gr. epistrépsas tōi pneúmati eīpen). Ele se voltou porque a moça os seguia, ou seja, caminhava atrás deles. Assim, Paulo assume uma ação concreta, direta e positiva. Observe-se que o apóstolo fala com o espírito de adivinhação, não com a garota, uma vez que ela não tinha controle sobre si mesma. A ordem de Paulo. Esse é o primeiro exemplo de libertação em nome de Jesus Cristo que encontramos no livro de Atos. É muito semelhante aos casos de cura dos capítulos anteriores (3.6;

4.29,30). Não se trata de repetir uma fórmula mágica ou de usar o nome de Jesus como um encantamento. “Em nome de Jesus Cristo” (gr. en onómati Iēsoū Christoū) significa “pelo poder (ou autoridade) de Jesus Cristo”. Ou seja, a ordem é dada como se partisse do próprio Jesus Cristo. A ordem de Paulo foi: “Eu ordeno que saia dela!” (gr. parangéllō soi [...] exeltheīn ap’autēs). Com essas palavras, ele estava ordenando que ele parasse de controlar o espírito e a vontade da moça. Na guerra espiritual, estamos lidando com espíritos (personalidades espirituais), não com bens materiais ou meras influências espirituais. Os espíritos malignos estão sob autoridade, por isso reconhecem a autoridade de Deus e se submetem a ela. O resultado obtido por Paulo. Qual foi o resultado do ministério de libertação de Paulo? O espírito de adivinhação obedeceu e fez conforme ordenado: “O espírito a deixou” (gr. kaì exēlthen autēi). O resultado foi imediato: “No mesmo instante [...]” (gr. tēi hōra). A autoridade superior que os demônios reconheciam quando o próprio Jesus, durante seu ministério terreno, lhes ordenava que deixassem suas vítimas foi agora reconhecida quando um de seus apóstolos invocou seu nome. No ministério de libertação, o que se destaca é o papel exercido pela autoridade espiritual. Não se trata de atacar o sofredor nem de usar palavras mágicas. Os demônios se submetem a uma única autoridade espiritual superior, que, por certo, não é nossa autoridade humana e carnal, mas a de Cristo, o Senhor. Expulsar demônios em seu nome significa que é ele mesmo quem os expulsa, e eles não têm alternativa a não ser sair e deixar de exercer seu domínio sobre a pessoa afetada.

A terceira conversão em Filipos (v. 22-39). A terceira pessoa a se converter foi um homem (v. 22-39), a quem conhecemos por seu ofício (“carcereiro”, gr. tōi desmofýlaki), não pelo nome. Crisóstomo diz que ele se chamava Estéfanas e o identifica com a família dos primeiros convertidos da Acaia (1Coríntios 16.15). Diante do motim da multidão contra Paulo e Silas, os magistrados aplicaram o procedimento de rotina, ou seja, “ordenaram que se lhes tirassem as roupas e fossem açoitados”. Esses açoitamentos eram feitos com varas, que eram muito dilacerantes. Por que Paulo não apelou para sua cidadania romana, a fim de se livrar dessa tortura, como faria mais tarde (v. 37) e em Jerusalém (22.26,27)? Sem dúvida, foi por motivos missiológicos estratégicos. Talvez já tivesse em mente apelar mais tarde para César, caso as circunstâncias o favorecessem, a fim de chegar a Roma às custas do Estado, como de fato o fez. A questão é que, depois de açoitados, doloridos e acorrentados, os apóstolos foram lançados na prisão local e postos sob os cuidados especiais do carcereiro (“para vigiá-los com cuidado”), que “os lançou no cárcere interior” (gr. ébalen autoùs eis tēn esōtéran fylakēn) e “lhes prendeu os pés no tronco” (gr. toùs pódas ēsfalísato autōn, v. 23,24). Apesar das torturas sofridas, à meia-noite Paulo e Silas “estavam orando e cantando hinos a Deus” (gr. proseuchómenoi hýmnoun tòn theón). Era inevitável que atraíssem a atenção de todos os prisioneiros, que viriam a ser testemunhas necessárias do milagre que estava para ocorrer. De fato, um terremoto sacudiu repentinamente o prédio. O fato foi um milagre, porque o abalo abriu todas as portas e soltou as correntes que prendiam os presos. Também foi um milagre ninguém ter fugido!

Diante do ocorrido, o carcereiro estava prestes a cometer suicídio, quando Paulo gritou que não o fizesse, pois nenhum preso havia escapado. Nesse momento, ocorre um dos diálogos mais conhecidos de toda a Bíblia. O carcereiro, profundamente perturbado, perguntou: “Senhores, que devo fazer para ser salvo?” (gr. Kýrioi, ti me deī poieīn hína sōthō, v. 30). O pobre homem provavelmente não estava pensando na salvação de sua alma, mas em se livrar da situação como funcionário público romano que não sabia o que fazer com todos os prisioneiros soltos. Havia também o medo supersticioso de ter passado por um terremoto, que lhe parecera uma expressão da ira dos deuses pela forma em que os missionários haviam sido tratados. Paulo e Silas reorientaram a pergunta do carcereiro com sua resposta: “Creia no Senhor Jesus, e serão salvos, você e os de sua casa” (gr. písteuson epì tòn kýrion Iēsoūn kaì sōthēsēi sỳ kaì ho oīkos sou). Com estas e outras palavras, os apóstolos “pregaram [ao carcereiro, aos seu oīkós e aos demais prisioneiros] a palavra de Deus” (v. 32). É possível que todos tenham se convertido nesse momento, uma vez que o carcereiro já não estava mais preocupado com os presos e “os levou para a sua casa”, onde lhes lavou as feridas e “serviu-lhes uma refeição e com todos os de sua casa alegrou-se muito por haver crido em Deus” (v. 34). É provável que naquela noite, na casa do carcereiro, várias pessoas tenham dado testemunho de sua nova fé por meio do batismo. A passagem termina com a resolução definitiva da situação legal de Paulo e Silas (v. 35-40). Os magistrados enviaram alguns soldados (hrabdoúchous), com ordem de libertar os missionários. O texto não explica o motivo. Pode ter sido por causa do terremoto e

do temor supersticioso que gerou. É de admirar a falta de firmeza nas decisões desses administradores da justiça. Também causa espanto que não soubessem que Paulo e Silas eram cidadãos romanos, o que denuncia a maneira precipitada com que agiram na véspera, quando, levados pela pressão do populacho amotinado, mandaram açoitá-los e golpeá-los. A Lei Júlia proibia que se chicoteasse um cidadão romano. Paulo posicionou-se em uma queixa judicial, pois conhecia muito bem seus direitos legais. Os magistrados assustaram-se ao saber da situação legal dos apóstolos, apresentaram-se diante deles para pedir desculpas, escoltaram-nos para fora da prisão e pediram-lhes que abandonassem a cidade. Os apóstolos foram para a casa de Lídia, onde já estava reunida a nova igreja de Filipos, e se despediram dos irmãos. Anos mais tarde, Paulo se lembraria desse episódio em 1Tessalonicenses 2.2. Três conversões interessantes (16.11-40)

Com a conversão de Lídia de Tiatira e sua família, formou-se uma congregação cristã, que cresceu rapidamente, pelo que se percebe. Como acontece com frequência, assim que o evangelho começou a causar impacto na cidade de Filipos, Satanás pôs-se a trabalhar e a se opor ao testemunho dos crentes. No entanto, suas artimanhas só serviram para fazer avançar ainda mais o Reino naquela importante cidade. Em seu relato, Lucas destaca três convertidos de Paulo em Filipos. Sem dúvida, a seleção de seus depoimentos por Lucas foi intencional, pois se trata de três pessoas muito diferentes umas das outras. Talvez ele o tenha feito para mostrar que o poder salvador

de Jesus Cristo pode agir na vida dos mais diversos tipos de homens e mulheres. A primeira convertida: Lídia. Ela era uma mulher independente, empreendedora, de conduta ilibada e de grande piedade religiosa. É interessante que as mulheres no Novo Testamento constituem um grupo distinto, formado por pessoas notáveis, como Maria, mãe de Jesus, sua prima Isabel, a idosa Ana, Maria e Marta de Betânia, Dorcas e muitas outras. Lídia de Filipos pertence a esse grupo. Embora tenha sido “um homem da Macedônia” quem apareceu a Paulo em uma visão, seus convertidos mais ilustres na região foram mulheres, especialmente Lídia. Uma mulher de negócios. Ao que parece, ela era dona de um comércio, e seus produtos não eram baratos. Deve ter contado com um bom capital, e sua casa era grande o suficiente para acomodar um bom número de visitantes. Provavelmente era viúva, uma vez que seu marido não é mencionado, embora fosse proprietária de uma “casa” (v. 15; gr. tòn oīkón mou, que se refere a todas as pessoas que moravam em sua casa, até mesmo os escravos). Era ela quem trabalhava pelo próprio sustento. Em todas as épocas, as mulheres trabalharam, mas antigamente trabalhavam em casa ou perto de casa. Com isso, ela dava sua contribuição para o sustento de toda a família. Muitas mulheres hoje trabalham na indústria ou no comércio e também são donas de casa, mas sustentar uma família dessa maneira não é fácil Uma mulher religiosa. Lídia ajudava a manter um local de culto em sua cidade. Eram requeridos dez homens judeus para ter uma sinagoga. Caso não houvesse, costumava-se organizar um local de oração — perto de um rio, para as abluções cerimoniais. Um grupo

de mulheres se reunia em um local assim, tendo Lídia como líder. Pode ser que ela tenha se convertido ao judaísmo em sua terra natal, Tiatira. Além de ser uma mulher de fé, Lídia era excelente líder religiosa e ótima ouvinte. Geralmente, as mulheres não tinham permissão para pregar, nem mesmo para ler a Torá na sinagoga, mas sempre se destacavam como boas ouvintes da Palavra. Lídia teve assim a oportunidade de exercer uma liderança religiosa, que não seria possível se houvesse uma sinagoga em Filipos. Sua mente estava aberta para a mensagem, e seu coração estava pronto para receber o Senhor. Nos detalhes que Lucas inclui em seu relato, pode-se perceber a ênfase ao papel das mulheres na pregação do evangelho. Até mesmo a maneira pela qual ele caracteriza Paulo nessa questão põe o apóstolo acima de muitos preconceitos da sociedade da época contra as mulheres. Em Atos, percebemos essa realidade aqui e ali, pois mulheres como Lídia e Priscila ocupam um lugar muito importante na proclamação do evangelho e na plantação de igrejas. O testemunho histórico do desenvolvimento das igrejas evangélicas na América Latina não é muito diferente. Milhares de mulheres anônimas — e algumas conhecidas — têm lançado as bases do testemunho evangélico em muitos lugares. Uma mulher generosa. Lídia acolheu os missionários em sua casa e assim se juntou a uma longa lista de pessoas que ofereciam hospitalidade aos mensageiros de Deus. Foi uma grande ajuda para os pregadores e uma bênção para sua casa. Ela se tornou a líder de uma igreja generosa, a mais liberal de todas as que Paulo plantou, pois enviou várias ofertas para sustentá-lo em suas viagens e quando estava na prisão. Essa igreja contribuiu com muito mais que

o esperado na campanha de ajuda aos irmãos necessitados de Jerusalém. Não sabemos que papel Lídia desempenhou em tudo isso, mas é certo que se tratava de uma mulher rica e generosa, e o registro de sua igreja parece refletir sua influência. Nem todas as mulheres cristãs são mulheres de fé ou generosas. Algumas são egoístas com relação à causa de Cristo. No entanto, muitas mulheres deram uma grande contribuição para a obra do Reino ao longo da história. Algumas delas doaram muito mais que sua fortuna, e outras incentivaram o marido a fazê-lo. As mulheres têm sido elementos-chave no trabalho missionário com suas ofertas e orações. A segunda convertida: uma moça. O segundo caso de conversão foi de alguém muito diferente de Lídia. Tratava-se de uma jovem escrava possuída por um espírito de adivinhação, que não tinha casa própria e era explorada por pessoas sem escrúpulos. O texto não diz nada sobre seu futuro, mas com certeza ela se tornou parte do grupo de “irmãos” que formava a membresia da igreja de Filipos (v. 40). Talvez possamos imaginar a sorte dela. A moça foi vendida e provavelmente comprada por algum membro rico da congregação, alguém como Lídia de Tiatira, ou a congregação levantou o dinheiro necessário para sua emancipação. A moça ingressou na igreja de Filipos, onde serviu ao Senhor usando os dons que o Espírito Santo lhe concedera, talvez a palavra de conhecimento ou a palavra de sabedoria (Filipenses 1.3-11). Em todo caso, ela se tornou um membro ativo da comunidade, pois sua história era muito lembrada. O terceiro convertido: um carcereiro. Não temos o nome do carcereiro filipense, mas provavelmente era um oficial romano

pagão que, como Lídia, se converteu, foi batizado com toda a família (gr. oīkós) e convidou os missionários a ficar em sua casa. O carcereiro destaca-se como homem responsável. Precisamos entender a necessidade de sermos responsáveis diante de nossas obrigações como crentes e na vida diária. O carcereiro é uma personagem anônima. No entanto, sua presença nas Escrituras é significativa. Nós o reconhecemos como homem responsável com relação ao trabalho, à família e às obrigações espirituais. Sua pergunta desesperada deu ocasião à resposta que tem orientado a vida de milhões de homens e mulheres desde então. O carcereiro era um homem responsável na vida profissional (v. 19-24). Paulo e Silas, com sua pregação e sua atitude, ameaçaram seriamente as opressivas estruturas econômicas e sociais que predominavam em Filipos. Não demorou muito para que o aparato repressivo funcionasse com todo o seu rigor. O carcereiro fazia parte desse sistema, mas não era culpado disso. Ele era um funcionário público da área de segurança e como tal cumpria com grande responsabilidade as ordens recebidas. Observem-se os antecedentes dos réus (v. 19-22). A passagem fala da prisão de Paulo e Silas (v. 19), de seu julgamento (v. 20,21) e de sua flagelação (v. 22). A passagem também fala da tarefa do carcereiro (v. 23,24). A ordem era vigiar os prisioneiros com rigor, e ele cumpriu essa ordem colocando-os na masmorra e prendendo-os no tronco. O carcereiro era um homem responsável na área espiritual (v. 2531). Embora integrasse o aparato repressivo romano e tivesse profundo senso de responsabilidade profissional (e para ele era uma questão de vida ou morte), o carcereiro era sensível o bastante para

responder à mensagem do evangelho. Ao contrário de muitos homens de armas, ele não se considerava autossuficiente nem todo-poderoso. A atitude dos prisioneiros Paulo e Silas foi de testemunho, pois oravam e cantavam (v. 25). A intervenção de Deus foi poderosa, pois ocorreu um terremoto (v. 26). A resolução do carcereiro foi positiva, pois experimentou uma notável transformação de vida (v. 27-31). A princípio, tentou suicidar-se (v. 27,28), mas acabou encontrando a salvação (v. 29-31). O carcereiro era um homem responsável na área familiar (v. 3234). O  carcereiro era tão responsável por seu trabalho e por si mesmo quanto por sua família. Por isso, assim que conheceu o evangelho, fez questão de que seus entes queridos também participassem da Palavra do Senhor. Ele queria que sua salvação fosse a deles também. Essa atitude o levou a se converter com sua família (v. 32), a ser batizado com sua família (v. 33) e a se alegrar com sua família (v. 34). Todos nós temos responsabilidades nas diferentes esferas e relações da vida. Seu cumprimento adequado indica maturidade pessoal. A aceitação e o cumprimento dessas responsabilidades são vitais para o bom funcionamento emocional e pessoal e para a sobrevivência em sociedade. Quando nos encontramos com Cristo e o aceitamos como Salvador e Senhor, essa experiência, longe de nos isentar das responsabilidades, dá a elas um novo significado. A pessoa é reorientada no exercício de suas responsabilidades e nelas descobre uma nova dimensão. Com a ajuda do Senhor, o cristão busca desenvolver uma vida cristã responsável.

O MINISTÉRIO EM TESSALÔNICA (17.1-9)

De Filipos, a equipe missionária (Paulo, Silas e Timóteo) seguiu para oeste, pela Via Egnácia. Passaram por Anfípolis, sobre o rio Estrimão, antigamente um ponto estratégico importante da fronteira trácio-macedônica. A um dia de caminho estava Apolônia, por onde também passaram antes de chegar a Tessalônica (a atual Salônica), a cidade mais importante da Macedônia. Quem lhe deu esse nome foi Cassandro, que a fundou no ano 315 a.C., no lugar onde antes existia a antiga Terma. Tessalônica era o nome de sua esposa, meia-irmã de Alexandre, o Grande. Aparentemente, os três missionários passaram uma noite em Anfípolis e outra em Apolônia; no entanto, ficaram mais tempo em Tessalônica. Por sua importância, Tessalônica requeria um trabalho evangelístico mais intenso, como foi o caso de Filipos. Um costume (17.1b,2)

Em Tessalônica, como era seu costume (“Segundo o seu costume”, gr. katà tò eiōthos), Paulo visitou a sinagoga local. Em que consistia “seu costume”? Há duas interpretações possíveis. Talvez fosse um hábito religioso, ou seja, Paulo tinha o costume de ir à sinagoga todos os sábados. Ele era judeu e como tal respeitava o dia de repouso (16.13). Nesse caso, Lucas estaria reconhecendo uma conduta religiosa em Paulo, o que é intrigante, por se tratar de um homem tão impulsivo. É bom formar bons hábitos religiosos, como participar dos cultos da igreja (Hebreus 10.25). Pode ter sido uma estratégia missionária, ou seja, Paulo tinha o costume de pregar primeiro aos judeus e fazê-lo no lugar em que se reuniam —

a sinagoga (Romanos 1.16). Ao chegar a um lugar pela primeira vez, Paulo sentia a responsabilidade de testificar primeiro aos seus compatriotas (Romanos 9.3-5). Nessas ocasiões, valia-se de sua posição de rabino e do convite que geralmente lhe faziam para ocupar o púlpito, como ocorreu em Antioquia da Pisídia (13.14-16). Devemos adquirir o saudável “costume” de testificar aos nossos em primeiro lugar. A questão é que durante três sábados consecutivos o apóstolo “discutiu com eles” (gr. dieléxato autoīs). Para ele, o tempo tinha um valor incalculável, e não devia ser desperdiçado, mas bem aproveitado (Colossenses 4.5). Esse missionário, portanto, não iria ficar três semanas em um lugar sem fazer nada. Toda tarefa requer tempo, e devemos ser sábios no tempo que dedicamos a algo e administrá-lo bem. Durante esse tempo, Paulo explicou as Escrituras do Antigo Testamento, apresentando como evidência de seu cumprimento os fatos históricos que se verificaram com o ministério, morte e exaltação de Jesus. Ao fazê-lo, Paulo uniu o cumprimento das Escrituras às predições, a fim de que rapidamente seus ouvintes pudessem captar a força de seu argumento. De acordo com essas predições, o Messias deveria sofrer, para depois se levantar dos mortos. Com ousadia, Paulo afirmou que tudo isso se havia cumprido em Jesus de Nazaré e em nenhum outro. Por essa razão, declarou ele, “este Jesus que proclamo é o Cristo”. É um bom costume nos reunirmos para adorar a Deus e estudar sua Palavra. Isso requer tempo de qualidade. No caso de Paulo, pode-se dizer que, conforme o tempo que dedicava a um tema e a ênfase que lhe dava, podemos ter uma medida do valor que esse tema tinha para ele. Durante três semanas, Paulo apresentou sua

mensagem. Ele dedicou certo tempo a esse mister. A apresentação da mensagem requer tempo. Devemos permitir que a Palavra faça seu trabalho e penetre fundo a mente e o coração das pessoas. Uma mensagem (17.3)

A mensagem apostólica estava dividida em dois pontos bem claros. Primeiro: era necessário que o Messias sofresse (“o Cristo deveria sofrer”, gr. hóti tòn Christòn édei patheīn). Paulo fez o que o próprio Jesus havia feito no encontro com os discípulos de Emaús (Lucas 24.25-27). A ideia messiânica dos judeus era que o Messias se apresentaria ao povo de Israel como um grande general conquistador e invencível, mas o conceito messiânico de Jesus era totalmente diferente: ele se apresentou como o Servo sofredor de Isaías 53. Assim, Paulo destacou a necessidade do sofrimento do Messias. Segundo: era necessário que o Messias ressuscitasse (“o Cristo deveria [...] ressuscitar dentre os mortos”, gr. tòn Christòn […] anastēnai ek nekrōn). Nem todos os judeus aceitavam a possibilidade da ressurreição. Os fariseus criam nela; os saduceus a rejeitavam. Paulo tinha uma mensagem para comunicar. Essa mensagem consistia em dois fatos históricos e uma afirmação de fé. O primeiro fato histórico é que era necessário que o Messias sofresse. A necessidade do sofrimento de Cristo foi vista em sua humilhação, ao assumir a natureza humana. Também foi vista em sua identificação com as limitações humanas. Foi vista ainda quando ele carregou os fardos humanos (Isaías 53.4,6) e em sua morte vicária na cruz (Isaías 53.5,7-9). O segundo fato histórico é que era necessário que o Messias ressuscitasse. As passagens bíblicas do Antigo

Testamento que falam da ressurreição do Messias servem para provar dois pontos: por um lado, a ressurreição foi necessária para que a aceitação, por parte de Deus, da vida e obra do Messias na terra se tornasse evidente; por outro lado, a ressurreição era necessária para que o poder do Messias vivo continuasse a boa obra que havia começado na terra. Um Salvador que caísse na armadilha da morte não poderia libertar a humanidade de seu pior inimigo, que é a morte. Esse Salvador não mereceria nossa confiança. Não confiamos em uma coisa ou em uma obra, mas em uma Pessoa que vive e continua em ação. A afirmação de fé é que Jesus é o Messias. Tudo que era necessário para nossa salvação se deu nele e por meio dele (4.12). Jesus cumpriu plenamente as Escrituras, e as Escrituras foram totalmente cumpridas nele. Jesus é o cumprimento de todas as promessas de Deus (Hebreus 1.1,2). Um resultado (17.4-9)

Como já havia ocorrido nas cidades ao sul da Galácia, aqui também alguns dos ouvintes judeus de Paulo se convenceram do que ele dizia; a maioria dos convertidos, porém, era de adeptos gentios. Entre eles, havia um número considerável de mulheres de certo nível social, esposas de cidadãos destacados. Lucas sempre ressalta o lugar das mulheres no avanço do evangelho e é o escritor bíblico que dá maior ênfase ao papel desempenhado por elas no Reino de Deus. No relato de Lucas, é de admirar a dimensão quantitativa dos resultados do testemunho apostólico. Os que se converteram em Tessalônica foram “alguns” (gr. tines) dentre os menos prováveis: os judeus religiosos e agarrados à sua tradição; foram “não poucas” (gr. ouk olígai) pessoas dentre as mais

esquecidas e marginalizadas: as mulheres, para as quais não havia lugar em nenhuma religião; foram “muitos” (gr. plēthos polý) entre os mais necessitados: os gregos que adoravam a Deus, porém não faziam parte da aliança. Os judeus ficaram com inveja (Lucas não informa o motivo). Talvez porque o êxito proselitista de Paulo punha em perigo a estabilidade da sinagoga local. A questão é que recrutaram “alguns homens perversos dentre os desocupados” para provocar alvoroço na cidade. O primeiro a ser atacado foi Jasom, a quem arrastaram, com “alguns outros irmãos”, até “diante dos oficiais [gr. politárchas] da cidade”. Jasom é identificado no v. 5 como o anfitrião de Paulo, provavelmente um dos judeus que se haviam convertido na sinagoga.O nome Jasom é grego, mas era adotado por muitos judeus de nome Josué. Aristarco e Secundo, identificados como tessalonicenses em 20.4, provavelmente também se converteram nessa ocasião. A acusação contra Jasom foi ter hospedado subversivos “que têm causado alvoroço por todo o mundo” (gr. hoí tēn oikouménēn anastatōsantes). Não é preciso muito esforço para perceber o exagero da acusação. Na época, era ínfima a porção do ecúmeno [mundo habitado] que conhecia o evangelho de Cristo. O mesmo pode ser dito da acusação contra “todos eles” (gr. hoūtoi pántes), que incluía apenas Jasom, “alguns outros irmãos”, Paulo e Silas e, talvez, cristãos de outros lugares. A acusação era que essas pessoas estavam agindo “contra os decretos de César, dizendo que existe um outro rei” (gr. apénantitōn dogmátōn Kaísaros prássousi kaì basiléa héteron légontes eīnai). Se essas acusações fossem verdadeiras, todos esses cristãos citados não teriam sido presos,

para começar. Além disso, o império romano estaria um caos, teria mergulhado em uma anarquia total e o rei dos cristãos estaria de fato tomando o lugar do atual imperador. Jasom e os demais irmãos foram libertos depois de pagar fiança. Vê-se que os magistrados da cidade, embora tenham feito alvoroço com a multidão, foram mais sensatos diante da ação da turba instigada pelos judeus. Foi assim que decidiram libertar Jasom e os demais mediante fiança. Esta é a última vez que o nome desse crente é mencionado, embora Paulo pareça se referir a esse incidente em 1Tessalonicenses 1.6. Em Tessalônica, apesar da oposição e da perseguição aos crentes, o resultado foi positivo em dois aspectos. Primeiro: foi positivo com relação às atitudes. O texto afirma que “alguns dos judeus foram persuadidos” e creram (gr. tines ex autōn epeísthēsan, v. 4a). Isso criou uma divisão inevitável entre crentes e descrentes (v. 5). O evangelho sempre cria divisão. Além disso, os que creram “se uniram” (gr. proseklērōthēsan, v. 4b) à equipe apostólica.O evangelho é gregário. Não é possível ser cristão sem se unir a outros cristãos e congregar-se no nome de Jesus. Segundo: foi positivo com relação às pessoas. Quem eram os que creram? Alguns eram judeus (cf. v. 5); outros eram “gregos tementes a Deus”, ou seja, monoteístas gentios que haviam aderido ao judaísmo ou prosélitos; outros ainda eram “mulheres de alta posição” ou nobres. É interessante a variedade de crentes e de experiências que Lucas menciona nessa passagem.

O MINISTÉRIO EM BEREIA (17.10-15)

Bereia não era uma cidade muito grande nos dias de Paulo. Estava situada a cerca de 70 quilômetros a oeste, bem próximo da Via Egnácia. Lucas informa que só Paulo e Silas saíram de Tessalônica, de modo que Timóteo ficou ali, embora pareça que ele se uniu a eles mais tarde, porque são mencionados juntos no v. 14. Paulo decidiu ir a Bereia porque ali havia uma comunidade judaica que contava com uma sinagoga. Para o apóstolo, isso era missiologicamente mais importante do que a cidade ser grande, rica ou prestigiada. Por isso, Paulo e Silas rumaram para a sinagoga assim que chegaram à cidade, depois de uma viagem que levou uma noite inteira. Não tinham tempo a perder, ainda mais se pensassem que os agitadores judeus de Tessalônica podiam estar no encalço deles. Esse sentido de urgência dos apóstolos chamanos a atenção hoje. Paulo não se equivocou em sua percepção sobre Bereia como um terreno fértil para o evangelho. De fato, os judeus bereanos mostraram-se muito dispostos a escutá-lo e a testar sua teologia à luz do Antigo Testamento. Os judeus de Bereia eram “eram mais nobres” (gr. hoūtoi dè ēsan eugenésteroi tōn, ou seja, ricos, educados, gente de classe alta; v. Jó 1.3 na LXX; Lucas 19.12). O uso do termo aqui pode ser metafórico, ou seja, apenas para indicar pessoas dispostas a ouvir novas ideias e avaliá-las. Paulo pregava citando o Antigo Testamento e mostrando de que maneira se aplicava a Jesus. Os bereianos ficaram entusiasmados com o evangelho e não se conformaram com nada menos que a verdade à luz das Escrituras. Para isso, iam “examinando todos os dias as

Escrituras” (gr. kath’hēmeran anakrínontes tàs grafàs). Isso significa dois fatores: por um lado, Paulo pregava a eles todos os dias; por outro lado, não deixavam passar nenhuma mensagem que lhes fosse anunciada sem examiná-la. Sem dúvida, o clima espiritual na cidade era muito mais favorável que o de Tessalônica. As forças das trevas, que cegam a mente das pessoas para que não creiam (2Coríntios 4.3,4), não parecem ter mostrado seu poder ali. É certo que alguns não creram, mas “muitos dentre os judeus” se converteram (gr. polloì mèn oūn ex autōn epísteusan), até mesmo “um bom número” de gentios tementes a Deus e de mulheres. O êxito atraiu a oposição dos agitadores judeus, religiosos sinceros como o próprio Paulo antes da conversão, embora equivocados em seus métodos e no espírito. Por causa da agitação e do alvoroço que provocaram em meio ao povo dessa pequena cidade, os irmãos acharam prudente que Paulo partisse e o encaminharam a Atenas — Silas e Timóteo ficaram com eles. Não foi a primeira vez que “os irmãos” salvaram Paulo de grandes males (v. 10). C. Peter Wagner: “Em contraste com Tessalônica, provavelmente uma porcentagem de judeus maior que o normal participava do núcleo dessa nova igreja. No entanto, os gentios, a começar pelos tementes a Deus, eram, sem dúvida, a maioria, assim como nas outras igrejas plantadas por Paulo. É interessante que Lucas informe que ‘não poucas mulheres de alta posição [...] se uniram a Paulo e Silas’ (v. 4) em Tessalônica e aqui em Bereia também registre que entre os convertidos havia ‘um bom número de mulheres gregas de elevada posição e não poucos homens gregos’ (v. 12). Desde o século I até agora, não importa em que lugar do mundo, a espinha dorsal das igrejas cristãs são as mulheres. Por alguma razão, é axiomático que as mulheres se mostrem mais dispostas que os homens a entregar o coração a Jesus Cristo e servir a ele com sua vida”.4

A recepção da mensagem

Uma das características marcantes e mais lembradas dos bereianos é que eles “receberam a mensagem com grande interesse” (gr. hoí tines edéxanto tòn lógon metà pásēs, v. 11). Por serem de sentimentos “mais nobres” que os de Tessalônica, os bereianos ouviram o evangelho com uma atitude mais aberta e positiva, a qual os levou a aceitar com fé as boas-novas de Jesus Cristo. Lucas apresenta um exemplo de pregação apostólica em 13.16-41 e um resumo em 17.2,3. Os bereianos receberam a mensagem não de forma acrítica ou ingênua, o que teria sido uma expressão de outros sentimentos além dos “nobres” que Lucas reconhece. A atitude deles era de uma fé autêntica e madura, por certo alimentada havia algum tempo pela Palavra de Deus. Essa é a única maneira de receber a mensagem do evangelho. O ocorrido em Bereia e o que acontece hoje sempre que o evangelho é explicado e demonstrado com base nas Escrituras (cf. v. 2,3) é o processo que Paulo descreve em Romanos 10.14,15: envio, pregação, recepção e fé. O aprofundamento da mensagem

Outra característica marcante dos bereianos é que examinavam “todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo” (v. 11). Os bereianos não se limitavam a receber a palavra pregada, mas procuravam aprofundar sua compreensão da mensagem e insistiam no exame completo das Escrituras. Em suma, eles aprofundavam ainda mais o processo iniciado por Paulo, ao fundamentar nas Escrituras suas reivindicações do evangelho. Eles ficavam “examinando as Escrituras” em busca de evidências. O

verbo anakrínō (“julgar”, “avaliar”, “perguntar”, “examinar”, “estudar”, “pedir contas”, “interrogar”) tem um significado forense, especialmente no que diz respeito ao interrogatório e ao exame preliminar de um prisioneiro por um juiz. Os bereianos queriam saber com certeza se o que Paulo e Silas estavam dizendo acerca de Jesus era de fato o que o Antigo Testamento dizia. O tom da expressão aqui sugere que, em sua investigação no Antigo Testamento, o que eles realmente queriam era aprofundar as questões que Paulo suscitava com seu ensino. Eles não faziam isso para refutá-lo ou para se envolver em uma controvérsia com ele. O apóstolo provavelmente direcionou a atenção deles a passagens para as quais nunca haviam atentado. Os rabinos de Bereia estavam tão interessados quanto os outros membros da sinagoga local em aprender dos missionários aquele novo entendimento das Escrituras. O desejo humilde de ouvir o que Deus estava tentando comunicar ainda é necessário e imprescindível às comunidades cristãs hoje. Muitas vezes, cometemos o erro de considerar tudo sabido e entendido, e tudo que conseguimos é manifestar um alto grau de ignorância e de estupidez. Além disso, devemos persistir no aprofundamento das Escrituras. Os bereianos dedicavam-se a isso “todos os dias”, embora a maioria não tivesse uma cópia do Antigo Testamento na versão da LXX! Hoje cada um de nós tem acesso não só a uma, mas a várias versões, e com todos os tipos de ajudas e recursos de interpretação, todavia estamos longe do zelo daqueles homens e mulheres que apoiavam sua fé em Cristo sobre um sólido fundamento bíblico.

O MINISTÉRIO EM ATENAS (17.16-34)

O motivo de Paulo ter passado por Atenas é apresentado nos versículos anteriores (v. 14,15). Atenas não figurava nos planos missionários de Paulo. Por isso, durante os dias em que esteve ali para aguardar seus companheiros, aproveitou o tempo para passear pela cidade e admirar sua beleza artística e arquitetônica. Diante da realidade espiritual e moral que descobriu, porém, não pôde deixar de pregar o evangelho. Embora a cidade tivesse perdido sua proeminência política havia algum tempo, continuava a ser um símbolo do mais alto nível da cultura clássica. A escultura, a literatura e a oratória da Atenas dos séculos V e IV a.C. jamais foram superadas. Na filosofia, havia sido a cidade natal de Sócrates e de Platão e o lugar adotivo de Aristóteles, Epicuro e Zenão. Em todos esses campos, Atenas tinha um prestígio sem paralelo. Além disso, cabia-lhe a honra de ter sido o berço da democracia. Por causa de seu passado glorioso, os romanos consideravam Atenas uma cidade livre dentro do império romano e lhe permitiam conservar suas instituições. Os cenários para a pregação do evangelho (17.16-34)

A cidade estava saturada com 30 mil deuses, muitos dos quais eram magníficas obras artísticas. Paulo, porém, não era turista nem crítico de arte em Atenas, e sim um pregador do evangelho. Ele observava tudo à luz da revelação de Deus em Cristo e da eternidade. O desafio da idolatria de Atenas motivou Paulo a aproveitar toda oportunidade que tivesse de pregar o evangelho, em todos os ambientes possíveis. Paulo “discutia na sinagoga com

judeus e com gregos tementes a Deus, bem como na praça principal, todos os dias, com aqueles que por ali se encontravam” (v. 17) e “na reunião do Areópago” (v. 22). No primeiro caso, fazia-o nos dias de sábado; no segundo caso, “todos os dias”; no terceiro caso, em uma única ocasião (v. 19). Em todos os casos, a mensagem que pregava era a mesma. Paulo “estava pregando as boas-novas a respeito de Jesus e da ressurreição” (v. 18). Consideremos os três cenários atenienses da pregação apostólica. A discussão na sinagoga (v. 17a)

Em Atenas, Paulo seguiu sua tradicional estratégia missionária de começar seu testemunho do evangelho na sinagoga local, para depois evangelizar os gentios, tanto os tementes a Deus quanto os pagãos. Com os primeiros, utilizava-se do Antigo Testamento para mostrar que todas as profecias concernentes ao Messias prometido se haviam cumprido em Jesus. Em qualquer caso, é de admirar que, em uma cidade grega tão sofisticada como Atenas, Paulo seguisse seu costume de frequentar a sinagoga, para começar sua pregação do evangelho. Além disso, ao que parece os judeus na sinagoga local não se mostraram tão receptivos à mensagem quanto os de Bereia. Lucas, tão afeito aos números, não diz nada sobre a quantidade dos que creram na cidade. Perguntamo-nos por quê. Ao que tudo indica, Paulo não obteve muito êxito em sua pregação aos judeus e aos tementes a Deus na sinagoga de Atenas. Um dos motivos talvez fosse o pequeno tamanho da congregação, pelo menos em comparação com as de Bereia e Tessalônica.5 Na verdade, Atenas não era uma cidade comercial como Tessalônica, onde o número de judeus era muito maior. Outra

razão podia ser o paganismo predominante em Atenas, somado à enorme variedade de filosofias e de ideias religiosas que enxameavam em toda a cidade e que alienavam os gregos da comunidade religiosa judaica, motivo pelo qual não era significativo o número dos que se tornavam tementes a Deus. Não que inexistissem gentios na sinagoga local, mas o número era insignificante. Além disso, é provável que os judeus que decidiram residir em Atenas vivessem isolados em uma espécie de gueto religioso ao redor da sinagoga, onde se sentiam protegidos da idolatria, da libertinagem e da corrupção prevalecentes. Tal contexto religioso e cultural só poderia produzir dois tipos de crentes judeus: os extremamente conservadores, fechados a qualquer ideia nova, como a que Paulo pregava; os extremamente liberais, abertos a contemporizar com a cultura predominante, mas sem aceitar nenhuma versão do judaísmo (como o cristianismo) que lhes fizesse demasiadas exigências éticas. Por fim, em uma cidade “cheia de ídolos” (gr. katà pāsan hēméran), não é de admirar que o poder de Satanás assumisse o comando, para manter o coração de todos os seus habitantes, até mesmo o dos judeus, endurecido à fé.6 O debate na praça (v. 17b,18)

Paulo adaptava seu discurso ao contexto cultural. Foi isso que fez ao falar “todos os dias” (gr. kata pāsan hēméran) aos gregos pagãos na praça. Nos tempos do Novo Testamento, a ágora (gr.) ou forum (lat.) era a praça pública, o lugar do mercado, o centro de reunião do povo livre, que acudia ali para se informar e discutir os assuntos públicos da cidade e da nação. A ágora consistia em uma ampla praça, um espaço aberto rodeado de edifícios públicos e de

pórticos. Era adornada com monumentos e estátuas e sombreada com um arvoredo. Nesse sentido, a praça pública ou central representava o coração da cidade e da nação. Os judeus da sinagoga local, os gregos que adoravam a Deus com eles, os filósofos epicuristas e estoicos e os cidadãos atenienses em geral constituíam um auditório bastante heterogêneo. Não obstante, Paulo soube adequar seu discurso a cada um de seus interlocutores. Os epicuristas acreditavam que o prazer ou a felicidade era o bem supremo, o objetivo da vida. Não criam em uma vida pessoal e física depois da morte. Seu lema era: “Desfrute a vida agora” (hedonismo). De acordo com eles, os deuses não tinham interesse nos seres humanos. O termo provinha de Epicuro, filósofo ateniense (341-270 a.C.), para quem a felicidade era viver livre de desejos não satisfeitos. Os estoicos acreditavam que Deus era a alma do mundo ou imanente a toda a criação (panteísmo). Afirmavam que os seres humanos deviam viver em harmonia com a natureza, que a razão era o bem supremo e que o domínio próprio e a estabilidade emocional eram as metas a serem alcançadas. Também não criam em uma vida após a morte. Seu fundador foi Zenão de Cítio, natural de Chipre, que se mudou para Atenas por volta de 300 a.C. O nome desse grupo derivava do fato de Zenão ensinar no pórtico (gr. stoá) de Atenas. Para alguns desses filósofos, Paulo era um “tagarela” (gr. ho spermológos, “charlatão”), ou seja, um mestre itinerante que juntava pedaços de informação daqui e dali e tratava de vendê-los pela melhor oferta. Outros o consideravam um “regador dos deuses estrangeiros” (gr. zénōn daimoníōn dokeī katangéleus eīnai; 1Coríntios 10.20,21). O vocábulo daimoníōn designa poderes

espirituais, que podem ser bons ou maus. Esses filósofos eram politeístas, ou seja, criam em muitos deuses, e é provável que tenham pensado que Paulo pregava sobre a deusa da saúde ou sobre a deusa da ressurreição. Também é possível que pensassem em uma deidade masculina (Jesus) e em uma feminina (Ressurreição). Em todo caso, não parece que Paulo agiu com muito acerto ao usar um vocabulário cristão nesse contexto. Além disso, para os gregos, a ideia da ressurreição de um corpo era escandalosa (1Coríntios 1.18-25). Eles acreditavam que a matéria era má, e só o espírito era bom. A centelha do espírito estava presa ao corpo, que era sua tumba, e só viria a ser liberta com a morte, que permitia sua reabsorção pelo mundo espiritual e impessoal das ideias. O discurso no Areópago (v. 19-32). A expressão grega áreios págos significa “colina de Ares” (ou de Marte, o deus da guerra). Nos anos dourados de Atenas, era o foro filosófico da cidade. Ali Paulo teve a oportunidade de dirigir a palavra a pessoas pagãs, que tinham apenas curiosidade intelectual (v. 20,21), não um autêntico desejo de conhecer a verdade. Eram intelectualoides, a quem não interessava “outra coisa senão falar ou ouvir as últimas novidades”, ainda que não estivessem dispostos a uma mudança de vida. Procuravam reviver o glorioso passado intelectual de Atenas, mas não podiam distinguir entre o conhecimento humano e a sabedoria divina, entre a especulação humana e a revelação de Deus. Paulo começa elogiando a curiosidade religiosa daquelas pessoas no parâmetro das tradições delas. A inscrição a que ele faz referência (“AO DEUS DESCONHECIDO”, gr. agnōstōi theōi) mostra que os gregos tinham medo de esquecer alguma deidade

importante em sua adoração.7 Mostra também seu temor do reino espiritual e seu politeísmo. Paulo faz aqui um jogo de palavras entre “deus desconhecido” e “algo desconhecido” (gr. hò oūn agnooūntes). Desse termo grego provém o vocábulo “agnóstico”. Paulo adapta assim sua exposição do evangelho a pagãos que criam em um mundo espiritual impessoal. Ele não era um charlatão, como alguns pensavam (v. 18), mas anunciava ao Deus supremo que eles ignoravam. É interessante no discurso de Paulo no Areópago o uso do advérbio inclusivo “tudo” (gr. pántēi, “em tudo”, “de todas as formas”; pántōs, “de todas as maneiras”, “seguramente”, “indubitavelmente”): “em todos os aspectos” (gr. katà pánta, v. 22); “tudo o que nele há” (gr. pánta tà en autōi, v. 24); “ele mesmo dá a todos a vida” (gr. autòs didoùs pāsin zōēn, v. 25a); “as demais coisas” (gr. tà pánta, v. 25b); “fez ele todos os povos” (gr. epoíēsen pān éthnos, v. 26a); “para que povoassem toda a terra” (gr. katoikeīn epì pantòs prosōpou tēs gēs, v. 26b); “para que [todos] os homens o buscassem” (v. 27); “ordena que todos” (gr. toīs anthrōpois pántas, v. 30a); “Em todo lugar” (gr. pantachoū, v. 30b); “deu provas disso a todos” (gr. pístin paraschōn pāsin, v. 31). A mensagem da pregação do evangelho (17.24-32)

Em Atenas, Paulo decidiu comunicar a mensagem do “DEUS DESCONHECIDO” (gr. agnōstoi theōi, v. 23). Quem era o Deus que Paulo anunciava? Há vários temas teológicos no argumento de Paulo. Primeiro tema: Deus é o Criador. Os gregos acreditavam que o espírito (Deus) e a matéria (átomos) eram eternos. Paulo afirma o

conceito de Gênesis 1, segundo o qual “o mundo e tudo o que nele há” (gr. tòn kósmon kaì pánta tà en autōi, v. 24a) é a criação pessoal e proposicional de Deus. O Deus que Paulo apresenta é o Deus da revelação bíblica. Não é o deus dos gregos, que se apresentava como Ser Supremo (puro espírito) e um demiurgo inferior e corrupto o bastante para criar o mundo material. Não se pode ver o Deus verdadeiro, porque ele é espírito, mas se torna evidente por meio de sua criação, que é matéria e não é má por definição (Romanos 1.1821). O ser invisível do Criador pode ser percebido, quando se pensa orientado pelo mundo visível que ele criou. Segundo tema: Deus é onipotente e autossuficiente (v. 24b). Isso também é indicado pela Bíblia (Salmos 50.9-12) e por alguns filósofos gregos.8 Os gregos acreditavam que seus deuses viviam e eram alimentados e cuidados em seus templos, daí a necessidade de lhes oferecer sacrifícios permanentes. Paulo, porém, afirma que o verdadeiro Deus “é o Senhor dos céus e da terra” (gr. hoūtos ouranoū kaì gēs hypárchōn kýrios, v. 24b). Ele não depende da adoração nem do serviço de sua criação. Deus não precisa de nada das pessoas que criou, ao contrário, são elas que dependem de seu cuidado e de sua providência. Ele é onipotente e autossuficiente. Karl Barth: “Deus não deixaria de ser Deus se não tivesse criado o mundo e o ser humano. A existência do mundo e nossa existência de forma alguma são essencialmente necessárias para Deus, mesmo como objeto de seu amor. [...] Não faz parte do ser e da ação de Deus que, como amor, ele deva ter um objeto em outro que seja diferente dele. Deus é suficiente em si mesmo como objeto e, portanto, como objeto de seu amor. [...] Deus não nos deve nem nosso ser, nem em nosso ser seu amor”.9

Terceiro tema: Deus é infinito (v. 24c). Deus não pode habitar “em santuários feitos por mãos humanas” (gr. ouk en cheiropoiētois

naoīs katoikeī, v. 24c), como os templos e monumentos magníficos erigidos pelos gregos. Isso é uma citação do Antigo Testamento (1Reis 8.27; Isaías 66.1,2) ou talvez do filósofo grego Eurípides (fragmento 968). Se nem mesmo o templo de Jerusalém, erguido para a adoração ao Deus de Israel, podia contê-lo, muito menos os luxuosos templos da acrópole de Atenas, dedicados a deuses que não eram deuses. Quarto tema: Deus é autônomo (v. 25a). Ele não depende de ninguém nem precisa de ninguém para existir e agir. De acordo com Paulo, “ele não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo” (gr. oudè hypò cheirōn anthrōpínōn therapeúetai prosdeómenós tinos, v. 25a). Carl F. H. Henry: “Na colina de Marte, Paulo fala sobre o Criador onipotente, que não necessita de nada fora de si mesmo, “como se necessitasse de algo” (Atos 17.25, NVI). O termo grego prosdéomai refuta qualquer sugestão de que Deus esteja em algum tipo de necessidade; ele não é como ídolos pagãos, que devem a própria realidade e sobrevivência às mãos humanas. Em suma, Paulo pressupõe a autossuficiência de Deus. [...] Não há sugestão aqui da noção de teologia do processo, segundo a qual o Universo é necessário para Deus”.10

Quinto tema: Deus é o Doador de vida (v. 25b). É o que afirma Isaías 42.5, texto que fala de seu amor pela humanidade (misericórdia, graça) e de sua provisão para os seres humanos (providência).11 Deus é apresentado por Paulo como aquele que “dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas” (gr. autòs didoùs pāsin zōēn kaì pnoēn kaì tà pánta, v. 25b). A palavra que a NVI traduz por “fôlego” (gr. pnoēn) significa “vento” ou “brisa” (2.1-3; Jó 37.9, LXX), mas seu significado principal é “fôlego”. Lucas provavelmente tem Gênesis 2.7 (João 20.22) em mente. Deus sopra o fôlego de vida

em sua nova criação. Ele é o Criador da vida e aquele que nos dá fôlego para vivermos e continuarmos vivos. Sexto tema: Deus é universal (v. 26a). Ele é o Criador universal, pois criou apenas uma humanidade e todas as nações: “De um só fez ele todos os povos” (gr. epoíēsén te ex henòs pān éthnos anthrōpōn, v. 26a). A humanidade é una e solidária, porque todos os seres humanos foram criados à imagem de Deus (Gênesis 1.26,27) e receberam de seu Criador a mesma ordem de se multiplicar e encher a terra (Gênesis 1.28; 9.1,7). Como Carl F. H. Henry observa: “A doutrina da criação é o fundamento básico de toda doutrina maior da igreja. Sobre essa doutrina, por exemplo, repousa o Sabbath bíblico (Hebreus 4.3,4), o casamento monogâmico (Mateus 19.4-6) e a fraternidade universal dos seres humanos (17.26). As consequências de negligenciar a história da criação, portanto, são muito graves, tanto para os cristãos quanto para os não cristãos e mundanos”.12 Sétimo tema: Deus é o Senhor da humanidade e de sua história (v. 26b). De acordo com Paulo, Deus determinou “os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar” (gr. orísas prostetagménous kairoùs kaì tàs horothesías tēs katoikías autōn, v. 26b; Deuteronômio 32.8; Jó 12.23; Salmos 47.79; 66.7). Os gregos davam muita importância à fortuna e ao destino como fatores determinantes da sorte humana. Paulo afirma aqui que Deus controla a história humana e o destino do ecúmeno [mundo habitado] (Jó 12.23). O tempo e o espaço estão em suas mãos, e ele não age neles por capricho, mas “de acordo com o eterno plano que ele realizou em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Efésios 3.11).

Oitavo tema: Deus pode ser conhecido por todos (v. 27a). Ou seja, se o buscarem com sinceridade (“para que os homens o buscassem”, gr. zēteīn tòn theón).É necessário que nós, seres humanos, reconheçamos a necessidade que temos dele e o busquemos, ainda que “tateando” (gr. ei ára ge psēlafēseian autòn, v. 27a; “tocando” ou “sentindo”, Lucas 24.39), como quem procura algo no escuro ou em meio à confusão (o que faziam os gentios com seu paganismo). Nono tema: Deus é imanente (v. 27b,28a). Paulo afirma que Deus não está longe de nenhum de nós (gr. ge ou makràn apò henòs hekástou hēmōn hypárchta). Sua proximidade não é apenas espacial, mas também emocional. É seu amor que nos envolve e nos faz sentir a segurança de sua presença. Como o apóstolo afirma em Colossenses 3.3, nossa vida “está escondida com Cristo em Deus”. Quem pode nos alcançar ali e nos causar dano? Além disso, ele está sempre presente, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (gr. en autōi gàr zōmen kaì kinoúmetha kaì esmén). Décimo tema: Deus é nosso Pai (v. 28b). Paulo cita aqui dois poetas de língua grega. O primeiro é o poeta cretense Epimênides (c. 600 aC) em sua Crética; o segundo é o poeta Arato de Solos, da Cilícia (c. 315-240 aC), em sua obra Fenômenos, também mencionado por Cleantes (331-233 a.C.) em seu Hino a Zeus. Essas não são as únicas referências paulinas a poetas gregos (v. 1Coríntios 15.32,33; Tito 1.12). Paulo havia estudado literatura e retórica gregas, provavelmente em Tarso, uma cidade onde a educação era de boa qualidade. A frase “somos descendência dele” (gr. toū gàr kaì génos esmén) fala da paternidade universal de Deus

como Criador, mas no caso dos cristãos se refere à sua paternidade espiritual em Cristo. Décimo primeiro tema: Deus é espírito (v. 29). Os gregos, tão pensadores e racionalistas, eram capazes de captar o absurdo de pensar que Deus, o Criador,poderia ser um objeto material como “ouro, prata ou pedra” (gr. chrysōi ē argýrōi ē líthōi). Quando se reconhece e se aceita que Deus é tudo que foi dito dele anteriormente, não é possível reduzir a divindade (gr. tò theīon) ao nível da matéria. É por isso que, de acordo com Paulo, a idolatria não serve para reconhecê-lo e adorá-lo (v. 29; Salmos 115.1-18; Isaías 40.18-20; 44.9-20; 46.1-7; Jeremias 10.6-11; Habacuque 2.18,19). A exortação do apóstolo aqui é que não tentemos nos conectar com Deus por meio de objetos materiais (Romanos 1.25), mas diretamente. Ele não é um mero aspecto ou reflexo da realidade criada; ele é o Criador de toda essa realidade. A tragédia da humanidade caída é que ela busca a verdade e a comunhão espirituais nas coisas feitas pelo ser humano, que não podem falar nem ajudar. Décimo segundo tema: Deus é perdoador (v. 30,31). Esse é um aspecto surpreendente da misericórdia de Deus (Romanos 3.20,25; 4.15; 5.13,20; 7.5,7,8; 1Coríntios 15.56). Ele não revolve o passado em busca de motivos para condenar a raça humana: “No passado Deus não levou em conta essa ignorância” (v. 30a; v. Romanos 3.25b; Atos 14.16,17). Ele quer que todos os seres humanos, em todos os lugares, “se arrependam” (gr. toīs anthrōpois pántas pantachoū metanoeīn). Isso mostra o universalismo de sua misericórdia e amor (João 3.16; 1Timóteo 2.4; 2Pedro 3.9). Não

significa que todos os seres humanos serão salvos (v. 32,33), mas que Deus deseja que todos sejam salvos em Cristo (v. 31), que morreu e ressuscitou por todos. Os resultados da pregação do evangelho (17.32-34)

Assim como eram diversos os componentes do auditório de Paulo, diferentes foram os resultados (v. 32-34). As doutrinas da ressurreição e do juízo final atingiram a raiz da vida egoísta de muitos atenienses e desafiaram sua falsa filosofia. Os que não creram. Salvo os epicuristas, os gregos criam na imortalidade da alma, mas não na do corpo. Para eles, a ressurreição era uma grande pedra de tropeço (v. 18; 1Coríntios 1.23). A maioria simpatizava com os sentimentos do deus Apolo, expressos por ocasião da fundação do Areópago por Atena, a deusa padroeira da cidade: “Uma vez que um homem morre e a terra bebe seu sangue, não há ressurreição possível”.13 Não é de admirar, portanto, que alguns dos ouvintes zombassem de Paulo diante daquele tremendo absurdo. No entanto, os zombadores puseram em evidência seu marasmo intelectual ao tentar responder de modo coerente aos argumentos contundentes de Paulo. A zombaria é geralmente a rota de fuga mais rápida quando a pessoa não tem conteúdo para enfrentar um debate sério. Os que hesitaram. Outros prestaram atenção no apóstolo, mas não estavam dispostos a segui-lo nas consequências morais e espirituais de seu discurso. Mostraram-se mais amáveis e respeitosos com o apóstolo, porém cometeram um grave erro com sua postergação. Titubearam em seu pensamento, e isso os fez

perder a oportunidade de serem iluminados pelo evangelho, porque nunca mais tiveram ocasião de ouvir Paulo (v. 33). O apóstolo não regressou a Atenas, até onde sabemos, e essas partes meio interessadas perderam a chance de serem salvas nesse momento. James S. Steward: “Eu costumava pensar nisso como uma fuga suave, o refúgio eterno do espírito procrastinador, mas agora já não estou tão seguro. Penso que eles estavam de fato tocados e comovidos pelo dramático kērygma.Eles queriam acreditar nessa mensagem da ressurreição: justiça vindicada, cativeiro feito cativo, a morte e os demônios derrotados. Porque aquele mundo pagão estava nas garras do temor. Nem a filosofia, nem a mitologia, tampouco a astrologia e o culto de mistérios foram capazes de deslocar a sombra escura do destino irrevogável. A raça estava escravizada a um destino decretado e fixado para sempre nas estrelas adversas, e o terror de um cosmos hostil mantinha o espírito humano em servidão. Assim, esses homens de Atenas resolveram ouvir o apóstolo em outra ocasião, porque esperavam ansiosamente que sua mensagem fosse verdadeira”.14

Os que creram. Havia um terceiro grupo de pessoas: os que “creram” e assumiram compromisso com a mensagem e com o mensageiro, porque “juntaram-se a ele” (gr. tines dè ándres pollēthéntesautōi epísteusan). Lucas cita os nomes, sem dúvida porque vieram a ser membros proeminentes da igreja nessa cidade. Dionísio, membro do Areópago, era um assíduo frequentador das discussões filosóficas na Colina de Marte. Pelo menos um intelectual se converteu! De acordo com Eusébio de Cesareia, ele veio a ser o primeiro bispo de Atenas.15 Dâmaris tinha de ser uma mulher da alta sociedade ou uma estrangeira para estar no Areópago. Na cultura e na sociedade gregas, as mulheres não tinham nenhum reconhecimento nem status social. Embora houvesse vários convertidos, o texto não diz que Paulo plantou uma igreja na cidade. Na verdade, parece que o apóstolo não ficou ali mais que três ou quatro semanas.

