Na Escola de Nazaré: Tornando Sagrada a Minha Família - Frei Bruno Varriano

December 26, 2017 | Author: Jaster IV | Category: Saint Joseph, Nazareth, Mary, Mother Of Jesus, Jesus, Saint
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Descripción: Na Escola de Nazaré: Tornando Sagrada a Minha Família - Frei Bruno Varriano...

Description

Table of Contents Apresentação Introdução Tudo tem início em Nazaré A cidade de Nazaré na Galileia As ruínas do povoado de Nazaré A Gruta da Anunciação A casa de São José, casa da Sagrada Família de Nazaré A sinagoga de Nazaré O monte do precipício Santuário de Santa Maria do Tremor Nazaré, escola do Evangelho O silêncio Anunciação, escola das relações Vida ordinária, escola de cotidianidade Nazaré, escola de humanidade Escola do trabalho Nazaré, pedras amadas e vivas Os franciscanos em Nazaré O Beato Charles de Foucauld em Nazaré Uma família de Nazaré Viver Nazaré A Sagrada Família, dom e projeto de Salvação A participação da Família de Nazaré na história da Redenção O matrimônio de Maria e José de Nazaré Maria e José, “dom” um para o outro O dom “esponsal” de Maria e José: a realização do serviço a Cristo e à Sua Igreja Sagrada Família de Nazaré, inspiração da Igreja doméstica São José, uma paternidade “desafiadora” Maria, uma maternidade eclesial Jesus, Maria e José, ícone do amor Trinitário Sagrada Família, modelo de todas as vocações Um discernimento decisivo entre “celibato pelo Reino e Matrimônio” O amor esponsal na vida celibatária pelo Reino dos Céus e na virgindade Vocação ao matrimônio Verdade e beleza da família O anúncio do Evangelho da família Matrimônio e família na Bíblia Abertura ao dom da vida 2

O desafio da educação dos filhos O papel dos avós na educação dos netos Prospectivas para uma Pastoral Familiar no exemplo da Sagrada Família Orientar os nubentes (noivos) ao caminho do matrimônio Passos do percurso de preparação Acompanhamento nos primeiros anos de matrimônio Melhorar a comunicação em família Preparação dos presbíteros para a Pastoral Familiar Misericórdia para com as famílias feridas e frágeis Atenção àqueles que vivem no matrimônio civil ou em convivência Separados, divorciados não recasados Divorciados recasados Matrimônios mistos Repartir de Nazaré... Os mistérios da vida de Jesus em Nazaré Referências bibliográficas

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À “mamma” Lucia in Varriano (In Memoriam). “Mulher de silêncio, de ternura, de escondidos gestos de caridade, me ensinaste a amar Jesus, Maria e José na tua simples vida de fé na cotidianidade...”

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Apresentação

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sta apresentação, que tenho a alegria de escrever para o livro de frei Bruno Varriano, contribui para consolidar os laços fraternos que unem o nosso prezado irmão franciscano e a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. Paulista de nascimento, mas vivendo há mais de vinte anos na Terra Santa, frei Bruno foi o pregador de um Retiro para vinte sacerdotes de nossa Arquidiocese, que visitaram Israel em outubro de 2014. Foram dias de comunhão fraterna que marcaram aqueles padres e que deixaram em frei Bruno o sentimento de estar “muito ligado à Arquidiocese do Rio”, como ele mesmo afirmou. A proposta deste livro tem dois aspectos interessantes. Primeiramente, a pertinência do tema, na perspectiva de uma das mais urgentes preocupações da Igreja, que é a família. Tanto que frei Bruno não se esquece de destacar o Sínodo sobre a Família 2014/2015, convocado pelo Papa Francisco. O livro acrescenta a contribuição do autor à temática, segundo o enfoque por ele escolhido. Este é o segundo aspecto que desejo destacar: a abordagem original de tomar como guia nesta reflexão o exemplo da Sagrada Família de Nazaré. E o autor pôde fazêlo com a desenvoltura de quem respira os ares palestinos por mais de duas décadas e é, portanto, capaz de conduzir o leitor em uma caminhada espiritual, dentro da realidade concreta daquela terra onde Jesus, Maria e José viveram. A partir deste contexto, a reflexão irá se ampliar por outros olhares sobre a Família de Nazaré, segundo perspectivas de cunho bíblico, teológico, do Magistério e espiritual. E vai avançar, também, para uma reflexão sobre as vocações na Igreja, que mutuamente se explicam e complementam, como o matrimônio, a vocação sacerdotal e consagrada, o celibato. Ainda contamos com os alicerces que ele propõe para a Pastoral Familiar. Evidentemente que esta diversidade de abordagens, dentro de uma obra à qual o próprio autor dá a despojada definição de “opúsculo”, não pretende esgotar o tema. Situa-se no âmbito da experiência, sempre iluminada pelo exemplo da Sagrada Família. Daí haure sua força e profundidade. Frei Bruno, com sabedoria, aplica intrinsecamente no seu texto a máxima do Beato Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi 41, que se tornou definitiva para os nossos dias: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas.” Que melhor testemunha da instituição familiar, sob todos os aspectos e para todos os tempos, do que a Sagrada Família? Dela recebemos o exemplo do amor misericordioso que Deus ofereceu à humanidade, em Seu Filho Jesus Cristo, e que frei Bruno descreve 7

como lição de acolhimento às famílias feridas e frágeis. E são tantas em nossa sociedade! A Família de Nazaré também nos ensina a viver segundo o Evangelho. E, “mesmo que não tenhamos soluções para todas as dificuldades que vivem as famílias hoje”, como reconhece o autor, a poderosa intercessão dela nos acompanhará sempre. Esta é a conclusão que frei Bruno irá desenvolver no último capítulo desta obra, no qual lembra a Oração da Sagrada Família, composta pelo Papa Francisco. Assim como ao ouvi-la pela primeira vez ele foi tocado, concebendo naquele momento o projeto deste livro, assim também dirijamo-nos sempre à Sagrada Família com fé e confiança de que nossos anseios e necessidades serão acolhidos. Estes são os meus votos a todos os leitores deste livro, a fim de que concluam este itinerário com preciosos frutos, fraternalmente guiados por frei Bruno. Rio de Janeiro, abril de 2015 Orani João Cardeal Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

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Introdução

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os tempos atuais, especialmente por conta da emotividade e de milhares de pseudossentimentos, torna-se muito difícil falar de família, de matrimônio, de amor esponsal, sem cair em uma retórica ou somente em uma teoria, ou mesmo ainda no pessimismo. Mesmo assim, o desejo em se edificar uma família permanece vivo, em especial entre os jovens, motivando a Igreja, perita em humanidade e fiel à sua missão, a anunciar incessantemente e com profunda convicção o “Evangelho da família”, que lhe foi confiado mediante a revelação do Amor de Deus em Jesus Cristo e ininterruptamente ensinado pelos Padres, pelos Mestres da espiritualidade e pelo Magistério. Foi com este espírito que Papa Francisco convocou o Sínodo de 2014/2015 com este tema tão atual e urgente sobre a realidade da família. Esse e outros eventos que estão marcando a história da Igreja nos últimos tempos coincidiram com a minha transferência para Nazaré, no ano de 2013, em coincidência com o início do pontificado de Papa Francisco; e deixando Jerusalém, me encontrei a custodiar o Lugar Santo da Encarnação e da Sagrada Família. Foi na solenidade da Sagrada Família deste mesmo ano que fiz a comovente experiência de presenciar aqui, no Santuário da Sagrada Família, a solene liturgia na qual foi pronunciada pela primeira vez a oração pela família composta por Papa Francisco, e foi naquele momento que nasceu o projeto deste opúsculo, que tem como objetivo colher os pontos nodais sobre o matrimônio e a família, tendo sempre como guia e exemplo a Sagrada Família de Nazaré, na experiência bíblica, no Magistério da Igreja, na convicção, guias e modelos para a realidade da família hoje. Porém, mesmo sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se constroem dia após dia. Esta é a espiritualidade da “Escola do Evangelho de Nazaré”, lugar de compreensão e amor, modelo para todas as vocações, seja religiosa, celibatária ou presbiteral, seja para a vida familiar. A Sagrada Família de Nazaré é espelho de “conciliação e de amor”, no qual se torna possível para todos viver uma autêntica comunhão com Deus, a partir da qual flui a comunhão entre as pessoas. Partindo da “Escola de Nazaré”, este livro, se assim quisermos chamá-lo, porque ele para mim é um instrumento de mediação e diálogo, tem também a meta de apresentar a visão unitária vocacional, partindo da experiência da Família de Nazaré; e como o primeiro casal criado por Deus (Adão e Eva), feitos à imagem e semelhança Dele, caíram no limite da desobediência, o mistério da Encarnação, no evento do Verbo que se faz Carne e que encontra em Maria e José a própria realidade familiar anunciada pelos 10

profetas, é realmente ícone exemplar para a família, para todos os homens e mulheres chamados a reconhecer no “Filho da Virgem de Nazaré” a sua humanidade redimida e salva. Em concreto, a nossa proposta se articula em quatro partes, no total dez capítulos. Uma das características encontradas em todos os capítulos do livro é uma oração conclusiva, na qual o irmão e a irmã, companheiros neste itinerário e aprendizado de Nazaré, são convidados(as) a rezar, a se deixarem conduzir pelo Espírito Santo, e através do nosso “sim”, como aquele da Virgem Maria e de São José, o mistério da Encarnação pode continuar na nossa vida e o Evangelho pode ser propagado em todos os confins da Terra. A primeira parte, cujo primeiro capítulo é intitulado Tudo tem início em Nazaré, quer apresentar Nazaré com a sua geografia, a sua história, o seu perfume, o seu clima, convidando o(a) leitor(a) a fazer uma peregrinação espiritual e, a partir desta, a percorrer um caminho interior, guiado(a) pela escola do “Evangelho de Nazaré”, na sua realidade concreta, cotidiana e ordinária da vida. A segunda parte tem como objetivo apresentar, a nível bíblico, teológico, magisterial e espiritual, a Sagrada Família de Nazaré e mostrar como os seus membros se tornaram exemplo para todas as vocações, seja para o matrimônio, seja para o celibato, na própria relação com Cristo e no serviço a Ele. Neste fundamento se constrói a Igreja como experiência de acolhida e da caridade de Deus em Cristo. Nestes concretos fundamentos se constroem o matrimônio e a família, segundo o modelo da “Sagrada Família” de Nazaré, exemplo de recíproca responsabilidade, na ética do amor, do serviço e da fecundidade da família, presentando a maternidade de Maria como um caminho e modelo para a Igreja. Nesta parte uma atenção especial é dada à figura de São José e à sua participação e cooperação ativa no mistério da Salvação, como modelo para toda paternidade biológica e espiritual. Na terceira parte, depois da meditação da beleza e da verdade do Evangelho do matrimônio, iremos refletir e colocar os alicerces para a construção de uma “Pastoral Familiar”. Por esta razão, estes capítulos desejam ser um estímulo para a realização de percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de tal modo que a comunicação dos conteúdos da fé, fundada em uma experiência de vida, seja oferecida para que toda a comunidade eclesial se torne a base, o terreno (húmus) da própria experiência familiar. Gostaria ainda nesta parte de encorajar a preparação dos presbíteros para a Pastoral Familiar, pois quando fundada na estima recíproca de solicitude entre casais e presbíteros, podemos afirmar que a pastoral está desenvolvendo a sua tarefa de ser referência para a inteira comunidade. Na quarta parte, quero propor-lhe, caro(a) irmão(ã), a reflexão evangélica da 11

contemplação da humanidade, mesmo se esta é ou foi ferida na sua história. Por isso, estes capítulos refletem a necessidade de usarmos misericórdia para com as famílias feridas e frágeis. É necessário acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber fomentar a sua busca, encorajar o seu desejo de Deus e a sua vontade de se sentir plenamente parte da Igreja, até mesmo quando esses experimentaram a falência ou viveram as situações mais diferentes. Essa meditação, que é a medula (centro) da mensagem cristã, contém sempre em si mesma a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que convergem em Cristo, que se encarnou aqui, em Nazaré, para encontrar o homem na sua história, na sua realidade. E a reflexão se conclui com o último capítulo, intitulado Repartir de Nazaré, no qual, iluminados pela Sagrada Família, podemos recuperar o gosto da vida ordinária, a simplicidade das pequenas coisas, redescobrindo os valores da cotidianidade. Por isso, retornando e repartindo de Nazaré, mesmo que não tenhamos soluções para todas as dificuldades que vivem as famílias hoje, podemos afirmar que na “oração” da Sagrada Família, no silêncio e na vida escondida, na experiência humana e no operar do “Filho Jesus”, aqui, entre as paredes do lugar onde viveu a Sagrada Família, emana a mensagem da Boa Nova do Evangelho, que é a própria vida doada, e apesar de todas as dificuldades, quero repetir as palavras do anjo, pronunciadas à Virgem Maria, aqui, a poucos metros de onde escrevo: “Para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Que a Virgem Maria de Nazaré e São José, seu fiel esposo, guiem as nossas comunidades no acompanhamento das jovens gerações na descoberta e na acolhida da vocação. Fr. Bruno Varriano, OFM Nazaré, 25 de março de 2015 Solenidade da Anunciação do Senhor

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Tudo tem início em Nazaré

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ora de qualquer previsão, intenção ou projeto, esta criatura que quero chamar de “livro” já passa pelo calor das minhas mãos, aqui, a poucos metros da Gruta da Anunciação, onde o Verbo se fez carne, e da casa de José, onde viveu a Sagrada Família. Este lugar, em que vivo não por mérito, mas por graça, na sua simplicidade e santidade enquadra-se em um mosaico dos tempos que estamos vivendo e da realidade vivida pela Igreja. Desde o início de seu pontificado, o “bispo de Roma”, como se apresentou Papa Francisco no sagrado da Basílica de São Pedro, demonstrou uma personalidade de homem de Deus, que viveu, vive e deseja continuar vivendo na simplicidade, em um cotidiano estruturado em cordiais contatos humanos, no qual a afetuosidade paterna prevalece sobre a autoridade. Um Papa que se entretém com as crianças, que abraça os pequenos, os simples, os doentes. Que com suas mãos ternas, seus gestos, seu olhar misericordioso, nos faz senti-lo tão perto, tão junto. Que supera as barreiras físicas do mesmo modo que o Deus da Encarnação, o Emanuel, o Deus conosco. Que, com sua humanidade, alegria, misericórdia e consolação, chama a Igreja e todos os cristãos a se conscientizarem da necessidade de uma nova evangelização, sintetizada por ele em um pronunciamento feito no dia 5 de maio de 2013 aos fiéis, na Praça de São Pedro: “Todo cristão e toda comunidade é missionária na medida em que vive o Evangelho, no testemunho do Amor de Deus para com todos, especialmente para com aqueles em dificuldade. Sejam missionários da misericórdia de Deus, que sempre nos perdoa, espera e ama.” Esta ênfase sobre a misericórdia suscitou um impacto relevante também sobre as questões relacionadas ao matrimônio e à família. Longe de qualquer moralismo, o Papa confirma e alarga horizontes na vida cristã, independentemente dos limites que podemos experimentar e dos pecados que tivermos cometido. A misericórdia de Deus se abre à conversão contínua e ao renascimento permanente. Por isso, em concordância com o Espírito Santo, que em Nazaré concebeu, por Sua obra e graça, o Filho de Deus no seio da Virgem Maria e que hoje visita, guia e aviva a Igreja, o Papa Francisco convocou o Sínodo de 2014/2015 com temas referentes à família, na qual os valores de uma relação concreta e cotidiana se tornam ícones. Convocando o Sínodo, ele nos encoraja a sempre olharmos para o próprio futuro com esperança, inserindo nas famílias um estilo de vida que conserva e prospera o amor através de atitudes, como pedir licença, agradecer e pedir perdão, jamais deixando que o sol se ponha sobre uma desavença ou incompreensão, sem que se tenha a humildade de 14

pedir desculpas um ao outro. Junto a todas essas maravilhas de Deus, que sempre nos surpreendem em meio a tantas perguntas inquietantes sobre a nossa existência, e às quais a obediência à minha vida religiosa me conduzia, eis que recebo o chamado do meu superior canônico, comunicando a minha transferência para Nazaré, no próprio ano de 2013, justamente no início do pontificado do Papa Francisco e próximo à convocação do Sínodo com o tema: “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Assim, já são passados quase vinte anos na Terra Santa, dois deles vividos aqui em Nazaré, nos passos Daquele que é o caminho, a verdade e a vida. Lugar onde Jesus cresceu na Sua humanidade, no ser Filho, e onde conviveu com Sua família, fazendo-se caminho para todos; caminho por Ele percorrido para chegar a Sua plena maturidade (cf. Ef 4,13). Na primeira parte deste opúsculo, quero transmitir a você, que caminha comigo nesta leitura, a perspectiva que me foi dada por viver na espiritualidade de Nazaré. Apresentolhes sua geografia, sua história, seu clima, e convido você a percorrer os passos de tantos outros irmãos e irmãs, como o Beato Paulo VI, São João Paulo II, Papa Bento XVI e Papa Francisco, mandando como seu representante Sua Eminência o cardeal Lorenzo Baldisseri, em dezembro de 2013, solenidade da Sagrada Família, que, atraídos pelo perfume vindo do Evangelho, vieram a Nazaré conduzidos pelo Espírito Santo. Todos eles nos rememoram: tudo tem início a partir de Nazaré. Oração à Sagrada Família (Composta por Papa Francisco e pronunciada pela primeira vez em Nazaré, em uma transmissão ao vivo, na Praça de São Pedro, em Roma.) Jesus, Maria e José, em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor, a Vós, com confiança, nos dirigimos. Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias lugares de comunhão e cenáculos de oração, escolas autênticas do Evangelho e pequenas Igrejas domésticas. Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais se faça, nas famílias, experiência de violência, egoísmo e divisão: quem ficou ferido ou escandalizado depressa conheça consolação e cura. Sagrada Família de Nazaré, que o próximo Sínodo dos Bispos possa despertar, em todos, a consciência do caráter sagrado e inviolável da família, a sua beleza no projeto de Deus. Jesus, Maria e José, escutai, atendei a nossa súplica.

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A cidade de Nazaré na Galileia Nos papiros gregos de Zenon – séc. II a.C.–, o nome Galileia é uma adaptação do termo hebraico “galil”, que significa distrito. Na Bíblia, ela é citada como “Galileia das nações” (Mt 4,15), “terra da Galileia” (1Rs 9,11), ou simplesmente “Galileia” (Js 20,7). Flávio José, grande historiador da revolta judaica do século primeiro, foi o pioneiro a fazer a distinção entre a baixa e a alta Galileia, terminologia usada ainda hoje e aceita pelos geógrafos modernos, que sustentam que as diferenças de altura, clima e vegetação justificam os nomes. A alta Galileia localiza-se a mais de 1000 m acima do nível do mar, o que faz com que, de fato, possua um clima mais frio; enquanto a baixa Galileia está localizada a pouco mais de 600 m. Para melhor conhecermos o lugar santo da Encarnação e o lugar histórico onde viveu a Sagrada Família de Nazaré, a nossa atenção estará voltada para a baixa Galileia. Nela encontraremos, ao sul, a planície de Esdrelon e o “Lago da Galileia”, onde está situada a cidade de Cafarnaum, para onde Jesus se transferiu, quando deixou Nazaré, vindo habitar por três anos na casa de São Pedro. Das colinas que compõem o belíssimo campo de Esdrelon, contemplamos o Monte Tabor (573 m), o Jabel Jahi (515 m) e o esplêndido Monte Carmelo (546 m). Na época greco-romana, a Galileia fora disputada por duas cidades: Seforis e Tiberíades. Seforis está situada a poucos quilômetros de Nazaré, possui muitos recursos, e certamente foi a cidade onde Jesus trabalhou com São José. Provavelmente, também foi o lugar onde Ele aprendeu o grego e o latim, o que explicaria sua interlocução com Pilatos sem a mediação de um tradutor (cf. Mt 27,11-15). Quando Alexandre, o Grande, conquistou a Palestina, em 332 a.C., a língua grega foi imposta como língua do governo e, consequentemente, do comércio e da cultura. É provável que, no tempo de Jesus, os judeus providos de uma boa educação tenham aprendido e usado esta língua, ou, pelo menos, tenham tido um conhecimento básico dela por transitarem entre as cidade helenistas, como Seforis, especialmente aqueles de classes mais altas e que trabalhavam com o comércio ou o governo. Depois desta breve menção da região da Galileia, podemos finalmente situar a cidade de Nazaré, um pequeno povoado que, quando apareceu pela primeira vez nas páginas do Evangelho, tinha não mais do que 450 habitantes no tempo de Jesus. Um aspecto muito interessante, caro(a) amigo(a), nesta viagem para conhecer a Sagrada Família de Nazaré, é que os estudos das fontes literárias nos levam a situá-la em uma montanha, como podemos verificar no Evangelho de São Lucas 4,29, o que nos induz a acreditar que foi sempre habitada, desde o primeiro século até os dias de hoje, mesmo que não tenha sido 16

mencionada no Antigo Testamento. A raiz da palavra NZR, em que é composto o nome Nazaré, se traduz com a etimologia “Flor”. Realmente, dessa flor da Galileia surgiu Maria, na sua beleza, e José, da família de Davi, na sua justiça. Mesmo que tenha sido totalmente ignorado no Antigo Testamento, o povoado de Nazaré é de grande importância para quem vive no mundo ocidental e cristão. A famosa frase de Natanael, discípulo de Jesus, originário de Caná, é muito significativa: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). Os estudos arqueológicos das escavações comprovam que Nazaré era habitada desde 2000 a.C. Estas escavações foram conduzidas pelos arqueólogos franciscanos da Custódia da Terra Santa, frei Benedetto Vlaminck e frei Prospero Viaud, de 1890 a 1910, e continuadas por frei Bellarmino Bagatti, de 1955 a 1970. Foi emocionante quando, ainda jovem estudante, visitei pela primeira vez, no museu franciscano, fragmentos do povoado de Nazaré. De fato, eles são o grande tesouro das escavações, com suas grutas e ainda com alguns fornos muito bem conservados, compostos de restos de cerâmica e grafites do período judeu-cristão.

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As ruínas do povoado de Nazaré As escavações conduzidas por frei Bellarmino Bagatti trouxeram os restos de um povoado agrícola da idade do Ferro II (900-600 a.C.), que gradualmente fora se estruturando ao redor de Nazaré. Nesta época, as casas, escavadas no calcário, eram muito simples, habitadas por pessoas simples, trabalhadores do povo. Por meio destas escavações, podemos confirmar o caráter agrícola deste povoado, demonstrado através da existência de poços e de muitos silos, de até 2 m de profundidade, que eram engenhosamente dispostos um sobre o outro, em várias camadas, e ligados por túneis, facilitando assim o armazenamento de mercadorias e a aeração de grãos. Junto com os silos, também foram encontradas cisternas, que coletavam água da chuva, e prensas para óleo e uvas, principalmente para óleo de oliveiras. A venerada Gruta da Anunciação, evidentemente, pertencia a um destes complexos, e em algum momento também desenvolvera uma área produtiva. As grutas escavadas na rocha, inclusive a da Anunciação, foram quartos subterrâneos dos sobrados. A estas alturas me pergunto se o leitor já terá se cansado destas notícias, mas insisto que a espiritualidade que surge deste lugar sagrado, e que se torna uma espiritualidade bíblica, é uma realidade encarnada na história, no tempo e no espaço. Neste lugar, entre as pessoas simples e trabalhadoras, Deus se encarnou na história da humanidade com a cooperação de Maria e José. Não é apenas o texto evangélico, o estudo da arqueologia ou a história que nos indaga neste lugar de santidade, mas também a fé vivida e a memória litúrgica celebrada pelos primeiros cristãos que aqui viveram e visitaram, os quais eram marianos e amavam Maria e São José São muitos os testemunhos que aqui encontramos, porém, gostaria de presenteá-lo com um, que eu amo chamar de “pérola” das escavações: a descoberta de uma coluna repleta de grafites e, em um deles, a exclamação em grego “Ave-Maria” (Xaire Maria), a mais antiga atestação arqueológica com uma invocação à Virgem Maria de Nazaré, que se tornou a oração mariana mais comum entre os cristãos.

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A Gruta da Anunciação No lugar onde hoje está situada a Basílica da Anunciação, obra do arquiteto italiano Giovanni Muzio, consagrada na primavera de 1969 e construída até os anos cinquenta, ficava a modesta Igreja dos Franciscanos de 1730, edificada para venerar a Gruta da Anunciação, a casa da Virgem Maria, o lugar santo da Encarnação. Ainda hoje é possível ver o que restou da rocha natural, que formava a casa juntamente com as partes em alvenaria, reconstruída em pedras brancas. A Gruta da Anunciação tornou-se a memória do HIC, expressão do latim que significa aqui, o local exato onde ocorreram os fatos evangélicos: aqui a Virgem Maria ouviu as palavras da Anunciação; aqui pronunciou o fiat (Faça-se), o seu sim, que mudou a história da humanidade; aqui o Verbo se fez carne; aqui a pureza e a virgindade uniram-se com a maternidade, mantendo-se intactas. O anjo Gabriel veio a Nazaré, na Galileia, onde “não surgiu nenhum profeta” (cf. Jo 7,52). Deus escolhe o que não tem aparência, o que é humilde e desprezado pelos homens para a realização do Seu projeto. A lei da encarnação é esta, encontrar o homem e a mulher na sua realidade, na sua condição. Escrevendo estas linhas, fiz uma pequena pausa e desci até a gruta, onde elevei ao Deus da Encarnação uma oração por você, para que você sinta Nazaré, visitada, amada, encontrada, e que a sua cotidianidade encontre aqui significado e plenitude. Não posso concluir o que falamos da Gruta da Anunciação sem apresentar-lhe o tesouro da história e também da arqueologia: a Fonte da Virgem Maria, a não mais do que 800 m da gruta. É o início da anunciação da Boa Nova, feita por São Thiago, um apócrifo do século III que relacionou o episódio da Fonte da Virgem com a Gruta da Anunciação: “Um dia Maria pegou a jarra e saiu para tirar água; e eis que ouviu uma voz dizendo: ‘Ave, Cheia de Graça! O Senhor é convosco, bendita és tu entre as mulheres’. Ela olhou em volta, para a esquerda e para a direita, de onde vinha aquela voz, e começando a tremer, voltou para casa, colocou a jarra no seu lugar, sentou no seu banquinho e lá tecia. Eis que um anjo do Senhor apareceu na frente dela...”. Quero esclarecer para o leitor que os textos apócrifos, como este de Thiago, podem ser lidos como conteúdo espiritual, mesmo não estando entre os Evangelhos canônicos. Eu, de modo particular, gosto muito deste texto, visito e, com gosto, levo os peregrinos até a Fonte da Virgem, onde hoje está construída uma Igreja Ortodoxa dedicada a São Gabriel. Emociono-me muito ao escutar o barulho da água neste lugar santo. É o mesmo ruído daqueles dias em que Maria vinha buscar a água, já que o barulho não muda com o tempo. Contemplar a atitude de Maria, que ao ouvir a voz do anjo começou a tremer e 19

voltou para casa, leva-nos a refletir sobre sua realidade humana, no ter medo e no querer fugir. Mas o anjo a segue e realiza o início do projeto da salvação. Podemos chamar de cooperação ativa, pessoal, livre e responsável de Maria na obra da salvação, como afirma o Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, 56), o qual diz que ela contribuiu, consentiu e cooperou com a misericórdia Divina e na restauração da graça. Os santos Padres veem Maria não apenas passivamente nas mãos de Deus, mas como aquela que cooperou para a salvação dos homens através da sua fé, livre e obediente. Pois, como diz Santo Irineu, “sendo obediente, se tornou a causa de salvação para toda a raça humana” (Adv. haer. 3,22,4).

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A casa de São José, casa da Sagrada Família de Nazaré Atravessando o pátio do convento franciscano, adentramos na Igreja de São José, reconstruída no estilo de basílica em 1911, em cima dos fundamentos da igreja medieval. Lá é possível fazer uma visita muito interessante à cripta que testemunha o antigo culto cristão celebrado dentro da casa de São José, onde já no século VI havia sido construída uma igreja em cima das ruínas da habitação do século I. Esta igreja era composta por uma gruta e uma pia batismal judaico-cristã com símbolos litúrgicos e teológicos. Possuía sete degraus, que é o número emblemático da perfeição e dos dons do Espírito Santo. Segundo Isaías 11,2, o canal que simboliza o rio Jordão e uma pedra enquadrada no mosaico, segundo a alusão de 1Cor 10,3, refere-se à pedra que é o Cristo. Através da atual iluminação elétrica, é possível ainda ver a cisterna, os silos, evocando as originais estruturas do povoado de Nazaré, ligados à veneração da casa de São José já nos primeiros séculos do cristianismo. Gostaria ainda de ressaltar a igreja do século VI que recebeu o nome de Igreja da Nutrição, título que nos chama muito a atenção porque confirma, de forma Cristológica, a Igreja nascente, onde São José nutriu o filho de Deus não somente com o alimento físico, mas como um pai que vai trabalhar e cuida da sua família e de seus filhos, educando-os, como afirma o evangelista Lucas: “E Jesus ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). O Papa Francisco, na Audiência Geral no dia de São José, no ano de 2014, nos apresenta José como o pai “putativo” (pai jurídico) de Jesus, como um modelo de educador: José, juntamente com Maria, cuidou de Jesus, antes de tudo, porque o nutriram, preocupando-se para que não faltasse o necessário para o seu desenvolvimento saudável. Não nos esqueçamos de que cuidar da criança, Jesus, o levou também à fuga para o Egito, onde passaram uma dura experiência de viverem como refugiados. José era um refugiado, com Maria e Jesus, fugindo da ameaça de Herodes. Mas, voltando à casa, estabeleceram-se em Nazaré, onde por um longo período viveram com Jesus. Naqueles anos José ensinou a Jesus suas profissões, e Jesus tornou-se carpinteiro e artesão como seu pai. Vamos passar para a segunda dimensão da educação e da sabedoria. José foi exemplo de sabedoria alimentada pela Palavra de Deus. Podemos pensar em como José ensinou o pequeno Jesus a ouvir as Sagradas Escrituras, especialmente o acompanhando aos sábados na sinagoga de Nazaré. José ia com Ele até, finalmente, a dimensão da graça. São Lucas referindo-se a Jesus diz: “A graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2,40). Aqui, claramente, o espaço reservado para São José é mais limitado do que as áreas da idade e da sabedoria. Mas seria um grave erro pensar que um pai e uma mãe não podem fazer nada para educar seus filhos e fazê-los crescer na graça de Deus, bem como na idade e na sabedoria. São José é o modelo do educador e de todos os pais. Então, confiamos à sua proteção para com todos

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os pais, sacerdotes que também são pais e todos aqueles que têm um papel educativo na Igreja e na sociedade (cf. Papa Francisco, Audiência Geral, 19 mar. 2014).

Assim, caro(a) amigo(a), convido você a entrar na graça deste lugar santo da casa de José, que é a casa da Sagrada Família, onde Jesus viveu por trinta anos com José e Maria. É a graça da cotidianidade, da perseverança matrimonial e da fidelidade, da qual São José é o modelo. Hoje, os frades franciscanos da Custódia da Terra Santa cuidam com muita dedicação da casa de São José, auxiliados pelas irmãs da Imaculada Conceição de Ivrea, uma congregação de irmãs italianas presente no Santuário da Anunciação e da Sagrada Família desde 1965. Com a chegada da comunidade católica Canção Nova a Nazaré, iniciando a cooperação com a Custódia Franciscana da Terra Santa, a casa da Sagrada Família se tornou o cenário, todas as semanas, do programa “Em casa com a Sagrada Família”, transmitido pela TV Canção Nova, internacional e do Brasil, fazendo chegar, assim, a tantas famílias do mundo a espiritualidade da Sagrada Família de Nazaré.

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A sinagoga de Nazaré Em árabe, a sinagoga de Nazaré significa “Escola do Messias”. É um edifício cruzado, uma construção do período das cruzadas, no qual se ambienta o discurso de Jesus a Seu povo, conforme está escrito no Evangelho de Lucas 4,16-30. Hoje, ao seu lado, está construída uma igreja greco-católica do ano de 1882. Esta sala ocuparia, segundo a tradição, a antiga sinagoga de Nazaré, a sinagoga frequentada por Jesus, onde um dia Ele tomou a palavra, leu e comentou o versículo do profeta Isaías. Foi então a Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, no dia de sábado, foi à sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, encontrou o lugar onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceito da parte do Senhor”. Depois, fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Os olhos de todos, na sinagoga, estavam fixos nele. Então, começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4,1621).

Além das poucas certezas arqueológicas, e da pouca certeza histórica do lugar, me chama a atenção esta passagem bíblica. O sermão de Jesus focava em dissipar as ilusões judaicas de que o Reino de Deus era um privilégio exclusivo de Israel, o que fez com que muitos ouvintes ficassem descontentes, se revoltando contra Jesus e até mesmo colocando a Sua vida em perigo. O que certamente nos provoca perplexidade é que muitos desses eram da família de Jesus, sendo Nazaré um povoado de poucos habitantes. Parentes, amigos, pessoas de íntima convivência esperavam os Seus milagres, já que a fama de Jesus tinha se espalhado por toda a região. E o fato de Ele não aceitar a manipulação, a pressão dos parentes, fez com que se tornasse o maior dos inimigos. Dinâmica bem familiar para quem vive em cidade pequena. Isso fez com que Jesus pronunciasse as tristes e reais palavras: “Nenhum profeta é aceito na sua própria pátria” (cf. Lc 4,24). São terríveis os sentimentos que emergem deste episódio! Os habitantes de Nazaré, parentes e conhecidos, passaram da euforia e curiosidade para a raiva, até chegarem ao desprezo e ao ódio. Aqui, Jesus, com a Sagrada Família, é ícone da justiça e modelo de desapego em não buscar os próprios interesses, tornando-se o exemplo para a sociedade. Na sinagoga de Nazaré, Jesus foi violentamente rejeitado, destino de todo profeta que anuncia a Palavra de Deus. A família cristã, discípula de Cristo, deve estar pronta para sofrer todos os impulsos contra a verdade, e quando se rejeita a verdade, nos deparamos com as mais profundas misérias do coração e da mente humana. Mas gostaria de terminar este breve parêntese 23

da sinagoga de Nazaré com uma imagem positiva. Neste santo lugar, Jesus cresceu no conhecimento da Palavra acompanhado por José, Seu pai, na silenciosa presença de Maria. Com a Sagrada Família de Nazaré, a Verdade foi acolhida, foi acolhido o Amor de Jesus, naqueles silenciosos e cotidianos sábados na sinagoga de Nazaré, conforme afirma o evangelista Lucas 4,16.

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O monte do precipício Depois do que aconteceu na sinagoga, os habitantes de Nazaré, indignados pelas palavras pronunciadas por Jesus, O arrastaram para fora da cidade, para o topo do monte onde ela estava construída, para jogá-Lo do precipício (cf. Lc 4,28-29). Esta terrível cena, segundo a tradição, aconteceu no monte Giabal al-Qafze, um monte significativo da planície de Esdrelon, onde foram edificados um oratório e um pequeno monastério, cujos restos são possíveis de serem observados graças às escavações do arqueólogo franciscano padre Bellarmino Bagatti, OFM 1. Neste lugar do precipício, onde Jesus sofreu essa violência e incompreensões, a nossa escola de Nazaré, com nosso mestre Jesus, nos ensina que a grandeza do Amor de Deus, Seu Pai celestial, O leva a abnegar de tudo, confiando-se a Ele, de quem recebe o nome toda paternidade no Céu e na terra (Ef 3,14-15). Segundo o Evangelho de São Lucas, após este lamentoso episódio, Jesus se transferiu para a casa de Pedro, em Cafarnaum, indo santificar outra família com a Sua santa presença e transformando, assim, a casa do apóstolo Pedro em uma segunda “Sagrada Família”, na qual o discípulo do primado O conheceu e se deixou conhecer. Que nosso coração e nossa existência continuem a ser a morada do conhecimento de Jesus e da escola do Evangelho.

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Santuário de Santa Maria do Tremor Entrando em Nazaré, por uma pequena estrada à direita, subimos ao Santuário Franciscano de Santa Maria do Tremor, ao lado do atual mosteiro das irmãs Clarissas, onde recordamos o tremor da Virgem. A tradição narra que a Virgem, ao escutar o tumulto das pessoas que arrastavam o seu Filho para jogá-Lo do precipício, saiu aterrorizada de sua casa e correu, seguindo-O até a colina, vendo a terrível realidade de violência contra Jesus. Assim, o coração de Maria Santíssima já começava a ser penetrado pela espada profetizada por Simeão, trinta anos antes, no dia da apresentação de Jesus ao templo (cf. Lc 2,35), preparando-a pouco a pouco para os grandes sofrimentos do Calvário. Este pequeno santuário, pouco visitado pelos peregrinos, tem um grande valor na espiritualidade de Nazaré, pois há uma relação entre Nazaré e o calvário. Em Nazaré, a Virgem Maria se tornou mãe; em Caná da Galileia, Jesus a chamou de “mulher”, e somente aos pés da cruz Ele revelou ser seu Filho, quando, voltando-se para Maria e para São João, a chamou de mãe, tornando, assim, a sua maternidade universal. Maria, no seu itinerário de fé, fez um caminho por sua maternidade. Neste pequeno santuário, a Virgem Santíssima se tornou modelo acessível a todas as mães biológicas e espirituais, a todas as mulheres chamadas a fazerem um caminho de fé e crescimento na sua feminilidade e maternidade. Mas, falando em sofrimento e em oferta dos sentimentos mais profundos, na cooperação do mistério da Encarnação, não podemos banalizar a figura do nosso amado São José. No Evangelho de São Lucas, está claramente escrito o período de permanência de Maria na casa de sua prima Isabel: “Maria ficou três meses com Isabel. Depois, voltou para sua casa” (Lc 1,56). Podemos assim afirmar que Maria, ao retornar a Nazaré, já estava no terceiro mês de gestação. E assim, não seria possível esconder a evidente gravidez. Como nossa Mãe, Maria Santíssima, teria explicado a José? Certamente, ela não se importaria com os comentários dos parentes, amigos e conhecidos. Por Jesus, ela suportaria todas as injúrias e maldições deste mundo. Mas e quanto a José? Como ela explicaria que não havia feito nada de mal, nem sido infiel? Mesmo com a evidência do fato, sabemos que Maria e José, somente depois do período de noivado, naturalmente com o matrimônio, viriam a viver juntos. José ainda aceitaria o casamento, mesmo sabendo da condição de Maria? Maria estava com uma imensa dor em seu coração e nos seus pensamentos, e não queria que José sentisse o mesmo. Maria, mulher de fé e totalmente cheia da graça e de esperança, voltou para Nazaré, confiando também no amor e na justiça de José. O menino Deus, que ela trazia, a estava transformando. Entre ela e o Verbo já se instaurava uma união tão sólida e natural que 26

nenhuma força deste mundo poderia dividir. O evangelista Mateus não descreve o encontro entre o futuro esposo e Maria, nem o que José teria dito ao vê-la naquela situação de gravidez. Mas, certamente, José, na sua humildade, não disse nada a ela. Podemos deduzir isso pelas palavras que o evangelista Mateus utiliza ao prosseguir sua narração: “José, seu esposo, sendo justo e não querendo denunciá-la publicamente, pensou em despedi-la secretamente” (Mt 1,19). Gosto muito deste texto, que mostra uma característica preeminente em José: a sua justiça. Ele tinha respeito por Maria e realmente a amava. Não queria causar-lhe escândalo e dor. Quanto deve ter sofrido o nosso querido São José naqueles dias, pensando perder sua futura esposa. Certamente não o demonstrou na presença de Maria, mas depois, sozinho, teria sofrido na solidão as mais cruéis amarguras da alma. E perguntou a Deus o porquê de tudo isso. E Deus lhe respondeu: Mas, no que lhe veio esse pensamento, apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor, que lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,20-21).

