Miguel Esteves Cardoso - A Causa Das Coisas

January 12, 2021 | Author: Anonymous | Category: N/A
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A CAUSA DAS COISAS MIGUEL ESTEVES CARDOSO

A CAUSA DAS COISAS CÍRCULO DE LEITORES Capa de: JORGE COLOMBO 1 Licença editorial por cortesia de Assírio & Alvim Impresso e encadernado por Resopal no mês de Dezembro de 1987 Número de edição: 2221 Depósito legal número 17 461/87 PREFÁCIO É costume, quando se publicam colectâneas de artigos de jornal, dizer que se "hesitou muito", que os textos pouco valem e que "o tempo dirá" se há ou não desculpa para o que se fez. Tecem-se depois elevadas considerações sobre a relação entre o Efémero e o Eterno, entre o Jornalismo e a Literatura e outras coisas igualmente despropositadas para prefácios. Estas manobras são, o mais das vezes, defesas modestas, destinadas a precaver o autor contra as consequências críticas (e comerciais) da iniciativa. Parece-me óbvio que, quem publica um livro acha que vale a pena publicá-lo e é por isso que me dispenso de todas as humilhações rituais. Dentre mais de duzentos artigos escritos para o Expresso, escolhi e revi cerca de cem, porque acho que ainda se aguentam mais uns tempos. Dito isto, é necessário recordar que os artigos agora reunidos foram redigidos para serem lidos um de cada vez, com descanso intervalar de seis dias. Lê-los de corrida é, sinceramente, insuportável. Não é por modéstia, mas para me defender do cansaço alheio, que recomendo que sejam lidos levemente. E claro, também, que os propósitos iniciais de uma coluna nunca correspondem ao destino que acaba por ter. Quer-se ser sério e há pessoas que só querem rir. Quer-se escrever sobre causas e há pessoas que só querem ler sobre coisas. É por isso que nada se deve dizer sobre intenções a liberdade da leitura é sagrada, mas a da escrita também. Basta-me dizer que muitas vezes escrevi só por escrever, inventando coisas que tapassem os buracos que abrem as semanas nos espaços "regulares" de um jornal. com uma ou outra excepção, porém, os artigos que agora publico foram escritos porque eu sinceramente achei que tinha qualquer coisa para dizer. Finalmente, a natureza de uma coluna semanal leva o autor a contar com a colaboração de muitas pessoas. Â autoria dilui-se assim entre todos aqueles que me ajudaram a escrever A Causa das Coisas. Não é um agradecimento vão. No Expresso e fora do Expresso

recebi mais do que alguma vez poderei retribuir. É por serem tantas as pessoas a quem deveria dedicar este livro e por ser pretensioso dedicá-lo a todos que eu não o dedico a ninguém. . MIGUEL ESTEVES CARDOSO CAUSAS ALCATIFAS Um dos grandes equívocos da segunda metade do século XX foi, sem dúvida alguma, a alcatifa. As alcatifas são, sinteticamente, expansões lanudas de grande monotonia, e vulgaridade. Privam os pés de contactar directamente com a dura realidade do soalho, habituando o Homem a uma falsa impressão de onde pisa, criando nele o culto fútil e amaricado do "fofinho". Fomentam toda a espécie de mitos irrisórios ("a cinza faz bem às alcatifas", "uma alcatifa é uma forma de poupar

energia", etc.) e conduzem a certas práticas que nos hão-de envergonhar diante das gerações vindouras. (Você, caro leitor, a olhar compenetrado para o chão e a dizer sentenciosamente "Esta alcatifa está a precisar de um champooing"...*) "Champooing"! Como todos os gerúndios anglo-saxónicos, cobre-se de ridículo na boca de um português. Outro gerúndio semelhantemente inane é aquele do brushing que se pronuncia em salões de coiffure como se se tratasse de um termo altamente técnico, aprendido durante um seminário restrito com Dusty Fleming: "Vamos avançar com um bocado de brushing, está bem?" (Tradução: "Vamos avançar com um bocado de escovando, está bem?") E a analogia capilar não acaba aqui. As alcatifas, uma vez que começam a ratar e a agonizar, transformam qualquer mulher ou homem bem pensante num histérico estagiário de cabeleireiro. Existem até "pentes" de alcatifa, para catar migalhas de bolo, desembaraçar pêlos difíceis, fazer o risco ao meio, e, de um modo geral, uma escusadíssima figura de parvo. Tal como as pessoas, tendem para a calvície precoce e trazem consigo panóplias de produtos especiais, parecidos com Pantènes, destinados a aliviar o sofrimento do bicho e a angústia nervosa do senhor. As alcatifas são quase sempre "ideias" de que as pessoas, mais tarde, amargamente se arrependem. Ao contrário do que acontece com os tapetes, não existe qualquer mercado interessante de alcatifas em segunda mão. Hoje, felizmente, tem-se vindo a esboçar um movimento de reacção ao dogma da alcatifa. O regresso à clareza do tapete e do chão encerado é um dos mais encorajadores sinais de saúde mental dos últimos tempos. Pouco a pouco, as salas portuguesas irão deixando de parecer quartos de hotel. Têm-se arrancado do soalho já bastantes daquelas peles carcomidas e desbotadas que "absorvem as gorduras e os derrames" (entre outras práticas inigiénicas e discutíveis) com uma violência e um vigor que dão gosto ver. Posto o chão a claro, como Deus entendeu, que havia de ser, abre-se uma lata de Encerite, arregaçam-se as calças ou as saias, e vai de aplicar uma boa camada de cera sobre a madeira sequiosa e honesta que grita porosamente, desesperadamente, por ela. Desaparece imediatamente aquele cheiro um pouco podre de sala de conferências às sete da manhã, causa de tantas alergias e ligeiras náuseas inexplicáveis da nossa contemporaneidade. com grande espanto, aprende-se que um soalho encerado e não a "milagrosa" alcatifex é ainda a melhor defesa contra as nódoas e a maldade inata das crianças que gostam de empurrar plasticina e esparguete para dentro das fibras. Põe-se-lhe um tapete em cima. Um tapete é uma coisa que se pode enrolar e pendurar e bater e vender e transportar. Tem sempre um formato sensato. Tem sempre a sua personalidade. Envelhece com elegância. Daqui a quinhentos anos, quantas alcatifas (mesmo persas) se hão-de ver nos antiquários especializados no século XX? Por baixo da cada alcatifa convençamo-nos há um soalho sufocado que, com a maior das dignidades, grunhe e geme, implorando pela sua liberdade. A madeira não se fez para assim tão rudemente se tapar e asfixiar. Consente quando muito a dança deslizante de um tapete, porque consegue respirar cutaneamente, pelos cantos da sala. Que diferente é esta terna interacção da ganância dominadora das alcatifas, causadoras de histeria nas donas de casa se acaso fica "um bocadinho de fora", no "cantinho", onde estão os "preguinhos" que "até 10 nem ficam mal, porque dão com a cor da alcatifa, não achas querido?" A reacção contra as alcatifas tem sido acompanhada por uma maior disposição, de parte da juventude, em não estar com problemas e complexos cada vez que urge um indivíduo ajoelhar-se com um pano na mão e pôr-se a dar cera como se não houvesse Amanhã. Aprendem o que este rito, de comunhão com o chão que se pisa, tem de telúrico e de animicamente satisfatório. Encostam o ouvido ao soalho encerado, só pelo prazer de ouvi-lo zunir.

As alcatifas têm os dias contados nos lares sérios de Portugal. Ainda estaremos certamente todos vivos no dia, não muito distante, em que a mera menção da palavra "alcatifa" será suficiente para despoletar um rude alarde de troça e gargalhada. Estamos a sair da longa noite fascista do regime do matte, das fotografias baças, dos filmes com demasiado grão, dos sapatos inengraxáveis e dos móveis sem verniz. O brilho e a cintilância ameaçam regressar. A Encerite aí está para os saudar. ALMANAQUE Não há em Portugal mais de dez poetas, dentre os dez milhões semanalmente recenseados e encorajados, capazes de escrever coisas tão bonitas como aquelas que se lêem no Verdadeiro Almanaque Borda D'Agua. Em Dezembro, por exemplo, encontra-se este parágrafo: "Voam em direcção ao Sul a galinhola, o pato-real e o pato-bravo. Terminam as migrações. A natureza adormece. Dezembro recebe e não restitui. Em Santa Luzia o dia cresce tão depressa como o salto de uma pulga." O estilo Borda d'Agua nada perdia em inaugurar uma nova] escola literária, no jeito retro-neo-realista que hoje prevalece, Se por vezes se cai no prosaico, como é o caso da peça 11.° Mês, não deixa de se sugerir a secura descritiva de um poeta como António Osório. Atente-se: "Passam as cotovias, vão-se embora os palmípedes, a narceja, o marugem e o pato-real. O morcego adormece. Desfolham-se a bétula, o pilriteiro, o amieiro, o freixo e\ o plátano. No fim de Novembro as árvores despem-se. Em Santa Catarina todas as árvores criam raízes." Na acumulação estonteante de sinais, na obsessão com as grandes viagens e ainda na sistemática insistência no adormecimento, existe aqui, por assim dizer, uma sensibilidade tranquilamente transmigrante, senão mesmo transformadora. Às vezes as referências podem ser elípticas e obscuras ("Vacina gado", ou "Enxerta de escudo citrinas"), outras vezes de uma comovente transparência ("bom tempo", "Lua cheia às 12 horas e 12 minutos"). Contudo, falam sempre de um tempo incerto, o que está evidentemente certo. A obsessão central é a dos patos. Em quase todos os textos do Borda d'Agua um ou outro pato acaba sempre por insinuar-se. Por alguma razão se chega ao ponto de citar a data do nasci12 ! mento de Dr. Bulhão Pato. Em "Março", o primeiro período induz-nos propositadamente em erro, levandonos para contemplações diversas, só para nos remeter mais tarde, com certa frieza aliás, aos patos. Vejase: "Desperta o morcego e também a rã. Vão para o Norte o pisco (e, quando estamos menos à espera...), o pato-marreco, a gralha e o tordo-cantador. Acasalam-se as perdizes. (...) Pó de Março, pó de ouro." Os movimentos são, epicamente, de despedida e de regresso. Às vezes regressam seres de cuja partida nunca nos tínhamos dado conta. É o caso de "Setembro", onde se nos diz, enigmaticamente "Volta o carricinho", sem que tenhamos tido consciência de ele se ter ido embora. Regra geral, isto sucede nos textos de carácter mais místico. Não fosse em Setembro que uma única vírgula separa o emblema erótico ("acasalam-se as galinholas") do emblema escatológico ("morrem os insectos") para ambos se resolverem na violência lírica do período final: "Em S. Miguel o calor sobe ao céu." Em contrapartida, há quem parta sem mais tarde regressar. É o caso, não pouco trágico, do verdelhãoamarelo, da abetarda, da toutinegra-de-cauda-russa, do papa-moscas e do tentilhão. Em Outubro eles "vão em direcção ao Sul" e depois mais não se ouve falar deles, nunca.

No texto "Fevereiro" assinala-se a frágil marginalidade daqueles seres menos ortodoxos que, em vez de seguirem os caminhos de massas, invertem-lhes arriscadamente o sentido. É o que acontece com uma cotovia-fulu, com um litorne, com um tordo-branco, até mesmo com uma cerceia, enfim. Todos estes "passam do Sul ao Norte". Isto numa altura em que, não menos significativamente, "caem as pontas aos veados e aparecem as primeiras borboletas". Como resistir a ler, nas entrelinhas deste passo do Borda d'Água, um irónico "Está tudo dito...""? Só numa instância encontramos no Borda d'Agua um obscurantismo acintoso, sintomaticamente reforçada pela substituição perversa do habitual pato pela (inesperada) galinhola. E no texto "Maio: Passa a sachola, volta a galinhola, vêm os besouros. Floresce o citiso, o pilriteiro, o trevo-dos-prados, a giesteira e a grande margarida. Orvalho de Maio vale carro de rei. Favas semeadas com ladainhas ficam fraquinhas." Não é simples desvendar a intenção destes trechos. Porque é 13 que alguém há-de querer semear favas com ladainhas? Quanto! vale, hoje em dia, um carro de rei? Porquê a insistência na vinda repentina dos besouros? Alguns críticos têm apontado a necessidade de ler "Maio" na presença daquela célebre frase do texto seguinte, "Junho", para se poder esclarecer este problema. Os leitores estarão decerto lembrados:"Se chove em Santo Médard, chove quarenta dias mais tarde, a não ser que Santo Barnabé corrija o que está estragado." Pessoalmente, achamos que só] confunde mais as coisas. A força enigmática do Borda d'Água é tradicionalmente contrariada pela mensagem do "Velhote da Cartola" que aparecei na última página. Para 1986, no dominante espírito Figueira dal Foz, preparam-se alguns sábios conselhos em matéria de economia: "Atenção para não exportarmos o melhor que tivermos ei produzirmos, para em troca nos limitarmos a receber (ou importar) artigos de inferior qualidade... Não seríamos nós, decerto, os principais beneficiários." "Não seríamos nós, decerto, os principais beneficiários!" É ou não é admirável a contenção desta subtilíssima ironia? Falta,] contudo, seguir o raciocínio até às últimas consequências. Continuemos: "Isto da exportação tem muito que se lhe diga e todo o cuidado é pouco. Para nós o melhor que há no nosso país é o elemento feminino..." Estão a ver o que dizia? Claro que, logo de seguida, se acrescenta "(o elemento feminino) não é propriamente um artigo para exportar, mas, sim, um regalo para a vista de nacionais e estrangeiros... Que lindas mulheres tem Portugal!" O último parágrafo é um clássico: "Sim, é preciso muita paciência. Mas sejamos optimistas. O futuro está na juventude. (...)\ Confiamos neles, na sua inteligência, na sua boa vontade, trabalhismo, empenho, diligência, aplicação e ESPERANÇA. Vamos melhorar na Saúde, no Trabalho e na Educação. Está bem ?" Está. No seu equilíbrio pós-moderno, entre a aventura poética dos "12 meses" e o diligente trabalhismo dos anos 80, o Borda d'Água é um marco assinalável de todos os registos mais! espantosos e notáveis da nossa contemporaneidade. Nem tão-pouco faltam indicações rigorosas acerca dos homens e mulheres nascidos nos vários meses. As mulheres mais interessantes! serão as de Março: "As mulheres nascidas em Março são lindas, 14 têm a pele morena e formas arredondadas: são curiosas, glutonas; gostam dos prazeres e homenagens. O seu cérebro trabalha muito, tem tendência para exagerar as coisas. São caprichosas, mas não são desagradáveis." O homens mais recomendados são os de Maio: "Inteligentes e inventivos, amam as artes e a literatura. Ardentes e presunçosos, mas prudentes, sabem levar a água ao seu moinho com uma certa habilidade."

Enfim, um Feliz 1986! E não nos esqueçamos que, já para o mês que vem "Indo para Norte passam os bicos-cruzados e os estorninhos. Floresce a maónia e o heléboro negro. Em Santo António os dias crescem a passo de monge. Dia de Santo Mauro gelado, metade do Inverno está passado". ALMOÇC Em Portugal o caso mais sério e a cerimónia mais solene! é o almoço. Serão muito poucos os países em que se almoçai tão bem e tão compenetradamente como cá. É à mesa, e na] cozinha, que os Portugueses realmente empreendem o épico da raça. Na preparação e no despacho da comida, trabalham mais depressa e bem do que em qualquer outro ramo de actividade. Na História Portuguesa, os grandes acontecimentos assinalam-se através do sufixo -ada: a Abrilada, a Setembrada, e a mais empolgante de todas, a Jantarada. Tal como qualquer! cruzada, ela serve para absorver a agressividade, a sexualidade! e a afectividade. A agressividade com que dantes se partia para cascar em mouros e castelhanos é hoje substituída pela violên- cia com que os Portugueses se batem com umas lulas ou atacam uma chanfana de cabrito. Ao conseguir empachar uma travessa! grotescamente cheia, ou dar cabo de um panelão inteiro, alcança-se entre nós uma sensação cristã de vitória. Em matéria de afectividade, os Portugueses guardam aos víveres uma ternura igual àquela que outros povos destinam ao! Bambi. O português não chora tanto ao ver morrer a mãe do! Bambi como choraria se ela estivesse estufada em vinho tinto! com batatinhas a murro. Por muito estranho que pareça, ai utilização dos diminutivos não goza de qualquer correspondência com as dimensões do prato. Assim, "um belo peixinho" não é uma sardinha é pelo menos um tamboril com três quilos. Um "arrozinho" deixa de ser um "mero arroz" só quando ai capacidade da panela, e o corpo de baile de lagostins, ultrapassa a lotação média do São Luís. A própria etimologia de "Almoço" indica a raiz deste paradoxo. Segundo José Pedro Machado, deriva de admordiu, significando "bocado". Daí talvez,! também, a mania portuguesa de usar as palavras "bocado" e] 16 "bocadinho" para dar a ideia de "granel", como é o caso na frase: "Ó Dona Alzira, ponha também um bocadinho de brócolos." Dizer que os Portugueses, quando almoçam, comem somente "um bocado" não é muito diferente de quem descreve a Etiópia como um país a sofrer de larica. Outra autoridade, o Dr. António Gerardo da Cunha, dá a origem verbal admordere significando "começar a morder". E depois de começar a morder... vem o resto. Na sua forma mais pura, a sequência alimentícia portuguesa é altamente complexa, confundindo tanto os estrangeiros como os accionistas da Diese. Começa com um aperitivo, para aguçar um dente que já está perfeitamente vampiresco desde o meio-dia. O aperitivo serve para camuflar a lendária bulimia nacional: como um veterinário que se desse ao cuidado de servir um martini a um rafeiro já escanzelado da fome mais canina que há. Depois do aperitivo, como "a comidinha demora", pedem-se "umas coisinhas para petiscar". Os Portugueses não petiscam em vez de almoçar: petiscam porque vão almoçar. Chegam então aquelas partes do porco que servem para a locomoção, para o olfacto e para a audição, todas elas recicladas num molhinho com pesados pêsames de alho e de coentrada. Juntamente com uns queijinhos para "fazer boca", e umas azeitoninhas para fazer companhia, servem para "ir comendo". "Ir comendo", como já sabemos, não conta como comer. A quantidade colossal de pão que se consome ao mesmo tempo as chamadas "buchas" também não conta, porque se destina a um fim essencialmente humanitário, que é "fazer a cama ao vinho". A função da bucha é clara. Come-se uma bucha para fazer a cama ao vinho. Fica-se embuchado. Para desembuchar, bebem-se uns copos. Depois como se beberam muitos copos, para não ficar embriagado, comem-se mais umas lecas para "ensopar" aquele vinho todo. E fica-se empastelado, criando novamente a imperiosa necessidade do vinho. É o que se chama entre nós um círculo delicioso.

Tecnicamente, os petiscos terminam quando principia a refeição propriamente dita (o "conduto"). Relembrando as lendárias palavras do português a quem perguntaram se era capaz de comer um cabrito inteiro "só se for com muito pão". sempre. Seja com o "pratinho" (equivalente a uma dose indi- 17 vidual CEE), seja o "prato" (2 CEE), seja a "meia dose"! (3 CEE), seja a "dose" (o suficiente para alimentar, durante um fim-de-semana, a população inteira do Liechenstein), é sempre com muito pão. Em português, um "bom garfo" não é um garfo comprado no] Braz & Braz, nem um "bom copo" se refere à Atlantis Cristal, Quem se alaparda à mesa é um herói, nesta terra onde a gordura é formosura e um gordo não é gordo, mas "forte". A estai força contrapõe-se a "fraqueza" de quem não come e toda ai série de nomes que se chamam a quem é frugal na paparoca:! debiqueiro, furão, lambisqueiro, languinhento, penisqueiro. Aqui, os que não respeitam os compromissos rácicos de demolição agro-pecuária, são vistos como estranhos são "esquisitos". Quem come pouco "passa por baixo da mesa" ou sofre de um vergonhoso tédio denominado "fastio". Voltando à mesa, onde os convivas já entoiriram até aos colarinhos, não se julgue que o almoço terminou. Impõe-se agora precisamente uma sopinha (talvez de grão, certamente com massa). Para quê? poder-se-á perguntar. Para "assentar". Os Portugueses nunca comem ou bebem porque são hiperfagicamente gulosos é sempre para qualquer coisa. É como se estivessem abnegadamente a servir os interesses! e preceitos de uma antiquíssima e lusíssima "alimentação racional" assim chamada porque recomenda que se coma à razãom de dez carcaças de pão por cada carcaça animal. As batatas e ai salada são, evidentemente, "à parte". Depois dos petiscos para abrir o apetite, do conduto paca dar! força, do pão para fazer a cama, do arrozinho para ensopar e dal sopa para assentar, vem a sobremesa para "tirar o gosto dal sopa", a fruta para "desenjoar" e o bagacinho para "fazer a digestão". A comida em Portugal só não é para brincar. Para os Franceses, é uma arte. Para nós é canja. E uma canjinha

não ia agora? Então isso é coisa que se pergunte? AMOR

"Dyz m'a mim meu coraçon porque m'a isto nam calo, poys vês nam chegua payxom deste cuydado que falo." CANCIONEIRO DE RESENDE, TOMO Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer "Eu amo-o" ou "Eu amo-a". Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: " love you" ou "Je t'aime". As perguntas "Amas-me?" ou "Será que me amas?" estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes "Gostas mesmo de mim?", o que também não é a mesma coisa. O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indoeuropeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de "aquele que ama, ou é amado". Diz-se que não sei quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca-vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbrio galináceo das reuniões de tupperwares e de costura. Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo. Quem disser "a minha amada" ou,

pior ainda, "o meu amado" arrisca-se a não chegar ao fim da frase, tal o intenso e genuíno gáudio das massas auditoras em alvoroço. Amável nunca quer dizer "capaz de ser amado", e, para cúmulo, utilizase quase sempre no pretérito ("Você fin muito amável em ter-me convidado para a inauguração da sua Croissanterie"). Finalmente um amor é constantemente aviltado na linguagem coloquial, podendo dizer-se indistintamente de escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigran19 tes. (O que está a acontecer com o adjectivo querido constitui das grandes tragédias da nossa idade.)

igualmente, uma

Talvez a prática mais lastimavelmente absurda, muito usada! na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os Portugueses, raça danada para os eufemismós, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. ] Quando as apresentam a terceiros, nunca dizem "Esta é a Suzy, a minha namorada" dizem sempre "Esta é uma amiga minhaÀ a Suzy", transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, tam- bem assim, como se não lhes bastasse dar cabo do Amor, vão] contribuindo para o ajavardamento semântico da Amizade. Isto tudo em público claro porque, em particular, ai sós, funciona a síndrome plurissecular do "só-nós-dois-é-que-sabemos" e os Portugueses tornam-se pinga- amores ao ponto] de se lhes aconselhar vivamente a utilização de coleiras de esponja muito grossa. Nisto, o sexo forte é bastante mais viracasacas que o fraco. Em público, são as amigas, o Guincho, osl drinques e as apreciações estritamente boçais do sexo oposto, Dêem-lhes, porém, cinco minutos a sós com a suposta "amiga"! e depressa verão todos os índices aceitáveis de pieguice, chora-,] minguice e love-and-peace babosa e radicalmente ultrapassados;] ao ponto de fazer confundir a Condessa de Segur com Joseph | Conrad. As infelizes "amigas" reprimem com louvável estoi-| cismo o enjoo, e aconselham-lhes a moderação. As mais estúpi- das não compreendem e vão depois dizer às amigas que os namorados têm feitios muito complexos, porque quando "estão acompanhados, são uns brutos do bilhar grande, e quando estão sozinhos transformam-se em donzelas delico-doces, inexplicavelmente ainda mais nauseabundas do que elas. A retracção épica a que os Portugueses se forçam no uso] próprio das palavras do amor, quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram sós com quem amam. Dizer "Eu amo-te" é dizer algo que se faz. Dizer "Eu tenho uma grande paixão por ti" é bastante menos do que isso é apenas algo que se tem, mais exterior e provisório. Os Portugueses, aliás, sempre preferiram a passividade fácil do "ter" à actividade, bastante mais trabalhosa, do "fazer". 20 A confusão do amar com o gostar, do amor com a paixão, e do afecto, tornam muito difícil a condição do amante em Portugal. Impõe-se rapidamente o esclarecimento de todos estes imbróglios. Que bom que seria poder dizer "Estou apaixonado por ela, mas não a amo", ou "Já não gosto de ti, embora continue apaixonado" ou "Apresento-te a minha namorada", ou "Ele é tão amável que não se consegue deixar de amá-lo". Estas distinções fazem parte dos divertimentos sérios das outras culturas e, para podermos divertirmo-nos e fazê-las também, é urgente repor o verbo "amar" em circulação, deixarmo-nos de tretas, e assim aliviar dramaticamente o peso oneroso que hoje recai sobre a desgraçada e malfadada paixão. ANTENA! Se um marciano aterrasse amanhã em Portugal e se pusesse a] ver televisão, é provável que a sua inteligência superior o ajudasse a compreender tudo, à excepção de uma única coisa. Essa] única coisa é de facto uma coisa única neste planeta e conhece-! -se entre nós como o "direito de antena". O direito de antena é um direito muito estranho mas não] menos inalienável que o

direito de um marciano ter antenas na cabeça. Logo a seguir ao telejornal, aparece um indicativo musical interplanetário e, sem mais nem menos, surge-nos em casal um indivíduo sobremaneira exaltado que aproveita os seis se-] gundos que a Lei Barra-Não-Sei-Quantos lhe concede para nos] dizer "Camarada Ajudante de Cabeleireiro da Região Sul! Preásamos do teu apoio! Juntos conseguiremos! diz 'Não' aos champôsl anticaspa de aplicação instantânea". Depois disto, volta a apare-] cer o mesmo indicativo e aquela alma exortatória desaparece] das nossas vidas (oxalá) para sempre. Não há, porém, qualquer] azar, porque logo a seguir é a vez de um porta-voz do sindicato ] de trabalhadores da indústria das conservas de atum (secção] encarregada de juntar as chaves de abertura às ditas latas) que nos vem novamente incitar, de faces ruborecidas e voz prestes a ] rachar, a "Votar na Lista B, para um futuro melhor" ou a "com- \ parecer à Assembleia Geral do dia 17!" E os que podem votam e ] comparecem quanto podem. ] São sempre breves estes momentos de glória. Constituem, ] mesmo assim, uma violência para todos aqueles cidadãos que, ] por questões de Natureza ou de Destino, não são pequenos ] retalhistas de retrosaria em Leiria ou soldadores desemprega- ] dos actualmente a trabalhar no ramo clandestino de eléctrodo- ] mestiços. ] Calha a vez a todos. Daqui a uns quarenta anos, serão poucos ] 22 os Portugueses que não tenham tido oportunidade de se apresentarem à população com umas poucas palavras bem escolhidas, de cuja importância ninguém ousará pensar ser menos que absolutamente transcendente. O marciano, esse, coitado, continua na mesma. O conceito profundo é democrático, mas mesquinho. Se decidirmos que as mulheres- a-dias ou os empregados de balcão de uma dada região têm o direito inalienável de se dirigirem aos colegas e compatriotas no horário nobre da televisão, porque é que só se lhes concedem três ou quatro segundos de emissão? Não seria mais generoso (e mais divertido para os pobres espectadores) dar-lhes uma hora inteira para organizar um excelente espectáculo de variedades ou alguns momentos bem seleccionados do melhor teatro amador? Porque é que a RTP, com todos os meios de que dispõe, não se encarrega de encenar estas pequenas mensagens, de modo a torná-las mais atraentes ao público? Aquelas miseráveis cortinas que põem atrás do desgraçado orador serão o melhor que por lá se arranja? Os partidos políticos, ao menos, sempre se esforçam por oferecer um programa mais variado e interessante, geralmente dedicado ao tema "A Verdade Que Esconde a RTP". Há uma banda sonora. Há umas imagens de bairros da lata ou de hotéis. Há caras conhecidas que nos falam ao coração, calmamente, recordando-nos as duras realidades e as óbvias soluções. Às vezes há bandeirinhas, jovens serenos, em diálogo permanente com a Terceira Idade, entrevistas cândidas em que os dirigentes respondem aos anseios da população, piqueniques, ou momentos inesquecíveis de uma qualquer importante manifestação. Nada disto acontece com por exemplo os pequenos proprietários de lagares da Margem Sul, que se limitam ao histérico laconismo de um "Colega! Os interesses da classe estão em jogo! Vota Não à integração europeia da azeitona grega!" e desaparecem sem deixar mais que uma mensagem subliminal de incompreensível ansiedade profissional. O marciano também associa o direito de antena às listas de cinemas e teatros que surgem diariamente nos écrans com cuidado aspecto gráfico e valioso pormenor. Verifica que um dos filmes que mais aparecem em reposições é o popular Encerrado 23 para Obras, e toma nota que no Cine-Almada oferece-se mail uma oportunidade de rever Rabos Escaldantes em Delírio. Sabá que em mais nenhum país do mundo a televisão é democrática ao ponto de informar os espectadores de que há melhores mai neiras de passar um bom serão. Se acaso for a um desses tine] mas ou

