MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

June 12, 2018 | Author: Maria Magnética | Category: Ethnicity, Race & Gender, Feminism, Veil, Economics, Family
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Descrição: Texto da escritora feminista indiana Chandra Mohanty, intitulado Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Femi...

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Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista

Sob olhos ocidentais

Estudos feministas e discursos coloniais*

Chandra Talpade Mohanty Qualquer discussão sobre a construção política e intelectual dos “feminismos de terceiro mundo” devem se  voltar a dois projetos simultâneos: a crítica interna dos feminismos hegemônicos “ocidentais”, e a formulação de preocupações e estratégias feministas autônomas, fundamentadas geograficamente, historicamente e culturalmente. O primeiro projeto é de desconstrução e de desmantelamento; o segundo, de criação e construção. Apesar de esses dois projetos parecerem contraditórios, um agindo positivamente e o outro negativamente, a menos que ambos sejam conduzidos simultaneamente, os feminismos de “terceiro mundo” correm o correm  o risco de marginalização e de guetização, em relação aos principais discursos (tanto de direita e quanto de esquerda) feministas ocidentais. É ao primeiro projeto que eu me dirijo. O que desejo analisar é, especificamente, a produção da “mulher de terceiro mundo” como um sujeito  singular e monolítico em alguns textos (ocidentais) recentes. A definição de colonização que pretendo invocar aqui é aquela  predominantemente   discursiva, aquela cujo foco é um certo modo de apropriação e de codificação de “estudos” e “conhecimento” sobre mulheres do terceiro mundo por meio de categorias analíticas utilizadas em textos específicos, que tomam como referências de interesses feministas, aqueles articulados nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Se uma das tarefas ao formular e entender o locus dos “feminismos de terceiro mundo” é delinear o modo pelo qual ele resiste e trabalha contra   o que eu estou me referindo como “discurso feminista ocidental”, uma análise da construção discursiva das “mulheres do terceiro mundo” mundo” no feminismo ocidental ocident al é um primeiro passo importante. Claramente, o discurso feminista ocidental e a prática política, não são nem singulares nem homogêneos em seus objetivos, interesses ou análises. De qualquer modo, é possível traçar uma coerência ou o u efeitos resultantes da suposição primária de “ocidente” (com todas suas complexidades e contradições) como referência primordial à teoria e a prática. De modo algum quando me refiro ao “feminismo ocidental”, pretendo dizer que se trata de um bloco monolítico. Ao contrário, pretendo chamar atenção para efeitos similares de várias estratégias textuais usadas por escritores que classificam os Outros como não 1

ocidentais, e consequentemente, classificam-se a si mesmos (implicitamente) como ocidentais. É nesse sentido que uso  feminismo ocidental . Argumentos similares podem ser construídos em termos de classe média urbana africana, acadêmicos asiáticos produzindo estudos sobre suas irmãs da zona rural ou da classe trabalhadora que assumem sua própria cultura de classe média como norma, e classificam histórias e culturas da classe trabalhadora como a dos dos Outros. Outros.

Assim, mesmo mesmo que que esse ensaio se centre,

especificamente, no que me refiro como o discurso “feminista “ feminista ocidental” sobre mulheres do terceiro mundo, também critico os acadêmicos do terceiro mundo quando escrevem sobre suas próprias culturas utilizando estratégias analíticas idênticas. Deveria haver ao menos algum significado político no fato de o termo colonização ter descrito uma variedade de fenômenos nos textos feministas recentes, tanto de forma geral como os de esquerda. Do seu valor analítico como categoria de troca econômica exploratória, tanto no marxismo tradicional quanto no contemporâneo (cf., particularmente, teóricos contemporâneos tais como Baran 1962, Amin 1977 e GunderFrank 1967) ao seu uso por mulheres feministas de cor nos Estados Unidos para descrever a apropriação de suas experiências e esforços por movimentos hegemônicos de mulheres brancas (cf., especialmente, Moraga e Anzaldúa 1983, Smith 1983, Joseph e Lewis 1981 e Moraga 1984), colonização tem sido usada para caracterizar tudo, a partir das hierarquias políticas e econômicas mais evidentes até a produção de um discurso cultural particular sobre o que é chamado de “terceiro mundo”. 1 Seja seu uso como construção explicativa sofisticada ou problemática, colonização quase invariavelmente implica relação de dominação estrutural e supressão  –   quase sempre violenta  –   da heterogeneidade do(s) assunto(s) em questão. Minha preocupação com tais textos tem origem em meu próprio envolvimento e investimento em debates contemporâneos em teoria feminista, e a necessidade política urgente (especialmente na era Reagan/Bush) de formar alianças estratégicas que ultrapassem a questão de classe, raça e as fronteiras nacionais. Os princípios analíticos discutidos abaixo distorcem as práticas políticas do feminismo ocidental, e limitam a possibilidade de alianças entre feministas ocidentais (geralmente brancas), feministas da classe trabalhadora e feministas de cor ao redor do mundo. Essas limitações são evidentes na construção das prioridades (implicitamente consensuais) de assuntos em torno dos quais aparentemente se espera que todas   as mulheres se organizem. A conexão necessária e integral entre estudos feministas, prática política feminista e organização determina o 1

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significado e o status dos escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo; para estudos feministas, como para a maior parte dos outros tipos de estudo, não se trata apenas da mera produção de conhecimento sobre um determinado assunto. Trata-se de algo diretamente político e de uma prática discursiva que estão proposital e ideologicamente imbricados no assunto. Eles (os estudos) são mais bem vistos como um modo de intervenção em discursos hegemônicos particulares (por exemplo, antropologia tradicional, sociologia, crítica literária, etc.); são uma prática política que enfrenta e resiste o imperativo totalizador de corpos de conhecimento de longa data “legítimos” e “científicos”. Assim, as práticas acadêmicas feministas (não importa se leitura, escrita, crítica ou textualmente) estão inscritas em relações de poder  –   relações que enfrentam, resistem, ou até mesmo, talvez, implicitamente suportem. É claro que também podem existir estudos apolíticos.  A relação entre “Mulher” –   uma combinação cultural e ideológica que os Outros constroem através de discursos representacionais diversos (científicos, literários, jurídicos, linguísticos, cinematográficos, etc.) e “mulheres” –  reais, sujeitos materiais de suas histórias coletivas –  é uma das questões centrais em relação à qual a prática dos estudos feministas se  volta. Essa conexão entre mulheres na condição de sujeitos históricos e a representação da Mulher produzida por discursos hegemônicos não é uma relação de identidade direta, ou uma relação de correspondência ou de simples implicação 2. É uma relação arbitrária estabelecida por culturas particulares. Eu gostaria de sugerir que os textos feministas que eu analiso aqui colonizaram discursivamente as heterogeneidades históricas e materiais das  vidas das mulheres do terceiro mundo, produzindo/representando, desse modo, uma combinação singular “mulher do terceiro mundo” –   uma imagem que parece arbitrariamente construída, mas que não obstante carrega a autorização do discurso humanista ocidental3. Eu argumento que, as hipóteses de privilégio e universalidade etnocêntrica, por um lado, e a autoconsciência inadequada sobre o efeito dos estudos ocidentais do “terceiro mundo” no contexto de um sistema mundial dominado pelo Oeste, por outro, caracterizam uma extensão considerável do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do terceiro mundo. Uma análise da “diferença sexual” na forma de uma noção monolítica de patriarcado ou dominação masculina culturalmente transversal e singular leva à construção de uma noção semelhantemente redutora e homogênea do que eu chamo de “diferença do terceiro mundo” –   aquela noção estável, ahistórica que aparentemente oprime a maior 2 3

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parte, se não todas, as mulheres nesses países. E é na produção dessa “diferença de terceiro mundo” que os feminismos ocidentais se apropriam das complexidades constitutivas que caracterizam as vidas das mulheres nesses países e colonizam-nas. É nesse processo de homogeneização e sistematização da opressão das mulheres no terceiro mundo que o poder é exercido em grande parte dos discursos feministas ocidentais, e esse poder precisa ser definido e nomeado. No contexto da posição hegemônica atual do Ocidente, do que Anouar AbdelMalek ( 1981) chama um esforço para “controle sobre a orientação, regulação e decisão do processo do desenvolvimento do mundo com base no monopólio dos setores avançados em conhecimento científico e criatividade ideal”, os estudos feministas sobre o terceiro mundo devem ser vistos e examinados precisamente em termos de sua inscrição nessas relações particulares de poder e esforço. Deveria ser evidente que não há nenhuma estrutura patriarcal que esses estudos tentem enfrentar e resistir  –   ao menos que alguém postule uma conspiração masculina ou uma estrutura de poder monolítica e ahistórica. De qualquer modo, há uma balança mundial específica de poder dentro da qual qualquer análise de cultura, ideologia e condições socioeconômicas, necessariamente, tem que estar situada. Abdel-Malek é útil novamente nesse ponto, lembrando-nos sobre a inerência da política nos discursos de “cultura”: O imperialismo contemporâneo é, em um sentido real, um imperialismo hegemônico, exercendo em grau máximo uma violência racionalizada elevada a um nível mais alto do que nunca  –   através de ferro e fogo, mas também numa tentativa de controlar corações e mentes. Seu conteúdo é definido pela ação combinada do complexo militarindustrial e pelos centros de cultura hegemônica do ocidente, todos eles fundamentados em níveis avançados de desenvolvimento alcançado pelo monopólio e capital financeiro, e apoiados pelos benefícios tanto da revolução científica quando tecnológica da própria segunda revolução industrial (145-146).