O nosso pensamento e a nossa oração vão a todos os pais e mães que sofrem por incompreensões e injustiças. Não posso me esquecer de mencionar uma pobre mãe que encontrei na cidade de Corrientes, na Argentina. O seu filho de dezoito anos foi acusado de um homicídio injustamente. Por dois anos, ela acompanhou seu sofrimento, humilhado e maltratado. Todos os dias, quando as portas da prisão eram abertas, lá estava ela, a primeira da fila. Pude presenciar esta dor. Com um forte estresse, estava perdendo seu marido, que se sentia esquecido por ela. Depois de dois anos de dor, o verdadeiro assassino confessou e se entregou, liberando assim o jovem inocente. Esta mãe me confiou que foi a intercessão de Maria e José, a Sagrada Família de Nazaré, que salvou a sua família, porque eles conhecem a dor humana e intercedem por todas as famílias do mundo, em especial por aquelas que sofrem. Depois desta peregrinação espiritual pela Nazaré da Sagrada Família, lugar que por trinta anos foi santificado através da presença de Jesus, Maria e José, e onde é possível caminhar junto Àquele que viemos encontrar, convido o(a) amigo(a) a uma pausa para uma oração. É a oração que costumo rezar com todos os peregrinos que chegam aqui na Terra Santa. Continue comigo nesta leitura, nas páginas que seguem; nelas aprenderemos o método para conhecer Jesus, na escola do Evangelho, com a Sagrada Família de Nazaré. Senhor Jesus, Verbo Encarnado-crucificado-ressuscitado, com a Tua permanência histórica de Nazaré a Jerusalém, santificaste e abençoaste cada 27

canto desta Terra e revelaste-nos o amor misericordioso do Pai, anunciando o Evangelho, expulsando os demônios, curando todo tipo de enfermidade, morrendo e ressurgindo para todos e para cada um de nós. Ajuda-nos, ó doce Emanuel, a recuperar ou melhorar a nossa vida cristã e eclesial em todos os aspectos (pessoal, familiar, social). Ajuda-nos a preencher-nos de Ti, luz e potência divina, do Teu Espírito de verdade e de amor, da vontade salvadora e normativa do Pai celeste. Somente assim seremos vitais e fecundos e seremos sinais e história de salvação. Faz, ó Salvador e bom Mestre, que não nos deixemos distrair por nada e por ninguém, e que nos baste somente Tu, valor e fonte vivente de todos os bens, como bastavas a Maria, Tua e nossa Mãe, a São José, aos apóstolos e aos discípulos da Igreja nascente. Faz que realizemos uma plena sintonia espiritual com o Mistério e a graça do Lugar Santo da Encarnação e da Sagrada Família, e que a escola de Nazaré nos abra um novo caminho: o caminho santo do Teu Evangelho e a vida nova que és Tu mesmo, nosso amor e nosso tudo, nosso destino de salvação e de glória. Amém. Gratidão sem fim!

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Nazaré, escola do Evangelho

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ostaria de iniciar este capítulo rendendo graças ao Pai da misericórdia, que, em Jesus Cristo, nos amou com a Sua Encarnação, morte e ressurreição, e continua a nos amar na obra salvadora pela santidade dos Seus filhos. A Terra Santa, ou melhor dizendo, “A Terra do Santo”, inspira santidade mesmo com as tantas hesitações e com os tantos contrastes da complexa realidade do passado e ainda dos dias de hoje. Muitos são os beatos e santos que passaram por aqui. Neste ano, comemoramos cinquenta anos da histórica peregrinação do Beato Paulo VI, em coincidência com sua beatificação. Em Nazaré, no lugar da Encarnação, e na casa da Sagrada Família, o Papa peregrino proferiu uma significativa homilia, na qual disse que a casa de Nazaré é a escola onde se começa a compreender a vida de Jesus, a escola da Boa Nova para a vida: Aqui aprendemos a observar, a escutar, a meditar, a penetrar o significado tão profundo e misterioso da manifestação do Filho de Deus. Aprendemos também, talvez até sem perceber, a imitá-lo. Aqui aprendemos o método que nos fará conhecer quem é Jesus. Aqui descobrimos a necessidade de observar a realidade do seu viver entre nós: os lugares, os tempos, os costumes, a sua língua, os ritos sagrados, enfim, tudo o que o mestre Jesus usou para revelar-se ao mundo. Tudo aqui tem uma voz, tudo tem um significado. Aqui nesta escola aprendemos a ter uma disciplina espiritual, no seguimento de Cristo, no caminho do Evangelho que nos faz seus discípulos. Oh! como seria bom se pudéssemos voltar a ser criança. Quanto ardentemente gostaríamos de começar tudo de novo ao lado de Maria, para aprender a verdadeira ciência da vida e da sabedoria divina. Não podemos deixar este lugar sem ter acolhido, mesmo se rapidamente, algumas breves admoestações da casa de Nazaré. Em primeiro lugar ela nos ensina o silêncio. Como seria belo se renascesse em nós a estima pelo silêncio, que na atmosfera do Espírito, é admirável e essencial. Somos atordoados constantemente por tantos sons e vozes na agitada e tumultuada vida do nosso tempo. Oh! silêncio de Nazaré, ensina-nos a perseverar os bons pensamentos, prontos para entender com mais clareza as mais secretas inspirações divinas. Ensina-nos o quanto é importante e necessário o trabalho da preparação, do estudo, da meditação, da oração que somente Deus vê no segredo. Aqui compreendemos a maneira de viver em família. Nazaré nos lembra o que é a família, o que é a comunhão de amor, a sua beleza austera e simples, que nos faz ver como é doce e insubstituível a educação em família, e que ensina-nos sua função natural na ordem social. Oh casa de Nazaré! Aqui antes de tudo desejamos compreender e celebrar a lei do esforço humano; enobrecer a dignidade do trabalho na maneira que seja entendida por todos. Lembramos, debaixo deste teto, que o trabalho não pode ser fim em si mesmo, mas recebe a sua liberdade por excelência, não somente por aquilo que chamamos valor econômico, mas por aquilo que envolve o seu nobre fim. Aqui enfim queremos saudar todos os operários do mundo e mostrar-lhes o grande modelo, do divino irmão de todos, Cristo nosso Senhor (Alocução de Paulo VI, Papa, em Nazaré, 5 jan. 1964).

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O silêncio Um dos aspectos de grande importância e necessidade da vida humana é o silêncio, mas também é um dos mais difíceis de ser praticado. Existem muitos modos de se fazer silêncio, porém nem todos são úteis, necessários e construtivos. Já no início da minha vida religiosa e sacerdotal, muitas vezes fui convidado, de livre e espontânea vontade, a fazer silêncio, mas nem sempre pude alcançar aquela profundidade que, interiormente, ajuda na ordem dos inumeráveis barulhos, dos conflitos e de todos os pensamentos tumultuosos. Porém, para um caminho espiritual e de oração, o silêncio se torna um instrumento indispensável. Muitas são as famílias que pedem um acompanhamento espiritual e solicitam para serem introduzidas nesta dimensão do silêncio. Muitos sacerdotes organizam os retiros para as famílias, e ali o silêncio se torna um companheiro. Na minha experiência, relembro meu primeiro retiro espiritual. Lá, o silêncio suscitava em mim dois sentimentos: o encanto e o medo. Porque é no silêncio que se percebe o sentido do mistério, o despertar de uma presença sublime que nos coloca em um clima de autêntica escuta, no qual é possível saborear a beleza do escutar em profundidade. Mas que, também, ao mesmo tempo, traz muito medo e uma sensação que nos abre progressivamente, mas não definitivamente, um espaço de tontura, um temor que se experimenta ao se ver sozinho, sem aquelas distrações e barulhos que nos impedem de nos encontrarmos com nós mesmos e com Deus. É como uma tempestade marinha: as águas se tornam turvas, e é necessário muito tempo até que todos os grãos de areia e de todas as outras sujeiras parem no fundo, para que a água volte a ser clara. Nas próximas páginas, gostaria de compartilhar com você, caro(a) amigo(a), o fruto da minha experiência em meu caminho pessoal, principalmente depois que passei a viver aqui em Nazaré, bem como a graça que tive em guiar alguns jovens e algumas famílias na vida espiritual. Desde já peço perdão se o que eu vier a dizer se tornar algo repetitivo, não adaptado ao seu estado emocional ou ao seu momento de vida. Quero apenas enfatizar que tudo o que irei expor é somente uma partilha de minhas experiências. O primeiro nível no caminho do silêncio é encontrar coragem para entrar no nosso interior, onde habita a nossa verdade e a nostalgia da presença, aquela presença de Deus. Esta dimensão me preocupa muito, pois, na prática, muitos são os jovens que se preparam para o matrimônio, ou para o caminho do sacerdócio, ou para a vida consagrada religiosa, ou para comunidades de vida, sem antes passar por esta dimensão do silêncio, fazendo muitas das vezes escolhas que levam a tantas insatisfações e rupturas. Nesta dimensão, “solidão e escuta” se tornam categorias fundamentais, entre as quais 31

se compreende o silêncio. Mas como é possível falar de solidão em um mundo caótico e assim densamente habitado? Se for necessário calar as múltiplas vozes exteriores e interiores que constantemente nos assolam, como é possível colocar-se em uma atitude de escuta? Ainda falando de solidão, quantas pessoas, hoje, no nosso mundo, sofrem com ela? Em todas as faixas de idade, jovens, homens e mulheres sofrem esta espécie de perda, de distância intransponível uns dos outros, mesmo quando o número de pessoas com as quais se relacionam cresce significativamente. Penso que muitos de nós, de uma forma ou de outra, já experimentamos essa sensação. Mesmo existindo pessoas ao nosso lado, as quais têm uma significante importância em nossa vida, não conseguimos nos liberar da solidão que, realmente, não é construtiva. O íntimo do homem é algo de que não se pode fugir, que não se pode preencher ou substituir; pelo contrário, ele produz frustração e insatisfação. No centro da pessoa humana, de fato, existe um espaço onde somente Ele é hóspede, e onde somente Ele, o nosso Deus, pode habitar. Quando nos advertimos perante esta sensação de angústia e solidão, é possível que se tenha chegado o momento de experimentar a descoberta da saudade de uma companhia e da presença que encontramos somente Nele, no Senhor Jesus. Como diz o Salmo: “Só em Deus repousa a minha alma; dele vem minha salvação”(Sl 62,1). Neste lugar desabitado ou preenchido por pessoas superficiais, em que a presença do Senhor está ausente, não encontramos uma paz perseverante. A solidão, então, amiga e construtiva, se torna um ponto de apoio que abre novos horizontes, até mesmo inesperados. Eu gosto de chamar esta dimensão de “solidão habitada”. A estas alturas me pergunto para quem estou escrevendo. Para consagrados, religiosos, sacerdotes, seminaristas, ou para pais de família, mães, ou ainda jovens em discernimento? Esta dimensão é comum para todos. Se não fizermos a experiência da “solidão habitada”, correremos o risco de nos tornar mendigos da presença e de passatempos; eternos insatisfeitos e infelizes. Este é o início, ou melhor, a passagem de uma solidão, de um silêncio imposto e forçado, para um silêncio escolhido e abraçado na liberdade. Esta passagem corresponde à autêntica interrogação do significado da própria vida. Nos espaços de solidão e silêncio escolhidos, até mesmo aqueles pequenos e breves, podemos colocar uma atitude de escuta, sem medo, porque sabemos que, além daquele primeiro impacto com nós mesmos, teremos a presença silenciosa e eloquente de um Deus de amor, que habita no mais profundo do nosso íntimo, fazendo da nossa profundidade um santuário, no qual podemos decifrar, na paz, nosso caminho para a salvação. Ser capaz de estar em silêncio e se colocar na escuta torna-se, assim, uma questão de vida ou morte, porque cada vez que nos afastamos do significado da vida, 32

construímos um muro entre nós e a nossa felicidade, e mesmo que passássemos apenas um pequeno tempo em contato com o barulho e as distrações geradas pelo mundo exterior, ainda assim, na realidade, estaríamos nos afastando, também, dessas mesmas pessoas e, na superficialidade, deixando de construir as verdadeiras bases para uma relação de amizade e de amor autêntico, restando novamente uma insatisfação. “Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança Nele” (cf. Sl 37,7). Estas palavras podem abrir-lhe o caminho da esperança.

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Anunciação, escola das relações São tão delicadas as citações do Evangelho, que nos deixam imaginar, pensar, ver, tocar, escutar e encontrar além do que elas dizem. E continuando fiéis a ele, convido você, caro(a) irmão(ã), a se deixar levar por todas as imagens que sua mente sugerir em seu coração, de modo a adentrar na beleza e na simplicidade de Nazaré, percorrendo suas colinas na Galileia, por aquele aglomerado de grutas e casas, até chegar à casa de Maria de Nazaré, uma gruta que reaviva nossa memória e nos faz encontrar a vida de uma jovem com projetos, sonhos e expectativas para o futuro. Uma família estava prestes a se formar e a se abrir aos horizontes da vida; um jovem homem estava para se casar com a sua noiva, ambos pensando que era esse o projeto de Deus nas suas vidas. Mas veio o anúncio do anjo, o Espírito de Deus, adentrando na vida concreta de Maria e José, quase assumindo e mudando os projetos que eles tinham, até perturbando-os interiormente, porém, com a potência criativa. Sim, seriam um casal, seriam cônjuges, pais, mas não da maneira como eles esperavam e imaginavam que viveriam juntos. Uma novidade viria a mudar a vida deste jovem casal de Nazaré. Maria se apresenta aos nossos olhos, na sua casa, como mulher das relações: com o seu Deus, com José, com as outras pessoas. Deus, por esta razão, tornou ainda mais viva esta relação, preparada e habituada desde sempre, transformando-a, dando vida e “carne”, tornando-a “divina” através do dom da vida humana por excelência, aquela do Filho de Deus. O sim de Maria encontrou apoio, confirmação e conforto no sim de José, passando pela continuidade de um projeto e uma história tipicamente humana, na novidade criadora que a incursão de Deus comporta. Deus se fez carne dentro de Sua relação com Maria e José, de um homem com sua esposa, daquela família com o resto do mundo. A acolhida e o sim de José, de fato, simbolizam a base para as possibilidades de uma acolhida da parte de todos os homens. Se São José a tivesse recusado e denunciado, tudo terminaria de modo diferente para todos. Se o Evangelho tivesse nos transmitido os diálogos entre este jovem casal, a comunicação cotidiana das novidades, as perplexidades, os esforços para traduzir todas as perturbações que tiveram na vida cotidiana, poderíamos ter um grande manual de psicologia das relações e de comunicação. Nazaré nos ensina que Deus se faz carne dentro das relações ordinárias na medida em que Ele é escutado e levado a sério. À medida que é acolhido, Ele dá à vida um gosto divino, nos tratos e nas características de uma existência autenticamente humana. Esta é a salvação para a humanidade, este é o nome de Jesus invocado na vida: “Emanuel”, Deus conosco. Não podemos fechar os olhos para a realidade que estamos vivendo em nossos tempos. O mundo necessita de Nazaré, da Sagrada Família, de Jesus. São muitas 34

as dinâmicas de incompreensão e divisão que nos afastam de Deus, seja nas famílias, seja nos ambientes religiosos e eclesiásticos. Mas o prólogo do Evangelho de São João 1,1 nos afirma, com simplicidade e franqueza, que o “Verbo (palavra) era Deus”. Isso significa que Deus fala incessantemente e é comunicação constante, sem interrupção, na qual se doa totalmente, sem parar, e se revela aos homens. Deus continua a falar através de todas as coisas e acontecimentos: da Escritura, da Igreja, da Eucaristia, dos pobres, da comunidade, da consciência e do coração de cada homem. Deus usa todas estas linguagens para, continuamente, encontrar o coração do homem em um apelo, constante a todos, de entrar na dinâmica da Palavra e do amor. A Palavra de Deus, o Verbo, é ainda sinônimo de mudança, porque ela não deixa as coisas como são, tem um poder de modificar, edificar, salvar o homem, e não destrui-lo. Estamos vivendo tempos de crise da palavra, uma era de comunicação na qual todas as mensagens são válidas, independentemente de serem verdadeiras ou não, elas são pronunciadas. Tempos nos quais não temos capacidade de escutar, de ficar em silêncio e de pronunciar palavras verdadeiras e límpidas. A raiz de muitas crises familiares, eu chamarei de crise da palavra e da comunicação, é a tecnologia, que tantas vezes leva os membros de uma mesma família a viveram isolados, mesmo estando a poucos metros uns dos outros. Em tais contextos, é necessário o discernimento para entender qual palavra pronunciar e qual escutar; qual comunicação constrói e qual destrói. Nesta dinâmica, não podemos renunciar a Bíblia, os Evangelhos. Este é o apelo que lhe faço daqui da terra da Bíblia, do lugar do Verbo.

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Vida ordinária, escola de cotidianidade A vida ordinária é o segredo de uma espiritualidade autêntica, que se realiza e se concretiza no ordinário de cada dia, de cada momento. Mas a espiritualidade de Nazaré na vida cotidiana de Jesus se deparava com julgamentos e preconceitos. Jesus viera de Nazaré e pertencia à categoria daqueles que vinham de uma cidade insignificante. Natanael (que a tradição identifica como Bartolomeu) se exprime candidamente com tal julgamento e preconceito: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). Os julgamentos prosseguiam e se reforçavam na opinião dos judeus, que, depois de terem escutado a Sua pregação durante a festa das tendas, se perguntaram: “Este homem não teve estudo, donde lhe vem, pois, este conhecimento das Escrituras?” (cf. Jo 7,15). As pessoas da relação social de Jesus eram consideradas culturalmente e religiosamente pouco confiáveis, porque possuíam pouca cultura e eram provenientes de um povoado agrícola; e para pesar ainda mais a afirmação de que da Galileia não surgia profeta, Jesus Nazareno foi julgado como um profeta que não deveria ser seguido, e nem mesmo escutado: “Eles responderam: ‘Tu também és da Galileia? Examina as Escrituras, e verás que da Galileia não surge profeta’” (Jo 7,52-53). Estes breves passos nos ajudam a entender a opinião pública que tinham sobre Jesus – a causa das Suas raízes, da Sua proveniência, que era Nazaré. Pertencer a Nazaré era sinônimo de pertencer a gente normal, ordinária, que não possuía estudos teológicos. Além do mais, eram pessoas de uma cidade desprezada e desconhecida, sem história. Por esse preconceito, Jesus de Nazaré não tinha nenhum direito de falar em nome de Deus: “De onde lhe vêm essa sabedoria e esses milagres? Não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos não são Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não estão todas conosco? De onde, então, lhe vem tudo isso?” (Mt 13,54-56). O que, sem dúvida, escandalizava acima de todas as coisas era o fato de que este homem desconhecido, que falava como nenhum outro jamais havia falado e que efetuava sinais claros aos olhos de todos, tinha uma história normal, como aquela da maioria das pessoas que todos conheciam. Como este homem, que vivera a maior parte de Sua existência de modo ordinário, como todos, com uma história de altos e baixos, poderia ser o Messias? É a tentação do desprezo da vida normal, ordinária. Uma tentação que atravessa os séculos e que ainda tenta os cristãos até os dias de hoje. É a tentação de julgar, pelas aparências, quem vive a sua fé no cotidiano do mundo, no silêncio, na vida leiga do mundo e vivendo como todos. Mas atenção! Para entender e acolher o Evangelho é necessário reagir a esta tentação, redescobrindo a beleza de viver no nosso cotidiano, único lugar no qual podemos ser discípulos, ou talvez não, no qual podemos fazer 36

experiência de salvação e de ressurreição. Único lugar no qual podemos ser alcançados pela Boa Nova do Evangelho! Os Evangelhos, descrevendo a vida de Jesus, nos transmitem numerosos fatos prodigiosos, milagres impensáveis, cura de pessoas desesperadas, multiplicação de pães e peixes capazes de saciar a fome de grandes multidões; aquelas mesmas multidões que, pelo menos inicialmente, eram atraídas pelo jovem galileu com a força da Sua Palavra, que operava através de grandes sinais. Mas entre cada ação, não somente as citadas acima, era manifestada uma dimensão mais profunda e oculta, simples e sublime, que retrata a atenção de Jesus em relação às pequenas coisas da vida cotidiana. Para nos transmitir a verdade misteriosa e indizível do Reino dos Céus, Jesus usa, como exemplo, uma semente, o grão de mostarda. Quem já a viu pode contemplar a sua infinita pequenez. E a partir desta pequena realidade da vida, ela cresce e segue naturalmente o seu percurso. O mesmo Jesus se revela atento aos pequenos gestos, quase imperceptíveis a um olhar distraído: uma mulher que, no meio de uma multidão que O cercava, O tocou; Ele percebeu e se deixou encontrar, dando-lhe vida e salvação. São realmente muitos os exemplos se escutarmos ainda as palavras que se referem ao que é pequeno, humilde, desprezado. “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18,1) é a pergunta que cada um leva e que cada um tem, escondido no próprio coração, o desejo de responder: “Sou eu!”. Mas a resposta é: “É aquele que se faz servo de todos” (cf. Mc 9,35). Não é por acaso que as crianças nos Evangelhos possuem um importante reconhecimento. Os pequenos se tornam o modelo do Reino. O Reino é para quem se torna uma criança. Neste mundo, no qual cada vez mais perdemos a pureza de uma criança, a relação com elas se torna, ao meu ver, um concreto instrumento de questionamento referente a nossa caminhada em direção ao Reino. Um episódio particular do Evangelho me chama muito a atenção em relação à estupenda sensibilidade do Filho de Deus: Jesus estava sentado na frente do tesouro do templo, observando quantas pessoas colocavam as moedas, e Seus olhos se voltavam ao coração das pessoas, porque “o homem vê a face, mas o Senhor olha o coração” (cf. 1Sm 16,7). Entre os ricos que colocavam, de modo distraído, o que tinham de supérfluo, chegou uma pobre viúva que depositou uma soma insignificante e que certamente não iria agregar muito ao orçamento do templo. Aquela pobre mulher, no entanto, deu mais do que todos os outros. Somente Jesus conseguiu vê-la ao ler o verdadeiro significado daquele pobre e simples gesto. Esta sensibilidade não é fruto de uma escolha virtuosa, mas de uma natural consequência de uma descoberta: eu não sou o tudo, não sou o maior, sou uma pequena criatura nas mãos de Deus, na fraternidade universal que me liga a todas as outras criaturas. E assim como Jesus viveu aqui em Nazaré e não perdeu 37

os tratos e traços de uma verdadeira humanidade, mesmo sendo o Verbo Encarnado, também tudo o que é simples passa a nos pertencer, a nos descrever, nos diz e nos fala do Senhor Jesus. A espiritualidade de Nazaré nos ancora e nos leva às pequenas e simples coisas da vida, como garantia de um caminho autêntico, de um itinerário evangélico profundo e verdadeiro. É sobre esta humanidade do Verbo que trataremos nas páginas seguintes.

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Nazaré, escola de humanidade Não podemos falar de humanidade sem também falar do homem. Aqui o Verbo se fez carne, se fez homem. Mas quem é esta criatura tão fascinante, própria por ser única? “No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste” (Sl 8,6). Criatura esta da qual até mesmo os anjos tiveram ciúmes. A humanidade pela qual somos constituídos é realmente um dom grandioso que Deus nos deu. O primeiro dom divino que se exprime no nosso semblante, único e diferente de todos os outros, é a nossa personalidade original, com as nossas características específicas, o nosso corpo e as características do nosso coração, que são somente nossas e jamais pertencerão a outra pessoa. A nossa existência, a nossa humanidade, é a primeira Palavra com que Deus nos fala, é a primeira que diz através de nós mesmos. Mas é triste recordar que nós viemos de uma tradição não tão amiga desta natureza humana, que comumente é vista como uma espécie de obstáculo no caminho espiritual das pessoas. Tudo que tinha o gosto de natural, instintivo, passava, ou ainda passa, pela suspeita de pecado e deveria se defender da acusação de ser enganador em respeito ao caminho da salvação do homem. Mas qual é o admirável mistério da Encarnação que fez com que Deus assumisse a forma de homem e se aprisionasse em uma humanidade concreta e original como a nossa? Que fez com que Ele mostrasse, nesta natureza, todas as Suas características na forma humana, e que se encontram descritas em nosso corpo e em nosso espírito? A partir deste momento não é mais consentido falar da nossa natureza humana como um limite; ao contrário, somos chamados a ver essa revelação de um semblante ainda mais misterioso e maior, aquele do Deus-Homem, aquele de Jesus Cristo. Sempre me impressionaram, sobretudo aqui no oriente, as imagens da tradição eclesial ortodoxa e os ritos orientais, ícones que, em muitos casos, tratam da “escritura”, da descrição do rosto de Cristo. Parando para contemplar aquela face, percebemos os traços de uma humanidade específica, a beleza de um homem escrita através de traços que talvez estejam até mesmo longe dos nossos gostos ocidentais, mas que, por detrás, manifestam, ao mesmo tempo, a revelação do mistério de Deus Encarnado e do homem divinizado. Em outras palavras, olhando aquele rosto, é possível ver o semblante de Deus e também o nosso. Tudo isso pode parecer uma reflexão abstrata e distante da vida real e cotidiana, mas na verdade não é assim. Primariamente, nos revela que a face de Deus é o próprio homem, aquele que encontramos todos os dias ao nosso lado, aquele que faz parte das nossas relações diárias, o homem que somos. Através das relações de amizade, de amor, de família, de 39

trabalho, podemos encontrar o Deus que se faz carne, e se faz história, e que vem nos salvar. Ao mesmo tempo, porém, somos chamados a acrescentar que é a face de Deus que nos diz quem realmente somos, qual estrada devemos percorrer para sermos autenticamente nós mesmos. É famosa a frase de um “certo” Pôncio Pilatos, que, de modo inconsciente, fez, a ele mesmo, uma desconhecida afirmação. Quando mostrou Jesus no terraço do pretório, de modo que a multidão pudesse ver o Seu rosto e o Seu corpo marcado pelas feridas, ele disse: “Eis o homem!” (Jo 19,5). Esta frase não é apenas a afirmação de que Ele era o homem a ser julgado, libertando-O ou condenandoO, mas era a frase de quem atestava que Nele, naquela face, naquele corpo provado pela vida, se revelava a face e o mistério do homem. Se verdadeiramente quisermos encontrar Deus, não podemos evitar a nossa humanidade e a pessoa do nosso irmão e da nossa irmã. Se quisermos ser verdadeiros homens, não podemos perder a nossa relação com Cristo. Por isso, na minha opinião, entre os homens e as mulheres do Seu tempo, Jesus privilegiou as crianças e os pobres, porque neles a imagem da humanidade e a imagem do mistério eram mais puras, mais próximas do essencial, porque não tinham muitos recursos para se apoiar e não podiam se tornar distantes daquele núcleo central em que a humanidade e a divindade se encontravam. Assim, os ricos estão na condição paradoxal mais pobre e mais insidiosa. Contemplamos, queridos irmãos e irmãs, Jesus percorrendo as estradas da Galileia, curando, perdoando, dando significado a tantos homens e mulheres, de todas as nacionalidades e condições sociais. Por isso, quem não se reconhece entre os doentes, entre os pobres, não pode encontrar a salvação. Nomes, semblantes, histórias de homens e mulheres são partes integrantes da mensagem do Evangelho, porque o “Verbo se fez carne” (cf. Jo 1,14), e Deus assume uma humanidade concreta na história de um homem, Jesus de Nazaré. Semblantes, nomes e histórias que permanecem pelos séculos, na experiência viva do encontro do homem com Deus. Nos dias precedentes à Sua paixão, Jesus mesmo nos dá testemunho: Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Uma mulher aproximou-se dele, com um frasco de alabastro cheio de perfume caríssimo, e derramou-o na cabeça de Jesus, que estava à mesa. Vendo isso, os discípulos se irritaram, dizendo: “Para que esse desperdício? Este perfume podia ser vendido por um bom preço, e o dinheiro, dado aos pobres”. Jesus o percebeu e disse-lhes: “Por que incomodais esta mulher? Ela praticou uma boa ação para comigo. Os pobres sempre tendes convosco, mas a mim não tereis sempre. Ela derramou este perfume no meu corpo em vista do meu sepultamento. Em verdade vos digo: onde for proclamado este Evangelho, no mundo inteiro, será mencionado também, em sua memória, o que ela fez” (Mt 26,6-13).

As passagens simples e concretas do Evangelho nos atestam a constante atenção que Jesus tem com as pessoas que se encontram com Ele, nos dizendo que não existem 40

pessoas que tenham uma existência banal. Ele se relaciona com cada uma delas de modo especial e eficaz. O Evangelho ainda nos ensina que da parte de Jesus nunca existiu uma reação de julgamento e prejuízos nos Seus gestos. As Suas palavras sempre destruíram os esquemas e construíram pontes para encontrar a todos, até aquelas pessoas mais marginalizadas e discriminadas, como no episódio do encontro com a mulher pecadora, descrito no livro de João 8,1-11. Escrevendo estas páginas da humanidade de Jesus, um episódio me vem à mente como um filme: diante dos meus olhos, Papa Francisco acolhe, derruba barreiras de segurança, distribui sorrisos, atenção e palavra a todos, demonstrando que cada ser humano tem importância e é precioso aos olhos de Deus. Jesus foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou ao templo, e todo o povo se reuniu ao redor dele. Sentando-se, começou a ensiná-los. Os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério. Colocando-a no meio, disseram a Jesus: “Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes?” Eles perguntavam isso para experimentá-lo e ter motivo para acusá-lo. Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever no chão, com o dedo. Como insistissem em perguntar, Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” Inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. Ouvindo isso, foram saindo um por um, a começar pelos mais velhos. Jesus fiou sozinho com a mulher que estava no meio, em pé. Ele levantou-se e disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor!” Jesus, então, lhe disse: “Eu também não te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8,1-11).

Os versículos do Evangelho de São João não nos dizem explicitamente, mas nos deixam intuir a malícia e ao mesmo tempo o ódio dos escribas e fariseus, que não podiam suportar o peso das transgressões e do pecado. Mas, desde sempre, sabemos que o ódio é um sinal revelador de um distúrbio interior, que neste caso se manifesta na incapacidade de aceitar a possibilidade de um erro e ainda a raiz da fragilidade humana, sobretudo a própria. Ao ódio se sucederam o julgamento e a condenação, que não eram somente a solução para um fato contingente transcrito no tempo, mas também a declaração de morte para todas as pessoas que viviam em situações similares. E assim se forma a mentalidade discriminatória de fechamento e de ódio para com as pessoas que cometeram algum erro. Para muitos, nelas se concentra o mal do mundo, e se torna possível descarregar em cima delas todas as responsabilidades (algum homem esteve com esta mulher adúltera). Não é mais possível ver nelas um rosto de simplicidade, de acolhida, e acompanhá-las em um caminho de cura. Este representa provavelmente o mal mais obscuro e pesado para a humanidade de todos os tempos, que não é capaz de acolher a diversidade e a fragilidade e que se refugia em ambientes e mentalidades de separação e condenação, para se protegerem das diferenças e dos erros que colocam à luz quem nós realmente somos, com nossos medos e pecados. A 41

separação entre justos e pecadores é antiga como o mundo, mas seria mais correto afirmar em termos de binômio: ilusão de ser justo e de ser pecador. Voltando às palavras do Evangelho, surge uma pergunta: quando seria possível mudar de vida? Converter-se? Quando o homem encontra o olhar atento e misericordioso. A atitude de Jesus se diferencia daquelas dos escribas e fariseus, Ele não julga a mulher, mas a acolhe por aquilo que ela é, pela sua história, sem insinuar que ela fosse diferente. Aqui também, pela inspiração desta Palavra, podemos meditar o quanto José deve ter sentido a tentação de julgar e condenar sua noiva ao receber a notícia de que ela estava grávida, sem que ele a tivesse conhecido. Mas a sua atitude, no fundo, foi de abertura, de diálogo, de aceitação da realidade, e assim ele suspendeu todos os julgamentos na esperança de que a misericórdia de Deus pudesse iluminar o seu imprevisível e difícil momento. Se ele tivesse denunciado o fato, Maria teria tido o mesmo julgamento ao qual os escribas e fariseus quiseram submeter aquela mulher pecadora. Jesus viveu neste clima de acolhida e de misericórdia. Nos Evangelhos, as Suas atitudes estão em uma profunda continuidade, entre a Sua vida escondida em Nazaré e a Sua vida pública, com o anúncio da Boa Nova do Reino a todos os homens e mulheres do Seu tempo. É a mesma continuidade entre o cotidiano de Nazaré e os conteúdos essenciais do anúncio Daquele que foi Crucificado e Ressuscitado, aquela continuidade que ainda deveria refletir na vida dos Seus discípulos e de todos nós.

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Escola do trabalho As mãos de Jesus, a Sua corporeidade, permanecem como um mistério oculto e fascinante. Que olhar tinha Jesus? Como Ele era? Era alto ou baixo? De pele clara ou escura? São muitos os versículos do Evangelho nos quais a aparência de Jesus é colocada em evidência, sobretudo quando Ele se revela. Jesus que abraça, olha, toca, escreve no chão, come, bebe, procura o silêncio. Mas a nossa atenção agora está voltada ao trabalho de Jesus, àquilo que Ele fazia. Segundo os Evangelhos sinóticos (termo que designa os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas), em Nazaré, Jesus é intitulado como o filho do carpinteiro (Mt 13,55). Esta indicação e afirmação nos autorizam a pensar que uma boa parte da vida oculta de Jesus foi em uma oficina de carpintaria, com os trajes de trabalho, ajudando Seu pai, São José, a ganhar a vida como todos. Jesus era especializado no Seu trabalho e repetia todos os dias os mesmos gestos, chegando à oficina de Seu pai para trabalhar, na partilha com todos os homens pela dignidade do trabalho. Na história da Igreja, nos primeiros séculos, por muito tempo, existiu quase uma dissociação entre trabalho e vida espiritual, quando muitos recusavam alguns tipos de trabalho por serem considerados imorais e não compatíveis com a vida cristã, renunciando a tudo aquilo que poderia distanciar do seguimento a Cristo. No decorrer dos séculos, esta atitude de martírio foi lentamente encaminhada como forma inversa da espiritualidade, de como o “mundo” era visto, como algo traiçoeiro a se encontrar. Assim, não o via como um aspecto tão fundamental da vida, uma dimensão na qual o homem se exprime, se revela, obedece a um chamado e o responde em plenitude. Gosto de pensar que Jesus, no Seu ser carpinteiro, tenha respondido a um chamado particular de construir, projetar, pensar utensílios, móveis, portas, camas e muitos outros objetos necessários para a vida do homem. Neste trabalho, Ele se encontrava com os homens, com suas necessidades mais cotidianas, aquelas que se encontram na casa de todas as famílias. Mas não somente isso. Hoje estudiosos sustentam que, diariamente, Ele ia a Seforis (cidade grega a 8 km de Nazaré), capital administrativa da Galileia naquele tempo, porque, como Nazaré era um pequeno povoado, não lhe fornecia trabalho suficiente para manter a família. Jesus, seguindo Seu pai, José, em seus compromissos, pôde conhecer pessoas, ampliar Suas relações, viver as realidades de diferentes trabalhos, sentindo-se parte do mundo que vai além dos próprios conhecimentos e capacidades, mas com o qual somos inevitavelmente ligados, como a um imenso círculo universal da existência humana. No trabalho, Jesus pôde dar o melhor de Si, pôde exprimir a Sua criatividade, a Sua inteligência, compreendendo o preço com que cada trabalhador ganha o seu pão. E tudo 43

isto no diálogo nunca interrompido com o Pai celeste, que sempre orientou a Sua existência terrena. Trabalhar a madeira, encontrar pessoas e resolver problemas práticos de suas casas, fazer desenhos, projetar, tudo isso não O distanciou da Sua oração, da Sua relação com o Pai, para a nossa salvação. Então, querido(a) amigo(a) que está percorrendo comigo a escola de Nazaré, fazer esta composição de lugar e ir com a mente e o coração a estes aspectos da vida de Jesus realmente nos faz bem, de modo especial para uma reconciliação com a questão do trabalho nos dias de hoje, em que a falta dele torna ainda mais complexa esta questão, especialmente aos jovens, que tantas vezes demoram mais a escolher uma atividade, um trabalho. Concluímos este capítulo, aqui no Santuário da Sagrada Família, que ousarei chamar “Santuário do Trabalho”, com uma oração por todos os trabalhadores do mundo, os pais e mães de família e os jovens que se encontram em fase de escolha de trabalho. Lembramos ainda, debaixo deste teto da Sagrada Família, que o trabalho não pode ser fim em si mesmo, mas recebe a sua liberdade por excelência, por aquilo que envolve o seu nobre fim. Maria, mulher da escuta, abre nossos ouvidos! Faz com que saibamos ouvir a Palavra do teu Filho Jesus no meio das mil palavras deste mundo; faz com que saibamos perceber a realidade em que vivemos em cada pessoa que encontrarmos, especialmente nos pobres e necessitados e em todos os que se encontram em dificuldade. Maria, mulher da decisão, ilumina a nossa mente e o nosso coração, para que saibamos obedecer à Palavra do teu Filho Jesus, sem hesitações. Concede-nos a coragem da decisão, de não nos deixarmos arrastar por outras orientações em nossa vida. Maria, mulher da ação, faz com que as nossas mãos e os nossos pés se movam “apressadamente” rumo aos outros, para levar a caridade e o amor do teu Filho Jesus ao mundo, como tu, à luz do Evangelho. Amém!

