NEWTON_MORENO_-_AS_CENTENÁRIAS

June 21, 2019 | Author: Kk42b | Category: Morte, São Pedro, Jesus, Luto, Amor
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AS CENTENÁRIAS O filho da Morte

de Newton Moreno

Texto produzido para espetáculo estreado no Teatro Poeira em 06 de setembro de 2007, dirigido por Aderbal Freire Filho, com Marieta Severo, Andréa Beltrão e Sávio Moll.

Para minha mãe.

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Morte e cultura popular.  No imaginário presente na cultura popular do interior do Brasil, lendas de comunicação com o’outro lado’, os desencarnados, não faltam. Moça morta que volta para namorar, almas penadas, o coisa-ruim e suas tentações, mula-sem-cabeça. Tudo tratado com humor e respeito. Uma bufonaria sacro-profana. Quase como se amaciando a aproximação com a idéia da Morte. A primeira dama dentre as manifestações do ‘inexplicável’. Um Beckett sertanejo que traz a inexorabilidade de nosso fim, mas com diversão e picardia. Uma das situações mais comuns é a tentativa de enganar a morte quando ela vem nos buscar. Disfarces, troca de pessoas, condições ardilosas, rezas que não se acabam, vale tudo nesta astúcia popular, mas ao final, ela é soberana. Não se engana a morte para a sempre. Mas dá  para se divertir com as tentativas de passar-lhe passa r-lhe a perna. Talvez todo teatro seja um Teatro da Morte. A morte e a figura das carpideiras me acompanham em três dos meus recentes trabalhos. AGRESTE, ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO e neste AS CENTENÁRIAS. A convite de Marieta Severo e Andréa Beltrão, as carpideiras começaram a ganhar corpo e voz e assumiram o protagonismo absoluto nesta peça. Depois de conversa com as duas atrizes em março último, ficou claro que eu gostaria de escrever sobre uma grande amizade. Parece óbvio que a parceria destas duas empreendedoras dos nossos palcos me inspirou. Nesta peça, Socorro engana a Morte quando vem buscar o filho de Zaninha. Este ludibriar a dita cuja é inspirado nos vários causos da cultura popular com o mote de ENGANAR A MORTE. Todos estes contos ao fim, como veremos, falam que a morte sempre leva quem ela quer. Mas, em nosso caso, a  prova de amizade que fica pelo caminho é o grande aprendizado. Surgem então Socorro e Zaninha. Carpideiras e Centenárias. Carpideiras no Sertão do Cariri. Campo místico do interior do Nordeste. Terra de romeiros, de beatas, de procissões, de milagres, do insondável. São centenárias porque são mulheres que viveram mais que 100 anos, boa parte deles, a serviço da Morte. A peça acompanha a história de amizade entre as duas em dois planos, passado e presente. Dizem que elas nunca morrem e fizeram o pacto com a Patroa. Dizem... As choronas (um dos nomes pelo qual se conhecem as carpideiras) têm lenço imenso nas mãos, sinal das lágrimas que devem verter. “...No Brasil, ainda ainda resiste o chorar o defunto,  por pessoas ligadas por laços de parentesco ou amizade, diante do cadáver, cadáver , excitando as lágrimas da família com frases exaltadas e gesticulação inimitável e dramática. É ela,  fazendo o quarto ao defunto, guarda, sentinela, velório, a iniciadora do canto das Incelências ou Excelências, entoadas em voz sinistra e apavorante, embora de impressão inesquecível para a assistência”. (Trecho extraído de Dicionário do Folclore Brasileiro de Luiz da Câmara Cascudo, página 117, verbete Carpideira.) Sabe-se que a tradição do carpir é milenar, remonta ao Egito Antigo. O carpir também como campo do feminino, maternal, acarinhar, cuidar da morte de cada defunto como um filho. A maternidade de alguma forma é um eixo desta peça. Este ofício no Brasil respeitava códigos, traz um campo ritual e de grande teatralidade, mas encontra-se em evidente extinção.

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Personagens: Socorro – Carpideira mais experiente. Chora só o necessário. Mestre da relação. Sábia e maternal. Zaninha – Carpideira mais jovem. Desaba em rios de lágrimas. Aprendiz. Glutona e voluntariosa. Socorro, passado e presente. Zaninha, passado e presente. Pai de Zaninha  Nonato Coronel Lampião Mulher leitura da carta Viúva do Josimar e do Pereira Menina Val Velhinha Perna Torta Mulher de luto Homem no caminho A MORTE

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“Rapaz, mistério é fortaleza o mundo não é só dos homens. tem fantasma que ensina reparte a experiência assopra na orelha um conselho cochicha uma advertência.  Homem, escute sua sombra o erro é a única certeza.  A história vive da lenda. O que não se vê tem beleza,  força, ciência e esperteza. O mundo não é só dos homens.  Mistério é fortaleza”

 Newton Moreno.

AS CENTENÁRIAS Socorro e Zaninha serão interpretadas pelas mesmas atrizes no passado e no presente. Um outro ator interpreta a Mulher de Luto. As mesmas atrizes que interpretam Socorro e Zaninha revezam-se entre suas personagens no passado e a manipulação do boneco da outra, permitindo-lhes defender as outras  personagens presentes aos velórios, como Lampião, Coronel, etc... Toda a ação acontece no interior do Nordeste brasileiro. Região do Sertão do Cariri, estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba. Um caixão sempre no centro do palco.

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CENA 1  Nordeste presente Caixão vazio. Socorro entra em cena. Põe o véu negro e começa a rezar.  Zaninha entra em cena e repete a mesma ação.  Zaninha desaba em lágrimas facilmente. Socorro derruba uma única lágrima, econômica. Seguem nesta ação até terminar o canto.

Socorro e Zaninha “Lá vem uma alma Pisando no chão, Vai dizendo a outra: Ou que buracão! Esse buraco É a sepultura; Essa terra fria É a cobertura Uma incelença Que nos deu no paraíso; Adeus, irmão, adeus! Até o dia do juízo”. Mulher de luto Muito emocionante. Deix’eu enxugar o rosto. Desidratei-me toda. Toda. Que emotividade que vocês têm. Estão contratadas. Socorro e Zaninha Gradecidas. Mulher de luto Olhe, o velório começa daqui a pouco. Já, já eu trago a janta docês. Dê licença que eu vou  pegar um lenço enxuto. Socorro e Zaninha Sim, senhora.  Elas se recompõem e sentam. Mulher de luto sai.

Zaninha Eita, fome. Socorro, mulé, eu já tou palestrando com minha barriga. Ela tá falano comigo de tanta fome. Tu ouviu? Socorro Quieta. (Pausa). Zaninha, eu tô com um sentimento que Ela está por aqui. 5

Zaninha Mas Ela nunca aparece, a não ser que seja assunto sério. Da última vez que ela apareceu  para nóis, tu te alembra bem o que se assucedeu... ass ucedeu... Será que Ela adescobriu que...? q ue...? Socorro(Tapando-lhe a boca) Silêncio. Tô que só me arrepio, mulé. Num tem um pelo meu quieto no seu canto. Zaninha Eita, Socorro. Socorro Eita, Zaninha. SOCORRO Tu já pensou numa coisa, Zaninha? ZANINHA Pensei em duas: cuscuz e buchada. SOCORRO Eita, mulé, tu num tira comida da cabeça. ZANINHA Só tiro quando ela chega no bucho. SOCORRO O defunto num morreu, mulé. Ora e entonce dessa vez nóis encontra Ela. ZANINHA Ai, mulé, pior. Ela encontra nóis. SOCORRO Viuge, chegou o dia. Hoje faiou o jeito que nóis achô de num cruzar nossos caminho. ZANINHA Um encontro medonhamente terrorífico como aquele dos ido de Virgulino nunca mais, Socorro. A tinhosa mordida que nem ficô naquele encontro tá cum nóis nos ódio dela. SOCORRO Mas desde aquele dia nós semo esperta. Ela sai nóis chega. Nóis descobriu o único lugar  onde ela num tá. ZANINHA  Num tá pruquê já teve. SOCORRO Isso té os home dotô tem que aprender cum nóis. O lugar mais seguro de fugir dum cabra é ficano do lado dele. ZANINHA O lugar mais longe é o lugar mais perto. SOCORRO  Num qué vê a morte, vai num velório. A esconjurada já agarrou um freguês, já tá levando ele pros confim, já tá ocupada, vortá traveiz pro mermo lugar ela num vorta. ZANINHA Aí nóis chega. SOCORRO Mas agora nóis chegô antes dela. Tu tá preparada pra outro encontro? ZANINHA Outro encontro medonhamente terrorífico que nem aquele dos ido da premera lampa? Cruz credo. SOCORRO 6

Agora a esconjurada vem de cum força. ZANINHA Vamo ficá do lado de fora da casa. Nóis se potreje debaixo dum pé de pau. SOCORRO Carece não. O cundidado tá no quarto. Ela aqui num vem. Quando chegá vai decretadazinha buscar o infeliz, num é cidadã educada de passar pela sala. ZANINHA Tu qué dizê que a morte só entra pela porta dos fundo? SOCORRO Quero dize que ela é malamanhada, malempregada e maleducada. ZANINHA E malacafetosa.  Luz baixa aos poucos.

CENA 2  Nordeste passado Socorro entra em cena.  Bate palmas como se chamasse alguém Um senhor aparece.

Socorro Eu vim buscar a cabra que o senhor aprometeu. Pai A cabra nós matamos no almoço de ontem pro mó de alimentar os parente que vieram pro velório. Socorro Eu disse ao senhor: num se deve comer carne na semana do enterro. Muito menos a que o senhor me deu.  Zaninha aparece e assiste a tudo no canto.

Socorro Era a minha paga. O senhor acordou que eu levava a cabritinha. Pai Era o último bicho que eu tinha, dona Socorro. Socorro  Num sobrou um naco de carne? Pai Eu vou espiar. Do jeito que essa aqui come, só deve de ter sobrado o couro da cabra. Zaninha Eita, painho, que mentira. Senhor sai.

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Zaninha A senhora chorou bonito mesmo. Parecia milagre. Socorro Foi milagre mesmo, fia. Com a fome que tava ainda consegui cantar e prantear sua mãe. Sua graça? Zaninha Zaninha. A senhora me leva mais a senhora quando tiver outro morto na vila? Socorro Tu quer carpir mais eu? Zaninha Eu quero aprender a fazer saudade bonito assim que nem a senhora faz, feito pólen nos óio da gente. Socorro Tu tem medo de morto? Zaninha  Nunca tinha visto um defunto. Socorro Mas assim fica difícil, fia. Ver o morto é cundição de fundamento empreguístico para quem quer perseverar nesse ofício das alma. Zaninha Espere! Nunca tinha visto até ver o corpo de mainha. Foi Pai que não me deixou ver. Prendeu eu no quarto. Mas quando ouvi a senhora cantando as incelência, eu pulei a janela, arrudiei a casa e espiei o velório todinho escondida. Parecia uma visão. A senhora abrindo os caminho para mainha avoar pro céu. Mas deve de ser bonito viver a vida chorando, viver  a vida sentino. Deixe eu mais a senhora, deixe. Socorro Eu vou considerar. Zaninha Espere!(Zaninha pega um embrulho e entrega). Sobrou um resto da buchada. (Entrega-lhe). Espere! E tem essa jaca. (Entrega a jaca). Eu tinha escondido para lanchar antes de dormir. Mas pode levar. Socorro Obrigado. Eu acho. Zaninha(Quando Socorro já estava saindo) Dona Socorro. Considere eu mais a senhora, viu. Considere eu. Sai Socorro com a jaca na mão.

