Miguel Reale - Fontes e Modelos Do Direito

April 22, 2019 | Author: Wilberto Holanda | Category: Sources Of Law, Trials, Statutory Law, Ciência, Sociology
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Livro fundamenta na área do direito....

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FONTES E MODELOS DO DIREITO lara lara um novo paradigm pa radigm

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MIGUEL Filósofo, Filóso fo, advogado, advogado, professor profes sor e poeta, poeta, Migu Miguel el Reale desem des em penhava com excelência ímpar todos esses papéis. Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1934, ano em que publicou seu primeiro livro: 0 Estado moderno.  moderno.  Em 1940, ao concluir o Doutorado pela mesma instituição, instituição , formulou formulou sua Teor Teoria ia tridimens tridim ensiona ionall do Direito Direito  obra-prima mundialmente aclamada. No ano seguinte atingiu o mais alto degrau da carreira acadêmica com a Cátedra de Filosofia Filoso fia do Direito, Direito, também tam bém na Universidade Univers idade de São Paulo. Professor por vocação, fecundou o espírito de seus discípulos, instigando-os a refletir profundamente sobre as intrincadas questões quest ões da seara jurídica.

Colecionou prêmios e condecorações nacionais e interna cionais e escreveu dezenas de livros nas mais diversas áreas: filosofia, teoria geral do direito, teoria geral do Estado, ciência política e direito privado, além de obras literárias que o levaram a ocupar a Cadeira n. 14 da Acade mia Brasileira de Letras. Boa parte de seus trabalhos, traduzidos para para diversas divers as línguas, conduziu conduziu seu pensam en to para além das fronteiras nacionais. Miguel Reale foi, ainda, Reitor da Universidade de São Paulo e Secretário de Ju stiç st iça a do Estado de São São Paulo Paulo por por duas vezes. vez es.

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Data de fechamento da edição: 1a-6-1994

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PRINCIPAIS OBRAS DO AUTOR O Estado Moderno. 1935. 3 edições esg. Formação da Política Burguesa.  1935. esg. O Capitalismo Internacional. 1935. esg.  Atualidades de um Mundo Antigo. 1936. esg.  Atualidades Brasileiras. 1937. esg. Fundamentos do Direito.  1940. esg. 2. ed. Revista dos Tribu nais, 1972. Teoria do Direito e do Estado. 1940. esg. 2. ed. 1960. esg. 3. ed., rev., Livr. Martins Ed., 1972. esg. 4. ed., Saraiva, 1984.  A Doutrina de Kant no Brasil. 1949. esg. Filosofia do Direito. 1. ed. Saraiva, 1953.16. ed. Saraiva, 1994. Horizontes do Direito e da História. Saraiva, 1956. ed. 1977. Nos Quadrantes do Direito Positivo. Ed. Michalany, 1960. Filosofia em São Paulo. 1962. esg. 2. ed. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1976.  Parlamentarismo Brasileiro. 2. ed. Saraiva, 1962.  Pluralismo e Liberdade. Saraiva, 1963. Imperativos da Revolução de Março. Livr. Martins Ed., 1965.  Poemas do Amor e do Tempo. Saraiva, 1965. Introdução e Notas aos "Cadernos de Filosofia ”, de Diogo Anto nio Feijó. Ed. Grijalbo, 1967. Revogação e Anulamento do Ato Administrativo. Forense, 1968. 2. ed. 1980. Teoria Tridimensional do Direito. Saraiva, 1968. Revolução e Democracia. Ed. Convívio, 1969. 2. ed. 1977. O Direito como Experiência. Saraiva, 1968.  Direito Administrativo. Forense, 1969.  Problemas de Nosso Tempo. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1969.  V

Lições Preliminares de Direito. Bushatsky, 1973.21. ed. Sarai va, 1994. Lições Preliminares de Direito. Ed. portuguesa. Coimbra, Livr.  Almedina, 1982. Cem Anos de Ciência do Direito no Brasil. Saraiva, 1973. Experiência e Cultura. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1977.  Política de Ontem e de Hoje (Introdução à Tfeoria do Estado). Saraiva, 1978. Estudos de Filosofia e Ciência do Direito. Saraiva, 1978.  Poemas da Noite.  Ed. Soma, 1980. O Homem e seus Horizontes. Ed. Convívio, 1980. Questões de Direito. Sugestões Literárias, 1981. Miguel Reale na UnB. Brasília. 1982.  A Filosofia na Obra de Machado de Assis -Antologia Filosófi ca de Machado de Assis. Pioneira, 1982. Verdade e Conjetura. Nova Fronteira, 1983. Obras Políticas (1“ fase —1931-1937). UnB, 1983. 3 vols.  Direito Natural /  Direito Positivo.  Saraiva, 1984., Figuras da Inteligência Brasileira. Tempo Brasileiro Ed. e Univ. do Ceará, 1984. Teoria e Prática do Direito. Saraiva, 1984. Sonetos da Verdade. Nova Fronteira, 1984.  Por uma Constituição Brasileira. Revista dos Tribunais, 1985. Reforma Universitária. Ed. Convívio, 1985. O Projeto de Código Civil. Saraiva, 1986. Liberdade e Democracia. Saraiva, 1987. Memórias, v. 1. Destinos Cruzados. Saraiva, 1986. 2. ed. 1987. Memórias, v. 2. A Balança e a Espada. Saraiva, 1987. Introdução à Filosofia. Saraiva, 1988. 2. ed. 1989. O Belo e outros Valores. Academia Brasileira de Letras, 1989.  VI

 Aplicações da Constituição de 1988. Forense, 1990. Nova Fase do Direito Moderno. Saraiva, 1990. Vida Oculta.  1990. Temas de Direito Positivo. Revista dos Tribunais, 1992. Face Oculta de Euclides da Cunha.  1993. Estudos de Filosofia Brasileira.  Instituto de Filosofia LusoBrasileira, Lisboa, 1994.

PRINCIPAIS OBRAS TRADUZIDAS Filosofia del Diritto.  Trad. Luigi Bagolini e G. Ricci. Torino, Giappichelli, 1956. 11 Diritto come Esperienza,  com ensaio introd. de Domenico Coccopalmerio. Milano, GiufErè, 1973. Teoría Tridimensional del Derecho. Trad. J.A. Sardina-Paramo. Santiago de Compostella, Imprenta Paredes, 1973. 2. ed. Universidad de Chile, Valparaiso (na coletânea "Juristas Perenes"). Fundamentos del Derecho.  Trad. Julio A. Chiappini. Buenos  Aires, Depalma, 1976. Introducción al Derecho.  Trad. Brufau Prats. Madrid, Ed. Pirámide, 1976. 2. ed., 1977.10. ed. 1993. Filosofía del Derecho.  Trad. Miguel Angel Herreros. Madrid, Ed. Pirámide, 1979. Experience et Culture.  Trad. Giovanni Dell'Anna. Bordeaux, Éditions Biere, 1990.

 VII

 A  Antonio Paim Celso Lafer João de Scantimburgo e Tércio Sampaio Ferraz Júnior

ÍNDICE  Prefácio ...............................................................................

XV

CAPÍTULO I OBSERVAÇÕES PRELIMINARES Colocação do problema básico ..... ........................................... 1 Correlação entre validade e eficáòia................................. ..... 4  Acepção dos termos estrutura e modelo ........................... ..... 5 Espécies de modelos .......................................................... ..... 7 CAPÍTULO II NOÇÃO DE FONTE DO DIREITO Fonte do direito e poder de decidir ................................... ... 11  Aspecto procedimental da fonte do direito ....................... ... 12 Noção de fonte do direito ................................................... ... 14 O conteúdo da fonte do direito .......................................... ... 15 Numerus clausus das fontes do direito ............................ ... 16  Ainda a natureza procedimental da fonte do direito ....... ... 18 .

CAPÍTULO III FUNÇÃO DAS FONTES DO DIREITO Historicidade da fonte do direito ...................................... ... 21 Caráter retrospectivo da tèoria tradicional das fontes .... 23 Compreensão prospectiva da fonte do direito ............... ......24 O valor da liberdade e os demais valores jurídicos ......... .. 26 CAPÍTULO IV  OS MODELOS JURÍDICOS COMO CONTEÚDO DAS FONTES DO DIREITO Compreensão do conteúdo das fontes do direito em ter mos de m odelo ............................................................ 29 XI

O Direito como norma e situação normada ...................... Normativismo jurídico concreto ........................................

32 34

CAPÍTULO V NATUREZA DOS MODELOS JURÍDICOS Noção de modelo jurídico: .................................................. Modelagem da experiência jurídica ................ .................. Modelos da Filosofia do Direito e modelos do Direito ..... Concreção dos modelos jurídicos....................................... Modelos jurídicos e símbolos .............................................

37 39 42 45 47

CAPÍTULO VI GÊNESE DOS MODELOS JURÍDICOS Um problema de Política do Direito .................................  A decisão do poder no processo ju rígeno .......................... Progressiva despersonalização do poder ..........................  Absorção do poder pela regra de direito ........................... Racionalidade e heteronomia ............................................ Legitimidade dos modelos jurídicos .................................

49 51 53 54

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CAPÍTULO VII ESPÉCIES DE MODELOS JURÍDICOS Notas prévias ..................................................................... Os modelos jurídicos legais ............................................... O modelo jurídico costumeiro ........................................... Os modelos jurisdicionais.................................................. Os modelos jurídicos negociais ......................................... CAPÍTULO VIII DIALÉTICA DOS MODELOS JURÍDICOS Dialética e dialela ..............................................................  A dialética de complementaridade ................................... Complementaridade na experiência jurídica ................... XII

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63 66 68 69 73

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CAPÍTULO IX  O MACROMODELO DO ORDENAMENTO JURÍDICO Noção de ordenamento jurídico ..................................... . 87 Ciência do Direito e ordenamento jurídico....................... 91 Complexidade do ordenameíito jurídico ........................... 95 CAPÍTULO X  MODELOS HERMENÊUTICOS DO DIREITO Modelos prescritivos e modelos hermenêuticos............... Modelos hermenêuticos do Direito de caráter metodoló gico ............................................................................... Modelos hermenêuticos de tipo axiológico....................... Modelos hermenêuticos supletivos e complementares....

105 108 113 118

índice de autores ....................................................... . ........ 123

XIII

PREFÁCIO É cada vez mais reconhecida a necessidade de ser aplica da ao mundo do direito a teoria dos modelos, de tão grande relevância na Epistemología contemporânea, quer sob um enfoque formal ou instrumental, como se dá nos domínios da Lógica Deôntica, da Semiótica e da Informática jurídicas, quer sob um prisma mais amplo, levando em conta a totalidade dos elementos factuais, axiológicos e normativos que compõem a experiência do Direito, tal como pretendo fazer no presente livro. Tais investigações não se excluem, mas devem, ao con trário, fecundamente se correlacionar. Em uma de suas obras capitais, Niklas Luhmann afirma com razão que, nos dias atuais, a pesquisa do Direito não pode deixar de ser feita sem a utilização dos conceitos de estrutura e modelo, por sinal que fazendo honrosa referência a estudos por mim realizados, neste sentido, na década de 1968a. É meu propósito, neste pequeno livro, oferecer uma visão da experiência jurídica sob dois ângulos complementares, o das  fontes do direito,  concebidas como estruturas normativas, e o seu conteúdo material, apresentado sob a forma de modelos, distintos em duas categorias intimamente correlacionadas, a  jurídico-prescritiva e a hermenêutica ou dogmática. Ponto de partida dessa pesquisa são obviamente os traba lhos iniciais de 1968, sobretudo O Direito como Experiência, cuja tradução italiana, em 1973, auxiliou a tornar mais conhe cidas as idéias nele expostas, tal como esclareço na Introdução à 2a edição dessa obra, que a Editora Saraiva concordou em fazer em texto fac-similar.  A. Cf. NIKLAS LUHMANN, Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Stuttgart, Berlim, Colônia e Mainz, 1974, pág. 50. Os meus estudos, a que ele se repor ta, são O Direito como Experiência, no original português, São Paulo, 1968, e na tradução italiana, Milão, 1973, além da comunicação  Pour une Théorie des Modèles Juridiques, apresentado ao XIV Congresso de Filosofia de Vie na, em 1968 (v. Akten desse Congresso, Viena, 1970, vol. 5, S. 144-151).

XV

Desde então a teoria dos modelos jurídicos nunca deixou de ser objeto de minhas investigações, dando uma configura ção nova à teoria tridimensional do direito, como resulta das 4S e 5&edições da obra com esse título, bem como de sucessivas edições de Lições Preliminares de Direito, a qual, não obstante seu caráter propedêutico, enfeixa sinteticamente o meu pensa mento jurídico, que, seja-me lícito adverti-lo, não se reduz ao tridimensionalismo. A concepção do Direito como experiência e como um sistema de modelos jurídicos não é parte menos re presentativa de minhas idéias, compondo um todo unitário. Foi essa convicção que me levou a escrever o presente li vro, no qual o paradigma da teoria das estruturas e dos mode los me pareceu propício para uma exposição sintética da teoria geral do direito, que venho desenvolvendo em trabalhos avul sos, depois insertos em vários livros, como os que figuram em Estudos de Filosofia e Ciência do Direito e Nova Fase do Direi to Moderno. Chega uma hora em que sentimos necessidade de rever e atualizar o já publicado de forma dispersa, tal como se dá com esta obra, na qual a indagação teórica se correlaciona com a vivência prática do Direito em aturados anos de exercício da advocacia. Creio que esses dois enfoques se refletem nas pági nas que se vão ler.  Além disso, sobretudo quando tantos juristas se deixam dominar pelas recentes investigações lógico-formais ou lógicolingüísticas, com elas se contentando, por considerá-las a últi ma palavra da Ciência do Direito, creio que não será demais insistir que uma teoria jurídica, que não se abra para a proble mática social e política, e não tome conhecimento das exigên cias histórico-axiológicas, fica a meio do caminho, por mais que seja válida e essencial a contribuição haurida naqueles novos campos da ciência. Indispensável é, em suma, que o jurista transcenda tudo o que tenha valor instrumental, deste tirando proveito para aprofundar e consolidar o conhecimento da experiência jurídi ca na integralidade de seus elementos constitutivos, com toda a força axiológica de seu sentido ético, oferecendo, assim, algo XVI

de válido e próprio aos que pesquisam na Sociologia, na Antro pologia ou na Política. E somente essa visão integral que legi timará o trabalho do jurista, que jamais deve olvidar a destinação ético-política de seus conhecimentos. Num país como o nosso, então, onde se avoluma a pressão violenta das carências sociais e econômicas, parece-me inad missível uma Ciência Jurídica que não leve em conta toda a dramaticidade da vida comunitária e dos imperativos de seu desenvolvimento. O Autor Março de 1994

CAPÍTULO I Observações Preliminares Colocação do problema básico Quem tiver dedicado honrosa atenção a meus trabalhos de Filosofia do Direito sabe que, em determinado momento de meus estudos, em meados da década de 1960, cheguei à con clusão de que era necessário proceder a uma revisão da teoria das fontes do direito,  com base na teoria dos modelos jurídicos. Quer na comunicação apresentada ao Congresso Internacio nal de Filosofia realizado em Viena, em 19681, quer na 1“ edi ção de O Direito como Experiência,  do mesmo ano, cheguei a declarar que, possivelmente, com a evolução dos estudos, seria possível a substituição da idéia de  fontes  pela de modelos do direito. Ibdavia, com a evolução das pesquisas, tal como saliento na Introdução à 2“ edição ãeO Direito como Experiência  (1992), fui aos poucos me convencendo de que entre a teoria das fontes e a dos modelos do direito existe antes uma relação de comple mentaridade, sendo a primeira completada pela segunda. Desse modo, cabe-nos estudar, de maneira conjunta econgruente, os 1. Cf. Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, Sâo Paulo, Saraiva, 1978, págs. 16 e segs. O original em francês consta dos Anais do referido Congres so, cit., ao qual foi enviado com vários meses de antecedência.

 processos de instituição das normas jurídicas, dando realce ao problema de sua validade, o que é nuclear na teoria das fontes, para, a seguir, examinar o problema da significação e o da eficá cia ou aplicação dessas normas, problemas estes que correspon dem mais propriamente aos modelos do Direito nas suas duas modalidades, a dos modelos jurídicos e a dos modelos dogmá ticos onhermenêuticos. É claro que essa colocação do problema já decorria do aban dono do antigo conceito de  fonte de direito , a meu ver desdo brada indevidamente em fonte formal e fonte material, gera dora de graves confusões. No meu entender, uma fonte de di reito só pode ser formal,  no sentido de que ela representa sem pre uma estrutura normativa que processa e formaliza, confe rindo-lhes validade objetiva, determinadas diretrizes de con duta (em se tratando de relações privadas) ou determinadas esferas de competência, em se tratando sobretudo de Direito Público. O que comumente se denomina fonte material diz respei to a algo que não compete propriamente à Ciência do Direito qua tale, mas sim à Política do Direito, porquanto se refere ao exame do conjunto de fatores sociológicos, econômicos, ecológi cos, psicológicos, culturais em suma, que condiciona a decisão do poder   (e veremos que este se manifesta sob diversas for mas) no ato de edição e formalização  das diversas fontes do direito. Para o jurista o problema essencial que se lhe põe é o estudo daquilo que foi processado e formalizado, isto é, positiva do numa lei, num costume, numa sentença  ou num contrato, que são as quatro fontes por excelência do Direito. É claro que o intérprete, ao procurar alcançar o sentido daquilo que a fonte revela, não pode deixar de atender às suas causas e pressupostos materiais, mas só na medida em que estes possam esclarecer o conteúdo das regras jurídicas for malizadas como estatuições objetivas, isto é, dotadas de per si de obrigatoriedade. Nesse sentido quem diz fonte de direito diz  fonte formal de direito. É o que não compreendem aque les que reduzem a Ciência do Direito a um capítulo da Soei 2

logia Jurídica, quando se trata de ciências correlatas, mas dis tintas. Por outro lado, cumpre lembrar que as fontes do direito não explicitam apenas normas de comportamento  mas tam bém normas de competência,  até mesmo no plano do Direito Privado, como, por exemplo, ao serem enunciadas as atribui ções dos pais, do inventariante ou dos membros da Diretoria ou do Conselho Fiscal de uma sociedade anônima. Isto basta, aliás, para convencer-nos de que o Direito não é conduta, nem se refere apenas à conduta, como pretendeu Carlos Cossio. Isto posto, concebendo a experiência experiência jurídica juríd ica como um pro cesso dialético de fato, valor e norma, não podia, como não pos regra jurídica jurídic a  senão como uma integração de so, conceber a regra  integração esta que, que, uma uma vez objetivizada  fatos segund segundoo valo valore res, s, integração (tomada objetiva), está também sujeita a mutações operadas em razão de supervenientes alterações verificadas no plano normativo, factual e axiológico. Não creio que seja necessário, neste estudo, reiterar o que escrevi sobre o que denomino normativismo concreto ou tridimensional,  tratado em várias obras2.  Assim sendo, sendo, limito-me limito-me a recordar que foi em meu livro livro Lições Preliminares Preliminares de Direito, cuja 1- edição é de de 1973 - obra obra esta de cunho propedêutico, mas na qual exponho sintetica mente a minha Teoria Geral do Direito Positivo -, que me foi dado situar de maneira mais clara a relação entre fonte e mo mo como pro delo jurídico, jurídic o, no sentido de que este resulta daquela como  jeção  jeç ão objetiva de seu contendo contendo.. Foi, pois, pois, nesse nesse sentido sentido que es normas jurídicas, crevi que as fontes produzem ou põem as normas entre as quais sobressaem os modelos modelos jurídicos, jurídicos ,  os quais por  prescrições, s, “modelos “modelos prescritivos”, prescritivos”, isso mesmo surgem como  prescriçõe em razão das fontes de que promanam, as quais são sempre dotadas do poder de obrigar. 2. Vide, especialmente, o exposto na 5®edição de Teoria Tridimensional do  Dir  Direi eito to,, São Paulo, Paulo, Saraiva, 1994; a 2~  edição de O Direito como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1992, especialmente Ensaio VIII, e Nova Fase do Direito Moderno, Saraiva, 1990.

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Correlação entre vali validade dade e eficácia Parece-me necessário realçar a correlação que faço supra entre fonte de direito e validade jurídica, de um lado, e modelo modelo  jurídico  juríd ico e eficácia jurídica, de outro, devendo-se ter presente que toda relação re lação jurídica juríd ica envolve sempre sempre uma correlação entre entre validade e eficácia, sem a qual não se pode falar  positividade falar em positividade do direito. É claro que validade e eficácia nunca existem em estado puro, isto é, sem um mínimo, respectivamente, de efi cácia ou de validade, porquanto, porquanto, quando dizemos que uma nor nor ma jurídica é válida, tal afirmação implica admitir que ela importa necessariamente efeitos no plano factual, pois, de ou tro modo, seria um enunciado inútil e vazio. Da mesma forma, forma, quando declaramos que uma norma juríd ju rídica ica tem te m eficácia, esta só é jurídica na medida em que pressupõe a validez da norma que a insere no mundo jurídico, por não estar em contradição com outras normas do sistema, sistema, sob pena de tornar-se tornar-se inconsis tente. Todavia, não obstante essa correlação, a fonte refere-se mais propriamente às condições de validade dos preceitos preceitos jurí jur í dicos postos por ela, ao passo que os modelos jurídicos, como conteúdo das fontes, representam a atualização ou projeção pla no da eficácia, eficácia, ou do destas no espaço e no tempo sociais, no plano procedimento. Este assunto, que é fundamental, será se rá aprecia do após melhor m elhor estudo do conceito de fonte. fonte. Não é demais observar que Hans Kelsen afirma ser o con teúdo  das fontes representado por “seu âmbito material de validez”, ou, por outras palavras, que o seu conteúdo é consti tuído pelas distintas modalidades de normas válidas; mas, en quanto para o mestre da Teoria Pura do Direito há mera referibilidade lógica, estática e abstrata entre as fontes e seu conteúdo, no meu entender, as fontes e as normas (entendidas estas como modelos normativos) se correlacionam entre si de maneira concreta e dinâmica segundo uma dialética de complementaridade.

Como veremos, o que as fontes revelam como seu conteú do tem, por assim dizer dizer,, os característicos de algo que se proje normativo, o que ex ta no espaço e no tempo, como dever-ser normativo, plica o emprego da palavra modelo.

 Acep  Acepçção dos termos mos estrutur utura a e mod modelo Isto posto, antes de passar à análise, respectivamente, das fontes e dos modelos do Direito, cabe esclarecer em que sentido emprego os termos estrutura e modelo, que tanta im portância portân cia têm na Epistemología contemporânea, tal como tive a oportunidade de salientar, mais uma vez, sobretudo em O  Direito  Dire ito como experiência, expe riência, em cujas páginas o leitor encontrará as raízes do presente livro. Trata-se de palavras empregadas tanto no plano da Físi ca e demais ciências naturais como no da Lógica, da Matemá tica e das ciências humanas, possuindo em cada um desses e de outros campos de conhecimento acepções diversas, assunto esse que, por por sua relevância, será tratado ao longo do presente presente livro. Em primeiro pri meiro lugar, lugar, tenha-se presente que o modelo não é senão uma espécie do gênero estrutura, entendida esta como “um conjunto de elementos que entre si se correlacionam e se implicam de modo a representar dado campo unitário de signi  ficaç  fic ações ões”” . Como se vê, vê, a noção de estrutura imp implica lica a de plurali dade de elementos componentes que só adquirem plenitude de significação na medida med ida em que eles se complementam e se com pletam unitariamente, donde a sua concepção como “unidade orgânica” orgânica ” , ,a partir do símile do organismo animal que consti tui um todo diversificado e unitariamente congruente. Do conceito de estrutura trato longamente no Capítulo c omo Experiência, tanto do ponto de  VII  V II de meu livro liv ro O Direito como vista filosófico como sociológico, com base sobretudo nos ensinamentos de Parsons, Merton, Gilberto Freyre e Levi-

Strauss, mostrando que as estruturas sociais não surgem ar bitrariamente ou aleatoriamente, mas são o resultado de uma exigência de ordem  conatural ao ser humano. Na sua bela obra La Pensée Sauvage (1962), completada por outra para mim não menos interessante, Le Cru et le Cuit (1964), Levi-Strauss de monstra que o senso de ordem, longe de ser uma conquista racional no plano da evolução da espécie humana, já é uma qualidade imanente no pensamento de todo ser humano, a co meçar pelo homem selvagem, isto é, ainda não aculturado. O Direito, assevero-o desde logo, é a máxima expressão desse imperativo de ordem, expresso na ordenada razão de ser das estruturas jurídicas. Pois bem, toda estrutura social é uma unitas ordinis, uma “unidade pluridimensional ordenada de natureza intersubjetiva e dinâmica”, sendo inconfundível, pois, com a estrutura fisico matemática, à qual nada se pode acrescentar, oü da qual nada se pode subtrair sem afetá-la em sua essência. Daí as qualida des que são inerentes às estruturas culturais, e que em meu citado livro assim resumo, considerando-as uma: а) unidade historicamente integrada,  na qual os elemen tos componentes só logram plenitude de significado re feridos ao todo, cuja significação é irredutível a cada um ou à soma daqueles elementos; б) unidade polarizada   no sentido de um valor ou idéia matriz que atua como sua íntima força constitutiva e razão de sua forma, na qual as atividades diferençadas se correlacionam e se complementam, segundo índices variáveis de duração e continuidade', c ) unidade vetorial e tensional de sentido,  de tal modo que a mudança do significado dos elementos componentes envolve a do todo e vice-versa; d) unidade de caráter funcional, como instrumento essen cial de comunicação, inseparável, por conseguinte, de seus instrumentos lingüísticos e simbólicos; e) unidade situacional,  isto é, correlacionável com outras estruturas atuantes no mesmo contexto histórico, dando 6

lugar à formação de estruturas englobantes, sem pre  juízo das funções que lhe forem imanentes e próprias. Totalidade plural, complementaridade, historicidade, vetorialidade, tensionalidade e durabilidade, eis aí os elemen tos mais relevantes discerníveis, em maior ou menor grau, nas estruturas sociais, abstração feita das peculiaridades de seus diversos tipos, em função das distintas esferas de atividade e de pesquisa. Ora, uma estrutura adquire a qualidade de modelo quan do, além de representar, unidiversificadamente, dado comple xo de significações, se converte em razão de ser ou ponto neces sário de partida para novos juízos futuros, abrindo campo a novos cálculos (como se dá com os modelos matemáticos) ou, então, a novas valorações, como acontece no plano das ciências humanas, no do Direito em particular. Poder-se-ia dizer que o modelo é uma típica estrutura normativa, ou seja, uma expressão de dever-ser, quer este se refira a algo que deva ser, de maneira explicativa, no plano da idealidade lógico-matemática, quer se relacione com algo que deva ser de maneira prescritiva, como atitude ou momento de vida no plano existencial. Por aí já se percebe que não é possí vel reduzir o dever-ser jurídico a um mero enlace lógico-proposicional, como o pretendeu Kelsen, na primeira fase de sua Tfeoria Pura do Direito, pois o dever-ser no mundo do Direito en volve e representa, sempre um momento volitivo da vida hu mana, com tudo o que nesta existe de intencional e funcional.