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Nazaré, pedras amadas e vivas

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ão Francisco e os franciscanos sempre mantiveram o amor à Encarnação de Jesus. E é por isso que, desde o início, amaram a Terra Santa. De fato, não existe Encarnação sem o lugar. Para nós, amar esta Terra significa amar Jesus. E não podemos pensar em Jesus sem amar a Terra Santa. É por este especial carinho dos franciscanos ao Evangelho de Jesus e à Sua Encarnação que a Igreja Católica nos deu a missão de custodiar os lugares da nossa Redenção: custodiar os Lugares Santos em modalidades concretas, animar os Lugares Santos com a liturgia para os peregrinos e para as igrejas locais, acolher os peregrinos que chegam de todas as partes do mundo para rezar e ficar nos lugares, manter as estruturas de tais lugares no seu correto funcionamento. Junto aos Lugares Santos vivem as comunidades cristãs locais. Estas são constituídas de paróquias de diversos ritos e tradições católicas (ocidentais e orientais). Nós, franciscanos, cuidamos destas diversas paróquias, que têm o seu coração e a sua sede nos Lugares Santos. Amar as pedras que guardam a memória de Jesus nos anima também a amar as comunidades cristãs, que sempre viveram aqui e que amamos chamar de “pedras vivas”. São numerosas as atividades formativas e sociais da Custódia para o suporte da presença cristã na Terra Santa: escolas, construção de casas e ajuda para combater as diversas formas de pobreza. Aos peregrinos cristãos que chegam de diversas partes do mundo são oferecidas orientação espiritual e casas de acolhimento, junto à garantia e à graça de poder celebrar nos Lugares Santos os mistérios da redenção. É o que afirma o nosso atual custódio da Terra Santa, frei Pierbattista Pizzaballa, italiano da cidade de Bergamo: “Custodiar significa, antes de tudo, amar, cuidar, estar ao alcance do coração, estar próximo. Custodiar, para nós hoje, significa estar nestes lugares, dar-lhes vida com a liturgia, pregando e animando-os.” Os principais protagonistas dos Lugares Santos são os frades menores. Nós cumprimos a nossa missão nesta terra, impulsionados por nosso fundador, São Francisco de Assis, que veio visitá-la no ano de 1219. Depois disso, os frades sempre aceitaram os desafios dos tempos para poder transmitir a graça dos Lugares Santos a toda a humanidade e para partilhar a sua vida com as “pedras vivas”, com as famílias da Terra Santa. A realidade familiar foi sempre uma das principais preocupações dos frades, que ensinam a trabalhar a madrepérola, ou seja, o artesanato, proporcionando-lhes a dignidade do trabalho. A tarefa da Custódia Franciscana da Terra Santa é uma grande graça que a providência nos confiou. Mas existe uma tensão em se interrogar sobre a pessoa de Jesus. Afinal de contas, estes lugares nos devem fazer chegar a Ele. Nazaré 46

nos convida à oração, mas também deve nos interrogar sobre Aquele Jesus que aqui realizou a Sua missão, sobre a Igreja que neste lugar celebra e relembra um momento particular de Sua vida. Os Lugares Santos, mesmo que se queira apenas admirar sua beleza, não são simples pedras, mas sim a manifestação, as pegadas da passagem de Deus neste mundo, o eco das palavras do Senhor, que nos falou por meio dos profetas e dos apóstolos, que se fez “Carne”, homem como nós, habitando em nosso meio. São pedras que ouviram a voz e beberam o sangue de nosso Salvador. Ora, aquela Palavra de Deus e aquele sangue derramado devem ser recolhidos e conservados para que se tornem parte da vida de cada cristão, das nossas “pedras vivas”, de todos os peregrinos. Captar a voz que brota destas pedras e compreender sua mensagem é, desde sempre, o trabalho dos filhos de São Francisco na Terra Santa. Assim, os vários Papas encorajam os Frades ao afirmarem que a sua missão é a de fazer com que os Lugares Bíblicos sejam centros de espiritualidade, que cada santuário conserve e transmita a mensagem evangélica e que alimente, além disso, a piedade dos fiéis. Em 1947, Pio XII disse aos Franciscanos da Terra Santa: “Sabemos que também vós, como já fizeram vossos antecessores, trabalhais diligentemente a fim de que, nos Lugares Santos confiados a vosso zelo, se faça o melhor possível para satisfazer a piedade dos fiéis.” No entanto, os Frades não foram apenas os “guardiões” das pedras e dos lugares, a fim de preservar seu valor, mas sua missão também foi a de fazer com que aquelas pedras ficassem vivas, de fazer com que elas falassem ao coração e à mente de todos os que se colocavam em peregrinação à Terra Santa, a fim de que eles vissem as “simples pedras” como “pedras amadas”, através da fé. Os filhos de Francisco de Assis – segundo as palavras de João Paulo II – souberam interpretar, “de modo genuinamente evangélico, aquele legítimo desejo de custodiar os lugares em que se acham nossas raízes cristãs”. Porém as primeiras “pedras vivas” são os próprios frades e todos aqueles que cooperam e cooperarão para que a missão da Terra Santa seja uma realidade viva, eclesial e universal da presença da Igreja. Mas não somente eles: são também “pedras vivas” os tantos homens e mulheres que sentem o chamado de viver aqui – frades, freiras, presbíteros, consagrados(as), leigos(as) e até famílias que, atraídas pela Terra do Santo, se transferiram para cá.

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Os franciscanos em Nazaré A mais antiga notícia sobre a existência de um convento franciscano em Nazaré foi a de frei Bartolomeu de Pisa, que no ano de 1390 escreveu em latim: “Nazaré foi também o lugar em que os frades menores, mesmo se apenas por causa da teimosia que tinham, sempre foram expulsos pelos muçulmanos.” A partir do testemunho escrito por frei Bartolomeu, podemos concluir que os frades faziam peregrinações até Nazaré com a esperança de um dia poderem se estabelecer, mas que isso se revelava inútil. Ainda lemos no martirológico da Custódia da Terra Santa a paixão de alguns frades martirizados pelos muçulmanos na cidade de Nazaré, no ano de 1547. Foi somente no ano de 1620 que os frades franciscanos conseguiram se estabelecer em definitivo em Nazaré. Foi o frei Tommaso Obicini da Novara, custódio da Terra Santa naquela época, que aproveitou a ocasião. Naqueles anos, o Líbano e a alta Galileia (compressa a região de Nazaré) eram governados de forma bastante autônoma por Emir Druze Fakhreddin, muito bondoso com os cristãos. Foi ele, inclusive, quem ajudou os frades a recuperarem o Santuário da Anunciação. Neste tempo, os frades puderam se estabelecer em Nazaré com tranquilidade e até realizar trabalhos pastorais e a recuperação da Casa de Nossa Senhora, o santo lugar da Anunciação. Mas com a morte do amado benfeitor, assassinado em Constantinopla, no dia 13 de abril de 1635, iniciou-se para os frades um período de ininterrupta corrente de problemas. Por muitas vezes, os frades tiveram que abandonar Nazaré e se refugiar na cidade de São João do Acre, cidade vizinha a Nazaré. No século XVII foi escrita uma crônica que dizia: “Esta Santa casa, lugar da Anunciação, do ano 1620 até o ano 1682, foi muitas vezes saqueada, queimada, destruída e abandonada; e ali os nossos pobres frades sofreram a morte, o cárcere, agressões e outras mil moléstias e humilhações.” Emocionome ao apresentar os meus santos confrades que deram a vida por este Santo Lugar da Encarnação. Foram períodos duros e difíceis. Apesar de tanto trabalho, ainda é possível assistir a episódios de sangue derramado contra os frades, a exemplo do ano de 1860, na cidade de Damasco. Ali houve uma perseguição dos Drusos contra os cristãos do Líbano, que acabou alargando-se mais tarde em direção à Síria e a Damasco. A perseguição se formou por causa do decreto assinado em Paris, em 1856, por parte de Sultan Abdul-Megil, no qual reconhecia a todos como seus súditos, sem distinção de raça ou religião. A perseguição resultou em cerca de sete mil mortos, entre os quais estava o Beato frei Emanuel Ruiz e seus companheiros mártires. Outro caso de martírio ocorreu na Turquia, em 1895, quando foi assassinado o frei Salvador Lilli, mártir que mais tarde veio a ser canonizado. Por fim, em 1920, por causa 48

da perseguição contra os armênios, três sacerdotes e dois frades foram mortos pelos turcos. Ainda gostaria de citar as palavras da Exortação Apostólica Nobis in Animo, que o Papa Paulo VI emanou em 1974: Não sem um desígnio providencial, as façanhas históricas do século XII trouxeram à Terra Santa a Ordem dos Frades Menores. Os filhos de São Francisco, daquele momento em diante, permaneceram na Terra de Jesus para servir à Igreja local e para custodiar, restaurar e proteger os Lugares Santos. A fidelidade destes frades, ao desejo de seu fundador e à incumbência dada pela Santa Sé, foi muitas vezes marcada por atos de extraordinária virtude e generosidade.

Durante o século XIX, o Império Otomano tinha movimentos nacionalistas internos que foram animando o mundo árabe. O resultado foi uma liberal reforma guiada por Sultan Abdulmecid I, que concedeu uma maior abertura também para as diferentes expressões religiosas. Em Nazaré, por exemplo, em 1867, os frades conseguiram abrir o noviciado para a formação de jovens franciscanos, fechado em 1940. Foi um século de crescimento para todos os latinos (católicos), que, em 1848, contavam com seiscentos fiéis e que, até o final do século, crescera duas vezes mais. Até mesmo as obras sociais da paróquia cresceram. Em 1842, foi aberta a primeira escola para meninas. Em 1837, foi construída uma hospedaria para peregrinos, destruída por um terremoto e uma inundação. A atual Casa Nova, construída em frente à Basílica, é do ano de 1896. Além de ter dado hospedagem a personagens ilustres e famosos, como Napoleão Bonaparte, a Casa Nova também acolheu muitos refugiados palestinos da guerra árabe-israelense, em 1948. Hoje os franciscanos em Nazaré têm uma comunidade paroquial de oito mil fiéis, reunidos em torno do Santuário da Anunciação, que conta com catorze frades e quatro religiosas da Congregação da Imaculada Conceição de Ivrea. Ele recebe ainda a ajuda da comunidade católica Shalom e a cooperação preciosa da comunidade Canção Nova, responsável pelas transmissões das celebrações litúrgicas da Basílica. Possui o Colégio Terra Santa e a Escola Franciscana, um grande edifício ligado ao convento, que tem cerca de oitocentos estudantes cristãos e muçulmanos, promovendo assim a integração religiosa. Há, ainda, a casa de repouso para idosos e pessoas com deficiência. Além disso, os frades construíram algumas casas de apoio às famílias mais necessitadas.

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O Beato Charles de Foucauld em Nazaré O Beato Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo, na França, no dia 15 de setembro de 1858. Órfão aos seis anos de idade, cresceu na companhia de sua irmã Maria e de seu avô, que o influenciou a seguir a carreira militar. Na adolescência, se afastou da fé, tornando-se amante dos prazeres e da vida fácil, mas mesmo assim revelava uma forte e constante força de vontade nos momentos difíceis. No ano de 1883, Beato Charles partiu para o Marrocos em uma perigosa exploração, na qual o testemunho de fé dos muçulmanos despertou nele muitos questionamentos: “Mas Deus existe?”, “Meu Deus, se Tu existes, faça com que eu Te conheça”. Retornando à França, foi recebido com carinho por sua família, profundamente cristã, e procurou um sacerdote que o ajudou. Assim, foi guiado por padre Huvelin e reencontrou Deus em outubro de 1886, com 28 anos de idade. A sua afirmação depois da conversão é muito bela: “Como acreditei que Deus existe, compreendi que não podia fazer outra coisa se não viver para Ele.” Uma peregrinação na Terra Santa o ajudou a entender sua vocação: “Seguir Jesus Cristo na vida de Nazaré”. Depois disso, continuou o seu discernimento, vivendo sete anos na Trapa, primeiro em Nossa Senhora das Neves e em seguida em Akbès, na Síria. Depois de tantas inquietações, ele se transferiu para Nazaré, passando a viver em oração e adoração ao Santíssimo, em uma grande pobreza, nas dependências do Mosteiro das Irmãs Clarissas, de Nazaré, onde era o jardineiro. Ele viveu na total simplicidade, e em seus escritos encontramos a seguinte afirmação: “A minha vocação é imitar o mais perfeitamente possível o Senhor Jesus na sua vida oculta e escondida de Nazaré.” Ordenado sacerdote aos 43 anos na Diocese de Viviers, na França, ele se transferiu definitivamente para o deserto Algerino do Sahara, primeiro em Beni Abbés, vivendo pobre entre os pobres, depois no sul de Tamanrasset, com os Tuaregues do Hoggar. Viveu uma vida de oração, meditando continuamente as Sagradas Escrituras, no insistente desejo de ser para cada pessoa humana o “irmão universal”, viva imagem do Amor de Jesus. O seu sonho desde Nazaré era compartilhar a sua vocação com os outros. Depois de ter escrito muitas regras sobre a vida religiosa, pensou esta: “A vida de Nazaré”, que poderia ser vivida por todos e em todos os lugares. Ele procurava uma vida que o aproximasse o máximo possível da vivida por Jesus – uma vida sóbria, pobre, essencial, no meio de gente simples, uma vida consumada. Foi com essa lucidez e intuição, e com surpreendente determinação, que o irmão Charles partiu para Nazaré para viver as jornadas que Jesus viveu. Escolhera a vida simples e ordinária de Nazaré como estilo, porque se sentia complacente com o seu estilo de vida, o seu modo de enfrentar todas as realidades. 50

Charles de Foucauld iniciou em Nazaré a sua procura pela vontade de Deus interrogando a própria vida, a história passada, a geografia, as culturas, as religiões. Ele acreditava que a vontade de Deus poderia ser conhecida não somente com a oração, mas também escutando a própria existência, penetrando-a, entrando na vida das pessoas, entrelaçando relações, conhecendo situações de pobreza e fragilidade e assumindo a própria responsabilidade pelo dom recebido: a vida. Charles de Foucauld tinha uma índole ativa de explorador, de procura, que certamente o ajudou a elaborar e delinear a própria história, aquela na qual o Verbo se fez carne, e que para o irmão Charles era o “lugar” propício para o conhecimento de Deus e oportunidade de salvação para os homens. Em Nazaré, Charles de Foucauld aprendeu a obediência, que consistia em “ocupar-se das coisas do Pai”, e a escutar a voz da vontade de Deus tendo o olhar em Jesus, que procurou, sobretudo, a vontade do Pai. Em Nazaré, o irmão Charles aprendeu a ser fiel a Jesus e ao Pai. Jesus era um nazareno, e por isso um “segregado” de Deus, “um reservado de Deus e para Deus”, este é o senso de “Nazireo” (nazareno) que encontramos no livro do profeta Isaías 42,6 e Isaías 49,6, nos passos que nos apresentam a missão do Servo de Javé. Deste significado de Isaías deriva Nazaré, que indica a disponibilidade total de Jesus ao Pai. Quando Jesus compreendeu isto, decidiu não continuar vivendo em Nazaré e se transferiu para a cidade de Cafarnaum, vivendo no mesmo estilo, na simples casa do apóstolo Pedro: “O Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20). Este episódio também acontecera com Charles de Foucauld, quando deixou Nazaré para viver o seu significado em outro lugar, onde o Senhor o chamava. Assim, Nazaré se tornou um estilo de vida, de onde o Pai das misericórdias envia os Seus filhos aos confins do mundo, para anunciar a salvação. Esta é a missão de cada um de nós, queridos amigos de leitura. Nazaré é a sua casa, seu trabalho, a sua família, seus filhos, seus amigos, sua história, sua vida. Ela é Amor de Deus, é Eucaristia, é Palavra, é amor cristão que se exprime. Isso pode ser, claramente, constatado na vida do Beato Charles de Foucauld, que nos últimos tempos baseava-se na perspectiva do cuidado com o próximo, no desejo de levar a humanidade à conversão, na necessidade de ir ao encontro dos abandonados, de estar com eles, de desenvolver entre eles a caridade, com um espírito familiar, com aquele cuidado que os pais reservam para os próprios filhos. A vida de Nazaré torna-se uma meta, pois ela é o modelo de vida a se imitar. Sendo assim, Beato Charles se comprometeu a viver no serviço a Deus e ao mundo, em uma simples, pequena e grande vida que ele propôs para si mesmo e para os outros e que propõe a cada um de nós, para contribuir no anúncio do Reino do Pai. Hoje a família 51

espiritual de Charles de Foucauld é composta por associações de fiéis, comunidades religiosas e institutos seculares de leigos e sacerdotes distribuídos em diferentes partes do mundo. Em Nazaré, temos a presença das pequenas irmãs de Jesus e dos “pequenos irmãos de Jesus caritas” que cuidam da antiga foresteria (hospedaria) do mosteiro das irmãs Clarissas, onde viveu o Beato Charles de Foucauld, lugar santo visitado por muitos peregrinos todos os dias. Oração do Abandono, de Charles de Foucauld Meu Pai, eu me abandono a Ti, faz de mim o que quiseres. O que fizeres de mim, eu Te agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo. Desde que a Tua vontade se faça em mim e em tudo o que Tu criaste, nada mais quero, meu Deus. Nas Tuas mãos entrego a minha vida. Eu a Te dou, meu Deus, com todo o amor do meu coração, porque Te amo e é para mim uma necessidade de amor dar-me, entregar-me nas Tuas mãos sem medida, com uma confiança infinita, porque Tu és... Meu Pai!

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Uma família de Nazaré Chegando a Nazaré no ano 2013, depois de ter deixado Jerusalém com tantas amizades, fui acolhido por muitas famílias da nossa paróquia latina, uma acolhida que chamarei de Mariana e Josefina. Gestos, visitas, palavras de boas-vindas com tanta sinceridade e afeto, que me fizeram imediatamente me sentir em casa, acolhido e amado. Dentre estas famílias, conheci a família Karam, uma família que morava no exterior e que, já há alguns anos, retornara para Nazaré. Uma belíssima família, que chamarei “normal”, mas com um testemunho de fé digno de ser apresentado aqui na nossa escola de Nazaré, na nossa escola do Evangelho. Sempre me impressionou muito o fato de que, quando trazemos testemunhos, muitas vezes, trazemos famílias ou pessoas que fazem coisas extraordinárias, ou pouco acessíveis para a maioria das pessoas normais. Por isso escolhi apresentar-lhes esta família “normal”, que vive a fé no cotidiano aqui de Nazaré, vivendo e crescendo na experiência cristã, na vida de todos os dias: o pai Habib Karam, 51 anos, a mãe Gosayna Karam, 46 anos, e os cinco filhos: Akram Karam (morto aos cinco meses de idade), Christopher Karam, vinte anos, Matthew Karam, dezessete anos, Serene, quinze anos, e Katrina Karam, oito anos. No dia 15 de outubro de 1993, este casal passou pela dor da perda de um filho, que morreu prematuramente, o pequeno Akram, que os deixou na tenra idade de cinco meses. Este evento marcou profundamente a vida desta família, que experimentou a dor humana da morte de um filho; no entanto, ainda conservam como dom precioso uma das últimas fotografias de Akram, na qual se entrevê a imagem da Virgem Santíssima. A presença de Akram é constante nesta família – na lembrança, na memória de cada um deles –, na qual o significado da sua breve existência foi compreendido e acolhido além das palavras e do entendimento humano. Depois de 24 anos de matrimônio, o ícone evangélico que ainda introduz esta família Nazarena é o Evangelho de Mateus, o qual fala de José. Ele levantou-se, com o menino e a mãe, e entrou na terra de Israel. Mas quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Depois de receber em sonho um aviso, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado nazareno” (Mt 2,21-23).

Em uma conversa que tive com esta família, Gosayna me contou seu testemunho: Quando ambos éramos jovens, imigramos para fora do país, fora de Nazaré, mesmo que ambos tivessem nascido aqui. Meu marido imigrou para os Estados Unidos; e eu, para a Austrália. Depois do nosso casamento, fomos viver nos Estados Unidos, e ali nasceram os nossos quatro primeiros filhos. Mas depois de muitos anos longe de Nazaré, foi vontade de Deus retornar à casa, para a nossa cidade, Nazaré, com os nossos filhos, que naquele tempo ainda eram pequenos. O nosso filho mais velho,

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Christopher, tinha sete anos; Matthew, quatro anos, Serene tinha um ano e meio, e Katrina já nasceu aqui, veio como um dom do Amor de Deus, como um presente após o nosso retorno. Ainda nos comove a data do nascimento de Katrina, no ano de 2006, na mesma data do nascimento do nosso filho Akram, nascido em 7 de maio de 1993 e falecido cinco meses depois. Não acreditamos que tenha sido uma coincidência; Jesus quis nos dizer algo após a nossa volta aqui para Nazaré. E nós nos sentimos assim, em paz por estar na Terra Santa. Nós a chamamos de terra da paz, não política, “somos uma família que vive em paz, em uma terra sem paz”, porque nós somos assim abençoados por estar em Nazaré. Temos o exemplo perfeito para nós, como família cristã, para seguir na nossa vida cotidiana como marido e mulher, com nossos filhos, no modo no qual nós educamos os nossos filhos na fé.

A família Karam voltou para Nazaré não por motivos políticos, nem mesmo por motivos econômicos, pois, economicamente, eles eram bem-sucedidos nos Estados Unidos, mas sim por um motivo espiritual, ou seja, a espiritualidade de Nazaré, a espiritualidade da Sagrada Família. Sobre este propósito, a mãe continuou: Sim, sim, e quando se segue o exemplo e se ouve a vontade de Deus, se encontra sempre a paz na vida, qualquer que seja a situação, se encontra sempre a paz, e este é o dom que o Senhor Jesus dá a nossa família, aos nossos filhos. Somos muito abençoados por viver na terra onde Jesus e Maria caminharam; por viver na mesma cidade. É uma graça especial para a nossa família.

São José, pai da Sagrada Família, pode ser um modelo para todos nós como é para Habib e como também é para todas as famílias, como no exemplo do caminho da emigração para retornar à própria terra. O exemplo de José pode ser considerado de ajuda, pois estava sempre por trás, cuidando, protegendo. Neste momento de nossa conversa, espontaneamente, Habib tomou a palavra: Quando disseste que retornamos… foi uma decisão que levou muito tempo, uma decisão que tomamos juntos. Quando disseste que São José está por detrás, me sinto sim com a missão de estar por detrás às vezes, mas certamente com a responsabilidade de transmitir o dom da fé aos nossos filhos. E tudo vem do nosso estar aqui; penso que isto tem a ver com o estar aqui. Quando vivíamos fora do país, a nossa fé não era tão forte, e penso que, quando voltamos para Nazaré, reforçamos a nossa fé. Realmente, é um privilégio viver aqui, onde viveu a Sagrada Família.

Este exemplo da família Karam se constata todos os domingos com a sua presença na Missa paroquial, aqui em Nazaré, mas não somente nas missas, como também em vários eventos: todas às quintas-feiras, na adoração Eucarística, em frente à casa de Nossa Senhora; nos rosário das terças-feiras, meditando os mistérios de Nazaré; e na procissão das velas, todos os sábados à noite. Uma presença discreta, humilde e silenciosa junto aos peregrinos. A beleza de vê-los unidos na oração me faz contemplar a Santa Família de Nazaré, mas ainda mais me edifico em vê-los sempre na primeira fila nas obras sociais e de caridade da Paróquia e da Basílica da Anunciação. 54

Dialogando ainda sobre a presença das famílias na vida eclesial, Habib continuou: É verdade! Aquilo que encontramos, e de que as pessoas muitas vezes não são conscientes, é que a família é uma pequena igreja; e quando você se torna consciente de que a sua família é uma pequena igreja, começa a olhá-la de um modo completamente diferente. Porque esperamos que todos, um dia, estejamos frente a Deus, e Ele nos perguntará o que fizemos na nossa pequena igreja. A primeira missão para nós é cuidarmos dos nossos filhos, eles, primeiramente, são “filhos de Deus”, porque foi Ele quem nos deu, e se os tratamos bem, e os fazemos crescer bem, amando-os do melhor modo possível, então nós estamos somente restituindo o dom que Deus nos deu. Também descobrimos que, apesar de todos os desafios que enfrentamos em viver em Nazaré, a nossa fé é a fonte e a força para superarmos todos os obstáculos que podemos encontrar, e isto é muito importante: podemos abrir a Bíblia em qualquer parte e encontraremos sempre a resposta para os obstáculos e desafios que estamos enfrentando, sabendo que Maria, José e Jesus encontraram dificuldades também. A vida deles não era simples, e isto equilibra as nossas expectativas, porque a nossa vida não será fácil, como cristãos, mas nós temos a fonte justa, temos a força que vem da Sagrada Família.

A este propósito, Gosayna completou: Penso que são diversos os desafios que as famílias estão enfrentando, não importa em qual parte do mundo. Há tanta pressão nos dias de hoje para que a família não seja família. A quantidade de marketing e mídia que influenciam e dividem a família é muito grande. Portanto, o que precisamos é que a Igreja alce a sua voz e diga às famílias: “Vocês são uma igreja e devem prestar atenção ao que isto significa”. As pessoas e os casais são chamados a tomar consciência do que significa o Sacramento do matrimônio e a beleza em vivê-lo. Se entenderem isto, se entenderem que os filhos são realmente um dom de Deus, que os temos somente por um período de tempo limitado, e ainda se rezarem juntos, experimentarão a força que vem do Alto, vivendo como uma família e não simplesmente como pessoas que vivem sob o mesmo teto.

E quando falamos do exemplo da Sagrada Família como escola do trabalho, Habib pediu a palavra: Eu trabalho todo o dia, mas minha mulher trabalha meio período, dedicando, assim, mais tempo aos filhos, e com a sua fé passa mais tempo com eles. É neste modo concreto e ordinário que transmitimos a nossa fé a eles. Isto ajuda a nossa família a viver em harmonia e em uma plenitude de felicidade... Outra coisa que quero acrescentar é que somos uma família que reza junto, que vai à igreja junto, e isto nos ajuda a nos manter como família, porque, como se diz: “Família que reza unida permanece unida”. Isto é o que fazemos.

O segundo filho, Christopher, estudante universitário em Tel Aviv, e que por duas vezes fez experiência missionária no Brasil, me fez o seguinte pedido: “Ajude-me, frei, ensine-me como posso estudar em Tel Aviv e servir a Jesus... eu quero ser um servo do Senhor”. Fiquei edificado em escutar tal frase pronunciada por um jovem de apenas vinte anos, aqui de Nazaré, que deseja ser cristão na vida laica, namorando, estudando, 55

trabalhando, seguindo o exemplo da Sagrada Família de Nazaré e da sua própria família de Nazaré, o pai Habib e a mãe Gosayna, na vida “Ordinária” e “Cotidiana” de Nazaré.

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Viver Nazaré Na tentativa de concluir este capítulo baseando-se nas reflexões até aqui realizadas, no recuperar o gosto da vida, da simplicidade das pequenas coisas, no redescobrir o valor do cotidiano, colocar-se à disposição de todos, todos os dias, é realmente uma sabedoria, é oração, anúncio, o fundamento essencial para sermos abertos ao Evangelho, é o único e verdadeiro modo com que podemos encontrar a verdadeira vida. Viajando em minha imaginação, imagino a cena cotidiana da vida de uma família que procura permanecer unida, apesar de tudo; da vida do homem que com criatividade encontra novos modos para desenvolver as suas próprias capacidades; as mãos de uma criança que procura a dos pais; os olhos necessitados dos que sofrem e pedem ajuda; de famílias que procuram a Igreja em busca de acolhimento. Quantas outras imagens cada um de nós poderia ainda acrescentar, na intuição do nosso cotidiano. Que cada um de nós, que cada família, encontre na escola do Evangelho de Nazaré a modalidade essencial na procura da face de Cristo. E que, até mesmo no meio das provações, dificuldades e preocupações, aprendamos a colocar em primeiro lugar o Pai. Mas atenção: os Evangelhos são livros abertos – terminam com um ponto, mas não têm um fim. O Verbo continua a se fazer carne na história ordinária dos homens e das mulheres, no grande Livro da Vida. Deus, nosso Criador e Pai, Tu quiseste que Teu Filho Jesus, gerado antes do amanhecer do mundo, se tornasse um membro da família humana; reaviva em nós a veneração pelo dom e mistério da vida; e que os pais possam participar da fecundidade do Teu amor, e os filhos possam crescer em sabedoria, idade e graça, dando louvor ao Teu Santo Nome. Amém.

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A Sagrada Família, dom e projeto de Salvação

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este capítulo, querido(a) amigo(a) e companheiro(a) nesta aventura do conhecimento de Jesus por meio da Sua Sagrada Família, gostaria de compartilhar a seguinte afirmação, que penso ser de extrema importância para o conhecimento do nosso Mestre: “Jesus não é somente o salvador, mas é a própria Salvação”. Portanto, a Sua vida familiar, vivida por trinta anos na casa de Nazaré, também é Salvadora. Igualmente como se afirma de Jesus, pode-se também enfatizar, em senso analógico, a imensa importância da vida santificada e santificante de Maria e José, pela participação singular na obra da Redenção. No desígnio de Deus, a salvação é fruto não somente da morte de Cristo na cruz, mas também de toda a Sua vida, inclusive a vivida em Nazaré, na convivência cotidiana com Maria e José. Trata-se de uma salvação que, ao mesmo tempo, é dom e projeto que requer a colaboração dos homens salvos, e esses primeiros colaboradores foram Maria e José. A colaboração à obra de salvação de Cristo é transmitida através da realidade, dos gestos, das situações difíceis e belas da experiência familiar. Existe, então, um dom de graça que emana da Sagrada Família de Nazaré a todas as famílias do mundo, pelo qual todas elas são chamadas à salvação. É um dom que germina dos valores e daquelas exigências da vida familiar que fizeram parte da experiência cotidiana de Jesus com Maria e José, em Nazaré. Deste modo, molda-se uma “presença” invisível, mas real e eficaz; força da qual a Família de Nazaré não é somente um “protótipo e exemplo”, mas também uma proteção para todas as famílias. Entende-se, assim, a urgência, a necessidade, a profundidade e a originalidade de se retornar à Sagrada Família, de imitá-la, rezar com ela pedindo a sua intercessão nos problemas da vida conjugal e familiar. Penso que seria importante recordar o magistério de São João Paulo II sobre a Família de Nazaré na sua inevitável influência sobre as famílias cristãs atuais, em um ensinamento de continuidade e renovação. Continuidade porque o Papa santo fez tesouro dos ensinamentos tradicionais da Igreja, que sempre contemplou a Família de Nazaré como o modelo exemplar e a celeste proteção para as famílias cristãs fundadas no amor e na responsabilidade para com o mundo e a Igreja. De renovação porque São João Paulo II se apoiou nos ensinamentos intensos e originais do Concílio Ecumênico Vaticano II e do Beato Paulo VI, enfatizando e intensificando, com força doutrinal e com estratégia pastoral, a realidade familiar, frequentemente dependente das contradições do tempo e da sociedade pós-moderna. 59

As grandes mudanças sociais que deram novas características históricas à sociedade, a qual chamamos de moderna, e que ainda contribuíram para o seu nascimento, interferiram também na família, envolvendo-a em um processo de transformações, refletindo em sua missão na sociedade. Essas transformações deram início a muitas fragmentações e desorientações. Nessa passagem cultural entre modernidade e pósmodernidade, podemos constatar transformações de regras das ciências, da literatura e da arte, levando, porém, a uma forte perda do pensamento e influindo, assim, no conceito de família como núcleo da sociedade. Mas a família, mesmo neste contexto de fenômenos disjuntores, continua a ser o lugar de pessoas unidas pelo sacramento do amor, dedicadas a dar prosseguimento, na experiência pessoal e comunitária, à desafiante tarefa do projeto do Deus Trinitário para a família humana, especialmente para a família cristã. Projeto de harmonia e responsabilidade na procura dos cônjuges e filhos em exprimir o “dom sincero do amor”, no qual o exemplo da Sagrada Família é excessivamente atual. Tudo isso é exprimido por São João Paulo II na exortação Gratissimam Sane, de 2 de fevereiro de 1994, que exalta o matrimônio e a família como componentes essenciais da sociedade na civilização do amor, dom de Deus, ameaçado pela cultura de morte, que faz com que o homem não se reconheça como dom, gerando dinâmicas de ruptura e de divisão. Emerge, assim, a urgente missão da Igreja em repropor com coragem a verdadeira história do amor puro, na verdade e na beleza, como dom de si mesmos, encontrando na Sagrada Família de Nazaré o ícone e o modelo de toda a família humana, conforme afirma Papa Francisco ao convocar o Sínodo dos bispos com o tema “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”, no qual expressa que, no decorrer dos tempos, Cristo sempre será o redentor, Filho de Maria, e, em virtude da genealogia de Davi, Filho de José, nosso irmão universal, com o Seu Evangelho de caridade, que não pode ser um obstáculo à unidade, mesmo na legítima diversidade da família humana fundada no amor. Do exemplo de Cristo, São João Paulo II ainda afirma que existe um convite universal e presente, no qual cada homem e cada mulher de boa vontade tem a sã responsabilidade de acolher, de transmitir um ensinamento válido para cada família humana, que coincide com a atual convicção de que a “essência do amor e da família é definida pela doação”. É o amor que define, para nós, cristãos, a identidade e a obra de Deus na Trindade, conscientes de que a Santa Família de Nazaré define e constitui a identidade de toda família cristã. Por isso, nas páginas seguintes, meditaremos a presença da Família Santa de Nazaré no mistério da Encarnação Redentora.

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A participação da Família de Nazaré na história da Redenção Tudo o que falamos até agora está fundado e reconhecido na Escritura, com precisão no Novo Testamento, onde Deus, pelo dom da Sua graça, chama as criaturas a colaborarem na atuação salvadora por meio de Cristo. Fazendo referência ao seu próprio ministério e de seus companheiros, São Paulo não hesitou em afirmar: “Somos colaboradores de Deus” (cf. 1Cor 3,9). O Concílio Vaticano II recorda que a Igreja é chamada pelo Espírito Santo a cooperar para que seja realizado o plano de Deus, o qual constitui Cristo como princípio de Salvação para o mundo inteiro (Lumen Gentium, 17). Entre todos os membros do Corpo místico de Cristo, Maria de Nazaré é o membro “preeminente”. Sem dúvida, é aquela que, por sua fé ardente, caridade e obediência, colaborou da forma mais intensa na atuação do projeto salvador de Deus, e de modo único no que se refere à Encarnação e à obra de Redenção do Verbo, evento que comprometeu também José de Nazaré, defensor do Redentor e esposo da Mãe de Jesus. Não podemos deixar de fazer referência à natural origem do homem e da mulher, os quais foram orientados a não permanecerem fechados a uma simples relação de reciprocidade: “Frutificai e multiplicai-vos” (cf. Gn 1,28). No matrimônio-sacramento nasce e se constitui a família aberta à redenção, à acolhida e à educação dos filhos segundo o plano de Deus. E isto se realizou em plenitude também no matrimônio de Maria e José, tema que meditaremos em breve. Depois desta importante afirmação, nos deixemos iluminar pela importante observação de São João Paulo II, na Exortação Apostólica Redemptoris Custos, 6: “Na Família de Nazaré, ‘a Encarnação e a Redenção constituem uma unidade orgânica e indissolúvel’”. Maria e José, que até então eram desconhecidos na Galileia, a serviço de Deus Trindade, fizeram da própria vida e de comum vontade o viver juntos em matrimônio, e a transformaram em um “espaço” de acolhimento, na ordem da Redenção na família humana, do eterno Verbo do Pai, no qual o ingresso desejado e determinado pela vontade do Deus Trindade foi concretizado também mediante o convicto “sim” dos dois membros da Família de Nazaré. Este extraordinário evento de graça e liberdade, de divindade e humanidade, de promessa e cumprimento, relembra todas as gerações. É comovente escrever estas verdades bíblicas e teológicas, aqui, no lugar histórico desta constituição da família histórica do Verbo humanizado, encontrado na família humana de Nazaré, protótipo de toda a humanidade. Porque Ele, juntamente com Maria e José, investidos do dom da graça de uma virgindade fecunda, maternidade e paternidade, fizeram com que a família 61

humana não fosse mais a mesma: “o grande mistério” do amor Trinitário com a plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4) renova a humanidade de forma original e profetizada (cf. Is 7,14; Mq 5,1-3; Mt 1,18-25). Assim, constitui-se a Nova Aliança, pacto não mais realizado no monte santo, mas na casa de Nazaré, como afirma, com comoção, São João Paulo II, no Gratissimam Sane, 20: “Na casa de Nazaré, ‘a família coloca-se assim verdadeiramente no centro da Nova Aliança’”. O matrimônio de Maria e José exprime o modelo excepcional de uma exemplar história, que o Amor de Deus já havia iniciado com o primeiro casal: Adão e Eva. Eles com a desobediência rescindiram, por vontade própria, a comunhão com Deus. Era necessário, então, restaurar aquela harmonia, comunhão e relação que tinha sido interrompida no Jardim do Éden. O novo casal da história, Maria e José, obedeceu à voz do Senhor, mas aqui necessito, novamente, enfatizar a enorme cooperação de São José, figura muitas das vezes esquecida, mas que, juntamente com Maria Santíssima, participou deste mistério-evento, mesmo que sua maternidade não dependesse dele, já que o que era gerado nela era obra do Espírito Santo: “Ora, a origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José e, antes de passarem a conviver, ela encontrou-se grávida pela ação do Espírito Santo” (Mt 1,18). Mas é justo ainda notar que para José viver, com coerência e com amor, a missão para a qual fora escolhido e chamado, ele teve que fazer a experiência da “kenosis”, ou seja, abrir mão da sua própria vontade, da sua paternidade humana, na adesão total à vontade de Deus, tornando-se, assim, um perfeito “anawi” (pobre de Javé), “pobre” como Maria, unindo-se ainda mais perfeitamente à Maria, Mãe do Filho de Deus. União, ainda, no vínculo da mesma fé, que se encontrou e se harmonizou com aquela de Maria, tornando-se com ela depositário do mistério oculto por séculos na mente de Deus (cf. Ef 3,9). São José também teve que peregrinar nos caminhos da fé, os mesmos percorridos por Maria. À luz desta meditação, lembramos que, para toda família, o nascimento de um filho é sempre motivo de alegria e de responsabilidade para toda a vida. Dom e responsabilidade que são recordados no percurso do tempo, nas culturas e na fé, com o grande evento do Natal do Senhor Jesus: nascimento que motivou, de modo definitivo, a responsabilidade da família humana na acolhida teológica e existencial da Trindade, iniciada em Nazaré e no Natal em Belém, onde a Sagrada Família constituiu a identidade e o exemplo para todas as famílias da Terra.

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O matrimônio de Maria e José de Nazaré É uma experiência única quando passo pelos quarteirões dos judeus de Jerusalém ou aqui da Galileia e escuto os cantos nas festas de celebrações dos casamentos hebraicos. Eles recitam e cantam o Salmo 45: Do meu coração nasce um lindo poema, vou cantar meus versos para o rei. Minha língua é como a pena de um escritor veloz. Filhas de reis estão entre as tuas prediletas; a rainha está à tua direita, vestida com ouro de Ofir. “Ouve, filha, inclina o ouvido, esquece teu povo e a casa do teu pai” (Sl 45,2.10-11).