teatros, é capaz de se surpreender quando repara que] antes de começar o filme, não aparece nenhum útil diapositivj com a programação daquela noite da rádio- televisão. O direito de antena, finalmente, estende-se à própria televil são. E aí que o marciano, já tendo desistido de compreender que se passa no maior meio de comunicação de Portugal, voltl agradecidamente a Marte, e ao mundo que se deixa mais facill mente perceber. ARRANJAR Em Portugal, como todos os Português sabem, é muito raro conseguir seja o que for. Em contrapartida, tudo se arranja. O arranjar é hoje a versão portuguesa do conseguir. É verdade que "Quem espera, sempre alcança", mas, como ninguém está para esperar, em vez de alcançar o que se quer, arranja-se outra coisa qualquer. No fundo, é talvez, por não se terem as coisas que elas se têm de arranjar. Não se tem tempo, mas arranja-se. Já não há bilhetes, mas conhece-se alguém que os arranja. Ninguém tem dinheiro, mas vai-se arranjando para o tabaco. O próprio sistema, político, económico, cultural, social estimula uma atitude para com o cidadão que se traduz pela expressão "arranjem-se como puderem". E o cidadão lá se vai arranjando. O mais das vezes, este apelo constante ao improviso, à cunha e ao desenrascanço leva aos piores resultados. A continuar assim, o país está bem arranjado. Os cartazes que anunciavam a adesão à CEE não foram bem recebidos pela população, precisamente por terem empregado o verbo épico, mas arcaico, Conseguimos. Se tivessem dito antes, portuguesmente, Arranjámos!, a reacção teria sido muito mais anuente. Do mesmo modo, erram os políticos que se empenham no processo de arranjar um Presidente da República quando dizem publicamente que "obtiveram" 46 ou 26 por cento. Seria muito mais natural dizerem "Olhem! Arranjámos 46 por cento!" ou "Pronto, lá arranjámos os votos de que precisávamos para pasw à segunda volta!" Os cidadãos já têm sérias dificuldades em arranjar convicção suficiente para acreditar que os partidos sejam capazes de arranjar o mínimo indispensável (isto só para arranjar coragem 25 para votar neles). Por conseguinte, tudo o que ultrapasse essa mesquinha meta, está condenado ao insucesso. Mas ouvir dizea que se hão-de arranjar empregos e casas, ainda vai que não vaij O cidadão pergunta ao candidato, aproveitando-se abusiva- mente do facto deste desgraçado ter de se passear por entre o] povo nos mercados e nas feiras: "Ouça lá ó doutor Fulano, m gente não tem casa, não tempão..." E o candidato responde, emj torn sussurrante e só-nós-dois-é-que- sabemos: "Deixe lá minhat senhora, que isso há-de se arranjar, isso há-de se arranjar..." Já quase ninguém diz, em privado, que se vai "conseguir" ou| "obter" ou "alcançar" ou "garantir". Já não colhe. Nos países! estrangeiros ainda se acredita que se criem postos de trabalho.1 Em Portugal, arranjam-se empregos. Noutros países, é possívelj que se desenvolva a construção de habitações sociais. Aqui arranjam-se casas. Ou melhor: vêse se se arranja, na frase clássica "Vê lá se me arranjas um convite; um namorado; um quilo de gambás; uma garrafinha de uísque; o gira-discos que está avariado^ etcetera, etcetera..." < Em vez de fazer reparações propriamente ditas, arranjam-sa as coisas até avariarem passado pouco tempo e precisarem outra vez de arranjo. Isto porque, em vez de se comprarem as coisas nas lojas autorizadas, arranjam-se mais baratas e frequentemente menos fidedignas. Também em vez de arrumar e organizar as coisas que preci^ sam de ser devidamente arrumadas e organizadas, dá-se-lhes, simplesmente, "um arranjo". Depois, são

mais difíceis de encontrar porque "não estão arranjadas como eu queria". Até nas relações humanas, o círculo vicioso se verifica: em vez de viver plenamente as paixões, prefere-se ter "um arranjinho". Os arranjinhos são paixõezecas clandestinas, arranjadas para não fazer ondas. Até as ideias se arranjam, em vez de se terem e de se pensarem é como se os Portugueses, em vez de se darem ao tra*baIho de usar a cabeça, se limitassem a arranjar o cabelo. A vitamina A portuguesa, cura temporária para todos os males, é o Arranjismo Nacional. Arranja-se uma receita para arranjar o remédio para quem arranjou uma constipação. Ou então pede-se simplesmente a alguém "Arranja-me uma aspirina? Olhe e já agora, arranjava-me também um copo de água?" 26 Embora não haja verbo mais saliente em Portugal, mais mulúvalente e conveniente, existe um bom argumento para disputar essa nacionalidade. O verbo Arranjar, vitamina A de todas as conversas, pedidos de cunhas e preguiças linguísticas, é talvez o galicismo mais bem sucedido e implantado dos nossos dias. No sentido que lhe dão os Franceses ("arranger", de "rang"} é tipicamente pouco usado, mas é abusado em todos os outros sentidos que os Franceses nunca lhe deram. O Dicionário de Vieira garante-nos, também, que os clássicos nunca usaram a palavra. De qualquer modo, uma boa maneira de se distinguir entre "arranjar" e "conseguir" qualquer coisa, é ver até que ponto o primeiro pode ser substituído pelo segundo. Quando ficar ridículo ("Alcancei dois bilhetes para a estreia!" ou "Não me obténs qualquer cmsmha para comer?") é porque se trata de puro arranjismo. E nunca, nunca se cometa a tropelia de associar o verbo mau ("Arranjar") que é preciso combater, ao verbo bom ("Conseguir") que é preciso defender. Quem diz "Consegui arranjar" seja o que for, está a vangloriar-se do que é tão vão que não chega a ser glória vã. Enquanto tudo se continuar a arranjar nada se há-de conseguir em Portugal. O mercado dos arranjos, dominado por uma multidão imensa de arranjistas e arranjões, é maior e está mais bem implantado que qualquer mercado negro. Para sair da mentalidade viciosa do arranjismo nacional, é preciso que cada português comece a distinguir entre arranjar e conseguir. Arranjar é obter algo por razões alheias ao mérito próprio e à justiça das circunstâncias e logo representa tudo o que o Conseguir, leal e esforçado, não é. O arranjismo pode ser um reflexo do subdesenvolvimento, mas também é ao mesmo tempo, o principal motor dele. Assim como não se arranjou chegar à índia, ou acabar com a pena de morte, ou escrever Os Lusíadas ou a Mensagem, ou qualquer das outras coisas boas que os Portugueses conseguiram fazer, sem truques ou manigâncias ou espertezas saloias, também não se há-de arranjar sair deste poço cultural em que caímos. Arranjar é próPno de um país miseravelmente possível ("Desculpem, mas não foi possível arranjar mais...") É preciso começar a conseguir as coisas, seja com que dificuldade for. Senão, Portugal chegará a um ponto ern que nem arranjo há-de ter. 27 ASSI Há trinta e cinco anos, no dia 28 de Maio de 1951, Teixeira! de Pascoaes escrevia a frase portuguesa mais optimista do século. Nunca tão boas esperanças se aliaram a tão pobres poderes de previsão: "Creio bem que o chamado futurismo, a, ateísmo, o tiro aos pombos, a reforma ortográfica, o futebol, etc. todas as forças dissolventes da nossa alma, são de carácter transitório." Em pleno Campeonato do Mundo, a braços com uma nova reforma ortográfica, e cercados por um novo chamado fu^ turismo em versão anos 80, é difícil acreditar que mesmo o ateísmo e o tiro aos pombos não estejam neste momento num auge da sua história. As forças dissolventes da nossa alma já] nem forças dissolventes

são: são autênticas enzimas, tal qual os "glutões" do anúncio dos detergentes. No que toca à briosa selecção portuguesa e à maneira que escolheu para representar o nosso país sobretudo o país real ocorre pensar que talvez tivesse sido melhor mandar a segunda equipa do Cova da Piedade, ou quaisquer outros onze rapagões com um mínimo de habilitações. Nomeadamente, uma certa vontade de jogar à bola. Os futebolistas da selecção, que alguma alma tão bem-intencionada como a de Pascoaes em má hora decidiu chamar "infantes", facilmente se poderiam reconverter a um desporto que desse menos nas vistas do mundo. Caso insistissem em praticar uma modalidade que fosse à mesma dissolvente da nossa alma, porque não o acima citado tiro aos pombos? Para mais, os futebolistas portugueses têm uma maneira de falar muito especializada e dissolvente. Era bom, por exemplo, que as câmaras de televisão com que se filmam as entrevistas a jogadores, viessem sempre equipadas com um simples sistema 28 de roldanas, que fizesse accionar um martelo pesado cada vez que alguém dissesse "O futebol é mesmo assim". Deste modo, os telespectadores teriam a consolação (e, por que não dizê-lo?, a satisfação) de ver descer uma boa martelada na cabeça de qualquer infractor. Para certas práticas linguísticas mais graves, como sejam os comboios de "poises" com atrelados de "efectivamentes", a contrapartida poderia ser mais sensacional: duas marteladas firmes com uma bavaroise de cimento e um duche de alcatrão quente, por exemplo. O que é que os futebolistas dizem, geralmente? Geralmente dizem "Pois o futebol é mesmo assim, e efectivamente quem ganhou, pois, foi o futebol, e o futebol, pois, efectivamente, é acima de tudo, espectáculo". Os entre vis tadores, a quem cabe a culpa nada ligeira de lhes dirigir perguntas, também poderiam com proveito ser penalizados cada vez que os encorajassem com interrogações do tipo "Então Dâni, contente com este triunfo?" Os entrevistadores desportivos nunca usam verbos, se calhar porque isto dá um ar másculo às frases. "Esperanças para domingo, Tóni, muitas ou poucas?" e "Quanto à decisão do árbitro, Juju, controversa ou pacífica?" são verbalizações frequentes. Os jogadores, que aprenderam a falar através da pedagogia subterrânea dos relatos desportivos, procuram imitar os comentadores e respondem no mesmo estilo: "Pois, Tavares Moreira, efectivamente, o futebol é mesmo assim, o esférico é que manda." Os futebolistas portugueses, ao contrário dos estrangeiros, tendem a chamar-se infantilmente pelos primeiros nomes: Zé Manei, Diamantino, Carlitos, Hipólito, etc. Os comentadores, para se cobrirem de maior dignidade relativa, abarbatam-se com os apelidos. Os tempos em que os futebolistas portugueses eram conhecidos por sólidos apelidos (Travassos, Morais) já vão desaparecendo, preferindo-se hoje o intimismo exótico da onomástica brasileira. Muito recentemente, um futebolista de renome, respondendo a uma pergunta acerca da qualidade do futebol húngaro, divulgou o seguinte conceito aos telespectadores: "Pois, efectivamente o futebol húngaro é de alto gabarito, pois, um futebol de força... também não é por acaso que ficou conhecido pelo futebol magiar'." É essa, precisamente, a magia do futebol. No passado domingo, no intervalo do jogo Brasil-Espanha, o 29 comentador, meditando sobre o tédio doloroso da primeira parte, dizia: "Até aqui, foi um jogo monótono, mas a alta competi* cão é mesmo assim." A síndrome do "mesmo assim" é deíinitivaJ mente a contribuição principal do futebol à língua portuguesaj Porque é que os críticos literários não começam, também, H dizer: "Este romance é incompreensível, mas a literatura é mesma assim." Ou os

gastronomes: "O bacalhau espiritual sabia a peú\ gos de nylon, embebidos em gasolina mas, em última análise, quem ganha é a gastronomia, porque a alta culinária é mesmo assim." Os políticos já há muito aprenderam esta lição. Cada vez que há eleições, disfarçando a perplexidade que lhes causam os resul" tados, dizem todos, com aquele ar grave de futuro chefe de Estado, que "mais uma vez quem ganhou foi a Democracia"* Quando se lhes pergunta o que é que o povo português quis demonstrar com a sua votação, coçam o queixo, levantam as sobrancelhas e dizem imortais frases de espírito, do tipo: "Mais uma vez o povo português demonstrou o seu elevado espírito cívico." (Também este parágrafo está excessivamente comprido, e a sintaxe deixa muito a desejar, mas quem ganha é o jornalismo, porque o jornalismo é mesmo assim.) Como se há-de resolver o problema? Â solução mais lógica seria conceder aos jogadores de futebol os serviços permanentes de um intérprete. Assim, quando o jogador abria a boca para balbuciar as inanidades habituais, com quatro ou cinco palavras compridas à mistura, surgiria nos écrans um intérprete profissional de fato completo e gravata, que explicaria: "Aquilo que o Necas está a tentar dizer é que promete esforçarse para jogar o melhor que puder, etc." O mesmo assim divulgado pelos futebolistas prolifera na vida portuguesa e traduz uma atitude de indiferença perante as coisas do mundo. Entra-se numa loja para comprar um gira-discos e repara-se que falta a agulha. Diz-se ao empregado "Falta a agulha..." O empregado, retardando a resposta, examina o aparelho, certificando-se absolutamente da referida ausência, e só depois conclui, com ar ofendido: "Não... não... esta aparelhagem é mesmo assim." O vício encontra-se tão divulgado que os desgraçados clientes já se vêem forçados a perguntar "Desculpe, mas esta boneca só tem um braço e um olho é defeito de fabrico ou é mesmo 30 assim?" Ouve-se um disco português de vanguarda, vai-se examinar o amplificador para ver se rebentou alguma válvula, puxa-se de uma "cotonete" para aclarar os auriculares e só quando nenhuma destas operações surte efeito é que se conclui que "é mesmo assim". Aliás, estes discos deveriam ter obrigatoriamente uma etiqueta adesiva que dissesse "NÃO, NÃO... ISTO É MESMO ASSIM". A atitude do português contemporâneo exprime-se, em considerável proporção, cada vez que ouve, lê ou vê qualquer coisa, na interrogação "Estão a gozar comigo ou é mesmo assim?" Quando a selecção portuguesa alcança as primeiras páginas da Imprensa internacional com as suas reivindicações pelo pagamento dos salários de miséria em atraso (ou lá o que é), espera-se já dos adeptos que concluam "Está certo o futebol é mesmo assim". Quando se lêem artigos protometafísicos nos jornais que são indesvendáveis até pelo computador da Interpol, parecendo que a tipografia deixou cair uma oração em cada três, misturando o texto com excertos do Boletim Burundi de Psicanálise, já nem se coloca a hipótese de ser um artigo mal escrito. Não, a crítica é mesmo assim. Quando o novo Acordo Ortográfico leva os Portugueses a congratularem-se com a abolição do trema que já tinha sido absolutamente abolido em 1945, apesar dos Brasileiros não terem ligado nenhuma, não devemos fazer perguntas. Porque a cooperação luso-brasileira é mesmo assim. Se ainda hoje é necessário papel selado para certos documentos, apesar do papel selado ter sido abolido, e ser já quase impossível de encontrar, não nos compete chamar a atenção para qualquer contradição, porque não há contradição nenhuma. Em Portugal, é mesmo assim. Entra-se num supermercado para comprar uísque e, diante do panorama altamente encorajador de novos preços, nota-se que algumas marcas portuguesas de reconhecido efeito deletério, são hoje muito mais caras que uísques escoceses de excelente qualidade. Entre um Mac-Brutos a 1500$00 e o .B. a 1250$00, a escolha do consumidor nunca na História Universal foi tão facilitada. Indaga-se porquê. Será que o Chernobyl Clan não custa 1300$00, mas sim 130$00? Não, não... é mesmo assim.

31 A regra geral, no futebol e noutras coisas é a seguintd quando vir qualquer coisa que pareça gravemente errada] avariada, mal acabada ou mal pensada, inaceitável ou incríved é escusado pôr-se com dúvidas porque aquilo é mesmo assim. Portugal é mesmo assim. O mundo é mesmo assim. Até vida é mesmo assim. Neste fatalismo já tão famoso se comprei ende a atitude portuguesa de aceitar as coisas tal qual nos chej gam às mãos. "É o que se vê." "É o que se sabe." "O que é qua quer?" "Do que é que estava à espera?" É mesmo assim. "M pegar ou largar." O "mesmo assim" é, ele sim, uma das forças dissolventes dai nossa alma. Esperamos que a selecção portuguesa se redima nos relvados mexicanos. £ que ninguém tenha de perguntar] "Estão a jogar mal de propósito ou é mesmo assim que jogam?"\ ASSUMIR Um bom amigo nosso chamou-nos recentemente a atenção para o aparecimento em Portugal de uma nova categoria moral, que terá escapado à atenção dos grandes filósofos morais deste século. Talvez pelo infortúnio de terem nascido longe do epicentro de Odivelas, nem Moore nem Stevenson nem Hare puderam estudar o fenómeno que entre nós é conhecido pela categoria do assumido. Antigamente, quando as coisas pareciam funcionar, e havia por isso funções para as pessoas, o que elas faziam era assumi-las. Hoje em dia, sabendo que as coisas nunca funcionaram (simplesmente deixaram de parecer funcionar), as pessoas já não assumem funções: arranjam empregos, expedientes, biscates ou então sacrificam-se pela Pátria. E, entretanto, assumir passou a ser um exercício inteiramente diferente. Dantes havia mau gosto e bom gosto. Hoje já não há mau gosto: há o mau gosto assumido (muito) e o bom gosto (quando há). O kitsch nada mais é que o piroso assumido, e por muito "piroso" que seja, está na moda. Havia homens-bons e bandidos. Agora há homens-bons e bandidos assumidos. A frase "Ele é um (pulha, molestador de crianças, corrupto, asno, etc.) mas assume" tornou-se um lugar-comum. Assumido. Desde que se assuma, nenhuma barbaridade ou atoarda pode ser condenada, porque o responsável, de mão no peito perante a sociedade contemporânea, assume tudo aquilo que quiserem que assuma. Os maus escritores assumem que não seriam capazes de escrever um bilhete para deixar à mulher-a-dias, os maus pintores assumem que são daltónicos desde criança, os maus cineastas assumem não saber distinguir o lado da Mitchell que se vira para o sujeito, daquela que se supõe ficar à vista e desde que todos assumam, ficam livres para a atribuição 33 , ig^gu-^,^^-^ t í de prémios públicos e as obras deles passam a merecer adjectiva coes primas. Em

suma: no assumir é que está o ganho. Não pode haver dúvida de estarmos na presença de um nov" tipo de método de absolvição, em que a confissão consiste enj dizer, em vez de "Eu arrependo-me", "Eu assumo". Repare-se que só funciona em casos de mediocridade visível, e que não se pode aplicar às eventualidades positivas. Não se diz, por exemplo "Ele é um excelente escultor e assume". Não. Para esses, a nova compleição moral não tem qualquer paciência. Num país onde basta ser-se bom para se ser revolucionário, não admira que haja lugar para as inúmeras brigadas de desgraçados assumidos, todos a lutarem entre eles para se assumirem como piores que a totalidade dos restantes. Como diz Vasco Pulido Valente, quem se assume está a dizer "Sou um filho da puta mas não me importo". E, caso surja um posterior desejo, porque não, também, ter a coragem de assumi- lo? Porque não assumir também o desejo (c a saudade) do conceito que o assumir veio substituir nomeadamente aquela velha qualidade, hoje muito pouco citada, que é a vergonha? Lembram-se da vergonha? Era quando quem não sabia, em vez de assumir a ignorância e logo de seguida dar à estampa um compêndio liceal, tinha vergonha de falar. Era quando havia aquele instinto ruborizador de não assumir fosse o que fosse de medíocre. Os que hoje se assumiriam publicamente, calavam- se, disfarçavam e fingiam que estavam a tentar destrinçar a velocidade exacta a que estava a soprar o vento. Entre o assumidor e o disfarçador, entre quem não tem e quem tem alguma vergonha, será sempre de preferir o segundo, porque ele, ao menos, finge que não tem defeitos, enquanto que o primeiro quer fazer do seu pior defeito a maior das suas qualidades. BALDAS A forma de administração mais peculiarmente portuguesa, que a nação há séculos elegeu e praticou é a balda. Â balda não é como muitas vezes se pensa, a ausência de um sistema. Pelo contrário, é um sistema por direito próprio, especificamente construído, e aplicado para a solução ilusória de problemas complexos. Fazer uma coisa, ou desempenhar uma tarefa, à balda, é à mesma fazer, é à mesma desempenhar. Do mesmo modo uma balda é um estado de coisas em que se deixou imperar um saudável (e moderno) domínio de "aleatoriedade", que o povo conhece por "destino" e o resto por "contingência". De tudo em Portugal, hão-de reparar, se pode perguntar "Qual é o critério que presidiu a essa escolha/decisão/medida concreta?", sem que se possa razoavelmente receber qualquer resposta. Mas não é pergunta que façam pessoas bem-educadas no mundo ad hoc em que vivemos. O critério dominante é à balda. Tudo o que vem à rede neste país pode não ser peixe, mas podem ter a certeza que acabará por fazer parte integrante da caldeirada. O problema português resume-se à degeneração da balda, e não à existência alegre dela. Todo o esforço real que se faça pela Pátria não é mais do que tentar impedir que a balda, tradicional e boa, se transforme na nova e revolucionária bandalheira. Do saudavelmente insano ad hoc aos desmandos tã-tãs, tin-tms e capitães "Haddock" vai apenas um pulinho epistemológico e empírico. A balda é apenas o estado de natureza habitual ao nosso convívio secular, estimulador da espontaneidade, amiga do génio instantâneo e eterna mola real da antiquíssima arte do desenrasca que, como se sabe, e entre outras coisas, por ocaso, deu novos mundos ao mundo. 35 í

A balda é também um sinal de respeito por Deus Nosso Sd nhor e a Sua Divina Misericórdia: permite que Ele intervenha a Seu bel-prazer e bom saber, em cada uma das nossas acçõej Tudo pode acontecer quando nada se preparou. E, em Portu gal, evidente e invariavelmente, acontece. A acção do homen e o que é o homem senão um humilde punhado de pó? -* jamais constrange ou condiciona o fatídico desenrolar do Logo -se-vê, do Há-de-de-Ser-O-Que-Deus-Quiser e do Vai-ao-Calhtu -Que-Tanto-Faz. A balda tem antecedentes filosóficos respeitáveis e propici coisas excitantes como a surpresa. Não há nesta terra portuguá algum, seja qual for a eternidade da sua circulação entre nósj que se possa queixar de falta de surpresas. Não. O pasmo conta nua a ser uma das prendas mais ricas que Portugal tem para oferecer aos seus filhos. A bandalheira, pelo contrário, é um perigo real. O balda" mais porreiraço e bebemais-um-copo-e-que-se-lixe-a-reunião* -do-conselho-de-ministros, o baldas mais decente e pai de fm mflia, pode facilmente sofrer o processo lusitano do Jekyll-andd -Hyde, e ver-se repentinamente transformado em bandalhom Como é que isto acontece? Paradoxalmente, acontece quandoj alguém perde o respeito à balda e pensa "Se é tudo à balda, main vale abandalhar..." Abandalhar é um processo sem inocência, que visa objectivo"! claros. A balda, em contrapartida, não visa coisíssima nenhu*| ma senão a safa. A safa é um agradável estado mental, terrífica"] mente temporário, que produz nos safados a impressão de quej por ora, podem acender um cigarrinho sem por isso deitar fogo] ao país inteiro. Eles, os supostos nadadores-salvadores, sabem! que não salvaram a Pátria, nós sabemos que eles não salvaram ai Pátria, e a Pátria, por sua vez, sabe que, pelo sim e pelo não, mais vale continuar agarrada à bóia. A bandalheira não tem nenhuma destas virtudes. Interfere no estado de natureza; tende a ser irreversível até às próximas invasões estrangeiras; e, pior que tudo o mais, faz levantar na população a suspeita de que afinal não é a Senhora do Monte que controla os acontecimentos nacionais. Ou seja: a bandalhei-E rã está para a balda como a bomba atómica está para a explosão! fortuita de um esquentador. 36 "

O sistema fiscal português é uma balda, mas a "taxa dos mil" é a bandalheira. A actividade editorial é uma balda mas certas traduções são uma bandalheira. A medicina privada é uma balda, mas certas Caixas são uma bandalheira. O turismo é uma balda, mas certos aldeamentos clandestinos são uma bandalheira. E assim por aí fora, no Cinema, no Jornalismo, na Política, na Hotelaria, na Poesia, na Administração Pública... cada vez mais o Diabrete do Abandalhamento colhe vítimas ao Diachinho das Baldas. É escusado tentar voos superiores e estrangeirados (descritos por palavras romenas como eficácia, organização e espírito prático), porque isso em Portugal só deu ditaduras gratuitas precisamente porque são sempre de borla num povo de baldas. O que é preciso é manter fielmente a balda permanente inaugurada por Afonso Henriques. E seja o que Deus quiser. O que Ele quer não há-de ser tão mau como o que querem os bandaIhistas. E não nos esqueçamos da frase portuguesa mais antiga e verdadeira que existe: "Não há-de ser nada." É que nunca é... BANANAS O amor livre dos anos 60, o Maio de 1968, o movimento^ feminista e a libertação do 25 de Abril tiveram todos a sua in-' fluência sobre os homens portugueses. Em última instância, o que aconteceu foi isto: os machistas ficaram ainda mais machistas, os machos normais não ligaram nenhuma e, entre os hesitantes, surgiu uma nova classe. Muito esponjosa e altamente consciente, esta nova classe absorveu por inteiro todas essas lições e refez-se à imagem que lhe era pedida. E assim nasceu, entre nós, o Homem-Banana. O Homem-Banana, ou Bananaman, é o equivalente masculino da Mulher-Galinha. É facilmente reconhecido pelo calçado, que tende para a camurça, pela camisola, que é sem mangas e se estende para os joelhos, e pela personalidade timorata e compreensiva, que se estende geralmente ao comprido. Mais feminista que as feministas, é mais do que um mero traidor de classe: é uma nova classe. A sua forma de luta, que procura alcançar a paz na guerra entre os sexos, é o diálogo. Para eles a paz de alma, a pachorrice, a chatice do cessar-fogo são essenciais. Por isso dialoga por tudo e por nada. Para os marialvas, ele é apenas uma versão mais à la page do velho "como manso". Contudo, Bananaman recusa esses velhos estereótipos e preconceitos acerca da infidelidade e do orgulho. Para ele, a infidelidade é somente a expressão de um problema mais profundo que ambos têm de resolver juntos. jSe um dos parceiros se está a divertir alegremente na cama de alguém mais interessante, o diagnóstico do Bananaman é seguro: existe uma falta de comunicação. O único remédio é o diálogo, sem falsos orgulhos, sem ciúmes. Enfim, sem qualquer espécie de interesse. Para Bananaman o ciúme é um sentimento que vem da noção 38 absolutamente errada da posse e da propriedade. Por isso ele "dialoga na base do respeito mútuo pela liberdade dos dois companheiros". Assim como ainda há mulheres-galinhas que vão nessas histórias e que perdoam os pobres maridinhos traidores, cada vez há mais Bananamen a irem em conversas ou melhor em diálogos. O Bananaman, que é mais homenzinho que homem, e o Machista, que é mais lobisomem que outra coisa, cometem ambos um erro semelhante. O primeiro pensa que é errado querer possuir uma mulher que se ame. O segundo pensa que é natural possuí-la simplesmente, quer se ame ou não. Resultado: o primeiro não possui ninguém porque tem vergonha, e o segundo não possui ninguém porque não tem. Um e outro são ignorados caridosamente pelas mulheres. É preciso lembrar, nesta idade, que não só se deve querer possuir quem se ama, seja-se homem ou mulher, como se deve dar tudo por tudo para possuir, desde que não se consiga. Num casal saudável, ambos querem possuir e ser possuídos, dominar e ser dominados, e nem um nem outro consegue, para que o desejo e o amor

continuem. E a luta continua! Nem o Bananaman nem o Machista dão luta, porque o primeiro acha mal e o segundo acha natural. O primeiro pensa que, por muito que se esforce, nenhuma mulher lhe há-de cair nos braços. O segundo pensa que as mulheres lhe deviam cair nos braços sem que ele faça o mínimo esforço. O Banana julga que é infame pedir a uma mulher que seja dele, que o ame e que o sirva. O Machista julga que é essa a obrigação dela. E só o homem decente sabe que elas não têm essa obrigação. É precisamente por isso que ele tenta, por todos os meios obrigá-la. E ela a ele. E ele não consegue. E ela também não. E se qualquer deles conseguir, deixa de gostar do outro, porque deixou de dar luta, e prazer. E preciso enfrentar esta realidade. Â Paixão segundo São Banana não vale a pena. A Paixão segundo as lendas do Lobisomem é uma lenda. E a verdadeira paixão é uma guerra constante, cheia de sangue, suor e lágrimas, uma luta entre amantes, em que cada um se quer assenhorear do outro, conquistar, arrumar, vencer e é por estarem tão embrulhados um no outro, com cabelos e unhas a saltar, que não reparam em mais ninguém e se fazem apaixonados. 39 Essa paixão vale a pena. Mas há uma pena que essa paixãj vale. Hoje em dia, toda a gente deseja estupidamente que > e C0nseguir dizer ao ^smo "Sopa". Não gosta de sopa, mas já que o outro pedfol cainha, está bem vá lá, venha daí então essa sopa, S

