MICHEL TOURNIER, Sexta-Feira Ou a Vida Selvagem

February 18, 2018 | Author: joisaoliveira | Category: Sea, Cereals, Cave, Dogs, Trees
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SEXTA-FEIRA ou a vida selvagem

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MICHEL TOURNIER

SEXTA-FEIRA ou a vida selvagem

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I Ao fim da tarde de 29 de Setembro de 1759, o céu obscureceu-se de repente na região do arquipélago Juan Fernandez, a cerca de seiscentos quilómetros ao largo das costas do Chile. A tripulação do Virgínia reuniu-se no convés para ver as pequenas chamas que apareciam no cimo dos mastros e vergas do navio. Eram fogos de Santelmo, fenómeno devido à eletricidade atmosférica e que anuncia uma violenta tempestade. O Virginia, a bordo do qual viajava Robinson, nada tinha felizmente a temer, nem mesmo do mais violento temporal. Era uma galeota holandesa, um barco de formas arredondadas e com mastros baixos, portanto, pesado e pouco rápido, mas de extraordinária estabilidade mesmo em circunstâncias de mau tempo. Assim, à noite, quando o capitão Van Dayssel viu que uma rabanada de vento rebentara uma das velas como se fosse um balão, deu ordens aos seus homens para arriarem as outras e se fecharem com ele no interior, à espera que a tempestade passasse. O único perigo a recear vinha dos recifes ou bancos de areia, mas o mapa não indicava nada do género, e tudo levava a crer que o Virgínia poderia navegar durante centenas de quilómetros, debaixo da tempestade, sem encontrar obstáculos. Por isso, o capitão jogava tranquilamente às cartas com Robinson, enquanto o temporal rugia lá fora. Estava-se em meados do século XVIII, na época em que muitos europeus – principalmente ingleses - iam radicar-se na América, na mira de fazerem fortuna. Robinson deixara em York a mulher e dois filhos, com o objetivo de explorar a América do Sul e ver se conseguia organizar trocas comerciais proveitosas entre o seu país e o Chile. Algumas semanas antes, o Virgínia contornava o continente americano dobrando heroicamente o terrível cabo Horn, e rumava agora para Valparaíso, onde Robinson queria desembarcar. 9

— Não vos parece que esta tempestade vai atrasar muito a nossa chegada ao Chile? — perguntou ele ao capitão, enquanto baralhava as cartas. O capitão olhou para ele com um sorrisinho irónico, ao mesmo tempo que afagava um cálice de genebra, sua bebida preferida. Tinha muito mais experiência que Robinson e troçava frequentemente da sua impaciência juvenil. — Quando se empreende uma viagem como esta que estais fazendo, respondeu-lhe ele depois de tirar uma fumaça do cachimbo, parte-se quando se quer, mas chega-se quando Deus quer. Tirou depois a tampa a um pequeno barril de madeira onde guardava o tabaco, e mergulhou nele o comprido cachimbo de porcelana. — Desta maneira, fica protegido dos choques e impregna-se como odor adocicado do tabaco. Voltou a fechar o pequeno barril e encostou-se preguiçosamente para trás. — Como estais vendo — disse ele — a vantagem das tempestades está em que nos libertam de preocupações. Não há nada a fazer contra os elementos enfurecidos. Portanto, nada fazemos. Entregamo-nos nas mãos do destino. Nesse mesmo momento, a lanterna suspensa de uma corrente que iluminava a cabina descreveu um arco de círculo, indo estilhaçar-se de encontro ao teto. Antes de tudo mergulhar em completa escuridão, Robinson ainda teve tempo de ver o capitão deslizar de cabeça por cima da mesa. Levantouse e dirigiu-se para a porta. Uma forte corrente de ar fez-lhe compreender que já não havia porta. O mais aterrador de tudo era que, depois do constante balanço e vaivém do navio, que duravam havia vários dias, aquele ficara completamente imóvel. Devia estar encalhado num banco de areia, ou em cima de rochedos. Ao clarão difuso da lua cheia, Robinson avistou no convés um grupo de homens esforçando-se por lançar à água um escaler de salvamento. Dirigia-se para junto deles, com o objetivo de os ajudar, quando um choque formidável abalou todo o navio. Logo a seguir, uma vaga gigantesca despenhou-se sobre o convés e varreu tudo o que nele se encontrava, homens e material.