O casamento simboliza a dedicação do povo de Deus (noiva) e o Rei (o amor do marido). Da mesma maneira que uma noiva deixa os pais para morar com o marido, esta formosa noiva esquece seu povo e entra no palácio do Rei. Nisto, ela mostra a lealdade ao Senhor, deixando para trás as coisas do reino das trevas, habitando com Ele no palácio real. Então, ela é abençoada para sempre. O versículo 11 diz que o noivo cobiça ou deseja a beleza da noiva, usando a intimidade do casamento para descrever o Amor do Senhor para Seu povo purificado. Esta imagem nos convida a voltar ao pequeno povoado de Nazaré, onde José e Maria, “piedosos judeus”, modelados pela lei e pela espiritualidade da Aliança, tinham a consciência de que o seu casamento, como aquele vivido por todos os outros judeus, tornava-se “um meio da revelação da Aliança de Deus com Israel”. Esta participação, união e testemunho do casal de Nazaré são transmitidos pelo matrimônio, ou seja, mediante aquele sacro vínculo da caridade que uniu José à Imaculada Virgem Maria. A este propósito, o grande Santo Agostinho é citado na Exortação Apostólica Redemptoris Custos, 7, analisando a natureza deste matrimônio: “Situam-na constantemente na união indivisível dos ânimos, na união dos corações e no consenso; elementos estes, que, naquele matrimônio, se verificaram de maneira exemplar.” Este exemplo foi único e singular, porque foi vivido pelos cônjuges de Nazaré no total estado de “virgindade consagrada”, mesmo que, nos Evangelhos, José seja chamado “o esposo de Maria”; e Maria, “esposa de José” (Mt 1,16.18-20; Lc 1,27;2,5). De fato, reconhecemos que José é o verdadeiro esposo de Maria, e assim é o verdadeiro pai do Filho de Deus. Mesmo que os Evangelhos afirmem que Jesus foi concebido por obra do Espírito Santo, José é chamado o “pai de Jesus”, e por este motivo poderia dar o nome ao menino (Mt 1,21). Este tema irei desenvolver nas próximas páginas. Os Padres da Igreja e os teólogos, com o passar dos séculos, não deixaram de se ocupar da natureza do casamento entre a Virgem Mãe de Deus e São José, descobrindo cada vez mais sua importância tanto a nível Cristológico quanto sob os aspectos da salvação eclesial. Daí a sua celebração litúrgica, que remonta ao século XV, e sua ampla divulgação entre dioceses e ordens religiosas. 63

Para a maioria, a data que prevaleceu é 23 de janeiro; a escolha de outras datas somente indica a sua importância, de modo a não coincidir com outras celebrações. O casamento de Maria e José estava bem enraizado na economia da Encarnação: a referência ao casamento ocorre, de um lado, em toda a Escritura; a teologia da Igreja e da vida consagrada faz uso abundante da memória litúrgica do casamento de Maria e José. No entanto, com demasiada frequência, sobretudo no campo teológico e pastoral, nós somos levados a fixar a nossa atenção mais ao tema da virgindade e maternidade de Maria do que ao aspecto do casamento, nos esquecendo de que, quando se realizou o grande evento da Encarnação, o Evangelho já considerava Maria como esposa de José, o qual, sendo o seu verdadeiro esposo, introduziu na sua maternidade virginal o motivo da sua paternidade messiânica, que deveria ser assumida. O casamento de Maria e José é e será exemplar, mas ao mesmo tempo também é fundamental no que se refere ao despertar da maravilha de sua singularidade. Do ponto de vista legal e social, em primeiro lugar, o matrimônio entre Maria e José, de qualquer forma, foi um vínculo verdadeiro, mas realmente muito singular; em segundo lugar, a particular ação da Virgem Maria, em vez de diminuir o valor do vínculo matrimonial, contribuiu para fortalecê-lo. São Boaventura de Bagnoregio (1274), que nós amamos chamar de o “grande doutor sutil”, um dos frades menores franciscanos, canonizado logo depois do nosso fundador São Francisco de Assis, afirmava: “O amor de Maria foi regenerado pelo Espírito Santo; e José, obediente ao Espírito, reencontrou a fonte do amor, e foi este amor maior que aquele homem justo podia esperar na medida do mesmo coração humano.” O Espírito Santo encontrou em Maria e José duas pessoas sensíveis e acolhedoras do plano divino, tanto que em Maria se pôde operar o grande dom gratuito da Encarnação do Filho de Deus. Assim, não é pensável que tudo o se refere ao matrimônio com José não tenha sido uma obra particular do “Pneuma do Espírito”, que significa sopro divino. As palavras do anjo (cf. Mt 1,20) são atuais também para nós, que acreditamos, nos tempos de hoje, que existem pessoas que ainda são céticas sobre o tema do matrimônio entre Maria e José, como dom verdadeiro e virginal. Isso demonstra uma deplorável “escassez de mente”, que em última análise ofende tanto a vontade de Deus Trindade quanto a verdade e fecundidade teologal, ferindo, também, o histórico de salvação de um matrimônio celebrado e vivido com total e recíproca doação de si mesmos na ordem do cumprimento do mistério da Encarnação Redentora do Filho de Deus, que veio entre o Seu povo para ser acolhido também através do evento matrimonial dos Seus pais. Enquanto “as carências da mente” nos induzem facilmente a crer, com uma suspeita impossível, que no matrimônio de José e Maria o amor verdadeiro poderia ser compreendido, olhando por um aspecto demasiadamente devoto, desencarnado, em vez 64

de pensar em um modelo de amor “vertical”, que separa Maria de José para outras relações mais espirituais, Ōrigénēs, o grande padre da Igreja nascente do primeiro século, na obra Contra Celsum 1,66, observa: Era necessário que Jesus Encarnado vivesse de modo humano entre os homens, e se deixasse guiar por aqueles que o acompanharam no seu crescimento humano (a nutritiis) não porque não se pudesse fazer de outro modo, mas sim porque deveria seguir a via ordinária (via et ordine).

A vida cotidiana de Nazaré é a garantia de um amor realmente incorporado na história, no tempo, no espaço e na vida. José e Maria, esposos da Nova Aliança, inauguram por meio de Jesus, Filho e Senhor, em virtude da indivisível união das vontades, das mentes e das almas, uma totalizante realidade pessoal, que tem como base o amor recíproco, vivido integralmente na experiência do dom de si mesmos, e uma relação simples, fundamentada na liberdade, beleza e virgindade fecunda do “Amor Ágape”, amor incondicional, baseado em comportamentos e escolhas, sem esperar nada em troca.

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Maria e José, “dom” um para o outro Inicio este tema, que me permito chamar de comovente, recordando as pregações e o comportamento de Jesus de Nazaré, que manifestava a verdade fundamental da responsabilidade do homem para com a mulher, perante a sua dignidade e vocação à maternidade. Certamente, Jesus experimentou esta realidade na Sua casa de Nazaré, onde Seu pai José e Sua mãe Maria viviam o dom do casamento na reciprocidade total deles mesmos. A este propósito afirma São João Paulo II na Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, 20: No ensinamento de Cristo, a maternidade anda ligada à virgindade, mas é também distinta dela. A esse respeito, permanece fundamental a frase dita por Jesus aos discípulos e inserida no colóquio sobre a indissolubilidade do matrimônio.

De fato, um amor similar, em que a pessoa se torna dom um para o outro. Maria e José, no “sim” que deram a Deus, viveram em um concreto amor recíproco. Se Maria realizou, até a perfeição, o “dom de si” a Deus, foi possível também a graça do consenso e do dom que José fez de si mesmo. Eles, na liberdade e consciência, se sentiam unidos. O vínculo da caridade era tão perfeito a ponto de consentir a união dos dois aspectos do dom de si mesmos – a virgindade e o matrimônio –, segundo as exigências da divina presença em que este dom era finalizado. Reciprocamente confiados um ao outro como pessoas, feitos à imagem e semelhança de Deus. Em tal confiança estava a medida do amor conjugal, que se tornou, para ambos, um dom sincero, e assim se sentiam responsáveis por este dom. Esta medida era destinada a todos os dois, homem e mulher, desde o princípio. Este novo início que, por excelência, fora constituído da Encarnação do Filho de Deus, na qual temos uma nova criação da humanidade, que em Jesus é a irradiação da glória do Pai e a comunicação da Sua substância (Hb 1,3), conquista a sua mais íntima união com Deus. São Paulo, na carta aos Efésios 5,32 aponta a unidade dos dois em relação a Cristo, à Sua Igreja, afirmando o grande mistério que encontrará no matrimônio de Maria e José a sua referência ideal e simbólica, como o mesmo São Tomás de Aquino: Este matrimônio é um símbolo da Igreja universal, que mesmo sendo virgem, é contudo esposa de Cristo, seu único esposo. O amor da santíssima Família de Nazaré, Maria e José, foi a razão pela qual eles foram constituídos custódios do amor divino, da suprema caridade, a única capaz de trazer ao mundo o verdadeiro Deus, que eles nutriram e vestiram.

E por motivo deste amor, o mesmo Deus quis ser considerado verdadeiro Filho deste matrimônio. Assim, nesta união conjugal entre José e Maria temos o sinal original e sempre atual de uma amorosa doação criadora, dimensão indispensável como exemplo 66

para a perseverança dos esposos e da família. Existe uma forte ligação entre o mistério da criação que jorra amor, que é o princípio beatificante da existência do homem e da mulher, em relação à corporeidade e à comunhão como pessoas. Nas primícias da redenção, encontramos José e Maria, os esposos de Nazaré, enriquecidos de todos os dons celestes necessários para a singular missão de pais do Filho de Deus Encarnado e capazes de viver a comunhão conjugal (cf. Lc 2,41). Na dimensão originária e exemplar da criação, estes foram e continuam sendo para a humanidade o sacramento renovado do amor original, que é o puro e desinteressado dom de si mesmos, na plena consciência de serem queridos pelo Criador, cada um por si, e juntos por Cristo, em que eles mesmos encontram o próprio dom. Em Maria e José se realizou totalmente o que para o primeiro casal do Éden (Adão e Eva) ficou somente como ideal. José foi um executor obediente do comando divino: “José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo” (Mt 1,20b). José certamente acolheu sua esposa por aquilo que ela era e, por consequência, não a “conheceu”, pelo pleno respeito do projeto de Deus sobre ela, que era diferente daquele de Eva. José e Maria viveram integralmente a experiência do ser “dom”, doando-se no amor sincero, vivendo de modo singular, na plenitude da mesma liberdade do dom, que está na base do significado conjugal do corpo, ou seja, na capacidade de exprimir o amor. Penso que deveríamos propor, sem cessar, “a Família de Nazaré” como exemplo de atualidade, porque viveram no cotidiano o amor e a obediência à vontade divina, e pelo fato de terem vivido constantemente um para o outro, conseguiram realizar completamente aquilo em que os primeiros cônjuges da humanidade tinham falhado, permanecendo somente como ideal; ideal falido pelas recíprocas acusações e divisão. A experiência do dom recíproco, de fato, caracterizou, de modo original, o vínculo matrimonial de José e Maria de Nazaré.

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O dom “esponsal” de Maria e José: a realização do serviço a Cristo e à Sua Igreja Toda a Igreja apostólica e pós-apostólica sempre atribuiu a São José o título de esposo de Maria, professando que entre a Virgem Maria e seu esposo existia um vínculo conjugal que foi estreito e cordial; vínculo interpretado à luz do “amor ágape”. O comportamento virtuoso de José para com Maria acentua principalmente o grande respeito e amor para com o “Verbo de Deus”, encarnado no ventre de sua esposa. No passado, por motivo de uma apologética defesa da virgindade de Maria, a figura de José suscitou invenções, que contribuíram para deformar ou banalizar a sua figura. Somos convidados a voltar aos Evangelhos, no evento da Salvação, e à mensagem de alegria do nascimento do Salvador, que escolhe a cooperação humana e cotidiana de Maria e de José. Mas ao mesmo tempo necessitamos admitir que estes equívocos favoreceram um reduzido conhecimento da doutrina no que se refere à real natureza do matrimônio. O amor conjugal que existe entre José e Maria é a máxima manifestação do amor verdadeiro e puro do querer-se bem. Quando não existe o amor profundo, mas a busca da satisfação do próprio eu, o amor ágape, a amizade é substituída pela concupiscência. Admiro muito e proponho a distinção de São Tomás de Aquino, na suma teológica, entre a amizade e a concupiscência: Não um amor qualquer, mas somente aquele acompanhado pela benevolência tem a natureza da amizade, quando amamos e desejamos o bem. Se ao contrário, queremos o bem do outro para nós mesmos, não temos o amor da amizade, mas da concupiscência. Por isso o afeto e o amor um para com o outro deve ser como uma coisa só. Isso é querer bem como a si mesmo.

Como é belo conceber a ideia de que São José não somente esteve ao lado de Maria, mas também estava totalmente comprometido com todo o mistério que a envolvia, tornando possível, assim, a visita de Deus à humanidade através da Encarnação. José estava com Maria, mas estava também participando da revelação de Deus em Cristo, sustentando sua esposa na fé da divina Anunciação, e ainda podemos dizer que foi o primeiro que se colocou na peregrinação de fé com ela. São José, desde suas origens, é apresentado pelos evangelistas como aquele que assumiu uma função importante no plano da Salvação juntamente com Maria. O matrimônio dos dois jovens de Nazaré reforçou o chamado para preparar o caminho para Cristo, Filho único do Pai. E eles foram totalmente abertos à união conjugal, na qual Deus os chamou à paternidade e à maternidade, totalmente nova para o gênero humano. A resposta de José e a de Maria foram imediatas e correspondentes ao chamado divino: 68

os dois, além de tudo, se sustentaram reciprocamente no fazer-se dom a serviço do Filho de Deus. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor tinha mandado e acolheu sua esposa (Mt 1,24). Maria disse: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra”. E o anjo retirou-se de junto dela (Lc 1,38).

É neste ponto que começo a imaginar o que você, caro leitor, estará intuindo com estes capítulos, nos quais gostaria de apresentar-lhes a Sagrada Família de Nazaré no serviço único ao Salvador e à Salvação; vida que interessa muito aos casais cristãos, que podem se perguntar como testemunhar o matrimônio no amor, na estima, na ternura e na recíproca corporeidade da união conjugal. Como esposos, José e Maria são modelos. José creu, aceitou e acolheu Maria. Em concordância com a lei dos homens, tornou-se “pai” de um menino que se chama “Jesus”, o Messias, o herdeiro universal. Em conclusão a esta meditação, vamos ao centro da nossa reflexão, que é “Jesus”. As notícias que os Evangelhos nos passam do tempo em que Jesus passou com os Seus pais em Nazaré não são muitas, mas permitem entender que Ele teve uma vida comum, como todos os concidadãos judeus do Seu tempo. Depois de cumprirem tudo conforme a Lei do Senhor, eles voltaram para Nazaré, sua cidade, na Galileia. O menino foi crescendo, ficando forte e cheio de sabedoria. A graça de Deus estava com ele. Jesus desceu, então, com seus pais para Nazaré e era obediente a eles. Sua mãe guardava todas estas coisas no coração. E Jesus ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos homens (Lc 2,39-40.51-52).

A comunhão de vida e de obediência à vontade do Pai, vivida intensamente por Jesus na casa de Nazaré, levou José e Maria a avançar sempre mais na peregrinação da fé e na correlativa esperança. A extraordinária relação entre Maria e o seu Filho também envolvia José. Todos os membros da Sagrada Família viveram a beleza e o compromisso do dom sincero de si, mesmo que gradualmente e de forma diferente, levando-os à reciprocidade e ao acolhimento à vontade salvadora do Pai celeste. Ó Deus, nosso Pai, que na Santa Família de Nazaré nos deste um verdadeiro modelo de vida, faz com que as nossas famílias floresçam nas mesmas virtudes e no mesmo amor, para que, reunidos espiritualmente aqui na Tua santa casa de Nazaré, possamos experimentar a alegria sem fim. Faz com que as nossas famílias vivam na Tua amizade e na Tua paz, tendo como modelo a Sagrada Família de Nazaré e, assim, vivendo a beleza da reciprocidade no serviço à vontade Salvadora do Pai. Amém! 69

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Sagrada Família de Nazaré, inspiração da Igreja doméstica

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a Sagrada Família de Nazaré, o casal José e Maria experimentou a alegria do compromisso da própria paternidade e maternidade para com o Filho de Deus. Na vida humana, quando os casais se tornam pais, eles se tornam, com todo o respeito, mais unidos, mais casal, mais responsáveis. A graça de colocar um filho no mundo é fruto da recíproca doação das próprias vidas, na qual a vida doada vem reencontrada, de um certo modo, no filho, que passa a fazer parte dos dois com a sua existência, os seus direitos, as suas necessidades, o seu futuro, a sua pessoa como um “tu”, no “nós” conjugal e familiar. Realmente, meditar o mistério da vida humana nos transporta a um clima de oração e de ação de graça. Ao se transmitir a vida a um novo “ser humano”, se insere na órbita do “nós dos casais” uma pessoa que eles chamarão com um nome novo: “nosso filho”. O processo de concepção e do desenvolvimento no ventre materno, do parto até ao nascimento, serve para criar um espaço adaptado para que uma nova criatura possa se manifestar como “dom”. Maria e José, obedecendo à voz do mensageiro celeste, deram o nome “Jesus” ao próprio filho, “nome que está acima de todos os nomes” (Fl 2,9), e a Ele se dedicaram totalmente, com a consciência de que dar o nome significava fazer um serviço a Deus, que os chamou à vida e à missão de Salvação do Seu primogênito, descobrindo cotidianamente a identidade e a missão do Filho de Deus, o único que sabia em profundidade quem era Jesus. A Família de Nazaré foi o espaço ideal para o Filho de Deus, o Filho da Virgem e de José, no qual o Filho da humanidade redimida foi acolhido, cuidado, servido e amado como o grande dom de Deus. O amor doado e retribuído entre pais e filhos se realizou nos membros da Sagrada Família como em cada ser humano amado e capaz de amar, capaz de modificar e consolidar a própria identidade, favorecendo a capacidade de instaurar relações íntimas, autênticas, consequência de um amor maduro, capaz de se abrir como dom, em especial, na dimensão de projeto para o homem. Eu amo intitular Nazaré como o lugar especial do projeto. Aqui, o Amor de Deus se concretiza no Seu projeto em Jesus e na dimensão fundamental da família cristã, concebida fundamentalmente como lugar e espaço na acolhida do Mistério. Maria e José, acolhendo Jesus Cristo como parte essencial da própria experiência teologal-esponsal e familiar, são o exemplo atual da fecundidade espiritual da família como lugar de acolhida 72

do evento de Deus conosco. Até este momento, nós meditamos o dom da Sagrada Família como projeto de Deus na obra Salvadora em Cristo e o serviço e a cooperação humana de José e Maria. Nas próximas páginas, quero voltar a atenção para algumas características da Sagrada Família como exemplo para a “família Igreja doméstica”, o seu papel como base para construir aquela que nós podemos definir como uma família segundo o Evangelho. Partindo dos Evangelhos, de fato, reconhecemos que a Sagrada Família de Nazaré foi uma “família de amor e de oração”, profundamente apaixonada pelo Pai celeste, vivendo plenamente na Sua vontade, no cumprimento dos Seus mandamentos e na Sua providência (Mt 1,24; Lc 1,38; 2,49). Observando a vontade do Pai, os mandamentos foram o único guia no caminho de José e Maria; tanto que se transformam até em alimento cotidiano para Jesus: “Jesus lhes disse: ‘O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo sua obra’” (Jo 4,34). Na casa de Nazaré, Deus ocupa o primeiro lugar porque é o princípio, o coração e a meta de tudo. E foi aqui, nesta simples casa, a poucos metros de onde estou escrevendo estas páginas, o Santo Lugar, onde se manifestou o grande amor para com as “coisas do Pai” (Lc 2,49), onde Jesus, Maria e José manifestaram, na cotidianidade da vida, a plena comunhão entre eles, até elevá-la a uma incessante oração de louvor e de adoração a Deus. Sabemos ainda, através dos Evangelhos, que esta profunda comunhão com Deus não os poupou das grandes provações. A Família de Jesus foi realmente uma “família provada” e não privilegiada por causa da peculiar missão a eles confiada. A Sagrada Família, por causa da missão de Jesus, sinal de contradição (cf. Lc 2,34), conheceu a pobreza, a dor (Lc 2,7; 4,28; Jo 19,25). Eles tiveram que abraçar a cruz a cada dia (Lc 9,23) e caminhar nas vias do Senhor, nas quais aprenderam no âmbito da sua família terrena aquilo que testemunharam com a própria vida. Jesus não se limitou somente ao anúncio, Ele sempre colocava em prática o que anunciava. De fato, Jesus não somente proclamava, mas, antes de tudo, vivia. A Família de Nazaré teve a delicada e apaixonante missão de educar Jesus na Sua humanidade como verdadeiro homem, executando a árdua tarefa de “família educadora”. Como atesta o Evangelho, “Jesus crescia em todas as dimensões: intelectual, física e espiritual” (cf. Lc 2,52). Cresceu rezando, trabalhando, estudando na escola da família, aprendendo a fidelidade nas pequenas coisas (cf. Lc 16,10) e preparando-se para a missão do anúncio do Evangelho até a doação total da própria vida (cf. Ef 5,1-2), na missão de ir ao encontro dos pobres, dos simples, dos humildes, dos pecadores e dos justos, daqueles que estavam perto e daqueles distantes, para curar os corações feridos, realidade que aprendeu com Sua Família de Nazaré, que ousamos chamar de “família 73

aberta” por vocação. Da Sua família terrena, Jesus se abre ao anúncio real da fraternidade universal (cf. Mt 12,50; 23,8), concretizado com o nascimento da Igreja no dom supremo de Si, relevando assim ao homem a consciência de ser família de Deus Pai. Por trinta anos Jesus viveu em Nazaré santificando aquela família que seria a primeira imagem da nova humanidade que Ele, o Senhor Jesus, regeneraria e fundaria: a Igreja nova. O relacionamento entre eles não foi baseado unicamente nos laços de sangue, mas sim nos laços do Espírito. Desta família podem participar todos os homens, porque é fundada no acolhimento do desígnio de Deus. Comovo-me em transcrever estas linhas, quando na minha mente e no meu coração ressoam as pequenas homilias diárias de Papa Francisco, nas quais ele convida a Igreja e todas as famílias, chamadas de “Igrejas domésticas”, a escutarem e acolherem a Verdade inovadora do Evangelho. José e Maria, acolhendo a pessoa de Cristo, acolheram também a Salvação de Deus, tornando-se “família de salvação” por meio de Jesus Cristo. A Família de Jesus, Maria e José, aberta ao diálogo com Deus e ao diálogo com todas as famílias que procuram Deus em Cristo. Eu ouso ainda definir a Sagrada Família como o “Evangelho concretizado”, no qual todos podem encontrar a própria vocação vivendo e exprimindo os próprios dons recebidos por Deus, para alcançar, cada um, a própria missão no caminho da santidade, da fidelidade, da defesa da vida, na educação dos filhos, na escuta da Palavra, na oração e no testemunho da caridade (cf. 1Cor 7,7). Desta fonte da espiritualidade de Nazaré, sem muitas pretensões, nos capítulos que seguem, gostaria de meditar com você, caro(a) irmão(ã), a escola da Família Sagrada de Nazaré: exemplo de vida conjugal, paternidade, maternidade, de “consagração no celibato e virgindade pelo Reino”, enfim, da vida santificada pelo “Santo dos Santos”, Jesus de Nazaré.

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São José, uma paternidade “desafiadora” Começo com a notícia do Evangelho de São Lucas 2,39, que nos fala que Maria e José retornaram à Galileia, em Nazaré, uma pequena cidade sem fama, mas que acolheu a presença histórica do Filho do Eterno Pai. É neste contexto que se inicia o evento terreno do Filho do Altíssimo: nascer e viver em uma nação, a mais insignificante daquele tempo, o pequeno e submisso Israel, o povo eleito de Deus, submisso ao império romano. Mas o tema que quero partilhar é a paternidade de São José, cujos conhecimento e consciência desta grande missão foram compreendidos por ele em um caminho progressivo: a Anunciação onírica (Mt 1,18-25); o direito de impor o nome ao menino (Mt 1,21) e de ser constituído pai da Família (Mt 2,13); o reconhecimento de Jesus como “Filho do carpinteiro” (Mt 13,55) e “Filho de José” (Lc 3,23). Mas a tradição sempre atribuiu a São José uma paternidade putativa (jurídica), conforme afirma São Paulo em sua carta aos Efésios, na qual revela que “do Pai recebe o nome toda paternidade no céu e na terra” (cf. Ef 3,15). Deste princípio paulino podemos facilmente assumir que a paternidade sobre Jesus foi confiada a São José diretamente por Deus. Nesta paternidade está ligada e finalizada a verdade messiânica da Encarnação do Filho de Deus, que emotivamente envolve todos os membros da Sagrada Família, assim como revelou Maria ao se dirigir a Jesus no templo: “Olha, teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (Lc 2,48). A paternidade de José vem explicada no Evangelho de São Mateus através da genealogia e da sucessiva narração da Anunciação, que, além de inserir o Filho de Deus na família humana e vê-Lo descendente de Davi e de Abraão, tem, sobretudo, o objetivo de testemunhar que tudo isso não aconteceu por meio da geração física da parte de José (cf. Mt 1,25). A intenção do evangelista Mateus é muito clara: José não gerou Cristo, que é obra do Espírito Santo. E continuando nos Evangelhos, José é pai de Jesus (cf. Lc 2,27), e enquanto pai, teve o direito de dar o nome ao menino (cf. Mt 1,21) e guiá-Lo, enquanto chefe da Sagrada Família (cf. Mt 2,13). A este ponto poderíamos nos perguntar por que este título de “pai” se José não gerou Jesus. Mateus trata a questão seguindo duas vias: a jurídica e legal; e a pessoal e afetiva. E esta meditação nos ajuda a conhecer melhor esta figura tão esquecida, que é São José, mas de grande importância para a nossa história da Salvação. A paternidade jurídica é aquela baseada nas exigências da lei hebraica, que dá a José o direito da paternidade enquanto esposo de Maria. Verificamos isso no Evangelho de São Mateus que, frequentemente, coloca em evidência que ele é o pai legal de Jesus porque, antes da Sua concepção virginal, José já estava ligado à Maria no vínculo do 75

matrimônio; e também, depois do evento da concepção por obra do Espírito Santo, esta paternidade não foi abandonada, pois o anjo o aconselhou a não temer receber Maria como esposa: “Mas, no que lhe veio esse pensamento, apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor, que lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo’” (Mt 1,20). Quanto à paternidade afetiva, sempre me edifica a belíssima afirmação de Santo Agostinho: “Da piedade e da caridade de José, nasceu da Virgem Maria o Filho de Deus” (Santo Agostinho, sermão 51). Diante da vontade divina, expressada através das palavras do anjo, José aceitou e acolheu Maria como sua esposa e o fruto da sua maternidade virginal. Diante da lei e dos homens, ele é o pai do menino Jesus. Nos acontecimentos históricos do projeto de Salvação, a paternidade sobre o Filho eterno e humano vem atribuída diretamente por Deus. Por esse caminho de São José, que eu chamarei de “caminho de fé”, passou também a superação do temor em assumir uma paternidade incomum, que vinha diretamente de Deus. José participa do Amor do Pai e, como consequência, oferece totalmente o seu amor ao serviço do Verbo Encarnado: foi o próprio Pai que o chamou de “filho de Davi”. Exercitar com superabundância tal paternidade o completou do Amor do Pai. O amor paterno de São José atuou no amor filial de Jesus e vice-versa. O amor filial de Jesus só poderia influenciar no amor paterno de José. Esta relação está fundada no amor conjugal da Sagrada Família, na tarefa de “pai responsável” pelo Filho de Deus. E assim José foi chamado a exercitar também o papel de pai jurídico, como já mencionamos, não somente com a imposição do nome, mas também nutrindo, vestindo, educando na lei, no trabalho, enfim, em todos os deveres que compete a um pai. No que compete à educação, enquanto na experiência humana, ele acompanhou o Filho de Deus na formação educativa, e da sua paternidade educadora surge o caminho que nos mostra que os principais educadores dos filhos são os pais, e eles são chamados a esta missão fundamental. A passagem evangélica que ainda nos guia ressaltando Maria, José e o Menino Deus é o encontro de Jesus no templo (cf. Lc 2,41-51), nos papéis distintos de pai e mãe. Lucas descreve o encontro no templo, evidenciando a identidade do adolescente Jesus na resposta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar naquilo que é de meu Pai?” (Lc 2,49). Aqui o divino e o humano são autorrevelados. Jesus não discute a paternidade de José, porque retorna com os Seus pais para Nazaré, dando assim credibilidade, com a Sua atitude, ao fato de que Ele era filho de José e reconhecendo legalmente a paternidade humana: “Jesus desceu, então, com seus pais para Nazaré e era obediente a eles” (Lc 2,51). Assim como nos apresenta a Sagrada Escritura, a paternidade putativa de José em 76

relação a Jesus nem sempre foi aceita ou interpretada de modo correto. Há, ainda, dificuldade em entender os termos “filho de José”, como nos vem descrito no Evangelho de Lucas: “Não é este o filho de José?”(Lc 4,22). Ainda hoje, muitos escritores substituem o apelativo “putativo”, porque ele é interpretado como aquilo que é aparente, não verdadeiro, até mesmo interpretado como falso, para que, assim, a ilustríssima e concreta figura de São José não venha a ser esquecida. Assim, outras terminologias – como paternidade adotiva, nutrícia, legal, matrimonial, paternidade vigária do Pai Celeste – são utilizadas. Esta última, talvez teologicamente, de certo modo, é a mais exata. José “representa” o Pai celeste, de modo que esta é a base da paternidade Josefina, paternidade espiritual e virginal; e se torna a referência para toda a paternidade humana, porque São José soube, como nenhum outro, de modo livre, responsável e consciente, fazer da sua paternidade um verdadeiro serviço a Deus, e em Deus, toda a humanidade necessitada da Família Trinitária e de seu Filho (cf. Is 9,5). É a partir desta verdadeira paternidade que todos os pais podem ter consciência de que toda autoridade paterna pertence a Deus.

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Maria, uma maternidade eclesial Neste momento da nossa caminhada espiritual, nessa leitura, meditaremos sobre a maternidade de Maria: Maria como mulher e mãe. São João Paulo II, na Redemptoris Mater, diz que a maternidade de Maria começa em Nazaré. E ela é provedora, porque acolhe o Verbo que se faz carne aqui e O faz crescer. Acolhe-O no seu ventre, depois nutre-O com o seu corpo e faz a experiência da maternidade, aquela maternidade profunda, a experiência de uma mãe com seu filho. Mas os Santos Padres da Igreja, de modo especial Santo Irineu, dizem que a maternidade de Maria é um percurso. Que não é uma cooperação passiva à vontade de Deus. Disse Santo Irineu que Maria coopera, ativamente, no projeto da salvação, o faz crescer e se torna modelo de fé, de crença, de mãe. Por isso, a maternidade de Maria é um caminho: passando por Nazaré, Caná da Galileia, até o Calvário, para se tornar a Mãe de toda a humanidade, a maternidade universal. Este tema tão belo nos faz saborear uma maternidade que é para cada um de nós: somos todos filhos de Maria, estamos todos nos seus braços, estamos todos sob a sua proteção, porque Maria é a Mãe da Igreja, é a nossa Mãe, a Mãe de cada um de nós. Digamos que, em Nazaré, a Santíssima Virgem Maria adquire uma dimensão da maternidade física, da maternidade biológica. Uma maternidade encarregada das coisas comuns de uma mãe. Sabe-se que as mulheres em Israel são responsáveis pela fé dos filhos, então, a Santíssima Virgem Maria teve que formar o pequeno Jesus na fé dos pais e também no afeto, em todos os sentidos. Esta maternidade física, biológica, foi desenvolvida. Papa São João Paulo II a chama de “a mãe provedora, a mãe que nutre, que doa afeto”. Mas recordamos também que, no mesmo Evangelho de Lucas, Jesus falava às multidões, e uma mulher foi muito tocada pelo modo com que Ele falava. Então, esta mulher se levantou e disse: “‘Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram’. Ele respondeu: ‘Felizes, sobretudo, são os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática’” (Lc 11,27-28). Portanto, ali começamos a ver que o Senhor quer nos apresentar a Mãe não somente nesta dimensão física, biológica, mas, sobretudo, nos diz que a Mãe foi uma mulher de fé. Porque, como disse Santo Agostinho, Maria O concebeu primeiro com a mente e depois com o ventre. Isso significa que ela concebeu primeiro com a fé e, depois, a consequência desta fé foi o ser mãe. Partimos agora para Caná da Galileia, onde todos nós sabemos, mais ou menos, a passagem da Bíblia que nos relata o episódio das bodas de Caná, quando faltou o vinho e a Mãe interveio. Interveio porque tinha fé, porque tinha fé no Filho, sabia que o Filho 78

podia fazer qualquer coisa pelos esposos, pela festa. Mas, de um modo fora do comum, o Filho lhe diz: “O que tem entre mim e ti, mulher?” (cf. Jo 2,1-12). Jesus a chama de mulher! Devemos ter em mente que, no Evangelho de João, o Filho Jesus nunca se refere à Maria como mãe, como mamãe... Ele a chama sempre de mulher. Portanto, o Senhor prepara a Santíssima Virgem Maria para fazer um percurso: ela não é somente mãe, ela começa a ser a mulher. Por que mulher? Por que o Filho a chama assim? De fato, o evangelista João nunca chama Maria pelo nome, sempre a chama de mãe de Jesus ou a Mãe. Em vez disso, Jesus a chama de mulher. Logo, o Filho começa a nos levar e a levar Maria nesta dimensão, como mulher. Portanto, de qualquer maneira, a Santíssima Virgem Maria tinha que compreender que deveria renunciar a uma maternidade particular. Porque não é somente a maternidade com um filho. Ela deveria renunciar, de qualquer modo, a esta maternidade somente a dois: Jesus-Maria, Filho-Mãe, e deveria começar a se abrir a uma outra maternidade. Por isso, o Filho a chama de mulher. Rapidamente, chegamos ao Calvário. Ali, verdadeiramente, compreendemos por que o Senhor a chamou de mulher. Sabemos que a primeira mulher foi chamada de Eva e que ela surgiu do primeiro Adão. Agora, o novo Adão vem da nova Eva, que é a Santíssima Virgem Maria. O livro de Gênesis explica o que quer dizer Eva: a mãe dos viventes. Então, a primeira mulher é mãe dos viventes. Logo, Maria, como dizia os Santos Padres, é a nova Eva. O Evangelho de São João relata o momento em que Jesus, ao ser crucificado, se dirige a Sua Mãe como uma mulher. Junto à cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” A partir daquela hora, o discípulo a acolheu no que era seu (Jo 19,25-27).

Maria, neste momento, poderia se questionar: “Como podes me dizer: eis o teu filho? Tu és o meu único filho!” Assim, nasce a mulher. Podemos dizer: nasce uma nova descendência. No trecho acima, o evangelista não menciona o nome de João como sendo o discípulo amado. Isso quer dizer que o próprio evangelista nos pede para nos identificarmos também com este discípulo. Como discípulo e também como humanidade, porque João é um homem, mas, nesse momento, representa toda a humanidade. Por isso, a Mãe se torna Mãe da humanidade. No livro de Mateus ainda está escrito: “‘Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?’ E, estendendo a mão para os discípulos, acrescentou: ‘Eis minha mãe e meus 79

irmãos. Pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’”(Mt 12,48-50). Isso também nos surpreende um pouco. Como ser mãe de Jesus? Como podemos ser “Mãe” de Jesus? A única mãe de Jesus é Maria! Mas Ele mesmo diz: “Você deve ser minha mãe de qualquer maneira”. E como isso acontece? Escutando e colocando em prática a Palavra de Deus. E assim o fez a Santíssima Virgem Maria. Dizia o Beato Paulo VI: “Se queremos ser cristãos, devemos ser marianos”. Porque a Igreja é mariana, a Igreja é materna, a Igreja escuta a Palavra de Deus, a medita, a concebe e depois dá à luz esta Palavra. Nós, tantas vezes, escutamos a Palavra de Deus, especialmente na liturgia a cada domingo... Mas esta Palavra deve ser acolhida com o mesmo espírito de Maria, ou seja, devemos receber a Palavra, concebê-la, guardá-la e depois fazê-la carne e sangue na vida... Como mãe, como trabalhador, como empregado, como estudante, no lugar onde estivermos, devemos colocá-la em prática, vivendo e encarnando o Evangelho.

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Jesus, Maria e José, ícone do amor Trinitário A Sagrada Família foi aberta ao diálogo com Deus, ao diálogo com todas as famílias que procuram Deus e, em Cristo, à Família Trinitária. Por isso, verdadeiramente e não de forma retórica, se pode afirmar que a Família de Nazaré foi o lugar privilegiado do diálogo humano, do diálogo de fé, do diálogo de Salvação. No mistério inefável da Família Trinitária, ágape do “amor” indescritível de comunhão, medula da motivação essencial da racionalidade, estão a fecundidade e a santidade do matrimônio celebrado em Cristo. Em tal mistério essencial do cristianismo, de fato está presente a mais radical diferença na reciprocidade que se pode experimentar ou simplesmente intuir: a máxima diferença no interno da mais absoluta identidade. Tal mistério e tal dinamismo do Deus Trinitário são comunicados à família humana por meio de Cristo, “no sacramento do amor”. Esta experiência é vivida em plenitude nas relações, nos próprios afetos, na própria responsabilidade do casal de Nazaré, e que é própria na virtude de tais singulares relações com as pessoas divinas, possuindo ainda uma atualidade exemplar para as famílias cristãs do nosso tempo. Não é por acaso que a redescoberta da dimensão trinitária da fé cristã é um aspecto que deriva da forte afirmação de comunhão da Igreja de Cristo. Por isso, quando falamos da Família de Nazaré, nós a chamamos “Sagrada Família”. Isso ocorre também na celebração litúrgica, porque é um louvor à Família terrena de Jesus, memória desejada pelos fiéis e da proposta da Sagrada Família como modelo exemplar. De fato, cada membro da Família de Nazaré ensina, através da experiência, o amor e o serviço recíproco, o caminho e a passagem da centralidade do “eu” ao outro, aos outros. É neste processo de profunda vocação e transformação que se constrói uma comunidade de amor, senso e meta de toda realidade humana, cristã e eclesial. Na Sagrada Família de Nazaré, a família cristã se configura na própria vocação como apelo, como chamado para se tornar comunidade de pessoas, na plenitude do homem novo que é Jesus de Nazaré, que ama o dom sincero de si; em uma profunda amizade e afeto, no responderem juntos à vontade de Deus, na cotidiana familiaridade com o Unigênito do Pai: Jesus Cristo. Nele e somente Nele a família, sacramento do amor, descobre a fecundidade e o compromisso da vocação. A Igreja é experiência do Amor de Cristo na história e na vida de cada homem e de cada mulher. Este amor total e transformador tem possibilidades enormes e sempre novas da manifestação própria no ser juntos como família “santuário da vida”, como afirma São João Paulo II na Gratissimam Sane. Neste fundamento se constrói a Igreja como experiência de acolhida e da caridade de 81

Deus em Cristo. Nestes concretos fundamentos se constroem o matrimônio e a família, a modelo da “Sagrada Família” de Nazaré, exemplo de recíproca responsabilidade na ética do amor, do serviço e da fecundidade da família. Em consequência disso, temos a extrema cura pastoral da Igreja pelo tema da família, enquanto plenamente somos conscientes de que na “família” se experimenta a identidade da Igreja de Cristo, verdadeiro ícone do “Amor Trinitário”. Oração à Santíssima Trindade Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a nós, pobres, fazer, por Vós mesmo, o que sabemos que Vós quereis, e sempre querer o que Vos agrada, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e acesos no fogo do Santo Espírito, possamos seguir os vestígios do Vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e chegar só por Vossa graça a Vós, Altíssimo, que na Trindade perfeita e na Unidade simples viveis e reinais e sois glorificado Deus onipotente por todos os séculos dos séculos. Amém. (São Francisco de Assis, Carta a toda a Ordem)

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Sagrada Família, modelo de todas as vocações É significativo notar como a experiência vocacional, no período que caracterizou a religiosidade do povo cristão nos últimos séculos, se refere essencialmente ao estado de vida consagrada religiosa e ao sacerdócio ministerial. “Ter vocação” se identificava, em geral, no modo comum de falar, no fato de uma pessoa entrar em um instituto religioso ou no seminário para a formação sacerdotal. O cristão normal, pode-se assim dizer, era considerado simplesmente como alguém que não tinha recebido uma vocação ou um chamado. Mas foi o Concílio Vaticano II que chamou a atenção da Igreja para o importante tema “vocacional”, afirmando uma dimensão muito mais ampla com a “vocação universal à santidade”. É evidente para todos aqueles que creem em Cristo que todos os estados de vida são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade, de modo que a santidade promova na sociedade terrena um teor de vida mais humano, como o exemplo da Sagrada Família de Nazaré. Mas constatamos com tristeza que a utilização do termo “vocação”, no âmbito secularizado e até mesmo descristianizado, geralmente é usado para explicar a atitude de uma pessoa que exercita uma determinada profissão ou uma atividade e a sua dedicação a ela. Quando se encontra alguém particularmente dedicado ao seu trabalho, dizemos: “Esse trabalho é para ele uma vocação”. De fato, dar este significado é ir ao contrário do significado genuíno da palavra “vocação”, no seu senso bíblico e eclesial, de eleição da parte de Deus em vista de uma missão. Como já mencionamos, a palavra vocação é para todo batizado (Lumen Gentium, 40), mas ao lado desta abertura inclusiva é notável ainda o referimento a toda existência cristã, mediante a tantas expressões sucessivas, como: “chamado à vida”, “chamado a configurar-se a Cristo”, “chamado à Igreja”, “chamado à santidade” e “chamado à glória dos Céus”. Deste modo, voltando às origens da Igreja e à sua terra, quero dizer a Terra Santa, onde a casa de Nazaré na simplicidade é o perfume que emana para a Igreja e onde constatamos que os membros da Sagrada Família eram leigos, não podemos esquecer a índole secular da Santa Família, na qual encontramos dois cônjuges, na inspiração de santidade e entrega total pelo Reino dos Céus. Mas a Família de Nazaré inspira ainda o tema universal das vocações à santidade, sem abolir as diferenças entre sacerdócio comum e ministerial e entre matrimônio e virgindade pelo Reino. Isso é próprio da constituição dogmática Lumen Gentium, que teve uma tarefa notável no momento decisivo da dissolução dos nós da identidade da 84

Igreja frente ao mundo, na nova compreensão dos estados de vida e da vocação cristã no mundo e no apresentar da Igreja como “sacramento”, como sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade com o gênero humano (Lumen Gentium, 1), dando forma a uma renovada visão cristã dos diferentes estados de vida, nos quais emerge claramente a dimensão missionária de toda vida da Igreja, que vê na concreta humanidade de Cristo a revelação de Deus e da vocação do homem. Assim, queridos irmãos e irmãs, partimos de uma constatação linguística da palavra “vocação” no seu uso comum ao seu desenvolvimento na modernidade, e das contradições até a visão eclesial de comunhão do Concílio Vaticano II, e afirmamos e acreditamos que, em primeiro lugar, a vida como vocação é o tema fundamental deste capítulo. Por isso, é decisivo, falando de “vocação”, sermos capazes de interceptar a experiência fundamental de cada homem, realidade que na sua forma concreta foi querida por Deus em vista da adoção ao Filho de Deus em Cristo. E igualmente emerge a exigência de acolher a vida como vocação, saindo da divisão entre vocação e humano, enquanto o humano vem expressado a partir do desígnio de Deus revelado em Cristo na Santa Casa de Nazaré. Em tal senso a missão da Igreja no mundo impõe seguir a linha de uma vida como vocação até à escolha das diferentes vocações, identificadas pelas situações fundamentais em que o cristão é chamado a viver. Por isso, o objetivo das páginas que seguem é propor uma reflexão sobre os estados de vida matrimonial, consagrados no celibato, na vida religiosa e naquela presbiterial, colhendo na Vida de Jesus Cristo a origem da unidade e das diferenças dos estados de vida, de modo que a Igreja possa viver a missão confiada por Cristo de levar todos a Ele. Neste senso prosseguimos o nosso caminho, procurando fundamentar o conceito de vida como vocação no modo de acolher o fundamento da sua singular, pessoal e universal identidade e sucessivamente demonstrar as suas diferenças. Certamente que não é o objetivo deste opúsculo aprofundar a teologia dos estados de vida, mas pelo menos transmitir a concepção das diferenças da única realidade da vida como vocação, expressada no modo paradigmático, em que o matrimônio e o celibato pelo Reino têm relação um com o outro, com a esperança de um diálogo no qual reine a vida com Cristo e a unidade com Ele. Na Sagrada Família e no estado singular de Maria e José, na vida cotidiana e ordinária, é de considerar este senso realmente unitário. Através do “sim” de Maria em Nazaré, o Filho de Deus se faz carne, nasce, cresce e vive a Sua missão. Este “sim” não expira e não cessa de ser pronunciado ainda nas almas consagradas e discípulas de Cristo. Em Maria, virgindade e fecundidade não estão em contraposição, mas são ligação para a sua maternidade. E para concluir podemos dizer que com o ingresso do Filho de Deus e a exaltação de todos os estados de vida, com a intercessão de Maria Santíssima, 85

vamos refletir nas próximas páginas a distinção essencial para um “são discernimento” entre vida matrimonial e celibatários pelo Reino e para esclarecer que não existe uma terceira saída à opção, ou, expressão muito comum nos dias de hoje, uma terceira estrada.