A práxis da pregação do evangelho (17.16-34)

A proclamação do evangelho do Reino em Atenas não foi fácil. Para um homem de boa formação intelectual grega, com raízes profundas no judaísmo palestino e em posição privilegiada como cidadão romano, ministrar em uma cidade de tanto prestígio não deve ter sido fácil. No entanto, de todos os candidatos possíveis para abrir o sulco da fé em Atenas, ele era o mais qualificado. Seis questões que se destacam nessa passagem. O pregador (v. 16a). O pregador em Atenas era Paulo, um homem que conhecia toda a sabedoria dos filósofos (v. 28), mas também um homem que se convertera radicalmente a Deus e havia recebido uma revelação especial de Jesus Cristo. Paulo era um homem a quem o Senhor ressuscitado incumbira de uma missão específica e que já havia sofrido muito para servir a Cristo. O apóstolo era um homem cuja alma ardia de paixão pelas almas, alguém que não conhecia o medo e estava preparado para enfrentar a sabedoria dos gregos, em nome de seu Senhor e Mestre. Afinal, era um homem que, como pregador, sempre tinha uma mensagem para comunicar e não tinha vergonha de pregá-la (Romanos 1.16). O pregador do evangelho deve ser uma pessoa como Paulo. Para um pregador desse calibre, não há audiência difícil ou desafio tão grande que não possa ser enfrentado. A preparação (v. 16b). Paulo era um grande observador e percebeu “que a cidade estava cheia de ídolos” (gr. kateídōlon oūsan tēn pólin). Enquanto outros só conseguiam enxergar a perícia das artes gregas nos ídolos dos atenienses, esse homem de Deus enxergou uma cidade entregue à idolatria. Por isso, “ficou

profundamente indignado” (gr. parōsýneto tò pneūma autoū; lit., “perturbou seu espírito”). O verbo paroxýnomai significa “zangar-se”, “irritar-se”, “estar muito contrariado”. A pessoa cujos olhos Deus abriu verá coisas invisíveis e terá a capacidade de discernir a realidade em termos espirituais. Por toda a parte, sobram evidências de idolatria, de devoções religiosas que não são de Deus, e que deveriam ser motivo suficiente para sentirmos “dor na alma”, se nossos olhos forem iluminados pelo Espírito Santo. O púlpito (v. 17,22a). Na verdade, Paulo pregou em três púlpitos durante seu ministério em Atenas: na sinagoga, na praça (ágora) e no Areópago. Esses locais públicos eram os que reuniam mais pessoas na cidade e constituíam seus auditórios mais importantes. Paulo sabia muito bem onde localizar seu público, para alcançar a todos com a mensagem. Foi muito ousado da parte dele pregar nesses lugares. Contudo, ele sabia que o Senhor estava com ele e que era digno dos lugares mais concorridos da grande cidade. Paulo achava isso o mínimo que poderia fazer por amor ao seu Senhor. Longe de procurar as sombras, os recantos anônimos e os contextos marginais, o pregador cristão deve ir aonde sua mensagem possa ressoar com mais força e como um eco se expandir por toda parte, a fim de chegar a todos. Não há lugar para falsa modéstia no púlpito cristão. O público (v. 22b). Cada lugar tinha um público ou auditório diferente. Nenhum pregador jamais se dirigiu a um público mais diversificado, crítico e cáustico. Os cidadãos de Atenas, religiosos ou não, eram pessoas que faziam da investigação e da crítica de novas ideias um verdadeiro esporte (v. 21). Como já foi dito, entre o

público que o ouvia estavam epicuristas, seguidores de Epicuro e de sua doutrina que exaltava o gozo dos prazeres deste mundo. Paulo tinha diante de si gente extremamente racionalista, cujo deus era o ventre, e sua maior aspiração era a satisfação dos sentidos. Também estavam ali os estoicos, seguidores de Zenão e de sua doutrina da fraternidade de todos os seres humanos. Paulo tinha ainda diante de si pessoas que exaltavam as virtudes, mas negavam a responsabilidade pessoal e o juízo futuro. Diante de todos eles, Paulo foi confrontado com a sabedoria de Sócrates e Platão, mas nele os gregos podiam ficar cara a cara com a sabedoria de Deus. O mundo, por sua sabedoria, não conhece a Deus. Paulo tinha conhecimento que eles não possuíam. O pregador de hoje deve ter plena convicção de que sua mensagem é a verdade e a única verdade, que pode levar o ser humano à salvação eterna. Ele deve anunciar essa verdade sem se desculpar por fazer isso e sem pedir permissão para fazê-lo. O discurso (v. 22b-31). As palavras de Paulo não foram sermões lidos nem discursos acadêmicos memorizados, e sim o testemunho vivo da fé que brotou de seu coração. O tema, em todos os casos, foi o “DEUS DESCONHECIDO”. Todos em Atenas (judeus, gregos e pagãos) adoravam esse Deus sem conhecê-lo pessoalmente. A única maneira de conhecê-lo assim era por meio de Cristo. Como bom pregador cristão, Paulo sempre encontrava uma forma de chegar a Cristo, porque seu propósito era glorificá-lo (Gálatas 6.14). Philip Brooks define a pregação como “a comunicação da Verdade por homem aos homens [...] a apresentação da verdade por meio da personalidade”, e Andrew Blackwood entende que “a pregação é a

verdade de Deus proclamada por uma personalidade escolhida a fim de satisfazer as necessidades humanas”.16 À luz de suas palavras, Paulo aplicou sua mensagem apontando duas atitudes. Primeira: algo que não devemos fazer — pensar que Deus é uma coisa ou objeto (v. 29). Segunda: algo que devemos fazer — arrepender-nos, porque Deus o ordena (v. 30) e porque há um juízo vindouro (v. 31; Romanos 2.16). O resultado (v. 32-34). Qual foi o resultado da pregação apostólica em Atenas? Alguns zombaram (v. 32a), outros duvidaram (v. 32b), mas alguns creram (v. 34). A mensagem que mais tarde faria Félix estremecer (24.1-25) provocou a zombaria no primeiro grupo. Na verdade, qualquer um pode fazer isso. Melhor foi a atitude dos que ouviram Paulo com atenção, mas ainda estavam em dúvida e adiaram a análise séria da mensagem apostólica e a aplicação dela em sua vida. No entanto, “alguns homens juntaram-se a ele e creram”. Em todo caso, o resultado da proclamação da mensagem em Atenas não foi tão abundante quanto em outras cidades (Filipos, 16.40; Tessalônica, 17.4; Bereia, 12.17). Em todo caso, ficou demonstrado mais uma vez que o evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (Romanos 1.16).

O MINISTÉRIO EM CORINTO (18.1-18a)

O contraste entre as experiências de Paulo em Atenas (17.16-34) e as de Corinto é notável. As duas cidades distavam cerca de 65 quilômetros uma da outra. Enquanto o trabalho de Paulo em Atenas não foi caracterizado pelo êxito evangelístico, em Corinto o apóstolo realizou a obra mais ampla e influente de toda a sua vida e ministério. A quantidade de tempo que passou nessa cidade mostra sua importância estratégica para ele. Corinto era a capital da província romana da Acaia, ou seja, da Grécia. Paulo saiu de Atenas, a capital intelectual, e foi para Corinto, a capital política e econômica. A cidade de Corinto estava situada sobre o istmo que une o continente com a península do Peloponeso. Era uma cidade antiga e famosa, com dois portos que uniam dois mares: o Egeu e o Adriático. Encontrava-se também na rota que ligava Roma com o Oriente. Contava com uma numerosa população cosmopolita. Era famosa pelos Jogos Ístmicos e notória por sua maldade. O verbo “corintianizar” significava “cometer todo tipo de excessos”. O servo cristão e seu perfil (18.1-18a)

Um lugar tão importante como Corinto era o desafio na justa medida de Paulo, que parece ter sido um grande admirador das grandes cidades. Com seu temperamento inquieto, ativo e dinâmico, deve ter se sentido mais em casa entre os febris coríntios que entre os atenienses, a quem só interessava dizer ou ouvir algo novo. Várias etapas da experiência de Paulo em Corinto são mostradas nessa passagem. Nesses versículos, encontramos uma síntese do estilo de vida de Paulo. Os textos dessa passagem apresentam um

quadro interessante da vida de Paulo e traçam seu perfil como peregrino, pragmático, pregador, persistente, produtivo e perseverante servo cristão. Esses textos também são um paradigma de como deve ser nosso discipulado cristão. Um Paulo peregrino (v. 1). A frase “Paulo saiu de Atenas e foi para Corinto” (gr. chōristheis ek tōn Athēnōn ēlthen eis Kórinthon) mostra um homem que não se acomodava em lugar nenhum e viajava o tempo todo. O que melhor conhecemos de Paulo são suas viagens. Sua vida consistiu em suas quatro viagens missionárias. A viagem de Atenas a Corinto era parte de sua segunda viagem missionária e foi uma das mais importantes. Quando chegou à cidade, ele se sentia frágil e temeroso (1Coríntios 2.3), mas seguiu adiante, certo de que Deus, que sabe onde quer que seus servos estejam, o conduzira até ali. Paulo deve ter avaliado essa viagem missionária mais de uma vez. Sabia muito bem que em alguns lugares não tinha conseguido pregar. Em Trôade, sentiu que Deus o enviava à Europa, mas nem mesmo na Macedônia obtivera um êxito marcante. Em vez disso, enfrentou oposição, embora não tanto quanto na Ásia Menor. Passou por Filipos, Tessalônica e Bereia, onde colheu frutos importantes, mas não foi muito bem em Atenas. Mesmo assim, essas coisas o motivaram a seguir adiante — até que chegou a Corinto, o grande centro urbano, onde não só iria pregar, como também residir por dezoito meses. Ali teve a oportunidade de escrever pelo menos duas epístolas importantes: 1 e 2Tessalonicenses. Um Paulo pragmático (v. 2,3). Paulo era um homem bem pragmático. Enquanto esperava Timóteo e Silas (v. 5), encontrou um

casal de judeus com quem fez amizade e que veio a desempenhar um papel muito importante em sua vida. Áquila era do Ponto (norte da Ásia Menor) e chegara da Itália havia pouco tempo com sua esposa, Priscila. Eles fugiam do edito do imperador Cláudio. O historiador Suetônio diz que a causa do edito foi o conflito contínuo entre os judeus “por instigação de um tal Cresto”, provavelmente se referindo ao atrito causado pela pregação que apresentava Jesus como o Cristo ou Messias, levada a Roma pelos que haviam se convertido no dia de Pentecoste (2.10; Romanos 1.8), ou pelo ministério do apóstolo Pedro, entre outros. Não se sabe se Áquila e Priscila já eram cristãos ao chegar a Corinto ou se o casal se converteu depois de conhecer Paulo. De qualquer forma, a partir daí se tornaram fiéis colaboradores e missionários com ele (v. 26; Romanos 16.3; 1Coríntios 16.19; 2Timóteo 4.19). Eles tinham o mesmo oficio, ou seja, fabricavam tendas, e isso os uniu ainda mais. Era costume entre os judeus, sem distinção de posição social ou econômica, ensinar aos filhos um ofício manual. Paulo sustentou-se muitas vezes com seu trabalho, a fim de não ser um fardo para os outros (20.34; 1Coríntios 4.12; 1Tessalonicenses 2.9; 2Tessalonicenses 3.8). Parece que a princípio, por causa da pressão econômica, Paulo passou várias semanas ocupado em seu ofício. Tarso, sua cidade natal, era famosa por sua indústria de tendas de pelo de cabra (no lat., cilicium, relacionado com a província da Cilícia). Ainda hoje, essas obras artesanais podem ser vistas nessa região da moderna Turquia. Um Paulo pregador (v. 4,5). O que mais se destaca no apóstolo é que ele era um grande pregador do evangelho. Em Corinto, encontrou moradia e trabalho, mas também um púlpito para a

proclamação de sua mensagem. “Todos os sábados ele debatia na sinagoga” (gr. dielégeto dè en tēi synagōgēi katà pān sábbaton, v. 4). Sua mensagem pode ser deduzida de 1Coríntios 1 e 2. Sua metodologia para a comunicação da mensagem era dupla. Por um lado, “debatia” (gr. dielégeto, de dialégomai, “discutir”, “conduzir uma discussão”, “dirigir a palavra”, “falar”, “arrazoar”), ou seja, arrazoava apelando para a mente e a consciência do povo, explicando as Escrituras e apresentando a verdade com clareza ao seu auditório pela proclamação de Cristo como o cumprimento das profecias. Por outro lado, “convencia” (gr. épeithén, de peíthō, “persuadir”, convencer”), ou seja, apelava com ousadia ao coração e à vontade dos ouvintes mostrando-lhes Cristo e convidando-os a aceitar a mensagem do evangelho. Os gregos que frequentavam a sinagoga eram gentios tementes a Deus, ou seja, pessoas interessadas no monoteísmo judaico. Um Paulo persistente (v. 6). Não havia nada nem ninguém que o fizesse desistir de sua missão. O conflito com os judeus recalcitrantes não era novo. Paulo estava acostumado com a oposição e os insultos deles. Seu gesto bem emotivo e as “maldições” não significam que o apóstolo desistira de dar prioridade aos judeus no anúncio do evangelho. Ele continuou fazendo isso até o final de seu ministério (Romanos 1.16), mas em Corinto, dadas as circunstâncias, chegou à conclusão de que deveria priorizar os gentios em sua pregação. A urgência da missão lhe impunha que não desperdiçasse seu tempo com os que não queriam ouvi-lo e que seguisse adiante levando as boas-novas aos que estavam mais dispostos a recebê-las.

Um Paulo produtivo (v. 7,8). O apóstolo sabia escolher o terreno onde lançar a semente. Por isso, com Silas e Timóteo, deixou a sinagoga e passou a pregar na casa de Tício Justo, um prosélito gentio. Converteu-se ali também o presidente da sinagoga, Crispo, com toda a sua família. Quando falamos de terra fértil para o evangelho, não nos referimos a lugares, mas a pessoas. De fato, o novo lugar de testemunho fazia parede-meia com a sinagoga! Parece mentira que um deslocamento tão curto tenha produzido resultados tão extraordinários: “Dos coríntios que o ouviam, muitos criam e eram batizados” (gr. polloì tōn Korinthíōn akoúontes epísteuon kaì ebaptízonto, v. 8). Um Paulo perseverante (v. 9,10). Na hora em que Paulo mais precisava, o Senhor se manifestou a ele (cf. 23.11; 27.23). A graça de Deus ajusta-se à necessidade humana. Por meio de uma visão, o Senhor lhe proporcionou novo ânimo (v. 9). No grego, “não tenha medo” é literalmente “deixe de temer” (gr. mē foboū). Paulo não devia esperar maiores conflitos, mas continuar falando com ousadia. O Senhor também lhe providenciou confiança (v. 10a) ao afirmar: “Estou com você” (gr. dióti egō eimi metà soū). Nada nem ninguém iria anular seu testemunho, porque os planos divinos não podem ser alterados ou impedidos pelo ser humano. Além disso, o Senhor lhe garantiu segurança (v. 10b) quando prometeu: “Ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo” (gr. oudeìs epithēsetaí soi toū kakōsaí se). Essa promessa era importante para Paulo, porque ele já sabia o que era padecer golpes e perigos de morte. Deus cuida da segurança de seus servos (Marcos 16.17,18; Atos 28.1-6). A passagem apresenta duas ordens de Deus e os dois motivos que as acompanham, introduzidos pela mesma preposição causal: “porque”.

Primeiramente, Deus diz: “Não tenha medo [...] pois estou com você” (v. 9,10a). Diz também: “Continue falando e não fique calado [...] porque tenho muita gente nesta cidade” (v. 9,10c). Finalmente, o Senhor lhe concedeu visão (v. 10c), ao mostrar que tinha “muita gente nesta cidade” (gr. dióti laós estí moi polỳs en tēi pólei taútēi). Deus está se referindo àqueles que haveriam de ser reunidos pela pregação do evangelho. Paulo não podia vê-los no momento, mas Deus o fez ver qual seria o resultado se o apóstolo não se calasse e continuasse pregando a Cristo. Um Paulo popular (v. 11). O apóstolo fez exatamente o que Deus lhe ordenou. Permaneceu em Corinto e continuou testificando do evangelho entre as pessoas (gr. en autoīs). Seu ministério alcançou popularidade não por ele ter agido com demagogia, mas porque se identificou com o povo e suas necessidades. Ele ficou em Corinto dezoito meses, ou seja, o tempo necessário para deixar plantada uma igreja nessa cidade. Como corolário de sua obediência, o Senhor abriu maravilhosas oportunidades ao seu servo. A pregação do evangelho espalhou-se por toda a província da Acaia (2Coríntios 1.1) até o porto de Corinto, em Cencreia (Romanos 16.1). Seu ensino difundiu-se de maneira notável, confirmando os irmãos e ajudando-os a crescer na fé. Seu ministério como escritor bíblico teve a oportunidade de ser inaugurado ali, com a redação de duas de suas primeiras epístolas: 1 e 2Tessalonicenses. Um Paulo perseguido (v. 12-18a). Mais uma vez, o apóstolo teve de suportar perseguição por parte das mesmas pessoas (“os judeus”), pelo mesmo método (“o levaram ao tribunal”, gr. ēgagon autòn epì tò bēma) e pela mesma razão (“está persuadindo o povo a

adorar a Deus de maneira contrária à lei”, gr. parà tòn nómon anapeíthei oūtos toùs anthrōpous sébesthai tòn theón). Como de costume, Paulo já estava pronto para se defender (v. 14), quando o procônsul Gálio interveio a favor do apóstolo. Gálio era espanhol, nascido em Córdoba e irmão do célebre filósofo estoico Sêneca. Seu nome original era Marcos Aneano Novato, mas, ao chegar a Roma, foi adotado como membro da família de Lúcio Júnio Gálio, de quem tomou o nome. Era uma personagem distinta nos círculos aristocráticos de Roma. Evidentemente, não tinha muita simpatia pelos judeus, e Paulo não tinha importância alguma para ele. Os judeus acusadores foram retirados do tribunal à força, sem dúvida porque se recusaram a sair depois que a sentença foi proclamada. Os lictores, munidos de varas, espancaram Sóstenes, o novo chefe da sinagoga após a saída de Crispo, que provavelmente era o líder e porta-voz do grupo. Contudo, como Gálio “não demonstrou nenhuma preocupação” (gr. oudèn toútōn tōi Gallíōni émelen) com o assunto, parece que os judeus aceitaram a derrota, e isso deu a Paulo a oportunidade de ainda ficar em Corinto “por algum tempo” (v. 18a). A obra demanda crentes peregrinos (v. 1), pragmáticos (v. 2,3), pregadores (v. 4,5), persistentes (v. 6), produtivos (v. 7,8), perseverantes (v. 9,10), populares (v. 11) e perseguidos (v. 12-18a). O servo cristão e seu Deus (18.5-11)

O serviço ao Senhor não é só uma questão de vontade, mas também de emoções. Na verdade, quando realmente nos dispomos a servir ao Senhor, todo o nosso ser acaba envolvido. Não podemos permanecer indiferentes ou apáticos às circunstâncias que

envolvem nosso testemunho de fé nem nos deixarmos afetar pelos resultados de nossos esforços. Essa reflexão pode nos ajudar a entender melhor os sentimentos de Paulo nesse momento de sua experiência missionária em Corinto. Como já foi dito, houve relativamente poucos convertidos em Atenas. Paulo já havia passado por tensões e perigos na Macedônia e então em Corinto. Logo depois de iniciar seu ministério ali, se viu envolvido em novos conflitos e teve de enfrentar a oposição e a blasfêmia de alguns judeus recalcitrantes. Tudo isso ocorreu no momento em que o apóstolo havia deixado de se ocupar com seu comércio de tendas e “se dedicou exclusivamente à pregação” (gr. syneícheto tōi lógōi, v. 5). No entanto, o que parecia uma derrota ou uma porta se fechando transformou-se em uma vitória notável para o evangelho, porque não apenas alguns líderes judeus se renderam ao Senhor, como também, “dos coríntios que o ouviam, muitos criam e eram batizados” (v. 8). Em todo caso, a mistura de sentimentos de fracasso, com a empolgação pelos bons resultados obtidos, deve ter provocado em Paulo um profundo conflito psicológico e emocional. Como costuma acontecer nesses casos, o apóstolo sentiu-se encorajado a continuar batalhando com bravura pelo evangelho, mas também se sentiu tentado a guardar um silêncio temeroso. É em momentos como este que o Senhor intervém para controlar as emoções de seus servos. Foi precisamente nesse ponto crucial da experiência de Paulo que descobrimos dois elementos que podem ser valiosos para nós toda vez que nos encontramos no ponto de tensão entre o fracasso e o sucesso.

A manifestação de Deus (v. 9,10). Justamente quando Paulo mais precisava, o Senhor apareceu a ele (cf. 23.11; 27.23). A graça de Deus ajusta-se às necessidades humanas, e Deus providencia quatro elementos em meio à crise. Deus nos dá ânimo (v. 9). “Não tenha medo” é uma das frases mais repetidas na Bíblia. Como embaixadores de Cristo, não devemos nos abater nas horas de desalento, nem tentar fugir. A maior vitória de Satanás é quando nos calamos. Como José Hernández observa em seu Martín Fierro: “O mate só serve se você estiver de boca aberta”. Com o cristão acontece o mesmo. Deus está conosco. Quando testificamos, não estamos sozinhos. O Senhor nos dá ânimo quando damos testemunho dele. Essa segurança não é irracional; não é uma falsa sensação de segurança. O Senhor nos incentiva a continuar testemunhando quando somos capazes de imaginar uma grande colheita como resultado de nosso esforço (João 4.35). Deus nos dá confiança (v. 10a). Ele diz: “Estou com você”. Deus garantiu a Paulo sua presença e proteção. Nada nem ninguém iria enfraquecer seu testemunho, porque os planos divinos não podem ser alterados nem impedidos pelo homem. Quando testificamos, não estamos sozinhos. O Senhor nos dá confiança quando damos testemunho dele. A certeza da presença divina foi suficiente para mantê-lo firme em sua missão em Corinto. Deus nos dá segurança (v. 10b). Ele diz: “Ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo”. Essa segurança não é irracional nem é uma falsa sensação de segurança. Quando testificamos, não estamos sozinhos. O Senhor nos dá segurança quando damos testemunho dele. Esta é a segurança de quem sabe que “ainda que um exército

se acampe contra mim, meu coração não temerá; ainda que se declare guerra contra mim, mesmo assim estarei confiante” (Salmos 27.3), porque “o anjo do SENHOR é sentinela ao redor daqueles que o temem, e os livra” (Salmos 34.7). Como Martinho Lutero afirmou no hino símbolo da Reforma: Se nos quisessem devorar Demônios não contados, Não nos podiam assustar, Nem somos derrotados. O grande acusador Dos servos do Senhor Já condenado está; Vencido cairá Por uma só palavra. Deus nos dá visões (v. 10c). Ele diz: “Tenho muita gente nesta cidade”. O Senhor nos incentiva a continuar testemunhando quando somos capazes de imaginar uma grande colheita como resultado de nosso esforço (João 4.35). Quando testificamos, não estamos sozinhos. O Senhor nos dá sua visão libertadora quando damos testemunho dele. O Senhor confirmou a Paulo o que o apóstolo não podia perceber. À semelhança do que ocorreu com Eliseu (2Reis 6.15-17), o Senhor permitiu que ele visse “muita gente” que ele tinha “nesta cidade” (v. 10c). O Senhor lhe prometeu isso em razão de sua onisciência (v. João 10.16). A resposta do servo de Deus (v. 11). Diante da generosidade e da certeza das promessas divinas, é impossível ao servo de Deus não

reagir com fé. Essa resposta é dupla. Trata-se de obediência. Paulo fez exatamente o que Deus lhe ordenou, ou seja, permaneceu em Corinto e continuou a dar testemunho do evangelho com ousadia. Ficou um bom período de tempo ali (pelo menos dezoito meses), ou seja, o tempo necessário para plantar uma igreja com boas raízes. Devemos ser obedientes à visão celestial se quisermos dar uma resposta de servo a Deus. Trata-se de oportunidade. Como corolário de sua obediência, o Senhor abriu maravilhosas oportunidades ao seu servo. É sempre assim. Quando obedecemos à visão celestial, o Senhor abre novas e maiores oportunidades para nós, apesar das dificuldades. A desobediência rouba nossas oportunidades, mas a obediência abre portas inimagináveis no ministério cristão.

O MINISTÉRIO NO RETORNO A ANTIOQUIA (18.18b-22)

Depois do episódio com Gálio, em que Paulo logrou determinada cota de tolerância, era difícil que o apóstolo não aproveitasse a oportunidade para ficar em Corinto um pouco mais de tempo, talvez alguns meses. Não obstante, ele finalmente saiu de Corinto, porque queria visitar a Síria e a Palestina. Com Áquila e Priscila, atravessou o mar Egeu partindo de Cencreia, que era o porto a oeste de Corinto. O grupo desembarcou em Éfeso, de onde Paulo seguiu viagem para Cesareia. Dali continuou até Jerusalém para finalmente chegar a Antioquia, onde quase dois anos antes havia começado sua segunda viagem missionária. Nessa passagem, Lucas descreve rapidamente uma viagem que deve ter levado várias semanas por mais de 1.700 quilômetros. O texto, porém, não fornece muitos detalhes, apenas menciona os lugares por onde Paulo passou. É como se Lucas se tivesse contagiado com a pressa do apóstolo para chegar a Jerusalém e encontrar-se outra vez com sua igreja em Antioquia. No caminho, aconteceram coisas maravilhosas, de que jamais teremos notícia. Não obstante, alguns elementos nesses versículos merecem consideração, particularmente com respeito à relação de Paulo com seus amigos e colaboradores e à estratégia de trabalho missionário que pôs em prática. As equipes missionárias (18.18b-22)

A passagem começa com Paulo se despedindo de Corinto (v. 18a). Não deve ter sido fácil para o apóstolo despedir-se dos irmãos depois de compartilhar com eles tantas experiências, como o

encontro com Áquila e Priscila, o trabalho compartilhado, a relação com Timóteo e Silas, a oposição dos judeus, a conversão de Justo, o temente a Deus, o empenho de Crispo, chefe da sinagoga, os muitos coríntios que creram, a querela envolvendo Gálio, e assim por diante. Foi difícil para Paulo despedir-se dos irmãos. Ele deve ter planejado sua partida de Corinto com muito cuidado. O texto diz que ele “permaneceu em Corinto por algum tempo”. Não é certo se esse “algum tempo” está ou não incluído no “ano e meio” que ele passou em Corinto (gr. ekáthisen dè eviautòn kaì mēnnas héx, v. 11). A partida de Paulo (v. 18b). Finalmente, o apóstolo saiu de Corinto e navegou para a Ásia Menor e para a Síria levando consigo Áquila e Priscila. Aparentemente, Silas e Timóteo ficaram. A missão destes na equipe missionária de Paulo parece ter sido a de discipuladores e organizadores. Paulo sempre deixou alguém a cargo da nova obra. Em Filipos, deixou Lucas (16.40; a palavra “partiram” não inclui Lucas). Em Tessalônica, deixou Timóteo (17.10). Em Bereia, deixou Timóteo e Silas (17.14). Em Atenas, aparentemente não deixou ninguém, talvez por não ter formado uma igreja ali ou porque os crentes eram poucos. O voto de Paulo (v. 18c). Evidentemente, Paulo pensava que era necessário fazer o voto nazireu (Números 6.1-21), talvez com o propósito de ganhar os judeus de Éfeso para mostrar que era um bom judeu; talvez para causar uma boa impressão em Jerusalém; talvez para expressar sua gratidão a Deus por tudo que o Senhor lhe fizera até aquele momento. Em todo caso, ainda que Paulo estivesse sempre pronto a confirmar a liberdade dos gentios, ele

mesmo muitas vezes se submeteu aos costumes cerimoniais e tradicionais dos judeus (20.6; 21.18-26; 1Coríntios 9.20), mas fazia isso com propósitos missiológicos. Por isso, em Cencreia ele rapou a cabeça depois de um mês de voto. Cencreia era o porto oriental de onde ele havia partido. A chegada de Paulo (v. 19,20). Nesse caso, ele desembarcou em Éfeso. A cidade de Éfeso era a capital da província romana da Ásia (2.9). Depois de Corinto, era a maior cidade na rota de Roma para o Ocidente. Era escala obrigatória no caminho para Cesareia. Os viajantes chegaram após dois ou três dias de viagem. Com que eles depararam? Com a maior cidade comercial da Ásia Menor. Era uma cidade grega livre com uma grande colônia judaica. Éfeso considerava-se guardiã do templo de Ártemis, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Áquila e Priscila acompanhavam o apóstolo, que decidiu deixá-los ali. Paulo fazia do trabalho em equipe seu método missiológico predileto. Ele lançava a semente do evangelho, e outros continuavam a obra. Os integrantes de sua equipe eram seus “cooperadores” (1Coríntios 3.5,6). Em Éfeso, vêse também a estratégia missionária de Paulo que consistia em se dirigir primeiramente aos judeus (Romanos 1.16). Por isso, começava seu labor evangelístico visitando a sinagoga local, que, por seu caráter didático, era o lugar ideal para apresentar o evangelho. No caso de Éfeso, a resposta dos judeus foi muito positiva, uma vez que a comunidade era numerosa e tolerante. Mesmo assim, a permanência do apóstolo em Éfeso foi curta. Não era seu propósito fazer trabalho missionário ali, apenas uma escala a caminho de Jerusalém. Contudo, não deixou passar a oportunidade de dar seu testemunho. Paulo considerava

estrategicamente Jerusalém.

importante

passar

as

festas

judaicas

em

A despedida de Paulo em Éfeso (v. 21). Com muita inteligência, o apóstolo causou expectativa na sinagoga de Éfeso: “Voltarei” (gr. pálin anakámpsō pròs hymās). De passagem, antecipou e planejou seu futuro ministério ali. Fez isso com humildade (“se for da vontade de Deus”, gr. toū theoū thélontos), que é a atitude cristã correta (Tiago 4.13-15). Assim, “partiu de Éfeso” (gr. anēchthē apò tēs Efésou), deixando Áquila e Priscila, talvez à frente de seu negócio, mas também como testemunhas do evangelho (v. 26). O casal de colaboradores ainda estava ali quando ele regressou, em sua terceira viagem missionária (1Coríntios 16.19). O final da viagem de Paulo (v. 22). O apóstolo finalmente chegou ao porto de Cesareia. Este era o ponto natural de chegada de acordo com os ventos em vez de Selêucia. Ele não se deteve em Cesareia, mas seguiu viagem de imediato. Estava ansioso para chegar a Jerusalém e ir “até a igreja para saudá-la” (gr. aspasámenos tēn ekklēsían). O texto diz que ele “subiu” (gr. anabàs) a Jerusalém, porque a cidade está situada 900 metros acima do nível do mar. O que ele fez em Jerusalém? Lucas não diz. Provavelmente, participou da festa para a qual queria chegar a tempo (talvez a Páscoa), cumpriu seu voto de nazireu (v. 18) queimando o cabelo no altar do templo e saudou a igreja da cidade e os apóstolos. Essa foi a quarta visita de Paulo a Jerusalém (9.26; 11.30; 15.2; 21.17). Lucas não fornece detalhes do que ocorreu nessa ocasião. De Jerusalém, Paulo desceu para Antioquia e assim terminou sua segunda viagem missionária. A igreja dessa cidade o

enviara como missionário, e agora o apóstolo queria prestar contas de seu trabalho. Ele ficou em Antioquia um tempo, embora não tenhamos informações do que fez ali. Sem dúvida, ele compartilhou com os irmãos a maneira maravilhosa pela qual a graça e o poder de Deus o acompanharam ao longo de seu percurso missionário e continuou com seu ministério profético e docente na igreja da cidade. A estratégia das equipes missionárias (18.18b-22)

Todas as despedidas são tristes, ainda mais quando se trata de nos distanciarmos de pessoas que conhecemos e amamos profundamente (v. 18). Durante todo o seu ministério itinerante, Paulo teve de passar por esses momentos de profunda emoção, nos quais precisou dizer “adeus” às pessoas com quem vivera intensas experiências. Na verdade, quanto mais gregários somos em nossos hábitos e no ministério, mais estamos expostos à dor da partida. Este era o estilo de Paulo, que fazia do trabalho em equipe a característica fundamental de seu ministério apostólico. Desde muito cedo em sua peregrinação missionária, ele entendeu que é sempre melhor viajar acompanhado e trabalhar com alguém do que sozinho e por conta própria. É sempre mais conveniente trabalhar em equipe, o que era típico do ministério apostólico de Paulo. Por isso, ao se despedir dos irmãos coríntios e de seus colegas Silas e Timóteo, imediatamente incorporou o casal Áquila e Priscila à sua equipe missionária. Contudo, a melhor maneira de servir como líder cristão não é servindo aos próprios interesses, e sim aos demais. O interesse maior de Paulo era chegar a Jerusalém o mais rápido possível. No

entanto, quando “chegaram a Éfeso” (gr. ketēntēsan dè eis Éfeson, v. 19), ele se demorou com os judeus de sua sinagoga, a fim de discutir com eles e lhes apresentar a mensagem, por causa do interesse deles. Como ele diria mais tarde: “Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros” (Filipenses 2.4). Isso liberta o líder cristão do individualismo e do isolamento excessivo, bem como da construção egocêntrica de um império pessoal. O trabalho em equipe é a melhor fórmula para acabar com o personalismo e as atitudes egoístas. O trabalho em equipe é mais saudável que o serviço individual. A integração das equipes ministeriais traz benefícios importantes para um cumprimento mais eficaz da missão. Isso porque, por um lado, os membros de uma equipe ministerial se complementam, cada um contribuindo com seus dons e habilidades. Também é verdade que os membros de uma equipe ministerial incentivam uns aos outros (Eclesiastes 4.9-12). Além disso, os membros de uma equipe ministerial prestam contas uns aos outros. Essa responsabilidade mútua ajuda na disciplina e no amadurecimento pessoal, além de aprimorar cada vez mais o serviço prestado. Não é de admirar que hoje os ministérios mais frutíferos e relevantes do mundo sejam encabeçados por líderes que sabem integrar as equipes ministeriais e trabalhar com outros ministros em uma dinâmica relacional efetiva. George Barna: “Esses líderes invariavelmente se cercam de um pequeno grupo de colegas intensamente leais, capazes e entusiasmados, que formam uma equipe de liderança muito coesa. Grande parte da atividade revolucionária é delegada e concebida pelos membros dessa equipe. Por meio de habilidade verbal, ressonância emocional e esforço estratégico, os líderes revolucionários desafiam abertamente o que contradiz sua doutrina e exortam os demais a fazer o mesmo. Seus objetivos são ousados, e seus

talentos e habilidades acalentam os anseios do povo por mudanças repentinas e de grande envergadura”.17

1. Commentary on the Book of Acts, p. 318. 2. Ibid., p. 319. 3. The Acts of the Apostles: An Historical Commentary, p. 120. 4. Blazing the Way, p. 99. 5. Simon J. KISTEMAKER, Exposition of the Acts of the Apostles, p. 626. 6. C. Peter WAGNER, Blazing the Way, p. 110. 7. V. PAUSÂNIAS, Descrição da Grécia, 1.1.4;

FILÓSTRATO,

8. Como 4.

Eutífon, 14c;

EURÍPIDES,

Héracles, 1345f;

PLATÃO,

Vida de Apolônio, 6.3.5. ARISTÓBULO,

fragmento

9. Church Dogmatics, v. 1/1, p. 158; v. 2/1, p. 280-281. 10. God, Revelation and Authority, v. 6, parte 2, p. 63. De acordo com a teologia do processo, tudo que acontece é produto do passado. Tudo é determinado pelo que herdamos do mundo, o que é possível em nosso contexto e o que fazemos com ele. O Deus da teologia do processo é uma sequência de experiências pessoalmente ordenadas, um conceito mental postulado de analogias formadas com base na experiência humana. Da mesma forma, o sobrenatural e o transcendente tornam-se simplesmente aspectos de toda a realidade, com que se põe em risco a transcendência de Deus. 11. Era o que Zenão ensinava, de acordo com Clemente de Alexandria, Stromata, 5.76. 12. God, Revelation and Authority, v. 6, parte 2, p. 119. 13. ÉSQUILO, Eumênides, 647-648. A palavra “ressurreição” aqui é a mesma do v. 32 (gr. anástasis). 14. A Faith to Proclaim, p. 117. 15. História eclesiástica, 3.4.6-7; 4.23.6. 16. Apud Justo ANDERSON, Manual de homilética para laicos, p. 11. 17. The Second Coming of the Church, p. 201.

CAPÍTULO 10

O TESTEMUNHO NA E U R O PA ( I I ) Atos 18.23—21.16

“D

epois de passar algum tempo” em Antioquia, na Síria, Paulo iniciou sua terceira viagem missionária (18.23—21.16) e “viajou por toda a região da Galácia e da Frígia, fortalecendo todos os discípulos” (v. 23). A leitura dessa longa seção deixa transparecer certo sentimento de angústia por parte do apóstolo. No texto grego, a sequência de particípios nos v. 22 e 23 causa essa impressão. Paulo estava com pressa de chegar a Éfeso, a fim de organizar o restante de sua jornada missionária, que dali o levaria de volta à Europa. Chama a atenção na terceira viagem missionária de Paulo sua longa estada na cidade de Éfeso. Essa cidade era a quarta em importância no império romano, com cerca de 200 mil habitantes. Era um centro comercial, cultural e religioso estratégico, uma vez que várias rotas cruzavam a cidade. Isso explica a rápida e ampla difusão do testemunho cristão a outras regiões (Colossos e as outras seis cidades mencionadas depois de Éfeso em Apocalipse 2 —3). A religião pagã da cidade era baseada na adoração à deusa Diana (chamada de Ártemis pelos gregos). Essa deusa era representada por uma estátua esculpida em um pedaço de

meteorito, símbolo de sua suposta fertilidade. A adoração a essa deusa estava associada à prostituição sagrada e era muito popular. Os devotos vinham de longe só para ver seu magnífico templo, considerado uma das maravilhas do mundo antigo.

APOLO EM ÉFESO (18.24-28)

Durante o espaço de tempo entre a partida de Paulo de Éfeso, após sua curta visita a caminho da Síria e da Palestina e seu regresso a essa importante cidade em sua terceira viagem missionária, chegou ali outro crente muito interessante. Tratava-se de um homem chamado Apolo, que pertencia a uma família judaica de Alexandria, no Egito. Não é dito se Apolo recebeu sua elaborada instrução “no caminho do Senhor” em sua terra natal, mas é bem provável. As origens do cristianismo alexandrino perdem-se na obscuridade, mas é certo que o evangelho chegou à capital egípcia em uma data bem antiga. Alguns dos peregrinos estrangeiros que participaram do Pentecoste, de acordo com 2.10, eram provenientes do Egito. É duvidoso, porém, que haja alguma conexão entre eles e Apolo, uma vez que sua compreensão do cristianismo era diferente da que foi pregada no dia de Pentecoste e que está registrada em Atos. Há pelo menos uma diferença substancial em um ponto: o único batismo que Apolo conhecia era o que fora instituído por João Batista, ou seja, um batismo de arrependimento (Lucas 3.3), enquanto o do dia de Pentecoste era um batismo de crentes (2.41). Além disso, o batismo do dia de Pentecoste foi celebrado em nome de Jesus (2.38), e aparentemente Apolo não tinha notícias de quem era Jesus. Seu conhecimento do cristianismo pode ter sido proveniente da Galileia ou de algum evangelho primitivo. Em todo caso, Apolo era um bom crente quando chegou a Éfeso e combinava um grande conhecimento bíblico com informações bastante detalhadas da vida de Jesus, tudo isso amalgamado com um grande entusiasmo espiritual. Esses elementos foram de grande

importância em seu desejo de demonstrar, pelas Escrituras do Antigo Testamento, que Jesus era o Messias prometido. Apolo: um bom mestre (18.24-28)

Vários aspectos da vida de Apolo podem ser deduzidos dessa passagem. Seus antecedentes (v. 24a). Era um homem de nacionalidade judaica. Em sua cidade, havia na época uma população de cerca de 1 milhão de judeus. Essa comunidade era tão forte que dois dos cinco bairros da cidade eram judeus. Em Alexandria, os judeus estavam muito helenizados, ou seja, influenciados pela cultura grega. Foi nessa cidade que, dois séculos e meio antes, fora produzida a versão grega do Antigo Testamento conhecida como Septuaginta (LXX). Apolo havia nascido em Alexandria, uma cidade de eruditos famosa por sua grande biblioteca. Também era notória por sua interpretação alegórica das Escrituras, ou seja, a forma de compreender a Bíblia segundo a qual cada acontecimento bíblico tem um significado oculto, interno ou espiritual. Apolo deve ter usado esse método para encontrar Cristo por todo o Antigo Testamento e provar aos judeus que o Messias havia chegado. Embora fosse judeu, seu nome era grego (uma abreviatura de Apolônio). O nome fazia referência a Apolo, o deus dos oráculos, da medicina, da poesia, das artes, dos rebanhos, do dia e do sol. Por causa do último, também era chamado Febo [“brilhante”]. Era filho de Zeus e de Latona e irmão gêmeo de Ártemis, por isso era símbolo da beleza masculina (daí provém o termo “apolíneo”).

Sua formação (v. 24b,25). Apolo era um homem “culto” (“eloquente”, nota da NVI), ou seja, tinha o talento de falar ou escrever para deleitar e persuadir. Sem dúvida, ele aprendeu as técnicas da eloquência em Alexandria. A eloquência é um importante instrumento no ministério de proclamação do evangelho. Além disso, era um homem que “tinha grande conhecimento das Escrituras” (gr. dynatòs ōn en taīs grafaīs; lit., “poderoso nas Escrituras”). O conhecimento que ele tinha da Bíblia era muito importante. O pregador não só deve conhecer o conteúdo da Palavra, como também deve saber interpretá-la (2Timóteo 2.15). A Palavra de Deus é um recurso básico na proclamação e na defesa do evangelho. Como observa Archibald T. Robertson: “Não há desculpa para a ignorância das Escrituras por parte dos pregadores, os supostos intérpretes da Palavra de Deus”.1 É lamentável constatar que na América Latina há um bom número de pastores que nem mesmo leram a Bíblia de capa a capa uma vez na vida. O analfabetismo bíblico entre os líderes evangélicos latino-americanos é escandaloso. Apolo era também um homem “instruído no caminho do Senhor” (gr. hoūtos ēn katēchēménos tēn hodòn toū kyríou). A expressão “caminho do Senhor”refere-se ao cristianismo. Um dos títulos mais comuns a respeito do cristianismo em Atos é precisamente “o Caminho” (9.2; 19.9,23; 22.4; 24.14,22). Trata-se de um caminho de vida. Apolo era, além disso, um homem “com grande fervor” (gr. zéon tōi pneúmati; lit., “com zelo de espírito”; v. Romanos 12.11) na pregação e no ensino. Alguns confundem fervor espiritual com superficialidade, mas não era o caso de Apolo. Ele era bem instruído, pois “falava e ensinava com exatidão acerca de Jesus” (gr.

elálei kaì edídasken akribόs tà perì toū Iēsoū). Era um intelectual fervoroso, apaixonado e rigoroso. Sua coragem (v. 26). Quando falava das verdades do Senhor, Apolo fazia-o “corajosamente” (gr. hoūtós te ērxato parrēsiázesthai). O entusiasmo e a convicção com que falamos demonstram nosso interesse e o valor daquilo de que falamos. Sua ousadia também se manifestava na maneira de ensinar as verdades acerca do Senhor. Sua diligência era a expressão de seu esmero em executar algo, nesse caso, seu ensino. Há mestres cristãos que ensinam como se estivessem sob tortura, por obrigação, ou como se não tivessem algo melhor para fazer. A qualidade de um mestre é vista na diligência com que se aplica à sua tarefa. Evidentemente, Apolo era um grande pregador e um mestre competente. Áquila e Priscila ficaram impressionados com sua pregação e com seu ensino na sinagoga. Ficaram admirados com a erudição e o entusiasmo dele na defesa do evangelho. No entanto, era uma lástima que um homem tão valioso não conhecesse o evangelho em sua plenitude, como eles haviam aprendido. Para Apolo, Jesus era uma personagem histórica, mas não o Senhor vivo. Uma vez que era sábio, ele estava disposto a continuar aprendendo. Áquila e Priscila levaram-no para a casa deles em Éfeso e o discipularam, ou seja, “lhe explicaram com mais exatidão o caminho de Deus” (gr. akribésteron autōi exéthento tēn hodòn [toū theoū]). Apolo conhecia Jesus como o Messias, mas não como Salvador e Senhor. Sabia do arrependimento, mas desconhecia o Espírito Santo regenerador. Sabia da tarefa que Jesus havia confiado a seus seguidores, mas ignorava o poder para levá-la a cabo.

Seu ministério (v. 27,28). Apolo era um homem polivalente e muito capaz. Seu ministério cristão era multifacetado. Ele se destacou como missionário (v. 27a). Depois de ser discipulado com o evangelho pleno, estava pronto para servir com muito mais eficácia. Agora, havia acrescentado poder ao seu conhecimento. Seu primeiro ato de serviço ao Senhor ressuscitado e vivo foi de caráter missionário. Ele quis pregar e ensinar na Acaia, provavelmente em Atenas. Paulo não havia deixado ninguém ali para atender os poucos convertidos do lugar. E quem melhor que Apolo para trabalhar naquela cidade? Não obstante, parece que acabou se estabelecendo em Corinto (19.1), onde se destacou como pastor (v. 27b,c). Ele foi para Corinto a fim de exercer esse ministério com o incentivo dos crentes de Éfeso e a recomendação de Áquila e Priscila. Nessa cidade, foi de grande bênção para aquela igreja. Ali exerceu grande influência (de acordo com Paulo, “Apolo regou” a obra 1Coríntios 3.6), tanto que se formou um partido com seu nome na congregação (1Coríntios 1.12; 3.4). Ele se destacou como apologista (v. 28a). Apologista é alguém que faz uma defesa racional do evangelho — nesse caso, diante dos judeus. A igreja necessita de apologistas, crentes como o grande intelectual e escritor britânico C. S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia e de várias outras obras importantes. Apolo destacou-se também como evangelista (v. 28b). Ele pregava publicamente que Jesus era o Messias. Sua eloquência agora estava sob a direção e o poder do Espírito Santo. Seu ministério deve ter sido muito frutífero. Paulo fala de Apolo em termos muito positivos e chama-o “apóstolo” (1Coríntios 4.9; 16.12).

Um bom mestre sabe aprender (18.24-28)

Devemos reconhecer a necessidade de estar sempre dispostos a aprender e a pôr nossos dons e habilidades a serviço da obra de Deus. Apolo era um homem bem instruído, talvez tanto ou mais que Paulo. No entanto, ele se mostrou disposto a aprender e a ser ensinado por pessoas humildes. Ele também sabia como aplicar seu conhecimento e sua experiência na obra do Senhor. Seu ministério foi de grande valor, precisamente porque o muito que possuía foi posto inteiramente a serviço da causa de Cristo. Ele se mostrou responsável tanto em receber quanto em repartir. Apolo: um homem bem instruído (v. 24-26). Os intelectuais também precisam ter a vida redirecionada por Cristo. O conhecimento não salva ninguém. É necessário que o que se sabe seja posto sob o senhorio de Cristo, para que faça sentido e seja útil e benéfico. De fato, a passagem destaca o que Apolo sabia, pois o descreve como “instruído no caminho do Senhor” e diz que ele conhecia “apenas o batismo de João” (gr. epistámenos mónon tò báptisma Iōánnou, v. 25). No entanto, o texto também informa o que Apolo não sabia, ou seja, ele não tinha muita clareza sobre “o caminho de Deus” (v. 26).Todos nós sabemos e desconhecemos coisas, e é sempre mais difícil reconhecer as últimas que as primeiras. Apolo: um mestre de grande proveito (v. 27,28). O dia 31 de outubro lembra a ocasião em que um grande mestre e estudioso, Martinho Lutero, apresentou suas 95 teses em Wittemberg (Alemanha), em 1517. Quando um homem é transformado e reorientado pela graça de Deus em Cristo, o Senhor usa os dons

dele para sua glória. Foi assim com Apolo. Ele foi um grande mestre para os discípulos (v. 27). Foi também um grande apologista diante dos incrédulos (v. 28). A igreja hoje precisa de homens e mulheres que, como ele, aprimorem o dom de ensino que o Senhor lhes deu e cumpram seu ministério, para melhor edificação do corpo de Cristo. “Se o seu dom [...] é ensinar, ensine” (Romanos 12.6,7). Apolo: um colaborador de Deus (1Coríntios 3.5-9). Não há título mais nobre do que o de servo nem honra maior que ser considerado um cooperador de Deus. A condição de servo consiste em ser instrumento do Senhor (1Coríntios 3.5), ou seja, instrumento de salvação e de bênção. A função do servo consiste em plantar e regar seu campo (1Coríntios 3.6,7). A recompensa do servo consiste em receber de acordo com o trabalho realizado (1Coríntios 3.8). O privilégio do servo consiste em ser um colaborador de Deus (1Coríntios 3.9). Apolo: um homem flexível. Causa impressão a abertura e a flexibilidade de Apolo, mas estas são características dos verdadeiros mestres, unidas ao encontro experimental com Cristo, à reorientação da vida e à sua vocação docente. O que somos e o que temos, se houver algo de valor nisso, pode ser usado pelo Senhor de forma extraordinária em sua causa. Precisamos estar dispostos a pôr todo o nosso ser a serviço do Senhor. Nossa vida nas mãos dele pode ser instrumento poderoso para a reorientação de outras vidas e para o crescimento delas nos caminhos do Senhor. E. M. Blaiklock: “É claro que, ansioso por continuar com a política religiosa de Augusto, a quem ele admirava profundamente, Cláudio estava bem

informado e genuinamente interessado na situação religiosa do mundo mediterrâneo. Esse interesse, na verdade, não deixa de ter relação com esse relato de Apolo. Uma longa carta do imperador sobreviveu, na qual ele busca administrar os graves problemas judaicos de Alexandria. Esse documento, descoberto entre papiros em 1920, aparentemente contém a primeira referência secular aos missionários cristãos. Foi escrito em 41 d.C. e proíbe expressamente os judeus alexandrinos de ‘trazer ou convidar outros judeus a virem por mar da Síria. Se eles não se abstiverem dessa conduta’, ameaça Cláudio, ‘vou atuar contra eles por fomentarem um mal comum no mundo’. Portanto, Apolo pode ter tido muito em comum com Áquila e Priscila, seus anfitriões em Éfeso. Ao que tudo indica, os três foram mal vistos pelas autoridades, por causa de seu testemunho cristão. Decretos de expulsão como o registrado no v. 2 raramente eram aplicados de forma plena ou consistente. Áquila e Priscila decidiram levar o imperador a sério e, depois de buscar um contexto de negócios semelhante ao que haviam encontrado em Roma, emigraram primeiramente para Corinto, onde o cristianismo desfrutava maior liberdade e tolerância (v. 12-17), e depois se mudaram com Paulo para Éfeso (v. 19). Talvez por terem as autoridades de Alexandria interpretado o decreto de Cláudio de 41 d.C. no espírito da decisão metropolitana de 49 d.C., Apolo viu-se sob pressão semelhante para emigrar. Esses versículos provavelmente oferecem a chave para 1Coríntios 3.4. Talvez Apolo não desse muito destaque à morte expiatória, que era a marca do evangelho de Paulo. Áquila e Priscila instruíram-no com mais cuidado, mas seu ponto de vista menos maduro pode ter persistido entre alguns dos membros da comunidade cristã, assim como ‘o batismo de João’ ainda se mantinha por todo o Egeu”.2

PAULO EM ÉFESO (19.1-22)

A cidade de Éfeso estava situada sobre a embocadura do rio Caístro, a 5 quilômetros do mar, entre Esmirna e Mileto. Era a cidade mais importante da Ásia Menor e compartilhava com Alexandria e Antioquia o domínio do Mediterrâneo oriental. O vale do Caístro era um dos quatro que conectavam o mar Egeu com o interior da Ásia Menor e proporcionava uma via de comunicação terrestre mais curta com a Síria através de Laodiceia. Éfeso havia sido conquistada por Alexandre Magno (334 a. C.) e em 133 a.C. passou ao domínio de Roma, chegando a ser o centro administrativo e religioso da província romana da Ásia. Todos os magistrados romanos designados para a Ásia Menor tinham de passar por ali. A cidade tinha uma importante colônia judaica, embora os judeus não fossem benquistos. Quando Paulo visitou a cidade pela segunda vez, durante sua terceira viagem missionária, Éfeso destacava-se por sua idolatria e por práticas supersticiosas de todo tipo, que se haviam transformado na coluna vertebral de seu comércio. Em todo caso, a cidade já havia perdido seu antigo esplendor e estava em decadência. Para Paulo, Éfeso era missiologicamente importante, não tanto por seu prestígio e prosperidade, mas por sua localização estratégica como cabeceira de importantes rotas para o Oriente e o Ocidente. Do ponto de vista espiritual, ganhar a cidade para Cristo significava abrir a porta para a conquista espiritual de toda a província da Ásia. O lugar (19.1-22)

A cidade de Éfeso como objetivo da pregação do evangelho cristão suscita duas considerações. Dois públicos diferentes (v. 1-10). A missão de Paulo em Éfeso foi expressa por meio de seu ministério de pregação a dois públicos diferentes (v. 1-10). Os discípulos de Apolo (v. 1-7). Por um lado, destaca-se a pregação de Paulo aos discípulos de Apolo (v. 1-7). O cap. 19 de Atos é uma continuação do capítulo 18, e devemos cuidar para não interromper a sequência dos acontecimentos narrados. Se analisarmos esse capítulo como a continuação do anterior, veremos claramente que os “discípulos” mencionados aqui eram do grupo de Apolo, que por sua vez fora seguidor da doutrina e prática de João Batista. Como E. M. Blaiklock observa: “Parece evidente que o pequeno grupo de Éfeso (no v. 7, Lucas dá destaque ao fato de que não eram mais que 12) era um remanescente do ministério menos maduro de Apolo na cidade (18.24,25)”.3 Dois fatos representaram um grande desafio para o apóstolo. 1) Era necessário que os que se tornaram discípulos de João por meio de Apolo passassem de meros seguidores de Cristo como Messias a cristãos comprometidos com ele como Senhor. Esses discípulos não demonstraram ser autenticamente cristãos até o momento em que se encontraram com Paulo. Não sabiam nem mesmo que havia Espírito Santo e conheciam muito pouco a respeito de Jesus. Evidentemente, não eram cristãos no sentido mais preciso do termo, apenas discípulos batizados com o batismo de arrependimento pregado por João e seguido por Apolo. Foi por isso que tiveram de ser batizados de novo (rebatismo), agora em nome de Jesus. Não se trata de uma dupla experiência, ou seja,

primeiro com Jesus e depois com o Espírito Santo, mas de fé única, de conversão, de vinda do Espírito Santo, de batismo em água e de recepção do dom de línguas e de profecia (8.17). A ordem das experiências cristãs no Novo Testamento é: arrependimento, fé, batismo, enchimento do Espírito e dons. 2) Era necessário que os que se tornaram discípulos de João por meio de Apolo passassem de pessoas batizadas em água como expressão de arrependimento a pessoas batizadas em Cristo como expressão de conversão. O batismo de João era um batismo de arrependimento, por isso a mensagem pregada a eles fora incompleta. Todos sabemos que sem arrependimento não há salvação, mas também parece claro que o arrependimento sozinho não basta. Deve estar acompanhado de uma fé sincera em Jesus Cristo como o único Senhor da vida. Depois que se converteram, os 12 discípulos de João foram batizados em nome de Jesus Cristo. Os discípulos da escola de Tirano (v. 8-10). Por outro lado, destaca-se a pregação de Paulo aos discípulos na escola de Tirano (v. 8-10). Observe-se a separação ou afastamento dos verdadeiros discípulos cristãos. Como era seu costume, Paulo iniciou seu trabalho na sinagoga. Durante três meses, pôde falar com liberdade e pregar a mesma mensagem que Jesus havia anunciado, ou seja, o Reino de Deus. Mais uma vez, porém, os judeus “se endureceram” e começaram a falar mal da fé e da maneira de ser e de viver dos cristãos (“o Caminho”). Paulo separou-se deles. O endurecimento e a inimizade dos judeus obrigaram o apóstolo a se retirar do meio deles e a se reunir à parte com os discípulos. Além disso, à semelhança do que havia ocorrido em Corinto, Paulo abandonou a sinagoga e, para poder continuar com sua pregação,

mudou-se para a escola de Tirano (gr. en tēi scholēi Tyránnou), de quem não temos outras informações. O termo “escola” pode ser traduzido por “salão”. De acordo com outros manuscritos que ampliam o texto, Paulo ensinava (gr. dialégomai, “discutir”) ali cinco horas todos os dias, das 11 da manhã às 4 da tarde. Isso significa que Paulo havia escolhido deliberadamente para a pregação e o ensino os horários em que, por causa do calor, havia uma pausa no trabalho e nos negócios. O resultado foi que toda a província romana da Ásia foi evangelizada. Tanto judeus quanto gentios ouviram a Palavra. Duas ações poderosas (v. 11-22). O testemunho de Paulo em Éfeso foi acompanhado de milagres e manifestações extraordinárias do poder de Deus (v. 11-22). Esses versículos começam afirmando que “Deus fazia milagres extraordinários por meio de Paulo” (gr. dynámeis te ou tàs tychoúsas ho theòs epoíei dià tōn cheirōn Paúlou). O agente desses milagres era Deus. Um fator importante na difusão do evangelho na Ásia foi o fato de que Deus fazia milagres extraordinários por meio de Paulo. O apóstolo era só um instrumento.O agente era o próprio Deus. A expressão grega dá a entender que o Senhor havia feito dos milagres uma experiência repetida todos os dias. O veículo desses milagres foram os “lenços e aventais que Paulo usava” (gr. soudária ē simikínthia). O povo, ao saber que o poder de Deus estava sendo derramado naquele local, levava objetos pessoais de Paulo: pedaços de pano que o apóstolo usava para secar o suor enquanto trabalhava e os aventais de trabalho que haviam estado em contato com seu corpo. Aparentemente, Paulo os colocava sobre os enfermos, e eles ficavam livres de suas enfermidades. Até os espíritos malignos

saíam dos que estavam possuídos por eles. A explicação para tais milagres é que, como é óbvio, não havia nenhum poder nos lenços e aventais de Paulo, tampouco no próprio Paulo. Lucas encarregase de ressaltar que era Deus quem fazia os milagres. Algo similar havia ocorrido com a sombra de Pedro (5.15). O poder para fazer milagres está em Deus. Se algum elemento humano é utilizado (imposição de mãos, unção com óleo, sinal da cruz ou mesmo a oração), não passa de instrumentos para evocar e animar a fé de quem recebe o milagre. Trata-se de uma manifestação do poder amoroso de Deus para redimir, não de um recurso humano de magia para chamar a atenção. Archibald T. Robertson: “Se alguém se surpreende ao ver que Deus pode honrar uma fé tão supersticiosa, vale lembrar que não há poder na superstição nem na magia, mas em Deus. Se Deus jamais honrou uma fé que não estivesse totalmente livre de superstições, que dizer dos cristãos que se preocupam com o número 13, com a lua ou com o pé de coelho? A pobre mulher com o fluxo de sangue tocou a bainha do manto de Cristo e foi curada ([Lucas] 8.44-46), como outras também tentaram (Mateus 14.36). Deus se mostra condescendente com nossa ignorância e fraqueza para poder nos alcançar. Eliseu tinha o conceito de que parte do poder de Elias residia em seu manto (2Reis 2.13). Alguns até buscaram ajuda na sombra de Pedro (5.15)”.4 Três questões e três ministérios (19.1-22)

Lucas informa que Paulo percorreu o interior da província da Ásia e chegou a Éfeso, enquanto Apolo estava em Corinto. Desse modo, cumpriu a promessa de retornar à cidade, se o Senhor assim o quisesse (18.21). Portanto, foi durante o ano em que Paulo esteve ausente de Éfeso que Apolo chegou, ministrou e partiu outra vez. Paulo, por sua vez, durante o tempo em que permaneceu em Éfeso viu-se envolvido num sério debate sobre três questões doutrinárias

e se engajou no exercício de três ministérios. As três questões discutidas ainda são válidas para hoje, e os três ministérios que Paulo exerceu em Éfeso ainda são necessários em nossos dias. Três questões (v. 1-7). As três questões que envolveram Paulo em um debate profundo não eram de pouca importância. As três doutrinas cristãs em discussão eram nada menos que a doutrina do recebimento do Espírito Santo, a doutrina do batismo e a doutrina da unção do Espírito Santo. É interessante que as três questões ainda são motivos de acalorados debates entre os evangélicos da América Latina. A questão do recebimento do Espírito (v. 1,2). Chegando a Éfeso, Paulo encontrou “alguns discípulos” (gr. tinas mathētàs). Eles não eram cristãos (discípulos de Jesus Cristo), e sim seguidores dos ensinos de João Batista, embora em um nível de formação inferior ao de Apolo. Atentemos para a pergunta de Paulo: “Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?”. Essa pergunta pressupõe que o Espírito Santo é recebido em sua plenitude quando a pessoa crê, ou seja, quando ela nasce de novo e é regenerada pelo Espírito. Quando falamos de “receber Cristo” para a salvação, estamos dizendo que a pessoa recebe o Espírito Santo e dessa maneira se torna um “crente”. Não é possível ser um crente em Cristo sem que se receba o Espírito Santo. É por isso que esses 12 discípulos de João “não eram cristãos de forma alguma”.5 Eles ainda não haviam crido em Cristo. Eram seguidores de João, mas não de Cristo. Seu comportamento e sua postura não davam mostras de que o Espírito Santo habitava plenamente neles, em seu ser interior. Não tinham em seu espírito o testemunho do Espírito de que eram filhos de Deus (Romanos 8.15,16).