Espécies de modelos Estas observações já nos permitem concluir que, em últi ma análise, há três ordens fundamentais de modelo: os físicos, os matemáticos e os histórico-culturais, sendo necessário tecer breves considerações sobre cada um deles. 7

O modelo matemático é urna pura criação do pensamento, uma idealidade, ou objeto ideal, muito embora se possa ou se deva admitir, à luz dos ensinamentos de Piaget, sua gênese psicológica, isto é, sua inicial vinculação a um processo de or dem psíquica que, a partir de certo instante, perde seu signifi cado representativo de algo externo, para passar a ter signifi cado ideativo em si e por si mesmo. Não é o caso de, aqui, relembrar a teoria dos objetos,  como penso tê-la desenvolvido, com três objetivos fundamentais de conhecimento, os naturais (físicos e psíquicos), os ideais (lógico-matemáticos) e os que expressam valores, positiva ou nega tivamente, como um dever-ser de conteúdo ético, estético, eco nômico, jurídico etc., dando nascimento aos objetos culturais, que são enquanto devem ser, ou são no sentido de algo válido3. Bastará recordar que, partindo da observação fundamen tal de que os objetos naturais pertencem ao mundo do Ser (Sein), entendo que a eles não podem ser reduzidos os valores, os quais, ao contrário, constituem expressões do mundo do dever ser (Sollen). Por outro lado, os valores não podem ser equiparados nem mesmo aos objetos ideais, como os lógico-matemáticos, cujo dever ser de certa forma é ou se põe no plano da pura conseqüencialidade ideal, enquanto o valioso se distingue por permanen te vinculação ao plano experiencial, exigindo que “algo venha ser” como momento de vida no plano da realidade ou das esti mativas, cujo adimplemento reflui sobre a fonte axiológica ori ginária, alterando-lhe o significado. O fato de ser possível re presentar esse mundo existencial e tensionál, com elementos não raro contrapostos, graças aos atuais recursos da Lógica Paraconsistente ou da Lógica não-Alética, não contradiz a asserção de que as proposições e os cálculos lógicos se desen 3. Sobre a distinção que faço entre os objetos ideais (nos quais ainda MAX SCHELER e NICOLAIHARTMANN incluíam os valores) e os valores, como tertium genus, v. meus livros Introdução à Filosofia, 3- ed., São Paulo, 1994, págs. 135 usque  145, e O Direito como Experiência,   cit., 2®ed., págs. 147 usque 225, onde o leitor poderá encontrar ampla exposição sobre a natureza tanto das estruturas como dos modelos, sob os prismas filosófico, sociológico e jurídico.

volvem como idealidades. No domínio das ciências humanas, e do Direito em particular, tudo acontece, ao contrário, em fun ção do que é enquanto deve ser, isto é, do que “vale para”, para empregarmos terminologia característica de Emil Lask, tal co mo é próprio das ciências culturais4.

4. Sobre a aplicação da Lógica não-Alética ou da Lógica Paraconsistente no Direito, cf. NEWTON C. A. DA COSTA e LEILA PUGA, A Lógica Deôntica e a Teoria Tridimensional do Direito, Revista dos Tribunais, vol. 634, 1988, págs. 634 e segs. Quanto à compreensão do dever ser como '‘validade para”   no pensa mento de EMIL LASK, v. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., O Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, 1976, págs. 171 e segs. e passim.

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CAPÍTULO II Noção de Fonte do Direito Fonte do direito e poder de decidir E necessário dizer algo mais sobre as fontes do direito, que são sempre estruturas normativas que implicam a exis tência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seu conteúdo, o que equivale a dizer umpoder de optar entre várias vias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declarada obrigatória, quer erga omnes, como ocorre nas hipóteses da fonte legal  e da consuetudinária,  quer inter partes,  como se dá no caso da fonte jurisdicional ou na fonte negociai. Veremos que, quando a lei é omissa, a jurisdição, valendo-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito (Lei de Introdução ao Código Civil, Art. 4fi), firma decisões dotadas de certa gene ralidade, mas, mesmo quando consubstanciadas em súmulas dos Tribunais Superiores, estão sujeitas a revisão, à vista de novas razões aduzidas pelas partes, em virtude de diretrizes teóricas consagradas por novos modelos hermenêuticos. O essencial, porém, é ter presente que, sem poder de deci dir,  não se pode falar em  fonte do direito,  motivo pelo qual, como explico em Lições Preliminares de Direito, a doutrina, ao contrário do que sustentam alguns, não é fonte do direito, uma vez que as posições teóricas, por maior que seja a força cultural 11

de seus expositores, não dispõem de per si ào poder de obrigar. É a razão pela qual, como veremos, a doutrina não gera mode los jurídicos, propriamente ditos, que são sempre prescritivos, mas sim modelos dogmáticos ou hermenêuticos, o que em nada lhe diminui a relevância, pois ela desempenha freqüentemente uma posição de vanguarda esclarecendo a significação dos modelos jurídicos através do tempo, ou exigindo novas formas de realização do Direito graças à edição de modelos jurídicos correspondente aos fatos e valores supervenientes. Consoante já resulta do exposto, sendo o  poder um ele mento essencial e consubstanciai ao conceito de fonte do direi to5, esta se diversifica em tantas modalidades ou tipos quantas são as formas do poder de decidir  na experiência social. A meu ver, quatro são as fontes do direito: alegai, resultante do poder estatal de legislar editando leis e seus corolários normativos; a consuetudinária,  expressão do poder social  inerente à vida co letiva e revelada através de sucessivas e constantes formas de comportamento; a jurisdicional, que se vincula ao Poder Judi ciário, expressando-se através de sentenças de vários graus e extensão; e, finalmente, a  fonte negociai, ligada ao poder que tem a vontade humana de instaurar vínculos reguladores do pactuado com outrem.

 Aspecto procedimental da fonte do direito Do exposto já se infere que, como bem adverte Norberto Bobbio, a teoria das fontes tem por objeto (e eu digo: primeiro objeto) fixar os requisitos de fato e de direito que devem ser obedecidos para que qualquer produção de normas possa ser considerada válida. Além disso, insere-se, a meu ver, na teoria das fontes o estudo de sua necessária correlação com a expe 5. Sobre o papel do poder  na experiência jurídica, vide o meu ensaio “O poder na democracia”, in Pluralismo e Liberdade, Saraiva, 1963, págs. 207 e segs. Esse estudo foi publicado antes sob o título “Law, Power and theirs correlations”, no livro Essays in Honor o f Roscoe Pound, 1962, págs. 238 e segs.

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riência jurídica compreendida em sua social historicidade, bem como a análise e a classificação das diversas formas ou proces sos de produção de regras jurídicas. Destarte, uma lei somente pode ser considerada como tal se ela obedece ao devido processo de sua elaboração, exigindose, por exemplo, que ela seja emanada pelo poder competente e sancionada e promulgada de acordo com os imperativos cons titucionais. Rui Barbosa era tão cuidadoso no concernente aos pressupostos de uma lei que ele exigia que ela obedecesse à tramitação prevista no Regimento Interno da Câmara dos De putados ou do Senado Federal sob pena de carecer de validade. Donde se conclui que, preliminarmente, a teoria das fon tes do direito se põe como estudo da validade do processo me diante o qual as regras de direito são postas in esse. É claro que todas as fontes operam no quadro de validade traçado pela Constituição de cada país, e já agora nos limites permitidos por certos valores jurídicos transnacionais, univer salmente reconhecidos como invariantes jurídico-axiológicas, como a da Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas deste assunto cuidaremos oportunamente. Por ora, prefiro aduzir algo mais sobre a noção de fonte do direito, nos limites em que situo este termo. Divergem os autores sobre o conceito de fonte do direito. Prefiro afirmar que uma norma, para que possa ser considera da norma jurídica e, como tal, dotada de vis compulsiva, preci sa satisfazer ao conjunto de requisitos concernentes à sua ela boração, o que quer dizer que ela deve ser emanada pela fonte do direito correspondente à sua natureza e finalidade. São a constituição e as leis de cada país que predeterminam os re quisitos caracterizadores das diversas fontes do direito, que não podem ser configuradas em abstrato, mas sim em razão de específicas conjunturas históricas, como o demonstra a distin ção fundamental entre a nomogênese jurídica que caracteriza e distingue o Common Law e a que é própria do Civil Law, isto é, do Direito de tradição romanística. 13

Noção de fonte do direito O que importa é reconhecer que têm vigência, isto é, são dotadas de validade objetiva, tão-somente aquelas normas ou cláusulas normativas que obedeçam aos requisitos previstos pelo ordenamento jurídico de cada país para cada tipo de fon te. Isto demonstra que há um numerus clausus de  fontes do direito,  as quais não surgem ex nihilo,  mas se situam no ordenamento jurídico global, segundo diversos níveis ou graus de validade, originários uns e derivados outros, todos, porém, inseridos no âmbito da validade geral traçado pela Constituição. Na linha desse entendimento, podemos dizer que a fonte do direito implica o conjunto de pressupostos de validade que devem ser obedecidos para que a produção de prescrições normativas possa ser considerada obrigatória, projetando-se na vida de relação e regendo momentos diversos das ativida des da sociedade civil e do Estado. Quando uma lei, uma sen tença, um costume ou um negócio jurídico são produzidos de acordo com os parâmetros superiores que disciplinam sua ela boração, eles adquiremjuridicidade, determinando o que pode e deve ser considerado “de direito” por seus destinatários. Nessa ordem de idéias é que devemos verificar como e até que ponto podemos aceitar a declaração de Hans Kelsen de que o conteúdo das fontes do direito é o seu “âmbito material de validez”6, tal como já foi lembrado.  Ao lado da colocação normativa,  mas não puramente normativa,  que acabo de expor, outros autores têm uma visão, por assim dizer, mais físicalista ou sociológica das fontes do direito, dizendo que este se produz independentemente de qual quer prévio requisito normativo, obedecendo tão-somente a “causas naturais” ou a diversos centros de interesse que só podem ser objeto de determinação à luz de uma análise de ca ráter sociológico. Desse modo, a teoria das fontes se transfere para um plano metajurídico, obedecendo a uma pluralidade 6. H. KELSEN, Tkoría General dei Derechoy dei Estado,  trad. de E. Garcia Máynez, México, 1949, págs. 43-45.

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imprevisível de focos de irradiação de regras, cuja juridicidade caberia aos juristas e juizes reconhecer e aplicar segundo crité rios postos por distintas ciências sociais. Penso eu que só a primeira noção de fonte antes examina da corresponde à natureza do Direito, o qual é sempre normati vo, muito embora não seja exclusivamente normativo, como o sustentou Kelsen com a sua Teoria Pura do Direito, isto é, des vencilhado de tudo que não seja normativo.

O conteúdo da fonte do direito Ora, sob o prisma normativo, quando dizemos que as fon tes produzem  ou instauram diretrizes normativas obrigatórias, graças ao poder que cada tipo de fonte pressupõe, devemos en tender que o produzido e instaurado não é senão o conteúdo da própria fonte, como acontece quando uma lei é formulada se gundo os princípios e requisitos que regem o processo legislativo. Isto ocorre porque é inseparável o conceito de fonte da idéia da obrigatoriedade das normas por ela enunciadas, e essa obrigatoriedade inexistiria se não houvesse um  poder (legislativo, costumeiro, jurisdicional e negociai) capaz de ins taurar vínculos de caráter coercitivo. Quando dizemos que tanto a lei como o contrato obrigam, cada um a seu modo e segundo diverso alcance, estamos reconhecendo que à fonte do direito é inerente um poder de decidir, sem o qual não haveria norma vigente, ou seja, posta com exclusão de qualquer outra. Não é, pois, demais acentuar que, conforme a teoria tridimensional do direito o salienta, a fonte de direito é uma eâtrutura normativa capacitada a instaurar normasjurídicas em função de fatos e valores, graças ao poder que lhe é inerente. Entende-se, assim, melhor porque, concomitantemente com a decisão instauradora, inerente à fonte, esta é inseparável de seu conteúdo, ou, como diz Kelsen, do “seu âmbito material de validade”. Nada de extraordinário que assim seja, pois é próprio do processo nomogenético do Direito que a emanação das normas se dê, uno in acto, com a declaração de seu conteú 15

do (tudo aquilo que em razão do regrado deva ser havido como “de direito”) e da obrigatoriedade do que é enunciado.  Assente esse ponto essencial, torna-se necessário esclare cer, mais minuciosamente, o que se deva entender por conteú do da fonte do direito, a partir da compreensão kelseniana de que não é senão seu âmbito material de validez, numa visão, porém, mais ampla, do normativo, insuscetível, repito, de ser reduzido a meros enlaces lógico-formais, tal como será porme norizado no próximo capítulo.

“Numerus clausus” das fontes do direito  Antes, todavia, restam duas questões a analisar. Uma delas se refere à correlação existente entre o problema das fon tes do direito e o princípio binado de certeza e segurança que necessariamente informa a ordem jurídica positiva. Há  jusfilósofos e juristas, em geral perdidos numa vivência român tica do Direito, que apresentam, como sinal de progresso de mocrático, a validade das normas jurídicas independentemen te da idéia de fonte do direito que, como se depreende do ex posto, se acha sempre vinculada à prévia determinação da es trutura, da qual as normas promanam, bem como ao processo  jurigenético, ou seja, ao modo e forma de sua revelação. O entendimento dominante é o de que cada ordenamento  jurídico - cujo valor como um “macromodelo” será oportuna mente apreciado - possui um numerus clausus de fontes, de tal modo que os enunciados normativos, para adquirirem vali dade jurídica, devem atender a determinados pressupostos, re lativos uns à própria estrutura da qual eles promanam, e per tinentes outros ao processo de sua atualização. Não me parece mereça acolhida a tese contrária, no senti do da autônoma e espontânea vigência do ius vivens, através de múltiplos processos, desde um jogo aberto e espontâneo de intenções e pretensões de ampla juridicidade - em função dos inúmeros fatores operantes na vida comunitária - até a com preensão do direito como o resultado de uma chamada “razão 16

comunicativa” expressa em termos de “ação comunicativa”, tal como é recentemente defendido por Jürgen Habermas. Segun do este pensador, última e mais alta expressão da Escola de Frankfurt, a razão comunicativa possibilitaria o medium lingüístico através do qual as interações se entrelaçam e as formas de vida se estruturam, logrando-se atingir espontanea mente a necessária correlação entre validade e eficácia, essen cial ao Direito, numa conexão descentralizada de condições. A revelação das normas jurídicas, enquanto regras obrigatórias, não resultaria de sua subordinação, deontologicamente, a man damentos morais, ou, axiologicamente, a uma constelação de valores privilegiados, ou, ainda, empiricamente à efetividade de uma norma técnica. Tudo se resolveria, afinal, em função da razão comunicativa, a qual, se não é uma fonte de normas, permite que estas se formem livremente através da vida co munitária sem o “mal do normativismo”, que, a seu ver, corre o risco de perder contato com a realidade, e com a vantagem de manter-se aberta a instância do juízo crítico aferidor, sem cuja atuante permanência não haveria real democracia. O pensamento de Habermas plana, tudo somado, numa temática teórico-sociológica que, não obstante visar a superar a tensão entre validade e eficácia do Direito, não consegue re solver in concreto como é que as normas, formuladas segundo a razão comunicativa, adquirem o mínimo de certeza e segu rança   exigido pela ordem jurídica positiva. É mérito de Habermas focalizar o discurso do Direito à luz da tensão vali dade-eficácia, mas, a meu ver, ele não consegue resolver a ques tão nuclear da obrigatoriedade do Direito que não pode resul tar de mero fluxo do ius vivens1. Não há dúvida que as normas jurídicas (legais, consuetudinárias, jurisdicionais e negociais) não surgem como por en canto, pressupondo todo um complexo entrelaçamento de inte resses e pretensões, de caráter público ou privado, mas - como penso ter demonstrado sobretudo em O Direito como Experiên 7. Cf. JÜRGEN HABERMAS, Faktizitätund Geltung-Beiträge zur Diskurs theorie des Rechts und des democratichen Rechtsstaats,  Frankfurt/M., 1992.

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cia -  é imprescindível distinguir entre “representações ou aspi rações jurídicas”  e *regras de direito”   como tais: aquelas ex pressam apenas a força nascente do ius vivens,  mas este só adquire a virtude de obrigar ao se pôr como expressão heterônoma de uma objetiva forma de querer, só alcançada gra ças a sua tramitação segundo os pressupostos da respectiva fonte do direito.

 Ainda a natureza procedimental da fonte do direito  A outra questão merecedora de atenção preliminar, aliás intimamente vinculada à que acabamos de analisar, diz res peito às condições e pressupostos que devem ser satisfeitos pe las fontes do direito em termos de processus. Para melhor entendimento desse assunto, examinemos o que se dá com a Lei, que é a fonte do direito por excelência nos ordenamentos jurídicos de tradição romanístico-justinianéia, assim dita por devermos a Justiniano a edição do Corpus Iuris Civilis. Na verdade, o Direito Romano Clássico não teve a lei como fonte primordial, mas antes um trabalho combinado de doutrina ejurisdição, graças à ação conjugada dos jurisconsultos - que forneciam a norma iuris - e dos pretores, que lhe confe riam validade, tudo com base na solução concreta dos casos à medida que os fatos iam surgindo e as necessidades se confi guravam, factibus ipsis dictantibus ac necessidade exigente8. Ora, quando empregamos a palavra Lei,  para caracteri zar a fonte primordial do Direito pátrio, na realidade nos refe rimos a todas as modalidades de revelação do Direito que com põem o  processo legislativo,  designação feliz introduzida em nosso Direito Constitucional, desde a Carta de 1967. 8. Sobre essa questão, v. meu estudo “Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano clássico”, in Horizontes do Direito e da História, 2- ed., págs. 55-74. Abem ver, o povo fundador do Direito não foi o povo da lei...

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Foi prudente a Assembléia Nacional Constituinte ao pre servar e consolidar esse entendimento, dedicando-lhe toda a Seção VIII do Título IV da Constituição de 1988, Arts. 59 usque 69. É claro que a análise minuciosa dessa matéria exige monografia especial, não se compadecendo com o feitio da pre sente obra. Não é demais, porém, lembrar que, ex vi doArt. 59, o processo legislativo compreende a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis dele gadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Esses são, com efeito, os processos mediante os quais se elabo ram e se positivam as normas de ordem legal, isto é, a lei e as regras que a ela se equiparam. Único defeito que vejo no Art. 59 é a referência pura e simples às resoluções, quando, na realidade, se trata exclusi vamente de “resoluções de ordem legislativa”, isto é, daquelas resoluções destinadas a completar os textos legislativos, como se dá com a Resolução do Senado Federal exigida nos casos previstos, por exemplo, nos Itens IV e V do Art. 155 da Carta Magna. O que sobreleva notar é que para cada forma de processo legislativo são indicados os seus pressupostos de validade, atendendo-se a razões de certeza e segurança. Por força dos mesmos princípios, também os demais pro cessos jurígenos, com base nos costumes, na jurisdição e nos negócios jurídicos, estão cercados de iguais exigências, o que, observe-se, resulta do texto constitucional, da construção dou trinária e do lavor jurisprudencial, o que revela a amplitude que hoje tem o problema das fontes do direito. Nesse sentido, a doutrina, embora não seja fonte do direito, tem a primordial função de dizer quais são as condições que as legitimam, assim como, depois, qual o significado e alcance dos modelos jurí dicos que elas elaboram, assunto a que volverei èm lugar próprio.

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CAPITULO III Função das Fontes do Direito Historicidade da fonte do direito Consoante ficou, mais de uma vez esclarecido, minha di vergência em relação a Kelsen é quanto ao que se deva com preender por “âmbito material de validez” das fontes do direi to. Para ele, em virtude de seu conhecido monismo normativo, o âmbito material de validade reduz-se ao  processo de explicitação do sistema de normas jurídicas,  tão-somente em razão do que nelas é declarado como válido, numa visão pura mente lógica, estática e a-histórica, muito embora, ao depois, tenha ele reconhecido que a validade do ordenamento jurídico seria impossível ou inconsistente sem um mínimo de eficácia.  A meu ver, porém, a correlação entre validade e eficácia apresenta-se sob múltiplas formas ao longo da experiência ju rídica, cujo ordenamento é dinâmico, dotado de irrenunciável historicidade. Poder-se-ia mesmo dizer que é só a visão do Di reito in fieri, no seu processo de correlação entre a validade e a eficácia das regras, que nos permite compreender como se põe e se desenvolve a positividade do Direito. Isto posto, o conteúdo de uma “estrutura normativa”, como a fonte do direito, não pode ser analisado senão na correlação de seus elementos constitutivos, visto como as regras, que dela 21

promanam, são inseparáveis da vida social e histórica, sofren do contínuas alterações resultantes de novos fatos e valores emergentes depois da data de sua instauração. Não é necessário ser tridimensionalista para reconhecerse que a teoria das fontes do direitó - e eu estendo as mesmas conclusões à teoria dos modelos jurídicos - não pode ser elabo rada apenas segundo critérios lógico-semânticos, por ser im possível fazer abstração de sua relação com a vida social e his tórica, máxime quando, graças à análise da linguagem, se faz, como Bobbio, uma distinção essencial entre valor, validade e eficácia do Direito. Nesse sentido, lembro que Enrico Paresce, após acentuar que o ordenamento não se compõe só de normas, “mas com preende a estrutura e a vida jurídica de toda uma sociedade”, afirma que “a realidade histórica reage, constantemente sobre a realidade normativa, quer através de formações espontâneas de valores juridicamente sentidos como tais pela coletividade, quer através da formulação de princípios gerais, que as mais recentes formulações legislativas constantemente obrigam a reelaborar”9. Se analisarmos, com efeito, o conteúdo de uma fonte de direito, podemos verificar que, às vezes, ele é formado de dire trizes normativas imutáveis, válidas para qualquer tempo e circunstância, por consagrar-se um valor tido e havido como insuscetível de mudança; e, outras vezes, ao contrário, o con teúdo refere-se a eventos factuais ou a exigências axiológicas mutáveis, importando em interpretação diversa daquela que estava inicialmente na intenção do legislador ou dos contra tantes, projetando-se, desse modo, livremente, no plano da ex periência jurídica concreta. Exemplo da primeira hipótese temos nos dispositivos do Código Civil segundo os quais “os menores de dezesseis anos são absolutamente incapazes”, ou que “aos vinte e um anos acaba a menoridade, ficando habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil”. Em ambos os casos, a norma legal estabelece 9. Vide E. PARESCE, verbete sobre "Fonte dei diritto”, in Enciclopédia dei  Diritto, Varese, 1968, vol. XVII, págs. 865 e seg.

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limites de idade precisos para o exercício de direitos, em razão de critérios considerados intangíveis, a salvo de abrandamentos hermenêuticos, visto como quaisquer exceções devem resultar de disposições legais específicas. Por outras palavras, a incapa cidade absoluta ou relativa, fixada por lei, só pode ser suprida nas hipóteses contempladas pelas normas especiais, não bas tando meras inferências lógico-normativas, por mais insisten tes e fortes que sejam os pleitos no sentido da mudança.  A maioria, porém, das leis, ao preverem e predetermina rem uma classe de comportamentos futuros, não são promul gadas de maneira rígida ou intocável, porquanto seus enunci ados comportam, por sua natureza, compreensíveis adaptações históricas ao processo da vida comunitária, e, conforme as cir cunstâncias, mandamentos antes entendidos de modo estrito passam a ter significação extensiva, em virtude de ajuste hermenêutico a supervenientes conjunturas. Quer, porém, se considere imutável ou mutável o conteú do de uma lei ou de um negócio jurídico, em função de fatos ou valorações emergentes, parece-me que ele é sempre tridimen sional: o que ocorre é que, às vezes, a enunciação normativa significa um modelo estático, o que se dá sobretudo quando se trata de normas de forte caráter declaratorio,  tais como as atributivas de faculdade ou de esfera de competência; outras vezes, as fontes têm como conteúdo modelos de significação variável, em virtude de alterações factuais ou axiológicas cona turais às relações regradas. De uma ou de outra forma, podemos dizer que o conteúdo de uma fonte de direito são as regrasjurídicas por ela enuncia das, a fim de serem declaradas permitidas ou proibidas deter minadas formas de conduta, ou serem especificados certos âmbitos de competência, em dada conjuntura histórica.

Caráter retrospectivo da teoria tradicional das fontes  A rigor, o conteúdo das fontes se refere principalmente a atos futuros, mas, isto não obstante, a primeira teoria científi 23

ca das fontes do direito, elaborada por Savigny, ficou por de mais apegada à idéia do poder em virtude do qual ela dimana, a tal ponto que, por largo tempo, prevaleceu o entendimento de que a lei, por ser a expressão do soberano Poder Legislativo, deve ser interpretada segundo a intenção do legislador. Daí a preocupação de preservar-se a lei de interpretações capazes de deturpá-la, sendo esta a razão do apego à antiga parêmia se gundo a qual interpretatio non fit in claris. O fetichismo da lex  lata, ou seja, do Direito posto por lei, foi de tal ordem que um  jurista de prol, tão logo começaram a aparecer os primeiros comentários ao Código Civil de Napoleão, exclamou: “Coitado de nosso Código”! Por tais motivos, quando se quis determinar a natureza e os limites da interpretação e aplicação das regras enunciadas pelas fontes, o que inicialmente prevaleceu foi o caráter retros pectivo da idéia de fonte. Desse modo, o conteúdo da fonte fica va vinculado ao seu processo de instauração, prevalecendo a intenção qxlq objetivo do enunciante sobre o que exa. enunciado objetivamente como conteúdo da fonte mesma. Lembra-nos Wolf Paul, da Universidade de Frankfurt, que quando Karl Marx freqüentou as aulas de Savigny referiu-se ironicamente às suas diretrizes hermenêuticas vinculadas à problemática da origem do direito, dizendo que essa perspecti va seria como a de um barqueiro “que parece navegar, não so bre o rio, mas sobre suas nascentes”10.

Compreensão prospectiva da fonte do direito Pois bem, através das várias vicissitudes pelas quais pas sou a Hermenêutica jurídica -  que eu procurei sintetizar em Nova Fase do Direito Moderno pode-se afirmar que, no mun do contemporâneo, se tornou verdade assente que umaZei (para facilitar a exposição, limito-me ao caso da lei, mas ela é aplicá 10. Cf. MIGUEL REALE,  Direito Natural/Direito Positivo, Saraiva, 1984, pág. 43.

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vel às demais fontes), uma vez promulgada, desprende-se da pessoa do legislador, para passar a ter um valor de per si, ou seja, uma validade objetiva “per se stante”,  a partir da qual deve ocorrer o ato interpretativo e, por via de conseqüência, a aplicação das regras jurídicas. Desse modo, muitas vezes é o caráter prospectivo das nor mas que prevalece, por ser mais adequado ao dever-ser próprio do Direito, mesmo porque, como bem salientou Benedetto Croce, toda norma constitui previsão de uma classe de atos futuros, e estes ocorrem segundo as vias imprevisíveis da liberdade. Em páginas anteriores, já apreciei o problema das fontes do direito em função dos valores da segurança e da certeza, sendo indispensável focalizá-la, agora, à luz do valor da liber dade, o que não deve causar perplexidade, porquanto, sendo o Direito, como lembra Recaséns Siches, “uma dimensão da vida humana”, não pode deixar de vincular-se a toda a gama das instâncias axiológicas. Em palavras pobres, parece-me possível antecipar o estu do de tão aliciante e gigantesca matéria dizendo que, se os imperativos de certeza e segurança põem a exigência de um numerus clausus de fontes do direito, não obstante a renitente tentação de sua livre e incessante instauração, o valor da li berdade, sempre em oposição dialética à idéia de ordem, põe a exigência de uma ordenação jurídica aberta e flexível.  Tudo está, porém, em situar racionalmente os limites dessa abertu ra e flexibilidade, a fím de que a liberdade não se converta em licença, nem a ordem se degenere em tirania. Não obstante repetidas crises e resistências, como as li gadas, por exemplo, à Livre Pesquisa do Direito, culminando nas reivindicações extremadas do Direito Livre, pode-se dizer que a cultura jurídica burguesa - entendida esta como a cor respondente ao capitalismo fundado na idéia mater do interes se individual - se caracterizou por uma visão estática e retros pectiva das fontes do direito, próprias do Direito concebido como um quadro predeterminado de direitos subjetivos sob a salva guarda do Direito Positivo estatal. 25

Daí as sucessivas crises da Ciência do Direito, ao longo de nosso século, desde manifestações já reveladas a cavaleiro com o anterior, terem coincidido com as sucessivas crises do siste ma capitalista. Não há nessa asserção nenhum assentimento ao materialismo histórico, o qual apontava para uma relação de causalidade entre as chamadas “infra-estruturas econômi cas” e as “superestruturas sociais”, entre as quais o Direito, Reconhece-se, pura e simplesmente, que o processo cultural se desenvolve de maneira sincrónica, havendo sempre uma interdependência, harmoniosa ou conflitiva, entre todos os va lores ou interesses com que se entretece a vida humana no decurso do tempo. Feita essa ressalva, é inegável, como observou François Gény - a quem se devem magníficas diretrizes no sentido da possível livre pesquisa do Direito que as crises da sociedade redundam, inevitavelmente, em crise da teoria das fontes do direito, a última das quais estamos vivendo agora, e que é uma das razões determinantes desta pequena obra. Sob o prisma do imperativo da liberdade, que implica sem pre uma exigência de pluralidade ou pluralismo11, mister é dis tinguir o que na cultura burguesa constitui uma estimativa conjuntural, perecível ou insustentável pela emergência de novas circunstâncias históricas, e as atitudes axiológicas que representam a garantia de valores que transcendem as muta ções temporais havidas.