Os estudos feministas ocidentais não podem evitar o desafio de se situarem e examinarem seu papel em tal estrutura econômica e política global. Fazer menos do que isso seria ignorar as interconexões complexas entre economias de primeiro e terceiro mundo e o profundo efeito disso nas vidas das mulheres de todos os países. Eu não questiono o valor descritivo e informativo da maior parte dos textos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo. Eu também não questiono a existência de excelentes trabalhos que não caem em armadilhas analíticas com as quais eu estou preocupada. Na  verdade, eu lido com um exemplo de um trabalho como este adiante. No contexto de um silêncio opressor sobre as experiências das mulheres nesses países, assim como da necessidade de forjar relações internacionais entre os esforços políticos das mulheres, tal 4

trabalho é ao mesmo tempo pioneiro e absolutamente essencial. De qualquer modo, é tanto para o  potencial explanatório de estratégias analíticas particulares empregadas em tal escrita, quanto ao seu efeito político no contexto da hegemonia dos estudos ocidentais que eu quero me voltar. Enquanto os textos feministas nos Estados Unidos ainda são marginalizados (exceto a partir do ponto de vista das mulheres de cores em relação a mulheres brancas privilegiadas), os escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo devem ser considerados no contexto da hegemonia global dos estudos ocidentais  –  i.e., produção, publicação, distribuição e o consumo de informações de ideias. Marginal ou não, essa escrita tem efeitos políticos e implicações que vão além da audiência feminista ou disciplinar imediata. Um efeito significativo das “representações” dominantes do feminismo ocidental é sua fusão com o imperialismo aos olhos de mulheres do terceiro mundo em particular 4. Daí a necessidade urgente de examinar as implicações políticas de nossas estratégias e princípios analíticos. Minha crítica se dirige aos três princípios analíticos básicos que estão presentes no discurso feminista (ocidental) sobre mulheres do terceiro mundo. Desde que meu foco principal é nos textos das séries Third World Women  da Zed Press Women , meus comentários sobre o discurso feminista ocidental circunscrevem-se à análise dos textos nessas séries 5. Esse é um modo de dar foco à minha crítica. De qualquer modo, mesmo que eu esteja lidando com feministas que se identificam cultural ou geograficamente do “ocidente”, como mencionei antes, o que eu falo sobre essas pressuposições ou princípio implícitos se aplica a qualquer um que use esses métodos, não importa se mulheres de terceiro mundo no ocidente ou mulheres de terceiro mundo escrevendo sobre esses assuntos e publicando no ocidente. Assim, eu não estou construindo um argumento culturalista sobre etnocentrismo; estou tentando revelar como o universalismo etnocentrista é produzido em certas análises. Na verdade, meu argumento se aplica a qualquer discurso que estabeleça seus próprios sujeitos autorais como referentes implícitos, i.e., o parâmetro pelo qual se enquadra e representa culturalmente os Outros. É nesse plano que o poder é exercido no discurso.  A primeira pressuposição analítica na qual me foco está envolvida na locação estratégica da categoria “mulheres” vis-à-vis   o contexto da análise. A pressuposição de mulheres como grupo já constituído e coerente, como interesses e desejos idênticos, sem levar em consideração classe, etnia ou raça, ou contradições, implica uma noção de gênero ou diferença sexual ou até mesmo patriarcalismo que pode ser aplicada universalmente e de 4 5

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modo culturalmente transversal. (O contexto de análise poder ser qualquer coisa, de estruturas de parentesco e organização do trabalho, até representações midiáticas). A segunda pressuposição analítica é evidente no nível metodológico, no modo acrítico pelo qual se “prova” a validade do universal e do culturalmente transversal.  A terceira é mais especificamente a pressuposição política subjacente às metodologias e pressuposições políticas, i.e., o modelo de poder e esforço que implicam e sugerem. Eu argumento que como resultado dos dois modos  –   ou, na verdade, quadros  –   de análises descritos acima, uma noção homogênea de opressão das mulheres enquanto grupo é pressuposta, o que, por sua vez, produz a imagem de uma “mulher média de terceiro mundo”. Essa mulher média de terceiro mundo leva uma vida essencialmente truncada, baseada em seu gênero feminino (leia-se: ignorante, pobre, sem educação, ligada à tradição, doméstica, voltada para a família, vitimizada, etc). Sugiro que tal visão está em contraste com a autorepresentação (implícita) das mulheres Ocidentais como educadas, modernas, detentoras de controle sobre seus próprios corpos e sexualidades, e dotadas liberdade para fazer suas próprias decisões.  A distinção entre a representação das mulheres de terceiro mundo por feministas ocidentais e a autorepresentação das feministas ocidentais é uma distinção da mesma ordem daquela feita por alguns marxistas entre a função “mantenedora” da dona de casa e o papel “produtivo” real da trabalhadora assalariada, ou a caracterização por desenvolvimentistas do terceiro mundo como engajado com uma produção menor de “matérias-primas” em contraste com a produtividade “real” do primeiro mundo. Essas distinções são feitas com base no privilégio de um grupo particular como norma ou referente. Trabalhadores assalariados, produtores do primeiro mundo, e como sugiro feministas ocidentais que às vezes moldam as mulheres de terceiro mundo em termos de “nós mesmas despidas” ( ourserlves undressed , termo de Michelle Rosaldo, 1980), todos se colocam na posição de referentes normativos em tal análise binária.  Mulheres enquanto Categorias de Análise, ou: Somos Todas Irmãs na Luta Por mulheres enquanto uma categoria de análise, eu me refiro ao pressuposto crucial que todas nós somos o mesmo gênero, para além das classes e culturas, somos, de algum modo, socialmente constituídas como um grupo homogêneo identificado anteriormente ao processo de análise. Esse é um pressuposto que caracteriza boa parte do discurso feminista. A homogeneidade das mulheres enquanto grupo é produzida não só 6

numa base de fundamentos biológicos, mas também numa base sociológica secundária e de universalidade antropológica. Assim, por exemplo, em qualquer parte determinada da análise feminista, as mulheres são caracterizadas como um grupo singular que tem em comum a opressão. O que une as mulheres é uma noção sociológica de “semelhança” na forma de repressão. É nesse ponto que uma divisão aparece entre “mulheres” como grupo construído discursivamente e “mulheres” enquanto sujeitos materiais de sua própria história6. Assim, a homogeneidade consensual discursiva das “mulheres” enquanto um grupo é errônea para a realidade histórica material específica dos grupos de mulheres. Isso resulta na pressuposição de mulheres como grupo já constituído, rotulado de “sem poder”, “explorado”, “assediado sexualmente”, etc, por discursos feministas científicos, econômicos, jurídicos e sociológicos. (Nota-se que isso é bastante parecido ao discurso sexista que rotula as mulheres de fracas, emocionais, ansiosas, etc). Esse foco não é na revelação de especificidades materiais e ideológicas que constituem um grupo particular de mulheres como “sem poder” em um contexto em particular. O foco está, muito mais, em encontrar uma variedade de casos de grupos de mulheres “sem poder” para provar a generalização de que mulheres enquanto um grupo são desprovidas de poder. Nessa seção me centro em cinco modos específicos nos quais “mulheres” enquanto uma categoria de análise que são usados no discurso feminista ocidental sobre mulheres do terceiro mundo. Cada um desses exemplos ilustra a construção de “mulheres de terceiro mundo” como um grupo homogêneo “sem poder” frequentemente situadas implicitamente como vítimas de sistemas socioeconômicos em específico. Eu escolhi lidar com uma  variedade de escritores –   de Fran Hosken, que escreve principalmente sobre a mutilação genital feminina, até escritores das “Mulheres na Escola de Desenvolvimento Internacional” ( Women in International Developement school  ), que escrevem sobre o efeito das políticas de desenvolvimento em mulheres do terceiro mundo para a audiência ocidental e do terceiro mundo. A similaridade das pressuposições sobre “mulheres do terceiro mundo” em todos esses textos formam a base da minha discussão. Não faço isso para equacionar todos os textos que analiso, nem para igualar seus pontos fortes e suas fraquezas. As autoras com os quais eu lido escrevem com diferentes níveis de preocupação e complexidade; de qualquer modo, o efeito  da sua representação das mulheres de terceiro mundo é coerente e apenas um. Nesses textos as mulheres são definidas como vítimas da  violência masculina (Fran Hosken); vítimas do processo colonial (Maria Cutrufelli); vítimas do sistema árabe familiar (Juliette Minces); vítimas do processo de desenvolvimento 6

