Mística e Filosofia (Marcus Reis Pinheiro)

February 26, 2018 | Author: Célio Souza | Category: Trinity, Love, Experience, God, Mysticism
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.Cbam. 21 M678 Título: Mística e filosofia.

PUC RIO

Reitor Pe. Jesus Hortal Sánchez, S.J.

MÍSTICA E FILOSOFIA

Vice-Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern Simó, S,J.

Marcus Reis Pinheiro Decanos Profa Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Pro f. Reinaldo Calixto de Campos ( CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

Maria Clara Lucchetti Bingemer organizadores

EDITORA

PUC

RIO

SUMÁRIO

© Editora PUC-Rio Rua Marquês de S. Vicente, 225- Projeto Comunicar Praça Alceu Amoroso Lima, casa Editora Gávea- Rio de Janeiro- RJ - CEP 22453-900 Telefax: (21 )3527-1760/1838 Site: www.puc-rio.br/editorapu crio E-mail: [email protected]

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Apresentação Filosofia da religião: mística e filosofia

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A mística de Eckhart em Eckhart Emmanuel Carneiro Leão

Conselho Editorial Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando Sá, José Ricardo Bergmann, Luiz Roberto Cunha, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Miguel Pereira e Reinaldo Calixto de Campos

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Rümi e o canto da unidade Faustino Teixeira

Revisão de originais

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Mística e filosofia: a propósito de Simone Weil Maria Clara Lucchetti Bingemer

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Mística secularizada na poesia brasileira contemporânea: leitura de Noiva, de Renato Rezende Eduardo Guerreiro Brito Losso

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A poética como mediação entre filosofia e mística Eliana Yunes

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O aprendiz do belo: a arte-ética em Plotino Marcus Reis Pinheiro

Tomás Batista

Revisão de provas Gilberto Scheid

Capa e projeto gráfico José Antonio de Oliveira Foto de "O êxtase de Santa Teresa" (1645-1652). de Gian Lorenzo Bernini ©Editora Uapê Espaço Cultural Barra Ltda. Av. Olegário Maciel, 511, sala 303 Barra da Tijuca- Rio de Janeiro- RJ- CEP 22621-01 O Telefax: (021) 2493 - 9175 Site: www.uape.com.br E-mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Mística e filosofia I organização: Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Lucchetti Bingemer.- Rio de Janeiro : PUC-Rio, 201 O. 186 p.;21 em Inclui bibliografia. ISBN (PUC-Rio) 978-85-87926-98-2 ISBN (Uapê) 978-85-85666-88-0 1. Filosofia e religião. 2. Mística. I. Pinheiro, Marcus Reis. 11. Bingemer, Maria Clara Lucchetti.

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O limite do discurso em Plotino José Carlos Baracat Jr.

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A experiência mística em Schopenhauer Leandro Chevitarese

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A doutrina da predestinação e a filosofia de Schopenhauer Renato Nogueira Jr.

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Teologia, ciência ou metafísica? Júlio Fontana

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Insondável religião romântica: filosofia e poesia como linguagem mística Pedro Duarte de Andrade

CDD:210 181

A espiritualidade da beleza Edson Fernando de Almeida

Apresentação Filosofia da religião: mística e filosofia

A relação entre mística e filosofia no Ocidente sempre foi bastante conturbada. Se, por um lado, a primeira busca o silêncio além de qualquer racionalidade, realizando-se em uma experiência estritamente pessoal, por outro, a segunda sempre quis ser a rainha do logos, da fala e da razão, apresentando juízos universais. O místico procura, na união com o divino, superar a dicotomia entre buscador e buscado. Na medida em que o conhecimento remete a uma divisão entre sujeito e objeto, ele vivenda o sagrado de uma forma que não pode ser qualificada estritamente como conhecimento. Assim, se tomarmos a filosofia em uma acepção clássica como a tentativa, tanto de conhecer o real, como de expressar racionalmente tal conhecimento, a mística se mostra sempre na busca de superar a filosofia, tanto em sua atividade principal, quanto em sua expressão. Ela se abre, portanto, a outras formas de linguagem - como a poesia e a mitologia- e, na tentativa de expressar sua experiência de união com o sagrado, coloca de modo especial o problema do estatuto da linguagem. É neste sentido que os estudos sobre mística ensejam uma reflexão profundamente contemporânea sobre os limites da forma tradicional de se fazer filosofia. Em uma época marcada claramente pelo fim da metafísica clássica e dos grandes discursos sistemáticos, em que a filosofia se vê confrontada constantemente com o desafio de se abrir a novas tarefas e a formas expressivas condizentes, o diálogo com a mística se torna especialmente fértil. A relação entre filosofia e mística está longe de ser impossível. Neste livro, encontramos alguns artigos - a maioria frutos do

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colóquio Filosofia da Religião realizado na PUC-Rio em 2007 em que os autores procuram mostrar pontos de convergência entre as duas. Pois, ao se pensar a mística, não se impõe apenas a tarefa de descrever o silêncio do monge em êxtase contemplativo, mas também se revelam elementos das mais variadas disciplinas. Os artigos aqui reunidos versam sobre poesia e arte, teologia e cosmologia, linguagem e ciência, e sobre autores tão diversos como Plotino, Schopenhauer, Lévinas, Simone Weil e Schlegel. Neles, o leitor encontrará um constante remetimento a uma totalidade nunca abarcada, mas sempre vislumbrada e desejada: uma unidade tão radical que insufla de força toda e qualquer multiplicidade.

Os organizadores

A mística de Eckhart em Eckhart, Emmanuel Carneiro Leão'

Aqui e agora, nós nos descobrimos em meio a um desafio. É o desafio de encontrar em Mestre Eckhart a mística de Mestre Eckhart. Trata -se de um desafio que nos convida a deixar ser nossa experiência radical de simplesmente viver. Uma das mulheres mais místicas e eróticas de todos os tempos é marrana, Santa Teresa d'Ávila. Disse, certa feita, que a experiência mística é rara hora et pauca mora: um instante raro e fugaz. Exige o tempo todo de meditação e horas favoráveis de desapego. E, não obstante, a mística não é questão de tempo, mas de ser "na espera do inesperado'; nas palavras milenares de Heráclito de Éfeso. Para tanto, é indispensável muita persistência e pouca impaciência. São Paulo diz que é na paciência que se chega ao espírito. Mística é a força arcaica em todo homem, vigor livre de criação. Não é necessário, para ser místico, pertencer à religião e, muito menos, a uma determinada religião, embora, ao longo da história, as religiões tenham produzido as mais conhecidas experiências e construído as maiores antológicas metáforas da mística. É que a mística não constitui uma entre muitas outras possibilidades da condição humana. Mística é toda a condição humana, em todos os homens. Sem ela, não se dá religiosidade, fenômeno histórico chamado religião. Por isso, ninguém aprende a ser místico. A mística vive e vivifica todo encontro e/ ou desencontro entre os homens. A mística acontece sempre e para sempre, em lEste texto foi originalmente publicado como apresentação ao segundo volume da edição de Sermões alemães, de M. Eckhart (2008, pp. 9-19). N. do E.: gentilmente cedido pela Editora Vozes para publicação neste livro. *Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg e professor titular emérito de Filosofia da UFRJ.

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A mística de Eckhart em Eckhart

cada empenho de ser e em todo desempenho de não ser. Pelo simples fato de termos sido criados, todos nós somos e não somos místicos, em nossa vida e existência, em nossa maneira de ser e viver. E o somos e não o somos de modo tão radical que, quase sempre, nem percebemos a presença provocante da mística em tudo que fazemos e/ou deixamos de fazer, em tudo que somos e/ ou deixamos de ser. O homem, em cada um de nós, antes de ser e para ser qualquer coisa, antes de entrar e para entrar em qualquer relacionamento, antes de lançar-se e para lançar-se em qualquer empreendimento, já sempre é e tem de ser o que busca e se esforça por obter. Por isso, em qualquer hora, tanto outrora como agora e a toda hora, já soou o instante e a vez da mística. Mas como é que sabemos de tudo isso? Ora, nós o sabemos e não sabemos com um "saber só de experiência feito': Nós o sabemos e não sabemos no sabor de todo gosto de ser que sentimos. Nós o sabemos e não sabemos em todo desgosto de não ser o que pretendemos. Na doçura e no prazer, na amargura e na dor, um élan incontentável que nos atropela o senso, e domina tanto o que temos e não somos como o que não temos mas somos - como o que nem somos nem temos. É que realizamos sempre um empenho de viver e morrer a todo instante. Porque nascemos um dia, nascemos todo dia. Porque morreremos um dia, morremos a cada dia, a todo instante. Viver, humanamente, consiste, assim, em libertar-se sempre de novo para este esforço de ser e de não ser. Propiciando-nos as condições de possibilidade de viver, a mística se dá, como penhor, o penhor de todos os nossos empenhos e desempenhos. Nela, se concentra todo o desafio de nossa existência de seres finitos, isto é, de seres que têm a graça de receber dos outros e do "não-outro" as virtualidades de sua própria humanidade. Nesse penhor, encontra-se a unidade da união do mundo com seu princípio, da criatura com o Criador. Trata-se da experiência primordial, uma experiência íntima, sem intermediários, entre Deus e o homem, nos próprios vãos e grotões de ser. É que toda experiência da unidade de uma união já supõe, a priori, separação, já inclui pluralidade. Por isso, o três é o número exordial, o numerador de toda relação, a fonte de qualquer numeração.

No três, temos, indissolúvel e consubstancialmente conjugados, o um, o dois, e a união do um com o dois. Três, nos diz Mestre Eckhart, não é a soma de um mais dois. 2 O três é a integração viva, vital e circularmente simultânea da unidade de um + um + um, unidade esta que não sofre, mas viceja e se alegra com e na Trindade, pela difusão da bondade de sua união. É a fecundidade ontológica do bem: Bonum est diffusivum sui (o bem é difusivo de si mesmo). Não é o bem que é trino. É a Trindade que é o bem. Assim como se dá circulação da unidade na Trindade, assim também se dá circulação da Trindade na unidade. O Bem da unidade circula eterno e incriado, para dentro, na Trindade, e se comunica temporal e livremente, para fora, na criação. É na unidade da Trindade que nos cria. Eckhart nos diz, junto com toda a experiência cristã - ad extra ex tribus: toda atividade para fora é criadora, vem e vive do três. Para nós, pós-modernos de hoje, cada vez mais próteses da técnica e filhos da razão na ciência, trabalhados sorrateiramente por pulsões inconscientes e movidos por impulsos desconhecidos, o caminho mais longo e penoso é aquele que nos leva para o ser de nós mesmos, para o que nos é mais íntimo e profundo. Tão íntimo que nós o somos sem, na maioria das vezes, sequer saber que não vem de nós. Santo Agostinho nos lembra, numa formulação lapidar: "Tu eras interior intimo meo et superior summo meo:' 3 ("O mistério de Deus é para mim o mais íntimo que meu íntimo'; o que Kant chamou de transcendental.) O mistério de Deus está acima de tudo que me transcende, o que, desde Platão, se diz ser "algo que, de longe, excede a essência das coisas, em poder e majestade:' 4 Em nossa caminhada pela vida, experimentamos muita coisa, procuramos em todo vestígio, buscamos sempre o melhor, antes de nos apercebermos da mística de toda experiência. É que, desde sempre, já somos sua propriedade e estamos em seus domínios. Somente muito raramente e de modo implícito lhe pressentimos a força de mistério, pois mística só se dá na medida em que se re-

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2 Cf. LW IV; sermão 29. 3 Confissões, III 6. 4 República VI, 509b9.

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tira, só acontece enquanto foge e se retrai. Nem sabemos mesmo o que nos ocorre e se passa conosco. Assim, por exemplo, num grande desespero da alma, quando todo peso desaparece da vida e se obscurece todo sentido, surge, então, a mística em nossa experiência. Talvez apenas insinuada numa retração tênue que vibra em profusão de sentimentos e bruxuleia numa confusão de percepções, para, logo, se esboroar. Numa grande esperança do coração, quando tudo se transfigura e nos parece atingir pela primeira vez, como se fosse mais fácil perceber-lhe a ausência e o não-ser do que lhe sentir a presença e o ser, emerge e se apresenta, então, num toque misterioso, a mística da experiência. Numa depressão da vida, quando distamos, igualmente, de esperança e desespero e a banalidade de todo dia estende um vazio onde se nos afigura indiferente, se há ou não há experiência, a mística explode, então, no barulho de um silêncio angustiante. Em qualquer caso, a mística nunca se dá, nem no conteúdo, como um quê, aliquid, nem no processo, como um qua, isto é, como aliquod, um modo de experiência. Nas Confissões, Santo Agostinho se pergunta: que é que eu amo, quando digo que amo a Deus? E a resposta é sempre: eu não amo, mas, perdido no amor, eu sou amado pelo amor. Nós raramente nos damos conta de que não somos nós que amamos, quando amamos. É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar o que amamos. Esta é a vigência da mística em toda experiência. Tal é também a mística de Eckhart em Eckhart. Realcemos, aqui e agora, o vigor de sua presença, deixando repercutir, em nosso esforço de pensar, alguns traços místicos de seus Sermões alemães. Na mística e para a mística de toda experiência, tudo que podemos fazer é não fazer, em todo nosso fazer. É deixar o fazer nos fazer. Eckhart denominou esta atitude de "deixar ser" (sein lassen), cuja força e poder de vigência ele chamou de Gelassenheit, que, em português, poderíamos invocar com a atitude de serenidade e/ou desapego, de disponibilidade e/ou desprendimento, de despojamento e/ou tranquilidade. É a partir e dentro dessa atitude que, originariamente, sempre experimentamos o mundo, o homem, Deus, em nós mesmos e nos outros.

Mas como é que o homem, o mundo e Deus se dão e se apresentam no deixar ser místico de uma serenidade tranquila e despojada, disponível e desprendida? Deixar, deixar de, deixar de ser: que há de mais banal e corriqueiro na vida de todo o dia do que uma atitude dessas? A mãe diz para a criança arteira: "deixa de brincar com fogo!" O pai diz para a filha adolescente: "deixa de cavilação!" De quem entrou para o mosteiro, ou do anacoreta, que foi para o deserto, costuma-se dizer que deixou o mundo. Nesses casos, deixar, lassen, é verbo transitivo, e significa renunciar, abandonar. Prevalece, então, o lado negativo do fenômeno deixar, ao menos aparentemente. Trata-se do aspecto mais claro e evidente, embora menos essencial e decisivo na experiência de deixar. Pois esta só se completa e conclui se, implícita ou explicitamente, se acrescentar ser, deixar ser, como no apelo que, muitas vezes, se faz a um adulto invasivo: "deixa a criança ser criança!" Não que o adulto possa impedir a criança de ser criança; é que o adulto se incomoda tanto com ele ser criança que tenta e busca não ser criança na criança. Deixar ser remete não apenas para uma renúncia, mas para a vigência de ser e não ser, aquém de toda intervenção da parte do sujeito. A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação. O lema de reformador de Eckhart é ontológico: tendo de reformar-se sempre, o homem deve transformar-se para não se deformar. A mística é, pois, a negação da negação - sem estardalhaço até mesmo no estardalhaço -, mas na serenidade tranquila de deixar ser o ser que se dá no sendo que se é. Deixando ser, a serenidade se torna disponível e, nessa disponibilidade, encontra-se com o mundo, com Deus, com o homem, justamente naquilo que eles mesmos são em si, para si e por si mesmos. Segundo Mestre Eckhart, na mística penetramos onde já sempre estamos, nos arcanos ônticos, ontológicos e místicos da serenidade, vivendo como "a rosa, sem porquê': Pois, então, vai-se abolindo o sentido transitivo e passivo e aparecendo o sentido criativo de deixar ser. No deixar ser radical de Deus, homem e mundo, a pergunta "quem é que deixa ser quem?" é uma pergunta sem sentido, uma

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vez que deixar ser inclui em si deixar de agir, pois deixar ser já não é atividade de um sujeito sobre um objeto a partir do interesse de um poder. Tudo, portanto, se deixa ser, mas não há nada que pratique o deixar ser. Na raiz mística da experiência, é sempre o nada que reina em todo ser. E, no nada, não somente se ultrapassa e supera toda negação pela negação, como também não se nega a negação. Reina radical desprendimento, puro despojamento, total disponibilidade. Ser livre de, a independência, e ser livre para, a criação, mergulham ambas e desaparecem na imensidão de uma tranquilidade sem vontade nem desejo de nada, sem imagem nem representação de coisa alguma. Eckhart diz, então, que vigora, completa e perfeita, "a limpidez da serenidade" (die Ledigkeit der Gelassenheit). Na serenidade, toda experiência caminha sempre para inscrever-se nas peripécias e vicissitudes das ações e reações de nosso comportamento, tanto conosco mesmos, como com tudo o mais. Nessa caminhada, a serenidade atravessa três níveis, integrados, de busca de si mesma em si mesma: o nível ôntico, o nível ontológico e o nível místico. Todavia, não se trata de três níveis separados que se excluíssem e distinguissem um do outro. São três níveis que se incluem e se identificam, em todo fazer e/ ou deixar de fazer dos homens. Compreender e viver essa integração é compreender e viver a mística de Eckhart em Eckhart. 1o nível: o nível ôntico é o desprendimento com total desapego. Trata-se do despojamento da pobreza. Eckhart forja a palavra abegescheidenheit, que, no alemão moderno, se diz Abgeschiedenheit. É uma palavra derivada, por prefixação e sufixação, do verbo sheiden, cindir, dividir, separar. O prefixo ab designa divagero, tanto no sentido de desfazer-se de alguma coisa, abetuon, como no sentido de afastar-se, desviar-se, abekere. O sufixo, heit, designa a condição, o estado e a atitude. No uso transitivo, o verbo, abscheiden significa isolar, e, no uso intransitivo, ir-se embora, morrer. No alemão de hoje, o uso intransitivo significa, quase sempre, morrer. Assim, o poeta Georg Trakl dedicou um famoso poema a um amigo morto com o título de "Gesang des Abgeschiedenen" ("Canto do falecido"). Eckhart consagrou todo um tratado a este nível ôntico da experiência mística de sereni-

dade, cujo título é precisamente: Abgeschiedenheit, serenidade, desapego. Num sermão intitulado In diebus suis placuit Deo et inventus est iustus, 5 prega Eckhart: "Se o espírito conhecesse a pura serenidade do desprendimento, já não se voltaria para nenhuma coisa, mas inclinar-se-ia e haveria de permanecer no completo desapego da serenidade:' Tudo que somos em nossos afazeres é puro vir-a-ser vida em realizações. O desapego nos é dado na ordem e como ordem de todo relacionamento conosco e com os outros. Tal desprendimento de todas as coisas, porém, nem rejeita, nem nega, mas acolhe o ser de Deus em toda criação. Por isso o desprender-se não destrói nada, não rejeita coisa alguma, vem do nada e vai para o nada. Muito bem! Todavia, como é para se entender concretamente tanto despojamento? Um poeta japonês do século XVII (1644-1694), Tetsuo Bashô, poderá nos valer. Ele compôs um famoso haiku a partir de uma experiência ôntica da serenidade em quinze sílabas de um verso que o velho Suzuki trouxe para o Ocidente. O haiku fala de Nazuna. Nazuna é uma pequenina flor silvestre que se encontra por toda parte no campo. Diz o verso, na citação de Suzuki:

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Yokumireba Nazuna hana saku Kakinekana

Susuki traduziu: Quando olho atentamente, Vejo florir a nazuna, Ao pé da sebe 6

A partir da mística de Eckhart, talvez se pudesse dizer num português tosco e desajeitado: No desapego do desprendimento, sou e não sou nazuna ao pé da sebe. 5 Ecl44, 16. 6 Suzuki et al., 1960, p. 9.