A questão do batismo (v. 3,4). Os seguidores de João não eram cristãos não só por desconhecer em sua experiência pessoal a obra regeneradora do Espírito Santo, mas porque o batismo com o qual haviam sido batizados não era o batismo cristão, mas o batismo de arrependimento de João Batista. O batismo cristão pressupõe que a pessoa que está sendo batizada crê em Cristo. Esse batismo, em seu significado conforme o Novo Testamento (Romanos 6.2-4; Colossenses 2.12), é o testemunho dramatizado de alguém que morreu para uma vida sem Deus e sem esperança no mundo e nasceu para uma vida com Cristo, e isso graças aos atos redentores da morte, sepultamento e ressurreição do próprio Cristo, com os quais ele também espera que no dia em que morrer e for sepultado seja ressuscitado dentre os mortos pelo mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos. Portanto, depois que Paulo lhes explicou o evangelho pleno e eles “ouviram”, ou seja, voluntariamente o aceitaram como a boa-nova da salvação, “foram batizados no nome do Senhor Jesus” (gr. ebaptísthēsan eis tò ónoma toū kyríou, v. 5). O batismo cristão é o batismo de crentes. Isso significa que não nos batizamos para crer, mas que nos batizamos porque cremos em Cristo. A questão da unção do Espírito (v. 5-7). Uma coisa é ter o Espírito Santo habitando nosso espírito ou nosso ser interior (ser crente em Cristo), outra é que o Espírito Santo nos tenha por completo, ou seja, que controle de maneira soberana todo o nosso ser. No primeiro caso, tornamo-nos crentes em Cristo; no segundo caso, tornamo-nos servos cheios de poder. O primeiro caso se chama “morada do Espírito”; o segundo, “enchimento do Espírito” (Efésios 5.18). No primeiro caso, o Espírito Santo é “recebido” de fora; no

segundo caso, o Espírito flui de dentro. O recebimento do Espírito resulta na regeneração (salvação); o enchimento do Espírito resulta em capacitação (dons para servir). Os seguidores de João ouviram a mensagem, creram e foram batizados como testemunho de sua fé. Em seguida, quando Paulo impôs as mãos neles, foram cheios do Espírito que já habitava plenamente neles e imediatamente começaram a exercer dois dos vários dons do Espírito: línguas e profecia: “Começaram a falar em línguas e a profetizar” (gr. eláloun te glōssais kaì eprofēteuon, v. 6). Desse modo, a ordem das ações redentoras no Novo Testamento é esta: proclamação do evangelho, arrependimento, fé em Cristo, batismo em água e enchimento do Espírito Santo seguido da concessão de dons para o serviço cristão. Três ministérios (v. 8-12). Após a discussão das doutrinas fundamentais do evangelho, o tema seguinte é o dos ministérios que expressam a missão cristã. O cristianismo é práxis, ou seja, não se trata de mera teoria, mas de prática baseada em ideias robustas. Quais são os três ministérios mencionados nesses versículos que expressam a práxis cristã no cumprimento da missão? O ensino acerca do Reino de Deus (v. 8,9a). Observe-se que Paulo ministrou esse ensino por um período de três meses. Isso implica planejamento de conteúdo. Em seu ministério de ensino cristão, Paulo não improvisava nem se adaptava a qualquer agenda teológica circunstancial. O tema do Reino de Deus é fundamental. Além disso, é importante observar que o ambiente no qual o apóstolo ministrou sua série de ensinos sobre o Reino de Deus foi a sinagoga local. A sinagoga era mais um local dedicado ao ensino que um lugar de culto. Nos dias de hoje, as igrejas evangélicas latino-americanas se excedem no tempo de culto e apresentam um

vergonhoso déficit na área do ensino, principalmente no que diz respeito ao Reino de Deus. Essa é a raiz da maioria dos graves problemas que enfrentamos. Paulo dava muito valor ao ministério de ensino e ao tema sobre o qual discorria, pois ensinava “argumentando convincentemente” (gr. eparrēsiázeto [...] peíthōn). Não é de admirar que tal ousadia tenha deparado com resistência à fé e com a calúnia. A proclamação da palavra de Deus (v. 9b,10). O ministério docente de Paulo na sinagoga de Éfeso e a reação adversa que provocou levaram por fim o apóstolo a deixar o local e formar um grupo separado com aqueles que estavam de fato interessados em seu ensino. Isso permitiu a Paulo aprofundar e agilizar ainda mais seu ministério na cidade, uma vez que “diariamente” (gr. kath’ hēméran) ele proclamava “a palavra do Senhor” em um lugar como a escola de Tirano, muito mais público que a sinagoga, ou pelo menos um local onde podia alcançar muito mais pessoas com sua pregação. É interessante que com a radicalização de seu ministério (do ensino à proclamação) e com um maior período de tempo em seu exercício (dois anos), Paulo alcançou resultados ainda maiores: “Todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor” (gr. hōste pántas toùs katoikoūntas tēn Asían akoūsai tòn lógon toū kyríou, v. 10). Existe hoje uma grande e urgente necessidade de se proclamar a Palavra de Deus na América Latina, não tanto por não se pregar, mas pelo fato de que a “palavra do Senhor” não é pregada. A Bíblia é a grande ausente no púlpito evangélico latino-americano contemporâneo. Talvez por isso pessoas das mais diferentes situações étnicas, culturais, sociais, políticas e religiosas em todo o continente deixem

de receber o evangelho e de passar da morte para a vida, com a consequente mudança em nossas sociedades. A realização dos milagres de Deus (v. 11,12). Observe-se que não foi Paulo quem realizou os “milagres extraordinários”, e sim “Deus [...] por meio de Paulo”. Se o apóstolo ensinou acerca do Reino de Deus na sinagoga por três meses e proclamou a palavra do Senhor na escola de Tirano por dois anos, podemos dizer que ele realizou milagres extraordinários em nome do Senhor o tempo todo e em todos os lugares. Os resultados desse ministério sobrenatural e poderoso também foram extraordinários: os enfermos “eram curados de suas doenças, e os espíritos malignos saíam deles” (gr. apallássesthai ap’autōn tàs nósous, tá te pneúmata tà ponēra ekporeúesthai, v. 12). Durante décadas, o protestantismo liberal ensinou o Reino de Deus na América Latina por meio da fundação de escolas, hospitais e casas de amizade, na tentativa de convencer o povo imerso na cultura católica romana da bondade do evangelho, e o que conseguiu foi principalmente resistência, oposição e calúnias. O protestantismo evangélico proclamou com ousadia a Palavra de Deus durante muitos anos e conseguiu conduzir muitos à fé em Cristo, além de marcar fortemente com seu espírito a identidade da maioria dos protestantes latino-americanos. O protestantismo pentecostal tem se caracterizado por realizar, em nome do Senhor, milagres extraordinários e incorporar uma compreensão sobrenatural e carismática à fé e à experiência evangélica, e isso resultou em um crescimento e em um impacto sem precedentes em todo o continente. Paulo soube cumprir seu ministério em Éfeso porque deu a devida atenção a cada uma dessas abordagens, no momento oportuno, e assim sempre obteve

os melhores resultados. Talvez devêssemos aprender isso na América Latina, para que nosso testemunho seja tão eficaz quanto deveria ser.

PAULO EM ÉFESO II (19.23-41)

Lucas conclui seu relato da estada de Paulo em Éfeso com uma narração detalhada dos distúrbios que ocorreram em razão do êxito de seu ministério na cidade. O apóstolo conquistou muitos seguidores e com isso se revelou uma séria ameaça ao comércio religioso organizado em torno da devoção a Ártemis e seu templo espetacular. Observe-se que o impacto da proclamação apostólica ultrapassou os limites da cidade e alcançou toda a província da Ásia, e isso apesar de o apóstolo não ter participado diretamente do processo, muito menos do tumulto que se formou na cidade. Lucas não nos dá muitas referências aos sofrimentos de Paulo, que foram muitos, mas se detém em apontar a reação judaica e do establishment romano e religioso diante da proclamação do Reino de Deus. O choque de poder em Éfeso foi provavelmente o mais dramático de todo o ministério de Paulo e, sem dúvida, exigiu muita cautela e sabedoria por parte do apóstolo. A intolerância, o fanatismo cego e os interesses materiais envolvidos não fizeram outra coisa senão agravar uma situação que, não fosse a intervenção divina, poderia ter acabado em uma tragédia de maior extensão. Ernesto Trenchard: “No entanto, o objetivo de Lucas é plenamente alcançado por meio do vívido retrato que ele nos apresenta do surgimento de preconceitos rançosos, superstições ridículas e fanatismos violentos, quando as molas que movem as massas são pressionadas pelas mãos hábeis de homens que tiveram seus interesses prejudicados pela pregação do evangelho. Quantas vezes essa cena foi reproduzida em seus traços essenciais durante a proclamação mundial da Palavra!”.6 Os contrastes (19.23-41)

Paulo permaneceu em Éfeso, na província romana da Ásia, mais de dois  anos, ou seja, mais que em qualquer outra cidade que tivesse visitado. Ali escreveu sua primeira carta aos coríntios, na qual explica por que ficou tanto tempo nessa cidade (1Coríntios 16.9). Se estivéssemos no lugar de Paulo, talvez tivéssemos dito: “Porque há muitos adversários”, como se a presença de uma forte oposição diminuísse a possibilidade de um testemunho eficaz. Paulo não era assim. Ele estava decidido a aproveitar todas as oportunidades para dar seu testemunho, e, em sua avaliação, Éfeso era um bom lugar para fazê-lo. É  importante observar os vários conflitos que Lucas menciona nessa passagem. Contrastes religiosos (v. 23,24a). O texto fala de um caminho (v. 23). “O Caminho” foi a designação mais antiga do cristianismo. É um conceito que provém do Antigo Testamento (Salmos 1.1,6; 5.8; 25.4,8,9,12; 27.11; 37.5,7,23,34) e se refere a um estilo de vida fundamentado na fé (9.2; 18.25,26; 19.9,23; 22.4; 24.14,22). Em contraste, o texto fala de muitas representações do templo de Ártemis (v. 24a). Essas miniaturas, fabricadas por Demétrio, eram imagens pequenas do edifício ou do meteorito, que se assemelhava a uma mulher com muitos seios. A arqueologia já encontrou muitas imagens de prata dessa deusa, mas nenhuma do templo, que era uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Tratava-se de um templo monumental, porque era sete vezes maior que o Partenon, em Atenas.7 A Ártemis de Éfeso não deve ser confundida com a deusa Diana do panteão romano. A deusa efésia estava mais relacionada com Cibele, a deusa-mãe, e sua veneração tinha muito em comum com os cultos de fertilidade típicos de Canaã.8 É interessante que a devoção dos efésios ao templo de Ártemis não

era muito diferente do embevecimento de alguns judeus pelo templo de Jerusalém (Marcos 13.2,14-23; 14.58). Contrastes de interesses (v. 24b,25). O texto fala de um interesse econômico: o dos artífices (v. 24b,25). O culto de Ártemis “dava muito lucro aos artífices” (gr. pareícheto toīs technítais ouk olígēn ergasían), ou seja, a perseguição que se seguiu tinha motivação puramente econômica (v. 25-27). O grêmio dos “trabalhadores desse setor” (gr. tà toiaūta ergátas) era muito popular e poderoso. O culto de Ártemis estava muito difundido (v. 27). Há numerosos textos na literatura grega do século I que mencionam a Ártemis dos efésios. Aparentemente, 39 cidades do mundo mediterrâneo participavam dos cultos de fertilidade dessa deusa-mãe. Em contraste, o texto fala de um interesse pelo povo: o de Paulo (v. 26,27). O texto informa o êxito do ministério do apóstolo com “grande número de pessoas”, não só na cidade, mas também “em quase toda a província da Ásia” (gr. schedòn pásēs tēs Asías). Também registra o fato de que, quanto mais Paulo se concentrava no povo, tanto mais este perdia o interesse pela vaidade da idolatria (Deuteronômio 4.28; Salmos 115.4-8; 135.15-18; Isaías 44.9-17; Jeremias 10.3-11). Contrastes de atitudes (v. 28-31). O texto mostra a atitude dos artífices: fúria e desordem (v. 28). O caminho escolhido para fazer valer seus direitos e defender seus interesses foi a violência física e verbal. Verbalmente, expressaram sua devoção popular à deusa gritando provavelmente um refrão do templo: “Grande é a Ártemis dos efésios!” (gr. Megálē hē Ártemis Efesíōn). Fisicamente, queriam linchar Gaio (que era de Derbe, 20.4; 1Coríntios 1.14; 3João 1) e

Aristarco (que era de Tessalônica, 20.4; 27.2; Colossenses 4.10,11; Filipenses 2.4) no enorme teatro romano da cidade, cujas ruínas ainda se conservam. Em contraste, o texto apresenta a atitude de Paulo: coragem e responsabilidade (v. 30).“Paulo queria apresentarse à multidão” (gr. Paúlou dè bouloménou eiseltheīn eis tòn dēmon) sem temor das ameaças e disposto a explicar sua posição. Paulo era um homem decidido e queria ir ao teatro. Não era o tipo de homem que abandonaria seus companheiros em pleno campo de batalha. “Mas os discípulos não o permitiram” (gr. ouk eíōn autòn hoi mathētaí), e ele respeitou a decisão deles, entre os quais havia algumas autoridades provinciais (v. 31). Isso mostra que os conflitos de Paulo não eram com as autoridades romanas, mas com os judeus e com alguns interesses particulares. Contrastes de procedimentos (v. 32-41). É notável as maneiras diametralmente opostas pelas quais se conduziram os procedimentos legais nesse conflito. Sem dúvida, os protocolos eram diferentes ou aplicados de acordo com o gosto de cada um dos envolvidos. O procedimento da assembleia (v. 32-34). O texto mostra o procedimento da assembleia: confusão e desordem (v. 32-34). A palavra “assembleia”, no v. 32, é ekklesia, mas aqui se refere a uma reunião deliberativa de cidadãos (v. 32,39,41). A igreja primitiva adotou esse termo em razão de seu uso na LXX como referência à “assembleia de Israel”. A confusão era tão grande que “a maior parte do povo nem sabia por que estava ali” (gr. hoi pleíous ouk ēideisan tínos héneka synelēlýtheisan) — e era o voto da maioria que decidia qualquer questão! A desordem era tão grande que os judeus de Éfeso aproveitaram a situação para acrescentar sua cota

de agressões contra Paulo e se desvincular da oposição aos missionários cristãos, embora o tiro tenha saído pela culatra. Não é certo que o Alexandre do v. 33 seja o mesmo que Paulo menciona em 2Timóteo 4.14, embora 1Timóteo 1.20 ponha isso em dúvida. Agora a confusão e a desordem não só se deviam ao ministério cristão de Paulo, como também ao preconceito antissemita. O grito que expressava tudo isso era um só: “Grande é a Ártemis dos efésios!”. O procedimento do escrivão da cidade (v. 35-41). Éfeso era uma cidade livre e elegia ela mesma seus governantes. O magistrado principal da cidade era o escrivão municipal, embora ali residisse também o procônsul romano da província da Ásia. Esse oficial não era um mero funcionário público inserido em determinada hierarquia: era o cidadão mais influente na vida política de Éfeso, uma vez que era ele quem redigia os decretos, com a ajuda do strategoì. Estavam ao seu encargo também as finanças da cidade. Além disso, tinha poder para controlar a assembleia e estava em contato direto com o procônsul e com as forças militares romanas. Em contraste com a atitude da assembleia, o texto mostra o procedimento do escrivão da cidade: calma e sensatez (v. 35-41). O homem tentou acalmar a multidão furiosa destacando, em primeiro lugar, sua condição de cidadãos. Em segundo lugar, lembrou o título honorífico da cidade: “guardiã do templo” (gr. neōkóron). Em terceiro lugar, repetiu o credo popular oficial quanto à grandeza de Ártemis e de “sua imagem que caiu do céu” (o famoso meteorito em forma de mulher com múltiplos seios). O escrivão tentou incutir sensatez em meio ao caos, ressaltando, em primeiro lugar, que o tumulto carecia de um fundamento válido (v. 37) e que, em consequência disso,

havia o risco de uma intervenção repressiva por parte dos romanos (v. 40). Em segundo lugar, ele sugeriu as vias legais estabelecidas para dirimir os conflitos de interesses, que eram os “os tribunais” e os “procônsules” (gr. agoraī oi ágontai kaì anthýpatoí eisin v. 38). Éfeso era parte de uma província senatorial romana e contava com um procônsul, cuja responsabilidade era atender a determinados tipos de “queixa”, como a de Demétrio e seus companheiros de oficio. As personagens (19.23-41)

Como ser testemunha apesar de tudo? Como ser fiel em tempos de oposição? Esses versículos lançam luz sobre as motivações e a mentalidade de quase todas as personagens envolvidas no conflito. De modo especial, indicam que podemos ser testemunhas do evangelho apesar de tudo, ou seja, não há pessoas ou circunstâncias poderosas o bastante para calar nossa voz, se estivermos de fato comprometidos com a proclamação do evangelho do Reino. Demétrio e os ourives (v. 24-28). Paulo era uma ameaça aos interesses econômicos deles. O motivo de sua oposição era que eles queriam defender sua associação e seus negócios (v. 25,26). A desculpa para sua oposição é que eles afirmavam defender a adoração e a devoção populares (v. 27,28). Na verdade, a ocupação desses homens e seu principal interesse eram os negócios, que consistiam em nada mais que confeccionar lembrancinhas religiosas para os peregrinos e providenciar oferendas para o culto. Paulo criou um verdadeiro movimento de resistência contra esses interesses espúrios. Até que ponto constituímos um grupo de

pressão contra os que oprimem o povo em prol de interesses egoístas, mesmo quando elementos religiosos são utilizados? O escrivão (v. 34-41). Sua função era manter os registros públicos, apresentar os tópicos de discussão nas assembleias populares e guardar a correspondência. Sua preocupação era que não houvesse um motim, pois o escândalo poderia levar à intervenção das forças romanas de ocupação e resultar em sua demissão como funcionário público (v. 40). Seu objetivo era defender os próprios interesses dentro da estrutura da lei (v. 38,39). Ele agiu como bom político, ou seja, falou muito e não resolveu nada. O povo (v. 29-34). Vários são os elementos que caracterizavam o povo: confusão (v. 29a,32a); descontrole, porque queriam linchar Gaio e Aristarco (v. 29b); ignorância (v. 32b); injustiça (v. 33); preconceito (v. 34a); histeria religiosa (v. 34b). Como em geral acontece, as massas são constituídas de uma mescla de diferentes tendências, valores e atitudes que podem ser facilmente manipulados nas mais diversas direções. Não há vocábulo mais manuseado e usado como curinga na linguagem ideológica de qualquer época que a palavra “povo”. Em nome do “povo”, já se cometeram as maiores atrocidades da história humana. Uma definição simples de povo é um agrupamento sociológico significativamente grande de indivíduos, no qual eles se percebem como tendo alguma afinidade uns com os outros, como língua, religião, etnia, residência, ocupação, classe ou casta, situação ou uma combinação desses elementos (Gênesis 11.6; 19.4; 23.7). No entanto, seu significado foi corrompido a fim de ser posto a serviço de qualquer causa imaginável. Assim era o povo de Éfeso, uma

massa torpe e confusa, capaz de cometer as mais terríveis injustiças. O apóstolo Paulo. O que mais se destaca nele é sua atitude de testemunha fiel, apesar das circunstâncias, e nesse aspecto quatro elementos sobressaem. Em primeiro lugar, observe-se sua mensagem. O motivo do tumulto não foi a pessoa de Paulo, mas a mensagem que ele pregava (v. 23). Em segundo lugar, observe-se seu êxito. Houve grande confusão (v. 26a) e grande persuasão (v. 26b). Em terceiro lugar, observe-se sua coragem. Paulo queria enfrentar a multidão, mas seus discípulos não permitiram (v. 30). Paulo não se importava com a própria segurança, porque não tinha medo. Em quarto lugar, observem-se seus amigos. Gaio e Aristarco eram macedônios e parceiros de ministério do apóstolo (v. 29). Havia também os discípulos, que eram efésios e seguidores do Caminho (v. 30). Somavam-se a eles as autoridades asiáticas, que eram romanos e evidentemente amigos de Paulo (v. 31). Vivemos tempos de alvoroços e inquietações constantes. Como lidar com isso? Há interesses econômicos e sindicais, interesses políticos e religiosos, interesses setoriais e populares. Devemos enfrentar essa confusão de interesses como Paulo fez. Não deixemos de pregar o Caminho, sabendo que obteremos êxito mesmo em meio às dificuldades. Tenhamos coragem. Não estamos sozinhos. Com o poder do Espírito Santo, podemos ser testemunhas, apesar das circunstâncias. TABELA 17: Distúrbios relacionados com a proclamação do evangelho Os distúrbios são quase inevitáveis quando o evangelho é proclamado no poder do Espírito Santo. Assim como nos dias de Paulo (Atos 19.23), em

algumas partes do mundo grandes alvoroços também estão ocorrendo por causa do Caminho. 1. O alvoroço que fez Pilatos lavar as mãos diante do povo (Mateus 27.24). 2. O alvoroço causado pelas pessoas que choravam na casa de Jairo (Marcos 5.38,39). 3. O alvoroço causado pelos principais sacerdotes, pelas autoridades e pelo povo diante de Pilatos (Lucas 23.13-23). 4. O alvoroço causado quando Pedro fugiu da prisão no meio dos soldados (Atos 12.18). 5. O alvoroço que Paulo e Silas causaram em Filipos (Atos 16.20). 6. O alvoroço causado pelos judeus em Tessalônica (Atos 17.5,8). 7. O alvoroço causado pelos judeus em Bereia (Atos 17.13). 8. O alvoroço que Paulo causou em Éfeso (Atos 19.23; 20.1). 9. O alvoroço causado pelos judeus quando viram Paulo no templo, em Jerusalém (Atos 21.27). 10 . O alvoroço causado pelos judeus no templo em Jerusalém (Atos 21.3032).

PAULO NA MACEDÔNIA E NA GRÉCIA (20.1-6)

Esse é um relato muito breve e, portanto, bastante confuso do ministério de Paulo na Macedônia e na Grécia durante sua terceira viagem missionária. A melhor maneira de entender seu ministério nessa região é completar a informação com suas cartas, especialmente 1 e 2Coríntios. Lucas tenta detalhar os movimentos de Paulo utilizando seus marcadores de tempo e nomes de lugares, mas a brevidade causa confusão. A peregrinação de Paulo (20.1-6)

A saída. Paulo não deixou Éfeso por causa do tumulto ocorrido nessa cidade, e sim porque seu trabalho evangelístico fora cumprido ali, como parece sugerir a própria declaração de Demétrio (19.26). A única coisa que interessava ao apóstolo era a evangelização e o discipulado (v. 2; Mateus 28.18-20). Por isso, “mandou chamar os discípulos” (gr. metapempsámenos ho Paūlos toùs mathētas). Embora o evangelho seja recebido de maneira individual, ele envolve um compromisso social na comunidade de fé solidária (1Coríntios 12.7).Paulo não animou os cristãos nem se despediu deles um por um, e sim da igreja local de Éfeso, a igreja da cidade como um todo. Depois disso, “partiu para a Macedônia” (gr. eis Makedonían, v. 1). O percurso. Paulo “viajou por aquela região” (gr. dielthōn dè tà mérē ekeīna: Ilírico, Romanos 15.19; ou as cidades macedônias de Filipos, Tessalônica e Bereia) e, por fim, chegou à Grécia (Hellas), à província romana da Acaia (19.21; principalmente a cidade de

Corinto). Paulo havia cumprido um longo ministério ali, durante o qual escreveu a carta aos Romanos. Estava preocupado com a igreja em Corinto (1Coríntios 16.5-9; 2Coríntios 2.12,13), por isso ficou três meses na Grécia (v. 3). Por causa das ameaças dos judeus, viu-se forçado a mudar seu plano de viagem (que era ir para a Síria) e “decidiu voltar pela Macedônia” (gr. egéneto gnōmēs toū hypostréfein dià Makedonías). Preferiu fazer a viagem por terra em vez de usar a via marítima para chegar a Jerusalém. Paulo não estava sozinho. Acompanhava-o um seleto grupo de colaboradores de várias igrejas por ele fundadas, em razão da oferta que o apóstolo levava para a igreja de Jerusalém (1Coríntios 16.1-3; 2Coríntios 8.9). Três eram da Macedônia, dois da Galácia e dois da Ásia: Sópatro, que talvez seja o mesmo Sosípatro de Romanos 16.21; Aristarco (19.29; 27.2; Colossenses 4.10); Secundo (nome latino), que não é mencionado em nenhuma outra parte do Novo Testamento; Gaio (19.29); Timóteo (de Listra, embora certamente representasse diversas outras igrejas, 1Coríntios 16.10,11; Filipenses 2.19-23); Tíquico, que ajudava continuamente a Paulo, especialmente com relação às igrejas da Ásia (Efésios 6.21,22; Colossenses 4.7-9; 2Timóteo 4.12; Tito 3.12); Trófimo, provavelmente gentio (21.29; 2Timóteo 4.20). A esse grupo deve-se acrescentar Lucas (que se juntou a eles em Trôade, v. 5) e talvez seu irmão na fé Tito (2Coríntios 8.6,16). Paulo e Lucas zarparam de Filipos “após a festa dos pães sem fermento” (gr. metà tàs hēméras tōn azýmōn; v. Êxodo 13). A criação judaica de Paulo influenciava a maneira em que ele administrava seu calendário. Ele queria estar em Jerusalém para o dia de Pentecoste (v. 16).

A peregrinação de Paulo e a de Jesus (20.1-6)

Há muitos anos, Charles M. Sheldon escreveu o livro Em seus passos, que faria Jesus?, que logo se tornou popular nos círculos evangélicos da América Latina. De acordo com esse autor, seria de grande ajuda para o crente, ao enfrentar os vários dilemas que a vida lhe apresenta, perguntar-se o que Jesus faria em seu lugar, qual decisão tomaria ou que linha de conduta adotaria. Para fazer isso e resolver mais facilmente algumas das situações complexas que inevitavelmente afligem o cristão, é preciso que o seguidor de Cristo siga de maneira meticulosa os passos do Senhor. Essa peregrinação pela vida, à semelhança de Cristo, é a melhor garantia para não perder o rumo ou errar na direção do caminho. De alguma forma, nos parágrafos iniciais dessa passagem (20.1-6), Lucas traça um paralelo entre as duas peregrinações. Uma comparação. Por um lado, temos a peregrinação de Jesus a Jerusalém, tema em destaque no primeiro volume de sua obra, o evangelho que leva seu nome. Por outro lado, temos a viagem de Paulo a Jerusalém, o assunto de toda a seção em estudo (20.1— 21.16) no segundo volume de sua obra, o livro de Atos. Obviamente, não devemos esperar semelhanças em todos os detalhes nas duas peregrinações, uma vez que a missão de Jesus foi única, e sua ida a Jerusalém atendia a um desígnio muito diferente do propósito de Paulo. No  entanto, não deixa de causar admiração a semelhança entre as duas viagens, de modo que não pode ser considerada apenas mera coincidência. Além disso, alguns detalhes na comparação entre as duas peregrinações deixam lições

interessantes, que podemos aplicar à nossa peregrinação, enquanto percorremos o curso de nossa vida com Jesus. Vários detalhes: Primeiro: à semelhança de Jesus (Lucas 10.38), Paulo viajou para Jerusalém com um grupo de discípulos ou seguidores (20.4,5). Segundo: à semelhança de Jesus (Lucas 6.7,11; 11.53,54; 22.1,2), Paulo foi confrontado por judeus hostis que chegaram a tramar um ataque contra ele e queriam tirar-lhe a vida (20.3,19). Terceiro: à semelhança de Jesus (Lucas 9.22,44; 18.31-33),Paulo recebeu três sucessivas previsões proféticas sobre sua prisão e seus sofrimentos por causa do evangelho (20.22,23; 21.4,11). Quarto: à semelhança de Jesus (Lucas 18.32a), Paulo sofreria a humilhação de ser entregue nas mãos dos gentios (21.11). Quinto: à semelhança de Jesus (Lucas 12.50; 22.19; 23.46), Paulo declarou sua disposição de sacrificar a própria vida, se esta fosse a vontade do Senhor (20.24; 21.13). Sexto: à semelhança de Jesus (Lucas 9.51), Paulo estava determinado a não se desviar de sua missão até que fosse cumprida (20.24; 21.13). Sétimo: à semelhança de Jesus (Lucas 22.42), Paulo expressou sua rendição total à vontade de Deus (21.14). É bem provável, portanto, que Lucas desejasse que seus leitores vissem seu herói, o apóstolo Paulo, como alguém que seguia os passos de seu Mestre quando tomou a firme decisão de ir a Jerusalém (Lucas 9.51). E quanto à nossa peregrinação pessoal pela vida? Estamos dispostos, como Paulo, a seguir Jesus em sua jornada a Jerusalém, a fim de dar tudo por amor ao próximo?

PAULO EM TRÔADE (20.7-12)

É interessante que Lucas registre apenas um incidente relevante durante a estada de uma semana em Trôade. O acontecimento, sem dúvida, se manteve vivo durante muito tempo na memória coletiva da congregação cristã dessa cidade, e seguramente Lucas o coletou dos lábios de testemunhas presenciais, embora ele mesmo tenha sido um espectador pasmo do que aconteceu, já que estava com Paulo na ocasião. Este é o motivo de os detalhes do relato serem tão vívidos e da carga profundamente emotiva. Não é para menos. Um jovem caiu da janela de um andar alto e morreu instantaneamente, mas foi ressuscitado em seguida sob a ministração do apóstolo. Qualquer pessoa que seja testemunha de algo semelhante não esquecerá a experiência por toda a sua vida. O culto dominical (20.7-12)

A prática bastante generalizada da igreja primitiva era celebrar o culto no domingo e compartilhar a comida comunitária (v. 11) e a ceia comemorativa (“partir o pão” é uma expressão neotestamentária para a ceia do Senhor ou eucaristia). O próprio Jesus havia estabelecido o antecedente para a adoração dominical com suas aparições nesse dia após a ressurreição (João 20.19,26; 21.1; Lucas 24.36; 1Coríntios 16.2). O momento exato provavelmente foi a noite de sábado, se levarmos em conta a maneira judaica de marcar o tempo. Nessa noite, Paulo “continuou falando até a meia-noite” (gr. paréteinén te tòn lógon méchri mesonyktíou), porque queria ensinar e encorajar os irmãos (v. 2,31). A atmosfera estava pesada no lugar da reunião (“muitas candeias” e

muita gente), e o jovem Êutico “adormeceu”. Os verbos estão no particípio passivo presente, o que indica que, quanto mais Paulo esticava seu discurso, mais profundamente Êutico dormia. Até que caiu “do terceiro andar” (v. 9) e “estava morto” (gr. ērthē nekrós). Paulo agiu como Elias e Eliseu (1Reis 17.21; 2Reis 4.34), e o jovem voltou à vida. Depois dessa tremenda experiência, a congregação participou da ceia do Senhor (v. 11), e Paulo “continuou a falar até o amanhecer” (gr. ef’ hikanón te homilēsas pachrì augēs), quando se foi. O dorminhoco domingueiro (20.7-12)

Não são poucos os crentes que dormem durante a pregação de um culto. As razões para esse fenômeno bastante comum são variadas e díspares. O pior é que as pessoas adormecem porque a Palavra de Deus não é pregada do púlpito ou porque não há interesse nela. O jovem Êutico. Êutico é um nome quase desconhecido para muitos cristãos. Embora a Bíblia dedique a ele uns poucos versículos (20.7-12), não é exatamente esse tipo de personagem que nos atrai e que se fixa com facilidade na memória. Se ele se tornou conhecido por algo, foi por ter adormecido durante um sermão. Não nos parece que seja um trampolim adequado para a fama, porque se fosse haveria muitos “famosos” em nossas congregações. Na verdade, a fama de Êutico não reside nisso, e sim no fato de ter sido o primeiro a fazê-lo, pelo que sabemos, e que, no caso dele, seu sono veio acompanhado de resultados surpreendentes. Visto que seu exemplo não passou sem imitação, esse relato é de particular interesse, pois se São Pedro é o patrono

de Roma, então Êutico é o patrono dos que dormem enquanto o pastor está pregando. Podemos aprender muito com esse incidente remoto, que não foi considerado insignificante, uma vez que mereceu o registro nas páginas da Bíblia. O sono de Êutico. Poucos dorminhocos ganharam notoriedade nas páginas da Bíblia. O caso de Êutico é notável, porque ele próprio não era um membro muito importante da comunidade cristã de Trôade. Na verdade, seu nome era típico de escravos. Iremos analisar três aspectos de seu famoso cochilo. A justificativa. Vejamos primeiramente o que se pode apresentar como desculpa para o famoso cochilo. Por um lado, é evidente que Êutico estava ouvindo um sermão muito longo. O relato diz que Paulo “continuou falando até a meia-noite” (v. 7). Uma professora de crianças, depois de relatar esse episódio aos seus alunos, perguntou-lhes: “O que a história de Êutico nos  ensina?”. Um menino respondeu: “Que os pastores não devem pregar sermões muito longos”. Grande verdade! Paulo prolongou excessivamente sua mensagem. Ele tinha motivos para fazê-lo. Talvez porque iria levar muito tempo até ter nova oportunidade para doutrinar os irmãos de Trôade. Talvez a própria congregação não tenha lhe permitido encerrar a mensagem, por terem muitas perguntas e questões a serem resolvidas. Em todo caso, fica a lição para os pregadores: o sermão não deve durar mais de meia hora. Na verdade, está provado que é muito difícil prender a atenção do público por mais de vinte minutos. Por outro lado, Êutico achava-se em um edifício mal ventilado: “Havia muitas candeias no piso superior onde estávamos reunidos” (gr. ēsan dè lampádes hikanaì en tōi hyperōiōi hoū ēmen

synēgmenoi, v. 8). Na época, não havia grandes templos. A igreja se reunia nas casas. Nesse caso em particular, parece que havia muita gente e pouco espaço. As luzes incomodavam. Não nos esqueçamos de que eram lâmpadas a óleo, que emitiam mais fumaça que luz. A atmosfera era soporífera. A lição aqui é para a igreja: o templo deve ser um ambiente confortável. As pessoas podem suportar a atmosfera do cinema, do teatro ou de qualquer outro recinto fechado e público, mas sucumbem no templo. Além disso, muitos deixam de comparecer aos cultos não por falta de interesse, mas por falta de oxigênio. A condenação. O relato prossegue: “Um jovem chamado Êutico, que estava sentado em uma janela, adormeceu profundamente durante o longo discurso de Paulo. Vencido pelo sono, caiu do terceiro andar. Quando o levantaram, estava morto” (v. 9). Observese que o dorminhoco domingueiro era um jovem (gr. neanías). Se fosse um adulto, poderíamos entender melhor a situação e justificála, mas Êutico era um jovem cheio de vigor e de energia. Por que estava cansado e com sono? É possível que, como muitos de seus irmãos na fé, fosse um escravo que viera à reunião após um dia cansativo. Ou talvez tivesse jogado durante o dia até ficar exausto. Se for esse o caso, Êutico seria o guru de nossos jovens que chegam atrasados ao culto dominical ou mesmo não comparecem por estarem cansados do jogo de futebol do sábado ou por terem gastado suas energias no encontro de jovens na noite anterior, no próprio templo. Qualquer que tenha sido o caso, o dorminhoco domingueiro estava ouvindo um excelente pregador: o apóstolo Paulo. É certo que alguns pregadores são um tanto “cansativos”, mas nem sempre

a culpa é de quem prega. Além disso,Êutico perdeu a oportunidade de ouvir o cristão mais extraordinário de todos os tempos. Pior ainda, deu pouca importância ao fato de que por trás daquele pregador, como ocorre com todos os pregadores fiéis, Cristo estava falando. Não há como justificar tal atitude. A lição. O texto não informa por que Êutico se sentou na janela. É possível que tenha chegado atrasado à reunião e, com tanta gente, não encontrasse outro lugar senão aquele. Ou talvez tenha cedido seu lugar a outro, indo ocupar aquela posição mais incômoda. Em todo caso, a janela era um lugar perigoso, ainda mais no terceiro andar. No final, o que se temia aconteceu. Dominado pelo sono, Êutico perdeu o equilíbrio e despencou do terceiro andar, com um resultado fatal para ele. Não corremos mais o risco de cair de uma janela, mas não é verdade que sentimos sono quando se trata das coisas do Senhor? Ficamos sonolentos ao ler e estudar a Bíblia, ao orar, ao comungar com os irmãos na igreja. Sentimo-nos cansados para assumir a responsabilidade de testemunhar e de responder às necessidades do mundo ao nosso redor. O Senhor e um mundo perdido exigem que despertemos do sono. A Bíblia exorta: “Façam isso, compreendendo o tempo em que vivemos. Chegou a hora de vocês despertarem do sono, porque agora a nossa salvação está mais próxima do que quando cremos. A noite está quase acabando; o dia logo vem. Portanto, deixemos de lado as obras das trevas e revistamo-nos da armadura da luz” (Romanos 13.11,12). Devemos despertar de nosso sono. Devemos acordar para a vida e suas possibilidades gloriosas, para o dever e a recompensa do dever cumprido, para a realidade do pecado e sua condenação, para Cristo e seu poder salvador, para o tempo e as horas que

desvanecem, para a eternidade e sua presença iminente, para a justiça e para Deus, que pode concedê-la. Acorde, você que está dormindo! Abandone esse sonho fatal e levante-se para a grandeza e o poder que sua vida pode alcançar em Cristo Jesus!

PAULO EM ÉFESO III (20.13-16)

É interessante como Paulo e sua equipe missionária planejavam suas viagens com detalhes (v. 13). Não obstante, esses planos tiveram de ser alterados, em razão de um atentado contra a vida do apóstolo, que seria executado em alto-mar (v. 3). Talvez Paulo, antes de embarcar, quisesse saber quem estaria no navio. O roteiro de Paulo (20.13-16)

Paulo foi por terra até Assôs, onde deveria ser recolhido por uma embarcação proveniente de Trôade. Todos os seus companheiros mencionados no v. 4 já estavam no navio. Mitilene era a cidade mais importante da ilha de Lesbos, a maior das ilhas fronteiras à costa da Ásia Menor. É notório o conhecimento de Lucas sobre navegação, porque ele, em sua narrativa na primeira pessoa do plural, utiliza muitos termos técnicos da navegação marítima. Sem dúvida, era uma pessoa instruída e muito viajada. A ilha de Quio também está situada no mar Egeu. É longa e estreita e bem próxima da costa. Samos é outra ilha fronteira à costa da Ásia Menor e próxima de Éfeso. Mileto, situada ao sul de Éfeso, sobre a desembocadura do rio Meandro, foi uma grande e importante cidade costeira. Paulo desembarcou ali e mandou chamar os presbíteros da igreja de Éfeso, a cerca de 48 quilômetros de distância. O texto informa alguns detalhes da viagem de Paulo a Éfeso, clara indicação de que Lucas fazia parte do grupo e talvez tenha aproveitado o momento para registrar alguns incidentes em seus pormenores. Os v. 16 e 17 explicam o motivo de Paulo não ter

entrado na cidade de Éfeso. Em vez disso, mandou chamar os líderes daquela igreja para uma reunião em Mileto. Ele nutria o forte desejo de chegar a Jerusalém para celebrar a festa de Pentecoste e entregar a oferta que levantara para ajudar os irmãos da igreja de Jerusalém. É provável que a cautela de Paulo e as medidas de segurança que adotou nessa viagem não tenham sido tanto para preservar sua integridade física, mas para evitar um assalto, no qual correria o risco de perder o dinheiro que trazia consigo. Paulo havia falado à igreja de Trôade (v. 7-12) e agora, em Mileto, faria o mesmo, mas com os líderes da igreja de Éfeso. Em todas essas instâncias da jornada paulina, podemos ver o apóstolo como um servo do Senhor trilhando o caminho certo. Paulo não estava à deriva, nem se locomovia pelo impulso da improvisação. Tampouco estava andando em círculos ali, sem senso de direção. Ao mesmo tempo, estava motivado por um objetivo que expressava plenamente o propósito que o impelia, de acordo com a vontade que Deus lhe havia revelado. É crucial que os servos do Senhor não apenas saibam o caminho que devem trilhar (Salmos 32.8), mas que o percorram sem atrasos e com boa disposição, movidos pelo propósito que Deus lhes mostrou. Portanto, três questões importantes da jornada de Paulo se destacam nesses versículos e devem ser analisadas, para nossa edificação. Os planos de Paulo (20.13)

Essa viagem não foi fruto de um improviso por parte do apóstolo, e sim de um plano cuidadosamente elaborado, não só com relação ao rumo a seguir, mas também quanto à meta que deveria alcançar. O destino final da viagem era Jerusalém, e a ideia era estar lá no dia

de Pentecoste, a fim de celebrar essa festa judaica e aproveitar a ocasião para entregar a oferta que fora levantada para os crentes da igreja dessa cidade. Lucas registra cuidadosamente essa intenção e o planejamento quando diz: “Assim ele tinha determinado” (gr. hoútōs gàr diatetagménos ēn). Não há lugar para improvisação no serviço do Reino, embora muitos confundam improvisação com inspiração. Muitas vezes, a falta de planejamento adequado não é reflexo de crer que o Espírito Santo fará a obra, e sim evidência de preguiça, descuido e total falta de responsabilidade. Planejar o trabalho, estabelecer metas e desenvolver estratégias não exclui necessariamente o Espírito Santo daquilo que empreendemos em nome do Senhor. Pelo contrário, esse planejamento, quando realizado sob a direção do Espírito, demonstra submissão ao senhorio de Cristo, além de grande sabedoria e maturidade espiritual. A falta de planejamento leva ao desastre, à improdutividade, à frustração e à vergonha na obra do Senhor. A pressa de Paulo (20.14-16a)

O texto nos diz que Paulo “estava com pressa de chegar a Jerusalém” (gr. éspeuden gàr [...] genésthai eis Hierosólyma). Temse a impressão de que Lucas estava dominado pela mesma ansiedade, pois menciona quatro portos da costa e as ilhas por onde passaram Paulo e sua equipe missionária (Assôs, Mitilene, Quio e Samos) depois de saírem de Trôade e antes de chegarem a Mileto. Em seguida, ele menciona a chegada a Mileto e a decisão de Paulo de não entrar em Éfeso, provavelmente para não se atrasar. As seções na primeira pessoa do plural, que iniciam no v. 5,

continuam, e disso inferimos que Lucas não estava apenas registrando o rápido andamento da viagem, mas que ele próprio estava ciente da urgência que a caracterizava. Na verdade, é surpreendente que o navio que os transportava zarpasse todos os dias e ancorasse à noite. William M. Ramsay diz que isso se devia ao vento. No Egeu, durante o período estival, o vento sopra geralmente do norte, começando bem cedo pela manhã. Então, ao anoitecer, a intensidade diminui e quase desaparece com o  pôr do sol.9 Em todo caso, é evidente que Paulo queria chegar a Jerusalém o mais rápido possível. A pressa de Paulo é um bom e desafiador exemplo para muitos líderes cristãos, que dedicam todo o seu tempo a fazer a obra do Reino e a cumprir a ordem do Senhor. “O tempo voa, e lográ-lo convém”, diz um antigo hino evangélico, e a frase deveria ser adotada como uma espécie de lema ou meta para muitos servos do Senhor na América Latina, que não pensam que falta pouco tempo para cumprir a missão que o Senhor lhes designou. O que surpreende na leitura dos evangelhos é a reação imediata dos apóstolos ao chamado de Jesus para o serviço (Mateus 4.20,22; 9.9; 19.27; Marcos 1.18,20; 2.14; 10.28; Lucas 5.11,27,28; 18.28; João 1.37,38,40,43). Cada vez que Jesus dizia a alguém: “Siga-me”, a resposta era imediata. Da mesma forma, os evangelhos registram a desaprovação de Jesus para com aqueles que, tendo sido chamados, demoraram a responder ou apresentaram desculpas para não atender ao chamado imediatamente (Mateus 8.19-22; Lucas 9.57-60; Mateus 19.16-30; Lucas 18.18-30; Marcos 10.17-31). O propósito de Paulo (20.16b)

Esse roteiro de Paulo não era o de uma excursão turística rápida de Trôade a Jerusalém. A viagem do apóstolo tinha um destino específico (Jerusalém), uma data específica para a chegada (“antes do dia de Pentecoste”, gr. tēn hēméran tēs pentēkostēs), um custo específico (“se possível”, gr. ei dýnaton) e um propósito claro: entregar a oferta levantada para os santos necessitados da igreja daquela cidade. Muitos são os servos do Senhor na América Latina que peregrinam com grande esforço e com pressa no ministério cristão, mas nem sempre são capazes de definir com precisão o propósito de seus esforços e de suas ações. Com isso, seu trabalho é infrutífero, e a frustração é constante.A única maneira de obter êxito na obra do Reino é concluir a missão, a carreira e o serviço que o Senhor Jesus nos confiou (cf. v. 24). Para isso, é preciso muita clareza sobre o propósito que nos anima e a meta que temos de alcançar. No v. 16, a frase “Paulo tinha decidido não aportar em Éfeso” (gr. kekríkei gàr ho Paūlos paraplaūsai tēn Éfeson) parece indicar que ele tinha certo controle sobre o navio, talvez por tê-lo alugado ou porque tomara um barco que não fazia escala em Éfeso. O apóstolo queria chegar a Jerusalém para o dia de Pentecoste, festa judaica realizada cinquenta dias após a Páscoa e que ele já havia perdido pelo motivo indicado no v. 3. Era esta a vontade de Paulo (a expressão “se possível” é uma condição de quarta classe [ei com o modo optativo] e expressa um forte desejo).

