NIETZSCHE - ROBERTO MACHADO- Nietzsche e a verdade.pdf

November 24, 2017 | Author: Ryusha Violeta | Category: Friedrich Nietzsche, Apollo, Metaphysics, Science, Aesthetics
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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS VOL.

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Coorde1zador Roberto Machado

Roberto Machado

Nietzsche e a verdade

© Roberto Machado

CIP-Brasil. Catalogação-Na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Machado, Roberto Cabral de Melo, 1942Nietzsche e a verdade/ Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ISBN 85-7038-007-0

M133n

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte de ciência. 3. Metafísica. 4. Verdade. 5. Ética. I. Título.

99-0152

CDD-193 CDU-1(43)

EDIÇÓES GRAAL LTDA. R. Hermenegildo de Barros, 31-A- Glória 20241-040- Rio de Janeiro-RJ Te!.: (021) 252-8582

EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212-010- São Paulo-SP Tel.: (011) 223-6522 Fax: (011) 223-6290

1999 Impresso no Brasil I Printed in Brazil

Sumário

INTRODUÇÃO . . .. . . .... . . . . . . . .............. . . .

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I ARTE E CIÊNCIA 1. A arte trágica e a apologia da aparência ... . . . . . . . ..

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2. Metafísica de artista e metafísica racional. . .. . . . . .. . .. 29 3. Arte e "instinto de conhecimento" . .. . . . . . ... .. . .. .

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CIÊNCIA E MORAL 1.Conhecimento e tipos de vida .. . . . . . . . .. . . ..

.

. . . . . 51

2. Genealogia da moral e vontade de potência . . ...... . 3. A "vontade de verdade" .... ...

.

.

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. . .. . . .. .. . ... . 75 .

III V ERDADE E VALOR 1.A transvaloração de todos os valores. ... ... . .. .. .. . 85 2. O conhecimento e a perspectiva da potência .... . .... 91 3.As estratégias da crítica da verdade . .... . . . ....... . 5

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INTRODUÇÃO

A

reflexão sobre a oencia. isto é, uma investigação sobre as questàes afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da razão, da consciência, do conceito, da verdade, encontra-se no âmago da filosofia de Nietzsche. Tema constante de seus estudos, dos primeiros aos últi­ mos textos, a presença desta problemática não indica porém a elaboração de um conceito de ciência. Situando-se em uma perspectiva tão global que, na maioria das vezes, não esta­ belece uma diferença essencial entre a racionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica moderna, o que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento ra­ cional tal como existe desde Sócrates e Platão. Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão epistemológica, se ele formula uma recusa de uma teoria do conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser resolvido no âmbito da própria ciência. Em outras palavras, não tem sentido criticar a ciência em nome ou a partir da ciência visando a seu aperfeiçoamento, ao estabelecimento de uma verdade cada vez mais científica. A ciência. considerada pela primeira vez como problemática, suspeita, questionável, foi o problema novo, "terrível" e "apavorante" tematizado por Nietzsche. Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. Não no sentido de procurar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as ilusàes, de superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto cen­ tral do ambicioso projeto de "transvaloração de todos os valores", a investigação sobre a verdade é uma crítica da própria idéia de verdade considerada como um "valor superior", como ideal; uma crítica, portanto, ao próprio projeto epistemológico. 7

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Negando à ciência a possibilidade de ela mesma elucidar sua questão, negando a uma crítica interna do conhecimento a possibilidade de se constituir como uma verdadeira crítica, o essencial da démarche consiste em articular a ciência com uma exterioridade capaz de revelar as reais dimensões e os ob­ jetivos do projeto científico; consiste em explicitar os funda­ mentos morais da ciência, apontando, ao mesmo tempo, a arte como um modelo alternativo para a racionalidade. Daí o pri­ vilégio da arte e da moral como instâncias que possibilitam o discurso nietzschiano sobre a ciência, indicando-lhe suas duas direções principais. A oposição entre arte e conhecimento racional percorre toda a obra de Nietzsche, que valoriza a arte trágica ao com­ bater a pretensão, que caracteriza a ciência, de instituir uma dicotomia total de valores entre a verdade e o erro . Essa anti­ nomia é fundamental: o "espírito científico" - que nasce na Grécia clássica com Sócrates e Platão e dá início a uma idade da razão que se estende até o mundo moderno, que Nietzsche chega a chamar de "civilização socrática" - tem como con­ dição a repressão da arte trágica da Grécia arcaica. Aí se en­ contra o modelo que lhe permite pôr em questão, ao assinalar o seu nascimento, o valor da racionalidade, ressaltando a posi­ tividade da arte como experiência trágica da vida. Colocar-se na escola dos gregos é aprender a lição de uma civilização trágica para quem a experiência artística é superior ao conhe­ cimento racional, para quem a arte tem mais valor do que a verdade. Se Sócrates e Platão significam o início de um grande processo de decadência que chega até nossos dias é porque os instintos estéticos foram desclassificados pela razão, a sabe­ doria instintiva reprimida pelo saber racional. Se a tese de um antagonismo entre arte e ciência é carac­ terística de toda a obra de Nietzsche, ela não mereceu, no entanto, a mesma atenção em termos de análise em todas as fases de sua reflexão. Cronologicamente a questão da ciência e da verdade, que se constitui como o ponto central de sua reflexão, aquilo para o qual tudo converge, é marcada por um

deslocamento de uma análise da experiência artística - con8

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siderada como única antagonista da ciência - para uma aná­ lise da moral, considerada como aquilo que dá sentido, que dá valor ao conhecimento. Assim, enquanto a oposição entre arte e racionalidade é tematizada de modo mais explícito nos escri­ tos que compõem o primeiro período de sua obra, de 1869 a 1876, a crítica da moral se impõe como a questão mais cons­ tante a partir de Humano, demasiado humano. Deslocamento que não é total na medida em que a preocupação com a moral já aparece nos primeiros escritos, embora seja mais assinalada do que desenvolvida, como se só progressivamente fosse sen­ do descoberta sua importância como fundamento da racionali­ dade; por outro lado, a reflexão sobre a arte também não desaparece dos últimos escritos, depois que foi descoberto o fi�ão da moraL Mesmo que importantes precisões sobre a no­ ção de trágico sejam introduzidas, a questão da arte não me­ rece mais a atenção dos primeiros textos. Isto porque a posi­ ção de Nietzsche já estava firmada desde o primeiro momento: a arte é mais importante do que a ciência . A segunda direção da reflexão nietzschiana é o proJl!ndo parentesco entre a ciência e a moraL Sua idéia é clara: se há Ôposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e moraL Nietzsche suspeita justamente da independência da ciên­ cia com relação à moral, assim como da pretensa oposição entre as duas. A ciência não está isenta de juízos de valor; mais ainda: é a moral que dá valor à ciência. Uma genealogia da verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode ser feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não implica uma teoria do conhecimento nem mesmo uma moraL A perspectiva que estabelece uma relação intrínseca entre ciência e moral é propriamente uma genealogia da vontade de potência: uma análise histórico-filosófica dos valores em que a moral, em vez de ser ponto de vista crítico para avaliar o conhecimento, é ela mesma avaliada de um ponto de vista "extramoral", capaz de atingir as bases morais do projeto epistemológico. Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a arte e de sua continuidade com a moral, o que faz Nietzsche é avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por 9

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meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogê­ neos - um considerado positivo e o outro negativo - que exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos ins­ tintos fundamentais, à vontade apreciativa de potência. A mo­ ral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos secun­ dários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência. Malgrado as diferenças conceituais, as transformações me­ todológicas e as variações de perspectiva, a idéia de avaliar a verdade a partir da dimensão das forças é um importante in­ variante da filosofia de Nietzsche. Neste sentido, a crítica do niilismo e da decadência e a proposta de uma transvaloração de todos os valores implicam uma reflexão sobre a vida como criação de valor. Este livro se compõe de três partes. A primeira parte trata da relação entre arte e ciência. Pre­ tendo, primeiramente, expor a noção nietzschiana de "metafí­ sica de artista" estudando os dois "instintos estéticos da na­ tureza" - o apolíneo e o dionisíaco - que estão na base da arte trágica. Trata-se sobretudo de mostrar em que sentido a filosofia da arte que Nietzsche realiza na primeira etapa de sua reflexão - como aspecto positivo e normativo de sua crítica à racionalidade - se estrutura através das categorias metafísicas de essência e aparência. Isto é, diferentemente de textos poste­ riores em que pensa a vida como aparência ou em que pre­ tende eliminar a oposição essência-aparência, nesta época, sob a influência de Kant e Schopenhauer, sua filosofia parte das dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si, representação e vontade para tematizar a relação entre beleza e verdade e, por conseguinte, entre apolíneo e dionisíaco. Pre­ tendo mostrar que, embora trabalhe com a oposição metafísica essência-aparência, a grande singularidade do pensamento filo­ sófico de Nietzsche nesta época é fazer uma apologia da apa­ rência como necessária à vida e a única via de acesso à essên­ cia: uma apologia, portanto. da arte. 10

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Estudarei, em segundo lugar, a antinomia entre metafísica racional e metafísica de artista, ou em que sentido o racionalis­ mo estético socrático é o marco que assinala a morte da arte trágica. Análise do aparecimento das categorias de razão, cons­ ciência, crítica, clareza do saber como princípios que devem nortear e avaliar a criação artística; análise da oposição entre instinto estético e instinto racional, entre a força da arte e a força do conhecimento, considerados como matrizes de dois diferentes tipos de saber; análise da questão da verdade nas perspectivas da metafísica de artista e da metafísica socrática a partir da relação entre essência e aparência. Estudarei, finalmente, como a crítica à verdade científica já se faz nos textos imediatamente posteriores a O nascimento da tragédia sem referência ao projeto de metafísica de artista. Neste momento o fundamental da análise passa a ser a crítica ao instinto ilimitado de conhecimento pela explicação de sua gênese - que já detectará o seu solo moral - e pela afir­ mação da relatividade do conhecimento, de seu "antropomor­ fismo", de sua força dominante de ilusão. O que conduzirá à apologia da arte e da filosofia trágicas como forças capazes de controlar o instinto de conhecimento e instaurar um tipo de vida e de conhecimento determinado por valores artísticos. A segunda parte trata da relação entre ciência e moral tal como foi reformulada sobretudo a partir de Assim falou Zara­ tustra. Pretendo, em primeiro lugar, mostrar como a questão da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise interna da própria ciência, mas remete necessariamente a uma genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria da vontade de potência em que a vida é considerada como prin­ cípio último de avaliação tanto do conhecimento quanto da moral. Em seguida, analisarei o projeto de constituição de uma genealogia da moral que investiga o nascimento e o valor da moral judaico-cristã, expondo as três figuras fundamentais que possibilitam inclusive definir o niilismo: o ressentimento, a má­ consciência e o ideal ascético. A análise histórico-filosófica da 11

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moral também remete à concepção da vida como força, como potência ou como vontade de potência que lhe serve de fun­ damento. E o que se revela, então, é a grande antinomia entre a moral e a vida: a moral, como manifestação da fraqueza e insur­ reição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais . Será então possível compreender como a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia da verdade: o ele­ mento-chave da argumentação é o conceito de vontade de verdade . A articulação entre ordem epistemológica e ordem moral ou o estabelecimento das condições de possibilidade morais da ciência se realiza pela relação entre vontade de ver­ dade e vontade de potência. A vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui a es­ sência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência. Se a ciência não se opõe ao niilismo moral e deve mesmo ser considerada sua forma mais recente e mais bem elaborada é porque a vontade de verdade que a caracteriza se encontra no âmago do ideal ascético. A terceira parte trata da relação entre verdade e valor situando a posição central que a questão da verdade ocupa no projeto de "transvaloração de todos os valores" . Pretendo, em primeiro lugar, analisar como toda a filosofia de Nietzsche é uma filosofia do valor no sentido de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade moderna e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde deri­ vam os valores . Se a criação de valores superiores - porque não existe valor em si, todo valor é criado - é expressão do tipo negativo de vontade de potência, a vontade afirmativa de potência é o princípio de uma nova instituição de valores. A questão do valor, e da verdade como valor, remete, portanto, à avaliação e esta à vontade de potência . Aprofundarei, em seguida, esta condição básica da trans­ valoração de todos os valores assinalando a importância que na filosofia de Nietzsche têm os instintos ou os impulsos con12

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siderados como um conjunto de forças, inconscientes e quali­ tativamente diferentes, em luta. A "fisiologia da potência" é uma concepção do corpo como sede de um conjunto de ins­ tintos em relação que funciona como uma crítica das defi­ nições do homem pela consciência ou pela razão - o niilismo é a subordinação dos instintos fundamentais à consciência, à razão - e explica como e por que uma teoria do conhe­ cimento é substituída por uma teoria da perspectiva dos instin­ tos que considera o conhecimento como a expressão dessa pluralidade de forças em luta . Voltarei, finalmente, à problemática da verdade para assi­ nalar a .inflexão que sofre a trajetória histórica de sua reflexão de uma metafísica de artista para uma genealogia dos valores. Mas sobretudo para tematizar, na análise genealógica, a coexis­ tência - pois não se trata de uma "evolução" - de perspecti­ vas estratégicas diferentes sobre a verdade: denúncia da ver­ dade como mentira e reivindicação da aparência como única realidade - sem dúvida, procedimento de inversão da me­ tafísica; superação da oposição metafísica de valores, que é a última e mais radical palavra de Nietzsche . Criticando a opo­ sição de valores que está na origem da metafísica, da moral, da ciência e propondo a arte trágica , dionisíaca, como única força ·capaz de se opor ao niilismo, à negação da vida, uma das grandes criações da filosofia de Nietzsche é a exigência de uma perspectiva para além de bem e mal e de verdade e erro.

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I ARTE E CIÊNCIA

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1 A arte trágica e a apologia da aparência

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que é a arte? Que importância tem ela para a vida? Que relação mantém com a força e a fraqueza? As respostas a essas questões fundamentais de sua filosofia, Nietzsche as su­ gere, desde o primeiro momento, a partir de uma reflexão sobre a Grécia arcaica que sempre lhe serviu de modelo privi­ legiado na crítica aos valores da decadência. Se é possível estabelecer um ponto de partida de sua reflexão sobre a arte na Grécia, este se encontra na correlação entre uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade artística que caracteriza os gregos e que se explica pela força de seus instintos. "Por causa da força de todos os seus instintos a vida dos helenos era mais rica em sofrimentos. Qual era o antídoto?" 1 Extremamente sensível, capaz d e grande sofrimento, bas­ tante vulnerável à dor, o grego tem nessa condição um perigo para a vida: a dolorosa violência da existência pode levá-lo ao pessimismo, à negação da própria existência. A materialidade desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche denomina "sabedoria popular''/ "filosofia do povo"3 da Grécia e ilustra pela sabedoria de Sileno, personagem lendário, companheiro de Dioniso. Diz a lenda que Midas, rei da Prígia, encontrando nos bosques o sábio Sileno, que por lá vivia bebendo, rindo e cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o homem, isto é, qual é o bem supremo. A princípio sem querer responder, pressionado, o sábio afmal responde: "Miserável raça de efêmeros, filhos do acaso e da pena, por que me obrigar a dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem supremo te é absolutamente inacessível: é não ter nascido, não ser, nada ser. Em compensação, o segundo dos bens tu podes ter: é logo morrer". 4 17

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A arte grega tem origem nesta problemática. Arte e re­ ligião estão, para os gregos, intimamente ligadas, ou melhor, são idênticas: o mesmo instinto que produz a arte produz a religião. 5 Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea1' Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apo­ línea, que tem na epopéia homérica sua mais importante reali­ zação, é a expressão de uma necessidade. "A vida só é possível pelas miragens artísticas"/ esta idéia acompanha Nietzsche em toda sua reflexão. Mas neste momento ela possui um sentido preciso: para que o grego, povo mais do que qualquer outro exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpi­ cos, deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho. A epopéia, poesia da civilização apolínea, é um modo de reagir a um saber pessimista do aniquilamento da vida. A im­ portância da arte apolínea, sua força maravilhosa como an­ tídoto, é ser capaz de inverter a sabedoria de Sileno, o deus silvestre, criando a evidência que "o mal supremo é morrer logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia" .8 Os deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome de um além-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na espirituali­ dade, no dever; são a expressão de uma religião da vida, intei­ ramente imanente, religião da beleza como floração - e não da falta -, que diviniza o que existeY Divinizar, neste contexto, significa fundamentalmente tor­ nar belo, embelezar. A arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadei­ ros - como o deus das religiões morais depois analisadas por Nietzsche -, eles são belos. Para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também signi­ fica calma e liberdade com relação às emoções, isto é, sereni­ dade. Contra a dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o mundo criando a beleza. "Não existe belo natura1.''10 O mundo 18