CENA 3  Nordeste presente Socorro Ui! Zaninha Avistasse Ela foi? Socorro 8

Senti um vento trágico. Um arrupio lá nas parte. Zaninha  Num guento mais prender as água. (Para (P ara a Mulher de luto). Oie, eu preciso me aliviar. Onde é seu Wanderley Cardoso (W.C.)? Mulher de luto Eu lhe levo. Como é sua graça? Zaninha Eu sou Zaninha de nascença. Prazer. A senhora sabe que eu nasci depois de minhas duas irmãs mortas e peguei o nome delas. É o nosso nome. Zaninha. Meu e de minhas duas irmãs mortas. Mania de mainha de por nome de morto. Diz que nunca vingou nessa família nascidos com esse nome. Tenho medo que venha a morrer a qualquer minuto. É a praga do nome, mulé. Zaninha Moribunda. Mulher de luto Oxe, isto é um nome ou um agouro? Zaninha Meu batismo trouxe foi uma sentença. Mainha me dizia que se eu morresse ela punha de novo o mesmo nome na cria nova. “Tu nasceu da morte delas, elas voltarão a nascer da tua morte.” Eu sou três, Dona Mulé. Eu conto o calendário de trás para frente na agonia da morte anunciada. Morro um pouco a cada dia e agradeço um dia de cova a menos na minha estrada quando o sol desarma a tenda no horizonte. Socorro Leve ela logo no WC senão ela não cala a matraca. Saem. Socorro sozinha e o caixão vazio. Socorro começa a procurar a Morte pela sala.  Mulher de luto volta à cena e a olha com curiosidade.

Socorro(Sem perceber a entrada da Mulher de Luto) Tu tá aí? Mulher de Luto Perdeu algo, fia? Socorro(Percebendo que Mulher de luto voltou).  Não, não. Eu tava me preguntando: este defunto morreu como? Mulher de luto  Num tá ido. Tá fazeno a passagem. Socorro Ainda não morreu? Mulher de luto  Não, mas tá todo desenganado, todo descaído. desc aído. Não se espera que passe de hoje, aí eu tratei de trazer ocês logo. Socorro A senhora é prevenida, né? Mulher de luto Vai que morre alguém e eu fico sem carpideira para organizar as cunferência com os santo. As senhora são conhecida por aqui. Socorro  Nois trabalha aqui há muito tempo. Mulher de luto 9

A senhora tem quantos anos? Socorro Dizem que eu tenho 111 anos. Eu num tenho nem como dizer que sim, nem como dizer que não. Mas também agora, o que importa? Mas eu não sou véia, eu sou antiga. Eita, a senhora tem idéia a que horas chega o morto? Ta com cara de quem vai logo ou ta meio apegado? Mulher de luto Vai logo. Ta daquele jeito que já começa a avistar os anjo, Nossa Senhora. Socorro Então falta pouco. Mulher de luto Se preocupe não. Eles já tão afeitando o homem. Socorro Meu avô também custou para se adecidir morrer. Foi por causa de meu avô que eu hoje sou carpideira. Mulher de luto Olhe, foi por causa de seu avô? Socorro Foi por causa de meu avô. Meu primeiro morto, eu não vi. Num deixaram. Prenderam todas as criança num quarto com umas boneca de pano. Umas boneca meio defunta. Fecharam as  porta bem para a tristeza não alcançar agente. Umas muriçoca vigiava nós. Mas eu queria olhar para meu avô. Ver como ficou a cara dele agora morto. Queria saber se mudava muito depois da pessoa ver a mulher da foice. Queria dizer, mesmo que ele não ouvisse (o que eu duvido), o que eu nunca disse. Aquelas coisa que agente dá por entendido e num derrama no coração do outro. Olhe, Dona Mulé, deu-me uma agonia e eu fugi daquele quarto. Arrastei-me sozinha pelos corredor imenso da casa de minha avó e, nas parede, eu via as fotos de meu avô. Um homem espichado, macio, que levantou um sítio sozinho e alimentou seis filho com seu trabalho. Mas esclerozou rápido e trocava os nome tudo. Chamava seus bezerro como se fosse seus neto e seus neto como se fossem seus bezerro. Eu tinha me tornado A VACA MIMOSA. Eu tinha loucura por esse nome. Eu adorava ser gado. Isto eu também não disse  para meu avô. Bati a cara numa porta. Abri lentamente a porta da sala onde as mulheres imensa tavam miando e vazando. Tavam tão cega de saudade que eu corri para baixo da mesa onde deitaram meu avô. Lá fiquei uns vinte minuto a ouvir lamento. Mas aí eu ouvi minha mãe. Minha mãe falava coisas tão lindas como eu nunca ouvi antes saindo dela. Minha mãe ficou outra para mim. Ficou imensa. Sai umas belezas da boca da gente quando a dor nos alcança. Eu fiquei a matutar como faria para subir na mesa e ver meu avô. Mas minha tia imensa descobriu meu esconderijo e me arrancou da sala imensa sem que eu  pudesse ver. Eu ainda gritei: ‘Sou eu, vovô, a MIMOSA.’ Mugi de leve como se despedisse. ‘Muuu’. ‘Tire essa menina daqui senão de noite, ela fica sem dormir.’ Mandaram. E lá fui eu. Mas eu fiquei noites sem dormir, matutando como ficou o rosto de meu avô morto. Noites imensas a mugir. Noites bovinas. Noites em que eu choro e rio assim. ‘Muuu!’.  Zaninha volta.

Zaninha 10

Tu tava mugindo? Socorro É uma reza nova. Um lamento belíssimo. Um bendito sertanejo. Foi feito para o velório de um boi de estimação. Zaninha Moça, que demora da gota. Assim o defunto chega aqui já na fedentina. Socorro, tu devia de ver o azulejo do WC dela. Tudo pintado. (Vê Zaninha emocionada). Eita, ta emotivada de novo, é? Socorro Eu tava palestrando mais ela sobre meu avô. Zaninha Viuje, Socorro, para que? Olhe, é ela falar disso e o tempo muda. Fique assim não, fia. Sabe o que seria bom para ela melhorar? O cumê que a senhora aprometeu pra nóis. Socorro Zaninha! Ela é assim mesmo, moça. Despachada demais. Toda entregue. Zaninha Oxe, eu sou sincera. Agora que eu me esvaziei todinha, tô na precisão de encher o bucho. Olhe, a reza sai tão mais bonita. Socorro Eita, Zaninha. Zaninha Venha cá, me dê um cheiro.  As duas se abraçam. Mulher de luto sai

 .

Socorro Ela veio ouvir a estória de meu avô. Zaninha Ela passou por aqui? Socorro Passou. E eu esqueço o prefume dela? Sinta o cheiro. Zaninha Mas quando nós baixa num velório, Ela já fez o seuviço todo e já se foi embora. Socorro Se Ela ficou aqui, Ela quer algo de nóis. Cheiram juntas.

Socorro e Zaninha Eita!

CENA 4  passado  Zaninha senta-se ao lado do pai.

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Zaninha Pai, quero ser que nem a fia de Dona Rosa. Senhor  Feia? Zaninha  Não, quero carpir. Senhor  Dizem que essa moça, dona Socorro, é meio bruxa, é meio santa. Quer viver grudada na morte desse jeito, fia? Zaninha Vou aprender a não ter medo dela não, pai. Senhor  Se ficar amiga da dita cuja, diga para ela me levar logo para perto de sua mãe. Para ela apressar meu desencarne que a saudade lateja em mim todinho que nem gota. Zaninha Eita, painho. Eu me lembro que toda semana, o senhor levava a aliança de mainha para um moço apertar. O senhor dizia que era mainha que exigia que fosse assim. Queria ajustar a aliança ao dedo por causo da doença agourenta que a aproximava do fim. Mainha queria sentir a aliança presa na carne pouca. Quando chegasse a hora, morreria justinho assim, colado ao afeto que ela tinha pelo senhor. A aliança agarrada a alguma parte saliente dos espírito. Eita, painho.

CENA 5  presente  Zaninha adormeceu ao lado do caixão vazio. Socorro acende uma vela. Zaninha ronca de vez em quando. Socorro canta a Incelença, mas é interrompida vez em quando pelo ronco de Zaninha.

Incelença “Jesus! Jesus! Jesus! Jesus vai comigo. Eu vou com Jesus. Jesus! Jesus! Jesus me acompanha! Jesus seje a minha guia! Jesus! Jesus! Jesus...”  A Mulher de luto chega e surpreende Socorro.

Mulher de luto O cumê tá quase pronto. Socorro E nosso cliente? Mulher de luto 12

Deus ta operando. Socorro To sentino uma desassossegança no peito. Que nem quando ele se foi. Mulher de luto Ele quem, mulé? Socorro Tive um pretendente, mas não se consumou nada. Num deixaram. (Após leve pausa). Num é de se espantar, né? Mulher de luto Porque? Socorro Eu sei. Não precisa me dizer. Mulher de luto O que? Socorro Pode dizer, diga. Mulher de luto O que? O que ocê quer que eu diga? Socorro Que eu sou feia. Feia de dar dó, eu sei. Minha mãe dizia isto desde criança para mim. “Ô meu amorzinho, tão boazinha e tão feiosa.” Mulher de luto Deixe disso, Socorro. Socorro Olhe, menina eu era tão feia que me aconselharam a ter um cachorro porque moça  passeando com cachorro atrai pretendente. pr etendente. Mas eu arranjei um vira-lata perebento e ainda assim todos só olhavam para as pereba do cachorro. Eu nasci numa família de tristes. Filha feia de uma família triste. Fomo tudo educado na lágrima. Não havia um dia em que não se chorasse naquela casa. Sabe como se reconhecia os traços da família? Fazendo a criança chorar. Minha avó beliscava os menino, quando choravam, ela dizia que as feição lembrava a marca da família. Chorano era todo mundo igual. A mesma prole, o mesmo sangue, o mesmo gosto do choro. Minha avó nunca usou outra cor senão preto. Depois que meu avô se foi, ela vestia mais e mais roupas e peças pretas. Aumentou, aumentou na sucedência dos mortos da família. Ela dizia: “Para que tirar o luto? Tem sempre alguém morreno no mundo”. Mulher de luto Isto é que é uma filosofia sentida, né menino? Socorro Olhe, nos dias de velóro, todos tinham que vestir a noite. Nosso varal parecia que não amanhecia de luto estendido de canto a canto. (Segredando). Eu ainda tentava usar uns pano colorido nas calçola para me animar por dentro. Na cidade, tinha as bandeira dos festejos e nós, tudo preso dentro de casa. Agente se arrastava até a porta e pelas fresta, via rasgos de vermeio, azul, amarelo. Era um custo para ver a alegria. Foi quando eu comecei a cuidar. De todos. A me especializar na dor. Dos outros. De um quebranto até gota, de resfriado até doença de operar, aquelas que tem que viajar na ambulânça da prefeitura para tratar em outra cidade. 13

Eu andei, viu fia? Longe podia de ser qualquer distança. Se me dissesse, ‘vamo para o sul’, eu ia de a pé mermo. Eu cunfiava nas distança, eu era do caminho. Era eu quem cuidava dos meus parentes macambuzo, parecia uma mucama. Arrumava a morte de cada um deles. “Chame Socorro, chame. Zezinho já foi desenganado.” Aprendi a fazer mezinha para doente, rezei incelença para moribundo, vesti morto e comecei a carpir. (Segredando. Morta de vergonha.)  Nunca soube de homem a não ser os defuntos que os parentes despiam des piam nas quartinhas de velório. Foi assim que eu conheci um pinto. Espiava durante os banhos fúnebres, quando arriavam os  pijama, enfim conheci pinto quase por acidente. De qualquer modo, todos passaram a me querer bem depois que tratei da família. Conheci todos os tipos de maleitas, de despedidas, de choros, de alívios. Sabia as coisas do fim. Reconhecia de longe aquele que ia vingar e aquele que não. “Esse se conclui hoje”. Acho que Ela soprava no meu juízo sua decisão. Sentem um arrepio. Leve ventania.

Socorro Tu sentiu? Mulher de luto Um anjinho passou pro aqui. Socorro Aprendi muito com Ela. Aprendi que muita coisa acontece depois da morte. Sobra um fiapo de vida nos corpo: gases, ar, comida, vermes, suspiro, safadeza. E de cadáver em cadáver, eu aprendi o amor. Mulher de luto E quem foi ele? Socorro Foi o Pedro. Pedro era filho de meu padrinho em Sertânia. Tinha uma maleita sem cura. Envelhecia tudo. Rápido que nem chuvisco no sertão. Levou uma semana, para ele me tocar o braço e dizer: “Nunca ninguém me beijou”. Eu disse: “Nem a mim”. Nos beijamo. Foi minha primeira vez. À beira da cama dele. Ele antes de morrer dizia: “Você é a melhor imagem para quem se vai”. Num foi lindo? Mulher de luto E Pedro? Socorro(Após uma pausa). Pela primeira vez eu fui carpir por fora vestido de luto, mas por dentro eu fui de noiva. Foi Ela. Foi ali que eu entendi. A morte me deu ele, a morte me levou. Depois dele, homem nunca mais. É Deus no início, Deus no final. Eita, meu Deus, Pedro.  A vela se apaga. Socorro faz o sinal da cruz. Zaninha acorda num rompante.

