Notas Sobre o Racismo à Brasileira - Roberto Da Matta

November 29, 2018 | Author: georgemlima | Category: Racism, Ethnicity, Race & Gender, Black People, Sociology, Mulatto
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 Roberto Por  Roberto

Da Matta  NOTAS SOBRE O RACISMO À BRASILEIRA BRASILEIRA

Esta minha intervenção tem dois aspectos ou dimensões. De um lado, quero falar de fatos sociais concretos - alguns,aliás ,bem conhecidos do nosso racismo-, como sua manifestação implícita, disfarçada e de difícil discussão, como se, entre ns, brasileiros, falar de racismo fosse um tabu, de acordo com aquela tend!ncia que "lorestan "ernandes chamou, com propriedade,#o preconceito de ter preconceito#. De outro, quero me concentrar nas interrelações dos fatos sociais com os ideais políticos, alvo que - se bem entendo - move este encontro e tem suas dificuldade específicas, sobretudo quando se trata de um tema tão dramático quanto pungente, quando a $usta vontade de erradicar o preconceito certamente embaça a discussão de suas características histricas e de sua organi%ação sociolgica ou cultural. &ara tanto,quero começar relembrando um episdio de di% respeito ao assunto . Em '()*, quando estava em +ambridge , assachusetts, reali%ando , na niversidade de arvard, meu doutorado em antropologia social, fiquei sabendo da visita de um grupo de estudantes brasileiros. Eram lideres estudantis, convidados pelo Departamento de Estado do /overno dos Estados nidos, que reali%avam um programa de visitas a centros culturais norteamericanos e , em arvard, participavam de seminários e debates. +arente de noticias do país e de contato com compatriotas - aquela a quela 0poca, 0 bom lembrar, não havia e-mail,nem fa1,nem sede1, os estudantes não podiam via$ar tanto quanto ho$e - , fui ao local da reunião. 2á, em um vasto salão harvardiano , dois negros americanos, se não me engano, ambos políticos locais e ligados ao chamado ovimento 3egro que estava surgindo, disseram dissertavam sobre suas e1peri!ncias aos $ovens lideres estudantis brasileiros. 2embro-me bem de que o ob$etivo dos políticos americanos era compartilhar, a partir da grande e1peri!ncia liberal americana' ,as conquistas dos negros em relação ao establishment branco, mudando legislações e provocando, por meio de um ativismo pacifico, democrático e consistente, a integração política e $udiciária dos Estados nidos como nação e, no limite da esperança , como sociedade.  4o t0rmino do discurso dos americanos, os estudantes brasileiros iniciaram uma s0rie de perguntas-comentários provocadoras e um tanto impertinentes. Di%iam, por e1emplo, que as mudanças políticas mencionadas não eram efetivamente transformações de estrutura, que continuava fundada no mercado. 4legavam que a modificação apare nte do quadro dos direitos das minorias não mudava o cerne do problema 5 a estrutura do capitalismo fundada na e1ploração do trabalho, continuava em vigor. 6nsinuavam, como era comum naquela d0cada, que, para mudar as relações raciais, seria necessário primeiro modificar todo o #sistema#por meio de uma revolução . Depois de cerca de trinta minutos de impasse ideolgico, um dos palestrantes negros resolveu endurecer e disse mais ou menos o seguinte, olhando durante sua plat0ia de brasileiros5 Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o que podemos para mudar as relações raciais por aqui. Vocês que se di!em uma democracia racial s"o muito piores em termos pr#ticos. $ois ve%am s&' no meio de mais ou menos oitenta estudantes brasileiros eu ve%o apenas sete ou oito ne(ros. ) (rande maioria é branca. Onde  4ps a reunião, fui me encontrar com o grupo e logo est# a tal *democracia racial* de vocês +. 4ps

descobri a perturbação dos brasileiros diante do seguinte problema5 quem era o negro que os americanos haviam descoberto entre eles7 &ois, como me disse um dos estudantes, com

e1ceção de uma ou duas pessoas, não havia preto #entre eles#... Essa historia tem o m0rito de revelar o coração do problema, pois situa com dramaticidade um fato social básico5 como as sociedades classificam suas eventuais variedades 0tnicas . &ois, se falamos de relações raciais de uma perspectiva sociolgica, 0 preciso distinguir de saída a miscigenação como fato empírico, isto 0, como o resultado biolgico do encontro se1ual de brancos, negros e índios - para ficar na trilogia clássica da fábula racial brasileira -, do modo pelo qual cada sociedade trabalha esse resultado, reconhecido-o ou não como em fato social concreto. +omo não há sistema valor, moralidade, mitologia ou sistema de classificação que se$a #natural# ou mais pr1imo de uma nature%a humana, pois todos são arbitrários, e1iste uma variedade intrigante nos modos de lidar com os mestiços.8 que chama a atenção quando se compara a e1ist!ncia classificatria americana com a brasileira, 0 o fato de que, embora e1istam #mulatos# ou #mestiços#, tanto nos Estados nidos quanto no 9rasil, na sociedade brasileira esses mestiços tem um reconhecimento cultural e ideolgico e1plicito, quanto que, no caso americano, eles se submergem como #brancos# ou como #negros #. 8 resultado 0 que o sistema americano persegue a distinção e a compartimentali%ação dos tipos 0tnicos em grupos autocontidos,contrastantes, aut:nomos e socialmente coerentes, isto 0, sem mistura. 2á o sistema tem repulsa pela ambig;idade, pelo mais ou menos e pelo meio-termo.  4ssim, ou se 0 #branco# ou se 0 #negro#, #hisp enquanto que , no 9rasil, o sistema inclui hierarqui%a de modo complementar, de acordo com o princípio do desigual ,mais $usto#. +om isso, o sistema brasileiro estabelece que, entre brancos e negros, há uma gradação comple1a e mais5 que todas as etnias de fato se complementam para a formação do #povo brasileiro#, pois o que falta em uma, e1iste de sobra na outra, conforme tentei revelar alhures, em um ensaio no qual tento elucidar a nossa #fabula de tr!s raças#. ?  @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@ 