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grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é uma aparência. A questão da aparência é central em toda a filosofia de Nietzsche. Em O nascimento da tragédia e nos escritos e frag­ mentos póstumos desta época seu pensamento se estrutura, inspirado em Kant e Schopenhauer, utilizando as dicotomias essência e aparência, coisa-em-si e fenômeno, vontade e repre­ sentação. "O homem filósofo tem mesmo o pressentimento que sob a realidade em que vivemos e onde estamos se oculta uma segunda, totalmente diferente, de tal modo que a realidade também é uma aparência."11 Se a beleza é uma aparência é porque há u�a verdade que é a essência. Mais ainda: a beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o grego cria um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda. Produzir a beleza significa se enganar na aparência e ocultar a verdadeira realidade. "O que é belr?. - uma sensação de prazer que nos oculta em seu fenômeno as verdadeiras intenções da vontade [. .. ] Objetivamente: o belo é um sorriso da natureza, uma su­ perabundância de força e de sentimento de prazer da existên­ cia [. ..] Negativamente: a dissimulação do infortúnio, a supres­ são de todas as rugas e o olhar sereno da alma da coisa [. . .] O alvo da natureza neste belo sorriso de seus fenômenos é se­ duzir outras individualidades em favor da existência."12 Não é pelo Belo que as coisas belas são belas. Quando se diz que algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a vontade, a verdadeira realidade, a beleza é uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir. Trata-se porém de uma aparência necessária. Uma das teses principais de O nascimento da tragédia, sua "hipótese metafísica", é que o ser verdadeiro, o "uno originário" tem necessidade da bela aparência para sua libertação; uma liber­ tação da dor pela aparência.15 A "vontade", termo que é utili­ zado por Nietzsche no sentido que tem em Schopenhauer de 19

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núcleo do mundo, essência das coisas, mundo visto de dentro, ou "força que eternamente quer, deseja e aspira", 14 tem neces­ sidade do apolíneo como consciência de si. "Conhece-te a ti mesmo" é o lema apolíneo. O mundo apolíneo da beleza é o mundo da individuação (do indivíduo, do Estado, do patri­ otismo), da consciência de si. A individualidade, a consciência, é uma aparência, uma representação do uno originário; através do principium individuationis se produz a transfiguração da realidade que caracteriza a arte: é isso que constitui o processo artístico originário. E a necessidade dessa transfiguração ar­ tística, esse "desejo originário de aparência" é o que possibilita a muralha capaz de resistir à sabedoria pessimista de Sileno. "Com os gregos a 'vontade' queria se contemplar nesta trans­ figuração que lhe ofereciam o gênio e o mundo da arte [. ] Por um jogo de espelho da beleza, em que os gregos viam os deuses como seus belos reflexos, a 'vontade' helênica comba­ tia a aptidão, correlata ao dom artístico, para o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. E o monumento dessa vitória é Homero, o artista ingênuo, que se eleva diante de nós."15 O mundo dos deuses olímpicos é um espelho que transfigura a "vontade" que desejava se contemplar nesta transfiguração. Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschia­ na, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apolo­ gia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à ma­ nutenção, mas à intensificação da vida. . .

Mas isso não é tudo nem mesmo o mais fundamental. Esse primeiro resultado é ainda preliminar inclusive para a con­ cepção da aparência, que adquire toda sua importância quando é pensada além das fronteiras de uma arte apolínea. A razão é que a consciência apolínea é apenas um véu - o véu de Maia - que dissimula ao grego um mundo que, pelo que encerra de verdade, não pode ser ignorado. Pretendendo substi­ tuir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas 20

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formas, a arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando a verdade, ela desconsid­ era o outro . instinto estético da natureza que não pode ser esquecido - o dionisíaco. Para que se possa compreender a concepção nietzschiana do dionisíaco e inclusive avaliar as semelhanças e diferenças que ela encerra com relação ao que Nietzsche posteriormente afirmará, é preciso salientar que o dionisíaco, considerado como aniquilador da vida, a que a arte apolínea se contrapõe, não é propriamente grego. Para o grego apolíneo ele é pré-apolíneo, isto é, titânico, ou extra-apolíneo, isto é, bárbaro. Dioniso é o deus· de uma religião que vem do estrangeiro. Mas o culto, vencendo a resistência apolínea, foi, pouco a pouco, penetrando na Grécia e se afirmando, como se pode ver em As bacantes de Eurípedes. Foi um momento de grande perigo e grande medo para o mundo grego. "As musas das artes da 'aparência' empalideciam diante de uma arte que, em sua embriaguez, proclamava a verdade e em que a sabedoria de Sileno gritava: 'Infelicidade! Infelicidade!' na cara da serenidade olímpica. O indivíduo seus limites e sua medida - caía no esquecimento de si carac­ terístico dos estados dionisíacos e perdia completamente a me­ mória dos preceitos apolíneos. A desmesura se desvelava co­ mo a verdade; a contradição e a volúpia nascida da dor se expressavam do mais profundo da natureza."16 O novo culto da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fun­ damentais da Grécia. A oposição entre os dois instintos, as duas pulsões, as duas potências, as duas forças artísticas da natureza_ - o apolíneo e o dionisíaco - era totalP A expe­ riência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida é a eclosão da hybris, da desmesura da natureza considerada como verdade e 21

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"exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento";18 em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um com­ portamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e cruelda­ de, de força grotesca e brutal; em vez de sonho , visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica. Dessa forma , o êxtase dionisíaco produz, enquanto dura, um efeito letárgico que dissipa tudo o que foi vivido no pas­ sado: é uma negação do indivíduo, da consciência, do Estado, da civilização, da história. Metamorfoseados em sátiros e si­ lenos, seres da natureza protótipos do homem verdadeiro, os "loucos de Dioniso" desintegram o eu, a consciência, a indi­ vidualidade e se sentem na verdadeira natureza. Mas há ainda um segundo perigo decorrente do primeiro: o pesar, o desgosto pela existência, o sentimento de que tudo é absurdo, impossível, que aparece com a volta ao estado de consciência. O conhecimento, ou mais precisamente, porque não se trata rigorosamente de conhecimento, a emoção, a ex­ periência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da natureza, uma verdade que mostra que a natureza é desme­ surada ou que verdade é desmesura, faz o homem compreen­ der a ilusão em que vivia ao criar um mundo de beleza jus­ tamente para, mascarar a verdade. A visão da essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fe­ nomenal, é revelada como impostura pela natureza, pelo nú­ cleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. "Quando a consciência foi penetrada por essa verdade, o homem só vê em tudo o horror e o absurdo do ser [ . . .] Reconhece então a sabedoria de Sileno, o deus silvestre. E é tomado pelo des­ gosto."19 Neste sentido, a experiência dionisíaca é uma "em­ briaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho". Não é esse porém o dionisíaco de que Nietzsche fará o elogio. Expondo suas características, ressaltando seus perigos, seu terrível instinto destruidor, o filósofo visa a realçar ainda 22

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mais a importância do novo antídoto que contra ele foi criado. Porque é novamente pela arte que o grego é salvo do perigo representado por essa religião dionisíaca bruta, selvagem, na­ tural, destruidora. Ou melhor, pela segunda vez a própria vida salva o grego utilizando a arte como instrumento. "A arte o salva, mas pela arte é a vida que o salva em seu proveito" , diz Nietzsche enunciando um pensamento que cada vez adquirirá mais importância em sua filosofia20. Novo tipo de arte, que representa o apogeu da civilização grega, que não pretende mais estabelecer uma trincheira, um anteparo, uma muralha que impossibilite a entrada e a expansão do dionisíaco, como procurou fazer a arte apolínea, a poesia épica. A característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o elemento dionisíaco transformando o próprio sentimento de des­ gosto causado pelo horror e pelo absurdo da existência em representação capaz de tornar a vida possível. Mérito ainda de Apolo, mérito do deus do sonho e da beleza, porque mérito da arte. Se desta vez Apolo salva o mundo helênico atraindo a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência é porque transforma um fenômeno natural em fenômeno estético. E se essa transformação do dionisíaco puro, bárbaro, oriental em arte salva a civilização grega é porque integra a experiência dionisíaca ao mundo helênico aliviando-a de sua força destrui­ dora, de seu "elemento irracional", espiritualizando-a.21 A ilu­ são apolínea, característica da arte, liberta da opressão e do peso excessivo do dionisíaco, 22 permitindo à emoção se des­ carregar em um domínio apolíneo.23 É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e Dioniso,Z4 que constitui para Nietzsche o momento mais im­ portante da arte grega.2s Importância que ele exprime em ter­ mos médicos afirmando que ela possui um verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca trans­ forma um veneno - a poção mágica, o filtro das feiticeiras em remédio, retirando de Dioniso suas "armas destruidoras" . 26 "O pavoroso filtro das feiticeiras feito de volúpia e crueldade perdia a força: apenas o lembravam - mas como os remédios lembram os venenos mortais - a surpreendente mistura nos 23 ---

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afetos e a duplicidade dos loucos de Dioniso . . . "27 Se o puro dionisíaco é um veneno, é porque é impossível de ser vivido; é porque acarreta necessariamente o aniquilamento da vida. Se a arte é capaz de fazer participar da experiência dionisíaca sem que se seja destruído por ela, é porque possibilita como que uma experiência de embriaguez sem perda de lucidez .28 A arte dionisíaca, a arte trágica é um jogo com a em­ briaguez, uma representação da embriaguez que tem justamen­ te por objetivo aliviar a embriaguez; ou, em outras palavras, não propriamente embriaguez ou orgia, mas idealização da embriaguez ou da orgia. "Mas se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, a criação do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez [. . .] O servidor de Dioniso deve estar em estado de embriaguez e ao mesmo tempo permanecer pos­ tado atrás de si como um observador. Não é na alternância entre lucidez e embriaguez, mas em sua simultaneidade, que se encontra o estado estético dionisíaco."29 Essa noção de jogo é fundamental para compreender a diferença entre o dioni­ síaco orgiástico e o dionisíaco artístico e como o grego, através da beleza, reprimiu no dionisíaco bárbaro seus elementos des­ truidores, ensinando-lhe a medida e transformando-o em arte. A arte trágica controla o que há de desmesurado no instinto dionisíaco como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho. "A tragédia é bela30 na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artís­ tico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emo­ cionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo."31 É evidente, portanto, a distinção assinalada por Nietzsche entre as duas manifestações dionisíacas. Está claro também que o dionisíaco artístico não se opõe ao apolíneo, mas supera esta oposição justamente por ser artístico e implicar necessariamente aparência. E, finalmente, . também o dionisíaco celebrado por ele não é o do culto orgiástico mas o do artista trágico. A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparên­ cia e a essência. Sendo capaz de articular os dois instintos, as 24

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duas pulsões artísticas da natureza, na medida em que trans­ põe em imagens os estados dionisíacos, a tragédia não se li­ mita, como a poesia épica, ao nível da aparência, mas possi­ bilita uma experiência trágica da essência do mundo. Só que essa união, ela a estabelece através de um conflito. A tragédia representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o principium individuationis e o uno originário; ou, mais pre­ cisamente, ela 'epresenta a derrota do saber apolíneo e a vi­ tória do saber dionisíaco na medida em que faz da individua­ ção um mal e a causa de todo sofrimento. "A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: e entretanto sentimos seu aniquilamento como uma vitória. Pa­ ra o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a su­ prema avaliação da individuação, como já evocamos uma vez: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim últi­ mo de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade."32 Na tragédia o destino do he­ rói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado - para fazer o espectador aceitar o sofrimento como inte­ grante -da vida. Segundo Nietzsche a finalidade da tragédia é produzir ale­ gria. A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento mas alegria: uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação,33 mas a ex­ pressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia es­ boçada nesta época nos termos de uma "metafísica de artista" que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência: "A alegria metafísica que nasce do trágico é a tradução, na lin­ guagem da imagem, da instintiva e inconsciente sabedoria dio­ nisíaca: o herói, manifestação suprema da vontade, é negado para nosso prazer porque é apenas manifestação e porque o seu aniquilamento em nada afeta a vida eterna da vontade ."34 25

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Representando a luta e a vitória de Dioniso, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua máscara, a alegria que proporciona a tragédia é o sentimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada. Situando os valores a políneos como causa do sofrimento humano, a tragédia nega os valores da aparência em nome da unidade de tudo que existe, o que é a condição de um prazer mais fundamental. A arte dionisíaca nos quer persuadir do pra­ zer eterno da existência, coisa em que Nietzsche sempre acre­ ditou. A diferença é que nesta época, pensando a partir das categorias de essência e aparência, ele afirma que este prazer só é possível à condição de o procurarmos não nos fenô­ menos, mas atrás deles. Na experiência trágica, que a arte pro­ porciona, o homem se torna o próprio ser originário, sentindo o seu desejo e o seu prazer de existir: "não obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver não como indiví­ duos, mas como este vivente único que engendra e procria e no orgasmo de quem nos confundimos ."y; Enquanto a arte apolínea nega - pela aparência, pela mentira, pela ilusão - o sofrimento da vida e afirma a eternidade do fenômeno, a tra­ gédia nega o indivíduo justamente por ser fenômeno, mani­ festação, representação, afirmando a eternidade da vontade.36 Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a certeza ele que existe um prazer superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da consciência: pela destruição dos valores apolíneos. O que po­ deria dar a impressão de uma negação da aparência em nome ela essência. Isso porém seria um equívoco, na medida em que 3 negação elos valores apolíneos só pode ser realizada em forma ele representação. ele imagem, de ilusão, isto é, apo­ lineamente. Se o dionisíaco puro é aniquilador da viela, se só a arte torna possí,·el uma experiência dionisíaca, não pode haver dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores. 26

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Notas 1. Nietzsche, Fragmentos póstumos (Frag. Post.), final de 1870 - abril de 1871, 7 [531. Citarei (salvo aviso em contrário) pela edição Colli e Montinari das obras completas de Nietzsche indicando o número do aforismo ou do fragmento póstumo. Quando for necessário indicarei as páginas da edição alemã da Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter e da tradução francesa da Gallimard.

2. O nascimento da tragédia (N.T.l, § 3. 3. '"A visão dionisíaca do mundo" (V. D.), § 2, in f.Scrituspôstumos. 4. .V T, § 3. 5. Cf. Frag. Post., 1871, 9 [102]; NT, § 3. 6. Nietzsche chama esse tipo de arte de apolínea porque considera Apolo o deus mais importante do Olimpo.

7. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [1S2l. 8. N.T, § 3. 9. Cf. Frag. Post., inverno de 1869- primavera de 1870, 3 [42]. 10. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [116]. 11. N.T, § 1. 12. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [27]. 13. Cf. NT, § 4. 14. NT, § 6. 15 N.T, § 3. 16..VT, § 4. 17. Sobre essas denominaçóes, cf N. T, § 1 e 2. 18. :V.T, §

4.

19. ,VT. §

7.

20. ,VT, §

7.

21. l'D. § 1. "Foi o pO\'O apolíneo que impôs os liames da beleza ao instinto todo-poderoso: subjugou os elementos mais perigosos ela natureza. suas bes­ tas mais selvagens .

..

Ibid.

22. Cf. N.T, § 21. 23. Cf. N.T, § 24. 24. Cf. Fraff. Post, im·erno de 1869-70, primavera de 1870, 3 [25]. 2S. "Na realidade a tragédia helênica é apenas o signo anunciador de uma civilização mais elez'ada: ela foi o ponto extremo que pôde atingir a heleni-

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dade e também o mais alto. Esta etapa era a mais difícil de atingir. Nós somos seus herdeiros." Frag. Post, setembro de 1870 - janeiro de 1871, 5 [94). 26. N.T, § 2. 27. N.T, § 2. 28. Crepúsculo dos ídolos, depois de afirmar que "o essencial da embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças" ("incursões de um intempestivo", § 8), caracteriza tanto o apolíneo quanto o dionisíaco como estados de embriaguez e distingue-os pelo fato de que enquanto um intensifica o olhar, o outro intensifica o sistema inteiro dos afetos. (Ibíd., § 10.) 29. V.D., § 1; cf. íbíd., § 3. 30. Às vezes Nietzsche distingue o belo do sublime. Um fragmento desta

época diz, por exemplo: "Se o belo tem como base um sonho do ser, o sublime tem por base uma embriaguez do ser." Frag. Post., final de 1870 abril de 187.1, 7 [46). 3 1 . Frag. Post., final de 1870 - abril de 187 1 , 7 [29). 32. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [128). 33. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [951. 34. N.T, § 16. 35. N.T, § 17. 36. Cf. N. T, § 16.