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A mística de Eckhart em Eckhart

Bashô é poeta e, como todo poeta, é místico dos seres da natureza. É tão desprovido de apego que sente em uníssono com o ser da natureza e de tudo que é natural. Esta identificação da natureza com a natureza se avivou em Bashô quando descobriu uma pequenina flor, brilhando, sem vontade nem desejo de nada, ao pé de uma velha sebe. O poeta sente o profundo mistério de a vida ser vida, no esplendor insignificante de uma flor silvestre. É um exemplo da experiência de desapego e desprendimento da serenidade em que vive a mística de Eckhart. No século XVII, alguém, na Silésia, fez a mesma experiência mística de Bashô. João Scheffler, doctor philosophiae et medicinae, médico de profissão e místico de vocação, vivia na Silésia uma geração antes de Leibniz (1624-1677). Estudioso de Mestre Eckhart, escreveu uma obra de poesia mística, publicada em 1657 com o título Der Cherubinische Wandersmann. Sinnliche Beschreibung der vier letzten Dinge (O peregrino querubínico. Descrição sensível dos quatro novíssimos7 ), e publicou, com pseudônimo de Angelus Silesius (Mensageiro da Silésia). O número 289 dos poemas traz o título "Ohne Warum" ("Sem porquê"). O verso diz:

uma obra monumental em três partes, Opus tripartitum. A primeira parte seria o Opus propositionum, a Obra das proposições. Dessa parte só se encontrou até agora a Prima propositio: Esse est Deus. A segunda parte seria o Opus quaestionum, a Obra das questões. Dessa parte ainda não se encontrou nenhum manuscrito. A terceira parte seria o Opus expositionum, a Obra das exposições. Dessa parte, dispõe-se de grandes comentários aos livros bíblicos do Gênesis, do Êxodo e da Sabedoria e ao Quarto Evangelho, bem como de um grande comentário ao Padre-Nosso, junto com esquemas de vários sermões em latim. Pois bem, no Prologus generalis in opus tripartitum, Eckhart discute o ontológico de todo ôntico. Na Primeira Proposição, formula o primeiro integrante de toda sua mística, com três palavras apenas: Esse est Deus (ser é Deus). É um dos integrantes fundamentais da mística eckhartiana. O outro integrante é o mesmo e reside na dinâmica inesgotável de realização que todo real recebe, continuamente, de Deus. Eckhart o desenvolveu numa interpretação mística do versículo 21 do capítulo 24 do livro deuterocanônico eclesiástico: "Qui edunt me, adhuc esuriunt:' ("Aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome:') Eckhart resumiu toda a mística de qualquer experiência nesta fórmula pregnante: "Omne ens edit Deum utpote esse:' ("Todo sendo, tudo que é e está sendo, se alimenta de Deus enquanto e na medida em que é e está sendo, isto é, na medida de ser:') Santo Tomás tinha dito de Eckhart: "Deus est ipsum esse" ("Deus é o próprio ser:') Eckhart inverteu a frase, que, invertida, trai e revela toda a profundidade ontológica do ôntico. Tudo que não é Deus não é. Esta distinção de ser e não ser, deve-se compreendê-la estritamente, senão não se compreende o ser de nenhum sendo. Ora, a forma mais estrita de compreensão é vivida e acontece sempre na identificação da identidade. Eu só compreendo uma coisa em profundidade quando me identifico e sou com ela. É a lição mística que nos deixou Parmênides e que está na base de toda e qualquer experiência de vida. Eckhart a expressou nas seguintes palavras: "Todas as criaturas são puro nada. Não digo que sejam insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra coisa assim. Elas são um puro nada'; acentua o sermão "Omne datum optimun et omne donum perfectum dersusum esf' ("Todo dom ótimo e todo

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A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer. Não olhar p'ra seu buquê. Nem pergunta se alguém a vê! 8

O desapego do desprendimento, no entanto, não aparece por acaso, nem se dá, de quando em vez, nas peripécias de nossa experiência na e com a vida. É o vigor místico de todo ser. Por isso, ao despojar-se e para poder despojar-se, a serenidade remete para a fonte, donde ela mesma já vem, remete para o ontológico no próprio seio ôntico dos seres. É o segundo nível. 2° nível: a serenidade ontológica. Como todo bom escolástico, Eckhart desenvolveu grande produção literária. Pretendia escrever 7 Os quatro novís~imos, na experiência cristã: morte, juízo, inferno, paraíso. 8 Die Ros' ist ohn' Warum.

Sie bluhet, weil sie bluhet. Sie acht 'nicht ihrer selbst. Fragt nicht, oh man sie siehet!

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dado perfeito vem do alto"). 9 Entre o criado e o incriado, não há diferença, mas o abismo é total, o abismo do nada. Somente Deus é ser; toda criatura é um sendo que tem de receber o ser de Deus; é alhures, portanto, que lhe vem a vida, a inteligência ou qualquer outra possibilidade. Em si mesma é, pois, nada. Para a metafísica escolástica, a perfeição da criatura é, analogicamente, a mesma do Criador, variando, apenas, o modo de ser e dar-se, que é radicalmente diferente. A identidade de perfeição conota uma diversidade de apropriação, segundo a analogia de atribuição. Mas, aqui, Eckhart não concorda com toda a escolástica, negando, completamente, a analogia de qualquer matiz, de atribuição, de predicamentação, ou de proporcionalidade. Esse est Deus! Assim, não há para Eckhart nenhum ser próprio dentro do criado. Todo criado é um sendo, algo que é e está sendo, dentro de limites ontológicos. Toda criatura recebe o ser de empréstimo, ze borge, como se expressa Eckhart no Livro da divina consolação. É que uma criatura se nutre do ser de Deus e, por isso mesmo, quanto mais absorve, tanto mais carece de ser. Em qualquer sendo, o ser e todos os seus transcendentais não são senão Deus. Uma das maneiras mais escondidas de se apresentar o vigor dessa tranquilidade serena da mística está na radicalidade de todo perdão. Quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a presença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser. Num pequeno ensaio, Jacques Derrida fala de um paradoxo para a lógica e o bom senso: "Parece-me necessário começar com o fato de que sim, o imperdoável existe. Não é essa a única coisa a perdoar? A única coisa que requer perdão? Não se pode, ou melhor, não se deve perdoá-lo; só existe perdão, se existir e onde existir o imperdoáve1:' 10 Para a mística cristã em geral e de Ekchart em especial, dá -se justamente o contrário: só há perdão por não haver o imperdoável. É o sentido místico do salmo 22 que o Homem de Nazaré rezou, alto e em bom som, na cruz, antes de entregar o espírito a Deus: "Eli, Eli lama sabactani?" ("Deus meu, Deus meu, por que és Tu absoluto abandono?")

Trata-se do auge de todo empenho de ser e desempenho de não ser. É a experiência radical na convivência do nada de um com o outro pelo mistério da iniquidade de que fala São Paulo. Foi também este apelo do nada no mal e na maldade que nos chegou, há pouco tempo, numa declaração atrevida do papa Bento XVI: "Onde estavas, Deus meu, em todos os Auschwitz da miséria humana?" Essa palavra do papa não é uma palavra de dúvida da presença de Deus no mal radical. Na fé não há dúvida. Só há fidelidade e/ou infidelidade. Pela infidelidade, o fiel é tentado a escusar-se do mal radical, estornando as ações más de sua conta e transferindo-as para a conta de Deus: quem pecou em Auschwitz não foi o homem, foi Deus, pois Deus se omitiu e permitiu, com sua ausência, que o homem cometesse crimes contra a humanidade. Para a mística, é justamente uma atitude destas, de transferir o homem para Deus, que, ao longo do tempo, tem possibilitado todos os Auschwitz da história humana. A redenção da desumanidade nos homens está no perdão, que retoma a dinâmica de futuro. Se houvesse o imperdoável, já não haveria futuro. E, sem futuro, não se daria tempo. O passado teria absorvido futuro e presente e destruído, assim, todo o tempo. Ora tempus Jugit- o tempo não se deixa prender nem congelar. É a experiência mística que se faz em toda experiência e que T. S. Elliot formulou, num de seus famosos Quatro quartetos: "Tempo presente e tempo passado estão talvez ambos vigentes em tempo futuro. E tempo futuro contido em tempo passado. Se assim todo tempo está eternamente vigente, todo tempo é irredimívei:' 3° nível: a serenidade mística. O terceiro nível de integração de todo sendo no ser de Deus é a serenidade mística. A mística de Eckhart em Eckhart traz o vigor de união da unidade de Deus, a deidade. Em toda diferença e diferenciação, vive, numa intensidade infinita, a deidade de Deus, na pluralidade sem-fim de todas as coisas. No sermão 22, ele insiste: "Em sua suprema pureza, a haste tenra e frágil retoma para a unidade do ser de Deus, donde tudo provém:' A unidade de todas as coisas tem sua raiz nesta deidade. A unidade é como a deidade, mais fundamental do que o ser e seus transcendentais. A divindade perfeita de Deus reside na unidade.

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9Tg1,17. 10 Derrida, 2001, pp. 30-33.

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A mística de Eckhart em Eckhart

Se assim não fora, Deus não seria Deus. Conclusão do sermão: "Deus está todo inteiro em tudo, no bem e no mal, no ser e no não-ser:' Para levar-nos até às fronteiras extremas da serenidade, Eckhart a põe no mistério da dinâmica da vida. No Comentário ao Êxodo, ele nos diz: "Viver é uma fervura (exsitio), um borbulhar incessante em que o ser fermenta, se agita e transborda, derramando-se sobre si mesmo, despejando-se em tudo que a vida é, antes de viver. Por isso é que a vida da Trindade é a criação da vida fora da Trindade:' Viver está em jorrar livremente a necessidade de ser o que se é. No sermão 5 em latim Eckhart fala a partir da serenidade mística da vida na vida: "Fosse possível perguntar sem fim à vida 'o que é viver e por que vida?; a resposta seria sempre a unidade da vida no viver, a identidade de vida e viver: vivo porque vivo, vivo por e para viver:' A vida retira do profundo de seu próprio ser o ser de todo viver. Por isso não é preciso ir procurar o fundo da vida. Toda sua profundidade é somente viver. É a experiência do viver a vida que levou Nietzsche à ambiguidade de dizer, num jogo de palavras em alemão: "Wer den Grund sucht, geht zu Grunde." A partir da serenidade mística, poder-se-ia talvez jogar em português: quem procura o fundo da vida não tem profundidade de viver e afunda. Assim, a mística de Eckhart em Eckhart já antecipou em 200 anos o poema "Sem porquê'; do Mensageiro da Silésia: a vida sem porquê vive por viver sempre em Deus a vida de Deus. Em 1301, faleceu o rei da Hungria. Só e abandonada, arainha Inês conheceu a fome e a necessidade. Descalça e em trapos caminhou a pé até Viena, em busca de auxílio junto ao pai, imperador da Áustria. Só que logo lhe morre também o pai, assassinado, e ela volta para a miséria. Foi para a rainha Inês, na graça do desapego, que Eckhart escreveu uma das joias da literatura mística cristã, livro conhecido como Buch der goetlichen Troestung (Livro da divina consolação). Desprendida de todo apego, Inês pode tornar-se agora rainha de um outro reino. No reino da maior de todas as virtudes, no desapego de qualquer ser, por já sempre estar apegada à deidade. No final do tratado, Mestre

Eckhart escreve: "Para quem olha uma vara dentro d'água, a vara aparece torta. Fora d'água aparece reta:' A água é um elemento tão grosseiro que só deixa aparecer o visível. O ar, elemento mais diáfano, mostra também o invisível. É com os olhos do ar que poderemos ver a mística do ser de Deus em todos os seres.

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Referências bibliográficas DERRIDA, J. On cosmopolitism and forgiveness. Londres & Nova York: Toutledge, 2001. ECKHART, M. Sermões alemães: sermões 61 a 105. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2008. SUZUKI, D.; FROMM, E. & MARTINO, R. Zen-budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1960.

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Rümi e o canto da unidade Faustino Teixeira·

Amigo de doces lábios, chegaste, e se fecharam os bazares de açúcar. (Rúmi)

Introdução Há que registrar, inicialmente, a minha alegria de poder participar do 11 Colóquio de Filosofia da Religião da PUC-Rio, dedicado ao tema da mística e filosofia. Vejo como uma iniciativa importante recuperar a discussão desse tema tão singular, mas nem sempre lembrado ou considerado nos debates atuais da área de filosofia. Em clássico livro sobre São João da Cruz, o pensador francês Georges Morei insere no prefácio uma rica reflexão sobre a relação entre filosofia, teologia e mística. Tanto a filosofia como a mística tratam do tema da realidade, mas a partir de experiências que não são da mesma natureza. A mística, enquanto "notícia amorosa de Deus" ou "experiência fruitiva do absoluto'; exerce uma provocação ou desafio permanentes para a filosofia: despertar a "nostalgia do mistério das coisas." 1 Ao trabalhar o tema da experiência mística na modernidade ocidental, Henrique Cláudio de Lima Vaz sublinha o processo de "dissolução da inteligência espiritual" ao longo da revolução antropocêntrica que caracterizou a filosofia moderna; essa filosofia, ao descaracterizar o centro real da experiência mística, com a inversão antropocêntrica que direciona para o sujeito o vetor ontológico do espírito, acaba provocando "o desapareci* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG, Roma) e professor de Ciências da Religião da UFJF. 1 Morei, 1960, p. 15. Em clássica obra sobre os graus do saber, Jacques Maritain (1948, pp. 529-562) assinala que toda grande metafísica vem atravessada por uma "aspiração mística'; mas são dois registros distintos do saber. Ver ainda Borrielo, 2002, pp. 153-176 (em particular pp. 156-157).

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menta no campo da conceptualidade filosófica, do espaço inteligível no qual contemplação metafísica e contemplação mística podem encontrar, do ponto de vista antropológico, os princípios de sua explicação:' 2 Em outro texto de Lima Vaz, em que se aborda o tema da religião e modernidade filosófica, ele lança uma séria questão sobre a capacidade dos saberes da modernidade de conseguir captar a "especificidade do religioso vivido na sua riqueza original': A seu ver, só mediante a "experiência da santidade" abre-se o acesso para a correta hermenêutica do vivido religioso. É essa experiência que faculta a percepção da "dimensão de insondável profundidade da vida humana:' 3 Ao voltar o olhar para os místicos e sua linguagem específica, encontramos possibilidades plausíveis de captar dimensões da realidade que escapam ao olhar superficial. Esse é o desafio que acompanha esta breve reflexão sobre o místico persa Rúmi (1207-1273), um dos maiores expoentes da literatura mística de todos os tempos. Em artigo precioso publicado na revista eletrônica Rever (Revista de Estudos da Religião), dedicada ao tema da filosofia da religião, Scott Randall Paine sublinha que os filósofos ocidentais refletem sobre o mundo e sobre ser e conhecimento humanos "sem se 'orientar' sobre o imenso fato que é a realidade étnica, cultural, religiosa e sapiencial do Oriente': Lança em seu artigo o desafio de uma nova sensibilidade para a "família de abordagens sapienciais que não derivam das fontes da racionalidade grega" e que podem auxiliar na ampliação de horizontes para um pensar filosófico autenticamente global. 4 O legado espiritual de Ritmi Rúmi nasce nas cercanias de Balkh (atual Afeganistão) em 30 de setembro de 1207. Passa boa parte de sua vida na cidade de Kônia (a partir do ano de 1229), que se tornará o berço da Turquia otomana, conhecida como a cidade dos santos: pátria das mitologias e cruzamento de grandes culturas. Em Kônia acontecerá o encontro de Rúmi com Shamz ud-Din de Tabriz, a per-

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sonalidade avassaladora que transformará o caminho de Rúmi e pontuará de forma extraordinária toda uma tradição mística. Nessa cidade repousam os restos mortais de Rúmi, que morreu em 17 de dezembro de 1273. Em homenagem a esse grande místico da tolerância inter-religiosa, em razão de sua singularidade e importância para o diálogo entre as religiões e as civilizações, a UNES CO resolveu consagrar a ele o ano de 2007. Entre alguns dos traços que expressam o legado espiritual de Rúmi podem ser elencados os seguintes: a sensibilidade para captar a presença do real no espaço da criação, a sede de unidade, a visão do amor, a percepção da generosidade divina, a abertura inter-religiosa e a dinâmica essencial de despojamento para a abertura ao mistério sempre maior. Primeiramente, vale assinalar o convite que acompanha a reflexão de Rúmi, no sentido da ampliação do olhar para se captar a presença do real que se insinua dentro de tudo o que existe. É alguém que nos desperta para esse precioso dom, de presenciar o mundo "impermeável às palavras" que habita dentro de nosso mundo: Dentro deste mundo há outro mundo impermeável às palavras. Nele, nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono. 5

Rúmi nos convida a lavar nossas mãos e rosto nas águas desse lugar, uma condição essencial para adentrar na nova paisagem: Para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes; e se queres passear por esses lugares basta expressar o desejo. 6

O que se percebe nos grandes místicos, entre os quais Rúmi e João da Cruz, é a tenaz adesão à beleza cósmica e a cortesia de espírito para ouvir "o canto das coisas': Trata-se de um gran-

2 Vaz, 2000, p. 19 (ver também p. 42 e p. 78).

3 Idem, 1992, pp. 83-107.

5 RU.mi, 1996, p. 54.

4 Paine, 2007, pp. 68-93.

6 Ibidem, p. 54.

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de equívoco reduzir a experiência mística ao encontro solitário da alma com Deus ou o mistério. Curiosamente, as coisas recobram sua vida e beleza quando conhecidas na sua relação com o mistério. A experiência teopática faculta de forma singular uma nova percepção das coisas. Uma analogia pode ajudar na compreensão. Assim como as cores não podem ser compreendidas como instâncias independentes, mas necessitam da luz para acontecer, também as coisas ganham sua beleza quando percebidas na dinâmica do mistério. Como assinala Rum!: "Toda árvore ganha beleza quando tocada pelo sol." 7 Num dos belos gazéis deixados por Hafiz, conhecido entre os sutis como o "intérprete dos segredos'; se dizia: "Da mão da Providência é que recebemos a felicidade, a riqueza e a alegria( ... ). Cada rosa que ri sobre a relva, numa alegria de cores, é sinal da beleza e do perfume da sua generosidade." 8 Vale registrar também, na poética de Rum!, o tema da sede de unidade. Para além de um monismo ou panteísmo, o místico persa sonha com comunhão:

Como todo aquele que é "ébrio de amor'; Rumi anseia pela figura e presença do Amado:

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Sentados no palácio duas figuras, são dois seres, uma alma, tu e eu. Um canto radioso move os pássaros quando entramos no jardim, tu e eu! Os astros já não dançam e contemplam a lua que formamos, tu e eu! Enlaçados no amor, sem tu nem eu, livres de palavras vãs, tu e eu! Bebem as aves do céu a água doce de nosso amor, e rimos tu e eu! Estranha maravilha estarmos juntos: estou no Iraque e estás no Khorasan. 9