PAULO EM MILETO (20.17-38)

O encontro de Paulo com os líderes da igreja de Éfeso foi carregado de grande emoção. Paulo fazia uma escala de alguns dias em Mileto em sua viagem a Jerusalém e aproveitou a oportunidade para convocar os presbíteros das congregações da igreja de Éfeso. O registro bíblico desse encontro conserva o que aparentemente foi a parte mais significativa do conclave: o discurso de Paulo. O texto registra um dos grandes discursos do apóstolo, rico em temas teológicos, práticos, morais, espirituais e devocionais. De todos os elementos que enriquecem o discurso, o que mais se destaca e lhe dá unidade são as lágrimas do apóstolo. Costuma-se dizer que algumas pessoas têm lágrimas na voz, quando ecoa um lamento. Paulo convive com as lágrimas em todo o seu discurso. Ele começa recordando as lágrimas derramadas ao longo de sua carreira apostólica: “Servi ao Senhor com toda a humildade e com lágrimas” (v. 19). Um pouco mais adiante, recorda as lágrimas que derramou exortando aos irmãos de Éfeso: “Lembrem-se de que durante três anos jamais cessei de advertir cada um de vocês disso, noite e dia, com lágrimas” (v. 31). Por fim, quando o discurso já havia terminado, tentando se conter a duras penas para poder orar, mistura suas lágrimas com as de seus ouvintes, porque não tornaria a vê-los: “Todos choraram muito e, abraçando-o, o beijavam” (v. 37). A passagem pode ser dividida em duas partes: discurso (v. 17-35) e despedida (v. 35-38). O discurso de Paulo em Mileto é singular em vários aspectos, tanto em seu estilo quanto em seu conteúdo. É o único discurso do apóstolo dirigido aos crentes e registrado por Lucas. O próprio Lucas estava entre os ouvintes, já que o texto faz

parte das passagens em que ele usa a primeira pessoa do plural (“nós”), e o que registra é uma síntese de tudo que Paulo falou. Ao mesmo tempo, é uma amostra do tipo de mensagem que Paulo  pregava nas congregações cristãs, diferente de seus discursos aos judeus nas sinagogas ou aos pagãos em lugares públicos ou privados. Daí seu caráter exortativo e, em alguma medida, seu matiz apologético. O discurso de Paulo está dividido naturalmente em quatro partes. Cada uma delas, exceto a primeira, que é de caráter introdutório, é iniciada com a expressão “[e] agora” (gr. kaì nỳn). As quatro partes em que está dividido o discurso referem-se ao passado: o ministério de Paulo em Éfeso; ao presente: a situação que o apóstolo estava atravessando; ao futuro: o de Paulo e o da igreja de Éfeso; o que poderíamos qualificar como o ministério paulino de sempre. A segunda parte da passagem (v. 36-38) registra a despedida do apóstolo. Encerrado o discurso, Paulo se pôs de joelhos. Na igreja primitiva, a oração era feita normalmente de pé, com as mãos estendidas para o céu. Ao ajoelhar-se, Paulo estava indicando que sua oração era solene e profundamente sentida. Seu gesto ritualístico expressava um compromisso radical (v. 32; 21.5) com o evangelho que pregava. Os irmãos choravam inconsolavelmente e se lançavam ao pescoço de Paulo e o beijavam. Tinham motivos para se sentir assim: Paulo lhes havia dito que eles não tornariam a vê-lo (v. 25). Ernesto Trenchard: “Alguns pensam em Paulo como um teólogo inflexível, sempre preocupado com a sã doutrina e com a disciplina, mas o livro de Atos e as epístolas, se bem estudados, revelam-no não apenas como o cuidadoso ‘pai’ que guia os passos dos filhos, mas também como a mãe tão tomada de terno amor, ‘como uma mãe que cuida dos próprios filhos’ (1Tessalonicenses

2.7). Por isso, o apóstolo despertava em seus filhos espirituais não só a reverência que correspondia à sua obra e aos seus sublimes ensinos, mas também a terna afeição que evocava sua disposição tão inclinada (em Cristo) ao amor, que ‘é paciente, [...] é bondoso. Não inveja [...], não procura seus interesses, não se ira facilmente, [...] se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta’ (1Coríntios 13.4-7)”.10 O discurso de Paulo (20.17-35)

Cada parte dessa passagem (v. 17-38) contém bons ensinos sobre o ministério cristão. No discurso de Paulo (v. 17-35), nos é apresentado um modelo de ministério cristão. Seu discurso descreve um modelo adequado de ministério para estes dias de grandes desafios e oportunidades. Toda a passagem apresenta não só o ministério de Paulo, mas também o ministério de seus seguidores e colaboradores na obra. Há quatro elementos a serem levados em conta no discurso de Paulo. O ministério no passado (v. 18-21). Paulo afirma sua autoridade apostólica com base no ministério exercido em Éfeso. O que lhe dá autoridade perante os anciãos de Éfeso é seu trabalho anterior entre eles, que o apóstolo resume em quatro exemplos. Ele foi um exemplo de conduta (v. 18). Seu estilo de vida foi irretocável durante todo o tempo em que esteve na província da Ásia. É de admirar a consistência e a persistência de Paulo em sua conduta. Ele não baixou a guarda um único dia! Nosso comportamento diário continua a ser a base maior de nossa autoridade ministerial (1Coríntios 11.1). Ele foi um exemplo de serviço (v. 19). Seu serviço era dedicado primeiramente ao Senhor: “Servi ao Senhor” (gr. douleúōn tōi kyríōi; Colossenses 3.23,24). Seu serviço foi humilde (“com toda a humildade”, gr. metà pásēs tapeinofrosýnēs), mas também sofrido

(“com lágrimas”, gr. dakrýōn). Todo o ministério de Paulo foi um ministério de lágrimas, porque muitas vezes ele chorou por causa da obra. Às vezes, chorava por causa da indisciplina dos irmãos (2Coríntios 2.4; 12.20,21), ou porque queria ver o progresso do Reino (v. 20,21), ou ainda por causa das ameaças ao rebanho (v. 29,30). Seu serviço foi sofrido, porque o apóstolo era “severamente provado” (gr. peirasmōn tōn symbántōn moi). Várias vezes nessa passagem, Paulo faz referência ao sofrimento (“provado”, gr. peirasmōn; v. 19; “prisões e sofrimentos”, gr. desmà kaì thlípseis, v. 23). Ele foi um exemplo de dedicação (v. 20). Sua dedicação foi eficiente (“nada que [não] fosse proveitoso”). Nem sempre nos dedicamos ao que traz proveito. Sua dedicação foi abrangente, pois consistia na pregação e no ensino. O ministério pastoral é basicamente isto: proclamação e ensino. Sua dedicação foi total (“publicamente e de casa em casa”, gr. dēmosíai kaì kat’ oíkous), como era o caso na igreja primitiva (5.42). Ele foi um exemplo de testemunho (v. 21), já que seu ministério alcançava a todos (“tanto a judeus como a gregos”, gr. Ioudaíois te kaì Héllēsin) e era completo (“Testifiquei [...] que eles precisam converter-se a Deus com arrependimento e fé em nosso Senhor Jesus”, gr. tēn eis theòn metánoian kaì pístin eis tòn kýrion hēmōn Iēsoūn). O ministério no presente (v. 22-24). Seu ministério no presente era caracterizado por uma convicção espiritual (v. 22). Foi o Espírito Santo quem compeliu Paulo a ir a Jerusalém (“compelido pelo Espírito”, gr. dedeménos egōtōi pneúmati). Paulo estava decidido a continuar seu caminho até Jerusalém, porque entendeu pelo Espírito, que testificava ao espírito dele, que esta era a vontade de

Deus. É essa convicção espiritual que nos permite seguir em determinada direção sem realmente saber o que esperar (“sem saber o que me acontecerá ali”, gr. tà en autēi synantēsontá moi mē eidōs; Hebreus 11.1). Seu ministério no presente era caracterizado pela coragem (v. 23). Paulo sabia o que todo servo deveria saber, ou seja, que a obra não é realizada sem problemas ou sem dificuldades (“prisões e sofrimentos me esperam”; 2Timóteo 3.12). Sua coragem era alimentada pela certeza proveniente do testemunho do Espírito. Se Deus avisa que haverá problemas, sem dúvida haverá problemas, mas isso significa que ele estará conosco. Seu ministério no presente era caracterizado por um propósito (v. 24). O objetivo de Paulo era duplo. Por um lado, o propósito de Paulo era “testemunhar do evangelho da graça de Deus” (gr. diamartýrasthai tò euangélion tēs cháritos toū theoū), ou seja, andar “pregando o Reino” (gr. diēlthon kērýssōn tēn basileían, v. 25). Esse propósito exigia foco (“não faço caso de coisa alguma”, RVR; Filipenses 3.13,14). Esse propósito exigia rendição (“não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo”; Filipenses 1.20). Ele não se importava com a vida nem com a morte. Esse propósito exigia impulso (“se tão somente puder terminar a corrida”, Filipenses 2.17). Por outro lado, o propósito de Paulo era “completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou” (gr. tēn diakoníanhēn élabon parà toū kyríou Iēsoū). O ministério no futuro (v. 25-31). É impossível prever o futuro, a menos que se tenha uma clara convicção do que Deus irá fazer. Nesse caso, essa convicção se alimenta da própria revelação de Deus sobre seus planos futuros por meio de seus servos. Paulo

sabia muito bem qual era sua agenda missiológica para o futuro. Dois aspectos se destacam aqui. Paulo antevê novas fronteiras missionárias para si. Ele fala aos líderes de Éfeso como se fosse a última vez: “Agora sei que nenhum de vocês [...] verá novamente a minha face” (gr. egō oīda hóti oukéti ópsesthe tò prósōpon mou hymeīs pántes). Se ele sobrevivesse em Jerusalém, seu plano era ir em direção ao Mediterrâneo ocidental (Romanos 15.23-25). Paulo achava que sua missão em Éfeso já fora cumprida e se sentia livre de toda responsabilidade moral e espiritual por eles: “Estou inocente do sangue de todos” (gr. katharós eimi apò toū haímatos pántōnn). Ele havia pregado “o Reino” a eles e ensinado “toda a vontade de Deus” (gr. pāsan tēn boulēn toū theoū). Paulo antevê novas responsabilidades ministeriais para os presbíteros. O que esses líderes iriam fazer sem Paulo? Eles deveriam cuidar da vida pessoal: “Cuidem de vocês mesmos” (gr. proséchete heautoīs). Cada um deles tinha uma séria responsabilidade a cumprir como líderes do rebanho. Como tal, deveriam se preocupar com a própria saúde espiritual. Deveriam também supervisionar as congregações da igreja da cidade, ou seja, “de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo os designou como bispos” (gr. kaì panti tōi poimníōi en hōi hymās tò pneūma tòn hágion étheto episkópous). Trata-se de uma responsabilidade solene e transcendente: ser epískopos, ou seja, supervisores do rebanho. Eles deveriam ainda alimentar os crentes, ou seja, “pastorearem a igreja de Deus” (gr. poimaínein tēn ekklēsían toū theoū). É uma responsabilidade prática e muito séria, pois se trata de cuidar das pessoas “que ele [Jesus] comprou com o seu próprio

sangue” (gr. hēn periepoiēsato dià toū haímatos toū idíou). Além disso, era dever deles exercer disciplina com relação aos perigos externos, pois “lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho”, e aos perigos internos, pois “dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos”. Por fim, eles tinham de velar em oração: “Vigiem!” (gr. diò grēgoreīte), sem deixar de imitar os bons exemplos: “Lembrem-se de que durante três anos jamais cessei de advertir cada um de vocês disso, noite e dia, com lágrimas”. No v. 31, Paulo destaca algo interessante: seu ministério em Éfeso foi abundante em lágrimas. Ao contrário de Jeremias, o profeta chorão, que chorou ao testemunhar a destruição de Jerusalém pelas mãos dos gentios, Paulo chorava pela salvação dos gentios efésios. Seu choro pelos efésios abrangia várias dimensões: quanto à intensidade (“noite e dia”, gr. nýkta kaì hēméran); quanto ao tempo (“durante três anos”, gr. trietían); quanto à perseverança (“jamais cessei”, gr. ouk epausámēn); quanto ao método (“advertir [...] com lágrimas”, gr. metà dakrýōn nouthetōn); quanto à responsabilidade (“cada um”, gr. hékaston); quanto à precisão (“de vocês”, gr. héna). O ministério para sempre (v. 32-35). Nesses versículos, Paulo fala de um legado extraordinário (v. 32). O apóstolo recomenda os irmãos a Deus: “Eu os entrego a Deus” (gr. paratíthemai hymās tōi theōi) e à Palavra de Deus, ou seja, “à palavra da sua graça” (gr. tōi lógōi tēs cháritos autoū). Trata-se de uma palavra graciosa e poderosa para a edificação e santificação dos crentes. Paulo também fala de um legado generoso. Ele havia ministrado entre eles

sem nada pedir e dando tudo (v. 33,34). Nesse aspecto, ele foi fiel ao princípio ensinado por Jesus (v. 35). A despedida de Paulo (20.36-38)

Nas palavras de despedida de Paulo (v. 36-38), deparamos com a apresentação de um ministério cristão ideal. Ao se despedir dos anciãos e dos líderes da igreja de Éfeso em Mileto, Paulo apela para uma das metáforas mais significativas de toda a Escritura, a imagem do pastor e de suas ovelhas diante das ameaças de animais predadores, como os lobos. Desse modo, o apóstolo descreve seu ministério de ensino entre os efésios como a tarefa de um pastor e os adverte da ameaça certa dos lobos que querem a destruição deles, pois os considera, como comunidade de fé, o rebanho do Senhor. Essas três imagens são muito eloquentes, não só para ilustrar a relação de Paulo com os membros da igreja de Éfeso, mas também como uma descrição válida dos ideais de um ministério pastoral, de acordo com a vontade de Deus. À luz de toda a passagem (20.17-38), como seria um ministério pastoral ideal? O exemplo do pastor. Causa admiração nas palavras de Paulo aos anciãos o fato de ele os lembrar repetidamente de seu exemplo como apóstolo. Paulo tinha a consciência muito limpa, baseada na firme convicção de que havia cumprido seu ministério apostólico com grande responsabilidade. Em primeiro lugar, fora cuidadoso em seu ministério de ensino. Ele os havia ensinado sobre a graça e o Reino de Deus (v. 24,25) e mostrado a eles o caminho do arrependimento e da fé (v. 21). Ele não havia deixado de lado nada que considerasse proveitoso para eles (v. 20) e proclamara fielmente o plano completo da salvação que Deus tinha a lhes

oferecer (v. 27). Em segundo lugar, ele fora cuidadoso na abrangência de seu ensino. Paulo não se contentava com menos que alcançar toda a cidade de Éfeso com todo o evangelho cristão. Sua aspiração era todo o evangelho para todas as pessoas em toda a cidade de Éfeso. Sua pregação era dirigida tanto a judeus quanto a gentios e pretendia ir além dos limites da cidade e alcançar toda a província da Ásia. Em terceiro lugar, ele fora cuidadoso na metodologia que havia adotado. Paulo ensinava tanto em público (na sinagoga e na escola de Tirano) como em particular (nas casas dos cristãos) e o fazia tanto de dia quanto de noite (v. 20,31). Seu método era cansativo, embora muito eficaz, pois o apóstolo compartilhava toda a verdade possível com todas as pessoas possíveis e de todas as maneiras possíveis. Os resultados obtidos atestam a eficácia de seu método e a intensidade de sua dedicação. Nesse sentido, Paulo deixou em Éfeso e aos líderes da igreja da cidade um bom exemplo do que significa ser um bom pastor. A ameaça dos lobos. No mundo antigo, especialmente no Oriente Médio, onde a criação de ovelhas era a base da economia e da sobrevivência de uma família, a pior praga ou a maior ameaça eram os lobos, que atacavam os rebanhos sozinhos ou em matilha. As ovelhas eram totalmente vulneráveis a essa ameaça permanente, por isso a principal responsabilidade dos pastores era protegê-las desses ataques. Paulo, à semelhança de Jesus (Mateus 7.15), considerava os falsos mestres uma ameaça tão perigosa para o rebanho dos cristãos quanto os lobos para os rebanhos de ovelhas. Nesse aspecto, Paulo entendia que os pastores do rebanho de Cristo tinham uma dupla tarefa. Por um lado, era sua responsabilidade alimentar as ovelhas ensinando-lhes a verdade do

evangelho; por outro lado, deviam protegê-las do ataque dos lobos alertando-as do erro. Mais tarde, o próprio Paulo advertiria seu discípulo Tito sobre o dever do apego à Palavra fiel, por parte dos presbíteros, de acordo com o ensino apostólico, a fim de que pudessem exortar os crentes com a sã doutrina e refutar os que se opunham a ela (Tito 1.9). John R. W. Stott: “Essa ênfase não é muito popular nos dias de hoje. Ouvimos com frequência que devemos ser positivos em nossa pregação, nunca negativos. Contudo, os que dizem isso nunca leram o Novo Testamento ou, se leram, não concordam com ele. Porque o Senhor Jesus e seus apóstolos refutavam o erro e nos exortam a fazer o mesmo. Pode-se perguntar se a principal causa da confusão teológica atual não seria a negligência dessa obrigação. Se, ao surgir uma falsa doutrina os líderes cristãos ficarem sentados perdendo tempo e sem fazer nada ou derem meiavolta e fugirem, conquistarão para si o terrível epíteto de ‘mercenários’, que não se importam com o rebanho de Cristo. Então, será dito também dos cristãos, como foi dito do povo de Israel, que estão dispersos, ‘porque não há pastor algum e [...] se tornaram comida de todos os animais selvagens’ ”.11

O valor do rebanho. O valor exaltado do corpo de crentes é notável, como “todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo [...] designou como bispos [supervisores]” os pastores, de acordo com o v. 28. Aqui está declarado que o Senhor “comprou com o seu próprio sangue” esse rebanho especial. O próprio fato de Cristo ter dado sua vida como o preço para a constituição desse povo escolhido é razão suficiente para que os que foram designados pelo próprio Senhor para cuidar de seu povo façam seu trabalho com o maior cuidado e atenção. O cuidado pastoral dessas ovelhas adquiridas pertence, em última análise, a Deus. Contudo, ele delegou a homens e mulheres chamados por ele e cheios de seu Espírito a responsabilidade de exercer esse ministério em seu nome. É interessante que as três pessoas da Trindade participam

desse cuidado. Em primeiro lugar, o rebanho é de Deus. Em segundo lugar, o rebanho foi comprado ao preço do sangue do Filho encarnado. Em terceiro lugar, o rebanho recebe do Espírito Santo os pastores que irão cuidar deles. John R. W. Stott: “A esplêndida declaração trinitária de que o cuidado pastoral da igreja pertence a Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) deveria exercer um impacto profundo sobre os pastores. Deveria nos levar a lembrar humildemente de que a igreja não é nossa, mas de Deus. Deveria nos inspirar a sermos fiéis a ela. Porque as ovelhas não são, de modo algum, as criaturas limpinhas e agradáveis que parecem ser. Na verdade, são sujas, sofrem com pragas desagradáveis e precisam ser imersas com regularidade em banhos com fortes componentes químicos para se livrar de piolhos, carrapatos e vermes.Elas também são pouco inteligentes, rebeldes e teimosas. Não quero aplicar a metáfora de maneira demasiado estrita, a ponto de caracterizar o povo de Deus como sujo, nojento e estúpido! Contudo, algumas pessoas são um fardo muito pesado para seus pastores (e vice-versa). Os pastores só irão perseverar em atendê-las caso se lembrem de quão preciosas elas são aos olhos de Deus. Elas são o rebanho de Deus Pai, comprado com o precioso sangue de Cristo e cuidado por pastores designados por Deus Espírito Santo. Se as três pessoas da Trindade são assim tão dedicadas ao bem-estar do povo, não deveríamos nos dedicar também?”.12

PAULO RUMO A JERUSALÉM (21.1-16)

Um dos grandes problemas da vida cristã é saber com certeza o caminho a seguir. A promessa do Senhor é: “Eu o instruirei e o ensinarei no caminho que você deve seguir” (Salmos 32.8). Nem sempre, porém, o itinerário parece claro. Tem-se a impressão, às vezes, de que o caminho proposto pelo Senhor pode ter um curso alternativo. Há uma ilustração desse problema na experiência de Paulo em Cesareia. Ao que parece, encontramos ali o Espírito Santo guiando o apóstolo por dois caminhos opostos e contraditórios. Enquanto ainda estava em Éfeso, Paulo havia sido bem claro quanto à necessidade de voltar a Jerusalém (19.21). Essa convicção foi reforçada quando ele chegou a Mileto (20.16,22). Embora o “espírito” mencionado nesses versículos seja o de Paulo, não o Espírito Santo, não é difícil imaginar que um crente do calibre do apóstolo pudesse abrigar uma convicção tão forte, em oposição à vontade divina. Ao mesmo tempo, os crentes de Tiro (v. 4) e o profeta Ágabo (v. 11), de Cesareia, também pareciam inspirados pelo Espírito Santo quando advertiram Paulo sobre o que ele haveria de enfrentar se insistisse em seguir viagem. É nesse contexto de advertências sobrenaturais que os amigos de Paulo acrescentam argumentos próprios para impedi-lo de ir a Jerusalém (v. 12). Paulo rejeitou as objeções deles e continuou seu caminho. A pergunta é: de todos esses crentes que falaram sob a inspiração e a sabedoria do único e mesmo Espírito Santo, quem o fez de acordo com a vontade de Deus?

A. B. Simpson: “Vemos o apóstolo guiado pelo Espírito aparentemente em contradição com outros também guiados pelo mesmo Espírito; e no final descobrimos ainda que a primeira orientação é a seguida, enquanto a segunda parece ter sido apenas um teste, que demonstrou muito mais plenamente sua fidelidade a Deus”. O itinerário de Paulo (21.1-16)

Lucas estava bem familiarizado com o vocabulário náutico (v. 3), o que é visto especialmente nas seções “nós”, a maioria das quais envolve navegação. “Navegamos diretamente” (gr. euthydromēsantes ēlthomen) é uma expressão náutica que significa navegar em um curso direto (16.11). A viagem até a Fenícia (v. 1,2). Cós (“cume”) é o nome de uma ilha e de sua cidade principal. Hipócrates (séc. V a.C.) nasceu nessa ilha, e havia ali uma importante escola de medicina. Era um território livre, considerado parte da província romana da Ásia, situada a cerca de 50 quilômetros ao sul de Mileto. Rodes era também o nome de uma ilha e de sua cidade principal. Essa ilha comercial era famosa por suas rosas e por suas escolas superiores especializadas em retórica e oratória. Também havia adquirido fama por seu colosso de bronze colocado no porto e que funcionava como farol. Pátara era o principal porto para os navios que se dirigiam à Síria. Era uma cidade costeira da Lícia, famosa por seu oráculo de Apolo e que por um tempo rivalizou até mesmo com Delfos. Ali Paulo trocou de barco e zarpou para a Fenícia, passando primeiramente diante de Chipre. Por fim, chegaram a Tiro, onde “os discípulos” os hospedaram por sete dias. A igreja nessa cidade provavelmente foi fundada pelos crentes espalhados após a morte de Estêvão (8.4; 11.19).

A estada em Tiro (v. 3-6). Durante sua estada em Tiro, Paulo recebeu dos cristãos locais várias palavras proféticas. Havia vários profetas nessa congregação (20.23; 21.10-12), que, “pelo Espírito” (gr. dià toū pneúmatos), ou seja, inspirados pelo Espírito, o exortaram a não seguir para Jerusalém. A advertência sobre perseguições era correta, mas Paulo estava convicto de que sua viagem era da vontade de Deus (v. 14). Jesus, por meio de Ananias, lhe havia revelado como seria seu ministério por toda a vida (9.15,16) e que o sofrimento seria parte disso, como também a oportunidade de dar seu testemunho perante reis. Paulo seguiu viagem com seus companheiros, e a despedida da igreja local foi emocionante (v. 5), talvez com um culto especial, como em 20.32,36. A viagem até Cesareia (v. 7,8a). Essa viagem foi feita em um barco. Ptolemaida era chamada assim por causa de um dos generais de Alexandre, o Grande, Ptolomeu, que havia governado o Egito e era um dos ancestrais de Ptolomeu II, que construiu a cidade no ano 26 a.C. Era o único porto natural da costa palestina. Nos tempos do Antigo Testamento, chamava-se Aco (Juízes 1.31), e hoje é conhecida pelo nome que lhe deram os cruzados: Acre. Os “irmãos” (ou “discípulos”, v. 4,16) hospedaram o grupo, segundo o costume dos primeiros cristãos. O grupo partiu no dia seguinte e chegou a Cesareia, não se sabe se por terra ou mar. A estada em Cesareia (v. 8b-15). Estava ali o governo romano da Palestina. Era uma cidade costeira com um pequeno porto. Filipe, o evangelista (v. 8,9b). Em Cesareia, vivia Filipe, o evangelista (8.40). O termo “evangelista” (gr. toū euangelistoū) é

usado apenas três vezes no Novo Testamento (Efésios 4.11; 2Timóteo 4.5), e significa “alguém que proclama o evangelho”. Filipe era também “um dos sete” (gr. óntos ek tōn heptá).Os Sete eram pregadores poderosos e cheios do Espírito Santo e foram os primeiros a captar o alcance global do evangelho (cap. 6). Filipe tinha “quatro filhas virgens, que profetizavam” (gr. thygatéres téssares parthénoi profēteúousai; Joel 2.28-32; Atos 2.16-21), ou seja, comunicavam mensagens recebidas do Senhor. A tradição diz que elas se mudaram para a Ásia Menor (Frígia) e viveram ali servindo ao Senhor até uma idade avançada.13 Ágabo, o profeta (v. 10,11). “Um profeta chamado Ágabo” (gr. profētēs onómati Hágabos), proveniente da Judeia, apresentou-se como tal e tinha uma dramática mensagem de Deus para Paulo. Atos menciona várias vezes os profetas (11.27,28; 13.1; 15.32; 21.10) e até mesmo profetisas (21.9), cujo ministério era proclamar o evangelho e comunicar mensagens de Deus para a edificação dos crentes. À semelhança dos profetas do Antigo Testamento (Jeremias e Ezequiel), Ágabo dramatizou sua palavra profética (v. 11). Os companheiros de Paulo (v. 12-15). A profecia de Ágabo causou impacto nos companheiros de Paulo. Este, pelo contrário, afirmou sua convicção de que devia seguir viagem, mesmo que isso significasse “morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus” (gr. hypèr toū onómatos toū kyríou Iēsoū). Paulo manteve-se firme nessa convicção, a ponto de seus companheiros desistirem de convencê-lo do contrário e exclamarem: “Seja feita a vontade do Senhor” (gr. toū kyríou tò thélēma ginésthō). O verbo está no imperativo médio presente, no sentido de uma oração. Deus tinha

um plano e um propósito para a vida de Paulo, que sentia ter conhecimento da vontade divina, até mesmo diante de profecias específicas e recorrentes que o advertiam das aflições que o aguardavam. Paulo deve ter sentido que as profecias eram autênticas, mas cujo objetivo era prepará-lo espiritual e mentalmente, não frustrar sua viagem. Diante de tal firmeza, o grupo arrumou a bagagem, e partiram para Jerusalém, que ficava a 100 quilômetros de distância. Mnasom, o veterano (v. 16). No v. 16, encontramos uma das biografias mais curtas da Bíblia. Trata-se de Mnasom, a quem o texto qualifica como “um dos primeiros discípulos” (gr. archaíōi mathētēi), provavelmente porque sua conversão remontava ao dia de Pentecoste ou até mesmo ao ministério terreno do Senhor. Outra possibilidade é que Mnasom fosse um dos primeiros convertidos de Paulo em Chipre, durante sua primeira viagem missionária (13.413), ou que tenha se convertido com a pregação posterior de Barnabé (4.36; 15.39). Em todo caso, é quase certo que nessa época Mnasom era já um homem maduro, se não um presbítero. Provavelmente, residia em Jerusalém e estava visitando os cristãos de Cesareia. Talvez fosse um enviado da igreja de Jerusalém com algum propósito. Sem dúvida, era um cristão maduro e um homem de recursos econômicos, uma vez que Paulo se hospedou em sua casa. A personalidade de Paulo (21.13)

Nesses versículos, podemos observar característicos da personalidade de Paulo.

alguns

elementos

Sua dor (v. 13a). Diante de seus companheiros e dos irmãos locais, Paulo exclamou: “Por que vocês estão chorando e partindo o meu coração?”. A afeição humana ocupava um lugar importante na vida de Paulo. Em Tiro, por exemplo, ele ficou apenas uma semana, mas conquistou o coração dos crentes, até mesmo de mulheres e crianças (v. 5). Durante sua viagem a Jerusalém, Paulo foi objeto da generosa hospitalidade dos irmãos (20.6; 21.4,8,16). No entanto, a afeição humana pode ser um obstáculo ao cumprimento dos propósitos divinos. Os discípulos de Cesareia ficaram tristes, e isso entristeceu seu amado líder. Para Paulo, a dor tornou-se ainda mais intensa quando os próprios companheiros se juntaram ao clamor dos irmãos locais (v. 12). A dor faz parte da experiência cristã. É algo que devemos esperar, mesmo no serviço consagrado ao Senhor. Devemos ter a capacidade de não a renegar, pois pode ser parte da vontade permissiva de Deus para uma melhor percepção de sua presença conosco em todos os momentos. Deus sempre sabe extrair o bem, mesmo do mal que nos acomete. Seu espírito (v. 13c). Diante de seus companheiros de equipe e dos irmãos locais, Paulo exclamou: “Estou pronto não apenas para ser amarrado, mas também para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus”. Paulo estava pronto para sofrer. Foi um grande teste para a autenticidade de sua fé e de sua dedicação (Filipenses 3.10; Hebreus 11.25). O sofrimento é muitas vezes resultado da entrega total à causa (5.41; 9.16). Paulo estava pronto para morrer. Foi um grande teste para a realidade de seu amor e de sua devoção (2Timóteo 4.6,8). A disposição de morrer era resultado da vontade de viver pela causa (Romanos 1.15). Será que estamos prontos para ser confessores e mártires pela causa?

Seu segredo (v. 13b). Diante de seus companheiros de equipe e dos irmãos locais, Paulo exclamou que estava disposto a sofrer e morrer “pelo nome do Senhor Jesus”. O “nome” quer dizer a completa revelação de Cristo ao seu apóstolo. Isso forneceu a base para sua declaração posterior: “Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Filipenses 1.21). “Pelo nome” significa, em grego, “por amor do Nome”, ou seja, “por causa do Nome” ou “a favor do Nome”. Isso quer dizer que, para Paulo, sofrer ou morrer era uma recompensa, um privilégio que produzia alegria e glória. Contudo, era também uma responsabilidade, um dever que lhe proporcionava forças para o presente e possibilidades para o futuro. “Do Senhor Jesus” dá sentido a tudo o que foi dito acima, pois se trata de uma referência direta ao senhorio e poder de Cristo. No Novo Testamento, o nome do Senhor Jesus tem um significado simbólico e uma dinâmica de poder singular. Seu nome está acima de qualquer outro nome (Filipenses 2.9), e só ele conhece esse nome (Apocalipse 19.12). Diante de seu nome, todo joelho se dobrará e toda pessoa o confessará como seu Senhor (Filipenses 2.10,11), porque ele é o “REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES” (Apocalipse 19.16). O evangelho deve ser pregado a todas as nações em seu nome (Lucas 24.47), e todas as orações devem ser feitas em seu nome (João 14.13). A vida eterna está em seu nome (João 20.31), e a cura física ocorre quando se invoca seu nome (3.6,16). Além disso, os demônios saem das pessoas em seu nome (16.18). A ação de graças sempre deve ser dada em seu nome (Efésios 5.20).

1. Word Pictures in the New Testament: The Acts of the Apostles, p. 307. 2. The Acts of the Apostles: An Historical Commentary, p. 151-152. 3. Ibid., p. 155. 4. Word Pictures in the New Testament, p. 317. 5. Michael GREEN, Creo en el Espíritu Santo, p. 164. 6. Los Hechos de los Apóstoles: un comentario, p. 424. 7. PLÍNIO, História natural, 36.95-97, 179. 8. Marvin R. VINCENT, Word Studies in the New Testament, v. 1, p. 588-589. 9. St. Paul the Traveler and the Roman Citizen, p. 293. 10. Los Hechos de los Apóstoles, p. 449. 11. El mensaje de Hechos, p. 391. 12. Ibid., p. 392. 13. EUSÉBIO DE CESAREIA, História eclesiástica, 3.31.2-5.

C A P Í T U L O 11

O TESTEMUNHO EM JERUSALÉM Atos 21.17—23.22

A última seção de Atos, que também é a mais longa (19.21— 28.31), descreve o avanço de Paulo em direção a Roma. Os detalhes oferecidos pelo relato são notáveis e evidenciam o fato de

que, para o escritor (Lucas), os acontecimentos que descreve foram de particular importância. Essa parte do livro de Lucas está relacionada não só com o destino de Paulo, mas também com o destino da igreja. Na verdade, é nesses capítulos que encontramos a igreja cristã se transformando de seita judaica em igreja universal. Ernesto Trenchard: “A viagem a Jerusalém e os contatos com a igreja ali constituem o prelúdio da nova forma de ministério do apóstolo, que percebemos já no início do exposto na última seção. De Efésios 6.20, recolhemos o belo título ‘embaixador preso em correntes’, que caracteriza a obra de Paulo desde o momento de sua prisão até o final do relato de Lucas: um período de aproximadamente cinco anos. O apóstolo não estará livre para planejar extensas expedições sob a orientação do Espírito Santo, a fim de estender o Reino de Deus entre os gentios. Carregando a corrente do cativo, irá para onde determinem vários oficiais do império; contudo, acima da autoridade limitada dos grandes da terra, as providências divinas comandarão os movimentos do apóstolo e farão surgir preciosas oportunidades de testificar perante o povo, o Sinédrio, governadores e reis. Em contrapartida, tanto em Cesareia quanto em Roma, Paulo poderá receber seus amigos com total liberdade, o que significa que lhe será possível

incentivar e orientar seus colaboradores, que levarão seus ensinos orais e escritos por toda parte”.1

A CHEGADA DE PAULO A JERUSALÉM (21.17-26)

Enquanto Paulo pregava aos gentios, o que estava acontecendo com a igreja de Jerusalém? O cristianismo era tolerado como uma seita do judaísmo, mas não como uma organização que incluía os gentios. No entanto, de acordo com Romanos 4, carta que foi escrita em Corinto poucas semanas antes dos fatos registrados nesse capítulo, não havia uma diferença significativa entre judeus e gentios. Qualquer diferença era o resultado da maneira particular pela qual Deus cumpria seus propósitos eternos por meio de um ou de outro povo. Paulo estava convencido de que Deus o enviara com uma missão muito especial entre os gentios. Quanto a essa vocação, é interessante estudar Romanos 9—11. Se a convicção de Paulo era que Deus o havia chamado para pregar o evangelho aos gentios, por que estava tão determinado a ir a Jerusalém? Seria para pôr em evidência a obstinação dos judeus? Queria Paulo promover sua missão aos gentios e convencer a oposição judaizante da legitimidade de sua causa? É fato que, durante os dois anos que Paulo passou em Jerusalém e mais tarde em Cesareia, sua mensagem foi rejeitada, segundo os cap. 21—27. Além disso, o livro de Atos não registra uma única conversão nesse período. Os que se opuseram a Paulo teriam sido os judeus ortodoxos ou os cristãos judeus que resistiam a seus métodos revolucionários? Não o sabemos, mas é certo que não foram os crentes da igreja de Jerusalém. Os v. 17-26 fazem parte da última seção do livro. Na primeira parte do cap. 21 (v. 1-16), temos a viagem de Paulo a Jerusalém. Nos versículos que se seguem, descreve-se o importante encontro

do apóstolo e seus companheiros de viagem com os líderes e a igreja de Jesus Cristo dessa cidade. O apóstolo na igreja da cidade (21.17-26)

De acordo com uma eclesiologia do Novo Testamento, a igreja local, ou seja, de determinada localidade, é a igreja de Jesus Cristo em cada cidade. Essa única igreja em cada cidade (igreja local) é composta de numerosas congregações particulares, cada uma com seus matizes singulares. Com relação à chegada de Paulo a Jerusalém e sua relação como apóstolo com a igreja da cidade, quatro elementos merecem destaque. A reunião (v. 17-20a). A recepção por parte dos irmãos foi calorosa (“nos receberam com alegria”, gr. asménōs apedéxanto hēmās). Ser crentes e irmãos em Cristo é uma honra, um privilégio e uma grande responsabilidade. Como é bom ser bem recebido pelos irmãos! Assim também foi o encontro com os líderes da igreja (v. 18,19). Quem eram eles? Tiago, irmão do Senhor e autor da epístola que leva seu nome. Parece que ele era o único apóstolo a residir em Jerusalém. Pedro e João estavam em outro lugar. Tiago era muito respeitado por todos, já que o haviam apelidado “o justo”. Foi ele quem presidiu o encontro (12.17; 15.13-21). Também estavam ali “os presbíteros”, líderes que executavam tarefas administrativas e pastorais e que funcionavam como uma espécie de sinédrio ou conselho cristão (talvez constituído por 70 membros) — Tiago era o presidente. A igreja de Jerusalém era muito grande, com milhares de membros (v. 20). Os líderes estavam todos presentes ao encontro com Paulo. Por que Paulo se reuniu com eles? Para entregar a oferta dos gentios (v. 19a), que a passagem não

menciona, embora fosse esse o grande projeto de Paulo. Ele não se havia esquecido do que os apóstolos lhe haviam pedido vários anos antes (Gálatas 2.10). Estava ali também para informar acerca da obra de Deus entre os gentios (v. 19b). O relatório de Paulo levou os irmãos a louvar a Deus (v. 20a). O problema (v. 20,21). Havia um duplo problema para resolver. Por um lado, estava a realidade de que a massa dos judeus que haviam crido era de crentes “zelosos da lei” (gr. toū nómou hypárchousin, v. 20b). Criam que Jesus era o Messias prometido, embora continuassem presos ao cumprimento de uma série interminável de leis cerimoniais. Nessa época, já havia muitos fariseus convertidos (15.5). Os “milhares de judeus” (gr. pósai myriádes eisin en toīs Ioudaíois) não eram somente de Jerusalém, mas também de outras partes, reunidos para a festa de Pentecoste (20.16). Isso fala do progresso do evangelho entre os judeus. Por outro lado, estava o rumor quanto à posição de Paulo com respeito ao judaísmo. Diziam que ele não queria impor aos crentes gentios os requisitos da Lei judaica. Para muitos, isso já era muito grave, apesar dos acordos firmados no Concílio de Jerusalém tempos antes (15.28,29). O partido farisaico queria impor aos gentios a circuncisão e outras leis que considerava muito importantes (15.5). Paulo seguia fielmente a resolução do concílio. Também diziam que ele dissuadia os crentes judeus de praticar os costumes judaicos (v. 21). Aparentemente, Tiago e os presbíteros não acreditavam nisso. Não havia evidência alguma a favor dessa acusação. Em todo caso, não seria fácil convencer a multidão de crentes apenas com palavras. Era preciso fazer algo mais concreto.

A proposta (v. 22-25). Não é fácil quando se tem de tomar decisões que envolvem ajustes a diferentes mentalidades, ainda mais quando se trata de questões religiosas. No entanto, chegou-se a um acordo na reunião em Jerusalém. Em grande medida, a sabedoria de Tiago prevaleceu com possibilidades equilibradas. A proposta era dupla. Com relação aos judeus (v. 22-24). Havia determinadas coisas que Paulo deveria fazer com relação aos judeus (v. 22-24). Ele deveria participar publicamente de um rito tradicional, para demonstrar que continuava sendo um judeu piedoso e militante. Observe-se que ele já havia feito esse voto (18.18), mas agora iria se juntar a outros quatro homens pobres em seu voto de nazireu, purificar-se com eles e arcar com os custos. O voto de nazireu começava com sete dias de purificação de toda contaminação cerimonial. A pessoa que fazia o voto tinha de rapar a cabeça junto ao altar no sétimo dia e trazer uma oferta sacrificial no oitavo dia, que consistia em duas rolinhas ou dois pombinhos, além de um cordeiro de 1 ano, uma ovelha de 1 ano e um carneiro, todos eles sem defeito (Números 6.10-15). Paulo teria de pagar todos esses gastos pelos cinco. Com isso, diziam os presbíteros, a multidão dos crentes de Jerusalém (e os peregrinos) veria que ele era submisso à Lei de Moisés e guardava as tradições. A respeito desse ponto, William Barclay comenta: “Não pode haver dúvida de que o assunto era desagradável para Paulo. Para ele, essas coisas já não tinham importância. Contudo, é sinal de um homem verdadeiramente grande, que pode subjugar os próprios desejos e conceitos por amor à igreja. Há momentos em que se submeter a algo assim não é sinal de fraqueza, mas de força”.2

Com relação aos gentios (v. 25). Havia determinadas coisas que Paulo deveria fazer com relação aos gentios (v. 25). Tiago e os anciãos não tinham a intenção de revogar as resoluções do Concílio de Jerusalém (15.19-29). Por isso, fizeram referência à cartadocumento (15.28,29). As proibições mencionadas diziam respeito a práticas religiosas e cerimoniais muito comuns entre os gentios pagãos. Sem dúvida, Paulo conhecia essas disposições e fazia que seus convertidos gentios as respeitassem. Os líderes de Jerusalém não duvidavam do apóstolo. O que queriam era ajudá-lo diante do preconceito do povo. No  entanto, parece claro que a igreja de Jerusalém não havia resolvido totalmente a questão dos convertidos gentios, o que era uma pedra de tropeço para os cristãos judeus mais obstinados. De fato, é a terceira vez que o relacionamento entre gentios e judeus é discutido em Atos. Robert C. Tannehill explica essa cena: “A questão do batismo dos gentios foi resolvida em 11.1-18. A exigência de que os gentios fossem circuncidados e obedecessem à Lei mosaica foi rejeitada em 15.1-31. Agora, o compromisso de incluir judeus e gentios na missão cria um terceiro problema: pressão aberta ou velada sobre os judeus cristãos para que abandonassem o estilo de vida judaico”.3 A ação (v. 26). Observe-se a sujeição e a obediência de Paulo. O apóstolo fez exatamente o que lhe foi pedido, e isso põe em evidência sua humildade. Ele o fez em submissão a seus irmãos e como sinal de respeito. Fez isso também para evitar conflitos e produzir reconciliação. Em tudo isso, pode-se ver também o relacionamento especial entre Paulo e a igreja de Jerusalém e o enorme respeito dele pelos seus líderes.

Harold E. Dollar: “Lucas mostra com muito cuidado o relacionamento de Paulo com Jerusalém em todo o seu relato. Saulo encontrou-se com os apóstolos pela primeira vez por meio da mediação de Barnabé (9.26-30). Depois de passar alguns anos em Tarso, Saulo foi apresentado ao movimento de Antioquia por meio de um representante de Jerusalém, Barnabé (11.22 com 11.25). Em seguida, Barnabé e Saulo levaram uma oferta da igreja de Antioquia para a igreja em Jerusalém (11.27-30; 12.25). Mais tarde, a missão de Paulo e Barnabé aos gentios recebeu a aprovação de Jerusalém (15.1-35). Por fim, Paulo submeteu-se ao pedido de Tiago e cumpriu um voto judaico enquanto frequentava o templo de Jerusalém (21.17-26)”.4

Podemos duvidar se o que fez foi o mais conveniente, da perspectiva da missão gentia, ao se submeter a regras tão irrelevantes. Não há evidência de que sua ação tenha mudado a atitude daqueles judeus crentes que continuavam “zelosos da lei”. Além disso, a presença dele no templo acabou por lhe criar grandes problemas, e aparentemente nenhum cristão judeu veio em sua defesa. Observe-se ainda a coerência e a autenticidade de Paulo. Ele se orientava por ideais muito superiores à mesquinhez cerimonial dos judeus ortodoxos. Em todo caso, podemos nos perguntar como harmonizar a ação do apóstolo aqui com sua atitude expressa em Gálatas 2.3-9. Paulo estava fazendo a mesma coisa que havia condenado em 1Coríntios 9.19-23 (18.18; Romanos 14). Estava fazendo o que ele cria ser capaz de unir os cristãos judeus e gentios (Romanos 15.25-28). Em todo caso, Paulo jamais permitiu que as aparentes inconsistências das ações externas interferissem na lealdade constante aos princípios internos. Ministério na igreja da cidade (21.17-26)

É normal que o ministério cristão seja promissor em seu início. O pastor chega na nova congregação que irá pastorear e se deleita com a experiência de Paulo ao chegar a Jerusalém: “Os irmãos nos receberam com alegria” (v. 17). Para qualquer servo do Senhor, isso é de grande importância e bem animador. Começar bem o ministério é um incentivo importante para continuar fazendo o melhor. No entanto, uma boa recepção não significa que não haja questões pendentes ou conflitos que ameacem e desafiem seriamente o recém-chegado. A experiência de Paulo ao chegar a Jerusalém é útil para qualquer homem ou mulher nos primeiros estágios de seu ministério, em qualquer lugar. Que boas lições para o ministério podemos aprender com sua experiência? Reconhecimento dos líderes. É preciso conhecer os líderes das congregações que compõem a igreja de Jesus Cristo em uma cidade. Em cada cidade, o Senhor tem apenas uma igreja. Se alguém está ministrando como pastor em uma congregação específica da única igreja local de uma cidade, é importante conhecer os pastores que compõem seu presbitério. A primeira coisa que Paulo e seus companheiros fizeram “no dia seguinte”, após a chegada de uma longa viagem, foi entrar em contato com os líderes da igreja da cidade. Isso ajuda a criar um laço de confiança entre o recém-chegado e os que já estão ministrando na cidade talvez há anos. Além disso, é desse modo que o novo pastor pode receber orientação e conselhos dos que têm mais experiência no serviço cristão da cidade e capitalizar essa experiência, a fim de descobrir as áreas em que pode ele próprio contribuir para o avanço do Reino de Deus na cidade.

Prestação de contas. Todos devem prestar contas a alguém. A maioria dos problemas que põem a perder o ministério pastoral está relacionada com o isolamento ministerial e com o fato de o pastor não prestar contas de suas ações. Deixar de responder pelas próprias ações perante outras pessoas faz que o pastor caia na tentação de fazer o que bem entende, sem dar satisfação a ninguém e, o que é pior, sem receber conselhos ou disciplina. Desse modo, o pastor não tem ninguém a quem confessar seus pecados, nem um ombro para derramar suas lágrimas, ninguém para o aconselhar, e não está sujeito à disciplina restauradora de ninguém. O resultado é um ministério isolado que, mais cedo ou mais tarde, irá desabar estrondosamente, com grandes prejuízos para a congregação em particular e vergonha para a igreja da cidade. Paulo foi um grande servo de Deus, mas ainda assim “relatou minuciosamente” (gr. exēgeīto kath’ hèn hékaston) aos líderes da única igreja de Jesus Cristo em Jerusalém “o que Deus havia feito entre os gentios por meio do seu ministério” (gr. hōn epoíēsen ho theòs en toīs éthnesin dià tēs diakonías autoū, v. 19). Retribuição com bênção para a igreja. É preciso ser fonte de bênção, não de maldição, para a igreja da cidade. Quando os líderes da igreja de Jerusalém receberam o relatório de Paulo, eles “louvaram a Deus” (gr. edóxazon tòn theòn, v. 20a). Há várias maneiras pelas quais o pastor de uma congregação pode ser uma bênção para o corpo de Cristo na cidade inteira. Depende muito de o pastor encontrar e desenvolver o ministério específico no qual o Senhor deseja usá-lo. Paulo teve um ministério único entre os gentios, e esta foi sua contribuição especial à igreja de Jerusalém, que tinha apenas um membro gentio. A alegria dos líderes de

Jerusalém foi que o evangelho estava chegando, por meio de Paulo, a esferas que estavam fora do alcance de seu testemunho e de suas possibilidades. Solução de problemas. Os problemas locais precisam ser encarados com objetividade e realismo. Não há igreja que não tenha problemas, e o pastor recém-chegado não pode fingir que esses problemas não existem. Mesmo antes de Paulo chegar à cidade de Jerusalém, alguns crentes judeus “zelosos da lei” o estavam caluniando. Acusavam-no de ensinar os judeus no mundo gentio a se afastar de Moisés, a não circuncidar seus filhos e a não respeitar os costumes judaicos. Paulo não assumiu uma postura apologética nem ficou na defensiva. Aceitou a acusação como um desafio e, acatando o conselho dos líderes de Jerusalém, expressou sua fidelidade aos costumes judaicos mediante um ato público de respeito às leis cerimoniais (v. 21-24). Se o pastor recém-chegado a uma cidade começar a criticar os outros pastores, o conselho ou associação de pastores e tudo que as igrejas têm realizado de forma coesa, a única coisa que irá conseguir é ser tachado de arrogante, rotulado como pretensioso e rejeitado por ser orgulhoso. Postura paciente e tolerante. É preciso ser paciente e tolerante. Os líderes de Jerusalém não haviam evoluído nem amadurecido muito desde o Concílio de Jerusalém (15.1-35) no que dizia respeito à missão de Paulo aos gentios. Portanto, o conselho deles estava limitado a uma repetição do conteúdo da carta que anos antes tinham enviado às igrejas gentias (v. 25). Paulo poderia ter reagido com impaciência e tentado ampliar o estreito horizonte do entendimento missiológico dos líderes de Jerusalém, mas não o fez.

Com paciência e tolerância, mais uma vez aceitou os critérios e a decisão deles, embora esta não tenha chegado ao fundo da questão. Na verdade, não ia além da superfície, pois toda a ênfase residia em questões puramente formais e ritualísticas. Se o pastor recém-chegado a uma cidade, principalmente se acabou de sair do seminário, pressupõe que seus colegas estão errados, não têm atualização teológica ou se guiam por agendas anacrônicas, ele começará seu ministério de forma negativa e sofrerá rejeição de seus colegas, mesmo que esteja certo. Atitude de submissão às autoridades. É preciso obedecer às autoridades espirituais constituídas pelo Senhor sobre a igreja da cidade. Geralmente, essas autoridades espirituais são apóstolos e profetas, a quem Deus dotou de sabedoria e autoridade espiritual, não para destruir a igreja, mas para edificá-la.O grande Paulo entendeu isso e por esse motivo fez exatamente o que os apóstolos em Jerusalém lhe pediram (v. 26). Isso, sem dúvida, lhe rendeu a confiança e a aprovação das lideranças da cidade e garantiu o apoio e a ajuda deles quando mais tarde se viu diante de graves ameaças, até mesmo contra sua vida. Algo semelhante ocorre quando o pastor recém-chegado se submete à autoridade espiritual dos líderes locais, especialmente dos apóstolos e profetas autênticos reconhecidos pelos crentes como tais.

A PRISÃO DE PAULO EM JERUSALÉM (21.27-36) O preço do ministério apostólico (21.27-36)

Mais uma vez, Paulo teve de enfrentar seus antigos inimigos judeus da província romana da Ásia, que também tinham vindo a Jerusalém para a festa. A acusação dos judeus (v. 27-30). Dessa vez, a acusação deles era que Paulo andava ensinando “a todos em toda parte contra o nosso povo, contra a nossa lei e contra este lugar” (gr. ho katà toū laoū kaì toū nómou kaì toū tópou toútou pántas pantachēi didáskōn, v. 28). A acusação deles é similar à que foi feita contra Estêvão (6.13), com a qual Paulo concordou (22.20) antes de ter um encontro com Cristo. Mais grave ainda, segundo os acusadores, era que Paulo “fez entrar gregos no templo” (gr. héllēnas eisēgagen eis tò hieròn), o que era uma acusação falsa (v. 29). Os judeus da Ásia (Éfeso) conheciam Paulo e Trófimo e já haviam planejado matar Paulo (20.3); no entanto, agora tinham a oportunidade de fazê-lo com base nos preconceitos raciais dos judeus(v. 31,36). Armaram um escândalo tão grande que “toda a cidade ficou alvoroçada” (gr. ekinēthē te hē pólis hólē) e “juntou-se uma multidão”. Eles tentaram linchar Paulo fora do templo, mas “imediatamente as portas foram fechadas” (gr. euthéōs ekleísthēsan hai thýpai, v. 30). Esses judeus agiram exatamente da mesma forma que a multidão em Éfeso (cap. 19). É interessante que, tão logo o povo arrastou Paulo para fora do templo, “as portas foram fechadas”. Essa frase é de grande peso metafórico com respeito à missão de Paulo aos gentios e à sua

relação com os judeus mais conservadores. Como A. Scott Moreau observa: “Uma das primeiras ações após a acusação contra Paulo e o alvoroço da multidão é que as portas do templo foram fechadas (21.30). No sentido literal, a intenção era salvar o lugar sagrado de uma contaminação maior. No entanto, podemos ver metaforicamente as portas fechadas do templo como um fechamento do judaísmo para Paulo e para a igreja do Novo Testamento”.5 No entanto, o fechamento do templo significou também sua condenação, bem como a condenação da cidade. A exclusão da mensagem cristã e do mensageiro de Deus da casa antes chamada pelo nome divino selou sua condenação definitiva. O templo e a cidade estavam agora maduros para a destruição que Jesus havia predito para ambos muitos anos antes (Lucas 21.6). A intervenção dos romanos (v. 31-36). Felizmente para Paulo, o comandante militar romano (chefe de 1.000 soldados), a maior autoridade romana em Jerusalém, soube do que estava acontecendo e da Fortaleza Antônia (junto ao átrio do templo) enviou vários centuriões (chefes de 100 soldados), que interromperam o espancamento do apóstolo. Como bom corpo policial que eram (assim como toda força policial), os soldados prenderam Paulo e presumiram que ele era culpado (“o que tinha feito”, v. 33; cf. v. 38). Enquanto isso, a multidão estava fora de controle (v. 34,35), de modo que os romanos acharam mais seguro levar Paulo para dentro da fortaleza. O povo em massa não parava de gritar: “Acaba com ele!” (gr. aīpe autón) — as mesmas palavras que gritaram contra Jesus (22.22; Lucas 23.18; João 19.15). Há muitos paralelos entre o tratamento recebido por Paulo e Jesus por parte dos judeus e dos romanos.

TABELA 18: Testemunhas do Reino detidas ou presas O Novo Testamento apresenta numerosos casos de testemunhas do evangelho do Reino de Deus que foram presas ou encarceradas por isso. 1. João Batista (Marcos 1.14). 2. Jesus (Marcos 14.43-49). 3. Pedro e João (Atos 4.3). 4. Os apóstolos (Atos 5.17,18). 5. Estêvão (Atos 6.12). 6. Homens e mulheres (por Saulo) (Atos 8.3). 7. Parte da igreja (por Herodes) (Atos 12.1). 8. Tiago, irmão de João (por Herodes) (Atos 12.2). 9. Pedro (por Herodes) (Atos 12.3,4). 10 . Paulo e Silas em Filipos (Atos 16.22-24). 11 . Paulo em Jerusalém (Atos 21.33-36). 12 . Paulo em Cesareia (por Félix) (Atos 24.27). 13 . Paulo em Roma (Atos 28.16,20). 14 . Paulo e Onésimo em Roma (Filemom 9b,10). 15 . João em Patmos (Apocalipse 1.9).

O custo do ministério apostólico (21.27-36)

Se alguém pensa que o evangelho do Reino pode ser proclamado sem se pagar um alto preço por ele, está enganado. A experiência de Paulo e de seus companheiros em Jerusalém é eloquente a esse respeito. A resistência da ordem da maldade, o preconceito dos religiosos nominais e a corrupção política estarão sempre à espreita com a intenção de desferir um golpe mortal para silenciar o testemunho do Reino. Foi o que aconteceu com Jesus de Nazaré e irá acontecer sempre que alguém, cheio do Espírito Santo, apresentar evidências de que o Reino de Deus se aproximou do ser humano. Essa reação não é necessariamente imediata, mas pode vir lentamente e até mesmo fora do contexto no qual o evangelho foi inicialmente proclamado. Foi o que aconteceu com Paulo em Jerusalém. O apóstolo não se deteve em algum canto da cidade para proclamar o evangelho, nem o fez em uma sinagoga, como era seu costume fora da Palestina. Ele estava em Jerusalém, em contato com a comunidade de fé da cidade, e se achava no templo para cumprir o voto de purificação que os líderes cristãos lhe haviam pedido. Na verdade, estava prestes a concluí-lo após sete dias de fiel observância, de acordo com a lei cerimonial. Foi ali que alguns judeus da Ásia o viram e “agitaram toda a multidão e o agarraram”. Foi no contexto do cumprimento meticuloso de um rito judaico, com o qual Paulo não concordava, mas que aceitara por amor e respeito aos líderes judaico-cristãos de Jerusalém, que esses judeus não cristãos o acusaram de violar a lei cerimonial e a Lei mosaica. Na verdade, esses judeus da Diáspora levantaram duas acusações contra Paulo. Um mal-entendido proposital. A primeira acusação, na verdade, foi um mal-entendido, pois denunciaram Paulo por ensinar a todos e

em todos os lugares (algo um tanto exagerado) coisas contrárias à Lei de Moisés e ao templo. Howard I. Marshall comenta: “É irônico que tenha sido esta a acusação contra Paulo na hora em que ele mesmo estava cumprindo o rito de purificação, precisamente para não profanar o templo!”.6 É interessante que essa acusação era semelhante à que os judeus de Jerusalém haviam feito contra Estêvão anos antes. Nesse caso, o primeiro mártir cristão foi acusado falsamente, pois diziam: “Este homem não para de falar contra este lugar santo e contra a Lei” (6.13). Os judeus, porém, entenderam mal Estêvão e Paulo, assim como Jesus fora mal compreendido. Jesus havia falado de si mesmo como o cumprimento da Lei, do povo e do templo, e Estêvão e Paulo fizeram o mesmo. A quantas testemunhas fiéis do Reino se pode aplicar casos semelhantes de falsa acusação, apesar de seus nobres esforços para respeitar a lei, o povo e as instituições religiosas? Uma acusação gravíssima. A segunda acusação denunciava Paulo como culpado de ter trazido gregos (gentios) para o templo, o que era punível com a morte, porque significava sua profanação (v. 28b). Na opinião de Lucas, não se tratava de uma mentira deliberada (como no caso da acusação anterior), e sim de uma suposição feita por esses judeus quando viram um efésio (gentio) chamado Trófimo andando com Paulo pela cidade. A verdade é que Paulo não levou seu companheiro gentio ao átrio interno do templo, pois era estritamente proibido. Não há nem mesmo evidência de que ele o tenha levado ao átrio externo, onde os gentios podiam ficar. Havia uma cerca bem definida, que demarcava o limite entre um espaço e outro. Além disso, cartazes estavam distribuídos ao

longo da cerca com este aviso: “Nenhum estrangeiro pode transpor a cerca que rodeia o templo e seu pátio interno. Qualquer um que for apanhado fazendo isso será o responsável pela própria morte”.7 Em todo caso, com essas duas acusações — uma baseada em uma mentira e outra em uma meia verdade — teceu-se um argumento suficiente para alvoroçar a multidão, que acorreu em peso e começou a linchar Paulo. À semelhança de muitos outros servos de Deus em circunstâncias similares, a vida de Paulo foi salva de maneira providencial, porque a polícia interveio a tempo. Alguns soldados romanos da Fortaleza Antônia, próxima do templo, resgataram o apóstolo, que de outra forma teria sido apedrejado ou espancado até a morte. A história das missões está repleta de episódios como este. Eles mostram que, para o servo fiel, o sofrimento e o martírio podem vir ainda no começo do ministério, como foi o caso de Estêvão, ou bem mais tarde, depois de ele ter sobrevivido a vários perigos, como foi o caso de Paulo. No entanto, sempre haverá um preço a pagar por se proclamar com fidelidade o evangelho do Reino.

A DEFESA DE PAULO EM JERUSALÉM (21.37—22.16) O discurso de Paulo (21.37—22.16)

Paulo considera a possibilidade de discursar (21.37-40). Paulo não era um homem dado a improvisações, mesmo nos momentos de maior tensão em sua vida. Ele tinha a extraordinária capacidade de perceber quando uma boa oportunidade se apresentava para dar testemunho pessoal e pregar o evangelho, independentemente das circunstâncias. Assim que chegou à Fortaleza Antônia, sentindo-se mais seguro sob a custódia dos soldados romanos e diante da grande multidão que ali se aglomerava, considerou a possibilidade de falar àquela gente, mas para isso precisava da autorização da autoridade romana. O oficial romano que prendeu Paulo ficou admirado de ele falar grego (koiné) tão bem, porque pensava que ele era um rebelde egípcio do qual tinha ouvido falar (v. 38) e que havia provocado “uma revolta” entre os anos 52 e 57.8 Muitos dos “guerrilheiros” (gr. sikários, “portadores de adaga”, “terrorista”, “assassino”), membros de um grupo de nacionalistas fanáticos conhecidos no Novo Testamento como “zelotes” (Lucas 6.15; Atos 1.13), haviam sido mortos por soldados romanos anos antes. Longe de ser um subversivo, Paulo era um judeu, “cidadão [gr. polítēs] de Tarso”, com o qual afirmava sua cidadania de uma cidade importante. Paulo pediu permissão para falar ao povo, e o comandante a concedeu, talvez impressionado pela informação que o apóstolo lhe dera. Paulo assumiu a atitude de um grande orador grego, embora tenha falado à multidão em aramaico. Seu sotaque deve ter chamado a atenção do público, já que “todos fizeram

silêncio” (gr. pollēs sigēs genoménēs, v. 40b; 22.2), e o escutaram com atenção. Paulo começa seu discurso (v. 1-5). Ele começa a falar identificando-se com seu público: “Irmãos e pais” (gr. Ándres adelfoi kaì patéres, 22.1; Romanos 9.1-5; Filipenses 3.5) e declarando o propósito de suas palavras (“minha defesa” [gr. apología; cf. 25.16; 2Timóteo 4.16). Imediatamente, passa a apresentar seu currículo pessoal (v. 3): judeu (2Coríntios 12.22; Filipenses 3.5,6), nascido em Tarso, criado em Jerusalém, educado por Gamaliel, que era um rabino muito respeitado (5.34-40), citado na Mishná várias vezes. Paulo estudou na escola rabínica liberal de Hillel, onde foi “instruído rigorosamente” na Lei judaica (gr. pepaideuménos katà akríbeian toū patrōiou nómou), como bom fariseu que era (23.5; 26.5). Os fariseus eram comprometidos com uma obediência estrita à tradição oral (Talmude), que era uma interpretação do Antigo Testamento. Seu zelo religioso levou-o a perseguir os cristãos “até a morte” (v. 4; 8.13; 26.10; 7.58—8.1), dolorosa lembrança que o acompanhou ao longo de seu ministério (9.1,13,21; 22.4,19; 26.10,11; Gálatas 1.13,23; Filipenses 3.6; 1Timóteo 1.13) e que o fazia sentir-se o mais insignificante dos crentes (1Coríntios 15.9; 2Coríntios 12.11; Efésios 3.8; 1Timóteo 1.15). “Caminho” foi o primeiro nome da igreja cristã (9.2; 19.9,23; 22.4; 24.14,22) e se refere a Jesus como o “caminho” (João 14.6) e à fé bíblica como um estilo de vida (Deuteronômio 5.32,33; 31.29; Salmos 27.11; Isaías 35.8). Também indica as circunstâncias que o levaram a Damasco e o respaldo oficial de todos os anciãos do Conselho judaico à sua campanha repressora (v. 5).