O valor da liberdade e os demais valores jurídicos Posta a questão nesses termos, parece-me que, assim, como no plano econômico, vamos cada vez mais reconhecendo o va lor atual da livre-iniciativa, muito embora num contexto de necessária e crescente socialidade, da mesma forma a revisão da teoria das fontes do direito deve compor em nova unidade 11. Nesse sentido, v. MIGUEL REALE,  Pluralismo e Liberdade, cit.

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dinâmica e concreta os apontados quatro valores de liberdade, ordem, certeza e segurança , reconhecendo-lhes a atualidade. Essa tomada de posição implica desde logo uma nova ati tude perante o que se deve entender por certeza e segurança, que muitos confundem com uma aspiração de imobilismo, a salvo de qualquer risco atribuível a mudanças tidas e havidas a priori como condenáveis. Quando o valor de liberdade é com preendido em complementaridade com o de ordem, visando a uma díade praticamente configurada, eles redundam numa concepção do Direito irredutível a um sistema cerrado de pres crições predeterminadas e intangíveis. Uma condenável visão estática e fechada da vida jurídica - por se vincular a um ideal de Direito adrede estabelecido, como alvo a ser atingido - tem como conseqüência atribuir às fontes do direito a função primordial de estabelecer quadros normativos definidos, evitando-se, sempre que possível, esque mas genéricos ou programáticos, pouco ou nada se deixando ao livre jogo das vontades, tanto no âmbito do processo demo crático quanto no mundo dos negócios. Ora, no Estado de Direito de feitio puramente liberal —  que, obedecendo ao feliz texto constitucional, eu distingo do Estado Democrático de Direito, que é “liberal-social” —muita tinta se perdeu para saber-se se as “normas programáticas” eram ou não obrigatóriás, ainda que figurassem na Constitui ção. É óbvio que essa polêmica somente tinha sentido a partir da convicção de que o ordenamento jurídico é formado tão-so mente por determinações explícitas e concretas. Hoje em dia, por múltiplas razões, entre as quais ressal tam as relativas à crescente compreensão da sociedade em ter mos de comunicação e informação,  tendemos cada vez mais a admitir que o progresso do Direito se desenvolve no sentido do predomínio das normas programáticas sobre as desde logo pre determinadas, com a condenação do totalitarismo normativo estatal. É a razão, aliás, pela qual se critica com razão a Carta Magna vigente, que, de um lado, enaltece os valores da trans parência e da comunicação, e, de outro lado, se perde na obses27

são de tudo querer prever e predeterminar, o que revela para doxal desconfiança pelo livre jogo do processo democrático. Tudo está, todavia, em saber encontrar a via da razoável e plausível compatibilidade na correlação dos quatro valores supralembrados, mesmo porque, quando eles irremediavelmen te se conflitam, o resultado é a perda do valor mais alto, repre sentado pelas idéias correlatas de justiça e eqüidade. O certo é que a teoria das fontes não pode ser fixada a partir de uma visão retrospectiva baseada em valores de ante mão definitivamente assentes - o que leva a privilegiar mode los jurídicos cerrados devendo-se, ao contrário, procurar com por em unidade dialética e sincrónica os imperativos de or dem, da liberdade, da certeza e da segurança, como valoresmeio na realização do valor-fim por excelência que é o da Jus tiça. Pois bem, essa mudança de atitude diante do problema não significa uma ruptura no processo do Direito contemporâ neo, mas sim uma utilização mais aberta dos instrumentos normativos de ação, o que nos leva a ver o conteúdo das fontes do direito em termos de modelos jurídicos.

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CAPÍTULO IV Os Modelos Jurídicos como Conteúdo das Fontes do Direito Compreensão do conteúdo das fontes do direito em termos de modelo Nunca será demais realçar o alcance do reconhecimento da validade autônoma e objetiva das regras de direito enuncia das por qualquer de suas fontes, nem do não menos relevante reconhecimento de seu sentido prospectivo, ainda que se não possa olvidar o valor retrospectivo dos motivos determinantes de uma fonte do direito. São essas duas qualidades inerentes às fontes (a validade autônoma e objetiva e o seu sentido prospectivo) que me levam a afirmar que o conteúdo das fontes somente é adequado e ple namente compreendido em termos de regras ou normas de di reito, quando, entre elas, se dá realce aos modelos jurídicos. Note-se, uma vez por todas, que normas jurídicas e mode los jurídicos não são termos sinônimos, sendo estes espécies, ou melhor, especificações ou tipificações daquelas. Pode um modelo jurídico coincidir, às vezes, com uma única norma de direito, quando esta já surge como uma estrutura, denotando e conotando, em sua formulação, uma pluridiversidade de ele 29

mentos entre si interligados numa unidade lógica de sentido, mas, geralmente, o modelo jurídico resulta de uma pluralidade de normas entre si articuladas compondo um todo irredutível às suas partes componentes. Não raro, a norma, dotada de configuração estrutural, na realidade implica especificações e complementos, como se dá com o Art. I2da Constituição de 1988, segundo o qual “a Repú blica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, reportando-se a seus funda mentos. Mais caracterizado, como estrutural, correlacionando implicitamente um complexo de normas subordinadas, é o pa rágrafo único do referido Art. I2, que reza: “Todo o poder ema na do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou, diretamente, nos termos desta Constituição”. Por outro lado, a idéia de modelo jurídico contribui para uma compreensão prospectiva mesmo das regras gerais que não se apresentam de forma estrutural, visto se situarem no macromodelo do ordenamento jurídico. Enquanto expressam modelosjurídicos, ou se reportam a eles, as normas passam a ser captadas, com efeito, em sua plenitude, só quando o intérprete atende à dinamicidade que lhes é inerente e à totalidade dos fatores que atuam em sua aplicação ou eficácia ao longo de todo o tempo de sua vigência. Sob esse prisma particular, poder-se-ia dizer que os modelos  jurídicos  representam uma nova linguagem expressiva do con teúdo normativo das fontes do direito, ou, por outras palavras, que o conteúdo normativo das fontes é melhor captado quando compreendido no sentido de modelos, os quais constituem sem pre estruturas postas em razão dos fins que devem ser realiza dos,  sendo-lhes, pois, inerente um sentido prospectivo de dever-ser (Sollen), tal como é próprio do Direito, em que pesem as tentativas fisicalistas de reduzi-lo apenas ao que é (Sein). Embora oportunamente volte a este assunto, não é de mais adiantar que todo modelo jurídico compõe em unidade as idéias de estrutura e desenvolvimento, o que nos permite me lhor compreender as integrações normativas que caracterizam 30

a experiência jurídica, dando-lhes uma base científica, à luz tanto da Ciência do Direito como da Sociologia Jurídica. Não se diga que estou superestimando a natureza prospec tiva ou fiiturizante do Direito, porquanto, numa interpretação estrutural do Direito, tal como a venho expondo, notadamente em O Direito como Experiência, Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, e na 5â edição de Teoria. Tridimensional do Direito, de 1994 - na qual foi inserto um Suplemento a meu ver essen cial cabe ao intérprete atentar tanto à fonte, cuja intenção originária não é despicienda, como aos fatos e valores vigentes no momento em que o conteúdo da fonte é objeto do trabalho hermenêutico. Que se deve, em suma, entender por “âmbito material de validade”, como conteúdo da fonte de direito? Julgo eu que esse âmbito é o variegado mundo da eficácia ou da efetividade, ou seja, o do conteúdo da fonte apreciado - não como simples enun ciado lógico de dever-ser, mas como um dever-ser que se concre tiza na experiência social, correlacionando-se com conjunturas factuais e exigências axiológicas12. E de conseqüência, a meu ver, relevantíssima a compreen são do conteúdo  das fontes em termos de modelos jurídicos, porquanto, a essa luz, o seu conteúdo se desprende, como vi mos, da intenção originária do legislador ou dos demais agen tes instauradores das normas, permitindo que estas - sem ol vido dos motivos inicialmente determinantes de sua instaura ção - possam atender,  prospectivamente,   a fatos e valores supervenientes suscetíveis de serem situados no âmbito de validez das regras em vigor tão-somente mediante seu novo entendimento hermenêutico.  Até mesmo o pandectista Wach reconheceu que “a lei é mais sábia do que o legislador”, no sentido de que ela logra atender à solução de conflitos ou a novas linhas de interesses que o legislador, a seu tempo, no ato de promulgar a norma, 12. Essa minha colocação integralizante da hermenêutica jurídica foi bem realçada por CHRISTIANO JOSÉ DE ANDRADE, em seu livro Hermenêutica Jurídica no Brasil, Revista dos Tribunais, Caps. 4 e 5, 1991, págs. 91-130.

estava bem longe de prevê-los. Podemos dizer com Pontes de Miranda - cuja obra principal se liga fundamentalmente à dos pandectistas, só que numa perspectiva neopositivista - que a norma jurídica é, via de regra, dotada de certa elasticidade, de tal modo que o intérprete pode adaptá-la ou adequá-la a im previstas circunstâncias, graças a um processo hermenêutico histórico-evolutivo e omni-compreensivo, ou, por melhor dizer, inserido concretamente na dialeticidade da experiência social. Ora, só a compreensão do conteúdo das fontes de direito em termos de modelo jurídico tem a virtude de torná-lo susce tível de realizar-se ou efetivar-se na plenitude de sua potencial validade, não somente possibilitando que a regra jurídica seja vista como algo objetivo e válido de per si (independentemente da intenção originária de quem a pôs in esse) e também que ela se efetive em todo o leque de suas virtualidades, até que surja imperiosa necessidade da revogação da norma vigente para dar lugar a novo processo normativo.

O Direito como norma e situação normada O certo é que, enquanto possível, a norma jurídica deve ser mantida, não apenas em razão do “princípio de economia de meios”, mas sobretudo porque as longas pesquisas sobre a interpretação e a aplicação de uma lei, por exemplo, sobretudo quando fundamental, representam um cabedal de experiência e de conhecimentos doutrinários que deve ser preservado. É esse espírito que dá à Ciência do Direito a qualidade de Juris prudência, não significando a prudência mero apego ao vetus to ou superado, mas antes a consciência de promover a novida de na medida de sua real correspondência a reais anseios da comunidade.  À vista do exposto, permitam-me insistir, a teoria tradi cional das fontes, ainda dominante, deixa-se guiar por uma visão retrospectiva de sua validez, enquanto se impõe considerála também de maneira prospectiva, numa correlação essencial 32

entre validade e eficácia,  tendo como fundamento  os valores que a instauraram e lhe mantêm a continuidade do processo.  A exigência trina de validade (vigência) de eficácia (efetividade)  e de fundamento (motivação axiológica) milita em favor da compreensão da vida jurídica em termos de modelos  jurídicos,   desde a instauração da fonte normativa até a sua aplicação, passando pelo momento de interpretação, pois o ato hermenêutico é o laço de comunicação ou de mediação entre validade e eficácia. Se, em suma, a norma jurídica  é posta, sendo declarada objetivamente válida, realizando uma integração de  fatos se gundo valores, no momento de interpretá-la e aplicá-la deve mos percorrer esse mesmo caminho, ou seja, compreendê-la como uma estrutura cujo significado é dado pelos  fatos que a condicionam e pelos valores que a legitimam. Não é outra se não essa a razão de ser da compreensão das  fontes  de direito em termos de modelos jurídicos.  A natureza prospectiva dos modelos jurídicos tem como conseqüência afirmar-se que o  Direito é norma e situação normada,  no sentido de que a regra de direito não pode ser compreendida tão-somente em razão de seus enlaces formais. Estamos, assim, perante o delicado problema da concreção da experiência jurídica, a qual deve ser considerada em dois momentos distintos. Em primeiro lugar, a concreção13 se põe como referência a cada modelo jurídico considerado de per si, pois ele não é mero símbolo de uma realidade situada ab extra, isto é, como algo existente no mundo exterior, como um dado oferecido ao exame do intérprete (juiz ou qualquer outro aplicador de normas, como o administrador ou o advogado) e que se apresenta para ele como um objeto em si mesmo pleno de significação. 13. Sobre outros aspectos da concretude jurídica, v. MIGUEL REALE, O Di reito como Experiência,  cit., 2-  ed., e Nova Fase do Direito Moderno,   cit., págs. 123 e segs., com referência ao pensamento de KARL ENGISCH, JOSE ESSER e KARL LARENZ.

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Muito embora todo modelo jurídico suija em parte de uma representação mimética ou espelhada do real, uma vez objetivizado este (tomado objetivo como signo normativo) não pode mais ser desvinculado dos fenômenos a que se refere: os fenômenos regrados integram-se no modelo como razão de ser de seu significado.

Normativismo jurídico concreto É essa correlação entre o modelo e o que é modelado, per ceptível desde o momento inicial de sua gênese, que justifica e exige a substituição de um normativismo jurídico lógico-formal por um normativismo jurídico concreto. Por outro lado, como os fatos e valores, que informam o conteúdo do modelo, se subordinam à emergência de novas configurações factuais e axiológicas, como é próprio dos entes prospectivos, é funda mental e decisivo, para sua autêntica e plena vigência e eficá cia, o papel da Hermenêutica Jurídica, questão esta que, por sua relevância, será objeto de capítulo próprio.  Ao lado, porém, dessa compreensão atômica ou individua lizada de cada modelo jurídico, sujeito às peripécias às vezes imprevisíveis de sua aplicação, há que lembrar uma outra modalidade de concreção que ocorre em virtude de os modelos  jurídicos se acharem inseridos no macromodelo do ordenamento  jurídico. Muito embora também esta questão venha a ser oportu namente analisada, convém, por motivos de ordem expositiva, adiantar que o conteúdo de um modelo jurídico não resulta apenas de novas formas de compreensão, por assim dizer in terna corporis. É que o advento de outros modelos jurídicos, sem que tal fato seja sequer previsto, incide sobre os modelos  jurídicos em vigor, alternando-lhes a significação. É que o ordenamento jurídico, não obstante as lacunas e a vaguidade de suas disposições, põe-se necessariamente como uma orde nação per summa capita coerente. Como veremos, um dos pro34

blemas mais delicados é esse da consciência interna ou unida de semântica do ordenamento jurídico. Por ora, o que deve ser realçado é, porém, o fato de que a significação de um modelo jurídico depende de sua situação e correlação no todo do ordenamento, cujo horizonte de validade é traçado pela Constituição de cada país. Foi afirmado que a teoria tridimensional do direito não teria sentido porque a norma absorve o valor, mas tal assertiva revela apenas ralo conhecimento do assunto. Em verdade, o que distingue o normativismo concreto dos demais é exata mente isto: a integração de fatos e valores na estrutura normativa, ao contrário do tridimensionalismo de Gustav Radbruch ou de Julius Stone, que estudam separadamente o fato, o valor e a norma, sem conceberem esta como o momento culminante de um processo dialético unitário. Daí o meu conceito de norma jurídica, estabelecido desde a 1®edição de Fundamentos do Direito (1940) como “uma es trutura integrante de fatos segundo valores”.

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CAPÍTULO V Natureza dos Modelos Jurídicos Noção de modelo jurídico Consoante já notado, os modelos jurídicos  são uma das espécies de modelos do Direito, pois nestes se incluem também os modelos dogmáticos ou hermenêuticos, cujo conjunto forma a doutrina ou, como dizia Savigny, o Direito científico. Embora o assunto comporte ulteriores desenvolvimentos, podemos deixar desde logo assente que a distinção essencial entre modelos hermenêuticos e modelos jurídicos é a natureza  prescritiva  destes, ou seja, a sua específica e precisa função prática de reger, de maneira objetiva, atos futuros. Os modelos hermenêuticos, ao contrário, embora referidos à praxis social, não perdem seu viés teórico e, por mais relevantes que sejam seus fundamentos, não possuem a qualidade de obrigar alguém a agir de conformidade com as suas conclusões. Firmado esse ponto, cumpre insistir que, quando se fala em modelo,  na Epistemologia contemporânea, não se pensa em um  protótipo ou modelo ideal,  em termos platônicos ou mesmo werberianos, mas sim em uma estrutura ou esquema que compendia sinteticamente as notas identificadoras ou dis tintivas de dado segmento da realidade, a fim de ter-se dele uma base segura de referência no plano científico. Nessa linha 37

de pensamento, o modelo jurídico não indica um fim primor dial e abstrato a ser atingido, mas sim o fim ou os fins concre tos que se inserem no dever-ser  do Direito correspondente a um dado complexo de regras objetivizadas ou formalizadas se gundo os requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico para cada modalidade de fonte do direito. Não se deve, com efeito, esquecer que a fonte legal, por exemplo, se apresenta segundo diversos  graus de amplitude, no que se refere ao número de normas que a compõem ou à quantidade de seus destinatários; bem como segundo distintos graus ou níveis de validade, uma vez que não se pode conceber o ordenamento jurídico - que, em última análise, corresponde a um macromodelo jurídico - sem uma hierarquia de normas, sendo umas subordinantes e outras subordinadas na linha de sua aplicação e efetividade. Não é demais lembrar que a hierarquia, ou a ordem de subordinação das fontes entre si - salvo quanto ao primado da  fonte constitucional,  que tem um status jurídico próprio - não obedece a princípios uniformes e universais, mas se vincula a distintas conjunturas histórico-sociais, conforme se depreende, como já foi notado, do confronto entre o sistema de origem romanística (ou do Civil Law,  como dizem os autores angloamericanos), no qual predomina a fonte legislativa, e o siste ma do Common Law, no qual prevalece a fonte costumeira jurisprudencial para disciplina das relações privadas. Na In glaterra, aliás, ao contrário dos Estados Unidos da América, com sua Constituição escrita, até mesmo a ordem constitucio nal origina-se fundamentalmente de usos e costumes, consubs tanciados na praxe parlamentar e em seus statutes. Neste ou naquele caso, porém, os modelos jurídicos repre sentam formas ou fôrmas, permitam-me assim dizer, mas fôr mas flexíveis ou plásticas mediante as quais se ordena o con teúdo das fontes do direito. Sendo os modelosjurídicos formas de compreensão e atua lização do conteúdo das fontes do direito, eles são obviamente dotados da mesma força objetiva e positiva de obrigatoriedade  já atribuída às fontes, não se reduzindo, por conseguinte, a 38

meras expressões lingüísticas, ou a simples formas técnicas de conhecimento das regras jurídicas. Estas constituem sempre o objeto do processo hermenêutico,  só que são interpretadas en quanto elementos componentes de um modelo, cuja estrutura e atualização pressupõem sempre referibilidade a  fatos e valores. É por essas mesmas razões que o modelo jurídico não é mero modelo matemático, muito embora ele possa ser estuda do em termos de Lógica deôntica, ou Lógica do dever ser. Con soante já assinalado, Newton Afonso da Costa, reconhecido in ternacionalmente como o principal instaurador da Lógica paraconsistente, e sua equipe têm realizado relevantes traba lhos de formalização do Direito, levando em conta mais de uma dimensão, como já foi feito com sucesso com a Teoria Tridimensional do Direito14.

Modelagem da experiência jurídica  Ao converter o conteúdo da fonte do direito em modelos  jurídicos, temos uma estrutura que, em virtude de projetar-se historicamente no tempo até enquanto a fonte estiver em vi gor, se vincula à experiência jurídica, obedecendo às mutações fático-valorativas que nesta se operam. É por tais motivos que, louvando-me do que escrevo em Lições Preliminares de Direito (Cap. XV), posso afirmar que das fontes do direito resulta toda uma trama ordenada de relações sociais que, em virtude das matrizes de que se originam, são dotadas de garantia específi ca, ou sanções. Opera-se, desse modo, através da história, o processo de “modelagem jurídica” da realidade social, em vir tude de sempre diversas e renovadas qualificações valorativas dos fatos. Onde há norma há sempre sanção, isto é, uma forma de garantia acrescentada à regra para assegurar o seu adimplemento, podendo haver tanto sanções penais como premiais, porquanto não é apenas mediante a aplicação de pe~ 14. Cf. nota 4, supra.

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nas que se pode obter a atualização das normas jurídicas. O que não há são modelos jurídicos desprovidos de sanção. É a razão pela qual entendemos que os modelos de Direito, elabo rados pela doutrina, não são “modelos jurídicos” propriamente ditos, no sentido técnico deste termo. Pois bem, à medida que a legislação e a doutrina se de senvolvem e ordenam os fatos, vão surgindo distintos modelos normativos, correspondentes a diversas estruturas sociais e históricas. No fundo, a história do Direito é a historia de seus modelos, de seus institutos, instituições e sistema de normas, em função das mutações sociais. O termo modelo jurídico foi por mim proposto em meu livro O Direito como Experiencia 15, como complemento neces sário à teoria das fontes de direito. O conceito de modelo, em todas as espécies de ciências, não obstante as suas naturais variações, está sempre ligado à idéia de projeto, de planifica ção lógica e à representação simbólica e antecipada dos resul tados a serem alcançados por meio de uma seqüência ordena da de medidas ou prescrições. Cada modelo expressa, pois, uma ordenação lógica de meios a fins, constituindo, ao mesmo tem po, uma preordenação lógica, unitária e sintética de relações sociais. Assim acontece, por exemplo, com o “modelo arquitetô nico”, ou projeto, que antecipa e condiciona a construção de um edifício. Coisa análoga ocorre com os modelos mecânicos ou os matemáticos. Dessa exposição resulta que os modelos jurídicos não são meras criações da mente, mas sim o resultado da ordenação racional do conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes de direito, para atender aos característicos de va lidade objetiva autônoma e de atualização prospectiva  dessas mesmas normas.

15. Antes já o fizera em comunicação enviada ao Congresso Internacional de Filosofia realizado em Viena, em 1968 (cf. nota 1, supra).

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 A “modelagem” da experiência jurídica é feita, portanto, pelo jurista em contato direto com as relações sociais, como o faz o sociólogo, mas enquanto este se limita a descrever e ex plicar as relações existentes entre os fatos, em termos de leis causais ou motivacionais, o jurista opera mediante regras ou normas produzidas segundo o processo correspondente a cada tipo de fonte que espelha a solução exigida por cada campo de interesses ou valores. A bem ver, a compreensão de um setor da experiência jurídica pode e deve valer-se do conteúdo de mais de urna fonte do direito, quando correlatas ou comple mentares, de modo que a configuração de um modelo jurídico implica o estudo dos distintos processos normativos que, por sua natureza ou finalidade, exijam reductio ad unum, isto é, interpretação e aplicação conjuntas. Tal fato ocorre porque o ordenamento jurídico, conforme já salientado, não é um ajun tamento causal e contrastante de normas dispersas, mas, como o próprio termo o indica, constitui-se como integração normativa cujos elementos se articulam racionalmente. Se o ordenamento  jurídico não tem a graduação lógica atribuída por Kelsen ao sistema do Direito nacional e internacional, reconhece-se, geraímente, que, em virtude de sua subsunção à mesma ordem constitucional, ele se constitui, tudo somado, como unidade coerente e complementar, cujas lacunas e contradições é mis ter superar.  A unidade in fieri do ordenamento jurídico como será me lhor explanado no Capítulo final deste livro, explica-se ainda em razão da ordem imanente à experiência jurídica. Sobre este assunto, peço vênia ao leitor para fazer também remissão às idéias por mim expostas em O Direito como Experiência eNova Fase do Direito Moderno, nos quais estudo o ordenamento ju rídico como um processo aberto de modelos jurídicos que, tudo somado, se complementam16. 16. Vide, especialmente, o Cap. X, infra, págs. 105 e segs. deste livro, e JOÃO BAPTISTA MOREIRA, Um Estudo sobre a Teoria dos Modelos Jurídicos de Miguel Reale, São Paulo, Resenha Universitária, 1977, págs. 55 e segs.

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Modelos da Filosofia do Direito e modelos do Direito É indispensável lembrar que, quando me refiro aos mode los jurídicos, sem os considerar meros esquemas lógicos repre sentativos da realidade social, nem arquétipos ideais a serem alcançados, estou situando a questão no plano da Ciência do Direito, isto é, tratando dos modelos jurídicos enquanto ele mentos operados pelo jurista em sua faina de juizes, advoga dos ou administradores. Para ilustrar meu pensamento, nada melhor do que con frontá-lo com o que o jusfilósofo italiano Enrico Di Robilant expõe no seu interessante livro Modelli nella Filosofia dei  Diritto, publicado em Bolonha, em 1968, no mesmo ano em que era editada no Brasil minha citada obra O Direito como Expe riência, com dois amplos ensaios dedicados ao estudo dos mode los jurídicos, os de número VII e VIII, págs. 147 usque 225. Já antes expusera o mesmo tema em comunicação escrita para o Congresso Internacional de Filosofia de Viena, realizado no mesmo ano, denominada “Para uma teoria dos modelos jurídi cos”, com texto em francês enviado meses antes17. Objeto da monografia de Di Robilant é, como ele mesmo o declara, à pág. 15, “tentar uma análise daquilo que de fato os filósofos do direito realizam nas suas pesquisas”. Como se vê, não indaga dos modelos do Direito como tais, como objetos da Ciência do Direito inseridos na experiência jurídica concreta, mas sim como esquemas ou processos de pesquisas filosófico jurídicas, capazes de oferecer critérios de valoração das pes quisas mesmas. O título do livro é, aliás, por si só, bem expresa sivo.  Ao contrário, desde os meus primeiros estudos o que pro curei determinar foi como a experiência jurídica se apresenta 17. Lembro essas datas porque um comentarista italiano não vacilou em afirmar que minha tese era reflexo da de DI ROBILANT, que, como se verá, além de ter escopo completamente diverso, foi publicada posteriormente à minha citada comunicação.

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sob a forma de estruturas normativas cogentes, isto é, como modelos jurídicos inseparáveis da realidade social do Direito. Situada a questão no plano das indagações, o que sobrele va no livro de Di Robilant é a compreensão do termo modelo como “esquema cognoscitivo”. Apresenta ele quatro tipos des se esquema. Numa primeira acepção, consoante se dá na dou trina de Herbert Hart, o modelo se põe como “esquema que procura reproduzir, nas suas linhas essenciais e de forma com pacta, algo que pertence à experiência”, constituindo “tentati va de inteirar-se de uma realidade social de modo sintético”. Observa-se, outrossim, que, “enquanto representação,  o mode lo deve ser fiel à realidade, sem ser sua mera reprodução” (págs. 67 usque 68). Numa segunda significação, continua o mesmo autor, a palavra modelo tem o sentido de “exemplo de”, “protótipo”, “for ma exemplar”, como ocorre na linguagem corrente, e é seguida por vários jusfilósofõs que cita, cabendo notar que, dado o seu caráter de idealidade, nela prevalece a falta do elemento cons tituído pela representação da realidade. Numa terceira acepção, o termo modelo corresponderia a “norma” ou “esquema de com portamento”, o que, em última análise, equivale a “critério de comportamento”, tal como era empregado, digo eu, por Eduar do Garcia Máynez. Finalmente, teríamos o significado de mo delo como “construção artificial para análise de um fenômeno de realidade social”, tal como, segundo Di Robilant, se daria na obra de Rawls. Conclui o mencionado autor que, “entre as coisas que fa zem os filósofos do direito, em suas atividades de investigação, há a construção de modelos, entendidos sobretudo na primeira e na quarta das significações apontadas”. Verifica-se, por con seguinte, que o problema dos modelos é por ele apresentado, em última análise, tão-somente no plano gnoseológico da Filo sofia do Direito, como esquemas mediante os quais os cultores desta disciplina procurariam reproduzir fielmente a estrutura de um fenômeno social, mediante a seleção sintética de seus elementos caracterizadores (págs. 83 usque 89). 43

Ora, não obstante a relevância desse estudo no plano da Gnoseologia Jurídica, há um problema diverso e não menos relevante, por mim focalizado, que diz respeito, não a critérios de explicação e aferição de formas de compreensão filosófico jurídicas, mas sim relativamente aos modelos da Ciência do Direito, como estruturas normativas mediante as quais é pos sível ter uma visão científico-positiva da experiência jurídica em seus múltiplos aspectos, desde as relações de ordem priva da às de ordem pública. É claro que, ao compreender a experiência jurídica em ter mos de modelos, o pesquisador se vale de seu poder criador ou instituidor de formas compreensivas do real, mas estas não são concebidas como simples “elementos táticos” de compreen são, nem como “meras reproduções sintéticas e compactas do real”: os modelos são captados e revelados na imanência mes ma do processo experiencial. Trata-se, em suma, de algo de que o pesquisador toma ciência em direto contato com a reali dade jurídica, numa correlação sincrónica entre o significante e o significado. Dir-se-ia que surgem uno in actu  a percepção da estrutura normativa da experiência jurídica e a sua repre sentação e formulação como modelo jurídico, podendo-se lem brar a lição de Giambatista Vico de que “verum ac factum convertuntur".  Aliás, o próprio Di Robilant reconhece que, quando se tra ta de modelo, a reprodução do real não se confunde com a sua simples descrição, pois “o que distingue um modelo da mera descrição é, propriamente, o fato de pôr em evidência a estru tura de um fenômeno, operando uma seleção entre os elemen tos que compõem o mesmo fenômeno, de modo a apresentar dele um esquema, e o fato de ser construído em função de de terminado fim, do qual deriva a sua valoração em termos de utilidade científica” (pág. 90). Se é assim, não compreendo como possa ò modelo consti tuir “uma síntese e uma construção artificial (sic), no sentido de que apresenta algo que, naquela forma, não existe na reali 44

dade”, nem tampouco que seja apenas “uma tentativa de en quadrar um fenômeno da realidade social em uma figura uni tária, segundo categorias e qualificações que não se encontram como tais no fenômeno reproduzido” (pág. 90).