d,Ver7Ue V°CêS flqUem Chateados comig°- Assim, 3 dizer Não a sopa e comê-la ao mesmo tempo. Já agorTl E quem diz sopas, diz tachos, mamarrachos, bonzos d tros diachos. Para sair do vício do Já Agora, teremos de t2 passar para a versão britânica que é "Mais 'àa^loca^ talvez..." Se não nem sim, nem sopas. Quem faz as coíS agora" nunca mais há-de fazer nada, nem já, nem ago^TJ JUVENTUDE Hoje em dia toda a gente fala dos "jovens". À excepção dos jovens, evidentemente, que têm mais que fazer. "A juventude" ocupa agora no discurso político o lugar mítico que dantes estava reservado à classe operária. Todos querem mostrar-se mais preocupados que os demais com os "problemas da juventude". Qualquer que seja o ano, é sempre o Ano Internacional da Juventude. Para qualquer jovem, há sempre uma jornada que espera por ele, um cartaz que o trata paternalistamente por "tu", uma iniciativa a que ele deve aderir, um apelo psicadélico que diz "Participa.1 Inscreve-te! Anda daí!" Bem vistas as coisas, é bastante deprimente ser jovem em Portugal. Ou, por outras palavras, envelhece muito ser jovem em Portugal. É preciso pôr as coisas em pratos limpos. Em primeiro lugar, faz tanto sentido falar nos "jovens" como nos "morenos", ou nas "focas às quais é preciso dar banho". É preciso ser-se muito tontaço (por muito político que se queira ser) para não perceber que "os jovens" são uma multidão imensa de indivíduos, tão diferentes uns dos outros como é possível. Os "jovens" não são uma vasta equipa de andebol de sete, todos de cara fresca e de t-shirt, à espera que algum partido político ou figura paternal "tome conta deles e resolva os problemas graves com que hoje se defrontam". A mitologia da "juventude", que parece ter dado conta da cabeça dos propagandistas, é profundamente desgostante. Na sofreguidão caquéctica de se mostrarem "atentos aos problemas específicos da juventude", eles falam da juventude como se fosse toda absolutamente excelente, impecável, cheia de vontade de fazer coisas, e outras asneiras de tal quilate. Se substituirmos a palavra "mocidade" por "juventude", dir-se-ia, pelo torn dos discursos e dos apelos, que tínhamos voltado ao ridículo atroz, todo "eia! eia!" e "lá vamos nós cantando e nndo!", da Mocidade Portuguesa. 169 1 "Avistei um homem melancólico e distná que ia lendo, copiando e despedaçando MK vro francês: quando cheguei a ele, tinha St bodo esta fadiga e tinha entrado na de 4 conta de um grande pedaço de Rosbife *íi um grande vaso de Ponche com que se eflta divemndo.it Cavaleiro de Oliveira, CART* LIV. 2, n." 27 1 De todo o tempo que perdem os Portugueses, não há etenal dade como o tempo que perdem a não ler. Durante o Verão,!! país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos seja am praia, seja no hotel andam quase permanentemente com uiM livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português pen plexo: "Estes bifes são todos malucos pagam um balúrdjjl para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam 0| tempo todo a ler... até usam os livros abertos para marcar oM lugares!" >á| É o facto cultural mais assustador de todos os Portuguese*! não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro vcnj alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-loil a não ler. Na praia, nas salas de espera, nos

comboios, en-* quanto almoçam sozinhos, nos cafés... em toda a parte se v$ uma população atarefadamente dedicada à actividade de não ler. Porque é que não aproveitam estes tempos mortos? t. Não se sabe. Uma das causas será o facto do português tet horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada qu" seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para 091 outros os tais que, por sua vez (e em vez de estar a ler), estão a olhar para ele. O português tem medo de se mergulhar mina livro, porque isso significa que deixa de estar à coca. Não pode; estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem "Bzzz..." Nem é só por bisbilhotice é por desconfiança. Não pegam num U vro porque têm medo de 172 ^ apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido. Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo, diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar. A obsessão dos Portugueses com a digestão merecia, só por si, unia crónica. Na TV, na campanha do "Há mar e mar", aconselham um mínimo de três horas! E julga-se que passam essas ridículas três horas a ler? Os contos de bruxas não acabam aí. Existe também a noção grosseira de que ler "cansa a vista", porque "faz mal puxar muito pela cabeça". O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que "ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler". A realidade é triste, mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler. Resiste aos livros como aos Castelhanos. Que outro povo, nos seus ditos, consegue atribuir um sentido pejorativo à palavra "ler"? A expressão "estar a ler", segundo o Dicionário de Caldas Aulete, é uma locução familiar que significa "estar enganado, dar provas de inexperiência". Inexperiência! Aí está a raiz do mal. Viver é experimentar, enquanto ler é deixar de viver. É por isso que, nos lugares públicos, preferem passar o tempo a viver a ver a vida dos outros. No fundo, os Portugueses querem saber o que se passa, mais do que querem, através da leitura de livros, passar a saber. Se lêem jornais, é com esta mesma intenção de "saber o que se passa" folhear as páginas é como estar fechado num café ainda maior. Têm medo de entrar nas livrarias, que pensam serem só para intelectuais, segundo a definição corrente de "intelectual" alguém que lê um livro de vez em quando, por estrita obrigação profissional. Preferem receber os livros pelo correio, num invólucro castanho, como outros povos encomendam publicações pornográficas e clandestinas. Livros esses que não são geralmente livros para ler, mas para ver, e chamam-se quase sempre Os Animais da Terra. Em contrapartida, não há português que não escreva. O português é uma criatura maravilhosa como fala, mas não 173 ouve; escreve, mas não lê. Faz lembrar o que dizia DisraMJ "Quando quero ler um romance, escrevo um romance paríj ler." Uma das consequências deste desnível entre quem escrtj e quem lê é o seguinte: em Portugal há somente quarenta m tores para cada trinta mil autores. Não há nada mais fácil, ijfil em dia, que escrever um livro e publicá-lo. E nada mais dj|B que achar alguém que o compre e que o leia. ]9

assim

É um círculo vicioso. Como os que escrevem não lêem, n escrevem muito bem. E como, de qualquer modo, nãoVH quem os leia, ainda escrevem pior. É por isso que tantos esc" tores produzem livros absolutamente ilegíveis. É a lógica M um hipotético cozinheiro que só gostasse de fazer bolinhos " arsénico por que raio os havia de fazer comestíveis?

,1

Em termos mais técnicos, metade da população sorai de analfabetismo, ou de deslexia (repugnância pela leitura) < de alexia (impossibilidade de ler). À outra metade, que lê nÚH pouco, sofre de anagnosiastenia

nome antigo que se deu]| neurastenia

causada pelo excesso de leitura. Bastam apenM quatro ou cinco páginas para pôr um português galopantw mente anagnosiasténico. Aliás, "anagnoste" era o escravo qw lia durante os banquetes, o que nos traz a mais um exemplo dn horror nacional à leitura. Como gostam é de falar, adoram ler em voz alta. Mexem M lábios enquanto lêem o jornal, não porque tenham dificuldatB em entender o texto mas para fingir que são eles a falar. Só assim é que suportam o sacrifício. Os Portugueses aguentam mal JJ silêncio e a solidão da leitura. Por isso, vão mais a colóquios d" que a bibliotecas, mais a discotecas que a livrarias e mais " recitais poéticos de vinho tinto do que à poesia propriamentÊ lida e não dita. Para eles, um livro é apenas uma fotonovela se animação. Um livro não tem.som nem imagem: é quando muèl to, um guião. Por melhor que seja o "discurso", não lhe "diZff nada... || A tranquilidade necessária à leitura (que nem é assim tanta)! não parece abundar no nosso povo. Dizem que o povo é serenotl mas um polvo com epilepsia é mais. O português está para "| tranquilidade como o delirium tremem está para a cirurgia. Na*| salas de espera, passam as horas a folhear revistas velhas a uffl ritmo alucinante, como se estivessem a tentar criar um efeito de

174 " animação com os bonecos. E a prova de que o povo gosta de bonecos está no êxito que alcançam hoje em dia os livros de bonecos sejam livros de Arte, ou de "Bêdê", ou do Superpateta. Curiosamente, os analfabetos ainda são os que mais se interessam pela leitura propriamente lida. Como não sabem ler, os livros têm um mistério e uma dignidade que só os bons leitores ainda lhes atribuem. A culpa não é só deles. Também os amanuenses borra-papéis da cultura, como muitos que manuscrevem nos mass media, têm a sua dose no cartório. Dizem que só se devem ler livros bons, e não podia ser mais tamanha a estupidez. Ler é uma necessidade como comer não é só luxo, arte, e aprender. Quando não há rosbife, come-se um rissol. E quando não há um bom livro, lê-se outra merda qualquer. Havendo educação, não são os livros que são "indispensáveis" é a própria leitura. Tanto os bons poetas como as tampas dos detergentes, tanto os bons romances como os maus assim como há variedade na qualidade e no agrado daquilo que temos que comer, também o mesmo acontece com o que temos de ler. Quando aparecem pessoas a dizer "Leia só bons livros", aflige-me que não se reaja como se reagiria a um nutricionista que recomendasse ao povo comer apenas bifes do lombo e cherne fresco. Já no livro mais ilegível de todos os tempos Finnegans Wake Joyce falava, sem essas pretensões autoritárias, de "esse leitor ideal sofrendo de uma insónia ideal". Num país onde se liga tanto ao "comer bem" e ao "beber bem", porque é que os amigos e familiares não começam a preocupar-se com quem não lê? Porque é que não se há-de dizer "Ela não anda bem, sabes? Ultimamente, tem estado a ler muito mal..." E já agora, diga-se do país inteiro. Por alto, na diagonal, como quem treslê... LIS É um prazer anual que quase sempre esquecemos, a mm edição da lista telefónica anual. É raro cantar-se-lhe o elogio" no entanto, trata-se de um livro com uma tiragem (765 OQB que ultrapassa largamente a de O Que Diz Molero, excelei" mente encadernado, impresso num papel de agradável toquM sobretudo recheado de úteis informações. Será com CM teza o livro mais consultado, utilizado e difundido de todoí panorama editorial português. Há depois uma beleza lepidóptera na Lista Telefónica: jfl sua intensa, mas breve vida. Ninguém quer a Lista Telefonia do ano passado. Abusamo-las durante um ano e depois cedi| mo-las ao Grande Asilo para Listas Telefónicas Ultrapassada! (GALTU), situado num armazém dos TLP em Montemorifi -Novo. Quem visitar este enorme depósito de listas, esta tonal do tombo contemporânea, não deixará de sentir o plangenw pathos que aquelas montanhas de listas inspiram. Em 1983 ela" serão transferidas para o novo edifício dos TLP na Avenidii

Fontes Pereira de Melo, onde ocuparão toda a ala norte. Atara ninguém as visitará e, à parte o cuidado quase maternal quo lhes é dispensado pelo Guardador das Listas, o conhecido Sr gás engravatados, com chicotes na mão, a ver se o povo lusíada 226 * está a colar como deve ser os rótulos dos iogurtes dinamarqueses. E tremem. A Esquerda Txé-Txé pratica um colonialismo diferente: tem menos a ver com as colónias do antigamente do que com águas-de-colónia. O aqua-colonialismo é aquele que cheira bem. No caso português, o Pitralon. Tem também, como o Pitralon, uma base alcoólica. Depois de uma noitada na Lontra ou no Monte Cara, em alegre confraternização descolonizadora, a Mosca Tsé-Tsé está no seu meio natural. A mesquinha preta morde-lhes as nucas e, dentro de quinze minutos, seguindo a melodia do Angola é Nossa está tudo a cantar "Angola é vassal Imas

faz-nos uma cena mossa! Angola é vossa/mas ficámos todos na fossa!" Falando insistentemente nos "países africanos de expressão oficial portuguesa" e virando as costas à Europa do Faroeste (e não há Europa mais faroeste que Portugal), tanto a Direita como a Esquerda TxéTxé pensam que ainda são Grandes Chefes Brancos. De resto, que se há-de pensar de um país em que "Out of Africa", que significa "Fora de África", se traduza por África Minha? "Qual fora, qual quê!", dizem eles, "É minha, é minha, é minha!" A Mosca Tsé-Tsé, portadora da febre africana, não mata, mas distrai. Os portugueses afectados fazem lembrar a história da patroa que perdeu a fortuna no dia em que a criada ganhou o Totoloto. Para eles, o Império era a fortuna de Portugal e a independência foi o Totoloto das ex-colónias. A criada faz as malas, compra uma moradia no Restelo e manda a patroa àquela parte, acusando-a de infame exploradora. A patroa, que se pode chamar Dona Lusitana, vai viver para um Tl em Moscavide e passa a ter de lavar a própria louça. Mas não aguenta a solidão. Todos os dias, de passe social na mão, apanha o autocarro para o Restelo e põe-se a tocar à campainha da ex-criada, a pedir batatinhas, a oferecer arroz-doce e a implorar que volte ao serviço ou que, ao menos, a deixe fazer uns trabalhinhos a dias. A ex-criada lá vai aturando, e a Dona Lusitana, lá vai chorando à porta da outra, deixando o seu apartamento de Moscavide no mais completo desmazelo... Se a Varejeira pica pela proximidade, levando portugueses a tomar a Espanha pela Europa e Madrid por Paris, Londres, 227 Bruxelas e Copenhaga ao mesmo tempo, a Tsé-Tsé pica pe^ longitude, atraindo-os para onde já não conseguem chega"! Ambas as moscas afastam Portugal de si mesmo, da Europa, ^' do Ocidente atlântico a que pertence. t, A mosca mais perigosa de todas é a terceira a Moscarda dg Guarda, ou o seu congénere masculino, o Moscão de Olhâjfâ, A Varejeira e a Tsé-Tsé não são nada ao pé dela. A mosca pó".; tuguesa é mosca-morta, muito miudinha e facilmente apanhiV vel com uma cacetada de jornal enrolado. Mas pica muitos con&t' patriotas: sobretudo os da Direita Parola e os da Esqueràm Foleira. As vítimas ficam convencidas que Portugal se aguen" sozinho, sem Europas nem Áfricas, simplesmente porque BK trata do país mais fabuloso à face da Terra, com a melhor posfc1? cão geostratégica que Deus ao mundo deu, com uma cultuntó riquíssima que é a inveja de toda a civilização pós-século XV, "f com um potencial que há-de fazer com que o Quinto Imperito ; pareça a República de São Marino em dia-não. * | Quando pica o Moscão, a Coca-Cola portuguesa passa a sÀ'f melhor que a americana, o Camembert português mais sabor"*'*' só que todos os franceses e Fernando Pessoa é indiscutível" í mente o maior poeta da história universal da literatura. Ainda t semana passada, quando centenas de automóveis ficaram para* dos uma ou duas horas à saída da Ponte 25 de Abril, à espera que chegasse a meia-noite para não terem de pagar os sessenta** cinco escudos da portagem, todos aqueles motoristas estavam" com certeza convencidíssimos que eram os mais espertalhões daJm Europa. Chegando às tantas da manhã a Olhão (lar do Moscão), proclamam orgulhosamente: "Hoje poupei sessenta e cinco pa&9 na ponte! Esperei hora e meia porque sabia (Não! Sou alguHtjt parvo!) que a partir da meia-noite não se pagava... Se visses a caref dos cobradores quando eu passei... estavam furiosos!... Mas eu cá, ? já sabes, sou de Olhão..." * À Moscarda e ao Moscão basta pousar na cabecinha de uiB í português para lhe deixar umas caganitas pretinhas, quase invi- t síveis, nas ideias. Persuadem-se, por exemplo, que Portugal faz , com que todos os países do globo delirem de cobiça. Pensam £ que a NATO e a CEE são estratagemas dos Americanos e Eu- " ropeus para "deitarem as mãos a isto" (a este tesouro). A solução, f à Direita e à Esquerda, é fechar as fronteiras porque "a gente cá ;* 228

governa-se sozinha". A única diferença é que a Direita julga que a maior ganância é a de Moscovo, e a Esquerda que é a de Washington. É preciso cuidado com estas três mesquinhas. Quando um português começa a falar em iberismos, afrobrasileirismos ou portugalismos, como se fossem a salvação da Pátria é boa ideia avisar os outros que ele "está com a mosca". Quando se está com a mosca (e há quem esteja com mais de uma mosca ao mesmo tempo), o melhor é aplicar-se uma boa rajada de Raid (mata moscas e mosquitos). E não há Raid como uma lufada de ar fresco e atlântico não há moscas onde houver maresia. O lugar que Portugal há-de ter no mundo será evidentemente um que Portugal deseje, e onde Portugal seja desejado; um que Portugal precise e onde Portugal seja preciso. Há-de ser, sobretudo, um lugar sem moscas nenhumas. NEUR^ Wi "f jt%> * Aos Portugueses não basta o tédio, a melancolia, o fastio ou w spleen. Para nós, tudo isso é coisa pouca e passa com um copo ; ou oito. Em Portugal, inventámos uma via portuguesa para 11 depressão que se compõe de todas as mágoas internacionais (té*?< dio + melancolia 4- fastio + spleen) acrescentadas das nossas especialidades caseiras, nomeadamente a saudade e o sebastia- * nismo. A este coquetelho implosivo chamamos a Neura. * A Neura da nossa terra nada tem a ver com neuroses, neurastenias e outros nomes de consultório que os médicos balbuciam *' enquanto receitam psicotrópicos de Câncer ou de Capricórnio, sempre conforme o signo do doente. A Neura não tem cura. E a Neura não tem cura porque não é grave. É, a um mesmo tempo, pesada e leviana. Parece que uma manada de elefantes, desejosos de entrar para o Guinness, está empenhadíssima a tentar ver quantos paquidermes nos cabem na cabeça. Mas basta o fresco pio de uma " andorinha para espantá-los todos dali para fora. Na Neura , pode acabar a Primavera só por se constipar uma andorinha. Mas recomeça só por ela deixar de fungar. Mesmo que, para \ isso, tenha pegado uma pneumonia a todos os pássaros de Por4< tugal. A Neura não tem cura porque os Portugueses, quando a têm, não a querem curar. Querem é alimentá-la. Quando esta" mós com a Neura, é como se estivéssemos com uma grande , amiga nossa. "O quê? Não me digas que não conheces a Neura?" Caso a Felicidade bata à porta, não a deixamos entrar e, com a porta semicerrada, sussurramos-lhe "Desculpa lá, ó Felicidade, mas agora não dá é que estou com a Neura..." E a Felicidade fica na escada. Se se dá o contrário

se reina a Felicidade em casa e de 230

repente aparece a Neura é a Felicidade que vai imediatamente para a rua. A Neura é com quem os Portugueses estão bem. Se um europeu está triste, vai ao gira-discos e põe um disco alegre (sobretudo os Espanhóis, que curam facilmente as depressões com meia hora a bater palminhas). Os Portugueses dirigem-se imediatamente ao Leonard Cohen ou à Amália Rodrigues, escolhem a canção mais deliciosamente depressiva e anicham-se na fossa como toupeiras em argila quente. Os estrangeiros não compreendem porque é que as casas de fado estão cheias de sorumbáticos e macambúzios, a borrar o xadrez das toalhas com o ácido das lágrimas pensam que são as canções que os entristecem e apetece-lhes pedir à

fadista que escolha umas cantigas mais animadoras. Seria o motim, a revolução ou, pior ainda, a alegria. Os estrangeiros saem para se alegrarem, quando estão um pouco em baixo. Os Portugueses saem quando estão um pouco em baixo, para ver se descem mais um pouco. A Neura é uma aventura e, para um português que está em baixo, só Júlio Verne e a Viagem ao Centro da Terra. Se os estrangeiros têm vergonha de dizer que estão tristes e disfarçam, falando do clima ou dos jardins, os Portugueses vangloriam-se publicamente. Pergunta-se, por educação, a um estranho qualquer se "passou bem" e ele levanta as sobrancelhas até baterem no risco-ao-meio, enche o peito ufano e diz: "Já que me pergunta, tenho passado muito mal, sabe?" Se se dá o caso raro de estar extremamente feliz um estado socialmente inaceitável disfarça dizendo que está "menos mal". Destina-se esta expressão a informar que já esteve péssimo; que agora, sabe-se lá porquê, está somente muito mal, mas que dentro em breve regressará à Neura, ou seja, à normalidade. Os Portugueses desconfiam profundamente das pessoas alegres. Para os de Esquerda, a Alegria é um pouco fascista, toda "lá vamos cantando e rindo". Para a Direita, a Alegria é igualmente comunista e barbuda, feita de vinho tinto e sardinha assada, muito Avante e festa do povo, o que é sempre preocupante. Experimente-se dizer a alguém que se é "feliz" e vejam-se as reacções atónitas. Ser feliz em Portugal é a maior perversidade cultural que se pode imaginar. Uma amiga minha dizia-me há pouco que se irritava com a 231 nova moda em Portugal em matéria de cumprimentos. DeJt pois da fase malcriada do comentário exterior ("Está mau" gordo", "Não está com boa cara"), ultrapassaram- se todos os lyif mites da decência social e já se invade impertinentemente ||| esfera mais íntima e interior da pessoa com perguntas tipo "£%fí tão, bemdisposto?" Que se pode responder a uma pergunta dês* í tas, excepto "O que é que o senhor tem a ver com isso?" M Na verdade, o "Então, bem-disposto?" é apenas a maneira 4%* introduzir o tema eterno da Neura o mais rapidamente possí^JÍ vel, para não se perder tempo a falar de outras coisas mais &t. *$ vês. O "Então, bem-disposto?" dos Portugueses é dito entre nós, * à maneira de dois hereges que são torturados lado a lado numa ff masmorra da Inquisição. É absolutamente irónico. Dada a ma- \ neira como os Portugueses põem e dispõem das coisas, como 4 '*| que as coisas podiam estar se não mal dispostas? Já que não nos sabemos organizar sentimentalmente, preferimos o caos conheeido da Neura ao delírio, desconhecido da boa disposição. ^ A Neura é para ser proposta, decomposta e, sobretudo, ex-" >\ posta. O jogo é "Se me mostrares a tua Neura, eu mostro-te a ',* minha". E assim vai sendo exposta, às postas, para durar mais. Quando não se está com a Neura, o melhor é uma pessoa '; enfiar-se em casa, fechar as persianas todas e não falar com , ninguém. Em primeiro lugar, porque é considerado anti-social * e pedante não se estar com ela. Em segundo lugar, porque ; a Neura é altamente contagiosa. Quando uma pessoa está com a s, Neura, está garantida a epidemia pública. E não se transmite } apenas às pessoas, mas também às coisas e aos sítios. A Neura é inefável e galopante. Os bares são uma Neura, os filmes são < uma Neura e, para um português de gema, até a queda de ' Constantinopla seria uma Neura. í A Neura tem dois componentes únicos a saudade e o sebastianismo. A saudade não é da felicidade da infância, nem o sebastianismo se dirige à esperança de uma grande alegria no futuro. A saudade é só da Neura que se tinha quando se era pequenino a Neura miudinha e inconsequente do beicinho e da birra. "Ai, que saudades do tempo em que tinha muitas Neuras diferentes num só dia...", diz o indivíduo típico, ao reparar que as Neuras são mais longas e mais entediantes quando se atinge a idade adulta.

232 O sebastianismo da Neura está na esperança messiânica que a Neura da velhice se atenue com a proximidade da morte. Só o prazer de ter a certeza absoluta que uma Neura não vai passar é o suficiente para ir mantendo as esperanças. Esperança, em português, não é um sentimento positivo de confiança ou de antecipação de dias melhores. Esperança, em português, é esperar. Não é agir para ajudar as coisas desejadas a acontecer. É ser simplesmente espectador. E quem nos faz companhia enquanto ficamos especados à espera "que chegue"? É a Neura. Porque é que os Portugueses gostam todos tanto de estar com a Neura? Se saísse uma antologia chamada A Neura na Poesia Portuguesa, teria pelo menos dez volumes e seria o êxito de vendas do ano. Um português que lê António Nobre não se impressiona tanto com a qualidade literária dos poemas como com a sensação gratificante de parentesco: "Olha... o António Nobre era como eu... também estava sempre com a Neura!" Aliás, a Neura de António Nobre, como a Neura contemporânea, é sobretudo exuberante, cheia de pontos de exclamação: "Estou com a Neura! lupii! Estou mesmo desesperado! Viva! Eia! Eia! Nunca estive tão deprimido em toda a minha vida!" No fundo, a Neura é a maneira que os Portugueses têm de proteger-se das grandes depressões. A Neura nunca leva à tragédia nem ao suicídio. Aguenta-se bem e é uma morrinha que conta com a vantagem de ser comunicativa. As grandes depressões são solitárias. A Neura é um arraial. Os grandes males têm o inconveniente de requerer grandes remédios, sempre difíceis de obter. A Neura, como tantas coisas em Portugal, é um mal menor e remedeia-se a si mesma. Se estivermos com a Neura, não há perigo de resvalar para as macroangústias, porque a Neura abafa tudo e concentra todas as energias. Os povos mais alegres têm taxas de suicídio mais altas, porque não suportam que a vida não tenha um mínimo de felicidade. Os Portugueses suportam. É a Neura. A boa, velha Neura portuguesa. E uma Neura, mas aí está. NOME "Caro senhor

Encontro-me num Manicà. mio e esqueci-me do seu nome e de quem a Senhor é."

John Clare (1860) Portugal será um nome a reter? Talvez não. Por ser um pouco embaraçoso? Por ter, porventura, ressonâncias infelizes, que prendem o nosso país a... a Portugal? É isso, não é? O nome de Portugal, de um ponto de vista comercial, é pouco popular em Portugal. Para cada barbearia Portugal (há só uma, na Parede) há centenas de cabeleireiros com nomes como "Cabeleireiro After 2000" (em Algés). As companhias de seguros são as menos envergonhadas. Há uma Portugal, uma Metrópole, uma Portugal Previdente e uma Império. A Bonança, cujo logotipo evocava os Descobrimentos, tem agora um simples "B", desfeado e pretensioso, como símbolo. Tendo desaparecido a Companhia das índias, ainda existe a Companhia Industrial de Portugal e Colónias, e a Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho. A referência lusitana surge na Lusitânia Mimosa Lda., na Luso-Africanista e numa série de sufixos (Lusoespuma, Luso-Tremoceira, Lusomar) dos quais a mais divertida se dedica ao comércio de tripas a Lusotrip. A referência nacional surge com realce na Nacional Lda. e ainda na Nacional Filmes e Nacional Rádio. Há quatro cafés Portugal, três dos quais na Outra Banda (Caparica, Montijo e Barreiro) e um em Moscavide. A Avenida Almirante Reis conta com o único Café Colonial e o único Café do Império. Na antiga Avenida 28 de Maio, hoje Avenida das Forças Armadas, está o único Café Pátria. Existem ainda uma Cervejaria Portugal (na Rua da Palma e, evidentemente, a Portugália. Quanto a restaurantes, há um Restaurante Portugal em Feijó, e o Avis. Há, na Estrela,

uma Leitaria Saudade. A referência imperial ainda subsiste na Imperial, Lda., no Império Clube de Portugal (este a merecer um prémio qual234 quer), no Cinema Império, na Imperial Filmes Lda. e na Fábrica de Chocolates Imperial. Os hotéis são liderados pelo Hotel do Império, no Porto, e pelo Hotel Portugal na João das Regras. De resto, há o Afonso Henriques na Alameda, e a Residencial Portugal nas Caldas da Rainha. O adjectivo "português" é geralmente utilizado pelas firmas estrangeiras (Miele Portuguesa, Ford Lusitana, etc.) e há ainda indivíduos José Joaquim Português e Manuel Brilha Português citados na Lista de Lisboa. Que se saiba, todos estes nomes foram registados antes do 25 de Abril, desconhecendo-se casos mais recentes. Portugal define-se melhor como uma ideia que, de vez em quando, alguns portugueses têm. É um repente que lhes dá, como um caso, um afrontamento, um acesso de qualquer coisa. Depois, passa. É como o nome da terriola recôndita onde nasceu o homem que se tornou um grande cosmopolita e depressa se envergonhou dela vai-se esquecendo. Ou como um apelido demasiado embaraçoso ou prosaico que depois aflige as figuras quando se querem tornar públicas vai-se omitindo, e mudando; enfim. De vez em quando lembram-se do nome da terra ou do pai, mas depois passa. Basta examinarmos as Páginas Amarelas da região de Lisboa, para encontrar exemplos deste embaraço. Facilmente se encontram, nos nomes dos estabelecimentos e dos produtos, os nomes de quase todos os países e cidades do mundo "evoluído" (termo que conhece voga nesta mentalidade). Floridas, Suíças, Parises e Tóquios... não falta, de facto, nenhum. Em contrapartida, o nome de Portugal deve ser muito pouco comercial. Haverá, com certeza, fidedigníssimos estudos de mercado que o dão como muito pouco aliciante para os Portugueses, pelo menos. Preferem-se por isso os nomes mais "sonantes" e "chamativos" de preferência "em estrangeiro"; ou então aglutinações híbridas como Redfer, ou Meribel ou Bortex; arte da imaginação em que Portugal definitivamente "lidera" o mundo. Talvez o nome de Portugal, por uma questão de pudor, ou não fôssemos todos "men (ou mans) of the world", devesse sempre aparecer entre parêntesis. 235 Um dos legados da Ditadura foi incutir nos espíritos mais desprotegidos uma identificação automática de certas palavras como Pátria ou Ultramar com as ideias, e práticas políticas do Estado Novo. Evitam, assim, usá-las, sempre com grande perícia e nervosismo, não vá alguém chamá-los "fascistas". A lógica é a mesma que impede as crianças alemãs de se chamarem Adolfo, com a diferença de ser pior. O hábito de identificar um país com a sua história recente, de reduzir oitocentos anos a cinquenta, faz parte do curiosíssimo complexo. Não lhes ocorre pensar que as palavras talvez tenham existido antes de 1926. Não conseguem afastar a suspeita de terem sido um rasgo de inspiração de Salazar, quando um dia estava sentado à secretária, a tentar arranjar termos certos para justificar as barbaridades que ele considerava necessárias. A palavra Nação, aparentemente inócua (e posso garantir que os estrangeiros mais evoluídos a utilizam sim, mesmo em Nova Iorque!) não pode ser proferida sem