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Nas tuas águas, nado como um peixe. Percorro teu deserto qual gazela. Ahl Vem, amado, sopra dentro de mim: eu sou a tua flauta. 10 Não há vínculos ou nós que o aprisionam. Não se reconhece como alguém do Ocidente ou do Oriente, da terra ou do céu, desta ou daquela religião. Está totalmente domiciliado no Amado. Em poema de rara beleza canta: O meu lugar é sempre o não-lugar, não sou do corpo, da alma, sou do Amado O mundo é apenas um, venci o dois. Sigo a cantar e a buscar sempre o Um. 11 A razão que domina a sua vida é se integrar Naquele que é, como o musgo na pedra. Não há como escapar do fascínio do Amado: Se houver passado um dia em minha vida Sem ti, eu desse dia me arrependo. Se pudesse passar um só instante Contigo, eu dançaria nos dois mundos. 12 Como um equilibrista que dança nos dois mundos, sabe bem reconhecer o valor e a riqueza do mundo plural, intimamente vinculado ao Uno. Sua crença na unidade do ser ( wahdat al wujud) não compromete sua abertura à multiplicidade do cosmos. O sussurro do mundo plural vem acolhido com delicadeza e generosidade, enquanto percebido na sua íntima ligação com

7 Ibidem, p. 81.

10 Teixeira & Lucchesi, 2007, p. 32.

8 Hollanda, 1944, p. 83.

11 Lucchesi, 2000, p. 103.

9 Lucchesi, 2000, p. 33.

12 Ibidem, p. 103.

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o Uno. Sabe reconhecer, como poucos, que a multiplicidade tem suas raízes em Deus. Há um véu que resguarda o mistério da unidade. Mesmo sem poder desvelar seu enigma, o ser humano encontra -se protegido em seu regaço. A verdadeira paz encontra-se na sombra do Amado, como relata Rumi nesta singela história inserida numa de suas cartas: Um dia, um homem chegou diante de uma árvore. Viu folhas, ramos, frutos estranhos. A cada um perguntou o que eram essas árvores e esses frutos. Nenhum jardineiro o compreendeu, nem sabia o nome da árvore, nem lhe pôde indicar o que ela poderia ser. O homem disse a si mesmo: se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar a sua sombra. 13 Igualmente cativante é a visão de amor expressa por Rumi em suas obras de poesia e prosa. É o amor que inspira a flauta de bambu (ney) em seu lamento em favor da unidade: Escuta a flauta de bambu, como se queixa, lamentando seu desterro: desde que me separaram de minha raiz, minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres. 14

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A ti entoamos louvores, ó amor, doce loucura! Tu que curas todas nossas enfermidades! Que és médico de nosso orgulho e presunção! Tu que és nosso Platão e nosso Galena! O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos, e faz até os montes dançarem de alegria! ó amante, foi o amor que deu vida ao Monte Sinai, quando "o monte estremeceu e Moisés perdeu os sentidos': Se meu Amado apenas me tocasse com seus lábios, também eu, como a flauta, romperia em melodias (... ). 16 Outro traço que marca a visão espiritual de Rumi é a sua percepção da generosidade divina. A graça de Deus vem captada como uma realidade que transborda contínua e abundantemente sobre todas as criaturas. O ser humano, em momento algum, sente-se abandonado por Deus, que em sua infinita misericórdia mantém seu olhar debruçado sobre ele. E a pista seguida por Mawlãnã vem do livro do Corão: "Pelo esplendor do dia, e pela noite quando serena, teu Senhor não te abandonou nem te odiou:' (C 93) A misericórdia de Deus está sempre à disposição do sedento: "Não busques a água, mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará ao teu redor:' 17 O Amado é aquela presença que se avizinha do humano e se esquece de partir: Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz. Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor, mas retirou-se novamente. Timidamente, eu lhe disse: "Permanece dois ou três dias!" Então veio, assentou -se junto a mim e esqueceu -se de partir .18

Para Rumi, o amor é a chama ardente que incita os amorosos: é "luz sobre luz'; um "oceano cuja profundidade é invisível': Ao falar sobre o seu mistério e charme o "céu canta': Ele é a flama que "faz o mar ferver como uma chaleira'; "estilhaça a montanha'; "fende o céu" e "faz tremer a terra:' 15 É o amor, como expressão da sede metafísica, que anima a busca do ser humano em direção ao mistério que ignora:

parte de sua visão de coração, entendido como "órgão sutil da percepção mística': É nele que se vê refletido, como num espelho, o movimento incessante das diversificadas formas de manifestação do Amado:

13 Rumi apudVitray-Meyerovitch, 1990, p. 106.

16 Idem, 1992, pp. 18-19.

14Rumi, 1992,p.17.

17 Ibidem, p. 112.

15 Rumi apudTeixeira & Lucchesi, 2007, p. 61.

18 Rumi, 1993, p. 65.

É também impressionante sua abertura inter-religiosa. Tudo

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A todo momento, transmito uma nova influência ao coração. A todo instante ponho uma nova marca no coração. 19

O coração (qalb) é o "receptáculo cristalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável, infinita manifestação da divindade na morada da união:' 20 Tratase do órgão que possui uma inesgotável capacidade para acolher formas e imagens diversificadas. Para Rfuni, "na gota de sangue do coração encontra-se o dom de uma joia que Deus não destinou nem aos mares nem aos céus:' É o canal privilegiado de abertura das portas da realidade. O coração recebe ininterruptamente o movimento dissonante e ardente da presença do mistério que advém. Animado por essa visão do coração como taqallub, que envolve mudança permanente, Rfuni abre perspectivas inusitadas para a acolhida inter-religiosa. Trata-se de uma visão que rompe com o limite do olhar superficial que se prende ao "nó" das crenças e mostra-se capaz de celebrar o Deus de todos os nomes: O mar é uma coisa, a espuma, outra; esquece a espuma e contempla o mar com teus olhos. Ondas de espuma erguem-se do mar noite e dia, tu olhas para a ondulação da espuma e não para o poderoso mar. 21

Em pelo menos duas histórias do Masnavi, a história de Moisés e o pastor e a árvore da vida, Rúmi sublinha a preponderância do estado do coração sobre as formas religiosas: Por quanto tempo ainda te prenderás a palavras e superficialidades? Um coração ardente é tudo o que quero; liga-te ao ardor! Acende em teu coração a chama do amor, e queima por completo os pensamentos e as belas expressões. ó Moisés! Os que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra ( ... ). 19 Idem, 1992, p. 165.

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Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de sapatos. 22

A atenção primordial de Rumi volta-se para as qualidades do coração. O segredo da árvore da vida envolve milhares de nomes, e só aquele que tem o coração purificado é capaz de desvendarlhe o enigma: Tu correste atrás da forma, ó mal informado! E por isso careces do fruto da árvore da substância. Às vezes ela é chamada árvore, às vezes sol, às vezes lago e às vezes nuvem. É uma, embora tenha milhares de manifestações( ... ). Passa por cima dos nomes e olha para as qualidades, para que essas te possam levar à essência! As diferenças das seitas surgem de seus nomes; quando elas penetram sua essência, encontram sua paz. 23

Mas há que ter o coração purificado para perceber essa presença. Há que polir o coração. Aqueles que assim o fazem, transcendem o mundo dos nomes e formas, podendo contemplar sem cessar a beleza a cada instante. O Amado é nosso vizinho mais próximo, nós é que estamos distantes dele, porque estamos também distantes do mistério que nos habita: Vós que saístes a peregrinar! Voltai, voltai, que o Amado não partiu! O Amado é nosso vizinho de porta, por que vagar no deserto da Arábia? Olhai o rosto sem rosto do Amado Peregrinos sereis, casa e Kaaba. De casa em casa buscastes resposta. Mas não ousastes subir ao telhado ( ... ). 24 22 Ibidem, p. 109.

20 López-Baralt, 1999, p. 36.

23 Ibidem, pp. 137-138.

21 Rumi, 1992, p. 156.

24 Lucchesi, 2000, p. 39.

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O segredo do coração envolve o convite ao permanente despojamento. Só um coração despojado é capaz de perceber a diafania do mistério. Nada mais fundament al do que a gratuidade, a paciência, o despojamen to. Os seguidores desse valor essencial protegem-s e contra a hybris e o orgulho, seguindo o exemplo de Ayâz, o favorito do rei Mahmud, que manteve guardados seus velhos sapatos e sua roupa rasgada para resguardar vivamente a memória de sua origem humilde: "a semente de onde provéns é a tua sandália, teu sangue e tua manta de carneiro; todo o resto, ó meu mestre, é seu dom:' 25 Como sublinha Rumi, nada acompanha o ser humano para além da pequena morte, nem os amigos, nem todos os bens da terra, mas somente a "excelência de suas ações': Seguindo uma lógica presente na tradição islâmica, Mawlãnã assinala que é necessário "morrer antes de morrer': Trata-se de condição fundamental para o renascimen to do ser espiritual: aniquilar-se para permanece r (fanã/baqa ). Finalizando, a grande provocação que acompanha esta presença de Rumi para nós, nesses "tempos difíceis'; é o toque sutil da espiritualid ade. Há na sede contempor ânea de espiritualid ade uma expressão de descontent amento com os caminhos da história, mas também de esperança nas potencialid ades do humano. A espiritualid ade vem justamente recuperar a dimensão de totalidade da vida humana, uma dimensão que é simultanea mente essencial e simples: a experiência da vida em profundida de. Os grandes místicos, como Rumi, são os amigos de Deus que mantêm acesa a nossa mirada para o mistério sempre maior; são os guias essenciais nessa travessia do olhar. Toda poesia tem sua força e vigor. Mas a poética de Rumí é assombrosa e estupefacente: ela nos projeta em horizontes inusitados. É como o Burãq que nos guia em nossa "viagem noturna" em direção ao "bloco de santidade impenetrav elmente denso" do mistério divino, desse mistério que está diafanizado na simplicidad e do real. Em recente livro de poesia, Mariana Ianelli, falava sobre a "falta de uma asa': De forma muito feliz, Antônio Carlos Secchin dizia em apresentaçã o do livro que "a poesia fala dessa falta. E empresta25 RU.mi, 1992, pp. 293-294.

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nos a asa ausente para que, no sobrevoa lírico, acerquemo -nos perigosame nte da matéria volátil e incandesce nte da vida:' 26 A mística não é nada mais, nada menos, que a experiência da vida, vivida em profundida de.

Referências bibliográficas BORRIELO, L. 11 linguaggio místico. AAVV. Mística e mistica carmelitana. Città dei Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002. HOLLANDA, A. (ed.) Os gazéis de Hafis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. IANELLI, M. Almádena. São Paulo: Iluminuras, 2007. LÓPEZ-BARALT, L. Estudio introductorio . In: AL-NURI DE BAGDAD, A. Moradas de los corazones. Madrid: Trotta, 1999. LUCCHESI, M. A sombra do Amado. Poemas de Rumi. Rio de Janeiro: Fissus, 2000. MARITAIN, J. Les degrés du savoir. Paris: Desclée de Brouwer, 1948. MOREL, G. Le sens de l 'existence selon Saint Jean de la Croix. I Problematique. Paris: Aubier, 1960. PAINE, S. Filosofia e o fato obstinado da religião: o Oriente reorienta o Ocidente. In: Rever, v. 7, n. 3, setembro de 2007. RúMI, J. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996. _ _ _ _ . Masnavi. São Paulo: Attar, 1992 . - - - -. Rubâi 'Yât. Paris: Albin Michel, 1993. TEIXEIRA, F. & LUCCHESI, M. (orgs.). O canto da unidade. Em torno da poética de Rumi. Rio de Janeiro: Fissus, 2007. VAZ, H. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000. _ _ _ _ .Religião e modernidad e filosófica. In: BINGEMER, M. (org.) o impacto da modernidad e sobre a religião. São Paulo: Loyola, 1992. VITRAY-MEYEROVITCH, E. Rumí e o sufismo. São Paulo: ECE, 1990.

26 C f. lanelli, 2007.

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Mística e filosofia: a propósito de Simone Weil Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Quando se põem em confronto e em diálogo mística e filosofia, a primeira questão que surge é sobre a pertinência de tal debate. Pois, se a mística é fundamentalmente experiência irredutivelmente pessoal, pode ainda ser pensada, universalizada, validada de alguma maneira pelo pensar daqueles que não tiveram experiência dela? Ou, pelo contrário, deve-se dizer que tal experiência é impensável? Supondo que se chegue à afirmação que tal experiência pode ser pensada, permanece a questão pelo lugar da hermenêutica no ato de pensá-la. Se a experiência mística se dá em primeira pessoa, por assim dizer "em estado puro'; isso convida a perguntar se esse seu caráter absolutamente singular e imprevisível não exclui em princípio uma hermenêutica. Sendo, como é, experiência de um contato pessoal com o divino, a experiência mística e sua narrativa podem dar aqui a impressão de uma afirmação a receber de maneira absoluta, sem mediação, à qual se dá crédito ou não, em lugar de interpretar. Aqui procuraremos, em primeiro lugar, contextualizar nossa reflexão procurando perceber o lugar que a experiência toma no momento que vivemos. Em seguida, procuraremos ver como e em que medida a experiência mística pode ser narrada e pensada a partir da tradição especulativa ocidental que inclui a filosofia. Finalmente, procuraremos aplicar a reflexão até então feita à pessoa de Simone Weil, filósofa e mística francesa que viveu no *Doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG, Roma) e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

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A propósito de Simone Weil

século XX e que constitui, com sua pessoa, sua experiência e seu pensar, luminosa síntese daquilo que aqui nos propomos como reflexão.

entram no sentido de compreender não a experiência abstratamente falando, mas o que sente o sujeito concreto que está no centro do ato mesmo de experimentar. 3 E este sentir é um sentir que implica uma alteridade e uma relação. No evento místico, que se desenrola entre o ser humano e o ser divino, está, portanto, não apenas o sujeito que conhece, ou seja, o eu, mas o outro, ou seja, o tu ou ainda o ele ou ela. Portanto, aquele ou aquela que, por sua alteridade e diferença, movem o eu em direção a uma jornada de conhecimento sem caminhos previamente traçados e sem seguranças outras do que a aventura da descoberta progressiva daquilo que algo ou alguém que não sou eu pode trazer. Esse ou essa que não sou eu também não é isso (algo coisificado ou reificado ), 4 e sim alguém que a mim se dirige, que me fala e a quem respondo. Um "outro sujeito'; cuja diferença a mim se impõe como uma epifania, 5 uma revelação. No caso da mística, essa relacionalidade com a diferença do outro cobra dimensões diferenciadas na medida em que coloca no processo e movimento da relação um parceiro de dimensões absolutas, com o qual o ser humano não pode sequer cogitar em fazer número, manter relações simétricas ou relacionar-se em termos de necessidade, senão apenas de desejo. 6 Trata-se de um outro cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situaçõeslimite da existência e transforma radicalmente a vida daquele ou daquela que se vê implicado( a) nesta experiência. 7

A volta da experiência Nossa época é uma época em que a experiência- o conceito e aquilo que ele encerra - encontra-se novamente na linha de frente do pensar. O conhecimento nestes tempos de crise de modernidade e advento da pós-modernidade se dá por experiência antes que por razão refletida e comprovada. O rigor do conceito e a bênção unicamente da razão comprovada e verificada- caminho por excelência da filosofia, definida como scientia rerum per altíssimas causas - vai adquirir uma posterioridade em relação à experiência que, primeiro que tudo, irá tomar o proscênio do debate hodierno. Aí entra igualmente o ressurgimento da mística como objeto de interesse do pensar hodierno. Trata-se de um campo onde a experiência ocupa, sem dúvida, o primeiro plano do olhar do sujeito. Se algo se pode dizer da mística, certamente passa - antes de tudo - pelo caminho da experiência. Não se trata de uma teoria sobre o outro, muito menos de um discurso construído e rigoroso sobre este mesmo outro. Tudo que possa haver de discurso e teoria neste particular emerge e se faz inteligível a partir de uma experiência. 1 E esta experiência é fundamentalmente experiência de relação. Neste sentido e somente à luz deste fato primeiro é que se pode falar então de conhecer e de conhecimento. 2 A mística é, portanto, sim, um conhecimento; porém, um conhecimento que advém da experiência e no qual a inteligência e o intelecto apenas l Entendemos por experiência, e concretamente por experiência religiosa, aquilo que se percebe de modo imediato e se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Trata-se da vivência concreta do homem que se encontra, graças a uma força que não controla ou manipula, frente a um mistério ou um poder misterioso. Cf. sobre isso Diccionario de las Religiones (Barcelona: Herder, 1987), verbete "Experiencia cristiana e experiencia religiosa': Ver também Moltmann (1981, p. 4), Boff (1975, pp. 74-89), Estrada (2001) e Gelabert (1990). 2 Conforme o sentido do conhecer bíblico, que é inseparável do amar (cf. Moltmann, 1981, p.9).

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3 Cf. sobre isso o que diz Santo Tomás de Aquino: "Non intellectus intelligit sed homo per intellectum." Ou seja, é o homem concreto na sua polivalência intencional que é o sujeito do ato de abrir-se ao seu objeto, movimento que caracteriza a experiência. Abrindo-se, esse homem torna-se capaz de acolher o ser na riqueza analógica de sua absoluta universalidade (cf. Summa Theologiae la, q. 72 ad lm apudVaz, 1994, p. 10). Cf. também Vaz (1992, p. 37). 4 Cf. Buber, 1977, pp. XLV-LI. 5 Vide Lévinas e todo o seu discurso sobre a alteridade - em especial na obra Autrement qu'être ou au-delà de l'essence (Paris: Folio, 1996). 6 Ver o que sobre isso digo em meu livro Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise (São Paulo: Loyola, 1993), e especialmente o capítulo 4 ("Experiência de Deus. Possibilidade de um perfil?") 7 Cf. Vaz, 1994, pp. ll-12

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O humano como lugar de acontecimento da experiência A experiência é um fato primitivo, originário. É contato com o real, condição de todo saber, de toda ação. Este contato deve ser distinguido do saber que dele resulta, assim como da experiência adquirida pela simples prática da vida e da experimentação dirigida por determinadas interrogações ou hipóteses. Alguns autores (Jankélévitch, M. Dufrenne) propõem a distinção entre empiria e meta-empiria. A primeira designaria o curso cotidiano da vida; a segunda, o instante da graça, da inspiração que furtivamente rompe o cotidiano e nele irrompe. 8 Como contato, a experiência é consciente de uma relação com o mundo, com o outro, com Deus, é o encontro de uma alteridade. Mais que um simples conhecimento, a experiência é pressentir, sentir, ressentir. Mas enquanto o mundo está inconsciente dele mesmo e de mim, a experiência do outro implica reciprocidade das consciências encarnadas. Como saber adquirido, a experiência, nascida de percepções múltiplas reunidas, é memória, como sublinha Aristóteles na Metafísica I. A experiência condensa as "vivências conscientes'; ultrapassa a duração do tempo, antecipa o evento, o reconhece instantaneamente, volta para ele por memória e pensamento. Não existe experiência verdadeira senão pela possibilidade do retorno reflexivo: a morte, supressão da reflexão possível, não é experiência (enquanto o morrer, sim). Por nossa corporeidade estamos inscritos na duração do tempo. A experiência corpórea própria (as sensações diversas, o prazer, a dor etc.) subjaz e condiciona toda experiência do outro, do mundo e mesmo de Deus. A mais profunda condição de toda experiência é a presença de si a si que constitui a consciência. Mas esta não é dada desde o começo como perfeita. Pelo contrário, não cessa de crescer pela experiência externa. A alteridade é que promoverá a consciência de si. Portanto, apesar das diversas formas do empirismo, a experiência não é um simples padecer, um sofrer, receber em estado puro. Em termos opostos, o idealismo tende a não ver nela senão uma espontaneidade, uma criação do espírito: se apenas o real é 8 Cf. Lacoste, 1998 (verbete "Expérience religieuse").