Concreção dos modelos jurídicos Ora, mesmo os modelos físicos não são concebidos tal como se observam na realidade natural - visto como as leis científi cas são sempre criações da mente humana mas o cientista, por assim dizer, extrai criadoramente do real os modelos que correspondem, e não podem deixar de corresponder, ao realgua tale. Bem mais acentuadamente do que ocorre no mundo cul tural em geral, como se dá com os modelos econômicos, lingüís ticos e artísticos, no mundo jurídico constituem-se formas obri gatórias de comportamento que o espírito humano capta e ex pressa como estruturas ou categorias normativas, que não se confundem com a realidade em si, mas também não podem ser reveladas com abstração dela, e daquilo que, por assim dizer, nela já se encontram in nuce. Somente desse modo os modelos jurídicos deixam de ser meros esquemas cognoscitivos, para valerem como elementos constitutivos da própria experiência jurídica, tal como é exigi do pela visão concreta do Direito como experiência. De resto, cumpre esclarecer o equívoco de afirmar-se que os modelos não correspondem à realidade, sendo uma “cons trução artificial”. Uma afirmação dessa natureza prende-se a uma visão naturalista ou fisicalista da realidade, com olvido de tudo que nos ensina a teoria dos objetos , revelando as múl tiplas formas assumidas pelo real. Ninguém afirma que os modelos jurídicos sejam elemen tos componentes da realidade social, encontrando-se nesta com todas as suas categorias e qualificações, mas nem por isso dei45

 Yam eles de ser realidades culturáis, constituidas pelo pesqui sador de conformidade com aquela construção que com a reali dade se conforme de maneira objetiva e necessária. Voltarei a este tema. De acordo com a teoria dos objetos, revigorada por Franz Brentano e potenciada por Edmund Husserl e seus continua dores, a realidade é bem mais complexa do que a apresentada pelos que a reduzem apenas a objetos físicos ou psíquicos, isto é, aquilo que naturalmente se apresenta à sensibilidade e à percepção. Grande passo foi dado quando se reconheceu a “realidade dos objetos ideais” como os lógicos ou os matemáticos. Pode-se divergir quanto à sua gênese que, segundo Piaget, se prende sempre a fenômenos psíquicos, os quais, a seu ver, em dado momento se convertem em algo de “validade em si”, mas o que, hoje em dia, não se contesta é que tais expressões d eidealidade, como formas em si do pensamento, ou seja, objetos ideais, são tão “reais” como os objetos físicos e psíquicos, tanto assim que são objetos de nossas proposições e cálculos. Tudo depende de saber de que “realidade” ou “entificação” se trata. Outro passo relevante ocorreu quando, indo-se além do mundo do Ser, ou do Sein, se reconheceu a “realidade” dos va lores, das estimativas que se põem no plano do dever ser ou do Sollen. Modéstia à parte, penso ter contribuído a firmar a au tonomia daAxiologia ou Teoria dos Valores, quando fiz ver (em bora se teime em não querer ver algo proposto no Tsrceiro Mundo...) que os valores não são objetos ideais (expressões do mundo do Sein) mas constituem uma esfera própria de obje tos, a dos objetos que devem ser, no mundo do Sollen, tirando assim uma conclusão de certo modo implícita na distinção es sencial de Kant entre o que é e o que deve ser. Pois bem, essa compreensão quádrupla dos objetos (físi cos, psíquicos, ideais e valores) auxilia-nos a ter mais claro entendimento dos objetos culturais, como os artísticos, os eco nômicos, os jurídicos, os científicos etc., os quais são enquanto 46

devem ser, como penso ter demonstrado com argumentos que não teria sentido reproduzir nestas páginas, mas que consti tuem parte substancial de meu pensamento. Pedindo, pois, vênia ao leitor para remetê-lo ao que escre vi alhures18, podemos concluir que os modelos jurídicos, longe de serem arbitrárias ou artificiais construções da mente, sur gem e se põem como realidades ou objetos culturais, estrutu ras normativas típicas com que o pesquisador representa e sin tetiza distintos aspectos da experiência jurídica, em função das fontes de que promanam, e em razão dos fins que visam a atin gir na vida comunitária.

Modelos jurídicos e símbolos Resta ainda examinar um aspecto de grande interesse, que é saber se os modelos jurídicos podem ser reduzidos a sím bolos. Enquanto representações sintáticas de dado campo da experiência social, os modelos jurídicos apresentam algo de sim bólico, mas seria grave erro dar realce a esse aspecto em detri mento de outros bem mais relevantes, que dizem respeito à finalidade que lhes é inerente como estruturas normativas des tinadas a reger e preservar atos futuros, tendo em vista a rea lização dos valores pertinentes ao campo de ação por eles abran gido. De mais a mais, nem todas as virtualidades do “símbolo” são aplicáveis aos modelos jurídicos. O ensaísta e cientista Mil ton Vargas, do Instituto Brasileiro de Filosofia, com milita pre cisão escreve: “Em termos objetivos diz-se que o símbolo tem quatro funções principais. A primeira é a função denotativa, pela qual ele refere-se diretamente à coisa; a segunda é a conotativa, pela qual alude a tudo que, de alguma forma, asso cia-se à coisa denotada; a terceira é a evocativa, com a qual faz 18. Sobre a Teoria dos Objetos, v. MIGUEL REALE, Introdução à Filosofia, cit., 3® ed., §§ 68 usque  77; Filosofia do Direito,   15® ed., cit., §§ 76-84, e Experiência e Cultura,  São Paulo, 1977, Cap. IV, págs. 87 usque  105, Cap.  VI, págs. 137 usque 150, Cap. VII, págs. 171 usque  188 e passim.

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surgir algo ausente; e a última é a emotiva, pela qual desper ta, em quem o percebe, emoção quer artística, quer sentimen tal”19. Ora, à vista da correlação essencial existente entre a ex periência jurídica e seus distintos modelos jurídicos, jamais estes poderiam ter mero sentido evocativo de algo ausente, como acontece na poesia, devendo imprescindivelmente denotar e conotar o campo de relações sociais das quais emerge através de um processo de racionalização objetiva. Donde não pode rem também exercer uma função emotiva: a racionalidade,  isto é, a formulação de juízos ou proposições lógicas, é inseparável do conceito de modelo jurídico, que é sempre um ente racional, embora não seja simples “ente de razão” ou da mente humana. Deve-se, em suma, reconhecer que há um sentido prospec tivo ou vetorial em todo modelo jurídico, pois, como vimos, este é sempre de natureza normativa, e toda norma é emanada para reger atos ou acontecimentos futuros. Isto posto, parece-me já poder completar a noção inicial de modelo jurídico, apresentando-o como·“estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da ex  periência social, prescrevendo a atualização racional e garan tida dos valores que lhes são próprios”. Nos termos da teoria tridimensional do Direito, pode-se, analiticamente, esclarecer que a estrutura de um modelo jurí dico pressupõe: а)  dado campo de atos ou fatos da experiência social; б) uma ordenação normativa racionalmente garantida; c) o propósito de realizar valores ou impedir desvalores, de conformidade com a natureza de cada porção de rea lidade objeto da investigação científica. Como se vê, os modelos jurídicos são instrumentos de vida segundo pressupostos e categorias que a pesquisa científica elabora em função de cada domínio da realidade social, numa compreensão unitária. 19. Revista de Poesia e Crítica, Ano XVII, n. 17, pág. 8.

CAPÍTULO VI Gênese dos Modelos Jurídicos Um problema de Política do Direito Para plena compreensão da natureza dos modelos jurídi cos nada melhor do que o estudo de sua gênese, que contribuí para desfazer a idéia de uma construção artificial, como se se tratasse de meros produtos da mente. O tecnismo jurídico tem debalde procurado reduzir o Direito a um “sistema de normas técnicas”, concebidas como simples instrumentos táticos de instauração e salvaguarda dos objetivos que se têm em vista realizar, atendendo a interesses éticos, económicos, políticos etc. De conformidade com o já exposto, creio que ficou esclare cido que os modelos jurídicos, por mais que impliquem a parti cipação criadora e ordenadora da inteligência, compondo sin teticamente em unidade estrutural elementos múltiplos e não raro dispersos da experiência, nunca deixam de ser momentos da experiencia jurídica mesma, enquanto expressões do mun do da cultura. Não se pode, em suma, configurar os modelos jurídicos como lentes através das quais se observa o mundo da conduta humana, mas sim como estruturas que surgem e se elaboram 49

no contexto mesmo da experiência, como objetos histórico-culturais que são. É a razão pela qual a formação dos modelos jurídicos está sujeita às variegadas vicissitudes próprias das relações de toda sorte em jogo entre os indivíduos e os grupos que ora se conci liam ora se conflitam na sociedade. Não se pode dizer que em qualquer processo legislativo haja sempre uma carga de irracionalidade, de pretensões e pressões oriundas de inqualificáveis interesses, sendo mais plausível admitir-se a hipótese freqüente de leis originadas de legítimos interesses, graças a uma tramitação parlamentar objetiva e isenta, na qual, além de serem cumpridos os requisi tos formais, tenham sido consultados e atendidos os reais inte resses da coletividade. Em tal caso exemplar, o processo legislativo se desenvolveria em perfeita linearidade racional, sem sequer haver necessidade de emendas ou substitutivos apresentados ao projeto original. Não ignoro, todavia, que essa hipótese nem sempre pre valece na vida parlamentar, onde predomina cada vez mais contraste de interesses, alguns ideológicos e outros de cliente la, quando não são fruto de reprováveis ambições pessoais ou de meras vaidades. Não cabe, por certo, à Ciência do Direito como tal o estudo desse assunto, o qual se situa por inteiro no âmbito da Política do Direito, denominação atual da antiga Teoria da Legislação, na qual se projetaram magníficos ensinamentos como os de Bentham ou de Filangieri. A Política do Direito é uma discipli na científica que serve de mediação entre a Ciência Política e a Ciência do Direito. Com razão se afirma que nenhum projeto ou plano políti co se realiza plenamente se ele não se transforma em lei. Numa ditadura, e sobretudo num Estado totalitário, a vontade do chefe ou dos líderes políticos tem força de lei, de tal modo que não há necessidade de uma ciência intercalada entre o poder político e o processo legislativo. Numa democracia, ao contrário, as leis 50

são o resultado final de um processo que começa com o estudo de determinado campo de interesses que esteja reclamando a formulação de modelos jurídicos adequados a seus objetivos, provocando, em cascata, uma série de projetos de lei, um dos quais poderá ser convertido em preceito legal.  A verificação da legitimidade dos interesses em jogo im plica múltiplos estudos de ordem ética, econômica, financeira, sociológica etc., num complexo de pesquisas que constitui o objeto da Política do Direito, ciência globalizante e sintética por sua própria natureza. Função da Política do Direito é a análise de todos os elementos e fatores que justificam e legiti mam a conversão em lei de certas pretensões políticas. E claro que a Política do Direito não se resume na elaboração do pro cesso legislativo, mas este é o seu instrumento de ação por ex celência.

 A decisão do poder no processo jurígeno Nas sociedades abertas é de marcado sentido pluralista a objetivização, ou seja, a transformação de pretensões de or dem política, na acepção mais ampla deste termo, em modelos  jurídicos, sempre dotados de validade prescritiva. Até certo ponto, toda pretensão política tende a acabar em proposta de lei, a qual, no mais das vezes, representa o resultado de uma composição de valores e interesses. É o motivo pelo qual torna-se indispensável estudar as razões e o processo mediante os quais os modelos jurídicos são elaborados, ao prevalecer uma determinada diretriz sobre as demais, recebendo a aprovação e a sanção do Poder competen te, federal, estadual, ou municipal. No meu livro O Direito como Experiência dedico especial atenção a esse problema, mostrando, à luz de ilustrativas in vestigações de sociólogos e politicólogos, como o nascimento 51

das leis pode ocorrer como resultado de um jogo de atos contra ditórios e de impulsos a-racionais, tornando impossível qual quer previsão quanto à formulação e promulgação finais de um projeto de lei. Pois bem, o homem, por sua própria natureza, não pode permanecer indefinidamente num estado de incerteza - por ser a dúvida tanto um mal lógico quanto existencial e, por isso mesmo, paradoxalmente, poderosa fonte instigadora na busca da verdade - mister é que, em um certo momento, uma opção seja feita por determinada via, e haja escolha de um projeto de lei, em detrimento dos demais. É o momento decisivo do fiat lex, da decisão em virtude da qual uma das propostas legislati vas se converte em lei. Debalde os que se arreceiam da Górgona do Poder têm procurado lobrigar ou conceber processos de auto-revelação do Direito como conseqüência de um processo social imanente, ora guiado por sugestivas forças intuitivas, ora por rebuscados sortilégios da chamada “razão comunicativa”. Não obstante essas tentativas românticas de um Direito gerado sem as impurezas do poder, geralmente associado à margem da força bruta, prevalece o entendimento de que a gênese dos modelos jurídicos não pode prescindir do poder, en tendido como inevitável participação de uma decisão que põe termo à incerteza essencial ao fecho do processo nomogenético, no pressuposto de ser essa a via mais adequada aos imperati vos do bem público. Não creio que será demais reproduzir, nestas páginas, o gráfico com que procuro ilustrar a gênese das normas jurídi cas, valendo-me das diretrizes da teoria tridimensional do di reito, apresentando os valores  como raios luminosos que incidem sobre um complexo  factual,  refragindo-se em um le que de normas possíveis, uma das quais se converte em norma legal,  graças à interferência opcional do Poder. Eis a figura:

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ESTRUTURA DA NOMOGÊNESE JURÍDICA 

Complexo fático O exame dessa figura, aplicável à gênese de todo modelo  jurídico, qualquer que seja a fonte de que promana, suscita uma série de problemas, o primeiro dos quais diz respeito à natureza da decisão do Poder (P) que interfere tão decisiva mente no processo normativo.

Progressiva despersonalização do poder Tempo já houve em que o poder se vinculava íntima e indissoluvelmente à pessoa de seu detentor, sobretudo até quan do preponderou a teoria da origem divina da autoridade dos reis. Aliás, a história do poder sempre andou mesclada com a invocação de seu valor transcendente, perdendo-se no mito ou no mistério. Tão perturbadora é a idéia da subordinação da comunidade a uma força situada no alto, como distribuidora de mercês e outorgadora incontestada de regras obrigatórias de bem viver, que se compreende o apelo a algo transumano, capaz de ser invocado como fonte de sua legitimidade. Não cabe neste pequeno livro, de finalidades jurídicas es tritas, o estudo da dramaturgia complexa e sedutora do poder, 53

desde suas misteriosas origens, as quais se confundem com a história do próprio Direito, quando as normas deste ainda não se distinguiam das religiosas. A Antropologia jurídica revela ra aspectos surpreendentes das fontes do direito no período ar caico. Em Lições Preliminares de Direito lembro alguns carac terísticos do Direito arcaico, quando o poder se revestia de for ça mítica, fato este que projeta nas diversas tentativas de legitimação da autoridade monárquica graças à sua origem divina. Em pleno século XVII ainda se atribuía aos reis miste rioso poder de curar pelo simples toque de seus dedos20.  A história do Direito assinala, porém, não somente a secularização mas também a despersonalização progressiva do poder, a começar pela denominação mesma dos corpos legislati vos, que deixaram de ser “Ordenações” manuelina ou filipina, conforme o nome do rei que a outorgava, para serem, pura e simplesmente, Ordenações, sem referência à sua fonte emanadora, muito embora ainda se conservasse a idéia essencial da regra do direito como uma ordem ou comando.

 Absorção do poder pela regra de direito Um segundo momento de despersonalização do poder dáse quando o conceito de norma se desvencilha do significado antropomórfico de comando, ordem ou imperativo, para pas sar a expressar tão-somente uma configuração transpessoal, anônima e obrigatória de certo tipo de conduta ou de competên cia. Por outras palavras, a regra jurídica vale èm si e de per si encapsulando e englobando em si o ato decisório do poder, ou, como dizem outros, da vontade da vida comunitária. 20. Cf. op. cit.y  págs. 143 usque 148. Cf. HENRI DÉCUGIS, Les Étapes du  Droit des Origenes à nos Hours, Paris, 1946. Admirável é a obra de MÂRC BLOCH, Os Reis Taumaturgos - O Caráter Sobrenatural do Poder Régio, trad. de Julia Mainarti, São Paulo, 1993. Sobre o Direito arcaico, v. PAULO DOURADO DE GUSMÃO, Introdução ao Estudo do Direito, 16® ed., 1993, págs. 157 e segs.

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O paradoxal e impressionante é que a norma iuris  não surge sem a interferência do  poder,   mas não subsistiría em toda a sua objetividade e legitimidade se não “engolisse”, por assim dizer, o poder, no ato mesmo em que este a põe in esse. Caso contrário, o poder, ao invés de ser um fator de ordem, seria de desordem: ficaria interferindo, indevida e indefinida mente, perturbando a aplicação da regra de direito. Daí a ne cessidade de que seu “querer” se converta em “querer da nor ma”. Dá-se um fenômeno equivalente ao que ocorre no nasci mento de certos insetos, como o caranguejo, cuja fêmea devora o macho tão logo por ele fecundada... Na história do processo cultural, não há, em verdade, fato mais intrigante de que esse da regra de direito que nasce gra ças ao poder, e somente subsiste se o dever-ser do poder se incorpora na estrutura da norma, o que demonstra a sem-razão de ser do deeisionismo que só dá valor ao ato de decidir, erradicando-o no processo em que a decisão é tomada. Note-se que, por longo tempo, mesmo depois de constituí do o Estado de Direito - o qual se poderia considerar sob esse ângulo, o Estado no qual o Direito não se reduz às decisões do poder - ainda se continuou, por força de inércia, a dizer que “a lei deve ser interpretada segundo a intenção do legislador”. Ora, essa parêmia só tem algum sentido logo após a pro mulgação da lei, quando ainda vivo o sentido do dever-ser que determinou a conversão do projeto de lei em lei, mas, pouco depois, passa a não ter significação alguma, redundando numa busca impossível, absurda, da intenção de um legislador, como o do Código de Comércio dè ,1850 ou do Código Civil de 1916... Donde se deve concluir que o poder, no Estado de Direito, é um fato  (um ato decisorio qualificado, em virtude e em razão da competência do órgão legítimo que decide) inserido ou enucleado num complexo fáctico-axiológico, fato este que aca ba subsumindo-se à norma, a que dá lugar e explica o “sentido de validade e eficácia”  com que a norma surge.  A esse grande tema dediquei um estudo intitulado “O Po der na Democracia” (Direito e poder e sua correlação) o qual constitui o XIII Ensaio constante de meu livro  Pluralismo e 55

Liberdade, que é de 1963. As conclusões dessa pesquisa foram aceitas por Norberto Bobbio21.  Após aturada análise de vários aspectos do assunto - à qual peço vênia para remeter o leitor -, concluo pela verificação da “progressiva jurisfação do poder”, ou sua “progressiva institu cionalização objetiva”, com sua “despersonalização e transpersonalização”, até se apresentar sob a forma essencial de um ato decisório objetivo e transpessoal: “em poder escolher, para ou trem, escrevo eu, consiste a nota distintiva e eminente do poder”. Nesse sentido acrescento: “Na impossibilidade de uma clas sificação de fatores, pelo menos no estado atual das pesquisas, bastará concluir, embora a título provisório, que a análise his tórica e sociológica nos mostra, se não como realidade atual, ao menos como linha de desenvolvimento potencial, que o poder tende cada vez mais: a) a ser a expressão de uma idéia de direito, quer em cír culos associativos, quer no âmbito dos Estados nacio nais ou na comunitas gentium; b) a ser cada vez mais objetivo, despersonalizado e trans pessoal; c) a ser a expressão da integração progressiva de círculos sociais, com a concomitante garantia de campos autô nomos de ação para os indivíduos e os grupos; d) a ser cada vez mais fundado no consentimento dos go vernados, como expressão das liberdades que se com põem em unidade22.

Racionalidade e heteronomia O fato fundamental de o “dever-ser do poder” acabar sen do absorvido pelo modelo jurídico tem duas relevantes conse21. Op. cit., págs. 207 usque 235. Esse trabalho foi publicado antes nos Esta dos Unidos da América sob o título “Law, Power and their Correlations”, inserto no volume Essays in Honor ofRoscoe Pound, cit., págs. 238 e segs. 22. Op. cit., págs. 215 e 231.

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qüências. A primeira é que o processo normativo filtra, por as sim dizer, as impurezas e contradições do poder, convertendoo em um esquema impessoal e certo de comportamentos obri gatórios, nos limites de determinadas competências, sendò desse modo superado o arbítrio. Uma vez sancionada, com efeito, a norma jurídica - a qual, mesmo quando não constitui um modelo jurídico, acaba, no mais das vezes, por se compor com outras normas em vigor para incorporar-se a modelos jurídicos já existentes - cessa a competição que marcava o conflito entre projetos normativos em contraste, para prevalecer um deles, sendo objeto de san ção, de forma heterônoma e racional. Um dos aspectos mais notáveis da nomogênese jurídica é exatamente esse do superamento das contradições às vezes ir racionais ou a-racionais que precederam a elaboração do mo delo jurídico, com o advento deste como um ente racional, que deve ser objeto de interpretação e aplicação à luz de exigências da razão, sem as paixões que porventura hajam tisnado a sua formação. Nunca será demais atentar para o imperativo de raciona lidade que assinala a revelação de um modelo jurídico, como elemento essencial do Direito, o qual não pode ser concebido cientificamente a não ser como lucidus ordo, um ordenamento logicamente coerente, não obstante suas inevitáveis lacunas e contradições, como a seu tempo será estudado. Por outro lado, o modelo jurídico vale de per si, de confor midade com o querer (tomado este termo em seu sentido lógi co) que ele incorporou, passando a representar impessoalmen te e objetivamente o poder, sem qualquer resquício de antropo morfismo.  A validade e a eficácia do modelo jurídico são conseqüên cias do ato sancionatório, de tal modo que ambas, em sua cor relação essencial, marcam a positividade do Direito. Positiva se diz uma norma jurídica quando ela de per si possui validade e eficácia, de maneira heterônoma e impessoal, isto é, tão-somente em razão da força que lhe é própria, o que, evidente mente, não exclui que essa vis prescritiva não se subordine a 57

modelos jurídicos mais amplos, no seio de ordenamento jurídi co, no qual se situe como resultado da graduação da positividade  jurídica2'1. Dir-se-á que, apesar da despersonalização do poder, este se faz presente no sentido volitivo da regra de direito - o que levou Rudolf Stammler a conceber o Direito como uma “forma de querer entrelaçante"24 - mas tudo está em saber distinguir (e Stammler muito contribuiu para o esclarecimento do assun to) entre o termo “querer” em acepção psicológica e em acepção lógica. De início, por se originar de atos volitivos, o modelo  jurídico representa uma “forma de querer”, mas, quanto mais o tempo passa, mais ele se converte em esquema vetorial de “dever ser”. Verifica-se, em suma, uma passagem do plano explicativo do “querer psicológico” para o plano compreensivo do “querer normativo”. Como penso ter demonstrado, em di versas passagens de meus livros, não se passa do mundo do Sein ao mundo do Sollen a não ser em virtude da mediação de um valor: no caso em apreço, o querer originário, inerente do poder, é superado pelo valor de conteúdo do querer transferido para o modelo.  Visualizando essa questão sob o prisma stammleriano, poder-se-ia dizer que a valoração ética do querer, como fato psíquico, converte-o em “querer normativo”, isto é, num enlace lógico dotado de sentido, válido de maneira heterônoma, pois a heteronomia não significa senão a capacidade de fazer valer algo para outrem. Ora, a validade heterônoma dos modelos jurídicos quer dizer que eles são prescritivos,  ou seja, enunciadores de algo  posto para outrem de modo vinculante, o que, consoante já sa lientei, e será melhor analisado a seu tempo, não ocorre com os modelos jurídicos hermenêuticos, os quais não têm força para obrigar, a não ser graças ao seu poder de convicção que se põe na esfera teórica e não na jurídica. 23. Vide, sobre a matéria, o exposto, infra, nos Caps. VIII e IX. 24. Cf. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., 15* ed., Cap. XXIII.

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Quando declaro, pois, que os modelos jurídicos são prescritivos, tal afirmação é feita no plano lógico-expressional, supe rada toda e qualquer conotação naturalista de ordem volitiva. Toda prescrição importa uma “declaração de sentido” visando a que seja admitido algo como jurídico ou antijurídico, o que demonstra quanta razão assistia a Hans Kelsen ao abrir o cam po do jurídico nele inserindo tanto o lícito quanto o ilícito. Pen so que o termo prescrição é o que melhor atende à vis heterônoma dos modelos jurídicos, com a vantagem de ser aplicável tanto no plano da Teoria Geral do Direito como no plano da Lógica Deôntica25.  Vimos que a prescrição resulta do poder decisório que san ciona uma norma jurídica, podendo esta outorgar algo  (uma  pretensão ou uma obrigação, do mais amplo espectro, desde o Direito Público ao Privado) a. favor ou contra alguém, ou resol ver-se em mera atributividade.  Donde o surgimento de múlti plas situações jurídicas, como afacultas agendi e, mais ampla mente, o direito subjetivo, com o correlato dever de respeitar o direito alheio, impedir que sobrevenha algum dano a si ou a outrem, e respeito a uma competência outorgada, com garan tia de seu exercício etc.  A prescrição dá, pois, lugar a múltiplas formas de preten sões e de exigibilidade, o que pressupõe a existência de uma  garantia,  sobranceira tanto ao direito que se pretende quanto ao dever a ser cumprido. Costumo, por isso, dizer que as nor mas jurídicas e, por conseguinte, os modelos jurídicos são do tados de coação. São, porém, antes coercíveis, suscetíveis de legitimar a interferência coercitiva do Estado. Por mais que se tenha prevenção contra a participação coercitiva do Estado na ordem jurídica, parece-me que sem coercibilidade  não se realiza o Direito como autônoma forma de vida, nem ele pode ser distinto das regras morais ou consuetudinárias. A coação virtual, conseqüência inevitável da pres crição, é elemento ou critério distintivo da experiência jurídi25. Cf. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Thoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro, 1978, págs. 54 e seg.

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ca, como penso ter demonstrado no Capítulo XLIV de minha Filosofia do Direito, intitulado "Coercitividade e Coercibilidade”.