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Zaninha Ela chegou? Socorro Viuje, quase me matou de susto. Melhor tu ficar roncado que assusta menos. Mulher de luto(Saindo de cena) Eu vou buscar o cume. Zaninha Sonhei com ela, mulé. Socorro Foi nada. Olhe, quando eu senti, bem no meio de palestra com nossa contratante, ela passar; foi como se ela quisesse dizer, estou me aproximano. Zaninha(Saindo) Vamos embora? Socorro(Segurando-a) Primeiro agente termina o seuviço, né fia? Agente nunca enjeitou defunto. Adepois, nóis some nas brenha de novo. E rápido. Zaninha Tu te alembra do que ela aprometeu, mulé? Ela aprometeu voltar. Socorro E como que se esquece uma promessa dessa? Mermo despois de tanto tempo. Zaninha E Ela tiver chegano junto porque tá chegano nossa hora de largar a casca e se promover a defunto. Socorro Será que Ela ta vindo para levar nóis mais Ela? Mulher de luto.(Chega trazendo a comida) Pronto.  As duas começam a comer ao lado do caixão vazio.

Mulher de luto Tá boa a comida? (Elas acenam que ‘sim’ sem parar de comer). Zaninha(Levanta-se e fala com a boca cheia) Quero lhe fazer uma homenagem verdadeira. Na minha existência de ser humana, eu não esperançava aconhecer um cuscuz de coco tão gostoso. Mulher de luto Obrigado. Dizem por aí que ocês não morrem nunca. (As duas se olham). De tanto se amigar  com a morte, ocês ganharam a eternidade da comadre. É verdade? Socorro O povo fala muito. Zaninha A senhora tem mais açúcar? Socorro Zaninha! Zaninha É que eu gosto bem doce. Socorro 15

A que horas chega o defunto? Se ele demorar muito, a sua dispensa vai dá o créu com a fome dela. Zaninha Te aquieta. Mulher de luto Ele vai demorar não.  As duas seguem comendo.

Mulher de luto Eu acerto dinheiro bom para ocês ficar mais tempo. Socorro Olhe, moça, precisa de paga não. Agente faz é porque o coração pede. Zaninha Basta um cumezinho bom e nóis fica muito feliz da nossa vida. Mulher de luto Querem uma caninha?  As duas se olham. Zaninha senta e arrasta Socorro.

Zaninha(Animada) Eita, Socorro. É hoje que nóis vai rezar bonito. É porque limpa a garganta, sabe? Abre os caminho para a voz, para falar com os anjo. Socorro Esse defunto ta certo de que se vai? Mulher de luto Queria estar enganada. Zaninha Porque tem aqueles que mudam de idéia. Mulher de luto Muitos voltam? Tem os arrependido, né? Zaninha Olhe é mais comum do que mulher parindo. Eu fui a um velório de seu Zé do Ovo. Mulher de luto Como era o nome dele? Zaninha Zé do Ovo. Mulher de luto Porque ele tinha esse nome? Zaninha(Rindo) Melhor não explicar. Socorro(Rindo) Melhor não. Zaninha O velório lotado. Apoi quando a vizinha Dona Ema espirrou, o defunto, seu Zé do Ovo voltou do lado de lá. Dizeno ele que voltou do susto que levou com o espirro de Dona Ema.

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Deu um mês, ele partiu de novo. E dona Ema foi de novo velar. Quando a vizinha foi chegando perto do caixão, a viúva Dona Choca... Zaninha e Socorro Melhor não explicar. Zaninha A viúva, Dona Choca, mulher de seu Zé do Ovo, que num agüentava mais o falecido, agarrou Dona Ema e disse: “Tu fica, mas se tu espirrar de novo, eu te mato”. Foi. Socorro Lembra de Seu Aprígio que voltou para dizer que a reza tava funcionando? Veio especialmente para nos elogiar. Zaninha Mentira, ele veio reclamar de nossa desafinação. Voltou e pôs a mão nos ouvido, desesperado que tava. Socorro Tu não me endoida não, Zaninha. Ele veio dizer que nem os anjo cantava como nós. Zaninha Deixe de ser iludida. Ele veio brabo, levantou-se e gritou: “Vocês querem me conduzir para o inferno ou para o céu? Com essa cantoria de seriema rouca? Fiquem quieta que eu tenho mais chance com os Alto.” Socorro Eu me lembro dele sentando no caixão e beijando nossas mãos e dizendo que São Pedro guardou um lugar especial para nós no coreto do céu. Zaninha Ele sentou-se foi para reclamar do caixão. Disse que compraram caixão mal-feito. Que nem os verme avisitava ele em madeira tão vagabunda. Que povo mais pirangueiro. Socorro Ele arrancou um pedaço do veludo, beijou e lançou para gente. Zaninha Tu tava com outra carpideira, foi? Socorro Foi mais tu, mulé. Zaninha Eu num alembro. Socorro  Nem eu do que tu disse. Zaninha Mulé, olhe o tempo. Socorro Olhe o tempo, Zaninha, enganando nois. É o tempo, fia fazeno arte na lembrança da gente. Mulher de luto E ocês num tiveram cria nenhuma? Silêncio.

Socorro  Num fale do fio dela, não. Isto é uma melancolia na vida dela. 17

Zaninha Eita, chamaram o silêncio para junto deu.  Porta ao fundo se abre. As duas se abraçam de novo. Mulher de luto sai para fechar a  porta.

Socorro Eu tô sentindo ela. Ela veio cobrar nóis. Zaninha Tu te alembra da última vez que nóis pôs a vista nEla, Socorro? Socorro Saia! Saia! O que ocê quer num tá aqui. Ouve-se uma risada. Troca de olhares entre as duas.

Mulher de luto(voltando) Pronto, tranquei a porta.  As duas pulam dentro do caixão no susto.

CENA 6  passado  Zaninha chegando na casa de Socorro muito alegre.

Zaninha Dona Socorro. Dona Socorro. Socorro Que foi menina? Zaninha (Eufórica) Diz que morreu gente na casa de seu Eurico, estão chamando a senhora. Posso ir mais a senhora, posso? Socorro Esconde essa dentadura, fia. Zaninha Pai deixou. Eu escolhi essa roupa, tá bonita? Socorro Eu escolho quando você se ajunta mais eu. Ou mió, Ela escolhe a hora. Zaninha Eu aprometo ficar calada. Socorro Só se eu quebrar seus dente para tu não rir e fatiar a língua para não falar. Tu acha que é assim feito melaço no queijo, é? Ela num chega assim toda facilitada para cima de tu, não. Ela chega no respeito, nas economia do gracejo. Vez em quando é que Ela fala. Zaninha

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E a voz é bunita? Socorro Deixe de ser iludida. O chefe aqui é ela. Agente ganha uns ano nessa vida, mas ela pede em troca.  Zaninha amuou.

Socorro Tu quer muito ser que nem eu, é? ( Zaninha acena que sim). Ela vai ter que lhe ensinar  respeito por ela para agente trabaia juntas, menina. Zaninha Quando? Socorro Adepois que você for mãe, vai aprender a temer a morte. Vai orar toda noite para que ela se afaste de sua cria. Quando você sentir a força dela, vamos poder negociar. Zaninha Mas eu sou lacrada. Não conheço homem. Socorro Pois trate de arranjar. Quando você temer a perda, você vai ficar pronta para trabalhar mais ela. (Pausa). Assim Ela me disse. Zaninha A senhora fala com Ela? Socorro  Não, fia. Ela é quem fala comigo. Zaninha(Para si mesma) Arrumar um fio! CENA 7  passado Quarto de Zaninha. Ela está deitada embaixo de um cobertor pesado.

Pai(Fora de cena) Entre seu Nonato. Entre.  Nonato(Fora de cena) Licença, viu. Ela apresentou melhora?  Enquanto eles falam ainda fora de cena, Zaninha molha o rosto. Ajeita-se e finge de doente.

Pai Está só delirando, meu fio. A febre ta alta. Toda castigada. Cagando fogo, comendo nada.  Nonato Posso entrar? Pai Pode, ela veve a repetir seu nome. Se achegue, se achegue.

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 Nonato entra. Nonato pode ser típico galã nordestino.

 Nonato Zaninha? Zaninha Jesus, eu tô vendo o Senhor. Chegou a hora, chegou?  Nonato Sou eu, Zaninha. Zaninha Eu, quem? São Judas? É São Judas?  Nonato.  Não, sou eu. Nonato. Zaninha Eu não lhe escuto direito não. Eu vou mais o Senhor, eu vou.  Nonato Viuje que ela já ta quase do outro lado. Zaninha Mas só lhe peço que cuide de Nonato. Eu amo ele, senhor. Se eu vingasse, eu queria casar  mais ele, ter fio com ele.  Nonato Mais eu? Eita! Ta ardendo em febre. Zaninha Ele é o homem mais lindo do Cariri inteiro. Quando eu vi ele na festa junina vestido de noivo, ave Maria, eu quase parei de respirar. Ele é tão lindo que parece uma pamonha quente com a manteiga derretendo-se toda pro cima. Quase pedi ao padre para casar nóis ali mesmo no meio da festa junina. Ele é minha completude e eu sei que ele tem sentimento neu. (Tosse).  Nonato Zaninha, eu fico mais tu. Zaninha(Mais dramática) Que luz bonita. É o paraíso, é? É para eu ir mais o senhor, é? To ouvindo não. Fale mais alto. Essa aí do seu lado é Santana, é? Se eu voltar, se o senhor me der outra chance, eu  prometo viver para Nonato.( Zaninha encena a ascensão para os céus, céus , Nonato quer segurála).  Nonato Morra não. Viva e eu me caso com ocê. Zaninha Eita, é nossa senhora.  Nonato Volte, venha. (Sacudindo-a). Eu me caso. Eu me caso!!! Zaninha O que? Quem?  Nonato Sou eu, Zaninha. O seu Nonato. Zaninha

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Oh, meu amor. Milagre, ocê veio me salvar. Eu já tava de braço dado com Pedrão. Do lado dele. Sinta o prefume dele, sinta. Ele ta me chamando.(Querendo ir) Eu tô em dúvida. Vou ou fico? Vou ou fico? Vou ou fico?  Nonato  Não! Agora ocê é pertence meu.  Beijam-se.

 Nonato Eu lhe quero bem. Você era moça que mais rebriava naquela festa. Zaninha(Já mais recuperada) Ah, se sesse.  Nonato E deixa de num for  Zaninha Ah, já to me encabulando.  Nonato Se eu subesse eu tinha vinhedo mais rápido. Zaninha, quer namorar mais eu? Zaninha  Namorar? Quero não.  Nonato  Não? Zaninha Eu to com precisão de outra coisa. De ter uma cria mais tu.  Nonato Zaninha, nós nem se casou. Zaninha Mas ocê aprometeu! O senhor ouviu pai? Pai(Fora de cena) Ouvi! Zaninha Mas, olhe, eu preciso ter um filho logo. Se der, em menos de nove meses. Do jeito que for  mais rápido. O senhor conhece os mecanismo, né? Dessas esfregação, o senhor conhece alguma mais rápida para parir menino  Nonato A senhora me avexou todinho. Até onde se sabe, os avanço cientificista nessa área são  pouco. O jeito é o usual mesmo. Zaninha Então vamo.  Nonato Zaninha, ocê ficou boa? Zaninha(Tossindo falsa) Aos poucos. Foi o susto. Foi você. Foi o seu amor. (Beija-lhe carinhosa) mas entonce vamos começar a fazedura de menino é agora.  Abre espaço para ele embaixo dos lençóis.

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 Nonato Seu pai está na outra sala. Zaninha E se eu piorar de novo e me for amanhã? Pelo menos eu morro vitoriosa porque pertenci a tu, meu bolo de mandioca.  Nonato Que coisa linda! Nunca ninguém me disse uma coisa assim. Eu me caso, eu me caso mais tu. Somem-se embaixo dos lençóis.

Sugestão: passagem dos lençóis dos amantes para o parto. CENA 8  passado Socorro fazendo o parto de Zaninha. Socorro com o filho no colo.