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o espírito, a experiência se reduz à experiência do eu e suas representações, e a alteridade constitui então um problema insolúvel. De fato, a experiência é, ao mesmo tempo, recepção e criação, acolhimento e espontaneidade em proporções indefinidamente variáveis. E isso é verdade a respeito de toda experiência humana. Experiência religiosa e experiência mística No pensamento ocidental, especialmente na tradição escolástica, desenvolveu-se uma reflexão de tipo especulativo sobre a mística. Uma reflexão que, geralmente, cresce dentro de um pensamento propriamente teológico, construído por sua vez com base em dados da Escritura sobre a doutrina da graça e da vida espiritual elaborada pela tradição cristã, apoiada sobre a concordância de testemunhos relativos a experiências religiosas reconhecidamente autênticas. 9 Definida pela teologia clássica como "cognitio Dei experimentalis'; ou por tomistas do porte de J. Maritain como "experiência fruitiva do absoluto'; 10 a mística hoje parece voltar ao proscênio, portanto, não apenas do debate teológico, mas também de outras áreas do saber, como a filosofia, a psicologia e o terreno das religiões comparadas. O caminho da relação com o outro transcendente e divino é constitutivo mesmo da experiência mística. E, no caso da mística cristã, esse outro, essa alteridade, tem o componente antropológico no centro de sua identidade, uma vez que o Deus experimentado se fez carne e mostrou um rosto humano. Tudo que releva da experiência mística, portanto, não pode desviar ou abstrair ou mesmo dis-trair daquilo que constitui a humanidade do ser humano. É paradoxalmente na proximidade e na similitude mais profunda com o humano que o Deus da revelação cristã vai mostrar sua diferença e sua alteridade absolutamente transcendentes.U A mística cristã nos tempos atuais, portanto, está mais do que nunca desafiada a re-descobrir seu lugar e seus caminhos, a olhar para o humano como via necessária para o divino. 9 Cf. LadrH~re, 1992, p. 83. 10 Cf. Maritain apudVaz, 1994, p. 12. ll Cf. Teixeira, pp. 130-132. Cf. também Henry (2001).

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Essa sede por experimentar a transcendência do outro sempre acompanhou o ser humano em seu caminhar histórico. Hoje parece recrudescer, seguindo-se à assim chamada crise da modernidade ou advento da fragmentada pós-modernidade, assim também como no movimento de ressacralização mais ou menos apressado e anárquico do mesmo mundo do qual a razão moderna apressou -se em proclamar o desencantamento e a secularidade sem remissão. 12 A fonte principal para o acesso ao conteúdo da experiência mística - segundo diz o Pe. Vaz - é o testemunho dos próprios místicos. Eles são os primeiros e principais teóricos de sua experiência 13 • Essa é pluridisciplinar porque totalizante, integrando todos os aspectos da realidade humana. A experiência mística é experiência do outro absoluto participativa e fruitivamente. É um dado antropológico original, porque o místico inaugura, em seu processo de conhecimento de Deus, algo da Nova Criação. 14 A experiência mística recria a pessoa por completo, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do Criador. Na matriz greco-romana e cristã-medieval, o Pe. Vaz, em sua análise, vai constatar a existência de algumas constantes na antropologia mística: os eixos inferior-superior e interior-exterior (o mais íntimo de nós mesmos é o mais elevado; o mais interior é o mais outro, exterior). A mística se dá no lugar da estrutura antropológica em que tem lugar a passagem do ser em si para o ser para o outro (categoria da relação). Relação com o mundo (objetividade), com o outro e a história (intersubjetividade ), com o Absoluto (transcendência). É nessa engrenagem para si/ para o outro que tem lugar a experiência mística. Nas místicas do êntase - continua o Pe. Vaz -, o Absoluto é experimentado como interior íntimo do sujeito. Nas místicas do êxtase, como superior summo. A experiência mística faz sua apa-

rição, portanto, no âmbito de uma questão especificamente filosófica: a questão da transcendência 15 e a experiência que dela faz o sujeito humano, percebendo-se como constitutivamente autotranscendente, apesar de sua finitude e contingência.' 6 Simone Weil é, sem dúvida, uma dessas "teóricas" de sua própria experiência mística. Sua história de vida, por ela mesma narrada, pode ajudar a exemplificar o que aqui afirmamos como intersecção entre o experimentar e o pensar e interpretar, ou seja, entre mística e filosofia.

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12 Cf. sobre isso a reflexão que faço na parte final do livro Mística e política (pp. 287-288). 13 Cf. seu texto de 1992 ''A experiência mística na tradição ocidental" (In: Vaz, 1992). 14 Cf. a bela reflexão que sobre isso faz Tresmontant (1977).

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Tomada pelo Cristo - obcecada pela verdade Em sua "autobiografia espiritual" escrita ao Pe. Perrin, em maio de 1942, Simone Weil declara: "O Cristo em pessoa desceu e me tomou': Afirmação de um "contato real, de pessoa a pessoa, aqui embaixo, entre um ser humano e Deus';' 7 colocando em plena luz o problema da irredutibilidade e da imediatez da experiência. O contexto no qual ela insere a narrativa de sua experiência é intencional. Ela remete a urna multiplicidade de camadas experienciais que ao mesmo tempo precederam e se seguiram à experiência mística, dando assim um sentido de interpretação e releitura à "autobiografia'' endereçada ao Pe. Perrin. Em um primeiro nível se apresenta uma "inspiração cristã'; notada desde a infância, ligada à ideia de uma "vocação" pessoal, de uma "verdade" transcendendo a capacidade humana, ao "espírito de pobreza" de São Francisco, que sempre a fascinou e habitou, ao sentimento de "pureza'' face à beleza do mundo, às noções de caridade do próximo ou de "aceitação da vontade de Deus':' 8 É um testemunho fundamental, pois, como ela mesma dirá mais adiante, esse itinerário é, a seus olhos, uma verificação existencial das "formas do amor implícito de Deus" desenvolvi15 Cf. sobre isso, além do texto supracitado de Vaz, MacDowell (2002). 16 Cf. Rahner, 1987, pp. 37-59. 17 Weil, 1950a, p. 45. 18 Ibidem, pp. 38-40. Simone Weil fala aqui de "inspiração'; de "atitude diante dos problemas deste mundo'; de "concepção da vida" (pp. 37; 40-41).

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das em Marselha, esclarecendo que o termo de "conversão" não é pertinente naquilo que lhe diz respeito. 19 A experiência de ser tomada pelo Cristo foi precedida, além disso, de três encontros de Simone Weil com o catolicismo que ela reconhece em sua autobiografia como muito importantes. O primeiro é diante de uma procissão em Portugal, em Povoa de Varzim, ouvindo os cantos das mulheres dos pescadores. Ela sente ali, em suas palavras, "que o cristianismo é a religião dos escravos" e que ela não pode não aderir a ele. 20 Esta formulação remete claramente à experiência da opressão operária que Simone Weil teve de viver no ano anterior, que lhe revelou a radicalidade da dor humana: a certeza de que o amor deve poder unir-se a qualquer dor neste mundo, revelação própria ao cristianismo que nem a filosofia nem a política podem trazer por elas mesmas. 21 O segundo contato é o de Assis, em 1937. A beleza da pequena capela românica do século XII onde São Francisco rezou, "incomparável maravilha de pureza'; remete ao sentimento de pureza experimentado desde a adolescência, mas se torna sobretudo o cenário de um evento onde "alguma coisa mais forte que eu me obrigou, pela primeira vez em minha vida, a ficar de joelhos:' 22 Atitude que não é apenas estética, mas exige coisa bem diferente do que "a adesão a um belo poema, uma espécie de adesão bem diferente em termos categóricos:' 23 No entanto, se esta experiência pode se dizer mística, ela se efetua diante de um incógnito, instância anônima (algo, ou alguma coisa mais forte que eu) que não equivale de nenhuma maneira a uma revelação pessoal do Cristo. 24 19 Cf. ibidem, pp. 75-77 e 122-214. Vide também as variantes da carta Vl publicadas em anexo de Gabellieri (2003, pp. 540-541). 20 Weil, 1950a, p. 43. 21 Cf. as análises de Gabellieri (2003, pp. 197-204). 22 Weil, 1950a, p. 43. 23 Ibidem, p. 46 (resposta às leituras demasiado rápidas de A. del Noce ou do Padre Danielou nos anos 1960, estimando que Simone Weil substituía a verdade do Cristo pela religião estética da Grécia). 24 Sobre a leitura definitivamente cristológica da experiência estética em Gabellieri (2003, pp. 236-252; 265-72).

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Esta configuração explícitamente nomeável terá lugar na Semana Santa de 1938 em Solesmes. Se é ali que se decide a abertura de Simone Weil ao Verbo encarnado, o que surge também, pela primeira vez, é, com efeito, "a ideia de uma virtude sobrenatural dos sacramentos:' Pela conjunção de dores de cabeça intensas e "a beleza inaudita do canto e das palavras'; revelando "a possibilidade de amar o amor divino através da dor'; é "o pensamento da Paixão de Cristo que entrou em mim de uma vez por todas': 25 Experiência da "alegria conquistada sobre a dor" de uma importância capital, implicando já o que Simone Weil chamará de "amor sobrenatural'; o qual não é um estado de beatitude, mas a experiência de uma orientação da alma. 26 Mas esta orientação não é, ainda, a experiência de uma união mística. A experiência "unitiva" não se produz senão muitos meses mais tarde, graças à recitação do poema "Love': 27 A novidade absoluta é que não se trata mais de contatos "com o catolicismo'; mas "de um contato real, de pessoa a pessoa, aqui embaixo, entre um ser humano e Deus': Experiência impressionante: "em meus raciocínios sobre a insolubilidade do problema de Deus, eu não havia previsto a possibilidade disto:' 28 É preciso ter presente que esta confissão corresponde menos ao que os raciocínios filosóficos não haviam "previsto" do que àquilo que eles haviam explicitamente recusado nos anos 193029 • Ora, apenas este "contato" autoriza a nomeação que Simone Weil se proibira nas experiências 25 Weil, 1950a, p. 43 (é o que sublinhamos, nesta referência e na precedente). 26 Cf. idem, 1984, pp. 214-215. "La joie pure et la douleur pure sont deux aspects de la même vérité infiniment précieuse (Trinité et croix)" (idem, 1962, p. 113); cf. 1951, p. 40; "( ... ) le contact lui-même importe seul, non pas la modalité" (idem, 1950a, pp. 69-70); "( ... ) recherche d'un état spécial. La fausse mystique est aussi une forme de cette erreur" (ibidem, p. 165). 27 Também a beleza introduz novamente um plano supraestético e, por conseguinte, sobrenatural: "( ... )à mon insu cette récitation avait la vertu d'une priere. C'est au cours d'une de ces récitations que, comme je vous l'ai écrit, le Christ lui-même est descendu et m'a prise" (ibidem, p. 45). 28 Ibidem, p. 45. 29 Em Roanne, Simone Weil afirma que um "contato" com Deus é "uma espécie de blasfêmia( ... ) por definição( ... ). Deus não pode ser sentido" (idem, 1966, p. 182).

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precedentes, nas quais, declarará ela a Joe Bousquet, "eu me esforçava em amar, mas sem me acreditar no direito de dar um nome a este amor': 30 O conteúdo desta experiência de contato é de uma sobriedade radical: "nesta súbita tomada de posse do Cristo sobre mim, nem os sentidos nem a imaginação não tiveram parte alguma': 31 Relato de tal maneira nu e despojado que faz perguntar por onde passa a experiência do "Cristo em pessoa': Esta experiência unitiva foi seguida de muitas outras, nas quais "o Cristo está presente em pessoa, mas de uma presença infinitamente mais real, mais pungente, mais clara e mais cheia de amor do que da primeira vez em que me tomou': A segunda é a única analogia que Simone Weil utiliza, que é a de haver "sentido através do sofrimento a presença de um amor análogo àquele que se lê no sorriso de um rosto amado:' 32 Analogia que remete a um tipo de experiência que não é nem estética nem apofática, mas ética, ou seja, é a experiência da compaixão conhecida em circunstâncias como aquelas da condição operária em que um simples sorriso poderia, sozinho, contrabalançar a dor. Sorriso indicando a bondade e a ternura da pessoa, como no caso da mãe pela criança, do amante pela amada, ou de Deus pela alma no poema" Love': 33 Ternura que ultrapassa a estética grega, mas que Simone Weil transporá em seguida ao plano metafísico quando a beleza lhe aparecerá como o "sorriso" impessoal de Deus na criação. 34

Vê-se quanto é necessário distinguir, em Simone Weil, uma progressividade, primeiro no interior de uma experiência espiritual mais ampla que a experiência mística, e, em seguida, no interior desta. A primeira resposta às questões formuladas sobre a possibilidade do cruzamento entre experiência mística e razão filosófica concerne então ao conceito de experiência, que, longe de ter uma forma absoluta, revela múltiplos graus segundo uma curva que vai da passagem do amor implícito à experiência da presença; depois desta a uma retração que confirma a experiência e a transforma em envio missionário no mundo. Desta continuidade de etapas e acontecimentos ao mesmo tempo sem precedente e em continuidade uns com os outros, Simone Weil formulou a estrutura existencial quando escreveu: "Ainda que me tenha acontecido muitas vezes de atravessar uma fronteira, não me lembro nunca, em nenhum momento, de haver mudado de direção:' 35 Assim, a experiência mística excede as experiências naturais, mas prolonga também sua verdade, longe de aboli-la.

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30 Idem, 1962, p. 81. 31 Idem, 1950a, p. 45. Ali, Simone Weil diz ao Pe. Perrin a mesma coisa que diz a J. Bousquet: Deus é "inaccessible et aux sens et à l'imagination': 32 Ibidem, p. 49. A relação de Simone Weil com Deus é reforçada pela escolha do Pai Nosso (Pater) como oração perfeita (cf. ibidem, pp. 47-48). 33 "( ... ) je me suis exercée à !e réciter ( ... ) en adhérant de toute mon âme à la tendresse qu'il renferme': "L'Amour prit ma main et répondit en souriant: 'Qui a fait ces yeux sinon moi?"' (ibidem, p. 44). 34 Conforme a analogia utilizada para a revelação da "alma do mundo'; identificada ao Cristo: "( ... ) elle se laisse apercevoir par nous à travers la beauté sensible comme un enfant trouve dans un sourire de sa mere, dans une inflexion de sa voix, la révélation de l'amour dont i! est l'objet" (idem, 1951, p. 38). Sobre a aproximação com a "metafísica da infância" de G. Siewerth, ver Gabellieri (2001, pp. 429-450).

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Simone Weil e a tradição filosófica Simone Weil escreveu: "a sabedoria de Platão não é uma filosofia, uma busca de Deus pelos meios da razão humana. Uma tal busca, Aristóteles a fez tão bem quanto se pode fazer. Mas a sabedoria de Platão não é outra coisa senão uma orientação da alma em direção à graça:' 36 Trata-se então de uma oposição categórica entre filosofia (Aristóteles) e mística (Platão)? As coisas não são tão simples, pois se "Aristóteles é talvez na Grécia o único filósofo no sentido moderno" 37 é porque se enfrentam aqui não "a filosofia e seu oposto, mas duas concepções da filosofia: no sentido moderno e em outro sentido. Para confirmar isto, está o fato de que o critério que discrimina as duas concepções não é uma 35 Sobre esta fórmula, Gabellieri (2003, pp. 1; 539-541). Sobre o evento em Simone Weil, vide fórmulas do tipo: "j'ai eu soudain la certitude que !e christianisme est la religion des esclaves" (Weil, 1950a, p. 43); aos 14 anos," j'ai eu soudain et pour toujours la certitude" (ibidem, p. 39); "la pensée de la Passion du Christ est entrée en moi unefois pour toutes" (ibidem, p. 43). 36 Idem, 1953a, p. 79. 37 Ibidem, p. 76.

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relação direta ao sobrenatural, mas o reconhecimento de "tradições" desempenhando o papel de fontes de "inspiração" para a razão. 38 Parece claro aí que Simone Weil quer opor um tipo de filosofia em que a razão se desejaria absolutamente autônoma e única produtora de sentido, e um outro tipo, em que a razão tem a receber aquilo que lhe "dá a pensar': Em oposição a Platão, cuja busca de sabedoria é inspirada por uma tradição mítica e revelações antigas, Aristóteles aparece nesta perspectiva como aquele que, ignorando esta precedência do sentido (conforme suarejeição ao mito), desejaria fundamentar a filosofia sobre a razão unicamente. Neste sentido, ele fundaria o modelo racionalista da filosofia moderna, ou seja, aos olhos de Simone Weil, um modelo abstrato do pensamento. 39 Toda a filosofia da cultura e do enraizamento de Simone Weil pode ser definida como uma busca das condições e fontes culturais e históricas da inspiração. Mas é sobre suas condições metafísicas que é preciso debruçar-se. E mais precisamente sobre a articulação entre razão e inspiração permitindo afirmar, por exemplo: "o racionalismo; se é pensar que a razão é o único instrumento, isto é verdade; se se trata de pensar que ela pode ser um instrumento suficiente, é idiota:' 40 A ideia fundamental é que, em seu exercício, a razão tem necessidade de ser orientada para a faculdade de atenção, a qual está ligada ao desejo do real verdadeiroY Desde então, na pesquisa intelectual, a atenção ao que não se capta é superior à que se presta ao que se capta; a inteligência está orientada por um ato de fé em direção àquilo que a ultrapassa. Assim, toda a leitura do

real é a captação implícita de uma relação entre o evidente e o oculto. 42 Simone Weil rompe, aqui, com a redução cartesiana do verdadeiro à ideia clara e distinta, servindo-se notadamente do método kantiano das antinomias. A razão deve ter por exigência contemplar as contradições irredutíveis do real e do pensamento, de maneira que, "quando duas verdades incompatíveis se impõem à inteligência humana (... ) como os dois braços de uma pinça, um instrumento para entrar em contacto com o domínio da verdade transcendente inacessível a nossa inteligência': 43 A inteligência chega, então, "a um lugar onde nós podemos pensar juntos os contrários, mas onde nós não podemos ter acesso ao plano onde estão ligados. Lá onde não podemos mais subir, devemos olhar, esperar e amar:' 44 Neste estado se situa, para Simone Weil, a primeira relação intelectual ao sobrenatural, a saber, "o gênio como virtude sobrenatural de humildade no domínio do pensamento:' 45 O termo "sobrenatural" não deve mascarar que, reencontrando assim, à sua maneira, o tema da "fé geradora de razão" segundo uma fórmula de E. Gilson, Simone Weil se situa em um plano válido para a filosofia antes de ser objeto de uma eventual revelação. Dizer que "nós sabemos por meio da inteligência que aquilo que a inteligência não apreende é mais real do que o que ela apreende" 46 ou que a inteligência deve reconhecer "pelos meios que lhe são próprios, quer dizer, a constatação e a demonstração, a preeminência do amor" é, com efeito, verdade de toda experiência de atenção e de leitura no sentido acima visto. Acrescentar que "a fé é a experiência que a inteligência é iluminada pelo

38 Platão "n'est pas un homme qui a trouvé une doctrine philosophique, mais quelqu'un qui répete constamment qu'il n'a rien inventé, qu'il ne fait que suivre une tradition" (ibidem, pp. 69-70; ver também p. 92). 39 Para Platão se trata "de tout autre chose" que de uma "conception abstraite de Dieu à quoi l'intelligence humaine peut parvenir sans la grâce, mais d'une conception expérimentale" (ibidem, p. 72). É de se notar a dependencia de Simone Weil com rPspeito a uma dupla leitura "logicista" ("le Systeme d'Aristote d'Hamelin est source majeure de préparation à l'Agrégation en 1931") e naturalista ("de Ravaisson à Alain et Brunschvicg") de Aristóteles. 40 Idem, 1953b, p. 201. 41 Idem, 1956, pp. 158-159. Cf. 1950b, pp. 109-110.

