monumentos #1

June 3, 2016 | Author: Isa Gomes | Category: Types, Instruction manuals
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monumentos #1 revista semestral de edifícios e monumentos setembro de 1994 issn 1645-4413...

Description

R E V I S TA

SEMESTRAL

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EDIFÍCIOS

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MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS, TRANSPORTES E COMUNICAÇÕES

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MONUMENTOS N.o 1 Setembro 1994

MONUMENTOS (Edição em CD-ROM) N.o 1 Abril 2002

Directora Margarida Alçada

Coordenação da edição Andrea Azevedo e Cardoso

Directora Adjunta Maria Inácia Teles Grilo

Produção Critério – Produção Gráfica, Lda.

Conselho Editorial Alexandre Alves Costa Isabel Corte-Real José Fernando Canas José Manuel Fernandes Paulo Pereira Víctor Serrão

Fabricação/Duplicação MPO – Portugal

Redacção Andrea Azevedo e Cardoso Textos Ana Rosa de Freitas António Cerdeira Francisco Hipólito Raposo João Bénard da Costa João Ceregeiro Joaquim C. S. da Silva Jorge Almeida José D. Rodrigues José Fernando Canas Manuel J. Gandra Margarida Alçada Maria do Rosário M. Moura Maria Fernandes Rafael Moreira Rosário Gordalina Teresa Leonor Vale Victor Eleutério Edição e Propriedade Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Praça do Comércio 1149-005 Lisboa Telefone 21 881 7042/49 Fax 21 888 0249 Concepção Gráfica Antevisão Os artigos são da inteira responsabilidade dos respectivos autores. Os textos e as imagens desta publicação não podem ser reproduzidos sem autorização prévia da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.

Preço: 5g Tiragem: 2000 exemplares ISSN: 1645-4413 Depósito Legal n.o 180 562/02

MONUMENTOS

EDITORIAL

MONUMENTOS – Publicação de periodicidade semestral da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, materializada entre os limites do possível e do desejado, constitui reflexo, pretendido visível, de renovação permanente.

A par da informação sobre a actividade dos serviços e da manutenção de uma agenda de cariz cultural, esta publicação está vocacionada para a abordagem de temas relativos ao património construído.

Proporcionar e promover o diálogo entre os diferentes discursos, que em cada número os

vários artigos irão retratar, reflectindo a perspectiva de cada autor, é contribuir para uma mais alargada e enriquecida leitura da história das construções.

Um mais profundo conhecimento das técnicas de construção, dos materiais utilizados, das

razões de articulação e ordenação dos espaços construídos, fortalecerá o elo que historicamente nos liga ao passado e projectará no futuro os valores culturais que representamos, ajudando-nos a construir novos MONUMENTOS.

Director-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais

MONUMENTOS

3 Setembro 94

ÍNDICE

8

Da cor ao tom José Fernando Canas

10

Finalmente a cor do sol poente no Terreiro do Paço Francisco Hipólito Raposo

11

Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço

Pequenas notas sobre a empreitada

14

Pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço Jorge Almeida

18

O valor estético da cor de uma praça de Lisboa Rosário Gordalina

25

O painel de São Luís do Maranhão Rafael Moreira

29

Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio Teresa Leonor Vale

35

A Praça do Real Arco demonstrada Manuel J. Gandra

41

Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu Victor Eleutério

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António Cerdeira

MONUMENTOS 4 Setembro 94

O Palácio de Estói

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Projecto de recuperação e adaptação a residência oficial

Maria Fernandes

O Jardim de Estói

54

Ou o romantismo na paisagem

João Ceregeiro

A Igreja de São Pedro em Dois Portos, Torres Vedras

62

Restauro do tecto em madeira

Ana Rosa de Freitas

Limpeza da Torre dos Clérigos

68

Estudos realizados e trabalhos executados

José D. Rodrigues ▪ M.ª do Rosário M. e Moura ▪ Joaquim C. S. da Silva

Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM)

76

A “Torre do Tombo” da memória do século XX

João Bénard da Costa

O Inventário do Património Arquitectónico Margarida Alçada

79

Intervenções no Património Arquitectónico

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MONUMENTOS 5 Setembro 94

DGEMN. Cabrita Henriques, anos 40

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Da cor ao tom José Fernando Canas*

Notas 1 – Ver artigo da Dr.a Rosário Gordalina nesta revista. 2 – Prof. José-Augusto França, Prof. Rafael Moreira, Francisco Hipólito Raposo, Arq.o Pinho Lopes, do IPAAR, Arq.o Raul Cerejeiro e Arq.o Sérgio de Melo, da Câmara Municipal de Lisboa, com alguns dirigentes da DGEMN (Eng.o Vasco Martins Costa, director-geral, Arq.o Nuno Beirão, Eng.o António Cerdeira, Arq.o Jorge Brito e Abreu, Dr.a Margarida Alçada e Arq.o José Fernando Canas).

Quase vinte anos depois da última pintura geral das fachadas do Terreiro do Paço, voltou a colocar-se o problema de uma nova pintura e de uma cor apropriada para esta magnífica praça. Dado que os rebocos se encontravam em bom estado de conservação, muito embora, e infelizmente, fossem de cimento e não de cal, não se afigurou necessário nem económico proceder à sua substituição. Este dado viria assim condicionar a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais no que respeita ao tipo de pintura a utilizar, já que a caiação se tornava impossível ou muito difícil, tendo em conta que estávamos em presença, precisamente, de argamassas de cimento e não de cal. As transparências e a textura que se conseguem com a caiação, adicionando ou não pigmentos naturais (ocre, almagre, cobalto, etc.), de modo algum são possíveis com tintas plásticas. Paralelamente, o respectivo “envelhecimento”, causado pela poluição atmosférica e pela acção dos raios ultravioleta, é também assaz diferente (uma parede caiada “envelhece” com muito maior nobreza). Estando vedada, por exclusão de partes, a utilização da cal, restava escolher o tipo de tinta e a cor a aplicar. Ciente da delicadeza da opção, procedeu a DGEMN a uma exaustiva investigação1 com vista a determinar as possíveis cores originais da Praça do Comércio, e também as opções cromáticas tomadas ao longo dos últimos dois séculos, chegando-se rapidamente à conclusão que a cor original seria algo entre o MONUMENTOS

amarelo e o ocre, numa das suas variantes. Ao mesmo tempo, efectuou-se uma prospecção no mercado a fim de se encontrar uma tinta que não só não “envelhecesse” rapidamente como também se aproximasse, tanto quanto possível, da textura e da luminosidade da cal. Resolvido este último problema, restava determinar o tom mais apropriado. Numa primeira selecção afinaram-se sete amostras, tomando como referência alguns ocres naturais de proveniências distintas, mas de luminosidade e cromatismos diferentes. A fim de que a escolha definitiva fosse o mais aleatória possível, convidou a DGEMN algumas personalidades e outras instituições com responsabilidades na defesa do património a pronunciarem-se sobre as amostragens referidas, as quais foram pintadas nos nembos da fachada voltada a sul, ao lado do arco da Rua Augusta. Esta comissão, composta por doze elementos2, viria a seleccionar, quase por unanimidade, o tom n.o 4, que acabou naturalmente por ser o eleito. "

*Director Regional dos Monumentos de Lisboa

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DGEMN. João Cabral, 1994

Da cor ao tom

Fig. 1 As sete amostras da primeira selecção.

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Finalmente a cor do sol poente no Terreiro do Paço Francisco Hipólito Raposo

Confesso que foi com grande emoção e alegria que recebi o convite do director-geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, engenheiro Vasco Martins Costa, para integrar a equipa da selecção da nova cor do Terreiro do Paço. Foi pela grande sensibilidade desse director que fui com certeza seleccionado para esse importante acontecimento, já que, durante muitos anos, eu me batera pela cor que lhe foi sempre devida, o ocre do sol em ouro a pôr-se, e confirmado por vários testemunhos do passado, entre os quais o de Ribeiro Guimarães em Summario de Vária História, em que na página 213 (I vol.) diz: “(…) e a alvenaria foi pintada de amarello, côr que sempre se lhe tem conservado”. Para além de várias curtas referências que fiz ao caso, como no Expresso, que não vale a pena referenciar, escrevi sobre o tema e sob a “Bandeira do Património” no Independente, “Uso e abuso do Pink” (22/03/1991), “O ocre do Terreiro” (05/04/1991), “Proposta à Câmara” (23/07/1993), e “Ainda a estátua de D. José” (06/08/1993), onde defendo sempre, nesses textos, a cor ocre para as fachadas do Terreiro do Paço. Mas é claro, podia eu ter continuado a bradar no deserto e ser excluído dessa excelente equipa, não fosse a simpatia desse director, que aliás já mo afirmara anteriormente no seu gabinete e na presença do arquitecto Jorge de Brito e Abreu, que a nova cor seria na cor do ocre. Rejubilei na altura, mas nunca supus participar no elenco da escolha em que participaram várias entidades de assinalada competência, como os professores José-

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-Augusto França e Rafael Moreira, Arq.o Pinho Lopes, em representação do IPAAR, arquitectos Raul Cerejeiro e Sérgio de Melo, da Câmara Municipal de Lisboa e, pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, o Eng.o Vasco Martins Costa, Arq.o Nuno Beirão, Eng.o António Cerdeira, Arq.o Jorge de Brito e Abreu, Dr.a Margarida Alçada e Arq.o José Fernando Canas. E não houve grande perda de tempo com a maravilhosa cor com o destino de abrilhantar a praça. Quase por unanimidade foi a cor n.o 4 a escolhida e é a que porá laivos de ouro ao entardecer e em dia soalheiro na nossa mais bela praça e uma das mais belas do mundo. Só que a exuberância e o esplendor – insisto – não ficam na verdade completos sem que a estátua de D. José mais o seu cavalo Gentil (escolhido pelo marquês de Marialva) não fiquem também a refulgir em ouro. É o contraste, o pendant ali necessário, e o que realmente aconteceu no dia da inauguração da praça, quando 100 fascineiras em cima de um praticável, segundo o testemunho de um padre, munidas de pedra pomes e de camurças puliram a estátua que brilhava como ouro. O ouro que faltava para contrastar com a tripla fachada pombalina, dourada ela também. Talvez um dia a Câmara se resolva… E para além de todo este meu regozijo nada mais tenho a acrescentar, além de plenamente felicitar os Monumentos Nacionais por terem tomado esta medida tão justa e acertada. Porque, para remate deste meu parecer, nada melhor do que ir buscar o sensacional parecer de Rafael Moreira, apenso ao eficiente processo que me foi enviado, e onde mais uma vez aprendemos uma lição de técnica e de História. Rafael Moreira, de quem tive a honra de ser parceiro logo no início desta cruzada e graças também à evidência visual do painel de São Luís do Maranhão, descoberto por ele, que revelava a cor de origem e que a tecnologia da Fundação Gulbenkian e da equipa brasileira tão bem soube recuperar. Graças à atitude certeira dos Monumentos Nacionais, o Terreiro do Paço, com aquela magnífica cor de ocre amarelado, vai-se apresentar em todo o seu esplendor refulgindo em ouro, soberbamente engalanado, como há muito tempo não se via assim. "

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Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço Pequenas notas sobre a empreitada António Cerdeira*

Há bastante tempo que se constata a necessidade de proceder à limpeza e pintura das fachadas do conjunto monumental do Terreiro do Paço. Assim, elaborou-se o projecto para a intervenção e diligenciou-se para dotar o orçamento da DGEMN das verbas necessárias. Quanto às verbas, há que referir os orçamentos quase sempre escassos na maioria dos organismos públicos. Para resolver esta questão tentou-se que todas as entidades instaladas no Terreiro do Paço comparticipassem, proporcionalmente em função da área das suas fachadas, e também de acordo com as suas disponibilidades orçamentais. É deste modo que está a ser suportado o encargo de cerca de 110 mil contos, sendo várias as entidades a contribuir para o seu pagamento. Quanto ao projecto, pode afirmar-se que é relativamente simples, consistindo essencialmente em medições, mas contendo duas questões fundamentais, que são: – a limpeza das cantarias; – a definição da cor. A limpeza das cantarias é uma questão delicada em qualquer monumento e, por maioria de razão, no caso presente, dado o avançado estado de alteração das mesmas, em algumas áreas, e ainda a quantidade e a natureza da sujidade. No projecto posto a concurso previu-se a limpeza com recurso a jacto de água, mas cedo se MONUMENTOS 11 Setembro 94

Fig. 1 Cais das Colunas. Colocação de esfera de lioz.

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DGEMN. João Cabral, 1994

DGEMN. 1994

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DGEMN. João Cabral, 1994

DGEMN. 1994

Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço

Fig. 2 Arcadas antes da limpeza. Fig. 3 Arcadas depois da limpeza. Fig. 4 Pormenor da cantaria antes da limpeza. Fig. 5 O mesmo pormenor depois da limpeza.

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constatou que o processo não dava os resultados esperados nas áreas mais sujeitas à acção exterior, nomeadamente chuvas, poeiras e poluição atmosférica e rodoviária. Houve que pensar em outros processos complementares, ouvindo-se pessoas e organismos com muita experiência neste domínio. Um dos organismos consultados foi o Instituto José de Figueiredo, que se disponibilizou totalmente, tendo-se deslocado um dos técni-

cos ao Terreiro do Paço e informado que em algumas áreas se poderia utilizar o jacto de água e sílica, sendo esta de uma granulometria perfeitamente definida. Tem sido esta a orientação seguida na limpeza das cantarias, isto é, o recurso ao jacto de água e água e sílica a baixa pressão. Refere-se ainda que sobre esta questão – limpeza das cantarias – muitas firmas, que comercializam equipamento e produtos para

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DGEMN. João Cabral, 1994

este tipo de trabalho, têm feito diversas acções de divulgação no sentido de mostrarem que os seus produtos são os ideais para resolver esta questão, ou seja, proceder à limpeza das cantarias sem as danificar, ou danificando-as minimamente e mantendo a marca do tempo, a patine. A definição da cor foi também uma das questões tratadas com todo o cuidado. Primeiramente foi constituído um grupo de trabalho interno da DGEMN que, com base nos elementos históricos disponíveis, tentou definir os principais parâmetros orientadores. Paralelamente foram ouvidas pessoas ligadas a entidades com intervenção neste domínio, ou por si sós ligadas ao património arquitectónico. Dado que a opinião francamente maioritária era pela cor amarela, foram feitas amostras com diversas tonalidades, tendo-se obtido grande consenso em relação a uma delas, que é, como é óbvio, a que está a ser aplicada. Refira-se, a propósito, a opinião francamente favorável da comunicação social, nomeadamente a imprensa, sobre a nova cor do Terreiro do Paço. Talvez de menor importância, mas que podem ser consideradas como apontamentos finais de reportagem, referem-se ainda as resoluções de pequenos problemas, tais como: – a substituição das janelas no primeiro andar da ala oriental, pois os caixilhos não tinham as mesmas dimensões dos restantes; – a aplicação de material nas portadas principais com a finalidade de não permitir a permanência de pombos nesses locais. – a colocação de uma esfera em lioz, numa das colunas do Cais das Colunas do Terreiro do Paço. "

DGEMN. João Cabral, 1994

Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço

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* Director Regional dos Edifícios de Lisboa

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Figs. 6 e 7 Pormenores do material colocado para impedir a permanência de pombos.

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Pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço Jorge Almeida* Existem tintas concebidas e fabricadas segundo modernas tecnologias que apresentam características adequadas à protecção e decoração do património histórico edificado. Na selecção da tinta e cor para pintura do Terreiro do Paço participou também o fabricante, em regime de prestação de assistência técnica à aplicação dos seus produtos. 1. Introdução A protecção por pintura de edifícios constitutivos do património histórico envolve a selecção de revestimentos que satisfaçam critérios de protecção e decoração, mas que mantenham o aspecto das superfícies o mais próximo possível do original. Os materiais de revestimento outrora usados, mesmo que sejam conhecidos, não estão, hoje em dia, facilmente disponíveis e pressupunham quase sempre acções de manutenção frequentes. Existem actualmente tintas fabricadas com tecnologia recente que, satisfazendo apertados critérios de apreciação, conferem aos substratos o aspecto tido como original, sem o inconveniente da necessidade de manutenção tão frequente. Neste texto far-se-á uma referência ao critério de selecção da tinta para a pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço.

2. Generalidades sobre tintas De acordo com a Norma Portuguesa NP42-1982 (TINTAS e VERNIZES – Terminologia. Definições) define-se tinta como “compoMONUMENTOS

sição pigmentada líquida, pastosa ou sólida que, quando aplicada em camada fina sobre uma superfície apropriada, no estado em que é fornecida, ou após diluição ou dispersão em produtos voláteis, ou fusão, é convertível, ao fim de certo tempo, numa película sólida, contínua, corada e opaca”. A maior parte dos tipos de tintas pode descrever-se, de modo simplificado, como soluções ou dispersões de uma substância filmogénea – a resina – num solvente volátil, tendo dispersos neste meio as partículas sólidas dos pigmentos. A resina (mais propriamente designada por ligante ou veículo fixo) é responsável por características marcantes da tinta, tais como aderência ao substrato, processo de formação de película e suas propriedades mecânicas. Os pigmentos são partículas sólidas, finamente dispersas no veículo, que transmitem à tinta, entre outras características, a cor e a opacidade (ou poder de cobertura), isto é, a capacidade de ocultar o substrato sobre o qual é aplicada. Os solventes são compostos líquidos usados para solubilizar a resina e facilitar a aplicação da tinta. Podem ser compostos orgânicos ou 15 Setembro 94

Pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço

água, no caso particular das tintas de base aquosa. Durante e após a aplicação, o solvente evapora, restando um filme seco constituído por uma fase contínua de resina solidificada, encapsulando as partículas sólidas dos pigmentos. Num dos grupos principais de tintas, designadas por tintas de secagem física, e onde se incluem as celulósicas, acrílicas e de borracha clorada, o veículo é constituído por um polímero de elevada massa molecular que se encontra dissolvido no solvente. O polímero evolui para a forma de um filme sólido à medida que o solvente se evapora durante a secagem da tinta. Um caso particular deste é o das tintas de dispersão aquosa, vulgarmente conhecidas por tintas de água. O veículo é constituído por uma dispersão (e não uma solução) do polímero em água, e a formação do filme sólido dá-se por coalescência das partículas dispersas à medida que a água se evapora. No outro grupo de tintas, de que fazem parte as alquídicas, epoxídicas e de poliuretano, a formação do filme sólido ocorre por uma reacção química, paralelamente à evaporação do solvente. Essa reacção envolve a resina e um outro reagente, que é o oxigénio do ar nas alquídicas, a humidade do ar, nos poliuretanos (de um componente) e um endurecedor misturado imediatamente antes da utilização, no caso das epoxídicas e poliuretanos (de dois componentes). Estas tintas designam-se por tintas de reacção (ou cura) química. Importa fazer notar uma diferença importante entre estes dois grupos. A película das tintas de secagem física fica sensível ao solvente de onde se separou. A consideração das tintas de dispersão aquosa como um caso especial deste grupo confirma-se agora, dado que a película sólida resiste à água. A película das tintas de reacção química, após cura completa, resiste ao solvente de onde se separou. Esta diferença de comportamento dos dois grupos de tintas reflecte-se na prática de pintura de manutenção. As tintas de secagem física são mais fáceis de repintar, envolvendo

operações de preparação menos complicadas relativamente às de reacção química.

3. A solução 3.1. A tinta seleccionada A análise das condições particulares desta obra fez recair a selecção na tinta HEMPATEX 56810. Trata-se de uma tinta de grande capacidade de penetração em substratos porosos, cujo veículo é uma resina sintética e cuja película se forma por um mecanismo de secagem física. Pode ser aplicada directamente a betão ou reboco ou, como neste caso, sobre algumas outras tintas, desde que se encontrem bem aderentes à base. Mediante preparação de superfície adequada pode ainda aplicar-se sobre superfícies caiadas. A aplicação nesta obra foi efectuada com trincha e rolo. Todavia, a tinta está preparada para aplicação com pistola tipo airless, permitindo espessuras mais elevadas por demão e maior rapidez de execução da pintura. A secagem processa-se em cerca de duas horas, variando ligeiramente este limite em função das condições ambientais. Podem iniciar-se acções de repintura com a mesma tinta logo após a fase de secagem.

3.2. Características da película Uma das funções da película formada é constituir uma barreira entre a superfície a proteger e o meio envolvente, quase sempre agressivo. Para que desempenhe bem essa função, a película deve aderir perfeitamente à base existente, o que implica que as operações de preparação de superfície tenham de ser eficazes na remoção de, nomeadamente, poeiras, incrustações diversas e material gorduroso. No caso em análise, os agentes agressores são sobretudo os raios ultravioleta da luz solar e a água, que, caso tenha acesso ao reboco, o vai humedecendo levando consigo agentes agressivos presentes no ar po-

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Pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço

luído e contribuindo também para alterações no comportamento térmico das paredes. Resulta daqui a necessidade de se usar uma tinta cuja película satisfaça critérios de permeabilidade à água, normalmente reconhecidos. Para uma tinta com a finalidade da pretendida, considera-se que o valor máximo de permeabilidade à água líquida deve ser de 100g/dm2. 24h. A tinta HEMPATEX 56810, para uma espessura da ordem dos 110 µm, apresenta um valor de 14,2g/dm2. 24h. Todavia, a mesma película deve permitir a difusão de vapor de água, contribuindo deste modo para a manutenção de um bom ambiente interior e evitando condensações e infestações por fungos. O valor mínimo geralmente aceite para a permeabilidade ao vapor é de 40g/m2. 24h. A tinta HEMPATEX 56810, para uma espessura de cerca de 110 µm, apresenta uma permeabilidade de 210g/m2. 24h. Outras características foram também tidas em conta. Trata-se de uma tinta lisa, mais de acordo com o tipo utilizado no projecto inicial, e que apresenta uma superfície fosca com um toque semelhante ao da cal. Por ser uma tinta de secagem física, o trabalho de manutenção pontual fica facilitado. Cada demão da mesma tinta dissolve ligeiramente a demão anterior existente, proporcionando uma boa ligação entre as duas, sem envolver operações complicadas de preparação de superfície.

3.3. Esquema de pintura A preparação da superfície condiciona, em larga medida, o êxito de uma pintura. Neste caso particular foi necessário remover poeiras e sujidades diversas incrustadas na superfície da tinta antiga, mediante uma lavagem com água a alta pressão. Previamente, foram removidas zonas da película que não ofereciam garantias de boa aderência, efectuadas reparações de reboco e ainda retocadas as zonas nuas com tinta de textura semelhante à antiga. Terminada esta reparação, e após secagem da superfície, procedeu-se à aplicação de três de-

mãos de HEMPATEX 56810 a rolo, tendo a primeira sido dada com uma taxa de diluição superior às duas seguintes. A espessura seca da película deverá situar-se entre 100 e 120 µm.

3.4. A cor A selecção da cor mostrou de maneira ainda mais evidente a vantagem da participação do fabricante da tinta em todo o processo. O tom a utilizar foi um dado inicial fornecido pelo “dono da obra” a partir de estudo efectuado. Esta informação conduziu à síntese de algumas cores aplicadas em troços da fachada, de modo a oferecer diferentes opções. A resistência à acção dos raios ultravioleta foi a característica que mais condicionou a escolha dos pigmentos empregues na composição da cor. Todavia não foram descuradas outras, designadamente o poder de cobertura e as características cromáticas, tendo em vista alcançar uma cor com reflectância elevada. A cor aprovada foi conseguida por composição adequada de dióxido de titânio, óxido de ferro e um pigmento orgânico de elevada resistência à luz solar.

4. Nota final A selecção da tinta e cor para pintura da fachada do Terreiro do Paço contou com a participação da empresa fabricante da tinta. Esta participação permitiu gerar, atempadamente, variantes de cores orientadas para o resultado do estudo de cor feito previamente e compatíveis com as características da obra. Este modo de actuação ajusta-se especialmente às obras de reabilitação de edifícios antigos, em que as soluções são talhadas à medida de cada situação e em que se espera do fabricante disponibilidade para apoio técnico frequente. " * Engenheiro químico Director da Divisão de Construção Civil TINTAS HEMPEL (PORTUGAL), LDA.