Paulo continua seu discurso (v. 6-11). Ele prossegue com uma referência ao seu encontro pessoal com Jesus de Nazaré no caminho de Damasco, “por volta do meio-dia” (gr. perì mesēmbrían, v. 6), informação que não aparece em 9.3. Paulo compartilha seu testemunho pessoal três vezes em Atos (9.1-31; 26.4-18), mas só aqui e em 26.9 utiliza o nome de “Jesus, o Nazareno” (gr. Iēsoūs ho Nazōraīos). De acordo com o v. 7, seus companheiros “viram a luz, mas não entenderam a voz” (gr. óntes tò mèn fōs etheásanto tēn dè fōnēn ouk ēkousan), mas, como já se indicou, não há contradição com 9.7, pois, segundo a gramática grega, eles ouviram o som sem conseguir reconhecer as palavras. O que Jesus disse a Paulo é o mesmo que havia dito a Ananias (9.15,16). Paulo tinha uma missão bem específica e difícil de cumprir. De várias maneiras, a visão e a comissão de Paulo são semelhantes às de vários profetas do Antigo Testamento (Isaías 6; Jeremias 1; Ezequiel 2 e 3). A “luz vinda do céu” (gr. ek toū ouranoū… fōs) deixara-o cego, e talvez esta seja a raiz do problema físico que mais tarde Paulo chama “espinho na carne”. Se for o caso, pode ter sido a oftalmia, uma enfermidade comum dos olhos (Gálatas 4.13-15; 6.11) exacerbada ou causada por essa cegueira no caminho de Damasco. Paulo encerra seu discurso (v. 12-16). A descrição que Paulo faz aqui sobre Ananias (v. 12) é mais ampla que em 9.10. Ananias era um judeu devoto “fiel seguidor da lei” (gr. eulabēs katà tòn nómon), assim como Paulo, e provavelmente também era fariseu. Em 9.10, é dito que ele era um “discípulo”, razão pela qual era um judeu cristão que tinha o respeito da comunidade judaica de Damasco. O ministério de Ananias a Paulo mostra que, no Novo Testamento, não há distinção alguma entre categorias como “clérigos” e “leigos”.

Todos os crentes têm autoridade no nome de Jesus para impor as mãos (9.10), curar os enfermos (v. 13), comunicar a Palavra de Deus a uma pessoa (v. 14), profetizar de maneira pessoal a vontade de Deus para a vida de alguém (v. 15), batizar (v. 16), ser um instrumento para encher o crente com o Espírito Santo (9.17b) e declarar “irmão” alguém que tenha sido inimigo da fé (v. 13). A imitação de Paulo (22.14,15)

Um dos livros devocionais mais conhecidos de todos os tempos é Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis. Entre os devocionais de nossos dias, quem nunca leu ou ouviu falar do livro de Charles M. Sheldon, Em seus passos, que faria Jesus?, já mencionado? Ambos os títulos sugerem um ideal inspirador. No entanto, não nos passam eles a impressão de que propõem um ideal difícil, quase impossível de alcançar? Isso porque temos ciência de que Cristo é Deus, e, portanto, julgamo-nos incapazes de imitá-lo em tudo. No entanto, quando analisamos Paulo, encontramos uma possibilidade mais realista, que se afigura mais plausível. Paulo era um ser humano, e o que a graça de Deus fez por ele pode também fazer por outros seres humanos. Ele mesmo nos diz que sua vida foi transformada pela misericórdia de Cristo, para que se tornasse “exemplo para aqueles que nele haveriam de crer para a vida eterna” (1Timóteo 1.16; v. Filipenses 3.17; 2Tessalonicenses 3.9). Acompanhemos Paulo enquanto ele relata ao povo sua conversão e cita as palavras inspiradas de Ananias, o crente de Damasco enviado por Deus para revelar a Paulo a vontade deste para sua vida. Ao fazer isso, perceberemos três elementos.

O propósito de Deus. Diz o texto: “[...] para conhecer a sua vontade” (gr. se gnōnai tò thélēma autoū, v. 14). Há uma lição importante aqui. Deus tinha um grande propósito ao chamar Paulo. Como Davi, o apóstolo tornou-se a pessoa ideal para um grande plano (13.22). A vontade de Deus deve ser o objetivo da vida e a realização de tudo que há de bom em nós. A vontade de Deus é nossa salvação (Mateus 18.14); é nossa santificação (1Tessalonicenses 4.3); é nossa glorificação (João 17.24). Contudo, também há uma surpresa espantosa aqui. Paulo ignorava tudo que lhe estavam dizendo. Ele, um fariseu, erudito e membro do Conselho judaico, precisava ser exortado, redirecionado e confirmado pelo Senhor. Observe-se o nome usado para Deus nessa passagem: “o Deus dos nossos antepassados” (gr. ho theos tōn patérōn hēmōn). Era um título familiar para Paulo (5.30; 7.32; Êxodo 3.13,15). Mais tarde, porém, ele admitiria que não estivera seguindo o Deus de seus ancestrais, mas as “tradições dos meus antepassados” (Gálatas 1.14). Agora Paulo entendia que era preciso deixar de lado todo o preconceito e ser como uma criança (Mateus 18.3). O plano de Deus. Diz o texto: “[...] para [...] ver o Justo e ouvir as palavras de sua boca” (gr. ideīn tòn díkaion kaì akoūsai fōnēn ek toū stómatos autoū, v. 14). Por um lado, o plano de Deus era que seu propósito para a vida de Paulo fosse cumprido por meio do contato pessoal com Jesus (“ver o Justo”). Em resposta à pergunta de Paulo: “Quem és tu, Senhor?” (v. 8), Jesus não disse: “Eu sou o Filho de Deus”, porque Paulo teria negado que o estava perseguindo. Jesus respondeu: “Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem você persegue”, que para Paulo era um nome familiar e odiado.

Agora o nome de Jesus era “o Justo” (João 16.10). Os judeus o rejeitaram, mas Deus o exaltou (5.30,31). Paulo exigiu prova disso, mas agora percebia que Jesus estava realmente com o Pai. Precisamos dessa visão de Cristo todos os dias. Por outro lado, o plano de Deus era que seu propósito para a vida de Paulo fosse cumprido por meio da revelação pessoal de Jesus (“ouvir as palavras de sua boca”). Que golpe para o orgulho de Paulo, ouvir a voz de Deus dos lábios que ele odiava e desprezava, os lábios do Nazareno! Cristo é o maior de todos os canais da revelação divina. Ele é a palavra final de Deus. Devemos ouvir essa palavra divina todos os dias. O projeto de Deus. Diz o texto: “Você será testemunha dele a todos os homens, daquilo que viu e ouviu” (gr. hóti ésēi mártus autōi pròs pántas anthrōpous hōn heōrakas kaì ēkosas, v. 15). Tudo estava orientado para essa obra de testemunho. Observe-se a natureza da obra (“Você será testemunha”). Sua tarefa não era a de um juiz. Saulo já o havia tentado, com resultados desastrosos. Não era para ser um mero eco de uma mensagem, como algo vago, vazio, impessoal e sem vida. Não era para ser como um livro: válido como testemunho escrito no papel, mas nenhum livro é tão poderoso quanto uma “carta [viva] de Cristo” (2Coríntios 3.2,3). A tarefa de Paulo era testemunhar, ser uma testemunha viva com relação à verdade do evangelho e uma testemunha experimental com relação ao poder do evangelho. Não há outra palavra no Novo Testamento usada tantas vezes para expressar o serviço cristão quanto “testemunha”. Observe-se o alcance da obra (“a todos os homens”). Aonde quer que ele fosse e sempre que tivesse a oportunidade de falar, Paulo deveria se portar como uma testemunha do evangelho

para todos, sem exceção. Ou seja, para cada indivíduo. Todos deveriam receber o testemunho de Cristo. Esta é a razão pela qual Paulo se considerava “devedor” de todos (Romanos 1.14). O cristianismo dinâmico é uma vida que dá testemunho de Deus. Observe-se o poder da obra (“daquilo que viu e ouviu”). Para Paulo, era sua experiência pessoal. O poder do que “vimos e ouvimos” é incomparável. Não há testemunho mais eloquente que a experiência pessoal. Para os que ouviram seu testemunho, isso foi muito importante, pois o povo não queria ouvir discursos sobre o poder de Deus, mas ver e ouvir esse poder na vida de seus filhos. Deus tem um propósito, um plano e um projeto para cada um de nós. John R. W. Stott: “Entre esses dois poderes, um religioso e outro civil, um hostil e outro favorável, o de Jerusalém e o de Roma, Paulo viu-se encurralado, desarmado e vulnerável. Não se pode deixar de admirar sua coragem, principalmente quando se pôs de pé na escadaria da Fortaleza Antônia, diante da multidão furiosa que acabara de brutalizá-lo, sem outro poder senão o Espírito de Deus. Lucas parece querer apresentá-lo a nós como um modelo de valor cristão, de modo que, como escreveu Crisóstomo no final de sua quinquagésima e última mensagem sobre Atos, possamos ‘assemelhar-nos a Paulo e imitar aquela alma nobre e diamantina’. A fonte dessa coragem era sua serena confiança na verdade. Estava ciente de que os romanos não tinham acusação alguma contra ele. Estava convencido de que os judeus tampouco tinham de que acusá-lo, porque sua fé era a fé de seus ancestrais e porque o evangelho era o cumprimento da Lei. Acima de tudo, ele sabia que seu Senhor e Salvador Jesus Cristo estava com ele e cumpriria a promessa de que um dia, de alguma forma, ele testemunharia em Roma”.9

A VISÃO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.17-21)

Paulo encerra seu discurso fazendo referência a uma de suas várias visões celestiais (cf. 18.9,10; 23.11; 27.23,24), que teve depois de regressar a Jerusalém (v. 17). Seu testemunho, no cap. 9 e aqui, parece sugerir que ele voltou para Jerusalém imediatamente depois de sua conversão. Entretanto, Gálatas 1.11-24 fala de um período longo (três anos) que Paulo possivelmente passou na Arábia antes de chegar a Jerusalém. Na visão, Jesus o adverte de um complô contra ele (9.29). Paulo refere-se a Jesus como “Senhor” (v. 18,19). O antecedente gramatical desse título pode ser “o Deus dos nossos antepassados” (v. 14) ou “o Justo” (v. 14). A multidão de judeus entendeu que ele se referia ao Senhor; no entanto, se havia crentes entre eles, estes por certo perceberam que falava de Jesus. O Senhor foi bem específico em sua ordem: “Vá, eu o enviarei para longe, aos gentios” (gr. egō eis éthnē makràn exapostelō se, v. 21), uma referência óbvia às viagens missionárias de Paulo e, por fim, ao seu testemunho diante dos oficiais do governo romano na Palestina e também em Roma, perante César (23.11). Essa experiência de uma visão celestial não nos surpreende, uma vez que a Bíblia menciona numerosos casos desse tipo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Desse modo temos, só para lembrar algumas: a visão ou o sonho de Abraão (Gênesis 15.12-17); a visão de Jacó (Gênesis 28.10-15); a do faraó, no Egito (Gênesis 41.1-40); a de Micaías (1Reis 22.19-23); a de Isaías, no templo (Isaías 6.1-13); a de Ezequiel (Ezequiel 1.4-28); a de Daniel (Daniel 2.19-23); a de Nabucodonosor (Daniel 2.1-18); a de Zacarias

(Zacarias 1.7-21); a de Pedro em Jope (10.9-16); a de Paulo em Corinto (18.9,10); a de João em Patmos (Apocalipse 1.4—22.21). Essa passagem nos mostra um aspecto da personalidade de Paulo que nem sempre é levado em conta. Paulo é apresentado nesses versículos como um verdadeiro místico. Geralmente, pensamos no apóstolo como um grande missionário, mestre, pregador, escritor, estrategista e mártir. Nesse parágrafo, descobrimos um Paulo místico. Isso nos leva a indagar sobre como podemos ser místicos para servir melhor ao Senhor. Ao analisar o testemunho de Paulo, podemos levar em consideração três fatores: revelação, reconhecimento e reiteração. Revelação

O místico é alguém que recebe revelação do Senhor (v. 17,18). Paulo era um místico. As experiências espirituais místicas são legítimas e de grande riqueza. Na verdade, é bem provável que o apóstolo tenha recebido o evangelho por meio de uma visão. Não estamos falando de sua visão no caminho para Damasco, mas de outra, e, sem dúvida, foram muitas suas visões, como se pode inferir do que ele mesmo afirma em 2Coríntios 12.1. Nesse caso, o que Deus tinha a lhe revelar estava relacionado com seu futuro ministério como apóstolo dos gentios. A experiência de Paulo ocorreu no templo, prova de que, embora fosse cristão, Paulo honrava o lugar de adoração dos judeus. Isso aconteceu também enquanto Paulo estava orando, provavelmente em algumas das horas estabelecidas para a oração, e aconteceu em forma de êxtase, como no caso de Pedro (10.10), que também resultou em uma importante revelação missiológica. Aliás, essa não foi a única

experiência mística de Paulo. O Novo Testamento indica que Paulo ouvia vozes (22.7), falava em línguas (1Coríntios 14.18) e tinha sonhos (2Coríntios 12.1-4), visões (16.9; 18.9; 22.18; 23.11) e grandes revelações (2Coríntios 12.7). O Reino de Deus precisa de mais crentes místicos como Paulo. Homens e mulheres de adoração, oração e revelação, a quem Deus possa mostrar sua vontade. Cristãos que com a vida construam uma ponte entre o céu e a terra. Reconhecimento

O místico é alguém que se reconhece como pecador (v. 19,20). É interessante a reação de Paulo à palavra do Senhor. O apóstolo reconhece seus pecados e os guarda na memória. A graça perdoadora do Senhor não apagou a lembrança de sua perseguição contra os cristãos (v. 19) nem sua cumplicidade na morte de Estêvão (v. 20). No entanto, Paulo reconhece que até mesmo seus pecados podem ter um propósito redentor, uma vez que eles foram a força motriz de seu testemunho pessoal. Para ser místico, é preciso reconhecer-se pecador. Deus se esquece de nossos pecados, embora não devemos nos esquecer de que somos pecadores. Somente uma profunda consciência de pecado nos deixará em condições de experimentar uma comunhão profunda e íntima com o Senhor. Reiteração

O místico é alguém a quem Deus reitera sua confiança e sua comissão (v. 21). O Senhor não deu resposta aos argumentos de Paulo. Em vez disso, ordenou-lhe que deixasse Jerusalém outra vez

e o comissionou a pregar aos gentios. Deus quer nos revelar sua vontade. Ele pode fazer isso nos enviando para onde não queremos ir (“longe”). Ele também pode fazer isso ordenando que façamos o que não queremos fazer (“Vá”). Se quisermos ser místicos, é necessário que ouçamos sempre a voz do Senhor nos dizendo: “Vá, eu o enviarei para longe”. Henri J. M. Nouwen: “Os líderes cristãos não podem ser simplesmente pessoas que têm opiniões bem formadas a respeito das questões candentes de nosso tempo. Sua liderança deve estar arraigada a um relacionamento íntimo e permanente com a Palavra encarnada, Jesus, e eles precisam encontrar aí a fonte de suas palavras, conselhos e orientações. Por meio da disciplina da oração contemplativa, os líderes cristãos precisam aprender a ouvir constantemente a voz do amor e encontrar ali a sabedoria e a coragem para enfrentar qualquer questão que surja em seu caminho. Lidar com questões candentes sem estar arraigado a um relacionamento pessoal profundo com Deus facilmente conduzirá à dissociação, porque, antes que o saibamos, nosso senso de identidade está preso à nossa opinião sobre determinado assunto. Contudo, se estivermos firmados em uma intimidade pessoal com a fonte da vida, conseguiremos ser flexíveis sem ser relativistas, convencidos sem ser rígidos, dispostos ao confronto sem ser ofensivos, gentis e perdoadores sem ser frouxos e testemunhas verdadeiras sem ser manipuladores. Para que a liderança cristã seja verdadeiramente frutífera no futuro, é necessário um movimento do moral para o místico”.10

O INTERROGATÓRIO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.22-29)

Esses versículos registram outra vez duas instâncias em que a lei e a justiça romanas julgaram a favor de Paulo. Na primeira, o comandante ou tribuno Cláudio Lísias (23.26) resgata o apóstolo do linchamento; na segunda, ao saberem que Paulo era romano, ele eximiu de ser açoitado. Os preconceitos sectaristas dos judeus

Os preconceitos raciais e religiosos da multidão de judeus ficaram evidentes assim que Paulo mencionou os gentios (v. 21). A expressão de desacordo (gritando e “tirando suas capas e lançando poeira para o ar”, gr. konioròn ballóntōn eis tòn aéra) era típica da cultura palestina diante de uma blasfêmia (v. 22,23; cf. 14.14; Isaías 47; Lamentações 2; Miqueias 1.10). O alvoroço era tal que o comandante ordenou que Paulo fosse levado para dentro do quartel. Esse comandante (gr. chíliarchos, v. 27-29) era líder de 1.000 soldados, enquanto o centurião (v. 25,26) comandava 100 homens. Ele era o oficial a cargo da guarnição romana em Jerusalém, cujo quartel era a Fortaleza Antônia, que ficava ao lado da área do templo. Fora construída durante o período persa nos dias de Neemias (Neemias 2.8; 7.2), e Herodes, o Grande, deu-lhe esse nome em homenagem a Marco Antônio. Durante os dias de festa, a população de Jerusalém triplicava. Os romanos deslocavam um grande número de tropas de Cesareia para a Fortaleza Antônia como medida de segurança. Uma  vez dentro da fortaleza, o comandante ordenou que interrogassem Paulo por meio de açoites, para tirar a informação dele a chicotadas — uma forma de tortura, já

que muitos morriam no processo. Era mais severa que os golpes com vara, pois o chicote era cheio de tiras de couro que terminavam em peças cortantes de metal, pedra ou ossos. A tortura de prisioneiros para obter informação é uma prática muito antiga e que ainda é frequente. O rigor judicial romano

A condição de Paulo como cidadão romano. Já haviam começado a amarrar Paulo para açoitá-lo, quando ele, com grande tranquilidade, fez uma pergunta-chave de ordem jurídica: “Vocês têm o direito de açoitar um cidadão romano sem que ele tenha sido condenado?”. A mera indicação de que Paulo era “cidadão romano” deve ter paralisado todos os soldados, porque já estavam cometendo três transgressões graves da lei: 1) um cidadão romano não podia ser atado (21.33; 22.29); 2) um cidadão romano não podia ser açoitado;11 3) um cidadão romano tinha de ser julgado e considerado culpado para ser condenado (16.37). O centurião assustou-se ao ouvir Paulo e foi avisar seu comandante, que se apresentou imediatamente. O homem não conseguia acreditar que Paulo fosse cidadão romano, ainda mais porque ele, o comandante, havia pago uma fortuna para adquirir sua cidadania (v. 28). Havia três formas de se tornar cidadão romano: 1) por nascimento; 2) por prestar algum serviço especial ao Estado; 3) por comprar a cidadania.12 Paulo soa irônico quando responde ao assustado comandante: “Eu a tenho por direito de nascimento” (gr. egō dè kaì gegénnēmai). Os direitos de Paulo como cidadão romano. Paulo desfrutava de vários direitos como cidadão romano.13 1) Na esfera social: direito

de usar três nomes romanos; direito de usar a toga; direito de se casar com uma mulher romana; direito de transmitir a cidadania romana aos filhos. 2) Na esfera financeira: isenção do tributum (impostos para Roma). 3) Na esfera política: direito de votar, se estivesse em Roma; direito a uma audiência perante governantes e oficiais romanos nas províncias; direito de ser nomeado para cargos do governo; direito de se candidatar a eleições para o conselho municipal (decuria) de cidades da Itália e das províncias. 4) Na esfera jurídica: direito de assinar contratos sob o direito romano com garantias dentro do sistema legal romano; isenção de morte ou punição sem o devido processo de julgamento e recurso; direito a um julgamento perante um magistrado romano; direito de apelar para um julgamento diante do imperador (appellatio ad Caesarem); isenção de abuso físico durante o interrogatório; isenção da autoridade de funcionários locais não romanos; proteção contra acusações de não cidadãos; as mortes de cidadãos romanos eram investigadas pelo governo. Como se pode ver, Paulo, como cidadão romano, desfrutava esses vários e importantes direitos, os quais o ajudaram de maneira significativa nas esferas social, financeira, política e jurídica, permitindo-lhe exigir respeito e influência. Universalismo teológico cristão (22.22-29)

De todos os fatores que contribuíram com elementos importantes para ajudar o cristianismo a se desapegar do mundo antigo, nenhum foi mais determinante que o contexto hebraico em que nasceu o movimento cristão. A fé e a vida do povo de Deus criaram as condições ideais para o advento de Cristo e de todos os seus discípulos. A religião hebraica também contribuiu com instituições

como sinagogas e o trabalho dos escribas, que foram de suma importância no século I do movimento cristão. O mundo hebraico contribuiu para a difusão do cristianismo de seis maneiras: monoteísmo, Escrituras, Diáspora, sinagogas, universalismo e messianismo. De todas essas contribuições, a mais bem ilustrada em todo o processo da prisão de Paulo em Jerusalém (cap. 21—23) é o universalismo hebraico.A fé hebraica professava que a religião de Israel era para a bênção das nações. Essa compreensão do alcance universal da fé foi transferida do judaísmo para o cristianismo, o qual se transformou em uma religião verdadeiramente universal. O instrumento-chave nesse processo foi o apóstolo Paulo. Foi por meio de Paulo que se abriu a porta do cristianismo aos gentios. Poucos missionários tiveram alguma vez tantas vantagens quanto Paulo. O oficial romano que o prendeu após o tumulto em Jerusalém (21.33) deve ter pensado em três Paulos, não em um só. O apóstolo foi um verdadeiro protótipo de sua época. Em primeiro lugar, Paulo falou com o oficial em grego e lhe informou que era de Tarso, cidade onde havia uma universidade grega (21.37-39). Em segundo lugar, Paulo apaziguou a multidão falando com eles “em aramaico”, ou seja, na língua hebraica (21.40—22.2), quando fez referência à sua educação hebraica em Jerusalém. Em terceiro lugar, deixou apavorado o tribuno (que havia permitido aos seus soldados tratá-lo com grosseria) quando declarou que pertencia a uma família detentora do privilégio da cidadania romana (22.25-29). Paulo pertencia a estas três esferas ou mundos: era grego, hebreu e romano, mas, acima de tudo, era um missionário cristão com uma mensagem de vida nova que se destinava a todas as nações.

Desse modo, Paulo representa também um protótipo do universalismo cristão, tanto no alcance de sua proclamação da mensagem evangélica quanto com relação aos recursos de que dispunha para fazê-lo. Na verdade, quanto mais cosmopolita, globalizado e versátil for o agente da proclamação do evangelho, mais eficaz será em comunicá-lo e mais amplo será o alcance de seu ministério. Em um mundo globalizado como este em que vivemos e com a disponibilidade de tecnologias tão avançadas de comunicação, não é possível aceitar provincialismos na visão missionária, fundamentalismos nas formulações teológicas, preconceitos na participação do ministério e isolamento na comunicação da mensagem. A missão cristã hoje consiste na proclamação de todo o evangelho a todas as pessoas, de todas as culturas, etnias e povos, pelo uso de todos os meios de comunicação possíveis e disponíveis, com todo o poder e autoridade que todos os crentes recebem do Espírito Santo.

O JULGAMENTO DE PAULO EM JERUSALÉM (22.30—23.11) Defesa perante o Conselho judaico (22.30—23.11)

Quando percebeu que estava de mãos atadas para conseguir as informações que desejava extrair de Paulo, visto que não podia aplicar o protocolo regular, em razão do seu status de cidadão romano, Cláudio Lísias tentou empurrar o problema para as autoridades religiosas judaicas. Afinal, eram elas que mais tumulto faziam contra o apóstolo. O comparecimento de Paulo (22.30). O apóstolo ficou na Fortaleza Antônia, não como prisioneiro condenado, mas como cidadão romano protegido pelas tropas do império. O comandante postergou até o dia seguinte uma investigação mais minuciosa sobre o motivo pelo qual os judeus queriam linchá-lo no dia anterior. Depois de liberar Paulo, convocou os líderes judeus (“chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio”), para uma audiência entre eles e Paulo, a fim de julgá-lo, talvez em um lugar neutro, fora da fortaleza (provavelmente ao pé da escadaria que levava a ela e a conectava com o átrio do templo). Isso mostra o poder de polícia dos romanos. Também é possível que o acusado tenha sido levado para algum lugar no complexo do templo, onde o Conselho judaico (Sinédrio) se reunia regularmente. Se for esse o caso, então Paulo estava na mesma sala em que, mais de vinte anos antes, Estêvão fizera sua magistral defesa. Além disso, é provável que na época Saulo fosse membro do Sinédrio e tivesse participado de sua condenação. É interessante que Estêvão, em seu discurso, abordou primeiramente a questão da possibilidade de alguém ser salvo à

parte da Lei e do templo judaicos e que foi por causa de ideias como esta que ele acabou sendo apedrejado até a morte. Agora, Paulo estava ocupando o lugar dele, e com as mesmas ideias. Nada havia mudado. Os líderes judeus continuavam cegos, aferrados às suas ideias tradicionais e dispostos a condenar à morte qualquer dissidente. No caso de Paulo, porém, a situação era mais grave, porque se acrescentou ao que já fora dito o fato de que Paulo não considerava os gentios fora dos propósitos redentores de Deus. Desse modo, somou-se o preconceito religioso ao preconceito racial e étnico. A defesa de Paulo (23.1,2). Ao comparecer perante as autoridades judaicas, Paulo, “fixando os olhos no Sinédrio” (gr. atenísas dè ho Paūlos tōi synedríōi), tomou a palavra, já que a lei romana estava do lado dele. Com segurança, começou a falar para ganhar a simpatia de seus interlocutores judeus, a quem se referiu como “irmãos” (13.26,38; 22.1,5; 23.1,5,6). É provável que o apóstolo conhecesse pessoalmente alguns membros do Sinédrio. Assim, tentou se apresentar como um judeu íntegro diante de Deus (2Coríntios 1.12; 2Timóteo 1.3). Isso foi inaceitável para o sumo sacerdote Ananias (no hebr., Hananiah; era filho de Nebedeu), que fez algo totalmente inadequado (abuso de autoridade) na presença da autoridade militar romana, que estava mantendo a ordem pública no local: “Deu ordens aos que estavam perto de Paulo para que lhe batessem na boca” (gr. epétaxen toīs parestōsin autōi týptein autoū tò stóma), como se este houvesse proferido uma blasfêmia (João 18.22). Aparentemente, Ananias não sabia que Paulo era cidadão romano e pensava que podia fazer o que quisesse com ele. Flávio Josefo faz várias referências a ele em seus escritos.14

A reação de Paulo (v. 3-5). Os romanos não reagiram, mas Paulo sim, e de maneira enfática! Chamou o sumo sacerdote de hipócrita, que literalmente significa “parede branqueada” (gr. toīche kekoniaméne; Mateus 23.27) e o amaldiçoou (“Deus te ferirá”; Ezequiel 13.10-15), e isso, sim, foi blasfêmia, embora dirigida ao sumo sacerdote! Ananias, porém, havia agido fora da lei romana e também da lei judaica (Levítico 19.15; João 7.51). Imediatamente, os auxiliares do sumo sacerdote intervieram para informar Paulo de que ele havia insultado ninguém menos que o sumo sacerdote. Aparentemente, Paulo não o havia identificado como tal, talvez 1) por ser míope; 2) porque não o conhecia, uma vez que estivera fora de Jerusalém vários anos; 3) porque o religioso não estava vestido com sua roupa oficial; 4) porque não sabia quem estava falando, por não lhe ter sido apresentado previamente; 5) porque agiu com sarcasmo. A questão é que Paulo se desculpou, fundamentando nas Escrituras (Êxodo 22.28) sua retratação. A estratégia de Paulo (v. 6-10). Nesse momento, Paulo deu-se conta de que alguns membros do Conselho judaico eram saduceus, e outros fariseus, o que significava que ele, sendo um fariseu declarado, não iria se sair bem nesse julgamento com um sumo sacerdote saduceu como Ananias (26.5; Filipenses 3.5,6)! Para piorar, os fariseus geralmente constituíam o Sinédrio como grupo minoritário. Então, com muita habilidade, mudou de estratégia. Apresentou-se como “fariseu, filho de fariseu” (gr. egō farisaīós eimi) e propôs uma questão que estava totalmente fora do debate naquele momento: sua convicção farisaica quanto à ressurreição dos mortos. Assim, Paulo dividiu seus juízes e acusadores ao introduzir um tema teológico que era fonte de grandes debates e

conflitos entre saduceus e fariseus. Os primeiros negavam a vida após a morte, enquanto os segundos a afirmavam (Jó 14.14; 19.2327; Daniel 12.2). Isso pôs as duas facções do Sinédrio uma contra a outra (v. 7-10), e Paulo conquistou o apoio dos fariseus. A assembleia não só se dividiu, mas produziu um alvoroço tão violento que o comandante “ordenou que as tropas descessem” (da escadaria da fortaleza?) para retirar Paulo do recinto e levá-lo para o quartel. Foi a segunda vez que os romanos salvaram a vida de Paulo em Jerusalém. Dessa maneira, Paulo ficou na fortaleza, sob a proteção dos soldados romanos. A visão de Paulo (v. 11). Naquela noite, Paulo teve uma visão em que o Senhor lhe deu ânimo (18.9,10; 22.17-19; 27.23,24) e confirmou que Paulo seria sua testemunha também em Roma. A vontade de Deus para Paulo era que ele fosse preso para que pudesse se apresentar perante César. O evangelho seria pregado em Roma (19.21; 22.21), e por meio de Paulo. É bem provável que Paulo tenha planejado cada uma dessas etapas em detalhes, convencido que estava da necessidade de chegar com o testemunho cristão à capital do império romano e de ir além. O substantivo “visão” ocorre 13 vezes em Atos, e Lucas parece lhe dar muita importância. Nesse caso, tratou-se de uma experiência de alto conteúdo revelador para o apóstolo Paulo, pois lhe indicou com total clareza seu destino missionário, de acordo com os desígnios de Deus. Infelizmente, a ênfase nas visões como meio de revelação de Deus não tem sido significativa nos círculos evangélicos. Pelo contrário, seu valor é subestimado, sob o argumento de que são perigosos excessos de subjetividade ou de emocionalismo, que podem resultar em abuso. Na verdade, esta

tem sido a atitude do protestantismo em geral com respeito às visões desde os dias da Reforma. Muitos dos grandes teólogos protestantes do século XX, como Karl Barth, Rudolf Bultmann, Emil Brunner e Gerhard Ebeling, mostravam-se hostis à própria ideia do misticismo cristão. Para eles, o misticismo era um elemento essencialmente pagão, que havia sobrevivido no catolicismo romano e nas igrejas orientais. Esses teólogos desconfiavam de tudo que pudesse soar como subjetivismo ou emocionalismo. Por isso, opunham-se a qualquer manifestação exaltada de fé e aos sentimentos religiosos próprios do avivamentismo e do pietismo. Desse modo, ajudaram a desqualificar todo tipo de experiência extática ou de uma espiritualidade mais expressiva e emocional, como a que caracteriza o pentecostalismo e o movimento carismático latino-americanos. Relacionamento com o Senhor (23.11)

Ninguém pode ler a vida de Paulo e suas epístolas sem perceber que ele era um homem de grandes projetos e planos, de uma compreensão plena do evangelho e de como deveria ser divulgado. É precisamente a profundidade de seu compromisso e a clareza de seus conceitos que fazem dele o cristão mais destacado de todos os tempos e o mais notável estrategista missionário. Um de seus princípios missiológicos era dar testemunho do evangelho nos grandes centros urbanos, em um leque de cidades que iam de Antioquia, na Síria, a Roma. Contudo, Paulo também era um homem simples e humilde, um ser humano que precisava de companhia e de afeto. Sua personalidade forte e intensa não

escondia sua suscetibilidade e sua sensibilidade. Ele não era um homem de aço, mas de carne e osso. É por isso que Paulo muitas vezes fez questão de incentivar os outros. Ele sabia muito bem e por experiência própria que nós, humanos, precisamos do incentivo e do encorajamento de terceiros. No caso de Paulo, essa necessidade raramente foi maior que nas circunstâncias descritas em Atos 23. Provavelmente, após as tensões vividas durante seu confronto com o Conselho judaico, Paulo deve ter ficado muito frustrado ao ver seus planos desmoronando. É nesse contexto de contradição e aparente frustração que o Senhor apareceu outra vez a ele em uma visão noturna e lhe deu uma palavra de encorajamento e de orientação. Ao reler esse versículo, percebemos três aspectos. A presença do Senhor. Para Paulo, foi uma presença oportuna (“Na noite seguinte”, gr. tēi dè epiousēi nyktí). O Senhor não esperou para animar seu servo abatido. O Senhor sempre aparece em nossas horas mais sombrias para nos encorajar. Foi também uma presença inspiradora (“o Senhor, pondo-se ao lado dele”, gr. epistàs autōi ho kýrios). Observe-se o caráter pessoal de sua presença. O Senhor veio até ele para lhe trazer ânimo, coragem e força e para revelar a honra que seria concedida ao seu servo. A presença do Senhor é sempre fonte de inspiração e de encorajamento. Devemos cultivar de forma disciplinada o hábito de permanecer na presença do Senhor, se quisermos ter uma visão de Deus que nos dê segurança e coragem para enfrentar as tempestades da vida. Diogenes Allen: “O objetivo final da vida cristã é a visão de Deus. A palavra ‘visão’ indica um conhecimento direto de Deus, pelo qual somos postos face

a face com ele sem nada entre nós, por assim dizer. O amor ao próximo e a Deus eventualmente nos leva à presença divina, que de outro modo só conhecemos de forma indireta, por meio do que Deus cria, orienta e revela. Graças à perfeição do amor e de nossa ressurreição da morte, temos finalmente condições de estar presentes diante de Deus e, no caso dele, de estar presente de forma plena para nós. A expressão ‘visão de Deus’ (ou ‘visão beatífica’, como é chamada com frequência) implica que estamos na presença do bem supremo. Uma vez que Deus é a fonte de toda bondade, acima de todos os bens criados que desejamos e admiramos, estar em contato direto e íntimo com Deus é achar-se em um estado de deleite”.15

A palavra do Senhor. Para Paulo, aquela foi uma palavra de incentivo (“Coragem!”, gr. Thápsei). Depois de um dia de provas e lutas, essa palavra deve ter sido muito bem-vinda a Paulo. O Senhor sempre tem uma palavra para nós nos momentos de maior necessidade. Foi também uma palavra pessoal, pois era dirigida exclusivamente ao apóstolo. O Senhor falou pessoalmente com seu servo. Imagine ser capaz de ouvir o próprio nome vindo dos lábios do Senhor! Além disso, foi uma palavra de apreço (“Assim como você testemunhou a meu respeito em Jerusalém”, gr. hōs gàr diemartýrō tà perì emoū eis Ierousalēm). A obra de Paulo recebeu destaque e aprovação do Senhor (Hebreus 6.10). O Senhor está bem ciente do que fazemos por ele. O propósito do Senhor. Esse propósito é sempre o mesmo (“Assim”, gr. hōs). O advérbio de modo no início da frase refere-se ao que o apóstolo fazia o tempo todo. O Senhor não nos pede nada novo: deseja que façamos o que sempre soubemos que devemos fazer. Trata-se também de um imperativo (“deverá”, gr. hoútō dè deī). O Senhor precisa de nosso testemunho a outros. O mundo também precisa de nosso testemunho, assim como nós mesmos precisamos testemunhar. Além disso, o propósito do Senhor é

transcendente, porque extrapola determinado espaço e lugar (“também em Roma,” gr. kaì Hrōmēn). Por fim, o propósito do Senhor vai além do tempo. Paulo viveria até cumprir esse propósito. Não é o destino que governa nossa vida, e sim o propósito de Deus. Paulo enfrentou grandes dificuldades, mas esses embaraços não são necessariamente provas de infidelidade. As dificuldades pelas quais passamos são bem conhecidas do Senhor. Na verdade, são um incentivo para continuar lutando e têm o objetivo de nos ajudar a descansar com mais confiança no Senhor (Isaías 50.7).

A CONSPIRAÇÃO CONTRA PAULO EM JERUSALÉM (23.12-22) A conspiração dos judeus (23.12-15)

Os v. 12-15 informam sobre a conspiração de alguns judeus contra Paulo, só que nesse caso a determinação deles era maior do que nunca, pois fizeram um pacto sob maldição, comprometendo-se a não comer nem beber “enquanto não matassem Paulo” (gr. apokteínōsin tòn Paūlon). Os participantes da conspiração eram “mais de quarenta” (gr. pleíous tesserákonta), que se apresentaram perante os líderes judeus (o Sinédrio) para envolvê-los também na conspiração. O plano era matar Paulo quando ele não contasse com a proteção romana, a caminho de uma reunião com o Conselho judaico fora do quartel onde estava alojado. Entretanto, não havia plano humano que pudesse frustrar os desígnios divinos, porque “o sobrinho de Paulo, filho de sua irmã, teve conhecimento dessa conspiração” (gr. akoúsas dè ho huiòs tēs adelfēs Paúlou tēn enédran) e foi ao quartel avisar o tio. Não sabemos quem era esse jovem nem como soube da conspiração, que, por certo, implicava matar alguns guardas romanos também, já que Paulo não iria sair da fortaleza sem escolta. Depois de ser alertado pelo sobrinho de Paulo, o comandante ordenou que dois centuriões com suas tropas (200 soldados de infantaria, 70 de cavalaria e 200 lanceiros) escoltassem Paulo naquela noite, saindo às 9 horas para Cesareia, onde ficava o comando romano central na Palestina. Em vez de ser assassinado naquela noite, Paulo partiu para Cesareia a fim de se apresentar “em segurança” ao “governador Félix”, um homem cruel e lascivo.

Conspirações contra os cristãos (23.12-22)

Os judeus que tinham vindo da Ásia (Éfeso) com o objetivo de riscar Paulo do mapa ficaram frustrados e fervendo de raiva por não terem conseguido levar a cabo o que se haviam proposto. Os líderes do Conselho judaico (Sinédrio) também ficam furiosos por não terem sido capazes de condenar o pregador cristão por alguma ofensa. Isso explica quão ridícula se mostrou a conspiração contra o apóstolo. De fato, um plano pensado e desenhado com a precisão de um relógio foi por água abaixo, sem que Paulo tivesse levantado um dedo para impedi-lo. É porque não há plano, por mais bem arquitetado e cruel, que possa desviar os desejos divinos operados por meios de seus dedicados servos. Bem declarou o profeta Isaías: “ ‘Nenhuma arma forjada contra você prevalecerá, e você refutará toda língua que a acusar. Esta é a herança dos servos do Senhor, e esta é a defesa que faço do nome deles’, declara o Senhor” (Isaías 54.17). A intervenção providencial de Deus. A intervenção providencial a favor dos servos e servas de Deus sempre vai além do que pedimos ou entendemos. Contra os 40 que conspiraram para matar Paulo (v. 12,13), Deus providenciou 470 soldados para protegê-lo. Geralmente, é isso que acontece. Quando o rei da Síria enviou “uma grande tropa com cavalos e carros de guerra” para prender o profeta Eliseu e silenciá-lo, o servo deste ficou chocado ao vê-los se aproximar. Calmamente, o profeta respondeu: “ ‘Não tenha medo. Aqueles que estão conosco são mais numerosos do que eles’. Eliseu orou: ‘Senhor, abre os olhos dele para que veja’. Então o

Senhor abriu os olhos do rapaz, que olhou e viu as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de Eliseu” (2Reis 6.11-18). A mudança da situação. É notável a maneira pela qual o Senhor faz que aqueles que antes, com total indiferença, nos reprovavam quando anunciávamos Cristo (pondo a vida em risco por causa disso), especialmente as autoridades políticas, hoje tenham uma atitude positiva e tolerante para com o evangelho, quando não se tornaram irmãos na fé. A carta que o comandante Cláudio Lísias enviou ao governador Félix é prova disso. Nesse episódio, alguns fatos se destacam. Não há dúvidas de que Cláudio Lísias fez um enorme esforço para se apresentar como aquele que salvou o cidadão romano Paulo da morte certa nas mãos dos judeus e chama a atenção para o tratamento especial que lhe dispensou. O comandante também se apresentou como um oficial romano que seguiu os trâmites legais estabelecidos em tal caso, apesar de as acusações serem puramente religiosas e sem implicações políticas, as quais eram alvo de maior preocupação dos romanos. Acima de tudo, destacou seu papel fundamental em frustrar a conspiração de morte contra a vida de Paulo e enviá-lo a uma instância mais elevada — no caso, o governador. Com tudo isso, Lísias não fez nada além de orquestrar uma boa publicidade para si mesmo e assim se promover perante seus superiores. Observe-se o número de vezes que o pronome da primeira pessoa, “eu”, aparece na carta. Além disso, nove dos verbos mais importantes estão na primeira pessoa do singular. Contudo, uma questão permanece: como Lucas podia ter um conhecimento tão evidente da identidade desse comandante militar, a quem designa pelo nome? E como sabia do conteúdo da carta de

apresentação de Paulo, a ponto de transcrevê-la com tantos detalhes em seu livro? Suspeita-se que Cláudio Lísias se tornou cristão. Assim, Lucas conhecia-o pessoalmente e se aproveitou dele como testemunha de vários detalhes desconhecidos por Paulo, incluindo o conteúdo da carta. Se for esse o caso, isso mostra mais uma vez o poder de Deus, que transforma os inimigos de ontem em irmãos na fé hoje.

1. Los Hechos de los Apóstoles: un comentario, p. 465. 2. Los Hechos de los Apóstoles, p. 156. 3. The Narrative Unity of Luke-Acts: A Literary Interpretation, v. 2, p. 268. 4. St. Luke’s Missiology: A Cross-Cultural Challenge, p. 134. 5. A. Scott MOREAU, Do the Right Thing: But Results Are Not Guaranteed, in: Paul HERTIG & Robert GALLAGHER (Orgs.), Mission in Acts: Ancient Narratives in Contemporary Context, p. 280. 6. The Acts of the Apostles, p. 347. 7. Apud F. F. BRUCE, Commentary on the Book of Acts, p. 434. V. Flávio Antiguidades judaicas, 15.11.5; Guerras dos judeus, 5.5.2.

JOSEFO,

8. Flávio JOSEFO, Antiguidades judaicas, 20.8.6, 10; Guerras dos judeus, 2.13.5. Josefo usa a mesma palavra que Lucas. 9. El mensaje de Hechos, p. 427-428. 10. In the Name of Jesus: Reflections on Christian Leadership, p. 31-32. 11. TITO 13.

LÍVIO,

História de Roma, 10.9.4;

MARCO TÚLIO CÍCERO,

Pro Rabirio, 4.12,

12. DIÃO CÁSSIO, História de Roma, 60.17.5, 6. 13. V. Adrian N. SHERWIN-WHITE, Roman Society and Roman Law in the New Testament: The Sarum Lectures 1960-1961; idem, The Roman Citizenship. 14. Quando ele se tornou sumo sacerdote (Antiguidades judaicas, 20.5.2; Guerras dos judeus, 2.12.6); quando ele e seu filho Anano foram enviados como prisioneiros a Roma (Antiguidades judaicas, 20.6.2); quando foi assassinado por insurgentes, com seu irmão (Guerras dos judeus, 2.17.9). 15. Spiritual Theology: The Theology of Yesterday for Spiritual Help Today, p. 25.

CAPÍTULO 12

O TESTEMUNHO EM ROMA Atos 23.23—28.31

P a

essoas e circunstâncias são tão fugazes quanto fumaça ou efêmeras como uma flor. No entanto, quando alguém expressa irrupção do transcendente na realidade humana e as

circunstâncias em que vive são mais uma engrenagem no desenvolvimento do plano divino de salvação da humanidade, ele se torna personagem e circunstâncias no palco da manifestação divina. Nesse sentido, Félix é irrelevante, enquanto Paulo é o grande agente de Deus para a defesa do evangelho perante qualquer pessoa. Suas prisões não são a má sorte de um indivíduo, mas ocasiões para o evangelho ser anunciado em esferas de poder que de outra forma seriam inatingíveis. A ênfase de Lucas em Atos é na apologética de alta voltagem e atinge determinado clímax com os discursos de Paulo em Cesareia, nos quais ele afirma a pureza de sua doutrina com relação à religião secular dos judeus. Paulo demonstra a injustiça da oposição cega do establishment judaico, ao mesmo tempo que continua a vincular sua nova fé cristã à velha tradição do Antigo Testamento, considerada religio licita pelos romanos. Desse modo, a apologia do apóstolo torna-se uma chave positiva no anúncio do evangelho, mesmo com risco de vida.

PAULO EM CESAREIA (23.23-35)

Paulo foi enviado pelo comandante da guarnição de Jerusalém a Cesareia sob uma forte escolta, a fim de impedir qualquer atentado contra a pessoa do apóstolo. O objetivo (v. 23-25). O objetivo era transferir o apóstolo, na condição de cidadão romano prisioneiro, para comparecer perante o governador Félix. De acordo com o historiador Tácito, Félix “administrava o poder de um rei com a mente de um escravo”.1 Era casado com Drusila, filha de Herodes Agripa I. Félix obteve seu posto por meio do irmão Palas (ambos libertos), que era amigo próximo do imperador Cláudio. Serviu como décimo primeiro procurador da Palestina de 52 a 59. Mais uma vez, os romanos salvaram a vida de Paulo. O que teria acontecido com os 40 homens que haviam jurado, sob maldição, não comer nem beber até conseguirem matar Paulo? Será que morreram de fome e de sede? A carta (v. 26-30). Entre outras medidas tomadas pelo comandante de Jerusalém (Cláudio Lísias), ele escreveu uma carta ao governador Félix resumindo o processo contra Paulo até o momento (v. 26-30). A carta não era uma recomendação a favor de Paulo, mas um favor para si mesmo, além de oficializar sua elegante saída do caso. É interessante o padrão de Lucas ao mostrar que o cristianismo e seus líderes, cada vez que eram acusados diante de oficiais romanos, geralmente eram perdoados e considerados inocentes (v. 29). Lucas (assim como Paulo) sempre se mostra favorável à justiça do império romano. Nesse caso, o sistema operou com precisão. Os soldados seguiram ao pé da letra o que

lhes fora ordenado e levaram Paulo à noite até Antipátride (localização desconhecida). Essa cidade havia sido construída por Herodes, o Grande, que deu a ela o nome do pai, Antípatro II. A marcha noturna cobriu cerca de 50 quilômetros. Dali a infantaria voltou para o quartel em Jerusalém, e a cavalaria seguiu adiante com o traslado. Provavelmente, isso aconteceu porque a maior parte da região era gentia, e o terreno era mais aberto, com menos perigo de um ataque-surpresa. O contingente (v. 31-35). O grupo chegou a Cesareia, onde entregaram a carta ao procurador e lhe apresentaram Paulo. Félix perguntou a Paulo de que província este era, para se assegurar de que estava sob sua jurisdição. Pelo fato de Paulo ser de uma província imperial, Félix podia tratar do caso. Havia três divisões jurisdicionais no império romano: 1) imperial (sob César); 2) senatorial (sob o Senado); 3) local (como a de Herodes). Félix ajustou-se ao direito processual ao indicar a Paulo que lhe daria uma audiência quando seus acusadores chegassem, ou seja, os judeus da Ásia que acusavam o apóstolo de introduzir um gentio no templo. Mais uma vez, os romanos manifestaram seu favor a Paulo ao alojá-lo sob custódia nada menos que “no palácio de Herodes” (construído por Herodes, o Grande), que na época era usado como quartel-general romano. John R. W. Stott: “Esses capítulos mostram claramente a grande habilidade de Lucas como historiador e teólogo, para não mencionar a inspiração do Espírito Santo. O futuro do evangelho estava em jogo, com forças poderosas se agrupando a favor dele e contra ele. De um lado, estavam os perseguidores judeus, preconceituosos e violentos. Do outro lado, os romanos, de mente aberta e dispostos a manter os elevados padrões da lei, da justiça e da ordem, dos quais seus melhores líderes se orgulhavam.

Quatro vezes resgataram Paulo da morte por linchamento ou por assassinato (21.32,33; 22.23,24; 23.10,23,24) e o mantiveram sob custódia até que as acusações fossem esclarecidas ou, quando consistentes, apresentadas em juízo. No relato de Lucas, por três vezes Paulo é declarado ou está a ponto de ser declarado inocente”.2

PAULO PERANTE FÉLIX (24.1-27)

O texto fala de Paulo perante Félix, mas na verdade deveria falar de Félix perante Paulo, o apóstolo. O relato apresenta Paulo como figura central e dominante, firme na dignidade da verdade e rodeado da grandeza da justiça. O corrupto governador (procurador) romano não apareceria na história se não fosse pela menção que Lucas faz a ele com relação a Paulo. O prisioneiro, por sua vez, chegou a ser uma das maiores influências de toda a história universal. Um processo injusto (24.1-27)

Seis aspectos se destacam nessa passagem:1) os acusadores (v. 1); 2) a acusação (v. 2-6a); 3) o testemunho (v. 6b-9); 4) a defesa (v. 10-21); 5) a decisão (v. 22,23); 6) o resultado (v. 24-27). 1) Os acusadores (v. 1). O primeiro deles era o sumo sacerdote Ananias (23.2-5).Veio acompanhado de Jerusalém de alguns líderes dos judeus (23.14) e de um advogado de acusação (fiscal) chamado Tértulo, romano contratado pelos judeus em razão do seu conhecimento da lei romana e da sua eloquência em latim. O discurso de Tértulo mostra sua oratória hábil, uma vez que começou adulando Félix sobre premissas falsas, que ele conhecia bem, assim como quem o contratara (v. 2,3). Félix havia reprimido os arruaceiros e os rebeldes (21.38), havia posto fim aos levantes na Palestina e imposto a pax romana pela força da espada. Contudo, também havia provocado muito descontentamento e o assassinato de um sumo sacerdote. Todos os acusadores de Paulo eram hipócritas e mentirosos.