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econômico (Beverley Lindsay e a WID School   [liberal]); e finalmente, vítimas do código islâmico (Patricia Jeffery). Esse modo de definir as mulheres, essencialmente, em termos de seu status de objeto (a maneira pela qual elas são, ou não são, afetadas por certas instituições e sistemas) é o que caracteriza essa forma particular de se utilizar “mulheres” como categoria de análise. No contexto das mulheres ocidentais estudando mulheres do terceiro mundo, tal objetificação (apesar de benevolamente motivada) precisa ser tanto nomeada quanto desafiada. Como Valerie Amos e Pratibha Parmar argumentam eloquentemente, “teorias feministas que examinam nossas práticas culturais como ‘resíduos feudais’ ou nos rotulam de ‘tradicionais’, também nos retratam como mulheres politicamente imaturas que precisam ser conhecedoras e educadas no ethos   do feminismo ocidental. Elas precisam ser continuamente desafiadas...” (1984, 7).  Mulheres como vítimas da violência masculina Fran Hosken, ao escrever sobre o relacionamento entre direitos humanos e a mutilação genital feminina na África e no Oriente Médio, baseia toda sua discussão/condenação da mutilação genital em uma única premissa privilegiada: aquela de que a meta dessa prática é “mutilar o prazer sexual e a satisfação da mulher” (1981, 11). Isso a leva, por sua vez, a alegar que a sexualidade da mulher é controlada, assim como seu potencial reprodutivo. De acordo com Hosken, “a política sexual masculina” na África e ao redor do mundo “partilham o mesmo objetivo político: assegurar a dependência e subserviência feminina a qualquer custo” (14). Violência física contra mulheres (estupros, agressão sexual, mutilação, circuncisão, etc.) é realizada “com um surpreendente consenso entre os homens no mundo” ( 14). Aqui, as mulheres são definidas consistentemente como vítimas  do controle masculino – “as sexualmente oprimidas” 7. Apesar de ser verdadeiro que o potencial masculino de violência contra a mulher circunscreve e elucida sua posição social em certa medida, definir mulheres como vítimas arquetípicas congelam-nas em “objetos-que-se-defendem” e homens em “sujeito-que-perpetuam-a- violência”, e (toda) a sociedade em grupos de pessoa sem poderes (leia-se: mulheres) e poderosos (leia-se: homens). A violência masculina deve ser teorizada e interpretada dentro de sociedades específicas, tanto para entendê-la melhor quanto para efetivamente se organizar e modificá-

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la8. A irmandade não pode ser assumida com base no gênero; deve ser forjada em análise história concreta e política.  Mulheres como dependentes universais  A conclusão do livro de Berverly Lindsay   Comparative Perspectives of third World Women: The impact of Race, Sex and Class  (1983, 298, 306) afirma: “relações dependentes, baseadas na raça, sexo e classe, estão sendo perpetradas através de instituições sociais, educacionais e econômicas. Essas são as ligações entre Mulheres do Terceiro Mundo.”  Aqui, como em outras passagens, Lindsay sugere que as mulheres do terceiro mundo constituem um grupo identificável puramente com base nas dependências compartilhadas. Se as dependências compartilhadas fossem tudo que é necessário para nos unir como grupo, as mulheres de terceiro mundo seriam sempre vistas como um grupo apolítico sem status  subjetivo. Ao invés disso, é o contexto em comum de esforços políticos contra classe, raça, gênero e hierarquias imperialistas que podem tornar as mulheres de terceiro mundo um grupo estratégico nessa conjuntura histórica. Lindsay também afirma que diferenças culturais e linguísticas existem entre vietnamitas e mulheres negras dos Estados Unidos, mas “ambos os grupos são vítimas de raça, sexo e classe.” Novamente as mulheres negras e  vietnamitas são caracterizadas por seu status de vítima. Semelhantemente, examinemos afirmações tais como “Minha análise começará dizendo que todas as mulheres africanas são política e economicamente dependentes” (Cutrufelli 1983, 13), “Não obstante, aberta ou veladamente, a prostituição ainda é a principal, se não a única, fonte de trabalho para mulheres africanas” (Cutrufelli 1983, 33). Todas as   mulheres negras são dependentes. Ambas as afirmações são ilustrativas das generalizações espalhadas deliberadamente por meio de uma recente publicação da Zed Press, Women of Africa: Roots of Oppression , de Maria Rosa Cutrufelli, que é descrita na capa como uma escritora italiana, socióloga, marxista e feminista. É possível imaginar na década de 1980 um livro intitulado Women of Europe: Roots of Opression ? Não estou contestando o uso de agrupações universais para propósitos descritivos. Mulheres do continente africano podem ser descritivamente caracterizadas como “mulheres da África”. É quando “mulheres da África” se torna um agrupamento sociologicamente homogêneo caracterizado por dependências em comum ou desprovidas de poder (ou mesmo de força) que os problemas surgem –  dizemos muito pouco e muito ao mesmo tempo. 8

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Isso é devido a diferenças de gênero descritivas serem transformadas em divisão entre homens e mulheres. Mulheres são constituídas como um grupo através de relacionamentos dependentes em relação aos homens, que são implicitamente os responsáveis por esses relacionamentos. Quando “mulheres da África” como grupo ( versus  “homens da África” como grupo?) são vistas como um grupo precisamente porque são generalizadamente dependentes e oprimidas, a análise de diferenças históricas específicas se torna impossível, porque a realidade é aparentemente sempre estruturada por meio de divisões –   duas divisões mutuamente excludentes com grupos exaustivos, as vítimas e os opressores. Aqui o sociológico é substituído pelo biológico, tendo em vista, no entanto, a criação da mesma coisa –  a unidade das mulheres. Não é o potencial descritivo da diferença de gênero, mas o posicionamento privilegiado e o potencial explicatório da diferença de gênero como a origem   da opressão que eu questiono. Ao usar “mulheres da África” (como um grupo de pessoas oprimidas já constituído) como uma categoria de análise, Cutrufelli nega qualquer especificidade histórica para a posição das mulheres como subordinada, poderosa, marginal, central ou não, em relação a redes sociais e de poder em especial. As mulheres são consideradas como um grupo unificado “sem poder”, anterior à análise em questão. Desse modo, trata-se apenas de especificar o contexto depois do fato. “Mulheres” agora são calcadas no contexto da família, ou do ambiente de trabalho, ou dentro de grupos religiosos, quase como se esses sistemas existissem fora das relações de mulheres com outras mulheres, e de mulheres com homens. O problema com essa estratégia analítica, deixe-me repetir, é que ela pressupõe homens e mulheres como sujeito já constituídos antes mesmo de sua entrada dentro da arena das relações sociais. Apenas se concordamos com essa pressuposição é possível aceitar a análise que olha para os “efeitos” das estruturas de parentesco, do colonialismo, da organização do trabalho, etc, sobre as mulheres, que já são definidas a priori   como um grupo. O ponto crucial que é esquecido é que as mulheres são produzidas por essas relações assim como estão envolvidas na formação dessas relações. Como Michelle Rosaldo argúi, “o lugar das mulheres na vida humana social não está diretamente ligado ao produto das coisas que elas fazem (ou até menos do que isso, ligado à função do que elas biologicamente são), na verdade o significado de suas atividades é adquirido por meio de interações sociais concretas” (1980, 400). O fato de mulheres serem mães em diversas sociedades não é tão significativo quanto o valor atrelado à maternidade nessas sociedades.  A distinção entre a maternidade e o status   atrelado a ela é muito importante  –   trata-se de diferença que precisa ser determinada e analisada contextualmente. 10