suscitar sorrisos envergonhados. "É que vem logo à cabeça a expressão A Bem da Nação; é giro, não é? Haverá expressão mais completamente fascista que esta? Até as letras parecem estar todas de braço levantado, a fazer a saudação romana! Só dá, de facto, vontade de rir!" Talvez o nome de Portugal, por uma questão de responsabilidade histórica pelos crimes do fascismo, devesse sempre aparecer entre aspas. Por outro lado, é pena que se percam palavras tão bonitas como Ultramar (significado arcaico: região ou regiões que estão além-mar, como por exemplo os EUA) ou Pátria (significado arcaico: país onde cada qual nasce), mas não faz mal. Temos sinónimos democráticos, mais insuspeitos, que fazem o mesmo serviço, como O Estrangeiro (lindíssimo, aliás) e País Natal (não só uma expressão feliz como adequada à quadra que agora atravessamos). No fundo, não faz mesmo mal onde dantes se dizia Portugal podemos passar a dizer "território nacional onde se encontra a comunidade nacional", embora, mesmo assim, não se deva abusar do adjectivo "nacional", pois não será preciso lembrar o quanto ele foi usado por Salazar! E Império? Peço desculpa se alguns corações deram um salto com este repente (ou caso haja crianças a ler). É evidente que 236 Império foi coisa que nunca tivemos foi lá uma coisa que teve aquilo de que estamos a falar, bem sabem "(Portugal)", pois isso. Coisas com as quais, enfim, nada temos a ver. A palavra, salvo erro, também é de origem recente e abusiva. Talvez daqui a mais quinhentos anos possamos vir a admitir que tivemos um Império e sejamos capazes de viver com a memória. Por enquanto, ainda é mais fácil falar do Romano e do Muçulmano. Por enquanto, ainda é mais fácil falar em Conímbriga, usando palavras começadas por "ai", do que sequer pensar em Timor, ou em Goa. O pior é que as coisas se vão embora, mas os nomes ficam. São palavras que são resquícios, como as peles que as cobras despem e deixam pelo deserto. Os Portugueses têm a particularidade de serem incapazes de separar os nomes das coisas. Se amanhã abrir um café chamado Nacional, ou aparecer uma cerveja Pátria, em vez de café vêem logo um milhão de negros sob o chicote de um antepassado, em vez de lúpulos vêem imediatamente desfiles da Mocidade Portuguesa. Não será necessária mais do que alguma lucidez para ver que, se algumas palavras foram apropriadas pelo Estado Novo (afinal, só uma pequena gota da História portuguesa), a pior coisa que podemos fazer é deixá-las ao cuidado dele. Fazendo assim, somos como aqueles que nada fazem para recuperar objectos que lhes foram roubados. E pior: não só não fazemos nada como fingimos que os objectos eram deles, e assim conseguimos resolver o roubo com invulgar estupidez. Não será a altura de recuperar o que, afinal de contas, ainda nos faz falta? NOVO p '! '"'í 1 Em Portugal, tudo visto e considerado a uma taxa estrita-' mente semanal, nunca se produziram tantas obras-primas como agora. Cada vez que se abre um jornal, salta-nos para o coió uma imensa e clamorosa ninhada de novíssimos, todos com

opções tomadas, paixões realizadas, formas outras de estar na vida, fotografia a cores e um intenso desejo de nos enriquecer. Em cada dia útil, há pelo menos "mais uma mulher que chegou à escrita", "outro nome dos jornais que decidiu experimentar a difícil via da poesia" e aproximadamente duas turmas de BelasArtes que finalmente aceitaram sujeitar-se, colectivamente, ao "olhar do Outro" (que somos nós...) A proliferação de novos valores, obras-primas da nossa contemporaneidade e objectos absolutamente indispensáveis do nosso imaginário assinala, sem qualquer espécie de dúvida, o aparecimento de um segundo "Século de Ouro" para a cultura portuguesa. A única diferença é que, em vez de termos de esperar um século inteiro para apreciar os resultados, basta esperar, no máximo dos máximos, uma semana. O processo de aceleração do ritmo da nossa vida artística só traz vantagens. Os novíssimos de hoje estarão consagrados lá para amanhã à tarde, assim deixando lugar para outros virtuosos desconhecidos se nos revelarem incandescentemente na quarta-feira seguinte, pela hora do mata-bicho, o mais tardar. Eis o ponto da situação: as mulheres que chegaram à escrita, ainda lá estão, mas já estão a perder terreno para os mais novos dos mais novíssimos pintores portugueses, agora a emergir de vários portões da cidade, depois de terem (com admirável êxito) conseguido reduzir o tempo de espera que antecede a revelação pública do quinto ano do curso da Escola das Belas-Artes para o quinto ano obrigatório da escolaridade. 238 Como se chegou a esta extrema felicidade de podermos passar o dia a espantarmo- nos sucessivamente com novas espantosas obras-primas, sem o perigo de sair repetido um único cromo? Em primeiro lugar, como se sabe, tudo é cultura, desde a arte de bem salgar os tremoços até à habilidade de dactilografar até à página 186 (que marca, emblematicamente, a chegada à escrita). Todos temos (diz a Constituição) direito à expressão, e a expressão artística, uma vez liberta dos padrões subjectivos e maniqueístas do "bom" e do "mau", é por todos aceite como a forma mais extrema e mais, digamos, superior da expressão. As obras são obras- primas por duas razões. Antes do mais, são primas porque são sempre as primeiras que determinado indivíduo produz. Depois são primas porque são todas primas umas das outras (ou, pelo menos, boas amigas, que frequentam os mesmos bares). São todas enternecedoramente diferentes, e contêm tantos olhares sobre a vida como há vidas para olhar. Graças a Deus que hoje, em Portugal, o acesso à publicação e o inalienável direito ao prémio literário estão garantidos a todos os cidadãos (isto apesar de ainda haver alguns escassos portugueses, porventura mais lentos com a lapiseira, ou mais estigmatizados pelo analfabetismo, que ainda não chegaram aos escaparates). Espera-se, por exemplo, que alguma nova e dinâmica editora empreenda a urgente publicação dos setecentos poetas que o Relicário de Poetas Não-Publicados não pôde, por razões evidentes de espaço, incluir na actual edição de 1984. Também o artista plástico goza hoje do inexpugnável direito de se expor. Pode expor qualquer artista, desde que arranje um título igualmente qualquer, para o fazer. Se porventura, algum leitor, ainda não tenha ideia de tal, porque não expor "A Carroça À Frente dos Bois"? Aqui fica a sugestão (o subtítulo podia ser "Alguns Olhares Bovinos Para Uma Visão Posterior De Uma Estrutura Tradicional De Madeira com Rodas"). Entretanto, uma palavra de aviso às entidades responsáveis, com vista a um eventual subsídio: muitos artistas ainda por revelar expõem actualmente na Baixa lisboeta sem qualquer apoio do Estado. Estes performance artists que fazem do corpo o lugar da expressão são ainda hoje pejorativamente chamados de "aleijadinhos", e isto apesar do seu oficialmente aprovado estatudo de marginalidade. Para quando uma solução? 239 Todos os dias, em Lisboa, há pelo menos uma vemissage e basta olhar para os

frequentadores, encostados às telas molhadas a tingir as t-shirts e a beber uísque morno em copos de vinho tinto, discutindo o problema de dar quatro ou cinco estrelas ao Antonioni, para verificar que Portugal atravessa hoje um período de inigualável actividade cultural. Não há bela sem senão, evidentemente. Visto serem tantos os novíssimos (tantos, por coincidência, como os indispensáveis) e mais apropriadamente visto sermos afinal todos nói os novíssimos não há obviamente tempo para ler e ver tudo. Porém, sabem-se já de alguns casos individuais que não foram ver filmes e exposições indispensáveis e que mesmo assim sobreviveram (nomeadamente ficando em casa a fazer os seus próprios filmes e exposições). Não é de modo algum necessário, portanto, sair de casa. A solução é, simplesmente acompanhar atentamente os jornais. Trazem sempre um excerto do novíssimo romance ou a reprodução duma tela do novíssimo pintor, para que cada um possa saber, amiúde através do olhar privilegiado de um jornalista cultural, como é. As entrevistas com os próprios génios explicam, por sua vez, o recado que lhes é urgente trazer ao mundo, e o mundo, sendo bom, nunca os devolve ao remetente. Os roteiros trazem indicados os nomes todos a reter (se tem dificuldades em decorá-los, desapareça durante uma semana e tente outra vez com os da próxima). De qualquer modo, na pior das hipóteses, é sempre possível pagar-lhes uma cerveja logo à noite, descansando assim depois de um árduo dia de trabalho a fixar fotograficamente o que o jornal lhe revelou. Aliás o próprio "ler do jornal", como exercício do olhar sobre o comoventemente precário suporte de papel, segrega ele mesmo uma impressão táctil, ao revelar-se lenta e crepuscularmente através de depósitos aleatórios de tinta preta sobre os dedos; só depois cedendo o íntimo significado no momento em que se desprendem (através, por exemplo, do acto "limpar as mãos às paredes"). Como tal, é também uma forma de (expressão, com lugar à diferença e porque não dizê-lo à cultura. Aquela, afinal, a que todos temos direito; ou até mesmo torto. 240 ÓDIOS O ódio também é gente. Não são apenas o amor, a paixão e a fraternidade que nos sustentam. Os ódios também são animadores. Dão vinagre à salada da vida. Sem eles, o mundo seria demasiado oleoso e enjoativo. Os melhores ódios de todos são os ódios de estimação. Os ódios de estimação são aqueles que adoramos ter. Ao contrário dos ódios naturais, cujas origens e causas são facilmente atribuídas e justificadas, os ódios de estimação são aversões fortes que carecem absolutamente de razão. Eu posso odiar o Júlio porque acho que ele é mau, ou que me fez mal. Este é um ódio natural. Em contrapartida, eu posso odiar o Malaquias, apesar de ele ser bom ou de me fazer bem. Um ódio de estimação é uma repugnância apaixonada por alguém que não nos fez mal nenhum. É uma amargura que sabe bem, um gosto adquirido a contragosto. Neste aspecto, é mais parecido com o amor do que o ódio natural. Tal como não nos apaixonamos pelas melhores pessoas, ou por aquelas que mais bem nos fazem, também um ódio de estimação nasce espontaneamente e não olha a corações. Pode ter-se o maior ódio de estimação pela Madre Teresa de Calcutá ou pela Maria Leonor. Aliás, as pessoas verdadeiramente boazinhas são mais frequentemente visadas por ódios de estimação que as más. As almas caridosas, em certas circunstâncias, são muito irritantes. Tal como acontece no amor, um ódio de estimação precisa de ser alimentado e acarinhado cuidadosamente. Um dos meus mais especiais ódios de estimação, a actriz americana Sally Fields, levame a não perder um único filme dela. Se aparece uma fotografia ou entrevista dela, faço questão de determe a saboreá- la. A impressão que dá é de ser uma excelente pessoa,

241 uma boa profissional, uma mulher que se preocupa com a grandes problemas da nossa idade, e eu odeio-a profunda mente. Se me perguntarem porquê, sou capaz de invocar boca dela, a maneira como os lábios se mexem, ou os casacos d< malha que distingue com a sua preferência. A verdade é que, quando a vejo, tudo em mim se altera e sobressalta. Um ódio de estimação (a expressão é roubada ao pet hate inglês), que é genuíno e sincero, baseia-se muitas vezes em por menores irrelevantes. Um queixo ou um nariz conseguem só! afrontosos. Um nó de gravata ou um jeito no cabelo são, ena todos os casos, provocações irresistíveis. Odeia-se um pq*" bre diabo não pelas coisas das quais é responsável (aquilc que faz mal), mas pelas coisas de que não tem qualquer culpa* Um ódio de estimação distingue-se dos ódios racionais pelo facto de ser tão injusto. E por isso que pode ser muito mail violento. ,t Aqueles que odiamos naturalmente são, por assim dizer, 01 nossos inimigos. Podemos até respeitá-los. Aqueles que odiamos por estimação são mais odiosos ainda. Eles nada têm coo* tra nós e nós desrespeitamo-los totalmente. A maior parte da! vezes, não nos conhecem. Em muitos casos, até gostam bastante de nós. Entre os meus amigos, há um que nutre um tremendo ódio ao locutor da televisão Mário Crespo. Reconhece que é o melhor a apresentar o telejornal, admite que sabe muito da gestão do vídeo e está disposto a reconhecer-lhe grande nút mero de qualidades. Mas odeia-o. Grava-o numa videocassete c revê-o, e odeia-o, e fica possesso. Quer saber-se porquê e ek dá-nos razões da maior e mais ribombante enormidade. Diz, por exemplo, que ele está sempre excessivamente confiante e contente consigo mesmo, e que o formato dos lábios parece indicar que está prestes a beber uma bica escaldante. É capaz de estar horas a falar da maneira como os lábios se projectam num nítido bico, na atitude de quem se quer precaver contra a primeira colherada duma sopa muito quente. Quando o locutor diz "Boanoite", leva a mal. Se ele ajusta os papéis, ou pousa a caneta, grita: "Olhem só para aquilo! Estão a ver? Estão a ver | porque é que eu embirro com este gajo?" > Compreende-se assim que os ódios de estimação, à semepaixões, pretendem ser exclusivos e provo-

lhança das grandes

242 cam facilmente o ciúme. Quando se acalenta um grande ódio de estimação a alguém, não se gosta que ele seja partilhado por muitos. É por isso que não faz sentido embirrar demasiado com uma pessoa de que ninguém gosta. Não se pode ter um ódio de estimação por Hitler ou por um nacional-cançonetista de "gabarito". É mais fácil que ele desperte em torno de uma figura universalmente simpática. Recentemente, a vinda do Presidente do Brasil, para além de conquistar a amizade de tantos portugueses, proporcionou a três ou quatro indivíduos a oportunidade de criar um novo e significativo ódio a José Sarney. Estes certamente já compraram o livro Os Maribondos do Fogo e estão neste momento a ranger os dentes enquanto relêem as passagens que mais os desafinam. Quando um ódio de estimação se torna num ódio público, ele entra em degenerescência. Ele tem de ser uma coisa particular, um relacionamento directo entre dois seres humanos, que facilite o espírito especial de rancor e de raiva que é tão especial e delicado de conservar. Há pessoas que falam com saudade dos tempos em que o porta-voz do PRD ainda era muito pouco conhecido: "Ó pá tu lembras-te ao princípio daquele Carlos Lilaia? Fui das primeiras pessoas a não poder com o gajo! Agora até nem desgosto dele, coitado..." O perigo dos ódios de estimação injustos, irracionais, irrelevantes e inatos como são é serem tomados por ódios naturais. Os Portugueses são particularmente vulneráveis a estas confusões, já que gostam de inventar razões para todas as suas opiniões, mesmo as mais alucinadas e injustificáveis. Embirrar é próprio do homem e da mulher, mas é impróprio apresentar as embirrações como fruto de longa reflexão acerca dos defeitos e das qualidades de certa pessoa.

Um ódio de estimação possui sempre uma inegável carga ontológica. É o próprio ser da pessoa visada que se odeia. Leva-se a mal o facto de ela existir. Faça o que fizer, fica-se sempre intimamente ofendido. O gesto mais simples agradecer um elogio, prestar uma informação, tirar uma fuligem da ponta do nariz é invariavelmente chocante. Aquilo que se pensa é "Como é que deixam um tipo destes andar à solta? Não acredito que tenha sido o único a reparar que ele não diz os enes como deve ser!" Até as pestanas podem constituir motivo de queixa. No ser 243 odiado vê-se exclusivamente o mal e, no bem em que é inevitá- / vel reparar, só se descortinam os piores desígnios. Os ódios de estimação nascem com a naturalidade das pai-; xões com um baque violento no coração. Mal apareceu * aquele duo alemão chamado Modern Talking, ciaram-se ins- ,' tantaneamente muitos ódios-fãs, fanaticamente repugnados pelos dois artistas. No início, o mais popularmente detestável era o moreno de cabelos compridos quando fitava directa- ímente a câmara, milhares de lares portugueses enchiam-se de \ imaginárias metralhadoras. com o tempo, porém, o amiguinho - louro começou a dar nas vistas e fomos muitos a transferir o nosso melhor ódio para ele. Se se baixasse o som do televisor e se se pusesse a cabeça à janela, era possível ouvir o ruído inconfundível de mil dentaduras a ranger de raiva. Houve pessoas que compraram revistas pop alemãs só para poderem prolongar esses momentos de ódio assassino. Os ódios de estimação têm muitas vantagens. Ao contrário dos ódios justificados, não ocultam a sua inteira subjectividade. Tenho um amigo que dedica bastante tempo a cuidar dos seus | dois únicos ódios de estimação (com a paciência e dedicação de um bom enfermeiro), ao ponto de manter um álbum, de recortes e comentários, que mostra regularmente aos amigos com a esperança de recrutar novos correligionários. O álbum chama- | -se "Os Vascos" porque ambos os objectos do seu maior ódio se chamam Vasco. Um é o simpático Vasco Lourinho e o outro é um dos maiores amigos das crianças portuguesas Vasco Granja. À noite tem sistematicamente o mesmo pesadelo, de sair um dia de casa e ver que Portugal inteiro está populado por Lourinhos e Granjas. Lourinhos a vender jornais, Granjas a conduzir autocarros, bichas de Lourinhos às portas das Finan-ças, Manifs de Granjas a subir a Avenida da Liberdade, e con- sultórios cheios de Granjas e Lourinhos, todos à espera de serem atendidos pelo Dr. Lourinho. Acorda cheio de suores ' frios e vai imediatamente ao álbum inscrever um novo love de calúnias frescas. Os ódios de estimação não fazem mal a ninguém até porque são socialmente inaceitáveis. Também é por isso que se estimam e guardam. Não há dermatologia social capaz de resistir a estas aversões epidérmicas, instintivas e incontroláveis. Os 244 ódios de estimação têm, contudo, uma função psicológica importante: esgotam os nossos piores instintos, absorvem as nossas avultadas capacidades para a má vontade e para a misantropia, e permitem-nos guardar os bons instintos para os nossos amigos e amores. Quanto aos ódios de estimação de massas, que visam povos inteiros e que possuem um carácter épico, não há tempo para falar neles, excepto para dizer que não deve haver outra nação em que seja tão grande o número de indígenas que tem, por ódio de estimação predilecto, a totalidade desaliviada dos Portugueses. .. OPTIMISE " Os Portugueses estão entre os dez povos mais pessimistas, c| acordo com uma sondagem internacional da Gallup, recente mente divulgada. Viu-se então que 40 por cento dos Portugue sés julgam que 1984 vai ser um ano pior que 1983. .'

Ora o optimismo e o pessimismo têm, como já dizia o anu" cio do Café Sical, um uso que é particular aos Portugueses. O| optimistas pensam que 1983 foi tão mau, tão mau, que é im* possível 1984 ser pior; e os pessimistas pensam que, comparai do com o que vai ser 1984, 1983 foi um mar de rosinhas. O optimista português não tem uma existência invejável" Lembra a situação do banheiro de praias na Gronelândia nãc tem hipótese. Por onde quer que ande, é zombado e vilipendiado. Dir-se-ia até que, no contexto português, há algo de ligeiramente fascista na posição do optimista. Quem se atreve a dizer que estamos bem ou que um dia estaremos? O optimismo, em Portugal, é uma técnica de comercialização de governos. É uma técnica de comercialização com uma particularidade: não funciona. O presente Governo, consciente do pequeníssimo mercado português para os bons augúrios e promessas, tentou a certa altura a estratégia oposta. com o exagero que acompanha sempre o entusiasmo das coisas novas, apareceram secretários de Estado a prever "desempregas brutais", miséria para além do imaginável e outros flagelos que < pensaram estar presentes nas esperanças nacionais. ' Nem o optimismo nem o pessimismo portugueses foram bem compreendidos. Faltava reparar na característica essencial do optimismo português: nomeadamente, que ele não visa nem o presente nem o futuro. Não. O optimismo português faz-se sentir exclusivamente em relação ao passado. E, numa palavra, retroactivo. 246 Todos nós o sabemos e sentimos: no fundo, acreditamos que o passado vá melhorar para todos nós. Cada dia que passa, o passado torna-se mais desejável. Lá, há um lugar para todos os Portugueses. Nunca chove, nunca inflaciona, nunca falta alegria. Há séculos que os Portugueses se empenham em preparar e construir um passado digno para os bisavós. É por isso que os profetas dos Portugueses são os historiadores, e as utopias nacionais nada têm a ver com amanhãs foram ontem. A lógica ancestral é a do "deixa passar". Logo que uma coisa passa para o passado, passa a ser a melhor de todas. Isto deve-se ao jeito enorme que temos para esquecer as misérias. Um português que tenha passado a mocidade fechado numa jaula infecta a pão e água, acusado de crimes que não cometeu, lembra-se da experiência como mais ninguém deste mundo. Passados uns anos, dirá qualquer coisa como "Ah, eu nessa altura não tinha nada, mas era feliz. Tinha a minha salinha, o meu pãozinho, o meu cantarozinho de aguinhafresquinha, e ninguém me chateava, a não ser quando era espancado regularmente por uns tipos porreirínhos que tudo faziam para que eu não me maçasse". Tudo o que passou é bonito aos olhos portugueses e a língua reserva-lhes os mais ternos diminutivos. Quando alguém morre, por exemplo, torna-se universalmente amado e sobe aos topes que em vida nunca alcançou. Isto irrita alguns, sobretudo os vivos que teimam em ser amados antes do tempo certo (ou seja, enquanto estão vivos). Em 2003, 1983 será um dos melhores anos das nossas vidas, e 2003 será, sem dúvida, o pior de sempre. É preciso, por isso, esperança: basta esperarmos vinte anos para vermos quanto estamos felizes e bem servidos neste ano de 1984. PAIXÀ( Do carinho e do mimo, toda a gente sabe tudo o que há " saber e mais um bocado. Do amor, ninguém sabe nada. O" pensa-se que se sabe, o que é um bocado menos do que nada. Ol mais que se pode fazer é procurar saber quem se ama, sem querer saber que coisa é o amor que se tem, ou de que sítio veam o amor que se faz. , Do amor é bom falar, pelo menos naqueles intervalos em qu"| não é tão bom amar.

Todos os países hão-de ter a sua próprúJ cultura amorosa. A portuguesa é excepcional. Nas cultura"! mais parecidas com a nossa, é muito maior a diferença que sei faz entre o amor e a paixão. Faz-se de conta que o amor é um" coisa mais tranquila e pura e duradoura e a paixão é outnJ mais doída e complicada e efémera. Em Portugal, porém,] não gostamos de dizer que nos "enamoramos", e o "enamora*! mento" e outras palavras que contenham a palavra "amor" sã paguei cá com o meu dinheirinho". Influenciado pelos absurdos; anúncios das linhas aéreas, ufanos com os confortos e os tratamentos "especiais-rafeiro-classede-luxo", o passageiro português sente-se habilitado a ser, ao longo da duração do voo, o paxá que não é na vida real. Mal as nádegas estabelecem contacto com o assento, já está de indicador em riste, empurrando o botão de chamada da hospedeira. Ele quer almofadas, mantas, pantufinhas de longo alcance, copos de água gelada, jornais estrangeiros em língua que desconhece completamente, e, mais que tudo, a individida atenção de quem está lá só para o servir, a ele, senhor passageiro. São os "reizinhos do ar". Na terra, são seres tão insignificantes como os outros. Mas deixem levantar o trem de aterragem e vejam-nos transformarem-se em Suas Majestades. Passam cinco minutos a usufruir do jacto da ventilação, dirigindo-o às diversas partes do corpo, para grande irritação do indivíduo (estrangeiro) que está ao lado. Depois, quando já conseguiram moer a rosca ao ponto de já não ser possível parar com a baforada constante de ar podre, chamam a hospedeira e exigem ser colocados na primeira classe, "por causa da asma". Acendem um cigarro comprado no duty free. O passageiro português, mesmo que só goste de fumar SG ou Português Suave, compra inevitavelmente maços de Dunhill ou de outra marca "Very Long International", que consome com grande desprazer físico, socorrido pela compensação espiritual de "cá fora custarem trezentos paus" e de tê-los comprado por metade do preço. Quando as hospedeiras .distribuem os almoços, atirando-os com a perícia e carinho de quem lança cachuchos às focas do aquário, perguntam se "não podem comer antes uns medalhões de lagosta" ou "uma dobrada quentinha". Pedem "imperiais" e, quando recebem a informação cortês de só haver cerveja em 1 262 garrafa, explodem imediatamente, dizendo: "Isto da TAP é sempre a mesma merda!" Para o português, andar de avião é muito mais do que ir do sítio A para o sítio B de uma maneira expedita: é uma forma de estar na vida, uma experiência prestigiante, um esfregar-de-cotovelos com os "executivos" e diplomatas da alta roda. Qualquer português que compre um bilhete de avião, nem que seja LisboaPorto, ou numa daquelas excursões "Supertreta" de três dias "à capital da Grã- Bretanha", sente-se automaticamente incluído no "jet set". Esta promoção obriga- o a mostrar ruidosamente a todos os outros passageiros, oriundos dos países ricos, que os Portugueses também andam de avião, também são "jet set". Mal o avião aterra, levantam-se e ficam horas, dobrados, de pé, à espera que chegue o autocarro para se abrirem as escotilhas. Atropelam-se no corredor para serem os primeiros a sair, apesar de saberem que ainda durará um bom bocado antes da chegada da bagagem. Quando lhe aparecem as malas no carrossel do aeroporto, gritam "Olha a minha! Olha a minha!", como crianças a presenciar um acto de magia. Para eles, a mala surge misteriosamente das entranhas do

aeroporto como uma emanação milagrosa, vinda por estranho bruxedo do outro lado do mundo. Por estas e por outras, a TAP está de parabéns. Qualquer outra linha aérea, tendo aturado o que ela atura, há muito que se tinha suicidado colectivamente na pista do Funchal. PERCURSOS ; Tenho a certeza que existe uma organização secreta, escon" dida algures nos subterrâneos das Amoreiras, que se dedica fl sabotar a língua portuguesa. Está para a Sociedade de Língua Portuguesa como as carbonárias para a Igreja. Composta de agentes soviéticos, americanos e franceses com um ou outro brasileiro ou angolano à mistura reúne-se mensalmente par| lançar palavras subversivas sobre uma população ávida de neologismos e de pretensiosismos. K Uma das criações mais recentes destes maçons, concebida para fazer companhia ao "perfil" e nos maçar a todos, é o perí curso. Hoje em dia, toda a gente que é gente, na política e for* dela, tem um percurso. Antigamente, um indivíduo que saltasse; de comboio ideológico em comboio ideológico, conforme of ventos sopravam, era um situacionista ou vira-casacas, um ré* negado ou um traidor, um oportunista ou um malandro. Hoje podem apanhar-se os comboios que se quiserem, descansar nos apeadeiros que dão mais jeito e mudar de chefe de estação, revisor e condutor, como quem muda de sapatos. No fim dessas voltas todas, já não se fica com má reputação fica-se com um percurso. Quem não tem percurso, não tem nada. Todos aqueles passageiros que transitaram rapidamente do Transiberiano para a Linha do Oeste logo que mudaram os sinais, já não encobrem nem disfarçam a mudança de sentido. Orgulham-se. Ao contrário daqueles pobres viajantes de segunda classe que seguiram sempre a mesma linha, no mesmo comboio ronceiro e certo, eles têm um percurso. Os outros são uns inflexíveis, uns dogmáticos, uns tradicionalistas inveterados, uns veteranos. O passado político de cada um, seja de extrema-direita ou de extrema-esquerda, já não quer dizer nada. É, quando muito, 264 um "processo de aprendizagem". E depois, quando aprenderam como é, são como novos doutores que saem da Faculdade. Em vez de um diploma ou de uma carta de curso, recebem a carta de percurso. Carta no sentido de mapa, evidentemente. Cada um procura que o seu percurso seja melhor que os outros. O nee plus ultra dos percursos é indubitavelmente o percurso giro. O percurso mais giro e cobiçado do momento será uma coisa deste género: comandante de castelo na Mocidade Portuguesa, e mais tarde jovem quadro da União Nacional. com o 25 de Abril, defrontado pelas realidades políticas que 48 anos de fascismo ocultaram, inscreve-se num partido marxista-leninista, transitando em 1975 para o Partido Comunista. Depois do 25 de Novembro, continua a sua luta no PS. Desiludido com o dogmatismo evidenciado pela FRS, quando do desafio da AD, oferece-se à AD onde milita até à formação do PRD. Cada um quer ter um percurso giro, interessante, ou pelo menos curioso. Quando se juntam indivíduos com percursos, bebem uns copos e brincam uns com os outros, segundo a velha regra infantil do "Se me mostrares o teu percurso, eu mostro-te o meu". Deliram com mútuas confissões, com as alegres memórias do tempo em que eram jovens e "tinham muitas ilusões". Nunca importa o comprimento do percurso, nem tão-pouco a sinuosidade. Os "per-corredores" não se medem aos palmos. Alguns há com percursos tão curvilíneos e perigosos como o de Daytona, mas ninguém desconfia deles por causa disso. São, muito pelo contrário, os heróis da pista. Guinada para a esquerda, guinada para a direita, usando habilmente a caixa de velocidades para todas as mudanças que forem necessárias, são os campeões dos percursos, os Michéis Vaillants da política.