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Rosário Gordalina, 1990

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O valor estético da cor de uma praça de Lisboa Rosário Gordalina*

Peter Handke, no seu Ensaio sobre o Cansaço1, implica a cidade, ou melhor, particulares locais de encontro e de vida urbana: as ruas históricas, as artérias principais e as praças, os traçados viários que na cidade assumem um valor e uma memória particulares. Que valor estético têm estes lugares na identidade da própria cidade, no sentido de pertença àquela ou a esta área urbana por parte dos seus habitantes, demonstra-o igualmente (e certamente muito melhor) um qualquer lugar ideal como, e no universo de pessoais caminhos, Piazza della Signoria na parda Florença, o sistema de praças e avenidas de Turim (que não por acaso evidenciam uma particular afinidade com certas zonas de Lisboa), os percursos viários varridos de arcadas na vermelha Bolonha… Yourcenar2, recordo, por sua vez, imagina-se acompanhada nas suas deambulações pelos lugares monumentais de Roma, por Piranesi, mestre-escola na valorização estética dos locais mais significativos e emblemáticos da cidade. Praças de Itália, chirichianas ou não, e praças de Lisboa, das primeiras representações de cidades míticas e bíblicas na basílica inferior de São Francisco em Assis, à quatrocentista representação de um Tejo pontuado de embarcações diante das muralhas fernandinas de uma fantástica Lisboa no Claustro das Laranjas da abadia florentina; do Carmo e da Trindade à Piazza del Palio de Siena, que da cidade é o coração, em todos os sentidos; ou MONUMENTOS 18 Setembro 94

O valor estético da cor de uma praça de Lisboa

ainda, das históricas e celebradas praças de Paris (incluindo La Défense materializando o Playtime de Jacques Tati) à londrina Trafalgar Square, que Durrell3 transfigura de ulmeiros ao abrigo dos quais se valsa por Blake; e tantas outras referências, referências que sem trégua se adensam. Cidades reais e cidades ideais encontram-se e desencontram-se, vêm-se a unir nestes locais. Poderia sem dúvida insistir, mas detenho-me nestas breves referências, suficientes, creio, a introduzir o tema, o da cor de uma praça, a do Comércio em Lisboa. Reencontrar a identidade primeva de uma praça histórica, desta praça que de Lisboa é símbolo, tem não só múltiplos significados como é um acto estético, uma afirmação de estética e da goethiana necessidade de estética que desde as suas milenárias origens alimenta o homem, como nos diz Carlo L. Ragghianti4. A recuperação de uma identidade arquitectónica de tal modo emblemática significa, assim, para além do valor intrínseco ao restauro, algo mais. À parte o imediato referimento a uma vasta rede de argumentações, mesmo no campo puramente perceptivo, diga-se desde já que se tem uma imediata confirmação do incentivo estético que deriva da plena e correcta restauração da Praça do Comércio, ainda que de um único pormenor: o da restauração das fachadas dos seus edifícios, numa acção de recuperação que visa a reposição do pigmento histórico, a reposição da coloração dos primitivos rebocos. Permanecendo no âmbito do restauro, no qual a questio é plana e transparente, não será supérfluo recordar que qualquer recuperação monumental ou ambiental bem conduzida acaba por restituir vida, identidade e valor ao local em questão, relançando assim a sua habitabilidade que cresce com o crescer do nível estético. Indo mais longe, julgo inevitável perguntarmo-nos: qual é o sentido estético da reposição do autêntico e primevo pigmento, da reposição da primeira pele dos edifícios da Praça do Comércio?

Uma necessária premissa primeiro se impõe. Da pesquisa por mim elaborada para a DGEMN com o objectivo de se apurar qual a cor original da Praça do Comércio, e cujos resultados foram depois sintetizados em relatório5, uma certeza emergiu no que respeita à primitiva coloração dos rebocos dos seus edifícios: do exame dos documentos de arquivo e das fontes iconográficas, compreendendo um arco temporal que arranca mais ou menos em 1775 (ano no qual se inaugura a estátua equestre de D. José e estando ainda por edificar a totalidade dos edifícios que fecham a praça, tendo então o marquês de Pombal determinado que para a solene ocasião as alas por construir fossem provisoriamente construídas de madeira, gessadas e pintadas à imitação do já edificado em cantaria e alvenaria) e chega aos anos 80 deste século, resulta que a cor original da praça devia ser o amarelo, nos documentos dito “jalde”, termo que deriva do francês antigo “jalne”, ou seja, jaune, amarelo, como tive então ocasião de escrever, cor que a praça manteve até finais do século XVIII, sofrendo depois sucessivas variações de cor e tonalidade. Basta recordar alguns documentos importantes, contemporâneos da edificação da Praça do Comércio, que comprovam a original cor amarela, como por exemplo o poema épico de Miguel Ramalho de 17806 ou o testemunho de Carrére em 17967. A diferente coloração no tempo assumida pelos seus edifícios é, por sua vez, confirmada pelas várias fontes iconográficas e escritas, referidas no já citado relatório. Estes mesmos documentos dizem-nos que a coloração da praça mudou com o mudar das condições culturais, sociais, económicas e políticas. “Mudam-se os tempos, mudam-se as cores…” escrevi então. Tal poderia significar que a sociedade, a variável temporal, qualquer contingência, de algum modo poderia modificar a realidade artística. Será todavia mais correcto dizer que a instância e a valência estética, em si perene, são sujeitas ao atrito imposto aos objectos em questão (como acontece

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Fig. 1 (página anterior) Piazza della Signoria, Florença.

O valor estético da cor de uma praça de Lisboa

Fig. 3 O azul de La Défense.

come un trapano rode la scogliera soffia ancora rendendone perpetuamente mutevole e mai raggiungibile un suo profilo”8. Na impossibilidade, no caso Praça do Comércio, de se fugir a uma realidade arquitectónica indelével, que

Rosário Gordalina, 1988

Rosário Gordalina, 1991

Fig. 2 Bolonha pele vermelha.

para qualquer outro manufacto artístico), sujeitas a uma inesgotável manipulação, que frequentemente modifica ou diminui e dispersa tal potencialidade estética, alterando com a História o sentido e o valor próprio da obra. Como escrevi, noutra ocasião, “la brezza che

assinala e pára um tempo já histórico, tenta-se a sua transformação, que resulta por ser uma transfiguração; tenta-se dar a estes edifícios uma nova pele. Se procurávamos uma prova da instância estética evidente, e aliás intrínseca ao objecto em questão, eis a sua confirmação claríssima, para além do mais incidente na vida dos cidadãos, incidente em termos decisivos na vida da própria cidade. A cor verde imposta à praça sob ideia de Raul Lino, no final dos anos 40, e mantida por um quarto de século, não constituirá indício significativo? Em 1975 o verde é substituído pela cor vermelha na tonalidade rosa-laranja e, em 1977, pretende-se dar outra coloração à área vizinha, em sintonia com a praça. Porquê tais tonalidades? Estes elementos, ainda que sugestivos se interpretados segundo diferentes clavis, suscitam algumas razoáveis dúvidas e muitas outras interrogações, como tive ocasião de constatar no balanço histórico resultante do relatório a que já acenei, pelo que nos deteremos num só particular, isto é, sobre o que a questão referente à cor da praça pode implicar. Uma vez que todo o arbítrio é, em primeira instância, uma dispersão histórica relativamente à realidade em objecto, logo, indubitavelmente, oblitera a realidade estética e formal desse mesmo objecto. Mas é também Yourcenar que nos ensina que “faça-se o que se fizer, reconstrói-se sempre o monumento à nossa maneira, mas já é muito empregar somente pedras autênticas”9. Daqui a importância do cuidado posto não só na recuperação da cor original, mas igualmente da primeva tonalidade que, obviamente, será sempre aproximativa. Pelo que me parece excessivo poder afirmar-se com certeza qual a tonalidade primitiva da praça e consequentemente do original pigmento empregue; com a agravante dos pigmentos amarelos, nomeadamente os existentes à época, entre eles, como tive ocasião de referir no “meu relatório” acima citado, o amarelo de Nápoles, popularizado a partir da segunda metade do século XVIII, ou o massicote abraçarem um amplo

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Rosário Gordalina, 1991

O valor estético da cor de uma praça de Lisboa

Fig. 4 Piazza dei Palio, Siena.

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leque de tonalidades que vão desde o amarelo enxofre ao laranja, como é o caso do amarelo de Nápoles, dependendo as variações de tom da quantidade de chumbo e antimónio nele presente10. Voltando à questão em análise, é uma ulterior confirmação a da valência estética a atribuir sem demora à recuperação da cor da praça? Gaston Bachelard11 observa que a mínima colina, para quem extrai os sonhos da natureza, é inspirada. O mesmo se poderá dizer desta emblemática praça; com a agravante determinada pela projectualidade inevitavelmente presente que significa vontade estética. Detendo-me nesta última, é por demais evidente ser a Praça do Comércio um lugar arquitectónico “tópico” que condiciona o plano urbanístico circundante; um ponto de referência nodal, ao nível de área ou perímetro urbano, de território. Não basta porém declarar-lhe a valência estética e deixar subentender que a essa se liga uma inferência existencial e tantas outras. Torna-se necessário, igualmente, melhor clarificar o sentido, o tom e o peso desta instância estética. Pela sua própria estrutura, a Praça do Comércio é um grande rectângulo repartido pelas linhas medianas em partes iguais, circundado nos três lados por edifícios calculados em relação a este espaço, ao cenário que coroa a própria praça e ao quarto lado aberto sobre o rio; estrutura esta que mostra uma singular analogia com os textos de Dylan Thomas. Nestes parece prevalecer o princípio da regularidade estrutural, rítmica, sintática, estilística, sem que nunca venha a faltar simultaneamente a valência simbólica e visiva, na qual a visão se adensa e carrega de significados, de segundos sentidos metafóricos, como no caso da última poesia de Dylan, “Elegy”12, características que correspondem precisamente ao que nos oferece a Praça do Comércio. Estamos diante de um cenário regularíssimo, que atrai e domina, observando-o seja da cidade seja do rio. Portanto um local “forte” de Lisboa, que funciona como elemento ordenador do skyline histórico da ci-

dade. Quem chegava do mar e quem se aprontava a partir, encontrava neste local um natural “porto”, cenário perfeito para um último momento de reflexão antes do regresso a casa, deixando para trás aventuras e cansaços, qual Ulisses deixando para trás, antes de nova viagem, afectos e seguranças, mas ao mesmo tempo dando novo impulso ao desejo de aventura. Se considerarmos a valência estética em sentido crociano, ou seja, na mais ampla e rigorosa acepção proposta por Croce13, contemporaneamente à proposta, avançada por Kubler14, de uma inferência antropológica que modifica a reflexão sobre a arte, se a essas juntarmos igualmente, como sugerido por Belting 15, a instância psicológica de raiz woelffliniana, configura-se então uma convincente identidade estética da “nossa” praça, a qual implica a vida social e a vida física que a condicionam no tempo, alterando e simultaneamente confirmando a sua identidade formal; melhor então podemos abordar a questão do seu valor estético e o das arquitecturas que a constituem. O que está em jogo não é naturalmente simples; trata-se em suma de entender a essência desta instância estética. Um procurado acordo com os mitos, os ritos, com a realidade fremente e vivente da natureza, designadamente do rio que de um lado coroa o perímetro da praça, com tudo aquilo que, e em termos peremptórios, declara a ligação entre cidade e mar, a enfim projecção eclatante de Lisboa sobre o rio, eis o que dilata e articula os próprios termos da nossa reflexão. É William Blake que nos recorda que tudo aquilo que vive é sagrado. Confirma-se assim a sacralidade da ligação com o mar, consequentemente assume um valor sagrado também a praça, símbolo evidente de tal ligação, símbolo de Lisboa. A pele destes edifícios tem, pois, um valor especial; pelo que alterá-la, ainda que minimamente, e alterar a “memória” histórica que nela se narra, poderia significar atingir profundamente a cidade na sua identidade.

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Rosário Gordalina, 1991

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Essa mesma pele confirma não só a identidade formal das construções, de toda a praça, como dá um outro efeito sobre este espaço. As diferentes energias activas e passivas, o encontro entre aquilo que está dentro e o que está fora, a ligação entre terra e mar, equivalente de algum modo àquela entre dia e noite, tudo isto é confiado à unidade do cenário, composto em grande parte pela sequela de edifícios que dão para a praça. A função dos rebocos destes edifícios surge assim também como a de ligante e de filtro entre tal diversidade de estímulos e de solicitações. Sobretudo estas construções e os seus

rebocos representam a rede de ligação, de destacamento e de contacto entre cidade e rio; e de algum modo contribuem na exaltação do encontro entre a história e o tempo presente que nesta praça se actua. Para terminar, diria – e permanecendo na questão da recuperação do original pigmento – que essa, mais do que uma devida restituição “histórica”, actualiza a própria história e vem assim a restituir impulso ao valor deste espaço arquitectónico que é exactamente o espaço do seu ser em si, adoptando as palavras de Rilkde, reinvestindo a realidade arquitectónica da praça, da sua memória e da sua

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Fig. 5 Lisboa em Florença (João Gonçalves, particular do fresco São Bento recupera a foice caída no lago, Claustro das Laranjas, Florença).

O valor estético da cor de uma praça de Lisboa

plena vitalidade, já que está implicada a possibilidade de uma vida activa que tenha uma especial “qualidade”, uma “qualidade estética” implicando o tempo presente. O que torna a Praça do Comércio mais incisiva na consideração da contemporaneidade, mais di-

Notas 1 – Peter Handke, Versuch uber der eglucklain Tag Ein Wintertagtraum, Frankfurth e Maine, Suhrkamp, 1991; tradução italiana de E. Zorzi, Sagio sulla Giomata Riuscita, Milão, Garganti, 1993. 2 – Marguerite Yourcenar, “Les prisions imaginaires de Piranèse”, N.R.F., Janeiro de 1961; incluído em Sous Benéfice d’Inventaire, Paris, Gallimard, 1978; tradução inglesa de Richard Howard, The Dark Brain of Piranesi and other Essays, Farrar, Straus & Giroux, 1986. 3 – Lawrence Durrell, Quatour d’Alexandrie-Mountolive (1958), Paris, Buchet/Chastel, s.d. 4 – Carlo Ludovico Ragghianti, L’uomo cosciente, arte e conoscenza nella paleostoria, Bolonha, Calderini, 1981. 5 – Maria do Rosário Gordalina, Praça do Comércio – A Cor Original, Lisboa, DGEMN – Direcção de Serviços de Inventário e Divulgação, Dezembro de 1993. 6 – Miguel Maurício Ramalho, Lisboa Reedificada. Poema Épico, Lisboa, 1780. 7 – J. B. F. Carrère, Tableau de Lisbonne en 1796, Paris, 1797; tradução portuguesa de Castelo Branco Chaves, Panorama de Lisboa no ano de 1796, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989. 8 – In Aicune Premesse sulla pittura di Gualtiero Nativi, Florença, 1992 (em curso de publicação).

ponível ao encontro com os homens, com os cidadãos. "

*Historiadora da Arte Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais

9 – Marguerite Yourcenar, Carnets de notes de Memóires d’Hadrien (1958); tradução portuguesa de Maria Lamas, “Apontamentos sobre as Memórias de Adriano”, in Memórias de Adriano, s.1., Ulisseia, 1981. 10 – Afirmar-se (Cfr. Femanda Ribeiro, “Praça do Comércio volta ao amarelo de Nápoles”, O Público, 24 de Abril de 1994 e Hedwig Heeren, “lt’s back to Naples Yellow”, Anglo-portuguese News, 5 de Maio de 1994) que o tom original da Praça do Comércio era o amarelo de Nápoles revela, antes do mais, desconhecimento da história, composição e natureza deste pigmento; de igual modo nada permite identificar o “jalde” referido nos documentos como sendo amarelo de Nápoles. O pigmento deve o seu nome à tradição de que em Nápoles se encontrava um amarelo mineral de origem vulcânica; por esse motivo é por alguns autores identificado como o giallorino de que fala Cennino Cennini. É um pigmento que quimicamente combina os óxidos de chumbo e de antimónio (Pb3[SbO4]2), sendo frequentemente substituido por misturas de outros pigmentos, como o ocre ou o cadmium misturados com branco de chumbo, misturas todavia não comparáveis ao brilho do verdadeiro amarelo de Nápoles. Cfr.: Max Doemer, Malmaterial und seine verwendung im Bilde, Munique, 1921; tradução inglesa de E. Neuhaus, The Materials of the Artist, Orlando, Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1934. Merrifield, The

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Art of Fresco Painting (1846), Londres, Alec Tiranti, 1952. Quanto ao “jalde” refira-se que, como já mencionado no meu Relatório…, dele se ocupou Filipe Nunes na sua obra Arte da Pintura, Symetria e Perspectiva (editada em Lisboa em 1615; ed. facsimilada pela Editorial Paisagem, 1982), dedicando-lhe um capítulo “Modo de usar o jalde a óleo”, e no qual refere a sua impossibilidade de ser aplicado a têmpera. 11 – Citado por Jacques Derrida na apresentação do catálogo da exposição Memóires d’Aveugle, Paris, Louvre, 1990. 12 – In Collected Poems, s.l., Dent O.M., 1991. 13 – Benedetto Croce, Breviario di estetica. Aesthetica in nuce, Milão, Adelphi, 1990. 14 – George Kubler, The Shape of Time, Princeton, Yale University Press, 1972. 15 – Hans Belting, Das End der Kunstgeschichte?, Munique, Deutscher Kunstverlag, 1983; tradução italiana de F. Pomarigi, La fine della Storia dell’Arte o la libertá dell’Arte, Turim, Einaudi, 1990.

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O painel de São Luís do Maranhão Rafael Moreira*

O bairro portuário da Praia Grande, na cidade brasileira de São Luís, capital do Estado do Maranhão (que na época pombalina abarcava todo o Norte do Brasil, incluindo a Amazónia), é justamente famoso pelos seus prédios de fachadas cobertas de azulejos – uma moda que daí teria vindo em meados do século passado para Lisboa e Porto –, constituindo a maior extensão de arquitectura civil de origem portuguesa existente fora de Portugal. Um criterioso programa de restauros, envolvendo mais de 200 imóveis, vem desde há alguns anos revitalizando e dando nova aparência àquele que foi o centro dum dos maiores portos de toda a zona equatorial, e o mais próximo em linha recta de Lisboa. Foi no decurso desses trabalhos que apareceu, em 1990, sob várias camadas de cal, no interior dum imponente edifício – um sobrado – de dois pisos contíguo à antiga sede da companhia pombalina de comércio do Grão-Pará e Maranhão, a pintura mural de que aqui nos ocupamos. O autor destas linhas acertou de passar no local poucas semanas após o casual achado e reconheceu de imediato o seu enorme interesse. Trata-se, com efeito, duma ampliação em grande formato (3,10 # 1,70 metros), à escala da parede de fundo duma sala, da conhecida gravura contendo uma vista imaginária MONUMENTOS 25 Setembro 94

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Fundação Calouste Gulbenkian. 1990-1993

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Fundação Calouste Gulbenkian. 1990-1993

O painel de São Luís do Maranhão

Fig. 2 Vista geral do painel, recentemente restaurado, e sua inserção na parede. Na página anterior (Fig. 1), pormenor do painel.

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da “Praça do Comércio da Cidade de Lisboa”, de que se conserva pelo menos um exemplar no Museu da Cidade, tradicionalmente atribuído ao arquitecto Carlos Mardel. Na realidade, a pequena mas impressiva gravura – que apresenta a “imagem oficial” da praça tal como fora projectada após o terramoto e sonhada pelo marquês de Pombal, numa visão que deriva dos modelos da cidade ideal do Renascimento italiano – é hoje atribuída com maior segurança ao gravador Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818), mestre na Imprensa Régia, e ao ano de 1775: o mesmo em que imprimia a sua célebre estampa da estátua equestre, então inaugurada. Encontramos o mesmo protótipo, reduzido às dimensões de um pequeno quadro, numa pintura a óleo a azul e negro sob vidro executada na China pouco após aquele ano, recentemente exposta no Museu Guimet, em Paris. Tão surpreendente quanto esta ocorrência no Extremo Oriente (por encomenda de Macau, naturalmente) é o seu simultâneo aparecimento no outro lado do globo. A gravura foi, pois, o suporte de um “ícone” em que se pretendia exibir a imagem da nova Lisboa de Pombal, tendo circulado rapidamente por todo o mundo português, copiada, reduzida e ampliada nos meios mais diversos – do cobre ao mural e à miniatura –, obedecendo, sem dúvida, aos propósitos oficiais de celebração e de prestígio. Estamos melhor informados a respeito das circunstâncias em que foi executado o painel mural de São Luís do Maranhão do que o quadrinho da China, ou a própria gravura lisboeta que serviu de modelo a ambos. E ainda bem que assim é, porque se trata do único caso em que, devido às suas dimensões e ao meio usado (uma têmpera aplicada a seco sobre uma camada de estuque muito fino, permitindo retoques e pinceladas de grande subtileza, como num guache), foi possível ao pintor fornecer pormenores de extremo realismo – entre os quais, e pela primeira vez, a exacta cor pombalina das paredes da Praça do Comércio, esse “jalde” ou “jalne” (=jaune, isto é, MONUMENTOS

amarelo) que apenas conhecíamos de referências literárias… Algumas saborosas cenas do quotidiano lisboeta povoam o interior da praça: um grupo de soldados que discute junto ao Cais das Colunas, o “galego” que descansa sentado nos seus degraus, carruagens que cruzam o terreiro vazio, um embuçado, carregadores, passeantes, e os habituais “mirones” que, como ainda hoje, observam de cima do muro a azáfama dos barcos no Tejo. A este espectáculo de realismo costumbrista – tão comum na pintura de paisagem rural, mas raro nas vistas urbanas anteriores ao Romantismo (como em Sequeira) – o autor soube juntar a presença, silenciosa e imponente, da cidade, fazendo ressaltar todo o pormenor dos monumentos que a definem como centro do poder: o cais, os torreões do governo e da bolsa, a estátua, o arco (ainda visto com o campanário que, afinal, acabaria por não se erguer). É o retrato pujante duma próspera Capital que assim se nos oferece aos olhos. Graças a um generoso auxílio da Fundação Calouste Gulbenkian, foi possível recuperar em menos de um ano este painel (pela equipa do restaurador Orlando Ramos, sob nossa orientação científica) e inaugurá-lo a 14 de Junho de 1993. O “sobrado” onde foi encontrado pertencera a Honório José Teixeira, um dos mais prósperos comerciantes portugueses da praça de São Luís na passagem do século XVIII ao XIX, e a sala térrea do canto, a mais ventilada, servia de ponto de reunião aos negociantes, que aí trocavam informações, recebiam as últimas notícias de Lisboa dos seus barcos acabados de atracar no cais da Alfândega, mesmo em frente, e fixavam os preços dos produtos: uma bolsa de mercadores, que daria origem em 1854 à Associação Comercial Maranhense (ver Jerónimo de Viveiros, História do Comércio do Maranhão, vol. I, São Luís, 1954, pp. 237-8). O restauro mostrou que toda a sala estava pintada a escaiola em dois tons, como um revestimento marmóreo, e o painel preenchia o fundo de uma vasta janela fingida, engalanada por cor27 Setembro 94

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O painel de São Luís do Maranhão

Fig. 3 Painel em processo de limpeza, notando-se bem a coloração amarela originária.

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O painel de São Luís do Maranhão

Fig. 4 “Sobrado” de 1780-1800 que forma o lado principal da Praça do Comércio de São Luís do Maranhão. Na sala térrea do ângulo, correspondente às duas primeiras portas, funcionava uma bolsa de mercadores, onde havia estado a companhia pombalina de comércio do Grão Pará e Maranhão. Lá aparecerá o painel rural representando a Praça do Comércio de Lisboa.