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Metafísica de artista e metafísica racional

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etafísica de artista" é a concepção de que a arte é a atividade propriamente metafísica do homem, a concepção de que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como sendo no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e ale­ gre, malgrado a mudança dos fenômenos.1 Mas que significado tem a apologia dessa experiência estética da verdade dioní­ síaca do mundo - experiência metafísica possibilitada pela arte trágica grega - na estrutura mais geral da reflexão filo­ sófica de Nietzsche nessa época? Significa a criação de uma "contra-doutrina'} de uma contra-noção, na luta contra a me­ tafísica e a ciência. Por um lado, é a formulação de uma de­ núncia: depois de ·uma vida breve, a arte trágica desapareceu um dia bruscamente, tragicamente, do campo do saber grego através de uma morte violenta e rápida cujos marcos são Eurí­ pedes e Sócrates. Eurípedes e Sócrates contra a tragédià dioni­ síaca: eis o antagonismo fundamental que assinala Nietzsche quando analisa pela primeira vez as relações entre arte e ciên­ cia. O que em termos conceituais quer dizer a oposição entre razão científica e instinto estético ou entre duas formas de saber: o saber racional e o saber artístico. Por outro lado, a valorização da arte - e não do conhecimento - como a ativi­ dade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora da racionalidade. Idéia que sempre permaneceu fundamental no pensamento de Nietzsche: a arte tem mais valor do que a ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência dionisíaca. O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo estético". Se Eurípedes é o marco que assinala a morte da arte trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se subor29

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dina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que ca­ racteriza a ''estética racionalista", a "estética consciente", é in­ troduzir na arte o pensamento e o conceito3 a tal ponto que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a consciência, a razão, a lógica despontam como novos critérios de produção e avaliação da obra de arte. Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à pro­ dução artística na perspectiva da consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será des­ classificada como irracional ou como desproporcional: "um com­ promisso de causas parecendo sem efeitos e de efeitos pare­ cendo sem causas",� ou uma profundidade enigmática e infinita, incerta, indiscernível, sombria, em suma, obscura.� Por não ter consciência do que faz e não apresentar claramente o seu sa­ ber, o poeta trágico será desvalorizado, desclassificado pelo saber racional. A perspectiva socrática de Eurípedes, o poeta sóbrio que condenou os poetas embriagados, assinala uma ruptura na ma­ neira de considerar a arte. Assim, enquanto Eurípedes critica Ésquilo por considerar que ele fazia mal o que fazia por não saber o que fazia, Sófocles, por exemplo, ainda considerava correto o que Ésquilo fazia, mesmo que ele o fizesse incons­ cientemente. "Se Sófocles disse de Ésquilo que ele fazia bem, mas sem sabê-lo, Eurípedes sem dúvida pensou que ele fazia mal por não saber." E Nietzsche enuncia o que constitui o fundamental da distinção entre esses dois momentos: "Nenhum poeta antigo anterior a Eurípedes estava em condições de de­ fender, por motivos estéticos, o que ele tinha de melhor. Pois a particularidade maravilhosa de toda essa evolução da arte gre­ ga é que o conceito, a consciência ainda não estavam expres­ sos e tudo o que o discípulo podia aprender com o mestre tinha relação com a técnica".6 O que faz a diferença é a subor­ dinação da beleza à razão, é o estabelecimento do postulado socrático segundo o qual só pode ser belo aquilo que é cons­ ciente, racional. Erigindo como fundamento de sua estética o princípio "para poder ser entendido tudo eleve ser da ordem do entendi30

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mento",7 Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático: sua crítica da arte é o prolongamento da crítica socrática aos homens de sua época que por não terem consciência de seu ofício o exercem apenas por instinto. É neste "apenas por ins­ tinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do socratismo. "O socratismo despreza o instinto e portanto a arte. Nega a sabedoria justamente onde se encontra seu verdadeiro reino."8 Desprezando o instinto em nome da criação artística consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trági­ cos9. Se algo só é bom se for consciente, se há relação ne­ cessária entre saber-virtude-felicidade, o saber trágico, que é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclas­ sificado. Em suma, pelo Jato de ser impossível expressar con­ ceitualmente- expor e comprovar racionalmente, logicamen­ te - o trágico, Sócrates e Eurípedes negaram um saber como o de Ésquilo, que deve o que tem de melhor a uma "criação inconsciente". Assim, o estudo da relação entre metafísica de artista e metafísica conceitual, que tem como ponto de partida a crítica do socratismo estético, vai muito mais longe do que uma sim­ ples questão de estética, remetendo em última instância, como sempre em Nietzsche, ao problema da verdade. É, fundamen­ talmente, um modo de pôr em questão o "espírito científico", caracterizado na época por Nietzsche como a crença, que nas­ ceu com Sócrates, na penetrabilidade da natureza.10 O que é a metafísica racional criadora do espírito científico? É justamente ''a crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo" _11 Para Nietzsche, em toda sua investigação e mes­ mo nesse momento em que defende uma "metafísica" de artis­ ta, o saber trágico não foi vencido propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão metafísica" que está intimamente ligada à ciência. Afirmar que o problema 31

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da ciência não pode ser elucidado no nível da própria ciência, a partir dos critérios postulados pela ciência, significa trazer a questão, ou melhor, para considerar Nietzsche como um es­ trategista, situar o combate no terreno da ilusão. A luta contra a ilusão é uma forma de ilusão. Essa idéia é o ponto central da argumentação de Nietzsche mesmo quando considerou a es­ trutura conceitual, racional, da metafísica como imprópria ou como a mais imprópria para exprimir a essência do mundo; mesmo quando pensou em termos de essência do mundo. Foi a "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar conscientemente na essência, na natureza, no fundo das coisas separando a verdade da aparência e con­ siderando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica. O poder criador do artista trágico foi negado pela metafísica por não ser uma penetração consciente na essência das coisas. O antagonismo entre o espírito científico e a experiência trágica é em Nietzsche uma crítica da prevalência da verdade ou da verdade como valor superior pela afirmação tanto do caráter fundamental da aparência quanto da exigência de su­ peração da oposição essência-aparência, verdade-ilusão. Se­ parar o dionisíaco e o apolíneo é matar os dois. O herói foi morto não pelo trágico, mas pelo lógico.12 A "metafísica de artista" que Nietzsche defende no primeiro momento de sua reflexão filosófica é a denúncia da verdade como única deusa da ciência - sua ilusão constitutiva - em nome da afirmação de que o ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência, de que a arte é uma unificação desses dois elementos: "se o artista, cada vez que a verdade se desvela, permanece em suspense, extasiado com o véu que permanece depois do desvelamento, o homem teórico é aquele que tem sossego e satisfação ao ver o véu arrancado e não conhece prazer maior do que conseguir, por suas próprias forças, tirar novos véus. A ciência não exis­ tiria se não tivesse por única deusa a verdade nua e nada mais".13 Se a arte tem mais valor do que a ciência, e é sempre utilizada por Nietzsche como paradigma em sua crítica da ver­ dade, é que enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores '

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Nietzsche e a verdade

que situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteira­ mente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma men­ tira, uma aparência.

Notas 1 . Cf. N. T., § 7. 2. Cf. N.T., "Tentativa de autocrítica", § 5. 3. "Sócrates e a Tragédia", in Escritospóstumos, edição alemã, t. I, p. 535,

tradução francesa, t. I, v. 1, p. 35. 4. N.T., § 14. 5. Cf. N.T., § 1 1 ; "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 38 . 6. "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539-40; ; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 38. 7. Ibíd, ed. ai., p. 537; tr. fr., p. 36. 8. Ibíd., ed. ai., p. 542; tr. fr. , p. 40. 9. Cf. N. T., § 13. 10. Cf. N.T., § 17. 11. N.T., § 15. 1 2 . Cf. "Sócrates e a tragédia", in ibíd., ed. ai., p. 546; tr. fr., p. 43. 13. N.T., § 15; Frag. Post., final de 1870, 6·[16).

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3 Arte e "instinto de conhecimento"

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presentei o que considero o essencial da crítica da racionalidade científico-filosófica tal como é formulada em O nascimento da tragédia e nos escritos e fragmentos que lhe servem de preparação. É indispensável porém salientar que essa crítica é sempre retomada por Nietzsche, impondo-se co­ mo tema constante, malgrado as diferenças conceituais que servem para formulá-lo. Os textos imediatamente posteriores, como, por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam constituir O livro do filósofo, retomam a mesma problemática da relação entre arte e conhecimento. Mas se a crítica à meta­ física persiste nesses escritos, como em toda a obra de Nietzsche, ela não mais se faz em nome de uma metafísica de artista, isto é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma experiência artística da essência do mundo- o elemento da arte é a ilusão. A crítica à institução da dicotomia metafísica verdade-aparência agora é realizada a partir do conceito de "instinto de conhe­ cimento" ou instinto de verdade, sem que o elogio da arte explicite uma dualidade de elementos ou de forças, mesmo que seja para afirmar uma síntese, uma reconciliação ou uma unificação. O que é o "instinto de conhecimento"? Para sabê-lo é preciso resolver um problema: alguns textos negam claramente a existência de um instinto de conhecimento, de um "instinto de verdade honesto e puro" .1 O que Nietzsche pretende então é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza hu­ mana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no início da Metafísica, que todos os homens desejam natural­ mente conhecer. O conhecimento não é um instinto do ho­ mem, quer dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O 35

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conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado, como enuncia a bela fábula criada por Nietzsche: "Em algum ponto do universo inundado por cintilações de inúmeros siste­ mas solares houve um dia um planeta em que animais inteli­ gentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulho­ so e mais mentiroso da 'história universal', mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza o planeta se congelou e os animais inteligentes tiveram que morrer". 2 Quando afirma não haver instinto de conhecimento, ele quer salientar que não se deve definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como o valor principal do homem porque os instintos são mais fundamentais do que o conhecimento. Por outro lado, quando ele se expressa em termos de instinto de conhecimento ou de verdade, a expressão deve sempre ser entendida como se referindo a um instinto da cren­ ça no conhecimento ou na verdade. Propriamente o instinto de que fala Nietzsche é de crença e não de conhecimento. É o que significa, por exemplo, a afirmação, à primeira vista enigmá­ tica, de que "não existe instinto de conhecimento e de verdade, mas apenas um instinto de crença na verdade; o conhecimento puro é privado de instinto".3 E se "instinto de conhecimento" tem o sentido, não de uma tendência natural para a verdade, mas de uma crença - produzida - na verdade é porque não há posse da verdade, mas apenas convicção, suposição de pos­ suir a verdade. "Análise da crença na verdade: pois toda posse da verdade é, no fundo, apenas uma convicção de possuir a verdade. O pathos, o sentimento do dever, vem desta fé e não da pretensa verdade."4 A verdade não tem como critérios a evidência e a certeza; tem como condição um esquecimento e uma suposição. Ora, dizer que o instinto de conhecimento - denomi­ nação que em Nietzsche é geralmente utilizada criticamente, com a conotação de signo de baixeza, de decadência, de de­ clínio; signo de que a vida envelheceu e de que os instintos fundamentais se tornaram fracos5 - é produzido significa di­ zer que sua análise remete às condições de seu nascimento, de seu aparecimento. É então que aparece uma idéia que cada 36

Nietzsche e a verdade

vez mais se imporá a seu pensamento: as condições de possi­ -�lidade do conhecimento são sociais, políticas ou, mais pre­ cisamente, morais. Relação entre verdade e moral que é assina­ lada inúmeras vezes em O livro dofilósofo. Eis alguns exemplos: § 9 1 : "A crença na verdade é necessária ao homem. A verdade aparece como uma necessidade social; por uma metástase ela é, em seguida, aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária. Todas as virtudes nascem de necessidades. Com a sociedade começa a necessidade de veracidade, senão o homem viveria em eternos véus. A fundação dos Estados suscita a veracidade. O instinto de conhecimento tem uma fonte moral." § 130: "Por a vera­ natureza o homem não existe para o conhecimento cidade (e a metáfora) produziu a inclinação para a verdade. Assim, um fenômeno moral, esteticamente generalizado, produz o instinto intelectual." § 133: "A necessidade produz, às vezes, a veracidade como meio de existência de uma sociedade. O instinto se reforça por um exercício freqüente e é agora injus­ tamente transposto por metástase. Torna-se a tendência em si. Do exercício para casos determinados se faz uma qualidade. Temos agora o instinto de conhecimento." § 134: "O homem bom também quer ser verdadeiro e acredita na verdade de todas as coisas. Não apenas da sociedade, mas também do mundo." Nessa época, é em "Verdade e mentira no sentido extra­ moral" que a relação entre verdade e sociedade é mais explici­ tamente tematizada. Partindo da distinção entre estado de na­ tureza e estado de sociedade, Nietzsche negará a existência de um desejo natural de verdade através de uma concepção do intelecto como tendo um efeito específico de dissimulação. O intelecto, que é um meio de conservação dos indivíduos mais fracos, tem originariamente por função produzir disfarce, más­ cara, ilusão, mentira com o objetivo de compensar uma falta de força. É sobre esse fundo de mentira que vai ser formulada a questão da verdade no estado de sociedade. Para instaurar a paz ou fazer desaparecer o aspecto mais brutal da guerra de todos contra todos, são fixadas leis da verdade a partir das leis -

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da linguagem: são essas leis que instituem pela primeira vez a oposição entre verdade e mentira. A partir do momento em que se estabelece uma designação . uniformemente válida e obri­ gatória para as coisas, o mentiroso é aquele que utiliza as palavras, as designações pertinentes, para fazer o irreal parecer real. É esta convenção que estabelece a verdade. A verdade não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em suas relações com os outros homens. Conclusão: O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas conseqüências favoráveis. O homem também não odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela causados. O que se proscreve, o que não se aceita e não se deseja é o que é considerado nocivo: são as conseqüências nefastas tanto da mentira quanto da verdade. A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as conseqüências nefastas da men­ tira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida.6 Pelo modo como tematiza. a questão do aparecimento do instinto de conhecimento e de verdade podemos facilmente observar - o que é uma característica permanente de suá reflexão - como a análise de Nietzsche nunca se situa em um nível propriamente epistemológico, que teria por objetivo esta­ belecer critérios de demarcação entre o verdadeiro e o falso conhecimento. Desde o início, a investigação nietzschiana so­ bre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente po­ lítico ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre verdade e mentira tem uma origem moral. Articulação do conhe­ cimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da exigência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gre­ gária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas.7 A relação entre conhecimento e moral não é, entretanto, estabelecida por uma teoria moral. A perspectiva que denuncia a oposição verdade-mentira como fundada na moral é, como 38

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Nietzsche e a verdade

Nietzsche a denominou, "extramoral" - ou empregando um termo que já aparece neste momento e que posteriormente ganhará toda sua importância- "fisiológica". 8 É essa perspec­ tiva extramoral que, criticando o instinto de conhecimento e de verdade, afirma a necessidade da ilusão, isto é, "de não-ver­ dades tidas como verdades", salientando que o conhecimento verdadeiro tem o mesmo valor que a mentira, a falsidade, a ilusão, a aparência. Desde o início de sua reflexão Nietzsche luta contra a oposição metafísica de valores, afirmando a posi­ tividade do aspecto que foi subestimado: a ilusão é a essência que o homem se criou.9 Daí a perspectiva extramoral implicar uma apologia da arte. Se a crítica da ciência e sua pretensão de verdade, insur­ gindo-se contra a desclassificação da aparência, luta pelo re­ nascimento da arte, é porque a arte é o domínio da aparência. Isto significa o desaparecimento da oposição, não fundamental nos textos que analisamos, entre o apolíneo e o dionisíaco, ou entre um dionisíaco bárbaro e um dionisíaco grego: por ser necessariamente artístico, o dionisíaco nietzschiano implica o apolíneo. Desaparece o conflito entre a bela aparência e uma verdade fundamental dionisíaca. A afirmação da vida, da reali­ dade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da ciência, está do lado da vida, é porque a vida quer a aparên­ cia, não despreza seus véus e ilusões. O que era característica da arte apolínea torna-se condição indispensável de toda arte digna desse nome, isto é, da arte dionisíaca; radicalização, atra­ vés da aparência, de um parentesco entre arte e vida que sem­ pre esteve presente no pensamento de Nietzsche. "Única pos­ sibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da vida. O movimento instintivo das ciências é o aniquilamento completo da ilusão: se não houvesse arte, a conseqüência seria o quietismo."10 . A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade co­ , mo sendo um esquecimento de que o homem é um artista, um criador, isto é, um criador de aparência, situando o antago39

Roberto Machado

nismo entre arte e ctencia no próprio campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que considera a verdade superior � aparência; e a ilusão ar­ tística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é ilusão, "figuração", "transfiguração", criação. Utilizando o pro­ cedimento de inversão tão caro a Nietzsche, poder-se-ia dizer que enquanto a "mentira" da ciência seria querer encontrar a verdade do mundo como outra coisa que não a aparência, a "verdade" da arte é acreditar na imagem como imagem, na aparência como aparência. Ou, em outros termos, enquanto "a humanidade tem no conhecimento um belo meio de perecer", 11 a superioridade 27 A má-consciência ou o sentimento de culpa tem, segundo a genealogia nietzschiana, uma dupla origem. A primeira é a transformação do tipo ativo em culpado28 que se deu com o nascimento do Estado, "a mudança mais profunda que se pro­ duziu na humanidade" . 29 A argumentação de Nietzsche nesses importantes textos que analisam essa forma de surgimento da má-consciência se faz pela relação entre instinto e consciência. A idéia central é a seguinte: a força coercitiva, repressora, do Estado - uma tirania terrível - abatendo-se sobre uma popu­ lação nômade, selvagem, livre, desvalorizou abruptamente os instintos - instintos de liberdade, reguladores da vida, incons­ cientemente infalíveis -, reduzindo esses "semi-animais" ao pensamento, à consciência, "a seu órgão mais miserável e mais sujeito ao erro". 30 Impossibilitados de agir no exterior, esses instintos fundamentais, que Nietzsche assimila à vontade de potência,31 inverteram sua direção, voltaram-se para dentro, para o interior, ou melhor, criaram a interioridade. A interiorização do homem se produz quando os instintos mais potentes, não podendo se expandir por causa de uma forte repressão social, voltam sua força contra o próprio indivídu�.