Socorro Agora que tu sabe o que é o amor, tu sabe o que é o medo da perda. Tu está pronta. Zaninha To afoita para cumeçar. Socorro Cadê o cordão? Zaninha Que cordão? Socorro O cordão imbilical. Zaninha Procure, mulé, deve de tá por aí. Socorro Tá não, a criança nasceu desapegada de tudo, como se não tivesse costura com a mãe. Zaninha Me dê ele, Socorro. Socorro Tome, dê de mamar logo antes que ela o faça. Socorro entrega o bebê envolto em panos nos braços de Zaninha. Zaninha chora abraçando a criança.

Zaninha Ela? Socorro Ela quer o menino. Zaninha Ele enjeitou meu peito. O bebê arrota.

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Socorro Ele arrotou? O menino já mamou? Zaninha Eita, socorro. Socorro Eita, Zaninha. O menino é dela.

CENA 9  passado Socorro ensinando algumas regras/o ofício a Zaninha. Zaninha carregando o filho no colo, está dando de mamar.

Socorro A casa fica sem ser varrida por oito dias e nem se come carne nesse ínterim. Zaninha Viuje, quanta coisa. Esse negócio de morrer dá muito trabalho. Socorro Tem que ser uma mulher, sempre, uma mulher a carpir. Homem nenhum pode se enxerir em trabalho nosso. Cuidado para não trazer terra terra da casa do morto para dentro da sua. Tem que  bater até sair a areia todinha do velório. Tem que amarrar amar rar um cordão na cintura do defunto defu nto dando sete nós e rezando um pai-nosso e uma ave-Maria para cada nó dado. Quando se jogar  terra sob o morto tem que pedir que ele lhe arranje um lugar bem bom para onde ele está indo. Zaninha E se ele for lá para baixo? Socorro É cada pergunta que tu faz. Na dúvida, só jogue terra em quem tu confia nos destino. Zaninha Ai, Jesus. Socorro O que foi? Zaninha  Não sai mais leite. Secou. Socorro Doeu a mama? Zaninha Tá doendo. E como que o menino fica sem o leite? Socorro  Não fica se ocê deixar eu amamentar. Zaninha Ocê tem? Socorro Já dei leite até para bezerro. Dê cá o bichinho. 23

Socorro dá de mamar e continuam o aprendizado do carpir.

Socorro O defunto deve de vestir a melhor roupa. Roupa de missa, de ir ao médico. Entendeu? Zaninha Mesmo se a roupa for de chita e colorida? Socorro(Não sabe a resposta, tenta disfarçar) Cada pergunta que ocê faz. Outra coisa: durante um ano, só se fala do morto como o defunto, adepois de um ano, passa a chamá-lo de o falecido. Quando o defunto acabou de  passar, o melhor é entoar o bendito ben dito de São Pedro, o porteiro, para ele abrir as porta do céu  para o referido. Cante mais eu. Socorro e aos poucos Zaninha “Meu Sinhô São Pedro chaveiro do céu vós nos abra a porta que eu não sô herege Aqui chego uma alma  Nas portas do céu Vós nos abra a porta Pelo santo véu Vós nos abra a porta Amanhã bem cedo Que eu quero ir pro céu Mais Sinhô São Pedro Vós nos abra a porta Pelo Bom Jesus Eu quero ir pro céu Mais a santa Cruz”. Zaninha Ele dormiu. Socorro Espie coisa mais preciosa. Ele gostou das incelença.  As duas olhando para o menino.

Zaninha E o nome do menino? Socorro  Num vou dar nome não para morte não saber como chamar. Eu não dei nome para minha  burrinha e ela tá viva inté hoje. Porque tudo para que eu dei nome, morreu. Zaninha 24

E é? E nós chama ele como? Socorro Vamo deixar ele sem nome. Zaninha O menino. Vou chamá-lo só assim. Socorro O menino. Asolucinou o pobrema. Pronto. Amanhã, nós começa. CENA 10  passado Coronel entra em cena. Socorro e Zaninha começam a chorar em frente ao caixão.

Coronel Podem parar. Socorro Desculpe, Coroné. Zaninha O que nós fizemo? Coronel Essa quenga me traiu com mais de cem cabra. Eu quero que todo mundo gargalhe. Eu chamei as senhoras aqui para rir da cara dela. Eu quero o velório mais alegre da história deste lugar. Socorro Rir? Coronel Gargalhar. Dar uma gaitada boa. Se mijar de tanto rir, entendeu não? Socorro Entendemos, sim senhor. Zaninha(Baixinho) Como que faz isso? Socorro Tô pensando, Zaninha. Coronel É bom a senhora aprender logo. Zaninha Mulé, e agora? Socorro Faz cócegas em mim e eu faço em você. Zaninha Há, há, há... Socorro Mais, mais. Coronel (Na beira do caixão dela) Sua quenga está ouvindo? Vai todo mundo aqui rir de sua cara de puta. Você vai passear   pela cidade que nem atração de circo. Vamos passar a madrugada rindo de você. v ocê. 25

 As duas seguem rindo.

Zaninha A madrugada? Socorro Eu to perdeno o fôlego. Zaninha Chorar é mais fácil, cansa menos. Esse home tá descontrolado, vai matar nós tudo. Socorro Achou que era fácil essa vida de lidar com a dor dos outro? Zaninha Mas justo no primeiro mês, pegar essa besta fera. Coroné(Apontando a arma) Continuem. Eu não mandei parar.  As duas retornam as gargalhadas.

Coroné Me disseram que ocês são média. Socorro Somo o que? Coroné Média, meio bruxa, dessas que tem intimidade com as alma. Zaninha Um pouco, né. Coroné Apois eu quero falar mais ela e ocês vão se comunicar com essa morta. Socorro Mas a alma ainda tá perdida, coroné. Fica difícil de localizar... Coroné Fale ou eu lhe atiro para ocê mandar o recado pessoalmente para ela. Socorro Está bem, está bem. Zaninha O que nós faz? Socorro Reza como nunca rezamo até hoje. É mió fazer o que ele pede senão ele atira em nós. (Para o coroné) Como é o nome dela? Coroné Quitéria. Socorro(Teatral) Dona Quitéria, a senhora está me ouvindo? Coroné Senhora? Dona? Tá louca? Socorro Quitéria? Quitéria? 26

Coroné Chame de Quitéria, sua quenga safada. Socorro Quitéria sua quenga safada, seu espírito está aqui? Quitéria sua quenga safada, seu espírito está aqui? Dê algum sinal, por favor, Quitéria sua quenga safada.  Zaninha apaga uma vela enquanto eles olham para o caixão.

Zaninha Eita, a vela apagou. Socorro Pronto. Ela está aqui. Coroné Onde? Onde? Diga que eu vou atirar nesta alma. Socorro Por aqui, por ali, ta toda espalhada, Coroné. Toda espalhada pelos canto como sempre fez em vida. Coroné Posso falar? Ela vai me ouvir? Socorro Vai, sim senhor. Coroné(Bufando) Só quero que ocê saiba que já capei todo mundo que se afrumegou mais ocê. E dei os documento dos cabra para os porco comer. Tão tudo adubando a terra.Ouça sua meretriz do cangaço, eu fiz seus home tudo desapiar do cavalo, arribar deste mundo, foram dar conta do feijão que comeram, tomar chá de buraco ou para ser mais professorístico, deram o couro à vara que nem boi deposto do cargo de vivente. Zaninha O que foi que ele disse? Coroné Fecharam o furico para sempre. Zaninha Entendi. Morrero. Socorro Quitéria sua quenga safada já sabe. Todos que o senhor matou estão mais ela. Ela diz que estão tudo mais ela num fogo gostoso, dançando uma sanfona e todo mundo de amolegação. Coroné Pare, sua safada. Senão eu lhe mato. (Pode agarrar o defunto no caixão) Socorro Com todo respeito, Coroné, Quitéria sua quenga safada mandou lhe avisar que o senhor já fez isto. Coroné Mais a reiva ainda não passou. Eu mato de novo. Socorro Quitéria sua quenga safada diz que ser corno é para toda eternidade. Coroné  Nem do outro lado, tu sossega meu chifre. 27

Socorro Ela diz que pôs chifre no senhor desde do primeiro dia do casamento. Os coroinha e os  padrinho tudo provaram dela antes mesmo do senhor. Não é isso, Quitéria sua quenga safada? È isto, ela confirma. Coroné Eu vou lá, eu vou lá para esfolar essa maldita. Nem que seja nas profunda, eu vou. Socorro Ela ta dizendo que tu não é homem para vir se encontrar com ela. Teu irmão, tua tia, todo mundo já passou por Quitéria. Aliás home é uma coisa que tu nunca foi. Coroné Ela duvida? Eu vou aí te matar de novo. Socorro Ela ta gritando: “Vem corno safado, vem”. Coroné Eu vou cortar sua língua nos inferno. (O Coroné se mata com um tiro e cai ao lado do caixão de Quitéria.)  As duas em choque.

Socorro Deus seja louvado. Ele se matou mesmo. Zaninha Acho que tu exagerou. Socorro Ou era ele ou era nóis. Zaninha Quem bem fizer, para si fez. Socorro Quem mal fizer, para si faz. Zaninha E agora, mulher? Socorro Agente somos profissional. Ele não queria palestrar mais ela?Vamos carpir os dois. Pedir  que eles se encontrem lá em cima ou lá embaixo. Colocam Quitéria e Coroné lado a lado.

Zaninha Eita, será que ele acordou?(Zaninha aproxima-se do caixão). Socorro Tu colocou o menino junto com a defunta? Zaninha(Balança o caixão como um berço) Ele gosta. Assim eu não largo mais dele. Se deixar ele solto, danou-se. Ele gosta de engatinhar perto da sepultura aberta. Ele tem mania de fazer essas coisa. Tem adoração por  cova, por terra. Veve a brincar dentro dos buraco. Socorro Tu tá certa. Se deixar ele só, ela pode vir buscar. 28

Zaninha Eu vou ficar de tucaia, com os óio em cima de minha cria. Vamo dormir, meu zamor? Cantam Incelenças como canções de ninar. Zaninha percebe.

VOZ da MORTE(Fora de cena) (Pesquisar uma música que a MORTE cantaria para o filho. Pode ser uma incelença.). Socorro(Tapando os ouvidos do menino)  Nóis num pode dar sossego. Nóis tem que fugir fu gir daqui. Zaninha Para onde mulher? Socorro Para um lugar bem longe da morte, onde ela num inxista. Zaninha E inxiste este lugar, mulé? Socorro  Nóis vai ter que achar. E se ninguém foi até lá inté hoje, nós vai ser as primeira. Prepara as trouxa, mulé. Nóis vamo embora hoje. Vamo por terra embaixo de nossas sola para se destinar rumo as plaga onde a Morte não habite. Onde a morte nunca foi. CENA 11  passado Caminhada de Socorro e Zaninha. Cena-passagem. As duas a fugir deste lugar, caminhando para bem longe. O menino nos braço.

CENA 12  passado Socorro e Zaninha caminhando com as trouxa e o menino no braço, chegando numa porta de um casebre. Zaninha ninando o menino.