42 "La foi. Croire que ce que nous ne pouvons pas saisir est plus réel que ce que nous pouvons saisir. Que notre pouvoir de saisir n'est pas le criterium de la réalité( ... ). Croire enfin que l'insaisissable apparait néanmoins, cachê" (idem, 1953b, pp. 106-108; 1951, p. 166). 43 Idem, 1955, p. 209. "La contradiction est le levier de la transcendance" (idem, 1950b, p. 83). "La méthode propre de la philosophie consiste à concevoir clairement les problemes insolubles dans leur insolubilité, puis à les contempler sans plus, fixement, inlassablement" (ibidem, p. 305). 44 Idem, 1956, p. 25. 45 Idem, 1950b, p. 305; cf. 1957, p. 139. 46 Idem, 1953b, p. 135.

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amor'; 47 ou bem que "a razão é sempre o único instrumento" mas há coisas que "a razão capta somente á luz da graça" 48, não faz então senão transpor ao nível de uma revelação explícita a abertura implícita do homem aos "mistérios sobrenaturais constantemente presentes em plena natureza humana. 49 A maneira pela qual Simone Weil define a racionalidade das verdades reveladas permite precisar o elo entre o espírito e o sobrenatural. Esta racionalidade, com efeito, não significa, é claro, que estes dogmas tenham podido ser encontrados pela razão humana sem revelação; mas, uma vez aparecidos, se impõem à inteligência com certeza, se somente esta é iluminada pelo amor, de maneira que ela não possa recusar aderir, ainda que estejam fora de seu domínio e que ela não tenha qualificação para afirmá-los ou negá-los. 50 Aí está um princípio de hermenêutica que, confirmando o primado do amor sobre a razão, mostra ao mesmo tempo em que as verdades reveladas consistem, não o que a razão não pode pensar, mas aquilo que ela não pode nem produzir, nem reduzir a sua capacidade de pensar. Compreende-se melhor, então, por que a mística weiliana, na qual "o amor sobrenatural" se define antes de tudo por uma orientação da alma, se centra tão frequentemente sobre a cruz de Cristo. A cruz é o lugar onde Deus mesmo se esvazia de sua divindade, onde a ligação entre Deus e Deus mesmo parece não mais existir senão sobre o modo de ausência, de noite da fé, de abandono, o que é para Simone Weil o aspecto mais propriamente sobrenatural do amor. No entanto, a cruz não pode ser reduzida a esta pura negatividade. A cruz não é um fim em si, ela não tem verdade senão na fecundidade do amor que aí se joga na eucaristia, no dom de si do qual ela é exemplo e fonte ao mesmo tempo. Aqui se apresenta, nos escritos de Londres, a mística eucarística de uma oblação total de si em que Simone Weil, torturada pela agonia da Europa em guerra, suplica que todo o seu ser

seja "arrancado de mim, devorado por Deus, transformado em substancia do Cristo e dado de comer aos infelizes cujo corpo e alma carecem de toda espécie de nutrição:' 5 1

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Conclusão: mística e filosofia, no dom do nome Quem deseja e suplica Deus que transforme assim sua vida em dom, como Cristo, participa do que Simone Weil nomeia, no plano metafísico, a "plenitude do ser'; no plano teológico, "Trindade'; e, no plano místico, "amor sobrenatural': Neste último nível, cada criatura pensante "constitui um modo singular, único, inimitável, insubstituível, de presença, de conhecimento de operação de Deus no mundo:' 52 A intersecção entre razão e amor se torna então a substancia mesma da pessoa, o cruzamento entre o eu e o amor sobrenatural que revela a cada um seu "nome definitivo": "não ser nada mais que um mediador de Deus na criação ( ... )é não ser mais do que uma certa intersecção entre a natureza e Deus. Esta intersecção é o nome pelo qual Deus os chamou desde toda a eternidade, é sua vocação:' 53

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47 Ibidem, p. 132. 48 Idem, 1953b, p. 123.

51 Idem, 1950b, p. 205.

49 Idem, 1951, p. 165.

52 Idem, 1999, p. 489. Cf. 1950b, p. 274.

50 Ibidem, pp. 31-32.

53 Idem, 1953b, p. 274 (grifo nosso).

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- - - - · Oeuvres VI 2. Paris: Gallimard, 1999.

Mística secularizada na poesia brasileira contemporânea: leitura de Noiva, de Renato Rezende Eduardo Guerreiro Brito Losso'

Quando se fala de mística em estudos universitários, pensa-se geralmente em textos medievais. Meu objeto de estudo, contudo, trata do fenômeno da secularização da mística na literatura moderna. Vários autores cruciais já foram estudados nesse sentido: Katka, Rilke, Musil, simbolistas, surrealistas, etc. 1 No Brasil também há estudos nesse sentido, mas ainda bem precários. Minha pesquisa tem sido uma tentativa de refletir sobre essa problemática na moderna literatura brasileira. Neste ensaio deter-me-ia num caso bem singular e interessante: Noiva, livro de Renato Rezende lançado em 2008. Seu livro anterior, Ímpar, foi ganhador do prêmio de poesia Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, em 2005.

Estilhaço do estilo O livro se define pelo nome de uma de suas partes: "estilhaços:' 2 Clarice dizia frequentemente, em entrevistas ou por meio de personagens, que não se preocupava em escrever literatura, por isso escrevia simples. 3 Mas conseguiu a tão difícil intensidade da experiência-limite, desdobrando o ser da linguagem4 no âmago da suposta simplicidade, que logo se revelou difícil pela dificuldade de elaboração: "Sem falar que a história • Doutor em Letras pela UFRJ e professor de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). 1 Para exame sobre o assunto com bibliografia, ver Losso (2007, pp. 281-287). 2 Rezende, 2008, p. 29. 3 Cf. Lispector, 1993, p. 28; 1999, p.17. 4 Cf. Foucault, 1994a, pp. 235, 237, 243.

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me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos, mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo:'s Isso mostra o quanto a facilidade de leitura e certos indícios de aparente descuido podem enganar aqueles que exigem um cuidado estilístico básico, sem prestar atenção à possível concepção que há por trás de exibições estratégicas de descuido. No caso de A hora da estrela, esse trecho cumpre a função retórica de focar uma protagonista crua, bruta, insossa, sem nenhum atrativo, apagada, mas que, para o narrador, revela ser a verdadeira matéria-prima de transformação vital de um escritor moderno, demasiadame nte humano, impregnado dos conflitos psicológicos de um intelectual pequeno-burg uês. Por isso mesmo ele procura sua alteridade radical, Macabea, a nordestina semianalfabeta desinteressant e, diminuta, fruto genuíno da massa. Logo, o estilo simples é a contrapartida formal de fidelidade ao objeto da narrativa: "E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela:' 6 Sim, mas não esquecer que para escrever nãoimporta-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro- e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. 7

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A comparação com o rei de Midas é elucidativa: Macabea é uma existência difícil de captar justamente por estar tão próxima, ser tão comum, mas não ser atraente. Transformar essa matériaprima em ouro será, na verdade, um fracasso alquímico, pois a falseará e a sufocará. Mas não adianta simplesmente reproduzir seu discurso. A solução do narrador é trabalhar literariamente com um material pobre. Portanto, exibição de material pobre não significa falta de elaboração. Sabemos isso no mínimo desde o modernismo, mas tal desafio tem se renovado no decorrer da poesia pós-moderna. Noiva pode ser vista de forma mais radical: assimila erros gramaticais da língua falada, abreviaturas da escrita informal (por exemplo, "pq" 8 ) com o claro objetivo de se distanciar da ideia de uma linguagem literária. Mas é claro que assim o faz sempre por meio da linguagem, sendo, mais uma vez, literatura. Ao contrário do registro culto e do cultivo da linguagem que asseguraria um certo status, o que interessa é a perda da linguagem, sacrificando por isso qualquer rastro de artesanato e cuidado da escrita para ganhar algo de imediação da experiência. A estratégia de Renato Rezende é, então, servir-se de um aparente desprezo pelo cultivo da linguagem literária, para ganhar a experiência que advém da elaboração obsessiva de um determinado foco não-livresco. Parece romantismo, poesia Beat, ou marginal? Se for o caso, vale lembrar um recado muito lúcido de Sergio Cohn: "ao contrário do que disse Leminski, a poesia Beat foi marcada por uma intensa reflexão sobre a literatura e o fazer poético. Que essa reflexão esteja associada a um pensamento político e existencial só atorna mais vigorosa:' 9 Guardadas as grandes diferenças, a declaração se encaixa perfeitamente ao caso de Renato. Armando Freitas Filho, um dos poetas vivos mais consagrados hoje, luta dramaticamen te em sua prática poética com a linguagem, possui uma escrita plena de conflito entre o cuidado extremo e o descontrole, ao contrário do também suposto relaxamento da geração marginal. 10 Ele se abre a várias influências

5 Lispector, 1993, p. 33.

8 Rezende, 2008, p. 30.

6 Ibidem, p. 34.

9 McClure, 2005, p. 8.

7 Ibidem, pp. 28-29.

lO Cf. Losso, 2002, p. 19.

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e vozes estilísticas distintas ao longo da obra, mas o que prepondera sempre é não um rigor, mas uma mania obsessiva pelo aprimora mento do poema totalment e ligada a um desespero existencial de medo do descontrole. Ainda assim, bem ao contrário de João Cabral de Melo Neto, Armando, paradoxa lmente, enfrenta o descontrole desejando -o como a própria finalidade de sua obsessão artesanal. Por isso há extrema intensida de vital em Armando, aliada a uma resolução estético-existencial que vê no trabalho infindável do "rascunho " e dos "cortes'; não um modelo de policiame nto estilístico, antes o espaço para uma ascese doentia, que perverte a própria ascese, dando a ela as qualidade s extremas da experiência-limite. Mas Noiva seria uma alteridade dos dois (Armando e a geração marginal) ainda não imaginad a: desespero e desejo extremo da experiência de abandono total da linguagem por meio do "descuido calculado" com a mesma; destruiçã o da linguagem do eu e do eu da linguagem. Trata -se de um verdadeir o descuido ascético, lá onde se dá a ascese propriam ente dita: na cotidianid ade diária, no desenrola r do tempo vivido: "Tenho sido meticulosamente destruído." 11 "Mas estou me esforçando muito, profissionalizando meu silêncio!' 12 Conflitos psicológi cos: laboratório da ascese Mas esse desleixo a um só tempo aparente e real, na fronteira entre a aparência e a realidade do descaso que resulta em estilhaço, leva a duas consequências. A primeira é estilística e sociocultural: a poesia sai enriqueci da de se aventurar em mares "não literários'; o que é uma estratégia da poesia pós-mode rna. Lembro de Francisco Alvim e Chacal como casos paradigmáticos. No seu caso específico, a abertma para o mundo não literário não se dá por um mero interesse em se jogar nos abismos da vida (na boemia, no povo, ou algo semelhante); essa abertura serve espe13 cificamente para seu ideal ascético de chegar a uma iluminaçã o 11 Rezende, 2008, p. 34.

12 Ibidem, p. 39. 13 Essa expressão é nietzschian a e serve para criticar a prática ascética judaica e cristã, reconhecen do na última, especialme nte, a raiz do rancor metafísico e

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mística. É uma subversão feita ao mundo literário apenas para unir em dissonânc ia a prática literária e um corpo a ela estranho. Ligada a isso está a desperson alização por meio mesmo do corpo, corpo como alteridade da linguagem, que procura a linguagem do corpo: "o corpo é a linguagem" 14 com o intuito de, finalmente, abandona r todos, tudo, qualquer coisa: linguagem, coloquialis~o, corpo, vida. Por isso mantém- se a linguagem à distância: "E preciso que a linguagem não agarre." 15 A segunda consequê ncia é a do plano psicológico. O livro está pleno de conflitos, é um verdadeiro processo psicanalítico, uma pletora de forças agitadas, inquietas, irritadiças do mundo interior. do niilismo moderno. Contudo, o próprio Nietzsche não deixa de exibir práticas ascéticas em sua filosofia do super-hom em contrárias ao ideal ascético cristão, porém, por ele mesmo influenciad a, se pensarmos, com Foucault, que o cristianismo introduziu a "hermenêu tica do sujeito'; inaugurand o uma nova "forma de subjetivaçã o" que dava o primeiro passo para a constituição do sujeito moderno. Nietzsche, apesar de suas próprias declarações , está menos próximo de uma "estética da existência" de raiz grega, ligada ao domínio de si e à existência comunitári a da pólis do que de uma leitura constante da individuali dade psicológica, perspectiva hermenêuti ca de raiz cristã. A partir daí ele J?rocura um novo tipo de espiritualiz ação impulsiona do pela vontade de poder. E o que nos revela a interpretaçã o de Tyler T. Roberts: "For the genuine philosopher , Nietzsche suggests, asceticism focuses and empowers the human will, spiritualizin g instead of extirpating or denying. Philosophy, in this view, is the 'most spiritual form o f the will to power; but this spirituality comes only at the cost of the pain and renunciatio n involved in knowledge: ' (Roberts, 1996, p. 408) Roberts se baseia na onda de estudos sobre ascetismo que ocorreu nos anos 1990 a partir do livro de Geoffrey Galt Harpham, The ascetic imperative in culture and criticism. Harpham, por sua vez, se inspirou na análise de Baudelaire feita por Foucault: "Cependan t, pour Baudelaire, la modernité n'est pas simplemen • forme de rapport au present; c'est aussi un mode de rapport qu'il faut établir à soi-même. L'attitude volontaire de modernité est liée à un ascétisme indispensable." (Foucault, 1994b, pp. 570-571) Por isso mesmo farei um uso afirmativo do conceito elaborando , não um retorno da ideia de uma ascese e mística tradicionais, mas uma espécie de secularizaç ão da mística que reinventa procedimen tos ascéticos no âmbito da obra de arte moderna enquanto construção de si num momento histórico em que o sujeito se torna livre para se automodela r. A produção e a recepção da obra de arte serve, nesse caso, como laboratório mimético e reflexivo para a reinvenção da vida individual. 14 Ibidem, p. 50. 15 Ibidem, p. 23.

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A busca da iluminação não se dá por uma negação dos conflitos humanos; ao contrário, por uma operação poética de escancarar tais conflitos diante do desejo absoluto que poria fim a todos eles. Mesmo assim, não deixa de haver uma decepção com a própria ansiedade e um ideal ascético de mais serenidade: É como se meu amor, histérico e aflito, não conse-

guisse assentar-se, colocar-se em algo humilde, feito com afinco, e essa incapacidade criasse agitação e ansiedade. Aprender a amar todas as coisas que se apresentam sem julgamento de valor; me 16 doar a cada situação: colocar os dois pés no chão.

O tom do trecho é instrutivo (verbos no infinitivo que no fundo contêm imperativos categóricos); regras de conduta escritas para si mesmo, típico de uma verdadeira escrita ascética que almeja a tentativa de reconstruir o eu para alcançar um estado psicológico desejável. Mas essa interioridade dada e escancarada em sua superfície não é apenas, a meu ver, um aspirante a semideus cheio de problemas; em outras palavras, um neurótico megalomaníac o: por causa desse alto grau de investimento nos conflitos pessoais, dessa aposta no cerne do jogo psicológico, a busca do estado bemaventurado encontra resultados estéticos dos mais bem-aventurados, sem dúvida porque o desejo místico do poeta sinaliza algo que ainda não foi bem pensado pela própria psicanálise (apesar 17 das poucas mas decisivas palavras de Lacan a respeito ) e que está ligado ao valor teórico, filosófico e ontológico da mística. Por isso o livro é um verdadeiro testemunho poético forte e fiel do valor, da pertinência e da necessidade da questão da mística para a reflexão estética e teórica. 16 Ibidem, p. 38. 17 "Ces jaculations mystiques, ce n'est ni du bavardage, ni du verbiage, c'est en

somme ce qu'on peut lire de mieux- tout à fait en bas de page, note- y ajouter les Écrits de Jacques Lacan, parce que c'est du même ordre. Moyennant quoi, naturellement, vous allez être tous convaincus que je crois en Di eu. Je crois à la jouissance de la femme en tant qu'elle est en plus, à condition que cet en plus, vous y mettiez un écran avant que je l'aie bien expliqué:' (Lacan, 1975, p. 71)

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Assim, o grande emaranhado de conflitos psicológicos não perde em nenhum momento seu objetivo místico: ele é, seguramente, o laboratório vital da ascese do poeta, e seu sintoma não é outro senão o de uma alma com a clara e sedenta busca do desejo de absoluto, que é também o desejo absoluto. Essa psicologia toda se explica pelo fato de o livro ser uma espécie de diário em dispersão, 18 mais disperso que a própria natureza do diário por ser poético, mas é diário por ser um registro da ascese, e é poesia por ser já um gozo místico-estétic o que quer tocar no absoluto. A inserção da forma do diário (mesmo que sem datas) num livro de poemas tem vários precursores cito apenas o caso recente de Armando Freitas Filho em seu livro Fio-terra 19 (que, na primeira parte do livro, subdivide um poema longo com datas). Poema performático O que parece indicar a singularidade desse livro, nesse sentido, é o fato de ele jogar com a ligação entre diário e mística num contexto pós-moderno, passando da idade da psicanálise, da TV, para encarnar sua contemporane idade com a internet. A necessidade de recolhimento da arte 20 e também da busca mística, contraposta à exibição na era da reprodutibilid ade técnica, precisa se mutilar numa espécie de espetaculariza ção de sua interioridade, daí o subtítulo do livro, poema performático. Se isso já foi iniciado nas Confissões de Rousseau, e de lá para cá atravessamos o romantismo e todas as espécies de antirromantis mo 18 A relação entre gênero diário e escritos místicos é constante (bem como a

autobiografia), pois é neles que aparecem relatos concretos de experiências extáticas. Isso mostra o quanto a constituição do sujeito moderno está ligada a tal gênero literário. O Diário, de Ignácio de Loyola, é uma famosa referência. Especialistas consideram que é nele que Loyola desenvolve o aspecto místico, enquanto que na maioria de seus outros escritos prepondera o lado ascético (cf. Loyola, 1991, p. 229). Beatriz de Nazareth é um dos vários exemplos de místicas medievais que cultivaram o hábito do diário para relatar suas experiências. Seu diário (original em holandês com versão latina intitulada Vita Beatricis) foi um dos poucos preservados (cf. Kroll & Bachrach, 2005, p. 148). 19 Há uma análise em minha dissertação sobre a primeira parte do livro, que contém a fusão de diário e poesia (cf. Losso, 2002, pp. 15-29) 20 Cf. Benjamin, 1987, p. 193.