Notas 1 – Agradecemos ao secretário de Cultura do Estado do Maranhão, Arq.o Luiz Phelipe Andrès, bem como à Fundação Calouste Gulbenkian na pessoa do seu ilustre administrador, Dr. José Blanco, todo o apoio que têm prestado ao nosso trabalho (de que o presente texto representa uma súmula ainda provisória) e a necessária autorização para aqui reproduzir algumas das suas imagens.

tinas vermelhas de festa e enquadrada em perspectiva na própria arquitectura da sala, como um balcão abrindo ao exterior. Era sob essa visão tutelar que os negociantes mantinham os seus tratos, assim marcando uma política de ligação à pátria (o que explica que tenha sido recoberta com cal logo após a independência do Brasil, em 1822, e assim permanecido desde então). Quando, e por quem, terá sido pintado? A presença num dos barcos da bandeira do “Reino Unido de Portugal e Brasil”, em uso apenas entre 1815 e 1822, permite restringir a sua feitura a esses anos, e atribuí-lo ao melhor pintor então activo no Maranhão, o engenheiro-cartógrafo e notável miniaturista Joaquim Cândido Guilhobel, filho de um gravador da Casa da Moeda, recém-vindo de Lisboa após a fuga da família real. Seria por ocasião do grande movimento liberal eclodido no Porto em 1820 – que contou com fortes apoios no Maranhão, então governado por um irmão do seu chefe militar – que, ao que tudo indica, a pintura foi executada, homenageando o bom governo iluminista de D. Ber-

nardo da Silveira Pinto da Fonseca e a ligação da colónia à sua metrópole. Mas, nessa ou noutras circunstâncias, por esse ou por outro autor, o que conta é a imagem viva da capital que ele nos dá, propositadamente situada no próprio coração de São Luís: a ainda hoje chamada “Praça do Comércio”, vasto terreiro quadrado aberto em 1780 à beira-mar, com edifícios em três lados (e a rampa do cais no quarto), onde se situavam os armazéns grossistas, a alfândega e a bolsa – réplica em ponto pequeno da mítica praça pombalina. Há muito já que sucessivos aterros a afastaram do mar; mas nela perdura, desconhecido até há pouco, o que é, talvez – na forma como na cor e na intenção ideológica –, o retrato mais fiel que até nós chegou do seu modelo pombalino de Lisboa.l

* Universidade Nova de Lisboa

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Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio Teresa Leonor Vale*

“Os edifícios do Terreiro do Paço formam um conjunto agradável, circundando a praça e erguendo-se sobre arcadas espaçosas, muito bem lançadas, terminando em cada extremo do lado do Tejo por dois torreões (…). Todos estes edifícios são uniformes, regulares, mas sem ornamentos (…).” J.B.F. Carrère, Panorama de Lisboa em 17961.

O Terreiro do Paço antes de 1755 Espaço urbano definido como praça desde o período medieval, o Terreiro do Paço era, já no período manuelino, um espaço detentor de grande significado do ponto de vista urbanístico e literalmente a praça na qual se localizava a residência régia – o Paço da Ribeira, situado no flanco poente do terreiro, junto ao rio, em estreita ligação com a máquina administrativa e comercial do Estado. O reinado de Filipe II vai legar ao velho palácio real de Lisboa um torreão – edificado por volta de 1581, provavelmente segundo um projecto do arquitecto régio Filippo Terzi – que teve um tal impacte no contexto da paisagem arquitectónica da capital (por questões estritamente formais, certamente, mas também pelo prestígio do edifício no qual se integrava), que é repetido com geminação simétrica na reconstrução pombalina, já depois de ter servido de modelo a Mafra e sendo já muito tardiamente recriado numa linguagem neoclássica no Palácio da Ajuda.

O torreão era uma robusta construção de quatro andares, ostentando o primeiro artilharia apontada para o rio. Uma ala disposta perpendicularmente ao Tejo e de um só andar, vasada por múltiplos vãos de diferente configuração, articulava-se com o bloco do torreão. Na primeira metade de Seiscentos, o terreiro – então com 620 passos de comprimento e 200 de largura2 – tinha os seus limites fixados pelo edifício da Alfândega e Terreiro do Trigo, no lado ocidental, pelo palácio real e Casa da Índia, a oriente e nordeste, e por uma série de edificações várias perfuradas por arcos a norte. O Terreiro do Paço chega ao reinado de D. João V como um conjunto arquitectónico relativamente homogéneo quanto à massa construída – veja-se o interessante desenho efectuado a propósito das festividades realizadas em Agosto de 1684, aquando do segundo casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia de Neuburgo3 –, reconhecendo-se como elementos perturbadores do conjunto apenas os arcos dos Pregos (situado sensivelmente no eixo norte-sul da praça), dos Barretes (a leste

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Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio

Biblioteca Nacional. 1994

do anterior), dos Passarinhos (localizado perto do ângulo formado pelos lados norte e oeste do terreiro) e ainda a porta da Ribeira. A este panorama, D. João V fará acrescentar a célebre torre do relógio, construída de acordo com um projecto de António Canevari, durante a permanência deste arquitecto italiano em Lisboa, entre os anos de 1728 e 1732. Mantinha-se então o palácio real como edifício dominante e

determinante no conjunto, não só do ponto de vista formal mas também no domínio da funcionalidade e carácter da praça. Morfologicamente a praça era então um quadrilátero bastante irregular, tendo o lado norte cerca de 270 metros, o lado oeste 115, o lado este 80 e o lado sul (rio) 235. Será sobre este terreiro de dimensões irregulares e sobre os escombros deixados pelo terramoto de 1755 que os arquitectos da reconstrução pombalina – disciplinando preexistências – edificarão a Praça do Comércio, tal como a reconhecemos hoje, esse espaço urbano privilegiado pela acção do homem e pela paisagem4.

O Terreiro do Paço da reconstrução pombalina: a Praça do Comércio O abalo sísmico de 1 de Novembro de 1755 arrasa parte significativa da cidade de Lisboa e o Terreiro do Paço não é excepção. As preocupações que presidem à necessária reconstrução da praça vão evoluir da linear preservação morfológica e funcional do preexistente até à edificação daquilo que podemos designar um conjunto arquitectónico inovador mas detentor de memória. Com naturalidade, o Terreiro do Paço rapidamente se constituiu, após a destruição do terramoto, como um dos principais alvos da atenção de Sebastião José de Carvalho e Melo e dos seus arquitectos, assumindo-se com facilidade como um centro ideal da reedificação da baixa lisboeta. Desde cedo que Manuel da Maia (1677-1768) – nas dissertações elaboradas acerca da reconstrução da cidade dirigidas ao marquês de Pombal, a primeira das quais data de 4 de Dezembro de 1755 – realça as vantagens do local para se fazerem as “boas entradas” da cidade reconstruída. Assim se procede à reedificação pombalina da praça, tendo subjacente o modelo das praças reais europeias e não negligenciando a anteriormente marcante presença do famoso torreão filipino, nem tão-pouco a presença eféMONUMENTOS

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Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio

mera de arcos celebrativos realizados na praça em ocasiões de entrada na cidade de personalidades de relevo ou de festividades relacionadas com a vida da família real. Quanto ao torreão dito de Terzi, a ideia da sua duplicação em posição simétrica remonta a um momento anterior ao terramoto, mais precisamente a 1750, data de um projecto anónimo5 que Eugénio dos Santos (1711-1760) não ignora ao elaborar, em 1759, o projecto que acabou por prevalecer e segundo o qual se procedeu à construção dos edifícios que constituem o novo Terreiro do Paço, numa área de 177 # 192,5 metros. Este projecto de Eugénio dos Santos contemplava igualmente a edificação de um arco que acabou por não ser construído de imediato – optando-se bastante posteriormente pelo projecto do francês Anatole Celestin Calmels, responsável pela aparência que apresenta hoje o arco da Rua Augusta – e ainda erecção de um monumento ao monarca no centro da praça, a estátua equestre de D. José, cuja execução acabou por ser confiada a Joaquim Machado de Castro (1731-1822). Do ponto de vista arquitectónico, e como notou José-Augusto França, a principal qualidade do Terreiro do Paço pombalino é o ritmo6, obtido pela constituição dos alçados por elementos celulares simples – arcadas em arco de volta inteira, descarregando sobre pilares de secção quadrada, encimadas por janelão rectangular centrado, sobrepujado por vão quadrangular de emolduramentos de cantaria sem decoração. Ainda de registar, no contexto de generalizada sobriedade que se verifica, é a animação operada pelos dois torreões que rematam as alas laterais junto ao rio. Elemento dinamizador, em termos estritamente arquitectónicos mas também urbanísticos, é o arco de triunfo – assinalando o acesso à rua central –, ladeado pela abertura de outros dois eixos que se equilibram. É esta a arquitectura de Eugénio dos Santos, expressa numa linguagem que, revelando ter assimilado os ensinamentos do classicismo francês, simplifica e funcionaliza o desenho barroco, legado pelo período joanino. MONUMENTOS

O contributo de ordem natural para o conjunto é obviamente a presença do rio, que funciona não só como abertura cenográfica à paisagem mas ainda como factor modelador da luz que banha a praça com sazonais variações. Aos primeiros anos da reconstrução pombalina remonta também a alteração da designação da praça, o que corresponde igualmente a uma alteração de função e a uma adequação ao contexto socioeconómico da época pombalina. Em 1758, tendo em consideração os projectos em elaboração para o então Terreiro do Paço, os comerciantes da cidade solicitam e obtêm autorização (por decreto de 16 de Janeiro desse ano) para aí procederem à edificação de uma bolsa ou praça que antes do sismo se reunia sob as arcadas da Rua Nova dos Ferros e que seria paga com os 4% de donativo à Coroa. No ano seguinte, um “aviso” do marquês de Pombal designa já o terreiro como Praça do Comércio, designação que alude não só à localização da bolsa dos comerciantes no topo oriental daquele espaço, mas que funciona também como uma homenagem a uma actividade e a uma classe da maior relevância na sociedade do tempo. A denominação Real Praça do Comércio ainda se regista, até que se determina o afastamento da residência régia daquele espaço urbano e prevalece a designação de Praça do Comércio. Verifica-se assim uma perfeita sintonia entre programa urbanístico e ideologia do Estado, conjugados no projecto de Eugénio dos Santos, o qual traduz claramente a preocupação em transformar o velho Terreiro do Paço na nova Praça do Comércio. A partir do momento em que se fixa o projecto e o programa a cumprir, têm início de facto as obras de edificação do complexo arquitectónico da Praça do Comércio – obras com uma progressão lenta, que permite a alguns viajantes estrangeiros o registo da ideia de destruição (causada pelo terramoto) ao longo de variados anos. Assim se verifica com os escritos do ita31 Setembro 94

Fig.1 (página anterior) Desenho do Terreiro do Paço – com a réplica do jardim do Palácio do Conde da Ericeira aquando do casamento de D. Pedro II com Sofia de Neuburgo, em Agosto de 1684 – constante da obra de João dos Reis, Copia dos Reaes. Aparatos e Obras que se Ficeram em Lixboa na ocasiam da Entrada e dos Desposorios de Suas Magetades. (Lisboa, Biblioteca Nacional, Secção de Reservados.)

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Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio

Fig. 2 Gravura de Wells, segundo desenho de NöeI, publicada em Londres em 1793, na qual se observam os edifícios da Praça do Comércio e em especial o torreão oriental, onde funcionava a bolsa dos mercadores. (Lisboa, Museu da Cidade.)

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Fig. 3 Alçado da Praça do Comércio segundo o projecto de Eugénio dos Santos, sendo visível o torreão oriental e a Casa da Índia, 1823. Escala 1:135. (Lisboa, Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.)

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Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio

liano Giuseppe Gorani, residente em Portugal entre 1765 e 17677. Quando em 1775, vinte anos após a ocorrência do sismo, se procede à inauguração da estátua equestre de D. José, os edifícios da praça encontram-se ainda apenas parcialmente construídos8. Alguns anos mais tarde, em 1793, gravuras efectuadas a partir de obras do pintor francês Nöel, então em Portugal a convite do comerciante inglês Gerard Devisme, evidenciam a inexistência do torreão ocidental da praça ainda nesta data. A mesma ideia que se encontra expressa na obra que J.B.F. Carrère faz publicar em Paris, sob o título de Voyage en Portugal et Particulièrement à Lisbonne en 1796, na qual se refere ainda o facto de então os edifícios da Praça do Comércio se encontrarem pintados de amarelo, “(…) cor que, degradada pelas chuvas, apresenta matizes vários de muito mau efeito”9, segundo o autor que, apesar destas observações, manifesta o seu agrado pelas “arcadas espaçosas e muito bem lançadas”. Já nos primeiros anos do século XIX, Francisco Coelho de Figueiredo escreve, reportando-se ao lado ocidental da praça: “(…) o lugar que se conserva imperfeito na Real Praça do Comércio, por terem dado de si para baixo as estacas agudas com pontas de ferro (…)”10, o que mais uma vez atesta o estado incompleto da praça, em particular da sua ala poente. Ainda em 1819, gravuras efectuadas com base em desenhos de l’Evêque, mostram o Terreiro do Paço sem o torreão ocidental. Com efeito, data de 1842 a conclusão deste torreão, ficando então o conjunto arquitectónico da praça completo, à excepção do arco triunfal, realizado apenas em 1875, segundo projecto de Anatole Celestin Calmels, como se referenciou. Assim, é apenas no início do último quartel do século XIX que se pode falar de conclusão da edificação da Praça do Comércio na sequência do sismo ocorrido em Novembro de 1755, cerca de 120 anos antes. MONUMENTOS

A ocupação dos edifícios pombalinos da Praça do Comércio Quanto à ocupação dos edifícios pombalinos da Praça do Comércio, ela obedeceu, com naturais pequenas variações ao longo do tempo, à função oficial estabelecida desde o início. Com efeito, foi essencialmente para receber o aparelho do Estado que o marquês de Pombal concebeu o conjunto arquitectónico da nova praça da reconstrução, que se assumia assim como o centro de poder do país na cidade setecentista. Deslocada a residência régia daquele espaço, a nova Praça do Comércio tornava-se exclusivamente o ponto em torno do qual giravam as decisões políticas e económicas determinantes para o futuro do reino, num processo do qual o rei era de certo modo distanciado pelo poder e atribuições do ministro. Assim, em 1758, como se referenciou já, os comerciantes recebem a necessária autorização para instalarem a sua bolsa no topo oriental da praça. Nos edifícios contíguos à bolsa rapidamente se instala a alfândega, sendo os restantes edifícios ocupados por tribunais, já no final do século XVIII. Excepção no contexto desta ocupação estritamente oficial da praça, que remonta ao século XVIII, era o café da arcada do Terreiro do Paço, ao qual surge pela primeira vez menção na Gazeta de Lisboa, no ano de 1782, sob a designação de Casa da Neve (gelado). Dois anos mais tarde era seu proprietário o italiano Domenico Mignani, pelo que o café era então conhecido por Casa da Neve Italiana. Em 1795 era já o Café do Comércio, adequando-se assim à denominação da praça. Data porém do final do século XIX a designação com que chegou até nós, a qual se relaciona com o nome do seu proprietário de então, Martinho Rodrigues, ficando o antigo café da arcada do Terreiro do Paço conhecido pelo Martinho da Arcada. Durante a centúria de Oitocentos permaneceram instalados nos edifícios da Praça do Comércio os diferentes ministérios, genericamente com a seguinte distribuição: a oriente 33 Setembro 94

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as Finanças (mantendo-se a bolsa e a alfândega), a norte a Justiça e a ocidente a Guerra. Tal distribuição mantém-se até à actualidade com naturais e inevitáveis ajustamentos, tendo-se assistido nos anos mais recentes à deslocação de alguns ministérios para outras zonas da cidade. Assim, permanecem instalados na Praça do Comércio, no final do século XX, alguns dos serviços dos seguintes ministérios: Finanças, Obras Públicas (oriente), Justiça, Administração Interna, Planeamento e Administração do Território (norte), Defesa e Agricultura (ocidente). Têm ainda lugar nos edifícios da praça parte dos serviços da Bolsa de Valores de Lisboa (topo oriental, onde desde 1758 se localizava a bolsa dos comerciantes), e, correspondendo como que a uma diversificação dos serviços passíveis de serem encontrados naquele local, ainda que intimamente ligados ao Estado: um balcão da Caixa Geral de Depósitos, a farmácia da Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Estado, a Cruz Vermelha Portuguesa, a biblioteca do Ministério das Obras Públicas (norte) e finalmente os Correios (ocidente). Nos últimos anos os edifícios da Praça do Comércio ganharam ainda uma função cultural e lúdica, ao ser utilizado para exposições parte do piso térreo do Ministério das Finanças e do Ministério do Planeamento e Administração do Território. Ainda estranho ao conjunto, do ponto de vista do seu estatuto e função mas de certa forma complementar para uma certa fruição da praça por parte da cidade, permanece o Café Martinho da Arcada. " * Lic. História/História da Arte, Museologia e Património Artístico. Mestre em História da Arte

Fig. 4 O “Café da Arcada do Terreiro do Paço”, ou “Casa da Neve Italiana”, ou “Café do Comércio”, ou, finalmente, ‘“Martinho da Arcada”, como ficou conbecido o estabelecimento do qual era proprietário, no fim do século passado, Martinho Rodrigues – um espaço lúdico dominantemente oficial da praça.

Notas 1 – J.B.F. Carrère, Panorama de Lisboa em 1796, Lisboa, 1989, p. 29 (1.a edição 1978). 2 – Fr. Nicolau de Oliveira, Livro das Grandezas de Lisboa, Lisboa, 1620, trat. V, cap. IV. 3 – Cf. Nelson Correia Borges, A Arte nas Festas do Casamento de D. Pedro II, Porto, s.d., p. 157. 4 – Cf. José-Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, 1965.

5 – Cf. ms. publ. por Camilo Castelo Branco, Noites de Insónia, 1874, cit. por José-Augusto França; A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina, Lisboa, 1978, pp. 33 e 99; cf. também Júlio de Castilho, A Ribeira de Lisboa, vol. III, Lisboa, 1983, p. 136. 6 – Cf. José-Augusto França, ob. cit., p. 83. 7 – Giuseppe Gorani, A Corte e o País nos Anos de 1765 a 1767, Lisboa, 1992 (1.a edição portuguesa 1945).

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8 – Joaquim Machado de Castro, Descrição Analítica da Execução da Real Estátua Equestre do Senhor Rei Felicíssimo D. José I, Lisboa, 1975 (1.a edição 1810). 9 – J.B.F. Carrère, ob. cit., p. 29. 10 – Francisco Coelho de Figueiredo, Theatro de Manuel de Figueiredo, vol. XIII, p. 555, cit. por Castelo Branco Chaves, notas a J.B.F. Carrère, ob. cit., p. 150.

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A Praça do Real Arco demonstrada Manuel J. Gandra*

Tu, Senhor, todas as coisas dispuseste com medida e conta e peso. Sabedoria, XI, 21

A Baixa Pombalina acha-se concebida como um autêntico cosmograma ou, por outras palavras, a sua estrutura e configuração resumem analogicamente as leis e cânones anistóricos do cosmos, tal qual estes têm sido tradicionalmente assumidos e legitimados pela prática construtiva, sob a tripla fórmula, sistematizada no Ocidente pelos collegia fabrorum latinos para usufruto dos gromatici, a saber: os quatro Horizontes, as duas Vias e os três Recintos. A propósito dela escrevia Clemente de Alexandria: “De Deus, Coração do Universo, partem as extensões indefinidas que se dirigem, uma para cima, outra para baixo, uma para a frente e outra para trás. Voltando o seu olhar para cada uma dessas seis direcções cria o mundo. Em Deus se contêm as seis fases do tempo e é dele que elas recebem a sua extensão indefinida. Nisso reside o segredo do número sete.” Tais enunciados cosmogónicos emergem de um âmbito semântico específico, cujo alcance convém elucidar, aplicando-os ao objecto em análise: 1) Os quatro Horizontes: a sua figura canónica é a cruz, a qual representa, entre outras coisas, os pontos Cardeais ou quatro domicílios do Sol no decurso dos seus ciclos quotiMONUMENTOS

diano e anual (quatro Estações e por extensão os doze signos zodiacais). Exprime simbolicamente a dialéctica Dia-Noite ou Luz-Trevas, por intermédio da dinâmica circular que insere o factor Tempo (Cardo maximus, braço vertical ou dos solstícios = Rua Augusta) no factor Espaço (Decumanus maximus, braço horizontal ou dos equinócios = Rua da Conceição: Igreja da Madalena = Primavera = Carneiro; Convento de São Francisco = Outono = Balança). 2) As duas Vias: conduzem às portas solsticiais, sendo representadas por Janus, porteiro celeste, o deus bifronte ou Senhor das duas Vias (Y pitagórico), detentor (como São Pedro) das chaves dourada e prateada dos Grandes e dos Pequenos Mistérios, da Porta dos Deuses ou Empíreo (Janua Coeli = Capricórnio / domicílio de Saturno / Inverno = Rua dos Ourives ou do Ouro) e da Porta dos Homens ou Hades (Janua Inferni = Caranguejo / domicílio da Lua / Verão = Rua Bela da Rainha, dos Ourives da Prata ou, simplesmente, da Prata)1. O Cardo maximus (Rua Augusta) resume-as: segundo Porfírio “O Cancer [Sul] é favorável à descida e o Capricórnio [Norte] à subida”2. No caso vertente, o advogado da Porta setentrional (pela qual se acede aos conventos da Anunciada e da Encarnação, no 35 Setembro 94

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Monte de Santana) é Santo Antão3, cuja festa cai a 17 de Janeiro, em pleno signo do Capricórnio, enquanto o Cais das Colunas conduz ao aquático Câncer (a indispensável purificação antes da passagem a um estado superior). 3) Os três Recintos: a mundividência suposta nesta tripartição assenta, segundo Georges Dumezil, em três energias ou ordens que garantem o curso do mundo, a saber: a soberania, regida pelo céu e representada pelo templo (oratores ou clero = Rossio, a norte, Palácio da Inquisição e Igreja de São Domingos); a fecundidade que radica no mundo subterrâneo e se materializa no celeiro (laboratores ou povo = Praça da Figueira, a nascente); a força que age no mundo terrestre e tem sede no paço (bellatores ou nobreza = Real Praça do Comércio, a sul, Ministérios do Reino). Nesta trifuncionalidade a que Platão se reporta quando descreve a Alma do Mundo (mistura de três substâncias, uma indivisível outra divisível, ligadas por um “misto”), patenteada pelos três degraus do pelourinho (réplica do altar védico), se baseia a organização social convencional no Antigo Regime, conforme a tese de Georges Duby sobre o imaginário do feudalismo. Torna-se, assim, evidente a razão por que nenhuma das partes constituintes da obra pombalina pode ser alienada sem prejuízo do todo e dos seus habitantes, inexoravelmente influenciados pelo clima psíquico exercido pelos elementos dominantes da estrutura física da cidade. Se confrontado com os restantes projectos destinados à reconstrução da Baixa lisboeta submetidos a Pombal, o subscrito por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, destaca-se não apenas por denotar uma assinalável coerência formal, como, particularmente, mercê do seu carácter ostensivamente emblemático, o qual deu a José-Augusto França azo a clamar que concordava com o pensamento político do marquês e que influira de forma determinante no modo como este o acolhera e pusera em execução. Uma vez que é por demais duvidosa a absoluta subordinação do plano ao programa MONUMENTOS

pró-burguês pombalino, consoante o sacrossanto e reiterado enunciado de Augusto França, que ideário consubstanciaria, afinal, esse carácter emblemático alegadamente tão do agrado do ministro de D. José? E por que razão nos projectos apresentados pelos demais concorrentes, detentores de idêntica formação teórica e qualificados oficiais do seu ofício, designadamente no da parceria Eugénio dos Santos e António Carlos Andreas, nem sequer vislumbres são detectáveis da disciplina do plano que toma a proposta, em cujo traçado Mardel interveio, singular?4 Foi, em suma, a sua adequação às preocupações regalistas herdadas de D. João V, e já compendiadas pelo Magnânimo no palácio cenóbio de Mafra, que influenciou decisivamente Sebastião José de Carvalho e Melo. A constatação não é inovadora, porquanto Luís Chaves implicitamente a contemplou ao admitir a adaptação do plano do Convento de Mafra ao Terreiro do Paço5. Adaptação formal, com efeito, mas sobretudo metafórica e evocativa dos topoi semânticos do eschaton nacional. É o caso, entre outros, da utilização de certos números, como o 17 e seus múltiplos6: na declinação do Cardo relativamente ao eixo do Norte verdadeiro e a alguns secundários; no cômputo das artérias (8 ruas no sentido sul-norte e 9 no leste-oeste); nas relações angulares, em geral; nos arcos da Praça do Comércio, etc. Como, porém, o di arithmon da tratadística greco-latina (provado mediante números), passa por ser fórmula menos precisa que o dia ton grammon (provado com o auxílio de linhas, ou construções geométricas), é conveniente submeter o modelo teórico da Baixa à regra do compasso e do esquadro com o objectivo de apurar qual a simetria que o rege. Considere-se, então, a zona de intervenção, excluindo os três Recintos. A área em apreço ficará confinada num rectângulo cujas extremas são: o Rossio, a norte; as ruas do Carmo e Nova do Almada, a poente; a Praça do Comércio, a sul; a Rua da Madalena, a nascente. Dentro desse rectângulo coexistiam originalmente dois módulos: um residencial, consti37 Setembro 94

Fig. 1 (página anterior) Modelo teórico da Baixa Pombalina com traçado gerador. Desenho do autor.