 Mulheres Casadas como Vítimas do Processo Colonial Na teoria de Lévi-Strauss sobre a estrutura de parentesco como um sistema de troca de mulheres, o que é significativo é que a troca em si não constitui a subordinação das mulheres; as mulheres não são subordinadas em razão do  fato da troca, mas devido aos modos   da troca instituída e aos valores atrelados a esses modos. No entanto, ao discutir o ritual de casamento dos Bemba, um povo matriarcal e matrilocal 9, Cutrufelli em Women in  Africa   se centra no fato da troca marital das mulheres antes e depois da colonização ocidental, ao invés de no valor atrelado a essa troca nesse contexto em específico. Isso faz com que ela defina as mulheres de Bemba como um grupo coerente afetado por um modo específico de colonização. Aqui, novamente, as mulheres de Bemba são constituídas quase que unilateralmente como vítimas dos efeitos da colonização ocidental. Cutrufelli cita o ritual do casamento dos Bemba como um evento multifacetado “por meio do qual um homem jovem incorpora -se no grupo familiar de sua esposa, já que ele passa a residir com eles e oferece seus serviços em troca de comida e subsistência” (43). Esse ritual se estende por muitos anos e o relacionamento sexual varia de acordo com o nível de maturidade física da garota. É apenas depois que ela passa por uma cerimônia de iniciação na puberdade que o intercurso é sancionado, e o homem adquire os direitos legais sobre ela. A cerimônia de iniciação é o ato mais importante de consagração do poder reprodutivo das mulheres, de modo que o rapto de uma garota não iniciada não tem consequência, enquanto penas severas são imputadas à sedução de uma garota iniciada. Cutrufelli afirma que o efeito da colonização européia mudou todo o sistema de casamento.  Agora o jovem homem tem o direito de tomar sua esposa de seu povo em troca de dinheiro. Isso implica as mulheres de Bemba terem perdido a proteção das leis tribais. No entanto, mesmo que seja possível ver como a estrutura do contrato tradicional de casamento ( versus   o contrato de casamento pós-colonial) oferecia às mulheres certo controle sobre suas relações maritais, apenas uma análise do significado político da prática efetiva que privilegiava uma garota iniciada em relação a uma não iniciada, indicando uma mudança nas relações de poder femininas como um resultado dessa cerimônia, pode prover um relato preciso sobre se as mulheres de Bemba eram de fato protegidas pelas leis tribais todas as vezes . De qualquer maneira, não é possível falar das mulheres de Bemba como um grupo homogêneo dentro da estrutura tradicional do casamento. As mulheres de Bemba  antes da 9 NT:

sociedade na qual o homem é obrigado a viver com a família da esposa após o casamento.

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iniciação são constituídas dentro de um conjunto de relação sociais diferente daquele comparado às mulheres de Bemba depois da iniciação. Tratá-las como um grupo unificado caracterizado pelo fato de sua “troca” entre parentes do sexo masculino é negar as especificidades sociais, históricas e culturais de sua existência e ao valor  diferencial atrelado a suas trocas antes e depois de sua iniciação. É tratar a cerimônia de iniciação como um ritual sem implicações ou efeitos políticos. É também assumir que, ao meramente descrever a estrutura  do contrato de casamento, a situação das mulheres está posta. Mulheres enquanto um grupo são posicionadas dentro de uma estrutura dada, mas não há tentativa de traçar os efeitos da prática do casamento em constituir mulheres dentro de uma rede, evidentemente, modificadora de relações de poder. Assim, pressupõe-se que as mulheres sejam sujeitos político-sexuais anteriormente a sua entrada nas relações de parentesco.  Mulheres e Sistemas Familiares Elizabeth Cowie (1978), em outro contexto, aponta as implicações desse tipo de análise quando enfatiza a natureza especificamente política das estruturas de parentesco que devem ser analisadas como práticas ideológicas que designam homens e mulheres como pai, marido, mãe, irmã, etc. Assim, Cowie sugere que mulheres enquanto mulheres não estão situadas   dentro da família. É na  família, enquanto efeito das estruturas de parentesco, que as mulheres enquanto mulheres são construídas, definidas dentro do grupo e pelo o grupo. Desse modo, por exemplo, quando Juliette Minces (1980) cita a   família patriarcal como a base para “uma visão quase idêntica das mulheres” que sociedades árabes e mulçumanas têm, ela cai nessa armadilha (ver especialmente p. 23). Não somente é problemático falar da visão das mulheres compartilhada por sociedades árabes e mulçumanas (i.e., sobre mais de vinte países diferentes) sem se voltar às estruturas históricas, materiais e ideológicas específicas que constroem tais imagens, mas falar sobre a família patriarcal ou sobre a estrutura de parentesco tribal como a origem do status  socioeconômico das mulheres é assumir, novamente, que mulheres são sujeitos políticosexuais antes de sua entrada na família. Então, enquanto por um lado das mulheres ganham  valor ou status   dentro da família, a pressuposição de um sistema de parentesco patriarcal singular (comum a todas as sociedades árabes e muçulmanas) é o que aparentemente estruturam as mulheres como um grupo oprimido nessas sociedades! Esse sistema singular e coerente de parentesco presumivelmente influencia outra entidade dada e separada, “mulheres”. Assim, todas as mulheres, independentemente da classe e das diferenças 12

culturais são afetadas por esse sistema. Não apenas todas as mulheres árabes e muçulmanas parecem constituir um grupo homogêneo e oprimido, mas não há discussão sobre as  práticas específicas dentro da família que constituem mulheres como mães, esposas, irmãs, etc. Árabes e muçulmanas, ao que parece, não se diferenciam de modo algum. Suas famílias patriarcais vêm dos tempos do profeta Maomé. Elas existem como se estivesse fora da história.  Mulheres e Ideologias Religiosas Outro exemplo do uso de “mulheres” como categoria de análise é encontrada nas análises transculturais que atestam certo reducionismo econômico ao descrever a relação entre a economia e fatores tais como política e ideologia. Aqui, ao reduzir o nível de comparação às relações econômicas entre países “desenvolvidos e em desenvolvimento”, qualquer especificidade sobre a questão das mulheres é negada. Mina Modares (1981), numa análise cuidadosa das mulheres e do xiismo no Irã, foca nesse problema quando critica os textos feministas que tratam o islã como uma ideologia separada e fora das relações sociais e práticas, ao invés de um discurso que inclui regras sociais para a economia e para as relações de poder dentro da sociedade. O trabalho informativo de Patricia Jeffery (1979) sobre as mulheres da tribo de Pirzada que viviam sob a prática de purdah 10 considera que a ideologia islâmica é uma explicação parcial para o status   das mulheres na medida em que o islã dá uma justificativa para o purdah. Aqui, a ideologia islâmica é reduzida a um conjunto de ideias cuja internalização pelas mulheres da tribo de Pirzada contribui para a estabilidade do sistema. De qualquer modo, a principal explicação para o purdah está no controle que os homens da tribo de Pirzada têm sobre os recursos econômicos, e a segurança pessoal que o regime de purdah dá às mulheres de Pirzada.  Ao usar uma versão específica do Islã como o Islã, Jeffrey atribui a ele singularidade e coerência. Modares ressalta que, “‘a Teologia Islâmica’ se torna, então, imposta a uma entidade dada e separada chamada ‘mulheres’. Uma unificação adicional é alcançada: Mulheres (significando todas as mulheres  ), não importando suas diferentes posições dentro das sociedades, vêm a ser ou não afetadas pelo Islã” (63). Marina Lazreg construiu um argumento similar quando fala do reducionismo inerente aos estudos sobre mulheres no Oriente Médio e no norte da África:

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NT: prática de segregar as mulheres dentro de casa.

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Um ritual é estabelecido para que o escritor recorra à religião como a   causa da desigualdade de gênero, assim como ela é colocada como fonte de subdesenvolvimento para boa parte da teoria da modernização. De um modo estranho, o discurso feminista sobre as mulheres do Oriente Médio e do Norte da África se espelha na interpretação dos próprios teólogos sobre as mulheres no islã... O efeito desse paradigma é privar as mulheres de terem presença, de serem. Como as mulheres são subsumidas à religião apresentada em suas regras fundamentais, elas são inevitavelmente vistas como se estivessem evoluindo ahistoricamente. Elas,  virtualmente, não têm história. Qualquer análise de mudança é, portanto, vedada. (1988, 87).