2) A acusação (v. 2-6a). Tértulo acusou Paulo de três coisas. Primeira: sedição, ou seja, um delito contra o Estado romano (v. 5a). A falsidade dessa acusação é óbvia. A verdadeira motivação dos judeus era igualmente clara. Segunda: sectarismo, ou seja, um delito contra a comunidade judaica (v. 5b). Paulo teve de admitir a meia verdade sobre isso mais adiante (v. 14), embora não fosse justo acusá-lo de ser um “perturbador” (gr. loimòn) e um perigo para a comunidade judaica como líder de uma seita chamada “dos nazarenos” (gr. tōn Nazōraíōn). O nome do povo de Nazaré é usado em Atos com relação ao nome de Jesus (2.22; 3.6; 4.10; 6.14; 22.8), e muitas vezes com desdém (6.14). Parece que o lugar não tinha uma fama muito boa (João 1.46), embora não saibamos por quê. Aqui, o vocábulo “nazareno” (Mateus 2.23, provavelmente se referindo a Isaías 11.1; v. Marcos 1.24) é aplicado pela primeira vez aos seguidores de Cristo, e com o passar do tempo a palavra foi usada com maior frequência pelos judeus para se referir ou descrever sectários desprezados (v. 14). Terceira: sacrilégio, ou seja, um delito contra Deus (v. 6a). A acusação de sedição (mentira) e de separação para formar uma nova seita (meia verdade) transformou-se na acusação de pecado, por tratar com irreverência o lugar sagrado. A suspeita de que Paulo havia introduzido um gentio no templo (21.29) transformou-se em uma acusação concreta de tentativa de contaminar o templo. 3) O testemunho (v. 6b-9). Em primeiro lugar, Tértulo faz referência ao ocorrido (v. 6b-8). O advogado indica que os judeus prenderam Paulo para julgá-lo conforme sua própria Lei. Tértulo afirma, como representante romano, que o comandante Lísias o tirou com violência de suas mãos e ordenou que seus acusadores apelassem

diante de Félix. Em segundo lugar, Tértulo apresenta uma sugestão: que Félix se informe inteiramente sobre o ocorrido com o próprio Lísias (comp. v. 8 com v. 22). Nenhuma dessas declarações, embora apoiadas pelos judeus (v. 9), era respaldada por evidências. A defesa (v. 10-21). A defesa de Paulo tem quatro momentos. Primeiro: o apóstolo nega cada uma das acusações contra ele (v. 10-13). Segundo: o apóstolo defende a fé que prega (v. 14-16). Terceiro: o apóstolo explica os verdadeiros motivos de sua visita a Jerusalém (v. 17,18). Quarto: o apóstolo transforma sua defesa em ataque contra seus acusadores (v. 19-21). A negação das acusações (v. 10-13). É notável a serenidade de Paulo em seu discurso de defesa perante Félix. Observe-se a cuidadosa formalidade e respeito com que o apóstolo se dirige ao governador. Paulo atém-se à mais estrita verdade e apresenta sua versão dos fatos, seguro de que é capaz de provar o que ocorreu em cada caso: ele não disputou com ninguém no templo e não promoveu motins nas sinagogas nem em qualquer outro local de Jerusalém. Os fatos pelos quais o acusavam eram recentes, de modo que não era difícil comprovar o que de fato havia ocorrido. Seus acusadores não tinham como provar as acusações que levantaram contra ele. A defesa do evangelho (v. 14-16). Depois de silenciar seus acusadores, Paulo passa à defesa do evangelho que proclamava. Em sua argumentação, o apóstolo observa quatro aspectos. Primeiro: ele era um seguidor “do Caminho” (v. 14), que não era uma “seita” (gr. haíresis), como diziam seus acusadores, mas o cumprimento das Escrituras hebraicas (“tudo o que concorda com a Lei e no que está escrito nos Profetas”, gr. pāsi toīs katà tòn nómon

kaì toīs en toīs pofētais gegramménois). Segundo: o Caminho não era novo.A fé de Paulo não era muito diferente da fé de seus acusadores. Ao contrário, ele tinha “em Deus a mesma esperança desses homens” (gr. elpída échōn eis tòn theòn hēn kaì autoì hoūtoi prosdéchontai, v. 15a). Terceiro: até mesmo um componente dessa fé, a crença de que “haverá ressurreição tanto de justos como de injustos” (gr. anástasin méllein ésesthai dikaíōn te kaì adíkōn), não era invenção de Paulo, mas parte do credo judaico que ele compartilhava na totalidade (v. 15b). Quarto: ele era sincero e fiel em conservar com honestidade essa fé “diante de Deus e dos homens” (gr. pròs tòn theòn kaì toùs anthrōpous), ou seja, não era um hipócrita religioso (v. 16). A versão de Paulo (v. 17,18). Pelo fato de sua prisão ter sido realizada em Jerusalém, por supostos crimes cometidos no templo, Paulo considerou necessário dar sua versão dos fatos ali ocorridos (v. 17,18). Basicamente, observa dois elementos. Por um lado, lembra que, depois de alguns anos de ausência de Jerusalém, voltou à cidade movido por uma ação caridosa (“para trazer esmolas ao meu povo e apresentar ofertas”, gr. eleēmosýnas poiēsōn eis tò éthnos mou paregenómēn kaì prosforás). Desse modo, Paulo apresenta-se como um homem bom e generoso. Por outro lado, queria cumprir com os requerimentos das leis cerimoniais judaicas, que estava muito longe de ser um desejo de profanar o templo, como afirmavam seus inimigos. Assim, Paulo apresenta-se como um homem piedoso e fiel. O ataque aos acusadores (v. 19-21). Diante do silêncio culpado de seus acusadores, Paulo passa da defesa para o ataque (v. 1921). Seu primeiro argumento é de caráter legal (v. 19): seus

primeiros acusadores, alguns judeus da província da Ásia, não estavam presentes na corte, o que anula qualquer acusação que tenham feito contra ele. Seu segundo argumento é de caráter teológico (v. 20,21): os judeus que o estavam acusando diante de Félix sabiam muito bem que o motivo verdadeiro de desejarem eliminá-lo não era religioso (profanação do templo), mas teológico (a ressurreição dos mortos). Esses judeus estavam presentes quando Paulo suscitou a questão perante o Conselho judaico e haviam inventado a questão religiosa para acobertar a teológica, que os ofendia e na qual os judeus estavam divididos. A decisão (v. 22,23). Félix captou rapidamente o que estava por trás do argumento de Paulo e, por ter “bom conhecimento do Caminho” (gr. acribésteron eidōs tà perì tēs hodoū eípas), suspendeu a sessão, pois o acusado havia virado o jogo, fazendo sentar no banco de julgamento aqueles que o acusavam. O governador poderia ter liberado Paulo de imediato, principalmente por sua condição de cidadão romano, mas em razão de suas ambições pessoais e políticas decidiu aproveitar-se das circunstâncias para tirar alguma vantagem. Desse modo, atrasou o trâmite para aguardar o comandante Lísias — que tinha mais informações, embora já tivesse todos os dados de que necessitava — enquanto mantinha Paulo sob custódia em condições privilegiadas. 6) O resultado (v. 24-27). Aparentemente, Paulo se deslocava com bastante liberdade em Cesareia, onde talvez esteve em contato com a congregação da cidade, que se havia formado depois da conversão do centurião romano Cornélio (cap. 10). Lucas dá a

impressão de que os encontros com o governador Félix foram frequentes, até mesmo com a presença de sua esposa, Drusila, que era judia. Nessas ocasiões, Paulo teve a oportunidade de expor ao oficial romano várias questões profundas sobre a mensagem cristã, a ponto de causar “medo” (gr. émfobos genómenos) a Félix em algum momento, ou seja, ele ficou impactado com o que o apóstolo dizia. Contudo, em vez de aceitar a fé do Caminho, Félix se afastou: “Basta, por enquanto! Pode sair” (gr. tò nÿn échon poreúou), chutando a bola para fora do estádio: “Quando achar conveniente, mandarei chamá-lo de novo” (gr. kairòn dè metalabōn metakelésomaí se, v. 25). É notável quão corrompido era esse homem, que, mesmo a ponto de se converter à fé de Paulo, continuava especulando sobre como obter algum lucro monetário. Essa dialética entre corrupção e conversão durou dois anos, e terminou quando outro agente corrupto entrou em cena: o sucessor de Félix, Pórcio Festo, com quem o ciclo reiniciou. Uma consciência limpa (24.16)

Paulo dá grande importância à consciência em seus escritos. Repetidamente, ele se refere à consciência em suas cartas. Definição. Como podemos definir a consciência? Uma forma de fazer isso é dizer que se trata daquela parte de nós que conhece. Nesse sentido, é o elemento “conhecedor” de nosso ser, aquele que sabe o que é certo e o que é errado. A palavra vem do latim e literalmente significa “com conhecimento”. Refere-se àquela faculdade que conhece ou reconhece a lei de Deus escrita em nosso ser interior (“coração”) e que está de acordo com ela. O termo grego syneídēsis (“saber com”) refere-se ao conhecimento no

campo moral. A consciência era um conceito de origem grega e, portanto, não é encontrada no Antigo Testamento como uma faculdade humana distinta. No entanto, existem alguns aspectos de sua função mencionados no Antigo Testamento por meio do vocábulo “coração”. A consciência diz respeito às normas morais internalizadas pelo indivíduo com base na experiência acumulada em seu grupo social. No processo de socialização, o indivíduo incorpora os costumes do grupo social à sua personalidade. Essa faculdade interna ou função da mente ajuda-o a fazer distinção entre o bem e o mal. A tradição teológica cristã considera a consciência como a voz de Deus na alma humana, uma convicção divinamente implantada que aponta o que é certo ou errado. Funções. De acordo com o Novo Testamento, a consciência desempenha várias funções. A consciência julga as ações tanto antes de sua execução, pedindo conformidade com a norma moral (Romanos 13.5), quanto após a ação, condenando ou perdoando (Romanos 2.15) o executor. O padrão moral que rege seu funcionamento deve ser iluminado e guiado pela revelação de Deus. Em contrapartida, por causa do lugar central que a consciência ocupa na natureza moral humana e nas decisões tomadas, a ponto de ser quase equivalente à própria pessoa humana (1Coríntios 8.7), é importante mantê-la limpa e submissa à vontade de Deus. Se a consciência é fraca (1Coríntios 8.7), a pessoa também o será (1Coríntios 8.10) e com mais facilidade irá desobedecer aos seus ditames e sofrer as consequências (1Timóteo 4.2). A corrupção da vontade pelo pecado faz que essa voz moral se torne incerta ou emudeça (1Timóteo 4.2). A consciência do pecado está presente desde o primeiro ato de desobediência a Deus por parte do ser

humano (Gênesis 3.7). Desde então, a consciência tem funcionado como um alarme interno contra qualquer ação moralmente duvidosa (1Samuel 24.5,10; Jó 27.6; Salmos 16.7; Lamentações 3.40). O conceito de consciência é aprofundado no Novo Testamento (23.1; 24.16; Romanos 2.15; 3.20; 9.1; 13.5; 14.22; 1Coríntios 4.4; 8.7,1012; 10.25,27-29; 2Coríntios 1.12; 4.2; 5.11; 1Timóteo 1.5,19; 3.9; 4.2; 2Timóteo 1.3; Tito 1.15; Hebreus 9.9,14; 10.22; 13.18; 1Pedro 3.16,21). Além disso, a consciência é um processo ou estado de percepção de experiências subjetivas em qualquer momento. A consciência implica a percepção do próprio eu e do eu em suas relações com a realidade. Nesse sentido, é possível afirmar que foi despertada entre os evangélicos da América Latina uma consciência missionária com relação a outros continentes. Características. A consciência de Paulo possuía características notáveis, que vale a pena observar.

algumas

Era uma boa consciência (23.1). Ele poderia alegar, sem falsidade, que sempre agira “para com Deus com toda a boa consciência” (gr. egō pásēi syneidēsei agathēi pepolíteumai tōi theōi). Como cidadão do Reino (gr. politeúō), ou seja, na condição de membro da comunidade do Reino, ele agia com responsabilidade. Talvez essa declaração não fosse a mais prudente diante do Sinédrio, embora a mais honesta. De alguma forma, todo o seu discurso de defesa está compactado nessa afirmação. Sem dúvida, Paulo deve ter dito muito mais que essas poucas palavras registradas por Lucas. No entanto, “ter uma boa consciência” é como um curinga, pois abrange uma infinidade de comportamentos, mais ainda pelo fato de tal condição moral ser apresentada como sujeita ao escrutínio divino.

Archibald T. Robertson: “Paulo não fez essa afirmação sem ponderar. Parece contradizer sua confissão de que era o principal dos pecadores (1Timóteo 1.13-16), mas isso depende de como interpretamos a ‘boa consciência’. A palavra syneidēsis é literalmente ‘com conhecimento’ no grego, conscientia em latim e ‘consciência’ em nosso idioma, oriunda do latim. É uma palavra tardia que provém de sýnoida (‘conhecer junto’), comum no Antigo Testamento e nos livros apócrifos, em Fílon e Plutarco, no Novo Testamento, nos estoicos e nos escritores eclesiásticos. A palavra em si indica simplesmente consciência dos próprios pensamentos (Hebreus 10.2) ou do próprio ser — em suma, a consciência da distinção entre certo e errado (Romanos 2.15), sem aprovação ou desaprovação. No entanto, a consciência não é um guia infalível e age de acordo com a luz que possui (1Coríntios 8.7,10; 1Pedro 2.19). A consciência pode ser contaminada (Hebreus 10.22; ‘ser má’, gr. ponēràs). Devemos ter me mente tudo isso e muito mais ao tentar entender a descrição dos motivos de Paulo como perseguidor. O alívio de sua culpa provém daí, mas não a remoção da culpa, como ele mesmo sentia (1Timóteo 1.13-16). Ele quis dizer ao Sinédrio que perseguiu os cristãos como um judeu (fariseu) consciente (embora equivocado), assim como seguiu sua consciência quando se converteu do judaísmo ao cristianismo. Era uma negação direta da acusação de que ele era um judeu renegado, um opositor da Lei, do povo e do templo. Paulo dirigiu-se ao Sinédrio como um igual, sem ‘apologias’ à sua carreira como um todo. O fio de ouro da consistência corre de ponta a ponta, como bom cidadão da comunidade de Deus. Ele tinha o consolo de uma boa consciência (1Pedro 3.16). A palavra não aparece nos evangelhos: ocorre principalmente nas epístolas de Paulo, mas a vemos em operação em João 8.9 (interpretação: 7.53—8.11)”.3

Era uma consciência limpa (2Timóteo 1.3). Sem que lhe tremessem as mãos, Paulo pôde escrever a Timóteo, seu filho espiritual, alegando que servia a Deus “com a consciência limpa” (gr. katharāi syneidēsei). Para dar mais crédito ou esclarecer sua afirmação, acrescentou: “[...] como o serviram os meus antepassados”. Consciência limpa é aquela que não aponta pecados ocultos, intenções tortuosas ou pensamentos enganosos. Consciência limpa é aquela que raramente faz soar o alarme de perigo moral ou levanta uma bandeira vermelha para anunciar um

risco iminente de queda. É a consciência tranquila que nos permite jogar o jogo da vida, sem medo de que o árbitro nos mostre o cartão amarelo da advertência ou, pior ainda, nos expulse do jogo com o cartão vermelho. Era uma consciência não abusiva (1Coríntios 10.32,33). Mais uma vez, Paulo se apresenta como exemplo diante dos coríntios, a quem incentiva a agir como ele, que em tudo procurava agradar a todos, embora o fizesse com uma consciência não abusiva, ou seja, que não escandalizava nem ofendia ninguém. Essa consciência está vinculada aos mecanismos com os quais agimos com relação aos outros. Quando a motivação que nos põe diante de outras pessoas não passa de desejo de promover interesses pessoais ou de obter reconhecimento e aplauso, nossa consciência se torna incômoda e nos deixa inquietos. Em contrapartida, quando na imitatio Christi priorizamos a Deus e ao próximo, nossa consciência nos fortalece e nos anima a seguir com essa atitude. Não é preciso pisar na cabeça de ninguém para chegar ao pódio da vida nem tirar vantagem do próximo para alcançar o sucesso. Se imitarmos Cristo e Paulo, descobriremos que uma consciência não abusiva é resultado de uma vida que aprendeu que o auge da realização pessoal é alcançado quando se segue o caminho da cruz. Fundamentos. As bases para tal consciência também eram notáveis. A vida de Paulo era vivida “diante de Deus”, ou seja, na presença divina. Só ali a consciência é testada, treinada e ensinada. A caminhada de Paulo também era realizada “diante [...] dos homens”, ou seja, o propósito era concluí-la com relação a todos. O próprio apóstolo afirmou ser “devedor” de todos. Além disso, a atitude de Paulo era contínua (“sempre”); não era intermitente,

espasmódica, mas permanente. Para que a fé seja verdadeira, deve ser habitual. O esforço de Paulo também era intenso (“procuro [...] conservar”). Seu empenho era como o de um atleta, pois se esforçava sabendo que tal vida só é possível com dedicação total. O fundamento de Paulo era Cristo e seu evangelho, e foi assim que realizou tanta coisa. Por que o fez? Por causa da fé e da esperança que menciona nos v. 14 e 15, as quais faziam parte de seu ser. Assim era o apóstolo: era grande por ser bom e era bom porque conheceu a graça de Deus (1Coríntios 15.10). Também podemos ser assim, se nossa vida estiver cheia da graça de Deus (2Coríntios 1.12). Se isso acontecer, nossa vida será cheia de bondade. Seremos homens e mulheres como Barnabé (11.24). Seria bom se imitássemos Paulo, assim como ele imitava Cristo (1Coríntios 11.1). TABELA 19: Consciência I. As três vozes da consciência a) A consciência adverte (“dá testemunho”) contra o mal (Romanos 2.15). b) A consciência aprova (“dá testemunho”) o bem (2Coríntios 1.12). c) A consciência condena o mal em velhos e jovens (João 8.9). II. As três necessidades da consciência a) A consciência precisa ser iluminada pela Palavra de Deus (2Coríntios 4.2). b) A consciência precisa ser formada corretamente: • Porque pode ser ruim (“culpada”) (Hebreus 10.22). • Porque pode estar corrompida (Tito 1.15). • Porque pode se tornar insensível (“cauterizada”) (1Timóteo 4.2). • Porque é fraca (1Coríntios 8.7,10,12).

c) A consciência precisa ser purificada pelo sangue de Cristo: • Para ser limpa (“purificada”) (Hebreus 9.14). • Para ser boa (Atos 23.1). • Para ser aperfeiçoada (Hebreus 9.9). • Para se submeter às autoridades (Romanos 13.5). III . As três ações da consciência a) Repreende (“ensina”) (Salmos 16.7). b) Confirma no Espírito Santo (Romanos 9.1). c) Inquieta (1Coríntios 4.4).

PAULO PERANTE FESTO (25.1-12)

As pessoas hiperativas têm dificuldades para ficar quietas. Muito mais difícil é aceitar que a imobilidade pode fazer parte da vontade de Deus, quando estamos muito comprometidos com a obra em seu Reino. Paulo teve de ficar quieto por muito tempo, incapaz de continuar com a tarefa que vinha cumprindo como apóstolo de Jesus. Além disso, os dois anos de cativeiro em Cesareia foram seguidos por outra tentativa de seus inimigos para liquidá-lo. Uma nova conspiração pôs sua vida em perigo. Como no caso do Senhor, encontramos aqui uma aliança entre o governador romano e as autoridades judaicas. As audiências do acusado (25.1-12)

A passagem está naturalmente dividida em duas partes: a audiência em Jerusalém (v. 1-5) e a audiência em Cesareia (v. 612). A audiência em Jerusalém (v. 1-5). Quanto à primeira, dois interesses se destacam. O governador romano. O novo procurador, que sucedeu a Félix, foi Pórcio Festo (24.27). Esse oficial romano ficou pouco tempo no cargo, pois morreu dois ou três anos depois de assumi-lo. É dito que tinha bom caráter, mas era um típico oficial romano, indiferente às ideias religiosas e às controvérsias dos judeus. Sua “província” (gr. eparcheíai, “eparquia”; v. 1) era a Síria, da qual a Judeia fazia parte e Cesareia, cidade costeira a 37 quilômetros ao sul do monte Carmelo, era a capital. Chamava-se Cesareia Augusta em homenagem ao imperador. Era a residência do procurador quando a

Judeia passou a depender diretamente do governo romano. A política desse procurador (v. 9) acabou sendo quase idêntica à de seus predecessores, Pilatos e Félix. Seu único interesse era entrar em um acordo com os líderes judeus o mais rápido possível. Assim, diante do caso de Paulo, não perdeu tempo (“Três dias depois”, gr. metà treīs hēméras) e se deslocou do centro político romano dessa província até o centro nacional e religioso judaico: Jerusalém. As autoridades judaicas. O texto menciona “os chefes dos sacerdotes e os judeus mais importantes” (gr. hoi archiereīs kaì hoi prōtoi tōn Ioudaíōn, v. 2), que estavam sob a liderança do sumo sacerdote Ananias e dos líderes saduceus (não de todos os chefes dos sacerdotes ou dos membros do Conselho judaico). Esses judeus influentes logo se aproximaram do novo governador e insistiram em que ele acelerasse o processo judicial contra Paulo, conforme as acusações que haviam apresentado. Além disso, pediram-lhe um favor especial (uma graça, não um ato de justiça): queriam levar Paulo para Jerusalém (v. 3). Na verdade, o que queriam era encontrar uma oportunidade para matar o apóstolo pelo caminho. Chama a atenção o fato de que, depois de dois anos, ainda quisessem assassiná-lo. Isso mostra a intensidade de seu ódio contra o apóstolo e contra sua mensagem. A atitude deles mostra o desejo fanático de dar um golpe mortal na nova religião, para isso liquidando seu líder principal. Não há limites para o coração humano entenebrecido quando se trata de opor-se à luz e à verdade. Era de esperar que o novo governador concedesse o favor solicitado para evitar problemas, embora Festo tivesse um senso de justiça que não lhe permitia ignorar o direito romano. Entretanto,

talvez ignorasse a importância de Paulo, e foi por isso que convidou os acusadores a acompanhá-lo até Cesareia (v. 4,5). A audiência em Cesareia (v. 6-12). Essa audiência foi extremamente importante do ponto de vista jurídico e deu ocasião a três fatos. A acusação (v. 6-9). Festo retornou à sede de seu governo e constituiu-se juiz supremo do caso. Os acusadores de Paulo repetiram as velhas acusações (24.5,6), mas acrescentaram a acusação de delitos contra César. Era um argumento importante contra um cidadão romano, se fosse possível provar a acusação, mas não havia provas, apenas palavras. Diante das acusações de crimes que não havia cometido, Paulo declarou inocência. Ele era acusado de ter agido contra a lei judaica, o templo e o Estado romano (v. 8). De imediato, Festo percebeu que o prisioneiro não era culpado de nenhum delito contra as leis do império romano. A questão era puramente religiosa (v. 18,19). Portanto, apesar da negativa anterior, Festo propôs repassar o assunto ao Sinédrio, em Jerusalém (v. 9), e assim obter alguma simpatia da recalcitrante liderança judaica. Ele mesmo estaria presente no processo, já que Paulo era cidadão romano. Essa proposta (“ali ser julgado diante de mim”, gr. ekeī perì toútōn krithēnai ep’ emou) foi na verdade uma sugestão fraca, injusta e tendenciosa, que continha motivos espúrios. Parece mentira que um homem com tanto poder e influência como Festo, à semelhança de Félix (24.27), estivesse dominado por todo esse medo dos judeus e quisesse “manter a simpatia” deles. Além disso, expunha Paulo ao risco de perder a vida pelo caminho, segundo a conspiração dos judeus (v. 3b). Por certo, Festo sabia muito bem que não era justo

condenar Paulo, mas não moveu um dedo para absolvê-lo, e agora acabava fazendo ao apóstolo a mesma proposta que as autoridades judaicas lhe haviam feito em Jerusalém (v. 3). Seu envolvimento pessoal no processo (“ali ser julgado diante de mim”), para garantir a Paulo a segurança e a justiça do julgamento, não escondia a enorme hipocrisia de suas palavras. Se Festo não podia garantir-lhe um julgamento justo perante um tribunal tão bem organizado quanto o de Cesareia, muito menos poderia fazê-lo em Jerusalém, onde a pressão popular de hostilidade contra o apóstolo seria maior. A apelação (v. 10,11). Diante das acusações dos líderes judeus e da atitude indiferente e complacente de Festo, Paulo fez uma apelação categórica. Ele não estava de acordo com a sugestão de Festo e percebeu que se encontrava em um momento crucial de seu ministério. Havia esperado dois anos em Cesareia, seu processo demorava e ele esperava que tudo terminasse com seu traslado para Roma. Se fosse levado de volta a Jerusalém, isso seria um retrocesso, e ele corria um sério risco de ser assassinado ali. Por isso, tomou uma decisão intrépida. Sabendo que Festo não o libertaria e que ir a Jerusalém significava morte certa, apelou para o imperador. O procurador era o representante do imperador (v. 10), e, de acordo com a lei romana, seu “tribunal” era o único apropriado para levar adiante o julgamento de um cidadão romano. Por preconceito, não por ter cometido um delito, Paulo havia permanecido na prisão, o que foi um sério erro processual de Festo. Paulo exerceu o direito de todo romano: retirou seu caso de uma corte (tribunal) inferior e apelou para uma instância superior, nada menos que a do próprio imperador romano, em Roma. O apóstolo esteve encarcerado dois anos em Cesareia e finalmente via o

caminho aberto para viajar a Roma e ali cumprir sua missão, como o Senhor havia previsto (23.11). Na verdade, seu plano era ir a Roma a caminho da Espanha, mas agora enxergava a oportunidade de ser levado a Roma à custa do Estado romano. O apóstolo, com bom espírito, expressou sua disposição para morrer se sua culpa fosse provada, mas apenas de maneira legal, não por conluios nebulosos, à margem da lei (v. 11). O consentimento (v. 12). Festo, confuso pela mudança jurídica no desenrolar dos acontecimentos, consultou os oficiais associados a ele (“seus conselheiros”, gr. symboulíou) e consentiu na apelação de Paulo. Não podia fazer outra coisa sem se arriscar pessoalmente a violar a lei romana, já que a frase “Apelo para César!” (gr. Kaísara epiklē) era onipotente no império romano. Talvez só agora Festo tivesse percebido quão importante era Paulo e quão hábil ele era no manejo do direito romano. Paulo foi liberado definitivamente da jurisdição da lei religiosa dos judeus (o que era indiferente para os romanos) e entrou no âmbito do direito de Roma, onde poderia obter vantagens, por sua condição de cidadão romano. Ao mesmo tempo, a apelação de Paulo é evidência do assombroso progresso do cristianismo no império. Aqui deparamos com um cristão que utilizou os meios legais de Roma para entrar em contato pessoal com ninguém menos que o imperador. Essa autorização formal provou ser o caminho que Deus havia preparado para Paulo testificar em Roma (23.11). As oportunidades do acusado (25.1-12)

As queixas contra Félix chegavam continuamente a Roma, pois sua crueldade, ganância e tirania haviam atingido o auge. Nero, no

início de seu reinado, ouviu essas reclamações e o substituiu por Festo, um homem de melhor caráter que seu antecessor. Três dias após sua chegada a Cesareia, capital romana da Judeia, Festo fez uma visita a Jerusalém, capital nacional dos judeus e cidade mais importante da Palestina. Ele visitou a cidade não só para satisfazer o desejo pessoal de conhecê-la, mas também para entrar em contato com os líderes mais influentes do país, dos quais dependia em boa medida para obter êxito em sua gestão. Em todos esses acontecimentos complexos, é possível observar duas questões que dizem respeito ao custo de ser testemunha do evangelho do Reino de Deus. As aflições da testemunha. Os inimigos do apóstolo, que nada haviam conseguido com Félix, o governador deposto, imediatamente cercaram seu sucessor. Eles apresentaram o caso de Paulo e fizeram um pedido, que considerariam um “favor”. Solicitaram que Paulo fosse enviado a Jerusalém para ser julgado por eles, embora mantivesse em segredo a intenção de assassiná-lo no caminho. O novo governador, conhecendo ou ignorando seus motivos, não tentou agradá-los e declarou que voltaria em breve para Cesareia e que quem o acompanhasse poderia acusá-lo de acordo com a lei romana, se o considerassem culpado de algum crime. A frase “Desçam comigo alguns dos seus líderes” (gr. Hoi oūn en hymīn fēsīn dýnatoi synkatabántes) refere-se aos principais líderes dos judeus, os mais interessados em condenar Paulo. A questão é que Festo voltou para Cesareia cerca de oito a dez dias depois e no dia seguinte à sua chegada “convocou o tribunal” (gr. kathísas epì toū bēmatos), símbolo de sua autoridade, e ordenou que Paulo fosse conduzido à sua presença. Os judeus que tinham

vindo de Jerusalém cercaram o governador com uma longa lista de acusações contra o apóstolo, nenhuma das quais podiam provar. Como em outras ocasiões, alegavam que Paulo era culpado de apostasia, traição e sacrilégio, mas, como nenhuma dessas acusações era óbvia, elas não causaram nenhuma impressão em Festo. No cumprimento da missão cristã no mundo, os fiéis enfrentam sérias oposições e muita resistência, a ponto de poderem qualificálas como “aflições” (João 16.33; 2Timóteo 3.12). De acordo com o Novo Testamento, é quase impossível dar um testemunho ousado do evangelho do Reino sem pagar o preço de uma reação adversa. É surpreendente que hoje na América Latina haja tantos autoproclamados “apóstolos” que, diferentemente de Paulo, têm a pretensão de pregar um evangelho sem pecado ou sem arrependimento, sem cruz ou sem sacrifício, sem renúncia ou sem rendição. Esse evangelho espúrio enfatiza o “me dê” e ignora o “faça de mim”. Ele convida o povo a receber milagres e a gozar prosperidade, mas não a receber Cristo e viver uma nova vida de obediência e serviço. Trata-se de um evangelho que satisfaz os sentidos, mas não preenche o profundo vazio existencial do ser humano sem Deus e sem esperança neste mundo. Pelo contrário, quando um servo de Deus proclama o autêntico evangelho do Reino, que consiste em pregar o “Cristo crucificado” (1Coríntios 1.23a; 2.2) e sua exigência de um discipulado comprometido (Lucas 9.22-26), o mais provável é que enfrente oposição a essa mensagem, que é “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Coríntios 1.23b).

As oportunidades da testemunha. A resposta do acusado Paulo quando se apresentou perante Félix pode ser resumida nestas palavras: “Nada fiz de errado contra a lei dos judeus, contra o templo ou contra César” (gr. oúte eis tòn nómon tōn Ioudaíōn oúte eis tò hieròn oúte eis Kaísará ti hēmarton, v. 8). Paulo negou categoricamente os crimes contra ele e, sem perder a calma, desafiou seus acusadores a apresentarem provas válidas. Festo, portanto, viu-se em uma situação complicada. Ele não queria cometer injustiça contra um prisioneiro que era cidadão romano nem queria iniciar seu governo com uma medida que lhe acarretaria o antagonismo dos líderes civis e espirituais do povo que ele deveria governar. Talvez pensasse que em Jerusalém poderia encontrar as provas que não tinha em Cesareia, por isso não rejeitou o pedido dos judeus e perguntou a Paulo se ele queria ser julgado em Jerusalém, mas sob a cobertura romana. A sugestão foi inspirada mais por cálculos políticos que pelo genuíno desejo de justiça. O objetivo da proposta era “prestar um favor aos judeus” e voltar à estaca zero com um novo julgamento, fundamentado em mentiras. O apóstolo percebeu a manobra injusta que se pretendia levar a cabo, pois a mudança de jurisdição consistia em nada menos que transformar seus acusadores em juízes e expô-lo a uma tentativa de assassinato. Foi então que Paulo, de forma inteligente e de acordo com seus propósitos mais importantes, proferiu as notáveis palavras que lemos nos v. 10 e 11 e terminam assim: “Apelo para César!”. Por fim, Paulo conseguiu o que queria, ou seja, ir a Roma, e com o Estado pagando as despesas do que para ele era uma viagem missionária.

No cumprimento da missão cristã no mundo, o crente tem o poder e a autoridade, concedidos pelo Senhor, de transformar o infortúnio em oportunidade e a aflição em ocasião adequada para o cumprimento dos propósitos eternos de Deus. Só o poder de Deus pode virar o tabuleiro quando Satanás ameaça dar xeque-mate em seus servos. O julgamento de Paulo em Cesareia, longe de terminar com a morte do apóstolo, resultou na abertura de uma nova oportunidade missionária e no cumprimento das palavras proféticas inspiradas por Deus (9.15,16; 22.21; 26.17,18; Romanos 1.5,6; 11.13; Gálatas 1.15,16; 2.7,8; Efésios 3.7-9; 1Timóteo 2.7; 2Timóteo 1.11,12). Isso é o que o Senhor faz. O que no momento parece uma derrota ou a frustração de todos os nossos planos para o desenvolvimento do Reino, Deus o transforma na base sobre a qual estabelece o cumprimento de seus planos redentores. O objetivo e o desejo de Paulo era chegar a Roma, porque estava convencido de que era o que Deus queria. O que não podia imaginar é que Deus escolheria esse caminho. O processo demorou dois longos anos, mas no final as coisas correram muito melhor do que o apóstolo sonhava ou esperava. É que o Senhor sempre “é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o que pedimos ou pensamos, de acordo com o seu poder que atua em nós” (Efésios 3.20).

PAULO PERANTE FESTO E AGRIPA (25.13—26.32)

Assim que Festo assumiu o cargo de governante da Palestina, o rei Herodes Agripa II e sua meia-irmã Berenice foram a Cesareia para saudá-lo. Essas duas personagens introduzidas por Lucas em seu relato são interessantes. Agripa era filho de Herodes Agripa I (cap. 12), o qual havia discursado ao povo, que reagiu aclamando-o: “É voz de deus, e não de homem”. Herodes, cheio de orgulho, aceitou essa homenagem e, como castigo, o anjo do Senhor o feriu, e ele acabou comido por vermes. Quando isso ocorreu, seu filho Agripa estava na corte de Cláudio César e tinha apenas 17 anos de idade. Por motivos políticos, o imperador não permitiu que alguém tão jovem ocupasse o lugar do pai como rei de um povo tão turbulento como os judeus. Assim, o pequeno reino de Cálcis, no Líbano, foi atribuído a ele. Pouco depois, foi elevado à dignidade real sobre as tetrarquias que haviam pertencido a Filipe e Lisânias. Observe-se que Agripa não é chamado “rei dos judeus”, mas simplesmente “rei”, porque a Judeia estava sob um governador romano e era parte da província da Síria. Berenice era a meia-irmã mais velha de Agripa, e Drusila era sua irmã mais nova. Chegou a ser famosa por sua formosura e depravação. Foi dada em matrimônio ao tio Herodes, rei de Cálcis na época, e depois da morte do marido viveu com seu meio-irmão uma relação incestuosa. Para encobrir o escândalo, foi casada com Polemom, rei da Cilícia, mas logo o deixou e voltou para a casa do irmão. Mais tarde, foi concubina do imperador Vespasiano e depois de Tito; contudo, o clamor popular obrigou o imperador a deixá-la. Flávio Josefo faz referência a suas aventuras, e Juvenal menciona

seus casos amorosos. Andava sempre na companhia do irmão Agripa, como mostra essa passagem. TABELA 20: A dinastia idumeia: os Herodes Antipas

(Governador da Idumeia, m. 78 a.C.)

Antípatro

(Procurador da Judeia, m. 43 a.C.)

Herodes, o Grande

(Rei de toda a Palestina, 37 a.C.- 4 d.C.)

Antípatro Filipe

(m. 4 a.C.)

Aristóbulo

(m. 7 a.C.)

Alexandre

(m. 7 a.C.)

Herodes Filipe

(Marcos 6.17)

Arquelau

(Tetrarca da Judeia, 4-6 d.C.)

Antipas

(Tetrarca da Galileia, m. 39 d.C.)

Herodes

(Tetrarca de Traconites)

Herodes

(Rei de Cálcis, m. 48 d.C.)

Herodes Agripa I

(Rei da Judeia, m. 44 d.C.)

Herodias

(Marcos 6.17)

Agripa II

(Rei de Cálcis, m. 100 d.C.)

Berenice

(Atos 25.23)

Drusila

(Atos 24.24)

O testemunho do evangelho (25.13—26.32)

Festo consulta o rei Agripa (25.13-22). Esse rei é Agripa II, irmão de Drusila e de Berenice. Ele havia sido educado em Roma e era

muito leal às políticas e programas do império romano. O registro de Lucas mostra mais uma vez um de seus objetivos literários e teológicos, ou seja, mostrar que o cristianismo não representava uma ameaça política para Roma (cf. v. 25). Em suas primeiras décadas de vida, o cristianismo foi considerado uma seita do judaísmo, o qual era reconhecido por Roma como religio licita. Os romanos respeitavam e adotavam todas as religiões dos países conquistados e mantinham um lugar para cada um de seus deuses no panteão. Contudo, as autoridades imperiais não queriam se envolver nos conflitos internos das seitas, como parecia ser a disputa entre Paulo e as autoridades religiosas judaicas. O v. 18 mostra a intensidade e a natureza da oposição judaica, que não era política, mas totalmente religiosa. Como Festo bem esclareceu, eram “pontos de divergência [...] acerca de sua própria religião” (gr. perì tēs idías deisidaimonías). A palavra deisidaimonías é, literalmente, uma combinação de “medo” e “deuses”, ou seja, descreve uma “superstição”, a qual expressa exatamente o que os romanos pensavam sobre a religião judaica. No entanto, Festo não queria insultar seus dignitários judeus e usou um termo um tanto ambíguo (o mesmo fez Paulo em 17.22). Outro fato mencionado por Festo foi que, além de pertencer a uma seita judaica, o acusado representava “um certo Jesus, já morto” (gr. kaì perí tinos Iēsoū tethnēkotos, v. 19). Até aí tudo parecia normal, exceto que Paulo afirmava que tal pessoa estava viva (gr. hon éfasken ho Paūlos zēn). A ressurreição de Jesus era um dos temas centrais da pregação apostólica (26.8). Como Paulo corretamente aponta, a fé cristã é sustentada ou não com base nessa afirmação teológica (1Coríntios 15).

Assim, com a chegada de Agripa II (filho de Agripa I, Atos 12.1) e de sua meia-irmã Berenice a Cesareia, Festo viu uma ocasião oportuna para ter uma opinião judaica independente e de alto nível sobre o caso de Paulo. Segundo ele, os ensinos de Paulo haviam dividido a opinião judaica, principalmente com relação a um tal Jesus, já morto (v. 19), mas que ainda dava o que falar. Paulo perante Agripa (25.23-27). Agripa mostrou-se interessado em conhecer Paulo e “com grande pompa” (gr. metà pollēs fantasías) como se assistisse a um espetáculo de moda. Apresentou-se com Berenice “na sala de audiências” (gr. eis tò akroatērion), provavelmente a mesma em que o pai, Agripa I, “vestindo seus trajes reais, sentou-se em seu trono” para receber uma delegação de Tiro e Sidom, que protestava contra ele (12.20,21). Parece que o filho herdou do pai a mania de se apresentar de maneira ostentosa. Agripa II foi o último rei judeu na Palestina. Paulo ficou satisfeito com a oportunidade de apresentar seu caso diante de Agripa, um rei títere dos romanos. Por três gerações, a casa dos Herodes havia servido aos interesses romanos na Palestina, e, como Festo precisava de uma opinião do monarca judeu, era importante que Paulo conquistasse o favor dele. Além disso, Agripa II parecia ser o menos desastroso de toda a dinastia dos Herodes, e Paulo aproveitou a ocasião para apresentar uma boa defesa.4 Dois elementos se destacam no relato do cap. 26. A defesa de Paulo perante o rei Agripa (26.1-32). Depois de apelar para César, todo o processo judicial foi cancelado, uma vez que o recurso iria para uma instância superior e definitiva. Na

verdade, Paulo não tinha a obrigação de se defender diante de ninguém, muito menos de um governante não romano. No entanto, aproveitou a oportunidade única de testemunhar a esse rei judeu. O apóstolo soube tirar o máximo proveito de todas as instâncias pelas quais passou, por mais adversas, para pregar o evangelho do Reino de Deus. Nesse caso, sua exposição foi extraordinária, pois usou de muito tato e cortesia, e ao mesmo tempo foi cortês e verdadeiro. Há na defesa de Paulo pelo menos quatro apelos pessoais ao próprio rei (v. 2,13,19,27). O testemunho de Paulo (v. 1-23). É provável que Lucas tenha sido testemunha presencial dessa audiência. O relato parece quase uma transcrição abreviada das palavras do apóstolo e dos acontecimentos. Observe-se o detalhe do gesto inicial de Paulo: “Paulo fez sinal com a mão e começou a sua defesa” ekteínas tēn cheīra apelogeīto, v. 1). Além disso, o gesto corresponde ao tom mais pomposo do rei, a quem o governador romano permitiu presidir a audiência, e à maneira cortês com que o apóstolo iniciou sua defesa (v. 2,3). Pela terceira vez, Paulo apresenta seu testemunho pessoal de conversão em plena harmonia com os dois relatos anteriores. E. M. Blaiklock: “A preocupação de Lucas é mostrar que, em plena concordância com Festo, cuja absolvição provável é mencionada três vezes no relato, o rei judeu não encontrou nenhuma falta no prisioneiro. Era importante para ele mostrar que tanto a opinião judaica especializada e independente quanto o veredicto da lei romana absolviam Paulo de todos os delitos. O capítulo ficaria estranhamente desequilibrado sem um esboço completo da defesa. O testemunho de Paulo reúne uns poucos detalhes apropriados à ocasião. Enfatiza especialmente a natureza sistemática do esforço do Sinédrio para erradicar os cristãos e o apoio obstinado que a cruel campanha havia recebido do próprio apóstolo antes da conversão. A questão mereceu destaque porque marcava a realidade da visão no caminho de

Damasco, e essa visão era vital para a doutrina da ressurreição que Paulo se sentiu compelido a ressaltar desde sua audiência no Sinédrio”.5

A visão de Paulo (v. 12-19). O ponto fundamental no processo da conversão de Saulo no caminho de Damasco foi a impressionante visão que ele teve do Senhor. A conversão de Saulo de Tarso pode ser considerada a prova mais importante, depois da ressurreição de Jesus, da autenticidade divina do evangelho. O apóstolo declarou a Agripa: “Não fui desobediente à visão celestial” (gr. ouk egenómēn apeithēs tēi ouraníōi optasíāi, v. 19). Que visão foi essa e quais foram seus efeitos? 1) Natureza e significado da visão. Saulo estava indo para Damasco a fim de perseguir os cristãos (v. 11,12). Quando o Senhor lhe apareceu, ele se achou diante daquele a quem Deus havia coroado de glória e honra. Essa experiência lhe fez ver as trevas do próprio coração e seu estado pecaminoso de insuficiência e de vazio. A visão celestial foi seu encontro pessoal com Jesus, seu Salvador e Senhor. 2) Efeitos da visão. À luz dessa passagem, é possível identificar pelo menos quatro efeitos ou resultados. Primeiro: a visão marcou o fim da velha vida de Saulo e o início de uma nova vida. Saulo de Tarso foi deixado para trás, e o apóstolo Paulo começou a agir. Também para nós, na cruz pôs fim à antiga vida segundo o mundo (Romanos 6.4), a vida da natureza pecaminosa (Gálatas 5.24) e a vida de pecado (Romanos 8.3). É aí que começa a nova vida celestial do Espírito e da santidade. A cruz é a linha divisória entre a velha vida e a nova (Gálatas 6.14). Segundo: a visão assinalou uma mudança radical no conceito de vida de Saulo. O que antes parecia ganho, Paulo agora considerava perda (Filipenses 3.7). Ele

analisava tudo de acordo com o pensamento de Cristo, a mente de Cristo que ele tinha agora (1Coríntios 2.16). O Espírito de Deus torna “a vergonha [...] por amor de Cristo” uma “riqueza maior do que os tesouros do Egito” (Hebreus 11.26). Terceiro: a missão determinou um novo rumo para a vida de Saulo. Até então, tudo girava em torno dele mesmo e visava à sua glória. Agora ele não vivia mais: Cristo é que vivia nele (Gálatas 2.20). O pecado leva-nos a desejar ser iguais a Deus (Gênesis 3.4,5). A redenção põe-nos no lugar certo em obediência a Deus, ou seja, carregando sua cruz (Lucas 9.23). O eixo correto para centrar a vida é Cristo e a obediência ao que ele nos ordena (20.18-24). Quarto: a visão estabeleceu uma nova meta para a vida de Saulo. Paulo podia dizer: “Prossigo para o alvo” (Filipenses 3.14). Esse alvo é uma esperança viva, uma herança indestrutível (1Pedro 1.3-5). Isso nos torna fortes na adversidade, pacientes na aflição, inflexíveis na convicção, inabaláveis na fé e incansáveis na ação. Sem essa visão celestial, jamais haveria vida celestial em nós. O veredicto das autoridades (v. 24-32). Paulo teve a oportunidade de ser ouvido durante um bom tempo, enquanto elaborava sua argumentação de profundo conteúdo teológico e conforme a fé judaica tradicional. Quando, porém, começou a falar especificamente do Cristo histórico e declarou que esse Cristo havia ressuscitado dos mortos para proclamar “luz para o seu próprio povo e para os gentios” (gr. fōs méllei katangéllein tōi te laōi kaì toīs éthnesin), o próprio Festo, bastante irritado, interrompeu-o e tratou o apóstolo como louco. Algo semelhante havia ocorrido durante seu discurso no Areópago, em Atenas (17.31,32). De modo cortês e com uma genial manobra da situação, Paulo respondeu a Festo, embora

tenha apelado a Agripa. Envolveu o rei em seu argumento e o deixou tão chocado que só atinou perguntar: “Você acha que em tão pouco tempo pode convencer-me a tornar-me cristão?” (gr. en olígōi me peítheis christianòn poiēsai, v. 28). Na declaração final de Paulo a Agripa, ficou exposto o objetivo latente do apóstolo, que não era se defender dos ataques dos inimigos, mas proclamar o evangelho “para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (Romanos 1.16). Por isso, concluiu sua defesa contestando Agripa: “Em pouco ou em muito tempo, peço a Deus que não apenas tu, mas todos os que hoje me ouvem se tornem como eu, porém sem estas algemas” (v. 29). A questão é que, fora do tribunal, os juízes (“o rei [...] o governador e Berenice, como também os que estavam assentados com eles”) emitiram o veredicto de inocência. “Este homem não fez nada que mereça morte ou prisão” (gr. oudèn thanátou ē desmōn áxíon [ti] prássei ho ántrhrōpos hoūtos, v. 31). Desse modo, Paulo deixou claro aos importantes oficiais com os quais havia discutido seu testemunho cristão que não havia nada de ilegal na causa cristã. Além disso, o evangelho que o apóstolo pregava estava em continuidade histórica com a tradição de Israel e representa o cumprimento das Escrituras Sagradas. De igual modo, a fé cristã não era inimiga do império romano nem de suas instituições e leis. Era possível ser um bom cidadão romano e cristão ao mesmo tempo. E, o mais importante, o Deus que Paulo anunciava não só era o Deus dos judeus, mas também o Deus dos gentios, ou seja, o Deus de toda a humanidade que ele criou e redimiu por meio de Cristo. Talvez isso explique algo que chama a atenção: o fato de Lucas dedicar tanto espaço em seu livro para relatar com detalhes

os julgamentos e interrogatórios aos quais o apóstolo foi submetido e seu reiterado testemunho de fé pessoal. A obra do evangelho (26.18)

Desde o momento de sua conversão, Paulo começou a proclamar a verdade do evangelho. Toda a sua vida esteve ocupada com essa tarefa. Pouco antes de morrer, ele pediu ao seu filho espiritual Timóteo: “Pregue a palavra” (2Timóteo 4.2). Nesse versículo, encontramos a comissão que lhe fora dada pelo Senhor. Nessas palavras, está resumida a obra do evangelho. Elas constituem um desafio, um modelo e um incentivo ao cumprimento da missão que o Senhor nos confiou no mundo. A obra do evangelho consiste em três ações divinas na realidade humana. Iluminação. O texto diz: “para abrir-lhes os olhos” (gr. anoīxai ofthalmoùs autōn). Esse processo de iluminação consiste em dois momentos. Por um lado, a convicção do pecado. O pecado leva à cegueira quanto à situação espiritual. Ter olhos não significa necessariamente enxergar (Salmos 115.5,8). É preciso abrir os olhos espirituais para poder se arrepender do pecado. Foi o caso do filho pródigo. O texto diz que ele acabou “caindo em si” (Lucas 5.17) e voltou para junto do pai. Se não houver convicção de pecado, não pode haver arrependimento. Como essa convicção de pecado é produzida? Pela Palavra de Deus (Salmos 119.105) e pelo Espírito Santo (João 16.8). Por outro lado, a revelação da verdade. Abrir os olhos espirituais é entender o evangelho e não aceitar uma superstição barata que produz cegueira. Só o evangelho de Jesus Cristo é a verdade. O evangelho destrói o obscurantismo e a ignorância. Cristo nos abre os olhos para novas ideias, visões,

possibilidades e oportunidades. A Bíblia é sempre nova para o cristão que tem os olhos espirituais abertos (Salmos 25.14). Conversão. O texto diz: “[...] e convertê-los das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus” (gr. toū epistrépsai apò skótous eis fōs kaì tēs exousías toū Satanā epì tòn theón). Conversão quer dizer voltar-se para um novo elemento e para uma esfera adequada; é voltar-se “das trevas para a luz”. Sem Cristo, o ser humano está no lugar errado e na direção errada. A luz é o elemento e a esfera em que o ser humano deve viver, de acordo com o propósito eterno de Deus. O pecado, porém, tirou o homem da luz e o sepultou nas trevas. Nesse sentido, o evangelho restaura o entendimento à luz da verdade, o coração à luz do amor, a consciência à luz da santidade e a vontade à luz da vida (Efésios 5.8,14). A conversão também significa voltar-se para um verdadeiro Senhor e para um novo governo na vida (“do poder de Satanás para Deus”). O pecado resultou em escravidão ao eu egoísta e a Satanás, mas o evangelho liberta do poder de Satanás, porque Cristo é mais poderoso que ele. Redenção. O texto diz: “a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (gr. toū labeīn autoùs áfesin hamartiōn kaì klēron en toī hēgiasménois pístei tēi eis emé). O Senhor menciona quatro elementos constitutivos dessa experiência de redenção. Primeiro: existe o perdão (“a fim de que recebam o perdão dos pecados”). Não se trata de esquecimento, negligência, ignorância ou indiferença, mas de perdão absoluto. Por causa do sacrifício expiatório de Cristo, Deus não leva nossos pecados em consideração. Receber o perdão dos pecados é como a entrega de

um presente, um dom, que é uma expressão da graça, de um amor imerecido, não o que se obtém por algum mérito. Segundo: há santidade (“entre os que são santificados”). Após o perdão ou justificação dos pecados, vem a experiência da santificação. Quer dizer separação, dedicação, consagração e purificação para ser usado pelo Senhor como um instrumento para a glória de Deus e para a bênção de outros. Terceiro: há comunhão (“entre os que são santificados”). A pessoa perdoada procura imediatamente se relacionar com outras pessoas perdoadas. Essa verdadeira comunhão ou irmandade se dá com Cristo e em Cristo. A única maneira de experimentar essa verdadeira fraternidade é entre os discípulos seguidores de Cristo. Quarto: há glória (“herança”). A posse presente é um antegozo do cumprimento futuro prometido por Deus. Na Bíblia, a palavra “herdeiro” sempre designa o possuidor real. O que o crente perdoado recebe hoje é um prelúdio da herança de glória que o aguarda no futuro. O evangelho nos dá acesso a vida, coração, caráter, posição, privilégio e esperança novos e por fim uma entrada franca na casa de nosso Pai celestial. Como tudo isso pode se tornar realidade em nossa vida? Nesse versículo, o próprio Jesus dá a resposta: “Pela fé em mim” (gr. pístei tēi eis emé).

PAULO A CAMINHO DE ROMA I (27.1-12)

Ao ler esses parágrafos, chama a atenção que Lucas dedique tanto papel e tinta à viagem de Paulo de Cesareia a Roma, enquanto se mostra um tanto conciso com relação a outras viagens do apóstolo. Uma explicação para isso é que Lucas foi protagonista dos fatos relatados. Mais importante ainda parece ser o fato de que seu propósito era mostrar os atos de Jesus por meio da atuação do Espírito Santo na vida de seus discípulos. Uma viagem com destino

O esboço inicial do livro (1.8) culmina com as testemunhas chegando “até os confins da terra”. Os cap. 1—21 registram o testemunho do evangelho alcançando diversos lugares e numerosas pessoas durante um período de trinta anos, aproximadamente. Agora, porém, no final do relato, vemos Paulo chegando à principal cidade do império romano, pronto para apresentar seu testemunho cristão perante ninguém menos que o imperador (23.11; 27.24). Desse modo, na interpretação de Lucas, nem mesmo as experiências mais dolorosas ou a oposição mais violenta conseguem fazer outra coisa senão abrir novas oportunidades para que o evangelho chegue a esferas inalcançáveis. Nem mesmo uma terrível tempestade e um naufrágio que poderia terminar em tragédia foram suficientes para frustrar os desígnios divinos, pois a mensagem redentora chegaria aos aposentos do maior poder da época, o imperador romano. Todo esse relato é um testemunho do poder e da soberania do Senhor, contra o qual nada nem ninguém pode prevalecer.

Os v. 1-12 narram a primeira etapa da viagem de Paulo a Roma. Vale a pena atentar para as personagens e os detalhes dessa aventura. Júlio era um centurião que pertencia ao “Regimento Imperial” (gr. speírēs Sebastēs). Tratava-se de uma força especial que respondia diretamente ao imperador, na condição de agentes militares em operações especiais. Eram homens bem treinados militarmente e de boa conduta (v. 3,43). Aristarco é apresentado como “um macedônio de Tessalônica” (gr. Makedónos Thessalonikéōs, 19.29; 20.4; Colossenses 4.10; Filemom 24), conhecido por sua fidelidade. Lucas fazia parte do grupo e talvez Timóteo e outros discípulos (v. 1). O barco tinha matrícula de Adramítio (v. 2), que era um porto do mar Egeu diante de Lesbos. Rumavam para “alguns lugares da província da Ásia”, saindo de Cesareia e passando por Sidom, Chipre, Cilícia e Panfília, até chegar a Mirra, na Lícia. Era a rota regular do Egito até a Ásia Menor. Em Mirra, trocaram de navio e entraram em um barco de Alexandria que estava indo para a Itália. O barco continuou seu lento percurso até Cnido, Creta e finalmente Bons Portos. Contra o bom conselho de Paulo, içaram as velas outra vez e partiram com destino a Fenice, um porto de Creta, mas foram surpreendidos por uma tempestade, que terminou em naufrágio. Uma viagem com propósito

Viajar pelo Mediterrâneo no mundo antigo era uma aventura muito perigosa, principalmente nos meses de outubro a abril. O v. 9 dá a entender que a festa do jejum (ou Dia da Expiação) já havia passado, pois provavelmente o inverno estava chegando (entre setembro e outubro). Havia um tráfico marítimo permanente entre o

Egito e Roma por rotas costeiras bem conhecidas, mas durante o verão. Os navios estavam carregados de grãos, principalmente de trigo, que era levado de Alexandria para Roma. Essas viagens eram suspensas durante o inverno, em razão do clima mais adverso. É provável que o barco que transportava Paulo e seus companheiros tivesse sido despachado no final dessa época favorável às viagens. Entretanto, por transportar uma carga de trigo, que poderia facilmente se estragar com o passar do tempo, decidiram seguir adiante, apesar dos perigos que isso representava. Mesmo assim, Paulo estava tranquilo e feliz, pois sabia que sua jornada tinha um propósito específico nos planos redentores de Deus. De acordo com a palavra revelada em visão, ele tinha de ir a Roma e o faria, porque era isso que Deus havia planejado para ele. Em todo caso, as dificuldades se apresentaram desde o início. Evidentemente, o inimigo de Deus, que está sempre tentando obstruir o cumprimento dos propósitos divinos, não ficou inerte. Os v. 1-9 descrevem as dificuldades enfrentadas já desde o início da viagem, em razão de fatores climáticos (ventos desfavoráveis). Foi nessas circunstâncias que Paulo desaconselhou a continuação da viagem e propôs que esperassem as condições melhores da primavera (v. 10). Ele sabia que a viagem aconteceria de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, por isso não estava com muita pressa. O dono do navio e o piloto, porém, não lhe deram atenção. Paulo não era marinheiro, mas viajara muito e evidentemente havia aprendido algo por experiência. O centurião responsável pelo apóstolo tinha muito menos conhecimento de navegação que Paulo e os encarregados do barco.

Uma viagem com significado

De acordo com Lucas, a jornada de Paulo tinha um profundo significado teológico e missiológico (27.1—28.16). Uma viagem com significado missiológico. Como já foi dito, causa certa admiração o fato de Lucas dedicar tanto espaço em seu livro para narrar uma viagem (27.1—28.16) de Cesareia a Roma. No entanto, há razões para tal empenho. Em contrapartida, como também já foi dito, o autor esteve presente em todo o percurso, o que parece evidente pelo uso da primeira pessoa do plural em grande parte do relato. Contudo, mais importante que a narração de uma grande aventura, o relato de Lucas contém verdades profundas e princípios de grande valor missiológico. Na viagem por mar e nas experiências da tempestade e do naufrágio, Lucas escolheu o que bem poderia ser considerada uma história caracteristicamente gentia para concluir seu relato cristão sobre como a mensagem do evangelho de salvação alcançou os gentios. Por esse motivo, sua narrativa não só é de grande valor literário, comparável aos populares relatos de viagens marítimas da literatura antiga, mas ostenta principalmente um caráter missiológico relevante, que corresponde a tudo o que já escreveu em Lucas-Atos. Ou seja, a viagem a Roma não interrompeu o ministério missionário de Paulo. Em vez disso, proporcionou um novo campo para a missão, do qual o apóstolo se aproveitou muito bem. Na verdade, de 27.1 até o final do livro Lucas desenvolve a conclusão dos dois volumes de Lucas-Atos. O propósito desses dois capítulos finais de seu livro (27—28) parece ser redesenhar o roteiro da missão paulina aos gentios e judeus em Atos e assim rever o

curso histórico do cristianismo do século I. Nessa longa narrativa, Paulo parece retornar ao seu papel de apóstolo dos gentios. Nessa função apostólica, ele atende aos interesses da segurança dos marinheiros, dos soldados e dos passageiros gentios do primeiro navio de Alexandria e interage com o centurião Júlio, com o oficial Públio e com os habitantes da ilha de Malta. A bondade do centurião para com Paulo e a preocupação com sua segurança situam-no na categoria dos centuriões mencionados em Lucas-Atos, ou seja, representantes dos gentios que vieram à fé em Cristo (Lucas 7.1-10; 23.47; Atos 10.1-48). Pela bondade demonstrada aos náufragos, Públio e os malteses revelaram certo potencial para aderir à comunhão cristã. Os milagres de cura de Paulo comunicaram a mensagem cristã aos nativos de Malta, mas sua interpretação do sofrimento do apóstolo e a sobrevivência deste após a picada da serpente sugerem que ainda estavam longe de ser capazes de ouvir e entender a mensagem. Uma viagem com significado teológico. A relação teológica de Atos 27.1—28.16 com o restante do material em Lucas-Atos é percebida em sua ênfase no envio da salvação de Deus aos gentios por meio de Jesus Cristo e do testemunho da comunidade cristã. É interessante que Deus, Jesus Cristo e a comunidade cristã são mencionados repetidamente nesse longo relato na mesma proporção em que é mostrado o papel de Paulo como apóstolo dos gentios. Em seu discurso (27.21-26), Paulo revela seu Deus como uma divindade salvadora que se propôs à sobrevivência de todos os passageiros do primeiro navio de Alexandria. O convite para comer e a própria refeição (27.33-38) são apresentados em estilo propriamente cristão, como se fosse a celebração da ceia do Senhor

ou da eucaristia (27.35). Além disso, o caráter universal do evangelho cristão é bem ilustrado pelo fato de que a promessa de salvação, o convite à mesa da comunhão e a própria comida destinavam-se a todos os passageiros, sem excluir ninguém. Já os milagres de cura que Paulo realizou em Malta são apresentados como um ministério sobrenatural, exercido em nome de Jesus Cristo.