Zaninha Pelo amor do Supremo, Socorro, nóis precisa achar um cume para dar para esta cria. Socorro Tá sentindo o aroma de luto? Aqui ainda é domínio domínio dela. Zaninha O único consolo é que ainda temo trabaio. To sentino que aqui tem trabaio. Vamo bater. Mulher (Entrando em cena) As senhoras sabem ler? Socorro Ela diz que sabe. Mulher  29

Chegou esta carta junto com o caixão. Temos precisão de entender o recado que ela traz. Zaninha Se eu ler, a senhora dá um cumezinho para nóis? Mulher  Claro, minha fia. Zaninha(Lendo com esforço) Quem é Severina? Mulher   Nossa sobrinha. Mora no sul. Ela quem mandou minha irmã pra nóis. Era o último desejo dela ser enterrada no cemitério com sua família. O que é que ela diz? Zaninha “ Querida tia Nitinha, a benção, como a senhora vê, aqui está o caixão com o corpo de tia  Nazarena. Ela queria ser enterrada no mesmo cemitério de voinho e voinha. Como custou muito dinheiro, aproveitei e mandei algumas coisas para vocês junto com ela.” Mulher  Onde? Num recebi. Zaninha “Debaixo dela, vocês vão encontrar 20 pastas de dente. Ela está vestida com cinco saias e nos pés tem um par de polaina. Ela tem três meia-calça embaixo do vestido que é para as menina de Zito. Colocamos duas cueca também para eles. Embaixo da cabeça, tem dois travesseiro e uma coberta, que é um lençol fofo que eles usam por aqui. No meio dos peito, agente pôs o vidro de perfume que mainha tinha pedido e os batom para maninha. Tem dois dente de ouro que colocamo na boca dela. Derretam que vale bom dinheiro. Os brincos são novos também. Atrás das pernas tem vinte lata de atum que é um peixe gostoso que eles vendem que nem presuntada. O cabelo dela é peruca. A peruca é para quem tiver   precisando. Agente achou que podia pod ia ser bacana mandar. O caixão é de cedro, cedr o, madeira boa,  pode dar uma cama mais forte para painho e mainha; e o forro é veludo do bom, deve servir   para alguma cortina. Ela tem cinco pares de meia em cada pé, os moleques vão fazer a festa. As aliança para o noivado do primo estão na mão esquerda, viu? Tivemos que comprar maior porque depois de morta, os dedos de titia incharam.  Na mão direita, nós pusemo um dinheirinho para comprar uma roupa para ela. Acho que não esquecemos de nada. Bom enterro. Que Deus tenha a titia. Beijos. Severina.” Socorro Benza Deus. Mulher(Pegando papel e caneta) Muito agradecida. A senhora manda uma carta para nós? Vamo pedir uns remédio. Zaninha E ela vai matar alguém para poder mandar? Mulher  Xinopatil? É este o nome? (Gritando para alguém fora de cena). Pegue a receita, homem. É que meu cunhado que mora lá tá morre e não morre, vai que ela decide mandar o coitado  para ser enterrado aqui, não é? Zaninha Será que ele pode mandar uma armação nova de óculos para mim? Socorro Zaninha! Zaninha 30

A minha ta quebrada. Deixe de ser boba e peça uma lavanda, vá. Socorro É que eu ganhei dois prefume e acabou-se a essença. Zaninha(Divertindo-se) E toda vez que o povo do sul morrer agora é isso, sobe um agrado lá de baixo, é? Socorro É um povo generoso até no momento da dor. Este ano a quermesse vai ser boa. Graças aos buraco da mana. Começam a descascar a morta e pegar os presentes.

Sugestão: Talvez criar uma partitura movimento da caminhada das duas, sempre que houver mudança de lugar. CENA 13  passado  Já estão em outro velório.  Zaninha teatraliza um choro, solicitando lágrimas e rezas dos presentes presentes no velório. Socorro está sussurrando palavras de conforto perto do defunto.

Socorro Que alma bondosa, meu senhor. Que alma crente. Uma lágrima em louvor de sua ascensão ao senhor.Você dê um Pai Nosso na intenção dele. (Zaninha percebe algo no defunto. Aproxima-se de Socorro.) Abri os olhos, irmão e vede a porta luminosa e briosa... Zaninha Socorro, tu pôs reparo? Socorro Em que mulher? Zaninha  Nas flor lá debaixo. Socorro São lindas, Zaninha. (Voltando à reza). Abri os olhos, irmão e vede a porta luminosa e  briosa... Zaninha Tu é lesa, mesmo. Eu acho que o defunto se afeiçoou de tu. Socorro Seu Josimar? Nunca que vi ele em vida. Zaninha Olhe no meio dos cravos, perto do púbis. Socorro Jesus abençoado. Manifestou-se. Zaninha Tu ficou falando macio no pé do ouvido dele... 31

Socorro Eu só tava regando um pouco de paz para alma dele, agora o safado se anima até com a imagem dos anjinho. Oh, fogo. Será que ta vivo? Zaninha O nervo dele está. Socorro E agora? Zaninha Vamos esconder. Socorro  Num tem mais flor. Zaninha Vamos por este mandacaru.  Põem mandacaru para camuflar.

Socorro A mulher dele está vindo para cá. Zaninha Creio em Deus Pai. Viúva chega.

Viúva Vocês tão cuidando bem de Josimar?  Zaninha e Socorro se olham.

Viúva O que este mandacaru está fazendo aí? Zaninha Agente pensou em usar um motivo mais regional para enfeitar o caixão. Socorro Para ser mais diferenciado. Fica mais aprumado. Viúva chora.

Zaninha O que foi? Socorro Agente muda se a senhora não gostou.(Zaninha cutuca). Agente põe um pé de girassol. Viúva É que esse mandacaru aí me lembrou o Pereira. Zaninha O nome de seu marido não é Josimar? Viúva Era, Pereira é o nome ‘dele’. 32

Socorro Dele? Zaninha Dele.(Apontando o mandacaru) Viúva Ave Maria que falta que eu sinto. A alegria que Pereira me dava, meu Deus. Josimar era só aperreio, mas o Pereira. Foi quem salvou meu matrimônho. Eu quase mando rezar dois velório, um para Josimar e outro para o Pereira. Zaninha(para Socorro) Taí uma viúva que eu vou ter pena. A do Pereira. Viúva O que foi, minha fia? Zaninha Olhe, talvez o segundo velório nem seja necessário. Viúva Me levem junto, eu quero ir junto. Zaninha Acalme-se, minha fia. (Para Socorro). É melhor agente mostrar. Aliviar a dor da bichinha. Socorro Isto vai dar confusão, Zaninha. Viúva O que foi? Zaninha Como é que se diz isto? É o que o morto ta meio vivo. Socorro Tá bem vivo. Zaninha O Josimar foi, mas o Pereira voltou para se despedir. Viúva Como?  Zaninha leva a viúva até o mandacaru.

Viúva O Pereira! (Depois de um segundo de alegria) Quem buliu no bichinho? Socorro Eu tava rezando, num sabe? Viúva Rezando? Socorro Eu não sei como isto foi acontecer. Eu num costumo acender home tão fácil, muito menos morto. Viúva Foi você, sua quenga? Não respeita homem casado nem morto, é? Fica se sugerindo até para defunto? Zaninha Calma dona. Na verdade, ele é muito saliente, não desanima nunca. A vizinhança sabia... 33

Viúva E você junto, num foi sua sonsa? As duas ficam acoitando macho. Zaninha Mas ele ta morto. Viúva Mesmo assim. Safadeza num escolhe morada terrena ou celeste. Zaninha Olhe o respeito. Viúva (Para todos no velório). Vejam. Vejam o que essas desavergonhada fizeram. Ficaram se esfregando no meu marido morto e acenderam ele. Socorro Vamos embora que ela se descontrolou. Viúva(Interrompendo-as)  Não. Não vai sair assim tão fácil não. Fale, fale no ouvidinho dele para gente ver a reação. Socorro  Não carece dessa presepada presep ada toda. Viúva Vá, sua marafaia. Socorro(Timidamente) São Pedro abri os caminhos e as portas... O mandacaru reage e se mexe. Zaninha quer rir.

Viúva  Na minha cara? Saia daqui sua murrinha. Suma-se Suma- se de minha frente. Zaninha Veja o lado bom, dona viúva. O Pereira voltou para se despedir. Devia de ser agradecida a Socorro que ressuscitou os bago dele. Socorro Ai, meu Jesus, eu só animo morto, meu pai. Viúva Rua! Rua! Saiam todos. Saiam de minha vista. Viúva só.

Viúva(Descontrolada e voluptuosa) Ai, meu Deus, como é que eu vou viver sem tu, Pereira. Eu não vou agüentar de saudades. Me levem junto. Me enterrem junto.  A viúva joga-se sobre o caixão.

CENA 14 Passado  As duas olhando para uma lâmpada suspensa. Pausa.

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Zaninha O que é isso? Socorro Lampa. Zaninha É o que? Socorro Lampa.  Pausa.

Zaninha Donde nós vem num tem isso. E como é que acende o pavio? Socorro E eu sei! Só sei que a alumiação que mora dentro dela vem da Bahia. Zaninha Eita que pavio longo. Socorro  Não mulé, isto funciona com um alimento diferente, que nem querosene. queros ene. O nome é ‘tequinologia’. Zaninha E por onde escorre essa ‘tequinologia’? Socorro Escorre pelos fios que nem as almas viajando pelo ar. Zaninha Lampa. E é para sempre? Socorro E eu sei!  Pausa. As duas olhando para a lâmpada.

Zaninha E nóis vai operar o cerimonial assim, sem candeeiro. Parece dia. As alma vai se confundir. Socorro Eita, Zaninha. To me sentindo nua, assim meio despida de sombra. Assim eu fico tima. Tu vai ver eu chorando com essa claridade. Vai ficar cheia das intimidade com as minha lágrima/águas. Quero não. Zaninha Morte mais bonita é a esquecida nas sombra. Socorro Ta muito claro. Se puser outra tequinologia dessa, todo mundo vai ver até as alma subindo  pro céu. Zaninha Ou desceno. Socorro 35

Eita, é mesmo.  Pausa.

Zaninha Vamos se livrar disso, socorro. Socorro Vamos.  Pausa.

Socorro Como?  Elas tentam se livrar da lâmpada. Zaninha sobe no caixão para puxar a lâmpada.

Zaninha Me ajude aqui, Socorro. Socorro Cuidado com as flor, mulé. O que tu vai fazer? Zaninha Vou puxar para ver se arranco essa bola amarela do pavio. Socorro Use o véu para se proteger que essa tequinologia tem um bafo quente. Zaninha Olhe só, as muriçoca se amigando com a lampa. Elas vevia toda-toda para cima do meu candeeiro. Desta(deixe estar), bichinha. Quando chegar perto agora, eu apago o pavio só de  pirraça. Socorro Pare de brigar com os inseto, mulé. Avia. Vamo cuida.  Zaninha agarra-se à lâmpada e se queima. Cai dentro do caixão. Socorro vem ajudá-la.

Zaninha Ela me agrediu, ela me queimou. Socorro Que coisa maleducada, agressiva essa lampa. Zaninha Tu num vem não, bichana.  Zaninha atira flores do caixão. Luz começa a piscar.

Socorro( Migram para debaixo do caixão, procurando proteger-se). Ela tá tentando uma comunicação. Ela é muito perigosa. Zaninha, ela vai armar um bote de fogo. Vão salpicar essas lampa em tudo que é lugar. Vai chover fogo todo dia, mulé. Zaninha

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É um dragão no coiteiro. Deve de ta adrumecido de cansaço e vai engolir nós tudo com uma língua de fogo. Socorro Será que é o pocalipse? Zaninha Ele está despertando para o Juízo Final Socorro Ela vai chover fogo sobre nós. Ela vai derramar chamas sobre os pecadores. Zaninha Perdão, meu Jesus. Eu num devia ter comido, nem bebido tanto. (As duas abraçadas debaixo do caixão). Acabou, Socorro. Socorro Acabou, Zaninha. As duas(Gritando) Acudam. Acudam.  Luz pára de tremer.

Zaninha Ela cansou-se. Socorro Ficou com medo, foi?  As duas saem do caixão e enfrentam a lampa. Entra lampa. Entra uma criança, a menina Val.

Menina val Cês tão falando com voinha, é? Socorro(As duas pulam de medo) Que susto, mia fia. Zaninha Venha cá, meu amor. Socorro É o velório de sua avó, né fia? Menina Val É sinhora Socorro Você estimava ela, fia? Menina Val É sinhora. Socorro Ajude nóis a enterrá sua voinha. Olhe, essa luz agride ela, minha fia. A coitada foi crescida no candeeiro, fazer a partida dela nessa invasão de luz, ela fica numa tristezura. Agente tem que armar uma luz morninha, mais agradável. Zaninha Olhe, nóis dá uns doce pra você atirar um estilingue na tequinologia. Menina Val

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Mainha me bate se eu fizer isso. Tudo na vida dela agora é tecnologia. Ele tá dizeno que voinha é o primeiro defunto a ser enterrado na presença da tequinologia. Olhe, ela mandou eu vir aqui para avisar que tá todo mundo acompanhando os caminhão que tão chegando carregado de mais poste. Zaninha Poste? Menina Val Poste é onde se prende a tequinologia. Tem uma renca na vila. Socorro E o velório? Menina Val Ta todo mundo lá. Mainha disse que findando a plantação dos poste, vem todo mundo para velar voinha. Era para as senhoras esperar. Socorro  Nós espera, mas e as alma? Zaninha Que dia que a cumadre foi escolher para morrer. Menina val Mas eu ajudo ocês. Em troca dos doce.  A menina vai até o interruptor e acende e apaga a luz. As duas se abraçam assustadas.  Menina deixa a todos no escuro.