É

a interiorização

desta força ativa, da vontade de potência, que cria a má-cons­ ciência. "Esse

instinto de liberdade tornado

latente pela violên­

cia - já o compreendemos - esse instinto de liberdade recal­ cado, coibido, preso no interior e só podendo se expandir e se

65

Roberto Machado

desencadear sobre si próprio: é isso, e nada mais do que isso, a

má-consciência no início" . 32 O segundo modo de surgimento

da má-consciência é a

transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre ascético.33

O papel do padre é descarregar, aliviar seu rebanho

do ressentimento acumulado que ele considera um explosivo capaz de destruir tanto um quanto o outro. Como se dá esse alívio descompressor? O ressentido é alguém que sofre e por­ que sofre procura espontaneamente uma causa - um culpado - de seu sofrimento para sobre ele descarregar seu ódio, "dis­ trair a dor pela paixão". Esse culpado, o padre lhe oferece: é ele mesmo, o ressentido. "Alguém deve ser culpado de que eu me sinta mal!" , diz o ressentido, ignorando a causa de seu sofrimento; o padre ascético lhe responde: "Tem razão, minha ovelha, alguém deve ser culpado, mas esse alguém é você mesmo; é você mesmo e apenas você que é culpado de você!"34 Sua culpa, sua culpa, sua culpa! dizia incessantemente o res­ sentido; minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! dirá agora o culpado.

É

o padre que muda a direção do ressenti­

mento. A má-consciência é o ressentimento voltado contra si próprio. Nasce assim, segundo essa "psicologia do padre", o pecado.35 Terceira forma de niilismo: o ideal ascético. teriza o ascetismo religioso?

É

O que car��

considerar a vida um erro, negá­

la e fazer dela uma ponte para outra vida, a vida verdadeira: invenção de um além para melhor caluniar um aquém;36 in­ venção de um outro mundo que só se explica pelo cansaço da vida que impera na moral, na religião, na filosofia. "Inventar fábulas sobre um 'outro' mundo diferente deste não tem sen­ tido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de depreciação, de receio: neste caso nos

vingamos da

vida com

a fantasmagoria de 'outra' vida distinta desta e melhor do que esta. "37 Calúnia suprema da vida que, para tornar desej ável essa negação da vida, supõe a existência de outra vida, de um mundo do além, de um mundo supra-sensível. Mas o ideal ascético não se distingue essencialmente das duas atitudes an­ teriores; constitui, pelo contrário, o sistema moral do ressenti-

66

Nietzsche e a verdade

mento e da má-consciência, mais propriamente, os meios de organização do tipo de moral judaico-cristã.

O que caracteriza

a moral é ela ser a maior caluniadora e envenenadora da vida.38 Por quê? Porque ela é niilista; porque com ela os "instintos de decadência" dominam os "instintos de expansão", a vontade de nada vence a vontade de viver.

"O instinto niilista diz não;

sua afirmação mais moderada é que não-ser é melhor do que ser, que o desejo de nada tem mais valor do que querer-viver; sua afirmação mais rigorosa é que, se o nada é o que há de mais desejável, esta vida, como sua antítese, é absolutamente sem valor - condenável"39 Niilista, a moral exprime uma von­ tade de nada, isto é, uma vontade não de afirmar mas de n�gar, de depreciar a vida, possibilitando assim o triunfe.-d:its forças reativas. Pode-se compreender a importância que Nietzsche con­ fere ao nascimento de uma moral do bem e do mal e o papel central que a reflexão sobre a moral desempenha em sua obra. A sociedade moderna é niilista, isto é, dominada pelos valores morais, pelos valores superiores que são justamente os valores da decadência. E se a humanidade vive um período de de­ cadência, de degenerescência - dois milênios de antinatureza e profanação do homem40 - isso se deve à vitória da "revolta dos escravos na moral" . Se a espécie humana não atingiu o grau mais alto de potência e esplendor, isso se deve ao fato de a moral ser o perigo dos perigos. 4 1 Daí a posição de Nietzsche em defesa de uma ética aristocrática como aspecto positivo da denúncia da negatividade da moral. Daí sua posição imoral, amoral ou extramoral, que pretende desmascarar a moral para desmascarar o não-valor de todos os valores em que se acre­ dita, 42 criticar a domesticação do homem realizada pela moral em nome de um conceito de cultura como adestramento e seleção. Porque não se deve confundir domesticação, que é enfraquecimento, com adestramento: "Como o entendo, o ades­ tramento é um dos meios do enorme acúmulo de forças da humanidade, de modo que as gerações possam continuar a construir tendo por base o trabalho de seus ancestrais - cres-

67

'1 Roberto Machado

cer a partir deles não apenas exteriormente, mas interiormente, organicamente, no que existe de mais forte". 43

É

por isso que contra o enfraquecimento do homem, con­

tra a transformação de fortes em fracos - tema constante da reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, "além da moral" . 44 Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau.45 A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém 6 da fraqueza." 4 A exposição das teses centrais de

A genealogia da moral

mostra como - ao privilegiar na análise as forças, os instintos, a vontade de potência - a genealogia dos valores morais se realiza tomando a vida como critério de avaliação; mas eviden­ cia também a definição mais especificamente nietzschiana da vida como vontade de potência: a natureza da vida é a von­ tade de potência. 47 Essa posição primordial da vontade de po­ tência na análise - situação de critério último de avaliação permite também definir a genealogia, seja qual for o ob$to a que ela se aplique, como uma teoria da vontade de potência,

É

assim que Nietzsche define, pelo menos duas vezes, a "psi­ cologia", no sentido bastante próprio que ele lhe dá de ciência mestra que conduz aos problemas essenciais, e que acredito poder identificar com a genealogia: "morfologia e

teoria

ge­

nética da vontade de potência" ; "(teoria dos afetos), concebida como morfologia da vontade de potência" . 48 E o que ensina a teoria genealógica da vida como von­ tade de potência? Essa teoria "psicológica" ou mesmo "fisiológica" - uma "fisiologia da vontade de potência"49 - que considera a vontade de potência o fato elementar, "a forma primitiva do afeto" a ponto de afirmar que "toda força motriz é vontade de potência, fora dela não existe nenhuma força física, dinâmica ou psíquica" , 50 tem como tese fundamental - e sem a qual a filosofia de Nietzsche seria incompreensível - que a vontade

68

Nietzsche e a verdade

de potência não é unitária; é constituída de formas ou tipos diferentes. O que o homem quer é sempre mais potência,51 mas o homem é uma pluralidade de vontades de potência;52 viver é sempre querer mais potência, querer ser mais forte, mas isso significa tanto estender quanto conservar a potência. Por um lado, a vida deseja fundamentalmente53 um má­ ximo de potência; não propriamente uma conservação ou uma adaptação mas um aumento, um acúmulo, uma expansão, uma intensificação de potência. Alguns textos enunciam explicita­ mente essa importante tese da filosofia de Nietzsche. "E eis o segredo que a vida me confiou: 'Vê, disse ela, eu sou o que deve se superar a si mesmo indefinidamente' ."54 Toc!ç> corpo "deverá ser uma vontade de potêf1cia enq1snada, -qU;.erá cres­ cer, se estender, açambarcar, dominar, não por moralidade ou imoralidade, mas porque

vive

e a vida

é

vontade de potên­

cia."55 "A vida, como a forma mais conhecida do ser, é especi­ ficamente uma vontade de acumulação de força: todos os pro­ cessos da vida têm aqui sua alavanca: nada quer se conservar, tudo quer crescer e acumular. A vida

mento máximo de potência: mais potência."5

6

[. . .]

tende a um

senti­

é essencialmente um esforço para

"Minha concepção é que todo corpo espe­

cífico tende a se tornar mestre de todo o espaço e a estender sua força (sua vontade de potência) e a repelir tudo o que se opõe a esta extensão. Mas ele se choca constantemente com esforços similares de outros corpos e acaba por se 'arranjar' ('se unir') com aqueles que estão mais próximos:

conspiram juntos para tomar o poder. E

-

então eles

o processo continua."57

Por outro lado, não só na força ativa mas também na força reativa existe vontade de potência. A análise genealógica considera a vida como vontade de potência mesmo quando ela é reativa, negativa, fraca, isto é, quando exprime uma von­ tade de nada, quando é niilista. A afirmação final de

alogia da moral é

A gene­

justamente esta: o homem prefere querer o

nada do que nada querer; a vontade de nada, a revolta contra as condições fundamentais da vida, ainda é vontade de potên­ cia.58 Por quê? Porque permite dar um sentido à vida, à própria vontade de potência. "Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto

69

Roberto Machado

do que a própria vida; mas, mesmo nesta avaliação, o que fala é - a vontade de potência. " 59 Compreende-se o significado da moral para Nietzsche. A moral não é a manifestação de uma vontade forte, que excede, de uma "virtude que dá", mas a manifestação de uma vontade fraca que deseja uma potência que não tem, uma potência imaginária, uma representação. A tese de Nietzsche é que o 6 ideal ascético não só exprime uma vontade, 0 como até mesmo é uma astúcia da conservação da vida: "o ideal ascético tem sua fonte no instinto de defesa e de salvação de uma vida em

degeneração que procura subsistir por todos os meios 6 e luta por sua existência" . 1 Defesa, adaptação, conservação

vias de

são objetivos de uma vontade fraca, doente, pobre, diminuída que se utiliza justamente do ideal ascético como meio de con­ tinuar vivendo. "A vontade de conservação é a expressão de uma situação desesperada, de uma restrição do instinto vital que, por sua natureza, aspira a uma

extensão de potência e

por

isso freqüentemente põe em jogo e sacrifica a própria conser­ 6 vação" . 2 Se a moral é uma astúcia da vontade de potência com o objetivo de conservar a vida - e não de expandi-la criativamente -, se através dela a vida luta contra a morte, sabemos também que tipo de vida é essa: uma vida sem força, sem vigor, sem intensidade; Nietzsche lhe deu um nome: uma vida de escravo. Em que sentido pode haver incompatibilidade entre mo­ ral e vida se a vontade de moral é vontade de potência? No sentido em que a vontade de moral é vontade negativa de potência. Se a moral é incompatível com a vida isso não signi­ fica que ela o seja com todo tipo de vida. A posição nietzs­ chiana é que, pelo fato mesmo de servir para conservar a vida, a moral é nociva às forças que possibilitam a auto-expansão da vida, que são as forças mais fundamentais. Se a moral é um

leito de Procusto,63 se a moral é um fenômeno contranatural é porque se insurge contra os instintos primordiais da vida, con­ tra a vontade afirmativa de potência. Pode-se também compreender por que a perspectiva da análise nietzschiana é extramoral.

70

É

que ela considera a moral

Nietzsche e a verdade

tomando a vida como critério, a partir das forças vitais. Se a vida, ou a vontade de potência, é "imoral" ou não-moral, tam­ bém a moral, que essencialmente é apenas a expressão de um 6 tipo de vontade de potência - o tipo negativo - é imoral. 4 A grande insolência de Nietzsche é proclamar, contra a exigência, contra o ideal de moralidade que rege nossas so­ ciedades, que o homem moral nem é melhor, nem mesmo é propriamente bom; é apenas fraco, negativo, reativo. "Chamar a domesticação de um animal seu 'melhoramento' soa aos nos­ 6 sos ouvidos quase como uma piada. " 5 "Na verdade ri muitas vezes dos fracos que se julgam bons porque têm as mãos pa­ 66 ralíticas" . Quando considerada na perspectiva das forças, a moral é um poderoso instrumento de conservação do fraco; mas por isso mesmo enfraquece a vida, transforma a força em fraqueza. "Minha opinião: todas as forças e todos os instintos que tornam possível a vida e o crescimento caem sob o

da moral:

golpe

moral como instinto de negação da vida. " E Nietzs­

che conclui enunciando uma exigência que dá à sua filosofia a

característica de um instrumento de combate: "É preciso ani­ 6 quilar a moral para libertar a vida" . 7 Exigência de se livrar do disfarce da moral, de se situar para além de bem e mal, de se 6 posicionar acima da ilusão do juízo moral 8 como condição de ser aristocrata: de afirmar, de "enobrecer" a vida. ·

"Para que

seroe afinal de contas a moral se a vida, a natureza, a história 6 são 'imorais'?" 9 É nessa perspectiva que vai ser analisada a relação entre ciência e moral.

Notas 1 . G.C., § 345.

2. Frag. Post., junho-julho de 1885, 38 [14). 3 . G.C., § 301 ; Frag. Post, outono de 1887, 9 [40). 4. Cf., por exemplo, Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1651,

2 [ 190). 5. Cf. C./., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 . 6 . Cf. Frag. Post. , outono de 1885 - outono de 1 886, 2 [165). 71

_[

Roberto Machado

7. Cf., por exemplo, Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886 2 [190]. 8. Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 1 [531. 9. Cf. Frag. Post. , agosto-setembro de 1885, 39 [ 1 5] ; "Os bons e os justos

chamam-me destruidor da moral: minha história é imoral." Assim falou Zara­ tustra (Z), I, "Da mordida da víbora". 10. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1 887, 7 [6]. 1 1 . A genealogia da moral (G.M.), prefácio, § 6. 12. G.M., prefácio, § 3. 13. B.M., § 260. 14. Cf. C.!. , "A moral como contranatureza", § 4 . 1 5 . Cf. B.M., § 260; Frag. Post., junho-julho de 1885, 3 7 [8]. 16. Foi Gilles Deleuze (Nietzsche et la Philosophie, Paris, PUF, 1 96 1 , p. 138, 139) quem demarcou essa distinção conceitual, fundamental no pensamento

de Nietzsche, através dessa diferença terminológica também utilizada por ele para distinguir a moral de Espinosa das morais tradicionais. Cf. Spinoza et te Probleme de l'Expression, Paris, Minuit, 1968, p. 244-25 1 . 1 7 . Frag. Post., primavera de 1888, 1 5 [791. 18. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [1 20]; cf. O Anticristo (AC), § 3. 19. B.M., § 260. 20. Frag. Post., setembro-outubro de 1888 , 22 [20]. Sobre a posição de Nietzsche com relação à felicidade, cf. a comunicação de Henri Birault, "De la Béati­ tude chez Nietzsche", in Nietzsche, Cahier de Royaumont (Paris, Minuit, 1 967), que comenta o importante fragmento póstumo: "Que devo fazer para me tornar feliz? Isso eu não sei, mas eu lhe digo: seja feliz e faça então o que você deseja". 21 . Cf. G.M., I, § 7. 22. B.M., § 195. 23. B.M., § 260. 24. Cf. G.M., I, § 10, § 1 1 , § 13; II, § 1 1 . 25. Ecce Homo (E.H.), "Porque sou tão sábio", § 6. " . . . o pathos agressivo é tão inerente à força quanto o sentimento de vingança e ódio o é à fra­

queza."/bid., § 7. 26. Cf. G.M., III, § 14. 27. Humano, demasiado humano (H.D.H.), I, § 45 . 28. Cf. G.M., II, § 16, § 17, § 18. 29. G M , II, § 17. 30. G.M., II, § 16. 31 . Cf. G.M., II, § 18.

72

Nietzsche e a verdade

32. G.M., li, § 17. 33. Cf. G.M., III, § 15, § 16. 34. G.M., III, § 1 5 . 3 5 . Na Grécia antiga não havia sentimento de pecado; cf. G.C., § 135. 36. Cf. "Tentativa de autocrítica", § 5 in N. T.; Frag. Post., primavera de 1888, 14 [1341; E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8. 37. C.I., "A razão na filosofia", § 6; cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [168). 38. Cf. Frag. Post. , outono de 1887, 10 [166). 39. Frag. Post., maio-junho de 1888, 17 [7). 40. E.H., "Nascimento da tragédia", § 4. 41. G.M. , prefácio, § 6. 42. Cf. E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8. 43. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [65); cf. outono de 1887, 10 (68]. 44. B.M., § 23. 45. G.M., I, § 17. 46. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [414); primavera de 1888, 1 5 [ 1 20); AC; § 2. 47. Cf. G.M., 11, § 12. Vários textos definem explicitamente a vida como vontade de potência. Eis algumas referências: Z, li, "Do superar-se a si mesmo"; Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [190); verão de 1886 - outono de 1887, 5 [71) 10; final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9) e 7 [25); outono de 1887, 9 [1) e 9 [38); primavera de 1888, 14 [801. 48. Respectivamente, B.M., § 23; Frag. Post., início de 1888 - primavera de 1888, 13 [1). 49. Frag. Post., início de 1888 - primavera de 1888, 13 [1). 50. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [1 21). Este fragmento se intitula jus­ tamente: "A vontade de potência - de um ponto de vista psicológico" . 5l .Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [174). 52. Cf. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [58). 53. "O desejo fundamental é a vontade de potência", ibid., 1, [591. 54. Z., li, "Do superar-se a si mesmo". 55. B.M., § 259. 56. Frag. Post, primavera de 1888, 14 [831. 57: Ibid., 14 [186). 58. Cf. G.M., III, §, 28. 59. Z, li, "Do superar-se a si mesmo".