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Fig. 2 Baixo-relevo de Machado de Castro inspirado em Cesare Ripa

tuído por quarteirões orientados norte-sul, e outro administrativo, formado por quarteirões orientados nascente-poente, situado entre a Rua da Conceição e o Terreiro do Paço. O desenho aprovado revela que o primeiro desses módulos configura um quadrado cuja diagonal rebatida gera o limite sul do segundo, a totalidade desse espaço constituindo um rectângulo √2. O rebatimento da diagonal da metade do aludido quadrado gera uma secção MONUMENTOS

áurea, na mediana de cujo lado meridional assenta a estátua de D. José. O monumento não preenche o centro geométrico da praça, todavia essa aparente deficiência de cálculo não resulta de uma qualquer causa aleatória, muito pelo contrário, uma vez que o local foi objecto de ritual que lhe superlativou a sacralidade7. De resto, o centro virtual ou omphalos que manifesta será o polarizador da retórica geometrizante de que o sobe38 Setembro 94

rano absoluto é, concomitantemente, a encarnação e o dispensador. A sua qualidade de Rei-Máquina fica subentendida pela forma como a própria estátua se viu transportada desde a fundição e colocada no pedestal. Encontrando-se no centro, o rei situa-se no cume. A sua entronização no topo do obelisco, simulado pelo plinto da estátua, assinala-o como Sol sempre Augusto, governando como Pai da Pátria e Sacra Majestade (Invicta, Pia e Justa), com a missão de reconduzir os elementos caóticos (as serpentes que o seu cavalo esmaga sob os cacos) à harmonia cósmica. Em torno a si, e a seus pés, mostra-se o mundo todo (suburbia), enquanto Ele recapitula a História à Luz da Eternidade. Não admira, pois, que na cerimónia de inaguração da estátua, coroamento de todo o projecto, Apolo, Oceano, Portugal Triunfante e os quatro continentes tenham ido todos prestar vassalagem ao soberano. Efectivamente, a estátua equestre irradia a partir do foco de uma circunferência que igualmente constitui o foco de um triângulo equilátero nela inscrito e cujos vértices coincidem com os eixos da Rua Augusta e das portas laterais dos torreões do Ministério da Guerra e da Alfândega8. Ganha deste modo maior consistência e significado a observação de Helmut Wohl, segundo o qual “as contribuições de Mardel residem na qualidade dos seus desenhos e nas suas inovações relativamente a um certo número de problemas arquitectónicos”, ou aquela outra onde sublinha que “era extremamente sensível à beleza das formas simples e não decoradas”9. A circunstância, que jamais originou qualquer reparo relevante10, de Carlos Mardel constar como participante nos conclaves da Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, cujas actividades um inquérito da Inquisição, intitulado Sumário das Testemunhas que se tirarão a respeito dos Pedreiros Livres11, pretendia investigar, lança ainda alguma luz sobre o caso. De facto, num dos depoimentos de Miguel O’Kelly, este afirma a dado passo: “[…] E nas ocasiões em que entrava algum de novo, estando demais na dita casa três tochas acesas, em figura triangular, em que simbolizavam o MONUMENTOS

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Fig.3 Pormenor da Fig. 2.

Sol, a Lua e o Grão-Mestre, também havia na mesma casa a figura do Sol, feita de papelão dourado e a da Lua, de papelão prateado e uma proporção matemática [delta = 47.a proposição de Euclides], feita de papelão cortado […] e também havia na mesma casa nas ditas ocasiões as quatro letras iniciais dos quatro ventos principais: Norte, Sul, Leste, Oeste”.12 Resta determinar em que medida a tão omnipresente Casa dos Vinte e Quatro13 e bem assim a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, ambas consabidamente herdeiras dos mesteirais e da sua ética corporativa14, influenciaram as opções feitas. Uma coisa parece indubitável. O baixo-relevo colocado na face do pedestal “que olha a cidade” serve de autêntico epítome à obra pombalina. Machado de Castro declara ter-se inspirado na Iconologia de Cesare Ripa para a elaboração dessa Invenção poética15: assim, nela são reconhecíveis a Generosidade Régia (Real donzela) acompanhada por um leão e uma cegonha, o Governo da República (varão vestido de couraça) amparando a Cidade de Lisboa, o Amor da Virtude (menino alado coroado de louro e uma estrela) conduzindo pelo braço ao Governo da República, o Comércio (varão abrindo um cofre) oferecendo riquezas à Generosidade Régia, a Providência Humana (matrona coroada de espigas de trigo, ostentando um leme e duas chaves) e a Arquitectura (segurando a planta onde se vê o plano da reedificação, um compasso e um esquadro) . Os 39 Setembro 94

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objectos apresentados pelas Providência Humana e Arquitectura denunciam, tal como na obra de Ripa, o seu verdadeiro alcance: aquela ocupa o lugar de Janus (as duas chaves e o leme), ao passo que esta evoca o Criador e os que dão pelo nome de pedreiros livres. Em face do exposto, não serão, por consequência, dispiciendas as palavras seguintes do marquês de Pombal dirigidas ao seu monarca: “A grande cortina que no felicíssimo dia 6 do corrente mês de Junho de 1775, descobriu a Régia Estátua de El-Rei meu Senhor, veio a

Notas 1 – Segundo um axioma consagrado por Homero, no episódio da gruta de Ítaca descrita na Odisseia, as almas “descem” pela porta Sul ou dos Homens (Caranguejo) e “sobem” pela porta Norte ou dos Deuses (Capricórnio) do Zodíaco. No cristianismo, o simbolismo da escada de Jacob encerra a mesma ideia, tendo inspirado patriarcas e doutores. 2 – Janus também é conhecido por Mestre do triplo tempo, sendo por vezes representado com três rostos, na ordem do passado, do eterno presente e do futuro. Outro dos seus atributos é a barca, também distintivo de São Pedro. 3 – Do grego An + ateneus, aquele que suporta as coisas do alto. A direcção norte representa o eixo do frio, das trevas e dos perigos demoníacos, o que explica a presença do eremita, combatente do demónio, nessa extremidade da cidade. Curiosamente, é na Rua das Portas de Santo Antão que se localiza o Ateneu Comercial de Lisboa… 4 – Instituto Geográfico Cadastral, n.o 219. Publicado por Vieira da Silva, Plantas topográficas de Lisboa, Lisboa, 1950. Ainda não surge contemplada a Praça da Figueira, só posteriormente desenhada em duas plantas existentes no mesmo Instituto. A atribuição exclusiva do plano a Eugénio dos Santos é uma mera suposição confessada por Augusto França, não obstante ter à vista o autógrafo de Carlos Mardel. Cf. Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, 1965, p. 73. 5 – Cf. Mafra: o Monumento, separata da Rev. de Guimarães (1963), p. 9. A sobreposição das plantas de ambos os “edifícios” à mesma escala revela que os tor-

manifestar nos dias sucessivos ao claro conhecimento de todos aqueles que, não passando da superfície dos objectos que lhes presentam à vista, passam a investigar e compreender a substância das coisas, que Sua Majestade não só tem inteiramente dissipado as trevas e reparado as ruínas em que achou sepultados os seus Reinos, mas que além disso tem feito aparecer outra vez em Portugal o século feliz dos Senhores Reis D. Manuel e D. João III, para os exceder com os progressos das suas paternais, magnânimas e infatigáveis providências.”16 "

reões de Mafra “encaixam” perfeitamente nos do Terreiro do Paço, que funciona como autêntico “negativo” para o “positivo” mafrense, o qual preenche todo o espaço até à Rua da Conceição. A estátua de D. José coincide com o altar-mor da basílica. 6 – Manuel J. Gandra, Ourique, como categoria escatológica da portugalidade, Mafra, 1991. 7 – A praça só existia em projecto quando se lançou a primeira pedra do monumento, para assinalar o local. 8 – O triângulo em causa reproduz a tétrada pitagórica (1+2+3+4 = 10). 9 – Cf. “Carlos Mardel and his Lisbon Architecture”, in Apollo, n.o 134 (Abril 1973), p. 357. 10 – O Sumário foi estudado por Barbosa Sueiro, Um inquérito da Inquisição de Lisboa no século XVIII, Lisboa, 1930; Sidney Vatcher, “A Lodge of lrishmen at Lisbon, 1738: an early record of Inquisition Proceedings”, in Ars Quatuor Coronatorum, v. 84 (1971), p. 75-109; Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, v. 2, t. 2, Lisboa, 1980, p. 439-526; António Egídio Fernandes Loja, A Luta do Poder contra a Maçonaria: quatro perseguições no século XVIII, Lisboa, 1986, p. 13-67. Apenas o Prof. Silva Dias aflora a questão. 11 – AN/TT: caderno 108 (300 da Ordem) do Promotor, f. 408r- 474r. Mardel é citado nos depoimentos de Frei Carlos O’Kelley (f. 409v; Silva Dias, ob. cit., p. 443), Dionísio Hogan (f. 424v; p. 468), Diogo O’Kelley (f.465v; p. 517) e Miguel O’KelIey (f. 467; p. 519). 12 – Cf. Silva Dias, ob. cit., p. 521. 13 – Na definição da toponímia dos arruamentos da Baixa (decreto de 5 de

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Novembro de 1760) e no patrocínio dado à elevação do monumento equestre (“Collegi Negotiarum curans”). Apesar de não existirem documentos que permitam estabelecer com segurança o início das corporações de ofícios em Portugal e da sua criação oficial em Lisboa datar apenas dos últimos dias de Dezembro de 1383, presume-se que a Casa dos Vinte e Quatro tenha mantido operativos grande número de preceitos transmitidos pelos collegia fabrorum latinos, cujos magistério e influência terão persistido incólumes graças às guildas medievais. A sua hierarquia (aprendiz, oficial, mestre, escrivão, depositário, alferes e juiz do ofício) apresenta certo paralelismo com a praticada pela Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia (aprendiz, oficial, mestre, e as dignidades funcionais de mação excelente e mação grande). 14 – O Grão-Mestre da Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia alude à existência no seu grémio de 2 ou 3 pedreiros livres mecânicos. 15 – Exceptua a matrona que figura Lisboa. Cf. “Descripção analytica”, p. 194-197, in Escritos Diversos, p. 360-361. 16 – Observações secretíssimas do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello na ocasião da inauguração da Estátua Equestre no dia 6 de Junho de 1775, e entregues por ele mesmo, oito dias depois ao Senhor Rei D.José I, in Cartas e outras obras selectas do marquês de pombal, ministro e secretário d’Estado d’el-Rei D. Jozé I com o epítome da vida deste ministro e ornado do seu retrato, Lisboa, 1822, p. 15-16.

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu Victor Eleutério

Na manhã de 1 de Novembro de 1755 Lisboa ficou por terra em poucos minutos. Desabaram e foram fundir-se no esmagamento os seus três teatros, o Teatro Real da Ópera do Tejo, o Pátio das Arcas e o Pátio das Hortas dos Condes. No meio da ruína também ficaram sepultadas as casas de representação de Bonifrates, da Mouraria e do Bairro Alto, onde as óperas do Judeu foram, com sucesso, levadas à cena. Perante tais perdas em espaços teatrais, o marquês de Pombal projectaria dar a Lisboa um teatro condigno da capital, a construir-se na zona da Baixa perto do Terreiro do Paço, de que chegou a haver projecto. O que hoje se divulga resulta do achado e da sua respectiva identificação, que irá contabilizar pontos favoráveis ao estadista Sebastião José de Carvalho e Melo.

O teatro chamado da Ópera do Tejo, mandado construir por D. José junto aos Paços da Ribeira, foi traçado de forma grandiosa. Crê-se que superava quantos havia na Europa, quer pelas suas dimensões, quer pelo fausto com que foram decorados os sumptuosos interiores. Entre um estudo encomendado a João Frederico Ludovice e o projecto apresentado por Giovanni Carlo Sicini Bibiena para a construção do teatro régio, o soberano decidiu-se pela entrega da edificação do espaço teatral no Terreiro do Paço ao arquitecto membro da conhecida família de cenógrafos italianos. Com Bibiena trabalharam outros arquitectos e decoradores como Inácio de Oliveira Bernardes, que dirigiu a obra durante a ausência daquele responsável, que no final foi substituído por Jacopo Azolini. Vieram de Itália, MONUMENTOS

expressamente para a construção do Teatro da Ópera, Marcos, que era pintor de figura, e Paulo, pintor de temas de guerra. José António Narciso interveio na execução dos planos projectados por Oliveira Bernardes, e Lourenço da Cunha, pai do matemático José Anastácio da Cunha, regressado de Itália e considerado o melhor pintor português de perspectiva e decoração e tido por rival de Basarelli e émulo de Bibiena, significou também um contributo importante nas decorações de interiores do teatro. Nicolau Servandoni e Petronio Manzoni, dois excelentes cenógrafos, ocuparam nele cargos de maquinistas de tramóia teatral. Foi inaugurado a 31 de Março de 1755, no aniversário da rainha, com a ópera de David Perez, Alessandro nel’Indie. 41 Setembro 94

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Fig. 1 A denominada planta pombalina, elaborada por Eugénio dos Santos e Carvalho e Carlos Mardel, na qual se sobrepõe à Lisboa pré-terramoto a cidade reedificada segundo o plano de Pombal. Plantas topográficas de Lisboa, Augusto Vieira da Silva, Câmara Municipal de Lisboa, 1950.

Sete meses decorridos, no dia 1 de Novembro, sob o efeito do mais forte abalo sísmico sentido na capital e, que no dizer de uma testemunha que foi o padre José de Castro, “chegou menino a Lisboa e ficou gigante em poucos momentos”, seguido de incêndios, ficou o Teatro Real da Ópera do Tejo reduzido a um montão de cinzas. Todas as plantas relativas a tão grandioso edifício perderam-se no terramoto, podendo conjecturar-se como seria a sua grandeza através da gravura que dele traçou Philippe Le Bas, em 1757, colhendo pormenores sobre o estado das ruínas. Uma descrição relativa à Ópera do Tejo feita pelo cavaleiro des Courtils, chegado ao porto de Lisboa em Junho, numa esquadra francesa em visita de rotina, é elucidativa da fabulosa riqueza com que foi construído: “Houve duas representações durante a nossa estada em Lisboa. O Rei convidou-nos das duas vezes. Recomendara aos principais senhores da sua corte para nos fazer as honras do espectáculo e para nos ceder de preferência os melhores luMONUMENTOS

gares. Os portugueses naturalmente educados e afáveis, cumpriram à maravilha esta ordem. Representou-se La Clémence de Titus do célebre mestre Astasi (sic), o Corneille do teatro italiano. As decorações e o espectáculo são soberbos. O teatro enorme, sumptuosamente adornado, encantou os nossos olhos. Houve outros a quem ela não agradou. São capões que cantam e representam indiferentemente (alusão aos cantores castrados) os papéis de homens e de mulheres. O recitativo pareceu-me dos mais maçadores. O gosto da música italiana desagradou aos franceses que a ela não estavam acostumados. Não pretendo que o seu gosto prevaleça sobre o de toda a Europa, que prefere a música italiana. Contento-me em dizer que ela não me agradou muito.” Assim narrava o oficial, no tocante ao Teatro da Ópera, no seu Diário de Viagem da Armada do Rei de França, na forma de cartas enviadas a sua mãe que, mais tarde, quando reunidos os escritos, foi editado sob o título de Description de Lisbonne.1

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu

Quanto ao local onde o Teatro da Ópera esteve situado, nos parcos sete meses da sua existência, poderá adiantar-se que foi no espaço hoje ocupado pelo Ministério da Marinha, na Rua do Arsenal. A última referência encontrada relativa ao Teatro Real está exarada numa escritura lavrada no cartório do tabelião Roberto Soares da Silva, localizado frente à Igreja de São Paulo, a de antes do terramoto, a 30 de Outubro, a 48 horas do sinistro. Dois dias depois tal teatro de existência tão precária desaparecia juntamente com os Paços da Ribeira, Casa da Índia e Patriarcal, edifícios que lhe ficavam junto. “(…) aos trinta dias do mês de Outubro na cidade de Lisboa, defronte da Igreja de S. Paulo, no meu escritório, apareceu, presente, Bernardo Fernandes Chaves, mercador de mercearia, morador na Rua Direita dos Cobertos (a Rua do Arsenal de hoje), junto da Ópera (…)”.2 Tem admirado muita gente que o marquês de Pombal, tão grande estadista que não só varreu cinzas como removeu ruínas para levantar a nova cidade de Lisboa, não tivesse construído também um teatro digno desta capital. A contrariar quantos lhe assacam tal demérito, o ministro Carvalho e Melo, muito tempo antes de dar aos comediantes portugueses a sua carta de alforria na forma de alvará em 17 de Julho de 1771, quis dotar a cidade de um teatro que fizesse esquecer os velhos pátios das Arcas e das Hortas dos Condes que o terramoto destruíra. Tal teatro foi projectado para ocupar o segundo quarteirão da Rua do Ouro, à esquerda de quem a desce no sentido da Praça do Comércio. Teve plantas, alçados e pormenores de decoração de um dos engenheiros a quem estava acometido o projecto de relançar a cidade, em 1756. Situar-se-ia entre a Rua do Ouro, a Rua dos Sapateiros, a Rua da Assunção e a Rua de Santa Justa, sendo o acesso principal pela Rua da Assunção. Tais plantas, alçados e pormenores de decoração dos interiores encontram-se entre o acervo histórico do Arquivo do Ministério das Obras PúbliMONUMENTOS

cas, Transportes e Comunicações e têm permanecido sob a ausência de uma designação específica.3 É tempo que sejam resgatados do desconhecimento sendo-lhes aposta a correcta designação identificadora de “teatro projectado pela administração pombalina para ser construído em Lisboa”. Não chegou a sê-lo por força de vicissitudes ligadas com as sucessivas alterações ao projecto inicialmente previsto para a Baixa Pombalina, ou por falta de interesse por parte da iniciativa privada, mas tem o seu valor histórico na cronologia do estudo dos espaços cénicos da capital. A primeira tela é constituída pelas plantas 1 a 3, respectivamente, plano térreo, 1.o plano e 2.o plano, este idêntico aos cinco restantes do edifício, com a indicação expressa de ser “pa a construção de hum teatro no lugar apontado segdo o uzo da corte com servidão separada pa as Peçoas Reaes e Seos Criados”. A segunda tela detalha a obra através de três cortes transversais e um longitudinal. De notar que nele está pormenorizado um fragmento da sala onde se definem as seis ordens de camarotes e o perfil da plateia. Deixa crer que teria cento e um camarotes de cada lado, um camarote real e cinco no seu enfiamento. A plateia seria composta por vinte e nove filas e um número indeterminado de cadeiras por cada fiada. No mesmo estudo, em detalhe, é possível apreciar-se o tipo de decoração sugerido para frisos e cercadura do tecto da sala, bem como outros aspectos ornamentais. Um brilhante projecto para sala de espectáculos de Lisboa que, a ter sido executado, em noites de representação seria iluminada por milhares de candeeiros de azeite. O simples acto de cotejar o projecto descrito com o do Teatro da Ópera do Tejo, ou compará-lo com o Teatro São Carlos, permite-nos classificar o hipotético espaço teatral da Rua do Ouro de mais ambicioso e que, a ter passado ao plano concreto, teríamos hoje um teatro de grandeza e sumptuosidade superiores às do teatro nacional de ópera existente. 43 Setembro 94

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu

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Fig. 2 e 3 Planta e corte longitudinal do projecto da Real Casa da Ópera do Tejo, de Giovanni Carlo Bibiena, que não foi executado, conforme se concluiu na Conferência de 23 de Junho de 1933, na Academia de Belas-Artes. (Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes.)

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MONUMENTOS

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu

Reedificação do Rossio e ruas adjacentes É vasta a legislação que regulamentou a reedificação do Rossio e ruas adjacentes até ao Terreiro do Paço, quer as nobres, quer as travessas, e a respectiva entrega de terrenos entre os quais estaria compreendido o que se reservara para teatro. Por mais antigo está o Alvará de 29 de Novembro de 1755, que dava condições para que o ministro da inspecção de cada bairro procedesse ao levantamento de todas as ruas, praças e edifícios públicos existentes em 31 de Outubro, a fim de elaborar um cadastro de cada um dos bairros da capital. A Lei de 12 de Maio de 1758 estabeleceu os direitos públicos da edificação por meio de “um plano decoroso, digno da capital” e determinou que os terrenos em que se deveriam levantar os edifícios se principiassem a entregar. Em 12 de Junho de 1759 era, finalmente, autorizada a edificação do Rossio e dada ordem para entrega dos terrenos das ruas que antes se chamavam dos Ourives do Ouro, dos Douradores e dos Escudeiros, que seriam integrados na nova rua nobre denominada Augusta. O Alvará de 15 do mesmo mês ampliava o de 12 de Maio de 1758 e ordenava de novo a entrega dos terrenos para a sua edificação, conforme o regulamentado pelo novo alinhamento, com as medidas determinadas na referida lei. Quatro dias depois legislava-se no sentido de subir o nível do chão da Praça do Rossio e ruas adjacentes enquanto se procedia, em simultâneo, à entrega dos terrenos pela banda da Rua Nova ou da Praça do Comércio, sem que uma fosse obrigada a esperar pela outra. Um alvará do mesmo dia definia as regras de entrega dos terrenos na banda do Valverde, o alinhamento do Palácio dos Estáos (Inquisição), da rua que ia para as Portas de Santo Antão, da que ia da Praça do Rossio pelo lado setentrional do Convento de São Domingos, tal como se definia na planta da cidade. DeliMONUMENTOS

neava-se um pórtico no lado meridional da Praça do Rossio de modo que servisse como passagem para a Rua Nova da Palma e a Rua dos Canos, a antiga. A Lei de 28 de Outubro de 1760 ordenava a entrega dos terrenos que se achavam do lado norte do Terreiro do Paço, cujo domínio pertencia a um só dono, devendo ser acomodados de um e outro lado da rua que se denominava Bela da Rainha, a qual saía do canto setentrional da praça e corria até onde antes se chamava Bitesga. Definia-se, assim, a Rua da Prata. A 5 de Novembro desse ano saiu o decreto régio que mandava arruar os comerciantes e os artífices, procedendo-se de modo a que os primeiros tivessem os seus arruamentos mais próximo da Alfândega e as várias espécies de ofícios se distribuíssem segundo o critério que o decreto estabelecia. A pouco e pouco a Baixa Pombalina arrumou-se e surgiu com a dignidade que a cidade de Lisboa requeria. Se para as ruas principais, ditas nobres, era exigida obediência quanto a alinhamento, simetria, altura dos edifícios e largura de cinquenta palmos para a serventia pública, para a conservação dos domínios na posse dos seus antigos donos, estes tinham, por vezes, que adquirir a área de outro imediato de modo a conformar a propriedade com a planta da rua e dar-lhe, pelo menos, vinte seis palmos completos nas suas frentes. O quarteirão compactamente destinado a espaço teatral não teria encontrado na diversidade de donos de domínios que o constituíam a unidade indispensável para consubstanciar tal projecto, nem ganho vontades de outros aquisidores para assumirem o empreendimento. Todo o chão que havia estado destinado à construção de tão bela sala de espectáculos terminaria, sendo entregue a potenciais interessados na construção para fins de habitação e comércio. Desvaneceu-se, assim, tão ambicioso projecto para um teatro pombalino. "

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Fig. 4 Ruínas da Casa da Ópera, gravura de Jacques Philippe Le Bas. É a n.o 4 na Colleção de algumas ruinas de Lisboa causadas pelo terremoto e fogo do primeiro de Novembro do anno de 1755, MM Paris et Pedegache, 1757.