Legitimidade dos modelos jurídicos Outra questão suscitada pelo estudo da nomogênese jurí dica é a da legitimidade dos modelos jurídicos enquanto entes racionais conclusivos que pressupõem o superamento de im purezas a-racionais e até mesmo irracionais do poder. O problema da legitimidade do Direito  tem sido objeto, ultimamente, de amplos e profundos estudos, tanto no estran geiro como no Brasil, bastando lembrar que a esse fascinante tema foi dedicado, em grande parte, o III Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito realizado em 1988, em João Pessoa, sob os auspícios do então Governador da Paraíba, o jurista Tarcísio de Miranda Burity26. O que desejo considerar, neste passo, é tão-somente o pro blema da legitimidade do Direito em razão do advento do mo delo jurídico, que alguns perseveram a apresentar como um ato arbitrário, desnudo de juridicidade, olvidando o concreto e denso processo fático-axiológico  em cujo bojo se realiza a “op ção do poder”. Já disse e reitero que o poder é um  fato,  mas um  fato imantado de valor,  sobretudo na sociedade contemporânea, como é próprio do Estado Democrático do Direito.  Antes de fazer breves considerações sobre esse magno as sunto, seja-me permitido esclarecer que, sendo o poder um fato,  já hoje prevalecendo sua versão como um  fato-valorado,  ele não representa, como pretendeu apressadamente alguém, uma 26. Cf. Anais do III Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito, realizado no Espaço Cultural de João Pessoa, de 17 a 23 de julho de 1988, em home nagem a PONTES DE MIRANDA. Sobre o tema, vide a bela coletânea de ensaios organizada por JACQUES CHEVALIER, L’Idée de Legitimité, Pa ris, 1967; JOÃO MAURÍCIO LEITÃO ADEODATO, O Problema da Legiti midade, Rio de Janeiro, 1989, e LUIZ FERNANDO COELHO, Teoria Críti ca do Direito, Porto Alegre, 1991, Cap. IX, “A  legitimidade do Direito”.

“quarta dimensão” do Direito, mas, ao contrário, compõe, a seu modo, a essencial estrutura tridimensional do Direito, a qual, por sua própria natureza, é necessariamente dialética. Dialética do direito e dialética do poder constantemente se cruzam e se interferem, desde o momento nomogenético, que acabamos de analisar, até atingir, ao depois, as diversas oportunidades em que o modelo jurídico sofre o impacto do poder, ao visar este, por exemplo, preliminarmente a alterá-lo, mediante revoga ções parciais, culminando em sua total ab-rogação, o que tudo representa a vida e a morte dos modelos jurídicos.  Volvendo, todavia, ao tema principal, o poder não se con funde com o arbítrio  em razão mesmo de sua dialeticidade, encapsulado que ele se acha por um complexo de conjunturas de ordem factual e valorativa, a começar por sua ubicação no concernente ao problema das fontes. Em verdade, o poder não decide onde e como quer, mas no âmbito processual da fonte do direito. Essa é a primeira razão de sua legitimidade. Ilegítimo é o poder - e, por via de conseqüência, o direito que dele dimana - quando ele se põe como fonte do direito, e não apenas como momento decisivo, sim, mas momento do processar-se de uma das fontes do direito admitidas pelo macromodelo do ordena mento jurídico. Geralmente se olvida que o problema da legitimidade do Direito implica o das fontes de que ele provém, parecendo-me que se impõe reconhecer, como um dos imperativos éticos da vida jurídica, o numerus clausus  das fontes do direito como tais. Onde e quando as fontes do direito surgem obedecendo às livres e imprevistas prescrições do poder, desaparecem os va lores de certeza e segurança, predominando o arbítrio, e, sob o império deste, não há que pensar em legitimidade do Direito. Podem, em suma, os sociólogos e filósofos do Direito revelar-nos aspectos surpreendentes antes não percebidos da ex periência jurídica, captando em profundidade sua dramática funcionalidade, como o faz, por exemplo, Niklas Luhmann, que tais estudos podem esclarecer-nos e prevenir sobre as even tualidades possíveis do arbítrio, mas não tocam no  punctum  pruriens da legitimidade se não a situam em função da proble61

mática das fontes do direito. Essa crítica, a bem ver, não se aplica por inteiro à teoria de Luhmann, pois este, embora tra tando do problema da legitimidade em termos de procedimen to - empregado em sentido sociológico-jurídico e não em estri ta acepção dogmática, de conformidade com uma ordem hie rárquica de fontes - , situa a questão nos limites de três formas de procedimento, “o da eleição política, o procedimento parla mentar da legislação e o processo judicial”, que são modalida des de fontes legal e jurisdicional, a que ele acresce as estrutu ras contratuais a que também alude, cujo estudo nos reporta à fonte negociai27. O relevante no estudo dos procedimentos é a demonstra ção de que, se o problema da legitimidade não se resolve em termos puramente funcionais, também não se esclarece com abstração da funcionalidade do Direito, ou seja, do procedi mento, que é uma das condições de sua legítima concretude.  A legitimidade de um modelo jurídico depende, na reali dade, tanto da fonte de que resulta como do conteúdo éticosocial de sua interpretação e aplicação ao longo do tempo, con teúdo esse valorado também tanto em função do fim visado pelo modelo como por sua ubicação na totalidade do ordenamen to. Somente assim o que há de inevitavelmente positivo no mun do jurídico pode harmonizar-se com os valores que no seu todo compõem a intencionalidade do justo. Isto quer dizer que o pro blema da legitimidade só se resolve em termos de justiça como concreção histórica, ou como “razão histórica”, tanto assim que pode ocorrer excepcionalmente sua legitimação pelo procedi mento28. 27. Cf. NIKLAS LUHMANN, Legitimação pelo Procedimento, trad. de Maria da Conceição Corte Real, Ed. Universidade de Brasília. A relevância do  processus ou do procedimento no problema da legitimidade está, penso eu, ligada à idéia de sistema (v., infra, Cap. IX), pois, como observa HANNA  ARENDT, o significado de sistema “está contido no processo como um todo, do qual a ocorrência particular deriva sem inteligibilidade” (Entre o passa do e o futuro, trad. de M.W. Barbosa de Almeida, 1972, pág. 23). 28. Sobre essa visão axiológico-histórica do justo, v. MIGUEL REALE, Nova Fase do Direito Moderno, cit., págs. 37 e segs. e 65 e segs.

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CAPÍTULO VI!

Espécies de Modelos Jurídicos Notas prévias Já tive ocasião de observar que os modelos jurídicos não representam todo o conteúdo das fontes do direito, pois, além deles, há normas jurídicas que não reúnem os característicos estruturais próprios daqueles entes jurídicos, muito embora possam constituir-se como regras do mais amplo espectro. Além disso, um modelo jurídico pode ir contra submodelos.  A lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657, de 4-9-1942), por exemplo, pode, no seu todo, ser considerada um modelo jurídico, visto como é um complexo de regras diver sas, correlacionadas entre si, em razão de um objetivo comum, que consiste em disciplinar diversas hipóteses de interpreta ção e aplicação da lei. Normas jurídicas há, no entanto, que são meras formula ções de um ou mais juízos, cada um deles válidos ou prescritivos de per si, como se dá com o Art. 39da mencionada Lei, segundo o qual “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, ou, de maneira mais complexa, de conformidade com o Art. 42: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de 63

direito”. Sob certo prisma, porém, trata-se de modelos herme nêuticos revestidos de força prescritiva.  Abem ver, numa mesma Lei, ao lado de normas jurídicas isoladas - isto é, não estruturadas sob a forma de modelos ju rídicos —outras há que o legislador, intencionalmente ou não, formula de maneira unitariamente coordenada como é próprio de uma estrutura normativa destinada a operar como modelo. Nesse sentido, o Art. 6° da Lei de Introdução oferece-nos um exemplo expressivo, como se depreende de seu texto, a saber: “Art. 6a A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § Ia Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2a Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aque les cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou con dição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. § 3aChama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão  judicial de que já não caiba recurso”. Examinando-se esse preceito, em necessária correlação com o Art. 2a, verifica-se que o caput e seus parágrafos discipli nam, de maneira lógica unitária, toda a complexa questão da “vigência e eficácia das normas jurídicas”, desde a sua vigên cia, a partir de sua publicação, até a sua eficácia em relação ao corpo normativo preexistente, envolvendo, em tratamento sis temático, os problemas correlatos do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, com distinções que se esclarecem e se comple tam umas em relação às outras. Numa síntese admirável - o que não quer dizer que não dê lugar a controvérsias, - temos, assim, um modelo jurídico que sumaria, nos citados Arts. 2ae 6ada Lei de Introdução, os elementos essenciais que assinalam “o processo de vigência e eficácia de uma norma legal”, de um modo tal que a esse “com plexo normativo” nada podemos acrescentar, nem dele subtrair algo, sob pena de comprometer-se o seu sentido. 64

Caberá à doutrina, e mais especialmente aos modelos hermenêuticos - tal como se tratará oportunamente analisar o significado dos elementos componentes do apontado modelo, a começar pelo delicado problema de seu primeiro enunciado, inspirado na doutrina de Georges Ripert, quanto ao “efeito ime diato” da lei que vem juntar-se ao ordenamento já em vigor. Outro modelo jurídico, que se contém na Lei de Introdu ção, é, entre outros, o do Art. 7a, que, através de nada menos de oito parágrafos, fixa os princípios norteadores da lei da pessoa nacional ou estrangeira, estabelecendo os pressupostos a se rem seguidos tanto no plano do Direito Civil como no do Direi to Internacional Privado. A rigor, o Art. 79se vincula aos arti gos seguintes para dar nascimento a distintos modelos jurídi cos no campo das relações internacionais.  Vê-se, por conseguinte, que na legislação se encontram, ora correlacionados, ora não, modelos jurídicos e normas jurí dicas comuns, estas em geral enunciativas de juízos dotados de sentido em si pleno e concluso, não precisando ser reporta dos estruturalmente a outros dispositivos para determinar-se o seu teor. Tenha-se presente que o fato de as normas jurídicas se apresentarem ou não sob a forma de modelos jurídicos  - os quais, como se verá, correspondem, no plano hermenêutico, aos tradicionalmente denominados institutos jurídicos -  não importa em nenhuma distinção hierárquica eiitre eles, no sen tido de serem uns primários e outros secundários. Por sinal que, sendo os modelos jurídicos configurações de normas jurídicas, aplicam-se a eles as qualificações e clas sificações que a Teoria Geral do Direito tem procurado estabe lecer no tocante às regras de direito, distinguindo-as segundo diversos critérios ou pontos de vista29. E a razão pela qual, neste livro, vou limitar-me a apontar as notas que caracterizam os modelos jurídicos em confronto 29. Sobre a classificação das regras de direito, cf. o Cap. XI de minhas Lições Preliminares de Direito,  cit., às págs. 117 usque  138, e respectiva bibliografia.

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com as fontes de que promanam sem me referir aos modelos lógico-lingüísticos ou cibernéticos estudados pela Semiótica ou pela Informática Jurídicas, com outros objetivos.

Os modelos jurídicos legais Para atender a exigências de ordem expositiva, ao me re ferir à natureza procedimental da fonte de direito, já antecipei algumas das notas distintivas do modelo legal, no Capítulo II, supra, mostrando como o quadro das “normas legais” é, hoje em dia, bem mais amplo, por abranger distintas modalidades de regras válidas erga omnes  como expressões do  processo legislativo.  À vista do então exposto, verifica-se que os modelos legislativos podem resultar tanto de leis como de decretos legislativos ou mesmo de resoluções, na acepção específica que lhe dá o texto constitucional. Quando se fala em lei, é claro que a referência é feita também à lei por excelência, à Constitui ção, que nos oferta número considerável de modelos jurídicos, quer no que se refere à forma do Estado, quer no concernente ao regime de poder, estendendo-se à ordem econômica, à tribu tária, à educacional etc., sendo já usual o emprego do termo sistema  quando fazemos alusão às normas estruturais que, nesse ponto, compõem o texto constitucional. O que singulariza o modelo legislativo é-a validade que lhe é conferida de maneira genérica ou universal, ou seja, a sua validade erga omnes.  É preciso entender bem o sentido dessa validade, a qual não se prende, como alguns julgam, à possível multiplicidade de hipóteses configuradas pela norma legal, mas sim ao reconhecimento, nela necessariamente sem pre implícito, de que deverá ela ser indistintamente aplicável a quem quer que se situe na posição de seu destinatário. Uma razão essencial de igualdade preside a categoria da norma le gal, o que resulta do princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Poder-se-ia dizer, com propriedade, que ela vale erga omnes e pro omnes. 66

Por outro lado, o modelo legal ocupa, na escala dos mode los, um lugar proeminente, prevalecendo sobre os demais mo delos jurídicos, desde que, ao tratar, por exemplo, do modelo negociai, não o faça com infração do ordenamento constitucio nal, o qual, no seu todo, forma o horizonte paradigmático de validade de toda e qualquer forma de modelagem jurídica da experiência. Desde que conforme, em suma, suma, com a Lei Magna, o modelo legal disciplina a vigência ou a eficácia dos modelo modeloss  jurisdicional,  jurisdic ional, consuetudinário e negociai, negociai, suspendendo suspendendo a efi cácia daqueles que não se achem em sintonia com as normas constitucionais e as normas ordinárias que as complementam. Só nesse sentido, preservado o valor primordial da Constitui ção, é que se pode falar em primado hierárquico do modelo legal, legal, por sinal si nal que de um ponto de vista vista lógico e não axiológico. axiológico. Sob o prisma do valor, todas as fontes se equiparam, depen dendo do respectivo conteúdo, ou seja, da qualidade de seus modelos, a sua primazia axiológica. axiológica. Parece-me importante assinalar a relevância da distin ção ora feita entre anterioridade ou supremacia de uma fonte fonte de direito, em relação às outras, de um ponto de vista vist a lógico ou axiológico. Logicamente, isto é, sob o ângulo lógico-formal, a lei é sempre a fonte preeminente no sistema jurídico, mesmo porque ela pode ser lei de ordem constitucional, mas, do ponto de vista axiológico, uma fonte subordinada pode ter maior sig nificação ética ou o u econômica do que qu e a atribuída à lei à qual ela se subordina. Isto demonstra que o estudo dos modelos modelos jurídi jur ídi cos deve ser tanto no plano lógico quanto no axiológico, o que revela a riqueza de perspectivas do ordenamento jurídico. Cabe ainda ponderar que as normas jurídicas juríd icas ou valem e são desde logo eficazes de per si, isoladamente, ou, então, so mente possuem validade e eficácia enquanto elementos com ponentes ponentes de um modelo jurídico, juríd ico, de conformidade com os vvários ários tipos que este possa assumir. É no sistema dos modelos jurídicos juríd icos legais que mais se re vela a sua configuração como unidades estruturalmente inte grantes de diversas regras de direito. Aliás, os modelos modelos jurídi jur ídi cos se compõem entre si, formando distintos campos de hierar 67

quia jurídica,  matéria esta que, por sua importância, será ob  jetó  je tó de estudo est udo nos Capítulos seguintes. seguintes.

O modelo jurídic jurídico o costumeiro costumeiro Poder-se Pode r-se-ia -ia pensar que, estando esta ndo as normas consuetudi consuetudinánárias vinculadas a particulares usos e costumes, não nã o se pode poderi riaa falar fala r em modelo costumeiro, mas esta seria uma um a visão apeq apeque ue nada e errônea da rica produção de regras de direito bro brota tada dass diretament diret amentee da sociedade socie dade civil, como como reiteradas formas fo rmas de açã açãoo social dotadas de senso ou sentido autônomo de juridicidade, ora preenchendo as lacunas do ordenamento legal, ora abrin do-lhe novas perspectivas de desenvolvimento, sem falar no seu papel pap el mais habitual de inferir inferir das regras legais modal modalida ida des imprevistas de comportamento lícito. Reconhece-se que é sobretudo no domínio do Direito Eco nômico que os usos e costumes nos abastecem de incessantes modelos jurídicos, às vezes como decorrência de modelos le gais, completando-os ou especificando-os; outras vezes para preencher lacunas do ordenamento legal.  Av  A v ida id a econômica, com efeito, efeito, no seu incessante incessant e desen desenvol vol vimento, sobretudo em razão da livre iniciativa, dá lugar às mais variadas formas de composição de interesses, segundo múltiplas configurações jurídicas correspondentes a distintas atividades ocorrentes habitualmente no mercado, com o apa recimento dos chamados “usos mercantis”, cuja juridicidade ninguém põe em dúvida, quer os parceiros das atividades negociais, quer os órgãos públicos.  Ao contrário do que geralmente geralment e se pensa, pe nsa, é imenso o nú nú mero de modelos jurídicos costumeiros, não só no plano das relações relaçõe s internacionais, como no tocante a usos e costumes de de ordem econômica, na esfera cambial e bancária. Durante Du rante mui mui to tempo a Junta Comercial de São Paulo, obedecendo a uma praxe que qu e vinha desde 1890, 1890, promovia o assentamento de usos usos e costumes mercantis vigentes no Estado, chegando mesmo a

publicar “consolidações”, como as relativas às praças da Capi tal e de Santos30.  Atendend  Aten dendoo a essas e ssas circunstâncias, os mestres de Direito Direito Econômico deveriam dedicar maior atenção at enção aos modelos consueconsuetudinários operados nos mais diversos campos das atividades. atividades. Não é demais salientar que, às vezes, esses modelos consuetüdinários adquirem tamanha eficácia e importância que acabam prevalecendo prevalece ndo sobre os modelos legais, os quais entram em eclipse, suscitando o delicado problema da derrogação das leis pelo desuso31.

Os modelos jurisdicionais jurisdicionais Um dos campos mais relevantes do “mundo normativo” é representado pelos modelos oriundos de decisões decisões jurisdicionais, muito embora, paradoxalmente, sejam poucos os estudos so bre o conceito de jurisdiç  juri sdição ão como fonte reveladora de normas  jurídicas  juríd icas.. Os autores, em geral, situam situa m o problema no plano proces sual, a fim de determinar, primeiro, a competência do órgão  juris  ju risdi dido dona nal, l, e, depois, depois, a forma segundo a qual essa compe tência deve atualizar-se. atualizar-se. Penso, todavia, que antes há uma ques tão que se põe nas matrizes do Direito Constitucional, como configuração do pode  po derr de decidir, próprio do Judiciário, em pa ralelo e sincronia com o que se atribui ao Legislativo e ao Exe cutivo.  jur isdiçã içãoo é, pois,  po derr consti  A jurisd pois, antés de mais nada, um pode tucional de explicitar normas jurídicas, e, entre elas, modelos  jurídic  jurí dicos. os.  Esse poder decisório se desenvolve de duas formas 30. Nesse sentido, vide a “Consolidação “ Consolidação dos usos e costumes de café na praça praça de Santos”, elaborada pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, e por mim mandado publicar, na qualidade de Secretário da Justiça, pelo Ato n. 21, no Diário  Diário Ofic Oficial ial do Estad Estado, o, de 24 de abril de 1964. 31. Sobre essa questão, v. meu ponto de vista em Lições Preliminares de  Dire  Direito ito,, cit., págs. 121 e 289.

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distintas: normalmente, como exercício da jurisdição enquanto realização das normas legais adequadamente aos casos con cretos, isto é, em função das peculiaridades e conjunturas pró prias da espécie de experiência social submetida a julgamen to; e, excepcionalmente, no exercício da jurisdição enquanto poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna no ordenamento.  Vêm daí duas espécies de modelos jurídicos jurisdicionais: uns subordinados,  ou de segundo grau, na medida em que consubstanciam aplicações iraconcreto daquilo que in abstracto se configura no modelo legal; e outros autônomos, e são os mo delos jurisdicionais por excelência, cuja existência decorre da correlação de dois princípios jurídicos fundamentais, a saber: a) o juiz não pode deixar de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei; b) quando a lei for omissa, o juiz procederá como se fora legislador. Há, na história do Direito pátrio, exemplos estupendos de modelos jurisdicionais que supriram as deficiências e até mes mo a prejudicialidade de modelos legais, a fim de assegurar a  justiça in concreto. Nesse sentido, lembro a decisão histórica do Tribunal de Justiça de São Paulo, que concebeu a existência de uma sociedade de fato  constituída no âmbito do casamento, pelos estrangeiros que, graças ao esforço comum, haviam construído um patrimônio, o qual, de outra forma, seria desti nado a desconhecidos parentes residentes na Itália, em detri mento do cônjuge, se fosse aplicado o antigo e infeliz preceito do Código Civil que, num país de imigração, mandava aplicar, na sucessão, a “lei pessoal”, ou seja, da nacionalidade do de cujus... Desse modo, em corajosa correção de um modelo legal iníquo, o poder jurisdicional soube realizar a justiça in concre to, preservando os legítimos interesses e direitos do cônjuge que contribuíra, com seu trabalho e dedicação, à formação dos bens do casal. Outro exemplo de jurisdição criadora temos com a consa gração, pelo Supremo Tribunal Federal - graças sobretudo ao Ministro Pedro Lessa -, da tese, sustentada por Rui Barbosa, do emprego do habeas corpus para defesa da “posse de direitos 70

■  pessoais”   violados por abuso ou desvio de poder, numa época em que tais direitos ainda não eram salvaguardados por man dado de segurança32. Com o advento deste, o modelo da posse voltou ao seu leito normal, como exteriorização de algum dos poderes inerentes à propriedade. Também pretoriano foi o modelo jurídico disciplinador das relações entre concubinos, dada a inexistência de disposições legais sobre a espécie, preservando os direitos de quem hou vesse, por seu trabalho, contribuído para a formação de uma sociedade de fato, merecedora de amparo. Desse modo, o concubinato perdeu a sua configuração pejorativa para adqui rir contornos de juridicidade, em função dos fatos e circuns tâncias. Já agora, com a “união estável”, reconhecida pela Consti tuição de 1988 como “entidade familiar”, o problema do concubinato deve ser revisto, pois com ele não se confunde aque le modelo constitucional, cuja conversão em casamento deve ser facilitada pela lei. Conforme me manifestei sobre as emen das apresentadas, no Senado Federal, ao projeto de Código Civil, já aprovado pela Câmara dos. Deputados, em estudo en viado ao Senador Josaphat Marinho, atual Relator Geral da matéria, entendo que a “união estável” constitui um tertium  genus entre o concubinato e o casamento. Por tal motivo, pro pus todo um sistema de normas reguladoras das relações pes soais e patrimoniais entre os “companheiros” (denominação ob viamente preferível a “concubinos”, cuja acepção é socialmen te censurável) que, livres de impedimentos, venham a viver more uxorio por certo lapso de tempo. Enquanto, porém, o le gislador não cuida do assunto, teremos de valer-nos de mode los jurídicos pretorianos, até agora bem pouco definidos. Por esse e outros motivos bem se percebe a importância da Jurisdição na tela dos modelos jurídicos, quer pelo supri mento inevitável de lacunas legais, quer pela “determinação hermenêutica” dos modelos em vigor, afeiçoando-os às exigên cias da vida comunitária. 32. Cf. VICENTE RÁO, Posse dos Direitos Pessoais, São Paulo, s.d.

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 Aliás, desde a implantação das Súmulas, ordenadoras e sistematizadoras das decisões de nossos Tribunais, mais dura doura correlação se estabeleceu entre os modelos jurídicos le gais e os jurisdicionais, dando àqueles um sentido por assim dizer mais operacional, por seu emprego em correspondência com outras disposições do ordenamento legal, como é próprio da concretude que marca o julgamento das lides.  As Súmulas, como modelos jurisdicionais, tendem a ad quirir certa estabilidade, e não há nada nessa adoção oblíqua do stare decisis, importada no Common Law, desde que não se resvale para a rotina. Dever dos juristas, tendo à frente a cate goria pugnaz dos advogados, é zelar para que não se enferruje o mecanismo jurisdicional, de maneira que os modelos ju risdicionais sejam constantemente revistos, em razão de mu tações supervenientes no sistema legal, ou, o que não é menos importante, em virtude da emergência de novos valores sócioeconômicos, ou, por melhor dizer, culturais. Essa alta visão do Poder Jurisdicional pressupõe, é claro, o superamento de uma concepção passiva da função dos ma gistrados, e, por conseguinte, da sentença como automática aplicação dos ditames da lei ao caso concreto, sem a participa ção criadora do juiz. Os estudos de Hermenêutica, uma das formas de conhecimento mais expressivas de nosso tempo, vie ram demonstrar que o ato interpretativo implica sempre uma contribuição positiva por parte do exegeta, mesmo porque o ato de julgar, talvez o mais complexo e dramático dentre os atos humanos, importa no dever do juiz de situar-se, solitaria mente e corajosamente, perante a prova dos autos e os impera tivos da lei, a fim de enunciar o seu juízo, reflexo de sua amadurecida convicção e de seu foro íntimo. Poder-se-ia dizer que o juiz torna-se eticamente alheio aos rumores da rua para que possa justamente se pronunciar sobre a causa, o que en volve ò emprego de todas as virtudes de sua personalidade, abstraindo-se de enganosas pressões imediatas para poder cap tar a essência do justo, tal como este vai historicamente se configurando. 72

Os modelos jurídicos negociais  A última categoría dos modelos jurídicos, inclusive crono logicamente no plano da doutrina, diz respeito aos que resul tam do acordo das vontades, do livre e sempre aberto jogo das iniciativas individuais. Na usual afirmação de que “o contrato tem força de lei entre as partes” já se albergava o reconhecimento de que a “autonomia da vontade” é fonte geradora de regras de direito, mas esta asserção só adquiriu plenitude de significado quando Kelsen, ao mesmo tempo que reduzia o Direito a um sistema de normas, alargava o sentido normativo, libertando-nos defi nitivamente do legalismo,  isto é, do incontrastado domínio das normas legais. Quando se opõem justos reparos ao “normativismo” da Teoria Pura do Direito, é necessário, pois, ressal var-se o benefício que a Escola de Viena representou no concer nente à abertura do “sistema normativo”. Ora, a fonte negociai é um dos canais mais relevantes da revelação do Direito, e, ao contrário dos afoitos defensores da estatização do mundo jurídico, cresce dia a dia de importância, tanto no campo interno como no internacional, o contínuo pro cesso de solução jurídica dos conflitos de interesses individuais e coletivos mediante decisões de tipo negociai. No Estado Democrático de Direito, nos moldes da Carta Magna vigente, que consagra, como fundamentos da ordem econômica, os princípios da livre iniciativa e da livre concor rência,  mister é atentar para a relevância dos modelos negociais, superando-se a cediça asserção de que eles só exis tem porque assim o dispõe a lei. Na realidade, eles haurem sua vigência na matriz da Lei Maior, de tal modo que o legisla dor ordinário não tem poderes para suprimir o mundo dos con tratos, mas tão-somente para regulá-los na medida dos impe rativos da livre coexistência das múltiplas vontades autôno mas concorrentes, tendo como base o bem comum, a começar pelo direito do consumidor, também ele considerado basilar na ordem sócio-econômica. 73

É por essa razão que a antiga e genérica garantia de “li. vre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão” (Consti tuição, Art. 5S, XIII) é completada pela de livre empresa, resul tante da combinação dos dois já lembrados princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (Art. 170 e seu precioso pará grafo único que preserva “o livre exercício de qualquer ativida de econômica”). Nesse amplo quadro constituem-se e desenvolvem-se os modelos jurídicos negociais, que, em última análise, represen tam a exteriorização ou a atualização da liberdade como valor supremo do indivíduo, tanto como cidadão quanto como produ tor. E essencial essa “compreensão constitucional” dos mode los negociais, pois só ela nos fornece paradigmas aptos à consi deração de sua licitude, a qual deve ser considerada em princí pio existente, salvo as ofensas à “liberdade de contratar e ope rar” resultantes das múltiplas formas de abuso ou desvio do poder econômico que “vise à dominação dos mercados, à elimi nação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art, 173, § 42). E preciso, outrossim, ter presente que, em pé de igualda de com as demais fontes do direito, também a fonte negociai, para que sejam válidas as normas e modelos através dela ema nados, deve obedecer ao seu devido processo legal, que cabe a cada disciplina jurídica determinar, em consonância com as suas peculiaridades. Do ponto de vista da Teoria Geral do Di reito, o pressuposto processual por excelência da fonte negociai diz respeito à liberdade real de decidir de todos os que partici parem da instauração do negócio jurídico, pois fonte negociai e autonomia da vontade são termos que reciprocamente se im plicam.  A bem ver, é desse princípio que resultam todos os de mais, tais como o da eqüipolência ou equilíbrio das prestações e contraprestações recíprocas, incompatível com o locupletamento de uns em detrimento de outros; a boa-fé nas declara ções de vontade, pressuposto este que o desmedido individualis mo costumava pôr entre parêntesis; a possibilidade pelo menos parcial de ser satisfeita a prestação convencionada; a revisibili74

dade do avençado em razão de supervenientes fatores que im portem em onerosidade excessiva; a exclusão de condições pu ramente potestativas que representem a sujeição de um ao ar bitrário do querer de outrem. Por outro lado, os modelos negociais não podem ser cons tituídos em conflito com os modelos legais, o que implica o re conhecimento de que há uma hierarquia entre os modelos jurí dicos, do ponto de vista lógico-sistemático, questão à qual já fiz alusão e que será objeto de oportuna análise. Sendo os modelos jurídicos negociais resultantes de um processo, que tem como fulcro um acordo de vontades, é da maior importância, quando de sua interpretação e aplicação, atentar-se para os entendimentos preliminares, ao que os ju ristas itálicos denominam trattative, o que já deu livre curso à palavra tratativa, a qual abrange toda e qualquer forma de prévia negociação reveladora do efetivo propósito dos contra tantes. Constituem elas elementos hermenêuticos da maior relevância. Resulta daí que a cada espécie ou tipo de modelo jurídico correspondem peculiares diretrizes hermenêuticas, mas este é assunto que exige tratamento autônomo.