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Um discernimento decisivo entre “celibato pelo Reino e Matrimônio” Certamente, se estamos nesta reflexão fazendo-nos guiar pela escola do Evangelho, quando falamos em “vocação” temos que citar os passos evangélicos do chamado ao seguimento de Cristo, no qual se pede a mudança de vida e a conversão, mas que não se interpreta junto ou contrário ao chamado para viver a fé na condição cristã geral, que é o chamado para a maioria dos fiéis seguidores de Cristo. A realidade a ser entendida é a relação fundamental da visão dos modos de vida, que nós interpretamos como fundamentos na história da Igreja, de modos diferentes, e com uma qualificação da vida segundo os conselhos evangélicos. Aquilo que queremos expressar neste subcapítulo pode ser introduzido da seguinte forma: é evidente que uma vida em obediência e pobreza, como aquela expressada por quem vive no celibato, se antepõe por si ao modo de viver de todos os batizados e de todos os homens e mulheres que se sentem livres. Assim, o celibato, a vida religiosa e a vida presbiterial parecem uma antítese à vida matrimonial. Na realidade, o contraste é somente aparente, já que o celibato e o matrimônio, entendidos no núcleo teológico e bíblico, são duas formas do único amor esponsal, aquele expresso pela reciprocidade indissolúvel entre Cristo Esposo e a Igreja Esposa, Virgem e Mãe. A virgindade cristã, de fato, aparece originariamente conexa na diferença entre “homem e mulher”, e se constroem assim as “núpcias do Cordeiro” (cf. Ap 19,6-9). Deste modo, podemos afirmar que o celibato pelo Reino, a virgindade cristã, nos mostra o significado profundo e último da vida esponsal. Aqui se coloca a base da reciprocidade entre a virgindade pelo Reino e o matrimônio. De fato, podemos compreender como certamente o celibato e o matrimônio se fundem diretamente na cruz, no mistério eucarístico e Pascal que toca o coração e o íntimo de cada homem e cada mulher; e da fecundidade que, somente a partir de Cristo, do Seu amor, é realmente possível e nos faz compreender e viver a doação e a reciprocidade. No mistério da “fecundidade corporal”, Cristo infunde novamente do Alto o mistério da fecundidade espiritual da fé, do amor e da esperança e, como consequência, o espírito de pobreza, castidade e obediência; por isso o matrimônio se torna o sublime sacramento dentro da Igreja cristã. Tudo isso se concretiza somente com a participação no sacrifício de Cristo. Deste modo, se a relação entre o homem e a mulher, nas diferenças que os caracterizam, na dedicação e fecundidade, vincula o seu significado ao sacrifício de Cristo, então o matrimônio cristão pode ser compreendido se nós não o consideramos somente como um instinto natural, como uma determinada forma de amor natural, mas sim como instituto elevado ao sublime nível da graça. 87

Esta é a reflexão que queremos propor-lhe, caro irmão e cara irmã: a realidade do matrimônio cristão é a relação entre Cristo e Sua Igreja, que se coloca definitivamente no mistério Pascal. Mas é justo explicar que a impostação que mantemos até agora não pretende em algum modo descrever uma teologia do matrimônio ou uma reflexão do aspecto esponsal da vida de celibato e virgindade pelo Reino. O que queremos aprender, essencialmente, é como o matrimônio e o celibato pelo Reino estão relacionados entre si e como são, de um certo modo, interdependentes a partir da vida de Cristo, que na casa de Nazaré viveu a experiência humana do amor, e na Sagrada Família, o exemplo do amor esponsal e virginal. Partindo destas afirmações, podemos recuperar definitivamente a essencial e mútua relação entre as formas vocacionais na Igreja; a complementaridade entre virgindade e matrimônio, tornando a modalidade histórica em que afirmamos o nosso tornarmos “filhos da ressureição”, conforme afirmava o grande teólogo Von Balthasar. Somente a complementaridade destas formas de vida afirmam na história a verdade cristã do amor. As duas formas, portanto, se entrelaçam e, juntas, manifestam o significado pleno do amor humano transfigurado por Cristo crucificado e ressuscitado. Depois de tantas importantes afirmações, é imprescindível deixar claro, mesmo que rapidamente, a uma dimensão decisiva, tudo o que meditamos até agora: “o mistério da paternidade e da maternidade”, a que tanto os esposos quanto os consagrados pelo celibato, virgindade e presbitérios são chamados, mesmo que em modalidades diferentes. Todas essas vocações são expressões concretas e têm o propósito último de gerar no corpo e no espírito. A escolha do celibato e da virgindade, incluindo a do presbítero, nos diz o significado da verdadeira paternidade e maternidade. É a expressão da gratuidade e da comunicação do significado da existência ao filho ou à filha espiritual. A paternidade e a maternidade se tornam essencialmente formas de expressão da paternidade e maternidade de Deus. Na procriação, de fato, elas não encontram o seu centro, na comunicação biológica da existência, mas no testemunho de Cristo, no qual toda paternidade recebe o nome (cf. Ef 3,15). E, assim, na afirmação gratuita do outro, na mais sublime acolhida um do outro, se torna o vibrante significado do amor trinitário. Chegando ao momento de concluir este pensamento que com alegria compartilhei com você, consideramos o quanto é necessário, nos tempos de hoje, formar os jovens a fazerem escolhas definitivas. Normalmente tal decisão é a escolha do matrimônio, na luz do mistério Pascal de Cristo, ao qual a maioria dos batizados é chamada; ou a decisão ao celibato, à virgindade, na qual não menos implica a vida esponsal. O sim da promessa matrimonial e o sim do voto religioso, do celibato, correspondem àquele que Deus espera de cada homem e de cada mulher. 88

No estado de celibato pelo Reino, o cristão dá a Deus a sua alma e o seu corpo, e Deus distribui o fruto do sacrifício aos seus irmãos e irmãs por meio daqueles que se ofereceram a uma missão no interno da Igreja. No estado matrimonial, o cristão doa, com o seu “sim” sacramental, o seu corpo e a sua alma ao cônjuge, mas em Deus, pela fé, na esperança e na fidelidade Dele, tanto o matrimônio quanto o celibato pelo Reino dos Céus exprimem o dom da graça e a presença operante do Espírito Santo. Mas surge liberalmente uma pergunta: como entender, como saber para qual vocação sou chamado(a)? Para respondê-la necessito lembrar que se trata de tipos de coração; peço permissão para usar uma analogia um tanto simples. Um carro, que tem espaço para quatro ou cinco pessoas, seguindo viagem em uma autoestrada. Assim é o amor de uma pessoa vocacionada ao casamento, um sentimento exclusivo, que se sente completa com quantos estão ali, viajando na intimidade daquele carro. Já o sentimento de um celibatário pelo Reino dos Céus, de um presbítero católico romano, é como um ônibus, tem sempre lugar para mais uma pessoa subir e, durante a viajem, uns descem, outros sobem, mas está sempre cheio. E é feliz de ser Ônibus, não se sente usado, mas se realiza no servir. E o mais importante é que no final dessa autoestrada nós encontraremos a Cristo. Todos os carros e todos os ônibus chegam à meta. Uma pessoa que tem coração de carro nunca vai conseguir ter um coração de ônibus, pois vai querer sempre ser exclusivo, e quem tem coração de ônibus nunca vai conseguir se prender e ser exclusivo, vai querer ter sempre um lugar para um outro, mesmo se em pé, para quem necessita do seu amor, da sua paternidade e maternidade. Nas páginas que se seguem, vamos ter testemunhos vivos desse amor esponsal ao qual todos somos chamados e o qual podemos viver seguindo o exemplo sublime da Família de Nazaré.

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O amor esponsal na vida celibatária pelo Reino dos Céus e na virgindade Certamente, a estas alturas da nossa reflexão, é necessário aprofundar, mesmo que brevemente, a forma virginal da vida esponsal e da fecundidade, não entendida como uma alternativa ao matrimônio, mas com significado próprio e autêntico. A vida cristã não consiste em duas estradas separadas. A virgindade celibatária exprime radicalmente o modo em que se realiza o mistério da redenção e representa a vida esponsal na cruz, indicando o significado da relação entre o homem e a mulher. A este propósito é justo acenar o quanto São João Paulo II nos enriqueceu com a sublime catequese sobre o corpo e o amor humano, falando de virgindade e celibato pelo Reino e reconhecendo neles a plena realização esponsal. Com muita audácia, ele afirmou que a pessoa que se consagra inteiramente a Deus o faz com a sua própria masculinidade e feminilidade, na própria condição de homem e mulher. O celibato e a virgindade, então, em tal prospectiva, são cheios de alteridade, indicam e exprimem a gratuidade apaixonada do amor pelos outros, longe de qualquer retribuição, de uma concepção de amor como fusão ou de uma procura e experiência de fantasmas, que alguns chamam de espiritual, banalizando a profundidade da palavra espiritual. Tivemos a graça, durante o programa “Em casa com a Sagrada Família”, transmitido todas as semanas diretamente aqui da casa de Nazaré, de receber a visita de uma convidada muito especial: irmã Margherita De Cesare. Uma religiosa italiana que vive aqui na Basílica da Anunciação há quarenta anos. Vive aqui na casa da Santa Família... Nestes quarenta anos, ela trabalhou com as crianças e depois tomou conta, de forma muito materna, dos religiosos, dos sacerdotes, dos freis que vivem aqui, fazendo aqueles serviços mais simples, mesmo sendo uma irmã com formação acadêmica. Ela vive isso com uma maternidade única, que tem no seu coração, no seu ser. Irmã Margherita nos relatou esta sua experiência também com os peregrinos. Perguntamos à irmã Margherita se a maternidade é uma vocação, e ela respondeu: Certamente! É um chamado particular que não é devido aos nossos méritos, mas ao Amor de Deus. Me sinto... Aqui nesta casa de Nazaré... Me sinto, verdadeiramente, envolvida neste Amor de Deus e neste mistério da Encarnação. De modo particular, porque como irmã da Caridade da Imaculada Conceição, entro no mistério, e assim vivo esta minha esponsalidade em relação contínua, no cotidiano com o Senhor. Sou agradecida ao Senhor pela minha vocação, e, neste relacionamento de esponsalidade, me sinto realizada na minha feminilidade... E como virgem, na fecundidade... E, portanto, eis a maternidade. Nestes anos, nestes longos anos também de serviço aqui nesta casa, me sinto, realmente, afetuosamente, uma mãe.

De fato, a maternidade espiritual tem um valor irrenunciável para as religiosas. Por 90

isso, perguntamos à irmã Margherita sobre a sua dedicação aos jovens, porque ela trabalhou com as crianças quando chegou aqui em Nazaré, na escola materna. Depois cuidou dos freis, dos sacerdotes, e agora está também a serviço dos peregrinos. Outra pergunta feita à irmã foi sobre a maneira como ela vive esta realidade na sua consagração. Eu a vivo mesmo. Até hoje, pelo menos, procurei vivê-la com o próprio espírito de Nazaré, próprio da família de Nazaré... Ou seja, cotidianamente e com simplicidade... Me aproximei primeiro das crianças e ali aprendi com elas tantas coisas, de modo particular a simplicidade, a espontaneidade, e aproveitei, verdadeiramente, com afeto, com elas e no relacionamento com os pais. Depois passei para o serviço do convento, portanto, ao serviço dos padres, e aqui me senti ainda mais mãe no sentido de como Maria vivia! Viveu, na casa de Nazaré, esta vida doméstica e pensava sempre que... Os discípulos sempre saíam... Os apóstolos saíam juntamente com Jesus, em Cafarnaum, ou aqui, ou ali... E Maria ficava em casa... O seu Evangelho era fixo, fazendo o seu trabalho doméstico... Não sei, com alguma panela, com a agulha... Ela fazia estes serviços assim como eu faço. E assim me encontrei... Realmente, neste sentido, na maternidade... Eu me sinto mãe também neste sentido: quando os padres, como os apóstolos, saíam e, portanto, estavam em contato direto com o povo, fazendo o apostolado... Maria ficava em casa, portanto, com as preocupações: quem sabe o que estão fazendo? O que está acontecendo? Quem sabe? Nisso também me encontrei, isto é, me preocupo com os problemas. Encontramos diversos problemas ao longo da história, em todas as épocas. Hoje, por exemplo, me preocupo com os jovens, com seus problemas, com as famílias e todos os seus problemas... Estamos no tempo do Sínodo... Todas estas coisas me absorvem, não é somente o trabalho, digamos, material... Mas também me preocupo com o lado espiritual... E assim, com esta dedicação, me sinto realizada.

Irmã Margherita cresceu sem a figura materna, pois ficou órfã quando tinha oito anos. Pedimos a ela para nos contar como esta falta se tornou um dom para a Igreja, para a congregação, para o mundo, para nós que estamos aqui. Sim, sentia este vazio, então pensei que... Gradativamente, quando fosse crescendo, pensava em preenchê-lo me doando para os outros. Assim, me dizia: aquilo que faltou para mim, quero doá-lo. Procurei me aproximar sempre das menininhas e das crianças, sempre com este espírito. Por quê? Porque ver as crianças sofrerem, para mim, é algo que, de fato, é um sofrimento... Sofro junto... Quando vejo que as crianças são como... objetos de alguém… Se tornam objetos materiais... Para mim, isto é um sofrimento. No tempo que vivi, era diferente... Mas já sentia este sofrimento, pela falta, pelo vazio que sentia, e assim comecei a pensar: O que fazer? Como preencher isso? E depois, pouco a pouco, veio a vocação.

No final de nossa entrevisa, irmã Margherita De Cesare deixou uma mensagem para todas as mães e para todas as religiosas. A todas as mães, àquelas que estão no sofrimento pelos seus filhos, eu digo: você precisa ter esperança, e esta nasce da nossa oração. Esta consolação virá da nossa oração. A todas as religiosas, quero dizer,

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como disse Papa Francisco: não deixe que nada roube a alegria. O encontro de Maria com Isabel é um canto de alegria. A alegria não é um barulho, uma euforia. A alegria é algo que vem do interior, que está dentro e que se exprime na paz, na serenidade. É isso! É isso que desejo a todas as religiosas: procuremos ser sempre na alegria, porque é o único testemunho que podemos dar.

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Vocação ao matrimônio É a vocação comum entre os cristãos, convocados pelo batismo a viver a própria vida, fundamentalmente imergidos na condição da maioria do povo de Deus, que são chamados ao sacramento do matrimônio; sendo tal sacramento que une o homem e a mulher em Cristo. E somos convidados a uma nova inteligência na relação homemmulher. De fato, tal relação foi vista na história como antropologia dramática, mas aqui queremos meditá-la no mistério de Cristo e da Sua Igreja. Deus criou o homem por amor, o criou à Sua imagem; quer rever no homem a dinâmica do dom e o Seu amor recíproco à semelhança da Trindade. Nesta ótica, o homem se realiza somente quando ama. A vocação, então, de todos os homens, de todos os batizados, é amar: amados por Deus, somos todos chamados a corresponder ao Seu amor, de ser como Ele, na realização do amor ao próximo. O amor é a característica do cristão, é aquilo que o distingue; assim como Jesus disse: “Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Aqui gostaria de acentuar que o Amor de Deus pela humanidade tem a característica nupcial, Deus não ama abstratamente, não se limita somente à criação ou a uma paterna assistência, mas se doa ao homem e para o homem, e morre na cruz por ele, como um esposo que se dá totalmente à sua esposa. Este amor nupcial de Deus pela humanidade é o amor que Deus deseja que exista entre os homens como resposta ao Seu amor. Por este motivo, Ele pensou para cada um de nós um modo concreto de viver esta resposta de amor, por uma estrada pessoal, única e não repetível. São Paulo de fato diz: “Aliás, gostaria que todos fossem como eu. Mas cada um recebe de Deus um dom particular, um este, outro aquele” (1Cor 7,7). É claro que o contexto que ele fala se refere ao matrimônio e ao celibato. Para Deus, o matrimônio e o celibato são dons, específicos chamados e meios para chegarem a Ele; e assim todos chamados à santidade. E podemos afirmar que a vida matrimonial é uma vida ordinária e privilegiada da santidade. Quando Deus criou a relação entre o homem e a mulher, pensou como realidade positiva e em origem não ferida. No casal, um é parte do outro, e juntos se unem com Deus; os cônjuges então são “sacramento”, manifestação visível do amor divino e humano de Deus pela humanidade, e isto se realiza no dom recíproco dos esposos. Se vocês me permitem uma analogia um pouco rústica, eu direi que a família é o mapa, mas somente “Deus” é o tesouro. Enquanto dom e sacramento, sabemos que é a manifestação do Amor de Deus e não se pode ser realizado sem Ele. Que lindo, eu me emociono, como consagrado religioso e presbítero, ao refletir que mediante o sacramento do matrimônio, que se torna o instrumento de santificação, os esposos se tornam “uma só carne” e recebem as graças necessárias. Assim, os casados 93

são chamados a testemunhar, na vida conjugal de todos os dias, a fé no Deus amor, com a reciprocidade, a partilha, a alegria, o sacrifício e a relação profunda com Deus e com a Sua Igreja. O matrimônio tem assim uma dignidade vocacional própria, um carisma próprio. Os esposos na Igreja exercem um carisma específico, que nasce do sacramento, se nutre e se manifesta na própria relação de amor. Neles o sacramento leva à realização da graça do batismo, dando-lhes a plenitude de ser homem e mulher, de modo que realizem no mais profundo de si o serem homens e mulheres casais para a missão da Igreja. Lembro-me de que escutava a palavra “carisma” somente para os religiosos e, assim, ao dom dado aos fundadores. Mas aqui entendemos que a vocação ao matrimônio é o carisma que consiste na comunhão matrimonial, em uma vida comunitária intensa, como é a vida de uma família. Os casais, amando-se em Cristo, recebem uma unidade natural, e é esta a originalidade do carisma, que por obra do Espírito Santo detém a missão de custodiar, revelar e comunicar o Amor de Deus. Assim, a família como matriz do Amor de Deus exercita o carisma de ser imagem de Deus e prepara-se para o Paraíso, para o encontro nupcial eterno com Deus. A dignidade do sacramento do matrimônio nos leva à união com Deus, porque quando homem e mulher se amam, amam no mais profundo do coração do outro, onde Deus vive. Quando você ama seu namorado, sua namorada, seu esposo, sua esposa, você está amando a Deus no mais profundo do ser daquela outra pessoa, por isso a dignidade desta vocação, na qual amando, saindo do egoísmo, saindo de si mesmo, você começa a se abrir ao amor profundo da outra pessoa, reconhecendo os seus defeitos, aceitando e vivendo a realidade. Gostaria de partilhar com você, caro(a) irmão(ã), um testemunho de dois jovens, André Luiz da Rosa e Eliziane Alves, que participaram do nosso programa “Em casa com a Sagrada Família” e nos ajudaram a entender como é necessário um caminho de discernimento para abraçar a vocação matrimonial como vocação e carisma. Sobre a questão do caminho percorrido no namoro na comunidade Canção Nova, Eliziane nos relatou: No início, quando eu e o André começamos a conversar, nós primeiro trilhamos um caminho de amizade entre nós. Ele morava na Itália, e eu morava no Brasil, na missão de São Paulo. E iniciamos esta amizade, porque acredito que o namoro começa sempre na amizade, no conhecimento profundo um do outro, e em janeiro vamos completar dois anos de namoro. Mas, a princípio, os gostos, as conversas e as brincadeiras eram normais de um relacionamento de afetividade. Com o tempo, a amizade foi crescendo e o sentimento foi brotando, até se tornar um namoro.

Ao falar do dom do discernimento no matrimônio, André disse: Eu acho que é importantíssimo começar ressaltando que relacionamento dentro de uma comunidade,

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dentro da Igreja, é algo importante e sério. Hoje, nós temos um casal que nos acompanha, eles são casados há mais de dez anos, e conversamos com eles sobre vários assuntos. As brigas, dificuldades, são coisas normais, e eles nos ajudam a resolver estas questões. Voltando ao tema do discernimento, em 2005, quando entrei na Canção Nova, eu queria ser padre, até que tive uma conversa com padre Jonas, e nesta conversa eu descobri que minha vocação não era o sacerdócio, mas ainda fiquei com a dúvida: seria o celibato? A vida na comunidade me ajudou muito. Como nós temos a vida comunitária, então vejo como um padre, como um celibatário e como uma família vivem sua vocação, então isso me ajudou a chegar a esta conclusão. Mas para mim o ponto central foi que Deus me chamava a ter uma vida comunitária mais profunda; não é que os religiosos e os padre não tenham vida comunitária, mas eles têm uma vida comunitária dentro de um certo horário, e cada um entra no seu quarto e, assim, ficam sozinhos com Deus. No casamento é diferente, o casal trabalha, tem vida durante o dia, quando chega em casa eles têm a vida comunitária, e quando vão dormir se deitam na mesma cama, não tem como fugir, vai ser um constante confronto um com o outro, uma constante doação de si para outro. Eu me sinto muito chamado a isso, e acho que é a pedagogia de Deus para me levar para o Céu. Deus precisa que me santifique, saindo de mim para ir ao encontro do outro.

Quando perguntei ao jovem André Luiz quando ele achava que um jovem estaria pronto para abraçar o sacramento do matrimônio, ele me respondeu: Eu acho que o casal está pronto para casar quando um ama o outro com os seus defeitos; eu acho que este é o ponto. Quando eu, olhando para ela, a amo com os seus defeitos e limitações. Então, quando um olha para o outro e consegue amá-lo, apesar dos defeitos, esta é a hora de casar.

E fazendo a mesma pergunta para Eliziane, ela disse: Eu acredito que o primeiro passo é não ter medo, muitas vezes você está com alguém e não está preparado, você sabe no fundo que não é aquela pessoa. Mas não tenha medo, entregue tudo para Deus na oração. Eu acho que a oração é necessária e também é um discernimento neste grande passo da nossa vida, passo para o resto da vida, para a eternidade. Então é muito importante você se olhar, ser verdadeiro consigo mesmo e com a pessoa que está com você.

Agradecendo o testemunho dos nossos amigos André Luiz e Eliziane Alves, é inevitável colocar-nos de frente à concreta realidade de uma escolha definitiva. É ainda possível, mesmo na cultura relativista em que vivemos, falar de escolha “para sempre” no sacramento do matrimônio. Acredito que a preparação dos jovens para este passo não seja baseada simplesmente em um cálculo ao redor das próprias capacidades, mas implica em algo que vai além das forças pessoais dos cônjuges, implica na própria Graça, uma presença operante do Espírito Santo, própria do sacramento e do carisma que os possibilitam ao seguimento de Cristo, no qual os cônjuges cristãos se prometem reciprocamente na fidelidade, porque Deus é fiel e doa aos esposos a força da Sua fidelidade. Esta dedicação para a vida até a morte é algo indissolúvel, eterno voto que é 95

amenamente do amor. E esta indissolubilidade é a expressão da nova aliança na relação esponsal entre Cristo e a Sua Igreja. Na fé é possível assumir os bens do matrimônio como compromissos que melhor se cumprem mediante a ajuda da graça do sacramento. Deus consagra o amor dos esposos e confirma a sua indissolubilidade, oferecendo-lhes a ajuda para viver a fidelidade, a integração recíproca e a abertura à vida. Por conseguinte, o olhar da Igreja dirige-se aos esposos como ao coração da família inteira, que também fixa o próprio olhar em Jesus. Salve, ó Senhora Santa, Rainha Santíssima, Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita Igreja, eleita pelo Santíssimo Pai Celestial, que vos consagrou por Seu Santíssimo e dileto Filho e o Espírito Santo Paráclito. Em vós residiu e reside toda plenitude da graça e todo o bem. Salve, ó palácio do Senhor! Salve, ó tabernáculo do Senhor! Salve, ó morada do Senhor! Salve, ó manto do Senhor! Salve, ó serva do Senhor! Salve, ó mãe do Senhor! E salve vós todas, ó santas virtudes derramadas, pela graça e iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, transformando-os de infiéis em fiéis servos de Deus! Amém! (São Francisco de Assis)

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Verdade e beleza da família

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este capítulo, quero compartilhar com você, amigo(a) companheiro(a) de peregrinação – permito-me chamá-lo(a) assim porque o que estamos fazendo juntos é realmente uma peregrinação espiritual com a Sagrada Família de Nazaré –, a íntima alegria e profunda consolação de contemplar a Igreja de Cristo que engrandece e encoraja as famílias pelo testemunho que oferecem. Com efeito, graças a elas, torna-se credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre. A Sagrada Família de Nazaré é o seu modelo admirável, em cuja escola nós compreendemos o motivo pelo qual devemos ter uma disciplina espiritual, se quisermos seguir a doutrina do Evangelho e tornar-nos discípulos de Cristo (Paulo VI, Discurso em Nazaré, 5 de janeiro de 1964). O Evangelho da família nutre também as sementes que ainda estão amadurecendo e cuida das árvores que secaram, mas que não podem ser descuidadas. A Igreja, enquanto mestra segura e mãe amorosa, apesar de reconhecer que para os batizados não há outro vínculo nupcial a não ser o sacramental, e que cada ruptura do mesmo é contrária à vontade de Deus, está consciente da fragilidade de muitos dos seus filhos, que encontram dificuldades no caminho da fé. Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvador de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas (Evangelii Gaudium, 44).

As famílias ancoradas na Sagrada Família de Nazaré nos rememoram que, mesmo com os desafios e feridas, o chamado divino ao matrimônio não está em contradição com o humano. Um franciscano, comentando a vida de Jesus, afirmou: “Humano assim, não tenho nenhuma dúvida, é Deus”. Realmente estamos assistindo a uma cena dos tempos de hoje em que o descartável e as escolhas feitas somente por um período breve influenciam na constituição familiar. Mas não nos deixemos cair no pessimismo. Quando encontro jovens que me dizem: “‘Os homens de uma vez’, as ‘mulheres de um tempo’ eram diferentes”, eu respondo-lhes: “Se queres casar com os ‘homens de uma vez’ ou ‘as mulheres de um tempo’, terás que buscá-los no cemitério, porque os homens e as mulheres de hoje é que estão disponíveis”. Mas, ao mesmo tempo, é importante lutar pelo bem da família, pelos valores, e para que a pureza do amor não 98

seja somente de sentimentos e de escolhas passageiras ou sem responsabilidade, mas que tenha a coragem do “para sempre”. Digo isto porque o amor é uma globalidade e não pode ser resumido a uma só dimensão, aquela dos sentimentos passageiros e instáveis. O mesmo apóstolo São Paulo, quando escreve o famoso hino ao amor (cf. 1Cor 13), encontra dificuldade em defini-lo, mas oferece uma pluralidade de termos, positivos ou negativos, para descrever as suas características. Os sentimentos, então, são extremamente importantes, porém não são “o tudo” do amor. Eles são um start e uma dimensão transversal e permanente na relação conjugal, mas não são o fundamento. Os sentimentos servem, juntamente com a atração sexual, para incitar o homem e a mulher a saírem de si mesmos e irem ao encontro do outro em uma dinâmica na qual não se reconhecem apenas como doadores, mas necessitados uns dos outros. Este encontro com o outro é absolutamente decisivo para todas as pessoas, que passam para um horizonte mais amplo, ao bem na relação de casal. Este bem que tende a perpetuar na sua natureza íntima, a restar para sempre. Quem vive a experiência da celebração do matrimônio como esposo-esposa sabe perfeitamente que aquele “sim” pronunciado não é ad tempus (de modo temporário), mas exprime o risco-certeza de uma liberdade que toca o abismo da profundidade da pessoa humana e permite antecipar ou desafiar o próprio futuro. Que no decorrer da própria história conjugal isso não venha a ser desrespeitado e não se chegue à dissolução da união conjugal. Temos que ter a coragem de dizer que nós, como pastores e como Igreja, somos responsáveis por muitas destas dificuldades. Devemos acompanhar os jovens casais nas diferentes etapas do crescimento da vida conjugal. Por isso a convocação do Sínodo, a reflexão profunda de todos os aspectos de uma tão complexa realidade é realmente de grande importância e urgência. É claro que estamos vivendo tempos difíceis e de constantes mutações no modo de viver a relação conjugal e de família, e tudo nos leva a um esforço de compreensão cultural. O aumento das convivências, o aumento de matrimônios civis e de segundo matrimônio, antes mesmo de serem interpretados como sinal de mal-estar, podem ser interpretados como um desejo de estabilidade. Ou seja: dentro de cada homem e de cada mulher, a nível humano e psicológico, existe uma tensão intrínseca em relação à decisão do “para sempre”. Ninguém psicologicamente sadio se casaria civilmente ou ainda por uma segunda vez se não fosse convicto da bondade do “para sempre”. Assim, podemos acreditar no homem e na mulher de hoje e continuar acreditando também na educação e na formação dos casais; na preparação ao sacramento do matrimônio e no acompanhamento dos jovens casais, bem como ainda na assistência aos casais frágeis e em crise com instrumentos pastorais e de prevenção. Queremos afirmar que Jesus é a nossa “lente” para ver a verdadeira realidade, e 99

assim a família não se destrua pelas pesadas maneiras de relativismos. Para a família de hoje, o exemplo ainda é a Família de Nazaré, na qual a autoridade vem de Deus, e por isso é acolhida e respeitada. Segundo os Atos dos Apóstolos, necessitamos de obedecer a Deus mais que aos homens. A família, em “primis” (primeiro lugar), e a relação conjugal homem e mulher são realidades queridas por Deus. O matrimônio é o mais profundo senso da intimidade do homem com Deus, na vocação e capacidade de aliança, de acolher a revelação. Assim, mais que indissolúvel em termos jurídicos, temos que afirmar que a união conjugal é um “dom indispensável”, que é a razão da indissolubilidade. Assim, acolhamos quanto nos foi ofertado no Concílio Vaticano II, em que, falando da família, foi citada a frase de São João Crisóstomo: “Família, ‘Igreja doméstica’”, e também a de São João Paulo II: “Família, ‘Santuário da Vida’”.

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O anúncio do Evangelho da família O diálogo sinodal abordou algumas instâncias pastorais mais urgentes, que devem ser concretizadas em cada uma das Igrejas locais, que simbolizam todas as dioceses, prelazias, todas as porções de Igreja na comunhão cum Petro et sub Petro (com Pedro e subordinado a Pedro). O anúncio do Evangelho da família constitui uma urgência para a nova evangelização. A Igreja é chamada a colocá-lo em prática com ternura de mãe e clareza de mestra em fidelidade à kenosi (aproximação) misericordiosa de Cristo. A verdade encarna-se na fragilidade humana, não para condená-la, mas para salvá-la (cf. Jo 3,16-17). Partindo desta perspectiva da eclesiologia de comunhão, terminologia tão amada do Concílio Vaticano II, nos colocamos em uma prospectiva de que evangelizar é responsabilidade de todo o povo de Deus, cada qual segundo o ministério e o carisma que lhe são próprios. E tudo isso nos leva ao centro do tema da nossa reflexão: sem o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, Igrejas domésticas, o anúncio, embora seja correto, corre o risco de ser incompreendido ou de se afogar no mar de palavras que caracteriza a nossa sociedade (cf. Novo Millennio Ineunte, 50). Penso que já estão claras para todos a complexidade e a necessidade desta reflexão, mas para fazê-la será decisivo pôr em evidência o primado da graça e, por conseguinte, as possibilidades que o Espírito oferece no sacramento. Trata-se de levar a experimentar que o Evangelho da família é alegria que “torna repletos o coração e a vida inteira”, porque em Cristo somos “libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii Gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13,3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na sementeira, o resto é obra de Deus. Tudo quanto já falamos até agora deve ser compreendido e preparado para que não esqueçamos que a Igreja que prega sobre a família, os seus valores, a sua beleza, nos tempos de hoje, será sempre sinal de contradição na atual sociedade na qual reina o relativismo. É por isso que se pede à Igreja inteira uma conversão missionária: é necessário que ela não se limite a um anúncio meramente teórico, desvinculado dos problemas reais das pessoas. Nunca podemos esquecer que a crise da fé comportou uma crise do matrimônio e da família; como consequência, a transmissão da própria fé dos pais aos filhos foi muitas vezes interrompida. Diante de uma fé forte, não há incidência de uma imposição de determinadas perspectivas culturais que debilitam a família e o matrimônio. A conversão refere-se também à linguagem, para que ela seja efetivamente significativa. O anúncio deve levar a experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: à sua dignidade e à sua plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata unicamente de 101

apresentar uma normativa, mas de propor valores, respondendo à necessidade dos mesmos, que hoje se constata inclusive nos países mais secularizados. A Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda Pastoral Familiar deverá se deixar modelar interiormente e formar os membros da Igreja doméstica mediante a leitura com espírito de oração e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus não é apenas uma Boa Nova para a vida particular das pessoas, mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos vários desafios que os cônjuges e as famílias devem enfrentar. Meditaremos sobre este tema nas próximas páginas, mas já faço uma oração pessoal por você, para que esta Palavra Salvadora encontre espaço e terreno fecundo no seu coração.

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Matrimônio e família na Bíblia Certamente poderíamos dedicar todo um livro ao tema da família na Sagrada Escritura, mas podemos evocar tudo em poucas palavras: “Projeto de Deus”. É nesse contexto que convido você a reler comigo os textos da Escritura para entrever o projeto de Deus, mesmo que esses, tantas vezes, se exprimam na fragilidade e nas fraquezas registradas no percurso histórico. A Bíblia nos ensina que o ideal da família deve ser sempre uma meta a ser alcançada, ou seja, a fecundidade, a fidelidade do matrimônio, porém, a Igreja deve se inclinar em frente das feridas da família humana dos nossos dias e encontrar meios para conjugar a fidelidade aos ensinamentos dos ideais e, ao mesmo tempo, a fidelidade à misericórdia, porque não eram somente famílias ideais aquelas com quem Deus escreveu a história da Salvação, como assim chamamos hoje, e não eram sempre ideais aquelas famílias recordadas no Novo Testamento; encontramos “luz e obscuridade” e, ao interno deste caminho assim humano, a Igreja é chamada a derramar a “luz da sua doutrina e o óleo da misericórdia”. Iniciamos então este caminho, com um percurso que os Padres da Igreja chamavam de “passeio na Escritura”, para crescermos aqui na Escola do Evangelho de Nazaré, tendo como luz e guia a Palavra da Salvação, que se fez Carne aqui neste lugar Santo. A criação do ser humano é narrada no primeiro livro da Bíblia, o livro de Gênesis: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos’” (Gn 1,2728a). Daqui decorre certamente uma antropologia profunda e elevada, que poderíamos explicar deste modo, sem pretensão de simplificar: o ser humano foi criado à imagem de Deus, e esta imagem é constituída do casal homem e mulher como unidade, apesar das diferentes identidades. O comando de gerar indica que o fim primário da união entre o homem e a mulher é a transmissão da vida, uma finalidade sublime que é objeto de bênção. O livro de Gênesis tem uma outra narração da criação do casal homem e mulher que apresenta a mesma realidade: E o Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda”. Depois, da costela tirada do homem, o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. E o homem exclamou: “Desta vez sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘humana’ porque do homem foi tirada”. Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne (Gn 2,18.22-24).