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu

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Fig. 5 Corte longitudinal do projecto do teatro pombalino com o pormenor do interior da sala e respectiva decoração. (Lisboa, Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.)

Fig. 6 Plantas das fundações, da plateia e do último andar, respectivamente, do teatro pombalino. (Lisboa, Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.)

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Crónica de um teatro efémero e de outro que não existiu

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Fig. 7 Alçado lateral esquerdo do Teatro Nacional de São Carlos. (Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes.)

Fig. 8 Corte longitudinal do projecto do Teatro Nacional de São Carlos. (Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes.)

Notas 1 – Chevalier des Courtils, Description de Lisbonne, extraits du Journal de la campagne des vaisseaux du Roy, en 1755, publicada por Jacques Aman, com notas de Alain-Albert Bourbon, in Bulletin des Études Portugaises, Paris-Lisboa, 1965, tomo 26, pp. 165-180.

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2 – AN/TT, Cartórios Notariais, C 2 – Maço I, livro I, Fólio 11r. 3 – Cota D-16A, Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

O Palácio de Estói Projecto de recuperação e adaptação a residência oficial

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Maria Fernandes*

Todo o complexo de valor arquitectónico e paisagístico encontra-se dissimulado na paisagem, apesar da dimensão do conjunto e da implantação do palácio em ponto alto (fig. 1). O conjunto mencionado está discretamente “escondido” entre os acessos sinuosos e “entalado” no tecido urbano da pequena aldeia de Estói.

Do sítio e da história

Fig. 1 A aldeia de Estói, no canto inferior esquerdo o palácio.

Do conjunto e localização O conjunto dos jardins, palácio e área rural envolvente localizam-se na aldeia de Estói, a cerca de 10 quilómetros da capital de distrito, Faro. O complexo, com a área aproximada de 4 hectares, fica próximo das ruínas romanas de Milreu (século II d.C.), da igreja paroquial (séculos XVI-XVII) e no centro do aglomerado urbano, onde predominam construções de arquitectura popular. MONUMENTOS

A primeira estrutura que se conhece deste conjunto são os jardins com uma pequena residência, pertencentes ao bispo de Faro no século XVIII1. A construção do palácio só se iniciou em 1840, prolongando-se por 20 anos. Desconhece-se o autor do projecto e o traçado inicial do edifício. Sabe-se que em 1875 o edifício estava abandonado, o que levou a imprensa de então a publicar um artigo com a única fotografia conhecida do primitivo palácio2. Dezoito anos depois o edifício é adquirido por um burguês local, que o restaura, redecora e transforma, sendo esta a imagem que nos chega ao século XX. Em 1977 o conjunto é classificado como imóvel de interesse público3 e dez anos mais tarde é adquirido pela Câmara Municipal de Faro, data a partir da qual os jardins foram abertos ao público. 48 Setembro 94

O Palácio de Estói

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Do palácio e composição O edifício desenvolve-se apenas num piso, de planta em U, em torno de um jardim quadrangular, o jardim do Carrascal (fig. 2). O acesso faz-se por este “átrio exterior”, através do eixo central do edifício. A composição neobarroca do palácio e os efeitos cénicos e simétricos da composição são levados à exaustão na sua construção. O exterior caracteriza-se pela simetria perfeita em fachada sem correspondência interior (figs. 3 e 4), onde o excelente trabalho de argamassas imita na perfeição o calcário; e o interior não simétrico contém, em termos de revestimentos, um trabalho de estuques que não permite diferenciar a madeira autêntica da artística (fig. 5).

Do existente e do seu estado de conservação O palácio contém 23 divisões e 5 anexos (torre sineira, torre de acesso às coberturas, depósito de água e duas casas de fresco). Estas divisões interiores, de formas quadradas e rectangulares, estão interligadas por corredores estreitos e compridos, apesar de maioritariamente os compartimentos comunicarem entre si (figs. 7 e 8). Em 1992, a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais decide realizar obras de conservação no palácio afim de minimizar e controlar os efeitos de degradação progressiva que se vinham verificando. À data da intervenção no palácio, as funções e usos dos espaços eram fruto de diversas adaptações e ampliações que o edifício sofreu ao longo de um século, nomeadamente a subdivisão de espaços para a construção de sanitários e arrecadações. As principais patologias surgem ao nível da: – destruição de estuques, motivada pela presença de humidades de origem capilar e por infiltração das coberturas (figs. 5 e 8); MONUMENTOS

– descolagem de pinturas e tectos, motivada por condensações e falta de ventilação no edifício (fig. 7); – destruição da caixilharia exterior em madeira por falta de pintura e devido aos agentes atmosféricos (fig. 9); – descolagem de rebocos devido às intervenções pontuais de reparações em material distinto do paramento (fig. 9); – entupimento da rede de drenagem de águas pluviais, devido à falta de manutenção, provocando humidades no interior do imóvel e a total desactivação do sistema de fontes e repuxos existentes no jardim.

Das obras preliminares e do projecto de recuperação As obras então realizadas, e financiadas pelo Plano de Investimentos de Defesa e Valorização do Património Cultural (PIDDAC), constaram da substituição total de telhas nas coberturas (fig. 12), limpeza e recuperação de algerozes, substituição de prumadas, renovação integral de rebocos (figs. 10 e 12), substituição de caixilhos exteriores (fig. 10) 49 Setembro 94

Fig. 2 Fachada nordeste após as obras. Entrada do palácio, pelo jardim do Carrascal. Ao centro, o eixo de acesso e composição neobarroca, que se estende pelos jardins.

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Fig. 3 Jardim formal e casas de fresco antes das obras de recuperação.

e recuperação da rede de drenagem de águas pluviais. Os trabalhos de reboco confirmaram a ampliação recente do palácio, já detectada ao ní-

paredes e no traçado da rede pluvial permitiu conhecer o circuito e armazenamento das águas que alimentavam as fontes (circuito este que se pretende reactivar). O levantamento da cobertura permitiu conhecer toda a estrutura de asnas (fig. 13), e verificar o bom estado de conservação em que se encontrava. Finalmente, o levantamento de pavimentos interiores detectou a origem das humidades capilares no interior devidas à ausência total de enrocamento, ou seja, os pavimentos assentam directamente no terreno.

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Da metodologia e do projecto de adaptação

Fig. 4 Fachada sudoeste do palácio antes das obras de recuperação. Vista do jardim formal.

vel do traçado (o revestimento primitivo era simplesmente pigmentado em rosa ou ocre). A substituição de prumadas no interior das MONUMENTOS

Como metodologia de intervenção procurou-se: – recolher o máximo de documentação, para conhecimento profundo do imóvel no seu contexto histórico, físico e cultural; – respeitar os materiais originais; – aceitar todas as fases históricas do imóvel em igual valor; – equacionar e avaliar os valores estéticos e históricos; – intervir minimamente sem falsificar4. Do programa ao nível do palácio fazem parte a definição de uma área com salas e serviços de apoio para recepções e audiências; três quartos com instalação sanitária privativa e uma suite presidencial autónoma de todas as restantes áreas. Definidos os objectivos principais da recuperação do conjunto, dividiu-se o edifício em três unidades de forma que o palácio pudesse funcionar por separado ou em conjunto conforme as exigências: – Unidade 1: zona de recepções e audiências, que inclui como zonas a restaurar os salões, a capela, sacristia e corredor principal; a adaptar com ligeiras alterações a cozinha, copa e um quarto para arrecadação e finalmente como zonas de intervenção profunda os quartos azul e rosa, para instalações sanitárias masculinas e femininas. Dependentes desta área encontram-se o jardim do Carrascal (como acesso) e o jardim formal (como apoio). 50 Setembro 94

O Palácio de Estói

Espaços exteriores afectos ao palácio – jardim do Carrascal – jardim das colunas – pátio – jardim formal

600 m2 390 m2 120 m2 90 m2

Fig. 5 Sala de estar, com decoração condizente com o mobiliário: destruição de tectos provocada por infiltrações.

240 m2 4225 m2 34 m2 841 m2

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PALÁCIO Área total útil – unidade 1 – unidade 2 – unidade 3

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– Unidade 2: zona de quartos, que inclui como zonas a adaptar os antigos quartos do palácio, agora com instalações sanitárias privativas, e para restaurar o corredor secundário e a antiga sala de pagamentos destinada a vestíbulo e acesso à unidade. Dependente desta unidade encontra-se o jardim das colunas. – Unidade 3: zona da suite presidencial, que inclui a total remodelação da zona de arrecadações e alguns quartos do palácio e, como área a restaurar, a sala de bilhar e o corredor de acesso. Dependente desta área encontram-se apenas o jardim formal (acesso) e o pátio interior.

Prevê-se, para além destas alterações, que o edifício fique dotado de redes de segurança contra incêndios e intrusão, instalações mecânicas de ventilação e ar condicionado, redes eléctricas, abastecimento de água, drenagem de esgotos, telefones e televisão de acordo e à escala do programa. Em termos de obras programou-se dividir em três fases distintas a abordagem do palácio: – a 1.a fase (que decorreu entre 1992-1993), obras preliminares concluídas; – a 2.a fase, obras de infra-estruturas, a iniciar brevemente para decurso em 1994; – e, finalmente, a última fase de revestimentos, acabamentos e restauros que está prevista para 1995. " Fig. 6 Sala de jantar: destruição generalizada de estuques em tectos e paredes.

* Arquitecta Direcção Regional dos Edifícios e Monumentos do Sul

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O Palácio de Estói

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Fig. 7 Pátio interior e coberturas antes das obras de recuperação: degradação generalizada de rebocos, telhas e balaustrada.

Fig. 8 Pátio interior e coberturas após as obras de recuperação.

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O Palácio de Estói

Fig. 9 Rodapé do corredor: destruição de estuque provocada pela presença de humidades, imitação quase perfeita de madeira em trabalho de estuque. Fig. 10 Descolagem de estuque, pertencente ao tecto do corredor. Fig. 11 Óculo antes das obras: degradação de rebocos e caixilhos. Imitação de cantaria com argamassa na moldura.

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Fig. 12 Janela após as obras de recuperação. Fig. 13 Pormenor de entrega de asna na parede de suporte. Fig. 14 Sistema de tectos falsos em estuque pregados em ripado paralelo sob estrutura de asna da cobertura.

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Notas

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1 – F. A. Oliveira, Monografia de Estói, Faro, 1914. 2 – “Jardim de Estói”, in O Algarve Ilustrado, Jornal Literário, I anno, 08/11/1880. 3 – Decreto n.o 129/77 de 24 de Setembro, DR, II.a série. 4 – C. Brandi, Teoria dei Restauro, lezioni racolle.

Câmara Municipal de Faro. 1994

O Jardim de Estói

Ou o romantismo na paisagem João Ceregeiro*

O tempo e o espaço no jardim – século XVIII Da estrada de Faro para São Brás de Alportel, próximo da ponte do rio Sêco, junto às ruínas da antiga villa romana de Milreu, a estrada liberta-se da planície regada e brilhante e Estói, a nascente, arruma-se branca na primeira encosta da serra do Monte-Figo entre as manchas desniveladas dos amendoais, olivais e os cordões de figueiras que penteiam a encosta seca e vermelha da serra. Do Barrocal, os alinhamentos de laranjeiras partem em direcção à vila e rematam-se no seu centro, onde tonalidades mais escuras descobrem os contornos de cedros e palmeiras que emergem das copas verdes de um grande jardim. O insólito acontece para além dos muros espessos e arredondados, defendidos pelas abóbadas de grandes mirantes. As alamedas de grandes árvores levam-nos até ao coração do jardim e os paramentos rosados dos muros misturam-se com panos de azulejaria azul. Balaustradas brancas contornam o horizonte entre estátuas e coruchéus numa misteriosa sucessão para aparecer a grande casa. Os seus vãos rasgados e debroados em rocaille acentuam a claridade da atmosfera, e MONUMENTOS

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O Jardim de Estói

as platibandas transparentes fazem imaginar um cenário de conto de fadas perdido nas hortas algarvias. As referências mais antigas do sítio são dos finais do século XVIII, quando a aldeia estaria dominada pelo extenso maciço de vegetação do jardim de uma casa de piso térreo. Desconhece-se o tipo de jardim que envolvia a casa na altura. O “jardim de Estoy”, denominação que privilegiava a existência de um jardim relativamente à casa, seria na época uma quinta de recreio pertencente a uma família da aristocracia e proprietários rurais. Para além da sua excelente localização, no terço médio inferior da encosta, orientada a sul-poente, voltada para o mar, dominando todo o barrocal até à linha de costa, a quinta tinha uma grande disponibilidade de água em quantidade e qualidade, possibilitando, num clima amenizado pela proximidade do oceano, o desenvolvimento de vegetação ornamental, nomeadamente exótica. Ao valor botânico estava associado o espírito coleccionista neste período e a quinta poderia ser um óptimo espaço de aclimatação de uma grande variedade de espécies. É possível que o sistema ajardinado fosse composto por um espaço de desenho mais formal junto à casa, um percurso de contemplação, possivelmente com acesso a um pomar e uma mata. Aqui algumas espécies exóticas atingem mais tarde porte secular, registo actual num monumental cipreste, Cupressus sempervirens, e em duas palmáceas, Archontophoenix cunninghamiana e Washingtonia filifera. A água teria forçosamente uma presença marcante no jardim como elemento decorativo e organizador do espaço, onde as grandes superfícies e águas correntes tinham um efeito tipicamente amenizador no microclima dos jardins do Sul. Seria num ambiente de um frondoso e fresco jardim de uma quinta de recreio que seria oferecida uma recepção ao governador e general francês Maurin, em 1808. MONUMENTOS

O jardim romântico Foi este o panorama até à década de quarenta, altura em que o proprietário do morgado, Fernando José Pereira do Carvalhal, fidalgo da casa real, com largas posses, viajado e frequentador da Corte e da sociedade, num período de estabilização política e económica do país empreende a construção e ampliação do sítio, apelidado de “jardim de Estoy”. A sobrevalorização do espaço natural no período romântico, a importância da sua imagem, dentro dos valores do homem moderno, privilegiaram a dimensão e a concepção do jardim, num espaço em que os factores paisagísticos foram aproveitados num projecto de autor desconhecido, que idealizou talvez o mais completo jardim romântico português. A procura de imagens de períodos estilísticos anteriores, referências arquitectónicas de outros modelos, permitiram estabelecer uma relação casa-jardim-paisagem, fortemente inspirada nas villas da alta renascença italiana, na volumetria da casa e dos espaços envolventes e, sobretudo, no contorno altimétrico que modela a encosta, sucedendo-se em vários níveis, até à planície coberta de pomares. O cenário clássico da casa sobre o jardim completa-se no desenho da estrutura principal deste, mais influenciado pelo planeamento racional do jardim francês do que pelas modelações paisagísticas e naturalizadas do picturesque inglês, que ditava os últimos cânones da composição nas grandes realizações europeias. O eixo central organiza o espaço exterior a partir da casa até ao grande portão, cenário triunfal da entrada principal da quinta. A arquitectura do jardim, e a sua relação com a casa, está mais próxima dos modelos do barroco nortenho que das quintas de recreio do Alentejo e arredores de Lisboa. O eixo não tem uma organização espacial simples. Atravessa vários espaços autónomos, em vários níveis, cada qual com o seu valor ou 55 Setembro 94

Fig. 1 (página anterior) Vista aérea.

O Jardim de Estói

João Ceregeiro, 1992-1993

João Ceregeiro, 1992-1993

Fig. 2 Escadarias e cascata.

ambiente próprio, personificados no grande lago, na cascata ou outro elemento do jardim e apontando para uma disposição simétrica como acontece na casa.

Fig. 3 Lago e alameda central.

A linha central começa no jardim do Carrascal, quadrado fechado como um claustro, espaço de acesso à entrada principal do edifício, continua pelo jardim do terraço junto à fachada nobre da casa, estrangula-se, numa MONUMENTOS

ponte, istmo de ligação com o sector sul do jardim, separado por uma serventia pública, para se abrir no grande lago central e separar-se no nível mais baixo, junto à cascata, em três direcções. Daqui partem alamedas que nos levam aos extremos do jardim, rematados por grandes mirantes semelhantes aos da Quinta das Laranjeiras em Lisboa e que têm um valor meramente cenográfico no local. Este convívio de um traçado clássico e monumental (apesar do reduzido comprimento do eixo), com espaços mais individualizados, de ambientes mais íntimos, conferindo de certo modo um secretismo próprio a cada momento do percurso, pôe à superfície a tradição do jardim português em Estói. A intimidade de cada local surge-nos como uma relação exclusiva do homem com um ambiente ou um espaço muito próprio. Estói é uma sucessão de acontecimentos ao longo de um eixo que nasce na casa e desaparece no laranjal. A água da grande fonte da vila entrava na quinta e juntava-se nos tanques do jardim, a nascente da casa, com as águas da nora velha e do poço. Regavam os pomares e enchiam as fontes do jardim formal e do Carrascal. As sobrantes eram recolhidas no lago grande. A sua descarga produzia um rugido abafado debaixo da terra, quando as águas se libertavam do grande lago para a cascata, escorrendo nas empenas embrechadas de calcário vermelho da região, para serem conduzidas nas caleiras de rega do grande pomar. É o fio de água do jardim árabe que não se perde, assumindo um papel vital e anímico, desenhando a própria arquitectura do jardim. Os candelabros para as grandes soirées não se acenderam, a música não tocou para os bailes no jardim formal, os convidados não passearam nas alamedas gravilhadas dos pomares. Em 1866 morre o último morgado, José Maria Pereira do Carvalhal, e as obras ainda não estão totalmente concluídas. A manutenção do local fica a cargo das suas irmãs até ao ano de 1875, altura em que a propriedade entra num processo de abandono com a morte da última herdeira. 56 Setembro 94

O Jardim de Estói

O “revival” do fim do século Só em 1893 é que a propriedade é comprada por Francisco José da Silva, farmacêutico e proprietário rural de Beja. Este alentejano, naturalmente sensível à beleza do local e à sua expressão dentro do ideal romântico que se respirava no fim do século, vai iniciar obras de restauro do jardim e palácio, contratando para esse efeito arquitectos e outros artistas plásticos que vão trabalhar ao longo de 16 anos na recuperação de toda a propriedade. As obras só terminam em 1909 e a inauguração dá-se com uma grande festa onde participa toda a vila. Aproveitando o desenho existente no jardim, a intervenção centra-se no reforço de aspectos decorativos e cenográficos a que o local se prestava. É introduzida numerosa estatuária, onde o gosto ecléctico da época é levado ao extremo com o emprego de vários tipos de materiais nas representações iconográficas, nos heróis helénicos, nas virtudes e alegorias pagãs, nas figuras políticas e da cultura alemã, nos poetas e polí-

ticos da nossa história. Completando este universo, pedestais com vasos, volutas, pináculos e coruchéus rematam muros rebocados de tons rosa do óxido de ferro nos paramentos lisos e ocre no reboco tirolês. Artistas e artesãos nacionais participam nas obras de cantaria, alvenaria e serralharia, com saliência para as oficinas de António da Silva Meira, José Maria Pereira Junior ou Francisco Luís Alves. Algumas superfícies de muros do jardim são cobertas por painéis de azulejos, imitação da antiga fábrica do Rato. Um jogo de mobiliário composto de bancos de ferro e mármore, pedestais, floreiras e nichos forrados a azulejo complementam a decoração nas áreas mais formais. Durante esta fase são recuperados os pavilhões de chá com pintura de frescos e lambril de azulejos, sendo o pavilhão dos homens nitidamente mais decorado. Neste processo de tratamento decorativo os pavimentos foram refeitos e na zona da cascata o mosaico tipo romano aparece não só ao nível do solo mas cobrindo as abóbadas com desenhos de figuras

1 – Palácio 2 – Parking e serviços 3 – Roseiral 4 – Amendoal 5 – Horta; viveiros 6 – Jardim formal 7 – Jardim temático Jardim aromático Jardim de flores Jardim medicinal Jardim hortícola 8 – Tanque de recreio 9 – Labirinto 10 – Lago central 11 – Cascata 12 – Pomar de citrinos 13 – Entrada principal 14 – Terreno de festas 15 – Picadeiro 16 – Restaurante; serviço cultural 17 – Court de ténis 18 – Nogueiral

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Fig. 4 Plano geral. Desenho do autor.

O Jardim de Estói

Fig. 5 Vista sobre o jardim formal, labirinto e pérgola (proposta). Desenho do autor.

marinhas, possivelmente inspiradas nas peças de Milreu. As transformações processam-se com uma qualidade construtiva notável. As infra-estruturas incluem rede de drenagem pluvial, ligada ao sistema de águas que correm para afluentes comuns. As caleiras são recuperadas e ampliadas, levando a água a todas as partes e possibilitando o regadio em pomares e hortas, complemento produtivo a juzante dos espaços de recreio. Será o grande momento da água com o funcionamento simultâneo de todo o sistema de fontes, chafarizes, cascatas, repuxos, caleiras e levadas.

Entre os elementos arquitectónicos de maiores dimensões aparecem a cavalariça e a vacaria, reforçando a componente produtiva. A patine decorativa que preenche as superfícies e as estruturas existentes, o extenso mobiliário e os novos equipamentos dão uma atmosfera cortesã de opulência e grandiosidade que contrastam com a discrição da recatada aldeia. Tudo parece contribuir para a realização de uma grande festa, um momento efémero de uma longa preparação, produto imaginário de um mecenas novo-rico e popular. O proprietário é agraciado com o título de visconde de Estói em 1906, por D. Carlos, pela campanha de recuperação que patrocinou, e a grande festa acontece a 2 de Maio de 1909, com a participação de toda a aldeia, bispo e autoridades no cortejo, na missa e no banquete. Com a morte do visconde de Estói em 1926, e sem herdeiros directos, a propriedade passa para as mãos de familiares que a irão manter em condições de subaproveitamento. A falta de manutenção neste espaço é fatal, e inúmeras espécies foram desaparecendo, principalmente as ornamentais, quando se privilegiou sobretudo a parte produtiva da quinta. Só em 1977 o local é classificado como imóvel de interesse público, o que não impede o alastrar da degradação. Esta situação só começará a ser pontualmente controlada com a aquisição do imóvel por parte da edilidade de Faro, em 1987.

O requinte das intervenções feitas por Francisco José da Silva vai ao ponto de ser construída uma rede de gás para iluminação de todo o jardim, desde o palácio até ao portão principal, ao fundo da alameda central. Embora o jardim já dispusesse de um vasto programa ligado ao recreio, surge inesperadamente um coreto, equipamento mais ligado a um espaço público urbano do que a um privado. Possivelmente, todo o sector sul, juntamente com o lago, seria para uso da população, funcionando como o parque da aldeia.