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Roberto Machado

60. Cf.. G.M., III, § 23. 61. G.M., III, § 13. 62. G.C., § 349. 63. Cf. C./., "Incursões de um intempestivo", § 43. 64. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1887, 7 [6]; outono de 1887, 9 [159], 9 [173], 10 [206]. 65. C./., "Os 'melhoradorés' da humanidade", § 2. 66. Z, II, "Dos sublimes". 67. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [6]. 68. C.!., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 . 69. G.C., § 344.

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3 A "Vontade de verdade"

Q

ue 'dação a ciência tem com a mornl, a ve,dade

com o bem? O estudo da problemática da moral e sua articu­ lação com a vontade de potência permitem retomar a questão da ciência explicitando em que sentido a vida, concebida co­ mo vontade de potência, é um critério capaz de elucidar a questão do conhecimento. E é preciso dizer antes de mais nada que Nietzsche produz, com o objetivo de articular ordem moral e ordem epistemológica, um conceito fundamental: o conceito de "vontade de verdade" . A análise nietzschiana da ciência tem como ternas princi­ pais: a oposição entre o universalismo e o perspectivismo do conhecimento, a relação entre os instintos e a consciência, a heterogeneidade entre conhecimento e mundo, a superação da dicotomia essência-aparência, a crítica das noções de sujeito e objeto . . . O ponto porém que se encontra na base de todas essas reflexões é a crítica da vontade de verdade que atua no conhecimento. A vontade de verdade é a crença, que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro1 . Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro. 2 A questão não é propriamente a essên­ cia da verdade, mas a crença na verdade . Por que a verdade é tida como necessária? O que quer quem procura a verdade? A originalidade e a importância da filosofia de Nietzsche é ter compreendido que a crítica da ciên­ cia só pode ser eficazmente realizada como questionamento da vontade de verdade, o que significa situar-se do ponto de vista da vontade de potência. Se a questão do conhecimento não pode ser elucidada limitando-se a seu interior é porque na base do conhecimento está a vontade e porque a vontade de verdade expressa sempre um determinado tipo de vontade de potência.

75

Roberto Machado

A teoria nietzschiana da ciência é, portanto, uma genealogia da vontade de verdade que pretende determinar sua origem e seu valor a partir da vontade de potência. A genealogia da verdade prolonga e completa a genealo­ gia da moral. A crítica ao ideal de verdade, ao valor da ver­ dade é a extensão da crítica aos valores morais dominantes que têm origem na moral judaico-cristã, cujo núcleo essencial é o ideal ascético.3 A tese central da argumentação é que a ciência supõe o mesmo "empobrecimento da vida" que carac­ teriza a "moral dos escravos" . Pobre de vida - em oposição à riqueza, à plenitude características do forte - é quem modifica o valor dado às coisas, empobrecendo-o. "Ao oposto daquele que



involuntariamente às coisas um pouco da plenitude

que ele encarna e sente, as vê mais plenas, mais potentes, mais ricas de futuro - daquele que em todo caso

sabe dar,

o

esgotado diminui e desfigura tudo que vê, empobrece o valor; é pernicioso. "4 Como sempre, é a partir da força ou da fra­ queza, da riqueza ou da pobreza, do excesso ou da falta que é colocada a questão do valor. Isso aconteceu com os valores morais, com a questão do bem; o mesmo acontece com os valores epistemológicos, com a questão da verdade. A ciência recebe da genealogia o mesmo tratamento que a moral: é considerada do ponto de vista extramoral carac­ terístico da vontade de potência. "Seria portanto necessário exa­ minar como psicólogo a 'vontade de verdade' : ela não é uma força moral, mas uma forma · da vontade de potência. Poder-se-ia prová-lo pelo fato de que ela se serve de todos os meios

imorais

- em primeiro lugar a metafísica - a pesquisa só se tornará

metódica quando todos os

preconceitos morais forem ultrapassa­

dos."' Apenas essa postura permite equacionar o "problema" da ciência. Do mesmo modo que o problema do significado da moral é fundamentalmente o da potência da moral, 6 o pro­ blema da ciência - esse problema terrível, cheio de incógnitas mas também rico de esperanças, que deverá ocupar ainda o próximo século - é o da potência, da força da ciência: o do significado da vontade de verdade.l

76

Nietzsche e a verdade

Assim colocado, o problema da ciência revela não só em que sentido ela é dominada pelos valores morais mas também em que sentido a vontade de verdade, como a vontade de moral, está intrinsecamente vinculada à vontade de potência; mas de uma forma de vontade de potência, de um tipo es­ pecífico que serve à conservação e não à expansão da vida.8 Tanto quanto a moral cristã, a ciência é uma atividade niilista que possibilita a dominação da vida pelas forças reativas. O perigo representado pela vontade ilimitada de conhecimento faz Nietzsche aproximar vontade de verdade e vontade de morte,9 o que mostra como para ele a ciência é um sintoma de decadência: "Que a ciência seja possível, no sentido em que ela é praticada hoje, isto prova que todos os instintos elementares, instintos de

legítima defesa e

de proteção não funcionam mais" . 10 Em suma: a

ciência nem se opõe à moral nem pode ser sua superação por­ q�e não apenas tem as mesmas bases que ela como é a última etapa de seu aperfeiçoamento; ainda que de modo insconsciente, são os valores morais que reinam na ciência; até no melhor dos casos, diz Nietzsche, a ciência "não é o contrário do ideal as­ cético, é antes sua forma mais recente e mais elevada" Y Mas qual é o elo da argumentação que permite relacionar tão profundamente a ciência com a moral? Se é possível esta­ belecer esta relação intrínseca, imanente, entre elas é porque a vontade de verdade, que caracteriza a ciência, constitui o âma­ go do ideal ascético. Se a ciência não é antagonista da moral, se ela depende da moral como instância que lhe dá valor . em vez de ser criadora de valor - é porque se funda na · verdade e a pesquisa da verdade é uma démarche moral; querer a verdade é expressar o ideal ascético. Ciência e ideal ascético "têm como base o mesmo terreno: a mesma superestimação da verdade (mais exatamente: a mesma crença no caráter ines­ timável e incriticável da verdade), eles são portanto

riamente aliados,

necessa­

de modo que, se eles devem ser combatidos,

só podem ser combatidos, colocados em questão, juntos" Y A vontade de verdade a todo custo é um fenômeno moral porque a oposição verdade-aparência que ela institui signi­ fica a afirmação de uma "vida melhor", de um "mundo-ver-

77

Roberto Machado

�eira" e a negação da vida, do mundo em que vivemos; criação de um outro mundo que justamente expressa o can­ saço da vida característico da moral. Se há continuidade entre ciência e moral é porque tanto a verdade quanto o bem 13 sã_o "valores superiores" ou aspectos da mesma realidade suprema de onde derivam todos os valores. E como é a vontade de nada que caracteriza os valores "superiores à vida", os valores considerados superiores são negadores da vida: o que define o 01Ior dos valores superiores é o niilismo. A argumentação de Nietzsche atinge assim o ponto culmi­ nante : a análise da relação intrínseca entre ciência e moral revela a homogeneidade delas com a metafísica. Assim como a

9

moral dos escravos é uma moral metafísica porque julga� vi a a partir de "valores superiores" - a metafísica é por natureza niilista porque julga e desvaloriza a vida em nome de um mun­ do supra-sensível -, a condição de possibilidade da ciência é, · em última instância, a fé em um valor metafísico da verdade. Privilegiando, na reflexão sobre a ciência, a vontade de ver­ dade, a crítica nietzschiana tem por objetivo esclarecer que ela implica tanto a metafísica quanto a moral - uma moral me­ tafísica ou uma metafísica moral - na medida em que o valor metafísico que se atribui à verdade, e que está na base da vontade de saber e portanto da ciência, é a expressão do ni­ ilismo do ideal ascético. "[. . .] o ideal ascético

dominou

todas as

filosofias pelo fato de que a verdade era postulada como Ser, como Deus, como instância suprema, pelo fato de que a ver­ dade não

devia

de modo algum constituir problema. " " [ . . . ] esta

vontade absoluta de verdade, não nos enganemos, é a

próprio ideal ascético,

mesmo quando for apenas seu impera­

tivo inconsciente; é a fé em um valor

em si da verdade

fé no

metafísico,

em um valor

que apenas esse ideal garante e consagra

(ela subsiste e perece com ele) . " 14 A vontade de verdade é uma crença - crença na supe­ rioridade da verdade - e é nela que a ciência se funda. Não há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais

78

Nietzsche e a verdade

valor do que a aparência, a ilusão.

"O grau de certeza a res­

peito das desejabilidades supremas, dos valores supremos, da perfeição suprema era tão grande que os filósofos

procediam

absoluta certeza a priori: 'Deus' no alto dada."15 É porque privilegia em sua reflexão a

daí como de uma como verdade

questão da vontade de verdade a todo custo que Nietzsche não estabelece geralmente uma distinção essencial entre a ra­ cionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica mo­ derna.

O caráter incriticável da verdade como valor é o que

possibilita a afirmação da continuidade entre a ciência, a filosofia e a moral. Pode-se ser ateu ou antimetafísico; basta porém aceitar a "superestimação" da verdade - característica essen­ cial da reflexão sobre a ciência desde que Platão postulou que "Deus é a verdade" ou que "a verdade é divina" - para que �e_ expresse a crença metafísica que se encontra na base da 6 ciência. 1 "Alguns ainda têm necessidade de metafísica; mas também esse impetuoso

desejo de certeza

que irrompe hoje

nas massas sob forma científico-positivista, esse desejo de possuir alguma coisa absolutamente estável

[. . .]

querer

tudo isso ainda

é prova da necessidade de um apoio, de um suporte, em su­ ma, do

instinto de fraqueza

que não cria mas conserva as

religiões, as metafísicas, e todo tipo de convicção."17 "A re­ ligião

falsificou

a concepção da vida: a ciência e a filosofia

sempre foram apenas

ancillce desta

doutrina. " 18

_ A posição de Nietzsche é clara: o ateísmo científico, o positivismo nada mais são do que o aperfeiçoamento, o mo­ mento de maior refinamento da vontade de verdade criada pela filosofia platônica e pelo cristianismo.19 Mesmo que a ciên­ cia critique a religião como dogma, essa crítica ainda está si­ tuada no terreno de seus valores, ainda é a conseqüência e a expressão mais atual de sua moral, pois é a própria vontade de verdade - como se sabe, a essência do ideal ascético que,

se

aperfeiçoando,

proíbe

a

"mentira

da

crença

em

Deus" .20 Nietzsche sabe muito bem que os valores são históricos e portanto mutáveis. Mas sabe também que o fato de substituir

79

Roberto Machado

Deus pelo homem, de colocar valores reconhecidamente Q.u­ rnanos no lugar dos valores considerados divinos, não muda o essencial . Não basta a "morte de Deus" para destruir e superar o niilismo: isso pode representar apenas sua exacerbação.

É

preciso destruir a moral. E a crítica do niilismo moral só é �al com o questionamento da vontade de verdade. Só através da crítica da vontade de verdade como von­ tade negativa de potência é possível elucidar o problema da moral, da metafísica, da ciência. Só o questionamento do valor da verdade é capaz de superar o niilismo e levar ao máximo de sua radicalidade o projeto nietzschiano de "transvaloração de todos os valores" .

Notas 1 . Cf. G.C., § 344. 2. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 9 [38]. 3. O principal conjunto de aforismos sobre o assunto se encontra em G.M., III, § 23 a § 28. 4. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [68].

S. Ibid., 14 [103]. 6. Cf. GM., III, § 23. 7. Cf. G.M., III, § 27. 8. Cf. Frag. Post, outono de 85, 43 [1]. 9. Cf. G. C., § 344; Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [391. 10. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [2261. 1 1 . G.M., III, § 23. 12. G.M., III, § 25. 13. "[. . .] e quanto ao bem tal como Platão o compreendia (e depois o cris­ tianismo), ele me parece um princípio perigoso para a vida, caluniador da vida, negador da vida": Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9]. 14. GM., III, § 24. 15. Frag. Post., outono de 1887, 10 [ 1 501. 16. G.C, § 344; G.M. III, § 24. 17. G.C, § 347. 18. Frag. Post., novembro de 1887

-

março de 1888, 1 1 [264).

80

Nietzsche e a verdade

19. É preciso não esquecer que para Nietzsche a história da filosofia é a história do platonismo (cf. C./. "Como o 'mundo verdadeiro' acabou conver­ tendo-se em uma fábula" e a interpretação que Martin Heidegger dá desse texto em Nietzscbe, I, "A vontade de potência como arte", Pfullingen, Neske Verlag, 1 96 1 , tr. fr. , Paris, Gallimard, 197 1 , tr. ingl., Nova Iorque, Harper and Row, 1968) e que o cristianismo é um platonismo para o povo (Cf. B.M., prefácio). O Frag. Post., novembro de 1887 março de 1888, 1 1 [294] qualifica Platão de "anti-heleno e semita instintivo". -

20. G.M., III, § 27.

81

111 VERDADE E VALOR

1

1 A transvaloração de todos os valores

Q

uando, em

Crepúsculo dos ídolos,

uma de suas últi­

mas obras, Nietzsche afirma de seu primeiro livro,

mento da tragédia, que ele é todos os valbres, 1 não se trata

O nasci­

sua primeira transvaloração de de uma ilusão retrospectiva de

um autor que pretende projetar sobre o passado uma nova problemática do presente. Embora o conceito de transvalora­ ção tenha sido produzido em

1883

e adquira toda sua im­

portância no momento desta afirmação, ele se presta perfei­ tamente para definir a homogeneidade temática que, malgrado diferenças conceituais importantes, percorre sua reflexão res­ saltando o essencial de seu projeto. Caracterizar a filosofia de Nietzsche como uma filosofia do valor significa, antes de mais nada, salientar sua dimensão crítica, destacar o fato de que tematizar os valores é justam€nte questionar os valores, suspeitar do valor dos valores. "De fato eu também não creio que alguém já tenha olhado o mundo com uma suspeita tão profunda. "2 Os valores não são eternos, imutáveis, inquestionáveis. Nietzsche rejeita o pretenso caráter em si dos valores, o postulado metafísico da identidade entre valor e realidade;3 os valores são históricos, sociais, produzi­ dos. Neste sentido, melhor do que caracterizá-la como uma filosofia dos valores, a perspectiva nietzschiana deve ser de­ finida como uma filosofia da avaliação, da valoração que afirma que só há valor graças à avaliação.4 Fomos nós que criamos o mundo que tem valor. Por que então essa suspeita profunda, essa desconfiança radical5 com relação aos valores que o pró­ prio homem criou? Porque são valores niilistas; porque o ni­ 6 ilismo é a lógica de nossos valores e nossos ideais, o motor de nossa história. E mesmo que a história tenha conhecido vários sentidos do niilismo, todos eles são decorrência de um

85

Roberto Machado

primeiro sentido: a desvalorização da vida em nome dos valo­ res superiores. Tendência que remonta longe e que levará a filosofia genealógica, na tentativa de investigar sua origem, a privilegiar a crítica dos valores filosóficos. A análise da relação da ciência com a moral e a arte evidencia bem como a filosofia dos valores tal como Nietzsche a realiza é fundamentalmente uma crítica das noções de ver­ dade, bem e beleza como objetos de uma filosofia-� ele caracteriza como metafísica e moral. Crítica da existência des­ ses valores como entidades metafísicas: "Como o Bem e o Verdadeiro, o Belo também não existe". 7 "Desde que se isola um ideal da realidade se rebaixa, se empobrece, se calunia o real. 'O Belo pelo Belo', ' o Verdadeiro pelo Verdadeiro ', ' o Bem pelo Bem' - eis três formas de um mau olhar para o real."8 Crítica da identidade estabelecida pela metafísica entre esses valores: "A maior de todas as trapaças e enganos: identificar bom, verdadeiro e belo e representar esta identidade."9 "É in­ digno de um filósofo declarar: O bom e o belo são a mesma coisa: se, além disso, ele acrescenta 'também o verdadeiro' ele merece uma paulada. A verdade é feia: nós temos a arte a fim de que a verdade não nos mate". 10 Afirmação polêmica dos valores desvalorizados: "Concepção de uma nova perfeição; o que não corresponde a nossa lógica, a nosso 'belo', a nosso 'bom', a nosso 'verdadeiro' poderia ser perfeito em um sentido superior ao que é nosso próprio ideal" .U "Portanto, as coisas que até agora foram tidas como o que havia de mais elevado: como a 'verdade', o 'bem' , o 'racional', o 'belo' se revelam como casos particulares das potências opostas - eu denuncio essa monstruosa falsificação da perspectiva pela qual a figura homem consegue se impor. "12 Percebendo a problemática de uma filosofia intrinsecamente metafísica e moral como consti­ tuindo o âmago do niilismo, a filosofia de Nietzsche é, antes de tudo, uma luta contra a filosofia, ou melhor, contra o pla­ tonismo da filosofia - o que significa para ele a mesma coisa - a partir da qual a perspectiva trágica, dionisíaca critica os valores metafísicos, morais, epistemológicos que vigoram na modernidade. 86