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e pós-romantism o, na arte e na indústria cultural, Renato nos mostra mais um avanço: fazer da busca mística uma performance poética da interioridade por meio de uma refração do eu lírico em diversas atitudes do "protagonista" no mundo (conversas, opiniões, situações, paqueras etc.). A fragmentação do poema ao se fazer diário e do diário ao se fazer poema está, portanto, bem marcada pela dispersão da voz lírica na era da internet. Penso, então, que esse livro é mais representativo da relação entre a poesia e a internet hoje do que muitos dos autores que tematizam o mundo virtual ou até exibem e-mail no livro, mas não incorporaram formalmente suas mais desconcertant es consequências . A subdivisão do livro em pequenas partes com títulos que formam uma coerência recíproca e expressam as questões levantadas (imagens do sublime natural: "oceano'; "azul'; "irisar"; simbólica da mística: "chamas'; "Abgrund'; "hosana'; "santo"; relação entre interioridade e exterioridade: "o outro'; "Re-nato'; "pessoa"; as palavras ligadas à esfera do belo - "flores'; "beija-flor'; "abelhas" - aparecem para ser maculadas pela anomalia ou pelo grotesco: "Há flores que desabrocham no outono, no inverno"; 21 "Ele viu um beija-flor enroscado numa teia de aranha"; "Eu posso perfeitamente mastigar abelhas vivas, quer ver?" 22 A subversão do belo está sempre ligada ao enfrentamento da morte, sendo mais um lado do aberrante, ou seja, do performático. De qualquer forma, a subdivisão em partes confunde o leitor com a seguinte alternativa: tais partes seriam poemas ou o livro inteiro seria um poema (épico-trágico?) subdividido em partes. A última hipótese parece ser a mais provável, por causa do subtítulo. Nesse caso, haveria muito o que dizer do fato de o livro ser uma epopeia performática de um místico pós-moderno exibindo seus dramas psicológicos e vida estilhaçada pelas diversas falas, reflexões, situações, devaneios e aspirações. Até no nível meramente gráfico isso fica bem claro: os versos ou pequenos trechos de prosa aparecem mallarmeanamente, ora alinhados à esquerda, ora centralizados, ora em itálico, ora entre colchetes; palavras em negrito salpicam aqui e ali, em caixa-alta etc. Essa

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diversidade gráfica exuberante cria um efeito estético que associo ao frenesi de diversas vozes da peça eletroacústica Hymnen, de Stockhausen, escrita em 1966-1967. Foi essa composição que influenciou a famosa "Revolution 9" do White Album dos Beatles, a música mais vanguardista do quarteto, que, por sua vez, influenciou uma série de experimentos eletroacústicos no psicodelismo inglês e no tropicalismo brasileiro (lembro dos discos mais experimentais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Walter Franco - todos resolveram criar sua "Revolution 9"). Noiva é uma epopeia eletroacústica de diversas vozes do eu e do "outro" lírico gravadas, decompostas, modificadas, mixadas com a performance gráfica e psicológica. Curiosamente, tal performance verbal se harmoniza muito bem com o lado exibicionista do místico e do asceta tradicional, cheio de estigmas, histerias e somatizações; 23 nele já está presente a ambiguidade entre recolhimento e exibição. Vale lembrar que, ao contrário dos gurus mais aproveitadores, os melhores exemplos de místicos não tomam sua exibição uma diminuição da qualidade do trabalho de sua interioridade, assim como Rousseau, ao exibir sua história e seus segredos íntimos, exteriorizou a vida narrada para melhor refletir sobre si mesmo com seu "cogito sensível:' 24 Em outras palavras, se há um traço bem modemo do sujeito é a exibição de sua interioridade e todas as suas implicações ascéticas, logo, a exteriorização da interioridade no escritor moderno não é outra coisa senão uma ascese da inferioridade performatizada. Renato nos ajuda a entender isso ao dar um passo adiante: performatizar a busca mística num discurso dispersivo que incorpora o estado da linguagem na era virtual. Desejo do absoluto e psicanálise Essa dispersão é um modo de aniquilação do eu ao exibi-lo. Toda essa fragmentação, porém, tem um propósito: tocar o absoluto com a experiência; há até mesmo um desejo de tomar-se deus ao expandir a interioridade através da exteriorização da escrita. Se esse "absoluto" soa para muitos (talvez aqueles que não

21 Rezende, 2005, p. 24.

23 Cf. Certeau, 2005, pp. 328-329.

22 Ibidem, p. 11.

24 Dünne, 2003, pp. 135-136.

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foram "iniciados" no labirinto da questão da mística) "metafísico'; "idealista'; Renato responde: Esse é o diário de um suicida. Eu sou a cor dourada. Invente um projeto doido para sua vida: Gigantesco, Insensato. 25 As megalomanias e perversões não fazem o papel de fixações; antes contribuem para a operação de autoaniquilação do eu. Nada mais estranho à psicanálise, 26 mas somente esclarecido através dela abandonando-a: que o masoquismo seja intencionalmente um exercício ascético de autoaniquilação do eu para propósitos místicos: "Eu sou uma pessoa que se esquarteja:' 27 Eu te mando pelo correio um grande coração de chocolate, para você devorar de olhos fechados, como se fosse o meu próprio coração apaixonado. [depois me manda de volta, num patinho, o resultado do meu amor no seu sistema digestivo)2 8

Há muito o que pensar desse masoquismo, dessa regressão anal e oral, dessa afirmação do abjeto fecal ou do cadáver (estética do escândalo e do terror, tanto recalcada, quanto escancarada na indústria cultural): Renato é um místico na idade da psicanálise e do cinema, da pós-modernidade, na idade do individualismo, domesticação e psicologização do indivíduo. Se Bataille, Musil e Benjamin contêm aspectos místicos no âmago da teorização da modernidade e da prática do modernismo, Renato está já num 25 Rezende, 2005, p. 52. 26 P~ra ser mais preciso, nada mais estranho à psicanálise que não se ocupa da

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estágio mais avançado, pós-industrial do mundo individualista e psicopatológico, e por isso encena em sua própria vida e ascese o teatro trágico, ou melhor, o cinema da psicanálise, mas o usa e abusa (perversamente?) para seus propósitos místicos, em outras palavras, épico-orientais. Na idade da psicanálise, aposto que o poeta possui um potencial de relativa superação do teatro perverso por meio do mesmo, ou seja, nosso poeta nos instiga a uma espécie de autossuperação da metapsicologia, jogando com suas próprias cartas. Nesse sentido, o super-homem de Nietzsche, assumindo divinamente os limites do homem, está mais próximo da ascese poética aqui analisada do que o analisando deitado no divã, precisamente porque Nietzsche, com seus arrebatamentos dionisíacos, 29 está mais próximo dos místicos do que as poucas referências ao sentimento oceânico de Freud. A claridade e a contundência ascética do desejo absoluto se distinguem, assim, de qualquer outro conflito psicológico que eu conheça, de todos os que são, justamente, analisáveis, porque todos estão dispersos na sua própria nebulosidade, fixados num ou noutro sintoma e ligados a uma psicopatologia. O seu, ao contrário, está claramente e propositalmente se estilhaçando para chegar ao gozo iluminado, à chama. Por isso repete-se tanto o desejo de se ser o que se é, lembrando, mais uma vez, Nietzsche. Destruir o eu para fazê-lo renascer "autêntico'; em jargão heideggeriano, é o destino próprio desse ser-para-a-morte. Mas esses filósofos não nos ajudariam a pensar a relação desse eu com Deus, quando só Deus ou a mulher divina tornam o eu lírico quem é: "Ajudai-me, Senhor, ajudai-me a ser quem eu sou:' 30 O individualismo e a solidão secular estão aqui explicitamente rezando para um deus indefinido pós-secular, tão indefinido quanto o eu, e no qual o eu tenta reconhecer seu ser. Claro que o sucesso do empreendimento ascético é posto em dúvida, está sempre se colocando em forma de pergunta:

~ísttca - embora já seja considerável a bibliografia de pesquisadores psicana-

listas que nela se debruçam; vide minha tese, na qual discuto o assunto mais profundamente (Losso, 2007, pp. 244-246). 27 Rezende, 2008, p. 45. 28 Ibidem, p. 49.

29 Cf. Nietzsche, 1954, p. 25. Penso especialmente na "embriagadora realidade" (rauschvolle Wirklichkeit) dionisíaca do "sentimento de união místico" (eine mystische Einheitsempfindung), com vistas a "aniquilar" (vernichten) o sujeito. 30 Rezende, 2008, p. 34.

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"Saberei renascer em vida?" 31 Isso não ocorre porque tal sucesso não seja possível (pois não é o crítico quem vai decidir isso); antes, porque, por mais malabarismo literário que se faça para captar o não literário, a linguagem não pode afirmar esse lugar, declarar-se nesse lugar: o meio é a mensagem, e por meio da linguagem a experiência mística absoluta, aquela que vai fazer da vida algo mais próximo da morte, só pode ser inquirida: "De vez em quando paro de escrever, com vontade de morrer:' 32 O poeta é sádico com a linguagem e, portanto, consigo mesmo: masoquista ou, no limite, suicida.

reconhecimento radical do mesmo. Logo, a estruturação formal é bem coerente com o propósito ascético. Essa dispersão, enquanto fratura e abertura generalizada do eu para seus próprios conflitos interiores e paradoxalmente para qualquer outra coisa ou pessoa, só encontra sua relativa "redenção" no amor, no ato de "re-ligar-se'; só no amor é possível re-ligar os estilhaços. Mas esse amor mesmo não é, insisto, uma abertura para a vida mundana; antes, um trabalho solitário de interiorização e tentativa de superação dos conflitos interiores, é, tanto autoaniquilação social e individual, quanto ascese religiosa da ligação da interioridade com o mundo à distância: "Eu já vivi bastante. Eu já conheci bastante. Agora é necessário que esse oceano exploda em meu peito. O amor- não mais para fora, mas para dentro:' 34

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Forma A dialética da vida e morte, já presente nos outros livros do autor, assim como toda a imagética da chama, luz, ideia de esvaziamento, autodistanciamento, encontra o empreendimento de dispersão das vozes. Eu poderia ser facilmente qualquer pessoa.

Por acaso eu sou eu. 33

A pluralidade sem fim das vozes multiplica personagens indefinidos de si mesmo. O eu poético, assim, ensaia o contorno de um personagem, mas já o abandona no fluxo dos pedaços de versos-frases. A variedade gráfica e posicional dos trechos joga com essa indefinição. Um certo hermetismo serve à busca ascética: tal estratégia é corrente na tradição da literatura moderna (o que mostra que ela não se esgota e, talvez, esteja ainda no início de seus frutos), e sem dúvida o resultado estético é único, singular, e, mais uma vez, na literatura moderna, decisivo. Mas o texto se torna mais compreensível - e espantoso - na suas reincidências, como é comum em livros de poesia. Quando se reconstrói o todo, vê-se que a parte serve ao todo. Logo, a dispersão é função do todo, e o todo aqui é sempre a busca ascética de uma experiência ou revelação mística que supere o vazio do mundo por meio do 31 Ibidem, p. 33.

Arranjos da poesia contemporânea A semelhança com o cristianismo é gritante, mas pode ser enganadora: a radicalidade do místico é um fenômeno genuinamente cristão na tradição ocidental, todavia, marginal. 35 Lembro que boa parte dos místicos cristãos são mulheres com delírios visionários, que sempre foram vistas com receio pelo patriarcalismo eclesiástico. Daí a onipresença e onipotência feminina do livro, a necessidade ascética de tornar-se mulher, que está mergulhada no jogo de vozes psicológicas encenando ora uma mulher no interior do homem (à moda da anima de Jung), ora reduplicando a mulher do eu poético com a mulher interior (o que já poderia ser visto como uma paródia perversa de Jung), além das relações com mulheres do mundo, que, contudo, só podem se dar em "espírito'; em mortificação e negação do ato sexual concreto, o qual não é permitido nessa ascese, que nesse ponto parece ser sem dúvida bem tradicional, e curiosamente prova ser hoje esteticamente possível, apesar de tantas e tantas odes ao sexo explícito na poesia atual (boa parte de qualidade duvidosa) e na indústria cultural pós-moderna, com as quais a perversão instrumentali-

32 Ibidem, p. 33.

34 Ibidem, p. 39.

33 Ibidem, p. 33.

35 Cf. Certeau, 1982, p. 115; Scholem, 1973, p. 20.

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zada de Renato joga meticulosamente: "Amor divino: castidade absoluta" ;36 "Sou um homem casto e uma mulher devassa. "37 De qualquer modo, a variedade e indefinição de vozes ou expõe ou sugere relações, identificações, distanciamentos e transferências potencialmente infinitas: "Eu sou o homem e eu sou a mulher." 38 Ainda mais radical que a abertura para o coloquial e não literário é o procedimento de introduzir textos de outras pessoas no seu próprio livro (conflitos psicológicos de amigas, amigos poetas, teóricos como eu falando do próprio Renato etc.). Não se trata de um caos total, pelo contrário, o livro nos espanta com a coerência dessa operação de simultânea despersonalização e procura de si mesmo por meio dos outros com a introdução de mais uma subversão conceitual (o que abre ao livro um interesse para as especulações estéticas feitas nas artes plásticas) no âmbito da poesia. O procedimento de introduzir textos alheios ao poema do autor certamente tem uma história na poesia, mas recentemente há um fenômeno importante acontecendo na poesia brasileira de nossa década. Alberto Pucheu, poeta que me parece especialmente antenado nesse sentido, fê-lo no uso de textos de mensagens eletrônicas recebidas pelo autor. Com muita perspicácia artística, Pucheu reconheceu que o que se pode fazer a partir da correspondência eletrônica, poderia também se fazer no meio da rua ou de uma reunião de amigos, daí o título de um texto ser "Arranjo para mensagens eletrônicas recebidas por mim"; de outro, "Arranjo para conversas transeuntes"; e, enfim, "Arranjo para sala de conversas:' 39 Pucheu conseguiu primeiro, desse modo, extrair do impacto da escrita virtual, que revitalizou a própria prática da escrita para além da gramática e do bom estilo, um novo modo de observar a linguagem coloquial estética e filosoficamente. Na poética do autor, trata-se de um aspecto importante da abertura do poeta - o "literato" - ao mundo, especificamente 36 Rezende, 2008, p. 38. 37 Ibidem, p. 50. 38 Ibidem, p. 38. 39 Pucheu, 2001, pp. 24-33.

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o mundo metropolitano. Claudia Roquette-Pinto, outra poeta crucial nesse contexto, nos revela novos sinais na orelha de Noiva: "aponta radicalmente para uma direção que estamos, muitos de nós, nos enveredando: rumo a uma dissolução entre as fronteiras da prosa e poesia; a apropriação, meio esquizofrênica, do discurso alheio( ... ) e nesse sentido( ... ) noiva é um livro extremamente contemporâneo:' Pucheu me parece ser, por conseguinte, o claro precursor desse processo que está culminando em Noiva e promete novos frutos, provavelmente da própria Claudia Roquette-Pinto. Francisco Bosco, na sua coluna de Cult sobre o livro, referiuse especialmente a esse ponto, 40 contrapondo-o ao neoparnasianismo encarnado por Carlito Azevedo na geração dos anos 1990: considera que a contemporaneidade de Renato consiste em associar a nova distensão da linguagem na poesia com o suposto arcaísmo da mística, que, paradoxalmente, legitima sua própria atualidade. Renato, com esse procedimento, encontra na sua poética atual do estilhaço uma coerência estética e ascética, não permitindo o coloquialismo cair no relativismo e na arbitrariedade, pois ele se mantém sempre em tensão com o drama existencial da busca ascética. Espetáculo do desejo místico pelo absoluto temperado de perversões e alimentado com conflitos sem fim, o livro de Renato talvez seja irônico sem querê-lo: mas quem disse que a mística não pode ser irônica? Sua autoironia (toda ironia forte é autoirônica, nunca meramente irônica com o outro) ironiza quem pensa ser a mística um mero fenômeno regressivo que se resume em livros de nova era. A mística é filosófica, psicanalítica e ontologicamente rica e poderosa, e pode se atualizar das mais diversas formas. Uma das formas mais estranhas é justamente Noiva; mas isso não deveria nos espantar: a mística é essencialmente 40 Francisco Bosco também cita o presente texto, que circulou anteriormente, em versão ainda precária, entre e-mails de amigos antes de chegar ao imprimatur neste livro. Talvez esse seja o destino não só do livro, mas de sua recepção crítica: misturar-se com a dinâmica dos e-mails e de suas leituras prévias (cf. Bosco, 2008, pp. 39-41). A "virtualidade" dos textos, previamente lidos e comentados no correio eletrônico, aparece na versão final impressa.

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estranha, jreak, outsider, para usar palavras pós-modernas a um fenômeno milenar.

Alma feminina: sedução da renúncia O nome do livro está totalmente ligado à história da mística, não só certamente da indiana, da qual o autor é praticante, mas também da mística cristã ocidental, que é surpreendentemente desconhecida em boa parte dos estudos de modernidade, apesar de ser parte integrante essencial da literatura e da passagem da teologia para a filosofia moderna. A "noiva" tem como pano de fundo tradicional a ideia da alma enquanto ente simbolicamente feminino que espera a união divina com seu noivo, Jesus, seguindo o modelo do amor cortês da sociedade medieval aplicado à evolução espiritualY A referência mais canônica aqui, além do próprio "Cântico dos cânticos" (do qual essa interpretação setornou tradicional), são os poemas de São João da Cruz (século XVI) ("Cântico espiritual'; "Chama de amor viva"), mas a ideia já está presente e desenvolvida antes dele, não só por sua contemporânea Teresa D'Ávila, como também por uma série de místicas alemãs dos séculos XI-XIII (que influenciaram o místico e teólogo especulativo Meister Eckhart), tais como Gertrud von Helfta, Mechthild von Magdeburg, Hildegard von Bingen, entre outras de outras nacionalidades. 42 Amy Hollywood, sem dúvida uma das maiores teóricas feministas da mística, bem munida da teoria psicanalítica e do pósestruturalismo, afirma que o cânone eclesiástico e ocidental colocou em relevo os místicos homens, que, segundo especialistas atuais, tendem a ser mais abstratos, especulativos e negam expli. citamente a sensualidade e sensibilidade enquanto ponto mats elevado da experiência mística. Isso fica claro no pensamento de São João da Cruz (a noite dos sentidos não tolera, no grau mais elevado da hierarquia de contato com o divino, nenhum tipo de visão ou sensação) e Eckhart (o abandono do corpo, do eu e do mundo e portanto de qualquer experiência visionária, renun-

ciando até mesmo a ela, para que Deus recompense em dobro o que foi renunciado na herética ideia do homem esvaziado "tornar-se Deus"). As irmãs místicas, diferentemente, relatariam visões, sensações e tendem a ser mais narrativas. Hollywood argumenta que essa oposição é forjada e que encontramos elementos "femininos" em Eckhart, indubitavelmente influenciado por místicas beguinas, e "masculinos" nas místicas. De qualquer forma, a somatização da experiência feminina era essencialmente subversiva, ainda que estivesse também se direcionando ao plano espiritual- portanto, ainda está longe de se assemelhar a uma afirmação moderna da sensibilidade. Com esses dados à mão, parece-me que Renato está mais próximo da suposta mística feminina, ainda que por aspiração. Contudo, tais dualismos, apesar do esforço de contribuição teórica, são falsos, próprio de muitas teses ainda dicotômicas. A ascese tipicamente moderna de chegar à experiência mística através da sensibilidade, e não fora dela, é aqui assumida, mesmo que para corroborar, no fim das contas, com a renúncia da sensibilidade e da sexualidade. Especialmente interessante se torna a dialéticada relação com a sensualidade. Ela não é meramente negada, mas renunciada sensualmente (daí a ideia de o autor querer ser, de sua amante ou do chamado "tigre'; não "o homem de sua vida, mas de sua morte:' 43 Trata-se de um desdobramento de São João da Cruz, que seduz o leitor com poesias de amor para abrir o caminho da renúncia ao erotismo, que erotiza a renúncia ao erotismo - o texto poético seduz eroticamente o espírito para que renuncie ao corpo, e iguala mortificação da vida sensorial com nascimento da vida espiritual. 44 Isso não é uma simples brincadeira com o mundo que termina em ortodoxia; antes, uma necessidade estratégica da ascese diante da onipotência de "Afrodite': Nesse sentido, a mística de Renato seria bem mais tradicional do que Georges Bataille, por exemplo. O que seria profícuo analisar é que Renato toca aqui na contradição da mística erótica de Bataille que, por rebeldia

41 Cf. Perrin, 2001, pp. 5-7. Em Bernardo de Claraval há uma espécie de misticismo nupcial. 42 Cf. Hollywood, 2002, pp. 5-10.