Zaninha Como que ela fez isso, Socorro? Menina val É so apertar esse pitoco. Socorro Esse. (Socorro acende a luz, assusta-se e apaga rapidamente) Menina Val Se preocupe não, a força acaba todo dia às 10 hora. Quero quebra-queixo e alfenim. Até mais tarde. (Menina Val sai). Zaninha E eu deixo acesa ou brochada? Socorro(Apagando) Essa tequinologia pode esperar um tiquinho até nois se acomodar mais ela. Zaninha  Nós temo que aresolver o pobrema do d o menino. Ele agora mama na vaca. As fêmea secaram seca ram que nem açude. O menino está amufinando. Socorro(Acendendo o candeeiro) Temo que ser mais tinhosa, fia. Vamo disfarçar o menino. Assim ela num acha. Zaninha E é? Disfarçar como? Socorro Deixe comigo. Manhã nós segue para uma certa lonjura e o menino vai com nóis disfarçado.

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CENA 15 Passado Chegam as duas esbaforidas. Carregam o menino no colo. Quase desmaiam da caminhada longa.

Mulher  Que bom que ocês chegaro. Que bonequinha. Zaninha(Óbvia, para que a Morte ouça) É Maria Cova, minha fia. Eu não tenho filho homê. Só pari menina fema bem feminilizada na sua constituição. Mulher  E é? E ela num aperreia assim em sentinela? Socorro  Não. Só pára de chorar e só s ó dorme quando canta-se uma incelença. Foi criada nas cercania do luto. Zaninha Mulé, andamos mais de dez horas. Arranje um caneco de água. Mulher  Já trago. (Sai) Socorro Tu viu, ela nem percebeu? Zaninha Tu acha? Num me acustemei a ver o menino com tanto laço e se isso contageia os  pensamento dele. Mulher(Voltando) Graças a deus que ocês aceitaram. O fio dela já tava afoito. E aquele homem, calmo, já mata no olhar, avalie afoito... Socorro Agente num enjeita morto não, fia. Zaninha Chamou, nóis vai. Socorro Cadê a dita? Mulher  Ocês são macha mesmo. Num tinha ninguém nas arredondeza que peitasse fazer o velório de dona Coisinha. Zaninha Todos merecem ser endereçado pro céu. Mulher  Ei-la. Socorro Viuje Maria, ela sofreu acidente no rosto, foi? Mulher   Não, essa é a cara dela. Zaninha 39

Ela num tem cara de muita simpatia. Aliás, ela parece que num tem cara. Mulher  Tu num viu o fio. Socorro Quem é o fio? Mulher  Ocês num sabe? Num avisaro? Viuje Maria.  Homem vestido de cangaceiro abre a porta e se dirige lentamente até o caixão. Suspensão.

Lampião Mainha. Mulher  É o fio dela. Zaninha Socorro, parece que eu já vi as fuça dele. Socorro É Lampião, lesa. Vá saindo devagar pela esquerda. Lampião Eu quero o melhor receituário de reza do nordeste inteiro para minha mãezinha. Mulher  São elas, seu Lampião. São conhecida do vale do São Francisco até o Sertão do Cariri. (Saindo) Boa sorte.  Lampião senta-se ao lado do caixão e espera.

Socorro E agora? Lampião Eu num choro há dez anos. Quero chorar a morte de mainha. Disseram que ocês facilita a entrada no céu. Zaninha Esse povo fala muito, seu lampião. Socorro Aliás quede o resto do povo para o velório? Lampião Mainha era um mulé reservada. Zaninha Mas nem uma amiga... Lampião  Num vem ninguém. Socorro Eita Zaninha Eita. Lampião Eu to esperando e mainha tumém. 40

Socorro Deixe eu falar dela, deixe. Zaninha Glória Jesus. Amém nóis tudo. Socorrro Essa mulher, minha gente. Essa mulher... Essa Mulher(Desespera-se para lembrar o nome). Zaninha Dona Coisinha. Socorro Dona Coisinha. Dona Coisinha se promoveu a defunto. Entrou arretada de formosa no envelope de madeira que vai endereçar sua alma a deus. Agora ela está na terra da verdade, na terra de nós todos, na terra do nunca mais, na terra dos pés juntos para nunca mais se desgrudar... Lampião Tá repetitivo. Socorro Dona Coisinha era uma mulher-mulher. Isto sim era mulher. Foi com essa mulher mulher que eu descobri o que é ser mulher de tão mulher-fema que ela era. Ser amiga. Ser mãe. Mãe  bondosa de um fio...dois...três... Lampião Vinte. Socorro Vinte. Essa mulher era uma pessoa humana. Mãe saudosa de vinte fio. Vinte anjinho do Senhor que ela pôs no mundo. Zaninha Vinte! É por isso que ela tem esta cara. Socorro Vinte anjinho que não estão aqui...mas eu tenho certeza que onde estiverem, estão  pensando nela. Mãe de vinte criança! E dentre d entre tantas essa cria aqui presente é o melhor  resultado do afeto e carinho. Eu sei que por detrás deste corpo adrumecido, ela está revirada nos intestino inteiro de saudade do senhor. É por um fio que você conhece o trabalho de uma mãe. Olhe para o senhor. Olhe para o senhor. Olhe para o senhor.  Lampião não move um músculo. Estático.

Socorro Oremos! Zaninha O senhor conhece a oração Mãe Misericordiosa? (Lampião acena negativamente).E a Oração São Pedro, São Pedro, Acordai, cá estou. (Lampião acena negativamente). Socorro Reza qualquer uma que de oração, ele num entende mesmo. Zaninha “Rapaz, mistério é fortaleza o mundo não é só dos homens. tem fantasma que ensina reparte a experiência 41

assopra na orelha um conselho cochicha uma advertência. Homem, escute sua sombra o erro é a única certeza. A história vive da lenda. O que não se vê tem beleza, força, ciência e esperteza. O mundo não é só dos homens. Mistério é fortaleza”.  Lampião não move um músculo. As duas aproximam-se dele.

Zaninha Caiu uma gota de lágrima. Lampião É suor. Queria dar um recado de mainha para vocês: ta enfadonho. Zaninha(para Socorro)  Num funcionou. Socorro Vamos cantar, minha gente, para chamar os anjinho para perto dela. Zaninha e Socorro “Lá vem uma alma Pisando no chão, Vai dizendo a outra: Ou que buracão! Esse buraco É a sepultura; Essa terra fria É a cobertura Uma incelença Que nos deu no paraíso; Adeus, irmão, adeus! Até o dia do juízo”. Zaninha( Em meio ao canto, muda a letra para se comunicar). “Esse cabra ta enfezando Vai furar nóis no bucho Adeus, irmão, adeus! Até o dia do Juízo.” Socorro “Lá vem uma alma Pisando no chão, Ele tá dormindo 42

Ou que buracão!  As duas vão diminuindo o canto e observam para ver se Lampião se emocionou. Vão se cercando. Ouvem ronco suave.

Socorro Ele dormiu. Ele vai sangrar nós, Zaninha. Tá muito aborrecido. Zaninha Vigie o sono dele que eu vou aresolver. (Zaninha começa a rezar) Socorro O que tu tá fazeno? Zaninha To esperando que Deus toque no meu juízo para mó de dar um solucionamento mental. Socorro(Cara a cara com Lampião). Ande logo com esse solucionamento mental. Zaninha(Mexendo na defunta)  Não deixe ele acordar, não. Socorro E como é que eu vou mandar no sono de Virgulino? Se avexe, mulé, que eu to sentindo um  bocejo se inxerindo na mandíbula dele. Zaninha Venha.  Enquanto Lampião dormia, Zaninha desenhou um sorriso na cara da defunta.

Socorro(Olhando para dentro do caixão) Tu és uma danada. Zaninha Deve ser a primeira vez que um sorriso aparece na cara dela. Preparada? Socorro Todinha. Zaninha e socorro(Alto) Aleluia, Deus misericordioso. Benção, meu pai. Lampião(Num rompante) Cadê? Eu furo. Eu furo. Zaninha  Nunca que isto me aconteceu, meu fio. Olhe, estou todo arrepiada. arr epiada. Lampião O que foi? Socorro Sua mãe sorriu. Lampião(Frente ao caixão) Mainha, tu ta sorrindo, mainha? Zaninha Foi uma benção. Ela deve de ter chegado nos paraíso e foi bem recebida pelos anjinho. Olhe o contentamento dela. Socorro(Armando a saída) 43

Ela ta fazendo alegria lá no Alto. Foi um prazer, seu Lampião. Zaninha Gradecida pelo convite. Lampião Esperem.  As duas gelam. Lampião se aproxima e abraça as duas.

Lampião Só preciso lhe comunicar que ocê se equivocou. Conheço o cheiro de macho de longe. Sua fema tem documento de macho. Zaninha E é? Danou-se. É que minha vista é ruinzinha de tudo. Vá ver eu me confundi Socorro Danou-se. Nós vamo prestar mais atenção. Até mais. Lampião Vou carregar ocês mais eu para abençoar o bando todo. Zaninha Imagina, seu Lampião. Lampião Vocês nunca consideraram trabaiar fixo? Morto é o que não falta na nossa lida. Zaninha E é! Eu posso imaginar. Lampião Peguem seus cagado e sua herdeira que ocês vão cuidar de nossa morte nas brenha.( Abraça as duas e leva-as para frente do caixão). Eita, chorei, mainha. Zaninha Eita Socorro(Dando um lenço para Virgulino) Eita. CENA 16 Passado  As duas olhando para um rádio. Pausa.

Zaninha O que é isso? Socorro Radjo. Zaninha É o que? Socorro Radjo.  Pausa.

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Zaninha Donde nóis vem num tem isso. E como é que cabe alguém aí dentro? Socorro  Não mulé, é só a voz que sai de dentro dela. Zaninha E como se arranca a voz da pessoa? Socorro  Não mulé, isto funciona com a tal da ‘tequinologia’. Zaninha De novo essa ‘tequinologia’. Socorro A voz vem de longe escorrendo pelos fios que nem as almas viajando pelo ar. Zaninha Radjo. E é para sempre? Socorro E eu sei!  Pausa. As duas olhando para o rádio.

Rádio Você... Zaninha Ela tá falano cum eu? Rádio Sim, você... Zaninha É cum eu. Socorro Pode ser cumigo tumén. Rádio Você pode adquirir um lugar de honra no céu, se adquirir nossos serviços na funerária Caminho do Paraíso. Socorro Isso é nome que se dê! Que coisa metida. Zaninha Espie. Rádio  Nós sabemos a melhor maneira de levá-lo até o encontro e ncontro com o divino... Zaninha Oxente, ele pegou nosso selviço. Socorro É concorrente nosso. Escute aqui, seu radjo... Rádio(efeito sonoro)  Nós te acomodamos da melhor maneira ao lado dos santos... Zaninha  Nóis tá perdida. Aqui as carpideira usa a tequinologia para se apromover. 45

Vamos calar ele. Ele vai ficar fazendo reclame dos serviços dele, nós num vai pegar mais cliente. Socorro E como se cala isso? Zaninha Deve de ter um pitoco na parede que nem a lampa. Socorro(acendendo e apagando a luz) O pitoco só se comunica com a lampa. Zaninha E agora? Socorro Já sei.  Elas usam algum pano/tecido para abafar o som do rádio. O som segue bem abafado.

Zaninha Essa praga não se cala tão fácil. Socorro Vamo abater. Pegue um pedaço de pau Zaninha Mulé, isso num é assassinato? Socorro Deixe de ser doida, Zaninha, isso num é ser vivente. Isso é uma coisa. E uma coisa que quer   pegar nosso lugar. Zaninha É mermo.  Zaninha dá o pau. Socorro posiciona-se.

Rádio Procure-nos ao lado da matriz, em frente a Padaria Santa Teresinha... Socorro Chegou tua hora.  Entra a viúva e flagra socorro com o pau levantado para cima do rádio.