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CAPITULO VIII Dialética dos Modelos Jurídicos Dialética e dialela  Antes de tecer algumas considerações sobre como trans correm a vida e a morte dos modelos jurídicos, procurando tra çar as grandes linhas de seu desenvolvimento dialético, pare ce-me conveniente fixar uma distinção entre duas questões que freqüentemente se confundem. Como lembro em Experiência e Cultura, Aristóteles foi o primeiro pensador a distinguir entre o processo do discurso ou da argumentação (dialela) e o processo que preside o evolver ou desenvolver de algo, de natureza real (como pensava ele) ou de natureza ideal, como pensava Platão (dialética)33. Como resulta dos estudos de Luis Recaséns Siches, Chaim Perelman, Theodor Vieweg e, entre nós, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, é de fundamental importância para o jurista a técnica a ser seguida na exposição e solução dos problemas jurídicos e, mais particularmente, quando se visa a convencer a outrem da veracidade ou procedência de sua tese, tal como se dá no decurso de uma lide. São, com efeito, as regras da dialela que dirigem o discurso persuasivo na interpretação das regras ju 33. Cf. op. cit., págs. 141 e 142.

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rídicas e sua aplicação, notadamente nos atos processuais que têm por fim o deslinde de uma causa. Nessa hipótese - tão significativa no âmbito da Dogmáti ca Jurídica ou Ciência Positiva do Direito Positivo - o raciocínio versa sobre algo já posto   (o Direito Positivo), quer para interpretá-lo (Hermenêutica Jurídica) quer para dele inferir as suas conseqüências no sentido de lograr a persuasão do  julgador. Há quem atribua à Ciência do Direito tão-somente essa tarefa discursiva, reduzindo-o, em última análise, a uma téc nica de argumentação e aplicação das normas jurídicas oriun das das diversas fontes, a que já fiz referência, derivando, as sim, para um problematicismo total e infecundo. Desse modo, fica subentendido, com sacrifício de relevan te substantia iuris, o problema originário da experiência jurí dica como tal, isto é, da gênese das normas e modelos jurídicos e sua evolução ou involução, em função de mutações operadas nos planos factual, normativo e axiológico, Um dos objetivos da teoria tridimensional do Direito, ins pirada por uma visão de integralidade, é demonstrar que, sob pena de incidir-se em várias formas de reducionismo, o juris ta, no momento hermenêutico da compreensão das regras jurí dicas, não pode fazer abstração de como elas se constituíram, a que razões de fato e a que motivos de valor visaram a atender. Ora, não é kdialela, mas sim à dialética que cabe estudar o Direito como experiência, tanto em sua validade formal (vi gência) como em sua efetividade  (situação factual) e em seu  fundamento (em razão do valor a realizar), o que tudo compõe o processo jurídico como um todo.  Ainda recentemente Jürgen Habermas, no livro já citado, no qual ele afronta a problemática da justiça - questão esta que, desde Kant e Hegel, não pode deixar de ser analisada por um verdadeiro filósofo -, dá ênfase aos problemas da validade e da eficácia, à luz de seu conhecido conceito de “razão comuni cativa”34, devendo a imprecisão de seus conceitos ser atribuída ao fato de não perceber que no conceito genérico de “validade” 34. Cf. JÜRGEN HABERMAS, Faktizität und Geltung, cit

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albergam-se dois conceitos distintos, essenciais ambos à visão do jurista: o da validade do ponto de vista lógico-formal, que se indica com o termo de vigência', e o da validade segundo um ponto de vista axiológico, isto é, em função da idéia de valor  (fundamento). Dessarte, há três ordens de problemas postos pelo Direito enquanto experiência, ou seja, pelo Direito enquanto momento ou acontecimento experiencial da vida humana: o da eficácia, o do fundamento e o da vigência ou validade normativa. Ora, essa espécie relevante de experiência humana, que denominamos experiência jurídica, somente pode ser objeto de pesquisa graças a um processo dialético que possa levar em conta os três aspectos supra-referidos e que, modéstia à parte, a teoria tridimensional do Direito teve o mérito de apreciar numa visão concreta e integral da vida jurídica. Cabe, pois, tecer breves considerações sobre a natureza da dialética, que, a meu ver, mais se coaduna com a experiên cia jurídica.

 A dialética de complementaridade Já tive a oportunidade de demonstrar, no Capítulo VI, que toda gênese de modelos jurídicos se dá num processo de natu reza axiológica, dependendo das opções do poder a prevalência deste ou daquele outro critério normativo, no instante em que é tomada uma decisão, a partir da qual determinada diretriz  juríd ica é considerada vigente ou positiva, tornando-se  prescritiva. Na história da dialética sobressai o modelo de Hegel, se gundo o qual tudo o que existe não é senão expressão do pro cesso dialético da Idéia, termo este empregado pelo filósofo em sentido ao mesmo tempo lógico e axiológico (segundo ele, Ser e  Dever Ser   se identificam) para indicar o fundamento transcendental do existente. Por outro lado, o grande pensa dor apresenta o desenvolvimento da Idéia como uma série suces siva de conciliações entre opostos, tanto de contrários como de 79

contraditórios, os quais se compõem em identidade, ponto de partida para o superamento de novas contradições que não se sabe bem como possam, depois, emergir do que já se tomara idêntico. Não vou, aqui, repetir a crítica que faço à teoria hegelianomarxista da dialética de opostos que sucessivamente se supe ram mediante soluções unitárias e idênticas, pedindo a aten ção do leitor ao que escrevo em Experiência e Cultura35, on de penso ter demonstrado que somente a dialética de complementaridade,   com vigência crescente no pensamento contemporâneo, logra explicar a correlação existente entre fe nômenos que se sucedem no tempo, em função de elementos e valores que ora contrapostamente se polarizam, ora mutua mente se implicam, ora se ligam segundo certos esquemas ou perspectivas conjunturais, em função de variáveis circunstân cias de lugar e de tempo. O que distingue, pois, a dialética de complementaridade é que, nela, seus fatores (digamos assim) se mantêm distintos uns dos outros, sem se reduzirem ou se identificarem a qual quer deles, sendo múltiplas as hipóteses desse correlacionamento ao longo do processo. Além disso, em se tratando de fatos humanos que se entrecruzam, nessa conexão ou correla ção pelo menos um de seus fatores é sempre representado por um valor, com conseqüências que merecem nossa atenção. O valor, com efeito, reúne dois característicos que nos dão tanto a razão de ser de uma “realidade em processo”, quanto a da correlação posta entre os elementos que nela se distinguem, ainda quando se contrapõem. Em primeiro lugar, todo valor é expressão de um dever ser, de algo que não teria sentido se em algum momento não chegasse a se converter em realidade, sob pena de se reduzir a mera ilusão ou quimera: o devir e a historicidade, por conseguinte, são inerentes à idéia de valor, podendo-se afirmar que todo historicismo é necessariamente historicismo axiológico. 35. Cf. op. cit., sobretudo págs. 137 usque 140 e 162 usque 170.

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Por outro lado, a todo valor se contrapõe um desvalor, ao belo o feio, ao digno o indigno etc., de tal modo que seria impos sível concretamente conceituar-se qualquer deles sem se ad mitir a complicação com o seu contrário. Isto demonstra que onde atua um valor, aí há uma inevitável complementaridade, mesmo porque o ato de valorar não ocorre apenas entre ele mentos que se contrapõem, mas também entre elementos que se escalonam ou se distribuem segundo distintos critérios de valoração  que seria impossível querer predeterminar, tão imprevisível é a experiência da liberdade, o valor matriz de todos os valores. Donde se conclui que a dialética de complementaridade, no que tange ao mundo da cultura, onde se situa o Direito, se funda, a um só tempo, no dever ser ou historicidade própria do valor, e na natureza binada ou complementar deste, a qual im plica uma opção entre juízos distintos. Refiro-me tão-somente ao mundo da cultura, como sede da dialética de complemen taridade, pois, no concernente ao mundo da natureza e dos obje tos lógico-matemáticos, é aplicável o princípio de complementa ridade, sem que se possa falar propriamente em dialética36. Note-se, outrossim, que a dialética de complementaridade só adquiriu notas características de maior rigor quando seu estudo foi vinculado à idéia de valor, ficando demonstrado que ela se põe no plano axiológico e não no lógico-formal, apesar de ser possível também sua compreensão lógica graças à versati lidade ou pluralidade da chamada Lógica paraconsistente, a que já fiz referência37.

Complementaridade na experiência jurídica No concernente ao mundo do Direito a aplicação da dialética de complementaridade é transparente, visto como a 36. Nesse sentido, v. Experiência e Cultura, cit., respectivamente págs. 143 usque 148 e 148 usque 150. 37. Vide, supra, págs. 39 e seg. e n. 4.

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natureza trieotômica do fenômeno jurídico, comprovada em sua gênese, se estende obviamente ao longo de seu processo. Também neste ponto me escuso de tecer maiores comen tários, pedindo vênia para reportar-me ao que longamente ex ponho em minha Teoria Tridimensional do Direito38, de onde extraio a seguinte figura, mediante a qual procuro represen tar como se desenvolve a vigência de um modelo jurídico, cuja significação concreta varia, até enquanto não revogado, de con formidade e em função de mutações operadas nos planos factual, axiológico e normativo:

 Processo do normativismo concreto

Esse gráfico aplica-se a uma realidade humana bem mais complexa do que parece à primeira vista. É que o mundo do Direito é um mundo condicionado ab initio pelos horizontes da constitucionalidade, os quais compõem o centro de gravidade de todo o sistema. Dessarte, um modelo jurídico não adquire positividade pelo simples fato de ter-se originado de uma deci são do poder. Em primeiro lugar é indispensável que este seja competente, e que, ainda que competente, decida sobre algo que não conflite com imperativos constitucionais. Nos países de Constituição escrita, como é o caso do Brasil, tudo o que se enuncie em conflito com preceitos constitucionais é ipso facto refutável. A refutabilidade, que Karl Popper aponta como um critério distintivo essencial do que é científico, tem um viés todo seu no mundo do Direito: é, no mais das vezes, uma 38. Op. cit., pág.126. Vide, outrossim, o estudo “Dialética da experiência jurí dica”, in  Direito Natural /Direito Positivo, São Paulo, Saraiva, 1948, págs. 50 e segs., bem como Filosofia do Direito, cit., 15® ed., págs. 562 usque 585 (Cap. XXXVII).

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refutabilidade convencional, porque baseada na validade ab soluta do sistema normativo positivado originariamente ou derivadamente pelo legislador constituinte. Sob esse prisma, o pressuposto de validade independe do possível acerto ético-social do modelo jurídico, porquanto, por mais que ele possa ser útil ou necessário à coletividade, é uma determinação natimorta, se refutável à luz da Carta Magna. Daí a sabedoria das Constituições, não digo enxutas, mas pelo menos sintéticas, a fim de evitar-se o bloqueio do processo de mocrático, que é indispensável se e quando houver sido tudo de antemão resolvido. A possibilidade de instauração de novos modelos jurídicos, em consonância com o advento de imprevis tas conjunturas, é conditio sine qua non de uma democracia real, não tornada inviável em razão de um “totalitarismo normativo”. Foi o mal da Carta de 1988, que a revisão de 1994 só pôde parcialmente reparar. Donde ainda a conveniência de não se sujeitar, normalmente, a revisão constitucional a exa gerado quorum, devendo a maioria absoluta ser bastante para uma sociedade, como a de nossos dias, marcada por incessante mudança. Põe-se, aqui, aliás, um delicado problema de Políti ca do Direito, num jogo de perspectivas, situando-se o proble ma democrático da estabilidade do sistema constitucional en tre um mínimo de cautela e segurança, para preservação da ordem normativa, e um mínimo de fidelidade à vontade e aos interesses da comunidade, para garantir-lhes legitimidade. Bastam essas questões para verificar-se como o sistema normativo - a cujo estudo volverei logo mais - tem, por sua natureza, um conteúdo instável e variável, suscetível de ser somente compreendido graças à Lógica dialética, havendo gran de equívoco quando se pensa que o pensamento dialético só se desenvolve no plano filosófico, e não no âmbito positivo das ciências culturais.  Assente, todavia, a compatibilidade entre o novo modelo  jurídico e o sistema constitucional, surge uma outra série de questões que exclui a possibilidade de ser ele interpretado e aplicado em sua singularidade ou atomicidade, sem referência aos demais modelos que integram o ordenamento jurídico. A 83

significação de um fato cultural dá-se sempre no contexto da totalidade do processo, no qual ele se insere e no qual adquire positividade. Ora, a necessária inserção ou integração do novo modelo no processo normativo como um todo pode ter a conseqüência de, tão logo emanado pelo legislador, adquirir ele uma signifi cação que não coincide linearmente com a que se tinha em vis ta alcançar, importando em conseqüências diversas das origi nariamente visadas, o que, como veremos, apresenta conse qüências no tocante aos “modelos hermenêuticos”  aplicáveis no caso em estudo. Eis aí outro aspecto que revela a dialeticidade concreta da experiência jurídica, por mais que se queira com preendê-la reduzindo-a às retortas de um discurso pragmáti co, julgado bastante de per si para a sua compreensão. Por outro lado, observando-se a figura supra-oferecida, verifica-se que uma norma, e notadamente um modelo jurídi co, não conserva sempre inalterado o significado ou o sentido com os quais começou a ter vigência, mas pode sofrer altera ções semânticas, que a Hermenêutica jurídica atribui à supre macia de mudanças operadas no plano dos fatos, dos valores ou de outros processos normativos. Nada mais necessário ao conhecimento do Direito do que a atenção dispensada à complementaridade e intercorrência dos três apontados fatores, podendo-se afirmar que, não obstante a crescente exigência de concreção jurídica, a família dos juristas ainda continua dividida entre os que persistem em analisar as normas jurídicas em sua pontualidade, como dados isolados e per se stantes, e os que, ao contrário, sempre as situam na integralidade do processo normativo, e, mais par ticularmente, no conjunto dos motivos operantes em determi nada conjuntura da vida jurídica, o que a chamada “interpre tação histórico-evolutiva estava longe de atender, por falta de visão da experiência jurídica na integralidade de seu processo. Pois bem, os novos fatos que vêm incidir sobre a vigência de um modelo jurídico podem ocorrer em áreas aparentemente alheias a qualquer implicação ou correlação com ele, havendo necessidade de cuidadoso trabalho hermenêutico para que fa84

tos heterogêneos não sejam equívocamente ou maliciosamente invocados como base de uma nova interpretação. O mesmo se diga quanto à superveniência de valores e preceitos normativos que se pretenda inserir na coimplxeação dialética de um mode lo jurídico, visando a justificar a variação semântica proposta. Pelo exposto se vê que a dialética da experiência jurídica não se desenrola de maneira unilinear ou evolutiva, no sentido de um objetivo final a ser alcançado, muito embora, como se constatará no capítulo seguinte, haja alguns valores invariantes que poderão ser considerados alvos referenciais de um proces so marcado pela pluralidade das tendências e perspectivas.  A vigência, vista como a positividade no tempo, compõese, em suma, de linhas e espaços entrecortados por imprevi síveis desvios, distorções e vazios, devidos ao inesperado apport da liberdade humana, a principal razão da gravitação do pro cesso democrático, em geral, e da experiência jurídica em par ticular, de maneira plural. É que, na dinâmica social, há tanto coimplicações como contrastes e confrontos, antinomias e ana logias, projeções axiológico-normativas contínuas e lacunas de normatividade, o que tem levado alguns a falar em ambigüi dade, quando, na realidade, estamos perante um processo histórico-social, aberto e diversificado, segundo múltiplas variá veis e bem poucas invariantes, como se verá logo mais. Em razão do exposto, parece-me plausível a noção de dialética de complementaridade, por mim apresentada em Experiência e Cultura, como sendo aquela na qual há uma cor relação permanente e progressiva entre dois ou mais fatores, os quais não se podem compreender separados um dos outros, sendo ao mesmo tempo cada um deles irredutível aos outros, de tal modo que os elementos da trama só logram plenitude de significado na unidade concreta da relação que constituem, enquanto se correlacionam e daquela unidade participam.

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CAPITULO IX O Macromodelo do Ordenamento Jurídico Noção de ordenamento jurídico No Capítulo I deste livro, ao dar a noção de estrutura, que é o gênero do qual o modelo é espécie, já observei que nenhuma estrutura social é uma unidade maciça e mononuclear, mas sim uma unitas ordinis ou “unidade de sentido”, ou seja, uma composição de múltiplos fatores que se correlacionam em fun ção de um ou mais motivos. Ora, a todo instante os operadores do Direito estão falan do em “ordem jurídica”, “ordenamento jurídico”, ou “sistema  jurídico”, sendo necessário analisar em que sentido e em que limites será legítimo fazer uso dessas expressões.  Antes de mais nada, cabe esclarecer a significação do ter mo “ordenamento jurídico”, sendo certo, como Ddemonstra  Vittorio Frosini, que a palavra “ordenamento” remonta, com várias acepções, à Idade Média, na época de Dante Alighieri, estando sempre em correlação com a palavra “ordem”. Seria grave erro confundir o “ordenamento jurídico” com a totalidade da experiência jurídica de um povo, ou com a sua global evolução histórica. Somente em sentido amplíssimo e

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CAPITULO IX O Macromodelo do Ordenamento Jurídico Noção de ordenamento jurídico No Capítulo I deste livro, ao dar a noção de estrutura, que é o gênero do qual ò modelo é espécie, já observei que nenhuma estrutura social é uma unidade maciça e mononuclear, mas sim uma unitas ordinis ou “unidade de sentido”, ou seja, uma composição de múltiplos fatores que se correlacionam em fun ção de um ou mais motivos. Ora, a todo instante os operadores do Direito estão falan do em “ordem jurídica”, “ordenamento jurídico”, ou “sistema  jurídico”, sendo necessário analisar em que sentido e em que limites será legítimo fazer uso dessas expressões.  Antes de mais nada, cabe esclarecer a significação do ter mo “ordenamento jurídico”, sendo certo, como 0 demonstra  Vittorio Frosini, que a palavra “ordenamento” remonta, com várias acepções, à Idade Média, na época de Dante Alighieri, estando sempre em correlação com a palavra “ordem”. Seria grave erro confundir o “ordenamento jurídico” com a totalidade da experiência jurídica de um povo, ou com a sua global evolução histórica. Somente em sentido amplíssimo e 87

vago se poderia conceber essa experiência geral como um ordenamento jurídico. Põe-se, aqui, aliás, um problema que já foi objeto de minhas pesquisas sobre a unidade ou a pluralidade dos orde namentos jurídicos, conforme o leitor interessado poderá veri ficar em meus livros Fundamentos do Direito e Teoria do Di reito e do Estado, apreciando as posições de Jellinek a Kelsen, de Hauriou a Santi Romano, e de Del Vecchio à por mim assu mida39. Em síntese, pode-se dizer que juristas há que não admi tem senão o ordenamento jurídico estatal, ou seja, aquele cujas normas integrantes resultam dos atos decisórios do Estado. Exemplo por excelência dessa concepção é a de Hans Kelsen, para quem o Direito se reduz a um ordenamento unitário e escalonado de normas, interligadas segundo uma subsunção lógico-formal, que se eleva desde as normas particulares até as regras superiores, dependendo a validade do sistema normativo global de uma norma fundamental, que, de início, o grande mestre concebia como uma norma hipotética trans cendental, no sentido kantiano deste termo, para, em livro pós tumo inacabado, surgir como mera ficção de caráter empíricopragmático40. E claro que, segundo esse pensamento, somente compõem um ordenamento jurídico as normas que se entrelaçam e se situam no âmbito da soberania do Estado - o qual, sob o ponto de vista da imputabilidade normativa, se identificaria com o próprio Direito - sendo a-jurídicos os demais sistemas de re gras, morais, econômicas, grupalistas, esportivas etc., ou seja, todo e qualquer outro conjunto de regras disciplinadoras das diversas formas de convivência social. 39. Cf. Teoria do Direito e do Estado, 4Sed., 1984, págs. 213 usque 326, e Fundamentos do Direito, 2-  ed., 1972, no qual estudo especialmente o pluralismo de MAURICE HAURIOU e SANTI ROMANO, este autor do clás sico livro UOrdinamento Giuridico, Florença, 1945. 40. Sobre as três distintas fases do pensamento de KELSEN, v. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., 15®ed., Cap. XXXII, págs. 445 usque 480, e Nova Fase do Direito Moderno, cit., XIII, págs. 195 usque 208. 88

Já é diverso o pensamento dos partidários do pluralismo  jurídico, segundo o qual a experiência jurídica seria constituí da por distintos ordenamentos, dotados de igual grau de vali dade, geralmente numa concepção institucional do Direito, como a de Maurice Hauriou ou de Santi Romano. Diversas são as soluções oferecidas por esses juristas para explicar a corre lação entre as diversas “ordens jurídico-institucionais” e o ordenamento jurídico-estatal. Uma terceira posição é a de Del Vecchio, por mim perfi lhada com algumas alterações, aceitando, de um lado, a plura lidade dos ordenamentos jurídicos como realidades sociais au tônomas, e não apenas permitidas ou consentidas pelo Estado, e, de outro lado, reconhecendo que há uma “graduação da positividade jurídica”, com predomínio do ordenamento jurídi co-estatal, que atuaria como “lugar geométrico” dos demais sis temas de normas41. Pois bem, no presente livro, a minha noção de macromodelo  jurídico somente se aplica ao ordenamento jurídico-estatal, entendendo-se, por esta expressão, aquele conjunto de normas que constituem o conteúdo das quatro fontes do direito já ana lisadas, as quais, em virtude dessa vinculação direta ou indi reta à soberania do Estado, no âmbito da incidência constitu cional de cada povo, existem em numerus clausus. Nesse sentido, vale a pena ter presentes as três acepções do termo ordenamento, apresentadas por Vittorio Frosini, se gundo três distintos modelos conceituais, a saber: “a) em sentido ‘definitório teorético’, segundo o qual ordenamento - direito,  isto é, o campo compreensivo da experiência jurídica nas relações humanas é o ordenamento, como organização ou como estrutura normativa; b) em sentido ‘definitório técnico’, segundo o qual ordenamento > direito, ou seja, o ordenamento repre senta um modelo de experiência jurídica, que não bas ta, porém, a enfeixá-la e a exauri-la, porque o ordena41. Cf. Teoria do Direito e do Estado,  cit., Cap. IX, pág. 295.

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mento é somente uma componente da realidade jurídi ca considerada na sua complexidade; c) em sentido definitório prático, segundo o qual or denamento < direito, isto é, o ordenamento é um princí pio interpretativo da realidade social na sua glo balidade, que é delimitada mediante o direito em um campo de revelação ao lado de outros campos diversos, como o sociológico, o econômico, o moral, o político, para cada um dos quais se pode estabelecer um ordena mento”42. Essa precisa discriminação de significados adapta-se, notadamente na acepção b, supra, à concepção da pluralidade dos ordenamentos, com diversa graduação de positividade  jurídica, visto prevalecer o sistema positivo estatal (o orde namentojurídico stricto sensu), o qual não cobre toda a experiên cia jurídica, ou, como diz Frosini, é < (menor) que ela. Poder-se-á pensar que, nesses termos, o ordenamento ju rídico coincidiria com o complexo de normas abrangido pela Constituição de cada país, mas tal concepção não procede. Na realidade a Constituição, sobretudo a de tipo liberal ou socialliberal, ao mesmo tempo que disciplina o ordenamento jurídico-positivo estatal, preserva outros tipos de ordenamento, de  juridicidade não-estatal, como sistemas autônomos que consubstanciam a expressão da liberdade e da autonomia dos indivíduos e dos grupos em múltiplas e distintas formas de vida social. Concluo, em suma, dizendo que, em sentido técnico, ordenamento jurídico é apenas aquele componente da expe riência jurídica que se põe e evolui como conteúdo das fontes que diretamente se subsumem ao poder estatal, quer em razão de atos originários estatais (fontes legislativa e jurisdícional), quer derivadamente em virtude de atos, cuja autonomia normativa é reconhecida com validade jurídica própria (fontes costumeira e negociai). 42. VITTORIO FROSINI, “Ordinamento giuridico (filosofia)”, in Enciclopedia del Diritto, Várese, 1980, vol. XXX, pág. 640.

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Ciência do Direito e ordenamento jurídico Esclarecida a acepção em que estou empregando o termo ordenamento jurídico, não me parecem subsistentes as objeções que têm sido opostas à sua caracterização como macromodelo jurídico, ou seja, uma estrutura abrangente das de mais que compõem a experiência jurídica que tradicionalmen te têm sido objeto da Dogmática Jurídica. Tudo depende, é claro, do sentido atribuído à palavra es trutura, mas, neste passo, reporto-me ao já assente no Capítu lo I, supra, no qual esclareci que, no mundo da cultura, toda estrutura é uma unitas ordinis ou unidade de sentido, incon fundível com a rigidez das estruturas físico-matemáticas.  A meu ver, não procede a negação do caráter estrutural do ordenamento jurídico quando ele, ao contrário do sustenta do pelo racionalismo kelseniano, não é concebido como um sis tema de normas que lógica e escalonadamente se subsumam umas às outras, sem lacunas. Não há dúvida que o ordenamento não é homogêneo nem inteiriço, podendo mesmo conter confli tos e até mesmo contradições, conflitos esses que podem ser tanto de fatos e de interesses como de idéias, mas que devem ser obrigatoriamente resolvidos e normativamente superados para que a ordem jurídica subsista. No fundo, pois, prevalece um imperativo axiológico de coerência do ordenamento como um postulado da convivência social. É por não levar em conta a natureza lógica e axiológica e não apenas lógico-formal do ordenamento jurídico - no qual, como vimos, as contraposições são superadas graças a proces sos dialéticos e abertos de complementaridade —que Roberto  Vernengo, apegado à noção formal de sistema que nos dá Tarski como “o conjunto formado por número finito de enunciados e suas conseqüências”, chega à conclusão de que, “quiçá, o cará ter sistemático do direito não se dá no plano das normas, se não que a pretensão de sistematicidade se planteie somente ao nível do conhecimento dos juristas; é dizer, a questão seria a do caráter sistemático da ciência jurídica”43. 43. ROBERTO J. VERNENGO, Curso de Teoría General del Derecho, Buenos  Aires, 1985, “La noción de un sistema normativo”, págs. 293 e segs.