Entre todos aqueles percursos, deve dizer-se que há os que vão conforme o sentido do pelotão (são os que têm percursos recompensadores) e aqueles que vão sempre na contramão. Estes últimos, que estão sempre do lado "errado", são ostracizados pelos primeiros, por serem uns líricos, uns malucos ou uns irrecuperáveis. O caso-limite são aqueles que eram marxistas-leninistas durante o Estado Novo e depois se tornaram estado-novistas durante o marxismo-leninismo. Este é o genuíno Pes265 soai do Contra, representando uma antiga e veneranda tradição portuguesa. São os que nunca ganham com os percursos. Fí* cam pois ilibados das considerações que se seguem. .; Portugal fica assim, em vésperas do século XXI, como um país riquíssimo em cursos, em discursos, em percursos e ent concursos. Que podem importar os recursos diante de tanto curso? Que podem importar as repercussões de tantos percurit sós, se são cada vez menos audíveis as percussões daqueles pó* bres diabos sem percursos que continuam sempre a bater na mesma tecla? Se hoje se valorizam aqueles que percorrem os partidos todos" não admira que se ataquem estas criaturas teimosas e obstinadas que se têm recusado a entrar no grande concurso "1,2, 3if dos percursos. Toda a gente sabe quem são. São os ursos. São os que estão sempre na mó de baixo. Nos bares, quando se con^ tam as peripécias dos percursos, eles dizem, cabisbaixoSí "Bem, eu fui sempre do PC..." ou "Olhe, eu lá continuo no CDS",, ou "Pois eu ainda estou no MRPP". Que grande tédio bufam os percorrentes à volta da mesa. "O quê", diz um ao CDS, "neta sequer passaste pelo MIRN?" "Não me lixes!", diz outro ao* MRPP, "nem sequer uma cisãozinha, um realinhamento, uma pás* sagem meteórica pela Linha Negra?" São uns chatos. E ninguém com um percurso que se veja quer ter nada a ver com eles. ; O verbo específico dos percursos é Passar Por. Refere-se àqueles apeadeiros momentâneos por onde passou o comboio ($ onde se parou para comer umas coisas, aviar uns farnéis, mo* lhar o apito, etc.). Quanto maior o número de partidos, área" ideológicas, espaços políticos e movimentos-em-torno pelo? quais se passaram, mais giríssimo é o percurso. Os que não vão em comboios, e permanecem de pé firme na sua plataforma, são muito malvistos e tratados. São tratados como os vende-" dores de queijadas na estação de Alfarelos, pelos senhores que viajam confortavelmente no rápido para a Figueira da Foz. O percurso mais giro da hora actual é sem dúvida o do Dn Salgado Zenha. E a reacção a esse percurso tem algo de animador, já que indica que os Portugueses se começam a fartar de percursos. Nos últimos dias, sobretudo, a candidatura ZAP: tem tido um efeito deveras insólito. Tem conseguido criar utn' genuíno espírito de camaradagem entre os apoiantes das restantes 266 candidaturas. Gente Freitas, gente Soares e gente Pintassilgo sentem-se agora unidas por profundos laços de mútua simpatia descobrindo a cada passo novas e alegres fontes de solidariedade. Neste momento, não é grande exagero dizer que estão todos completamente a borrifar-se para quem ganhe as presidenciais, desde que não seja o Zenha. Freitas, Soares ou Pintassilgo, tanto se lhes dá como se lhes deu. É até provável que os três candidatos estejam neste momento reunidos, todos a lanchar animadamente, discutindo quem é que se deve servir primeiro das bolachas, todos desfeitos em sinceras amabilidades, rindo-se enquanto atiram dardos venenosos para um cartaz em três dimensões do Dr. Zenha, etc. Cada qual insiste junto dos outros dois que deve ser ele a desistir para os outros. "Não", diz Soares, "o melhor é eu e a Lourdes desistirmos para o Diogo!" Freitas do Amaral interrompe educadamente "Por amor de Deus, isso também não bastava que fosse eu a desistir para vocês os dois!" Pintassilgo, imbuída da mesma fraternidade, mas mais imaginosa, sugere, logo: "Sabem o que era bem feito? Era desistirmos os três a favor do Angelo Veloso!"

E todos se riem. Talvez a nossa cultura política esteja mesmo saturada de percursos. Isso é que seria mesmo bom. E, para Portugal inteiro, um percurso realmente giro. PIROPO, A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante. Hoje em dia, os rapazes de Portugal já não correm atrás das raparigas andam com elas. A diferença entre "correr atrás" e "andar com" é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar e persistir, e é alegria, entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os 400 metros barreiras. Os dois sintomas mais preocupantes desta nova tendência para a letargia erótica são, por um lado, a decadência acelerada dopiropo e do galanteio, e, por outro, o culto solene e obstinado da sinceridade. Ambos contribuíram para facilitar a sedução, tornando a própria sedução numa coisa muito menos sedutora, já que não há maior afrodisíaco que a dificuldade. Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o cool da contemporaneidade "Vamos aí?" Ou simplesmente "'bora at?" Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e boçal "Bute?" "Bute" significa qualquer coisa como "Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas". Mas, os rapazes só dizem "Bute?", são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e de enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas "Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria 268 dizer com aquele bute?" E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas foi um "Bute" terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado? Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer "Ai, Lena... quando ele disse 'Bute' subiu-me o coração à boca!" A verdade é que o coração é um órgão bastante preguiçoso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso. De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente "Bute" é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja. A própria palavra piropo (do latim "pyropo") tem óbvias conotações incendiárias. Alguns alquimistas definiam esta pedra preciosa como sendo uma mistura de "três partes de lata e uma de ouro, que fica da cor do fogo". A lata é extremamente Importante sem ela não se pode construir um bom piropo. Não basta só a parte de ouro (o sentimento, ou desejo) faltam mesmo os demais 75 por cento. E o piropo faz falta, mesmo que seja só, nos preparos do amor, o "pequeno grão de arroz" de que fala a cantiga... Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma rapariga bonita. Não é um piropo que procura obter algo em troca não é o piropo interesseiro do engate é o piropo per si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida. Ela é bonita você gostou de a ver. Em troca, inventa uma coisa bonita para lhe dizer, sem esperar outra recompensa se não a

enorme recompensa de se saber que ela o ouviu. Qualquer rapariga gosta de (e merece) ouvir um piropo destes. Em contrapartida, nenhuma rapariga tem paciência para as alternativas cada vez mais habituais; o basbaque calado que fica a ver, o engatatão incómodo que marcha atrás da rapariga como um detective pouco particular, o ordinário que se mete, até o banana tímido e ensimesmado que nem sequer se dá ao trabalho de olhar. 269 Deve dizer-se que os homossexuais portugueses continuam ti cultivar o piropo e outras formas tradicionais de galanteio. Não] será altura dos heterossexuais retomarem esta arte que Lope] de Vega dizia constituir a justa fama dos homens portugueses?! É preciso acabar com a escandinavização do erotismo português. Não é só o piropo que morre são as cartas de amor, as flores de um anónimo admirador, as boas frases de apresentacão e toda a panóplia de doces artifícios que deveriam estar presentes na preocupação de um bom rapaz português. A escandinavização (exercício físico, comidas, saudáveis, zuindsurf, e sexo sem culpa nem graça) tem, como factor mais perigoso, o culto da sinceridade. É triste, mas é verdade: hoje em dia quase ninguém mente! Os rapazes dizem às raparigas "Não és muito bonita, mas até te gramo", e as raparigas respondem "Preferia o Richard Gere, mas já que aqui estás..." Isto não pode ser. Para qualquer rapaz, a rapariga com quem está (ou quer estar) não pode ser se não a mais bonita do mundo inteiro, Á honestidade é a morte do encantamento. Bem utilizada, a mentira criativa chega ao ponto de convencer o próprio "mentidor". Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão ("Era capaz de morrer por ti", por exemplo) é sempre uma contribuição espectacular a favor do Live Aid do coração. ; A verdade é sempre nua e crua e nisto parece-se bastante com um bife de peru. As coisas nuas têm de ser misteriosa e lindamente vestidas e as cruas têm sempre de ser cozinhadas. Ninguém gosta de bife de peru, mas, uma vez panadinho com , pão ralado, e enfeitado com agriões e rodelas de limão, e servido num prato branco e limpo com um sorriso impecável... come-se já. No amor, mentir não é pecado, mas é indispensável. Tambem o instrutor de piscina, ensinando um menino a nadar, e vendo-o a barbatanar desastradamente por todo o lado, diz "Vais bem continua", não porque seja (do ponto de vista de Mark Spitz) verdade, mas para lhe dar confiança e, também, precisamente, para poder ensiná-lo a nadar! Há uma medida eficaz contra a banalização e simplificação das relações amorosas, mais portuguesa que escandinava, e mais agradável do que andar a butes é namorar. É urgente acabar com esta modorra vilar-de-mourisca das "amigas" e das 270 * "companheiras", do "bora aí" e do "vamos curtir", que tanto vem deprimindo os apetites e as imaginações dos rapazes e das raparigas de Portugal. Todas as mulheres sejam raparigas ou mulheres, esposas de há 20 anos, conhecidas ou desconhecidas, mais ou menos bonitas, não importa todas elas têm de ser convincentemente, absolutamente e permanentemente namoradas. Se não, não vale a pena nem para elas, nem para eles. Aqui fica este apelo aos rapazes bem- educados de Portugal. Na rua ou em casa, no trabalho ou no liceu, não deixe que nenhuma rapariga bonita passe por si em vão. com correcção e jeito, lance-lhe um piropo sentido e desinteressado, e verá como sabe bem. Pense que nunca mais irá vê-la outra vez (o que é quase sempre verdade) e aproveite aquela única oportunidade. Ou, sendo esposa ou namorada, sua ou de outra pessoa, também não fica mal. O amor pode ter a certeza tem de estar no ar como no lar. Para quem já aprendeu a ler, a escrever e contar, não há nadfj como a Cartilha Escolar do inspector Domingos Cerqueira paiM reaprender. Muito antes da escrita automática dos surrealista^ da poesia concreta, das técnicas aleatórias cut-up de Burroughál e do teatro de lonesco, já o inspector Domingos Cerqueira laimj cava as sementes destes vanguardismos na sua celebérrimal obra, agora

oportunamente reeditada pela Lello e Irmãos. Logo nas primeiras páginas, se desafia indirectamente! Freud, com uma violência magnífica: "pai pipi pau ne né é pó p/A nu" (p. 7). Foi a Domingos Cerqueira que Bunuel foi buscar ai imagem simbólica mais forte de 'Age d'Or, o pé nu, foco fetichista por excelência. A conjunção "pai pipi pau ne né é pó" (p. 7) não só anuncia o Finnegans Wake de Joyce como nos anuncia que as teorias de Freud acerca da sexualidade podem não valer mais que pó. Freud é, aliás, uma referência constante. Veja-se o texto da página 11: "amava papava viuvai cá vai a vacai ó papá viva." O humor negro de Cerqueira, perversamente transmitido ao í subconsciente das criancinhas portuguesas de cinco e seis anos, não tem limites. A obsessão com o pai é insistente. O sujeito , anónimo que "amava papava viúva", depressa passa ao escárnio contundente de "cá vai a vaca", chamando inclusivamente a atenção do pai para a alteração dramática do seu estado de espírito (ó papá viva). Cerqueira não se contenta em ficar por aqui. Todos os elementos da família são subtilmente postos em causa. A figura ancestral da "tia" é particularmente visada. Veja-se a malícia do curto trecho da página 12: "a tia é viuvai vai até à mata." A imagem da viúva surge mais uma vez, não só para indicar a ausência do pai, hoje tão popular, como para associá-la a activi272 dades sexuais duvidosas. A misoginia de Strindberg, comparada com a de Cerqueira, quase parece feminismo. Aqui, quem não tem marido ou é papada e tratada como vaca ("amava papava viúva/cá vai a vaca") ou é obrigada a recorrer aos amores espúrios e aviltantes que se buscam nas matas. Tal como aconteceu com Freud, também a cocaína (conhecida em Portugal por "pó") é largamente referida por Cerqueira na sua maravilhosa Cartilha. A ligação entre o vício cocainómano e a família é esclarecida logo na página 13, seguindo-se ao episódio da mata na página 12. Aí diz-se "A tia toma pitada/vai na moda." Na figura da tia, viúva ou não, concentram-se assim as três desgraças do século XX: o sexo, a droga e a morte. Para mais a tia não toma a sua pitadinha porque precisa dela toma-a porque é um ser frágil que "vai na moda". Analisem-se as referências à cocaína ao longo da Cartilha Escolar. Cerqueira começa, na segunda págima, por condenar as crianças que se entregam a este debilitante vício: "pó mau... nené mau" (p. 8). Duas páginas depois, surge a palavra proibida, sem eufemismos: "coca/a macaca é má" (p. 10). Outras drogas (ainda mais perigosas), são as injectáveis "draga droga" (p. 33) e Cerqueira descreve com notável concisão a imagem de um jovem de bom porte que perde a beleza dele devido ao excesso de droga. Ontem (imagine-se) pisava os salões de baile hoje jaz como um mero objecto: "tijolo jazia janota/o tojo pica a pele" (p. 22). Não terá sido por acaso, também, que surge a alusão à traficância na página 39: "O caixeiro do droguista quebrou dois púcaros." Note-se também a insistência em "picadela rola lodo pele" (p. 19)... A coca, contudo, dá um torn alucinado a toda a cartilha e produz efeitos literários muito mais interessantes do que todos aqueles que hoje se conhecem (Huxley, Kerouac, Ginsburg, etc.) Há muitas imagens bunuelianas, como "bidé sabe bóinala mula bebe no balde e a vitela na tina" (p. 21) e "afaga o galgo/a faneca é taluda" (p. 24). Há aliterações convulsivas, algumas das quais se antecipam ao estilo dalguns autores da Poesia 61. Uma das melhores é "reluz vazia vez veloz/lapuz capataz/é feliz o pai daquele rapaz" (p. 28). O experimentalismo português também tem em Cerqueira um ilustre precursor, como se prova no enigmático poema concreto da página 42: "sim bom ambos 273 raspam margem zabumba bombo assim." Aliás, se este livro fosse editado hoje, numa colecção de poesia, chamar-se-ia provavelmente Um Bombo Assim e seria rapidamente celebrado pelas folhas da crítica. O , na sua rubrica "A Prova dos Novos", ficaria comovido com textos deste quilate: "eu museu/céu sem réu" (p. 33).

O surrealismo é primitivo, mas, para a época, revolucionário: "Peru querer quarto pêra" (p. 33) funciona precisamente porque o leitor acha estranho que o peru não queira a pêra inteira. Noutro passo, em que Peter Schaeffer poderá ter ido "beber" a inspiração para a sua peça Equus, Cerqueira associa habilmente estas duas ideias: "lava logo a bocal dá água à égua" (p. 23). Ou repare-se na maneira como ele contrasta liricamente "herpes/casa" (p. 36), "lua luva/levo mula" (p. 19) e no texto mais longo de todo o livro, numa espantosa sequência: "mães pães cães pões fogões melões toleirão atenção capitães" (p. 46). Pessoalmente, a melhor imagem literária de todas ocorre na página 29 e serve perfeitamente para descrever, por exemplo, programas culturais da RTP ou certos debates da Assembleia da República: "cebolada glacial" (p. 29). Sendo da República, não admira que Cerqueira afirme inequivocamente, apesar do seu livro já ser posterior ao 5 de Outubro, que "O Gonçalo é de todos o mais travesso" (p. 55). Aliás, os nomes, agora muito na moda, são sempre privilegiados ao longo da Cartilha, às vezes com uma carga profética, como naquela sequência alfabética em que surgem associados o Imposto Sobre o Valor Acrescentado, o ex-ditador das Filipinas e um filósofo cada vez mais útil: "Iva, João Kant Laura Marcos" (p. 52). Mas há mais. Há o "José da Violante" (p. 44), o "Quintino", o "Tito" e o Xisto" (p. 52), e, com direito a duas referências separadas, a misteriosa "Umbelina" (p. 52) que conhecêramos anteriormente por "Umbelino" (p. 42) e o prosaico "Zeferino" (p. 41 e p. 52). Vale a pena citar o trecho, para fixarmos o estilo: "O Julinho filho do Zeferino Cunha, chorou muito, porque lhe fugiu o Janota" (p. 41). Se regressarmos à página 22, verificamos que era precisamente este o Janota que jazia como um tijolo depois de se ter "picado". A relação entre o Julinho e o Janota nunca é explicada. Julinho seria o "dealer"? Seriam "apenas 274 bons amigos"? Estas ambiguidades fazem parte do encanto polissémico do livro. Os personagens são todos um pouco estranhos e deslocados. Veja-se o caso do Celestino: "Porque o Celestino fez bonito exame, a mãe ofereceu-lhe um carneirinho, que ele ensinou a puxar a um carrinho que o pai lhe trouxe há pouco de Paris" (p. 50). Hoje em dia, qual é a criança que pode esperar, como recompensa por fazer um bom exame, um carneirinho? Porque é que o pai, ainda antes de saber se o Celestino tinha feito um bonito exame, lhe trouxe já um carrito parisiense? Logicamente, teria oferecido primeiro, como incentivo, a prenda menos boa (claramente o carneirinho) e só depois o fabuloso carrito "made in France". De qualquer modo, a mensagem é clara e verdadeira: "os pais parece que dedicam mais amor aos filhos estudiosos" (p. 44). As crianças que tiverem estudado por este livro ficarão muito mais prendadas de imaginação do que aquelas que estudam pelos livros de hoje. Haverá alguma relação entre o surrealismo de Cerqueira e a geração portuguesa de surrealistas, que porventura terão aprendido a ler com este livro? Qual terá sido o efeito de ler parapoemas como "esfera frasco fisga/cisco lesma espada" (p. 36), numa tenríssima idade? Quantas vezes terão sido glosados motes como "pinto ronda dente/pilha candeeiro/tom manta cinta fundo" (p. 43) e "tambor bem/pombo campa tumba/sim bom/ /ambos" (p. 42)? Viva a Cartilha Escolar do inspector Domingos Cerqueira! PORTUGALITEÍ "Chamar pátna a porção de temtóno em qtu f uma tal agregação se encontra serta abusar r"( preenstvelmente do direito que cada um tem dt ser metafórico". | \ Ramalho Ortigão, falando da "sociedade portuguesa neste derradeiro quarteirão do século".

As FARPAS, Tomo VI; David Corazzi editor, Lisboa, 1888 pág. 84. Entre as afecções de boca dos Portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não | se descobriu cura. \ A Portugalite é contraída por cada português logo que entra \ em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea ? como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então | que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal ' dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais típicos de qualquer grande e arrastada paixão que demonstram que os Portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as "bocas" que mandam. Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada por- tuguês é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mu- \ lher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e < vilipendiar a causa comum de todos seus males. Assim sempre \ se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam- ; 276 -lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo um uníssono "e hoje é o que se sabe..." Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é "Portugal é um país feio". Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão. Em terceiro lugar, os Portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hãode fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprimese no dogma nacional que reza "Isto é bom é para os turistas", como quem diz "A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente". Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos. Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: "Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu." 277 Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem sH

Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acaB de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caeouH cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastgjH nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido O^ nado no troco por um motorista de táxi. \H Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo ailH mungar e a queixarse quando está perto de Portugal, sabe-áH que lhe acontece quando está há muito tempo longe deleJH grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de " já não vencem senão as lágrimas. E pensa invariavelmeull "Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do qfl bem por outra donzela..." razão, mas eu não posso concordar consigo"? Se só em Portugal se , "refutam" argumentos com o peso dialéctico do "Olhe que não..." ou "isso não é bem assim"? Se só em Portugal se diz de quem quer expor as suas opiniões que quer impo-las? Como será possível ultrapassar a situação em que todos sentem que dar razão a alguém implica ficar-se sem ela? (Não há provocação ^ mais violenta em Portugal do que dizer, perante alguém "Então está a dar-me razão!") í A única maneira de ter uma razão que seja dada por outrem e não simplesmente consentida ("Pronto, fica lá na tua que eu cá fico na minha") é bastante drástica. É morrendo. Os mortos, em Portugal, têm sempre razão. É por isso que a razão só se dá no ', preténto, a alguém que está manifestamente ausente: "Razão tinha o outro, coitado..." Este "outro" é sempre o morto. Os Portugueses morrem habitualmente do cansaço de terem tanta 314

razão, e é só depois de não poderem receber nada do que lhes é dado, que os portugueses vivos lhes dão a tal razão. Neste século, Fernando Pessoa e Jorge de Sena serão os casos mais flagrantes. Se "dar" razão é, para os Portugueses, uma "oferta" difícil, que deixa na penúria quem a dá, como se se tornasse irracional por dar a razão que tem a outro que já a tinha, depois da morte ela torna-se demasiado fácil, e gratuita até. Os mortos tornam-se em depositários de uma razão incomportável, maior do que aquela que o maior génio pode ter. Citam-se os maiores disparates de Fernando Pessoa como se fossem pronunciamentos divinos e é considerado heresia dizer que ele talvez não tivesse tido toda a razão. O outro é que tinha razão. SIDA

Agora também em Portugal, como em todos os países evoluí-" dos do mundo... Sim! Você também pode ser um Rock Hud* son... Diga adeus às velhas infectocontagiosas do Passado... Relembre emocionalmente o grande épico medieval da Peste e * da Praga! Adeus Cais do Sodré, Intendente, Secção de Doenças Venéreas do Hospital de São José! Olá Europa, Mundo Novo, Estados Unidos da América! Chegou finalmente a SIDA! Hoje | ainda em fase artesanal, com base na importação... mas amanhã... quem sabe? Hoje somos só dez amanhã poderemos í ser milhões! Leram os jornais? Um dia, cabeçalhos gigantescos que gri- , tam "ALARME! SIDA EM PORTUGAL!" No dia seguinte, f os cabeçalhos igualmente gigantescos gritam ainda mais alto: < "SIDA EM PORTUGAL! NÃO HÁ MOTIVO PARA ; ALARME!" Ah, mas não sejamos estraga-prazeres alarme- ] mo-nos à mesma! Não há nada como o risco de uma boa epidemia para preencher aqueles espaços dos jornais que são tão difí- cies de ocupar nos tempos mortos do Verão. Que importa que os serviços médicos competentes estejam a dar provas de grande cuidado e eficácia? O que é que nos in- } teresa que os peritos, como é o caso do professor Carneiro de '< Moura no Hospital de Santa Maria, nos queiram prudentemente aconselhar e tranquilizar? O que é que eles percebem de 1 SIDA, afinal? Nós sabemos que a SIDA se pode transmitir por um simples "passou bem". Nós sabemos que corremos um perigo muito real no caso de termos visto mais de três filmes com < Rock Hudson nos últimos três meses. Nós sabemos que não devemos tomar banho senão em Água do Luso, por causa do elevado número de homossexuais portugueses que usam água da Companhia. Isto para não falar dos Africanos e nos viciados 316 mais lavadinhos da Droga-Loucura-Morte! Se o pânico resiste a instalar-se, instalemo-nos nós, juntamente com os meios de comunicação social! (E não se esqueça de vestir luvas de borracha antes de pegar num jornal os artigos sobre a SIDA podem transmitir-se através do suor nas pontas dos dedos do leitor!) E sobretudo evitem-se as relações sexuais. Por alguma razão elas foram proscritas pelas principais religiões! Que diabo Khomeiny sabia do que falava! Algum dia havíamos de pagar a nossa terrível promiscuidade essa é que é essa. Não vá para a cama com ninguém! Sabe lá por onde é que o outro andou! Sabe lá, se quando levou as injecções an ti tétano, a agulha não tinha já sido usada... bem!... Se quiser comprar um gira-discos, evite a todo o custo as lojas da "SIDA SUECA" a sueca não é menos fatal que as outras! Se for obrigado a cumprimentar um indíviduo que suspeite de homossexualismo, fuja aos abraços e aos apertos de mão. Prefira uma pancada seca e rápida nas costas e um breve "Então? Estás porreiro?" (sabendo o leitor perfeitamente que não o mais provável é já estar numa fase terminal da doença e francamente ansioso por transmiti-la a alguém).

Aprenda a reconhecer os primeiros sintomas da SIDA. As olheiras, o cansaço, o pigmento negro da pele, o passaporte da República do Zaire, a frequência de certos bares do Bairro Alto e do Príncipe Real todos eles são indícios indesmentíveis. Se suspeita de alguém, seja um bom cidadão e cole-lhe aos cotovelos muito pela calada para ele não dar por isso um dos autocolantes especiais agora a serem distribuídos pelos jornais: "DAR SANGUE É DAR SIDA." Não ligue aos cartazes supostamente humorísticos que têm aparecido nos mais duvidosos clubes nocturnos, como aquele que dizia "Calma, minhas primas! Nós aqui não temos Cidla só usamos Butagaz". São manobras da reacção. Lembre-se sempre que algures, lá fora, um SIDA desconhecido espera por si. Não entre em logros entre em histeria. A histeria é o único antídoto contra a SIDA reconhecido pelos mais afamados jornalistas da especialidade. E cuidado com os hippies, que se contam entre os principais portadores. Foi isto que deu a revolução sexual a SIDA. E assim que eles foram obrigados a pa317 gar pelos seus pecados. (Por alguma razão o livro que mais liam era o Siddharta.) Se quiser saber se um amigo, colega ou familiar seu sofre de SIDA (antes de denunciá-lo às autoridades competentes de Teerão) faça-lhe uma simples pergunta rasteira. No meio de uma conversa qualquer, pergunte-lhe de rajada "É verdade, ó Mascarenhas, tu tens SIDA...?" Se ele corar, apanhou-o. Se não corar, pode safar-se, com a continuação da frase: "É verdade, ó Mascarenhas, tu tens sida... bordado por aqueles vendedores de enciclopédias que andam por aí?" E, sobretudo, não se submeta jamais a qualquer transfusão de sangue. Caso sofra um acidente na estrada que lhe crie um desejo repentino de três ou quatro litros de Rh, resista à tentação e prefira vinhos tintos de marca ou (melhor ainda) a Água das Pedras. Se morrer, pode morrer descansado, que não morreu de SIDA. Por muito que nos digam o contrário todos esses investigadores e especialistas da SIDA que andam para aí a desmentir os diagnósticos abalizados dos jornais a SIDA veio a Portugal para ficar. Aliás, esses investigadores todos, de tanto andarem a mexer no vírus, devem estar mais que preocupantemente infectados. Cuidado, portanto, com o que eles dizem. Sempre que abrirem a boca, lembre-se que a SIDA também se pode transmitir (popularmente) pela saliva. É que no fundo, nada nos prova que, no fundo, no fundo, seja em estado latente, seja em estado lastimável, não estejamos todos já a sofrer de SIDA. Aquela dor de cabeça do mês passado... o formigueiro nas narinas que sentiu ainda ontem... quando encostou o nariz à tomada para ver se tinha electricidade... as picadas no peito que está sempre a sentir... cada vez que vai roubar mel às colmeias... o que é que julga que tudo isso quer dizer? Tudo aponta para a SIDA. E, pior que os mísseis nucleares, a SIDA está hoje apontada para Portugal. Haverá esperança? Bem... (adoptando agora o esquema e as marcações de Yves Montand na televisão)... As eleições legislativas estão à porta e não são poucos a querer resolver os problemas com que se debate a sociedade portuguesa... há possibilidade de petróleo em Viana do Castelo... as obras da Rua do Carmo prosseguem a ritmo acelerado... o concurso do Tempo 318 continua a dar prémios maravilhosos aos leitores... e, mais que tudo, o Verão está quase a acabar e a Imprensa poderá voltar à normalidade, acabando assim com esta terrível epidemia de SIDA que tem assolado tão tragicamente as redacções de Portugal. SINAIS Os ricos nunca pagam a crise mas preocupam-se sempre em dar uma vista de olhos na factura, antes de mandá-la descer à consideração das classes operárias.