A recuperação

MONUMENTOS

O processo de recuperação teve ínicio em Outubro de 1992, por uma equipa coordenada por arquitectos paisagistas, com a contribuição de historiadores, engenheiros civis, agrónomos e hidráulicos assim como de arquitectos, e cujo objectivo foi elaborar um levantamento e caracterização geral do local, estabelecer medidas e acções prioritárias, sequenciar os trabalhos futuros e elaborar um caderno de encargos preliminar de manutenção. 58 Setembro 94

O Jardim de Estói

Este trabalho surgiu no âmbito do acompanhamento técnico efectuado pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, na recuperação do conjunto. Na sequência dos trabalhos, o jardim tem a possibilidade de se candidatar, através do seu proprietário, Câmara Municipal de Faro, ao programa de apoio aos projectos-piloto de conservação do património arquitectónico europeu, da Comissão das Comunidades Europeias, que escolheu o tema “Jardins de valor histórico”, para o ano de 1993. Tendo sido apresentados à comissão 666 processos, foram seleccionados 66, entre os quais Estói, de um grupo de 7 jardins portugueses. No estudo inicial foi feita uma descrição sectorial para cada unidade dentro do jardim, com características estruturais e/ou funcionais autónomas, o que facilitou o reconhecimento do estado geral das medidas mais urgentes a executar no terreno e a proposta de uma filosofia de recuperação. Neste sentido a recuperação passa pela reabilitação do conjunto casa-jardim, dentro de um programa integrado e que aponta genericamente para a criação de uma unidade hoteleira, num dos edifícios, ficando o palácio a funcionar como a “sala de visitas” do concelho ao nível das recepções oficiais e, simultaneamente, como centro artístico-cultural. O jardim deverá preservar as características arquitectónicas e paisagísticas originais, quer no plano construtivo quer no ambiental. A introdução de um programa lúdico harmoniosamente integrado possibilitará a resposta do exterior aos novos usos que virão a acontecer no local, atendendo à capacidade de carga para cada zona assim como ao tipo de acesso, público, semi-condicionado ou condicionado. Na envolvente imediata do palácio, este programa prevê reabilitar para o local elementos tradicionais na paisagem do jardim português, contendo o projecto a utilização de materiais, tecnologias e paleta cromática semelhantes às referências existentes, de MONUMENTOS

acordo com as análises de materiais, rebocos e caiações. No jardim privado, a nascente da casa, é proposta a criação de um jardim temático composto por: um jardim aromático, um jardim de flores, um jardim hortícola e um jardim medicinal, além de um espaço para um tanque lúdico e um labirinto em murta. O percurso cruciforme deverá ser restaurado ao nível das colunas, com a recuperação da imagem da pérgola existente no local. No lado poente do palácio está prevista a criação de uma zona de espectáculos ao ar livre, tirando partido do excelente pano-

rama visual e preservando integralmente o laranjal. A presença de várias áreas produtivas, laranjais, amendoais e nogueiral, assim como de antigas zonas agrícolas, possibilita a implementação de um programa de produção agrícola, em que produtos e sub-produtos daí resultantes (fruta, frutos secos, doçaria, ervas aromáticas, flores, etc.) poderão vir a ser vendidos a turistas e visitantes, criando uma fonte de receitas regular, a qual deverá reverter directamente para o orçamento de manutenção do jardim. 59 Setembro 94

Fig. 6 Jardim temático, pérgola e tanque lúdico (proposta). Desenho do autor.

João Ceregeiro, 1992-1993

João Ceregeiro, 1992-1993

O Jardim de Estói

Fig. 7 Fonte do amanhecer. Fig. 8 Coreto. Fig.9 Jardim do coreto (proposta). Desenho do autor.

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O Jardim de Estói

Fig. 10 O jardim, contorno urbano-rural. Desenho do autor.

O projecto prevê a recuperação integral do sistema de águas. A gestão de águas no jardim poderá ser encarada a três níveis coexistentes de utilização: – a recuperação do sistema de águas existente, sistema misto em que a água de rega está ligada aos elementos lúdicos da água no jardim; – a contribuição de um sistema automático de rega, em complemento das estruturas existentes, com a inerente economia de água e de mão-de-obra; – a possibilidade de se dispor de um circuito fechado global de águas, permitindo o funcionamento de todos os elementos lúdicos sem a sistemática perda final de águas, podendo haver um controlo mais eficaz em cada ponto. O restauro dos elementos construídos deverá ser feito por técnicos de conservação e restauro especializados, nomeadamente no capítulo da cerâmica, azulejos, estuques, ferro e materiais pétreos. Estas acções serão devidamente coordenadas, nomeadamente com as empreitadas de infra-estruturas do exterior, garantindo à partida um maior controlo e eficácia destes trabalhos. MONUMENTOS

A recuperação da vegetação vai incidir sobre os vários aspectos, fitossanitários, arejamento e descompactação do solo, da recondução de elementos ao perfil original, recuperação do laranjal, compartimentação, podas ligeiras, limpezas e controlo da competição. Durante os trabalhos de construção civil, a vegetação deverá ser salvaguardada, tanto quanto possível, dos impactes que daí provenham. Realçamos aqui a necessidade de uma coordenação e fiscalização eficazes no processo de recuperação, recorrendo à especificidade dos cadernos de encargos. Actualmente o projecto encontra-se em fase de execução, continuando a absorver toda a informação paralela, permitindo que as opções adoptadas tenham um carácter antecipativo relativamente aos out-puts actuais, com a atribuição de usos e actividades a todo o território abrangido. A resposta às novas utilizações deve apontar para um equilíbrio do conjunto e garantir uma manutenção autónoma que possibilite a vivência futura dos espaços e ambientes do jardim. ! * Arquitecto paisagista.

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Igreja de São Pedro em Dois Portos, Torres Vedras Restauro do tecto em madeira Ana Rosa de Freitas*

A Igreja de São Pedro, em Dois Portos, é uma edificação manuelina de planta longitudinal atribuída a João de Castilho, cuja construção remonta ao primeiro terço do século XVI. Situa-se no caminho de Lisboa para Torres Vedras, num ponto elevado, junto à estrada (fig. 1). É constituída por três naves, de diferentes alturas, e seis tramos. As naves são divididas por arcos de volta perfeita, que assentam em colunas cilíndricas de capitéis jónicos, decorados com pinturas de ferronerie dourada datadas, num dos arcos, de 1645 (fig. 2). Junto a uma coluna ergue-se o púlpito, de pedra, cilíndrico e fechado. Na capela-mor, forrada de mármores branco, rosa e negro, existem quatro painéis de Diogo Torres, um retábulo barroco de talha dourada (final do século XVII) e abóbada de lunetas. Possui um lambril de azulejos enxaquetados dos séculos XVI e XVII e dois altares laterais com retábulos de talha. Na sacristia existe um silhar recortado de azulejos com cenas campestres (finais século XVII-início século XVIII). O tecto da nave central, em madeira de cedro, apresenta na esteira central um invulgar trabalho de alfarge – ornato de origem muçulmana constituído por molduras cruzadas em arabescos, formando um elaborado entrelaçado MONUMENTOS

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1. A igreja

Fig. 1 Exterior da igreja.

de linhas rectas e quebradas (figs. 3 e 4). É uma das poucas igrejas do distrito de Lisboa que ainda conserva um tecto em estilo mudéjar. Apesar de haver casos mais antigos, é sobretudo no século XVI que aparecem mais exemplos deste trabalho em Portugal, tanto na arquitectura religiosa (Igreja de Dois Portos e Matriz de Caminha) como na civil (casa do arcipreste Amaral, em Coimbra, e alfândega do Funchal). 63 Setembro 94

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Igreja de São Pedro em Dois Portos

Fig. 2 Vista do conjunto interior na direcção da capela-mor.

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Fig. 3 Pormenor do alfarge. Fig. 4 Vista do tecto em madeira da nave central com trabalho de alfarge.

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Igreja de São Pedro em Dois Portos

2. O restauro

Procedeu-se ao destelhamento de novas faixas do telhado, desta vez na zona situada sobre a parede divisória da nave central e laterais, a fim de se substituirem as varas e o forro, ambos em madeira de cedro igual à existente.

Restauro do tecto em madeira Numa primeira análise verificou-se que o tecto apresentava sinais de grande degradação, sobretudo ao longo da esteira central, onde havia uma acentuada flexão (fig. 5). Após consulta ao Instituto José de Figueiredo, foi decidido proceder ao restauro através da cobertura, evitando assim uma intervenção pelo interior da igreja com consequências imprevisíveis para o delicado entrelaçado do alfarge. Procedeu-se em primeiro lugar ao destelhamento de sucessivas faixas do telhado, começando pela zona da cumeeira. Verificou-se que o tecto, inicialmente autoportante, fora suportando ao longo dos tempos madeiramentos sucessivos, fruto de intervenções antigas no telhado, que exerciam uma carga prejudicial, responsável pela flexão observada (fig. 6). Assim, procedeu-se à colocação de linhas e pendurais (fig. 7), que passaram a constituir uma base de suspensão para o tecto a restaurar. Estas linhas foram ligadas ao tecto através de pernes em aço de 10 milímetros, os quais foram aparafusados progressivamente até se atingir uma tensão que garantisse a segurança do tecto durante o restauro (figs. 8, 9 e desenhos). Foram seguidamente retirados todos os madeiramentos desnecessários existentes. Como consequência do retirar deste peso, houve a necessidade de se proceder a um novo apertar dos pernes em aço até ao nivelamento do tecto.

Substituição da clarabóia existente Durante a intervenção procedeu-se à remoção de uma clarabóia existente na esteira central, acrescentada em tempos mais recentes, a qual interrompia a sequência visual do trabalho do alfarge e ameaçava ruína (fig. 10). Procedeu-se à desmontagem da sua estrutura, que assentava sobre o tecto, provocando uma sobrecarga adicional (fig. 11). Executou-se em madeira de cedro uma nova malha recticular e sobre esta foi feito um trabalho artesanal de alfarge idêntico ao existente (fig. 12). A modulação adoptada na nova malha, para o espaço ocupado anteriormente pela clarabóia, foi idêntica à existente no resto do tecto. Verificou-se, depois da sua execução, que se integrou rigorosamente no espaço a preencher, demonstrando-se que a introdução desta clarabóia foi feita a partir da substituição de alguns elementos do alfarge (figs. 13, 14 e 15). Houve a preocupação de criar uma unidade formal no conjunto, marcando todavia sempre uma distinção entre a área existente e a recuperada. !

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* Arquitecta Direcção Regional dos Monumentos de Lisboa

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Fig. 5 Flexão observada no tecto antes da intervenção. Fig. 6 Madeiramentos que sobrecarregaram o tecto.

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Igreja de São Pedro em Dois Portos

Pernes em barrote de 80 * 70 Pernes para fixação do tecto

Linhas em barrote de 80 * 70

2 3 Aparafusamento de linhas às varas CORTE TRANSVERSAL DA NAVE CENTRAL ESC. 1:50

Perne de fixação do tecto ø 10

Aparafusamento de linha à vara

PORMENOR 1 – FIXAÇÃO DA LINHA À VARA

PORMENOR 2 – FIXAÇÃO DO TECTO À LINHA

Perne de fixação do tecto ø 10

Aparafusamento do pendural à linha

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PORMENOR 3 – FIXAÇÃO DA LINHA AO PENDURAL

Fig. 7 Colocação de linhas e pendurais. Figs. 8 e 9 Pernes de fixação do tecto às linhas e pendurais.

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Fig. 10 Clarabóia existente no princípio da obra.

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Igreja de São Pedro em Dois Portos

Fig. 11 Fase de desmontagem da clarabóia. Fig. 12 Execução, em madeira de cedro, da nova malha recticular com modulação igual à existente.

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Fig. 14 Aspecto do conjunto final antes da velatura.

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Fig. 13 Preenchimento da malha com trabalhos de alfarge.

Fig. 15 Pormenor da área de intervenção junto à malha existente.

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Limpeza da Torre dos Clérigos Estudos realizados e trabalhos executados José Delgado Rodrigues* Maria do Rosário M. e Moura** Joaquim C. Soares da Silva***

1. Introdução 1.1. O granito como material de construção A pedra foi um dos primeiros materiais que proporcionou ao Homem um espaço para se abrigar das intempéries. As rochas ígneas, nas quais se devem incluir os mais belos granitos vermelhos e basaltos verdes, foram os materiais pétreos a que a antiga civilização egípcia lançou mão e, em virtude das suas excepcionais resistências, passados 30 séculos ainda nos falam do alto nível artístico atingido por esse berço da nossa civilização. Principalmente no Alto Egipto, manifestou-se uma especial habilidade para explorar as grandes pedreiras de pedras naturais caracterizadas por grande dureza. Na lavra das pedras graníticas, apesar de aqui ter atingido grande perfeição, escolhiam-se para paramentos as faces segundo as quais a rocha se tinha fendido. Mais tarde, nas civilizações que não dispunham de tão abundante mão-de-obra, estas pedras, pelo elevado custo que a sua manufactura atingiu, tornaram-se menos frequentes na decoração. MONUMENTOS

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Limpeza da Torre dos Clérigos

Porém, quando inventaram as máquinas accionadas pela potência a vapor, apropriadas para serrar, começaram progressivamente a ser novamente usadas. As rochas graníticas são muito abundantes em Portugal, onde afloram principalmente nas províncias do Minho, Douro, Trás-os-Montes, Beiras e Alentejo. O seu teor em sílica confere-lhe grande dureza, oferecendo resistência à serragem e ao polimento. Quando sãs, estas rochas são resistentes e duráveis, mas a sua extracção é, como consequência, difícil e cara. Por essa razão, e também porque as zonas mais superficiais dos maciços estão, regra geral, já alteradas, os artífices e construtores têm utilizado variedades já alteradas, mais baratas e fáceis de trabalhar, mas, também, menos duráveis. A situação corrente nos monumentos portugueses construídos em granito é a ocorrência de variedades moderadamente alteradas, mas não são raros os casos em que a pedra foi utilizada já em avançado estado de alteração. Desde os monumentos funerários da Pré-História com aproveitamento de blocos de pedra de grandes dimensões, passando pelos períodos de ocupação romana e visigótica na Península, e continuando nos períodos românico, gótico, etc., até chegar aos dias de hoje, são inúmeros os monumentos de granito e em muitos deles é notável a utilização, aplicação e plasticidade que tantos artífices incógnitos conseguiram imprimir a este material. 1.2. O granito e a Torre dos Clérigos Neste edifício barroco em que a decoração assumiu extraordinária importância, com predomínio das linhas curvas sobre as rectas, cornijas sinuosas com complicados perfis e cantos arredondados, Nicolau Nazoni teve o seu maior aliado no granito, material totalmente estranho às suas experiências italianas e maltesas, mas parte integrante da tradição românico-gótica do Portugal setentrional. Da duríssima pedra soube extrair efeitos de extraordinária MONUMENTOS

expressão decorativa, não inferiores aos obtidos pelos arquitectos de Lecce, trabalhando o mole e maleabilíssimo tufo dessa Península. A sua arquitectura espraia-se no jorro de decoração e ornamentação com uma gramática decorativa impressionante. Na Torre dos Clérigos, porém, conseguiu “aprofundar a verdadeira natureza da arte de edificar”. Concluímos com palavras do grande historiador e crítico da vida e arte de Nazoni, Robert C. Smith, citado em Brandão (1987): “No resto da sua obra foi sempre este culto de decoração que predominou. Explica-o em parte a origem da arte de Nazoni na pintura decorativa italiana no fim do Séc. XVIII sobrecarregada de opulentos motivos. Daí o extraordinário realismo dos ornatos do artista, na pedra como na talha. É possível apreciar a continuidade da sua arte que, vinda da pintura, foi enobrecer-se no granito. Congratulemo-nos portanto com o Deão Jerónimo de Távora e Noronha Leme Cernache, por terem trazido para o Porto um artista tão profundamente capaz de compreender a verdadeira natureza do granito e de dar tão sumptuosa expressão a este supremo símbolo do Norte de Portugal.” 1.3. A Igreja e Torre dos Clérigos na cidade O Porto, por delegação dos governantes, foi desde o início do século XII administrado pela Igreja e dominado pelo núcleo alto da sede episcopal, que acompanhou o seu crescimento até à cortina de muralhas levantadas a partir de 1334 e terminadas em 1376, no reinado de D. Fernando. Depressa a cidade ficou preenchida, não podendo responder ao crescimento do burgo medieval e assim rompendo pelas portas da muralha fernandina. Só no período pombalino se vem a criar no País uma nova dinâmica urbana, que se reflecte também no desenho urbano da cidade, concretizando-se no projecto de transformação iniciado em 1758 com a definição de amplos traçados viários e outra atitude na arquitectura dos edifícios altos. São exemplos desta intervenção do 69 Setembro 94

Fig. 1 (página anterior) Aspecto da Torre dos Clérigos antes dos trabalhos de limpeza.

Limpeza da Torre dos Clérigos

Estado, as ruas do Almada, de Cedofeita, de Santa Catarina, de Santo Ildefonso, de Santo António, dos Clérigos e da Assunção. O Estado parece finalmente assumir o domínio da cidade. No entanto, a Igreja, numa antecipação magistral, procura de novo a sua posição, lançando-se em obras que mais parecem ser o contraponto da atitude almadina, muito contribuindo para a fixação e afirmação da nova cidade. As preexistentes igrejas de Santo Ildefonso e dos Clérigos são enquadradas nas perspectivas axiais das ruas de Santo António e dos Clérigos, fundindo-se definitivamente na cidade antiga a nova mancha urbana envolvente como continuidade do tecido urbano. A Igreja procura nos serviços de Nicolau Nazoni a afirmação da sua posição, assumindo a construção do conjunto de Igreja e Torre dos Clérigos no ano de 1732, tendo as obras terminado em 1763. 1.4. Breve descrição histórica e arquitectónica da torre A Irmandade dos Clérigos remonta a 1707 e, estando ao serviço material e espiritual dos Clérigos pobres, promoveu a construção da igreja e enfermaria ou hospital e de uma torre que chamasse a atenção da cidade para uma obra assistencial. Por auto, lavrado em 24 de Julho de 1731, ficou assente a construção de uma igreja que ocuparia oitenta e dois metros de largura e cento e cinquenta de comprimento com uma rua de cada lado a construir numa “terra baldia” chamada “Cruz da Cassoa”, que fica no cimo da calçada que vai da Fonte d’Arca até ao princípio do adro das Oliveiras e entre este e o muro do Real Recolhimento do Anjo. Da planta e inspecção das obras ficou encarregue Nicolau Nazoni, com o lançamento da primeira pedra a 2 de Junho de 1732. Enquanto decorriam as obras da igreja aceitava-se o projecto de uma só torre, cuja construção é iniciada em 1750 para se concluir em 1763. O edifício da Casa do Despacho e Enfermaria ou Hospital foi dado por concluído em 1758. MONUMENTOS

Nazoni tirou partido do desnivelamento do terreno, conjugando a forma oval do corpo da igreja, a que se segue a capela-mor profunda, com a torre relegada para a parte posterior do conjunto. A torre é uma obra-prima do barroco europeu, que, numa altura total de sessenta metros (medidos da soleira da porta de acesso exterior até ao cimo da cruz) e emergindo elegantemente do casario envolvente, se tornou uma imagem indissociável da cidade do Porto. É constituída por dois corpos, o primeiro com quatro andares, que apresenta base quadrada e cunhais arredondados, e o superior ou de remate de dois andares e de planta oitavada. Tem como face principal a ocidental, que apresenta ao nível do primeiro andar uma porta emoldurada e encimada por um medalhão ornado a que se segue um nicho com a imagem de São Filipe Néri. O segundo andar é iluminado por uma janela. No terceiro aparece uma larga varanda coroada com frontão triangular no qual gira o sino, encimado por um entabelamento arqueado na frente onde surge um escudo coberto com as chaves de São Pedro; uma platibanda, fechada com fogaréus nos cantos e medalhões no centro, remata este corpo. Deste corpo, e recuado da linha de prumo, eleva-se a torre sineira terminal recoberta de escultura decorativa, conseguindo Nazoni associar à linguagem das massas e volumes a sua formação de pintor decorador. Trata-se de um edifício construído totalmente em cantaria de granito servido, no interior, por uma escada, também em granito, num total de 240 degraus que permite o acesso às várias varandas. O elevado grau de sujidade tinha um grande impacte na aparência da torre e dificultava a leitura dos pormenores arquitectónicos e artísticos, tal como a desagregação arenosa, especialmente evidente no segundo corpo mais estreito da torre, onde ocasionava perda da forma esculpida nos fogaréus e em algumas áreas dos paramentos exteriores, onde deixou cicatrizes resultantes do destacamento de escamas e plaquetas. Estas razões foram determinantes para a tomada de decisão que levou a DGEMN, através da sua 70 Setembro 94

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Direcção Regional de Edifícios e Monumentos do Norte, a solicitar ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil um estudo sobre a conservação do granito daquele imóvel. Foi na sequência desse estudo, e de acordo com as conclusões obtidas, que se avaliou da necessidade de intervir no trabalho de limpeza do granito da Torre dos Clérigos, cujos aspectos técnicos principais se descrevem na presente comunicação.