Mesmo que a análise de Jeffery não sucumba a esse tipo de noção unitária da religião (islâmica), ela faz com que todas as especificidades ideológicas se percam nas relações econômicas, e a universaliza com base nessa comparação.  Mulheres e o Processo de Desenvolvimento Os melhores exemplos de universalização com base no reducionismo econômico estão na literatura liberal de “Women in Development”. Proponentes dessa escola buscam examinar o efeito do desenvolvimento sobre mulheres de terceiro mundo algumas vezes, a partir de perspectivas autodenominadas feministas. Em última instância, há um interesse e um comprometimento evidentes com a melhoria da vida dessas mulheres de países “em desenvolvimento”. Estudiosas como “Irene Tinker e Michelle Bo Bramsen (1972), Ester Boserup (1970), e Perdita Huston (1979) todas escreveram sobre o efeito das políticas de desenvolvimento sobre mulheres do terceiro mundo 11. Todas essas três mulheres assumem “desenvolvimento” como sinônimo de “desenvolvimento econômico” ou “progresso econômico”. Como no caso da família patriarcal de Mince, do controle sexual de Hosken e da colonização ocidental de Cutrufelli, desenvolvimento se torna o equalizador de todos os tempos. Mulheres são afetadas positiva ou negativamente por políticas econômicas de desenvolvimento, e isso é a base para a comparação transcultural. Por exemplo, Perdita Huston (1979) afirma que o propósito de seu estudo é descrever o efeito do processo de desenvolvimento na “família enquanto unidade e em seus membros individuais” no Egito, Quênia, Sudão, Tunísia, Sri Lanka e M éxico. Ela afirma que os “problemas” e “necessidades” expressados pelas mulheres urbanas e da zona rural nesses países giram todos em torno de educação e treinamento, trabalho e salários, acesso à saúde e outros serviços, participação política e regulação de direitos. Huston relaciona todas essas “necessidades” à falta de políticas de desenvolvimentos sensíveis, que 11

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excluem as mulheres como um grupo ou uma categoria. Para ela, a solução é simples: implantar melhores políticas de desenvolvimento que enfatizem o treinamento para mulheres que trabalham no campo, o estágio de mulheres, mulheres como agentes de desenvolvimento rural, encorajem cooperativas de mulheres, etc. Aqui, novamente, pressupõe-se que mulheres são um grupo coerente ou categoria anterior à entrada delas no “processo de desenvolvimento”. Huston presume que todas as mulheres do terceiro mundo têm problemas e necessidades semelhantes. Assim, elas devem ter interesses e metas similares. No entanto, os interesses das donas de casa egípcias que vivem em cidades, educadas e de classe média, para pegar apenas um exemplo, poderiam não ser vistos como semelhantes aos das empregadas domésticas pobres e sem educação formal. Políticas de desenvolvimento não afetam ambos os grupos de mulheres da mesma maneira. Práticas que caracterizam o status   das mulheres variam de acordo com a classe. Mulheres constituem-se como mulheres através de complexa interação entre classe, cultura, religião e outras instituições e ferramentas ideológicas. Elas não são “mulheres” –  um grupo coerente  –   apenas tomando como base um sistema econômico ou político em particular. Essas comparações transculturais reducionistas resultam na colonização das especificidades da existência diária e das complexidades dos interesses políticos que mulheres de diferentes classes sociais e culturas representam e se mobilizam.  Assim, é revelador que para Perdita Houston, as mulheres de terceiro mundo sobre as quais ela escreve tenham “necessidades” e “problemas”, mas poucas tenham quaisquer “escolhas” ou liberdade de agir. Essa é uma representação interessante das mulheres do terceiro mundo, significante ao sugerir uma autorepresentação latente das mulheres ocidentais que têm sustentado este olhar. Ela escreve, “O que mais me surpreendeu e me comoveu enquanto eu ouvia as mulheres em arranjos culturais tão diferentes foi a impressionante semelhança –  não importa se elas tinham estudado ou era iletradas, urbanas ou rurais –  de seus valores mais básicos: a importância que elas dão à família, à dignidade, e a servir aos outros” (1979, 115). Houston consideraria tais valores incomuns às mulheres do ocidente? O que é problemático sobre esse tipo de uso de “mulheres” como um grupo, uma categoria estável de análise, é que se pressupõe uma unidade ahistórica e universal entre as mulheres baseada numa noção generalizada de sua subordinação. Ao invés de demonstrar analiticamente a produção das mulheres como grupos políticos e socioeconômicos dentro de contextos particulares locais, essa forma analítica limita a definição do sujeito feminino à identidade de gênero, ignorando completamente identidades sociais de classe e étnicas. O 15

que caracteriza as mulheres como um grupo é seu gênero (sociologicamente, não necessariamente definido biologicamente) acima de todo o mais, indicando uma noção monolítica de diferença sexual. Conquanto as mulheres são constituídas como um grupo coerente, diferença sexual se confina à subordinação feminina, e o poder é automaticamente definido em termos binários: pessoas que o tenham (leia-se: homens) e pessoas que não o tem (leia-se: mulheres). Homens exploram, mulheres são exploradas.  Tais formulações simplistas são historicamente reducionistas; elas também são ineficazes ao designar estratégias no combate às opressões. Tudo que elas fazem é reforçar divisões binárias entre homens e mulheres. Como se pareceria uma análise que não faz isso? O trabalho de Maria Mies ilustra a força do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do terceiro mundo que não cai nas armadilhas discutidas acima. O estudo de Mies sobre as bordadeiras de Narsapur na Índia (1982) tenta analisar cuidadosamente uma indústria familiar substancial na qual as “donas de casa” produzem toalhinhas de renda para o mercado mundial. Por meio de uma análise detalhada da estrutura da indústria de toalhinhas de renda, da produção e da reprodução de relações, da divisão sexual do trabalho, dos lucros e da exploração, e das consequências de modo geral de se definir as mulheres como “donas de casa não trabalhadoras” e seu trabalho como “atividade de lazer”. Mies demonstra os níveis de exploração nessa indústria e o impacto desse sistema de produção nas condições de trabalho e de vida das mulheres envolvidas nele. Além disso, ela consegue analisar a “ideologia da dona de casa”, a noção de mulher sentada dentro de casa, como elemento subjetivo e sociocultural suficiente para a criação e manutenção de um sistema de produção que contribui para a crescente pauperização das mulheres e as mantém totalmente atomizadas e desorganizadas enquanto trabalhadoras. A análise de Mies mostra o efeito de uma organização patriarcal historicamente e culturalmente específica, uma organização construída na base da definição de bordadeiras como “donas de casa não trabalhadoras” no nível local, regional, estatal e internacional. As complexidades e efeitos de redes de poder em específico não só são enfatizados, como formam a base da análise de como esse grupo particular de mulheres está situado no centro de um mercado mundial explorador e hegemônico. Esse é um bom exemplo de o que uma análise local cuidadosa, focada politicamente, consegue fazer. Ela ilustra como a categoria mulheres é construída numa  variedade de contextos políticos que com frequência existem simultaneamente e sobrepostos uns aos outros. Não há generalização f ácil para a definição de “mulheres” na Índia, ou para “mulheres do terceiro mundo”; também não há uma redução da construção 16

política sobre a exploração das bordadeiras a explicações culturais sobre a passividade ou a obediência que podem caracterizar as mulheres e sua situação. Por fim, esse modo de análise política e local que gera categorias teóricas a partir da situação e do contexto que está sendo analisado, também oferece estratégias efetivas contra a exploração enfrentada pelas bordadeiras. As mulheres de Narsapur não são meras vítimas do processo de produção, porque elas resistem, desafiam e subvertem o processo em diferentes momentos.  Aqui está um exemplo de como Mies delineia as conexões entre a ideologia da dona de casa, a autoconsciência das bordadeiras, e suas inter-relações que contribuem para as resistências latentes perceptíveis entre as mulheres:  A persistência da ideologia da dona de casa, a autopercepção das bordadeiras como produtoras de pequenas mercadorias ao invés de trabalhadoras, não somente não tem ajuda da estrutura da própria indústria, como é reforçada pelas instituições e normas patriarcais reacionárias. Assim, a maior parte das bordadeiras expressou a mesma opinião sobre o purdah e sobre o isolamento dentro de suas comunidades, opinião que também era propagada pelos exportadores de rendas. Especialmente as mulheres de Kapu disseram que elas nunca tinham saído de suas casas, que as mulheres de sua comunidade não podiam fazer outra coisa que não o trabalho doméstico e toalhinhas de renda, etc, mas apesar do fato de a maior parte delas ainda se submeter completamente às normas patriarcais das mulheres  gosha , também havia elementos contraditórios em sua percepção. Desse modo, mesmo que elas desprezassem mulheres que eram capazes de trabalhar fora de casa  –   como as intocáveis  Mala  e  Madia , ou mulheres de outras castas mais baixas, elas não podiam ignorar o fato de que essas mulheres estavam ganhando mais dinheiro exatamente porque elas não era respeitáveis donas de casa, mas trabalhadoras. Em uma discussão, ela até mesmo admitiram que seria melhor se elas também pudessem sair e fazer trabalhos mais legais. E quanto elas foram questionadas sobre se elas estariam preparadas para sair de suas casas e trabalhar em algum lugar como uma fábrica, elas disseram que sim. Isso mostra que o purdah e a ideologia da dona de casa, mesmo que ainda inteiramente internalizadas, já têm algumas fissuras, já que eles têm sido confrontados com diversas realidades diferentes. (157)