Discutíamos a nova semiótica fiscal, segundo a qual os novos impostos recairão, nas imortais palavras de Alípio Dias, sobre os sinais exteriores de riqueza. Era um novo conceito, a exigir uma nova resposta: a grande evasão fiscal, com Steve McQueen e tudo. Já tínhamos chegado a acordo: a estratégia evasionista consistia em interiorizar os sinais de riqueza. A operação é antiga. Quantos de nós não entrámos já no Tavares para encontrar amigos endinheirados com o intuito expresso de lhes pedir umas quantias emprestadas? Quando eles respondem com a boca cheia de trufas, que estão lisos, e reduzidos a comer fungos desenterrados por porcos, estão efectivamente a interiorizar um sinal de riqueza. Um dos nossos amigos acaba de interiorizar o seu Porsche 928 num velho Volkswagen 1200. Por fora, parece um refugo de sinistrado, mas anda a 220 km por hora, tem ar condicionado e os estofos são de arminho maciço forrado a oleado. Os compradores de Mercedes, que Ernâni Lopes já mandou averiguar, estão a interiorizá-los freneticamente: pintam-nos de verde e preto, instalam um taxímetro, põem um boné e andam por aí, de hotel de luxo em hotel de luxo, com o cartãozinho que diz "REFEIÇÃO" no pára-brisas. Pintados de verde e preto, porém, marcas como os Rolls e Ferraris dão um pouco nas vistas à porta de casa. Na alimentação, os ricos comem os seus bifes directamente expedidos do Escondidinho do Porto em marmitas de alumínio, sentados em recintos com sinais exteriores de pobreza, co320 tovelo-a-cotovelo com os trabalhadores das obras. Mandam as criadas encher garrafões de cinco litros com Chateau Cheval Blanc 1954, e compram grades inteiras de uísque português para encher as garrafas do bom malte escocês a que estão irremediavelmente habituados. O conteúdo original das garrafas utilizam-no para desinfectar a canalização da casa de banho ou para tira-nódoas. Da mesma maneira, tiram o interior do bom queijo flamengo nacional (que é um útil substituto de massa de vidraceiro) e estofam a esfera oca com Stilton e Gruyère; escondem os seus exemplares do Wall Street Journal dentro das folhas exteriores de A Bola, vestem um fato-macaco Setenave por cima do smoking, tirando-o apenas quando estão entre gente de confiança; nos clubes nocturnos onde têm garrafa, substituem-na por uma garrafa de Sagres de litro e enchem-na de champanhe: e, quando viajam de Cascais para Lisboa, vão de segunda classe até à Cruz Quebrada e depois apanham o avião privativo, escondido na fábrica de fermentos do amigo, para Gstaad ou St. Moritz. Há, porém, sinais exteriores de riqueza que só dificilmente se interiorizam: um gosto pela fase hollywoodiana de René Clair, ou uma inexplicável ternura pela música de Virginia Astley, por exemplo. Mas esses não são ainda tributáveis. Outro grande problema é a habitação. Aqui a única hipótese é a da mansão subterrânea. Escondem os seus solares nos alicerces, e por cima, onde dantes eram os jardins babilonescos, eregem uma pequena barraca, com alçapão secreto. Quando isto não é possível, dormem nos quartos dos criados, e, quando o homenzinho do fisco bate à porta, dizem, sempre a limpar as mãos ao avental e a falar numa pronúncia duriense, que os "senhores não estão, foram para a Jamaica, e há meses que não recebemos ordenado". com um pouco de imaginação, os sinais exteriores de riqueza interiorizam-se bem. Para o dinheiro, não há nada como interiorizá-lo num dos cofres-fortes de um bom banco suíço. As piscinas devem ser cheias de trutas e um letreiro deve ser colocado perto do portão dizendo "VIVEIROS DA QUINTA DA MARINHA" ou seja o que for. A ideia geral, portanto, é transformar todos os objectos de luxo em coisas utilitárias, im-

321 prescindíveis e, evidentemente, dando a inefável aparência < estarem a funcionar a bem da Nação. Pode ser difícil, no entanto. Os Portugueses, afinal, são pei tos é na operação contrária em revelar sinais de riqueza on" ela não existe de todo. Por isso, os estrangeiros que nos vu tam, vendo os restaurantes e clubes nocturnos, as estradas e centros comerciais sempre cheios, estranham os nosso défio Isso contudo, é o proletariado, porque os verdadeiramente cos estarão todos, por ora, underground... SNOB O snobismo, como se sabe, nunca entra em crise quando entra uma crise simplesmente muda, resignadamente, de figura. Em Portugal, por esta época, que o próprio Governo reconhece não ser excepcionalmente deliciosa, vai por isso surgindo uma magnífica prova da resistência desta atitude à desesperada epidemia das vulgaridades materiais: é o snobismo da pobreza, e dirige-se exclusivamente ao vexame dos possidónios. O problema era, como sempre, irrisório: como continuar a ser snob sem gastar dinheiro? Sem poder viajar, comprar livros estrangeiros, ou pavilhões de esgrima no Liechtenstein como manter a altaneira atitude que garantia fazer desmaiar o elástico das peúgas do mais insolente e erudito maitre d'hotel? Um snob não se entrega jamais à vulgaridade do que os parolos chamam "o debate ideológico" e, embora algo lhe custe, no contexto político português, abster-se de ter uma opinião acerca da maneira como o país é governado (já que exprimi-la estaria sempre fora de questão), conseguiu mesmo assim desenvolver um edifício mental adequado. Para o novo snob português, portanto, "todos os governos são bons", porque, tal como outras ocupações de que nunca jamais se fala (exterminadores de parasitas, desentupidores de esgotos), "alguém tem de o fazer". Enfim, como os caixotes de lixo têm de ser despejados, e os mortos têm de ser barbeados, o país tem de ser, admita-se, governado. Só uma crise aguda, como é a nossa, pode ajudar a distinguir os verdadeiros snobs dos simplesmente possidónios sobretudo se considerarmos que estes últimos tendem a ter mais dinheiro do que os primeiros, até porque o mercado é mais possidónio que snob (para o qual um mercado é um sítio onde se vende hortaliça). 323 Como é que o snob se vinga? Vinga-se através da arte do fa&m tio. Um verdadeiro snob nunca se entusiasma, senão na perrna- nente e desdenhosa surpresa que conseguem continuar a causar-lhe os entusiasmos histéricos dos possidónios, para quem| tudo é "óp-ti-mo" e "in-dis-pen-sá-vel" e si-la-bi-camen-te di-vi-| -di- do, muito devagarinho para não tropeçar numa palavraj comprida. O snob não compreende, porque, para ele, nunca háj nada para fazer, em lado algum e em circunstância nenhuma, O possidónio insiste nos discos importados e importantes. O snob, em contrapartida, odeia qualquer tipo de "música enla- f tada" e suportaria um ou outro concerto, não fossem as multinl does que lá parecem estar continuamente acampadas e que dãosi o sentido ao hediondo verbo "acorrer". O snob procura, sobretudo, o silêncio. Contudo, a moda re^ f cente do "silêncio" perturba-o ao ponto de lhe desafinar o deli-; cado equilíbrio da trompa de Eustáquio, condicionada comportamentalmente ao som do suave deslizar dos nenúfares da Primavera ancestral de Petrogrado, levemente abafado pelas sedas do regaço da princesa Alexandra, onde estimava deitar a cabeça sempre que se adivinhava uma probabilidade de ficar súbitamente cansado. O possidónio, para quem "Petrogrado" será talvez a marca \ soviética de "Camping Gaz", é doido por "cultura". O snob \ acha que "cultura" é saber o que se faz em

última análise, aos \ caroços da cereja e aos guardanapos. O possidónio escolhe cri- s teriosamente as peças de teatro que vai ver em Lisboa, e para mais vai vê-las, mesmo sem textos de apoio. O snob também gosta muito de teatro, mas nunca vai, porque gosta muito de f teatro. Para o snob, o cinema é como o circo: um bom entretenimento para as massas, tolerável como hábito ocasional naqueles que não sabem ler. As massas, para o verdadeiro snob, são toda a gente, com excepção de um ou dois amigos que, mesmo assim, pactuam periodicamente com elas sendo inclusivamente vistas em público na companhia delas, nas mesmas auto-estradas, se bem que sempre fora de mão. Mas o snob, ao contrário do possidónio, gosta genuinamente do Povo. Até tem em casa livros com gravuras antigas Dele, e mais de um volume de ligeiros ensaios metafísicos acerca da 324 intrínseca Bondade Dele. O possidónio insiste em proclamar que O despreza e se tem Algum Elemento Dele na família (geralmente tem) esconde-o fanaticamente, ou na cozinha, ou no álbum familiar de fotografias, disfarçado com uma capa que diz "Camponeses de Aljustrel Alguns Retratos". O possidónio viaja em carros de qualidade, porque "não dá estar desconfortável". O snob considera que qualquer automóvel é sempre "um transporte público" e logo um assunto grosseiro. Por isso, anda a pé, como diz que se fazia até recentemente, antes da nefasta invenção do vapor, e logo do cavalo tecnologicamente alienado, com problemas do miocárdio, e graves perturbações no custo actual. O possidónio vai a "bons restaurantes e bares", o snob para quem nada é "bom", no sentido de se poder considerar inteiramente próprio para consumo, fica horas em casa à espera de ser servido, acabando por se servir a si próprio, porque não está para maçadas, ou sequer para contratar um criada. Se, por acaso, é obrigado a sair, aproveita para enxovalhar o próximo num dos bares possidónios da cidade. Chega com um magro volume de versos, escrito numa língua morta à escolha dele; senta-se a um canto com as pernas cruzadas e pede secamente um copo de água, frisando, com o lábio superior a encaracolar de irreprimível desdém, "sem gelo". Se o criado comete a indelicadeza de indagar se "é do Luso?", ele responde "Não, sou de Viana do Castelo, mas deixe correr a torneira à mesma". O teste da barata, para distinguir snobs de possidónios é dizer-lhes "Você é um snob!" O possidónio fica encantado, porque, para ele, snob quer dizer "superior". O snob, em contrapartida, fica profundamente insultado, porque a palavra lhe parece tão absolutamente possidónia... O snob, finalmente, distingue-se pelos meios de expressão. Enquanto que o possidónio utiliza todos os meios ao seu dispor (incluindo, nos piores casos, a "linguagem", o "corpo" ou um romance autobiográfico acerca de ambos), o snob dispõe apenas das sobrancelhas e das narinas, erguendo-as e abrindo-as com precisão milimétrica, conforme o grau de desprazer que lhe causam. O possidónio vive num estado de permanente fascínio pelo estrangeiro e de profunda repulsa por Portugal. Para o snob, porém, todos os países são igualmente maus, embora Portugal 325 seja liminarmente tolerável, porque calhou ser em Portugal quef ele vive e daí ter de fazer o esforço de, na medida do possível,! liminarmente tolerá-lo. | Enquanto que o possidónio se lamenta de não viver em Noval Iorque, o snob olha para ele como se este fosse uma espécie| inferior de emigrante: o modelo frustrado, incapaz de se pôr ai andar para onde verá destruírem-se as suas pomposas ilusões,! só porque tem medo que a sua mala Gucci, de matiz castanhoclaro, fabricada em Linda-a-Velha sob licença de Carlos Peres,! se confunda com as malas de cartão dos primos não muito] afastados que estão dia e noite no aeroporto, à espera de embaraçá-lo. ]

O snob português de 1984 conseguiu o feito notável de olhar\ de cima (para ele um evidente pleonasmo) para a crise. Tornou-| -se mais pobre que a pobreza e, com este apagado exercício dei sublime devoção às coisas simples da vida (como o pão, a água,! e o pão e a água), deu-se ao luxo de enriquecer à custa dela. Espiritualmente, como é claro, até aparecer outra maneira,! de ir num instante a Dublin para comprar uísque em alambi- que de cobre e poesia em edição de autor. "SÓ SEI" O programa "Opinião Pública" da RTP é uma divertidíssima oportunidade para ouvir o Próprio Povo a desabafar acerca do que o aflige. Aprendem-se com ele algumas características notáveis do modo português de falar em público. A mais interessante e inovadora é, sem dúvida, a utilização de um novo verbo. Pergunta o repórter, por exemplo, o que é que o Popular acha deste novo Governo. O Popular responde invariavelmente: Ó amigo, eu disso não percebo nada, eu só sei é que tenho lá em casa oito filhos e não tenho pão para lhes dar porque já não recebo ordenado há seis meses." O repórter passa então para uma Popular. Pergunta "A senhora o que acha da entrada de Portugal para a CEE?" Ela não hesita: "Olhe, isso a mim não me diz nada. Eu só sei que o meu marido é doente, já não trabalha vai para vinte anos e a gente vive numa barraca mais sete famílias ciganas e a Câmara não há maneira de nos arranjar uma casa..." Este verbo, o verbo sósaber, é exclusivamente português. Eu sósei, Tu sósabes, Ele sósabe, Nós sósabemos, Vós sósabeis, Eles sósabem. O Português é aquele que, em vez de saber, ou dizer que não sabe, sósabe. Sósaber é uma maneira de responder a uma pergunta concreta com uma declaração completamente desligada e irrelevante. Indaga-se "Que me diz das candidaturas para as presidenciais?" E pronunciam-se "Isso é tudo muito bonita, mas eu sósei que recebo 432$50 por mês de reforma, pago 3SO$00 de renda de casa e o resto não me chega para nada". Sósaber é uma mono-epistemologia de grande originalidade. Divide o conhecimento humano em duas áreas: o saber, que é uma coisa bastante reles e aldrabada e que não interessa a ninguém (a não ser aos políticos); e o sósaber, que é a verdadeira substância da vida e que se Úga ao preço dos frangos, à má 327 educação dos condutores da Carris, e ao péssimo estado de saú" de dos cônjuges. A área do saber corresponde àquilo tudo que él muito bonito mas que não serve para pagar as contas ao fim dol mês. A área do sósaber, em contrapartida, está exclusivamente! reservada às coisas realmente fundamentais. Como é que o Povo diz o que sósabe? Nunca falha: é aotjí gritos. Ponha-se um microfone à frente do serralheiro mais pacato e ela desata automaticamente aos berros. Porquê? Se or>| servarmos como os populares falam ao telefone, sobretudo em chamadas interurbanas, ficamos logo esclarecidos. Em ambas as situações, imaginam o comprimento exacto do fio eléctrica"! que vai do ponto de emissão ao ponto de recepção. Depois,"! limitam-se a regular o volume sonoro da voz, de acordo com asíf grandes distâncias em causa. Por alguma razão os operadores! de som da RTP usam os auscultadores aos ombros. Em muito*! casos, quando as entrevistas são recolhidas na nossa própria área concelhia, nem é preciso ter o som do televisor ligado:*! basta abrir as janelas e ouvir em directo. m Podiam mesmo assim gritar calmamente, mas não. Há qualquer coisa numa câmara de televisão que desequilibra e desaus-fl tina a população. À medida certa em que vão enrouquecendo, vão proporcionalmente enlouquecendo. Parecem estar sempre', mesmo à beirinha de bater no repórter. Este, por sua vez, fica> consultas no dentista e os programas da televisão, tudo sairá "| tempo, na "data anunciada" de que nos falou Bandarra. , As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for. "Mais vale tarde do que nunca" diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada,'! nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que valha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?) é quando mais bem se não fazem as | coisas que há para fazer. A "manhã" não existe. Dá-se a contracção (de "a" e

de "manhã") e vê-se que a única coisa que(< \ existe em Portugal é "Amanhã". TÍTULOS Não sei se repararam, há uma nova linguagem nos nossos jornais. Ou melhor: um discurso. Ou melhor ainda: um dizer. Ou ainda melhor: uma fala. Ou melhor ainda: um outro olhar. É nos títulos dos artigos pede-se desculpa, dos textos que mais facilmente se vê pelo olhar, está visto a lógica deste tipo muito especial de comunicação. (Pre)sente-se que se está na presença desta nova modalidade cada vez que (s)urgem certas palavras e (a)parecem estes (par)entes(es) (irrit)antes. Introduzindo num computador todos os títulos aparecidos nos jornais durante os últimos cinco anos, chega-se finalmente a uma matriz que permite fabricar títulos para toda a espécie de artigos, num estilo que é moderno e ao gosto de quem os escreve e de quem os lê. Para obter milhares de títulos destes, basta utilizar todas as permutações que permite a matriz. É como a magia! A sério! Assim, dividindo os componentes em quatro "módulos" e "jogando" com as estruturas sintácticas que logo generosamente se oferecem, é possível um número quase infinito de sonantes cabeçalhos. É só ir colocando as diversas palavras nas ranhuras respectivas!... Alguns exemplos: usando a estrutura n", tem-se: "Entre o crepúsculo e o labirinto", ou "Entre o precário e o imaginário", ou "Entre a fruição e o oculto". Qualquer deste títulos fica bem numa nota crítica ou num artigo sobre qualquer das artes, seja qual for p artista de que se esteja a falar ou a obra a que se refere. É esta a grande utilidade da matriz: serve para tudo e para todos, e para os primos e poemas todos eles também. Que tal "O Lugar do Obscuro, do Esplêndido no Eixo Feminino da Transgressão" para um artigo sobre uma das seguintes coisas: 335 as novas romancistas portuguesas, as velhas cineastas tailande"| sãs ou o trabalho quotidiano das bordadeiras de Porto Santoll Comece-se, porém, pelas estruturas simples, como "Depojm do Mito", ou "Para Nomear o Indizível" ou "Representar a SeditM cão", e progrida-se para as formas mais sofisticadas com a lenti- dão que convém. Seja qual for a combinação que encontrara pode ter a certeza que fará sentido. Ou melhor: fará um sentidoM Pode ter o relativo azar de não querer dizer nada, mas "Entre M Querer e o Dizer" é sempre "ludicamente incontomável" a exigência da compreensão. A "Libertação do Paradigma Impossível dm Sentido", ou seja, a necessidade de deixarmos de prestar atenJ cão às insignificâncias da perceptibilidade ("A Sublime Insignia ficância do Significado Manifesto") é, sejamos claros, extrema*! mente imperativa. Use a matriz a seu bel-prazer e depois experimente colar osj títulos que arranjar à cabeça dos artigos que não consegue com- preender, nos jornais e nas revistas que habitualmente tenta] descodificar: verá que são efectivamente, quiçá eroticamente, in- termutáveis. E o mais das vezes, idênticos aos que lá estavam antes. Não se esqueça de pôr o nome ou o assunto relevante antes! do título, juntamente com os dois pontinhos da ordem. Por ex:| "Cargaleiro: A Liturgia Impossível do Espaço no Devir Inenarrá-í vel", ou "Mishima no Paraguai: Porquê Nomear a Espantosa Evidência do Olhar?" E não se preocupe caso fique só com uma catrefa de títulos, 9 com algum jeito conseguirá construir artigos inteiros com esta] simples matriz. E não desanime, porque muitos já o fizeram e| vão fazendo. Cá o esperamos. MATRIZ PARA CONSTRUIR TÍTULOS MODERNOS

SUBSTANTIVOS (MÓDULO 1): Mito, Desejo, Elipse, Evidência, Poder, Silêncio, Nome, Lugar, Texto, Corpo, Ritual, Universo, Ordem, Percurso, Linguagem, Interior, Matriz, Fruição, Liturgia, Vertigem, Domínio, Ausência, Eixo, Fruição, Sinal, Acto, Labirinto, Olhar, Crepúsculo, Sedução, Paixão, Leitura, Esplendor, Prazer, 'O Real', Paradigma, Fantasma, Dialéctica, 'O Eu', 'O Outro', 'O Mesmo', Obsessão, Fala, Espaço, Estrutura, Objecto, Sujeito, Cenário, Exercício, Consumo, Tabu, Discurso, Jogo, Imaginário, Sentido, Modo, Fascínio, Transgressão, Cumplicidade, Registo, Efabulação, Referência. VERBOS (MÓDULO 2): Dizer, Intuir, Jogar, Comunicar, Fruir, Sentir, Perseguir, Representar, Encenar, Afirmar, Libertar, Devir, Problematizar, Olhar, Pressentir, Ceder, Celebrar, Desmistificar, Desmontar, Interrogar, Nomear, Assumir, Ocultar, Revelar, Habitar, Inscrever, Decompor. ADJECTIVOS (MÓDULO 3): Esplêndido, Cíclico, Precário, Invisível, Indisfarçável, Sublime, Obscuro, Òbnóxio, Notável, Incontomável, Funesto, Proibido, Espantoso, Impossível, Execrável, Urgente, Indispensável, Feminino, Extremo, Plural, Inenarrável, Oculto, Frágil, Curioso, Misterioso, Último, Latente, Manifesto, Quotidiano, Relevante, Intimista. ADVÉRBIOS (MÓDULO 4): Extremamente, Singularmente, Efectivamente, Verticalmente, Completamente, Insuportavelmente, Divinamente, Excessivamente, Eroticamente, Absolutamente, Distintamente, Ininterruptamente, Explicitamente, Poderosamente, Ludicamente. 337 ESTRUTURAS 1. ENTRE 01 A (...1,2 OU 3...) E O/A (...1,2 ou 3...) 2. PARA UM/UMA NOVO/NOVA (... ou 2...)DO/DA (... ou 2...) 3. O LUGAR ou 2...)

DOIDA (...,2ou3...) Pode continuar com: NO/NA (... ou 2...) (...3...) DOIDA (...

4. O/A (...1,2...ou 3...)£O/ IA (...1,2 ou 3) 5. DOIDA (...1,2 ou 3...) AO/A (...1,2 ou 3...) 6. (...2...) O/A ( ou 3...) 7. PAflA ALÉAÍ DO/DA (, 2 ou 3...) 8. O/A (...3...) (... ou 2...) Pode continuar com: DÓI IDA (...1,2 ou 3...) 9. O/A (...1,2 ou 3...) ENQUANTO (...!...) DÓI IDA (...1,2 ou 3...) 10. OIA (...1,2 ou 3...) (...4...) (...3...) DOIDA (...1,2 ou 3...) 11. DEPOIS DOIDA (...1,2 ou 3...) OIA (...1,2 ou 3...)

12. PARA (...2...) O/A (... ou 3...) (...4...) Para construir os seus títulos, basta colocar as palavras escolhidas nas ranhuras indicadas. T0RGA Em vão folheio as nossas revistas literárias nada. No Colóquio-Letras nem uma palavra. Nos jornais nenhures. Não. É tal a desatenção e tanta a apatia da nossa classe intelectual, que nem uma só alma reparou. E típico. E é confrangedor. Miguel Torga acaba de escrever e publicar uma nova colecção de contos e ninguém reparou... Esta indiferença terá algo a ver com o facto de Torga tê-los escrito em norueguês? Possivelmente. A nossa xenofobia lendária triunfa mais uma vez. Torga escreveu um livro "em estrangeiro" sshhh! Vamos fingir que não existe. Esperemos pela tradução. Shhh! Mas eu não privo destas conspirações provincianas não posso! Quando o nosso maior escritor habilitado a passar receitas médicas, tem a erudição e a coragem bastante para escrever um livro numa língua pouco peninsular como é a norueguesa, a honra da nossa cultura obriga-me a romper com esse cerco de vil silêncio. Pois sim. É assim mesmo. Tal como Samuel Beckett, Miguel Torga optou pela via do bilinguismo, num esforço arrojado de renovar a sua obra. Fê-lo melhor ou pior? Já se verá. O que importa é que o fez. Quantas vezes ouvimos, da boca de escritores portugueses, dizer "Estou a escrever uns contos em norueguês" só para sermos mais tarde desiludidos com o não-aparecimento da prometida obra? Ha? Quantas? Ainda recentemente, quando o nosso segundo melhor escritor-médico visitou Oslo (estou a falar de si, Fernando Namora!), as hostes animaram-se, pensando que estaria prestes a ser cumprida essa antiga promessa... mas as esperanças de todos nós não encontraram resposta. A Matilde, sim nós, não! Ó Ibsen, Hamsun, Christiansen e Falkberget fostes trocados 339 por uma Matilde, mas aí está Miguel Torga para respeitar vossa memória e apagar essa afronta. A LÍNGUA FORTE Os leitores já quererão saber mais acerca da obra em si. PasJI semos pois a ela. Chama-se Fortellinger Fra Fjellet (uma traducão literal dar-nos-ia "Uma Língua Forte Para Filetes"), saiqi sob a chancela prestigiada da Solum Forlag A/S, e pode enconjj trar-se muito facilmente na Livraria Garborg, ali à BygdoygateJI n°. 27, em Hovikodden (Baerum, a 25 minutos de Oslo). O prefácio, que se deixa ler sem ser por isso brilhante, é dei Leif Sletsje. Aí lemos que Miguel Torga, ao contrário do qutl nos assegura o senso comum e o saber universitário, não é, d*é facto, o nome verdadeiro do escritor. A pista que Sletsje avança Adolfo Rocha parece-me atilada. Em plena época nazi> tão pétrea quanto hitleriana, o autor terá perdido o amor ao nome e mudado-o para outra coisa qualquer, que agora não me ocorre. E o livro em si? Presta? Comove? Inova? Acrescenta? Confesso que hesito em responder. Hesito porque o livro me é totalmente incompreensível, estando todo escrito em norueguês, É língua que não domino, mas não é por isso que eu me deixo, por assim dizer, dominar por ela. Não. Hoje em dia a ciência da semiótica atinge um desenvolvimento que me permite fazer uma leitura deste livro. São signos afinal estas marcas no papel. Se os abanarmos deixam desprender, obtusamente, o seu significado ou, mais precisamente, um dos seus significados. Abanemos então, vigorosamente, estas inscrições, esperando que cedam a sua translúcida e opaca transparência à límpida e baça lupa da semió-

tica. OS NOMES E OS LUGARES Rocha, ou Torga próprio nome. Po340

o nome não se deixa assentar. A (des)- -Ordem dos Médicos (dês) organiza-se no

dera então dizer-se que, se Fernando não escreve, é porque Namora (o real, Matilde, o velho-neo). Também o seu colega, Rocha-ou-Torga não escreve, no sentido que a palavra tem de leveza. Rocha-ouTorga não escreve outorga. Veja- se a seguinte passagem do livro sob análise: "Da knirker detfprst

d$ren til Valentim; han Kommer ut, mager og kledt

svartstripet bomullsttfy" (pág. 11). Pesado não é? Custa, não custa? Mas uma segunda leitura dá-nos o álibi. Na verdade, a leveza sacrificase à realidade. E que realidade? A granítica dureza de Trás-os-Montes. Sim, é ela que se instala trás-aspalavras, reproduzindo-se. Ou já viram melhor descrição dessa nossa província que a última palavra do período citado? Bomullsttfy pronuncia-se e saboreia-se, imediatamente o ar transmontano. O Bomullst0y de Torga. Mas continuemos nos nomes. Na verdade, para um escritor que se quer realista, destoam um bocado aqueles nomes portugueses nuns contos que pretendem espelhar um quotidiano rural norueguês. Torga não terá tido acesso a uma lista de nomes próprios noruegueses? porventura; mas não deixa de ser chocante. Aqui ofereço algumas sugestões para uma segunda edição: Knut, Henrik, Johan, Aasmund, B0jrnstjerne; para que não voltem a acontecer dislates etnocêntricos como este que se encontra na página: "Jo, dei var jeg som drepte mannen te' Gertrudes, han Man- nho... tok livet av Adriano ogsa..." De facto, cada vez que Torga nos prende no seu enredo, cativando-nos com as suas severas descrições dos costumes e das gentes da Noruega, surgem rotundos nomes portugueses que quebram o encanto. Estamos nós enlevados com ritmo de uma frase como "Já, jeg. Jeg harjo sagt at jeg ikke har noe med meg og at jeg ikke kan stoppe", admirável pela sua cadência monossilábica, e logo o fiorde da escrita embate violentamente numa barragem transmontana de Faustinos, Fagundes, Robalos e Gaspares. Torga, poderá argumentar que "Uma Língua Forte Para Filetes" não procura espelhar a realidade do país de Thor Heyerdahl e dos Vikings, mas sim a vida quotidiana do povo português de Trás-os-Montes. Poderá argumentar, mas não pega! 341 Ou uma coisa ou outra, que diabo! Eu, conheço muito befl Trás-os-Montes, as suas vilas e populações, nunca em toda < minha vida ouvi dizer, da boca de um transmontano, exclama coes como aquelas que se espalham por este livro. Desafi Torga a mostrar-me no mapa da província onde é que se faj assim sem ser gago: "Vel, vel... Nar du ikke vi'sa. Men det er verstfor ungen sjol.,, Du er'k e Klok!" (pág. 42) Vel, vel... ah! ah! Conta-me outra, Adolfo! AS ANEDOTAS í 4 Mas nem tudo são atoardas nesta estreia de Miguel Torga,

O facto de escrever numa língua estranha não lhe fez perdd aquele agudo e mordaz sentido de humor ao qual quase ninguém acha graça alguma. , Só um exemplo, para abrir o apetite... Na página 41, depoii de uma tal Zulrnira ter, segundo as palavras do autor, "haddt Guilherme da Póvoa vaert kar for", um personagem que tanto pode ser o Guilherme da Póvoa como não (o texto é pouco claro), chega-se ao pé dela (ao que se supõe) e pergunta-lhe" todo bonacheirão e arrogante, esperando indubitavelmente ar* relia-la: "Huser du pá fjellet ved Vessadios?" A resposta de Zulmira parece-me brilhante. Num ápice, acha as palavras mais capazes de, por assim dizer, virar o feitiço contra o feiticeiro: "Ikke snakk tull na, jeg kjenner deg nok!" É assim mesmo, mulher! O leitor ri, participando na resposta manhosa de Zulmira, como se ele próprio a tivesse dado. Tem ele alguma coisa que vir perguntar se ela tinha levado os filetes para Vessadios? E a confiança daquele "pá"? Foi violenta a resposta de Zulmira? Ofende as sensibilidades puritanas? Sem dúvida. Agora que ele a mereceu... A imagem de Zulmira a embrulhar os filetes "Fjellet" em tule "tull" para levá-los ao "snakk" (bar) é das melhores de todo o livro. Escusavam-se, talvez, os dois palavrões do fim, mas vá lá aos poetas da rudeza não se pode negar um ou outro desabafo rústico... 342 O REAL E O SURREAL Um ou outro humor, menos popular, surge, aqui e ali, ao longo do livro. Talvez o mais interessante, do ponto de vista da literatura portuguesa contemporânea, seja aquele mais nitidamente influenciado pelos nossos surrealistas. Surrealistas? Sim, surrealistas não é gralha. Nem Torga, pelos vistos, foi imune àquela graciosa corrente. É desastrado nas imagens? Sim. É derivativo? É. É chato como o herpes? Ah, o mais possível! Mas o que importa é que, nesta fase adiantada da sua vida, tenha a juventude bastante para dar a sua perninha nesse baile. Ora avaliem por vós próprios: "Han slepte seg videre med dei som var igjen av ham" (Hans dormiu sem ver nada daquele som das igrejas e do fiambre) (pág. 33). "Menfyren hadde karde med seg" (A minha filha fizera-se cara com o cego) (pág. 107). "Hu'er visst bra, jarda? Det var Raboto, han var alltid den siste som sadde der traktene" (Por acaso viste o soutien, Jordão? Sabes, é que foi o Raboto que mo deu, quando estava a nevar Tide e o meu quisto tornava-me triste nesta Traquitânia") (pág. 66). Surrealismo ou senilidade? Respondam os sábios, que eu inclino-me a defender Torga, no sentido de um rompimento com a sua obra anterior, toda ela, como se sabe, escrita de um modo castigador. O CRIME E O CASTIGO No entanto, ainda se encontram, ao longo destes contos, instâncias dos velhos maus hábitos de Torga, que contrastam vivamente com a frescura das suas

experiências surrealistas. Efeito de escrever numa língua estrangeira? Não. Mero pretensiosismo? Claro. Torga assaltou o dicionário norueguês para encontrar as palavras mais compridas e difíceis de compreender. Não há, de facto, justificação alguma, para este atentado à paciência do leitor: De hadde htfygafler og hakker gene, sã etter fordypninger

hendene, gjennoms0kte tyknin- 343 bakken, oppskj0rtet og rasende st et kobbel

jakthunder" (pág. 34). Francamente! Parece o seu colega Namora a escrever! Tad coisa só para dizer que o Alípio está deprimido porque a si burra não come as ervas que lhe foram receitadas pelo Julà para a prisão de ventre! Em vez de estar para ali comjakthu ders e gjennoms0ktes porque é que não diz simplesmente que besta não defeca? Utilizando uma frase do próprio Torga "Fa det herre unna!" Ó Torga, fazes cada uma! "Uma Língua Forte Para Filetes" não é, de um modo gen uma obra tão fluente como se desejaria. Sentese que Torga quer libertar do porta-cargas do seu estilo tradicional, e escr ver mais aérea e etereamente, mediante a mocidade que II garantiria o voo de uma nova língua. Sente-se que é isso que e quer. Lamento dizer, porém, que querer nem sempre é pode sobretudo quando se apresentam para consumo público tn chos como este: "Sá det trengs ikke flere

treskinga, altsa?" (pág. 27).