2. Estudos preparatórios 2.1. Primeiros trabalhos para selecção do método de limpeza Em trabalhos anteriores (Castro et al., 1988) foram apresentados resultados de estudos realizados sobre amostras colhidas na Torre dos Clérigos com a finalidade de servir de suporte à selecção dos métodos de limpeza a usar neste monumento. Os resultados então obtidos mostraram que se tratava de um caso que levantava sérias dificuldades aos métodos de limpeza suaves que sempre se deve procurar usar na limpeza de monumentos. Dos métodos então ensaiados, de que se salientam a pulverização de água, o uso de pastas absorventes, soluções de bifluoreto de amónio, ácido ortofosfórico e ácido fluorídrico, apenas a solução de ácido fluorídrico se mostrou capaz de remover a película de sujidade que recobria as superfícies ensaiadas. A pedra utilizada na construção da Torre dos Clérigos é um granito de cor clara e de grão grosseiro a muito grosseiro. Apresenta-se, de modo geral, medianamente alterado, como se verifica pelo aspecto baço dos feldspatos e pela perda de brilho da biotite. Estas manifestações de alteração atingem toda a massa da pedra. Nos locais mais expostos, a alteração é mais pronunciada e as pedras mais afectadas chegam a apresentar desagregação significativa. A película de sujidade tem cor negra acastanhada e apresenta-se extremamente aderente ao substrato. Distribui-se uniformemente sobre a pedra em camada muito fina como que forrando toda a superfície. Ao microscópio, MONUMENTOS

verifica-se que a sujidade atapeta toda a superfície do granito em todas as suas reentrâncias, chegando a penetrar para o seu interior através das fracturas mais desenvolvidas. Dos ensaios então realizados no LNEC (Castro et al., 1987), determinou-se uma porosidade de cerca de 3% para o granito, o que comprova o seu avançado estado de alteração. Das análises químicas então realizadas sobre a camada de sujidade recolhida por raspagem da superfície da amostra, salienta-se o elevado teor em ferro (4,68% de FeO) e uma perda de massa atribuível a matéria orgânica da ordem dos 4%. Os sais solúveis ocorriam em pequena quantidade (0,37%) na amostra estudada. Os estudos então realizados serviram de base à proposta de intervenção, tendo sido recomendado o uso de uma solução de HF com concentração não superior a 2,5%, com tempos de aplicação ajustáveis caso a caso, mas que nunca deveriam ser superiores a 20 minutos. Após este tempo, as superfícies deveriam ser lavadas com água em abundância para remover todos os vestígios do ácido. Este procedimento foi utilizado na limpeza da Igreja dos Clérigos, situada a nascente da torre, tendo os resultados sido considerados satisfatórios. 2.2. Novos estudos sobre as crostas negras Por razões diversas, a limpeza não foi nessa altura estendida à torre, tendo a DGEMN, em 1993, decidido retomar o objectivo de limpar este importante monumento da cidade do Porto. No intervalo de tempo decorrido entre as duas intervenções desenrolou-se um projecto de investigação sobre conservação de rochas graníticas (Projecto STEP CT90-110), tendo sido utilizadas as películas de sujidade da Torre dos Clérigos como matéria de estudo do projecto. Os estudos, com novos métodos de análise, que recorreram ao microscópio electrónico de varrimento (SEM) e à análise com EDS – espectroscopia de raios-X com dispersão de energia, permitiram obter informações interessantes 71 Setembro 94

Limpeza da Torre dos Clérigos

que vieram lançar novas hipóteses para a interpretação da génese destas películas e deixar indicações que abrem outras perspectivas para a conservação destes monumentos. Do trabalho de Schiavon (1993) extrai-se a seguinte passagem: “Encontram-se partículas de aluminossilicatos de origem antropogénica nas superfícies do granito expostas à atmosfera. Fazem parte de uma cobertura muito contínua de detritos desagregados que incluem partículas de poeira do solo. Análises com EDS da superfície alterada mostram muitas vezes a presença de um forte pico de Fe, mesmo sobre superfícies de grãos de quartzo (…) A precipitação de micro-cristalitos ricos de ferro ocorre muitas vezes na superfície de partículas esféricas que foram interpretadas como esporos de origem biológica. As pátinas parecem formar coberturas razoavelmente contínuas sobre as superfícies do granito, chegando a atingir 40-50 µm de espessura. As pátinas estão muitas vezes associadas com evidências claras de alteração, em que os feldspatos (principalmente albite), as micas (biotite e moscovite) e, mesmo o quartzo, apresentam severa dissolução/desagregação. O mineral acessório apatite também ocorre fortemente atacado. A dissolução nem sempre segue as zonas de fraqueza do granito. As cavidades de dissolução estão muitas vezes colonizadas e ocupadas por talos liquénicos (…) O Fe é o elemento mais abundante, com teores menores de Ca, S, Si, Al, K, e P. A razão entre o pico do Fe e os dos restantes elementos é sempre superior a 20. Embora o ferro esteja presente em toda a pátina, algumas pequenas áreas mostram enriquecimento localizado em ferro que produzem um aspecto laminado. Estas áreas também incluem microesferas de partículas ferrosas. Muitos fragmentos minerais das pátinas mostram os bordos exteriores oxidados (…) Não foi detectada a presença de gesso. Sob a pátina superficial, existe uma área de elevada densidade de fracturas. Estas fracturas correm ao longo das fronteiras intercristalinas e das linhas de fraqueza intracristalinas, tais como os planos de clivagem das micas. Estão recobertas por material granular rico de ferro MONUMENTOS

semelhante quer em morfologia quer em composição ao que ocorre nas pátinas exteriores. É interessante notar que foram encontradas nestas fracturas partículas de aerossóis de origem antropogénica clara.” A morfologia e composição destas pátinas permitem designá-las por pátinas negras ferrosas e as interpretações efectuadas com base nestes resultados sugerem que elas serão de origem essencialmente biológica. Tratar-se-á, portanto, de uma forma de alteração que é característica dos ambientes rurais de baixa poluição, pelo que não parece correcto atribuir exclusivamente à poluição urbana da cidade do Porto as cores negras que cobrem os seus monumentos. A elevada humidade relativa do ar, que se verifica na maior parte do ano, propicia ambiente favorável ao desenvolvimento da colonização biológica, mormente de tipo bacteriano, que são agentes eficazes de solubilização e de fixação do ferro. Embora admita origem externa para algum do ferro incorporado nas pátinas negras, Schiavon (ob. cit.) considera que parte substancial terá a sua origem na lixiviação dos cristais de biotite do próprio granito. As análises agora efectuadas mostraram que as pátinas incorporam fragmentos destacados do substrato, indicando que o contacto é gradual e que as pátinas crescem a expensas do próprio granito (Schiavon, ob. cit.). Esta morfologia poderá justificar a grande dificuldade que os trabalhos de limpeza têm sentido para remover estas pátinas negras. Em relação ao granito limpo, as pátinas biológicas são locais de maior deposição de poluentes gasosos (SO2 e NOx) e particulados (cinzas volantes e poeiras) devido à sua maior porosidade e capacidade de retenção de humidade. Estes poluentes podem, por sua vez, ser origem de soluções ácidas que atacam o substrato e catalizam novas oxidações e precipitações de ferro (Schiavon, ob. cit.). 3. Considerações sobre a limpeza da torre Face aos novos elementos entretanto recolhidos, considerou-se que a limpeza deveria ser iniciada 72 Setembro 94

Limpeza da Torre dos Clérigos

com a aplicação de um produto biocida que permitisse a mais fácil remoção da abundante colonização biológica de tipo liquénico que ocorria em extensas áreas da torre. Admitiu-se que as próprias pátinas pudessem, em parte, ser mais facilmente removidas após aplicação do biocida. É claro que as verdadeiras pátinas negras de grande espessura e continuidade não seriam removidas por este processo, como, aliás, havia sido demonstrado nos estudos de limpeza anteriormente realizados (Castro et al., 1991) Os trabalhos de limpeza foram iniciados com a aplicação de biocida da THOR – Industrial Biocides England, que se deixou actuar durante cerca de 15 dias antes de se iniciar a tentativa de remoção da sujidade. Antes de se iniciar a remoção, a superfície da torre foi molhada com água pulverizada durante algumas horas ao que se seguiu uma fase de escovagem com escovas de nylon e de piaçaba. Não sem alguma surpresa, extensas áreas da torre foram limpas apenas com estes procedimentos e apenas nalguns casos foi necessário recorrer à aplicação de solução de ácido fluorídrico a 2,5%, seguindo o método anteriormente utilizado na limpeza da Igreja dos Clérigos. Algumas áreas apresentavam sinais de alteração já avançada, com desagregação da superfície e alguma perda de material. Estas áreas não foram lavadas, por um lado, porque as operações de limpeza iriam causar danos à pedra e, por outro, porque a própria desagregação as foi tornando mais claras, com aspecto próximo do que era esperado para as superfícies lavadas. Os resultados finais obtidos foram considerados bastante satisfatórios. Apresenta-se um aspecto da torre após os trabalhos de limpeza.

4. Trabalhos complementares de conservação Para além das operações de limpeza, foram realizadas outras intervenções de conservação a fim de restituir ao monumento as condições MONUMENTOS

mínimas que permitam prolongar a sua vida e, tanto quanto possível, retardar o aparecimento de novas ou idênticas patologias.

4.1. Reparação de juntas As juntas dos blocos foram sistematicamente observadas e reparadas quando se verificou que não estavam em perfeitas condições. Para este efeito foram utilizadas argamassas especiais, especificamente formuladas para serem aplicadas em monumentos. São argamassas à base de cimento com baixos teores em álcalis e dosagens fracas que conduzem a resistências mecânicas baixas e porosidades relativamente elevadas. A argamassa tem a composição de 540kg/m3 de ligante hidráulico de base inorgânica, 1070kg/m3 de areia fina e 295 L/m3 de água.

4.2. Hidrofugação As interpretações avançadas para explicação da génese das pátinas negras admitem que a elevada humidade das paredes poderá estar na origem da forte colonização biológica e, consequentemente, todas as operações que conduzam à redução dessa humidade podem contribuir para retardar o aparecimento de novas sujidades. Por esse motivo, foi decidido aplicar um produto hidrófugo a toda a superfície da torre, esperando-se que o comportamento desta superfície lavada possa trazer novos ensinamentos quanto à eficácia desta medida para prevenção da colonização biológica. A selecção do hidrófugo a aplicar foi efectuada com base nos estudos realizados no âmbito do projecto STEP CT90-110, de que aqui se referem alguns pontos mais significativos. O estudo consistiu no ensaio de cinco produtos que foram submetidos a um extenso programa de ensaio em laboratório para determinação da eficácia, grau de nocividade e durabilidade dos produtos (Ferreira Pinto, 1993; Ferreira Pinto et al., 1994 a, b). 73 Setembro 94

DGEMN. 1994

Limpeza da Torre dos Clérigos

MONUMENTOS

Os produtos ensaiados foram: S – um polisiloxano L – uma resina acrílica estirenada Q – um alquilsilano K – uma resina polifluorcarbonada A eficácia dos hidrófugos foi avaliada pelo aumento da hidrorrepelência (através das variações do ângulo de contacto e do tempo de absorção de microgotas) e pela redução da absorção de água (medida pelos ensaios de absorção de água por capilaridade e pelo método do cachimbo). O grau de nocividade provocado pelos diferentes produtos aplicados como hidrófugos foi avaliado pela redução do coeficiente de permeabilidade ao vapor de água e pelas variações cromáticas induzidas pelo tratamento. Nos valores do ângulo de contacto e do tempo de absorção de microgotas verificaram-se que as propriedades iniciais do granito são claramente modificadas de forma diferenciada pelos quatro produtos ensaiados. Os resultados obtidos no ensaio de absorção de água por capilaridade confirmaram as indicações dadas pela hidrorrepelência. A determinação do grau de nocividade em pedras de muito baixas porosidade e permeabilidade levanta algumas dificuldades, mormente a determinação da variação da permeabilidade ao vapor de água dados os baixos valores envolvidos nas medições. Apesar disso, foi possível verificar que, com excepção do produto K, as reduções deste parâmetro não eram muito importantes. As variações cromáticas foram quantificadas através das coordenadas cromáticas CIELAB. Estas modificações traduziram-se por um muito ligeiro escurecimento, quase imperceptível por observação visual, com excepção do produto K, em que as modificações foram mais sensíveis. A durabilidade da acção dos hidrófugos foi avaliada por ensaios de envelhecimento acelerado em laboratório, nomeadamente, em ciclos de variação de humidade e temperatura, por exposição à radiação ultravioleta e em ensaio de cristalização de sais em câmara de nevoeiro salino. 74 Setembro 94

Limpeza da Torre dos Clérigos

Os resultados estão divulgados em Ferreira Pinto et al., 1994 b), de onde se extraem as seguintes conclusões: “Todos os produtos foram afectados pelos ensaios de envelhecimento acelerado e a metodologia utilizada mostrou-se adequada para discriminar os comportamentos dos diferentes produtos (…). O processo de envelhecimento conduziu a ligeiras modicações cromáticas, mas as novas cores são mais próximas dos granitos não tratados. Consequentemente, o envelhecimento tende a fazer evanescer as modificações cromáticas introduzidas pelos tratamentos (…). Apesar de mostrar um decréscimo regular durante o processo de envelhecimento acelerado, o produto S resistiu bastante bem e mantém altos valores de hidrorrepelência. Os produtos L e Q mostram maiores decréscimos e exibem maiores dispersões de resultados. O produto K mostrou baixos desempenhos desde o início do processo de envelhecimento.” As conclusões deste estudo pareceram suficientemente esclarecedoras para permitir recomendar o uso do produto S (um polisiloxano) para hidrofugar as superfícies exteriores da torre.

Notas 1 – Agradecimentos: parte do trabalho foi realizado no âmbito do projecto STEP CT90-110, financiado pela União Europeia.

Referências BORGES, N.C., 1986 – História da Arte em Portugal, do Barroco ao Rococó, vol. 9, Edições Alfa, Lisboa. BRANDÃO, D.P., 1987 – Nicolau Nasoni, Teles Editora, Porto. CASQUILHO, M.R. – Materiais de Construção, vol. I, Livraria Bertrand, Lisboa, s.d. CASTRO, E.; DELGADO RODRIGUES, J. e CRAVO, M. R. T., 1987 – Parecer sobre a limpeza da fachada nascente da Igreja dos Clérigos,

4.3. Consolidação Algumas áreas da torre, nomeadamente a zona mais alta, acima do nível dos sinos, apresentam o granito bastante alterado e com apreciável perda de material. A degradação parece ainda muito activa, como o demonstra, por exemplo, o facto de a colonização biológica não se fixar nestas áreas porque a perda é mais veloz do que o ritmo de crescimento das espécies liquénicas. Os estudos para selecção dos consolidantes estão ainda em progresso na altura da preparação desta comunicação. Dos resultados já obtidos, verificou-se que o silicato de etilo (WACKER OH) tem vindo a exibir resultados satisfatórios, comprovando o que a extensa bibliografia tem afirmado sobre a eficácia deste produto para consolidação de rochas de composição silicatada.l ! *Geólogo, investigador-coordenador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil **Arquitecta, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais ***Engenheiro civil, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais

no Porto. LNEC, Relatório Interno 275/87-NP/NQ. CASTRO, E.; DELGADO RODRIGUES, J. e CRAVO, M. R. T., 1988 – “Étude du nettoyage d’un monument en granite”, in Proc. 6th Int. Cong. on Deterioration and Conservation of Stone, Torun, Polónia. FERRÃO, B. J., 1989 – Projecto e transformação urbana do Porto na época dos Almadas. Serviço Editorial da FAUP – Textos Teóricos/6 – 2.a Edição. FERREIRA PINTO, A.; DELGADO RODRIGUES J. e COSTA, D. R., 1994 a) – “Assessment of the efficacy and harmfulness of water repellents in granite”, in Proc. Int. Symp. on the Conservation of Monu-

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ments of the Mediterranean Basin, Veneza. FERREIRA PINTO, A.; DELGADO RODRIGUES J. e COSTA, D. R., 1994 b) – “Behaviour of water repellents in granites under accelerated ageing tests”, in Proc. Int. Symp. on the Conservation of Monuments of the Mediterranean Basin, Veneza. OLIVEIRA, Z., 1963 – Uma torre na cidade, Edição Irmandade dos Clérigos, Porto. SCHIAVON, N., 1993 – “Microfabrics of weathered granite in urban monuments”, in Proc. Cong. on Conservation of Stone and other Materials, UNESCO/RILEM, Paris, pp. 271-278.

Fig. 2 (página anterior) Aspecto da torre após os trabalhos de limpeza.

Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) A “Torre do Tombo” da memória do século XX João Bénard da Costa* Sob a responsabilidade da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, prosseguem em bom ritmo as obras do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) iniciadas em finais de 1991 e com a conclusão prevista para 1995. Trata-se de um projecto da Cinemateca Portuguesa, desde 1991, acompanhado, no seio desta, pela Comissão Instaladora do ANIM – criada a 17 de Julho de 1991, por despacho do secretário de Estado da Cultura, Dr. Pedro Santana Lopes – presidida pelo Eng.o José Manuel Costa, chefe de divisão do Arquivo Fílmico da Cinemateca, para o efeito equiparado, pelo mesmo despacho, a subdirector-geral. O ANIM é um dos mais velhos sonhos da Cinemateca Portuguesa e é, sem dúvida, um dos projectos culturais de maior importância executado, nesta segunda metade do século XX, em Portugal. Quando, em 1996, entrar em funcionamento, depois de devidamente equipado após a conclusão da obra, estarão finalmente reunidas as condições que permitem a salvaguarda do património nacional na área das “imagens em movimento”. Ou seja, não só na área do cinematógrafo ou do cinema, como o conhecemos desde 1895 até aos nossos dias, mas também nas de outros suportes e tecnologias, já conhecidas ou que venham a conhecer-se. Não é só uma arte – a arte do cinema – que o ANIM salvaguardará e preservará. É a história deste século, desde os grandes acontecimentos políticos, sociais e culturais até às múltiplas manifestações e transformações da vida quotidiana de que o cinema foi incomparável e insubstituível testemunho, que ficará conservada, permitindo a quantos, no futuro, se debrucem sobre ela, o acesso a uma fonte histórica privilegiada. Por isso, a Cinemateca Portuguesa tem usado a expressão “Torre do Tombo das Imagens em Movimento”, sem exagero ou retórica. Porque a MONUMENTOS

história deste século é a única que não foi apenas nem sobretudo registada em documentos escritos ou imagens fixas (pintura, gravura, fotografia) mas se inscreveu também e principalmente em imagens em movimento, sem o conhecimento das quais nenhuma história do século XX pode ser feita. Os arquivos das televisões conservam muitas dessas imagens. Mas as emissões da televisão apenas começaram em Portugal em 1957 e os cerca de sessenta anos que vão do início da história do cinema até àquela data só o cinema os captou e só em filme foram registados. Esse património, ainda disperso por vários arquivos, tem vindo a ser reunido pela Cinemateca Portuguesa, dentro da função que lhe cabe de “coleccionar e preservar no interesse de salvaguarda do património fílmico nacional, o maior número possível de filmes, positivos ou negativos, de produção cinematográfica nacional desde as suas origens”. Mas se a Cinemateca coleccionou e reuniu muitos milhares de filmes portugueses, antes do ANIM não teve nem tem condições para os conservar de maneira a garantir a sua sobrevivência futura. Só o ANIM pode responder a esse desafio, ou seja, só o ANlM pode garantir que as gerações vindouras possam ter 76 Setembro 94

Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM)

acesso aos filmes do passado e possam ver, sem alterações substanciais, os filmes e vídeos que hoje se estão a fazer. A criação das cinematecas, movimento ocorrido nos meados dos anos 30, e que em Portugal apenas passou do papel à prática nos anos 50, surgiu da aterrada verificação, feita por alguns pioneiros, de que a maior parte do cinema mudo estava a ser destruída pelas grandes companhias produtoras e distribuidoras, convictas de que o advento do cinema sonoro (explorado a partir de 1927 e exclusivamente triunfante a partir dos ínicios dos anos 30) tinha retirado àquele qualquer valor comercial. Como escreveu um desses pioneiros (Henri Langlois): “Nos anos triunfais da arte do filme mudo, nos anos que viram, depois de Birth of a Nation de Griffith e de The Cheat de DeMille (1915) uma sucessão de obras-primas, não passou pela cabeça de ninguém imaginar que pudesse haver gente capaz da selvajaria de destruir esses filmes e de os deixar desaparecer (…). Era presumir demais dos maus hábitos, do desprezo ou da indiferença dos que apenas olharam as obras de arte cinematográficas como rolos de matéria bruta transformável em verniz para as unhas ou em algodão-pólvora.” As cinematecas nasceram, pois, para lutar contra a destruição maciça que se praticou nesses anos e que levou ao desaparecimento de milhares de obras fundamentais. Salvar foi, então, a palavra de ordem e a palavra de ordem necessária, arrancando os filmes das mãos de quem se preparava para os lançar à fogueira, reunindo-os e coleccionando-os nas cinematecas. Julgou-se que o essencial estava feito, e que, pelo menos as obras por elas guardadas, e o cinema do futuro, estavam salvos. Não estavam. Nos anos 50 descobriu-se que o suporte químico de todas as películas feitas até essa data – o nitrato de celulose – era não só extremamente inflamável (o que já se sabia) como extremamente corruptível, objecto de decomposição química imparável. Ou seja, dentro dos cofres das cinematecas, esses filmes continuavam a degradar-se, transformando-se, com o tempo, numa massa indistinta – produto de decomposição – ainda mais inflamável do que eles. A indústria começou a usar um novo suporte, o acetato de celulose (depois, o triacetato) e as cinematecas iniciaram a transferência dos velhos filmes para esse novo suporte, num processo caríssimo e que absorveu a maior parte dos seus fundos, sobretudo a partir dos anos 60 (em Por-

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tugal, só se iniciou nos anos 70 e só foi sistematicamente praticado nos anos 80). Mas, nos anos 80, descobriu-se que até esse novo suporte era degradável (“síndroma do vinagre”) e que essa degradação só era evitável se os filmes fossem armazenados em cofres dotados de determinadíssimas condições de temperatura e humidade relativa, as únicas que permitem suster, ou pelo menos retardar, a decomposição química dos suportes. Por outro lado, apresentando o suporte de nitrato uma qualidade que não se consegue no de acetato, insistiu-se na necessidade de guardar esse material tanto tempo quanto o da sua duração efectiva, confiando-se que futuras tecnologias venham a resolver o problema da sua transferência. Houve assim que transformar todas as condições físicas de depósito, construindo arquivos e cofres, isolados e distantes uns dos outros, para os filmes em suporte de acetato, cofres que satisfizessem todos os requisitos preventivos da hipótese de incêndio e, em caso dele, da sua propagação, com sistema de ar renovável (para remoção do gás) e graus de temperatura e humidade relativas e bastante baixas. Mais baixa ainda para os filmes em suporte de acetato, sobretudo para os filmes fotografados a cor, que, quando não conservados nessas condições, ainda mais rapidamente se degradam, dando origem às chamadas “cópias cor-de-rosa”, que os espectadores conhecem bem, quando revêem, passados anos, filmes originalmente de cores esplendorosas. Ora, a Cinemateca Portuguesa, que até foi pioneira na construção de depósitos com ar condicionado numa altura (1954) em que estes eram ainda pouco frequentes, não estava, de modo algum, em condições de fazer face ao imenso salto qualitativo dado pela maior parte dos arquivos nos anos 60 e 70. Ao seu fundador e director, à época – Dr. Manuel Félix Ribeiro –, a quem se deve o esforço gigantesco e quase isolado de reunir uma colecção e a conservar, faltaram em absoluto os meios para a preservação que se impunha, e pela qual ele tanto lutou. Só em 1980, quando a antiga Cinemateca Nacional deu lugar à Cinemateca Portuguesa, o problema foi equacionado e mereceu alguma atenção das instâncias superiores que criaram, nesse ano, um grupo de trabalho para estudos e criação do que pela primeira vez foi chamado Arquivo Nacional das Imagens em Movimento. Mas das intenções à realidade houve um longo 77 Setembro 94

Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM)

caminho a percorrer e perderam-se anos decisivos, com a colecção da Cinemateca armazenada no Palácio Foz, em instalações mais do que precárias e mais do que vulneráveis. O incêndio que destruiu a primeira sala da Rua Barata Salgueiro, em 1981, provocado pela combustão de uma bobine de um filme em suporte de nitrato, devia ter sido aviso mais do que suficiente. Mas não foi. E os apoios decisivos para o arranque do projecto só surgiram em 1986, permitindo em 1987 a aquisição de um terreno, no Freixial (concelho de Loures, freguesia de Bucelas), com uma área total de 18 hectares. Suficientemente vasto para permitir a edificação de dois módulos (depósito para filmes em suporte de nitrato de celulose e depósito para filmes em suporte de acetato) com a distância necessária para garantir toda a segurança e suficientemente afastado de qualquer área habitacional presente ou futura (a área é de construção reservada), esse terreno constituíu a primeira infra-estrutura do Projecto ANIM. Em 1991, iniciou-se a construção do primeiro módulo (depósito de nitratos) com capacidade total de 10 mil bobinas de 35 milímetros. É constituído por 56 células de armazenamento e implicou soluções construtivas únicas, decorrentes da natureza do suporte dos filmes que o ocuparão: grande resistência às variações de temperatura e humidade, resistência mecânica, elevado grau de compartimentação, “alçapões de pressão” (preventivos de propagação de eventual combustão num dos compartimentos). A obra concluíu-se em 1993, ocorrendo, neste momento, ainda, alguns acertos técnicos. No mesmo ano, iniciou-se a construção do segundo módulo que, além dos depósitos para filmes de acetato (capacidade para 120 mil bobines de 35 milímetros, o que equivale a 15 mil longas metragens), prevê, interligado com esse depósito, um centro de conservação e restauro onde se procederá a todas as acções técnicas enquadradas no âmbito do ANIM. Nesse Centro se farão a identificação e selecção técnica de todos os filmes depositados e a depositar, a recuperação especializada de todas as obras já danificadas pelo tempo ou por acidentes físicos, a limpeza e reconstituição dos suportes em que foram feitos e nesse Centro existirá um laboratório especializado em trabalho de restauro em filmes a preto e branco. Além disso, um circuito de revisão assegurará a sistemática prática dela para todas as cópias em cir-

MONUMENTOS

culação, um serviço de catalogação informatizada permitirá dispor de uma base de dados exaustivos sobre a história do cinema português e sobre o material que dela existe. E haverá, também, instalações para visionamento (sala de projecção para testes de cópias, para acesso de estudiosos e investigadores) e para planeamento (incluindo formação especializada). No mesmo complexo se situará um arquivo para “novos suportes”, onde se depositarão por agora as produções em vídeo, e um arquivo para fotografias e cartazes de cinema, com depósitos também climatizados. Calcula-se que, no seu arranque, em 1996, trabalharão no ANIM cerca de 40 pessoas, nestas diversas áreas. Por isso, o novo Decreto Regulamentar da Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema prevê um considerável aumento de efectivos. Nesse ano, se tudo correr como previsto, Portugal terá, finalmente, cem anos depois das primeiras projecções cinematográficas no País e cem anos depois dos primeiros filmes rodados em Portugal e rodados por portugueses, as instalações necessárias para que não se perca mais nenhuma das obras aqui feitas ou aqui mostradas em imagens em movimento. Dos primeiros filmes de Paz dos Reis à produção vídeo independente actual; dos documentários sobre os últimos reis às obras que testemunham este final de século; dos primeiros filmes de ficção nacionais (Os Crimes de Diogo Alves de 1911) à produção que neste momento se roda ou se prepara; tudo ficará conservado e preservado no ANIM, para além do acervo da Cinemateca em filmes estrangeiros. Graças a esta obra e aos esforços conjuntos da Cinemateca Portuguesa e da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, apoiadas desde 1990 pelas áreas governamentais das tutelas respectivas, espera-se salvar tudo o que resta da nossa história em imagens em movimento e tudo o que resta da história da arte do cinema. E espera-se que a arte do futuro e a história do futuro não sofram as mesmas contigências que a história das artes do passado e a nossa própria história. Neste país, tão pouco voltado para a sua memória, ficará salvaguardada a parte dela confiada à arte e às técnicas que mais transformaram a nossa relação com o tempo, com o real e com o imaginário. !