Nietzsche e a verdade

Se, como interpreta Nietzsche, o platonismo é a doutrina dos dois mundos, em que o mundo sensível e mutante é o mundo da aparência e o mundo supra-sensível e imutável o mundo verdadeiro, a refutação do platonismo assume no dis­ curso nietzschiano pelo menos duas posições estratégicas: tanto inverter quanto superar a oposição de valores por ele criada;13 tanto afirmar que o mundo sensível é o mundo verdadeiro e o supra-sensível o mundo aparente, quanto se insurgir contra a dicotomia de dois mundos e a oposição metafísica entre a verdade - identificada ao bem e à beleza - e a aparência. O mais importante porém é que, em qualquer um dos casos, a característica fundamental do projeto de transvaloração é opor aos valores superiores, e mesmo à negação desses valores, 14 a vida como condição do valor, propondo a criação de novos valores, que sejam os valores da vida, ou melhor, propondo a criação de novas possibilidades de vida. Não haverá contradição em querer julgar os juízos de va­ lor sobre a vida a partir da vida considerada como critério de valor? Pode-se sentir a dificuldade em que Nietzsche se encon­ trava ao propor uma transvaloração de todos os valores: como realizar uma crítica dos valores a tal ponto radical que fosse capaz de escapar dos valores niilistas da sociedade em que vivia, que não permanecesse no bojo daquilo que justamente pretendia criticar? Essa é uma motivação essencial de sua filo­ sofia, capaz inclusive de esclarecer as variações por que pas­ sou, as contradições que não temeu, sempre em direção a uma postura de cada vez maior radicalidade .15 Se a crítica diz res­ peito a todos os valores prevalentes, uma das saídas que jus­ tamente se ofereciam a Nietzsche era inverter a hierarquia de valores instaurada pelo niilismo como modo de escapar da desvalorização que ele representa. Pode-se assim compreender que a genealogia oponha o helenismo ao cristianismo, Roma à Judéia, o Renascimento à Reforma; ou que denuncie a moral - essência do niilismo, valor superior a partir de que tudo é julgado - como imoral, o bem como mal, o verdadeiro como falso. "Não poderíamos virar de cabeça para baixo todos os valores? e o bem não seria o mal? e Deus uma pura e simples 87

Roberto Machado

invenção, uma astúcia do diabo? Em suma, não é possível que, no fundo, tudo seja falso? E, se somos enganados, não somos por isso mesmo também enganadores? Não somos obrigados a sê-lo? - tais são os pensamentos que seduzem e conduzem (o espírito livre) sempre mais longe, sempre mais à parte" . 1 6

Não h á dúvida de que a superação d o niilismo é a pos­ tura radical que significa dizer um sim dionisíaco a tudo que foi negado, desvalorizado até então, mostrando que todo esse outro lado não apenas é necessário, mas até mesmo desejável; não há dúvida de que a transvaloração �ignifica uma desvalori­ zação dos valores dominantes na filosofia e uma valorização dos valores subordinados. Mas ela é muito mais do que isso; ou melhor, isso é apenas um de seus aspectos. Quando Nietzs­ che se propõe a valorizar os valores que foram historicamente negados pelo niilismo não é apenas, nem fundamentalmente, para mudar os valores de lugar, para substituir valores e por­ tanto conservar o lugar. Tirar os valores morais do lugar de valores supremos, que dominam e dão sentido a todos os va­ lores, só será possível destruindo este lugar que foi instituído pela própria moral. O que implica necessariamente mudar o elemento de onde se originam os valores, o princípio de ava­ liação, a própria maneira de ser de quem avalia. Eis por que a filosofia dos valores é na verdade uma filosofia da avalia_ção: o mais importante da

démarche

é o fato de tematizar os valores

a partir do que está na base de toda avaliação; é o fato de remeter as apreciações de valor à vida ou à vontade de potên­ cia. A vontade de potência é sempre o elemento básico, "o fato mais elementar" que determina a reflexão nietzschiana so­ bre os valores. "Nossa inteligência, nossa vontade como nossas sensações dependem de nossos

juízos de valor.

estes respon­

dem a nossos instintos e a suas condições de existência. Nos­ sos instintos são redutíveis à

vontade de potência.

A vontade

de potência é o fato último, o termo final a que podemos chegar. "17 Se, como foi visto, o homem é uma multiplicidade de vontades de potência, cada uma com uma multiplicidade de for­ mas e meios de expressão, que relação existe entre niilismo e

88

Nietzsche e a verdade

vontade de potência? O niilismo, a criação de valores morais,

de valores considerados superiores é a expressão de um tipo específico de vontade de potência: uma vontade negativa de potência. "[...] eu descobri que todos os juízos supremos de

valor, todos que dominam a humanidade, pelo menos a hu­ manidade domesticada, podem ser reduzidos a juízos de homens esgotados."18 E o que significa o projeto de transvaloração de todos os valores? Significa a mudança do princípio de ava­ liação e, por conseguinte, a vitória da vontade afirmativa de potência, da superabundância de vida, sobre os valores domi­ nantes do niilismo.

É

neste sentido que Nietzsche opõe a vida,

a vontade de potência, ao niilismo, como nesse texto de

Anticristo: "A

O

vida é, para mim, instinto de crescimento, de

duração, de acúmulo de forças, de potência: onde falta a von­ tade de potência, há declínio. E eu afirmo que esta vontade

faz falta

a todos os valores superiores da humanidade

-

é

que, sob os nomes mais santos, reinam sem restrição valores de decadência, valores niilistas."19 Evidencia-se, assim, o sentido deste "contra-movimento"20

que é a transvaloração: ele segue uma trajetória vertiCal que vai dos valores à avaliação e da avaliação à força de quem avalia. A questão do valor é, em última instância, a questão

das condições de intensificação ou conservação, de aumento ou diminuição da vida. 21

Notas 1. Cf. C.I., "O que devo aos antigos", § 5. 2. H.D.H., prefácio, § 1; Cf. G.C., prefácio, § 2. 3. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [103). 4. Cf. Z, I, "De mil e de um alvos" . S. Cf. G.M, prefácio, § 5.

6. Cf. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [41 11. 7. Frag. Post., outono de 1887, 10 [1671; novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [87). 8. Frag. Post., outono de 1887, 10 [194).

89

Roberto Machado

9. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [201. 10. Frag. Post., primavera - verão de 1888 , 16 [401. 1 1 . Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [361. 12. Frag. Post., outono de 1885, 43 [11; a. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [3091. 13. "LI 'o mundo verdadeiro e o mundo aparente - eu reduzo esta anti­ nomia a relações de valor." Frag. Post., outono de 1887, 9 [381. 14. "[ . . . 1 o valor, o sentido, a esfera dos valores eram sólidos, incondicionais, eternos, sendo identificados com Deus [ . . .), transferiu-se o advento do 'REI­ NO DE DEÚS' no futuro, sobre a terra, no humano - mas no fundo se manteve a crença no antigo ideal." Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [2261. 15. Sem dar valor ao caráter sistemático do pensamento, como testemunha sua predileção pelo aforismo e pela poesia, Nietzsche nunca pretendeu ela­ borar urna visão global do mundo. "Profunda repugnância em repousar de urna vez por todas em alguma visão global do mundo; charme da maneira oposta de pensar; não perder o estímulo do caráter enigmático." (Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1551.) "Desconfiamos de todos os homens de sistema, os evitamos com cuidado - a vontade de sistema é, ao menos para nós, pensadores, algo que compromete, urna forma de imorali­ dade." (Frag. Post, primavera de 1888, 15 [1 181; cf. outono de 1887, 9 [881; julho-agosto de 1888, 18 [41; C./., "Máximas e flechas", § 26.) 16. H.D.H, prefácio, § 3. 17. Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [611; cf. também, por exemplo, Frag. Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 1961; primavera de 1888, 14 [791. 18. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [131; cf. ibid., 14 [1371. 19. AC, § 6. 20. Cf. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [41 11. 21. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 9 [381 e 9 [391.

90

2 O conhecimento e a perspectiva da potência

E

ssa problemática da avaliação, dos juízos de valor, do conhecimento - pois é dele no fundo que se trata - pode ser aprofundada através de uma "fisiologia da potência", para usar uma expressão que Nietzsche algumas vezes utiliza, 1 que tem como objeto principal os instintos, os impulsos, as pul­ sões, as impulsões, termos que utilizo como sinônimos.2 Fundamentalmente o instinto é uma força: "Urna quanti­ dade determinada de força corresponde a uma mesma quanti­ dade de instinto, de vontade, de atividade - melhor ainda, nada mais é do que precisamente este instinto, esta vontade, esta atividade."3 O instinto é força, vontade, atividade; e pode­ se aumentar essa lista de sinônimos da terminologia nietzs­ chiana acrescentando potência, energia, intensidade. . . Entre­ tanto, rigorosamente, o instinto não existe; o que há são instintos múltiplos e heterogêneos. Eles formam um conjunto de forças em que uma força está sempre em relação com outra força, se exerce sempre sobre outra; uma relação que se dá em termos de luta, de imposição, de domínio. Além disso, existe uma diferença qualitativa entre os ins­ tintos. Enquanto alguns, como por exemplo os "instintos estéti­ cos", são considerados fundamentais ou primordiais, outros, como é o caso dos "instintos morais", são secundários. Dife­ rença qualitativa que implica seja hierarquia entre eles, quando se trata de uma vida afirmativa, seja, no caso contrário, anar­ quia, quando os instintos fundamentais não mais dominam. É o que afirma Nietzsche reduzindo o conceito de vontade ao de instinto: "A multiplicidade e a desagregação dos instintos, a falta de um sistema que os coordene produz uma 'vontade­ fraca'; sua coordenação sob a predominância de um deles pro­ duz a 'vontade-forte' - no primeiro caso há oscilação e falta 91

Roberto Machado

de centro de gravidade; no segundo, preCisao e clareza de direção" .4 E quando se pensa no texto de

Crepúsculo dos ídolos

que interpreta a decadência de Sócrates pela anarquia dos instin­ tos e pela hipertrofia do lógico, 5 logo se compreende que para __

Nietzsche a razão não é a luz que controla instintos cegos; o domínio- dos instintos se dá no nível dos próprios instintos; são eles que exercem sobre o conjunto uma ação reguladora. Valorizando ós instintos, a "fisiologia" de Nietzsche é uma posição estratégica contra as definições do homt;Jll pela cons­ éiência, ou pela racionalidade. Uma das motivações principais de sua reflexão é a crítica ao primado ou

à superestima da

consciência. Crítica que se realiza com uma violência avas­ satadora. A consciência não é o grau superior da evolução orgânica, não é o critério, o valor nem o objetivo supremo da vida; é um órgão, "como o estômago" ; apenas um meio, um instrumento, entre outros, subordinado ao objetivo da vida que 6 é extensão e intensificação da potência. A consciência não faz parte das condições mais fundamentais da existência individual; só existe em função da necessidade de comunicação, é um meio de comunicação desenvolvido na relação com o mundo exterior; sua natureza é comunitária e gregária.7 Tendo-se de­ senvolvido tardiamente, a consciência é menos completa, me­ nos perfeita, menos forte do que os instintos; é mesmo um estado freqüentemente doentio.8 Enfim, enquanto a consciên­ cia, além de ser superficial, é o "órgão mais miserável e mais sujeito ao erro? os instintos são profundos: inconscientes, mais fundamentais e certeiros.

É

a essa crítica da consciência - crítica que ousa até

negar a existência da consciência, considerando-a uma ficção inutilizáveP0 - que corresponde no discurso nietzschiano o elogio da "animalidade" , dos sentidos, do corpo. O homem não constitui um progresso com relação ao animal; 1 1 e por que temer nossa animalidade e nos definir pela razão, se a afir­ mação do animal no homem é "a forma triunfante do inte­ lecto ''?12 Não seria isso sinal de fraqueza? Do mesmo modo, a força dos sentidos é o que existe de mais essencial em um homem completo, realizado. Os sentidos não nos enganam:

92



Nietzsche e a verdade

a 'razão' que é a causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos. Mostrando o devir, o perecer, a mudança, os sentidos não mentem" .13 Contra a desclassificação dos sentidos, sua "es­ piritualização" . 14 Assim, também, o corpo, considerado como um conjunto de instintos em relação, é um fenômeno mais surpreendente, mais importante, mais cognoscível do que a consciência. "Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor estabelecida do que a crença no espírito."15 Que sentido tem essa valorização da animalidade, dos senti­ dos ou do corpo, realizada pela "fisiologia da potência" em detri­ mento da consciência, senão a afirmação de que a perspectiva da vida é fundamentalmente a perspectiva dos instintos, isto é, de um sistema hierarquizado de forças em relação? Por conseguinte, a consciência não pode ser erigida em mestre dos instintos: ela nem é mais fundamental do que eles, nem é uma força capaz de controlá-los. Privilegiar a consciên­ cia, subordinar-lhe os instintos, é a característica da decadên­ cia. "Vejo nos filósofos gregos um declínio dos instintos. senão eles não teriam podido se perder a ponto de supor o estado consciente como o mais precioso."16 Neste sentido, a história da civilização tem sido a história da debilitação progressiva dos instintos fundamentais. E se uma civilização se define pela for­ ça, pela qualidade dos instintos, é a valorização dos instintos fundamentais, sua posição no topo da hierarquia da vida, que pode instaurar um tipo alternativo de civilização.17 Do início ao fim da reflexão nietzschiana essa idéia está presente. É assim que O nascimento da tragédia denuncia a criação socrática da razão, ou o domínio do "instinto lógico"18 sobre os instintos artísticos, propondo o renascimento da ex­ periência trágica e "Sócrates e a Tragédia" critica a relação necessária entre saber, virtude e felicidade.19 Ainda em Crepús­ culo dos ídolos Nietzsche se insurge contra a equação socrática virtude felicidade - que instaura a luz diurna da razão razão contra a pretensa obscuridade dos instintos - opondo­ lhe a relação mais fundamental característica de uma civili=

=

93

Roberto Machado

zação trágica, dionisíaca: felicidade instinto. "Ter que com­ bater os instintos - essa é a fórmula da ' décadance': enquan­ to a vida é ascendente felicidade é igual a instinto. "20 =

Esse privilégio dos instintos como ponto de partida e cri­ tério último da análise tem um papel tão importante na re­ flexão nietzschiana sobre o conhecimento que se pode afirmar que a teoria do1 conhecimento é substituída por uma teoria da perspectiva dos instintos; teoria que, de modo geral, afirma o perspectivismo do conhecimento negando o seu caráter uni­ versal, objetivo e desinteressado. Conhecer não é explicar; é interpretar}! Mas é uma in­ genuidade pensar que uma única interpretação do mundo seja legítima. Não há interpretação justa;22 não há um único sen­ tido. A vida implica uma infinidade de interpretações, todas das realizadas de uma perspectiva particular. Posição que tem a vantagem de reconhecer que "hoje estamos longe da imo­ déstia de decretar a partir de nosso ângulo que só são válidas as perspectivas a partir desse ângulo". 23 O que também implica a coragem de assumir que não há verdade universal e que não tem sentido procurar estar de acordo com a maioria: "meu juízo é meu juízo e não admito que um outro a ele tenha direito."24 Se não existe uma única interpretação, se o conhecimento é perspectiva e as perspectivas são inúmeras é porque para Nietzsche o conhecimento não tem por objetivo atingir uma verdade, não tem nenhuma afinidade com o mundo. O motivo é que simplesmente não há nada a ser interpretado; não há nada a ser conhecido. "Contra o positivismo, que permanece no nível do fenômeno, 'só existem fatos', eu objetaria: não, justamente não existem fatos, mas apenas interpretações."25 Mes­ mo as leis da natureza- são interpretações a. que não corres­ pende nenhuma realidade. E se o conhecimento não tem ob-:- ­ jetividade não é por uma falta, por uma deficiência. É q_ue _o seu objetivo não é procurar o sentido das coisas, mas intro­ duzir, impor um sentido. 26 Somos nós que damos valor ao mun94