Viúva O que é isso? Socorro Eita, eita... Zaninha É que ele tava falano mal do seu falecido. Nóis mal conhecia ele, mas acho deselengotoso. socorro Sim, deselegantoso... Rádio  Nota triste: Saudamos a família Pontes pelo falecimento de seu patriarca, Senhor  Sen hor  Hermegildo, nobre figura da sociedade de Exu... 46

Zaninha Melhor você baixar o braço. Socorro Melhor nóis ir embora daqui. Zaninha melhor nóis ir andano. Socorro Melhor nóis tomar nosso rumo Zaninha A senhora adesculpe quarquer coisa. Viúva Mas..mas...  As duas saem.

Viúva Se o som tava incomodando tanto, porque elas num baixaram o pitoco do volume? Viúva abaixa o volume.

CENA 17  passado Velório de uma senhora, pendurada numa rede. Zaninha reza desesperada carregando o menino no colo.

Zaninha  Nóis já tá há anos nessa poeira dos caminho. Quanto mais a gente foge da danada,mais velóro aparece para nóis. Será que inxiste esse lugar? Socorro  Na hora em que você duvida e que a fé escassa, os sonhos se s e desmancha tudo. Firme o  pensamento, Zaninha. Nóis tem que achar... Zaninha Eita, Socorro. Socorro Que vexame é esse, menina? Zaninha O menino quer mais leite. Socorro Deixe eu ver se libero mais. Zaninha  Num tinha acabado? Socorro Deixe eu tentar. ( Socorro tenta dar de mamar durante o velório). Zaninha To dizeno? Acabou-se o leite de todo mundo. 47

Socorro Como assim? Zaninha Todas as pessoa a quem eu pedi leite pro menino secaram ou adoeceram. A última morreu enquanto dava leite para ele. Socorro To murcha também. É ela. Ela ta se cercano. Tá levano tudo que é ama de leite. Viúvo Obrigado, dona Socorro, dona Zaninha, por vocês terem vindo. O bando de Lampião arrecomendou muito as senhora. Zaninha Meu fio, nunca trabalhemo tanto. Era ver defunto como quem vê mandacaru. Socorro Magina, era nossa obrigação. Viúvo O menino está melhor? Socorro Está com febre, tremendo todo, coitado, mas Zaninha fez questão de vir fazer o quarto para sua finada. Viúvo Foi muito triste, ela morrer no momento do nascimento das crianças. Os menino ainda estão no posto médico ela veio para cá. (Olhando para a rede). O leite leite manchou o vestido, vou  pegar um pano para enxugar.(Sai). enxugar.( Sai). Socorro Vamos aproveitar e usar o leite que ela deixou para o menino. Zaninha Tu acha, zaninha? Socorro Agente resolve agora e depois tenta se arranjar de outro jeito. Venha, meu filho. Tome.  Elas põem a criança dentro do caixão para sugar leite da defunta.

Zaninha Ele está sugano. Graça Jesus. VOZ DA MORTE(Fora de cena. Canto.)  Nunca vi uma caminhada mais sem sentido.  Não há nos acre do mundo, lugar onde o nde eu não tenha ido. e, se ainda não cheguei, no coração do povo, eu existo. Socorro Teu filho tá morrendo. Zaninha O que? Socorro Teu filho tá morrendo. É verdade, Zaninha. Ela me disse agora no ouvido. A morte secou o leite de todo mundo nas redondeza. Até seu filho morrer. Acabou de soprar no meu ouvido. Ela vem pedir teu filho. Chegou a hora de enfrentá-la.

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CENA 18  presente  As duas de pé, prontas para ir embora. Socorro e Zaninha interrompem o jogo de dominó com a chegada da Mulher de luto chorando.  Levantam-se interessadas.

Mulher de luto Ele beijou todo mundo, agarrou-se na mão da mulher dele. Garrou-se nas últimas forças que tinha e disse no ouvido dela: “O céu é limpo” e depois deitou-se e sorriu. Zaninha(Torcendo) Morreu? Mulher de luto  Não. Só sorriu. Zaninha e Socorro Ah! Mulher de luto Foi um momento lindo. Zaninha e Socorro Sei.  As duas desistem de esperar. Já beberam bastante, especialmente Zaninha.

Socorro Vamos embora daqui. Este defunto não chega e ela deve de ta rondando nós. Zaninha Tem razão. Dona Mulé, nois já vai. Mulher de luto Mas ele ainda não chegou. Socorro Eu quero adeclarar para a senhora que eu já bebi mais álcool aqui do que em toda em minha vida e eu tenho mais que 100 anos. Mulher de luto Ele ta chegando, eu prometo. Socorro Minha filha, o que já morreu de gente no tempo que este defunto num se decide. Zaninha A senhora alocou o céu, foi? Num sobe mais nada até que ele se decide por ir. Socorro  Nós já demo conta de quase todas as reza r eza e canto. Zaninha Já tô toda dosada. Só nasceno de novo para curar essa bebedeira. Vou ter que encontrar São Pedro com bafo de pinga.

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Mulher de luto Só mais uma hora. Uma hora. E eu sei que ele se vai em paz. Zaninha O que tu acha, mulé? Socorro  Nóis vaiter que esperar o álcool baixar mermo que assim num dá parar seguir. Mulher de Luto Sente, Dona Socorro. Sente, Dona Zaninha. Me contem do velório mais bonito. Ocês se alembram? Socorro Ô, se alembro. Zaninha Será que meu coração agüenta recordar? Socorro  Num foi o velório de Flor. Tu te alembra? Zaninha Oxe, quem se esquece? Quando as papadas tremia, era ‘aquilo’ vindo. Mulher de luto Aquilo? Socorro Lá vinha um novo aroma de flor. Flor tinha essa mania de se inclinar toda delicada para um dos lado, quando ‘o fenomenu’ acontecia. Zaninha Inclinava como se ameaçasse tombar. Socorro Vinha junto um sorrisinho quando ela preparava uma festança de cheiros doces. Zaninha Espie o jeitinho gracioso no rosto dela de fazer esforço na artesania do dito cujo prefumoso. Parece dizer: Socorro “Carece de foco e de se concentrar, mas é gostoso”. Zaninha Som, não soltava não. Nós é que imaginava um monte de baruio. Socorro Cheguei mesmo a pensar um dia que ouvia um monte de sanfonas embaixo de sua saia. Assim uma orquestra de sanfoneiro. Zaninha Outros ouviro choro de nenê, chocalhos de criança, assovios, apitos e até berrante. Não tinha como controlar tamanha força puética que era o dom de Flor. Socorro Era um dom, viu? Mas tudo se iniciou com muita culpa. Zaninha Flor era praticamente um banco da Igreja, de tão presente nas missa. Socorro Um dia, sentiu uma vontade assim agressiva no baixo ventre. Um ruído e um movimento de tripas como uma fera acuada. Zaninha 50

Vinha galopando sob as anágua uma bomba de gases. Em plena missa, menino! Prendia o quanto podia para libertar a bufa na hora do canto, do sino, dos aplausos. Mas o que não  podia era soltar no meio ao Evangelho. Socorro Mas foi justo na hora do silêncio mais firmado que Flor... Zaninha Peidou.  As duas fazem o sinal da cruz. Depois bebem mais um gole. E riem.

Zaninha  Nem uma mosca, nem um boi mugindo, nem um bebê de choro, chor o, nada. Para Flor, o mundo todo ficou de tocaia para assistir o seu ato bárbaro. Socorro Eu alembro como se fosse agora. A sensação abalou as carne e osso da bichinha. Flor  despencou sentada. Aguda de vergonha, não conseguia ouvir nada. Zaninha Se enterrou no véu de rendas e saiu da igreja. Lá fora pediu o perdão a todos os santos que conhecia. Socorro  No meio do evangelho! Eita, a revelação da palavra. p alavra. Expiou a culpa até o fim da missa e, como uma criança aos pés do padre, pediu que todo mundo saísse da sacristia. Em lágrimas, rogou a salvação para o crime cometido diante do altar. O padre acalmou ela e sabia que Flor tinha algo a ver com aquele vapor de essença de crisântemos que foi lançado durante o evangelho. Zaninha “Quando a vi saindo, sabia que era tudo armação sua, Flor. Que idéia caridosa, brindar os fiéis com um banho de prefume durante o Evangelho. Jesus deve te achar uma filha muito especial”. Socorro Crisântemos. Flor peidou crisântemos. Zaninha “Podemos tentar jasmim para a missa de Domingo próximo?” O padre ainda encomendou outra bufa. Socorro Flor saiu da Igreja e começou a testar seu artifício do oiti. Já com seus familiar, ela mandou sua baforada íntima. Todos comentava que a casa ficou com ar fresco e clima de jardim. Flor começou a se concentrar mais. Pensava rosa, tinha rosas no ar. Zaninha Pensava lírios, lírios. E no dia em que Flor pensou na mata fechada. Insetos capengavam sufocados de tanto  prefume. E as abelha quase causaram caus aram um desastre na vizinhança. Socorro A família a encurralou: Zaninha “O que está acontecendo aqui, Flor?” Socorro 51

“Ocês não vão creditar. Eu solto pum e eles cheiram a flores.” Zaninha “Mainha!” Socorro Todos se agacharam atrás de Flor e ela assucedia em sugestionamento aromático. Zaninha A filha chorava de alegria, o neto chorava de medo, o marido viciou-se na dama-da-noite. Flor era beijada e amulengada e amarrotada e acima de tudo, cheirada por todos. E vieram vizinhos, a cidade, a paróquia. Olhe, foi um sucesso na vida dessa mulher. Socorro Flor começou a desenvolver “essença” para aumentar as vendage da lojinhas, dos armazém, das fazenda, do grupo escolar. Na região, nenhuma cidade crescera tanto. Zaninha O progresso. Muitos migrante chegaram para viver na terra promissora. Quando o governador veio entregar títulos, advinha quem foi aplaudida por uma hora? Socorro De tão emotivada, Flor pensou em Jesus, virou de costas e quando presenteou todo povo da cidade, lançou...cravos.  Pausa. Outro gole.

Zaninha Flor desmaiou na seqüênça. Socorro Flor murchava. Zaninha A cidade em romaria, vigília e orgulho. Todos comentava a história desta santa incomum. Agente devia de ter beatificado ela. Socorro Dificilmente, menina. Como Flor conseguira esta graça? Como é que iam explicar a ‘santidade’ de Flor? Os milagre do Oiti? Zaninha O fato é que Flor só descobriu na maturidade. Flor gramou muito para alcançar tanta pureza nas entranha. O caminho é condimentar e fermentar mal-cheiro com o peso dos anos. O cheiro fedido que agente constrói neste atrito terreno. Socorro Muitos que se sujam por dentro, armazenam um fedor espesso de vingança ou de arrependimento. Como Flor conseguiu escapar desta sina de intestinos escuro? Um mistero. Zaninha Como? Perguntava sua filha, à beira da cama: Socorro “Só vira anjo quem estuda para adubo”. Zaninha Tu te alembra? Flor lançou num suspiro, se virou de lado na cama imensa, sorriu e contraiu o rosto. E a sala ficou toda com uma ventania grossa de alecrim. Socorro

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Gente trazeno potes para aprisionar o último presente de Flor. Jogavam-se no ar em busca  por um pouco do cheiro dos anjos. Até inda a pouco vi gente na pracinha exibindo frasco. fras co. Zaninha Ô defunto para chorar gostoso. Socorro E no cemitério, os filhos puseram esta foto. Zaninha Flor exibe na lápide seu sorriso maroto que anuncia o milagre dos cheiros. Socorro Tu te alembra? Um pouquinho antes de fechar o caixão, ela lançou um aroma de lírios. Zaninha Que nada, mulher. Era cheiro de gardênias. Socorro Tu és teimosa, isto é lírio. Zaninha Gardênia. Socorro Eita, o tempo confundindo nós de novo.  A defunta salta nova baforada.

Zaninha e Socorro Saudade/Amor-perfeito  Desabam a rir.  Zaninha desaba num choro. Socorro começa a reza. As duas choram. Ficam as duas emocionadas com esta lembrança.

Mulher de luto Que reza que ocês fizeram? Socorro Ela pediu o Salve Rainha. As pessoas tudo rezaram mais a gente. Tu te alembra? Zaninha Oxe, se alembro.  Fazem o Salve Rainha.