É apenas ao entender as contradições inerentes às posições das mulheres dentro das  várias estruturas existentes que ações políticas efetivas e desafios podem ser concebidos. O estudo de Mies percorre um longo caminho em torno disso para oferecer sua análise. Mesmo que agora exista um número crescente de textos feministas ocidentais nessa tradição12, infelizmente, também há um grande volume de escritos que sucumbem ao reducionismo cultural discutido anteriormente. Universalismo Metodológico, ou: a Opressão das Mulheres é um Fenômeno Global

12

17

Os textos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo se comprometem com diversas metodologias para demonstrar a operação universal e transcultural que caracteriza o domínio masculino e a exploração feminina. Eu sintetizo e critico três desses métodos abaixo, partindo do mais simples ao mais complexo. Em primeiro lugar, consegue-se a prova de universalismo através do uso de um método aritmético. O argumento é o seguinte: quanto maior o número de mulheres que usam véu, mais universal é a segregação sexual e o controle sobre as mulheres (Deardon 1975, 4-5). Semelhantemente, um grande número de exemplos fragmentados de diversos países, aparentemente, também se soma a esse método. Por exemplo, todas as mulheres muçulmanas na Arábia Saudita, no Irã, no Paquistão, na Índia e no Egito, usam algum tipo de véu. Isso indica, por consequência, que o controle sexual das mulheres é um fato universal em países nos quais as mulheres usam o véu (Deardon 1975, 7, 10). Fran Hosken escreve, “Estupro, prostituição forçada, poligamia, mutilação genital, pornografia, violência física contra garotas e mulheres, o purdah (segregação das mulheres), são todas violações de direitos humanos básicos” (1981, 15). Ao igualar o purdah com o estupro, com violência doméstica e prostituição forçada, Hosken afirma que o “controle sexual” é a função principal para o purdah, não importa em qual contexto. Às instituições do purdah são negadas quaisquer especificidades históricas ou culturais e as contradições e aspectos potencialmente subversivos são totalmente descartados. Em ambos os exemplos, o problema não está em se afirmar que a prática do uso do  véu é generalizada. Tal afirmação pode ser feita com base em número. É uma generalização descritiva. No entanto, o salto analítico que se faz, da prática do uso de véu para uma afirmação de que seu significado de forma geral é o controle das mulheres, deve ser questionado. Mesmo que possa existir similaridade nos véus utilizados por mulheres na  Arábia Saudita e no Irã, o significado particular que se atribui a essa prática varia de acordo com o contexto ideológico e cultural. Além disso, o espaço simbólico ocupado pelo purdah pode ser similar em determinados contextos, mas isso não indica automaticamente que as práticas em si têm significados idênticos no domínio social. Por exemplo, como se sabe, as mulheres iranianas de classe média cobriram-se com véu durante a revolução de 1979 em solidariedade às suas irmãs da classe trabalhadora que o usavam, enquanto que no Irã contemporâneo, leis islâmicas mandatórias obrigam todas as mulheres a usarem véu. Mesmo que em ambos os exemplos, razões similares possam ser dadas para o uso do véu (oposição ao Xá e a colonização ocidental no primeiro caso, e a verdadeira islamização do Irã no segundo), os significados concretos ligados ao uso do véu pelas mulheres iranianas 18

são claramente diferentes nos dois contextos históricos. No primeiro caso, usar o véu é tanto um gesto de oposição quanto um gesto revolucionário da parte das mulheres iranianas de classe média; no segundo caso, trata-se de obrigação institucional coercitiva (ver Tabari 1980 para discussão em detalhes). É com uma análise que tenha como base esses contextos específicos e diferenciados que estratégias políticas efetivas podem ser geradas. Pressupor que a mera prática do uso do véu em diversos países muçulmanos indica uma opressão universal das mulheres através da segregação sexual não só é analiticamente reducionista, mas também se mostra sem utilidade no que se refere à elaboração de estratégias políticas de oposição. Em segundo lugar, conceitos tais como reprodução, divisão sexual do trabalho, família, casamento, cuidados com o lar, patriarcado, etc, são frequentemente utilizados sem sua especificação referente a contextos históricos e culturais. Feministas usam esses conceitos ao dar explicações sobre a subordinação das mulheres, assumindo, aparentemente, sua aplicabilidade universal. Por exemplo, como é possível referir-se “à” divisão sexual do trabalho quando o conteúdo dessa divisão varia radicalmente de um ambiente para o outro, e de uma conjuntura histórica para outra? Em seu nível mais abstrato, é o fato de diferentes atribuições de tarefas de acordo com o sexo que é significativo; no entanto, isso é bastante diferente do significado ou valor   que o conteúdo dessa divisão sexual do trabalho assume em diferentes contextos. Na maior parte dos casos, a divisão de tarefas com base no sexo possui uma origem ideológica. Não há dúvidas que uma afirmação como “mulheres estão concentradas em ocupações orientadas para serviços em um grande número de países em todo o mundo” é descritivelmente válida. Portanto, talvez possa ser invocada descritivamente a existência de uma divisão sexual do trabalho similar em diversos países (nas quais as mulheres trabalham em ocupações de serviço como enfermagem, assistência social, etc, e homens em outros tipos de ocupação). No entanto, o conceito de “divisão sexual do trabalho” é mais do que uma categoria descritiva. Ele indica um valor diferenciado atribuído ao “trabalho de homens” versus “trabalho de mulheres”.  A mera existência de uma divisão sexual do trabalho é frequentemente considerada como prova da opressão de mulheres em diversas sociedades. Isso é resultado de uma confusão entre os potenciais descritivos e explanatórios do conceito de divisão sexual do trabalho. Situações superficialmente similares podem ter explicações históricas específicas radicalmente diferentes, e não podem ser tratadas como idênticas. Por exemplo, o aumento de lares chefiados por mulheres na classe média americana pode ser interpretado como sinal de grande independência e progresso feminista, considerado que as mulheres escolheram  19

ser mães solteiras, que há um crescente número de mães lésbicas, etc. Entretanto, o recente aumento em lares chefiados por mulheres na América Latina, 13 que poderia ser interpretado como um aumento de poder de decisão, está concentrado entre as classes mais pobres, nas quais as escolhas de vida são mais restritas economicamente. Um argumento similar pode ser levantado quanto ao aumento de lares chefiados por mulheres entre mulheres negras e latinas nos Estados Unidos. A correlação positiva entre isso e o nível de pobreza entre mulheres de cor e mulheres brancas operárias nos Estados Unidos ganhou até um nome: a feminização da pobreza. Assim, enquanto é possível afirmar que há um aumento em lares chefiados por mulheres nos Estados Unidos e na América Latina, esse aumento não pode ser discutido como um indicador universal de independência das mulheres, tampouco como um indicador universal de empobrecimento feminino. O significado e a explicação para o aumento obviamente variam de acordo com o contexto histórico-social. Similarmente, a existência de uma divisão sexual do trabalho na maior parte dos contextos não pode ser explicação suficiente para a subjugação universal de mulheres da força trabalhadora. Para que se caracterize a divisão sexual do trabalho como desvalorização do trabalho das mulheres deve se partir de análise de contextos locais em específico. Além disso, a desvalorização das mulheres deve também ser vista através de análise cuidadosa. Em outras palavras, a “divisão sexual do trabalho” e “mulheres” não são categorias analíticas comensuráveis. Conceitos como os de divisão sexual do trabalho são úteis somente se gerados por meio de análises locais, contextuais (veja Eldhom, Harris, e  Young 1977). Se esses conceitos forem tomados como universalmente aplicáveis, a homogeneização resultante de práticas materiais diárias, religiosas, raciais e de classe das mulheres do terceiro mundo poderia criar uma falsa ideia de compartilhamento de opressões, interesses e lutas entre as mulheres, em nível global. Para além da irmandade, há ainda racismo, colonialismo e imperialismo! Por último, alguns escritores confundem o uso de gênero como uma categoria superordenada de organização de análise com a prova universalista e instanciação dessa categoria. Em outras palavras, estudos empíricos de diferenças de gêneros são confundidos com a organização analítica de estudos socioculturais. A resenha de Beverly Brown (1983) do livro  Natureza, Cultura e Gênero (Strathern and McCormack 1980) ilustra melhor esse ponto. Brown sugere que natureza: cultura e feminino: masculino são categorias superordenadas

que

organizam

e

localizam

categorias

inferiores

(como

selvagem/doméstico e biologia/tecnologia) dentro de sua lógica. Essas categorias são 13