PAULO A CAMINHO DE ROMA II (27.13-26)

A passagem mostra os dons de liderança de Paulo. Seu conselho em Bons Portos (v. 9,10), baseado em sua ampla experiência com navegação e naufrágios (2Coríntios 11.25), não foi ouvido pelo centurião nem pelo timoneiro, tampouco pelo dono do barco. A única coisa que interessava ao último era entregar sua carga de trigo em Roma em boas condições e sem o custo adicional de ficar recolhido em um porto em condições precárias durante o inverno. Mais uma vez, a liderança de Paulo se pôs em evidência no meio de uma tempestade. Os temores do apóstolo concretizaram-se, e uma tormenta deixou a embarcação à deriva por duas semanas. Os detalhes fornecidos por Lucas sobre os procedimentos de resgate são evidência de uma testemunha ocular e de alguém que conhecia bastante de navegação. O vocabulário técnico chama a atenção. As palavras de ânimo do apóstolo em meio à crise (v. 21-25) não seriam fáceis de esquecer para quem estava ali, à beira da morte. Em meio a toda essa tensão, Paulo mostrou-se calmo, em pleno controle de si mesmo e com uma confiança plena no poder de Deus. Sem dúvida, em uma situação tão terrível, o apóstolo deve ter se lembrado dos temores do salmista e de sua confiança no poder do Senhor (Salmos 107.23-30). Na maravilhosa galeria dos heróis da fé que encontramos em Hebreus 11, cada pessoa mencionada ocupa um lugar de honra e de reconhecimento não tanto por causa de suas realizações humanas, mas com relação às provas de sua fé. O valor deles como exemplos de fé não se baseia no que realizaram por esforço próprio,

mas em como agiram quando sua fé foi posta à prova. A fé que não passa pelo cadinho da prova dificilmente merece tal designação, mas o mundo está cheio de pessoas cuja fé é submetida às mais duras provas, todos os dias. É no fogo da provação que a fé tem a oportunidade de demonstrar sua autenticidade e emergir fortalecida para alcançar novas metas e enfrentar novos desafios. É a fé que merece ser chamada “vitoriosa”. É a fé de que precisamos hoje como cristãos individualmente e como igreja. À luz da passagem e da experiência de Paulo durante essa tempestade no mar, há duas questões importantes que devemos considerar. A fé vitoriosa é posta à prova

Se alguém pensa que por ter fé está vacinado contra as provações, precisa saber que está errado. Paulo era um homem de fé extraordinária, mesmo assim repetidas vezes foi submetido às aflições mais sérias que se possa imaginar. Foi precisamente em meio às provações que a fé do apóstolo não só foi temperada, mas se manifestou em seu maior esplendor. A fé de Paulo. Essa fé foi testada muitas vezes. No deserto, quando ficou cara a cara com Jesus e teve de mudar seu paradigma teológico (9.1-9), Paulo vivenciou uma grande crise. Em Jerusalém, quando os discípulos o repeliram e ele teve de conquistar a confiança deles (9.26), a situação também foi muito difícil. Em cada cidade, sempre que encarava o desafio de convertê-la a Cristo,enfrentava perseguição (14.19). Paulo suportou provações indescritíveis. Em  todos os lugares em que era acossado pelos judaizantes, o apóstolo, para proteger os novos crentes gentios de suas maquinações, via-se forçado a resolver situações que teriam

derrubado qualquer outro. No mar, quando o navio em que viajava naufragou e ele teve de enfrentar uma morte que parecia iminente (27.20), Paulo quase atingiu o limite de sua resistência. A nossa fé. A fé de muitos cristãos é provada de várias maneiras: quando enfrentamos resistência ao nosso testemunho de fé em Cristo; quando enfrentamos as tentações e as armadilhas do Maligno ou a dúvida e a incerteza; quando enfrentamos a necessidade de tomar decisões éticas no trabalho ou nos negócios; quando temos a responsabilidade de treinar e orientar nossos filhos ou outras pessoas; quando enfrentamos as crises que acompanham as diferentes mudanças na vida humana. A fé vitoriosa é um dom de Deus

A Bíblia ensina que a fé não é uma boa obra humana, e sim um dom imerecido que recebemos das mãos de Deus. Contudo, esse dom da graça divina não é concedido sem que se cumpram determinadas condições. Consagração. Observe-se que Deus nos dá fé quando nos consagramos a ele. Deus dá fé ao crente dedicado, que considera todas as coisas como perda por causa de Cristo. Deus dá fé ao crente que é capaz de dizer, como Paulo: “Ontem à noite apareceume um anjo do Deus a quem pertenço e a quem adoro” (gr. paréstē gár moi taútēi tēi nyktì toū theoū, hoū eimi [egō] hōi kaì latreúō, ángelos v. 23). Deus não concederá fé a alguém que nunca o leva em consideração, que apenas espera que ele venha correndo quando estiver em apuros. A fé não é uma obra humana, mas um dom da graça de Deus. É por isso que os discípulos pediram a

Jesus para aumentar sua fé (Lucas 17.5; Efésios 2.8; 1Coríntios 12.9). Ocasião. Observe-se que Deus nos dá fé quando na hora da provação, não antes. Naquele navio prestes a afundar, levado pelas ondas e pelo vento, Paulo parece ter experimentado em algum momento a desesperança dos demais (v. 20). Foi quando toda a esperança desvaneceu que o Senhor falou ao seu servo (“Ontem à noite apareceu-me um anjo”). Deus sempre se faz presente em nossa hora de maior necessidade e se manifesta por meio de seus agentes angelicais. Limitação. Observe-se que Deus nos dá fé, mas não resolve todos os problemas. Nem todas as perguntas são respondidas, nem todos os problemas são resolvidos milagrosamente. Há sempre algo que devemos fazer (v. 26). Há sempre algo que iremos perder. Na verdade, a carga do navio em que Paulo estava se perdeu (v. 38), até mesmo o navio (v. 41). Contudo, em meio à sua aflição, Paulo reconheceu uma presença celestial com ele. A diferença entre Paulo e seus companheiros de viagem não era apenas a bravura, mas a presença do Senhor. Foi a presença divina que fez a diferença para Paulo, não as circunstâncias. Bênção. Observe-se que Deus nos dá fé para abençoarmos os outros. Deus falou com Paulo não apenas para confortá-lo, mas para que ele confortasse e encorajasse os demais: “Deus, por sua graça, deu-lhe a vida de todos os que estão navegando com você” (gr. kecháristaí soi ho theòs pántas toùs pléontas metà soū, v. 24b). Todos iriam se salvar, mas não por serem bons ou corajosos, e sim

porque Paulo estava a bordo. Deus garantiu a Abraão que a cidade seria perdoada se encontrasse ali dez justos. O mundo nem mesmo imagina a dívida que tem para com aqueles homens e mulheres de fé que, com sua intercessão, formam um muro diante da justa ira de Deus. Em cada cidade e em cada igreja, há um pequeno número de fiéis que, à semelhança de Abraão e Paulo, clama a favor dos perdidos. Exaltação. Observe-se, por fim, que Deus nos dá fé para sermos vitoriosos na prova. A fé é o caminho para nossa vitória e exaltação. O Senhor veio a Paulo não para fazê-lo se sentir melhor, mas para deixá-lo apto a agir em seu nome na crise que se avizinhava. Em seu estado de desesperança, nem Paulo nem seus companheiros teriam sobrevivido ao naufrágio e ao que aconteceu depois, mas a fé renovada no Senhor fez do apóstolo um líder eficaz, e o grupo o ouviu e seguiu. É importante observar que Paulo os exorta (v. 21,22), aconselha (v. 30-32), anima (v. 33-36) e por fim os salva (v. 42-44). Quando Paulo se converteu, o Senhor disse a Ananias: “Vá! Este homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” (9.15). É interessante que todo encontro que Paulo teve com o Senhor estava relacionado à sua missão. Quando Cristo entra na vida de uma pessoa, ele deseja usar essa vida para abençoar a vida de outras pessoas. Ninguém pode receber o Espírito de Cristo e continuar vivendo apenas para si. A fé vitoriosa inevitavelmente se transforma em fé compartilhada.

PAULO A CAMINHO DE ROMA III (27.27-44)

Mais uma vez, Paulo se apresenta como alguém capaz de manter o controle espiritual e moral em meio a uma tremenda catástrofe. É notável a serenidade do apóstolo, que manteve a cabeça no lugar, continuou pensando com clareza e até sugeriu estratégias de sobrevivência para as 276 pessoas que estavam no navio. Além disso, foi o impacto de sua personalidade sobre o centurião que o fez “poupar a vida de Paulo” (gr. diasōsai tòn Paūlon, v. 43) e frustrou a tentativa dos soldados de matar os prisioneiros para que nenhum deles escapasse a nado. O navio e a carga se perderam, mas todas as pessoas a bordo conseguiram chegar “a salvo em terra” (gr. pántas diasōthēnai epì tēn gēn, v. 44b). Uma situação dramática (27.27-44)

Depois de catorze dias de angústia, os marinheiros pressentiram que estavam próximos de terra (v. 27). Eles tentaram escapar, mas Paulo deu o alerta, e os soldados os impediram. O apóstolo insistiu em que todos se alimentassem, voltou a dar testemunho das promessas de Deus e orou por seus companheiros de aflição depois de dar graças pelo pão que podiam compartilhar. Nesse momento, o navio quase destroçado transformou-se em uma catedral com 276 pessoas participando do culto e do partir do pão (seria a celebração da eucaristia? V. 1Coríntios 11.23,24a). A questão é que todos comeram, reanimaram-se um pouco e relaxaram. Em seguida, começaram a lançar o resto da carga ao mar, para aliviar o navio, mas a embarcação atingiu um banco de areia e encalhou, enquanto as ondas trataram de destruir o que o vento havia deixado inteiro no

barco. Os soldados, desesperados, queriam matar os prisioneiros — por alguma razão desconhecida, já que todos pareciam condenados à morte. O centurião impediu-os de fazer isso para salvar a vida de Paulo, e finalmente todos se viram forçados a se jogar no mar e chegar a terra a nado ou agarrados a qualquer objeto que flutuasse (v. 44). Um homem dinâmico (27.27-44)

É surpreendente a energia física, espiritual e emocional demonstrada por Paulo durante a experiência do naufrágio relatada nessa passagem. Energia física. Paulo ficou conhecido pelas múltiplas limitações que experimentava no corpo, principalmente pelo famoso “espinho” que, segundo ele, lhe fora cravado no corpo (2Coríntios 12.7). Sem dúvida, independentemente de como essa enfermidade seja interpretada, era uma condição de doença ou de deficiência física que o incomodava bastante. Contudo, é notável a energia física demonstrada pelo apóstolo por toda a experiência agonizante do naufrágio. Paulo não ficou deitado em uma cadeira de praia tomando banho de sol no convés do navio enquanto tudo desmoronava ao redor e o navio afundava. Além disso, convém lembrar que, a essa altura, o apóstolo já havia passado dos 60 anos de idade. Para a época, era uma idade avançada, ainda mais se tratando de alguém como ele, que havia enfrentado todo tipo de adversidades físicas, além do famoso “espinho”. Apesar de tudo, o filme passado por Lucas apresenta um homem dinâmico e vigoroso. Sua força física é surpreendente, pois havia passado por aflições as mais diversas (2Coríntios 11.23-26), como ele mesmo relata:

“Trabalhei arduamente; muitas vezes fiquei sem dormir, passei fome e sede, e muitas vezes fiquei em jejum; suportei frio e nudez” (2Coríntios 11.27). Energia espiritual. O mais surpreendente em Paulo é sua força espiritual. Sua fé no Senhor era inabalável, a qual lhe permitiu que fosse ouvido e respeitado pelas 276 vítimas daquela grande calamidade. Em meio ao caos, ele se mostrou alguém seguro de si e confiante, cuja fé descansava no Senhor. Enquanto todos estavam desesperados, ele se manteve apoiado na esperança cristã e avivou a fé dos demais. De onde vinham esse vigor e essa energia, essa inconfundível serenidade espiritual? Vinham de sua convicção inabalável de que sua vida era guiada por Deus. Desde muito tempo, ele havia aprendido a deixar tudo nas mãos de Deus, em quem depositava total confiança. Ele sabia muito bem que seu Senhor não era indiferente às necessidades de suas criaturas, especialmente as de seus filhos e servos. Deus lhe dissera para não temer, porque ele iria dar testemunho em Roma diante dos mais altos representantes do governo. Paulo creu e fez disso seu mapa para o futuro. Ainda que o navio pudesse partir em dois, o propósito eterno de Deus para sua vida não seria frustrado. O barco poderia ficar à deriva em um mar repleto de perigos, sob um céu de chumbo e sem estrelas pelas quais se pudesse orientar, mas sua vida navegava sob a poderosa luz do propósito divino e descansava tranquila nas promessas de Deus. Paulo sabia muito bem qual era seu porto de destino: Roma, de acordo com o que Deus lhe dissera. Energia emocional. A capacidade emocional de Paulo em meio à crise do naufrágio era resultado dos dois anos que passara como

prisioneiro em Cesareia. Esse período representou uma espécie de retiro espiritual para o apóstolo e também de disciplina para suas emoções. Longe da pressão das multidões turbulentas e sem a necessidade de escrever epístolas polêmicas às igrejas, Paulo aproveitou o bom tratamento que recebia de seus captores para recuperar as forças físicas, morais, espirituais e emocionais, que agora no naufrágio podia pôr a serviço das outras vítimas. Em Cesareia, ele teve a oportunidade de alimentar o espírito com as Escrituras e com frequentes orações. Foi ali que ele consolidou sua convicção quanto ao propósito divino para sua vida, que agora, à beira do desastre total, lhe dava a certeza de que sobreviveria para cumpri-lo. Em qualquer circunstância difícil na vida, o cristão encontrará nessa disciplina espiritual os recursos para edificar a fortaleza emocional necessária para superá-la. Diante da provação, é muito difícil manter o equilíbrio emocional, a menos que as emoções estejam sob o senhorio de Cristo. Isso só é possível quando o Espírito Santo enche a pessoa e a controla totalmente: corpo, alma e espírito.

PAULO A CAMINHO DE ROMA IV (28.1-10) Na ilha de Malta (28.1-6)

Os v. 1-6 mostram como os náufragos descobriram que estavam na ilha de Malta (antigamente chamada Melita). Essa ilha está localizada entre a Europa e a África, embora mais próxima da primeira (cabo de Spartivento, na Calábria) que da segunda (Calipa). Está situada a 96 quilômetros ao sul da Sicília e a 288 quilômetros ao norte do cabo Bon, na Tunísia. A ilha tem aproximadamente 117 quilômetros de circunferência (32 quilômetros de comprimento e 20 quilômetros de largura). Não tem montanhas nem colinas altas, de modo que não proporciona uma vista muito impressionante quando vista do mar. Não possui portos nem baías no lado da África, mas a água é muito profunda em algumas áreas fronteiras à Sicília. Sua antiga capital ficava no centro da ilha, sobre um promontório. Foi ali que uma serpente mordeu Paulo quando ele colocava lenha em uma fogueira. Na Antiguidade, pensava-se que esse tipo de acidente era expressão da justiça divina. Por isso, concluiu-se que o apóstolo era um assassino. Entretanto, ao ver que ele não morreu com a picada, começaram a pensar o contrário, ou seja, que o apóstolo “era um deus” (gr. eīnai theón). Lucas resume nos v. 7-10 os três meses que Paulo e seus companheiros estiveram em Malta. Durante esse tempo, o pai da autoridade máxima da ilha ficou doente, e Deus o curou quando Paulo orou e impôs as mãos nele. Muitas outros habitantes da ilha foram curados, e é provável que o apóstolo tenha pregado e que alguns creram no Senhor.

Perto do fogo (28.2)

No comovente relato de suas experiências pessoais durante o naufrágio e salvamento na ilha de Malta, Lucas oferece detalhes próprios de uma testemunha ocular. O brilho com que introduz as experiências vividas naquela ilha é interessante: “Os habitantes da ilha mostraram extraordinária bondade para conosco” (gr. hoí te bárbaroi pareīchon ou tēn tychoūsan filanthrōpían hēmīn). Após as terríveis provações da tempestade e do naufrágio em alto-mar, ainda era possível sentir o alívio dos sobreviventes ao deparar com uma atitude tão positiva por parte dos nativos de Malta. Lucas parece narrar uma ação óbvia quando diz que eles “fizeram uma fogueira e receberam bem a todos nós” (gr. hápsantes gàr pyràn proselábonto pántas hēmās). Como Lucas poderia esquecer aquele gesto humanitário em um momento de tamanha necessidade? Além disso, por trás dessa experiência indelével e humana, há uma eloquente ilustração de fatos espirituais e divinos, que devemos levar em conta e jamais esquecer. A esse respeito, há três elementos a considerar. O frio. Na experiência de Lucas, “estava chovendo e fazia frio” (gr. dià tòn hyetòn tòn efestōta kaì dià tò psÿchos). Esta é a realidade que milhões de seres humanos vivem diariamente. O frio espiritual e moral os invade até as profundezas do ser. Nem mesmo os crentes escapam dessa situação, porque o mundo é um ambiente muito frio para os redimidos. Por causa de nosso pecado, estamos sujeitos ao frio espiritual e muitas vezes congelamos sob sua influência ou mal alcançamos determinado nível de calor. Acaso não reconhecemos momentos de frieza espiritual em nossa vida quando tudo ao redor

parece estar congelado? Não fazem parte de nosso vocabulário as expressões “crente frio”, “igreja fria”, “servo frio”? Todo crente está exposto a circunstâncias que podem congelar sua fé ou levá-lo a viver em uma geladeira. A “geladeira” pode ser o casamento, a família, a igreja local ou a denominação. Influências congelantes abundam ao nosso redor e, a despeito do que sejam (mundanismo, hedonismo, depressão, estresse, consumismo, triunfalismo ou qualquer outro “ismo”), não costumam ultrapassar o ponto de congelamento. Sabemos muito bem que sob a chuva e a friagem desses elementos é impossível sentir-se feliz, útil no Reino de Deus e pleno dos frutos de justiça. O calor. O melhor remédio para o frio é o calor. Por isso, a primeira coisa que os malteses fizeram, para mitigar o frio reinante, foi acender uma fogueira e convidar os náufragos a se aproximarem para se aquecer. A fogueira espiritual. Para aliviar o frio espiritual e moral, nada melhor que um bom fogo espiritual. Essa fogueira não é acesa com qualquer coisa, mas com uma lenha especial. Um dos elementoschave para acender o fogo espiritual é a Palavra de Deus (Salmos 29.7). Ouvir ou ler a Palavra de Deus aquece o coração. Se hoje há falta de fogo espiritual em muitas congregações evangélicas na América Latina, é porque a Palavra de Deus se destaca por sua ausência. Cada vez que a Bíblia é pregada e ensinada sob o poder do Espírito Santo, um fogo ardente é aceso na mente, no coração e na vontade do povo. Nosso coração queima quando ouvimos a Palavra do Senhor. Os discípulos no caminho de Emaús sentiram o coração arder ao conversar com Jesus, enquanto ele lhes explicava as Escrituras (Lucas 24.32).

A oração espiritual. Outro elemento importante é a oração, sob todas as suas formas, pois ela é como brasas vivas diante do Senhor (Apocalipse 8.3,4). A comunhão com o Cristo vivo por meio do Espírito Santo incendeia o coração do crente (Salmos 39.3). Quando um carvão apagado é posto em contato com um carvão em chamas, ele logo pega fogo e queima. Quando o crente entra em contato com o Senhor, seu coração começa a arder. Quando a igreja se inflama em oração, maravilhas acontecem. Foi uma oração desse tipo que resultou na libertação de Pedro da prisão, pois o texto diz que “a igreja orava intensamente a Deus por ele” (12.5). Alexander Maclaren, grande pregador e expositor bíblico do século XIX, comenta esse caso: “Não é a perseverança o que de fato está na mente de quem escreveu essa história, e sim o fervor”. Foi assim que Jesus orou no Getsêmani (Lucas 22.44), e assim orou Elias no cume do monte Carmelo (1Reis 18.36,37). A oração fervorosa é inflamada pelo fogo do Espírito Santo. Convém lembrar que o ar frio fica embaixo e que só o ar quente sobe. Esta é a oração eficaz. A comunhão espiritual. A comunhão com outros cristãos também é um combustível espiritual altamente inflamável para o cristão e sempre resulta em harmonia e bênção (Salmos 133.1-3). Uma tora pode ficar bem acesa, mas se a isolarmos do fogão ela logo queimará e se transformará em fumaça e cinzas. Se ficar com as outras toras, porém, levará mais tempo para queimar e produzirá muito mais calor e luz. A ação. O que acaba com o frio é o calor, mas para o calor afastar o frio é preciso “acender a fogueira”. Sem a ação de acender o fogo não há calor, e sem calor o frio continuará a afligir as pessoas. No nível espiritual, isso significa que o fogo de um verdadeiro

avivamento espiritual muitas vezes é como o fogo a que nosso texto se refere. A necessidade. Muitas vezes, o fogo espiritual é aceso em meio a sérias dificuldades. Na ilha de Malta, fazia frio e estava chovendo, portanto a lenha estava molhada, e com certeza não foi fácil acender a fogueira. No entanto, a generosidade e a hospitalidade de seus habitantes conseguiram o que parecia impossível. Não é fácil acender o fogo do avivamento espiritual, mas não é impossível. Quando a comunidade de fé se apercebe de que o avivamento é uma necessidade vital e se mostra aberta à ação poderosa do Espírito Santo, o fogo celestial é derramado sobre os crentes, e a igreja fria, enferma, fraca e meio morta começa a mostrar sinais de extraordinária vitalidade. A oportunidade. Além disso, o fogo espiritual de que precisamos não pode ser aceso por nós, por mais dedicados e consagrados que sejamos. A chama do autêntico avivamento espiritual tem de vir do alto, do céu. A fogueira do avivamento arderá se permitirmos que Deus aja com o poder de seu amor e de acordo com seus desígnios. Uma vez obtida a chama, o fogo começa com pequenas faíscas e vai crescendo aos poucos. Normalmente, são os menores ramos que mais ajudam nesse processo. Quem acende o fogo deve fazê-lo de joelhos, enquanto alimenta a chama aos poucos e sopra sobre ela com súplicas ardentes e de todo o coração. Obviamente, deve haver combustível suficiente para o fogo aumentar. “Paulo ajuntou um monte de gravetos” e jogou-o no fogo. Cada cristão deve fazer sua parte para que o avivamento espiritual alcance seu pleno esplendor e potencial.

A responsabilidade. Por fim, o fogo será de grande utilidade se estiver bem aceso. No entanto, não vamos esquecer que Satanás sempre entra no meio do avivamento para perturbar, prejudicar, escandalizar e impedir a obra de Deus. Assim como a “víbora, fugindo do calor”, mordeu a mão de Paulo, Satanás rejeita o avivamento e tentará causar todo mal que puder, especialmente aos servos do Senhor. Por isso, é preciso agir como Paulo: “Sacudindo a cobra no fogo, não sofreu mal nenhum” (v. 5). Cada crente na comunidade do Reino é responsável por não apagar o fogo do Reino e atiçar a chama com sua participação esforçada e leal.

PAULO CHEGA A ROMA (28.11-16)

Passados três meses, a equipe missionária liderada por Paulo embarcou outra vez em um navio alexandrino, como o que naufragara. Havia muito tráfego marítimo entre Alexandria e a Itália, pois a importante cidade egípcia enviava uma grande quantidade de trigo para a Europa. A nave tinha o emblema de Castor e Pólux, dois deuses dióscuros que, segundo a mitologia grega, eram filhos de Júpiter e considerados protetores dos marinheiros. É bem provável que essas imagens estivessem esculpidas ou pintadas na proa. Escalas até Roma (28.11-16)

De Siracusa a Potéoli (v. 12-14a). Os navegantes chegaram à Siracusa, base do governo romano na Sicília, onde permaneceram três dias. Assim, a primeira escala da viagem a Roma foi na cidade de Siracusa, localizada na costa oriental da Sicília. Fora fundada pelos coríntios cerca de setecentos anos antes de Cristo, e os colonos empreendedores, enriquecidos pelo comércio e graças à sua posição estratégica, logo a elevaram à condição de principal cidade da Sicília. Fora uma cidade grega e nessa época estava sob domínio romano. Rivalizava com Cartago, no norte da África, em riqueza e esplendor. Os escritores antigos mencionam com frequência seu porto, seus mármores, seus elegantes edifícios e seus monumentos. Quando Paulo chegou a esse porto, Siracusa uma cidade importante e muito comercial que distava apenas 130 quilômetros de Malta. Não sabemos o que aconteceu durante os três dias em que permaneceram no local, pois Lucas se limita a informar que foi um porto onde fizeram escala.

A segunda escala foi Régio, pequeno povoado no estreito de Messina, na costa da “ponta da bota” da Itália. Ali Paulo pisou em solo italiano pela primeira vez. Com apenas um dia de espera, puderam aproveitar um vento favorável do sul para chegar à escala seguinte. A terceira escala foi Potéoli, porto que servia Roma e onde os navios descarregavam os grãos provenientes do Egito. Potéoli ficava ao norte da baía de Nápoles. O lugar também era notável por suas fontes, que os enfermos frequentavam. Havia 35 lugares com fontes, que proporcionavam água em variadas temperaturas. Foi ali que Paulo começou seu ministério na Itália, uma vez que os irmãos da igreja local o convidaram a ficar com eles sete dias. Aparentemente, Júlio, o centurião, decidiu terminar a viagem por terra, e não faria mal ficar uns dias em Potéoli para descansar e se preparar para a ida a Roma, após as perdas sofridas no naufrágio. Ali encontraram irmãos em Cristo e desfrutaram a hospitalidade deles por uma semana. A menção de uma comunidade cristã em Potéoli é evidência da extensão do cristianismo desde o ano 60, não só no Oriente Médio, como também na península Itálica. De Potéoli a Roma (v. 14b-16). A viagem à capital do império era feita por terra, e o grupo de viajantes certamente teve de se deslocar a pé. A notícia da chegada de Paulo fora antecipada, e quando os irmãos de Roma souberam disso saíram ao encontro do grande homem de Deus, que era conhecido em todos os círculos cristãos, pelo menos no Ocidente. É provável que alguns irmãos conhecessem Paulo por terem se encontrado com ele em outros lugares. Finalmente, o grupo dirigiu-se a Roma, onde a igreja local já tinha notícia da chegada do apóstolo como prisioneiro do império (“tinham ouvido falar”, gr. akoúsantes tà perì hēmōn). Uma

delegação dos cristãos de Roma saiu ao encontro dele para o acompanhar na última etapa da viagem. O fato de o comitê de recepção ter se dividido em dois e o aguardar em locais diferentes (praça de Ápio e Três Vendas) é um indicativo da importância da chegada de Paulo à comunidade de fé em Roma. A frase “vieram [...] para nos encontrar” (gr. eithòn eis apántēsin hēmin) é a que se usava para descrever as representações oficiais que saíam ao encontro de visitas importantes. Desse modo, um grupo chegou até a praça de Ápio, a 65 quilômetros de Roma. O outro grupo chegou somente até Três Vendas, a 50 quilômetros de distância. Observemse os detalhes que Lucas descreve como testemunha ocular desses acontecimentos. Por fim, Paulo pôde cumprir o desejo que expressara aos cristãos romanos — visitá-los quando estivesse a caminho a Espanha —, e eles tinham agora a oportunidade de atender ao pedido de que o recebessem com amor e cuidado (Romanos 1.10b-13; 15.23-32). Não é de admirar, pois, que ao vê-los Paulo “deu graças a Deus e sentiu-se encorajado” (gr. eucharistēsas tōi theōi élabe thársos, v. 15). Finalmente, o grupo, agora bastante numeroso, chegou a Roma, provavelmente ingressando pela Via Ápia e cruzando a porta Capena. Paulo ficou em uma casa alugada sob custódia domiciliar, embora com liberdade para receber visitas. O grande sonho do apóstolo de visitar a cidade havia se realizado, embora como prisioneiro. Poder em ação (28.11-16)

Quando se lê o relato completo da viagem de Cesareia a Roma, empreendida por Paulo, surge o interesse em saber quem estava

encarregado da viagem e quem era prisioneiro ou o comandante: o centurião Júlio ou Paulo. O apóstolo embarcou na Palestina como prisioneiro do governo romano, mas sua notável liderança em nome dos passageiros e da tripulação é um testemunho de sua dependência de Deus. De início, ele foi ignorado pelo oficial romano e pelo capitão do navio, mas acabou dando as ordens quando o navio começou a afundar. Foi Paulo quem preparou a tripulação e os passageiros para o naufrágio e até deu instruções sobre o que fazer depois que o navio naufragasse. Desse modo, o prisioneiro tornou-se o líder dos passageiros e da tripulação e foi obedecido até pelos soldados romanos que o escoltariam até Roma. Mais tarde, Paulo foi convidado a se hospedar na casa do homem principal da ilha de Malta e transformou uma tragédia em uma oportunidade de cura integral. No entanto, não foi a última vez que Paulo expressou poder em ação em nome do Senhor. Evidentemente, sua chegada a Roma é a maior demonstração do poder que operava nele, pois significou o cumprimento de profecias e revelações divinas de muitos anos antes. O Senhor preparou todas as coisas, e principalmente a comunidade de fé da cidade, para recebê-lo com amor e atenção. Apesar de suas cadeias, Paulo e o evangelho marcharam triunfantes em um cortejo vitorioso e assim entraram na capital do império. Paulo entrou em Roma como herói, na condição de instrumento escolhido por Deus para a salvação de muitas almas durante sua turbulenta jornada. Chegou à cidade acompanhado de um grande grupo de cristãos e se instalou em uma casa como hóspede do imperador enquanto aguardava a oportunidade para uma audiência. Longe de se sentir derrotado ou limitado no

cumprimento de seu ministério apostólico, Paulo parecia o homem mais feliz do mundo. Havia alcançado o que sonhava havia anos: chegar a Roma e dar testemunho diante das mais altas autoridades. Suas cadeias eram para ele medalhas de honra, e sua prisão domiciliar representava a mais extraordinária oportunidade para dar testemunho do evangelho tanto a judeus quanto a gentios, em um exercício mais tranquilo de seu ministério, longe dos perigos que as viagens missionárias implicavam. Paulo sabia muito bem como usar o poder divino para se proteger, proclamar o evangelho e posicionar a igreja para influenciar profundamente o mundo. Robert C. Linthicum: “Paulo estava em prisão domiciliar à espera de julgamento diante do imperador, mas observemos como ele utilizou poderosamente sua cidadania romana tanto para proteger sua vida quanto para promover a causa de Cristo. Nem a igreja nem Paulo arcaram com o custo de sua viagem a Roma; foi custeada pelo governo romano. Em prisão domiciliar, a escolta não lhe permitia sair de casa, mas quem quisesse vê-lo tinha livre acesso a ele. Ali, sob a proteção romana, Paulo orientou a igreja em seus esforços para alcançar o império romano com o evangelho e escreveu muitas de suas cartas, que depois se tornaram em epístolas do Novo Testamento. Ele expandiu e fortaleceu a igreja, que mais tarde enfrentou a perseguição romana. Nesse sentido, Paulo fundou uma escola bíblica à custa do imperador (Filipenses 1.12-14) e até construiu relações com os membros da Guarda Pretoriana (o corpo de elite responsável pela proteção do imperador), com a casa de César e com os prisioneiros que o protegiam; aparentemente, vários desses soldados se converteram a Cristo, então uma igreja cristã foi formada, e as primeiras reuniões ocorreram nos quartéis do palácio do imperador. Havia até mesmo uma congregação na casa de César (Filipenses 4.22). Desse modo, Paulo tirou proveito de sua prisão para estabelecer uma igreja poderosa por todo o império romano enquanto estava sob a proteção e tinha o apoio inconsciente de Roma!”.6

PAULO DÁ TESTEMUNHO EM ROMA (28.17-31)

Uma vez mais, o apóstolo aproveitou circunstâncias que deprimiam outras pessoas para, em condições bastante limitadas, dar testemunho de sua fé. Não obstante, o testemunho de Paulo sob custódia é evidência contundente de que o evangelho proclamado é um poder que não pode ser limitado por nenhuma circunstância humana. A última imagem que Lucas apresenta de Paulo em Atos é pregando “o Reino de Deus” e ensinando “a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente, sem impedimento algum” (gr. kērýssōn tēn basileían toū theoū kaì didáskōn tà perì toū kyríou Iēsoū Christoū, v. 31). Uma pessoa que ensina o evangelho (28.17-28)

Em Atos 28.17-28, Paulo retoma seu papel de missionário aos judeus e depara com costumeira dupla reação de seu povo durante suas viagens missionárias. Alguns judeus de Roma acataram sua pregação, enquanto outros a rejeitaram. Pela terceira e última vez em Atos, Paulo esclarece que a salvação de Deus em Jesus Cristo estende-se aos demais povos: “Esta salvação de Deus é enviada aos gentios” (gr. hóti toīs éthnesin apestálē toūto sōtērion toū theoū, v. 28; cf. 13.46,47; 18.6). Desse modo, Lucas mostra nos parágrafos finais de Atos a transição radical que ocorreu no ministério de ensino de Paulo. O ensino do apóstolo demonstra que a esperança judaica estava passando por uma mudança de destino e de protagonistas. Haviam entrado em cena outros participantes e destinatários do evangelho do Reino. O Cristo crucificado representou o cumprimento da

promessa de um Messias — a principal do Antigo Testamento — para seu povo escolhido, Israel, mas agora os gentios se haviam apropriado dessa esperança e da mesma mensagem. Lucas, portanto, revela o processo pelo qual a igreja gentia ocupou o lugar de Israel como comunidade da aliança e se tornou agência do Reino de Deus para a propagação de seu evangelho. Em nenhum lugar, esse fato foi mais evidenciado que em Roma, capital do império pagão gentio ocidental. Arthur F. Glasser: “O contexto de Atos 28 é a Roma pagã: os judeus ali estavam rejeitando a mensagem do Reino de Deus, enquanto os gentios davam ouvidos à mensagem de que Jesus Cristo é Senhor e Salvador (28.31). Essa mudança radical na história da salvação parece ser o que Lucas pretendia destacar nos dois volumes de sua obra. Ele esperava que entendêssemos teologicamente essas duas gerações cruciais do século I, quando um profundo movimento espiritual emergiu do judaísmo e foi transformado em comunidade religiosa universal, em sua maioria composta de gentios. [...] Convém ressaltar a realidade e a importância do desbancamento de Israel pela igreja. A crescente igreja gentia, retratada de forma tão vívida em Atos, deve ser vista como o verdadeiro povo da era messiânica. Essa substituição tem dois lados. O lado negativo dessa trágica realidade é que, apesar das repetidas oportunidades que tiveram de ouvir o evangelho da parte de crentes judeus cheios do Espírito, os líderes do judaísmo deliberadamente se excluíram do Reino de Deus. Isso atraiu o juízo de Deus sobre o judaísmo e torna Atos uma leitura triste. O lado positivo dessa substituição é que o evangelho, embora profundamente arraigado ao judaísmo e repudiado pelos líderes judeus, tornou-se atraente e de valor superlativo para os não judeus”.7 Um evangelho que muda as pessoas (28.17-31)

Apresentação (v. 17-20). A primeira coisa que Paulo fez ao chegar a Roma, depois de passar três dias na casa alugada, foi convocar “os líderes dos judeus” (gr. synkalésasthai autòn toùs óntas tōn Ioudaíōn prōtys). Alguns anos antes, o imperador Cláudio havia

decretado a expulsão dos judeus da metrópole (18.2). Entretanto, esses decretos antissemitas, que eram frequentes, nem sempre atingiam seus objetivos. A comunidade judaica em Roma era importante e chegara a possuir até sete sinagogas em tempos prósperos. Alguns dos líderes (presbíteros) dessas congregações foram os que, com cautela, visitaram Paulo, que seguia firme em seu propósito de testemunhar do evangelho “primeiro do judeu, depois do grego” (Romanos 1.16). Além disso, o apóstolo precisava do apoio dos judeus de Roma em sua causa judicial, para contestar os informes condenatórios das autoridades judaicas de Jerusalém (Sinédrio) e de Cesareia. Tem-se a nítida impressão de que a comunidade judaica de Roma não havia recebido até o momento nenhuma comunicação oficial contra Paulo por parte da hierarquia judaica da Palestina (v. 21). Isso provavelmente ocorreu porque os judeus não gozavam de todo o favor imperial em Roma ou porque o clima de subversão na Palestina contra os romanos estava aumentando, e os judeus palestinos não queriam incomodar os romanos com seus problemas. Isso explica também por que Paulo teve de sintetizar o processo judicial contra ele diante dos líderes judeus de Roma (v. 17b-19). Evangelização (v. 21-28). No entanto, o apóstolo não se limitou a se apresentar e expor sua inocência à liderança judaica de Roma. Seu primeiro objetivo era comunicar-lhes as boas-novas concernentes ao Messias, “a esperança de Israel” (gr. tēs elpídos toū Israēl). A ideia que eles tinham de tudo aquilo é que se tratava de uma “seita” (gr. tēs hairéseōs taútēs) judaica de má fama, mas estavam dispostos a ouvir o que Paulo tinha para compartilhar (v. 21,22). Os v. 23-28 mostram o desenvolvimento desse debate

programado entre o apóstolo e um grupo de judeus representativos. O método empregado foi o rabínico, que consistia em uma proposição seguida pelas intervenções dos ouvintes, tudo isso girando em torno do texto bíblico. O desenvolvimento dialético era tradicional em Paulo: 1) o que é o Reino de Deus? (“do Reino de Deus”, gr. tēn basileían toū theoū); 2) quais são as manifestações ou evidências do Reino de Deus? (“lhes deu explicações e lhes testemunhou do Reino de Deus”, gr. exetítheto diamartyrómenos); 3) que fundamentos existem para o Reino de Deus? (“procurando convencê-los”, gr. peíthōn te autoùs); 4) quem é o centro do Reino de Deus? (“a respeito de Jesus”, gr. perì toū Iēsoū); 5) o que as Escrituras dizem sobre o Reino de Deus? (“com base na lei de Moisés e nos profetas”, gr. apó te toū nómou Mōüséōs kaì tōn profētōn). A reação dos judeus foi e continua sendo a mesma toda vez que se proclama o evangelho do Reino: “Alguns foram convencidos [...] mas outros não creram” (gr. hoi mèn epeíthonto […] hoi dè ēpístoun, v. 24). Ernesto Trenchard: “A pregação do evangelho é sempre ‘cheiro de morte’ ou ‘fragrância de vida’ para quem escuta (2Coríntios 2.15,16). Esse efeito constante é visto após o último testemunho de Paulo diante dos judeus a ter lugar nas Escrituras. Alguns expositores acreditam que o verbo peitho (traduzido por ‘criam’ ou ‘se convenciam’) significa nada mais que uma inclinação para ouvir os argumentos de Paulo, sem que esses ouvintes se rendessem a Cristo, uma vez que todos os judeus, mesmo ‘discutindo intensamente entre si’, se retiraram juntos. No entanto, o verbo indicado seguido pelo caso dativo significa ‘acreditar em’ como regra geral, por isso é melhor ver aqui a ação costumeira do evangelho ao trazer o submisso de coração à vida, enquanto agrava a condenação dos contenciosos. Sem dúvida, a igreja de Roma cresceu em número pelo testemunho desse dia, embora a ênfase da narrativa recaia sobre a obstinação de Israel até o fim, conforme o teor da citação de Isaías 6.9,10”.8

Condenação (v. 25-28). A “declaração final” de Paulo (gr. eipóntos toū Paúlou hrēma hén) aos líderes judeus de Roma é a prova de que a história de Israel, de acordo com Lucas, é trágica. A citação de Isaías 6.9,10 está carregada de uma tensão que expressa essa grande frustração e reflete, por sua vez, a experiência da igreja romana com os judeus não cristãos da cidade. Robert C. Tannehill: “[A citação de Isaías] contém declarações repetidas e enfáticas de uma situação bem antinatural: ouvidos, olhos e coração, que têm a finalidade de ouvir, ver e entender, não percebem nem compreendem. Esse estado antinatural, no qual os órgãos da percepção contradizem seu propósito, bloqueou o desejo de Deus de ‘curá-los’, um anseio que um povo perceptivo abraçaria com prazer. Contudo, Deus não parou de falar a essas pessoas, porque a incômoda tarefa do profeta é expor essa autocontradição diante do Israel incrédulo. Foi-lhe ordenado: ‘Vá a este povo e diga’ as palavras amargas e agonizantes que mostram o fracasso de Israel. Paulo assume esse papel profético de ir e falar ao povo, tanto repetindo as palavras de Isaías quanto concluindo: ‘Portanto, quero que saibam [...]’. O que vem a seguir refere-se aos gentios, mas o anúncio de que os gentios irão ouvir torna a enfatizar as palavras anteriores sobre o fracasso de Israel em fazê-lo. Paulo continua seu testemunho a Israel expondo essa contradição antinatural diante de Israel”.9

Proclamação (v. 30,31). Paulo permaneceu na casa alugada “por dois anos inteiros” (gr. dietían hólēn), o que para ele era tempo mais que suficiente para dar um poderoso testemunho do evangelho a muita gente. Durante sua estada de dois anos em Roma, Paulo esteve extremamente ativo em seu ministério apostólico. Foi nessa época que ele escreveu as cartas aos Filipenses, Filemom, Colossenses e Efésios, epístolas que explicam o evangelho de maneira extraordinária. A maior parte de seu tempo, no entanto, foi dedicada à tarefa para a qual devotara sua vida e ministério: a proclamação do evangelho de Jesus Cristo. Em Roma, Paulo reassumiu o dever missionário de pregar o Reino de Deus e ensinar

acerca do Senhor Jesus Cristo “a todos os que iam vê-lo” (gr. pántas toùs eis poreuoménous pròs autón, v. 30). A mensagem é clara: o evangelho destina-se a todas as nações, e Deus está ativo, mesmo nas circunstâncias mais difíceis e diante dos problemas mais complexos que afetam seus agentes missionários que tentam fazer chegar a mensagem de salvação a todos os seres humanos, sejam judeus ou gentios. A última imagem que Lucas apresenta de Paulo em Atos é pregando “o Reino de Deus” e ensinando “a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente, sem impedimento algum” (v. 31). Pessoas capazes de mudar o mundo (28.23)

Se você tivesse a oportunidade de trocar de lugar com qualquer pessoa, a quem escolheria? Se você pudesse mudar para ser uma pessoa diferente, em quem se transformaria? Se você pudesse mudar o curso de sua vida, o que faria de diferente? Infelizmente, há pessoas que não querem mudar de forma alguma. São aquelas que concordariam com o velho pessimista que, ao ouvir que a oração muda tudo, respondeu: “Não me interessa. As coisas estão mudando rápido demais para eu querer mudar ainda mais”. No entanto, as palavras desse versículo nos ensinam três lições importantes. Jesus foi um grande promotor de mudanças. As pessoas que o seguiam experimentaram mudanças. Seu Espírito continuou a mudar as pessoas depois que ele se foi. Ambiciosos e egoístas foram transformados em pessoas generosas e altruístas. Covardes e fracos foram transformados em pessoas valentes e fortes. Os que se perguntavam: “Pode sair algo bom de Nazaré?” (João 1.46, RVR)

passaram a confessar: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mateus 16.16). Uma das maiores mudanças provocadas por Jesus foi a transformação de um grupo sectário judeu em uma força missionária mundial. Desse modo, a nação judaica passou de povo favorito e exclusivo de Deus a instrumento de redenção do mundo. O Messias judeu deixou de ser um rei nacional para se tornar o Redentor universal. No lugar de um reino nacional restaurado, surgiu um Reino universal e cósmico. A salvação deixou de operar pelo cumprimento de uma lei religiosa e passou a ter efeito pela aceitação da graça divina. Os gentios deixaram de ser pagãos rejeitados para serem irmãos aceitos. Só Deus poderia fazer tais mudanças. Em Atos, vemos Deus agindo em todos os momentos históricos, do Pentecoste a Roma. A batalha foi vencida, e a porta do Reino foi aberta aos gentios. Contudo, a batalha por uma igreja missionária deve ser travada repetidamente a cada geração. Os cristãos missionários devem ser algo e dizer algo. Paulo tratou de viver Cristo e pregar Cristo. Paulo foi um grande promotor de mudanças. Como testemunha do evangelho, teve de enfrentar muitas dificuldades. Foi-lhe necessário encarar a própria indignidade, viu-se obrigado a transformar profundamente sua própria teologia, viveu sob a pressão de ter de ganhar o próprio sustento e precisou lidar com o desânimo causado pelos que se opunham à sua causa. Como testemunha do evangelho, Paulo também se viu diante de variadas reações. Alguns creram, mas outros não. Em determinados casos, a fé amadurecia muito lentamente. Em diferentes lugares, o povo assumia atitudes diferentes e contraditórias. Religiosos piedosos

perseguiram-no, e pagãos ímpios se converteram. Até hoje a pregação continua recebendo as mesmas respostas. Além disso, Paulo dedicou tempo à causa do Senhor. Trabalhava dia e noite para mudar as pessoas. No Reino de Deus, o anúncio da mensagem requer tempo, paciência e perseverança. Em contrapartida, Paulo nutria grande entusiasmo pela tarefa. Em tudo que ele fez, a beleza do evangelho floresceu. O poder e o entusiasmo do apóstolo vinham de seu fogo interior, aceso pelo amor a Jesus e pela paixão por seu Reino. Seremos também grandes promotores de mudança? Em tempos como estes que vivemos, o cristão não pode se isolar na falsa segurança de sua identidade denominacional nem na fantasia de que é um remanescente escolhido, destinado a sobreviver ao caos final. Distorcemos a verdade evangélica de que não somos do mundo quando criamos uma estratégia de fuga do mundo, a qual nos fez esquecer de que Jesus ordenou que fôssemos ao mundo com a mensagem do evangelho. “Não somos deste mundo” é uma confissão que se transformou em um credo absurdo e rebelde: “Não nos interessamos pelo mundo nem pelos que nele habitam”. Precisamos de uma mudança radical que, longe de nos isolar do mundo com todas as suas complexidades e contradições, nos insira nele como sal, luz e fermento do Reino de Deus, para que o transformemos.

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1.15 42, 43, 56, 94, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 143, 144, 147, 159, 204, 328, 450, 494,651. 1.16 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 141, 143, 144, 145, 159, 450, 494,651. 1.17 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 141, 142, 144, 145, 149, 159, 450, 494,651. 1.18 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 141, 142, 144, 145, 159, 450, 494,651. 1.19 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 141, 142, 144, 145, 159, 168, 450, 494,651. 1.20 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 141, 142, 144, 145, 159, 287, 450, 494,651. 1.21 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 139, 140, 143, 144, 145, 147, 153, 159, 494,651. 1.22 42, 43, 56, 95, 96, 97, 105, 115, 116, 131, 139, 140, 143, 145, 147, 153, 159, 416, 494,651. 1.23 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 143, 146, 147, 159, 492, 494,651. 1.24 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 143, 146, 148, 149, 159, 490, 494,651. 1.25 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 143, 146, 148, 149, 159, 494,651. 1.26 42, 43, 56, 95, 96, 97, 115, 131, 132, 133, 143, 146, 149, 150, 152, 159, 494,651. 2.1 42, 56, 65, 66, 67, 68, 76, 77, 79, 95, 115, 125, 131, 135, 136, 140, 152, 155, 157, 158, 162, 204, 206, 398, 428,440, 452, 452, 530, 556,651. 2.2 42, 56, 65, 67, 68, 76, 77, 79, 95, 115, 125, 131, 135, 136, 152, 155, 157, 158, 159, 160, 162, 166, 398, 440, 530, 556,651. 2.3 42, 56, 65, 67, 68, 76, 77, 79, 95, 115, 125, 131, 135, 152, 155, 157, 159, 160, 161, 162, 167, 398, 440, 530, 556,651. 2.4 42, 56, 65, 67, 68, 73, 76, 77, 79, 95, 114, 115, 116, 131, 135, 150, 152, 155, 157, 159, 160, 161, 162, 163, 167, 168, 174, 314, 342, 398, 430, 440, 465, 504, 556,651. 2.5 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 171, 317, 398, 440, 556,651. 2.6 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 94, 95, 115, 116, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 166, 167, 168, 171, 222, 328, 398, 440, 556,651.

2.7 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 167, 168, 171, 222, 302, 398, 440, 556,651. 2.8 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 167, 168, 171, 398, 440, 556,651. 2.9 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 166, 169, 171, 398, 440, 546, 556,651. 2.10 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 169, 171, 183, 398, 413, 440, 539, 551, 556,551, 651. 2.11 42, 54, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 168, 169, 170, 171, 398, 430, 440, 556,651. 2.12 42, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 165, 170, 171, 398, 420, 440, 556,651. 2.13 42, 56, 65, 68, 76, 77, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 164, 170, 171, 185, 398, 440, 556,651. 2.14 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 141, 152, 155, 162, 166, 174, 175, 398, 440, 556,651. 2.15 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 175, 398, 440, 556,651. 2.16 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 175, 177, 398, 440, 556,590, 651. 2.17 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 161, 162, 174, 175, 177, 189, 398, 425, 440, 556,590, 651. 2.18 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 140, 152, 155, 161, 162, 174, 175, 177, 189, 398, 440, 556,590, 651. 2.19 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 83, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 161, 162, 174, 175, 177, 398, 440, 556,590, 651.

2.20 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 161, 162, 174, 175, 177, 398, 440, 556,590, 651. 2.21 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 161, 162, 174, 175, 176, 177, 398, 440, 556,590, 651. 2.22 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 83, 95, 115, 131, 135, 141, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 180, 353, 398, 440, 556,629, 651. 2.23 42, 56, 59, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 102, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 180, 353, 398, 440, 473, 556,651. 2.24 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 180, 398, 440, 556,651. 2.25 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 182, 353, 398, 440, 556,651. 2.26 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 182, 353, 398, 440, 556,651. 2.27 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 182, 353, 398, 440, 556,651. 2.28 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 353, 398, 440, 556,651. 2.29 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 141, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 183, 353, 398, 440, 556,651. 2.30 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 183, 353, 398, 440, 556,651. 2.31 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 183, 353, 398, 440, 556,651. 2.32 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 116, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 183, 184, 353, 398, 416, 440, 474, 556,651.

2.33 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 120, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 183, 184, 353, 398, 440, 556,651. 2.34 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 180, 183, 184, 398, 440, 556,651. 2.35 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 180, 183, 184, 398, 440, 556,651. 2.36 40, 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 105, 115, 123, 131, 135, 152, 155, 162, 174, 177, 178, 179, 180, 183, 184, 185, 398, 440, 474, 556,651. 2.37 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 185, 398, 440, 556,651. 2.38 42, 56, 60, 65, 68, 69, 72, 76, 95, 114, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 185, 186, 190, 342, 347, 353, 398, 440, 442, 551, 556,551,651. 2.39 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 175, 181, 185, 189, 190, 347, 398, 440, 556,651. 2.40 42, 56, 60, 65, 68, 69, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 185, 189, 191, 347, 398, 440, 556,651. 2.41 40, 42, 56, 65, 68, 69, 76, 94, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 192, 193, 194, 204, 287, 317, 347, 394, 398, 440, 551, 556,551,651. 2.42 42, 56, 68, 69, 76, 85, 95, 115, 131, 134, 135, 152, 155, 162, 192, 193, 195, 196, 201, 204, 206, 208, 210, 356, 398, 440, 556,651. 2.43 40, 42, 56, 68, 76, 83, 85, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 193, 198, 204, 208, 210, 292, 398, 440, 556,651. 2.44 42, 56, 68, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 193, 196, 198, 204, 206, 207, 210, 211, 234, 247, 392, 398, 440, 556,651. 2.45 42, 56, 68, 76, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 193, 198, 199, 200, 201, 204, 206, 210, 234, 247, 392, 398, 440, 556,651. 2.46 42, 56, 68, 76, 87, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 193, 195, 200, 201, 202, 204, 208, 210, 211, 234, 333, 392, 398, 440, 556,651.

2.47 40, 42, 56, 68, 76, 94, 95, 115, 131, 135, 152, 155, 162, 193, 200, 202, 203, 204, 208, 209, 210, 211, 212, 237, 257, 392, 398, 440, 556,651. 3.1 42, 56, 95, 115, 208, 211, 213, 214, 215, 218, 292, 415,651. 3.2 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 215, 218, 221, 292, 402, 479,651. 3.3 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 215, 218, 221, 292,651. 3.4 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 216, 218, 292, 479,651. 3.5 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 216, 218, 292,651. 3.6 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 216, 218, 224, 292, 310, 479, 511,593, 629, 651. 3.7 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 216, 218, 292,651. 3.8 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 217, 218, 221, 292, 479,651. 3.9 42, 56, 95, 115, 211, 213, 214, 217, 218, 221, 292, 479,651. 3.10 42, 56, 95, 115, 164, 211, 213, 214, 217, 218, 292, 479,651. 3.11 42, 56, 95, 115, 200, 213, 214, 217, 220, 221, 222, 225, 450,651. 3.12 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 220, 221, 222, 224, 225,651. 3.13 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 227,651. 3.14 42, 56, 60, 95, 106, 115, 178, 213, 214, 220, 221, 222, 224, 225,651. 3.15 42, 56, 60, 95, 115, 116, 178, 213, 214, 220, 221, 222, 224, 225, 226, 227, 228, 416,651. 3.16 42, 56, 60, 95, 115, 178, 213, 214, 220, 221, 222, 224, 225, 227,593, 651. 3.17 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 226,651. 3.18 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 223, 224, 225, 227, 473,651. 3.19 42, 56, 60, 95, 115, 181, 213, 214, 219, 221, 222, 223, 224, 225, 226,651. 3.20 42, 56, 60, 95, 115, 119, 214, 221, 222, 223, 224, 225, 227,651. 3.21 42, 56, 60, 95, 115, 119, 214, 221, 222, 223, 224, 225, 227,651. 3.22 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 227,651. 3.23 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 227,651.

3.24 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 227,651. 3.25 42, 56, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 227,651. 3.26 42, 56, 59, 60, 95, 115, 213, 214, 221, 222, 224, 225, 227, 464, 472,651. 4.1 41, 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 221, 228, 231, 236, 237, 243, 254, 258, 263,651. 4.2 42, 48, 56, 95, 115, 196, 213, 215, 221, 228, 231, 236, 237, 243, 254, 258, 263, 510,651. 4.3 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 221, 228, 231, 236, 237, 243, 254, 258, 451,604, 651. 4.4 40, 42, 48, 56, 94, 95, 115, 213, 215, 221, 228, 231, 236, 237, 254, 258, 287, 394,651. 4.5 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258,651. 4.6 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258,651. 4.7 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258, 260,651. 4.8 42, 48, 56, 60, 95, 115, 174, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258, 314, 465,651. 4.9 42, 48, 56, 60, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258,651. 4.10 42, 48, 56, 60, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258,629, 651. 4.11 42, 48, 56, 60, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 236, 237, 254, 258,651. 4.12 42, 48, 56, 60, 95, 115, 177, 178, 213, 215, 228, 229, 231, 232, 236, 237, 254, 258, 510, 519,651. 4.13 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 236, 237, 254, 258,651. 4.14 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 230, 231, 232, 236, 237, 254, 258, 302,651. 4.15 42, 48, 56, 95, 115, 213, 215, 228, 229, 231, 232, 236, 237, 254, 258,651. 4.16 42, 48, 56, 83, 95, 115, 166, 213, 228, 229, 230, 231, 232, 236, 237, 254, 258, 258,651. 4.17 42, 48, 56, 95, 115, 213, 228, 229, 230, 231, 232, 236, 237, 254, 258, 258,651. 4.18 42, 48, 56, 95, 115, 196, 213, 228, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 254, 258,651. 4.19 42, 48, 56, 95, 115, 213, 228, 230, 231, 232, 233, 236, 237, 254, 258,651. 4.20 42, 48, 56, 95, 115, 213, 228, 230, 231, 232, 233, 236, 237, 254, 258,651.

4.21 42, 48, 56, 95, 115, 213, 228, 230, 231, 232, 236, 237, 254, 258,651. 4.22 42, 48, 56, 95, 115, 213, 228, 230, 231, 232, 236, 237, 254, 258, 489,651. 4.23 42, 56, 80, 95, 115, 213, 234, 236, 237, 240, 254, 452,651. 4.24 42, 56, 95, 115, 200, 213, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 254, 452,651. 4.25 42, 56, 95, 115, 213, 234, 235, 236, 237, 238, 240, 254, 452,651. 4.26 42, 56, 95, 115, 213, 234, 235, 236, 237, 238, 240, 254, 452,651. 4.27 42, 56, 95, 115, 213, 234, 235, 236, 237, 238, 240, 254, 452,651. 4.28 42, 56, 59, 95, 102, 115, 213, 234, 235, 236, 237, 238, 240, 254, 452, 473,651. 4.29 42, 56, 85, 95, 115, 213, 234, 236, 237, 238, 239, 240, 254, 452, 511,651. 4.30 42, 56, 83, 85, 95, 115, 213, 234, 236, 237, 238, 239, 240, 254, 452, 511,651. 4.31 42, 56, 83, 85, 95, 114, 115, 174, 213, 234, 236, 237, 240, 241, 243, 245, 247, 254, 314, 452, 465,651. 4.32 42, 56, 69, 94, 95, 115, 199, 200, 210, 213, 234, 236, 238, 241, 242, 244, 245, 247, 328, 392,651. 4.33 42, 56, 69, 95, 115, 199, 210, 213, 236, 241, 242, 243, 244, 247, 248, 255, 392,651. 4.34 42, 56, 69, 95, 115, 142, 199, 210, 213, 236, 241, 242, 243, 244, 247, 248, 392,651. 4.35 42, 56, 69, 95, 115, 199, 210, 213, 236, 241, 242, 243, 244, 248, 392,651. 4.36 42, 56, 58, 95, 115, 199, 213, 236, 244, 248, 249, 250, 251, 443,591, 651. 4.37 42, 56, 58, 95, 115, 199, 213, 236, 244, 248, 249, 250, 251,651. 5.1 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254, 376, 405,651. 5.2 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.3 42, 56, 95, 115, 142, 164, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.4 42, 56, 95, 115, 199, 207, 213, 250, 252, 254,651. 5.5 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254, 255,651. 5.6 42, 56, 95, 115, 142, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.7 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254,651.