43 Rezende, 2008, p. 37. 44 "Assim é que a alma, quando ama, longe de temer a morte, antes a deseja" (Cruz, 2002, p. 70}.

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filosófica nietzscheana e filiação aos poetas malditos franceses, tentou conceber uma mística da perdição e de uma certa "demonização'; ou sacralização afirmativa da profanação, e cai na contradição de não desejar a iluminação, negar o projeto e afirmar o puro instante, mas que periga perder-se demais no vazio sem projeto ou ideal, perigo que toca em questões éticas. Ainda assim, Bataille é coerente com o desencantamento da mística medieval e a tentativa de sua retomada "ateológica:' 45 Não posso desenvolver as razões e a crítica de Bataille, mas é notável que em Renato haja o afastamento de um certo ateísmo místico modernista em prol da reaproximação com a ascese tradicional nesse ponto, sem que, entretanto, recaia no tradicionalismo, embora, bem ao contrário, invente uma nova forma de secularização da mística, nova em relação ao seus já desconcertantes precursores recentes.

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As questões que mais afetam a condição humana, quando dela se toma consciência, passam necessariamente por seu papel no universo cada vez mais extraordinário e complexo que surge aos olhos da ciência e por sua possível ligação com o mistério insondável que o cerca. Em verdade, nos primórdios da história e da mais remota forma de cultura, as duas vertentes caminharam juntas, quando não formaram uma só: as perguntas pelo quem somos e o que fazemos aqui, muitas vezes, estiveram associadas intrinsecamente ao desejo de fazer ponte sobre o vazio em busca do que intuitivamente sentimos como promessa ou possibilidade de plenitude. A filosofia propriamente dita, mais além dos mitos fundadores -que, não importa onde apareçam, com ela conservam similitudes -, esteve pendente, para que fosse dada uma organicidade ao pensamento -livrando-o da dependência da memória, como explica Havelock ao tratar da invenção da escrita 1- de que a escrita se organizasse com a economia e a combinatória que os gregos souberam inventar no ocidente, sobre tentativas fenícias, babilônicas e egípcias. A polêmica sobre o valor da escrita e o que se perdeu com a oralidade posta em segundo plano (ela que sustentara um milênio de saberes fundantes das civilizações que por isso mesmo emergiriam para a história) está desde logo numa atualíssima discussão platônica registrada em Pedro (370 a.C.). Não vamos * Doutora em Letras pela PUC-Rio e professora de literatura Brasileira da mesma Universidade. l Cf. Havelock, 1996.

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retomá-la agora, mas vale registrar que foi a assunção do alfabeto que possibilitou a passagem dos recursos de linguagem pré-socráticos aos filosóficos, tais como nos chegaram, via retomada sucessiva do dito e registrado como texto, através de leituras e releituras. No comboio da escrita tem sua gênese a filosofia que concebe o conhecimento humano como fruto da contemplação e análise do mundo físico e meta-físico, onde residiriam os princípios e as causas primeiras; com a linguagem escrita o pensamento podia ser repetido, confirmado, desmentido, sofisticando-se a cada volta o debate sobre imitação, processo, forma e percepção. Pouco a pouco, a filosofia viu desgarrar a ciência como saber mensurável sobre o qual ainda cabia pensar e refletir "matematicamente" e também crescer a força da religião revelada, à qual passa a servir em bases argumentativas - "ancila theologie': Séculos depois da crise que afasta razão e fé às luzes do Renascimento (século XV), a sombra de um saber que corre à margem das linguagens científica e filosófica permanece íntegra, associada desde sempre a expressões que derrubam a lógica e metaforizam experiências em imagens e ritmos bastante originais. A mística não se deixou vencer pela emergência do pensamento lógico e da doutrina dogmática. Ela vê o invisível, escuta o inaudito e conhece por osmose, por experiência íntima, por "fusão" com o que busca. Loucura? Escândalo? Ou sabedoria, conforme queria Paulo escrevendo aos coríntios? 2 Os místicos efetivamente primam pela lucidez com que des-entendem o mundo e suas fronteiras. Cristãos ou não, hinduístas, budistas, mulçumanos ou judeus, a experiência mística não pede carimbo religioso ou doutrinário, não escolhe eruditos, nem provectos. A mística, enquanto experiência da sabedoria, não é obra da inteligência humana aplicada, mas sintonia com o inefável; deste modo, conserva uma ressonância com a filosofia enquanto busca do que permanece ainda insondável, insondado. O que faz a física, na perspectiva do astrônomo Marcelo Gleiser, é expandir as fronteiras do mistério,

tornando explicável o que era inexplicado: provar para crer. 3 O místico abdica deste caminho, do método, e se entrega ao crer para ver: visão é um termo onipresente entre os místicos, como a explicitar o que não está à vista. Em termos etimológicos, mística tem a mesma raiz de mistério e de misticicismo, mas não equivale a qualquer dos dois. Neste território do que não é acessível à razão "natural" a não ser por esforços de aproximação - tentativas de elucidar o mistério -, a mística recusa a índole irracional no ingresso ao sobrenatural, pois sua lógica não é a do absurdo, mas a do insólito que ignora os limites do dado e do habitual. Por esta perspectiva, o que sonda a mística é de natureza próxima ao que a filosofia foi abandonando à poética, não especificamente como uma área do conhecimento, mas como um modo e uma forma de conhecer, uma linguagem que não cabia no modelo clássico da metafísica, e que uma teologia, nela amparada, não logra justificar-se. Entre mística e filosofia não ocorre a oposição tradicional que prevalece entre mito e lagos. O mito, que pertence a uma tradição cultural e procura, pelo apelo ao sobrenatural, explicitar a origem do mundo e o funcionamento da natureza, da vida e valores de um povo, tem valor simbólico enquanto narrativa esotérica, que resiste à crítica e à reformulação frente ao pensamento filosófico-científico. Mitos há, estruturantes de uma sociedade, como longamente demonstrou Levi -Strauss na sua antropologia cultural; mitos, enquanto crenças não justificadas, se enfraquecem quando ocorre a crítica das ideologias que os sustentam. Mas sua poética, sua alegoria, seu imaginário não se apagam enquanto linguagem. E vale lembrar que a própria filosofia recorre ao mito como alegoria capaz de representar uma doutrina, caso da caverna, em A República, de Platão. Se, por um lado, a mística se resguarda destas aproximações, por outro não se pode esquivar de um uso que, por associações ao caráter mágico que se atribui a representações e práticas calcadas na irracionalidade e sustentadas na devoção cega, torna pejorativa sua referência. A mística dos místicos tem entrega à

2 Cf. 1Cor 1, 17-25.

3 Cf. Gleiser, 1997.

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visão, não à cegueira; é regida pela união e pela experiência de comunhão, e não de divisão e sectarismo; ela se contrapõe, por exemplo, ao uso metafórico que indica o fascínio da "mística do poder': Sua mística é a do saber, do conhecer por força de uma fusão que não oprime, mas liberta, conforme testemunha de místicos-poetas e poetas-místicos. De volta ao tema central, sobretudo na episteme da contemporaneidade, quando desenvolvida no plano da linguagem e da história, a filosofia admite os descentramentos que não experimentou ao longo de dois milênios até encontrar Nietszche. Com sua demolidora crítica ao centramento da verdade, ditada pelo homem ocidental e cristão, numa prática de leitura controlada a priori por valores de classes dominantes - que reverteram a revelação cristã para fazer Deus à sua imagem e semelhança -, a filosofia abriu espaço ao diálogo cortado anteriormente com diferentes áreas do saber e vem admitindo porosidades interdisciplinares, tal como a própria física quântica admite na perspectiva da complexidade. O passo que está por vir tem sua configuração na ideia de rizoma proposta por Deleuze, na qual os saberes em rede preterem raízes para se articularem em dimensões de equivalência, recusando a cisão profundidade/superfície e retomando o valor da oralidade. 4 A filosofia estaria em busca de uma razão pré-racional que a livraria das forças de repressão que pesam sobre o pensamento. É aí que se esboça um possível reencontro entre a filosofia e a mística. Entre os sons de uma e o silêncio da outra, a mediação da linguagem poética, que deve ao ritmo, à imagem, sua música e sua materialidade: não é disso que falam João da Cruz, Tereza de Ávila e outros místicos, com "música dos anjos" e "visão beatífica"?5 Na proposta de repensar a cultura na perspectiva da complexidade, Edgar Morin, desde há muito vem propondo a religação dos saberes e em especial a contribuição da poesia, da literatura para a educação e exercício do pensamento. 6 Suas obras em diá4 Cf. Deleuze & Guattari, 1995. 5 Cf. Cruz, 2003; Jesus, 2002. 6 Cf. Morin, 2001.

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logo com a biologia de Maturana e Varella, com a física de Bohr e a química de Prygogine alcançaram colocar em evidência a discussão sobre a transdisciplinaridade que a maioria dos estudiosos vê com resistência. Contudo, Morin vem enfatizando o papel das artes na construção de pontes - pontifícias - sobre os saberes de ordem múltipla. Enfim, o problema do conhecimento não deve ser um problema restrito aos filósofos, assim como cálculos e projeções não se circunscrevem aos economistas: fatores humanos podem desencadear efeitos inesperados no mercado. Para Morin, a identidade humana carece de uma convergência maior das ciências e das artes face a unidade do gênero e a diversidade de culturas, fazendo possível humanizar o homem e civilizar o planeta. Ao invés de enveredar pela sociologia ou pela psicologia, Morin clama pela presença da literatura e da poesia na educação. Para ele, a literatura é para os adolescentes como uma escola de vida e uma via por onde se adquire conhecimento. E continua, afirmando que se as ciências sociais veem categorias, e não indivíduos sujeitos a emoções, paixões e desejos, a literatura aborda os meios social, familiar e histórico, assim como o concreto das relações humanas, com uma força extraordinária, tal como podemos ver nos grandes romances de Tolstoi. Ao lembrar-nos que a complexidade do humano e, portanto, daquilo que ele sistematiza como conhecimento, passa pela linguagem literária, Morin integra o saber poético, alegórico, do inexplicável, na conjugação das percepções de mundo com as quais o homem o constrói e se constrói. E usa uma expressão significante em si: "a vida é para ser vivida poeticamente na paixão, no entusiasmo", palavra que os místicos conhecem no cotidiano de suas vidas, em geral, singelas: a vida bafejada pelo "sopro de Deus': E assinala que atualmente a ciência tem abandonado determinados elementos mecânicos para assimilar o jogo entre certeza e incerteza, da micro física às ciências humanas, tomando de Eurípedes uma reflexão que aparece no fim de três de suas tragédias: "os deuses nos causam grandes surpresas, não é o esperado que chega e sim o inesperado que nos acontece:' A esta ideia antienciclopedista de que o im-previsto integra o conhe-

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cimento, assim como a matéria escura integra a massa do universo, o filósofo agrega a interligação dos campos de saber para que se efetive uma mudança de pensamento, já que a concepção fragmentada e dividida do mundo impede a visão conjunta da realidade. Conjunta - e não uniforme. Na compreensão cada vez mais evidente de que fios interligam as perspectivas de mundo que tem o homem, assim como seus discursos, o paradigma da desconstrução na filosofia trouxe a estética e a ética para o espaço que haviam perdido frente à lógica e à política: uma palavra antes adstrita ao lugar das religiões, como perdão, circula da teoria da literatura ao direito, sem desconfianças intelectuais, por obra de Ricoeur e Derrida. 7 Se a teologia é menos um discurso sobre Deus que uma forma de apropriação existencial do mistério da fé; se a literatura deixa na contemporaneidade em lugar secundário a função de ser espelho da cultura para se ver valorizada no papel de provocar o homem para um encontro consigo mesmo, podem ambas interagir enquanto linguagens, cuja natureza escapa ao controle da sintaxe e da razão pura. Basta ler os salmos, os profetas e a poesia mística para adentrar um território de fronteiras indefinidas e expressões similares. Hoje não é mais raro que "teólogos reconheçam a literatura c.om~ um caminho privilegiado para uma adequada perspecttvaçao da salvação cristã, na qual a graça de Deus e o pecado do homem protagonizam o desconcertante drama da vida cotidiana'; registra J. C. Barcellos em sua tese sobre a obra de Julien Green. 8 Se a literatura é uma linguagem capaz de perscrutar 0 homem no conhecimento de si e do mundo e desdobrar os problemas de ordem filosófica que o atingem, ambas -literatura e teologia- acercando-se e dialogando sobre estas questões, oferecem à filosofia alternativas de linguagens e métodos para 0 mesmo fim. Contudo, é preciso considerar que a mística percorre e enuncia um campo do saber/conhecer/pensar que a filosofia contorna com a mesma desconfiança que usa para a poesia. É

Octavio Paz9 em Os filhos do barro quem cunha o termo "outridade" para designar a experiência de inacabamento da existência humana, que se manifesta na busca do tu, do outro com quem se sonha a plenitude, a inteireza: a poesia, linguagem que perscruta a si mesma, "diz o indizível'; o que não está nomeado, o inefável, o "outro absoluto'; na expressão de Lévinas. 10 Por isso a poesia troca os sinais da sintaxe, "dobra a língua'; segundo Barthes 11 em O rumor da língua, para forçá-la a dizer o que se experimenta sem conhecer previamente, e corresponde, segundo Bataille em A literatura e o mal, ao acesso à continuidade do ser, em que morte e vida se fundem: aí, justamente no frêmito do encontro, o estremecimento erótico do místico e do poético. 12 No espaço místico tudo é impronunciável, a língua cala e o silencio fala num esforço de violência contra a linguagem, investindo contra os limites do interdito; violência religiosa porque deseja "saltar" para fora de si- da linguagem-, em um movimento para o silêncio do inefável. "A poesia nasce do silêncio e no balbuciamento, no não poder dizer, mas aspira irresistivelmente à recuperação da linguagem como uma realidade total" - completa Octavio Paz 13 em Signos em rotação. O real, a verdade para os gregos iniciados na filosofia, continuamente intermediados por representações, não cabe na linguagem articulada e regrada. Ele escapa e, segundo Vilém Flusser em Língua e realidade, somente a poesia, a mística e a matemática pura experimentam abordar os limites e fazer-nos "ultrapassar a condição humana': Na impossibilidade de chamar pelo nome o inarticulado, caberia à tautologia da lógico-matemática e da mística poética apresentá-lo. 14 Loucura, escândalo e sabedoria a um só tempo. A mística reclama a poética para indiciar as raias do não-saber e acompanhar a filosofia em seu avesso, evitando ordenar, sistematizar

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7 Cf. Ricoeur, 1995; Derrida, 1996. 8 Cf. Barcellos, 2001.

9 Cf. Paz, 1994. lO Cf. Lévinas, 1991. l l Cf. Barthes, 1998.

12 Cf. Bataille, 1989. 13 Cf. Paz, 1972, p.l20. 14 Cf. Flusser, 2004.

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uma representação sobre o vazio, sobre o nada, intervalo entre o homem e o real inacessível, onde a linguagem ordinária constrói a realidade, substituindo, apontando, jogando com a palavra. Wittgenstein, em seu Tractatus, concorda que se deva calar sobre o que não se pode falar. 15 É preciso recorrer à poesia mística para dar um fecho provisório a esta curtíssima reflexão. Os escritos clássicos de Tereza de Ávila e João da Cruz, místicos e poetas espanhóis quinhentistas, os do sufista Rumi (século XIII) coincidem na metáfora da união com o todo, o Uno, como a culminância do saber e do sabor da verdade, sinônima ao amor: "Já não tenho outro ofício e amar é meu exercício'; suspira João; ecoa Rumi: "A presença do amado é como a chama de amor que, quando se eleva, consome tudo o que não é o bem amado";"( ... ) que esta divina união/ do amor com que eu vivo. Faz a Deus ser meu cativo/ e livre meu coração: mas causa em mim tal paixão/ ver a Deus meu prisioneiro/ que morro porque não morro'; exulta Tereza, no paradoxo de quem pede a morte para viver em plenitude, ambos citados por Marco Lucchesi em O canto da unidade. 16 Justamente a linguagem cabível para assinalar a impossibilidade da linguagem como expressão de um conhecimento que ultrapassa a razão é a linguagem da contradição, do paradoxo que põe a nu o esforço vão do discurso lógico para dar conta do desejo irrefreável de romper com a descontinuidade. Mas o salto é mortal, segue Bataille, não como autodestruição, mas como retorno ao silencio originário da palavra. 17 Entre a filosofia, o amor à sabedoria e a mística, o amor ao absoluto - Deus ou vazio - a palavra possível é a poiética.

15 Cf. Wittgenstein, 1979. 16 Cf. Lucchesi, 2007.

17 Cf. Bataille, 1989.

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O aprendiz do belo: a arte-ética em Plotino1 Marcus Reis Pinheiro·

A filosofia de Plotino busca ir além da filosofia. Uma prática discursiva que se desenvolve em meio à impossibilidade de dizer aquilo que é o mais importante, um discurso que, ao falar, procura conclamar ao silêncio. Nesta tarefa, em que se utilizam armas que se deve abandonar - o próprio discurso -, a filosofia de Plotino se toma uma experiência apaixonada por aquilo que busca. A paixão, éros, pelo mundo inteligível e, além deste, por aquilo que a tudo transcende, o Uno-Bem, é a tônica da obra de Plotino, e na medida em que a estética se reporta ao belo, que é objeto do éros, deve-se pensar toda obra de Plotino como uma estética. No entanto, é bastante delicado afirmar, sem mais, que há uma estética em Plotino, mesmo sendo o licoplitano2 particularmente conhecido pela sua contribuição aos questionamentos sobre a estética. Ao falarmos de estética em Plotino, não podemos deixar de lado o fato de que não há, na antiguidade, uma investigação que seja exclusivamente estética: ao se tratar sobre o belo e a arte, nunca se deixa de lidar com temas éticos, epistemológicos e ontológicos. Assim, veremos neste artigo o modo como Plotino lida com os temas da estética, sempre nos remetendo às compreensões mais profundas de sua filosofia. 1 Gostaria de agradecer à Faperj pelo apoio financeiro na realização de minha pesquisa de pós-doutorado sobre Plotino. O presente artigo foi publicado na revista eletrônica Viso (www.revistaviso.com.br). *Doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor de Filosofia da UFF. 2 Plotino nasceu em Licopolis, no Egito, em 203 d.c., e morreu em 270 d.c. Sobre sua vida, ver Vita Plotini, texto de seu aluno Porfírio que, na maioria das edições, é publicado junto com as Enéadas.