O autor sacro usa imagens que não indicam uma realidade de natureza histórica, dizem os especialistas dos estudos bíblicos, mas indicam a criação dos dois sexos como 103

um remédio contra a solidão do homem, e que a mulher que dele vem tem a sua mesma dignidade. Se na primeira narração colocava em relevo o fator de procriação, aqui se evidencia aquele de unidade. Nota-se, por fim, que em nenhuma das duas narrações encontramos ataduras de subordinação: Adão e Eva aparecem em um plano de paridade. O jogo de palavras em hebraico, ‘ish = homem e ‘ishah = mulher, enfatizam a unidade do ser humano na distinção dos sexos. Tal distinção corresponde à vontade de Deus e é ordenada para a procriação do gênero humano. O sexo não é uma realidade absoluta, mas integrada. O fato de Deus ter criado o homem à Sua própria imagem, enquanto homem e mulher, inclui em si a força atrativa do amor. É o equilíbrio destes dois elementos – unidade e procriação – que devem marcar para sempre o matrimônio como Deus o concebeu no Seu desígnio originário. É maravilhoso que este projeto nunca tenha se perdido no horizonte do povo da antiga aliança e pode-se alcançar pelo menos uma parte da humanidade. Porém, o pecado original quebrou a genuinidade do primeiro casal. Depois do pecado, a mesma sexualidade sofreu uma distorção com a qual a narração bíblica assim se exprime: “Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos. Teus desejos te arrastarão para teu marido, e ele te dominará” (Gn 3,16). Ousarei dizer que a causa desta desordem comprometeu todas as relações que abrangem todos os desvios que interessam ao matrimônio e à família. Certamente não podemos ignorar a realidade pluralista do judaísmo, realidade concreta do mundo bíblico. As opiniões são diferentes, e na literatura rabínica encontramos uma forte dependência da Sagrada Escritura, na qual o matrimônio é um ato jurídico constituído por uma lista de deveres e pouco espaço para os sentimentos. O divórcio é condenado por Malaquias, mas será aceito nos ambientes farisaicos. Finalmente, o matrimônio se tornará um símbolo do pacto do Sinai e a união conjugal de Deus com Israel, na qual a Tohah é o símbolo deste pacto matrimonial. Sinteticamente se poderia afirmar que a tradição judaica antiga continua a desenvolver os ensinamentos encontrados na vasta literatura do Antigo Testamento, e o problema do divórcio, da sua legitimidade, não era argumento de discussão até a tradição evangélica (cf. Mt 19,3-9; Mc 10,1-12). Passando ao Novo Testamento, podemos dizer que registramos também aqui uma certa continuidade nos valores fundamentais do matrimônio e da família, presentes no Antigo Testamento, E aqui voltamos sempre à Sagrada Família de Nazaré, na qual a vinda do Filho de Deus ao mundo tem como contexto uma família concreta, José e Maria, dos quais Jesus era Filho. Encontramos neles o exemplo concreto dos valores do matrimônio e da família, no qual temos a graça de tocar o patrimônio da fé. O evento único da história, a Encarnação do Filho de Deus, acontece na simplicidade e cotidianidade da vida em 104

família que a história e a arqueologia, hoje, nos ajudam a conhecer melhor, como já meditamos nos primeiros capítulos deste livro. Conforme nos dizia o Beato Papa Paulo VI no ano de 1964: “Aqui em Nazaré descobrimos a necessidade de observar o ambiente da sua demora entre nós, os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, os usos religiosos, toda a humanidade de Jesus ao se revelar ao mundo.” E aproveitando esta reflexão bíblica e teológica da beleza da família, na qual o Filho de Deus quis ter uma família e, então, se submeteu à Família de Nazaré, gostaria de lembrar o que nos diz a psicologia moderna, que afirma a importância e a grande influência que a atmosfera familiar pode ter no desenvolvimento da vida de uma pessoa. A experiência familiar vivida por Jesus foi realmente positiva e é apresentada por dois testemunhos evangélicos. Mateus fala partindo do papel de São José, e Lucas narra partindo de Maria. Juntos delineiam, segundo o pensamento da Igreja, a família modelo. Mateus ressalta a figura de São José ao narrar a Anunciação do Anjo a ele e seu papel de chefe de família. José é definido como o esposo de Maria (Mt 1,19), e Maria como a sua esposa (Mt 1,24), e assim a Mãe de Jesus, o Emanuel, Deus conosco (Mt 1,18; 2,11). Mateus delineia a figura moral de José chamando-o “justo” (Mt 1,19), uma terminologia que reassume toda a espiritualidade bíblica (cf. Mt 5,20). Lucas, quanto à figura de São José, nos apresenta informações similares às de Mateus, mas dá relevância à figura e à missão de Maria nos quadros da vida familiar. Maria é descrita como “esposa e virgem” (Lc 1,27.34) de José, mulher cheia de graça, unida ao Senhor (Lc 1,28). Dócil à mensagem divina, concebe pelo Espírito Santo, potência de Deus (Lc 1,35), Jesus, o “Filho do Altíssimo” e herdeiro do trono de Davi (Lc 1,32). Ela e José são os pais de Jesus (Lc 2,27), e este filho constitui o significado de suas vidas (cf. Lc 2,44-45), o que os fez se preocuparem com a Sua autonomia. Neste ambiente familiar, o Filho de Deus transcorreu a maior parte da Sua vida terrena. A tradição evangélica nos atesta que a família de Jesus era uma família que se rendia à vontade de Deus (cf. Lc 2,21-22) e vivia relações sociais. No ministério público de Jesus, Ele sempre se mostrou muito interessado pela vida concreta das famílias, conforme podemos confirmar pelos Evangelhos da Bíblia: amigo de Lázaro e de suas irmãs, Marta e Maria (cf. Jo 11,5); a cura da sogra de Pedro (cf. Mc 1,19-31); o conhecimento da realidade de uma família, relatado na parábola do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32); o tratamento afetuoso com as crianças e o exemplo delas para quem quer entrar no Reino de Deus (cf. Mc 10,13-16). São muitos os episódios de curas e atenção de Jesus pelo ambiente familiar. Neste ponto gostaria de concluir este subcapítulo com uma pequena chamada do tema matrimônio e a família no pensamento de São Paulo e da tradição Paulina. Com relação à experiência de Paulo, pode-se notar a característica doméstica e familiar das 105

comunidades cristãs. Sabemos que o apóstolo Paulo teve que afrontar as práticas do matrimônio e da família. Os escritos da tradição paulina nos oferecem elementos para uma verdadeira e própria Pastoral Familiar. Paulo mostra a grande estima e exalta a virgindade escolhida como expressão da liberdade interior e maior disponibilidade pela obra missionária, mas ao mesmo tempo não diminui a importância e o valor da vida conjugal. É interessante o quanto Paulo passa pela tradição, que ele conhece muito bem como bom judeu de origem farisaica e também por aquela helenista grega, que era o contexto social do seu tempo, e, como consequência, emite a novidade cristã destinada a frutificar nas gerações futuras de todos os tempos. Como exemplo, podemos citar a carta aos Efésios, na qual narra os deveres da família cristã e, em particular, os dos cônjuges. Sede submissos uns aos outros, no temor de Cristo. As mulheres o sejam aos maridos, como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo também é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual ele é o Salvador. Por outro lado, como a Igreja se submete a Cristo, que as mulheres também se submetam, em tudo, a seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo também amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de santificar pela palavra aquela que ele purifica pelo banho da água. Pois ele quis apresentá-la a si mesmo toda bela, sem mancha nem ruga ou qualquer reparo, mas santa e sem defeito. É assim que os maridos devem amar suas esposas, como amam seu próprio corpo. Aquele que ama sua esposa está amando a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne. Pelo contrário, alimenta-a e a cerca de cuidado, como Cristo faz com a Igreja; e nós somos membros do seu corpo! “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne”. Este mistério é grande – eu digo isto com referência a Cristo e à Igreja. Em suma, cada um de vós também ame a sua esposa como a si mesmo; e que a esposa tenha respeito pelo marido (Ef 5,21-33).

Em específico à exortação sobre o matrimônio, é no horizonte do amor recíproco que também jorra a reciprocidade deste amor. Não se trata de uma dependência escravista, mas de um dinamismo do amor humano e da graça divina. Além disso, é a relação Cristo-Igreja, ou seja, a relação voluntária a modular a relação dos cônjuges. A realidade do matrimônio, enfim, não é somente de natureza humana, mas é uma realidade que toca o projeto de Deus e imerge no mistério, na experiência de Cristo e da Igreja. Assim, a grande e sublime vocação e o projeto de Deus não são somente um pacto entre os esposos, mas uma realidade eclesial. Gostaria de concluir com um rápido aceno sobre a realidade familiar presente no livro de Atos dos Apóstolos, o qual oferece elementos significativos da época apostólica. Necessitamos dizer que o livro dos Atos não é um conjunto de temas sobre as famílias, mas sim algumas informações claras que demonstram que elas tiveram papéis importantes na difusão do cristianismo. Neste livro, são explicitamente citadas a casa de Judas, onde São Paulo foi hospedado quando Ananias foi visitá-lo (cf. At 9,10-11.17); e 106

a casa de Simão, o curtidor de pele em Jaffa (Jope), onde Pedro foi hóspede (cf. At 9,43; 10,6.32). Fala-se, também, da família e da casa de Cornélio, centurião em Cesárea (cf. At 11,13). Trata-se, porém, de edifícios e casas, mas também de famílias, nas quais foram acolhidos para a predicação apostólica e contribuíram na difusão do cristianismo e na formação das comunidades cristãs. O livro de Atos dos Apóstolos ainda se refere a casas privadas, habituais lugares de reunião dos cristãos (cf. At 2,46; 8,3; 20,7-12). Depois desta reflexão bíblica, continuaremos meditando a beleza da família e do matrimônio no livro humano da existência, da vida dos irmãos e irmãs chamados a tão sublime vocação.

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Abertura ao dom da vida Meditando a beleza do dom da vida, gostaria ainda de continuar com uma imagem bíblica do livro do Gênesis: “O homem se uniu a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, dizendo: ‘Ganhei um homem com a ajuda do Senhor’. Tornou a dar à luz e teve Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim pôs-se a cultivar o solo” (Gn 4,1-2). Referir-se ao Senhor é uma garantia no desenvolver da história bíblica. É uma exclamação pelo novo homem, assim como no Novo Testamento o nascimento de um filho constitui um símbolo Pascal, conforme narra o evangelista São João: “A mulher, quando vai dar à luz, fica angustiada, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criança nasceu, já não se lembra mais das dores, na alegria de um ser humano ter vindo ao mundo” (Jo 16,21). A alegria da espera e do acolhimento de um(a) novo(a) filho(a) enche de alegria o ambiente familiar e transforma-se em um processo de crescimento também para o casal. Não podemos, porém, fechar os olhos à triste realidade das feridas ínferas da humanidade, como daqueles que querem um filho a todo o custo, interpretando que ter um filho é um direito a ser reivindicado, fazendo até o uso de recursos e meios moralmente ilícitos, ou ainda daqueles que interrompem a gravidez com o abominável ato do aborto. Por isso, com toda sinceridade, temos que afirmar que o filho concebido e o seu nascimento são um convite a fazer festa, apesar da responsabilidade e sacrifício. Isso na capacidade de responder em primeiro lugar a Deus e à coerência humana das escolhas. A este propósito trago a reflexão de nosso Papa Francisco durante a audiência geral do dia 11 de fevereiro de 2015. Depois de ter refletido sobre as figuras da mãe e do pai, o “Papa da ternura” refletiu sobre a família, falando do filho, ou melhor, dos filhos. Isaías tem uma bela imagem ao escrever: “Lança um olhar em volta e observa: todos estes foram reunidos para virem a ti, teus filhos vêm de longe, tuas filhas carregadas ao colo. Então verás, e teu rosto se iluminará, teu coração vai palpitar e dilatará” (Is 60,45a). É uma imagem esplêndida, uma imagem da felicidade que se realiza na reunificação entre pais e filhos, que caminham juntos rumo a um futuro de liberdade e de paz, depois de um longo tempo de privações e de separação, quando o povo hebreu se encontrava distante da pátria. De fato, há uma estreita ligação entre a esperança de um povo e a harmonia entre as gerações. Devemos pensar bem nisto. A alegria dos filhos faz palpitar o coração dos pais e reabre o futuro. Os filhos são a alegria da família e da sociedade. Não são um problema de biologia reprodutiva, nem um dos tantos modos de se realizar. Tampouco são uma posse dos pais… Não. Os filhos são um dom, são um presente, entende? Os filhos são 108

um dom. Cada um é único e não repetível, e ao mesmo tempo inconfundivelmente ligado às suas raízes. Ser filho e filha, segundo o desígnio de Deus, significa levar em si a memória e a esperança de um amor que se realizou justamente iluminando a vida de um outro ser humano, original e novo. E para os pais cada filho é si mesmo, é diferente, é diverso. Um filho é amado porque é filho: não porque é bonito, ou porque é assim ou assim; não, porque é filho! Não porque pensa como eu ou encarna os meus desejos. Um filho é um filho: uma vida gerada por nós, mas destinada a ele, ao seu bem, ao bem da família, da sociedade, de toda a humanidade. Daqui vem também a profundidade da experiência humana de ser filho e filha, que nos permite descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca para de nos surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados antes de chegarem. São amados antes de terem feito qualquer coisa para merecê-lo, antes de saberem falar ou pensar, até mesmo antes de virem ao mundo! Ser filho é a condição fundamental para conhecer o Amor de Deus, que é a fonte última deste autêntico milagre. Na alma de cada filho, porquanto vulnerável, Deus coloca o selo deste amor, que está na base da sua dignidade pessoal, uma dignidade que nada e ninguém poderá destruir. O quarto mandamento pede aos filhos – e todos o somos! – para honrar o pai e a mãe (cf. Ex 20,12). Este mandamento vem logo depois daqueles que dizem respeito ao próprio Deus. De fato, contém algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todo outro tipo de respeito entre os homens. E na formulação bíblica deste quarto mandamento, acrescenta-se: “Para que vivas longos anos na terra que o Senhor teu Deus te dará”. A ligação virtuosa entre as gerações é garantia de futuro e garantia de uma história realmente humana. Uma sociedade de filhos que não honram os pais é uma sociedade sem honra; quando não se honra os pais, perde-se a própria honra! É uma sociedade destinada a se encher de jovens áridos e ávidos. Concluo lembrando ainda as palavras do Beato Paulo VI na Encíclica Humanae Vitae: “Ter mais filhos não pode tornar-se automaticamente uma escolha irresponsável. Não ter filhos é uma escolha egoísta.” A vida rejuvenesce e conquista energias multiplicando-se: se enriquece, não se empobrece! Os filhos aprendem a cuidar da própria família, amadurecem na partilha dos seus sacrifícios, crescem na apreciação dos seus dons. A agradável experiência da fraternidade anima o respeito e o cuidado dos pais, aos quais é justo o nosso reconhecimento. Ó Jesus, Filho eterno, feito filho no tempo, ajuda-nos a encontrar o caminho de uma nova irradiação desta experiência humana tão simples e tão grande que é ser filho. 109

Multiplica em todas as gerações a consciência deste mistério que enriquece a vida de todos e que vem do próprio Deus. Ajuda-nos a redescobri-lo, desafiando os preconceitos e vivendo-o na fé e em perfeita alegria. Amém!

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O desafio da educação dos filhos Afrontar o tema da educação no contexto familiar é como tocar o coração de todas as formas que já afirmamos até aqui. Diz um provérbio chinês: “Se fazes projetos por um ano, plante o grão; se fazes projetos para um maior número de anos, plante uma árvore; se fazes projeto para uma vida, eduque as pessoas.” Realmente, a educação é o maior tesouro e a mais importante das heranças que os pais podem dar aos filhos, já nos diziam nossos avós e pais na fé. Mas certamente é um dos principais desafios diante dos quais se encontram as famílias de hoje e, sem dúvida, se tornou ainda mais exigente e complexo por causa da realidade cultural contemporânea e da grande influência dos meios de comunicação, mundo do social work, Internet. É preciso ter, na devida consideração, as exigências e as expectativas de famílias capazes de ser, na vida cotidiana, lugares de crescimento, de transmissão concreta e essencial das virtudes que forjam a existência. Isto indica que os pais podem escolher livremente o tipo de educação que desejam oferecer aos filhos, em conformidade com as convicções que lhes são próprias. Compartilho ainda a estreita relação entre educar e gerar, na qual a relação educativa entre pais e filhos é uma relação que se instaura no interno da família, já no nascimento, deixando marcas indeléveis. A contribuição do pai e da mãe, na complementaridade entre eles, tem um influxo decisivo na vida dos filhos. Espera-se dos pais assegurar aos filhos a cura, o afeto, a orientação de senso e orientação no mundo de hoje, escutando mais do que falando, agindo com coerência mais do que comandando. Criando um clima de confiança que se torna como uma bússola na regulação interna dos filhos. Sempre foi enfatizada a necessidade da dimensão materna, mas constatamos que ela se encontra sempre mais fraca e às margens da figura paterna. Nossos filhos necessitam muito da presença da figura paterna e enérgica que possa lhes garantir um desenvolvimento sadio e seguro. Mas, na realidade, a responsabilidade educativa é dos dois, em uma unidade que já meditamos nos capítulos precedentes. Assim, é a própria diferença e reciprocidade entre pai e mãe que cria o espaço fecundo para o pleno crescimento dos filhos. Na tarefa educativa familiar, gostaria de propor a expressão “cura responsável”, a paternidade e maternidade responsável, terminologia que usamos e propomos também para a maternidade e paternidade espiritual, aos reitores dos seminários e responsáveis das comunidades religiosas e de consagrados. Cura responsável que se conjuga com “a proximidade e a confiança” típicas da figura materna e com “o senso de justiça e de igualdade”, típico do aspecto paterno da relação. Aqui peço perdão se insisto em dizer que esta orientação na relação educativa familiar forma um espécie de “bússola interior”, 111

que forma critérios de referências para os filhos nas diversas situações da vida. Por isso, a educação familiar é escola de humanidade, na qual a tarefa dos pais seria aquela de tirar as potencialidades dos filhos. A palavra latina que exprime esta realidade é “educere”, que é o contrário de pretender que os filhos sejam cópias e semelhanças dos próprios pais, ou seja, “se-ducere”. Tal relação, porém, deve ser harmonizada entre autoridade e liberdade, e talvez aqui já mencionamos o desafio real da educação, ou seja, evitar o excesso de autoritarismo e de liberalismo, ou ainda pais sem a consciência da responsabilidade a eles confiada. Este desafio encontra equilíbrio quando a vida familiar é compartilhada nos seus momentos cotidianos. Assim como nos ensina a Sagrada Família de Nazaré, a autoridade dos pais, como aquela de José e Maria, se torna real e coerente, fazendo o crescimento dos filhos, através do próprio estilo de vida, caracterizado pelos valores humanos e cristãos, porque é próprio das famílias que os filhos aprendam as relações gratuitas e não instrumentais. É próprio do ambiente familiar que aprendamos o direito inalienável da pessoa humana no exercício da sua liberdade. Meditando assim a relação familiar como modelo educativo, podemos dizer que a família permanece sempre como a primeira e indispensável comunidade educadora, na qual a educação é um dever de todos os pais, porque está conexa com a transmissão da vida, e é insubstituível, porque não pode ser delegada, nem mesmo substituída. Como escuto os casais com filhos adolescentes e jovens, vejo que muitos deles vivem um senso de solidão, sentimento de inadequação e até mesmo de impotência. Mas estes desafios são superados com o amor e atenção às famílias em dificuldades, amando-as em todas as partes, suportando-as e ajudando-as a serem protagonistas ativas da educação dos filhos e, assim, da inteira comunidade. Aqui a tarefa educativa dos pais recebe também a força da graça sacramental, que faz dos casais, através do sacramento do matrimônio, sinal do Amor de Deus que cura e educa os Seus filhos. Nesta preciosa missão das famílias, a Igreja desempenha um precioso papel de apoio a elas, começando pela iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. Hoje, mais do que ontem, tanto nas situações complexas como nas normais, as comunidades eclesiais devem encontrar modos de apoio às famílias no seu compromisso educacional. De modo concreto, no acompanhamento das crianças, dos adolescentes e dos jovens em seu crescimento, para que sejam capazes de se introduzirem no pleno sentido da vida e de despertarem ações responsáveis, vividas à luz do Evangelho. E aqui voltamos ao exemplo da Sagrada Família de Nazaré, na qual a ternura, a misericórdia e a sensibilidade, materna e paterna, são uma escola de humanidade e de vida.

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O papel dos avós na educação dos netos Não podemos falar da beleza do dom da vida e da possibilidade da educação dos filhos sem exaltar a preciosa missão dos avós na cooperação ativa e benéfica na relação com os pequenos. Os anciãos nos trazem a história, nos trazem a doutrina, nos trazem a fé e a dão em herança. São aqueles que, como o bom vinho envelhecido, têm esta força dentro de si para nos dar uma herança nobre. Em todos os países pelos quais passei em missão, seja nos meus países de origem, como a Itália e o Brasil, seja nos outros países da América, como EUA, seja em Israel e na Palestina, me comove ver, na grande maioria das vezes, a ternura dos avós na relação com os próprios netos. Essa ternura fala de Deus, mesmo se muitas das vezes os próprios avós e as famílias ficam extasiados somente nos sentimentos, sem a consciência da beleza da mensagem que trazem. É necessário refletir sobre a experiência concreta dos avós e sobre a tarefa que eles exercem na educação dos netos, mesmo que nem sempre seja fácil, como é a tarefa educacional, que tem seus desafios; e para os avós não seria diferente. Na verdade, os avós já sentem o cansaço, o sofrimento de tantas situações, como as separações dos filhos, dificuldades econômicas, a mudança de mentalidade e o sentir-se fora dos projetos, ou mesmo abandonados. Necessitamos de redescobrir o valor dos anciãos nas famílias para escutá-los, acolhendo-os nos momentos e situações de solidão, redescobrindo o valor que eles possuem e a possibilidade de poder usufruir dessa fonte de segurança, de tradições e de ternura. Às vezes, há gerações de jovens que, por complexas razões históricas e culturais, vivem de forma mais intensa a necessidade de se tornarem autônomos dos próprios pais, a necessidade quase de “se libertarem” das gerações anteriores, perdendo, assim, o equilíbrio fecundo entre as gerações. O resultado é um grave empobrecimento para o povo, e a liberdade que prevalece na sociedade é uma liberdade falsa, que se transforma quase sempre em autoritarismo. E, assim, São Paulo recomenda a Timóteo – que é Pastor e, consequentemente, pai da comunidade – que tenha respeito pelos idosos e pelos familiares e exorta-o a fazê-lo com atitude filial: “O idoso como se fosse teu pai”, “as mulheres idosas como se fossem mães” (cf. 1Tm 5,1). O chefe da comunidade não está dispensado desta vontade de Deus; pelo contrário, a caridade de Cristo impele-o a fazê-lo com um amor maior. Como fez a Virgem Maria, que, apesar de ter se tornado a Mãe do Messias, se sentiu impelida pelo Amor de Deus, que nela se fazia carne, a ir sem demora servir a sua prima Isabel, que era idosa. E, deste modo, voltamos a este “ícone” cheio de alegria e de esperança, cheio de fé, cheio de caridade. Podemos pensar que a Virgem Maria, quando se encontrava na casa 113

de Isabel, teria ouvido a sua prima e o marido, Zacarias, rezarem com as palavras do Salmo. És tu, Senhor, a minha esperança, és minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. Não me rejeites no tempo da velhice, não me abandones quando diminuem minhas forças. E agora, na velhice, de cabelos brancos, Deus, não me abandones, até que eu anuncie teu poder, as tuas maravilhas a todas as gerações que virão (Sl 71,5.9.18).

A jovem Maria ouvia e guardava tudo no seu coração. A sabedoria de Isabel e Zacarias enriqueceu o seu espírito jovem; não eram especialistas de maternidade e paternidade, porque para eles também era a primeira gravidez, mas eram especialistas da fé, especialistas de Deus, especialistas da esperança que vem Dele: é disto que o mundo tem necessidade, em todo o tempo. Maria soube ouvir aqueles pais idosos e cheios de enlevo, aprendeu com a sabedoria deles, e esta revelou-se preciosa para ela, no seu caminho de mulher, de esposa, de mãe. Assim, a Virgem Maria nos indica o caminho: o caminho do encontro entre os jovens e os idosos. O futuro de um povo supõe necessariamente este encontro: os jovens dão a força para fazer caminhar o povo, e os idosos revigoram esta força com a memória e a sabedoria popular. E voltamos, caro(a) amigo(a) leitor(a), à nossa escola de Nazaré, na qual Jesus, com o exemplo de José e Maria, teria escutado e aprendido tantas coisas com os seus avós, Joaquim e Ana, aqui (hic), a poucos metros de onde lhe escrevo esta meditação. E deste lugar santo, faço uma oração para todos os avós do mundo, para que compreendam na fé o grande valor educativo do que eles ensinam no cotidiano, sendo sinais para todas as famílias, testemunhando que em todas as idades podemos crescer em sabedoria, para poder criar relações belas entre as gerações, nas famílias e na Igreja. Senhor Jesus, nascido da Virgem Maria, filha de São Joaquim e Sant’Ana, olha com amor aos avós de todo o mundo. Protege-os para que sejam fonte de enriquecimento para as famílias, para a Igreja e para a sociedade. Sustenta-os também na velhice para que continuem sendo pilastras robustas da fé evangélica, conservando os nobres ideais da Família, tesouros viventes da sólida tradição da fé. Faz que sejam mestres de sabedoria e dos valores que se transmitem às gerações futuras, frutos da matura experiência humana e espiritual. Senhor Jesus, ajuda as famílias e a sociedade a valorizarem a presença e a missão dos avós. Que nunca sejam ignorados ou excluídos, mas encontrem sempre respeito e amor.

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Ajuda-os a viverem serenamente e a sentirem-se acolhidos por todos os anos de vida que Tu lhes concederás. Maria, Mãe de todos os viventes, protege sempre os avós, acompanha-os na peregrinação terrena e faz com que um dia todas as famílias se reúnam na pátria celeste, onde tu esperas toda a humanidade para o grande abraço da vida sem fim. Amém!

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Prospectivas para uma Pastoral Familiar no exemplo da Sagrada Família

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epois da meditação da beleza e da verdade do Evangelho no matrimônio realizada no capítulo anterior, neste capítulo iremos refletir e colocar os alicerces para a construção de uma “Pastoral Familiar”. Mas já se faz necessário esclarecer o que nós entendemos por família, terminologia usada para indicar o sacramento do matrimônio, mesmo que muitas das vezes não venha bem compreendido, mas que indica sempre a ação Sagrada do desígnio de Deus para a humanidade e é uma vocação. Por essa razão, existe a necessidade de uma preparação adequada ao longo de um itinerário de fé, através de um discernimento maduro, já que não deve ser considerado unicamente uma tradição cultural, nem sequer uma exigência social ou jurídica. Assim, é preciso realizar percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de tal modo que a comunicação dos conteúdos da fé fundada em uma experiência de vida seja oferecida, para que toda a comunidade eclesial se torne a base, o terreno (húmus) da própria experiência familiar. Neste contexto, a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. É preciso, porém, partir da convicção de que o homem provém de Deus e, por conseguinte, é capaz de voltar a propor as grandes interrogações sobre o significado mais profundo da humanidade. Os grandes valores do matrimônio e da família cristã correspondem à investigação que atravessa a existência humana, inclusive numa época caracterizada pelo individualismo. Para que a Pastoral Familiar não se torne somente um discurso ideológico, é necessário acolher as pessoas com as suas próprias existências concretas, saber fomentá-las a buscar, encorajando-as, o desejo de Deus e a vontade de se sentir plenamente parte da Igreja, até mesmo quando experimentarem a falência ou viverem as mais diferentes e frágeis situações. A mensagem cristã contém sempre em si mesma a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que convergem em Cristo. Por isso a necessidade de uma Pastoral Familiar com a prioridade de “dar e reconhecer” ao sacramento do matrimônio a sua tarefa e a missão que o Senhor confiou à Igreja na história da humanidade; e que não resuma a pastoral em um “fazer alguma coisa para...”. Não podemos também falar de uma Pastoral Familiar que não tenha como fundamento a “Verdade” e a consciência de que o “Sacramento nos dá uma graça particular”, que exprime a ação do mistério de Deus. E aqui parece que estamos fazendo uma aula de Teologia, mas não é assim. O 117

povo de Deus, até aqueles mais simples e humildes dentro da Igreja, depois de uma catequese ou uma homilia feita sem a dimensão da graça, nos indaga se temos fé, ou em nome de quem pronunciamos certas verdades absolutas. Em outras palavras, temos que afirmar a verdade que todo homem tem sede de Deus e possui o desejo do transcendente. E daqui emerge a convicção de formar uma “Pastoral Familiar” voltada para as necessidades e para o desenvolvimento concreto do povo de Deus, que nos leva a contemplar a família como sinal de Sua bênção. Eis aqui a necessidade de acreditar que esta relação deve ser curada, deve crescer no amor e basear-se no “livre consenso”, com a própria vontade. Assim sendo, não podemos pensar em uma Pastoral Familiar na qual os casais, os esposos, não sejam os protagonistas; risco muito comum em algumas realidades nas quais a pastoral chamada familiar é o salão de palestras de sacerdotes, religiosos e consagrados celibatários, sem a mínima participação ativa das famílias. Surgem, então, a evocação e a necessidade de uma renovada prática pastoral, à luz do Evangelho da família, superando as óticas individualistas que ainda a caracterizam. Por isso, temos que insistir para uma renovação da formação dos presbíteros, dos diáconos, dos catequistas e dos outros agentes no campo da pastoral, mediante uma maior participação das próprias famílias. Há ainda a necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os condicionamentos culturais, sociais, políticos e econômicos, como o espaço excessivo reservado à lógica do mercado, que impedem uma autêntica vida familiar, determinando discriminações das várias formas de pobreza, de exclusão e de violência. Por isso, é preciso desenvolver um diálogo e uma cooperação com as estruturas sociais, encorajando e apoiando os leigos que, como cristãos, se comprometem nos âmbitos cultural e sociopolítico. O exemplo é sempre o da Sagrada Família de Nazaré, na qual Jesus, “Filho de Deus”, viveu por trinta anos da Sua vida de modo simples, como todos os cidadãos do Seu tempo, comendo, estudando, trabalhando, rezando e se relacionando com as pessoas da sociedade, entrando no meio da realidade humana. Partindo deste princípio de cotidianidade e vida ordinária, queremos adicionar o convite que Nosso Senhor Jesus Cristo nos faz: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo” (Ap 3,20). Deus não nos pede gestos impossíveis ou além das forças humanas, nos pede simplesmente para abrirmos a porta da nossa vida para que Ele possa compartilhar conosco um aspecto simples, como aquele de um jantar, de uma ceia. Aqui tocamos a identidade da família, da vida matrimonial e dos princípios da pastoral, pois é lugar de amor e de comunhão. E não é uma simples coisa, aqui colocamos na profundidade do “Espírito” a totalidade da própria vida, do próprio dinamismo de amor, da vida concreta. 118

Esta cotidianidade, gostaria de repetir, é a base e a meta de toda a “Pastoral Familiar”. Não seria esta a grande riqueza a se valorizar? A planta boa, porém frágil, para se cultivar? Não seria essa a fragilidade das relações afetivas dos casais, uma das dificuldades mais comuns dos nossos tempos? Seria valorizar as famílias e os casais não pelo serviço que eles prestam à paróquia, mas por aquilo que manifestam. A Pastoral Familiar deveria, assim, mover a sua ação a partir desta prospectiva: “Escutar as famílias e valorizá-las por aquilo que exprimem”, e não ceder à tentação de sempre pedir-lhes serviços para a organização paroquial no que nos convém; certamente, o serviço seria a consequência de um caminho de fé percorrido na comunhão familiar. Aqui o grande desafio é o de “escutar, compartilhar e dialogar”, acolhendo com respeito a realidade de cada família, criando percursos de crescimento na fé, para que seja sensível às diferentes situações, procurando e tendo a coragem de usar linguagens diferentes. Nestes percursos, a complexidade da vida vale para todos, mas neles podemos compreender que o amor é, em todo caso, a realidade fundamental e essencial. Para falarmos concretamente e com experiência deste tema da necessidade de uma “Pastoral Familiar”, proponho as palavras de dois pastores, dois presbíteros da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Foram hóspedes no nosso programa “Em casa com a Sagrada Família”. Eis a escolha do Evangelho aqui de Nazaré chegando até nós. Com alegria lhe apresento: padre Wagner Toledo Moreira, vigário episcopal da região urbana da Arquidiocese do Rio e pároco da Paróquia Santa Rita, e padre Antônio Augusto da Silva Bezerra, pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças, do bairro Maria da Graça, da Arquidiocese do Rio. Eles estavam aqui na Terra Santa, no mês de outubro de 2014, para os exercícios espirituais com outros vinte irmãos sacerdotes, como Dom Assis Lopes, titular de Zarai e bispo auxiliar emérito da Arquidiocese do Rio, Tive a graça de acompanhar estes irmãos durante o retiro e fiquei edificado com sua fé e seu amor pastoral. Na entrevista durante o programa solicitei ao Pe. Wagner Toledo que nos contasse sobre a beleza e os desafios da família, e ele assim me relatou: Temos que partir com a consciência de que a paróquia é uma família. E vemos, então, a grande necessidade de trabalhar a família, as realidades familiares no seu conjunto… E a necessidade que se apresenta de transmitir os valores, os rudimentos da nossa fé, como um grande dom para que a família nunca se canse de amar. Amando a Deus, servindo a Deus, ela terá, com toda a certeza, condições de se consolidar e de viver plenamente a sua vocação, de ser um sacramento do Amor de Deus na Igreja e na sociedade.

Quando perguntei sobre a realidade da Pastoral Familiar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, rapidamente, ele me respondeu: Nós estamos buscando, sobretudo agora, com o grande desafio das famílias na realidade de hoje, dar

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uma maior formação para a juventude. A formação pré-matrimonial tornou-se a grande prioridade de investimento, para que, observando os valores que a família possui, o jovem possa ter o pleno discernimento do que ele vai abraçar, do que ele, verdadeiramente, deseja para toda sua vida. O Papa Francisco, quando esteve em Copacabana, na Jornada Mundial da Juventude, nos convidou a não termos medo de amar. Então, esta generosidade de amar de verdade, certamente, vai passar por aquele aspecto tão lindo que o apóstolo Paulo apresentou. O modelo de amor não é mais um coração vermelho, mas o modelo do amor é a Cruz de Nosso Senhor que mostra um amor que não conhece medida. Então, nossa necessidade atual na formação, na catequese, na iniciação cristã, é apresentar esta disposição, esta generosidade dos nossos jovens, para que tenham esta condição de amar, nesta medida. Um amor que não conhece medida.

Ao Pe. Antônio Augusto, que seguiu com atenção os passos da terceira assembleia sinodal, que teve a participação de S. Eminência cardeal Dom Orani João Tempesta, eu perguntei quais foram as colocações de Dom Orani durante a terceira assembleia extraordinária do sínodo. E com entusiasmo e convicção, ele me respondeu: Eu creio que a afirmação que se destaca é quando o nosso cardeal arcebispo menciona a importância de preparar os jovens para uma vida sacramental. Não simplesmente vamos estabelecer uma configuração social, um grupo que se reúne para viver juntos. Mas que vai viver, existencialmente, um sacramento. Acho que esta afirmação dele sobre a questão da formação, que inclusive foi veiculada pelos meios de comunicação social da nossa Arquidiocese, é crucial para que possamos trabalhar na nossa vida pastoral nas igrejas… Para que possamos estabelecer uma nova família como a Sagrada Família. Uma nova família não porque existe um novo modelo, mas porque se renova a partir de Deus. Como existe um novo Homem, existe uma nova Família santificada. A família é um plano de Deus, é um sonho de Deus. Então, é por isso que é necessário ter sempre este referencial dos nossos valores evangélicos, e não dá para fugir disso… Nós precisamos centrar no Evangelho, fazer esse reencontro com a Sagrada Família que demarca este plano de Deus. Muitas vezes, nós podemos esquecer, diante dos desafios da sociedade, esta configuração santificada da família. Eu acho que o Sínodo das Famílias está tentando ajustar uma linguagem, para poder aproximar as pessoas desta santificação familiar. Está tentando fazer com que as pessoas vejam a importância e a gravidade disso. Penso que, quando se fala de formação, e neste caso para a preparação do matrimônio, se fala da gravidade do sacramento. Nós recebemos o sacramento com preparação… Nós recebemos a Eucaristia com uma preparação… Antes de tudo, precisamos confessar e estar bem dispostos espiritualmente… Nós recebemos o sacramento do Crisma, e todos os outros sacramentos, com alguma preparação… E isso deve ser mais discutido… Como preparar as pessoas para perceberem a gravidade deste compromisso de assumir uma família? Que é uma vocação, não é simplesmente uma oportunidade de estabelecer uma felicidade autônoma, sem Deus… Mas, uma felicidade instituída e abençoada por Deus, porque assim foi pensada por Ele.

Ao Pe. Wagner Toledo perguntei sobre a experiência de estar na casa da Sagrada Família, e, comovido, ele me respondeu: A nossa alegria é poder levar para o nosso vicariato, que atende milhares e milhares de pessoas de todo o Estado do Rio de Janeiro, a cotidianidade da Sagrada Família, que, certamente, vai ecoar com aquele

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grande pedido do Santo Padre de sermos um hospital de campanha. Na família a gente ataca o que é de imediato para poder sanar as suas dificuldades, acolhendo e tratando de uma maneira mais direta... Então, vou levar esta experiência da cotidianidade como o meio mais seguro de vivermos a nossa vocação familiar.

Fiz a mesma pergunta ao Pe. Antônio Augusto. Ele, que está no início do seu ministério, exprimiu a graça de poder enviar esta mensagem para as famílias, aqui, na escola do Evangelho. Penso que, de maneira muito especial, é perceber a santidade à qual somos chamados… A santidade de uma maneira mais corriqueira e simples. Ver a Sagrada Família na simplicidade de Nazaré, como estamos contemplando aqui, me ajuda a perceber que a santidade não se faz de grandes caminhos, de grandes feitos, mas daquilo que é mais comum na vida dos homens… Jesus foi virtuoso e santo na simplicidade de Nazaré. Nossa Senhora foi santíssima aqui, neste lugar simples, singelo… São José fez este mesmo caminho… Então, vemos que na simplicidade e nas pequenas ocasiões podemos viver a santidade. Penso que este é um desafio para as famílias. Dentro de casa existe uma igreja, existe a oportunidade da santificação; então, aquilo que nós celebramos na Igreja, aquilo que nós cremos, nós precisamos configurar dentro da nossa família, que é muito importante para que possamos ter a plenitude desta maturidade familiar.

Depois do testemunho destes dois pastores, podemos ainda precisar que é necessário olhar para as realidades familiares e ter a sensibilidade de perguntar em qual nível de amor, sobretudo aquele “familiar”, uma família se encontra; e ter assim a clareza existencial de que estamos todos na mesma barca – famílias, padres, bispos, religiosos e consagrados –, na mesma humanidade, aquela que Deus ama; e que Ele não ama mais aqueles que já estão mais à frente no caminho, ou que apenas iniciaram, ou que estão passando por dificuldades. Depois desta introdução, procurarei brevemente tratar algumas fases da Pastoral Familiar, aquelas mais comuns e urgentes.