5.8 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.9 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.10 42, 56, 95, 115, 199, 213, 250, 252, 254,651. 5.11 42, 56, 95, 115, 199, 203, 213, 250, 252, 254, 255, 392, 459,651. 5.12 40, 42, 56, 69, 83, 95, 115, 200, 213, 231, 234, 254, 255, 256, 257, 266,651. 5.13 42, 56, 69, 95, 115, 213, 231, 254, 255, 257, 266,651. 5.14 42, 56, 69, 94, 95, 115, 213, 231, 254, 257, 258, 266, 394,651. 5.15 42, 56, 69, 95, 115, 213, 231, 254, 256, 266,559, 560, 651. 5.16 42, 56, 69, 95, 115, 213, 231, 254, 257, 258, 266, 332,651. 5.17 42, 48, 56, 95, 115, 164, 213, 258, 261, 263, 266, 489,604, 651. 5.18 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 261, 263, 266, 451,604, 651. 5.19 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 261, 263, 266, 451,651. 5.20 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 264, 266,651. 5.21 42, 48, 56, 95, 115, 196, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.22 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.23 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.24 41, 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 266, 420,651. 5.25 41, 42, 48, 56, 95, 115, 196, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.26 41, 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.27 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,651. 5.28 42, 48, 56, 95, 115, 164, 196, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 266, 315,651. 5.29 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 264, 266,651. 5.30 42, 48, 56, 95, 115, 178, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 266,609, 610,651. 5.31 42, 48, 56, 95, 115, 123, 124, 127, 178, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 264, 266,610,651.

5.32 42, 48, 56, 95, 115, 116, 123, 124, 178, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 264, 266, 416,651. 5.33 42, 48, 56, 95, 115, 213, 254, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 264, 266,651. 5.34 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.35 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.36 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.37 42, 48, 56, 95, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.38 42, 48, 56, 95, 102, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.39 42, 48, 56, 95, 102, 115, 213, 258, 259, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.40 42, 48, 56, 80, 95, 115, 213, 258, 260, 261, 263, 266, 317,607, 651. 5.41 42, 56, 80, 95, 115, 194, 213, 254, 258, 260, 261, 263, 264, 266,592, 651. 5.42 42, 56, 80, 95, 115, 196, 208, 213, 214, 254, 261, 263, 264, 265, 266,582, 651. 6.1 43, 56, 58, 94, 95, 115, 140, 199, 272, 273, 274, 275, 277, 280, 334, 345, 350, 494,590, 651. 6.2 43, 56, 58, 95, 115, 272, 273, 274, 276, 277, 280, 281, 328, 334, 345, 350, 417, 494,590, 651. 6.3 43, 56, 58, 95, 115, 164, 272, 273, 274, 276, 280, 284, 313, 314, 334, 345, 350, 465, 494,590, 651. 6.4 43, 56, 58, 95, 115, 134, 195, 238, 272, 273, 274, 276, 280, 334, 345, 350, 417, 494,590, 651. 6.5 43, 54, 56, 57, 58, 95, 115, 164, 272, 273, 274, 276, 277, 280, 292, 314, 327, 328, 329, 334, 345, 350, 494,590, 651. 6.6 43, 56, 58, 95, 115, 272, 273, 274, 277, 279, 280, 334, 345, 350, 462, 494,590, 651. 6.7 40, 43, 56, 58, 69, 94, 95, 115, 272, 280, 282, 285, 286, 288, 328, 334, 345, 350, 394, 504,590, 651. 6.8 40, 43, 56, 57, 58, 83, 95, 115, 164, 272, 273, 291, 292, 295, 296, 334, 350, 370,590, 651.

6.9 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 294, 295, 318, 334, 350, 370,590, 651. 6.10 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 294, 295, 314, 334, 350,590, 651. 6.11 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 295, 308, 334, 350,590, 651. 6.12 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 295, 308, 334, 350,590, 604, 651. 6.13 43, 56, 57, 58, 95, 115, 116, 272, 273, 277, 291, 295, 297, 308, 334, 350, 416,590, 602, 605, 651. 6.14 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 295, 297, 308, 334, 350,590, 629, 651. 6.15 43, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 295, 297, 308, 334, 350,590, 651. 7.1 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 350, 369, 370,651. 7.2 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 314, 332, 350, 369, 370,651. 7.3 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 332, 350, 369, 370,651. 7.4 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 166, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 299, 332, 350, 369, 370,651. 7.5 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 299, 332, 350, 369, 370,651. 7.6 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 299, 332, 350, 369, 370, 450,651. 7.7 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 299, 332, 350, 369, 370,651. 7.8 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 299, 332, 350, 369, 370,651. 7.9 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.10 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651.

7.11 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.12 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.13 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.14 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.15 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.16 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.17 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.18 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 332, 350, 369, 370,651. 7.19 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 332, 350, 369, 370, 450,651. 7.20 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 302, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.21 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 302, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.22 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.23 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651.

7.24 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.25 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.26 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.27 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 306, 332, 350, 369, 370,651. 7.28 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.29 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 301, 303, 304, 305, 306, 332, 350, 369, 370,651. 7.30 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 305, 306, 332, 350, 369, 370, 425, 451,651. 7.31 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 305, 306, 332, 350, 369, 370, 425,651. 7.32 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 305, 306, 332, 350, 369, 370,609, 651. 7.33 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 305, 306, 332, 350, 369, 370,651. 7.34 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 305, 332, 350, 369, 370,651. 7.35 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 309, 310, 332, 350, 369, 370, 451,651. 7.36 43, 48, 56, 57, 58, 60, 83, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 309, 310, 332, 350, 369, 370,651.

7.37 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 309, 310, 332, 350, 369,651. 7.38 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 309, 310, 332, 350, 369, 370, 451,651. 7.39 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 332, 350, 369, 370, 472,651. 7.40 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 332, 350, 369, 370,651. 7.41 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 332, 350, 369, 370,651. 7.42 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 332, 350, 369, 370,651. 7.43 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 300, 306, 307, 332, 350, 369, 370,651. 7.44 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 307, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.45 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 307, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.46 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 307, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.47 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.48 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 307, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.49 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 308, 332, 350, 369, 370,651.

7.50 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 307, 308, 332, 350, 369, 370,651. 7.51 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 308, 310, 332, 350, 369, 370,651. 7.52 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 306, 308, 310, 314, 332, 350, 369, 370,651. 7.53 43, 48, 56, 57, 58, 60, 95, 115, 272, 273, 277, 291, 297, 298, 308, 310, 332, 350, 369, 370, 451,634, 651. 7.54 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 297, 308, 309, 311, 312, 313, 350, 369, 370,634, 651. 7.55 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 122, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 314, 315, 350, 369, 370, 465,634, 651. 7.56 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 122, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 314, 350, 369, 370,634, 651. 7.57 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 350, 369, 370, 390,634, 651. 7.58 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 116, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 316, 350, 369, 370, 390, 416, 481,607, 634, 651. 7.59 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 314, 350, 369, 370, 390, 481,607, 634, 651. 7.60 43, 48, 56, 57, 58, 95, 115, 272, 273, 291, 297, 308, 311, 312, 313, 317, 350, 369, 370, 390,607, 634, 651. 8.1 42, 43, 48, 56, 57, 58, 70, 80, 95, 115, 272, 273, 278, 315, 316, 317, 319, 320, 326, 327, 350, 355, 364, 369, 392, 397, 405, 440, 490,607, 634, 651. 8.2 43, 48, 56, 57, 58, 70, 80, 95, 115, 166, 272, 273, 315, 316, 317, 319, 326, 327, 350, 369, 440, 490,607, 634, 651.

8.3 43, 48, 56, 57, 58, 70, 80, 95, 115, 272, 273, 315, 316, 317, 319, 326, 327, 339, 350, 365, 369, 390, 392, 440, 490,604, 607, 634, 651. 8.4 43, 56, 57, 58, 71, 74, 80, 95, 115, 194, 272, 315, 316, 318, 319, 320, 324, 326, 327, 350, 355, 369, 440, 442, 490,589, 634, 651. 8.5 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 324, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 333, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.6 43, 56, 57, 58, 71, 74, 83, 115, 278, 293, 323, 324, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 333, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.7 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 324, 326, 327, 329, 330, 331, 333, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.8 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 324, 326, 327, 329, 330, 331, 333, 337, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.9 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 326, 327, 337, 338, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.10 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 326, 327, 337, 338, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.11 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 326, 327, 337, 338, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490,634, 651. 8.12 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 278, 323, 326, 327, 337, 338, 339, 341, 345, 350, 355, 369, 440, 489, 490, 509,651. 8.13 40, 43, 56, 57, 58, 71, 74, 83, 115, 170, 195, 278, 323, 326, 327, 337, 338, 339, 340, 345, 346, 350, 355, 356, 369, 440, 489, 490,651., 8.14 43, 56, 57, 58, 71, 74, 76, 77, 115, 194, 323, 326, 327, 337, 338, 341, 345, 350, 369, 400, 440, 478, 489, 490,651. 8.15 43, 56, 57, 58, 71, 74, 76, 77, 115, 194, 323, 326, 327, 337, 338, 341, 342, 345, 350, 369, 400, 440, 478, 489, 490,651.

8.16 43, 56, 57, 58, 71, 74, 76, 77, 115, 194, 323, 326, 327, 337, 338, 341, 342, 345, 350, 369, 440, 478, 489, 490,651. 8.17 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 76, 77, 115, 188, 194, 323, 326, 327, 337, 338, 341, 342, 345, 350, 369, 440, 478, 489, 490, 558,651. 8.18 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 342, 345, 350, 369, 440, 478, 489, 490,651. 8.19 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 170, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 343, 345, 350, 369, 440, 478, 489, 490,651. 8.20 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 343, 345, 348, 350, 369, 440, 478, 489, 490,651. 8.21 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 343, 345, 350, 369, 440, 489, 490,651. 8.22 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 343, 345, 350, 369, 440, 489, 490,651. 8.23 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 343, 345, 350, 369, 440, 489, 490,651. 8.24 43, 56, 57, 58, 71, 73, 74, 115, 323, 326, 327, 337, 338, 340, 342, 344, 345, 350, 369, 440, 489, 490,651. 8.25 43, 56, 57, 58, 71, 74, 115, 194, 323, 326, 327, 337, 338, 344, 345, 350, 369, 394, 399, 440, 489, 490,651. 8.26 43, 54, 56, 57, 58, 74, 91, 115, 278, 323, 326, 327, 350, 355, 356, 357, 369, 420, 440, 451, 490,651. 8.27 43, 54, 56, 57, 58, 74, 91, 115, 278, 323, 326, 327, 350, 355, 356, 357, 358, 369, 440, 490,651. 8.28 43, 54, 56, 57, 58, 74, 91, 115, 278, 323, 326, 327, 350, 355, 356, 357, 358, 369, 440, 490,651.

8.29 43, 54, 56, 57, 58, 74, 87, 90, 115, 323, 326, 327, 350, 355, 356, 369, 420, 440, 451, 490, 504,651. 8.30 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 323, 326, 327, 350, 352, 355, 356, 369, 440, 490,651. 8.31 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 358, 369, 440, 490,651. 8.32 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 358, 369, 440, 490,651. 8.33 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 358, 369, 440, 490,651. 8.34 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 185, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 358, 369, 440, 490,651. 8.35 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 185, 194, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 369, 440, 490,651. 8.36 43, 54, 56, 57, 58, 74, 87, 115, 185, 194, 323, 326, 327, 350, 353, 355, 356, 369, 440, 490,651. 8.37 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 194, 323, 326, 327, 350, 353, 354, 355, 356, 369, 440, 490,651. 8.38 43, 54, 56, 57, 58, 74, 87, 115, 194, 323, 326, 327, 350, 353, 354, 355, 356, 369, 440, 490,651. 8.39 43, 54, 56, 57, 58, 74, 115, 194, 278, 323, 326, 327, 333, 350, 354, 355, 356, 358, 369, 440, 451, 490, 504, 509,651. 8.40 43, 56, 57, 58, 74, 115, 278, 323, 326, 327, 350, 354, 355, 356, 369, 400, 405, 440, 490,590, 651. 9.1 43, 48, 56, 115, 251, 323, 327, 361, 362, 363, 364, 369, 390, 397,607, 608, 611, 651, 625. 9.2 43, 48, 56, 115, 318, 323, 327, 361, 362, 363, 365, 369, 380, 390, 397, 552,552, 565, 607, 608, 611, 651, 625. 9.3 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 369, 370, 390, 397, 505,608, 611, 651, 625. 9.4 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 369, 370, 371, 390, 397, 505,608, 611, 651, 625.

9.5 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 369, 370, 370, 371, 390, 390, 397,608, 611, 651, 625. 9.6 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 367, 369, 370, 372, 390, 390, 397,608, 611, 651, 625. 9.7 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 367, 369, 372, 390, 397,608, 611, 651, 625. 9.8 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 369, 372, 386, 390, 397,608, 611, 651, 625. 9.9 43, 56, 115, 323, 327, 361, 362, 363, 369, 372, 390, 397,608, 611, 651, 625. 9.10 43, 56, 115, 323, 327, 361, 372, 374, 374, 376, 390, 397, 425, 505,608, 611, 651. 9.11 43, 56, 115, 323, 327, 361, 372, 374, 376, 390, 397, 505,608, 611, 651. 9.12 43, 56, 115, 323, 327, 361, 372, 374, 376, 390, 397, 425, 505,608, 611, 651. 9.13 43, 56, 115, 323, 327, 361, 372, 374, 376, 390, 397, 400, 505,607, 608, 611, 651. 9.14 43, 56, 115, 327, 361, 372, 374, 376, 390, 397,608, 611, 651. 9.15 42, 43, 56, 115, 323, 327, 361, 367, 372, 374, 376, 378, 390, 397,589, 608, 611, 651, 657. 9.16 43, 56, 56, 115, 323, 327, 361, 367, 372, 374, 376, 378, 382, 390, 397,592, 589, 608, 611, 651. 9.17 43, 56, 93, 115, 194, 315, 323, 327, 361, 372, 374, 376, 390, 397, 465,608, 611, 651. 9.18 43, 56, 93, 115, 194, 323, 327, 361, 372, 374, 376, 383, 390, 397,608, 611, 651. 9.19 43, 56, 93, 115, 323, 324, 327, 361, 372, 374, 376, 379, 380, 390, 397,608, 611, 651. 9.20 43, 56, 93, 115, 323, 324, 327, 351, 361, 379, 380, 381, 390, 394, 397, 472,608, 611, 651. 9.21 43, 56, 93, 115, 323, 324, 327, 361, 379, 380, 381, 390, 397,607, 608, 611, 651. 9.22 43, 56, 93, 115, 166, 323, 324, 327, 361, 379, 380, 381, 390, 394, 397,608, 611, 651. 9.23 43, 48, 56, 115, 323, 324, 327, 361, 379, 380, 381, 382, 390, 391, 397,608, 611, 651. 9.24 43, 48, 56, 115, 323, 324, 327, 361, 379, 380, 381, 382, 390, 391, 397,608, 611, 651. 9.25 43, 48, 56, 115, 323, 324, 327, 361, 379, 380, 381, 382, 390, 391, 397,608, 611, 651.

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10.4 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 414, 415, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.5 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.6 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.7 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 195, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 431, 451, 489, 490,632, 651, 654. 10.8 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.9 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 418, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.10 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 418, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.11 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 418, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.12 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.13 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.14 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.15 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654. 10.16 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,612, 632, 651, 654.

10.17 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 420, 421, 426, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.18 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 421, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.19 43, 56, 57, 58, 75, 76, 87, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 420, 421, 426, 431, 451, 489, 490, 504,632, 651, 654. 10.20 43, 56, 57, 58, 75, 76, 87, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 420, 421, 422, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.21 43, 56, 57, 58, 75, 76, 91, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 417, 419, 420, 421, 431, 489,632, 651, 654. 10.22 43, 54, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 313, 323, 327, 397, 411, 412, 413, 416, 417, 420, 421, 431, 451, 489, 490,632, 651, 654. 10.23 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 416, 417, 421, 423, 426, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.24 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 421, 426, 430, 431, 433, 489, 490,632, 651, 654. 10.25 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 421, 426, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.26 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 421, 426, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.27 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 421, 426, 427, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.28 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 416, 421, 426, 427, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.29 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 411, 412, 413, 416, 421, 422, 423, 424, 426, 427, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654.

10.30 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 415, 416, 426, 427, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.31 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 427, 430, 431, 432, 489, 490,632, 651, 654. 10.32 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 427, 430, 431, 432, 489, 490,632, 651, 654. 10.33 43, 56, 57, 58, 75, 76, 115, 185, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 427, 430, 431, 432, 433, 489, 490,632, 651, 654. 10.34 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 432, 489, 490,632, 651, 654. 10.35 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.36 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.37 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 143, 189, 310, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.38 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 189, 300, 310, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.39 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 116, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 429, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.40 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 178, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.41 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 116, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.42 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 429, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654.

10.43 43, 56, 57, 58, 60, 75, 76, 115, 178, 189, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 416, 426, 428, 429, 430, 431, 489, 490,632, 651, 654. 10.44 43, 56, 57, 58, 74, 76, 77, 79, 115, 189, 194, 315, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 426, 429, 430, 431,435, 489, 490,632, 651, 654. 10.45 43, 56, 57, 58, 74, 75, 76, 77, 79, 115, 189, 194, 315, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 426, 429, 430, 431, 435, 489, 490,632, 651, 654. 10.46 43, 56, 57, 58, 74, 75, 76, 77, 79, 115, 162, 189, 194, 315, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 426, 429, 430, 431, 435, 489, 490,632, 651, 654. 10.47 43, 56, 57, 58, 75, 76, 77, 79, 115, 189, 194, 323, 327, 354, 360, 397, 399, 412, 413, 426, 429, 430, 430, 431, 435, 436, 489, 490,632, 651, 654. 10.48 43, 56, 57, 58, 76, 115, 189, 194, 323, 327, 397, 399, 412, 413, 426, 429, 430, 431, 435, 436, 489, 490,632, 651, 654. 11.1 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 489, 490,598, 651. 11.2 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 488, 489, 490,598, 651. 11.3 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 489, 490,598, 651. 11.4 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 489, 490,598, 651. 11.5 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 426, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.6 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.7 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.8 42, 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.9 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.10 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.11 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.12 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 438, 439, 441, 489, 490, 504,598, 651. 11.13 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651.

11.14 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 416, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.15 43, 56, 57, 75, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.16 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 438, 439, 440, 441, 489, 490,598, 651. 11.17 43, 56, 57, 115, 323, 327, 354, 397, 399, 413, 420, 429, 436, 437, 438, 439, 440, 441, 489, 490,598, 651. 11.18 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 399, 413, 436, 437, 438, 439, 441, 489, 490,598, 651. 11.19 43, 54, 56, 57, 115, 194, 318, 319, 323, 324, 326, 327, 397, 413, 442, 443, 446, 459, 464, 489, 490,589, 651. 11.20 43, 54, 56, 57, 115, 319, 323, 324, 326, 327, 397, 413, 442, 443, 446, 447, 459, 464, 489, 490,651. 11.21 40, 43, 56, 57, 94, 114, 115, 319, 323, 324, 327, 397, 413, 442, 443, 446, 459, 489, 490,651. 11.22 43, 56, 57, 58, 115, 323, 327, 397, 413, 442, 443, 446, 447, 459, 489, 490,598, 651. 11.23 43, 56, 57, 87, 115, 253, 323, 327, 397, 413, 442, 443, 446, 447, 459, 489, 490,651. 11.24 40, 43, 56, 57, 87, 115, 250, 258, 315, 323, 327, 328, 397, 413, 442, 443, 446, 447, 459, 467, 489, 490,636, 651. 11.25 43, 56, 57, 115, 323, 327, 386, 397, 413, 442, 443, 444, 446, 447, 459, 489, 490,598, 651. 11.26 43, 56, 57, 58, 115, 323, 327, 328, 386, 397, 413, 442, 443, 444, 446, 447, 448, 459, 471, 489, 490,651. 11.27 35, 43, 55, 56, 115, 140, 323, 327, 386, 397, 413, 442, 443, 445, 446, 447, 459, 489, 490,590, 598, 651. 11.28 35, 40, 43, 56, 115, 323, 327, 386, 397, 413, 442, 443, 445, 446, 447, 459, 489, 490, 504,590, 598, 651. 11.29 35, 43, 56, 115, 323, 327, 386, 397, 413, 442, 443, 445, 446, 447, 458, 459, 489, 490,598, 651.

11.30 35, 43, 56, 115, 323, 327, 386, 397, 413, 442, 443, 445, 446, 447, 458, 459, 489, 490, 547,598, 651. 12.1 43, 56, 57, 115, 323, 327, 392, 397, 439, 448, 449, 450, 461, 491,604, 643, 645, 651. 12.2 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 461, 491,604, 643, 651. 12.3 43, 56, 57, 115, 323, 327, 392, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,604, 643, 651. 12.4 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,604, 643, 651. 12.5 43, 56, 57, 115, 134, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 452, 461,643, 651, 663. 12.6 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.7 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.8 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.9 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 426, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.10 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.11 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461,643, 651. 12.12 43, 56, 57, 115, 132, 155, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 451, 461, 469, 470,643, 651. 12.13 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 397, 439, 448, 449, 450, 461,643, 651. 12.14 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 397, 439, 448, 449, 450, 461,643, 651. 12.15 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 397, 439, 448, 449, 450, 461,643, 651. 12.16 43, 56, 57, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 452, 461,643, 651. 12.17 43, 56, 57, 115, 135, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 461,596, 643, 651. 12.18 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 461,570, 643, 651. 12.19 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 450, 461,643, 651. 12.20 40, 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 452, 454, 461,643, 645, 651. 12.21 40, 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 452, 453, 461,643, 645, 651. 12.22 40, 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 452, 454, 461,643, 651. 12.23 40, 43, 56, 115, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 452, 454, 461,643, 651.

12.24 40, 43, 56, 115, 286, 323, 327, 397, 439, 448, 449, 452, 504,643, 651. 12.25 35, 43, 56, 115, 323, 327, 397, 448, 449, 451, 452, 456, 458,598, 643, 651. 13.1 43, 54, 56, 57, 93, 115, 447, 448, 451, 455, 456, 458, 459, 462, 465, 466,590, 651. 13.2 43, 54, 56, 87, 93, 115, 215, 432, 439, 447, 448, 451, 455, 456, 458, 459, 462, 463, 466, 470, 498,651. 13.3 43, 54, 56, 93, 115, 280, 432, 448, 451, 455, 456, 458, 459, 461, 462, 466, 484,651. 13.4 43, 54, 56, 115, 194, , 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 466, 469, 470,591, 651. 13.5 43, 56, 115, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 466, 467, 469, 471, 472, 484,591, 651. 13.6 43, 56, 115, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 465, 466, 467, 471,591, 651. 13.7 24, 40, 43, 48, 56, 60, 115, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 465, 466, 467, 471,591, 651. 13.8 24, 43, 56, 115, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 465, 466, 467, 471,591, 651. 13.9 24, 43, 56, 115, 216, 315, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 465, 466, 467, 471, 501,591, 651. 13.10 24, 43, 56, 115, 164, 346, 365, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 466, 467, 471,591, 651. 13.11 24, 43, 56, 115, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 466, 467, 468, 471,591, 651. 13.12 24, 43, 48, 56, 60, 115, 346, 451, 455, 456, 458, 459, 463, 464, 466, 468, 471,591, 651. 13.13 43, 56, 57, 115, 252, 451, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 501,591, 651. 13.14 43, 54, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 485, 518,651. 13.15 43, 54, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 518,651. 13.16 43, 54, 56, 57, 60, 115, 452, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 518, 523,651. 13.17 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651. 13.18 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651. 13.19 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651.

13.20 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651. 13.21 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651. 13.22 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,609, 651. 13.23 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,651. 13.24 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,651. 13.25 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,651. 13.26 43, 54, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,618, 651. 13.27 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,651. 13.28 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 485, 523,651. 13.29 43, 56, 57, 59, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 473, 474, 485, 523,651. 13.30 43, 56, 57, 60, 115, 353, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.31 43, 56, 57, 60, 115, 116, 353, 416, 417, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.32 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.33 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.34 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.35 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.36 43, 56, 57, 60, 103, 115, 313, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.37 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.38 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,618, 651. 13.39 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 472, 474, 485, 523,651. 13.40 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651.

13.41 43, 56, 57, 60, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 471, 485, 523,651. 13.42 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472, 485,651. 13.43 43, 54, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472, 485,651. 13.44 43, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472,651. 13.45 43, 56, 57, 115, 164, 328, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472, 475,651. 13.46 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 464, 468, 469, 472, 484,651, 668. 13.47 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 459, 459, 468, 469, 472,651, 668. 13.48 43, 56, 57, 115, 333, 455, 456, 458, 468, 469, 472,651. 13.49 43, 56, 57, 115, 265, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472,651. 13.50 43, 48, 56, 57, 115, 265, 293, 415, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472, 475, 480,651. 13.51 43, 56, 57, 115, 293, 455, 456, 458, 459, 468, 469, 472,651. 13.52 43, 56, 57, 87, 115, 164, 293, 315, 455, 456, 458, 459, 465, 468, 469, 472,651. 14.1 40, 43, 56, 57, 115, 293, 328, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 485,651. 14.2 43, 56, 57, 115, 293, 450, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 478, 485,651. 14.3 40, 43, 56, 57, 83, 115, 194, 293, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 485, 487,651. 14.4 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 478, 485,651. 14.5 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 480, 485,651. 14.6 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 485,651. 14.7 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 475, 476, 477, 485,651. 14.8 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479,481, 485,651. 14.9 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479, 481, 485, 487,651. 14.10 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479, 481, 485,651. 14.11 43, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 478, 479, 481, 482, 485,651. 14.12 43, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 478, 479, 481, 482, 485,651. 14.13 43, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 478, 479, 481, 482, 485,651. 14.14 43, 56, 57, 115, 253, 328, 455, 456, 458, 475, 478, 479, 480, 481, 482, 485,614, 651.

14.15 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479, 480, 481, 482, 485,651. 14.16 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479, 480, 481, 482, 485, 532,651. 14.17 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 479, 480, 481, 482, 485, 532,651. 14.18 43, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 478, 479, 480, 481, 482, 485,651. 14.19 43, 48, 56, 57, 115, 328, 455, 456, 458, 478, 480, 481, 482, 485,651, 656. 14.20 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 478, 481, 482, 485,651. 14.21 40, 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 480, 483, 485,651. 14.22 43, 56, 57, 80, 115, 455, 456, 458, 480, 483, 484, 485, 486, 504,651. 14.23 43, 56, 57, 115, 432, 455, 456, 458, 480, 483, 484, 485, 487, 494,651. 14.24 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 483, 484, 485,651. 14.25 43, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 469, 483, 484, 485,651. 14.26 43, 54, 56, 57, 115, 455, 456, 458, 483, 484, 485,651. 14.27 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 483, 484, 485,651. 14.28 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 483, 484, 485,651. 15.1 35, 42, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 489, 493,598, 601, 651. 15.2 35, 42, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 493, 547,598, 601, 651. 15.3 35, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 493,598, 601, 651. 15.4 35, 43, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 493, 494,598, 601, 651. 15.5 35, 43, 56, 115, 258, 455, 456, 458, 488, 489, 493,596, 597, 598, 601, 651. 15.6 35, 43, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 489, 493, 494,598, 601, 651. 15.7 35, 43, 56, 115, 441, 455, 456, 458, 488, 489, 493,598, 601, 651. 15.8 35, 43, 56, 115, 148, 441, 455, 456, 458, 488, 489, 490, 493,598, 601, 651. 15.9 35, 43, 56, 115, 441, 455, 456, 458, 488, 489, 490, 493,598, 601, 651. 15.10 35, 43, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 489, 490, 492, 493,598, 601, 651. 15.11 33, 35, 43, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 489, 490, 493,598, 601, 651. 15.12 35, 40, 43, 56, 83, 115, 328, 455, 456, 458, 488, 491, 493,598, 601, 651.

15.13 43, 54, 56, 115, 135, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.14 43, 54, 56, 115, 397, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.15 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.16 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.17 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.18 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 492, 493,596, 598, 601, 651. 15.19 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 492, 493,596, 598, 601, 651. 15.20 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.21 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 491, 493,596, 598, 601, 651. 15.22 36, 43, 54, 56, 115, 147, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 494, 504,598, 601, 651. 15.23 36, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 494, 504,598, 601, 651. 15.24 36, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504,598, 601, 651. 15.25 36, 43, 54, 56, 115, 234, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504,598, 601, 651. 15.26 36, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504,598, 601, 651. 15.27 36, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504,598, 601, 651. 15.28 36, 43, 54, 56, 88, 92, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504, 504,596, 598, 601, 651. 15.29 36, 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 504,596, 598, 601, 651. 15.30 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 497,598, 601, 651. 15.31 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 497,598, 601, 651. 15.32 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 497,590, 598, 601, 651. 15.33 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 497,598, 601, 651. 15.34 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493,598, 601, 651. 15.35 43, 54, 56, 115, 455, 456, 458, 488, 492, 493, 497, 498,598, 601, 651. 15.36 43, 54, 56, 115, 251, 252, 451, 455, 456, 461, 488, 497, 498, 500, 501, 504,651. 15.37 43, 54, 56, 115, 251, 252, 451, 455, 456, 468, 469, 488, 497, 498, 500,651.

15.38 43, 54, 56, 115, 252, 451, 455, 456, 468, 488, 497, 498, 499, 500, 501,651. 15.39 41, 43, 50, 54, 56, 115, 252, 451, 455, 456, 468, 469, 488, 497, 498, 499, 500,591, 651. 15.40 43, 54, 56, 115, 252, 451, 455, 456, 468, 488, 497, 498, 499, 500,651. 15.41 43, 56, 115, 386, 451, 455, 456, 488, 497, 498, 500,651. 16.1 43, 57, 115, 455, 456, 480, 497, 502, 503, 505,651. 16.2 43, 57, 115, 313, 455, 456, 480, 497, 502, 503, 505, 506,651. 16.3 43, 57, 115, 455, 456, 497, 502, 503, 505,651. 16.4 43, 57, 115, 455, 456, 497, 502, 503, 506,651. 16.5 40, 43, 57, 94, 115, 194, 286, 455, 456, 497, 502, 503, 504, 506,651. 16.6 32, 43, 57, 80, 89, 92, 115, 455, 456, 497, 502, 503, 504, 505,651. 16.7 32, 43, 57, 80, 89, 92, 115, 455, 456, 497, 502, 503, 504, 505,651. 16.8 32, 43, 57, 80, 115, 455, 456, 497, 502, 503, 504,651. 16.9 32, 39, 43, 57, 80, 92, 115, 426, 455, 456, 497, 502, 503, 504, 505,612, 651. 16.10 23, 32, 39, 43, 57, 80, 92, 115, 351, 426, 455, 456, 497, 502, 503, 504, 505, 510,651. 16.11 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 497, 505, 507, 508, 513,589, 651. 16.12 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 497, 505, 507, 508, 513,651. 16.13 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 472, 497, 505, 507, 508, 509, 513, 517,651. 16.14 23, 39, 43, 57, 115, 415, 455, 456, 497, 503, 505, 507, 508, 509, 513,651. 16.15 23, 39, 43, 57, 115, 356, 455, 456, 497, 505, 507, 508, 513, 514,651. 16.16 23, 43, 48, 57, 115, 455, 456, 497, 505, 507, 508, 509, 513,651. 16.17 23, 43, 48, 57, 115, 362, 365, 455, 456, 497, 505, 507, 508, 509, 513,651. 16.18 43, 48, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 509, 510, 513,593, 651. 16.19 43, 48, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 513, 516,651. 16.20 41, 43, 48, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 513, 516,651. 16.21 43, 48, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 513, 516,651.

16.22 41, 43, 57, 115, 328, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,604, 651. 16.23 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 512, 513, 516,604, 651. 16.24 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 512, 513, 516,604, 651. 16.25 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,651. 16.26 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,651. 16.27 43, 57, 115, 452, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,651. 16.28 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,651. 16.29 43, 57, 115, 185, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513, 516,651. 16.30 43, 57, 115, 185, 194, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 512, 513, 516,651. 16.31 43, 57, 115, 194, 354, 455, 456, 468, 497, 507, 508, 509, 511, 513, 516,651. 16.32 43, 57, 115, 194, 455, 456, 497, 507, 508, 509, 511, 513, 513, 516, 517,651. 16.33 43, 57, 115, 194, 354, 455, 456, 497, 507, 508, 509, 511, 513, 516, 517,651. 16.34 43, 57, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 509, 511, 513, 516, 517,651. 16.35 24, 41, 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513,651. 16.36 24, 41, 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513,651. 16.37 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 512, 513,615, 651. 16.38 24, 41, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513,651. 16.39 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 511, 513,651. 16.40 24, 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 507, 508, 509, 513, 515,651. 17.1 43, 57, 115, 455, 456, 497, 517,651. 17.2 43, 57, 115, 455, 456, 464, 472, 497, 517, 523,651. 17.3 43, 57, 103, 115, 455, 456, 497, 517, 518, 523,651. 17.4 43, 57, 94, 115, 415, 455, 456, 497, 517, 519, 521, 522,651. 17.5 43, 57, 115, 455, 456, 472, 497, 517, 519, 521,570, 651. 17.6 41, 43, 57, 115, 455, 456, 497, 517, 519,651. 17.7 43, 57, 115, 194, 455, 456, 497, 517, 519,651.

17.8 41, 43, 57, 115, 328, 455, 456, 497, 517, 519,570, 651. 17.9 43, 57, 115, 455, 456, 497, 517, 519,651. 17.10 43, 57, 115, 455, 456, 472, 497, 521, 522, 546,651. 17.11 43, 57, 115, 455, 456, 497, 521, 523,651. 17.12 43, 57, 115, 455, 456, 497, 521, 522,651. 17.13 43, 57, 115, 329, 455, 456, 497, 521,570, 651. 17.14 43, 57, 115, 455, 456, 497, 521, 524, 546,651. 17.15 43, 57, 115, 455, 456, 497, 521, 524,651. 17.16 43, 57, 115, 295, 455, 456, 497, 524, 534, 535, 537,651. 17.17 43, 57, 115, 295, 415, 455, 456, 472, 497, 524, 525, 526, 534, 535, 537,651. 17.18 43, 57, 115, 295, 455, 456, 497, 524, 525, 526, 528, 533, 534, 537,651. 17.19 43, 57, 115, 295, 455, 456, 497 524, 525, 527, 534, 537,651. 17.20 43, 57, 115, 295, 455, 456, 497, 524, 527, 534, 537,651. 17.21 43, 57, 115, 295, 455, 456, 497, 524, 527, 534, 536, 537,651. 17.22 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 525, 527, 528, 534, 535, 536, 537,645, 651. 17.23 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 534, 536, 537,651. 17.24 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 529, 534, 536, 537,651. 17.25 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 529, 530, 534, 536, 537,651. 17.26 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 530, 531, 534, 536, 537,651. 17.27 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 531, 534, 536, 537,651. 17.28 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 531, 534, 536, 537,651. 17.29 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 532, 534, 536, 537,651. 17.30 43, 57, 60, 115, 442, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 532, 534, 536, 537,651. 17.31 43, 57, 60, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 532, 532, 534, 536, 537,649, 651. 17.32 43, 57, 115, 455, 456, 497, 524, 527, 528, 532, 533, 534, 537,649, 651. 17.33 43, 57, 115, 455, 456, 497, 524, 532, 533, 534, 537,651.

17.34 43, 57, 115, 455, 456, 497, 524, 533, 534, 537,651. 18.1 43, 57, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 542,651. 18.2 40, 43, 57, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 542,651, 669. 18.3 43, 57, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 542,651. 18.4 43, 57, 115, 249, 455, 456, 464, 497, 537, 538, 539, 542,651. 18.5 43, 57, 115, 177, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 539, 542,651. 18.6 43, 57, 115, 249, 455, 456, 472, 497, 537, 538, 540, 542,651, 668. 18.7 43, 54, 57, 115, 249, 415, 455, 456, 497, 537, 538, 540, 542,651. 18.8 43, 57, 115, 249, 354, 455, 456, 497, 509, 537, 538, 540, 542,651. 18.9 43, 57, 115, 249, 426, 455, 456, 497, 505, 537, 538, 540, 541, 542, 543,611, 612, 620, 651. 18.10 43, 57, 115, 249, 450, 455, 456, 497, 537, 538, 540, 541, 542, 543, 544,611, 612, 620, 651. 18.11 43, 57, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 544, 545,651. 18.12 24, 40, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.13 24, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.14 24, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.15 24, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.16 24, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.17 24, 43, 48, 57, 60, 115, 249, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 556, 651. 18.18 43, 57, 77, 115, 249, 455, 455, 456, 497, 537, 538, 541, 542, 544, 545, 546, 547,597, 599, 651. 18.19 43, 57, 77, 115, 249, 455, 455, 456, 464, 497, 544, 545, 546, 547, 548, 556, 651. 18.20 43, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 497, 544, 545, 546, 547,651. 18.21 43, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 497, 544, 545, 547, 547,560, 651. 18.22 43, 54, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 497, 544, 545, 547, 547, 550,651.

18.23 43, 54, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 550,651. 18.24 43, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 550, 551, 552, 554, 557,550, 551, 552, 554, 557, 651. 18.25 43, 57, 77, 115, 249, 362, 365, 455, 456,550, 551, 552, 554, 557, 565,651. 18.26 43, 57, 77, 115, 249, 455, 456, 539, 547, 555,550, 551, 553, 554, 565,651. 18.27 43, 57, 77, 115, 194, 249, 455, 456, ,550, 551, 553, 554, 555, 651. 18.28 43, 57, 115, 249, 455, 456, 550, 551, 553, 554, 555, 651. 19.1 43, 57, 77, 80, 115, 455, 456, 550, 554, 556, 557, 602, 651. 19.2 43, 57, 77, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 560, 602, 651. 19.3 43, 57, 77, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 560, 561, 602, 651. 19.4 43, 57, 77, 78, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 560, 561, 602, 651. 19.5 43, 57, 76, 77, 79, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 560, 561, 602, 651. 19.6 43, 57, 73, 76, 77, 79, 80, 115, 162, 342, 455, 456, 462, 550, 556, 557, 560, 561, 602, 651. 19.7 43, 57, 77, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 560, 561, 602, 651. 19.8 43, 57, 77, 79, 80, 115, 295, 455, 456, 464, 550, 552, 556, 557, 558, 560, 562, 602, 651. 19.9 43, 57, 77, 79, 80, 115, 295, 362, 455, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 456, 550, 552, 556, 557, 558, 560, 562, 565, 602, 607, 651. 19.10 42, 43, 57, 77, 78, 79, 80, 115, 295, 455, 456, 550, 556, 557, 558, 560, 562, 563, 602, 651. 19.11 43, 57, 79, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 562, 563, 602, 651. 19.12 43, 57, 79, 80, 115, 256, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 562, 563, 602, 651. 19.13 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.14 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.15 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.16 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456,550, 556, 557, 559, 560, 602, 651.

19.17 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.18 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.19 43, 57, 80, 115, 332, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 602, 651. 19.20 40, 43, 57, 69, 80, 86, 115, 286, 455, 456, 504, 550, 556, 557, 559, 560, 588, 602, 651. 19.21 43, 57, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 571, 594, 602, 620, 651. 19.22 43, 57, 80, 115, 455, 456, 550, 556, 557, 559, 560, 594, 602, 651. 19.23 43, 48, 57, 60, 80, 115, 362, 455, 456, 550, 552, 557, 564, 565, 568, 569, 570, 594, 602, 607, 651. 19.24 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557,564, 565, 568, 594, 602, 651. 19.25 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 565, 568, 594, 602, 651. 19.26 43, 48, 57, 60, 80, 115, 329, 455, 456, 550, 564, 565, 566, 568, 569, 570, 594, 602, 651. 19.27 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 565, 566, 568, 594, 602, 651. 19.28 43, 57, 60, 80, 115, 164, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 594, 602, 651. 19.29 43, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 569, 571, 594, 602, 651. 19.30 43, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 569, 594, 602, 651. 19.31 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 569, 594, 602, 651. 19.32 43, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 594, 602, 651. 19.33 43, 57, 60, 80, 115, 329, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 594, 602, 651. 19.34 43, 57, 60, 80, 115, 329, 455, 456, 550, 564, 566, 568, 594, 602, 651. 19.35 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 329, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 19.36 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 19.37 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 19.38 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651.

19.39 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 19.40 24, 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 488, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 19.41 43, 48, 57, 60, 80, 115, 455, 456, 550, 557, 564, 566, 567, 568, 594, 602, 651. 20.1 43, 57, 115, 455, 456, 550, 570, 571, 572, 594, 651. 20.2 43, 57, 115, 455, 456, 550, 570, 571, 572, 573, 594, 651. 20.3 43, 57, 115, 455, 456, 550, 570, 571, 571, 572, 577, 594, 602, 651. 20.4 33, 43, 57, 115, 455, 456, 504, 520, 550, 570, 571, 572, 577, 594, 651. 20.5 23, 33, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 570, 571, 572, 594, 651. 20.6 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 508, 546, 550, 570, 571, 572, 592, 594, 651. 20.7 23, 39, 43, 57, 115, 201, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.8 23, 39, 43, 57, 115, 131, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.9 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.10 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.11 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.12 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 573, 574, 577, 594, 651. 20.13 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 576, 577, 578, 594, 651. 20.14 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 576, 577, 578, 594, 651. 20.15 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505, 550, 572, 576, 577, 578, 594, 651. 20.16 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 550, 571, 572, 576, 577, 578, 579, 580, 588, 594, 596, 651. 20.17 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456,550, 572, 577, 580, 582, 585, 594, 651. 20.18 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 585, 594, 651. 20.19 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 585, 594, 651. 20.20 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 585, 586, 594, 651. 20.21 23, 39, 43, 57, 60, 115, 227, 455, 456,550, 570, 572, 580, 582, 585, 594, 651.

20.22 23, 39, 43, 57, 60, 90, 91, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 588, 594, 651. 20.23 23, 39, 43, 57, 60, 90, 91, 92, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 589, 594, 651. 20.24 23, 39, 43, 57, 60, 91, 92, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 594, 651. 20.25 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 581, 582, 583, 585, 594, 651. 20.26 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 594, 651. 20.27 20, 23, 39, 43, 57, 60, 103, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 586, 594, 651. 20.28 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 594, 651. 20.29 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 594, 651. 20.30 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 583, 585, 594, 651. 20.31 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 573, 580, 582, 583, 584, 585, 586, 594, 651. 20.32 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 581, 582, 585, 590, 594, 651. 20.33 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456,550, 572, 580, 582, 585, 594, 651. 20.34 23, 39, 43, 57, 60, 115, 455, 456, 539,550, 572, 580, 582, 585, 594, 651. 20.35 23, 39, 43, 57, 60, 115, 250, 411, 455, 456,550, 572, 580, 582, 585, 594, 651. 20.36 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456,550, 572, 580, 585, 590, 594, 651. 20.37 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456,550, 572, 580, 585, 594, 651. 20.38 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456,550, 572, 580, 585, 594, 651. 21.1 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 594, 595, 616. 21.2 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 594, 595, 616. 21.3 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 594, 595, 616. 21.4 23, 39, 43, 57, 92, 115, 455, 456, 504,550, 572, 588, 589, 590, 592, 594, 595, 616. 505, 21.5 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 581, 588, 589, 590, 592, 594, 595, 616.

21.6 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 594, 595, 616. 21.7 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 594, 595, 616. 21.8 23, 39, 43, 57, 58, 115, 278, 329, 330, 350, 355, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 592, 594, 595, 616. 21.9 23, 39, 43, 57, 115, 278, 329, 355, 430, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 594, 595, 616. 21.10 23, 39, 43, 57, 115, 430, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 594, 595, 616. 21.11 23, 27, 39, 43, 57, 92, 115, 430, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 594, 595, 616. 21.12 23, 39, 43, 57, 115, 430, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 591, 592, 594, 595, 616. 21.13 23, 39, 43, 57, 115, 430, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 591, 592, 594, 595, 616. 21.14 23, 39, 43, 57, 115, 430, 455, 456, 505,550, 572, 573, 588, 589, 590, 591, 594, 595, 616. 21.15 23, 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 591, 594, 595, 616. 21.16 23, 39, 43, 57, 58, 115, 455, 456, 505,550, 572, 588, 589, 590, 591, 592, 594, 595, 616. 21.17 23, 39, 42, 43, 57, 58, 115, 455, 456, 505, 547,594, 595, 596, 599, 616. 21.18 23, 39, 42, 43, 57, 115, 135, 455, 456, 505, 546,594, 595, 596, 599, 616. 21.19 42, 43, 57, 115, 455, 456, 546,594, 595, 596, 599, 600, 616. 21.20 43, 57, 94, 115, 455, 456, 546,594, 595, 596, 599, 600, 616. 21.21 43, 57, 115, 169, 455, 456, 546,594, 595, 596, 597, 599, 601, 616. 21.22 43, 57, 115, 329, 455, 456, 546,594, 595, 597, 599, 601, 616. 21.23 43, 57, 115, 455, 456, 546,594, 595, 597, 599, 601, 616. 21.24 43, 57, 115, 455, 456, 546,594, 595, 597, 599, 601, 616.

21.25 43, 57, 115, 455, 456, 546,594, 595, 597, 598, 599, 601, 616. 21.26 43, 57, 115, 455, 456, 546,594, 595, 598, 599, 602, 616. 21.27 43, 57, 115, 329, 455, 456,570, 594, 595, 602, 604, 616. 21.28 43, 48, 57, 115, 329, 455, 456,594, 595, 602, 604, 616. 21.29 43, 57, 115, 329, 455, 456,571, 594, 595, 602, 604, 616, 629. 21.30 43, 57, 115, 329, 455, 456,570, 594, 595, 602, 603, 604, 616. 21.31 43, 57, 115, 329, 455, 456,570, 594, 595, 602, 603, 604, 616. 21.32 43, 57, 115, 329, 455, 456,570, 594, 595, 602, 603, 604, 616, 628. 21.33 43, 57, 115, 329, 455, 456,594, 595, 602, 603, 604, 615, 616, 628. 21.34 43, 57, 115, 329, 455, 456,594, 595, 602, 603, 604, 616. 21.35 43, 57, 115, 329, 455, 456,594, 595, 602, 603, 604, 616. 21.36 43, 57, 115, 329, 455, 456,594, 595, 602, 603, 604, 616. 21.37 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 606, 616, 617. 21.38 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 603, 606, 616, 617, 629. 21.39 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 606, 616, 617. 21.40 43, 57, 115, 168, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616, 617. 22.1 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616, 617, 618. 22.2 43, 57, 60, 115, 168, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616, 617, 618. 22.3 43, 57, 60, 115, 260, 361, 369, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616, 618. 22.4 43, 57, 60, 115, 318, 361, 362, 365, 393, 455, 456, 552,552, 565, 594, 595, 606, 607, 616, 618. 22.5 43, 57, 60, 115, 361, 364, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616, 618. 22.6 43, 57, 60, 115, 361, 366, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616. 22.7 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 608, 612, 616. 22.8 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 609, 616, 629. 22.9 43, 57, 60, 115, 361, 367, 393, 455, 456, 594, 595, 606, 607, 616.

22.10 43, 57, 60, 115, 361, 366, 367, 393, 455, 456, 594, 595, 606, 607, 616. 22.11 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 607, 616. 22.12 43, 57, 60, 115, 166, 313, 317, 361, 374, 376, 383, 393, 455, 456,594, 595, 606, 608, 616. 22.13 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 606, 608, 616. 22.14 43, 57, 60, 115, 361, 367, 393, 455, 456,594, 595, 606, 608, 609, 611, 616. 22.15 43, 57, 60, 115, 116, 361, 367, 393, 416, 417, 455, 456,594, 595, 606, 608, 610,616. 22.16 43, 57, 60, 115, 353, 361, 366, 393, 455, 456,594, 595, 606, 608, 616. 22.17 43, 57, 60, 80, 115, 367, 383, 385, 393, 455, 456, 505,594, 595, 611, 612, 616, 620. 22.18 43, 57, 60, 80, 115, 367, 383, 385, 393, 455, 456,594, 595, 611, 612, 616, 620. 22.19 43, 57, 60, 80, 115, 367, 383, 385, 393, 455, 456,594, 595, 607, 611, 613, 614, 616, 620. 22.20 43, 57, 60, 80, 115, 116, 317, 367, 383, 385, 393, 416, 417, 455, 456,594, 595, 602, 611, 613, 614, 616. 22.21 42, 43, 47, 57, 60, 80, 115, 367, 383, 385, 393, 455, 456, 472,594, 595, 611, 613, 614, 616, 620. 22.22 43, 47, 57, 115, 455, 456,594, 595, 603, 614, 616. 22.23 43, 47, 57, 115, 455, 456,594, 595, 614, 616, 628. 22.24 43, 47, 57, 115, 455, 456,594, 595, 614, 616, 628. 22.25 43, 46, 47, 57, 115, 455, 456,594, 595, 614, 616, 617. 22.26 43, 46, 57, 115, 455, 456, 512,594, 595, 614, 616, 617. 22.27 43, 46, 57, 115, 455, 456, 512,594, 595, 614, 616, 617. 22.28 43, 46, 57, 115, 361, 455, 456,594, 595, 614, 615, 616, 617. 22.29 43, 46, 57, 115, 455, 456,594, 595, 614, 615, 616, 617. 22.30 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 618. 23.1 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 618, 633, 636.

23.2 43, 57, 60, 115, 376, 455, 456,594, 595, 616, 617, 618, 629. 23.3 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 619, 629. 23.4 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 619, 629. 23.5 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 607, 616, 617, 618, 619, 629. 23.6 40, 43, 57, 60, 115, 182, 361, 455, 456,594, 595, 616, 617, 618, 619. 23.7 43, 57, 115, 455, 456, 488,594, 595, 616, 617, 619, 620. 23.8 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 619, 620. 23.9 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 617, 619, 620. 23.10 43, 57, 115, 455, 456, 488,594, 595, 616, 617, 619, 620, 628. 23.11 43, 57, 115, 455, 456, 540, 543,594, 595, 611, 612, 616, 617, 620, 621, 640, 651. 23.12 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.13 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.14 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624, 629. 23.15 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.16 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.17 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.18 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.19 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.20 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.21 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.22 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 624. 23.23 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 626, 627, 628. 23.24 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 626, 627, 628. 23.25 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 623, 626, 627. 23.26 43, 53, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 614, 616, 626, 627. 23.27 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627.

23.28 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.29 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.30 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.31 43, 57, 115, 194, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.32 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.33 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.34 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 23.35 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 616, 626, 627. 24.1 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.2 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.3 43, 53, 57, 60, 115, 194, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.4 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.5 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 488, 489, 537,594, 595, 626, 628, 629, 638. 24.6 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629, 638. 24.7 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.8 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.9 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 629. 24.10 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630. 24.11 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630. 24.12 43, 57, 60, 115, 258, 329, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630. 24.13 43, 57, 60, 115, 258, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630. 24.14 43, 57, 60, 115, 258, 362, 455, 456, 489, 537, 552, 565, 594, 595, 607, 626, 628, 629, 630, 636. 24.15 43, 57, 60, 115, 182, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 636. 24.16 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631, 632, 633. 24.17 43, 57, 60, 115, 216, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631.

24.18 43, 57, 60, 115, 329, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631. 24.19 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631. 24.20 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631. 24.21 43, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 630, 631. 24.22 24, 43, 48, 57, 60, 115, 362, 455, 456, 537, 552, 565, 594, 595, 607, 626, 628, 630, 631. 24.23 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 631. 24.24 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 644. 24.25 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 537,594, 595, 626, 628, 632. 24.26 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 628. 24.27 24, 40, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 604, 626, 628, 632, 637, 639. 25.1 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 640. 25.2 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.3 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 639, 640. 25.4 43, 48, 57, 60, 115, 194, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.5 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.6 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.7 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.8 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 638, 640, 642. 25.9 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 639, 640. 25.10 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 639, 640, 642. 25.11 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 637, 638, 639, 640, 642. 25.12 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456, 459,594, 595, 626, 637, 638, 640. 25.13 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.14 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.15 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644.

25.16 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.17 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.18 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 638, 643, 644, 645. 25.19 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 638, 643, 644, 645. 25.20 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.21 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.22 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644. 25.23 43, 48, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 645. 25.24 43, 48, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 645. 25.25 43, 48, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 645. 25.26 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 645. 25.27 43, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 645. 26.1 43, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.2 43, 57, 60, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.3 43, 57, 60, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.4 43, 57, 60, 115, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646. 26.5 43, 57, 60, 115, 258, 393, 455, 456, 489,594, 595, 607, 608, 619, 626, 643, 644, 646. 26.6 43, 57, 60, 115, 182, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646. 26.7 43, 57, 60, 115, 182, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646. 26.8 43, 57, 60, 115, 393, 403, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 645, 646. 26.9 43, 57, 60, 115, 265, 361, 385, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646. 26.10 43, 57, 60, 115, 265, 361, 364, 385, 393, 400, 455, 456,594, 595, 607, 608, 626, 643, 644, 646. 26.11 43, 57, 60, 115, 265, 361, 364, 385, 393, 455, 456,594, 595, 607, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.12 43, 57, 60, 115, 361, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647.

26.13 43, 57, 60, 115, 361, 366, 367, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.14 43, 57, 60, 115, 168, 361, 366, 367, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.15 43, 57, 60, 115, 361, 367, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.16 43, 57, 60, 115, 116, 319, 361, 367, 393, 416, 417, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.17 43, 57, 60, 115, 319, 361, 367, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647. 26.18 43, 57, 60, 63, 64, 85, 115, 319, 361, 367, 393, 455, 456,594, 595, 608, 626, 643, 644, 646, 647, 649. 26.19 43, 57, 60, 115, 299, 393, 426, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 647. 26.20 43, 57, 60, 115, 393, 442, 455, 456, 472,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.21 43, 57, 60, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.22 43, 57, 60, 104, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.23 43, 57, 60, 103, 104, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646. 26.24 43, 57, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.25 43, 53, 57, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.26 43, 57, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.27 43, 57, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 646, 649. 26.28 43, 57, 115, 393, 444, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.29 43, 57, 115, 393, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.30 43, 48, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.31 24, 43, 48, 57, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 26.32 24, 43, 48, 57, 60, 115, 455, 456,594, 595, 626, 643, 644, 646, 649. 27.1 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 595, 626, 651, 652, 653, 654. 27.2 39, 43, 57, 115, 455, 456, 505,571, 594, 595, 626, 651, 652, 653, 654. 27.3 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 595, 626, 651, 652, 653, 654.

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28.12 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 626, 653, 654, 664, 666, 669. 28.13 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 626, 653, 654, 664, 666, 669. 28.14 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 626, 653, 654, 664, 665, 666, 669. 28.15 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 626, 653, 654, 664, 665, 666, 669. 28.16 23, 43, 57, 115, 455, 456, 505,594, 604, 626, 653, 654, 664, 665, 666, 669. 28.17 43, 57, 115, 455, 456,594, 604, 626, 653, 668, 669, 670. 28.18 43, 57, 115, 455, 456,594, 604, 626, 653, 668, 669. 28.19 43, 57, 115, 455, 456,594, 604, 626, 653, 668, 669, 670. 28.20 43, 57, 115, 182, 455, 456,594, 604, 626, 653, 668, 669. 28.21 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670. 28.22 43, 57, 115, 258, 455, 456, 489,594, 626, 653, 668, 669, 670. 28.23 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670, 672. 28.24 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670. 28.25 27, 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670, 671. 28.26 25, 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670, 671. 28.27 25, 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 670, 671. 28.28 43, 57, 115, 455, 456, 472,594, 626, 653, 668, 669, 670, 671. 28.29 43, 57, 115, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669. 28.30 24, 43, 48, 57, 194, 455, 456,594, 626, 653, 668, 669, 672. 28.31 28, 43, 48, 57, 59, 61, 69, 105, 115, 286, 455, 456, 504,594, 626, 653, 668, 669, 672.

Novo comentário bíblico vida A. Deiros, Pablo 9786555842005 576 páginas

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que descobriremos o significado e o sentido da vida quando procurarmos dentro de nós mesmos. No entanto, em Uma vida com propósitos, Rick Warren mostra que não é aí que devemos iniciar a busca. Nosso foco deve começar em Deus, o Criador. Você foi criado por Deus e para Deus e, até que compreenda plenamente essa verdade, a vida jamais fará sentido. Compre agora e leia

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