Nietzsche e a verdade

do. "Os pensamentos são ações. '>27 Interpretar é se tornar mes­ tre de alguma coisa: dar forma, estruturar, dominar. Mas a crítica da universalidade e da objetividade do conhe­ cimento remete, como sempre, ao aspecto mais fundamental da análise; é uma conseqüência da afirmação de uma relação intríseca do conhecimento com uma outra ordem, mais ele­ mentar, de fenômenos. O conhecimento não é "imaculado" : não se realiza libertando-se dos afetos, dos desejos, das pai­ xões, das emoções, da vontade; na base do conhecimento se encontra a perspectiva da vida definida como vontade de po­ tência, conceito que quando é produzido é, em geral, assimi­ lado ao de instinto. "Só há visão perspectiva, só há 'conheci­ mento' perspectivo; e quanto mais deixamos os sentimentos entrarem em consideração a respeito de alguma coisa, quanto mais sabemos incorporar novos olhos, olhos diferentes para essa coisa, mais nosso 'conceito' desta coisa, nossa 'objetivi­ dade' será completa. Eliminar a vontade, afastar todos os senti­ mentos sem exceção, supondo que isso fosse possível, não seria castrar o intelecto?"28 O conhecimento não é neutro, desinteressado, pois tem nos instintos suas raízes ocultas, inconscientes. Afirmar que o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, em­ bora tenha com eles uma relação imanente, é salientar a na­ tureza desta relação. Pode-se dizer, utilizando alguns termos de Nietzsche, que o estatuto do conhecimento é de "sintoma", "signo", "linguagem simbólica", "expressão" . . .29 O que carac­ teriza o conhecimento é estar em relação expressiva com um elemento considerado por Nietzsche como tão real quanto o mundo "material": o mundo dos instintos, dos apetites, das paixões, dos afetos, dos desejos, ou, para utiHzar o conceito fundamental, a vontade de potência.30 À questão "quem inter­ preta?" só existe, em última instância, uma resposta: a vontade de potência.31

É indispensável porém explicitar um último ponto: um determinado conhecimento não é a expressão de um único instinto; é o resultado de uma relação entre instintos, mais 95

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especificamente, da relação de luta e compromisso entre uma pluralidade de forças instintivas inconscientes. O que se en­ contra na origem do conhecimento é um combate incessante de forças, em que cada uma procura afirmar sua própria pers­ pectiva em detrimento de todas as outras. "Cada instinto é uma determinada necessidade de dominação, cada um possui sua perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os outros. "32 Essa apreciação perspectiva de cada instinto é "en­ travada" ou "f;vorecida" por cada um dos outros, 33 desse con­ flito nascendo um estado provisório de compromisso. O conhe­ cimento é o efeito ou o resultado dessa relação específica e momentânea de instintos em luta; é a expressão, não de uma força determinada, mas de uma situação global, do estado ge­ ral das forças e, portanto, tanto das forças dominantes quanto das forças dominadas. 34 Vale a pena citar, para concluir essa análise, o importante § 333 de A gaia ciência que enuncia claramente em que con­ siste, ou como se processa, a relação entre o conhecimento e os instintos, indicando os principais elementos dessa teoria da perspectiva da potência: "Que significa conhecetf - Non ri­ dere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! diz Espinosa do modo simples e sublime que lhe é próprio. Entretanto, o que é, no fundo, este intelligere senão a própria forma em que os três outros logo se tornam sensíveis para nós? Um resultado desses diferentes e contraditórios instintos que são as vontades de rir, de deplorar e de detestar? Antes que um ato de conhe­ cimento fosse possível, foi necessário que cada um desses ins­ tintos manifestasse previamente sua opinião parcial sobre o objeto ou acontecimento; posteriormente se produziu o con­ flito entre essas parcialidades e, a partir daí, às vezes um estado intermediário, um apaziguamento, uma concessão mútua en­ tre os três instintos, uma espécie de eqüidade e de pacto entre eles: pois, devido à eqüidade e ao pacto, esses três instintos podem se afirmar na existência e ter mutuamente razão. Nós que só tomamos consciência das últimas cenas de conciliação 1 dos últimos acertos de contas deste longo processo, pensamos 96

1,

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por isso que intelligere consistiria em algo de conciliador, de justo, de bom, algo de essencialmente oposto aos instintos: enquanto só se trata de um determinado comportamento dos instintos entre eles. "

Notas L Cf. Frag Post , outono de 1885 - outono de 1886, 2 [761, 2 [82]; verão de

1886 - outono de 1887, 5 [50]. 2. De modo geral, Nietzsche não faz diferença entre os termos Instinkt, de origem latina, e Trieb, de origem propriamente germânica, utilizando-os co­ mo equivalentes e formando a partir deles outros termos ou expressões compostos. Eis alguns exemplos que dizem respeito mais diretamente ao terna desse estudo: Kunsttrieb, Grnndtrieb, Wissenstrieb, Wabrbeitstrieb, Erkenntnistrieb, logiscber Trieb, dionysiscbe Triebe, metapbysiscber Trieb, in­ tellektueller Trieb, Trieb zur Wabrbeit, Trieb nacb Erkenntnis und Wabrbeit, Trieb nacb Glauben an die Wabrbeit, Instinkt der Freibeit, Instinkt der Wis­ senscbaft, décadence-/nstinkt, künstleriscbe Instinkte.

3. G.M., I, § 13. 4. Frag Post. , primavera de 1888, 14 [219]. 5. Cf. C/., "O problema de Sócrates", § 4. 6. Cf. Frag Post. , outono de 1887, 10 [137]; novembro de 1887 - março de 1888, 1 J [74] e 1 1 [83]. 7. Cf. G.C, § 354; Frag Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [145]. 8. Cf. G.C, § 1 1 ; AC, § 14; Frag Post. , primavera de 1888, 14 [128]. 9. G.M, II, § 16; Cf. Frag Post , primavera de 1884, 26 [41]; outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [20]; final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9]. 10. "Nem existe 'espírito', nem razão, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade: são ficções inutilizáveis". Frag Post., primavera de 1888, 14 [1 22]. 1 1 . Cf. Frag Post., primavera de 1888, 15 [8]. 12. Frag. Post., outono de 1887, 10 [21]. 13. C/., "A 'razão' na filosofia", § 2; cf. Frag. Post., verão de 1886 - outono de 1887, 5 [34]; outono de 1887, 9 [60]; primavera de 1888, 14 [134]. 14. Cf. Frag. Post., junho-julho de 1885, 37 [12]. 1 5 . Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [15]; cf. junho-julho de 1885, 39 [18]; verão de 1886 - outono de 1887, 5 [56]. 16. Frag Post., primavera de 1888, 14 [131].

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17. "Objetivo: a santificação das forças mais potentes, mais temíveis e mais desacreditadas, ou, para retornar urna velha imagem: a divinização do di­ abo." Frag. Post. , outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [4). 18. N. T, § 13. 19. "Sócrates e a tragédia", in Escritos póstumos, ed. ai. , t. I, p. 547; tr. fr., t. I, 2, p. 44.

v.

20. C.!., "O problema de Sócrates", § 1 1 ; cf. Ibid., § 4, § 10; cf. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [92), 14 [941, 14 [ 1 1 1). 21. Cf. Frag. Post. .._outono de 1885 - outono de 1886, 2 [86). 22. Cf. Frag. Post., ibid., [120), 1 [1 281. 23. G.C., § 374. 24. B.M., § 43; cf. Frag. Post., abril-junho de 1885, 34 [ 134), 34 [156); junho­ julho de 1885, 37 [2). 25. Frag. Post. , final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60). 26. Cf. Frag. Post, verão de 1886 - outono de 1887, 6 [15); outono de 1887, 9 [48). 27. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [16). 28. G.M., III, § 12. Daí Nietzsche ter várias vezes declarado não só ignorar o que possam ser puramente problemas intelectuais como também haver colo­ cado em seus escritos toda sua vida e toda sua pessoa. 29. Cf., por exemplo, Frag. Post. , outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [28), 1 [301, 1 [591, 1 [61), 1 [751; outono de 1885 - primavera de 1886, 2 [190). 30. "Se nada nos é 'dado' como real a não ser nosso mundo de apetites e paixões, se não podemos nem descer nem subir para outra realidade a não ser a de nossos instintos - pois o pensamento é apenas a relação mútua entre esses instintos -, não é possível perguntar se este dado também não basta para compreender, a partir do que a ele se assemelha, o mundo dito mecânico (ou 'material')?" B.M., § 36. 3 1 . Cf., por exemplo, Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [148), 2 [290); final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60). 32. Frag. Post. , final de 1886 - primavera de 1887, 7 [60); cf. primavera de 1888, 14 [ 184). 33. Cf. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [58). 34. Cf. ibid. , 1 [61).

98

3 As estratégias da crítica da verdade

A

explicitação do projeto de transvaloração dos valo­ res e do perspectivismo do conhecimento em sua relação com a questão da potência possibilita compreender em toda sua · radicalidade a crítica nietzschiana da verdade. Retomarei, por= tanto, para concluir este estudo, a questão da oposição me­ tafísica de valores - fio condutor da relação entre a ciência, a arte e a moral - com um duplo objetivo: assinalar as princi­ pais transformações conceituais por que passa a análise, para, em seguida, ressaltar os elementos comuns, ou a homogenei­ dade mais fundamental, da crítica da verdade como valor supe­ rior que é o alvo mais permanente da ftlosofia de Nietzsche, o postulado contra o qual se insurge do primeiro ao último escrito. No início de sua reflexão filosófica, em O nascimento da tragédia e nos textos que lhe servem de preparação, a questão da verdade é basicamente a crítica da ilusão metafísica da ra­ zão, isto é, da crença de que o pensamento é capaz de conhe-cera ser e corrigi-lo; a crítica do "instinto da ciência"1 a partir da arte trágica considerada como atividade metafísica. A "me­ tafísica de artista" explicitada em O nascimento da tragédia, que Níêtzsclle--censidera como a substância do livro e reivin­ dica como sua propriedade exclusiva, 2 é uma denúncia da me­ tafísica conceitual como ilusória através da idéia de que só a arte é capaz de dar conta dos problemas filosóficos fundamen­ tais. A "natureza", o "mundo" , o "ser" não podem ser conheci­ dos, como pretende a filosofia socrático-platônica, através da separação entre essência e aparência. Problemática que, neste momento, levará Nietzsche inclusive a celebrar Kant e Scho­ penhauer como filósofos que assinalam um renascimento do trágico e a utilizá-los como instrumentos na crítica da razão e da ciência: "Por um prodígio de coragem e sabedoria, Kant e 99

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Schopenhauer alcançaram a mais difícil das vitórias, a vitória contra o otimismo na essência da lógica que está na base de nossa civilização. Enquanto esse otimismo, apoiando-se em ae­ ternae veritates que imaginava indubitáveis, acreditava ser pos­ sível conhecer e elucidar todos os enigmas do universo, e tratava o espaço, o tempo e a causalidade como leis absolutamente incondicionadas e possuindo uma validade universal, Kant re­ velou como elas só serviam para erigir o simples fenômeno, a obra de Maia, à posição de única e suprema realidade, a colocá­ lo no lugar da essência íntima e verdadeira das coisas e, por isso, a tornar impossível o conhecimento efetivo, ou, para re­ tomar uma palavra de Schopenhauer, a adormecer mais pro­ fundamente o sonhador. Esta descoberta inaugura uma civili­ zação que eu ousaria qualificar de trágica."3 Concebendo os dois instintos fundamentais da natureza, o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente como aparência e essência, a importância da reflexão filosófica de Nietzsche nes­ te momento se evidencia na tese que a arte trágica possibilita uma experiência estética do mundo de onde está totalmente ausente a oposição metafísica de valores: na tragédia Apolo atrai a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência;4 Dioniso fala a linguagem de Apolo; Apolo, a linguagem de Dio­ niso. A "hipótese metafísica" formulada por Nietzsche é que o ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência; que a ver­ dade tem um desejo originário de aparência; que "a vontade queria se ver transfigurada em obra de arte".5 Pensando a arte trágica como uma transfiguração metafísica em que só a beleza possibilita uma aproximação da verdade, Nietzsche está, 'ao mesmo tempo, afirmando que a racionalidade filosófico-cien­ tífica nunca poderá dar conta desta verdade dionisíaca que é desmesura trágica. Se, portanto, há antagonismo entre arte e ciência é porque enquanto a ciência pretende chegar à ver­ dade desprezando a aparência, a ilusão, a arte trágica tem na ilusão a única via de acesso possível à verdade. É por isso que a arte é metafísica. A "metafísica de artista" tem porém curta duração no pen­ samento de Nietzsche. Quando se consideram os textos ime100

Nietzsche e a verdade

diatamente posteriores a O nascimento da tragédia e os escri­ tos que lhe servem de preparação, nota-se que a crítica da metafísica - que sempre se constituirá como um objetivo ftm­ damental do projeto nietzschiano - não mais exige que seja oposta à racionalidade uma dimensão metafísica da arte. A crítica da verdade científica, racional, conceitual não implica mais a afirmação de uma verdade fundamental, originária, dio­ nisíaca; a denúncia da verdade socrática não exige mais o pos­ tulado de uma verdade dionisíaca, mesmo que seja para afirmar que a experiência estética que dela se pode ter está intrinse­ camente ligada à aparência. O pensamento de Nietzsche se radicaliza em direção da aparência, da ilusão, da superfície. É assim, por exemplo, que o objetivo de "Verdade e men­ tira no sentido extramoral" é negar a universalidade e a ob­ jetividade do conhecimento estabelecendo que seu efeito espe­ cífico é a ilusão, a dissimulação, o disfarce. Não existe instinto de conhecimento no sentido de uma inclinação natural para a verdade, de um amor à verdade . .-G-qye se chama verdade_é u_!lliLobrigação que a sociedade impõe como condição de sua Qrópria existência: uma obrigação moral de mentir segundo uma corrvenção estabelecida. É porque o homem esquece essa obrigação que foi instituída socialmente, é porque mente in­ conscientemente que imagina a existência de um instinto de verdade. Verdades são ilusões que foram esquecidas como tais. Atrás da suposição de possuir um conhecimento do real existe, portanto, uma convenção social que oculta as diferenças ao identi­ ficar o não-idêntico através do conceito. O homem supõe possuir a verdade, mas o que faz é produzir metáforas que de modo algum correspondem ao real: são transposições, substituições, figurações.6 Ao "homem racional", conceitual, Nietzsche opõe o "homem intuitivo", metafórico - o artista, o criador, o "herói transbordante de alegria" - em quem o intelecto, mestre da dissimulação, se liberta da obrigação de verdade e "pode en­ ganar sem prejudicar" _7 Ao conhecimento como adequação, Nietzsche opõe a arte como criação, como transfiguração. A grande diferença dos "estudos teoréticos" que deveriam constituir O livro do filósofo com relação à problemática de O ·

·�·.

j .

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nascimento da tragédia é o desaparecimento da concepção de uma metafísica de artista capaz de superar a oposição me­ tafísica essência-aparência pela união artística do dionisíaco e do apolíneo na tragédia. O que é importante agora na crítica do conhecimento e da verdade é ressaltar o "antropomorfis­ mo" que os caracteriza. O conhecimento é antropomórfico: -não provém da "essência das coisas" , não se pode dizer que cor­ responda à essência das coisas; a verdade é antropomórfica: "não contém nenhum ponto que seja 'verdadeiro em si', real e válido universalmente, independentemente do homem". 8 Existe porém uma importante diferença entre esses textos e os escritos que caracterizam a análise propriamente genea­ lógica realizada posteriormente: é o desaparecimento de toda consideração sobre a essência, que neste momento ainda está presente na argumentação, mesmo que seja apenas para afir­ mar o caráter antropomórfico do conhecimento. Uma das gra_l}­ des inflexões da trajetória de Nietzsche será o abandono do conceito de mundo como "coisa em si", que permanece totalmente incognoscível, que nunca é captado pela linguagem e a que nenhum conhecimento corresponde. A radicalização de seu pensamento se fará no sentido de uma rejeição tanto da "coisa em si" quanto do "fenômeno".9 O mundo não é or­ gânico, nem mecânico; o mundo não tem leis, não tem finali­ dade. "Em compensação, o caráter do conjunto do mundo é, de toda eternidade, o caos, em virtude não da ausência de necessidade, mas da ausência de ordem, de articulação, de forma, de beleza, de sabedoria e quaisquer que sejam nossas humanas categorias estéticas" como diz A gaia ciência.10 E seu pensamento ainda se torna mais claro se se leva em conside­ ração que para ele é o juízo moral que se encontra por trás da idéia de ordem do mundo: é um preconceito moral pensar que "a ordem, a clareza, tudo o que é sistemático seja necessaria­ mente inerente à essência verdadeira das coisas; e que inver­ samente o que é desordenado, caótico, imprevisível, só apa­ reça no seio de um mundo de falsidade ou reconhecido como inacabado - em suma, seja um erro" .U O mundo é caótico, 102

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desorganizado, informe e, ao mesmo tempo, informulável, to­ talmente heterogêneo ao conhecimento: não existe para ser conhecido e sobre ele o conhecimento não pode enuociar_ leis que não existem. O que abole qualquer idéia de falta ou de deficiência, na medida em que o objetivo do conhecimento não é possuir a verdade. O conhecimento nada tem a descobrir; ele tem é que inventar. A vontade de verdade traduz uma impotência da yon­ tade de criar. 12 Procurar descobrir valores que tenham uma existência em si é uma atitude desesperada do decadente, é um desejo de segurança do fraco - é a manifestação dos instintos de conservação. O que expressa a vontade afirmativa de potência é a criação de valores. "Fomos nós que criamos o mundo que tem valor! Reconhecendo isso já reconhecemos também que o respeito que temos pela verdade é a conse­

qüência de uma ilusão."13 Ao criador não interessa reproduzir, mas produzir o real. Essa problemática da criação remete diretamente à apologia da art�: criticar a vontade de verdade como vontade negativa de potência significa valorizar ou revalorizar os instintos artísticos como condição da criação de novos tipos de vida, de novas condições de existência. O artista é aquele que dá forma, deter­ mina valor, se apossa.14 Se a arte é o que torna a vida possível, é o grande estimulante da vida, a grande sedutora, e mesmo a força superior capaz de se contrapor à vontade de negação da vida15, isso se deve a seu poder criador, transfigurador. A crítica da vontade de verdade e o elogio da invenção, da criação, não se reduzem contudo a uma apologia da arte como atividade específica. Um dos projetos mais ambiciosos de Nietzsche é impregnar o pensamento e a atividade do ho­ mem de experiência dionisíaca, o que significa 'necessariamen­ te assumir uma postura artística diante da vida ou, em outras palavras, considerar a arte trágica como modelo de um pen­ samento e uma atividade que, não mais dominados pela von­ tade de saber, expressem uma vontade afirmativa de potência. O "espírito livre" é aquele que reinventa o real, que transfigura

J.jf .