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 A seguir, Vernengo reconhece que um discurso científico não pode deixar de obedecer ao princípio de não-contradição, sob pena de nele se introduzir uma falsidade, que abriría por tas a quaisquer outras, tornando-se ele insubsistente. Mas, se assim é, não vejo como a exigência de sistematicidade possa ser apenas do discurso científico, sem se estender à experiên cia normativa, cuja significação a Ciência Jurídica investiga. O cientista do Direito não exclui a contradição de seu dis curso porque assim o queira, abstração feita da coerência ou não das normas objeto de estudo, mas somente logra esse re sultado porque a experiência jurídica e suas normas são, de per si mesmas, suscetíveis de sistematização. Ciência jurídica e experiência jurídica não correm paralelamente, aquela im pondo a esta arbitrariamente suas categorias lógicas abstra tas, visto como - conforme as teorias da concreção jurídica ou do Direito como experiência o têm demonstrado - as catego rias lógicas do Direito são postas pelo pesquisador, mas em direto e permanente contato com o processo factual-axiológiconormativo que as condiciona. O cientista do Direito não capta os fatos sociais no seu estado rústico ou tosco, mas sim em suas formas e sentido essenciais.  Aliás, até mesmo nas ciências físicas, as leis não repre sentam mera cópia ou fotografia de relações naturais pre existentes, já plenamente dadas, prontas para serem capta das, porquanto os enunciados e leis científicas - consoante é asserido pela totalidade dos epistemólogos - pressupõem a par ticipação criadora do intellectus agens,  sendo cada vez mais posto em realce o papel da imaginação criadora na compreen são dos fenômenos em seus nexos causais. A bem ver, uma lei científica é uma composição sintética de dados brutos  (e há quem  até mesmo conteste que este termo possa ter algum sen tido) e de atos nomotéticos ou reguladores da imaginação e do pensamento44. 44. Sobre a natureza sintética e criadora do conhecimento científico, v. MIGUEL REALE, Experiência e Cultura, cit., Cap. IV, “Da cultura como objetivação e positividade”, págs. 87 e segs.

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De qualquer forma, no entanto, se são alcançadas leis explicativas dos fenômenos, é sinal de que nestes já eram ima nentes os pressupostos factuais dos liames que ao depois se estadeiam no sistema dos princípios e das leis científicas, numa unidade lógica incindível. É óbvio que, com mais razão, os mesmos pressupostos devem ser reconhecidos em se tratando de ciências culturais, como é o caso do Direito, ainda porque, como já tive oportuni dade de acentuar, referindo-me a ensinamentos de LeviStrauss, um sentido de ordem é inerente até mesmo ao pensa mento selvagem ou incultivado. Tal verdade se evidencia na origem mesma da Ciência do Direito, quando os jurisconsultos romanos se deram conta de que os comportamentos humanos obedecem a certa “regulari dade” ou "normalidade”, sendo, por tal motivo, suscetíveis de  previsão  e de uma provisão de garantia (sanção) compondo-se a regula iuris. É que, não obstante naturais diferenças indivi duais, os homens em geral reagem de maneira igual ou análo ga ao se defrontarem com acontecimentos que os favoreçam ou prejudiquem. Se não houvesse certa regularidade nos possí veis comportamentos humanos, não haveria como disciplinálos, emanando-se normas para prevê-los e estabelecendo-se conseqüências decorrentes do adimplemento delas ou da recu sa de adimpli-las. É sobre esse dado humano basilar que se alicerça todo o edifício  jurídico, de tal sorte que foi a previ sibilidade de comportamentos iguais ou análogos, dada a igual natureza humana, que permitiu o surgimento do Direito e o seu conhecimento científico. , Não é demais assinalar que, mesmo sem ter sido por eles elaborada uma teoria sobre a sistematicidade das regras de direito, os jurisconsultos romanos bem cedo intuíram e postu laram a capacidade e a necessidade de uma modelagem normativa da experiência, ipsis factibus dictantibus ac necessitate exigente,  isto é, à medida que os fatos as fossem ditando e a necessidade as revelasse necessárias, o que soube ram realizar com nunca assaz louvado senso de concretude, através de fórmulas simbolizadoras. 93

Não olvidemos, com efeito, que os mestres romanos, a partir do rude Direito formulário, recorreram a elementos fi gurativos para configurar e enunciar as exigências jurídicas. Foi assim que surgiu a regula iuris, num empenho de isomorfia entre forma e conteúdo, sendo a imagem visual do conteúdo a força vivificadora do preceito45. Podemos, pois, afirmar que a exigência de não-contradição entre as normas jurídicas, ao nível da Ciência do Direito, pressupõe igual exigência de não-contradição entre os fatos que compõem a experiência jurídica, à medida que esta se torna objetiva ou se positiva,  visto como objetividade e positividade são termos correlatos, havendo razão para designar-se como  Direito Objetivo ou Direito Positivo o ordenamento jurídico, só consistente se e quando não contraditório, o que pressupõe sucessivas correções e o superamento de conflitos pelos le gisladores, pelos juizes e pelos próprios juristas através da história. Há dois momentos fundamentais em que o operador do Direito pode e deve corrigir e superar conflitos e contradições inevitáveis na experiência humana: um é o momento nomogenético, isto é, o instante em que o Poder opta por uma solução normativa, em detrimento de outras que poderiam es tar em contradição com o sistema já positivado, ou com os obje tivos que se têm em vista atingir (matéria esta mais propria mente de Política do Direito); o segundo momento ocorre de pois da norma posta, quer para verificar se ela mesma é subsistente por não contradizer a Constituição, quer para sol ver possíveis conflitos entre normas do mesmo nível ou catego ria, o que tudo constitui objeto da Ciência do Direito, sobretu do enquanto Dogmática Jurídica (momento culminante da Ciên cia do Direito) envolvendo tanto modelos jurídicos quanto mo delos hermenêuticos, os quais serão estudados no Capítulo se guinte. 45. Sobre a modelagem do Direito pelos romanos, em função da experiência, v. meu estudo “Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano Clássi co”, em Horizontes do Direito e da História,  cit., págs. 55 usque 74.

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Se não houvesse, repito, certa correspondência ou ho mología entre a experiência jurídica e a Ciência Jurídica, seria necessário dar razão a Kelsen ao conceber o ordenamento jurí dico tão-somente como um racional e estrito sistema de nor mas, ficando fora da cogitação do jurista, enquanto tal, tudo o que se ponha além das proposições normativas. Por aí se vê, aliás —e o problema merece especial aten ção -, que foi um mais rigoroso conceito de ordenamento jurídi co e de sua sistematicidade que nos permitiu ter uma integral compreensão da Ciência do Direito que é formada tanto por modelos jurídicos prescritivos como por modelos jurídicos her menêuticos.

Complexidade do ordenamento jurídico Cabe concluir que o superamento, no plano normativo, dos conflitos observáveis na experiência jurídica somente se dá mediante distintas aplicações de processos dialéticos. Volto a insistir neste plural, porquanto a experiência jurídica bem como o ordenamento jurídico que a  positiviza e a objetiviza (neolo gismos a que recorro para dizer que a torna positiva ou objeti va) não podem nem devem ser compreendidos como um todo unitário e escalonado de normas, o que já tive ocasião de assi nalar em crítica à Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Para facilidade de exposição, em contraposição à pirâmi de escalonada de um único sistema de normas, tal como a que Hans Kelsen nos oferece, eu djria que o ordenamento jurídico configura-se mais como um ecossistema complexo e variegado, que abrange uma multiplicidade de sistemas e subsistemas normativos que se escalonam uns distintos dos outros, em fun ção de diversos campos de interesse, muito embora todos eles se situem e se insiram no âmbito do comum horizonte de vali dade da Constituição de cada povo ( Direito Interno ) ou, então, sob o horizonte de coexistência universal exigido pela comunitas  gentium  para sobrevivência e desenvolvimento dos povos em igualdade de direitos ( Direito Internacional).

Pois bem, se esse amplo maerossistema ou macromodelo, que é o ordenamento jurídico, se apresenta da forma mais com plexa e diversificada, isto não importa em que não haja nele um sentido global de ordem, reconhecido como um postulado sine qua non da convivência social tal como se verifica à luz dos focos irradiadores de sua validade,  atuantes, respectiva mente, no Direito Interno e no Internacional. Esse sentido ge ral de ordem é, com efeito, essencial para a comum eficácia das prescrições constitucionais, num caso, e dos princípios do Di reito das Gentes, no outro, pois, em ambos os campos, há direi tos a ter direitos, que devem ser respeitados, o que seria impensável num mundo jurídico paradoxalmente entregue à desordem46. Mesmo os que mostram diversos pontos críticos na ques tão do sistema do direito, apontando as suas discrepâncias e dissonâncias, acabam, de uma forma ou de outra, reconhecen do que a eclosão multifária de sentidos e perspectivas que ca racteriza o ordenamento jurídico não redunda em excluir a possibilidade de visualizá-la como expressão de certa ordem geral, sob pena de converter-se a própria Ciência Jurídica em um amontoado desconexo e arbitrário de asserções47. Tudo depende de não se persistir num conceito puramen te formal de sistema, olvidando-se seu conteúdo fundamenta mente axiológico. A multiplicidade contrastante das perspecti vas explica-se pelo conflito inevitável que a história do homem assinala, empenhados que estão indivíduos, grupos e nações na busca dos mais diversificados interesses. Não é dito, toda via, que essa onímoda atividade se destine inexoravelmente à desordem, nem tampouco que assista razão a Frosini quando, no estudo supracitado, afirma que, “em última análise, cada 46. No fundo, é esse o pensamento de CELSO LAFER em. A Ruptura Ibtalitária e a Reconstituição dos Direitos Humanos, São Paulo, 1988. 47. Sobre as assintonias do sistema e a possibilidade de uma “estrutura sincrónica”, à luz do conceito de LASK sobre o processo jurídico no sentido de um ‘Valor para em geral”, v. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, O Con ceito de Sistema no Direito, cit., Conclusão, págs. 166 e segs.

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ordem é relativa a uma desordem mais vasta, que a contém”, com risco de converter-se em desordem quando mais se com plicar nas relações entre os elementos que a compõem...  Ante visão visã o tão pessimista, pessimista, penso que a história nos de monstra que, no mais das vezes, os mais violentos conflitos, gerados pela desordem, tendem a se compor, compor, como é próprio próprio do que se desenvolve no mundo dos valores e desvalores, ocorren do o superamento destes, destes, quando mais não seja por uma razão de subsistência ou sobrevivência. Quando tal composição não é possível, dá-se a ruptura, o fato revolucionário que põe termo à vigência de um ordenamento jurídico para substituí-lo por outro, no qual ressurge, sob outro enfoque ou paradigma, toda a série de experiências sistemáticas que, em grandes linhas, procuramos captar. Pois bem, na permanente luta lu ta contra a desordem, a qual é de per si dispersiva e subversiva, um dos instrumentos fun damentais de defesa da paz é a ordem jurídica, da qual o ordenamento jurídico jurídic o estatal é expressão mais marcante, disdistribuindo-se em campos ou áreas normativamente circunscri tas segundo finalidades diversas e mutáveis, garantidas por ordens de competência. Em mais de uma oportunidade tenho procurado demons trar a sem-razão dos que apresentam o ordenamento jurídico como um conjunto irremediavelmente assimétrico e distoante de normas, quando, na realidade, elas realizam o máximo de equilíbrio compatível com a experiência individual e coletiva. Equilíbrio dinâmico, em incessante recomposição, mas equilí brio que, no fundo, traduz a razão de ordem que preside o pro cesso jurídico desde sua gênese, como expressão do ato mesmo de pensar via de regra ordenadamente. Seria redundante se, neste livro, viesse a repetir tudo o que escrevi sobre o assunto, de maneira mais minuciosa em O  Direito como Experiência  e, sinteticamente, em Lições Preli minares de Direito.  Da 21® edição desta obra extraio alguns conceitos que põem em realce as razões de unidade do ordenamento jurídico, à luz das idéias de objetividade, positividade e estatalidade. 97

Só há ciência, digo eu, onde há “objetivação”, “objetiva ção”, ou seja, rea rea lidades independentes da pessoa do observador e irredutíveis à sua subjetividade. Daí poder-se dizer que “objetivo” e “positi “positi vo” são termos que se implicam. Note-se que, quándo quánd o me refiro a modelos jurídicos, juríd icos, afirm afirmo que eles se positiv  pos itivam am  e se objetivam. São, por outras palavras, elementos constitutivos do Direito Positivo ou Objetivo: vigem e têm eficácia, em certo tempo, como distintas realidades cul turais, coordenadas em virtude de seu comum centro refere referencial ncial de garantia, que é o mandamento constitucional. Sem precisar invadir a seara da Ifeoria do Estado, penso que o Estado é a organização do poder, poder, ou, ou, por outras palavras, palavras, que é a sociedade ou a Nação organizada numa unidade de poder, com a distribuição originária e congruente das esferas de competência segundo campos distintos de autoridade. Ora, o Direito, que vigora vigo ra e tem eficácia em um território, território, como, por exemplo, no território brasileiro, é declarado ou re conhecido pelo Estado, através através de suas próprias fontes, ou re sulta das fontes dos demais ordenamentos, sem conflito com as fontes estatais. Desse modo, soberania e positividade  positivid ade do Direito são dois conceitos que se exigem reciprocamente: soberano   diz-se do poder que, em última instância, põe ou reconhece o  Direito  Positivo; Direito Positivo é, por excelência, aquele que tem, para garanti-lo, o poder soberano do Estado. Desfazendo equívocos, ligados ligad os a superadas concepções de  po derr originário de soberania, declaro que esta não é senão o pode declarar, em última instância, a positividade do Direito,  como exponho em meu livro Teoria do Direito e do Estado. Essas considerações, aparentemente marginais, vão per mitir-nos compreender que o Direito Objetivo, como conjunto de normas normas e modelos jurídicos - exatamente exatamente porque se destina destina a ter vigência vigência e eficácia na universalidade universalidade de um território território -, -, constitui, no seu todo, um sistema global, que através de um termo italiano já integrado em nossa língua, se denomina ordenamento ordenamento jurídico. 98

Há um “ordenamento jurídic jurí dico” o” em cada país, país, formado pe las diversas fontes de direito, sob a égide do Estado, mas como sistema aberto e polivalente,  subordinados ao qual formam-se “ordenamentos menores”, com menor grau de positividade48. É essa referibilidade ao Estado como garantia global do sistema, sistema, na forma form a da Constituição, que assegura a unidade e a necessária coerência do ordenamento jurídico, pois, conforme célebre célebr e dito de Gerber, Gerber, cada Estado Estado é uma “unidade comum co mum de querer”. Daí ter afirmado que o Estado é o centro geométrico da positividade do Direito, discordando, assim, daqueles que romanticamente dispensam o poder político, optando por tra mas de mera socialidade. Por aí se vê que a unidade dinâmica do ordenamento jurídic jur ídicoo repousa em dois pressupostos, pressupostos, um u m de caráter geral (o natural sentido de ordem inerente ao ato de pensar) e outro de caráter c aráter particular, particular, que é a comum intencio nalidade de respeito à ordem jurídic jur ídicaa pelos sujeitos de direito direito que dela haurem e nela alicerçam seu próprio status.  vê, ê, no concernente co ncernente ao delicado problema da “uni Como se  v dade do ordenamento jurídico”, longe de proclamar-lhe a am bigüidade, somente em virtude da multiplicidade empirica mente contrastante das "ordens de interesses privados e cole tivos” que nele atuam, reconheço que mister é que tais confli tos sejam superados para preservação do sistem si stema, a, como resul tado dos dois imperativos supralembrados. Não há, em suma, suma, necessidade de recorrer a uma norma fundamental de global referibilidade referibilida de (conjeturada de diversos modos, como se deu na evolução do pensamento de.Kelsen) porquanto é na natureza do próprio ser pensante que qu e devemos buscar a razão da ordem, ordem, mesmo porque, repito, não seria possível a idéia de norma ou regra regra jurídica jurídi ca  se a conduta humana de per si não fosse regulá sublinhar, se não houvesse na socie vel. Como não me canso de sublinhar, dade tendências ou inclinações mais ou menos estáveis, estáveis, condi cionantes de modos de ser e de agir com relativa “regularida de” ou “normalidade”, não teria sido sequer possível a forma 48. Lições Preliminares de Direito, cit., págs. 188 e segs.

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ção do Direito, a um só tempo como experiência e como concei to, processo axiológico-fatual e ciência normativa. Poder-se-á julgar que seja puramente acadêmico, isto é, sem conseqüências práticas, o problema da unidade do ordena mento jurídico, mas assim não é. Quando se nega a consistên cia ou coexistência lógico-axiológica da ordem jurídica positi va, está-se negando, concomitantemente, a possibilidade de  princípios gerais de direito, que, não obstante diversas confi gurações, sejam aplicáveis à totalidade do ordenamento. Em conexão com esses princípios de mais amplo espectro, há prin cípios gerais de direito por assim dizer subordinados, adstritos a cada sistema do macrossistema (princípios gerais do Direito Civil, do Direito Tributário etc.), podendo-se mesmo falar, numa progressão cada vez mais especificadora, em princípios do Di reito de Família ou da propriedade privada. Eis aí uma trama complexa que, no seu todo, revela a admirável riqueza das “mo delagens” jurídicas expressas em não menos admirável lingua  gem, uma das primeiras linguagens científicas constituídas no desenrolar da história das ciências. Não creio seja necessário demonstrar a essencialidade dos  princípios gerais de direito,  não apenas, como diretrizes hermenêuticas superiores no plano do ordenamento, mas tam bém nas hipóteses inevitáveis de lacunas nos subsistemas que disciplinam as diversas “faixas de normatividade” que com põem a ordem jurídica. Ora, é tão-somente o pressuposto lógico-axiológico da unidade do sistema que autoriza, através do recurso aos princípios gerais de direito, a introdução no siste ma normativo vigente de uma norma que resolva e supere a falta de preceito disciplinador de espécie não previsto pelo le gislador. O mesmo se diga com referência à aplicação da analogia, a qual pressupõe a unidade do sistema para lançar-se mão de critérios considerados plausíveis in casu, e plausíveis porque assemelháveis no conjunto unitário das referibilidades e inci dências normativas. Pelas mesmas razões, é a unidade lógico-axiológica do ordenamento que permite distinguir nele normas primárias e 100

secundárias distintas umas das outras, quer em razão da san ção, à qual é dada maior relevância por Hans Kelsen, quer em razão de seu conteúdo, de início vago e indistinto e, ao depois, definido e garantido, como se dá com as normas de reconheci mento a que se refere Herbert Hart49. Mais importante, a meu ver, é a distinção entre normas de organização ou institucionais e normas de conduta, distin ção esta que faço - o que nem sempre tem sido bem-compreendido - atendendo à relação entre as regras que criam entes ou estabelecem ordens de competência e as normas que discipli nam o comportamento dos obrigados no âmbito ou em conse qüência do que foi previamente instituído. É que, no intrincado quadro normativo do ordenamento  jurídico, normas há que não somente existem em função de uma multiplicidade de fins correlatos, como também adqui rem mais estabilidade, ordenando-se como institutos e insti tuições; enquanto que outras normas têm  função instrumen tal, isto é, regem distintas formas de conduta no seio de cada instituição, ou como decorrência desta, sendo tipificadas di versas “situações jurídicas” que abrangem direitos subjetivos, poderes, faculdades etc. Desse modo, o macrossistema do ordenamento jurídico compreende instituições, isto é, corpos normativos estáveis que ordenam as atividades sociais em razão de uma idéia diretora básica, como, por exemplo, se dá com a família, a sociedade de fins econômicos, a propriedade privada etc., bem como diver sificadas espécies de normas, com vários graus de incidência, que vão desde as especificações de cada instituição até conjun tos unitários de poderes-deveres, derivados, dos quais os con tratos são exemplos primordiais. Impossível seria enumerar, neste passo, e muito menos descrever todos os elementos arti culados no ordenamento jurídico, criados pela lei e pelas de49. Para um confronto entre as distinções de KELSEN e as de HART, vide, de NORBERTO BOBBIO, o ensaio “Norme primarie e norme secondarie”, inserto emStudi per una Tkoria Generale dei Diritto,  Turim, 1970, págs. 175 e segs.

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mais fontes do direito. Como sintetizar, em verdade, em pou cas palavras, esse poderoso universo normativo que se escalona desde a cúpula dos princípios até códigos, leis, regulamentos, sentenças e contratos, cada um deles numa crescente tipificação que se projeta através de crescente adequação às anfractuo sidades da experiência jurídica? Como, em suma, dar, num re lance, a idéia desse prodigioso mundo de regras que se projeta das culminâncias dos tratados internacionais e das constitui ções até simples instruções e ordens de serviço, num emara nhado de artigos, seções, parágrafos, incisos e alíneas? E claro que, num sistema dessa natureza, ninguém de bom senso sonhará com a linear coerência dos sistemas matemáti cos, mas ninguém poderá concebê-lo desarticulado e contradi tório sob pena de periclitar o próprio destino do homem. Não concordo, pois, com os que concebem o ordenamento jurídico como um precário refúgio, admitido tão-somente por ser a mais atenuada expressão da desordem geral. Penso, ao contrário, que a unidade garantida do ordenamento jurídico é um impe rativo de sobrevivência social, razão pela qual a apresento como um postulado da razão ético-jurídica, válido ainda que não de monstrado. De mais a mais, essa complexa e diversificada sucessão de figuras e modelos não surge nem se desenvolve por acaso, mas sim em razão de causas ou motivos subjacentes, ordenan do-se de modo temporal, funcional e hierárquico, refletindo o sentido de ordem que, como vimos, é imanente ao próprio ato de pensar.   Não há dúvida que não há como idealizar o ordenamento como uma estrutura de tipo matemático, pois a sua é antes uma configuração na qual se situam corpos normativos distintos que correm paralelos uns aos outros, às vezes se implicando e outras se entrecruzando, todos porém se influindo reciprocamente, por se acharem todos subordinados às mesmas razões finais de validade, a que já fiz referência, seja no plano interno, seja no plano internacional.  Além disso, no seio de ordenamento, h á normas sobre nor mas, cuja importância Bobbio justamente sublinha, como se riam as que compõem a Lei de Introdução ao Código Civil, por 102

sinal que aplicáveis, mutatis mutandis, a todo o ordenamento  jurídico brasileiro, o que vem confirmar a unidade lógicoaxiológica de seus preceitos. É à luz desse complexo de conotações factuais, axiológicas e normativas que se pode reconhecer o dever e a legitimidade de expelir do macromodelo do ordenamento jurídico todas as normas que lhe sejam estranhas ou adversas, mas este é um assunto que já nos conduz aos problemas hermenêuticos tra tados no Capítulo seguinte.

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CAPÍTULO X Modelos Hermenêuticos do Direito Modelos preseritivos e modelos hermenêuticos Estabelecida a noção geral de ordenamento jurídico como o macromodelo normativo que circunscreve e regula a experiên cia jurídica direta ou indiretamente relacionada com o Estado, embora não coincidente com este, cabe ao jurista não só inter pretá-lo como compreendê-lo mediante modelos científicos ou doutrinários. Desde a formação do Direito Moderno, sobretudo a partir de Savigny, tornou-se corrente a distinção entre o Direito como “sistema de normas” (e, acrescento eu, para prevenir-nos con tra o formalismo racionalista) e de “situações normadas”, de um lado, e, do outro, o Direito como doutrina ou forma de co nhecimento daquele sistema: é o que o mesmo Savigny deno minava Direito Científico.  Antes de mais nada, cumpre lembrar que essa distinção deve ser entendida cum grano salis, isto é, com o devido crité rio e medida, porquanto já tive oportunidade de salientar a íntima implicação que existe entre a experiência social e o 105

conjunto de conceitos teóricos mediante os quais é ela captada e criadoramente objetivada em estruturas cognoscitivas. É claro, pois, que não se estrutura nem se concebe o orde namento jurídico sem se lançar mão de elementos teóricos, tal a correlação que existe, notadamente no mundo cultural, en tre a realidade subjacente e seus símbolos expressionais. O fato é, porém, que uma vez objetivado o ordenamento  jurídico, graças ao poder nomotético e ordenador do espírito, não se deve esquecer que ele surge como base e instrumento de ação ou de conduta, tornando-se, por conseguinte, necessário recebê-lo e interpretá-lo para inferir suas conseqüências práti cas, na linha ou projeção de cada fonte de direito. Cada norma, elemento nuclear do ordenamento (e o que se diz dela pode ser dito dele) põe-se como uma diretriz prescritiva de organização ou de conduta, como algo, pois, de válido e objetivamente eficaz, constituindo como que uma pla taforma, a partir do qual os sujeitos de direito podem formar suas pretensões e formular suas exigências. O direito, em sen tido subjetivo, pressupõe, como é notório, o direito objetivo, o qual, concomitantemente, circunscreve e assegura a seu titu lar determinado campo de pretensões e exigibilidades, dada a natureza bilateral-atributiva das normas jurídicas, como longamente exponho em minha Filosofia do Direito. Pois bem, em virtude de ser posta pela norma jurídica uma “situação jurídica”, as diretrizes por ela postas e estabelecidas adquirem um sentido dogmático, na acepção que este adjetivo possui na Ciência Jurídica. Se em Teologia dogma é uma assertiva insuscetível de discussão, nos domínios do Direito dogma é uma prescrição que, salvo vício de nulidade, não pode, in limine, deixar de ser considerada imperativa. Daí a denominação de Dogmática Jurídica dada à Ciência do Di reito no momento culminante em que ela elabora juízos a par tir do sistema de normas em vigor. Pelo que foi exposto nos Capítulos anteriores, já ficamos sabendo que essas normas prescritivas somente podem ser emanadas pelas fontes de direito, e, como tais, são dotadas de 106

força cogente, o que corresponde à característica de coercibilidade do direito. Ora, a qualificação, por mim feita, da norma jurídica como uma proposição “bilateral atributiva”, considerando-a, outrossim, “coercível”, são enunciados que não possuem força obriga tória. Trata-se de afirmações de ordem teórica ou científica, sendo, como tais, suscetíveis de refutação. Elas não possuem, por conseguinte, caráter prescritivo, como, ao contrário, é pró prio das regras jurídicas, tanto assim que não faltam juristas que pretendem conceber o Direito desprovido de coação, e até mesmo à margem do conceito de bilateralidade. Cumpre, por conseguinte, ter presente que, a propósito do sentido ou valor das normas jurídicas vigentes, são formula das pelos juristas interpretações de natureza doutrinária ou científica, destituídas de força cogente, limitando-se sua fun ção a dizer o que os modelos jurídicos significam. Como variam os critérios e paradigmas interpretativos, as proposições e mo delos hermenêuticos - que no seu todo compõem o corpo da doutrina, ou o Direito Científico, conforme terminologia de Savigny —dependem da posição de cada exegeta, os quais se distribuem em distintas teorias ou correntes de pensamento. É por essa razão, pela não-prescritibilidade dos modelos hermenêuticos, que não considero a doutrina uma das fontes do direito, o que não lhes diminui, absolutamente, a relevân cia, visto como é tarefa da doutrina esclarecer a significação das fontes de direito, para saber, por exemplo, se elas todas se reduzem, em última análise, à lei; se elas existem em numerus clausus; se entre elas há uma hierarquia etc. Consoante já observei, a doutrina exerce uma função de vanguarda, pois, conforme será logo mais examinado, além de ela dizer o que as normas jurídicas efetivamente significam ou passam a significar ao longo de sua aplicação no tempo, cabelhe enunciar os princípios gerais que presidem a vigência e eficácia das normas jurídicas, bem como conceber os modelos hermenêuticos destinados a preencher as lacunas do sistema normativo, modelos esses convertidos em modelos prescritivos graças ao poder constitucionalmente conferido ao juiz. 107

Pois bem, os modelos de direito de caráter hermenêutico, se têm em comum um papel científico-doutrinário, distribuemse, todavia, em diversos tipos, de conformidade com que pas samos a verificar.