, -este conteto vale acentuar que considero importante a distinç"o entre naç"o / ou 0stado/-acional / e sociedade como duas distintas e até mesmo

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contradit&rias de coletividade. De modo breve a naç"o é uma coletividade fundada na idéia de soberania de territorialidade e de leis epl1citas. 2ua unidade especial b#sica é o indiv1duo / o cidad"o / que nela é dotado de autonomia liberdade i(ualdade pol1tica e %ur1dica e responsabilidade. 3# a sociedade dispensa o territ&rio tem leis impl1citas / (eralmente conceituadas como mandamentos tabus pecados ou normas normais indiscut1veis e dadas pelos deuses e her&is civili!adores / e sua unidade fundamental é a fam1lia o cl" a aldeia ou um elo social. 4ma sociedade pode estar em (uerra com sua naç"o como parece fa!er  prova ho%e o caso de 4(anda e 5urundi. -ormalmente naç"o e sociedade est"o em conflito pois os ideais nacionais nem sempre s"o reali!ados pela sociedade nas suas pr#ticas. -esse sentido o caso do 5rasil é interessante porque fomos uma naç"o que adotou princ1pios i(ualit#rios mas t1nhamos uma sociedade hierarqui!ada constitu1da que era por nobres cidad"o livres e escravos. $ara maiores considerações sobre esse ponto ve%a /se Da Matta Conto de mentirosos' 2ete ensaios de antropolo(ia brasileira Rio de 3aneiro Rocco ,667.

8.Cf . Roberto Da Matta Relativi!ando' 4ma introduç"o 9 antropolo(ia social Rio de 3aneiroRocco.

m dos mais lAcidos estudiosos de sistemas raciais, o socilogo 8racB 3ogueira, fala de um contraste entre um #preconceito de marca#, típico do 9rasil, e de um #preconceito de origem#, vigente nos Estados nidos. 8utros, como o historiador social norte-americano +arl Degler , elaborara a distinção e1plicitando historicamente o #mulato# como uma válvula de escape> ou,

em termos de minha interpretação, afirmando que, no caso brasileiro, o mulato era um lugar social reconhecido e marcado e não algo va%io de sentido como acontece nos Estados nidos. 8 problema básico por0m - problema sem o qual a questão racial não pode ser entendida --,  $a% no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades elaboram, constroem e lidam com as suas diferenças. Desse modo não se nega a presença de #mestiços#, nem nos Estados nidos, nem na Cfrica do ul. ampouco se nega a presença de iniq;idade no caso brasileiro, que foi e tem sido igualmente in$usto e violento para com os #diferentes #, sobre tudo os negros. as se salienta que a mestiçagem 0 percebida de modo diverso nessas sociedades. E mais5 que compreender o modo pelo qual cada sistema ordena suas percepções sociais 0 um fato social fundamental para construção de medidas orientadas para a implementação de mais oportunidade e mais igualdade para todas as minorias. 3o caso do 9rasil, a id0ia de hierarquia tem duas características5 '. Ela atua por meio de uma lgica complementar que, embora limite a ascensão dos #diferentes#, não os dispensa como tal. 8u se$a 5 a complementaridade se e1prime em uma ideologia segundo a qual negros, brancos e índios formam um tri que os negros formavam uma quase maioria da população, gerando uma inevitável consci!ncia de que todos se ligavam pela cor da pele e de que saíamos gradualmente do regime de trabalho escravo, transformando o escravo em cliente e em subcidadão, o racismo I brasileira tende a se manifestar de modo implícito, dando ou tirando negritude ou indianidade ou estrangeirice de qual quer pessoa. Em uma palavra, tara-se, como $á indicativa 8racB 3ogueira, de um sistema de preconceito no qual o conte1to 0 determinante. 4ssim, se fulano dei1a d e atuar de acordo com esse cdigo implícito, ele poderá ser #enegrecido# ou #acaboclado#. Desse modo, um pessoa pode ser alvo de muitas classificações raciais, que gera uma notável insegurança classificatria, insegurança que, ao lado da import
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