Chiça, até faz eco nos tímpanos... Experimentem lá os lê tores dizer a frase muito depressa num recinto público apinhi do de gente, e vejam se não a evacuam imediatamente. E fraí de polícia de choque. Não, Miguel Torga, não é frase de escr tor conotado com o Prémio Nobel. USOS E ABUSOS < Por fim, importa abordar a questão do estilo. É nítido que o autor se apaixonou pela sua língua nova, usando-a com entusiasmo e porque não dizê-lo? com uma desbragada parolicê. A questão do '0', por exemplo. Ao princípio, nas primeiras páginas, achamos graça. Sim senhor, é airoso, e até invulgar. Sim; pronto; é semioticamente aliciante a plenitude ferida; o útero devastado; o copo de papel que atravessa com a sua tra-* jectória um campo de baseball; a separação entre o Norte rico et o Sul pobre vá lá; pronto; não deixa de ter a sua piada. Até certo ponto... O pior é que Torga não sabe onde parar. Apanha-lhe o gosto logo na primeira página, e depois não quer outra coisa. E '0' 344 para aqui, e '0' para ali, e '0' por dá-cá-aquele-palheiro-norueguês. Na sexta página, já deixámos de achar graça. Na sétima, começa a fartar. E na oitava, já deitamos '0' por tud0 0 que é síti0. E quem diz '0' (devem ser poucos a dizer), diz também 'à' porque uma vez fincado o dente nesse gadget nunca mais lhe larga o osso. Culpas do experimentalismo? Referência a E. M. Melo e Castro? Claro. Obscuro. O ENREDO Obscuro também é todo o enredo. Aqui e ali percebe-se uma ou outra coisa familiar Eusébio (págs. 48, 49 e 75) ou Mondrões (págs. 21 e 30), ou Santa Eufemia (págs. 60-64) mas tudo o mais é acintosamente difícil. Este livro não foi escrito para o leitor impaciente e fugaz que gosta de fazer provas de velocidade com Olgas e Teolindas. Não. Cada frase leva aproximadamente trinta

minutos a não compreender. Quando se consegue compreender que não é possível compreender, passage à frase seguinte e começa-se de novo. É uma prova dura, incompatível com a tabela de colaborações do Expresso, pelo que direi apenas que o enredo não me parece grande coisa. Como diz um amigo meu, este julgamento é insuspeito, até porque não o li. Ficarei à espera da tradução. Não se apressem, porém, os editores portugueses. Posso esperar. Espero mesmo poder esperar o mais possível. TUI "A um tempo, brando e agreste, doce e acidulado..." Assim si descreve o desodorizante perfumado Sauvage da O'ki Sciential na sua nova embalagem verde, e leve, e fresca. E continua deá pretensiosamente: "Talvez um cântico à Vida, um hino à Afana* za." Inspirados por esta analogia, facilmente se supõe que Sinfonia Pastoral de Beethoven talvez seja um desodorizante! Está tudo ligado, evidentemente. Estamos em Portugal, njl podemos esquecê-lo (e mesmo que quiséssemos, não consegui ríamos). Aqui anda tudo ligado. Até um desodorizante não pod] ser só uma coisa para impedir os odores corporais. Tem a v3 com o corpo, e o corpo, que tem de ser constantemente repete sado, tem a ver com a alma, pelo que um simples desodorizanti também tem a ver com Descartes, já que também é uma media cão entre o interior (a um tempo, brando e agreste) e o exteríõrM um tempo, axila e sovaco). | Em Portugal, quando se fala de um romance, ninguém M contenta em falar de um romance. E diz-se "Mau do que um romance..." é o "retraio", de uma geração, ou de um país, ou dJ uma mulher-a-dias a coser as meias num dia de Verão. Os r* cabelo tanto como desejariam, nem o comércio de missangas e de bomais satisfazia, nessa altura, a procura nacional. , Os Zippies, por isso, são uma espécie simpática e híbrida de estranhos mutantes: por fora são quase como as pessoas nor- \ mais, mas, por dentro, são um festival rock de flores nos ca- ' belos e Cohen-Bendit no bolso traseiro dos jeans. , Os mais destacados Zippies aqueles que se distinguiram n na vida pública chamam-se todos, por uma estranha razão, Carlos. Há o Carlos Pinto Coelho, o Carlos Cruz, o Carlos 1 Mendes, o Carlos Vilas Boas, o Carlos Nuno Martins e muitos outros. (Estes dois últimos não se chamam Carlos, mas não se percebe porquê.) Os Zippies são, em primeiro lugar, francamente superiores ; aos congéneres estrangeiros de rabo-decavalo e jardineira, porque prezam o profissionalismo e não são, regra geral, subversivos frustrados. São os hippies profissionais, e caracterizam-se facilmente pela camisa aberta, ou, em casos prementes, pela camisola de gola alta. 358 Têm um ódio profundo e irracional à gravata e, ao fim-de-semana (o melhor programa Zippy dos nossos dias) voltam, aliviados ao trajo solto, jovem e livre da mocidade. Ouvem música Zippy (Leo Ferre, Serge Reggiani, Jacques Brel, Georges Moustaki, todos os brasileiros e Fernando Tordo) e lêem livros Zippies (Dinis Machado, Mário Zambujal, Fernando Dacosta, Eugênio de Andrade, Álvaro de Campos). Vivem, regra geral, na Quinta do Lambert ou na Encosta das Olaias e os mais afortunados têm uma quintarola na Outra Banda ("a dez minutos do Meço"), onde comungam com a natureza e praticam os vetustos rituais naturalistas que os ancestrais hippies lograram implantar. Os automóveis dos Zippies são sempre novinhos em folha, e comem sempre em restaurantes italianos. Bebem copos em bares de hotéis extremamente recentes (Penta, Alfa, Sheraton) e dançam no Whispers ou no Boogie Woogie. Os Zippies têm uma maneira particular de dançar que reflecte o facto de estarem no cruzamento preciso entre a dança cheek-to-cheek dos pais e a dança desagarrada dos filhos isto faz com que um par de Zippies esteja sempre a hesitar entre as duas, ora dando as mãos e fazendo rodopios de foxtrot, ora fazendo os possíveis por baixar a cabeça e obedecer aos ditames severos do funky (é assim que os Zippies conhecem o funk). Os Zippies não vêem televisão nem ouvem telefonia: fazem-nas (e, o mais das vezes, muito bem). Nunca se casam preferem "viver juntos" porque dizem que "o

casamento é só um papel". Quando viajam, vão invariavelmente a Nova Iorque, porque "é o único sítio onde ainda se pode viver", apesar de nenhum deles ter podido ainda lá viver. Os Zippies não falam comunicam. Não moram em casas habitam espaços que são uma forma de estar na vida. Na despensa escondem colecções inteiras de cartazes da Itau ("O amor é um pássaro verde"), e nas paredes têm já boas gravuras de Cargaleiro ou doutro artista Zippy bem sucedido. Há obviamente, Zippies excelentes e Zippies deprimentes, mas estão todos, duma forma ou doutra, no poder ou já a tocar à campainha. E quando se abre a porta saúdam-nos simpaticamente em código Zippy. "Tudo bem?" 359 COISAS Era eu pequenino a minha mãe pediu-me para bater umas claras em castelo. Naturalmente, despejei o conteúdo de uma garrafa de Água Castello para a tigela e tentei bater as tais claras dentro dela. Digo naturalmente porque, tal como aconteceu com as marcas registadas "Kleenex", "Xerox" ou "Polaroid", a marca "Castello" atingiu a rarissima fama de vir a significar todas as águas minerais gaseificadas que se servem com uísque, e nenhuma outra há, portuguesa ou estrangeira, que se lhe compare em frescura, em competência, e em agrado. Embora seja heresia, lá para

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as margens do rio Li vê t, não

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há prazer igual ao benefício

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que um uisquezinho com Cãs-

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tello pode conceder aos con-

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tentes bebedores desta nação,

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Dá-se uma espécie de milagre

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atávico quando se reúnem,

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num copo alto repleto de

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gelo, as místicas potências

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celtas da velha Escócia e da

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velha Lusitânia. Dir-se-ia uma reunião plurisse-

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cular, este casamento dos mágicos líquidos das nas- centes do Spey e dos rios ^ subterrâneos de Pizões- Js -Moura, já que as origens

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rácicas de escoceses e

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portugueses aí se relem-

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Alentejo. > O verdadeiro bebedor

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em grades de madeira, e anda sempre com uma delas no porta-bagagens do automóvel, sejam vazias a caminho da troca, sejam cheiinhas a caminho de casa. (Isto causa um agradável tilintar cada vez que se faz uma curva apertada.) Existem quatro tamanhos de garrafa à disposição dos Portugueses. Há umas muito pequeninas, tipo "giro", que se servem nas boítes somíticas e que não dão para nada. Seguem-se as garrafinhas clássicas, de 220 centilitres, que são as mais aconselháveis, chegando para um bom uisquezinho, com _^^ direito a um oportuno atesÍa(P tanço posterior. Quando se _|| tem companhia, opta-se pelas jf bojudas garafas de 345 centiliJ, tros, que chegam exactamente T para dois uisquezinhos, e duas M reabilitações. (Uma reabilitacão é quando se socorre um uísque convalescente através da adição de mais uísque, ^fc,\ mais gelo, e mais Castello.) sptljf^. Finalmente para aqueles '||fciy" países que sofrem da au"í, sência de Castello, existi tem umas garrafas baixi| nhãs e redondas, tipo "Export", que dão para dois uísques não tão bem , ^^ÍL " servidos como seria de **

^^È t^eseiar-

ITFlllf'ar ^s Prec-os são aosur- tneraí Jf damente baixos, consi- cada / derando o que deve o y^r sistema político portu^ guês à excelentíssima * JiS Sociedade das Águas de *|^^ Pizões-Moura S.A.R.. 363 PREÇO 35SOO F O Verdadeiro Almanaque

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Campos. A ficha técnica não é omissa e merece ser reproduzida pela inteireza das informações que transmite: "Composto por Manuel Teixeira. Paginado e imposto por Carlos Silva. Revisto pelo seu Director. Impresso por Francisco e António Prego. Papel e corte por Fernando Peres. Dobrado por Fernando Piloto, Laura, Helena e Manuela. Carimbado por Afonso Fialho. Transportado por Amónio Fernandes. Expedido por Alice Campos e Narcha." Só falta acrescentar: "Comprado por anónimos." com uma tiragem de 50 000 exemplares, vendidos ao preço convidadivo de 30$00, o Almanaque Borda d'Água é uma instituição por364 PiDtDOS A DI9THISUI&ONA DA EDITORIAL MINIORAFICA

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"'"""'H gjjja sgj pó," sível sobreviver. A edição de 19SI tem ainda, como atractivos: uma pá" gina dedicada a quatro bombeiro" famosos, juntamente com pequeno* apontamentos biográficos e fotogr"" fias; um anúncio do relançamento di famosa "Antologia Policial Minava* (6.' Série); mais de 20 ditados e coo" selhos ("Uma das grandes

votada t ser bom e leal para o teu CompaúiM' ro"); uma lista dos "Dez Mandami*' tos do Abade de Travanca" que s* destina aos "apreciadores da Ptngf* as regras básicas para se servirem vinhos; e muitos outros motivos de interesse. Por 30$00 não é possível pedir mais, ou receber tanto. A grande diferença entre o pastis marselhês e o anis português, à parte o paladar, a textura, a cor, o preço e a qualidade, é o raminho de anis dentro do português. Infelizmente, é raro ver a mocidade deste país entrar num bar e pedir "um anis escarchado, se faz favor". A quantidade de licores e outras destilações nacionais é tão grande quanto a imaginação dos cidadãos é pequena. "Escarchado" quer dizer "crespo, áspero", dizendo-se do anis obtido pela infusão em aguardente, dentro de uma garrafa, de um ramo aromático de anis sobre o qual vem cristalizar-se o açúcar (a "escarcha"), em virtude de um excesso de adoçamento (dixit Artur Bívar no seu magnífico Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa). O creme de anis da firma Henriques & Henriques (lema: "Bem Servir") é um dos mais apreciados sobretudo (imagina-se) nos círculos tauromáquicos tradicionais, que vêem no rótulo uma garantia da pureza ideológica do produto. O toureiro português que enfrenta 0 touro segura a capa de modo simultaneamente curioso e destemido, enquanto o animal avança, seguro de que não o espera qualquer traiçoeira espada assassina. Cada garrafa tem um litro e custa aproximadamente 287$50. 365 ML A "ARARUTA DO BRAZIL" é uma farinha alimentícia, detentora de seis medalhas de ouro e duas de prata, entre as quais uma da Grande Exposição do Rio de Janeiro de 1923 e outra na Grande Exposição Ibero-Americana de Sevilha. A araruta (porventura um aportuguesamento do inglês arrotoroot) é habitualmente consumida sob a forma de bolachas e acompanhada por uma ou mais chávenas de chá. Trata-se, de todos os pontos de vista, de uma forma aceitável de ingerência cultural brasileira na vida portuguesa. A araruta, ao contrário 366 de romancistas de terceira e de actrizes de novela que escrevem poemas eróticos, é um bem semiprecioso que se integra com facilidade tanto em bolachas como em farinhas alimentícias. O mesmo é verdadeiro em relação ao sumo de maracujá, leite de coco e outros produtos tropicais de que Portugal presentemente carece. Quanto aos restantes produtos tropicais, salvo as poucas excepções que inevitavelmente existem, e pondo de parte os encantos dúbios do exotismo, exerça-se a maior cautela e mantenha-se a maior vigilância. Os pedacinhos de atum "RISONHO" "também" são portugueses. Representam a alternativa gaiata, despreocupada e liberal do severo atum "Tenório". A imagem do rapaz saudável, a correr, quem sabe se para a missa, se para a escola, é das mais estimulantes que se conhecem na indústria portuguesa de conservas. Há quem a associe, injustamente, à alegria coradinha da Mocidade Portuguesa. Contudo, a análise microscópica da fivela do cinto, em tempo realizada pelo Instituto Charles Lepierre, revela uma ausência total de "S". Isto não significa, evidentemente, que Salazar não tenha sido, também ele, português. Uma das vantagens das conservas

portuguesas

que ainda não tem sido

convenientemente explorada é a sua enorme fiabilidade (como agora se diz, mesmo que não se|a de fiar) na alimentação dos gatos de estimação. Proliferam agora as comidas enlatadas para gatos, a preços CEE, com sabor a coelho, antílope e o diabo a sete. Porém, esquece-se o valor nutritivo e, mais que tudo, o forte e aportuguesado paladar, de uns pedacinhos de atum, de um sangacho de cavala e, quiçá, de umas carinhas de bacalhau em cebolada. Por um preço irrisório 40 ou 50 escudos pode facultar-se a qualquer gato uma experiência gastronómica incomparável. Em vez de adquirir as tais latas especializadas, ofereçam-se produtos nacionais. Os pedacinhos de atum "Risonho" são uma garantia de bem- estar felino. E para os seres humanos, que, não nos esqueçamos jamais, também são mamíferos, e, de qualquer maneira, também são organismos vivos, os pedacinhos de atum "RISONHO" também estão indicados para as mais variadas situações. Ao lanche, em cima de torradas ou para os leitores mais castiços ou viris ao pequeno-almoço, são uma prova de fé e de patriotismo. 367 kj S & 'd O atum "TENÓRIO" é dos poucos que ainda não foram à Televisão apresentar as suas reivindicações. Trata-se de um atum bastante antiquado, muito pouco dado aos aliciantes dos mass media. O rosto de Francisco Rodriguez Tenório que nos fita do centro da lata, realçado severamente por suíças longas e sobrolho carregado, é ele próprio uma garantia implacável de tradição e de honestidade. Não alinha nas campanhas publicitárias com que os atuns menores se procuram agraciar junto dos espectadores. O "Tenório" é o Ale368 !* V xandre Herculano dos atuns enlata* dos sóbrio, fidedigno, objecthtt,, e bom. A efígie de Dom Luís, R^(| de Portugal, protector da Expoai^ cão na Real Tapada em 1804, fabft -nos de um tempo passado, em qu* um atum ainda era um atum, mtf ! rei ainda era um rei, e os maré" ' ainda eram todos nossos. * [ Em parte alguma da embalagetOj ' se lêem adjectivos gratuitos. Não dUf!' "delicioso" nem "económico". NíflW diz nada. Nem sequer diz "de fadfe abertura" até porque a abertura í í saudavelmente dificílima. O atum \ "Tenório" não é atum para facilitara vida ao utente não tem embato*;gem de celofane com chave lá dowl tro. Nem uma coisa nem outra S&\ a lata e o atum. Presume, com justtíg ficada arrogância, que a qualidadtf | do peixe obriga o consumidor a retf-w ponsabilizar-se por encontrar mnf fc chave, um maçarico, o que seja. 'f O bom atum de Francisco Rodri* f guez Tenório não está decidida-' ^ mente para brincadeiras. ' " Cada lata custa aproximadamente 150$00, o que não é barato nefl* caro, mas inteiramente justo. ' Portugal é o bebé da CEE. Sim, porque a Espanha já é uma matulona. Agora que já tomou o primeiro banho de Europa, é bom que comece a ganhar confiança. Não fosse a Confiança de Braga, essa firma mítica cujo nome faz parte do nosso imaginário

sabonetário, a produtora do célebre "BANHO DO BEBÉ". Trata-se de um sabonete magnificamente perfumado, muito mais espumoso, barroco, e espalhafatoso do que os sabonetes hi-tech da norte-americana Johnson's. com estes atributos, o "BANHO DO BEBÉ" rapidamente dá ao bebé as peneiras de que qualquer infante precisa. O bebé, para já, gosta da embalagem, porque representa um bebezinho-modelo com o qual todos os bebés cinematográficos se podem identificar. Em contrapartida, a embalagem da Johnson's é só letras, e todos nós sabemos o quanto os bebés detestam essas coisas indecifráveis. Os bebés, tal como Portugal, são entidades pequenas e simpáticas, um pouco atrasadas, mas com um enorme potencial. A pele deles, como aliás sugere a Confiança de Braga, é "fina e delicada", mas isso não significa que seja frágil. É até bastante deliciosa. Por isso, neste primeiro banho de CEE, Portugal devia emergir fresquinho e bemcheiroso, um pouco inocente mas intransigentemente amoroso, para se poder tornar na menina dos olhos da Europa. E, num gesto de grande antevisão, a Confiança de Braga já traz, há décadas, a indicação de "BABY SOAP" no invólucro. Tudo indica que os bebés da Grã-Bretanha adeririam depressa a um sabonete tão simpático. Cada unidade dá para cerca de vinte banhos demorados, e custa cerca de 40 escudos. Cada banho sai assim ao preço de dois escudos, cada um com espuma abundante no valor de um conto de réis. 369 pudim de caramelo (a^) "É boca doce, é bom, é bom é, diz o avô e diz o bebé" eis a poesia muito concreta dos anos 60 da publicidade portuguesa. Embora o produto seja norte- americano (da enormíssima Standard Brands), o fabricante nacional (João Machado da Conceição) conseguiu criar nos consumidores a ideia de se tratar dum pudim lusitano estratagema tão útil como simpático. A boca doce dos Portugueses doce, salgada e agridoce empreende sistematicamente a defesa do que é "caseiro", é daí que o "Pudim Caramelo (aroma)", constituído por amido e milho, espessante, aromatizante e corantes, seja obrigado 370 a apresentar-se como discurso doméstico do avô e do bebé. O facto de não conter "caramelo" é irrelevante. O culto do "caseiro" é às vezes um pouco aflitivo, já que é utilizado como sinónimo de "bom". Quem não tremeu já com a oferta de um "bagacinho especial" ou de outra coisa qualquer "lá da terra", que é só, preocupantemente, "para amigos"? Por outro lado, como negar que há produtos altamente "artificiais" certos chocolates, rebuçados, o próprio pudim "Boca Doce" que têm um certo fascínio não necessariamente decadente ou hi-tech? iCrfff fei* Y Os cadernos de "RAZÃO" fazem í parte, quer queiramos quer não, da \ nossa arrastada e anacrónica civiliza* cão. Queiramos então que, por cada

programa de contabilidade para , computadores, seja estreado numa ^ qualquer mercearia perdida, um y novo caderno de "RAZÃO". Ambos são precisos. Os desenhadores de ' software deste país, caso seguissem o espírito iluminado do Macintosh, haviam de conceber um programa para os pequenos comerciantes com Unhas vermelhinhas e azuis, escrupulosamente governado pela velha lógica do "Deve" e do "Haver". A Razão, aliás é um "deve haver" de muito peso. Quando se dá razão a alguém, essa pessoa nada nos fica a dever. Em Portugal, há a ideia que sim "O Ami/car, eu dei-te razão naquele assunto da pecuária, agora devias dar-me razão nesta coisa dos frangos". Noutro sentido, os Portugueses pensam que deve haver alguém que tenha sempre razão. Um morto, ou um estrangeiro, ou um Messias qualquer, semiditador e semidivino, que há-de vir. Deve haver, não deve? É claro que não. Entre o Dever, que não se cumpre, e o Haver, que não há-de ser nada, está a Razão de ser deste país. O que devia haver não há, mas "não há-de ser nada", porque deve haver outra coisa qualquer que dê para safar. Portugal não é uma casa onde não haja pão, e é por isso que não se compreende que todos continuem a ralhar, cada um para o seu lado, de carcacinha com flamengo na mão, acerca do custo de oportunidade do fiambre. Não é verdade, porque é racionalmente impossível que ninguém tenha razão. Há-de haver alguém que tenha. Às vezes é mais importante dar razão do que dar o próprio pão. 371 k tu tua. ata "*** *." ir "tesa nota

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A Cartilha Escolar de Domingos Cerqueira, inspector do Ensino Primário, acaba de ser reeditada pela Lello & Irmãos (na altura Leio & Irmão). No prefácio da .1 edição, sob o título "AOS SRS. PROFESSORES", Domingos Cerqueira avisa-nos: "O Autor da Cartilha Escolar é um profissional. Dingmdo uma escola frequentadíssima, teve necessidade de pôr em prática os melhores processos de ensino, para com o maior aproveitamento dos alunos, despender o menor esforço, porque a sua atenção e actividade havia de distribuir-se, muitas vezes, por quatro classes, qual delas a mais numerosa." Na realidade, é um livrinho maravilhoso, dividido em 25 lições, todas deliciosamente ilustradas e graficamente encantadoras. A pe-

372 núltima lição é patriótica e empolgante "Defende-a e engrandece-a. Para a defender, não duvides verter por ela o teu sangue, se dele a Pátria carecer" (pág. 59). Trata-se de uma alternativa "dura" e "surrealista" ao terno sentimentalismo da Cartilha Maternal de João de Deus e as crianças de hoje devem apreciá-la desmedidamente, nem que seja só pelo exotismo da época. Finalmente, louve-se o facto da Lello poder oferecer um edição de tão grande qualidade, em tudo igual à original, com capa cartonada e ilustrações a quatro cores (só a capa é monocromática!) pelo preço de um jornal, 75$00. Devem comprar-se muitos exemplares e distribuí-los a todas as pessoas que se encontrarem. O chá "LI-CUNGO" é um chá preto, de paladar bastante meigo, produzido pela Companhia da Zambézia na República Popular de Moçambique. De todos os chás hoje à venda em Portugal, será porventura o mais antigo. Embora não se adeqúe a beber com leite, por ser demasiado subtil... é excelente com uma rodela de limão, ou servido gelado em refresco. Aconselha-se igualmente às pessoas nervosas, aos convalescentes e às crianças. Infelizmente, por não ter grandes campanhas de publicidade, o bom chá "Li-Cungo" está a sofrer a concorrência dos chás comercializados pelas companhias inglesas, em caixinhas de grafismo mais rico e moderno, que oferecem ainda a conveniência dos saquinhos. O chá "Li-Cungo", cujo sabor faz lembrar as doçuras das terras e gentes de Moçambique, precisa de preparos mais cuidados (mas também mais recompensadores). Na caixa dão-se os conselhos ideais para fazer um bom bule de chá (coisa que os Portugueses quase nunca acertam). O mais importante é escaldar previaWÂLTÕJH6Õ mente o bule com água a ferver, deitar uma colher de chá por chávena, ou à inglesa, acrescentar mais uma colher "para o bule" e entornar a água para o bule enquanto ela ainda ferve. É um chá muito barato, atendendo às suas qualidades, e comprá-lo também tem a vantagem de contribuir um bocadinho para a sorte de Moçambique. O chá "NOITE SUAVE" é o chá de quem abandonou a promiscuidade a favor do Carinho. Regressando a casa às seis da manhã, depois de uma noite alegre e carinhosa, fecha o ciclo alcoólico-vegetal com uma chávena do "The BONNE NUIT". Esta maravilhosa infusão de folha de hortelã, fruto de Anis estrelado flores de Tília, Laranjeira, Lúpulo e Crataegus, erva de Passiflora e fruto de Dormideira garante um sono "natural, calmo, reparador, isento de pesadelo" até às duas da tarde do dia seguinte. Enfim, como se observa na embalagem, sob a figura de um querubim refastelado numa nuvem, "... um sono de anjo". 374 O chá "NOITE SUAVE", próduzido na Bélgica pelos Laboratoires Charles Delacre (e representado em Portugal por Rodriguez Marco" e C." Lda., sita na Rua Andrade, 63-1.° em Lisboa), revela-se muito eficaz na prevenção de pesadelos, sobretudo daqueles que só se "alevantam", qual Adamastor roncando na almofada do lado, quando acordamos. A folha explicativa que acompanha o chá faz-nos a fineza de colocar a pergunta que ocorrerá aos consumidores: "Que se vai passar quando tomar à noite a sua chávena de chá NOITE SUAVE?" E a resposta não se atrasa: "Aquela digestão penosa que o conservava acordado vai achar-se facilitada e abreviada. Os seus nervos vão acalmar-se, e distender- se suavemente. A angústia que aperta o seu sistema neurossimpático vai perder

essa acção". E, finalmente, tal como o próprio efeito do carinho, "O coração, apoiado, é regularizado no seu funcionamento. O sono vem..." O chá "NOITE SUAVE" custa apenas 175$00 por embalagem. Não há descontos para anjinhos. As conservas "JANUS", sendo assaz deliciosas, deveras económicas e quiçá muito apreciadas em Itália são, mau grado o alto grau de abstracção da metáfora, mais uma prova do instinto natural de conservação e, outrossim, de conservas, do povo português. ("Assaz", "Deveras", "Quiçá", "Mau grado", "Outrossim"... em que outro jornal não-regional se podem ler hoje em dia estas coisas?) Dizia-se de Janus, primeira divindade romana, que era capaz de ver o Passado e o Futuro ao mesmo tempo. É este o princípio fundamental da conservação: as coisas boas são para durar. Para que as coisas boas durem, e se possam aproveitar durante muito tempo (ou para que o atum não se estrague) é necessário gastar algum tempo e dinheiro (o preço da lata e do enlatamento) a protegê-las da destruição natural (na lata de atum ilustrada lemos com agrado "Da consumarsi preferibilmente entro ú 1989" quatro anos para decidir se é hoje, se é amanhã que nos apetece uma saladita de atum!). O "Torno Portoghese JANUS" é um "Product of Portugal" e é "Packed in Portugal", sendo "prodotto da Vaccheri & Lemos con sede e stabilimento in Porto Brandão (Portogallo)" e, naturalmente, "confezionado a norma di legge". A única frase que não surge em língua italiana ou inglesa é "Atum em Azeite de Oliveira". (Fica assim a ideia de que o Senhor Lemos tem dificuldade em impor-se junto do Signor Vaccheri.) 375 Para manter as bochechas em bom estado, garantindo um piso que seja seguro e agradável, ainda está por inventar um melhor produto que o "CREME NÍVEA". Por alguma razão é conhecido, nos círculos mais avançados de farmacologia cosmética, como "o amigo do beijinho", coisa que não é invalidada pelo facto de ser mentira. Fabricado em Portugal desde que começaram a aparecer bochechas para beijar, o Creme Nivéa, como se vê pela lata antiga, tem uma acentuação de elevada simetria. O acento na palavra "Creme" não deixa de ser grave, mas, em contrapartida, é contrabalançado com a rara agudez pelo ênfase, todo "prá frente Portugal", da 378 palavra "Nivéa" quase camoniana aliás. Respeitando o pudor próprio da época, as indicações no verso da lata não são difíceis de interpretar: "Creme Nivéa é o melhor protector da pelle. Conserva-a macia e suave, dando-lhe o encanto da juventude." Algum dia se há-de escrever a verdadeira história do Creme Nivéa e de todos os fins e aplicações que diligentemente foi cumprindo ao longo das décadas, nem todas publicáveis. Por enquanto, bastar-nos-á reconhecer que se hoje os rostos dos Portugueses e das Portuguesas se beijam com maior agrado, não foi de maneira nenhuma desprezível a contribuição suavizante e discreta do Creme Nívea. O creme "VIRIATO" é uma notável pomada para o calçado que reúne três funções desejáveis num só produto: limpa, pinta e dá brilho. Tendo sido concebido o fabrico sob a influência de Viriato, dir-se-ia ser de especial eficácia quando aplicado ao calçado romano! Não é um creme pacifista. Não são para ele as propriedades subtis das pomadas

transparentes ou das tintas mais matizadas. O creme "VIRIATO" ataca o calçado de frente, de escova em riste, sem perder tempo com formalidades inúteis. Como o pastor que é seu padroeiro, é humilde mas valente. Qualquer sapato da moda sobretudo os estilos mocassins das grandes sapatarias modernas vê-se k utars Aplicar o creme regi! fc o superfície o limpar e em! tero com ume escova ou pan" se assim um brilho sem rival. imediatamente assenhoreado e submetido pela sua saudável rudeza cromática. Rindo-se com alarde dos seus concorrentes modernos os Nuggets de além-mar , atira-se com um brio nortenho aos trabalhos em mão. Deixa a sua marca por onde passa. Apresenta-se em frascos de variável modernidade, conforme a popularidade da cor que contém. Declara no rótulo, depois de indicar o modo de usar: Obtém-se assim um bnlho sem nval." Custa aproximadamente 37$50. 379 KA farinha "33", segundo nos afiança A MORENINHA, LDA., foi especialmente "preparada para dar aos adolescentes saúde e energia para os seus estudos e desportos". A imagem do adolescente na embalagem é disso prova e claro exemplo: olhando confiantemente o Futuro, sem ter qualquer vergonha de se apresentar ao público em calções bastante justos, o Jovem usa uma forte corrente de ferro para rezar o Terço. Este é o Jovem são, Anos 80, que Participa, que Adere, que Quer Ajudar a Construir o Futuro. 382 Do outro lado da embalagem, vemos o Jovem Oposto. Este passa as noites a ler Schopenhauer e Teixeira de Pascoaes. Fuma três maços de tabaco por dia, bebe bicas e Brandy-méis a fio, e gasta o dinheiro todo em amores impossíveis. É o jovem adoentado do Passado. Nunca colou um cartaz na vida inteira. Entre uma boa tigelada de farinha "33" e uns carapaus de escabeche nem que seja ao pequenoalmoço, habitualmente tomado às duas da tarde prefere sempre os carapaus. A "GLEFINA ANDRÓMACO" não é apenas um bom tónico que sirva para algumas fraquezas e doenças. Como bom remédio português, é "indispensável em TODAS as doenças em que o organismo precisa reconstituir os seus elementos vitais". Será que finalmente se descobriu a cura para o cancro? Quantas doenças haverá em que o organismo não precise de reconstituir os seus elementos vitais? À parte este típico totalitarismo português, vulgar nos medicamentos e naqueles que os medicamentos tratam, a "Glefina" é um dos tónicos mais respeitados de Portugal, seguindo-se, na escala de evolução, ao óleo de fígado de bacalhau. Na embalagem, sob a indicação "IMPORTANTÍSSIMO" (em letras vermelhas), lê-se que "A grande vantagem da GLEFINA sobre o óleo de figado de bacalhau é que se pode tomar em todas as épocas do ano, sem que produza vómitos nem diarreias". Não se sabe se o óleo de fígado de bacalhau, ou os seus legítimos representantes, se defenderam deste grave libelo. Mesmo assim, a GLEFINA tem um pouco a ver com o óleo de fígado de bacalhau, já que é preparado com matérias extraídas dele, passando pelo xarope de cacau (30 gramas em cada 100), pelo extracto fluido de laranjas amargas ( grama) e pelo extracto de malte (16 gramas). E não só, a GLEFINA também é, um pouco por que não dizê-lo, já que nunca é de mais insistir um hipofosfito de manganésio, um de quinino, um de estricnina... e não só. Como tudo, é um assunto inesgotável. 383 O nome com- PITF f pleto é "LEITE | WjHL A ESPECIAL VI- | " r-w- ^- GOR PASTEUS "," RIZADO". A gar- 4 " A ^ rafa, de vidro ronXOT busto mas claro, f rAMJL