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Orientar os nubentes (noivos) ao caminho do matrimônio A complexa realidade social e os desafios que as famílias de hoje estão sendo chamadas a enfrentar exigem um maior compromisso da parte de toda a comunidade cristã, principalmente em relação à preparação dos noivos para o matrimônio. Mas temos que partir da realidade de que a preparação ao matrimônio é uma escolha vocacional e, assim, deve ser inserida em um caminho gradual e contínuo, no qual a comunidade cristã é chamada a oferecer percursos de acompanhamento nos diferentes momentos do desenvolvimento afetivo, relacional e espiritual da pessoa e do casal. O tempo do namoro e do noivado ainda não são plenamente valorizados na comunidade cristã, e realmente é uma lástima esta realidade, porque é um momento precioso no qual os jovens são mais sensíveis às inquietações que desafiam suas liberdades. Por isso, a urgência em ajudá-los a motivar as escolhas e as decisões para uma aliança de confiança um no outro, de modo que os ajudem a refletir, em uma fase inicial, “por que querem se casar” e “por que casar na Igreja”. No casal que está no início da construção de uma relação autêntica na liberdade e no respeito recíproco é que nasce a consciência de que o amor envolve responsabilidade. A consciência de que amar é desejar o verdadeiro bem do outro, tornando-se capaz de se doar mutuamente e gerar, na estabilidade da vida familiar, o conceito de que os filhos são um dom. Nos caminhos de acompanhamento, além da relação de casal, é determinante que a experiência na comunidade faça crescer na consciência que a consistência do “nós” se realiza no pertencer a um contexto eclesial e social. Nas páginas que seguem gostaria de propor um percurso para a preparação dos jovens ao sacramento do matrimônio. A pedagogia em propor um itinerário aos jovens namorados requer atenção e diálogo, pois, caso se torne uma obrigação, ela será artificial e dará poucos frutos. Porém, devem ser a acolhida e o clima do amor e do testemunho, seja dos casais acompanhadores seja dos presbíteros, a grande arte no acompanhamento dos jovens namorados. Em breve poderemos dizer que o primeiro instrumento a ser usado somos nós mesmos, com a nossa alegria e o nosso testemunho. É bem claro que o percurso de preparação se torna também uma ocasião de aprofundamento e verificação para os jovens namorados e noivos, para checarem o caminho que fazem como casal, aprendendo métodos de comunicação, partilhando as experiências, de modo que se tornem protagonistas do próprio caminho. E também é útil recordar que para muitos será uma oportunidade de iniciação da redescoberta de um caminho de fé. Desde já esclareço que é somente uma sugestão, mas o importante é que a preocupação de se construir um percurso seja uma das metas, nas nossas dioceses e 122

paróquias, e que seja um dos frutos da reflexão sinodal. Este percurso nasce de um período em que guiei jovens no discernimento vocacional, tanto ao matrimônio quanto para a vida sacerdotal e vida consagrada.

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Passos do percurso de preparação Os objetivos de acompanhar o caminho de formação dos jovens namorados e noivos podem ser articulados em três grandes âmbitos: identidade, reciprocidade e projeto. Essas três dimensões devem ser consideradas em unidade, seja na vida pessoal, seja na vida de casal e de comunidade. – Identidade: este aspecto favorece a integração de todas as potencialidades da pessoa, fazendo emergir a corporeidade e a sexualidade nas suas dimensões constitutivas do ser homem e mulher; oportunidade de rever a comunicação e a relação como pessoas e como casal, revendo a linguagem do amor, da comunhão e da fecundidade. Conquistar identidade ainda é aprender a assumir o tempo como um projeto de vida pessoal e de casal, partindo da própria história para chegar à história partilhada. É importante ajudar os jovens a redescobrirem a beleza da espera para o início de uma vida sexual, no respeito recíproco, criando consciência na construção de uma harmonia entre inteligência, afetividade e vontade. – Reciprocidade: a reciprocidade é fruto do equilíbrio dinâmico entre autonomia e dependência. É necessário criar ocasiões para crescer na estima pessoal e recíproca, para aprenderem a ser verdadeiros consigo mesmos e assim ver o outro como um recurso e um bem. A capacidade de diálogo e de confronto é uma dimensão necessária para descobrir que a relação é a fonte para a vida pessoal e de casal, elementos indispensáveis para viverem juntos e para o bem comum. A educação é o nível de estrutura ligado à relação entre as gerações, em primeiro lugar no interno da família e, como consequência, nas relações sociais. Muitas das dificuldades experimentadas pelas famílias, hoje, no campo educativo, existem porque as gerações vivem mundos separados e estranhos uns aos outros. O diálogo requer uma significativa presença recíproca e a disponibilidade no tempo. O pleno amadurecer requer um contato com as figuras significativas, sejam elas os pais ou figuras vigárias, sejam aquelas que no decorrer do processo se tornam significativas. A causa da relação se instaura na experiência pessoal dos jovens, com parentes, amigos maduros, professores, sacerdotes, religiosos. – Projeto: este objetivo faz crescer a consciência da necessidade de um projeto de vida para si mesmo e para o casal que está nascendo. Muitas das vezes os jovens percebem que precisam se amar, mas falta um projeto que dê um horizonte aberto à esperança e ao amor. Corre-se o risco de viver somente os fragmentos do presente, sem dar plenitude à relação. É belo e libertador crescer na consciência de que a própria existência é um dom recebido para ser doado na própria vocação esponsal, vivida no horizonte da fé, no caminho de Cristo Esposo, que se oferece à Sua Igreja. Assim, o itinerário de preparação dos jovens ao matrimônio deve fazer parte do 124

coração da Pastoral Familiar e também daquela juventude, bem como das pastorais paroquiais e das associações. Na impostação dos percursos de acompanhamento, é importante o trabalho em “equipe” e a atenção de todas as dimensões da pessoa, usando modalidades diversificadas e uma linguagem adequada para poder comunicar a fonte do amor e o fascínio da fé. A vocação de cada um é um dom e uma riqueza para todos e um testemunho para a Igreja. Por isso, é importante um clima de acolhida e de “escuta”, valorizando aquilo com que cada um pode contribuir. A equipe dos casais acompanhadores e presbíteros é chamada a curar, de modo especial, a comunhão e a unidade, suscitando a sede e o conhecimento da Palavra de Deus. A peculiaridade desses caminhos requer dos acompanhadores uma “formação específica”, uma profunda sensibilidade para com as dificuldades do mundo dos jovens de hoje e a disponibilidade em colaborar com outras realidades educativas. No percurso de acompanhamento dos noivos para o matrimônio, quando a “data do casamento” já foi decidida, não podemos ter a pretensão de transmitir de modo exaustivo todos os temas sobre o matrimônio cristão e a vida da família. É importante, porém, dar uma panorâmica suficiente dos aspectos essenciais da relação como casais, do matrimônio cristão e das escolhas da vida que caracterizam uma família cristã. Necessitamos de suscitar curiosidade e o gosto em aprofundar tais temáticas. Por esta razão, essa desafiante missão é chamada de acompanhamento de “arte”, levando os noivos a sentir a própria união de amor, à luz de uma vocação divina. Mas aqui temos que ser objetivos, a preparação deve durar pelo menos um ano, e o tempo pode incidir na vida dos casais para toda a vida. A equipe de acompanhadores deve ser formada por casais com experiência de vida, presbíteros e, se necessário ou em algumas ocasiões, especialistas. Deve-se construir um clima positivo e de acolhida para com todos, atentos às diferentes realidades de que provêm os jovens noivos; que tenham atenção aos diferentes caminhos de fé que trazem com eles. Como método a ser usado na condução dos encontros, a experiência evidencia a oportunidade de criar momentos de confrontos entre o casal e entre os casais participantes, de modo que os jovens vejam o envolvimento a partir da própria experiência concreta e das próprias situações da vida. É aconselhável o trabalho em pequenos grupos, coordenados pelos casais da equipe. Trata-se de construir um clima no qual os jovens noivos se sintam protagonistas do próprio caminho de formação em um contexto de relações interpessoais significativas. Para se verificar este clima são necessárias algumas condições. A primeira, como já falamos, é a acolhida com familiaridade e amor, aceitando-os como eles são, sem julgálos, e acompanhá-los em um pedaço de caminho no estilo de Emaús (cf. Lc 24,13-35), escutando-os, compartilhando o caminho, participando das emoções e das dificuldades 125

que trazem, e ajudando-os a se descobrirem, tendo como guia a Palavra de Deus, a profundidade e a beleza do mistério que estão vivendo. O ambiente no qual se fazem os encontros deve ser acolhedor e familiar. Uma atenção deve ser dada também ao número de jovens, para que seja compatível com o número de casais acompanhadores, de modo que os jovens acompanhados tenham a possibilidade de participar ativamente. É justo lembrar que, durante todo o processo, os jovens noivos precisam ter encontros pessoais com o pároco, que, como pastor e pai, os ajudará no discernimento e no percurso de preparação e deve fazer sempre parte integrante da equipe dos casais acompanhadores. Depois de propor este simples itinerário de preparação dos jovens ao matrimônio, passo ao segundo desafio da Pastoral Familiar: o acompanhamento dos jovens casais nos primeiros anos de casamento.

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Acompanhamento nos primeiros anos de matrimônio Os primeiros anos de matrimônio constituem um período vital e delicado e necessitam de um autêntico acompanhamento, durante o qual os casais possam crescer na consciência dos desafios e do significado da própria união. Para que a família se torne sempre mais uma verdadeira comunidade de amor, é necessário que todos os seus membros sejam ajudados e formados e que assumam com responsabilidade os novos problemas, o serviço recíproco e a participação ativa na vida familiar. Isto vale, sobretudo, para as jovens famílias, as quais, encontrando-se em um contexto de novos valores e de novas responsabilidades, estão mais expostas, especialmente nos primeiros anos de matrimônio, a eventuais dificuldades, como a adaptação à vida comum e o nascimento dos filhos. Daqui deriva a exigência de um acompanhamento pastoral que continue também depois da celebração do sacramento (cf. Familiaris Consortio, parte III). Este percurso implica diferentes desafios: a construção e a consolidação da identidade individual, da união afetiva do casal, e a responsabilidade de se tornarem pais. Certamente, propor um acompanhamento nesta fase é importante. Esta é a missão educadora da Igreja, e não podemos ficar na superficialidade do desafio. Esta abertura nos permite associar a definição de “jovens casais” não somente aos aspectos da inexperiência, da fragilidade, das incertezas que aparecem, mas também à novidade, ao entusiasmo e à vivacidade que estas famílias oferecem à Igreja e à sociedade. Aqui devemos ser práticos, querido(a) irmão(ã) de peregrinação, nesta reflexão e no conhecimento da Sagrada Família de Nazaré. É necessário, em primeiro lugar, distinguir as situações nas quais as jovens famílias, de qualquer modo, procuram a comunidade cristã para pedir o batismo dos próprios filhos, ou outros sacramentos, ou simplesmente uma ajuda. Nesse caso, passando por cima das várias motivações que os levam a pedir os sacramentos, ou se apresentarem à Igreja, trata-se de uma oportunidade de encontro, na qual a comunidade cristã – e em particular os animadores e operadores, os presbíteros e os casais acompanhadores – é chamada a escutar não somente o pedido, mas as singulares pessoais, o casal com a própria história e as experiência que trazem. A primeira tarefa da equipe da Pastoral Familiar é acolher com palavras, gestos e nas articulações já propostas no subcapítulo anterior. Um segundo objetivo seria delinear, na medida do possível, um sustento do casal na cotidianidade da vida familiar e um percurso de crescimento espiritual que os ilumine e os ajude a viver abertos ao dom da vida. Aqui o exemplo é a santidade da vida cotidiana e ordinária da Sagrada Família de Nazaré. De fato, a família é o grande mistério de Deus. Como “igreja doméstica”, ela é esposa de 127

Cristo, a Igreja universal, e nela todas a Igrejas particulares se revelam como esposa de Cristo. Esse itinerário, então, do amor esponsal e familiar, vai se sustentando, e nele se investem as melhores energias. Torna-se fundamental criar, onde é possível, sinergias e fecundas alianças educativas com as diferentes realidades pastorais, como, por exemplo, a criação de ocasiões de diálogo com os próprios casais, oferecendo métodos para que eles possam se comunicar melhor e crescer nas relações de amizade. É importante propor encontros com a presença de casais experientes ou pessoas qualificadas que os ajudem a aprender a rezar e a meditar a Palavra de Deus e que os escutem nos momentos de dificuldades. Uma feliz iniciativa são os “retiros para famílias”. Todas essas são oportunidades e modalidades para a Igreja, comunidade cristã, exprimir o desejo de se fazer próxima das fragilidades e das complexidades da vida conjugal, oferecendo sustento e acolhida, estimulando reflexões sobre o valor do sacramento do matrimônio e da família, deixandose também questionar pelas novidades que nascem do encontro com os casais. Por isso, esperançosamente, é de grande importância a presença, na pastoral, de casais com experiência. A paróquia é considerada o lugar no qual casais maduros podem ser postos à disposição dos casais mais jovens, com a eventual participação de associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. É necessário encorajar os esposos a uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos e no crescimento de uma sexualidade como oferta e louvor a Deus, conforme escreve São Paulo aos cristãos de Roma: “Eu vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso verdadeiro culto” (Rm 12,1). A relação de casais, além do sentimento e do diálogo espiritual, envolve toda a sua pessoa também na sua dimensão corporal e sexual. A dimensão da sexualidade é então inserida em um amplo contexto da comunicação entre duas pessoas responsáveis de si mesmas e dos valores sociais e morais das próprias ações. A relação sexual cresce junto à linguagem da corporeidade e se empobrece quando os casais se tornam avaros, blocados, funcionais. Hoje, onde prevalece uma banalização da sexualidade, é mais que necessário ajudar os casais jovens a compreenderem a beleza de uma relação esponsal vivida na unidade de suas várias dimensões. É preciso salientar também a importância da espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical, animando os casais a se reunirem regularmente para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, principalmente no aniversário do matrimônio, podem ser também oportunidades vitais para favorecer a evangelização através da família. Nas páginas que seguem iremos 128

refletir a importância da comunicação em família e como é necessário o uso dos instrumentos humanos e espirituais da comunicação na gestão dos conflitos na vida conjugal.

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Melhorar a comunicação em família Faz parte de uma sã espiritualidade conjugal e familiar o compromisso de não deixar que as dificuldades e fatigas ou outros fatores externos, como a televisão, a mídia, a social work, a Internet, tirem o espaço que é reservado ao diálogo dos casais, da família. A influência destes fatores pode conduzir a família a uma comunicação árida. O tema do diálogo, hoje, está fortemente presente nos temas do acompanhamento dos noivos e dos casais. Como, por exemplo, no tema que aborda o período do apaixonar-se. Neste período, os namorados enfatizam muito o diálogo, dando importância, muitas das vezes, a assuntos de coisas da vida e do próprio modo de ser, evitando os argumentos que não encontram sintonia e que podem provocar conflitos. Porém, a família que nasce do sacramento não está isenta do risco de um empobrecimento do diálogo, das fatigas e das incompreensões. É muito importante esclarecer que sou formado em Psicologia Clínica e em Psicoterapia, e por isso devo ser sincero em dizer que é a fé que mantém vivo e profundo aquele olhar que entrevê na pessoa amada as riquezas humanas e espirituais escondidas pelas fraquezas e pelas fragilidades. É fundamental, porém, encontrarem tempo, pararem, sentarem-se de frente um para o outro para um sereno diálogo que pode tanto favorecer e que, se acompanhado da oração mediante a invocação do Espírito Santo e da leitura da Sagrada Escritura, pode levar ao máximo da comunicação, do mesmo modo como fez a Sagrada Família de Nazaré. As diferenças pessoais, bem como as diferenças de serem homem e mulher, nas diversas maneiras de se gerir as emoções e sentimentos, e a própria história devem se transformar não em ocasiões de distância, mas em privilegiadas ocasiões de diálogo e de descobertas dos próprios recursos e capacidades. Existem três aspectos da qualidade de conhecimento na comunicação da vida dos casais e das famílias que não podem ser ignorados: a compreensão empática, a revelação das defesas e a revelação das recíprocas expectativas. Esses são, de fato, os antídotos mais seguros contra o mecanismo das decepções. Compreender empaticamente É justo explicar o que entendemos por “empatia”. Empatia significa a capacidade psicológica para sentir o que sentiria outra pessoa, caso estivesse vivenciando a mesma situação que ela. Consiste em tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo. Existe certa maravilha do amor que se traduz em perceber antecipadamente a necessidade da pessoa amada e em sentir o desejo ou o pensamento no momento em que ele nasce, mesmo antes que a própria pessoa o perceba. Esta experiência muito privilegiada do amor é 130

determinada pela sua natureza que é heliocêntrica, na qual a visão das coisas é estimulada mais pelo sentir do outro que por ele próprio. Este nível de comunicação, mesmo que em alguns casos, é a base de pertença de afinidades eletivas e intensas e é sempre o resultado de um exercício contínuo. A compreensão empática é um modo de gostar, de ser vigilante pela preciosidade que é o outro, no qual prevalece a ternura. De um ponto de vista psicológico, é a exata contradição entre a projeção (descarregar no outro as próprias experiências pessoais vividas) e a identificação (viver o que outro vive como se fosse próprio). Nem no primeiro e nem no segundo caso a alteridade é anulada. O contrário da empatia é uma atitude radical de independência (eu te conheço e te entendo). A empatia então seria esta capacidade de perceber o mundo emotivo do outro e respeitá-lo. É um dos níveis mais altos da relação porque é vivido na reciprocidade, em uma contínua comunicação procurada e autêntica. Revelar as próprias defesas Cada pessoa elabora defesas emotivas por meio das quais diminuem as tensões produzidas, seja da esfera inconsciente, seja do subconsciente, ou ainda dos conflitos provenientes da rede de relações. As defesas são caracterizadas pelos blocos e pelas interrupções improvisadas da comunicação: encontros evitados, cessação do diálogo, processos de racionalização no enfrentar determinados argumentos. A mesma palavra “defesa” invoca a presença de um adversário: a situação, as emoções, a pessoa não agradável. As defesas, além de se constituírem automaticamente, ainda intervêm espontaneamente todas as vezes que a pessoa vive situações de alarme ou dificuldades. Qualquer relacionamento, até o mais favorável, pode dar, mesmo que minimamente, uma incidência de atitude de defesa. A diferença que intercorre, nesse caso, entre a relação de amor dos casais, faz com que, gradualmente, eles sintam a força da defesa e a necessidade de revelar ao outro o motivo que a provocou. Mesmo nessas dificuldades, a pessoa amada não se torna nunca o adversário, mas continua a ser o “símile” a si. Daí surge a necessidade da integração e da comunicação que supera o temor de serem descobertos. Revelar-se e deixar-se conhecer significa selar uma aliança indestrutível. No fundo, é como confiar realmente ao outro a parte mais vulnerável de si mesmo, mas também é uma condição que consente em manifestar as recíprocas expectativas. Revelação das recíprocas expectativas Não existe expressão de maior liberdade e confiança do que declarar o que uma pessoa espera da outra. A atitude não é a de pretensão ou de reivindicação, mas de “abandono”, que leva a olhar o outro como a parte melhor de si mesmo. É uma profunda libertação quando podemos manifestar à pessoa amada as nossas próprias necessidades, 131

exprimindo ao mesmo tempo a mesma certeza de que a outra saberá acolher e dar uma resposta. É nessa declaração que o outro ocupa o primeiro lugar no coração e que sentimos sua presença construtiva. Gostaria, mesmo se brevemente, de refletir sobre o atual contexto sociocultural, que vai delineando o fenômeno das relações virtuais: o envolvimento de crianças, jovens e adultos nas relações multimídia. O verbo “digitar” indica uma nova forma de relação, que não é transmitida através do encontro; é um conhecimento indireto e que não requer discernimento. Facebook, Whatsapp, entre outras redes sociais, correm o risco de substituir as relações concretas e diárias das pessoas, dos casais, e se transformam em agências de matrimônio, ou correio do coração, criando ilusões, sobretudo nas horas noturnas, quando o silêncio e o contexto se tornam conveniência. Há ainda as ilusões dos falsos profissionais. Certamente, sabemos que as pessoas sofrem com a solidão e têm dificuldade na comunicação e nas relações, e estas formas de redes sociais iludem porque superficialmente trazem prazer e gratificação. Aqui estamos falando de família, e alguém poderia me perguntar por que mencionar este argumento nesta sede de reflexão, mas hoje a atração pela Internet é uma realidade, tornando-se um desafio para a moral familiar, e deve ser objeto de preocupação da Pastoral Familiar. É um fenômeno difundido entre homens e mulheres que vivem vidas paralelas, nas quais a mente, o coração e a vida sexual estão em outra realidade, perdendo-se, assim, a realidade e vivendo com superficialidade as relações verdadeiras, que permanecem no tempo. Que a educação e a consciência das redes sociais, dos meios de comunicação modernos, sejam apresentadas às famílias como meios de crescimento e potencial de evangelização e sejam preocupação da Pastoral Familiar e da formação dos casais nos acompanhamentos e na formação permanente das famílias.

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Preparação dos presbíteros para a Pastoral Familiar A atenção às famílias deve ser o objeto ativo de comunhão da inteira comunidade cristã. O ministério esponsal que elas operam, unido ao ministério de comunhão dos presbíteros, pode constituir uma fonte de fecundidade educativa para a vida da Igreja paroquial e diocesana. A Pastoral Familiar, quando se funda na estima recíproca de solicitude entre casais e presbíteros, está desenvolvendo a sua tarefa de ser referência para a inteira comunidade. E aqui não se trata de que tal solicitude seja somente da parte dos presbíteros, na cura das famílias, mas de receberem também luz para a própria identidade sacerdotal e novos impulsos para uma incisiva laboriosidade pastoral. De fato, é particularmente preciosa uma família que, de modo eficaz, vive a beleza da Pastoral Familiar e paroquial, tornando-se a causa dessa notável união cheia de evangelização. Assim, depois de um caminho de formação adequado, os casais, juntamente com os presbíteros, poderão aprofundar sempre mais o mistério do sacramento, conscientes de que uma família é o lugar privilegiado da educação humana e cristã, por isso, é a melhor aliada do ministério sacerdotal, e assim um dom precioso para a edificação da comunidade. E voltamos para a nossa escola do Evangelho, aqui em Nazaré. Trago a você a experiência de um jovem sacerdote da Diocese de Uruaçu, Centro-Oeste, no coração do Brasil, padre Rogério Alves Gomes, prefeito dos estudos do seminário São José de Uruaçu, chanceler da Cúria Diocesana de Uruaçu e responsável pelas equipes de Nossa Senhora, equipe de famílias da Diocese. Pe. Rogério esteve aqui no nosso programa “Em casa com a Sagrada Família”, acompanhado pelos seminaristas Paulo Nogueira Martins Júnior, Rener Olegário Lopes e Fábio Pereira Borges, todos da Diocese de Uruaçu. Eu pude visitar o trabalho dos padres formadores do seminário São José de Uruaçu e pude constatar que “a família”, a Pastoral Familiar, bem como aquela da formação dos presbíteros, é a grande preocupação da diocese. Aqui relato parte da entrevista realizada com eles. Já de início, perguntei a Pe. Rogério o porquê da Diocese de Uruaçu ter como referência para a Pastoral Familiar o seminário diocesano, e ele me respondeu: Veja, frei Bruno, sempre foi a nossa preocupação aproximar as famílias daqueles que um dia serão sacerdotes, porque os sacerdotes serão por primazia os cuidadores das famílias. Então, quando nós oferecemos o seminário para as reuniões das famílias, para a Pastoral Familiar, todas as primeiras sextas-feiras do mês, em que temos adoração com equipes de Nossa Senhora, outras reuniões de planejamento da Pastoral Familiar, e sendo dentro seminário, os seminaristas têm a oportunidade de perceber a importância das famílias na Igreja, porque é a família o berço de todas as vocações, as vocações para o sacerdócio, vocações para o matrimônio; e todas as vocações para o bem da comunidade eclesial e para a sociedade. Por isso, ter com referência o seminário serve para unir a

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vocação sacerdotal e a vocação familiar, para que com a fecundidade destas duas vocações a Igreja caminhe sendo sinal e testemunho na sociedade. O sacerdote e a família trazem grandes alegrias e riquezas para nosso mundo, para nossa Igreja e para cada um de nós. Algo muito marcante no nosso seminário são as equipes de Nossa Senhora. Todos nós, que somos formadores e que trabalhamos no seminário, acompanhamos uma equipe, porque assim incentivamos nos seminaristas o cuidado pelas famílias; e estando com as famílias, nós alimentamos nelas o amor pelos sacerdotes. E funciona, pois elas nos querem bem e, principalmente, rezam por nós. Assim, nos completamos.

Continuando a entrevista, perguntei ao seminarista Paulo Júnior se a proximidade com as famílias, em algum momento, o fez questionar sua vocação para o presbiterado, no qual abraça o celibato. E ele assim me respondeu: Frei Bruno, na verdade, questionar não, mas fortaleceu minha vocação. Estar perto destas famílias me enriqueceu com uma nova dimensão da vocação, a vocação familiar, e essa vivida junto de Cristo; famílias da Igreja e na igreja; o encontro frequente com as famílias me ajuda a buscar a santidade e a responder a Deus a minha vocação ao ministério ordenado.

Ao decorrer de sua história, o seminarista Paulo Júnior passara pela provação da não aceitação de seu pai pela sua escolha vocacional de entrar para o seminário, e foi em um dos encontros das famílias que o seu pai aceitou e acolheu sua decisão. Sobre este episódio de sua vida, Paulo Júnior me relatou: No início, não foi fácil; para minha mãe foi uma grande alegria, mas meu pai não aceitou muito bem, ele tem aquele jeito muito tradicional, acha que filho tem que se casar e dar netos, dar sequência ao sangue da família. No entanto, graças à oração e à presença dos sacerdotes dentro da minha casa, até mesmo a presença do próprio Pe. Rogério, ele resolveu conhecer um pouco do meu cotidiano, da minha vida no seminário. E foi em uma das festas das famílias que ele pôde presenciar a beleza da vida no seminário; a presença das famílias, junto aos seminaristas, mostrou-lhe que não era o que ele pensava, ele viu que juntos buscamos a santidade e disse que até se sentia em casa no seminário.

Pe. Rogério, além de se dedicar à formação dos seminaristas, juntamente com a equipe de formadores do seminário com o qual coopera, se dedica a ajudar os seminaristas no trabalho de evangelização das famílias na periferia de Uruaçu. Perguntei a ele como acolhe o mandado de Papa Francisco referente à evangelização das periferias, e vejam que iluminada resposta: Veja, frei Bruno, quando Jesus nos diz na Sagrada Escritura que nós O encontramos nos pequenos, naqueles que a sociedade quase não considera ou até menospreza, o Evangelho se torna realidade quando nós vamos até estas pessoas, à casa delas, no cotidiano delas. O que Jesus fala toca a realidade na Sua época e também a nossa realidade de hoje, e não podemos deixar passar despercebido. Quando eu vou até à periferia, e levo os seminaristas, eu vivo a experiência do Evangelho e a realização da minha vocação presbiterial. Eu pedi a Jesus na minha oração que eu pudesse levar esta mensagem de

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uma forma que eles pudessem compreender. E cada vez que me apresento, que escuto uma criança, que encontro as pessoas com problemas, famílias separadas, mulheres abandonadas pelos maridos, famílias com filhos no uso de drogas, tudo isso toca o meu coração de pai, de presbítero, e estando lá, no meio deles, vejo que estou encontrando Cristo neles e na história que eles me trazem, e ao mesmo tempo procuro ajudar naquilo que posso. Cristo, então, vai se revelando, e entendo que este é o caminho.

Para concluir, perguntei ao seminarista Rener Olegário como é esta experiência de convivência e de formação para a vida sacerdotal, tendo a presença e o apoio das famílias. Ele me respondeu completando aquilo que Pe. Rogério e o seminarista Paulo Júnior já haviam afirmado: A presença das famílias fortalece o “sim” do presbitério, e se cria uma espiritualidade, realmente um vínculo de filhos e pais. Muitas vezes os nossos pais não estão sempre presentes, mas essas famílias se fazem presente, com o coração materno e paterno; e com o exemplo que nos dão, nos preparamos para ser também pais espirituais, além de filhos.

E chegando ao fim deste capítulo, podemos concluir dizendo que a Igreja desempenha um precioso papel de apoio às famílias, começando pela iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. Pede-se-lhes, tanto nas situações complexas como nas normais, que a Igreja ajude as famílias nas suas diferentes realidades, acompanhando-as no seu crescimento, ao longo de caminhos personalizados, que sejam capazes de introduzi-las no pleno sentido da vida e de lhes suscitar escolhas e responsabilidades, vividas à luz do Evangelho. Ó Deus, de quem procede toda a paternidade no Céu e na terra. Tu, Pai, que és Amor e Vida, faz com que nesta terra, por Teu Filho, Jesus Cristo, “nascido de mulher”, e pelo Espírito Santo, fonte de caridade divina, cada família humana se torne um verdadeiro santuário de vida e de amor para as gerações que se renovam sem cessar. Que Tua graça oriente os pensamentos e as ações dos esposos para o grande bem de suas famílias e de todas as famílias do mundo. Que as jovens gerações encontrem na família um apoio inquebrantável que as torne sempre mais humanas e as faça crescer na verdade e no amor. Que o amor, fortalecido pela graça do sacramento do matrimônio, seja mais forte do que todas as fraquezas e do que todas as crises conhecidas pelas nossas famílias. Enfim, pedimos-Te, por intercessão da Sagrada Família de Nazaré, que, em todas as nações da Terra, a Igreja possa cumprir com fruto a sua missão na família e pela família. Tu, que és a Vida, a Verdade e o Amor, na unidade do 135

Filho e do Espírito Santo. Amém. (São João Paulo II)

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Misericórdia para com as famílias feridas e frágeis

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epois de termos meditado com atenção sobre a necessidade de uma Pastoral Familiar, que tenha como base as grandes interrogações sobre o significado do ser homem e mulher, maravilhas da criação e da grande vocação a que são chamados, dos valores do matrimônio e da família cristã, neste capítulo quero propor-lhe, caro(a) irmão(ã), a reflexão evangélica da contemplação da humanidade, mesmo se esta está ou tiver sido ferida na sua história. É necessário acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber fomentar a sua busca, encorajar o seu desejo de Deus e a sua vontade de se sentir plenamente parte da Igreja, até mesmo no momento em que experimentam a falência ou vivem as mais diversas situações. É importante fazermos essa meditação, que é a medula (centro) da mensagem cristã, que contém sempre em si mesma a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que convergem em Cristo, que se Encarnou aqui em Nazaré para encontrar o homem, na sua história, na sua realidade. E em toda a Sua vida terrena, com o Seu olhar misericordioso, Jesus ensinou o Seu amor, a misericórdia pelos mais frágeis, os últimos. Sobre este propósito, podemos citar a parábola da misericórdia do Evangelho de Lucas, capítulo 15: “A ovelha perdida. A moeda perdida. O filho pródigo”. Seguindo o Mestre Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e cuidado os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e confuso, restituindo-lhes a confiança e a esperança como a luz do farol de um porto ou de uma tocha, levada ao povo para iluminar os que perderam a rota ou se encontram no meio da tempestade. Conscientes de que a maior misericórdia é dizer a verdade com amor, e quando isso é feito com proximidade, se chega à compaixão. Gostaria assim de introduzir este capítulo com o ícone bíblico da samaritana no poço de Jacó, na região de Sicar, na Samaria, narrado no Evangelho de São João, capítulo 4. Um encontro desejado por Jesus, no qual aquela mulher tomou consciência da sua própria identidade sem se sentir julgada e nem mesmo condenada. Nesta passagem, podemos fazer a seguinte reflexão: um Deus misericordioso não se procura, nem mesmo se cria... Mas é Ele que nos ama por primeiro, como afirma o mesmo evangelista São João: “Porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). E Ele no Seu amor nos procura, nos perdoa e nos ajuda a conduzir um percurso de humanização na direção do nosso autoconhecimento e até das nossas resistências a Ele, à Sua Verdade. A samaritana vai ao poço porque tem sede, mas é Jesus que a guia na identificação 138

da sua necessidade. É Ele que pede à mulher: “Dá-me de beber” (Jo 4,7). E desse pedido nasce um diálogo que conduz aquela mulher a tomar consciência da sua verdadeira necessidade: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água” (Jo 4,15). Jesus, porém, não satisfaz imediatamente a sua necessidade, mas a conduz a falar de si, da sua história: “‘Vai chamar teu marido e volta aqui’. ‘Eu não tenho marido’, respondeu a mulher. Ao que Jesus retrucou: ‘Disseste bem que não tens marido. De fato, tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é teu marido’” (Jo 4,16-18). Jesus a leva a tomar consciência da sua identidade. Aquilo que realmente marca o coração daquela mulher é o sentir-se conhecida intimamente por Jesus, e isso, de fato, é o que ela anuncia às pessoas da sua cidade: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?” (Jo 4,29). A samaritana não tinha conduzido uma vida exemplar, e no diálogo de Jesus não temos nem mesmo uma palavra de julgamento moral, nem mesmo de condenação. As palavras de Jesus ajudam aquela mulher a refletir sobre sua vida e a dar nome às suas necessidades mais profundas. Este é o poder da Palavra; este é o poder da oração, do amor pastoral da Igreja. Ele nos ajuda a clarear o mais íntimo do nosso ser, das nossas resistências e dos nossos ídolos. Partindo assim desta pedagogia, que ousarei chamar “divina”, porque emana o perfume humano do próprio Cristo, nasce o princípio de que cada família deve ser ouvida com respeito e amor, encontrando na comunidade cristã a acolhida, a ternura. São particularmente válidas para tais situações as palavras do Papa Francisco: A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta arte do acompanhamento, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã (Evangelii Gaudium, 169).

Já na reflexão sinodal de 2014 voltou a ressoar claramente a necessidade de opções pastorais corajosas, na qual confirma de modo vigoroso a fidelidade ao Evangelho da família, ao mesmo tempo reconhecendo que a separação e o divórcio constituem sempre feridas que provocam sofrimentos profundos nos cônjuges que os experimentam e nos filhos. Parte daqui a urgência de novos caminhos pastorais, que comecem a partir da efetiva realidade das fragilidades familiares, conscientes de que, com frequência, elas são mais “padecidas” com sofrimento do que escolhidas com plena liberdade. Trata-se de situações diferentes, tanto por fatores pessoais como culturais e socioeconômicos. É necessário um olhar diferenciado, como sugeria São João Paulo II (cf. Familiaris Consortio, 84). Mas também é necessário termos consciência de que este caminho é o 139

caminho da Igreja, como já escreveu o nosso amado Papa emérito Bento XVI, antes do seu pontificado, quando ainda respondia pela Congregação da Doutrina da Fé, em uma carta aos bispos: Será necessário que os pastores e que toda a comunidade dos fiéis sofram e amem juntos com estas pessoas, e que possam assim, no peso e na carga que levam, reconhecer aquela que levava Jesus. O peso que eles levam não é dócil, nem a carga é leve, pouca, ou insignificante, mas se torna leve porque o Senhor, e junto com toda a Igreja, o compartilha.

Nesta mesma linha pastoral, Papa Bento XVI se exprimiu na convenção de Salsamaggiore, na Itália, que teve como tema: “Luz e esperança para as famílias feridas – pessoas separadas e divorciadas na realidade da comunidade cristã”, e foi a primeira convenção nacional italiana da Pastoral Familiar que tocou explicitamente o tema do acompanhamento das pessoas e das famílias que vivem a separação, com distintas situações. Mas aqui temos que reconhecer que o maior mal dos nossos tempos, e até dentro dos ambientes eclesiais, é a indiferença; aquela que nos distancia dos atuais problemas reais. Nas páginas que seguem iremos refletir algumas situações concretas que atingem a realidade da família hoje. Quero já esclarecer que não é a minha intenção dar respostas às tantas problemáticas, mas sim indicar o quanto a Igreja nos ensina, para formar dentro de nós uma atitude evangélica que modela o nosso comportamento, de modo a podermos agir como discípulos de Jesus, repetindo os Seus gestos. Dos dados evangélicos, sabemos que Jesus uma vez somente “escreveu”, e escreveu no chão, quando os fariseus trouxeram a mulher adúltera, nas proximidades do monte das oliveiras, e “não sabemos o que escreveu”, mas conhecemos bem Suas palavras dirigidas aos presentes: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7).

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Atenção àqueles que vivem no matrimônio civil ou em convivência São muitos os casais que se apresentam às nossas paróquias para pedirem o matrimônio cristão e um caminho de preparação quando já têm uma “vida conjugal”. É uma situação que requer uma reflexão ulterior para assumir um critério pastoral unitário e apropriado. Se de um lado temos que acompanhar por todo o tempo o casal que já convive e que pede o matrimônio cristão, do outro lado não podemos ceder a um geral significado de impotência em frente à propagação do fenômeno que envolve sempre mais pessoas e pelas quais a comunidade cristã tem a urgência de desenvolver uma correta e atenta ação pastoral. Assistimos de fato a uma espécie de “paralisia da vontade”, como se os grandes desejos ficassem paralisados sem conseguir construir um verdadeiro “projeto de vida”. Dificilmente as pessoas iniciam uma convivência tendo um projeto; a decisão é determinada pelas circunstâncias, assumidas pelo medo das dificuldades. Em outros casos, não é uma verdadeira escolha, mas sim um hábito que se constrói depois de uma frequência nas relações. Em algumas situações, esta paralisia é derivada do sentimento de vergonha de viver na casa dos próprios pais, na afronta de já serem adultos sem a capacidade de tomar uma decisão. Por um lado, querem conviver com a pessoa amada, por outro há o medo de se ligar a ela de modo definitivo. Em todos estes casos, é importante recordar ainda as palavras do Papa emérito Bento XVI: A indissolubilidade, antes de ser uma condição, é um dom que deve ser desejado, pedido e vivido, para além de qualquer mutável situação humana. E não penseis, segundo uma mentalidade difundida, que a convivência seja uma garantia para o futuro. Acelerar as etapas acaba por comprometer o amor, que, ao contrário, precisa de respeitar os tempos e a gradualidade nas expressões: tem necessidade de dar espaço a Cristo, que é capaz de tornar um amor humano fiel, feliz e indissolúvel.

Aqui está expressa a missão da Igreja como educadora, que acompanha, escuta e acolhe os seus filhos. Quando estes casais procuram a Igreja, ou mesmo quando uma das partes pede ajuda, temos a oportunidade de iniciar um caminho de fé com eles. São muitas as dioceses que já têm como realidade a Pastoral Familiar com esta atenção às pessoas que não são casadas na Igreja; e é comovente quando os pastores e as equipes da pastoral não esperam que estes casais procurem a Igreja, mas vão ao encontro deles. A coragem de ir para as periferias é o apelo do Papa Francisco: Deixai-vos encontrar por Cristo. O encontro com Ele vos impelirá ao encontro com os outros e vos levará em direção aos mais necessitados, aos mais pobres. Ides às periferias que aguardam a luz do

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Evangelho. Habitem as fronteiras. Isto vos exigirá vigilância para descobrir as novidades do Espírito; lucidez para reconhecer a complexidade das novas fronteiras; discernimento para identificar os limites e a maneira adequada de proceder; e imersão na realidade, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo”... Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação plena de esperança! Não deixemos que nos roubem a força missionária (cf. Evangelii Gaudium, 20).

Com estas palavras, peço permissão, caro(a) amigo(a), para fazer uma colocação que não pretende ser pessimista, mas penso que seja necessária. Na minha pequena experiência, pude constatar que nós como comunidades cristãs usamos 90% das nossas forças para assistir aqueles 10% que já frequentam e vivem a fé cristã e os ensinamentos da Igreja. Voltando ao nosso tema dos casais que convivem sem o sacramento do matrimônio, uma outra realidade a que assistimos é a multiplicação de pedidos para o sacramento do batismo para os próprios filhos, por parte desses casais, e aqui somos chamados a acolher com atenção, aproveitando esta oportunidade, uma preparação e acompanhamento de encontro com estes casais. Estes pedidos podem transformar-se em ocasiões para essas famílias serem acompanhadas gradualmente no caminho de fé e da vida sacramental, ajudando-as a fazerem a experiência de Igreja doméstica que se forma a partir do sacramento do matrimônio. É importante que o batismo dos filhos não seja realizado na mesma celebração do casamento, e que este não seja uma condição para o mesmo batismo. Aqui está o desafio, que em pedagogia vem intitulado de “risco educativo”, mas pela experiência já sabemos que um caminho de fé e conversão não passa pela obrigação ou pelo medo. Aqui é a arte do acompanhamento e da preparação das equipes de acompanhadores, na qual o primeiro instrumento que usamos na missão e no ministério de ajuda às famílias somos nós mesmos.