Juntas Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa. Salve! A vós bradamos, degredados filhos de Eva; a vós suspiramos gemendo e chorando nesse vale de lágrimas. Eia, pois, Advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro mostrai-nos a Jesus, bendito fruto de vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó Doce sempre Virgem Maria. Rogai por nós santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Zaninha Eita que eu aprendi o céu com uma velhinha bufenta. 53

 Abre-se uma porta. Todos se assustam.

Velhinha perna torta Ele acabou-se de acabar. Já estão trazendo para cá. Socorro e Zaninha(Não escondem a euforia). Aleluia, senhor! Socorro Achei que ia terminar meus dia esperando esse defunto. Zaninha Traga ele, minha filha. Traga. Socorro e Zaninha se paramentam para iniciar a cerimônia.

CENA 19  passado Só Socorro e Zaninha no meio da caatinga. O menino envolto nos panos. Zaninha chorando.

Zaninha Quanto mais agente caminha, mais ela aparece, exibida. Parece que tá zombano de nós. Ela deve de tá escondida em nossa sombra, resfastelada a esperar que agente desabe e desencarne de vez. Socorro e Zaninha encontram um caminhante.

Socorro Moço. Caminhante Diga, senhora. Socorro  Nóis estamos procurando um lugar que a Morte não conheça, onde ela não apareça. apar eça. O senhor tem idéia onde fica? Caminhante Sei, sim, fica adepois dali, virano a curva da esquina do fim do mundo. Zaninha Ajude nóis moço, ela quer levar meu filho. Caminhante Ela já me levou quatro, dona moça. Olhe... (CANTO) ‘Minha filha, se eu subesse, eu tava rico, para lá de milionaro. Quem não quer este segredo por Jesus tão bem guardado? Uma terra sem a dita-cuja, sem a lastimosa despedida? Agora, pense, para que vingar eternamente nesta vida? 54

Ela tem que chegar, cedo ou tarde, a nossa frente  porque tá cheio de candidato a nascer atrás da gente. A fila tem que vencer, nosso dia vai chegar. O negócio é fazer desta vida um passaporte feliz  para chegar do outro lado nos braço de quem se quis. Sorria, fia, tem mais caminho após a passagem. A morte abre outra janela, tome corage e olhe a paisagem.’ Caminhante sai.

Socorro Ouça o canto dela. (Talvez pensar um canto para sugerir a proximidade da morte). Zaninha Acabou-se, Socorro. Socorro Tem um vulto vindo de longe. É Ela. É a hora. Não tem para onde fugir mais. Zaninha E agora? O que nóis vai fazer? Socorro tapa a boca de Zaninha. Começa a falar-lhe ao pé do ouvido.

CENA 20  presente Socorro e Zaninha estáticas diante do caixão.

Zaninha Como é o nome dele? Mulher de luto Genésio Pontes Silva. Conhecem? Zaninha Genésio? É meu filho, Socorro. Socorro Fale baixo. Ela deve de ta por aqui. Mulher de luto É seu filho. Eu disse que demorava, mas eu levava.  As duas olham em direção da Mulher de luto.

CENA 21  passado Só Socorro e Zaninha. O menino envolto nos panos.

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Socorro Tem um vulto vindo de longe. É a hora. Não tem para onde fugir mais. Zaninha E agora? O que nóis vai fazer? Socorro tapa a boca de Zaninha. Começa a falar-lhe ao pé do ouvido.

Socorro Ela te deu o menino e quer te tirar para tu respeitar ela. Queres teu filho de volta? Zaninha Que pregunta.  Alguém se aproxima.

Socorro É Ela. Deixe comigo.  Barulho da chegada da mulher de luto(A mesma que falou com elas durante a peça).

Socorro A senhora veio. Mulher de luto Vim, minha filha. Eu lhe avisei. Eu vim levar a criança. Fui eu quem lhe dei ele e agora vou lhe tirar para ensinar ocê a trabalhar para mim. Assim como tirei o amor de Socorro. Amor  que eu dei e tirei dela. Socorro Eita, Pedro. Mulher de luto Lá em cima tão pedindo ele para ser anjinho no céu. É uma honra. Zaninha Deixe ele mais eu só um pouquinho. Mulher de luto Chegou o momento, fia. Num pranteie ele não que ele é anjinho e suas lágrima vai pesar as asa dele no caminho até o céu. Socorro A senhora permite só uma última coisinha? Mulher de luto Seja breve e não me engabole. Socorro  Num leve ele até nós terminar a oração de Salve Rainha. O menino chega sorri quando ouve essa oração. Mulher de luto Pode ser, mas seje breve. Socorro ( Puxando Zaninha) Reze mais eu. Juntas Salve rainha,...Oxente eu me esqueci. 56

Mulher de luto Como é que é? Socorro Eita, Dona Morte, me escapou das idéia. Tu te alembra? Zaninha Lembro... Socorro(Cutucando ela) Deixe de ser lesa. Zaninha Eita, eu me esqueci também. É que é muito difícil essa oração. Mulher de luto Suas tratante. Vamos logo com isso preu fazer meu trabalho. Socorro Só pode levar o menino quando nós rezar juntinha a oração até o final. Zaninha Promessa de Dona Morte. Socorro Agora o tempo que vai durar até nós terminar só nós que sabe. Mulher de luto  Não sou de descumprir minhas promessa, promess a, mas ocês roubaram do céu um u m anjinho. E eu vou voltar para cobrar isto. Um dia, eu venho buscar ele.  Mulher de luto sai.

Zaninha E agora? Ela disse que vai voltar... Socorro Por precaução, vamos esconder o menino dEla. Vamos dar para alguém criar. Agente disfarça ele numa outra família, distante daqui. Zaninha E se preguntarem por ele? meu Pai? Nonato? Socorro Vamo dizer que ele se apagou e selou os olho de vez na caminhada. Confie em mim. Zaninha E eu agüento? Ô Socorro, vamo deixá o menino ao menos em uma família perto de nóis. Só  preu passar avista nele cresceno cresc eno vez o outra. Socorro Vamo. Mas tu vai ter que dar para outra criar. Pense, Zaninha: tu sabe que ele está vivo. Isto deve te bastar. Eu entrego para alguma sinhá de fazenda do Seu Pontes. Zaninha Mas nós vamo batizar com um nome agora. Genésio Pontes da Silva. Genésio que é o nome de meu avô, Pontes da família da fazenda e Silva que é o sobrenome de nóis tudo. Socorro Ela nunca que vai achar. Zaninha Faça, fia, faça. Socorro 57

Tu tem que pensar assim: Deus te deu esse fio duas vezes. É um milagre ele ficá vivo. Zaninha O caminho do milagre está cheio de pedra. Socorro Zaninha, teu fio vai ser bem cuidado. Com a graça divina, ele há de crescer longe de ti, mas vivo. Zaninha Mais do que Deus, ninguém. Socorro(Pegando na mão de Zaninha) Eu esperanço nunca ter que velar ocê. Que Deus me carregue primeiro. Eu que num quero ficar aqui rezando para teu corpo veio. (Debochando). “Lá vem a barra do dia...” Zaninha Eu também. Nóis bem que podia enganar ela e ir juntas. Socorro Como? Zaninha Fazendo uma roda de côco assim: ‘ô dona Morte que a todos castiga nóis sabemo que as rugas indica a hora de nosso descanso mas nóis semo grandes amiga deixa nóis mais um tiquinho só leve nóis quando fechar esse canto’. Aí nóis cantava e cantava outra e outra e outra estrofe e saía de fininho dançano, quando a morte desse fé, nóis já no horizonte... Socorro  Nós vamos juntas. Zaninha Como é que tu sabe? Socorro Eu sei de nada não, eu esperanço. Zaninha Então eu esperanço mais tu. Obrigado, Socorro. Socorro Obrigado, Zaninha.  As duas beijam o menino.

CENA 22  Após revelação do mistério. As duas olhando para o público. Talvez aqui o defunto-filho apareça.

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Mulher de luto Mesmo torcendo o pescoço do galo, o sol nasce. Eu vortei. Demorou mas ocês se alembraram da oração. Socorro Zaninha, nós acabamo a oração ainda agora. Mulher de luto Eu tava só esperando ocês finalizar para levar ele conforme o prometido. Zaninha Ele ficou um senhor bem-posto. Genésio, meu fio. Socorro Vá em paz, meu filho. Zaninha A senhora enganou nóis. MORTE Enganar? Ô velhinhas tinhosas. Vocês não percebem que eu deixei vocês procurarem este ‘lugar onde eu nunca fui’. Deixei para fazer vocês aceitarem que eu estou em todos os lugares. Zaninha Ela quer engabelar nóis? Socorro Escute, Zaninha. MORTE Vou contar um acuntecido: Uma mãe, há muitos anos atrás, corria desesperada para todo canto, clamando por algum remédio que desse vida a seu filho, que acabara de falecer. Quando eu cheguei para conduzir o menino, ela gritou: ‘Dona Morte, eu faço o que a senhora quiser para trazer o bichinho de volta.’ Eu disse então que conhecia um remédio, mas o remédio precisava de um ingrediente muito importante. Ela disse que percorria o sertão inteiro atrás do que fosse necessário. Apoi, eu disse ‘eu preciso de raiz de mandacaru’. Ela saiu correndo e eu completei: ‘mas eu preciso da raiz de mandacaru plantada em uma casa onde os moradores nunca sentiram a dor da perda’. Ela se foi. Passou anos indo de casa em casa, rica ou pobre, triste ou feliz, de sapé ou de tijolo, e foi incapaz de encontrar um lar onde eu não tivesse tocado o pai, a mãe, o filho. Mas indo de casa em casa, ela percebeu que num tava sozinha, viu como cada um aceitava a morte e sentiu um conforto e se fortaleceu. Quando eu voltei para pegar a cria, ela nem resistência ofereceu. Ela se amaciou todinha para o meu lado. Todos perdem alguém. A dor faz parte dos trato com os Altos. Zaninha Quanto mais nóis andava, mais suas pegada encontrava. Socorro E nóis nem atinou para o que isso ensinava... A MORTE

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Ocês me enganaram muito. Custou, mas deixei para encontrar ocês hoje porque assim ocês  podem fazer companhia para ele. Chegou Ch egou sua hora e eu vou cobrar os juro dessa demora. Eu tenho que levar uma de ocês e ocês vão decidir qual que eu levo. Socorro  Nóis? Essa morte é uma agiota, Zaninha. Zaninha Tá pensando que o Céu é banco? Como que se decide isso? MORTE Eu não sei, só sei que tenho que seguir com uma de ocês. É o comando. Socorro Eu vou. Zaninha  Não, eu não concordo. Vou eu. Vou para ficar junto de meu fio. Socorro Leve eu, dona Morte, eu sou mais velha. To mais cansada.  As duas se atiram na frente uma da outra querendo ir.

MORTE É melhor se adecidir ou eu levo as duas. Socorro As duas? Zaninha As duas. Socorro A sinhora nos dá mais um minutinho. MORTE Vão logo, que com ocês num dá para brincar que ocês são arisca. Socorro Gradecida.  Elas se afastam um pouquinho.

Socorro. Zaninha, e se quando chegar nossa hora, nóis disfizer a hora. Zaninha Como é que é, mulé? Socorro Aquele negócio de ir juntas é muito bunito, mas e se nóis ficar mais um pouquinho. Confabulam. Elas se abraçam. Pegam as bonecas e começam a manipulá-las.

Socorro Pode levar as duas que nós não vamos decidir  MORTE Se ocês não se adecide. Vamos viajar os quatro. Socorro Eita, Zaninha, chegou o dia. 60

Zaninha Eita, Socorro, ocê é minha melhor amiga. Zaninha Obrigado, Socorro. Socorro Obrigado, Zaninha. Socorro e Zaninha “Lá vem uma alma Pisando no chão, Vai dizendo a outra: Ou que buracão! Esse buraco É a sepultura; Essa terra fria É a cobertura Uma incelença Que nos deu no paraíso; Adeus, irmão, adeus! Até o dia do juízo.”  Luz baixa. As duas colocam as bonecas dentro do caixão e escondem-se embaixo dele. A morte fecha o tampo e começa a vibrar sentada no caixão. As duas chamam a atenção de dona morte que percebe então que foi mais uma vez enganada. Elas debocham dela e dona morte ruge sua ira final.  Luz baixa com as gargalhadas de Socorro e Zaninha, abraçadas.

FIM...

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