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a vida. "Também no conhecimento, sinto apenas a volúpia de minha vontade de procriar e devir; e se existe uma inocência em meu saber, é que há nele vontade de procriar."16 Postura ativa, positiva, afirmativa diante da vida que leva Nietzsche, com o objetivo de ressaltar a importância que ele lhe dá, até mesmo a definir a verdade como processo de criação e von­ tade afirmativa de potência: "Assim, a verdade não é alguma coisa que existiria para ser encontrada e descoberta - mas alguma coisa que deve ser criada e que dá nome a um proces­ so, mais ainda, a uma vontade de ultrapassar que não tem fim: introduzir verdade como processus in infinitum, determinação ativa e não como devir consciente de algo seria 'em si' firme e determinado. Nome próprio da 'vontade'."17 É preciso entretanto não se deixar enganar por um texto como este. Efetivamente, Nietzsche várias vezes fala em nome da verdade, como é fácil notar até em obras do último ano como O Anticristo e Ecce homo. Isso não significa que a crítica nietzschiana da verdade seja realizada a partir de uma verdade mais verdadeira. Questionar a verdade do conhecimento não implica necessariamente querer formular - nem que seja ine­ vitável formular - um discurso sobre a verdade da verdade. Negando o privilégio da verdade, a filosofia de Nietzsche não poderia reivindicar para si própria a verdade - mesmo que fosse outra ou superior - sob penil de diminuir a radicalidade de sua crítica. Mesmo quando utiliza o termo verdade - como no texto citado -, o lugar de onde pretende considerar o conhecimento e criticá-lo não é mais o lugar da verdade, mas o da vontade de potência. O que é fundamental na posição em que se situa - e que a meu ver deve se constituir como critério para avaliar até mesmo o seu pensamento - é a di­ mensão das forças, é a perspectiva da potência. E1 considerar as forças que se manifestam no conhecimento não significa instituír a força como um novo critério de verdade. 18 Tenho procurado esclarecer esta questão desde o início desse estudo. Gostaria agora, para concluir, de explicitar a sig­ nificação das posições assumidas pela genealogia da verdade com relação à oposição metafísica de valores. 104

Nietzsche e

a verdade

De um modo geral é possível dizer que a genealogia as­ sume duas posições bem caracterizadas com relação à verdade; posições diferentes mas que, coexistindo em uma mesma época e até nos mesmos textos, não devem ser interpretadas em ter­ mos de "evolução" ou de transformação histórica de seu pen­ samento: é mais fecundo considerá-las como direções ou po­ sições estratégicas da luta incessante de Nietzsche contra o niilismo dos valores superiores. A primeira direção é expressão do procedimento de in­ ·versão tão característico de sua démarche. Contra a metafísica que postula a verdade como valor superior, a genealogia afir­ ma o maior valor ou até mesmo o único valor do termo que foi negado e considera a aparência, o erro, a ilusão, a mentira, o sonho como mais fundamentais do que a verdade. "O que é para mim a 'aparência'? Não, na verdade, o contrário de algum ser - e que posso dizer de um ser que não seja enunciar os atributos de sua aparência? Não é certamente uma máscara inerte que se poderia pôr e sem dúvida também tirar a um x desconhecido. A aparência para mim é a própria realidade ati­ va e viva. " 19 "Não coloco, portanto, a 'aparência' em oposição à realidade, ao contrário, considero que a aparência é a reali­ dade, aquela que resiste a toda transformação em um ima­ ginário 'mundo verdadeiro' . Um nome preciso para essa reali­ dade seria 'a vontade de potência' . "20 "O mundo 'aparente' é o único: o 'mundo verdadeiro' é apenas um acréscimo menti­ roso."21 A aparência não é o contrário da essência, não é uma máscara que oculta a verdadeira realidade: é a única realidade. E enquanto só a aparência é real, a verdade, o mundo ver­ dadeiro, é ilusão, mentira. Contra a oposição metafísica de va­ lores, Nietzsche afirma a existência de um dos valores e torna os valores homogêneos como formas da aparência . Tudo é erro; inclusive a verdade: "A verdade é o tipo de erro sem o que uma certa espécie de seres vivos não poderia viver. O que tem valor, do ponto de vista da vida, decide em última instância.'>22 Esse texto mostra muito bem que não se trata de erigir um novo critério de verdade ou que não há propriamente con­ tradição em questionar a verdade a partir da aparência, se se , 105

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considera o conhecimento na perspectiva da força. O que Nietz­ é que a V!ltade _Qc:__y��d� t�m � . _ de homem: o homem moral, o bom, o mtnnseca com um--trpo fraco. Contra ele�--Õpoe avo�tade- aflrmativã-de potê�o vontãde do falso, de mentira, de ilusão. A vida é o contrário da verd,ade e da bondade. Dizer sim à vida é dizer sim à men­ tira. 23 E se a vida é falsa, o ideal de verdade é urna negação da vida. Um dos grandes paradoxos da filosofia de Nietzsche é denunciar o que é tido como verdade como sendo falsidade, sem com isso assumir um conceito de verdade como norma, mas, ao contrário, afirmar que tudo é falso. Afirmar que a vida é aparência, reivindicar a positividade do falso é se insurgir contra a possibilidade de um julgamento da vida a partir de um critério de verdade; é ressaltar como a vontade absoluta de saber é um ultraje à vida. Mas é evidente que a força desta argumentação reside em seu caráter estratégico de denúncia: a criação dos valores superiores, como bem e verdade, é uma impostura moral. Se não houvesse moral não haveria sentido em valorizar urna perspectiva imoral ou falsa . E como a moral é justamente o que, segundo Nietzsche, dá sentido ao mundo, compreende-se perfeitamente a criação de "contra-noções"24 des­ se tipo como um modo de luta contra a oposição metafísica de valores. O fundamental é que a estratégia de inversão que afirma a positividade da aparência é uma maneira - mesmo que terminologicamente imprópria - de se situar para além da dicotomia de valores. É o que afirma um texto de Além do bem e do mal: "Reconhecer a não-verdade como condição da vida. é certamente uma maneira perigosa de se opor ao sentido dos valores correntes e uma filosofia que assume esses riscos já se situa, por isso mesmo, para além de bem e mal".25_�_filgsofia de Nietzsche não pode ser reduzida a um platonismo inver­ tido. Fazer a apologia da aparência já é se libertar da oposição verdade-mentira valorizando as diferenças de grau no seio da própria aparência: "Pois, afinal de contas, o que nos força a admitir que existe uma antinomia radical entre o 'verdadeiro' e o 'falso'? Não basta distinguir graus na aparência, como cores e ,

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Nietzsche e a verdade

matizes mais ou menos claros, mais ou menos sombrios 'valores' diversos, para empregar a linguagem dos pintores?"26 É sempre na arte, como testemunha esse texto, que Nietz­ sche encontra o modelo alternativo tanto para a ciência quanto para a moral. E visto que a arte, como tenho procurado mos­ trar, está sempre ligada à aparência, é por este "culto do não­ verdadeiro", por este "consentimento na aparência" que ela se situa "para além da moral". 27 É em A genealogia da moral que se encontra enunciada de maneira mais expressiva essa apolo­ gia da arte como inversão dos valores do niilismo e alternativa para a ciência e a moral porque valoriza a mentira: "A arte, em que a mentira se santifica, em que a vontade de enganar tem a boa-consciência de seu lado, se opõe ao ideal ascético bem mais fundamentalmente do que a ciência: foi isso que sentiu o instinto de Platão,

o

maior inimigo da arte que a Europa já

teve. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o total antago­ nismo; de um lado, o voluntário do 'além', o grande caluniador da vida; do outro, o seu adorador, a natureza de ouro".28 Novamente o fundamental da reflexão nietzschiana sobre a arte - ao elogiar, contra a ciência e a moral, seu caráter de ilusão, mentira, aparência - é, para além das oposições que esses termos sugerem a dimensão das forças: da superabun­ dância de forças, da intensificação da vida. "O essencial dessa teoria é a concepção da arte em suas relações com a vida: ela é, tanto fisiológica quanto psicologicamente, o grande estimu­

lante, aquilo que impele eternamente para a vida, para a eter­ na vida. "29 "O essencial da arte permanece sendo sua reali­ zação existencial que faz nascer a perfeição e a plenitude; a arte é essencialmente aprovação, bênção, divinização da ex­ istência. "30 A arte não é um narcótico; é um tõnico.31 O senti­ mento do belo é um aumento do sentimento de potência, da vontade de potência. 32 Se a arte é o grande estimulante da vida, isto é, se cria uma superabundância de forças e um senti­ mento de prazer para com a existência é porque é uma acei­ tação total da vida, sem instituir valores superiores; se a arte se opõe à ciência - possuindo mais valor do que ela - e tem profundo parentesco com a vida é porque valoriza a vida inte107

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gralmente, é porque é um sim triunfante mesmo ao que nela existe de "terrível", "problemático" e "pavoroso" . 33 Dionisíaco significa consentir na vida em sua totalidade, sem nada negar,34 ou, de modo mais explícito, é um sim ao que fortalece que tem como conseqüência um não ao que enfraquece.35 A pre­ ponderância do sim sobre o não é uma característica funda­ mental do excesso de força do dionisíaco, que " . . . pronuncia o juízo 'belo' mesmo a respeito de coisas e situações em que o instinto de impotência só saberia apreciar como odiento, como feio".36 A reflexão sobre a arte permite compreender a posição da filosofia dionisíaca com relação à questão dos valores e, mais especificamente, no que diz respeito à verdade. Se a apo­ logia da aparência é uma característica básica da filosofia de Nietzsche, ela remete sempre para algo ainda mais fundamen­ tal: a superação da dicotomia de valores que institui a aparên­ cia como valor inferior. Afinal não é ele próprio que afirma que a linguagem pode se revelar incapaz de "ultrapassar sua natureza grosseira e continuar falando de oposições onde só existem graus e sutis transições"?37 A apologia da aparência, da ilusão, da falsidade, da mentira, não é a mais radical nem a última palavra de Nietzsche. Ela ainda se situa no campo dos valores criticados, mesmo se a eles se opõe. O que Nietzsche viu de mais profundo com sua filosofia foi a necessidade de se situar para além de bem e mal e de verdade e aparência como exigência de superação da oposição metafísica de valores. A formulação mais radical do projeto de "transvaloração de todos os valores" encontra-se, sem dúvida, na etapa final da lapidar história da filosofia de Crepúsculo dos ídolos: "Elimi­ namos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez?[. . .] Mas não! ao eliminarmos o mundo verdadeiro ta� bém eliminamos o mundo aparentê."38 Seja quando reivindita a aparência como característica básica da vida ou quando exi­ ge a superação de toda oposição metafísica de valores, a força de sua filosofia reside na afirmação de que só é possível se livrar do "além" pensando e agindo "para além" . 39 108

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Eis o que é, em última instância, a filosofia trágica, dioni­ síaca: uma perspectiva para além de bem e mal e para além de verdade e erro; uma perspectiva para além da moral.

Notas 1 . N. T, § 15. 2. Cf. carta de Nietzsche a Rohde de 4 de agosto de 187 1 , in Ch. Andler, Nietzscbe, la vie et la pensée, 11, Paris, Gallimard, 1958, p. 2 1 .

3 . N. T, § 18; cf. ibid. , § 19. 4. Cf. V.D., § 2. S . V.D., § 2.

6. Para os objetivos deste estudo não é necessário desenvolver este ponto, mas convém assinalar que é a utilização da retórica como instrumento que permite a Nietzsche invalidar a pretensão de verdade da linguagem concei­ tual da filosofia e da ciência e caracterizar a linguagem como sendo origi­ nariamente trópica, figurada, ou como designando apenas relações dos ho­ mens com as coisas através de metáforas. O uso explícito da retórica como instrumento privilegiado de análise, que é bem freqüente nos textos posteri­ ores a O nascimento da tragédia até 1875, parece desaparecer da produção posterior de Nietzsche. (Cf. Philippe Lacoue-Labarthe, "Le Détour, Nietzsche et la rhétorique", in Poetique, nQ 5, 197 1 .) 7. V.M., in Escritos póstumos, ed. ai., t. I, p. 888; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 288. 8. Jbid., ed. ai. , t. I, p. 883; trad. fr, t. I, v. 1 , p. 284; cf. ed. ai., p. 880, tr. fr. , p. 282; cf. também L.F, § 37, 4 1 , 77, 78, 84, 102, 150, 1 5 1 . 9. Cf., por exemplo, Frag. Post., verão de 1886 - outono de 1887, 6 [23]; outono de 1887, 9 [91].

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10. G.C., § 109; cf. Frag. Post. , outono de 1887, 9 [89], 9 [106]. 1 1 . Frag. Post. , agosto-setembro de 1885, 40 [9]. 12. Cf. Frag. Post. , outono de 1887, 9 [60]. 13. Frag. Post. , primavera de 1884, 25 [505]; "Podeis criar um Deus? Então calai-vos de uma vez por todas a respeito de todos os deuses! Mas bem podeis criar o Super-homem." "Não mais querer, não mais avaliar, não mais criar! Ah!, sempre fique longe de mim esse grande cansaço!" Z., 11, "Nas ilhas bem-aventuradas". 14. Cf. Frag. Post. , outono de 1885 - outono de 1886, 2 [ 156]. 15. Cf. Frag. Post. , novembro de 1887 - março de 1888, 11 [415]; maio­ junho de 1888, 17 [3]. 109

Roberto Machado

16. Z, 11, "Nas ilhas bem-aventuradas"; E.H, "Asstmfalou Zaratustrd', § 8. 17. Frag. Post., outono de 1887, 9 [911. 18. Cf., por exemplo, B.M., § 22. 19. G.C., § 54. 20. Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [53]. 21. C./. "A 'razão' na filosofia", § 2. 22. Frag. Post., abril-junho de 1885, 34 [253]. 23. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [101]. 24. Cf. Frag. Post. , outubro de 1888, 23 [3] 3. 25. B.M., § 4. 26. B.M., § 34. 27. Cf. G.C., § 107. 28. G.M., III , § 25. 29. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [23]; cf. outono de 1887, 9 [1021. 30. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [47]. 31. Cf. E.H., "Humano, demasiado humano", § 3; Frag. Post., primavera de 1888, 15 [10]. 32. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 10 [167]; primavera-verão de 1888, 16 [40]; C.L, "Incursões de um intempestivo", §§ 19 e 20. 33. Cf. C.L, "Incursões ... ", § 24; Frag. Post., outono de 1887, 9 [1 19]; novem­ bro de 1887 março de 1888, 1 1 [228]. -

34. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [89]. 35. Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [13]. 36. Frag. Post., outono de 1887, 10 [168]; cf. C.!., "O que devo aos antigos", § § 4 e 5; Frag. Post., outubro-novembro de 1888, 24 [1] 9. 37. B.M., § 24. 38. C./., "Como o 'mundo verdadeiro' acabou convertendo-se em uma fá­ bula", § 6. 39. Cf. Frag. Post.,verão de 1886 - outono de 1887, 5 [6].

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