20

universais no sentido de que organizam o universo de um sistema de representações. Essa relação é totalmente independente da substanciação universal de qualquer categoria particular. Sua crítica depende do fato de que, em vez de esclarecer a generalização de natureza: cultura: feminino :: masculino como categorias de organização subordinadas,  Natureza, Cultura e Gênero tomam a universalidade dessa equação como pertencente ao nível da verdade empírica, que pode ser investigada por meio de trabalho de campo. Assim, a utilidade do paradigma natureza: cultura :: feminino: masculino como um modelo universal da organização de representação dentro de qualquer sistema histórico-social fica perdida.  Aqui, o universalismo metodológico é presumido com base na redução das categorias analíticas natureza: cultura :: feminino:masculino para uma demanda de provas empíricas de sua existência em diferentes culturas. Discursos de representação são confundidos com realidades materiais, e a distinção feita anteriormente entre “Mulher” e “mulheres” fica perdida. Trabalhos feministas que embaralham essa distinção (o que, interessantemente, está frequentemente presente em autorepresentações de feministas ocidentais) eventualmente acabam construindo imagens monolíticas de “mulheres do terceiro mundo”, por ignorar as relações complexas e móveis entre suas materialidades históricas no nível de opressões específicas e escolhas políticas, de um lado, e suas representações discursivas, de outro. Em suma: eu discuti três movimentos metodológicos identificáveis nos trabalhos feministas (e outros trabalhos acadêmicos) interculturais que buscam desvendar a universalidade na posição feminina subordinada na sociedade. A próxima e última seção reúne as seções anteriores, buscando traçar os efeitos políticos das estratégias analíticas no contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres no terceiro mundo. Esses argumentos não são contra a generalização na medida em que são por generalizações cuidadosas, históricas e específicas, adequadas a realidades complexas. Nem esses argumentos negam a necessidade de formar identidades e afinidades políticas estratégicas.  Assim, enquanto as mulheres indianas de diferentes religiões, castas e classes podem forjar uma unidade política com base na organização contra a violência policial contra mulheres (ver Kishwar e Vanita 1984), uma análise da violência policial deve ser contextual. Alianças estratégicas que construam identidades políticas de oposição por si mesmas são baseadas em unidades generalizadas e provisórias, mas a análise dessas identidades de grupo não pode ser baseada em categoriais universalistas e ahistóricas. O(s) objeto(s) do Poder 21

Esta última seção retorna a um ponto anterior sobre a natureza política inerente dos estudos feministas, e procura esclarecer meu ponto a respeito da possibilidade de detectar um movimento colonialista no caso de uma conexão hegemônica de primeiro-terceiro mundo nesses estudos. Os nove textos na série Zed Press Women in the Third World que discuti14 focavam-se nas seguintes áreas comuns ao examinar o “status” das mulheres em diversas sociedades: religião, estruturas familiares/de parentesco, o sistema legal, a divisão sexual do trabalho, educação e, finalmente, resistência política. Uma grande parte dos ensaios de feministas ocidentais a respeito de mulheres no terceiro mundo se centra nesses temas. É claro que os textos do Zed possuem ênfases variadas. Por exemplo, dois estudos,  Mulheres da Palestina (Downing 1982) e  Mulheres Indianas na Luta (Omvedt 1980), focam explicitamente na militância e envolvimento político feminino, enquanto que  Mulheres na Sociedade Árabe (Minces 1980) lida com o status   legal, religioso e familiar das mulheres árabes. Além disso, cada texto evidencia uma variedade de metodologias e níveis de cuidado ao fazer generalizações. Interessante é que, entretanto, quase todos os textos assumem “mulher” como uma categoria de análise na forma designada acima. Claramente essa é uma estratégia que não é nem limitada a essas publicações do Zed Press   tampouco sintomáticas dessas publicações em geral. Entretanto, cada um desses textos em particular assume que “mulheres” possui um grupo de identidade coerente entre as diferentes culturas em discussão, antes de sua entrada em relações sociais. Assim, Omvedt pode falar sobre “mulheres indianas”, referindo-se a um grupo particular de mulheres do estado de Maharashtra, Cutrufelli sobre as “mulheres da África”, e Minces sobre “mulheres árabes”, como se todos esses grupos de mulheres tivessem algum tipo de óbvia coerência cultural, distinta da dos homens nessas sociedades. Esse “status” ou “posição” das mulheres é assumida como auto-evidente, porque mulheres, como um grupo já constituído, são colocadas   em estruturas religiosas, econômicas, familiares e jurídicas. No entanto, isso foca apenas onde as mulheres são vistas como um grupo coerente através de contextos, independentemente de classe ou etnia, e estrutura, em última análise, termos binários e dicotômicos, onde mulheres são sempre vistas em oposição aos homens, em que o patriarcado é sempre necessariamente dominância masculina, e que os sistemas religiosos, legais, econômicos e familiares são implicitamente assumidos como sendo construídos por homens. Assim, ambos, homens e mulheres sempre constituem, aparentemente, duas populações distintas, e as relações de dominância e exploração são sempre colocadas em termos de todas as pessoas –   todas em relações de exploração. Apenas quando homens e 14

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mulheres são vistos como diferentes categorias ou grupos possuindo diferentes categorias  já constituídas de experiência, cognição e interesses como  grupos   é que uma dicotomia tão simplista quanto essa é possível. O que isso implica a respeito da estrutura e funcionamento das relações de poder?  A criação de um compartilhamento das lutas das mulheres de países de terceiro mundo por meio de classes e culturas contra uma noção geral de opressão (sobretudo o grupo no poder, i.e., homens) necessita da assunção do que Michel Foucault (1980, 135-45) denomina modelo “jurídico-discursivo” de poder, cujas principais características são a “relação negativa” (limite e falta ), uma “insistência na norma” (o que forma um sistema binário), um “ciclo de proibição”, a “lógica da censura”, e uma “uniformidade” do aparelho funcionando em diferentes níveis. O discurso feminista no terceiro mundo que assume uma categoria homogênea –   ou grupo- chamado mulheres necessariamente opera por meio do estabelecimento de divisões originárias de poder. Relações de poder são estruturadas em termos de uma fonte unilateral e indiferenciada de poder e de uma cumulativa reação ao poder. Oposição é um fenômeno generalizado criado como resposta ao poder  –  o que, por sua vez, é detido por alguns grupos de pessoas. O maior problema com tal definição de poder é que ela encerra todas as lutas revolucionarias em estruturas binárias  –  possuir poder versus ser impotente. Mulheres são impotentes, grupos desunidos. Se a luta por uma sociedade justa for vista em termos da mudança das mulheres de impotentes para poderosas como um grupo, e essa é a implicação do discurso feminista que estrutura as diferenças sexuais em termos de divisão entre os sexos, então essa nova sociedade seria estruturalmente idêntica à organização de relações de poder, constituindo a si mesma como uma simples inversão do que existe. Se relações de dominância e exploração são definidas em termos de divisões binárias  –   grupos que dominam e grupos que são dominados –  evidentemente a implicação de que a ascensão ao poder de mulheres como um grupo é suficiente para desmantelar a organização das relações existente? Mas mulheres como um grupo não são de forma alguma essencialmente superiores ou infalíveis. O cerne do problema reside naquele pressuposto inicial de mulheres como um grupo ou categoria homogênea (“os oprimidos”), um pressuposto familiar dos feministas radicais e liberais do ocidente. O que ocorre quando esse pressuposto de “mulheres como um grupo oprimido”  é situado no contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres do terceiro mundo? É aqui que localizo o movimento colonialista. Ao contrastar a representação das mulheres do terceiro mundo com o que eu me referi anteriormente como 23