* Director da Cinemateca Portuguesa.

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O Inventário do Património Arquitectónico Margarida Alçada*

A DGEMN desenvolve, desde 1929, as actividades de planeamento e execução das acções de valorização, recuperação e conservação do património arquitectónico classificado. Simultaneamente cabe-lhe a organização e manutenção dos arquivos do património, importante acervo de documentos iconográficos, cartográficos e textuais que resulta do exercício desta actividade. A preocupação em disponibilizar e divulgar esta documentação está presente desde as primeiras intervenções realizadas pela DGEMN, concretizada através da publicação de monografias, os Boletins, que registam a investigação e a documentação preparada para uma intervenção. Implantada ao nível nacional através de serviços regionais, a DGEMN mantém, desde o início da sua actividade, um contacto directo e permanente com o património classificado e, complementarmente, o recenseamento sistemático de situações que carecem vir a ser objecto de protecção legal. Em virtude de um grande número de imóveis classificados não disporem de um processo de classificação adequado, torna-se imprescindível, aos responsáveis pela recuperação, a recolha de documentação e informação elementar que sirva de suporte às intervenções a realizar. MONUMENTOS

Paralelamente, assistimos, nas últimas décadas, a uma evolução nas metodologias da conservação que cria nos técnicos responsáveis por esta área a necessidade do recurso a estudos multidisciplinares que fundamentem os critérios e as soluções a adoptar em cada intervenção. A necessidade de gerir e disponibilizar o enorme manancial de informação e documentação associadas à conservação e de o tornar facilmente operacional, torna-se uma exigência com a difusão das novas tecnologias de tratamento informático da informação e da imagem. O projecto IPA – Inventário do Património Arquitectónico surge, por um lado, da necessidade de conhecer para poder intervir, assumindo-se como um instrumento de trabalho imprescindível na selecção dos imóveis que anualmente são objecto de obras e no estudo das metodologias a utilizar; por outro lado, da vontade expressa de disponibilizar esse conhecimento e de o utilizar por meio de um processo facilmente acessível. O IPA assenta num ficheiro informatizado de dados textuais, constituído por registos de 48 campos, complementado com um arquivo de imagens, de documentação gráfica e fotográfica, em disco óptico. A pesquisa à base de dados pode ser efectuada em qualquer campo ou 79 Setembro 94

O Inventário do Património Arquitectónico

relacionando os campos entre si. O sistema, para além da possibilidade de utilização rápida da informação, permite a consulta e reprodução dos documentos e contribui para a preservação dos originais, reduzindo o manuseamento a casos de excepção. Desta base de dados, essencialmente técnica e com o objectivo primário da intervenção, podem ser seleccionadas bases de dados menos densas, com utilizações diversas, como é o caso da base de dados de divulgação ao público (ver ficha da página seguinte) ou das bases de dados com fins turísticos, administrativos e outros, necessariamente menos complexas, onde o número de campos, quer de investigação quer técnicos, são substancialmente reduzidos e dirigidos ao fim a que se destinam. A utilização de fichas de recolha de dados impôs a normalização de princípios de análise e a compilação de um vocabulário normalizado que garanta a utilização de noções precisas e a uniformidade metodológica do conjunto da informação. A implementação do IPA está a ser desenvolvida em três fases. Na primeira fase são recolhidas as informações de identificação elementar e a documentação em arquivo; realizada no terreno e em colaboração com as autarquias são confirmadas as informações, fotografados os imóveis e anotadas as suas características MONUMENTOS

particulares; numa terceira fase procede-se ao estudo científico de cada imóvel e à sistematização da informação obtida. As fichas são periodicamente actualizadas e complementadas pelos técnicos dos serviços regionais responsáveis pela conservação. O IPA é, hoje, um instrumento de trabalho simultaneamente de investigação e de troca de informação, um recurso técnico, administrativo, científico e cultural, indispensável à planificação das acções de salvaguarda do património arquitectónico, destinado quer a profissionais quer a um público mais vasto, entre o qual as universidades ocupam um lugar destacado. É nosso objectivo despertar o gosto de ver, conhecer e descobrir a herança patrimonial, na certeza de que, só quando fôr totalmente compreendida a importância desta herança para a vida quotidiana, surgirão as soluções financeiras necessárias à sua salvaguarda. !

* Directora de Serviços de Inventário e Divulgação Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais

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M O N U M E NTO

N.o DE INVENTÁRIO – CÓDIGO TIPOLÓGICO –

090742002 1.O.b

DESIGNAÇÃO – Sé da Guarda LOCALIZAÇÃO – Guarda, Guarda, Sé ACESSO – Pr. Luís de Camões PROTECÇÃO – MN, Dec. 16-06-1910, DG 136 de 23 Junho 1910, ZP, DG 154 de 03 Julho 1953; Dec. 10-01-1907, de 17 Janeiro 1907

GRAU-I

AMBIENTE – Urbano, isolado; situado no centro histórico, intra-muralhas, a meia encosta, em espaço principal, estruturador da cidade; fronteiro ao alçado dos “balcões” (edifícios com arcada); adro murado circundando três alçados e acesso através de escadaria de ângulo.

DESCRIÇÃO – Planta composta em cruz latina, 3 naves, transepto saliente, cabeceira tripartida de planta poligonal; cobertura diferenciada em terraço e a 4 águas. Frontespício orientado; 2 torres, pórtico encimado por 2 frestas e óculo. Alçado N.: 5 panos nas naves; transepto, absídiola e abside, contrafortes e arcobotantes; 3 capelas adossadas no l.o registo e clerestório no 2.o; transepto: pórtico em arco quebrado e janelão em arco trilobado. Alçado E.: 2 panos nos braços do transepto e 3 panos na abside e absídiolas; contrafortes; braço S. do transepto: pórtico em arco quebrado, absídiolas: 3 frestas em arco pleno, abside: 3 frestas em arco quebrado. Alçado S.: 5 panos nas naves; transepto, absídiola e abside, contrafortes e arcobotantes, três capelas adossadas no l.o registo e clerestório no 2.o, transepto: janelão em arco trilobado. Interior: espaço diferenciado; nave central: clerestório, 5 tramos, 2 andares, 1.a arcada longitudinal em arco pleno; 2.o arcos formeiros de volta inteira e arcos torais quebrados, colunas embebidas, pilares cruciformes com colunas adossadas; abóbada de cruzaria de ogivas. Naves laterais cegas; 5 tramos; 1 andar; abóbada de cruzaria de ogivas. Cruzeiro: 4 óculos, pilares cruciformes e fasciculados com colunas torsas adossadas; abóbada estrelada. Transepto: 2 janelões nos topos; 2 andares, 4 tramos, piso intermédio: trifório interrompido no alçado E. do braço S. e N.. Abside: 3 frestas; 2 andares; 2 tramos, 3 arcadas cegas em arco quebrado; retábulo escultórico no altar-mor, arcos torais quebrados; abóbada de cruzaria de ogivas com cadeia longitudinal e rematada em 5 panos. Absídiolas: 3 frestas; 1 andar, 1 tramo, arcos torais quebrados, colunas embebidas; abóbada de cruzaria de ogivas rematada em 5 panos. Corpos secundários: Capela dos Pinas e Capela dos Ferros, nave lateral N.; cinco capelas laterais no alçado N. e S., sacristia adossada à absídiola N., baptistério e capela sob as torres. UTILIZAÇÃO INICIAL – Religiosa UTILIZAÇÃOACTUAL – Religiosa, turística PROPRIEDADE – Estado AFECTAÇÃO – IPPAR ÉPOCA DE CONSTRUÇÃO – Séc. XIV / XVI (documentada) ARQUITECTO CONSTRUTOR – Irmãos Pedra e Filipe Henriques (documentado)

M O N U M E NTO

N.o DE INVENTÁRIO – CÓDIGO TIPOLÓGICO –

0907420 1.O.b

CRONOLOGIA – Faseamento (E. Pereira, J. O. G. Castro): 1.o (1390-1396) – alicerces; 2.o (13971426) – abside e absídiolo N., sacristia, pórtico lateral N., levantamento parcial da nave lateral N.; 3.o (1435-1458) – pórtico E., absídiolo S., levantamento parcial da nave lateral S.; 4.o (1504-1517) – período mais activo das obras, elevação de todo o edifício, torres, pórtico principal, remate das abóbadas e coroamento; 5.o (1530-1540) – lageamento e vedação das plataformas, coro-alto. Acrescentos, séc. XVI – Retábulo do altar-mor; Capela dos Pinas; Capela dos Ferros; séc. XVII – reparações no absídiolo N.; séc. XVIII – abertura de porta lateral de acesso ao coro-alto, cinco capelas laterais; coro de baixo; ampliação do coro-alto; reparações no absídiolo S. e N.; grande órgão; reparação da absídiola N.; púlpitos; abertura de duas janelas nas torres e da tribuna do Bispo; séc. XIX – órgão pequeno; Acrescentos não datados – casa sobre a sacristia acrescentamento de um piso sobre as naves laterais; Casa do Capítulo e do Sacristão; alteração da empena da fachada principal; modificação do pórtico principal; alteamento do pavimento.

TIPOLOGIA – Arquitectura religiosa, românica, gótica, manuelina. Planta em cruz latina, 3 naves, transepto saliente, abside e 2 absídiolas de planta poligonal; contrafortes e arcobotantes; 5 tramos; 2 andares com clerestório, a cruzaria de ogivas e estrelada. Românico: horizontalidade, arco pleno, cachorrada, contrafortes. Gótico: arco quebrado, clerestório, cruzaria de ogivas, pilares cruciformes, decoração. Manuelino: arco trilobado, pilares fasciculados, colunas torsas, abóbada estrelada. Filiações principais atribuídas: Mendicante; Gótico Flamejante; Batalha; Santa Cruz de Coimbra. CARACTERÍSTICAS PARTICULARES – Mestres documentados. Pedro Henriques e Filipe Henriques no 1.o quartel séc. XVI. Atribuição do portal O. a Marcos Pires; a Boitaca. Particularidades: torres; contrafortes; cabeceira; conjugação de diferentes estilos; capela-mor e nave central da mesma altura *1 DADOS TÉCNICOS – Estrutura autónoma e mista, abóbada de cruzaria de ogivas e abóbada estrelada. MATERIAIS – Granito, cantaria; madeira; betão, aparelho isódomo; revestimento inexistente. CONSERVAÇÃO:

COBERTURA EXTERIOR – Bom ESTRUTURA – Regular ELEMENTOS SECUNDÁRIOS – Regular

COBERTURA INTERIOR – Regular PAVIMENTOS – Regular DECORAÇÃO – Regular

PERIGOS EVENTUAIS – BIBLIOGRAFIA – CASTRO, José Osório Gama, Diocese e Distrito da Guarda, Porto, 1902; CARVALHEIRA, Rosendo, Memória sobre a Catedral da Guarda, Lisboa, 1902-1903; PEREIRA, Ernesto, A Catedral da Guarda e o seu Retábulo, Porto, 1940; CHICÓ, Mário Tavares, A Arquitectura Gótica em Portugal, Lisboa, 1954; DGEMN, Sé Catedral da Guarda, Lisboa, 1957; RODRIGUES, Adriano Vasco, Monografia Artística da Guarda, Guarda, 1980; GOMES, Rita Costa, A Guarda Medieval, 1200-1500, Lisboa, 1987; ATANÁZIO, Mendes, Para um Estudo Crítico da Catedral da Guarda, Guarda, 1990; MUSEU DA GUARDA, Sé Catedral da Guarda – As Formas no Tempo, Guarda, 1990.

OBSERVAÇÕES -3.a e actual SÉ: iniciada por D. João I e concluída cerca de 1540: sofreu vários acrescentos sucessivos até ao séc. XIX; talvez construída no local da 1.a Sé, constituindo as torres elementos desse edifício (M. Atanázio). *1 Precoce preocupação pela unificação espacial: dado manuelino (M. Atanázio).

AUTOR / DATA – Margarida Conceição 1991 DOCUMENTAÇÃO :

GRÁFICA – X FOTOGRÁFICA – X

REVISOR / DATA – Luís Teixeira 93 AA ADMINISTRATIVA -X

Intervenções no Património Arquitectónico

Obras da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais

O Plano de Obras para 1994 contemplava 260 estudos e empreitadas, 2/3 das quais se encontram já em curso e as restantes em fase administrativa prévia ao seu arranque. Apresentamos algumas delas, a título de exemplo.

Direcção Regional dos Edifícios e Monumentos do Norte ! Igreja de Santa Maria de Azinhoso, Mogadouro Iniciou-se a primeira fase do processo de recuperação deste templo românico, no qual se salienta a grande diversidade de motivos que caracterizam a sua cachorrada. Destacam-se, nesta fase, a execução dos trabalhos de renovação dos telhados e consolidação das paredes e contrafortes da capela-mor. ! Igreja Matriz, Vila do Conde Com a colaboração do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e a partir de estudos desenvolvidos por Nuno Proença de Almeida, elaborou-se internamente o projecto de restauro do pórtico manuelino. Prevê-se para breve o início do referido restauro.

Direcção Regional dos Edifícios e Monumentos do Centro ! Convento de Santa Maria de Semide, Miranda do Corvo O processo de recuperação e valorização da igreja e coro encontra-se em fase de conclusão. Destacam-se, os trabalhos de beneficiação de vãos, de rebocos, de instalação eléctrica e de consolidação de azulejos, este úl-

timo com a colaboração do Museu Nacional do Azulejo. ! Igreja Conventual de Nossa Senhora dos Anjos, Montemor-o-Velho Fundado em finais do século XV pelos frades eremitas da Ordem de Santo Agostinho, a igreja encontra-se em avançado estado de degradação. O projecto de recuperação, actualmente numa primeira fase de intervenção, reconstrução e beneficiação das coberturas, tem por objectivo a recuperação integral do imóvel.

! Igreja de São Julião de Azurara, Mangualde A mais antiga referência a São Julião de Azurara remonta a 1103, aquando da doação por Pedro Sesnandes à Sé de Coimbra. A DGEMN está a proceder à conclusão dos trabalhos de beneficiação e conservação do imóvel, sendo de assinalar o contributo prestado pela Associação Cultural Azurara da Beira, apoiada pela Câmara Municipal e Paróquia, que assumiu os encargos da conservação e restauro do tecto da capela-mor, composta por 18 caixotões pintados com molduras e florões dourados, bem como das pinturas que restam do retábulo maneirista, pintado em 1635, por António Vieira.

Direcção Regional dos Monumentos de Lisboa

! Capela da Misericórdia, Montemor-o-Velho Edifício provinciano do final de Quinhentos com características renascentistas, será objecto de recuperação parcial, na continuidade de intervenções anteriores, com a realização de trabalhos de beneficiação das coberturas, dos paramentos exteriores e interiores e da instalação eléctrica. ! Igreja da Misericórdia, Batalha Construção de traço setecentista, o conjunto tem sido objecto de intervenção para valorização e revitalização, prevendo-se para o corrente ano obras de beneficiação da igreja.

MONUMENTOS

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! Capela do Codeçal, Mafra Concluiu-se a recuperação dos magníficos interiores desta capela setecentista. Os trabalhos incidiram, fundamentalmente, sobre os estuques e as pinturas decorativas. O arco triunfal foi consolidado e reformulou-se o sistema de iluminação. Os custos desta intervenção foram suportados integralmente pela DGEMN. ! Mosteiro de São Vicente de Fora, Lisboa Na sequência das profundas intervenções levadas a cabo pela DGEMN neste imóvel, procedeu-se à recuperação integral dos arcazes, do tecto pintado, dos mosaicos florentinos da sacristia e, ainda, da teia da portaria. Várias salas foram remodeladas e

reconvertidas em espaços museológicos, a instalação eléctrica foi renovada e o Pátio das Laranjeiras integralmente recuperado, segundo projecto do arquitecto Ribeiro Teles. Estas intervenções foram financiadas parcialmente por fundos comunitários. ! Antigo Convento de Santa Marta, Lisboa Foi lançada uma empreitada com vista à recuperação da igreja, sala do capítulo, coro alto e claustro deste convento, onde actualmente se encontra instalado o hospital do mesmo nome. Para além de diversas obras de construção civil e electricidade, proceder-se-á ao restauro de todo o conjunto azulejar, prevendo-se que esta intervenção esteja concluída em finais de 1995. ! Castelo de Óbidos, Óbidos

Foi lançada uma empreitada, suportada integralmente pela Direcção-Geral do Património do Estado, com vista à consolidação de alguns troços da muralha. Numa segunda fase proceder-se-á à recuperação da chamada “Porta da Vila”, entrada principal do castelo, a qual compreenderá a substituição da cobertura e o restauro dos azulejos setecentistas e da pintura decorativa da abóbada. ! Palácio das Necessidades,

Lisboa Proceder-se-á à recuperação da escadaria nobre e da galeria de comunicação entre os dois corpos deste imóvel, bem como à beneficiação da instalação eléctrica da biblioteca e de algumas salas, e à remodelação do sistema de detecção de incêndios. Estas intervenções serão suportadas pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Direcção Regional dos Edifícios de Lisboa ! Academia das Ciências,

Lisboa O pólo de formação profissional, na área de encadernação artística, conservação e restauro de documentos gráficos, a instalar na cave do edifício da Academia das Ciências de Lisboa (antigo Convento de Jesus), está integrado numa intervenção mais ampla a realizar no edifício. O projecto para a instalação deste organismo do Instituto de Emprego e Formação Profissional foi já desenvolvido. Os custos da intervenção serão suportados pelo Instituto de Emprego e Formação profissional. ! Palácio Foz, Lisboa

O imóvel tem sido objecto de intervenções variadas para a instalação de serviços desde a década de 40. Recentemente promoveu-se um plano de intervenção em duas fases: reparação geral das coberturas, obra em fase de conclusão; remodelação das instalações interiores, em fase de concurso, prevendo-se o seu início para breve. As fachadas serão objecto de beneficiação após conclusão das restantes obras. ! Governo Civil, Lisboa

Estão em curso obras de remodelação das instalações do governo civil, a funcionar num edifício conventual da primeira metade do século XVIII, que sofreu repetidas e profundas alterações formais. As obras têm como objectivo modernizar as condições de trabalho, proporcionando um funcionamento mais racional e eficaz dos serviços, intervindo-se particularmente no âmbito da arquitectura de interiores, redes eléctricas e condicionamento de ar. Procurou-se conciliar o edifício com uma escolha criteriosa de materiais de acabamento que garantissem boas qualidades de resistência ao desgaste, bons níveis de conforto e manutenção simplificada.

! Conjunto Monumental do

Terreiro do Paço, Lisboa Encontram-se em fase de conclusão as obras de beneficiação das fachadas do Terreiro do Paço. Os trabalhos constam de limpeza de cantarias, pintura de fachadas e reparação e pintura de vãos de janelas, portas e grades. ! Serviço Nacional de Pro-

tecção Civil, Lisboa As novas instalações deste serviço ocuparão três pisos do antigo Convento de Santa Joana. Embora os vestígios edificados do antigo convento (profundamente adulterado e hoje ocupado pela Divisão de Trânsito da Polícia de Segurança Pública) remontem ao século XVIII, as áreas afectas ao SNPC acusam características construtivas mais recentes. Conciliando as características do edifício com a sua nova utilização, desenvolveu-se internamente o projecto das respectivas obras, em fase de adjudicação, sendo as mesmas financiadas pela entidade utilizadora.

Direcção Regional dos Edifícios e Monumentos do Sul ! Igreja Matriz de Brotas, Mora O conjunto é composto pela igreja, hospedarias dos peregrinos e casas da Confraria, cujas origens remontam aos séculos XVI-XVII. Na igreja foram detectadas diversas patologias, cujas origens resultam respectivamente da presença de humidades (por infiltração e capilaridade), e da degradação generalizada dos revestimentos exteriores. A igreja localiza-se sobre uma linha de água e em cota inferior ao arruamento lateral. Em consequência da sua implantação, agravada pela falta de manutenção anual, os azulejos do interior e as pinturas dos tectos e paredes encontram-se em perigo de destruição.

A empreitada, em curso, compreende a reparação de coberturas e a execução de um sistema de drenagem em vala periférica, visando eliminar as infiltracções de água que estavam a afectar o imóvel. O objectivo da empreitada é diminuir as infiltrações de águas provenientes das coberturas e controlar as infiltrações provenientes dos terrenos adjacentes. ! Convento de Nossa Se-

nhora da Conceição, Beja As origens do conjunto, igreja e convento, remontam ao século XV. Actualmente, funciona em todo o edifício o Museu Regional de Beja. Foram detectadas diversas patologias no interior do edifício, nomeadamente a degradação generalizada de pinturas, rebocos e estuques existentes nas paredes e tectos da zona sobre o terraço do claustro. A origem do problema residia na impermeabilização do terraço, executada há cerca de 10 anos, que agravou o efeito das humidades existentes no intradorso das abóbadas, para além de não ter permitido a ventilação natural que até então se processava. Com o objectivo de controlar as humidades existentes no interior, elaborou-se um projecto em que se propôs devolver ao terraço o seu desenho inicial em termos do escoamento, proceder ao aumento da inclinação das pendentes e introduzir novo enchimento no extradorso das abóbadas. ! Palácio de Estói, Faro

O conjunto do edifício e jardins dosséculos XIX-XX traduz um dos melhores exemplos da arquitectura romântica do século passado. Único exemplar no Algarve deste tipo de construção foi, desde 1992, sujeito a obras de recuperação dos jardins e adaptação do palácio a residência oficial. Estão previstos, na actual empreitada, os trabalhos de desactivação da rede de drenagem de esgotos domésticos e construção de nova rede com ligação ao sistema de drenagem público, de recuperação de rebocos e substituição de portadas in-

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feriores. Para além das obras de recuperação, estão ainda previstas obras de adaptação do palácio a residência oficial. ! Castelo de Marvão, Marvão

O primitivo castelo é de fundação romana. Foi totalmente reconstruído nos séculos XIII-XIV e ampliado nos séculos seguintes. A Direcção-Geral do Património do Estado disponibilizou verbas para obras de conservação no monumento. Em termos de prioridade optou-se por dividir as obras em dois anos, cabendo em 1994 as obras de ampliação e recuperação da rede de iluminação do castelo e as obras gerais de conservaçao para 1995. ! Convento de Santa Clara,

Portalegre A sua fundação remonta ao século XIV, tendo sofrido muitas alterações em épocas posteriores. Em 1991 procedeu-se a obras de recuperação de coberturas. Nesse ano foi também executado o projecto de adaptação do convento a biblioteca municipal. O financiamento da obra é da responsabilidade da Câmara Municipal de Portalegre e a fiscalização da DREMS, em conjunto com a Câmara Municipal. ! Convento de São Francisco,

Beja e Convento da Flôr da Rosa, Crato Obras de adaptação a pousada com projectos elaborados por gabinetes privados, promovidas pela ENATUR e com fiscalização da responsabilidade da DGEMN.

MONUMENTOS Dossier A Praça do Comércio O Palácio de Estói O Jardim de Estói A Igreja de São Pedro em Dois Portos, Torres Vedras Limpeza da Torre dos Clérigos Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) O Inventário do Património Arquitectónico

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