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Separados, divorciados não recasados Um discernimento particular é indispensável para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados. Deve ser acolhido e valorizado o sofrimento daqueles que padeceram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então, por causa dos maus tratos do cônjuge, foram obrigados a interromper a vida conjugal. O perdão pela injustiça sofrida não é fácil, mas trata-se de um caminho que com a “graça” se torna possível. Daqui deriva a necessidade de uma pastoral da reconciliação e da mediação, também através de centros de escuta especializados que devem ser criados nas dioceses. De igual modo, é preciso ressaltar que é sempre indispensável assumir, de maneira leal e construtiva, as consequências da separação ou do divórcio sofridas pelos filhos, vítimas inocentes da situação. Eles não podem ser um “objeto” a ser discutido, e devem ser procuradas as melhores formas para que possam superar o trauma da separação familiar e crescer da maneira mais tranquila possível. De qualquer modo, a Igreja deverá pôr sempre em evidência a injustiça que muitas vezes deriva das situações de divórcio. Este é um grande desafio para os pastores e para toda a comunidade cristã; quando o caminho de reconciliação é possível, ele se torna uma meta, mesmo que não seja fácil. Isto tratando-se de separados ou divorciados não recasados. A pastoral da caridade e a misericórdia tendem à recuperação das pessoas e dos relacionamentos. A experiência demonstra que, mediante uma ajuda adequada e com a obra de reconciliação da graça, uma grande porcentagem de crises matrimoniais pode ser superada de maneira satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado constituem uma experiência fundamental na vida familiar. O perdão entre os esposos permite experimentar um amor que é para sempre, que nunca passa (cf. 1Cor 13,8). No entanto, às vezes, quem recebeu o perdão de Deus tem dificuldade de encontrar a força para oferecer um perdão autêntico que regenere a pessoa. Uma atenção especial deve ser tomada no acompanhamento das pessoas divorciadas, mas não recasadas, que muitas vezes são testemunhas da fidelidade matrimonial, ou ainda quando um dos cônjuges abandonados vem com a responsabilidade dos próprios filhos, o que ocorre, em particular, com as mulheres, que assumem sozinhas a responsabilidade do lar e a educação dos filhos. Nessa realidade, basta visitarmos as nossas comunidades, e encontraremos muitas destas pessoas que encontram na Igreja, nos movimentos e associações, o refúgio e a força para levar a própria cruz com dignidade e coragem. Estas pessoas devem ser incentivadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as sustente na sua condição. A comunidade local e os pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando a situação de pobreza for grave. Mas até aqui 143

podemos dizer que estamos em frente a fragilidades, nas quais a mediação da Igreja e da inteira comunidade cristã encontra respostas e, direi ainda mais, “intervenções educativas de prevenção”. Mas existem aquelas situações, como as dos divorciados recasados, nas quais os próprios pastores e a inteira comunidade se deparam com dificuldades para encontrar soluções. Este é realmente um grande desafio, mas também aqui nos deixemos ser guiados pelo Mestre Jesus de Nazaré e pela mãe Igreja, que ama os seus filhos. Mesmo que os filhos sejam infiéis, Ele (Deus) continua fiel, porque não pode renegar a si mesmo (cf. 2Tm 2,13).

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Divorciados recasados As situações dos divorciados recasados também exigem um discernimento atento e um acompanhamento de grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que os façam se sentir discriminados, promovendo, assim, a sua participação na vida da comunidade. Cuidar deles não é, para a comunidade cristã, uma debilidade da sua fé e do seu testemunho em relação à indissolubilidade matrimonial, mas, ao contrário, precisamente neste cuidado ela exprime a sua caridade. Mas certamente o divórcio é uma fratura, um “vulnus” (ferida), no que se refere ao respeito à promessa de união feita perante Deus. Um sentimento de rompimento que habita em cada uma dessas pessoas e que se torna ainda mais insuportável quando encontram a incompreensão e, em alguns casos, até a condenação. É triste quando isto acontece nos âmbitos paroquiais, entre fiéis ou até em homilias, que, em vez de fazerem explodir o anúncio da Salvação e da misericórdia de Jesus, se transformam em expressões moralistas incapazes de suscitar esperança ou de provocar em quem escuta o desejo de um novo caminho. Como já mencionei, estas são ocasiões para provar o nosso sentimento empático (envolvimento emotivo) com o sofrimento que estes irmãos e irmãs levam consigo. E daqui surge o questionamento de que se o pecado que cometeram com o divórcio e uma segunda união seja assim tão grave que eles devam ser separados da comunidade cristã até o fim da vida. Eles devem ser considerados uma classe a parte, restando somente a aceitação de estarem às margens da comunidade eclesial? Certamente estes questionamentos não são fáceis de serem respondidos, e, como já tinha esclarecido na introdução do capítulo, esta não é a solução para estas situações tão complexas. Mas uma coisa podemos afirmar: estes nossos irmãos e irmãs, graças ao Batismo, são “filhos e filhas de Deus”; podem se aproximar da Palavra de Deus e podem desejar a união com Deus. Alguém teria a coragem ou o direito de negar-lhes isso? Certamente não podemos percorrer as várias fases nas quais a Igreja, na história, se pronunciou sobre estas situações complexas. Encontramos notícias históricas de grandes pecados cometidos que não podiam ser absolvidos, como apostasia e homicídio, e entre eles também o adultério. A posição da Igreja no cânone 8 do Concílio de Niceia (325 d.C.) declara que estes três pecados podiam ser absolvidos depois de um caminho penitencial; e depois do percurso penitencial, podiam ser readmitidos à comunhão sacramental. Do ano de 1200 em diante, foi interpretado pela Igreja, no Ocidente, que estas pessoas não seriam consideradas como adúlteras, como fala o Evangelho, mas sim viúvas recasadas (cf. G. Cerete, Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva, pp. 283-299). Hoje, temos como base o que foi estabelecido pela Familiaris 145

Consortio do ano de 1981, que sublinha a impossibilidade, da parte dos divorciados recasados, de colocarem-se em comunhão, confirmando o pronunciamento da Congregação da Doutrina da Fé do ano de 1973, que reitera a indissolubilidade do matrimônio, podendo participar da Eucaristia somente os divorciados recasados que vivem como “irmãos e irmãs” na mesma casa. E aqui respeitamos as indicações da Igreja de que os divorciados recasados não recebem a comunhão Eucarística. Porém, de alguns anos para cá, em algumas dioceses, é presente o pão abençoado no final das missas e das celebrações para aqueles que, por muitas situações, não podem participar da comunhão Eucarística. Estas práticas devem ser analisadas com cuidado, porque podem ser interpretadas como uma simulação do sacramento. Mas é realidade que muitos destes irmãos e irmãs divorciados-recasados, participando em tudo na vida das comunidades eclesiais, e em algumas realidades, participam com entusiasmo nas “lectio divina”, impulsionando reflexões em torno da Palavra de Deus. Esta é a espiritualidade de Nazaré a nos iluminar, em que Jesus, na Encarnação, veio falar sobre a humanidade ao homem; e foi exemplo daquilo que o homem é segundo aquela imagem querida por Deus. Mesmo que não tenhamos a pretensão de indicar soluções, queremos afirmar que todos os filhos de Deus, mesmo com suas incoerências e dificuldades, podem acolher esta mensagem de libertação e de Salvação que Jesus traz constantemente ao homem (humanidade). Então, Deus tem para o homem o projeto de Salvação não somente naquele tempo escatológico, mas que parte da vida cotidiana aqui nesta terra. Uma vida que no coração de Deus é a felicidade e o amor. Tudo o que Deus colocou na terra foi por amor ao homem, e isso é narrado e testemunhado com a nossa vida. Esta é a mensagem que a Igreja deve irromper, anunciado-a acima de todas as coisas. É a mensagem que o Papa Francisco exprimiu, direta e claramente, na qual chama toda a comunidade cristã à misericórdia e fala do risco de perder o perfume do Evangelho, lembrando ainda que a proposta evangélica deve ser mais simples, profunda e irradiante. Ainda, se possível, temos que analisar, chamando a atenção das pessoas para isso, as muitas realidades constatadas em situações de “nulidade” do matrimônio. Aqui a necessidade de tornar mais acessíveis e céleres, se possível totalmente gratuitos, os procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as propostas, a Igreja hoje nos indica: a superação da necessidade da dupla sentença; a possibilidade de determinar um percurso administrativo sob a responsabilidade do bispo diocesano; a iniciação de um processo sumário nos casos de nulidade notória. É necessário ainda reiterar que, em todos estes casos, é preciso averiguar a verdade sobre a validade do vínculo. Em conformidade com outras propostas, também seria 146

preciso considerar a possibilidade de dar relevância ao papel da fé dos noivos em ordem à validade do sacramento do matrimônio, conscientes de que, entre os batizados, todos os matrimônios válidos constituem um sacramento. A propósito das causas matrimoniais, a simplificação do procedimento se intenta além da preparação de suficientes agentes, clérigos e leigos com dedicação prioritária, mas requer que se realce a responsabilidade do bispo diocesano, que na sua diocese poderia encarregar consultores devidamente preparados, para aconselhar gratuitamente as partes interessadas sobre a validade do próprio matrimônio. E depois dessa densa reflexão, continuamos ainda na proximidade das famílias frágeis, com o tema dos matrimônios mistos, realidade não somente presente nos nossos países aqui do Oriente Médio, mas também na Europa e nos países da América Latina, onde o fenômeno da imigração dos povos é uma realidade a ser considerada.

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Matrimônios mistos Como já citei, nos últimos anos houve um aumento do número dos matrimônios em que um dos esposos é católico e o outro, mesmo que batizado, não é, ou até mesmo não é batizado. Tais situações requerem uma peculiar atenção pastoral, seja na preparação ao matrimônio, seja no acompanhamento das famílias depois da celebração do casamento. De fato, muitas das vezes, a realidade nos leva a encontrar a presença de diferenças na concepção do matrimônio, da vida conjugal, da educação dos filhos, da relação ao interno da família, que requerem um esclarecimento e um diálogo construtivo. Para um correto acompanhamento, é necessário a distinção entre os matrimônios celebrados entre dois batizados e aqueles celebrados entre um católico e um não batizado. O matrimônio entre um católico e um batizado tem sua raiz no comum batismo e no dinamismo da graça, que dão aos esposos a base e a motivação para exprimir na unidade a esfera dos valores morais e espirituais. Isso, contudo, não pode levar ao esquecimento das diferenças existentes. No período do namoro é fácil que estas diferenças sejam minimizadas, quando o casal pensa que o amor e a harmonia da relação podem completá-las ou resolvê-las. Torna-se, então, essencial, da parte daqueles que acompanham os casais, ajudá-los a compreender a importância das eventuais dificuldades, procurando soluções compartilhadas, em uma prospectiva de diálogo, ressaltando sempre a aproximação da comunidade cristã. A Igreja é clara em dizer: “Na preparação própria para este tipo de matrimônio, deve ser feito um esforço razoável para proporcionar um bom conhecimento da doutrina católica sobre as qualidades e exigências do matrimônio, como também para se certificar de que no futuro não se verifiquem as pressões e os obstáculos, de que até agora se tem tratado” (Familiaris Consortio, 78), que possam impedir a livre manifestação da própria fé, nas diferenças religiosas. Como parte da preparação, é oportuno convidar os noivos a instaurarem encontros com o pároco, de modo que as formalidades canônicas não sejam percebidas somente como burocracias a serem cumpridas, mas como uma ajuda ulterior para aprofundarem pessoalmente e como casal o amadurecimento sempre maior da decisão que estão tomando. Uma atenção maior é necessária quando um dos noivos não é batizado. Nestes casos, há um impedimento à celebração do matrimônio (cf. Can. 1086); este pode ser celebrado validamente somente com a dispensa do Ordinário. De fato, são muitas as diferenças da visão do matrimônio e da vida familiar, e com isso há uma maior dificuldade em cultivar e testemunhar a própria fé e educar os filhos nos princípios cristãos. Por isso, no caminho de preparação de tais casamentos, é importante ajudá-los 148

a entender as diferenças existentes, confrontando-se sobre os elementos essenciais e concordando naquilo que uma válida celebração do matrimônio requer. É evidente que em tal acompanhamento pedem-se uma consciência basilar da religião cristã e um seguimento da inspiração dos princípios conciliares do diálogo inter-religioso e da dignidade da pessoa humana. De fato, é necessário que a parte católica declare que está distante de todos os perigos que a levam a abandonar a fé (mudar de religião) e afirme a sua promessa de fazer todo o esforço para educar os filhos na fé cristã (cf. Can. 1125-1126). É necessário acrescentar, porém, que, antes mesmo do Código do Direito Canônico, o matrimônio misto encontrava a sua afirmação na Sagrada Escritura, quando a Igreja das origens não era frequentada somente pelos cristãos, mas também por cristãos casados com gentis. Acontecia que muitos deixavam a esposa ou esposo que era convertido ao cristianismo, e outros continuavam unidos. São Paulo, interpretando o Espírito do Evangelho e promovendo uma coexistência pacífica de todos os componentes da sociedade, assim se dirige aos cristãos que perguntavam como deveriam se comportar com os cônjuges pagãos. Aos demais sou eu que digo, não o Senhor: se um irmão tem uma mulher não-cristã, mas que concorda em morar com ele, não a deve despedir; e se uma mulher tem um marido não-cristão, mas que concorda em morar com ela, não o deve despedir. Pois o marido não-cristão fica santificado por uma mulher cristã, e a mulher não-cristã fica santificada por seu marido cristão. Caso contrário, vossos filhos seriam impuros; no entanto, agora, são santos (1Cor 7,12-14).

Ainda a Igreja das origens nos oferece um exemplo de como se pode viver o pluralismo das expressões da fé, com o apelo de viver a própria fé não contra os outros, mas na constante procura da comunhão, através da unificação interior, a recomposição fraterna dos conflitos e a acolhida do dom oferecido pela diversidade do outro. O momento que a realidade dos matrimônios mistos é também uma realidade da Igreja é uma oportunidade e um desafio para a Pastoral Familiar, para os pastores, na ótica da comunidade eclesial, na qual se poderia favorecer percursos e momentos de encontros entre batizados e não batizados com uma focalização de temas que podem ser ocasião de diálogo entre os cônjuges e entre as diferenças, tornando um verdadeiro exemplo para a sociedade. Continuando o tema das famílias feridas, gostaria ainda, mesmo se brevemente, de apresentar a realidade de algumas famílias que vivem a experiência de ter no seu interior pessoas com orientação homossexual. A este propósito, a Igreja ensina: Não existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimônio e a família. Não obstante, 149

os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza. “Deve evitar-se, para com eles, qualquer atitude de injusta discriminação” (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4). Ainda é importante considerar o que nos diz o Catecismo da Igreja católica: Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição (CIC,

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Terminando este rápido panorama daquelas que são as mais significativas realidades de acompanhamento pastoral das famílias frágeis e feridas, podemos dizer que o comum denominador de tudo é fazer com que quem conhece a dor da separação, da discriminação, do preconceito e do abandono possa reconhecer na sua cruz, na cruz da própria família, “o triunfo do Amor de Deus sobre todo o mal” (Bento XVI). Pai, dai a todas as famílias a presença de casais fortes e com sabedoria, que sejam fonte de uma família espontânea e unida. Pai, dai a todos os esposos uma casa onde viver na paz em família. Pai, dai a todos os filhos a graça da confiança e da esperança, e aos jovens a coragem do compromisso estável e fiel. Pai, dai a todos as famílias a força para ganhar o pão com o trabalho das próprias mãos, de poder comprazer-se na serenidade do Espírito e de manter viva a luz da fé mesmo no tempo da obscuridade. Pai, dai a todos nós a alegria em ver florescer na Igreja cristãos acreditáveis, uma sociedade mais justa e humana, um mundo que ame a Verdade, a justiça e a misericórdia. Amém!

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Repartir de Nazaré...

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a tentativa de conclusão dessas reflexões, depois de termos acolhido a presença do Senhor Jesus e da Sagrada Família, que nos acompanharam em todos os instantes da leitura deste livro, que foi e é uma peregrinação, queremos ainda indicar-lhe, caro(a) irmão(ã), que “A Escola de Nazaré” pode se tornar na sua vida uma prospectiva, um método para compreender e acolher Deus na vida cotidiana e na experiência familiar. Já no primeiro capítulo, quando iniciamos a partir de Nazaré, guiados pela “Escola do Evangelho”, fomos conduzidos pelos lugares Santos da Sua presença e por meio da Sua Palavra feita Carne aqui, o Seu Santo Espírito nos conduziu à Terra da liberdade e da promessa, e mediante ela fomos introduzidos no mistério da vida do homem e da mulher, na beleza da existência humana e a sua sublime vocação à vida, ao sacramento do amor. Na espiritualidade de Nazaré, iluminados pela Sagrada Família, pudemos recuperar o gosto pela vida ordinária, pela simplicidade das pequenas coisas, redescobrindo os valores da cotidianidade, na consciência de que aqui e nas estradas da “Galileia da vida” encontramos no “Ressuscitado” o olhar misericordioso do Pai. E mesmo se a nossa realidade é a humanidade “frágil”, aqui o mistério de Nazaré nos faz estrada segura, na qual o “Verbo se fez Carne” (do grego sarcrees), fragilidade. Sentimo-nos encontrados e desejamos este “encontro” para todos os irmãos e irmãs, em especial àqueles marcados pelas feridas da existência e da história. E temos uma meta sublime, aquela da educação da consciência, da responsabilidade das escolhas feitas, nas quais o alvo é caminhar na liberdade de “Filhos de Deus”, mesmo que esse caminhar venha a nos pedir sacrifícios para um bem maior e para a fidelidade ao amor. Somos todos chamados. A Encarnação, então, muda e transfigura a comunidade familiar, as relações familiares: paternidade, maternidade, o ser filho(a), irmandade. Espero que, depois desta reflexão, a palavra “todos” não nos cause ainda escândalo, “somos todos chamados a escolher a vida” e assim amar o Deus da vida. Por isso, retornando e repartindo de Nazaré, quero ainda afirmar que não temos soluções para todas as dificuldades que vivem as famílias hoje; mas aqui em Nazaré temos o exemplo da “oração” da Sagrada Família, que no silêncio e na vida escondida era presente na experiência humana e no operar do “Filho Jesus”, e seguindo este exemplo, queremos anunciar a todas as famílias o poder da oração em família. O programa “Em casa com a Sagrada Família”, transmitido diretamente aqui de Nazaré todas as semanas, da casa onde Jesus viveu na intimidade e aconchego da família humana, na companhia de Maria e José, foi o lugar privilegiado no qual vivemos a “Escola de Nazaré”, qual espiritualidade transmitida neste livro; e focalizando a oração 152

em família, proponho as palavras do caro amigo e apresentador Ricardo Sá, que foi hóspede no nosso programa, juntamente com sua esposa, Eliana Sá, também apresentadora. Assim damos voz a uma família que, com as palavras e o exemplo, nos fala do poder da oração. Acima de tudo, Nazaré, esta casa, é um convite à oração, e nossas famílias passam por desafios imensos. É preciso que nestes momentos nós creiamos na força da oração. Quando rezamos, nós falamos com Deus, que tudo pode nas nossas famílias hoje. A minha família, minha esposa Eliana, o Du, nosso filho, nossos pais, nossos sobrinhos, nossos irmãos vivem desafios que precisam e que podem ser alcançados em primeiro lugar por Deus através da força da oração. É preciso retomar a oração de todos os dias (a cotidianidade), buscando esta experiência que Deus quer nos dar, que é abençoar nossas famílias com toda sorte de bênçãos, de graças, mas para isso é necessário que em casa tenha alguém que reze...

E acrescentou Eliana Sá: Ao chegar na Basílica da Anunciação, entrando no lugar do início, do “Sim” da Virgem a uma missão tão grandiosa e a um desafio tão grandioso, tivemos a oportunidade, logo ao lado da Basílica, de rezar na casa da Sagrada Família, aqui onde estamos realizando o programa. Então, hoje, quando entrei aqui e tive a oportunidade de ver uma Santa Missa com tantas crianças árabes, numa língua totalmente diferente da nossa no Brasil, eu me alegrei em contemplá-las alegres e de ver o padre animando e pregando para elas, fazendo homilia. Meu coração, frei Bruno, se encheu de “esperança”. Hoje, o cenário do mundo é tão cruel e tão difícil que a imagem da família – pai, mãe, filhos – está sendo destruída. Meu coração se enche de esperança ao dizer não a este cenário. A partir de Jesus, Maria e José, a Sagrada Família, é possível que nossas famílias sejam restauradas no Amor de Deus. De que modo? Pela oração...

Realmente, seria muita pretensão pensar em uma conclusão, mas aqui de Nazaré, a todas as famílias, religiosas, religiosos, presbíteros e ministros ordenados, consagrados, envio-lhes uma mensagem da Boa Nova do Evangelho, que é a própria vida doada, e apesar de todas as dificuldades, quero repetir as palavras do anjo pronunciadas à Virgem Maria, aqui, a poucos metros de onde escrevo: “Para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Que a virgem Maria de Nazaré e São José, seu fiel esposo, guiem as nossas comunidades no acompanhamento das jovens gerações na descoberta e na acolhida da vocação. Nas páginas que seguem quero ainda convidá-los a rezar com a nossa comunidade de Nazaré, na nossa cotidianidade, na qual rezamos por todas as famílias do mundo. O texto que se segue está ainda em fase de aprovação pela Congregação do Culto Divino, e por isso não pode ser usado publicamente nas diversas comunidades, salvo sob a aprovação do próprio ordinário, mas pode ser meditado como leitura espiritual pessoal ou em família. Todas as terças-feiras, contemplamos os mistérios da vida de Jesus em 153

Nazaré, com a procissão da casa de Maria, lugar da Anunciação, até a casa da Sagrada Família, chamada casa de São José.

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Os mistérios da vida de Jesus em Nazaré I. Sinal da Cruz Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. II. Saudação Caros irmãos e irmãs, sejam bem-vindos. Ofereceremos esta nossa oração de meditação da vida de Jesus, Maria e José em Nazaré pelas famílias do mundo inteiro, para que sejam verdadeiras igrejas domésticas, e igualmente por nossas intenções particulares. III. Canto de Invocação ao Espíri to IV. Saudação à Vi rgem Maria, Mãe do “sim”, tu escutaste Jesus e conheces o timbre de Sua voz e o batimento de Seu coração. Estrela da manhã, fala-nos Dele e conta-nos o teu caminho para segui-lo na via da fé. (Bento XVI) V. Os Mi stéri os da vi da de Jesus em Nazaré P RIMEIRO MISTÉRIO: ANUNCIAÇÃO DO ANJO GABRIEL À VIRGEM MARIA Lei tura do Evangelho de Lucas 1,26-31 No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação. O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus”. Pai-nosso, ave-maria, Glória ao Pai. SEGUNDO MISTÉRIO: O ANÚNCIO A SÃO JOSÉ, ESPOSO DA BEM -AVENTURADA VIRGEM MARIA Lei tura do Evangelho de Mateus 1,20-23 Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe 156

disse: “José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados”. Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel, que significa: Deus conosco”. Pai-nosso, dez ave-marias, Glória ao Pai. T ERCEIRO MISTÉRIO: A SAGRADA FAMÍLIA , JESUS, MARIA E JOSÉ, VIVE EM NAZARÉ Lei tura do Evangelho de Mateus 2,19-23 Com a morte de Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, e disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino”. José levantou-se, tomou o menino e sua mãe e foi para a terra de Israel, e veio habitar na cidade de Nazaré para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: “Será chamado Nazareno”. Pai-nosso, ave-maria, Glória ao Pai. QUARTO MISTÉRIO: JESUS CRESCIA SUBMISSO A SEUS PAIS Lei tura do Evangelho de Lucas 2,42-52 Tendo ele atingido doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa. Acabados os dias da festa, quando voltavam, ficou o menino Jesus em Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem. Três dias depois o acharam no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. Todos os que o ouviam estavam maravilhados da sabedoria de suas respostas. Quando eles o viram, ficaram admirados. E sua mãe disse-lhe: “Meu filho, que nos fizeste? Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição”. Respondeu-lhes ele: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera. Em seguida, desceu com eles a Nazaré e lhes era submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração. E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens. Pai-nosso, ave-maria, Glória ao Pai. QUINTO MISTÉRIO: JESUS ANUNCIA O REINO DE DEUS A NAZARÉ Lei tura do Evangelho de Lucas 4,16-30 Dirigiu-se a Nazaré, onde se havia criado. Entrou na sinagoga em dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para ler. Foi-lhe dado o livro do profeta Isaías. Desenrolando o livro, escolheu a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para 157

sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor”. A estas palavras, encheram-se todos de cólera na sinagoga. Levantaram-se e lançaram-no fora da cidade; e conduziram-no até o alto do monte sobre o qual estava construída a sua cidade, e queriam precipitá-lo dali abaixo. Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se. Pai-nosso, ave-maria, Glória ao Pai. VI. Canto “Salve, Rai nha” Oremos: Ó Deus, nosso Pai, que na Sagrada Família de Nazaré nos deu um verdadeiro modelo de vida, faz que nas nossas famílias floresçam as mesmas virtudes e o mesmo amor, para que reunidos na Tua casa possamos possuir a alegria sem fim. Amém. VII. Bênção fi nal com o ícone da Sagrada Famíli a: O Senhor esteja convosco. Ele está no meio de nós. Por intercessão da Sagrada Família de Nazaré, abençoe-vos Deus todo poderoso, Pai, Filho, Espírito Santo. Amém.

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Referências bibliográficas A presente bibliografia é dividida em: fontes, magistérios (pontifício e episcopal) e estudos. Fontes Acta Synodalia Sacrosanti Concilii Oecumenici Vaticani II. Cidade do Vaticano: Typis Polyglottis Vaticanis, 1970-1990. Bibbia di Gerusalemme. Bologna: Dehoniane, 1982. Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave-Maria, 1978. Bíblia Sagrada. Brasília: CNBB. BONAVENTURA DA BAGNOREGIO. Opera omnia. Firenze: Quaracchi, 1965. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Ave-Maria, 2009. Codex Iuris Canonici. Romae: Typis Polyglottis Vaticanis, 1983. D’IPPONA , Agostino. Opera omnia, in Patrologiae cursus completus. Series latina. Paris, 1841-1864, vol. 32-47. L’archivio Storico della Custodia di Terra Santa. Milano: Edizioni Terra Santa, 2012, v. I ,II e III. LYON, Ireneu de. Adversus Haereses. Ed. Crítica Adelin Rousseau e Louis Doutreleau. Paris: CERF, 2008. (Sources Chrétiennes.) Novum Testamentum graece et latine. Korrigierter Druck: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997. Magistério BENTO XVI. “Familia et Vita”, Rivista quadrimestrale del Pontificio Consiglio per la Famiglia. Roma, 2012. ______. Lettera ai vescovi della chiesa cattolica circa la ricezione della Comunione Eucaristica da parte dei divoziati risposati, 14 set. 1994, n.10. CONFEREN ̂ CIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Orientações pastorais sobre o matrimônio. Itaici, 1978. CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. Considerazioni circa i progetti di riconoscimento legale delle unioni tra persone omosessuali. Roma: Editrice Vaticana, 2003. JOÃO P AULO II. Familiaris Consortio. Exortação apostólica, Acta Apostolicae Sedis 73, vol. 7, 1981, p. 81-191, n. 1522-1810. ______. Gratissimam Sane, Carta apostólica, Acta Apostolicae Sedis 86, vol. 14, 1994, p. 158-344. 160

______. Mulieris Dignitatem. Carta apostólica, Acta Apostolicae Sedis 80, vol. 11, 1988, p. 1653-1729, n. 2379-2440 ______. Novo Millennio Ineunte. Lettera Apostolica. Roma: Casa Editrice Vaticano, 2001. ______. Redemptoris Custos. Exortação apostólica, Acta Apostolicae Sedis 82, vol. 11, 1990, p. 5-34, n. 2379-2440. ______. Redemptoris Mater. Carta encíclica, Acta Apostolicae Sedis 79, vol.10, 1987, p. 361-433, n. 1272-1421. JOÃO XXIII. Le Voci. Lettera apostolica del 19 marzo 1961, Acta Apostolicae Sedis 53, 1961-1962, p. 205-2013. ______. “Mensagem na solenidade da Sagrada Família”. Discurso do dia 11 jan. 1959. Discursos, mensagens, entrevistas do Santo Padre João XXIII. vol. I, 1958-1959, p. 113-114. P APA FRANCISCO. Evangelii Gaudium, Exortação Apostólica. São Paulo: Paulinas, 2013. ______. Famiglia vivi la gioia della fede. Pontificio Consiglio per la Famiglia. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2013. ______. Lettere alle famiglie. Pontificio Consiglio per la Famiglia. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2014. P AULO VI. A Nazareth la prima scuola del Vangelo, Allocuzione del 5 gennaio 1964, in Insegnamenti, vol. II, 1964, p. 23-27. ______. Humanae Vitae. Carta encíclica, Acta Apostolicae Sedis 60, vol. 3, 1968, p. 481-503, n. 587-617. ______. Lumen Gentium. Constituição Dogmática em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2004. ______. Marialis Cultus. Exortação apostólica, Acta Apostolicae Sedis 66, vol. 5, 1974, p. 113-168. ______. Nobis in Animo. Esortazione Apostolica. Roma: Libreria Editrice Vaticano, 1974. P ONTIFICIO CONSIGLIO PER LA FAMIGLIA . Enchiridion della Família e della vita, Documenti magisteriali e Pastorali su famiglia e Vita (2004-2011). Città del Vaticano: Edizioni Dehoniane, 2012. SÍNODO DOS BISPOS. Mensagem às famílias cristãs no mundo contemporâneo, Cartas pastorais 1980-1981, col. 1099-1106. ______. Os desafios Pastorais sobre a Família no contexto da Evangelização, III Assembleia Geral Extraordinária, Relatio Synodi. Cidade do Vaticano: Casa Editrice Vaticano, 2014. 161

Estudos AA.VV. Guida di Terra Santa. Jerusalém: Edizioni di Terra Santa, 1992. ______. Nazaret. Jerusalém: Franciscan Printing Press, 1995. BISI, M. La vita affettiva della persona credente. Roma: Edizioni AdP, 2010. BULTMANN, R. Le tre lettere di Giovanni. Brescia: Paideia, 1977. CERETE, G. Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva. Bologna: EDB, 1998. GAMBINI, P. Psicologia della Famiglia. Milano: Franco Angeli, 2007. MARTINELLI, P. Vocazioni e stati di vita del Cristiano, Riflessioni sistematiche in dialogo con H. U. Von Balthasar. Roma: Edizioni Collegio S. Lorenzo da Brindisi, 2001. P OLI, G.; CREA , G. Tra Eros e Agape, nuovi intinerari per un amore autentico. Roma: Editrice Rogate, 2009. ROSSANA , C.; DANIELI, M. Intinerari di coppia per il terzo millennio. Roma: Edizioni AdP, 2010. SPREAFICO, S. Família cristã, Igreja doméstica. São Paulo: Loyola, 1992. STRAMARE, T. San Giuseppe nel mistero di Dio. Casale Monteferrato: Piemme, 1992.

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1. Ícone da Sagrada Família venerado no Santuário da Sagrada Família em Nazaré

163

2. Panorâmica da cidade de Nazaré

3. Fr. Bellarmino Bagatti, OFM, franciscano fundador do Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, arqueólogo que escavou o povoado de Nazaré em 1955, antes do início da construção da atual Basílica da Anunciação

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4. Mons. Guido Marini, prefeito de cerimônia do Santo Padre, com Ir. Maria Pasquarelli e frades de Nazaré em clima de fraternidade e família na Basílica da Anunciação – Nazaré – 2014

5. Base da coluna da casa de Nossa Senhora que tem a incisão do início do cristianismo: “Ave Maria”, em grego

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6. Gruta da Anunciação – Casa de Nossa Senhora, lugar santo da Encarnação

7. Fonte de Maria, na igreja ortodoxa de São Gabriel

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8. Pia batismal na cripta do Santuário da Sagrada Família

9. Família Karam, de Nazaré: pai Habib, mãe Gosayna, Christopher, Matthew, Serene e Katrina

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10. Vitral do Santuário da Sagrada Família, com o matrimônio de São José e Nossa Senhora

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11. Irmã Margherita De Cesare (das irmãs de Caridade da Imaculada Conceição de Ivrea), no programa “Em casa com a Sagrada Família”, gravado na cripta do Santuário da Sagrada Família, em Nazaré

12. André Luiz da Rosa e Eliziane Alves, da comunidade Canção Nova, no programa “Em casa com a Sagrada Família”. Com os cantores Fr. Luca Panza, OFM, e Ana Paula Giffoni, da comunidade Shalom

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13. Padres da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Brasil, durante o retiro espiritual na Terra Santa, em outubro de 2014

14. Pe. Wagner Toledo Moreira e Pe. Antonio Augusto da Silva Bezerra (da Arquidiocese do Rio de Janeiro) no programa “Em casa com a Sagrada Família”

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15. Pe. Rogério Alves Gomes e o seminarista Paulo Nogueira Martins Júnior (da Diocese de Uruaçu, Brasil) no programa “Em casa com a Sagrada Família”

16. Equipes de Nossa Senhora, Uruaçu (GO), Brasil, no programa “Em casa com a Sagrada Família”

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17. Cardeal Dom Lorenzo Baldisseri, secretário geral do Sínodo dos Bispos, no programa “Em casa com a Sagrada Família”

18. Fr. Sinisa Srebrenovic,

OFM,

franciscano da Custódia da Terra Santa, com Fr. Sesar Melanius Jordan, estreia do programa “Em casa com a Sagrada Família”

172

OFM,

na

19. Fr. Pierbattista Pizzaballa,

OFM,

custódio da Terra Santa, no programa “Em casa com a Sagrada Família”

20. Cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis, arcebispo de Aparecida e moderador da Assembleia Geral do Sínodo sobre a Família 2014/2015, no programa “Em casa com a Sagrada Família”

173

21. Quadro antigo da Sagrada Família, venerado dentro do Santuário da Sagrada Família em Nazaré

22. Vista noturna da Basílica da Anunciação, Nazaré

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23. Pastoral da Família, com os seminaristas e educadores do seminário São José da Diocese de Uruaçu – Goiás, na ocasião da acolhida da relíquia da casa de São José – 2014

24. Ingresso solene do cardeal Lorenzo Baldisseri na Basílica da Anunciação – Nazaré, em ocasião do simpósio da Igreja da Terra Santa em preparação à assembleia ordinária do Sínodo da Família de 2015

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25. Inscrição em latim que se encontra na cripta da casa da Sagrada Família: “Hic erat subditus illis” (Aqui eralhes submisso)

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1 OFM: Ordem dos frades menores (franciscanos).

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30 minutos para mudar o seu dia Mendes, Márcio 9788576771494 87 páginas

Compre agora e leia As orações neste livro são poderosas em Deus, capazes de derrubar as barreiras que nos afastam Dele. Elas nos ajudarão muito naqueles dias difíceis em que nem sequer sabemos por onde começar a rezar. Contudo, você verá que pouco a pouco o Espírito Santo vai conduzir você a personalizar sempre mais cada uma delas. A oração é simples, mas é poderosa para mudar qualquer vida. Coisas muito boas nascerão desse momento diário com o Senhor. Tudo pode acontecer quando Deus é envolvido na causa, e você mesmo constatará isso. O Espírito Santo quer lhe mostrar que existe uma maneira muito mais cheia de amor e mais realizadora de se viver. Trata-se de um mergulho no amor de Deus que nos cura e salva. Quanto mais você se entregar, mais experimentará a graça de Deus purificar, libertar e curar seu coração. Você receberá fortalecimento e proteção. Mas, o melhor de tudo é que Deus lhe dará uma efusão do Espírito Santo tão grande que mudará toda a sua vida. Você sentirá crescer a cada dia em seu interior uma paz e uma força que nunca havia imaginado ser possível.

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Devocionário a Nossa Senhora de Fátima Nova, Comunidade Canção 9788576776239 104 páginas

Compre agora e leia Dirigido a católicos, em geral, esse "poderoso livrinho” tem a missão de mostrar quão bela é a devoção à Nossa Senhora de Fátima e quais as bênçãos que são recolhidas por aqueles que abraçam a vida de oração diária e a renúncia à toda influência do maligno. O devocionário conta também um pouco da história dos três pastorinhos que tiveram a graça de receber as visitas de Nossa Senhora, em Fátima: Lúcia, Francisco e Jacinta. Impulsionados pela Virgem, os três mostraram ao mundo o quanto podemos fazer para desagravar seu coração, e oferecer a ela as flores da conversão do mundo. Três pastorinhos - Lúcia, Francisco e Jacinta - receberam a graça da visitação de Nossa Senhora, que lhes deu a missão de divulgar a devoção que consolaria seu Imaculado Coração. Vestida de branco e mais brilhante que o sol, ela realizou milagres e ordenou: "Orai, orai muito. Rezem o terço todos os dias, para alcançar a paz para o mundo e o fim da guerra.” Através deste devocionário, com suas reflexões e novenas, e abraçando uma vida de oração diária, tenha a certeza de que você também receberá - pelas mãos de Nossa Senhora de Fátima - os frutos da verdadeira conversão e a paz para você e sua família.

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Batismo Aquino, Prof. Felipe 9788576776512 96 páginas

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Penitência Aquino, Prof. Felipe 9788576776475 112 páginas

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Devocionário a Santo Antônio Nova, Comunidade Canção 9788576776772 104 páginas

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Index Apresentação Introdução Tudo tem início em Nazaré

6 9 13

A cidade de Nazaré na Galileia As ruínas do povoado de Nazaré A Gruta da Anunciação A casa de São José, casa da Sagrada Família de Nazaré A sinagoga de Nazaré O monte do precipício Santuário de Santa Maria do Tremor

Nazaré, escola do Evangelho

16 18 19 21 23 25 26

29

O silêncio Anunciação, escola das relações Vida ordinária, escola de cotidianidade Nazaré, escola de humanidade Escola do trabalho

31 34 36 39 43

Nazaré, pedras amadas e vivas

45

Os franciscanos em Nazaré O Beato Charles de Foucauld em Nazaré Uma família de Nazaré Viver Nazaré

A Sagrada Família, dom e projeto de Salvação A participação da Família de Nazaré na história da Redenção O matrimônio de Maria e José de Nazaré Maria e José, “dom” um para o outro O dom “esponsal” de Maria e José: a realização do serviço a Cristo e à Sua Igreja

Sagrada Família de Nazaré, inspiração da Igreja doméstica São José, uma paternidade “desafiadora” Maria, uma maternidade eclesial Jesus, Maria e José, ícone do amor Trinitário

Sagrada Família, modelo de todas as vocações 188

48 50 53 57

58 61 63 66 68

71 75 78 81

83

Um discernimento decisivo entre “celibato pelo Reino e Matrimônio” O amor esponsal na vida celibatária pelo Reino dos Céus e na virgindade Vocação ao matrimônio

Verdade e beleza da família

87 90 93

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O anúncio do Evangelho da família Matrimônio e família na Bíblia Abertura ao dom da vida O desafio da educação dos filhos O papel dos avós na educação dos netos

Prospectivas para uma Pastoral Familiar no exemplo da Sagrada Família

101 103 108 111 113

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Orientar os nubentes (noivos) ao caminho do matrimônio Passos do percurso de preparação Acompanhamento nos primeiros anos de matrimônio Melhorar a comunicação em família Preparação dos presbíteros para a Pastoral Familiar

122 124 127 130 133

Misericórdia para com as famílias feridas e frágeis

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Atenção àqueles que vivem no matrimônio civil ou em convivência Separados, divorciados não recasados Divorciados recasados Matrimônios mistos

Repartir de Nazaré... Os mistérios da vida de Jesus em Nazaré Referências bibliográficas

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141 143 145 148

151 155 159

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