autorepresentação das feministas do Ocidente no mesmo contexto, vemos como as feministas ocidentais sozinhas passam a ser os reais “sujeitos” dessa contra-história. As mulheres do terceiro mundo, por outro lado, nunca ultrapassam a generalidade debilitante de seu status de “objeto”. Enquanto que os pressupostos feministas radicais e liberais de mulheres como uma classe sexual possam elucidar (ainda que inadequadamente) a autonomia de lutas particulares de mulheres no ocidente, a aplicação da noção de mulheres como uma categoria homogênea a mulheres do terceiro mundo coloniza e apropria as pluralidades de diferentes grupos de mulheres em locações simultâneas, em enquadramentos étnicos e de classe social; em assim fazendo, em última análise as priva de seu  poder histórico e político. Similarmente, muitos autores da Zed Press que baseiam-se nas estratégias analíticas do marxismo tradicional também criam implicitamente uma “unidade” de mulheres, substituindo “trabalho” por “atividades femininas” como primeiro determinante teórico da situação das mulheres. Aqui novamente mulheres são constituídas como um grupo coerente, não com base nas qualidades “naturais” ou necessidades, mas com base de uma “unidade” sociológica de seu papel na produção domestica e trabalho assalariado (veja Haraway 1985, esp. p. 76). Em outras palavras, o discurso feminista ocidental, ao assumir as mulheres como um grupo coerente e já constituído, o qual é colocado em estruturas de parentesco, jurídicas, entre outras, define as mulheres do terceiro mundo como sujeitos  fora  das relações sociais, em vez de observar como as mulheres são constituídas através   dessas estruturas. Estruturas jurídicas, econômicas, religiosas e familiares são tratadas como fenômenos a serem julgados pelos padrões ocidentais. É aqui que a universalidade etnocêntrica entra em cena. Quando essas estruturas são definidas como “subdesenvolvidas” ou “em desenvolvimento” e as mulheres são colocadas dentro delas, uma imagem implícita da “mulher de terceiro mundo média” é produzida. Essa é a transformação da (implicitamente ocidental) “mulher oprimida” em “mulher de terceiro mundo oprimida”. Enquanto que a categoria de “mulher oprimida” é gerada por meio de um foco exclusivo na diferença de gênero, a categoria “mulher de terceiro mundo oprimida” possui um atributo adicional  – a “diferença do terceiro mundo!”. A “diferença do terceiro mundo” incluiu  ma atitude paternalista em relação às mulheres de terceiro mundo. 15 Como as discussões dos vários temas que identifiquei anteriormente (parentesco, educação, religião etc) são conduzidas no contexto do relativo “subdesenvolvimento” do 15

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terceiro mundo (que não é nada menos que um desenvolvimento injustificavelmente confuso com um caminho diverso do tomado pelo Ocidente em seu desenvolvimento, assim como ignorando a direcionalidade das relações mundiais de poder do primeiroterceiro mundo), as mulheres de terceiro mundo como grupo ou categoria são automática e necessariamente definidas como religiosas (leia-se “não progressistas”), orientadas para a família (leia-se “tradicionais”), incapazes (leia-se “elas-ainda-não-são-conscientes-de-seusdireitos), iletradas (leia-se “ignorantes”), domésticas (leia-se “reacionárias”) e algumas vezes revolucionárias (leia-se “seus-países-estão-em-um-estado-de-guerra; elas-devem-lutar!”).  Assim é como a “diferença do terceiro mundo” é produzida. Quando a categoria das “mulheres sexualmente oprimidas” é localizada dentro de sistemas particulares do terceiro mundo que são definidos em uma escala que é normatizada por meio de pressupostos eurocêntricos, as mulheres de terceiro mundo não são apenas definidas em um modo particular, prévio à sua entrada nas relações sociais, mas também, uma vez que nenhuma conexão é feita entre deslocamentos de poder entre primeiro e terceiro mundos, é reforçado o pressuposto de que o terceiro mundo apenas ainda não evoluiu como o ocidente o fez. Essa forma de análise feminista, ao homogeneizar e sistematizar as experiências de diferentes grupos de mulheres nesses países, apaga todos os modos e experiências marginais e resistentes. 16 É significativo que nenhum dos textos que resenhei na série Zed Press foque-se em políticas lésbicas ou em políticas de organizações étnicas ou políticas marginais nos grupos de mulheres de terceiro mundo. A resistência pode assim ser definida apenas como cumulativamente reativa, não como algo inerente na operação de poder. Se o poder, como Michel Foucault argumentou recentemente, pode realmente ser entendido apenas no contexto de resistência,

17

  essa

percepção errônea é tanto analítica como estrategicamente problemática. Ela limita a análise teórica, assim como reforça o imperialismo cultural ocidental. Pois no contexto de um equilíbrio de poder primeiro/terceiro mundo, a análise feminista que perpetua e sustenta a hegemonia da ideia da superioridade do Ocidente produz um conjunto de imagens da “mulher de terceiro mundo”, imagens como a da mulher com véu, a mãe poderosa, a virgem casta, a esposa obediente etc. Essas imagens existem em esplendor universal, ahistorico, pondo em funcionamento um discurso colonialista que exercita um poder muito especifico em definir, codificar e manter as conexões primeiro/terceiro mundo existentes.

16 17

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Para concluir, então, deixe-me sugerir algumas similaridades desconcertantes entre a típica assinatura de tais escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo, e a assinatura do projeto de humanismo em geral  –   humanismo como projeto ideológico e político ocidental, que envolve a necessária recuperação do “Oriente” e “Mulheres” como Outros. Muitos pensadores contemporâneos, incluindo Foucault (1978, 1980), Derrida (1974), Kristeva (1980), Deleuze e Guattari (1977) e Said (1978) escreveram longamente sobre o antropomorfismo e o etnocentrismo subjacentes, que constituem uma problemática humanística hegemônica, a qual repetidamente confirma e legitima centralmente os Homens (ocidentais). Teóricas feministas como Luce Irigaway (1981), Sarah Kofman (veja Berg 1982) e Helene Cixous (1981) também escreveram sobre a recuperação e ausência de mulher/mulheres entre o humanismo ocidental. O foco do trabalho de todos esses pensadores pode ser descrito apenas como a revelação dos interesses políticos que subjazem a lógica binária do discurso humanista e ideologia onde, como um recente e valioso ensaio coloca, “o primeiro (majoritário) termo (Identidade, Universalidade, Cultura, Desapego, Verdade, Sanidade, Justiça, etc), que é, na verdade, secundário e derivativo (uma construção), é privilegiado em relação a e coloniza o segundo (minoria) termo (diferença, temporalidade, anarquia, erro, apego, insanidade, desvio, etc), o que é, na verdade, primário e originário” (Spanos 1984). Em outras palavras, é apenas quando “Mulher/Mulheres” e “o Oriente” são definidos como Outros, ou como periféricos, que Homem/Humanismo (ocidental) pode representar a si mesmo como centro. Não é o centro que determina a periferia, mas a periferia que, em sua delimitação, determina o centro. Assim como Kristeva e Cixous desconstruíram o antropomorfismo latente no discurso ocidental, eu sugeri uma estratégia paralela neste ensaio para revelar o etnocentrismo latente em alguns escritos feministas a respeito de mulheres do terceiro mundo. 18 Como discutido previamente, uma comparação entre a auto-apresentaçao feminista ocidental, e a representação feminista ocidental de imagens da “mulher de terceiro mundo” (a mulher de véu, a virgem casta, etc), imagens construídas ao adicionar a “diferença do terceiro mundo” à “diferença sexual”, são baseadas (e assim obviamente trazem ao foco) pressupostos sobre mulheres ocidentais como seculares, liberadas e tendo controle sobre suas vidas. Isso não é para sugerir que as mulheres ocidentais são seculares, liberadas e em controle de suas vidas. Estou me referindo a uma auto-apresentação discursiva , não necessariamente à realidade material. Se essa fosse uma realidade material, não haveria 18

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necessidade de movimentos políticos no Ocidente. Similarmente, apenas do ponto de vista do Ocidente é possível definir “terceiro mundo” como subdesenvolvido e economicamente dependente. Sem o discurso sobredeterminado que cria o terceiro mundo, não haveria um (singular e privilegiado) primeiro mundo. Sem as “mulheres de terceiro mundo”, a auto-apresentação particular das mulheres ocidentais mencionada anteriormente seria problemática. Estou sugerindo, assim, que uma possibilita e sustenta a outra. Isso não é para dizer que a assinatura de trabalhos sobre o terceiro mundo por feministas ocidentais têm a mesma autoridade do projeto do humanismo ocidental. No entanto, no contexto da hegemonia do establishment intelectual do humanismo ocidental na produção e disseminação de textos, e no contexto do imperativo legitimante do discurso humanístico e científico, a definição de “mulher do terceiro mundo” como um monólito pode muito bem estar atrelada a uma práxis econômica e ideológica maior das pesquisas científicas “desinteressadas” e do pluralismo, que são a manifestação superficial de uma colonização econômica e cultural latente do mundo “não -ocidental”. É hora de mover-se para além de Marx, que achou possível dizer: “eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser representados”.

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