Modelos hermenêuticos do Direito de caráter metodológico Observe-se, desde logo, que nem tudo no plano hermenêuti co da experiência jurídica se situa na categoria de “modelo hermenêutico”, pois a interpretação do Direito pode ser feita também em virtude de princípios e enunciados que não che gam a se revestir de característicos estruturais, sem os quais não há que falar em modelo.  Além disso, que nem todos os processos metodológicos de investigação do Direito Objetivo constituem “modelos jurídicohermenêuticos”, propriamente ditos, porquanto, por exemplo, os métodos dedutivos e analógicos, de que o jurista se serve para compreensão das normas jurídicas, não diferem dos se guidos pelos demais cientistas no estudo da experiência em geral. Não há, em suma, um método de inferência dedutiva tipi camente jurídico tão-somente pelo fato de versar sobre maté ria jurídica: sob esse prisma, a Epistemología jurídica coincide com o esclarecido e exposto na Epistemología como teoria ge ral dos processos de conhecimento. Isto não obstante, há normas ou diretrizes de interpreta ção que se constituem especificamente em razão do Direito, isto é, que se configuram como decorrência de se inserirem nos quadros do ordenamento jurídico, o qual condiciona a atitude e o processo de conhecimento do pesquisador, por sinal que em correlação com a estrutura histórico-cultural na qual vigora o sistema e atua quem o estuda. É dessa correlação essencial entre ato hermenêutico e es trutura do ordenamento  que, em um estudo realizado signifi cativamente em homenagem ao saudoso amigo Luis Recaséns 108

Siches, em 1974, ousei falar em "hermenêutica jurídica estru tural”m. Passo a reportar-me, com naturais atualizações, à parte essencial desse escrito, pois dificilmente poderia expressar-me melhor. Nele me contraponho a duas orientações metodológicas, a meu ver inadmissíveis: uma voltada apenas para o momento genético e originário das fontes do direito; uma outra empe nhada em apresentar a norma jurídica tão-somente em função de fatos e valores supervenientes. Compreendido o ordenamento jurídico, digo eu, como uma totalidade orgânica em perene dinamismo, e reconhecido, so bretudo, à luz da filosofia fenomenológica, que todo produto histórico-cultural alberga um motivo e um sentido que consubstanciam uma intencionalidade, cumpre reconhecer o absurdo de uma opção entre dois sentidos que são complemen tares: o propósito inicial da lei deve ser analisado em necessá ria correlação com a sua possível adequação a valores e fatos supervenientes. Destarte, alterada a visão da experiência normativa, que deixou de corresponder a mera estrutura lógico-formal,  para ser entendida em termos retrospectivos de fontes e prospectivos de modelos, isto é, em razão de uma estrutura histórica con creta, o problema hermenêutico deve passar a ser resolvido, partindo-se do pressuposto de que toda norma jurídica é: a) um modelo operacional que tipifica uma ordem de com petência, ou disciplina uma classe de comportamentos possíveis; b) devendo ser interpretado no conjunto do ordenamento  jurídico; c) a partir dos fatos e valores que, originariamente, o cons tituíram. Cumpre ponderar, outrossim, que, à luz dessa compreen são globalizante ou estrutural, deve o jurista procurar atender 50. Cf. o meu estudo “Para uma hermenêutica jurídica estrutural”, depois inserto em Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, Saraiva, 1978, págs. 72 e segs.

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também às mutações e imprevistos da vida social, utilizandose da elasticidade, inerente a todo modelo jurídico, para a sua adequada atualização, cabendo-se, outrossim, não abandonar os valores essenciais de segurança e de certeza,  que foram pos tos em risco pelos adeptos da Escola de Direito Livre, e, atual mente, o são por certos defensores da chamada Justiça Alter nativa. Na realidade, o processo hermenêutico, muito embora adquira maior raio de ação, inclusive pelo reconhecimento da criatividade do intérprete nos casos de lacunas no sistema, tem a balizá-lo a estrutura ou o contexto das normas in actu. Por mais que a interpretação possa tirar partido da elasticidade normativa, preenchendo os vazios inevitáveis do sistema, deve ela sempre manter compatibilidade lógica e ética com o ordenamento jurídico positivo, excluída a possibilidade, verbi  gratia, de recusar-se eficácia a uma regra de Direito Positivo a pretexto de colisão com ditames de uma justiça natural ou de uma pesquisa sociológica. Não se pode, em suma, recusar efi cácia às estruturas normativas objetivadas  no processo con creto da história, sob pena de periclitar o valor da certeza jurí dica, ao sabor de interpretações que refletem, não raro, posi ções subjetivas variáveis e incertas. Observe-se que a compreensão estrutural do processo hermenêutico é, no fundo, corolário de novo conceito de racio nal, quer se fale em Lógica do razoável, à maneira de Recaséns Siches, Luigi Bagolini ou Chaim Perelman, quer se considere, consoante me parece mais plausível, que o razoável é uma das formas do racional, podendo ser melhor compreendido como conjetural, tal como exponho em meu livro Verdade e Conjetura. Não se trata de voltar, evidentemente, à razão histórica absoluta, predeterminadamente englobante, nos estilos da Fi losofia hegeliana, mas sim de admitir que o mundo histórico é uma totalidade de sentido, cujas objetivações intencionais, ou cujas intencionalidades objetivadas continuam, porém, sem pre na dependência das fontes individuais outorgadoras de sen tido,  as quais continuadamente renovam o quadro das cria ções humanas. Assim sendo, a razão histórica, de que falo, é 110

uma razão problemática e conjetural: ao historicismo lógicounitário  de Hegel sobrevêm um historicismo axiológico-plural,  cuja unidade dinâmica é dada pela referência à fonte projetante ou instituidora de valores que é a pessoa humana. Nesse contexto, a tarefa interpretativa deixa de ser um  jogo formal de esquemas e figuras, para tornar-se um empe nho fundamentalmente ético, graças aos “modelos hermenêu ticos” exigidos pela Ciência Jurídica em sua tarefa de modela gem ética da experiência. É a razão pela qual peço vênia para rematar estas páginas, recordando as seguintes diretrizes que, a meu ver, constituem notas distintivas da que denomino interpretação estrutural: a) A interpretação das normas jurídicas tem sempre ca ráter unitário, devendo suas diversas formas ser consi deradas momentos necessários de uma unidade de com  preensão (Unidade do processo hermenêutico). b) Tbda interpretação jurídica  é de natureza axiológica, isto é, pressupõe a valoração objetivada nas proposi ções normativas (Natureza axiológica do ato interpre tativo). c) Ibda interpretação jurídica dá-se necessariamente num contexto, isto é, em função da estrutura global do orde namento (Natureza integrada do ato interpretativo). d) Nenhuma interpretação jurídica pode extrapolar a es trutura objetiva resultante da significação unitária e congruente dos modelos jurídicos positivos (Limites ob  jetivos do processo hermenêutico). e) Tbda interpretação é condicionada pelas mutações his tóricas do sistema, implicando tanto a intencionalidade originária do legislador quanto as exigências fáticas e axiológicas supervenientes, numa compreensão global, ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva (Natureza histórico-concreta do ato interpretativo).  f) A interpretação jurídica tem como pressuposto a recep ção dos modelos jurídicos como entidades lógicas e axiológicas, isto é, válidos segundo exigências racionais, 111

ainda que a sua gênese possa revelar a presença de fatores alógicos (Natureza racional do ato interpre tativo).  g) A interpretação dos modelos jurídicos não pode obede cer a puros critérios da Lógica formal, nem se reduz a uma análise lingüística, devendo desenvolver-se segun do exigências da razão histórica entendida como razão problemática ou conjetural (Problematicismo e razoabilidade do processo hermenêutico). h) Sempre que for possível conciliá-lo com as normas su periores do ordenamento, deve preservar-se a existên cia do modelo jurídico (Natureza econômica do proces so hermenêutico). i) Entre várias interpretações possíveis, optar por aque la que mais corresponde aos valores éticos da pessoa e da convivência social ( Destinação ética do processo interpretativo).  j ) Compreensão da interpretação como elemento consti tutivo da visão global do mundo e da vida, em cujas coordenadas se situa o quadro normativo  objeto da exegese (Globalidade de sentido do processo hermenêu tico). Eis aí dez “modelos hermenêuticos do Direito” de caráter metodológico, que não se compreendeu senão em função e em razão da experiência jurídica. Não me parece certo afirmar que a Hermenêutica Jurídi ca Estrutural, assente nessas diretrizes, corresponda à posi ção do método histórico-evolutivo que teve em Saleilles e em Ferrara os seus máximos expoentes. Não há dúvida que essa visão histórica do Direito, importando na atualização progres siva das regras jurídicas, exerceu benéfica influência, reagin do, de um lado, contra o formalismo estático da Escola de Exegese, e demonstrando, de outro, os exageros e os equívocos da Escola do Direito Livre, mas seus mentores não podiam libertar-se da acanhada visão social e histórica dominante em seu tempo, sem os amplos horizontes propiciados pela compreen são do Direito em termos de experiência cultural. 112

 Além disso, carecia o referido método de um paradigma essencial, relativo à interpretação de toda norma jurídica como um momento concretamente integrado na totalidade de signi ficações do ordenamento jurídico, atitude gnoseológica somen te possível com a nova compreensão da Sociologia e da Antro pologia com base nos conceitos de estrutura e modelo. Mais certo é, pois, reconhecer que o método histórico-evolutivo foi um ponto de partida para o atual conhecimento históricoaxiológico da realidade jurídica,  cuja visão integral somente se tornou possível quando a Ciência do Direito se desvinculou da imperante aceitação da lei como a única expressão do siste ma normativo. O novo paradigma normativo, que se deve a Kelsen, representou uma alteração de 180° no conhecimento do Direito e nos métodos da Hermenêutica Jurídica.

Modelos hermenêuticos de tipo axiológico Se, como tantas vezes tenho asseverado, o valor é sempre um elemento constitutivo da experiência jurídica, poderá pa recer incabível destacar uma categoria especial de modelos hermenêuticos singularizados por sua tipificação axiológica. Mais uma vez, tudo depende, porém, da maneira de situar-se o problema, pois, se todo modelo jurídico é um ente axiológico, não é dito que em todos eles seja igual a densidade valorativa, sendo certo, outrossim, que, em determinados casos, prevalece primordialmente o seu aspecto estimativo. Pois bem, para essas normas ou modelos jurídicos, nos quais o valor se põe prioritariamente como fundamento da vi gência e da eficácia, mister é que o modelo hermenêutico ad quira também um predominante sentido axiológico. Poucos exemplos bastarão para demonstrá-lo.  Ao analisarmos, no Capítulo anterior, a questão da uni dade coerente do ordenamento jurídico, a conclusão a que che gamos foi a de que, mesmo na hipótese de não poder ser ela demonstrada, deveria ser admitida como um postulado da ra zão prático-jurídica. Nessa asserção, todavia, ficaram suben113

tendidos alguns problèmas basilares, exatamente porque eles somente poderiam ser melhor compreendidos em nível predo minantemente axiológico, como agora pretendo fazê-lo. É que esse postulado da razão prático-j uri dica legitima se com base na necessidade da sobrevivência das comunidades interna e internacional, o que implica a existência de uma or dem jurídica isenta a final de contradições. Abem ver, a pre servação das comunidades não é senão conseqüência daquele que podemos considerar o modelo ético-jurídico supremo, que é o valor incondicionado da pessoa humana como valor-fonte de todos os valores. Em verdade, se cada homem vale como um ente intangí vel, a idéia de associação universal entre iguais, livres de con flitos e de insanáveis contradições, põe-se imperativamente, no plano interno e no internacional. Dessarte, não pode deixar de ser postulado o imperativo de pacífica e ordenada convivên cia, sob pena de ter-se de admitir o absurdo da tese oposta, a do não-reconhecimento da pessoa humana como valor-fonte da convivência e da comum e irrenunciável sobrevivência. Como se vê, é o princípio hermenêutico do absoluto pri mado da pessoa humana, só concebível em razão de igual valor conferido às demais pessoas - abstração feita de diferenças de raça, língua ou religião -, que legitima eticamente o postuladq supra-referido quanto à concepção do ordenamento jurídico como um macromodelo, no qual não pode deixar de haver superamento de conflitos, ainda que se parta de premissas con traditórias. Ora, na experiência jurídica são discerníveis também modelos hermenêuticos de preponderante razão axiológica, como é o caso, por exemplo, daquele que proclama: “O que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido”. Eis aí uma asserção que subentende um modelo interpretativo que poderia ser assim formulado: “Como a liberdade éconditio sine qua non de toda e qualquer experiência axiológica, a qual pres supõe sempre a alternativa de poder-se fazer ou deixar de fa zer algo, quando o ordenamento jurídico não impede a prática 114

de determinado ato, este deve ser considerado juridicamente permitido”. Da mesma forma, a norma protetora do direito adquirido, que a Constituição consagra, não constitui uma prescrição imotivada do legislador, porquanto ela, a rigor, pressupõe a aceitação de um modelo hermenêutico da experiência jurídica nos seguintes termos: “Todo direito, que alguém adquira de conformidade com as disposições vigentes na época de sua aqui sição, constitui um bem ou valor jurídico insuscetível de ser desconstituído em razão de mutações operadas posteriormen te”51. Bastam esses dois exemplos para ver-se como a experiên cia jurídica é rica de princípios e modelos hermenêuticos que, corporificados ou não em modelos jurídicos, dão-nos o em basamento ético do Direito Positivo. Em geral, tais enunciados hermenêuticos ligam-se, direta ou indiretamente, à existência de determinados valores, como o da pessoa humana, da liber dade, da igualdade, da solidariedade, e, já agora, o do respeito aos bens da natureza (valor ecológico), valores esses que pode mos considerar invariantes axiológicas, as quais vão adquirin do, ao longo do processo histórico, tamanha intangibilidade que chegam a parecer inatas52. Pelas mesmas razões podemos admitir a existência de invariantes axiológico-jurídicas, tais como as relativas aos “di reitos fundamentais do homem”, em função dos quais são cons tituídos modelos hermenêuticos que disciplinam soberanamen te a convivência social, sendo-lhes atribuída uma hierarquia valorativa em relação aos demais. 51. Alegar-se-á que uma nova Constituição, ou uma norma constitucional revista, pode privar os cidadãos de determinadas regalias adquiridas, como, por exemplo, as dos funcionários que percebem vencimentos excessivos (Cons tituição, Art. 37, XI), mas, nesse caso excepcional, o legislador constituinte, no uso de suas prerrogativas soberanas, faz prevalecer, in casu, o valor de igualdade ou isonomia. Há sempre um enfoque valorativo como fundamento da correção de um direito irregularmente adquirido. 52. Nesse sentido, vide meu estudo sobre “Invariantes axiológicas”, publica do na Revista Brasileira de Filosofia, fase. 167, 1992, págs. 221 e segs.

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Não se pense, todavia, que os modelos jurídicos dotados de prevalecente sentido axiológico planem apenas nas mais altas instâncias da vida do Direito, porque, em todos os níveis do ordenamento jurídico, deparamo-nos com a necessidade de recorrer a regras e modelos de natureza hermenêutica para resolver questões de ordem prática, quer em razão da obscuri dade das normas de direito, quer em virtude de antinomias entre elas, ou no caso especial de lacuna ou omissão da lei, questão que será melhor examinada na secção seguinte.  Aliás, quando dizemos que a lei deve ser interpretada se gundo “seu espírito”, e não apenas por aquilo que ela verbal mente enuncia, não estamos afirmando outra coisa senão que o significado real dos modelos jurídicos é o resultado de um processo hermenêutico, consubstanciado em proposições e modelos capazes de revelar-nos o valor ou a razão axiológica do que é preceituado. Refiro-me ao papel da Hermenêutica Jurídica nas hipóte ses de obscuridade ou antinomia de normas, mas o recurso aos modelos hermenêuticos não raro se impõe para um "balan ceamento de valores” entre preceitos legais ou até mesmo en tre os incisos de uma mesma disposição legal, como se dá, por exemplo, quando da aplicação do Art. 170 da Constituição de 1988. Este mandamento declara, concomitantemente, que são princípios gerais da ordem econômica a livre concorrência e a defesa do consumidor. Pois bem, freqüentemente o direito que o empresário tem de livremente produzir e vender entra em conflito com o direito do consumidor ao justo preço das merca dorias, a salvo de lucros abusivos, de tal modo que cabe ao administrador e sobretudo ao juiz realizar um “balanceamento de valores in concreto”, a fim de que a norma constitucional possa ser aplicada com eqüidade e sem contradição.  Além do mais, a relevância do elemento axiológico achase consagrada em uma série de brocardos, cujo valor não deve ser desprezado só pelo fato de vários deles se terem petrifica do, parecendo verdadeiros fósseis da experiência jurídica. 116

Carlos Maximiliano, com o seu habitual equilíbrio, se con dena grande número de parêmias que por largo tempo domi naram a praxe jurídica, emperrando o progresso do Direito, não deixa de reconhecer a atualidade de algumas delas53. São, geralmente, adágios de conteúdo predominantemente axiológico, como, por exemplo, os seguintes: ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio (preservação da coerência lógica e da isonomia do sistema); non debet cui plus licet, quod minus est non licere (mais um exemplo do valor da liberdade como pressuposto da atividade lícita); poenalia sunt restringenda (ainda uma con seqüência do valor da liberdade, que não pode ser restringida por sanções penais genéricas, ou melhor, sem tipicidade, mes mo porque outro adágio proclama: in dubio pro libertate ); minime sunt mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt  (presunção do acerto do juízo de valor formulado uniformemente durante dilatados anos). Nenhum desses e de outros adágios, todavia, tem um va lor absoluto, pois, como adverte Carlos Maximiliano com rela ção à última parêmia, nem sempre o tradicionalmente obede cido merece subsistir ante o advento de novos valores revela dos pelo progresso jurídico, o que vem confirmar a dialeticidade axiológiea da experiênciajurídica  também, e notadamente, sob o prisma hermenêutico. E essa dialeticidade de fundo axiológico que nos alerta sobre o papel da Lógica Deôntica, da Semiótica ou da Infor mática Jurídicas no mundo do Direito. Ninguém de conheci mentos atualizados negará, a importância dessas duas formas de investigação para esclarecer-nos sobre a validade, o sentido e o poder de comunicação dos modelos jurídicos, bem como so bre os respectivos liames; mas, por mais que possamos ser elucidados do ponto de vista lógico, semiológico, comunicativo e operacional, jamais poderemos olvidar o sentido instrumen tal de tais estudos, que não dispensam mas antes exigem para53. Cf. CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e Aplicação do Direito,   10® ed., Rio de Janeiro, págs. 241 e segs.

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digmas axiológicos, que representam, por assim dizer, a alma vivificadora das normas jurídicas54.

Modelos hermenêuticos supletivos e complementares Já declarei que a plenitude do ordenamento jurídico cons titui um postulado da razão prático-jurídica, cuja legitimidade procurei esclarecer. No Direito pátrio, esse postulado é expres samente consagrado pelo Art. 4ada Lei de Introdução ao Códi go Civil que estatui: “Quando á lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios ge rais de direito”, o que é reiterado pelo Art. 126 do Código de Processo Civil. É óbvio que somente se pode falar em omissão ou lacuna quando se admite que algo deveria ter sido enunciado, e não o foi, o que revela que, no espírito de nosso ordenamento jurídi co, este deve ser concebido como um sistema desprovido de va zios normativos. Se não houvesse o pressuposto da unidade do ordenamento, pelo menos in fíeri, isto é, de forma tendencialmente sistemática, só caberia reconhecer a irrelevância jurídi ca do caso não legalmente previsto, cabendo ao juiz tão-somen te decretar a carência da ação, não por não ter esta fundamen to em leis, mas pelo motivo específico de não ter sido a hipóte se em apreço objeto de disposição expressa. 54. Sobre estudos de Lógica e de Informática Jurídicas, lembro o Colóquio realizado em Florença, promovido por MARIO LOSANO, pelo “Consiglio Nazionale delle Ricerche”, no corrente ano de 1994, conforme a relação das comunicações organizada por C. BARGELLINI e S. BINAZZI sob o título “II convegno in breve - A glance at the .Conference”, Florença, 1993, com im portantes estudos, de autoria, entre outros, de LUIGI LOMBARDI  VILLAURI, ANTONIO CAMMELLI, JOOS A. BREUKER, NEWTON A. DA COSTA e ROBERTO J. VERNENGO. Quanto aos riscos das teorias que fazem abstração do conteúdo históricoaxiológico do Direito, vide NELSON SALDANHA, Da Teologiaà Metodologia, Belo Horizonte, 1993, e Ordem e Hermenêutica, Rio de Janeiro, 1992.

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Por ser, ao contrário, pressuposta a possibilidade de encontrar-se sempre uma solução para todo e qualquer caso, a lei determina que o juiz não se abstenha de sentenciar a pretexto de obscuridade ou omissão, mas antes deve procurar a solução adequada, recorrendo à analogia, ao costume e aos princípios gerais de direito. Cumpre-lhe, por conseguinte, no silêncio ou ausência de um modelo jurídico tipicamente adequado à  fattispecie, construir um modelo hermenêutico. Como o juiz tem competência e poder para decidir, e sua decisão obriga as par tes, o que surge, a bem ver, nesse contexto, é um modelojurídi co hermenêutico, como conteúdo da fonte jurisdicional.  Analisemos o que se contém no lembrado Art. 4a, o qual, de início, se refere à analogia, que tanto pode ser analogia legis como analogia iuris. A complementação do ordenamento jurí dico mediante recurso a uma outra disposição legal análoga, com base em razões de semelhança ou identidade de fins (ubi eadem ratio, íbi eadern dispositió), é, a meu ver, sinal de que o Direito pátrio acolhe e consagra a tese da plenitude sistemática do macromodelo do ordenamento. Parece-me, com efeito, que a invocação da norma análoga só tem sentido a partir do reconhe cimento da unidade lógico-axiológica do sistema global no qual aquela norma se insere. Sem esse pressuposto, a aplicação da norma análoga não teria legitimidade, por ser aleatória e atomísticamente invocada. Sendo ela, ao contrário, um ele mento ou elo do ordenamento, passamos a estar perante um processo de integração de seus elementos constitutivos. Dá-se, assim, uma auto-integração “interna corporis”  do sistema. O mesmo se diga quanto.ao recurso aos usos e costumes para superar as omissões da lei. Por sinal que essa referência aos costumes só se explica pelo inveterado apego aos modelos legais, pois as normas consuetudinárias são também modelos  jurídicos, de tal modo que, se elas disciplinam o assunto em pauta, não há que falar em lacuna do ordenamento.  A invocação da regra costumeira é mais uma forma de auto-integração do sistema geral, o que demonstra que este, na visão do legislador, já contém meios de sanar omissões, dada a complementaridade das fontes do direito. Quando, porém, 119

estas não contenham normas ou modelos adequados à espécie, não há outro remédio senão recorrer a princípios gerais.  A esta altura, põe-se um problema que nem sempre tem merecido a atenção dos tratadistas. É que deve haver uma or dem preferencial no que tange ao emprego de princípios ge rais, os quais podem tanto ser pertinentes ao ordenamento ju rídico pátrio como resultar do Direito Comparado, isto é, de um confronto entre os princípios gerais que presidem o nosso e os ordenamentos alienígenas. Ora, o recurso às idéias gerais diretoras de macromodelos  jurídicos de outros países só pode ocorrer em duas hipóteses: ou para reforço da interpretação dada a modelos jurídicos de nosso sistema, em virtude da coincidência com o pensado alhures em casos iguais ou análogos (casos em que o Direito Comparado atua como modelo hermenêutico); ou, então, para preencher la cuna de nosso ordenamento, hipótese em que o Direito Compa rado desempenha função deheterointegração de nosso sistema. Sou de opinião que essa segunda hipótese de heterointegração só pode ser admitida quando impossível realizá-la graças aos princípios gerais de nosso próprio ordenamento. Quando, em suma, há antinomia entre os nossos e os princípios gerais vigentes em macromodelos estrangeiros, cabe a prima zia àqueles, o que nem sempre tem sido obedecido por juristas que sistematicamente se encantam com doutrinas expostas alhures. Não se trata, neste ponto, de preconceito nacionalis ta, mas sim de uma ordem de preferência hermenêutica que resulta do fato de estarmos preliminarmente subordinados às diretrizes que integram o nosso Direito Positivo como expres são jurídica de nossa soberania política. Quanto à analogia iuris,  como processo da integração normativa, cabe-me ponderar que, em última análise, ela se confunde com os princípios gerais de direito, primeiro no plano do Direito pátrio, e, em seguida, sob o enfoque do Direito Com parado. Não há que pensar em analogia iuris como um tertium  genus entre a analogia legis e os princípios gerais de direito55. 55. Sobre os conceitos deanalogia legis e analogia iuris, v. MIGUEL REALE, Lições Preliminares de Direito, cit., págs. 292-294.

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Importante é ressaltar a natureza da decisão mediante a qual, verificada a omissão da lei, o juiz procede à integração do ordenamento jurídico. E ela, fora de dúvida, um ato compará vel ao do legislador, razão pela qual, com muito acerto, o Art. 114 do revogado Código de Processo Civil, de 18 de setembro de 1939, assim dispunha: “Quando autorizado a decidir por equidade, o juiz apli cará a norma que estabeleceria se fosse legislador”. Infelizmente, esse corajoso preceito foi substituído pelo do Art. 127 do atual Código de Processo Civil, que, ambigua mente, declara: “O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei”. Nada mais temeroso e fora da realidade do que esse man damento, pois, a todo instante, o juiz é chamado a decidir por eqüidade, sobretudo quando - conforme vimos —as disposições legais se revelam antinómicas, ou omissas, e o julgador deve suprir tais defeitos mediante a criação de modelos hermenêu ticos que superem as antinomias, ou, então, proceder a um balanceamento de bens ou valores, para realização de justiça concreta. Esclarecida essa questão, a meu ver de relevância, não posso deixar, neste passo, de fazer referência a uma nunca as saz louvada inovação do Direito pátrio, ao ser instituído, na Constituição de 1988, o mandado de injunção, graças ao Inciso LXXI de seu Art. 5S, nos seguintes termos: “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercí cio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerro gativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidádania”.  Abstração feita da reduzida repercussão desse mandamen to, em virtude da timidez daqueles que subordinam a sua apli cação à prévia existência de lei regulamentadora do preceito constitucional - tese que, data maxima venia,  não considero 121

plausível não há dúvida que foi dado grande passo à frente, ao ser estabelecido que, em se tratando de direitos fundamen tais, a inércia do Poder Legislativo pode ser suprida pela vigi lância dos cidadãos e pela corajosa participação do Poder Judi ciário, ao tomar conhecimento e acolher o mandado de injunção impetrado, sempre que for possível e necessário revestir de força judicial cogente o modelo hermenêutico elaborado em razão de dispositivo fundamental da Carta Magna para prote ção dos direitos e liberdades por ela assegurados. Eis aí um exemplo magnífico de modelo hermenêutico que, uma vez recepcionado pela fonte jurisdicional, passa a suprir a ausência de norma regulamentadora do texto constitucional. Por aí se vê como a doutrina, que estou expondo neste livro, vem estabelecer uma correlação essencial e sincrónica entre o sistema jurídico e o sistema político vigente no País, satisfazendo, assim, ao imperativo que deve ser inerente a toda autêntica teoria do Direito, que - como saliento no  Prefácio somente é plenamente válida se e quando se harmonizar com os valores políticos. No caso do Brasil, tais valores são os pró prios do Estado Democrático de Direito, consagrado pela Car ta de 1988, o qual se caracteriza, entre outros princípios, pela existência e pelo desenvolvimento de um ordenamento jurídi co que seja cada vez mais expressão dos interesses e direitos da comunidade, visualizada esta como um todo no qual liber dade e igualdade se implicam e reciprocamente se completam, para “bem do povo e felicidade geral da nação”, como se costu mava dizer em outros tempos.

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ÍNDICE DE AUTORES  A 

 ADEODATO, João Maurício - 60  ANDRADE, Cristiano José de - 31  ARENDT, Hanna - 62

B BARGELLINI, C. -118 BINAZZI -1 1 8 BOBBIO, Norberto - 101 BLOCH, Marc - 54 BREUKER, Joss A. - 118 € CAMMELLI, Antonio -118 COELHO, Luiz Fernando - 60 COSTA, Newton C. A. - 9, 39, 118 CHEVALIER, Jacques - 60

D

DÉCUGIS, Henri- 5 4

E ENGISCH, Karl - 33 ESSER, José - 33 F FERRAZ JR., Tércio Sampaio - 9, 59, 96 FROSINI, Vittorio - 90 G GUSMÃO, Paulo Dourado de - 54

H HABERMAS, Jürgen - 17, 78 HARTMANN, Nicolai - 8 HAURIOU, Maurice - 88 K KELSEN, Hans -1 4 L LAFER, Celso - 96 LARENZ, Karl - 33 LASK, Emil - 9 LUHMANN, Niklas - 62 M MAXIMILIANO, Carlos -117 MOREIRA, João Baptista - 41 P PARESCE, E. - 22 PUGA, Leila-3 9 R 

RÁO, Vicente - 71 ROMANO, Santi - 88

S SALDANHA, Nelson -118 SCHELER, Max - 8  V   VERNENGO, Roberto J. - 91,118  VILLAURI, Luigi Lombardi - 118 124

R R D onnelley

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