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traz ainda a indicação do fabricante (Lacticínios |^ Vigor, Lda.)> e HÍHHBBHBH um conselho útil ^^^BBHH que, sem mencionar a palavra "frigorífico", convida o consumidor a "conservar em ambiente frio", semelhante ao do microclima invernoso de Sintra. Uma das vantagens de viver na Unha de Cascais é poder comprar litros de leite "VIGOR" com facilidade daí o aspecto mais saudável e surfista dos habitantes, comparado com as faces macilentas do citadino, para quem a palavra "leitaria" significa, simplesmente, "café". Para combater esta tendência, o lis384 OTTC ponprí x LEITE ESPECIAL VIGOR mmw Prilfil boeta tem recurso "riiUHL aos "guanos" que ' f\ W% ' ^^ *"

se servem nas me" m m mt >

lhores pastelarias

embora muitos inHI\n ' teimem, por mesalAlAJ quinhez e forre- tice, em beber

"meias de leite", ;

deitadas de recep-

egoístas que guardam, sem dúvida, o "Vigor" todo para eles. Em algumas boas mercearias, o número de garrafas de "Vigor" que se cede aos clientes (o "Vigor", com todas as benesses da natureza, nunca se vende cede-se) é uma medida justa do respeito em que se tem o cliente. O leite "Vigor" vem de Sintra (mais concretamente de uma misteriosa localidade chamada Odrinhas) e cada litro custa aproximadamente 80$00, com depósito. A Fábrica Ancora fabrica um número surpreendente de licores, xaropes, ponches e outras destilações que, juntas, constituem um inventário quase completo dos recursos alcoólicos do mundo, na sua versão mimética portuguesa. Embora já não exista, ao fundo da Rua do Carmo, a velha loja e salão de exposição de outrora (hoje ocupada por um comerciante de sapatos), há um posto de atendimento do público na Rua do Alecrim, n.°s 32-42, onde se podem consultar as listas de bebidas e ver a exposição das garrafas. Os preços são sempre módicos, convindo notar que muitas preparações (como o celebrado rum, de acentuado paladar) não aderiram à convenção dos 7 ou 7,5 decilitres, continuando a apresentar-se generosamente em garrafas de litro. Foi recentemente comercializada uma linha de miniaturas, de tamanho várias vezes superior à mesquinhez habitual, com um preço ao público que ronda os 90$00. O conteúdo é suficiente para preparar cocktails para dois, com direito a repetição. Aconselha-se, assim, o consumo. Os leitores de pendor mais piroso poderão dar largas aos instintos e coleccioná-los. Assim ajudarão a fazer falir a Fábrica Âncora o que permitirá acrescentar bastante ao valor da colecção e fazer uns candeeiros engraçados... Os outros, mais sóbrios (pelo menos num dos sentidos da palavra) beberão o

conteúdo e deitarão a garrafa fora. 385 O LOTO tradicional é uma alternativa saudável ao Totoloto. Não menos entediante nem menos cretina, mas sempre reúne uma família em torno da lareira, serve para ginasticar os reflexos de atenção das crianças (vd. o "Loto Infantil" da Majora, como se houvesse lotos que não fossem) e oferece uma maior probabilidade de ganhar dinheiro em relação à verba investida. Geralmente, perdem-se depressa 386 duas ou três pedrinhas e as restantes podem ser utilmente reconvertidas em fichas de póquer ou de roleta caseira, jogos aos quais a inteligência já não é completamente alheia. Entre os aliciantes, pode escolher-se entre a tradição (a impecável Majora) e o arrivismo (a entusiástica Karto), andando o preço à volta de 330$00, quantia rapidamente amortizável em boletins de Totoloto não entregues. A manteiga "PRIMOR" é um mimo de manteiga, porque "Mimo" também quer dizer "Primor". É preocupante o número de manteigas que não têm uma vaquinha na embalagem. Se não tem vaquinha, pode ter-se a certeza que não é "Primor". Tanto mais que seria inimaginável que a manteiga "PRIMOR", branca e azulinha, com a emblemática vaquinha a pastar no papel vegetal, estivesse alguma vez envolvida em casos menos inocentes. Por exemplo, se Bertolucci tem usado um pacote de "Primor" na famosa sequência do Último Tango em Parts, todo o filme redundaria em ridículo. Seria uma autêntico desprimor. As manteigas estão para o Mimo como as margarinas para a Pieguice. Nunca se deve confiar numa criança que goste de "barrar" uma fatia de pão com "Planta". Não há pior espectáculo, também, que uma dona de casa já crescida que reage à apresentação de uma embalagem "Planta" com a frase "Sou uma lambona". Por quanto tempo havemos nós Portugueses de esperar por um locutor que tenha a coragem suficiente de dizer "Ah sim? Então tome lá uma lambada, para ver se ajuda!"? A pomada mais dengue para o pão é o "Tulicreme" e os outros xaporosos unguentos, com sabor a nozes, chocolates e dendê, com que as crianças deste país estão presentemente a ser aliciadas. Mais vale um colesterol honesto, de um tipo que se conhece, que o fígado tem facilidade em reconhecer ("Olha lá vens tu outra vez... está bem, entra lá...") do que as insofismáveis misturas que têm a lata de se pôr a dar conselhos ao coração. A manteiga há-de regressar para vingar o seu justo nome. Não se achando a "Atlântida" dos Açores talvez a melhor manteiga que alguma vez vaca terrestre produziu patrocine-se sempre o mimo da "Primor", obra da Martins e Rebello, sita em Vale de Cambra e orçamentada em cerca de cento e setenta escudos. 387 Poucas coisas haverá mais portuguesas que a marmelada. Antes dos Mouros já havia em Portugal marmelos e, segundo tudo leva a crer, marmelada. É tão grande esta antiguidade que outras línguas recorreram imediatamente à nossa marmelada nomeadamente, a castelhana, a francesa e a inglesa. Nesta última, a própria etimologia da palavra marmalade, nome do doce de laranja amarga que constitui o centro do pequeno-almoço britânico, é já de si uma grande marmelada, já que "marmelo", em inglês, se diz qmnce. Ao doce de morango chamam doce de morango (strawberry jam), ao doce de framboesa, doce de framboesa, e assim sucessivamente, à excepção do doce de laranja amarga, que não chamam doce de laranja 388

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amarga, mas sim sabe-se U P^^ gança a divulgar o chá na corte

inglesa, pode dizer-se que 66,66% do típico pequeno-almoço inglês (chá, torradas e mar- melade) é de inspiração portuguesa. Sendo assim notória no estrangeiro a marmelada portuguesa (muito mais que a brasileira ou imagina-se os Ingleses a chamar, a fosse o que fosse, "goiabade"?), é pena que a fama se cinja à etimologia. Embora a melhor marmelada seja a caseira, feita no recato do lar como gosto familiar, há boas marmeladas industriais. Uma delas é a MARMELADA FINA da CONFEITARIA DA AJUDA. Os ingredientes vêm discriminados na tampa: Polpa de Marmelo e Açúcar, Conservantes e (atenção que a próxima referência é pouco clara) "210". Uma tigela com 450 gramas custa, aproximadamente, 80$00. "O MEU ABC" é um dos muitos jogos educativos, quase todos encantadores, económicos e úteis, fabricados pela venerável casa Majora, rainha dos brinquedos de Portugal. Num gesto de camaradagem europeia, o Governo bem podia oferecer um "O MEU ABC" a todos aqueles fabricantes e anunciantes estrangeiros que persistem em não aprender a falar português com os seus clientes portugueses. E, já agora, fazia também essa oferta aos parolos nacionais (alguns deles fabricantes de "jeans and jackets") que acham que tem "mais classe" evitar a língua portuguesa nos seus patéticos esforços de comercialização. "A minha pátna", diria o outro se não estivesse a puxar-lhe o pé para as frases bombásticas e cabotinas, "é O MEU ABC". Se não, amanhã temos criadores de patos e coelhos a vender "Figuemnhas, ducks and rabbits". As crianças portuguesas, também, sofrem constantemente o mau exemplo que lhe dado pelos importadores portugueses de briquedos (munecas e dolls e guns e masters) que não se dão ao trabalho de afixar uma etiqueta em língua portuguesa. A Majora, quando adapta brinquedos estrangeiros, tradu-los integralmente para português. E as crianças portuguesas (muitas das quais têm de suportar filmes infantis legendados muito antes de terem idade para saber ler) não merecem menos. 389 Os palitos "VIRGÍNIAS" são, à semelhança de outras marcas de prestígio (como os "LUSITANOS" da caixinha branca), "os melhores do mercado". Nas palavras do fabricante, o Sr. José da Fonseca Marques, do Lorvão, "especializam-se pelo seu perfeito acabamento e pela excelente qualidade de madeira de que são fabricados, motivo por que os toma preferidos por todos os consumidores". Este, por sua vez, é o motivo por que se encontram "à venda nos bons estabelecimentos", e nunca nos maus ou medíocres. Há cerca de dez anos que os dentistas do Norte da Europa descobriram, depois de uma longa noite fascista de opróbrio, que os palitos são 390 bons para as gengivas. Na Inglaterra, por um preço que é vinte vezes superior ao

dos palitos "VIRGÍNIAS" (cerca de sete escudos e cinquenta centavos), são vendidos por grandes marcas como a Sensodyne e a Johnson & Johnson com o pretensioso título de "massajadores de gengivas". O hábito de palitar os dentes, outrora confinado aos animais menos domésticos, passou a ser um sinal de invejável contemporaneidade, e certos "restaurateurs" mais chiques exibem os paliteiros com malcontida vaidade. Em Portugal a tendência é contrária, chegando ao ponto repulsivo de se verem anúncios na televisão em que se servem pastilhas elásticas em vez de palitos. O PAPEL ORIENTAL é fabricado pela Fabnca de Productos Chamcos de Claus & Schweder, Succr., do Porto. Cada caderno consiste de 8 folhas agrafadas, cada uma com 5 divisões picotadas, individualmente impressas com "PAPEL ORIENTAL", seguido duma assinatura onde se lê "Claus & Schweder e Succ ". No verso da capa, consta o seguinte texto, sob o título "Propriedades do PAPEL ORIENTAL": "O PAPEL ORIENTAL anti-séptico eficaz, é o melhor desinfectante do ar; nenhum nval lhe pode ser comparado; os seus vapores pyrogenos espalham-se e penetram em toda a parte, mesmo nas mais pequenas aberturas. Não é tóxico nem corrosivo como a maior pane dos anti-sépticos em uso, que só causam dano à saúde." O texto continua com algumas indicações acerca da sua aplicação. "O PAPEL ORIENTAL deve empregar-se em dias brumosos e húmidos e nos lugares há muito tempo fechados, destrói os miasmas e micróbios, saneia os quartos dos doentes e perfuma deliciosamente. O seu emprego é utilíssimo em viagem para purificar o ar dos quartos de hotel, viciado pela estada de incógnitos, mais ou menos sãos. Sobretudo é em tempo de epidemia que se toma indispensável, pois preserva do contágio da varíola, croup, cólera, febres mucosa, tifóide, escarlatina, etc." O MODO DE USAR é indicado no verso da contracapa: "Corta-se, enrola-se e acende- se uma divisão do PAPEL ORIENTAL, evitando que se inflame, pois é necessário que se consuma lentamente." O PREÇO praticado nos retalhistas ronda os 22$50 por cada caderno. 391 O Papel Selado foi abolido. Tal como o nosso país, é lindo por fora e muito menos lindo por dentro. Tratase de uma belíssima composição em quatro cores, impecavelmente equilibrada. É o verde-mar da insígnia e do curto texto que todos os Portugueses sabem de cor, bastante melhor que as duas primeiras estrofes de Os Lusíadas: "Nos termos da Let não é permitido aumentar o número de linhas deste papel ou escrever nas suas margens." As margens, para mais, são irresistivelmente apetitosas. Marcadas com um azul- céu lindíssimo, são margens que conduzem o cidadão mais respeitador a infringir selvaticamente a lei. Apetece encher 392 aquelas margens de escrita, de poemas, de desenhos, de pequenos comentários de ternura. Sobretudo a margem esquerda, tão generosa e convidativa... As linhas (cujo número não é permitido aumentar) são impressas a roxo, sobre um almaço espesso e azul-clarinho. com uma boa caneta de tinta permanente (que pena terem permitido o preenchimento a esferográfica já agora faziam as coisas como deviam ser!) a sensação substancial de deslize e de traço é um prazer infindável. As marcas de água ("VALORES SELADOS INCM 1985") e o selo branco, em relevo, ao topo da folha, completam a brilhante composição. Foi abolido o Papel Selado, peça única da nossa burocracia, mas não foram abolidos os restantes apetrechos (selos fiscais, certidões, etc.) muito mais

feios. Foi uma abolição simbólica. As "minutas" e todo o palavreado continuam em vigor. Só o suporte azul a única compensação estética do cidadão atribulado foi extinto. É melhor assim. O Papel Selado é mais bonito, agora que nada tem a ver com a burocracia portuguesa. Continua a custar 60$00, é muito mais difícil de encontrar do que antes, mas é lindo. A Pasta Medicinal "COUTO" é o dentífrico português por excelência. com exemplar sobriedade, não oferece prémios, não tem riscas coloridas na pasta, não ostenta recomendações dúbias na embalagem e o que é importante não tem qualquer versão para crianças com sabor a banana. Mantém um cepticismo férreo hoje mais apoiado quanto ao flúor, enquanto sustenta uma aristocrática pretensão de evitar não só a cárie como "as afecções da boca" em geral. Felizmente, abandonou há muito o velho filme publicitário em que "um artista português" fazia girar uma cadeira entre os dentes. Fica, na arqueologia da publicidade, como um exemplo pioneiro da "performance pós-moderna" na categoria "A Arte, a Negritude, a Portugalidade e as Pastas Dentífricas". Apresenta-se em bisnagas "contendo cerca de 30 e 60 gramas", custando a bisnaga grande 57$50. (Pergunta: a pasta medicinal Couto é hoje branquinha e sabe a mentol. Dantes não era cor-de-rosa com sabor a horroroso?) PASTA MEDICINAL C&utc' 393 As Pastilhas "VALDA" não são exactamente as melhores para aclarar a voz de modo a se poder desconversar com clareza, mas a sucção ligeira de uma única pastilha permite simular com verosimilhança o efeito de rajadas de vento polares no rosto televisivo do capitão Scott. Não são tão-pouco muito portuguesas, antes francesas naturalizadas. Aqueles dentre vós que têm idade para se lembrarem dos tempos em que as "Valdas" vinham em latinhas, já não poderão escrever a perguntar se eu sabia que dantes as pastilhas "Valda" vinham em latinhas, naquele estilo polido de desmentir-por- escrito que começa sempre "Li com algum interesse a sua charla acerca das Pastilhas 'Valda' e compreendi que o seu propósito era fazer humor, e não uma análise histórica da implantação das drageias em Portugal. No entanto..." As Pastilhas "Valda" são pequenas bombas mortíferas de mentol industrial a 99%, capazes de emitir uma radiação "verde" que tem efeitos devastadores sobre as mucosas mais pacatas das vias respiratórias. Os praticantes das "Valda" desprezam absolutamente os chuchadores de "Bradoral", os succionistas de "Corifina" e os chupistas-amadores do "Pulmoll", um pouco à maneira como Robert Mitchum, de Bourbon na mão, tenderia a olhar para Mickey Rourke, caso surpreendesse o jovem actor com uma Diet Pepsi na mão. E têm razão. 394 Ter pó aos índios, sobretudo se forem mal-andantes e malcheirosos, também se manifesta na escolha de um desodorizante. O pó "DESODORIZANTE INDIANO" é, neste aspecto, o mais "profiláctico-higiénico". Mas não se pense que a obra-prima da Farmácia do Intendente se limita a neutralizar os ácidos da transpiração. É certo que "O DESODORIZANTE INDIANO" é "de resultados seguros na transpiração com mau cheiro, das axilas, mãos e virilhas, comunicando-lhes sensação de bem- estar". Mas também é eficaz em eczemas (secos e húmidos), nas úlceras varicosas, nas borbulhas, nas impigens e ainda (note-se a repetição propositada) em eczemas

das partes do corpo com pele delicada. Como pó de toucador, ^^ só dificilmente terá Para-_^BHB leio. E tem acção cica- ^^Hll trizante. E suprime as ^^^9QI manchas da pele. JHIj^^^H Para não falar no ^Hjj^^^^H brilho que a pele ^^S^^^ toma por ser de- ^^B^^^ masiado gor- ^^^^^^^^1 durosa. Porque ^^^B^^^^ também o supri- ^^^^^^^1 me. E não se jul- V^^^^^ gue que o seu ^^^^H^H "grande poder antiec- ^^HI^H zematoso" se exerce só- ^^^H mente sobre os eczemas ^^^H jovens e recentes. Porque não ^^ é verdade "Mesmo os eczemas mais antigos", aqueles já com barbas não resistem à sua acção, "renovando a pele doente e substituindo-a por outra de características normais". É um bom desodorizante inodoro, sem cheiros modernaços a "Primavera", "nêsperas selvagens almiscaradas", ou "iate marítimo encharcado em maresia". A caixinha de plástico, impressa em gracioso relevo com uma figura feminina dos anos 30, é reutilizável, ao contrário das bombas-aerossol dos desodorizantes pirosos, que só servem para aproximar do fogo e fazer "Bum!" Porque são estes os desodorizantes que usam os índios "Macho Man", "Rambo" e "Alcântara-Sexy-By- Night-EmbalagemSpray". Enderecem-se os pedidos à Farmácia do Intendente, no Largo do Intendente (cuidado com os apachesl), 50-51 (tel: 547838), ou à Farmácia Algarve, Avenida de Roma (cuidado com os cheyennes!) 7-B (tel: 801478). 395 ENCERITEX EU A pomada "ENCERITE" é fabricada pela conceituada "A ENCERADORA Lda." e apresenta-se, quer na versão "AMARELA", quer na "VERMELHA", em latas robustas e agradáveis de grafismo simples e eficaz. Hoje vendem-se muito, naquelas lojecas de bugigangas "giras", latinhas geralmente de muito mau gosto, "à antiga a fingir", por preços muito mais elevados que o de uma lata de "ENCERITE". Por 100$00 recebe-se uma lata memorável e eis o grande bónus um generoso bolo de excelente pomada para os soalhos. A "ENCERITE" foi premiada com Medalha de Ouro (E MEMBRO DO JÚRI) na Grande Exposi396 cão Industrial Portuguesa de 1932-1933, pelo que ***"*"^^ é perfeitamente lícito ^^y aceitar o natural "TpíjpiSrV orgulho do fa' [A4TJ \ "A "EN-

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Bass' \^r detrás. A EN^-*^ CERITE é a beleza e " a saúde das madeiras. A ENCERITE é a beleza e a saúde das madeiras." (A frase surge quatro vezes em cada embalagem, não deixando de ser menos verdadeira por causa disso.) O MODO DE USAR é simples: "Em soalhos e tudo quanto for liso, dá-se com um pano, devendo a aplicação em móveis ou lambris, ser feita com um pincel." Espera-se "uma ou duas horas" (boa altura para beber um uísque e fitar filosoficamente o soalho tentando adivinhar os sinais de ENCERITE a tornar-se lentamente enxuta), e "puxa-se o lustro com uma cardoa (vd. Dicionário) ou escova própria". Está quase chegado o grande momento: "em seguida dá-se o bnlho com um pano de lã". (Serve perfeitamente um bocado da sua velha alcatifa.) Já agora, falemos de um produto que é uma lenda do nosso tempo: o magnificamente fabuloso, o infalivelmente miraculoso POMITO LENCART. Vindo dos laboratórios Lencart, a jóia na coroa do Parque Industrial de Celeiros, a glória farmacêutica da linda cidade de Braga, o Pomito Lencart é contra impigens, e contra dartos (uma boa aflição, ideal para jogar à forca) é contra o herpes e é contra outras moléstias de pele, prurido ou comichão (há grande diferença, como todos os dermatologistas sabem.) Não há praticamente nada contra o qual o Pomito Lencart não esteja. Alguém falou em acidentes sifilíticos do couro cabeludo (impetiginosos)? O Pomito está contra. Ácneas pustulosas ou necróticas? É canja. Lúpus? Nem que fosse lobisomem. Pano do rosto? Contra. Fogagens? O mais contra possível. Aprendase: o Pomito Lencart é mesmo, mesmo do contra. Naturalmente, os cientistas do Parque Industrial de Celeiros não são modestos: "O grande emprego que se faz do POMITO LENCART é o seu melhor elogio." E porquê? Porque é "largamente usado em Portugal, Angola e Moçambique, etc."? Não só. Fundamentalmente, isso sim, "É porque nele se encontram reunidas qualidades essenciais e indispensáveis para o tratamento das doenças da pele, tão difícieis, caprichosas e rebeldes". Difíceis caprichosas e rebeldes, podem elas ser. Mas o Pomito Lencart pode com elas todas. 397 português SUAVE O "PORTUGUÊS SUAVE" está para o Portuguesinho como o "Ritz" para os Portugas e os "SG Lights" para os Exilados, Emigrados, Estrangeirados e Outros Transfugas. No estádio civilizacional que representa o "PORTUGUÊS SUAVE", o português, descendente dos Montes Hermínios, encontra o fresco vale da Idade Moderna. É suave ser português no século XX porque temos, ao mesmo tempo, todos os encantos tradicionais do sentir do nosso povo ( o artesanato, a culinária, os poetas populares) que os países mais ricos já perderam, e todas as conveniências e maravilhas técnicas e tecnológicas da nossa idade, que os países pobres ainda não têm. 398 li Portugal, para o Portu^^^^ guesinho, é o melhor ^^^^^H país do mundo porque

^^^^^B não lhe falta nada. Ou ^-\f" t" w

melhor: não lhe falta nac'a P6'0 1ua' dê pela falta. E, como não dá

ri* H pela falta de nada, não fc, lhe falta absolutamente ^^^^^H nada. 555J3 O "PORTUGUÊS dH SUAVE", como cigarro, é o "Lucky Strike" de quem não anda para aí a meterse na Nicarágua e na Guerra das Estrelas. É um cigarro contente consigo mesmo, nem barato nem caro, nem muito antigo nem muito moderno é um cigarro moderado nem curto nem comprido, nem fininho nem grosso, nem muito forte nem muito fraco. É um ctgarrinho centrista que se fuma duma maneira suavemente nem tanto à terra, nem tanto ao mar, nem 8 nem 80 precisamente no meio de tudo, onde está a virtude de tudo. E é aí, também, que está a virtude dos Portuguesinhos. Para eles, é ele o cigarro autenticamente português, nosso, de mais ninguém, e quem dera aos estrangeiros etcetera. Muito í' lP^"' vena por dizer acerca da ^WÉMM{JCj Amêndoa ^HHK/' Progresso:

r Amarga do ^BEliRi^, -v

qUC é mít° deixa um sãbor amargo na boca, e ^^^^EjfjJIJJijjM outras coisas ^^^^Fj^fjUm de igual ^^^^^HQ exemplo e ^^^^^^^^HaEi cepticismo. ^^^^^^^^Hni O certo é que ^^MQfe a Amêndoa * **"* Amarga é uma bebida que é favorecida por progressistas de todo o país. Significa para os arautos do Progresso, aquilo que as aguardentes velhas representam para os adeptos do Regresso. A Finlândia, por exemplo, é um país mais bafejado pelo Progresso do que Portugal. Da mesma maneira, a exorbitante e excelente vodka "Finlândia" será bastante menos nociva (mais afecta ao palato e menos ribombante na ressaca) do que a pobre Amêndoa Amarga, vendida a 240$00 o litro pela antiga firma lisboeta de Leopoldo Wagner (Herdeiros). A vodka, porém, tal como se póHWnrlM ^eria d,izer à,. v; d °s p a

ses

'AJÁAjtóillílHB onde o Pró- cor, nem cheiro, nem ^H^HI^^^^^ sabor. É um BB|HBB||^^H álcool clíH|HHl||^^ nico, etílico e |||||3| jJ§BB^H inteiramente S^^^^^^^^H higiénico, PVMJI^^^^^^H igualmente Éfl^^^^^^^^^Hindicado ^^^H^^^^^^H IHIl^^^^^^^H Para uso nos mlÊiÊftffff hospitais "SSJBiSiJ**"^ como nos "Bloody Marys". A Amêndoa Amarga, em contrapartida, não só está proibida no tratamento hospitalar como, o mais das vezes, ocasiona-o rapidamente. Contudo, tem cheiro, tem cor, e tem graça. Basta reparar no rótulo, onde se cruza a tradição histórica (Torre de Belém) com a revolução tecnológica (avião a jacto), para se perceber que Portugal nem é um país de Progresso nem um país da Tradição. É um bocadinho de Progresso, um bocadinho de Tradição; no fundo, um bocadinho bastante grande de Confusão. Mas, mesmo assim, é também um bocadinho

preferível à Finlândia. 399 É típico que,

no

mercado _""BH^^| português, ^^^K^^^ tanto os ^^^^^^^^^1 ;S5?oV. Hill como

os

^^ff^ffU^Í T

V O S " ?LUtl IN custem JtS^IHHHH exactamente ^vfl^^SElM 5 5 $ OO.

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Atenção, porém. Embora sejam os cigarros mais baratos (descontando os lendários "KENTUCKY", que custam heroicamente 12$50 em plena entrada na CEE), tanto os "PROVISÓRIOS" como os "DEFINITIVOS" apresentam inúmeras vantagens sobre as marcas restantes. Tanto uns como outros contêm, em vez de 20, 24 cigarros (e o "KENTUCKY", comovente400 mente, só se apresenta ^^^£^^1 em embalaSWS^^^H gens de 12> S^^Kk^V^^ talvez por H^HHkSwS^ saber que IQgANgl um maço SS^^^í?^^ com o dobro [Tllfilv

dos cigarros

111W VO^^faria subir ° . pKj^ preço para ^^^^^^^Ê^^^á um nível m^^B^^^H provavel^H^^É^H mente inIrV^^^^^^ comportável ^^-^^^^^^ pelos seus fiéis fumadores 25$00). Este número obedece a urna lógica antiga, muito anterior à metrificação, que é a dúzia. Ri-se descaradamente da convenção tácita que é dizer "Fumo três maços por dia" e de se julgar que são 60 cigarros. O fumador de "DEFINITIVOS" ou de "PROVISÓRIOS" consegue fumar, com a mesma confissão, 72 cigarros. São 12 cigarros que furta ao opróbrio contemporâneo dos não fumadores. (O fumador MH*** de "KEN-

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TUCKY" 11

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que disser a 11 mesma coisa

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VOS" seB guem esta ||| lógica camu- fiadora e enganadora H f_B_JB_ em mais | JTABAM ff dois domí|T|B*| nios. Apre- ^ ^^ ^, |[ | sentam-se, em letras grandes, como "CIGARROS FRACOS", apesar de terem 16 miligramas de condensado e da nova classificação (registada na embalagem em letras muito pequeninas) dá-los como sendo de "Médio Teor". A mais gloriosa mistificação é contudo a frase com que se anuncia: "05 CIGARROS QUE TODOS DEFINITIVAMENTE PREFEREM." Finalmente à soberba irracional dos "DEFIIH..U ' '

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ao ponto de [

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\|\^^t|| portuguesa lBlllS lII dlla^'-dc 9 A*^*LJ H capa dura ^^f^f

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óbvio que não podem ser fumados definitivamente, até porque um tal nível de alcatrão torna-os bastante interessantes face ao cancro dos pulmões. Os "PROVISÓRIOS" não só não têm dizeres publicitários na embalagem (a mais bonita de Portugal) como parecem ter vergonha de fazer tanto mal. Preferem, por isso atirar as culpas para campo alheio, anunciado-se simplesmente, e justamente, "TABACO FRANCÊS". 401 X "NÃO f.^...^ SOFRA VHÃÕgl MAIS", diz /^^s^^^^^sí

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