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O aprendiz do belo

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Como forma de generosidade, começamo s este artigo apresentando algumas noções gerais das Enéadas e da metafísica de Plotino, que nem sempre são tão óbvias para qualquer leitor. A obra de Plotino foi editada por seu aluno Porfírio, que a organizou em seis volumes com nove tratados cada um, e, por isso, cada volume foi denominad o Enéada (que contém nove), formando ao todo 54 tratados. De acordo com Porfírio, a organização das Enéadas é temática: a primeira lida com ética, a segunda e a terceira com física, e as restantes seguem a ordem hierárquica da metafísica de Plotino; a quarta lida com a alma, a quinta com o intelecto, a sexta com o Uno. Para alcançar tal perfeição sistemática, o aluno-edito r teve que dividir e reagrupar certos tratados na ordem que ele acreditava ser a melhor, mas teve também a generosida de de nos deixar a suposta ordem cronológica em que Plotino teria escrito estes tratados. Assim, ao citar um tratado, normalmen te se cita tanto o número cronológico em que o tra3 tado foi escrito quanto a localização em que Porfírio a colocou. A descida a partir do Uno 4 Nas Enéadas, Plotino postula três hipóstases que comporiam a realidade total, o Uno (hén), o intelecto ou espírito (nous), e a alma (psyché), e as organiza hierarquica mente, tendo o Uno como hipóstase superior a partir da qual se processaria o intelecto, e, deste, a alma. A imagem cunhada por Narbonne, de um chafariz com três quedas, cada uma jorrando água em uma grande circunferência que transborda para a próxima, é bem clara para entenderm os o imbricado sistema plotiniano. Partindo da passagem da República em que o Bem é postulado 3 Por exemplo: "V, 8 [31]. 7, 10-12" trata-se do oitavo tratado da quinta enéada, que é o trigésimo primeiro que Plotino escreveu. Mas a citação também indica que se trata das linhas lO até 12 do sétimo capítulo. 4 A palavra "hipóstase'; em português (que em seu sentido filósofico é sinônimo de "substância'; mas que quer também dizer "sedimento"), é diretamente derivada de hypóstasis do grego, que significa algo que existe por si mesmo, algo realmente existente e unicamente dependete de si mesmo. Etimologicamente, a palavra é composta pelo prefixo hypo, que quer dizer "por baixo'; e stasis, "posição': Assim, ela é também etimologicam ente um sinônimo para substância (sub-= embaixo, -stância =estar).

como sumamente transcendente, isto é, além do ser, epékeina tês ousías, Plotino formula uma radical simplicidade para o princípio de toda a realidade, o Uno-Bem. Apesar destes qualificativos (Uno e Bem), o Uno está além de toda linguagem, e esse nome, Uno, é apenas uma forma negativa de afirmar-lhe a falta de multiplicidade. Daqui provém a chamada teologia negativa, que será tão importante em Dionísio Areopagita. O Uno permanece eternamente em seu próprio ato, nos diz Plotino utilizando um linguajar aristotélico. Em verdade, o Uno não tem necessidade de nada, permanece (menein) em seu ato autocriativo, mas, no entanto, há algo que irradia dele, que se processa a partir de seu ato. Uma das questões principais para a filosofia antiga, de acordo com o próprio Plotino, 5 era como do Uno poderia ser gerado o múltiplo. As hipóstases se diferenciam exatamente quanto ao maior número de seres, já que em cada hipóstase há maior multiplicidade e complexida de. Assim, o intelecto é mais múltiplo que o Uno, e, a alma, mais múltipla que o intelecto. Para sermos exatos, Plotino propõe três etapas de constituição de uma hipóstase subsequent e: (1) cada hipóstase permanece em si mesma, mas com isso também é (2) gerada a processão que produz uma massa informe, que precisa (3) se voltar para a hipóstase anterior e a contemplar , e assim se formar a si mesma. Esse terceiro passo, de acordo com Gatti, 6 é talvez o aspecto mais genial e original da filosofia de Plotino. Vamos descrever esse processo de modo sucinto. Em um primeiro momento, 7 o Uno permanece em seu próprio ato, sem se importar ou se voltar para nada além de si mesmo. No entanto, há uma processão que sai a partir dele, formando uma massa ainda não determinad a. Essa massa, às vezes qualificada 5 V, I [10]. 1. 6 Cf. Gatti, 1996, p. 31. 7 É sempre importante lembrar que a diferença entre tempo lógico e tempo cronológico, já presente no Timeu de Platão, é usada por Plotino ao descrever o processo de geração das hipóstases. Apenas em um sentido figurado é que podemos dizer que uma hipóstase vem temporalmen te depois da outra. O depois deve ser entendido apenas logicamente, e não cronologicam ente. Ver Timeu, 34a-c.

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como "ser indefinido'; volta-se, epistrophé, 8 para o Uno e faz deste seu objeto principal, contemplando-o: nessa contemplação e conversão desse ser indefinido em direção ao Uno, forma-se o espírito, ou intelecto, o noús. Como nos diz Reale, "deve-se salientar que o poder e a atividade do Uno não geram sem mais o noús e sim algo de 'indeterminado; ou 'informe; e este se determina e se torna 'mundo das formas' voltando-se para o Uno, olhando e contemplando o Uno (... ):' 9 O ato próprio do noús é a contemplação permanente do Uno, só que há um "primeiro movimento do noús'; que precede seu retorno ao Uno, e é chamado por Plotino de "matéria inteligível" ou "alteridade" ou até mesmo "Ser': O intelecto se torna definido em sua contemplação do Uno e é, então, qualificado como o Uno-Muitos, 10 o cosmos inteligível, identificado com o mundo das ideias em Platão. 11 O intelecto de Platina é a união de Ser e pensamento, feita já por Parmênides, 12 já que é a unidade do inteligível com a inteligência, do sujeito e do objeto do pensamento. As qualificações mais recorrentes da hipóstase do noús são Ser, vida e pensamento, e a partir de sua atividade principal provém novamente uma outra hipóstase: a da psyché. Além de se voltar para o Uno, o intelecto também se volta sobre si mesmo, pensando a si mesmo - ele é puro pensamento que interconecta todas as ideias- e nessa atividade gera para além de si outra for-

ma ainda indefinida. Da mesma maneira, essa forma indefinida deve se voltar e contemplar o intelecto: 13 "a alma é o pensamento do intelecto e é, num certo sentido, a sua atividade, assim como o intelecto é pensamento e atividade que se refere ao Uno:' 14 Assim, dizemos que a alma pensa, pois esse é o seu ato - se voltar para contemplar o intelecto - mas, em verdade, é apenas no noús que reside o pensamento puro. Novamente, a alma, em seu ato puro- a contemplação do noús -, gera, para além de si, uma realidade que é tão distante do primeiro princípio que já não tem mais força de constituir um ente autossustentável: a matéria é um não-ser. 15 Em verdade, o mundo sensível seria algo que surge da própria alma como um reflexo daquilo que é mais próprio dela, isto é, de seu ato mais elevado, que é a contemplação do noús. Neste sentido, seguindo Platão, o mundo sensível seria uma atividade da alma do mundo que copia o mundo inteligível. 16

8 O termo "conversão" é usado para designar o ato das hipóstases inferiores frente às superiores. 9 Reale, 1994, p. 459. 1oTal termo teria sua origem na interpretação de Plotino do diálogo Parmênides (l44e). Ver também Brisson (1999). 11 No entanto, a multiplicidade do intelecto não é tão simples assim, como mostra Reale: "Enquanto incorpóreos, o Ser e o intelecto não podem ser entendidos como muitos, como se fossem divididos nas várias ideias, ou como se fossem fracionados em partes fisicamente separadas umas das outras ( ... )" (Reale, 1994, p. 465). Há uma alteridade inteligível, da qual já falou Platão no Sofista, que configura a multiplicidade do intelecto. 12 O pré-socrático Parmênides é uma fonte muito importante para nosso filósofo. "Portanto, se é Ser também é intelecto, e se é intelecto também é Ser, e o pensar vai juntamente com o ser" (V, 6 [24]6). Ver também v; l [lO], 8; III, 8 [30], 8; Vl, 7 [38], 41; I, 4 [46], lO.

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A subida rumo ao Uno Uno, intelecto e alma, processões e conversões, imagem e original e original que copia outro original, o sibilino sistema de Platina: um chafariz com três quedas, cada uma jorrando água em uma grande circunferência que transborda para a próxima. Contemplamos argumentos alabirintados, e a beleza será nosso fio de Ariadne rumo à saída. Sigamos em frente para pensar de que modo a ética se manifesta no seu sistema. Novamente, seguindo bem de perto Platão, Platina afirma que o objetivo máximo da alma humana é retornar para lá (ekei), aquele lugar mesmo de onde ela se originou, e o convite para 13 v; l [10]3. 14 V, l [lO] 6. 15 Há diversas passagens em Plotino sobre a matéria, algumas delas são as seguintes: 11, 4 [12], 16 (matéria como não-ser); I, 8 [51], 14 (matéria não faz unidade com a forma); Ill, 6 [26], 13 (espelho sem forma que reflete o nous) etc. 16 Toda esta descrição que acabamos de fazer pode parecer dogmática e sem fundamentos razoáveis. No entanto, devemos situar a metafísica de Plotino dentro da tradição platônica que, com o chamado médio-platonismo, já pensa a realidade em uma estrutura triádica. Cf. Dillon, 1977.

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este retorno é feito pela beleza. A beleza se encontra no centro das especulações éticas de Plotino, pois é ela que naturalmente solicita o homem a galgar os degraus da ascese. Na medida em que há uma supremacia da beleza na filosofia de Plotino - beleza esta que se manifesta tanto na arte (tekhné) quanto no rosto do amado (eromenos), quanto nas especulações racionais (lógos)- o artista (mousikós), o amante (erastés) e o filósofo têm certo privilégio nesta jornada de ascensão rumo ao princípio. Na nossa tentativa de.descrever a noção de beleza em Platina, perceberemos sua caracterização dupla e parcialmente contraditória: a beleza se encontra e ao mesmo tempo não se encontra em cada um dos níveis desta subida. Na medida em que a sua metafísica hierárquica é estruturada em níveis que copiam os níveis anteriores, a beleza que se encontra no noCts estará também presente, de alguma maneira, em cada uma das esferas inferiores. Portanto, ao passo que a beleza se encontra mais intensamente em uma esfera superior, mesmo nesta maior intensidade ainda será necessário ultrapassá-la. O original, que antes era o paradigma, se torna nova cópia, convidando para novo movimento de superação. Mesmo com toda paixão da descoberta de um novo grau de intensidade da beleza, a saudade do além retorna, insidiosamente, a nos acordar para continuar a jornada. Fica claro que a beleza é tão cara a Plotino porque também o era o divino para Platão. No mestre, assim como no nosso neoplatônico, o esforço pessoal de transformação é o meio de compreender o belo: estética e ética. Tanto no célebre Banquete, no discurso da Diotima, 17 quanto no Pedro, especialmente no segundo discurso sobre éros, 18 Platão apresenta claramente a busca pela beleza vinculada a uma ascese. 19 De acordo com a mais íntima conexão entre ética e estética, a possibilidade de compreensão da beleza está no exercício (áskesis) de transformação pessoal rumo aos níveis superiores da realidade. 17 Que se encontra inserido no discurso de Sócrates (201d-212c). 18 244a-257b. 19 A importância do termo askesis, utilizado filosoficamente primeiro pelos cínicos, é fundamental em Plotino.

Citando o próprio Pedro, 20 Plotino, em um de seus tratados, 21 irá afirmar que há três naturezas humanas aptas à viagem rumo a estes níveis superiores: a do músico, 22 a do amante e a do filósofo. O músico e o amante começam seu processo de aprendizagem pelo próprio mundo sensível; já o filósofo consegue naturalmente perceber a beleza dos outros níveis. Os primeires devem, então, aprender sobre a origem da beleza. Mas antes de passarmos para a superação do sensível; vale a citação da definição de beleza sensível: "afirmamos que é pela participação nasjdeias que estas coisas são belas:' 23 Ser belo é participar nas formas perfeitas, que residem no noCts e são contempladas pela alma; certamente não se esgotando no sensível. Assim, tal amor ao sensível deve ser refinado e aprofundado. Como na escalada erótica proposta por Diotima no Banquete, 24 o amante e o músico precisarão aprender que a beleza contemplada no mundo sensível- para um, no rosto do amado, para outro, no encadeamento das notas e da poesia - provém de uma outra ordem da realidade, cuja descoberta é necessária. O primeiro passo da subida consiste em perceber certos entes belos, cuja existência não pode ser restrita ao mundo corpóreo: as ciências, as virtudes, as atitudes belas não podem ser compreendidas como realidades corpóreas. O amante e o músico devem ser educados a ver beleza também nos objetos que não os sensíveis, e devem perceber ali sua maior intensidade. Dá-se, então, um primeiro passo na subida ética proposta por Plotino: o encantamento com a beleza do mundo sensível e a corresponden te saída para outro nível. Ao ultrapassar o nível sensível, percebe-se a vastidão da psyché. As virtudes, os discursos, o movimento matemático das 20 "( ... )mas a alma que viu maior quantidade de (formas) entrará no nascimento de um homem .filósofo ou de um amante do belo (philokalou) ou de um músico (mousikou) ou de um amante (erotikou)" (248d). 21 I, 4 [20], 1 (Sobre a dialética). 22 Vale salientar que a natureza de um músico, o amante das musas, é aquela vinculada a todas as ditas belas-artes. 23 "Metochêi eídous phamen taúta" (1, 6 [1], 2, 13-14). 24 210a-212b.

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esferas celestes, todas estas realidades passam a encantar aquele aprendiz que começa a superar suas antigas paixões, descobrindo, mesmo que dolorosamente, novas intensidades daquilo mesmo que amava. No entanto, ao alcançar o nível da psyché, o aprendiz do belo ainda se encontra em uma multiplicidade de elementos que proporcionam beleza. Dentro do que Plotino propõe para a psyché, podemos distinguir pelo menos quatro níveis: a alma individual, a alma das esferas celestes, a alma do mundo e a alma-hipóstase, esta última sempre voltada para o noús. Cada um destes níveis da psyché de Plotino valeria uma tese à parte, mas podemos indicar alguns traços gerais. A psyché não se restringe apenas ao âmbito individual, que organiza e doa beleza ao homem, mas também abarca a alma do mundo, que organiza e doa beleza para o próprio cosmos. Há kósmos, isto é, ordem e beleza na própria natureza, e seus movimentos de nascimento e morte são presididos por uma força que a tudo comanda. As estações se seguem ordenadamente, os animais procriam e morrem respeitando uma ordem, as chuvas e rios parecem saber que são governados e supervisionados por uma alma do mundo que, como uma grande mãe, dispõe e cuida o melhor possível de tudo o que ocorre. Ao levantar a cabeça para os céus, nosso aprendiz do belo percebe ainda que o próprio movimento cíclico cósmico é ordenado pelo que há nele de noético, o que há nele de inteligível: o movimento matemático dos astros. 25 Surge, para o aprendiz extasiado de beleza, o inteligível, que a própria alma contempla em seu organizar diário das coisas do mundo. A maior intensidade psíquica de belo se torna ainda pequena, e a nostalgia do mais se incide no coração daquele que ama o belo. Continua-se, rumo ao noús. Surge, refulgente, o novo vasto mar de beleza, 26 aquele mesmo que é paradigma das atividades anímicas. Percebe-se um 25 Vale uma ressalva interessante: tanto Platão quanto Platina não negam absolutamente a beleza do mundo corpóreo, mas defendem que tal beleza provém de uma esfera superior que contém mais radicalmente aquilo que se deseja. 26 "tà polu pélagos tou kalou" (Banquete, 210d4). Platina interpreta a passagem da ascese erótica da Diotima, em que o aprendiz de belo se volta para as belezas da ciência, como o processo de se alcançar o nível noético.

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novo nível de beleza, o do naus, pois a subida erótica não termina no nível da psykhé. O aprendiz de beleza deve perceber que o ato específico da alma, aquele que proporciona ser e beleza, é a contemplação de uma esfera ainda superior, aquela do naus, do intelecto. Ao se identificar com o inteligível, a alma encontra aquilo que ela realmente ama, a beleza em si mesma. Nesta hipóstase, tudo brilha, tudo cintila com o resplendor da beleza que perpassa todas estas realidades superiores: as formas. Na medida em que estamos no âmbito dos entes que realmente são, cada uma das realidades conterá o máximo de beleza e perfeição. O estatuto deste mundo inteligível não é pouco complexo, e a sua investigação e descrição completa não cabe neste artigo. Mas, uma imagem muito elucidativa para compreendê-lo é aquela apresentada no capítulo 9 do tratado 31 (Sobre a beleza inteligível). Plotino nos sugere que imaginemos o cosmos como uma grande esfera e que, então, retiremos tudo que há de corpóreo (áphele tês hyles) e que retenhamos apenas a forma do cosmos, como uma imensa esfera transparente (epí sphaíras diaphanous)Y Esta imagem representa muito bem a interconexão entre todos os entes presentes no naus: ao contemplar qualquer parte, estaremos contemplando o todo. Todas as formas contêm, de alguma maneira, a totalidade do mundo inteligível e, assim, tudo ali é pura beleza. Trata-se de um íntimo contato de tudo que ali se apresenta, de uma intrínseca conexão mútua. Tanto o artista quanto o amante encontram aqui o nível máximo de sua inspiração neste complexo de formas, que é a hipóstase do naus. No entanto, a jornada ainda não acabou. Novamente, o original se torna cópia, e nos preparamos para nova subida. Plotino afirma claramente que mesmo sendo esta a esfera da beleza, não se trata, no entanto, do último nível da realidade. Há algo ainda hyperkalos, 28 além do belo. A delicadeza e sutileza de Plotino 27 Há certa recorrência desta expressão em Platina: ver li, 1 [40], 7, 47-48; rv, 5 [29]; li, 9 [33], 17, 4. 28 Termo provavelmente cunhado pelo próprio Platina. Ver V, 8 [31], 8 e 13; V, 5 [32], 12; Vl, 7 [38], 3229 e 33, 20. Esta ideia já aparece na República, na famosa imagem do Sol como sumo transcendente (509a7).

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ao tentar qualificar tal realidade sumamente transcendente - o Uno - como sendo ainda objeto do desejo humano, e ao mesmo tempo encontrando-se além de todo ente, é bastante interessante. Como já foi dito aqui, o Uno é epékeina tês ousías, é além de todo ser, e, portantcr;
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