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II Quando Robinson voltou a si, encontrava-se deitado, o rosto na areia. Uma onda rolou pelo areal molhado e veio lamber-lhe os pés. Girando sobre si, deixou-se ficar de costas. Gaivotas negras e brancas volteavam no céu, de novo azul após a tempestade. Robinson sentou-se com dificuldade e sentiu uma dor aguda no ombro esquerdo. A praia estava juncada de peixes mortos, conchas quebradas e algas negras, para ali lançadas pelas vagas. A ocidente, uma falésia rochosa entrava pelo mar dentro e prolongava-se numa série de recifes. Aí se erguia a silhueta do Virgínia, com os mastros arrancados e os cordames flutuando ao vento. Robinson levantou-se e deu alguns passos. Não estava ferido, mas o ombro magoado continuava a doer-lhe. Como o sol começava a queimar, fez uma espécie de chapéu, enrolando algumas das grandes folhas que cresciam junto à praia. Depois, apanhou um ramo, do qual se serviu como bengala, e embrenhou-se na floresta. Os troncos das árvores caídas formavam, com a mata e as lianas que pendiam dos ramos mais altos, um emaranhado denso onde era difícil penetrar, e frequentemente Robinson via-se obrigado a rastejar para poder avançar. Não se ouvia o menor ruído, nem aparecia animal algum. Robinson ficou, portanto, muito admirado quando viu, a uma centena de passos, a silhueta de um bode selvagem de pelo muito comprido que, imóvel, parecia observálo. Deitando fora a sua bengala, demasiado leve, Robinson apanhou um tronco mais grosso, que poderia servir-lhe de cacete. Quando chegou perto do bode, o animal baixou a cabeça e bodejou num tom surdo. Pensando que ia atacá-lo, Robinson ergueu a moca e vibrou com toda a força uma violenta pancada entre os chavelhos do bode. O animal caiu de joelhos e, depois, tombou sobre o flanco.

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Após várias horas de penosa marcha, Robinson chegou ao sopé de um maciço de rochedos amontoados irregularmente. Descobriu a entrada de uma gruta, à sombra de um cedro gigante; só deu, porém, alguns passos dentro dela, porque era demasiado profunda para poder explorá-la nesse dia. Preferiu escalar os rochedos, para abarcar com os olhos uma vasta extensão. Assim, de pé no cume do rochedo mais alto, pôde constatar que o mar rodeava por todos os lados a terra em que se encontrava, onde não havia vestígios de qualquer habitação. Estava, portanto, numa ilha deserta. Compreendeu então a imobilidade do bode que matara. Os animais selvagens que nunca viram o homem não fogem à sua aproximação. Pelo contrário, observam-no com curiosidade. Robinson sentia-se acabrunhado de tristeza e fadiga. Andando ao acaso em torno da base do enorme penhasco, descobriu uma espécie de ananás selvagem, que cortou com o seu canivete e comeu. Depois, deslizou para debaixo de uma pedra e adormeceu.

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III Despertado pelos primeiros raios de sol nascente, Robinson voltou a descer para a praia de onde partira na véspera. Saltava de rochedo em rochedo, de tronco em tronco, de declive em declive e tirava disso um certo prazer, porque se sentia fresco e bem-disposto, depois de uma noite bem dormida. Em resumo, a sua situação estava longe de ser desesperada. É certo que aparentemente aquela ilha era deserta. Mas não era melhor do que estar cheia de canibais? Além disso, parecia bastante acolhedora, com a sua bela praia ao norte, prados muito húmidos e certamente pantanosos a leste, uma grande floresta a ocidente e, no centro, aquele maciço rochoso perfurado por uma gruta misteriosa, do cimo do qual se desfrutava um panorama magnífico que abarcava todo o horizonte. Estava nesse ponto das suas reflexões quando deparou com o cadáver do bode, no meio da vereda por onde seguira na véspera. Uma dúzia de abutres de pescoço depenado e bico recurvo disputava já a carcaça entre si. Robinson dispersou-os fazendo rodopiar o pau por cima da cabeça e os imponentes pássaros ergueram-se pesadamente nos ares, um após outro, correndo sobre as patas tortas para ganharem balanço. Carregou em seguida aos ombros o que restava do bode e prosseguiu mais lentamente o seu caminho para a praia. Uma vez aí chegado, cortou um pedaço de carne com a faca e pô-lo a assar, suspenso de três paus armados em tripé por cima de uma fogueira. A chama irrequieta reconfortou-o mais do que a carne dura, que conservava o cheiro do bode. Resolveu manter a fogueira acesa, para economizar o isqueiro de pederneira e, também, para chamar a atenção dos tripulantes de algum navio que passasse por acaso ao largo da ilha. É verdade que bastariam os destroços do Virgínia, que continuava encalhado no recife, para alertar os marinheiros; tanto mais que poderiam despertar-lhes a esperança de se apoderarem de ricos despojos. 14

Robinson já pensara em salvar as armas, utensílios e provisões que se encontravam no porão do navio, antes que fossem levadas por outra tempestade. Mas acalentava sempre a esperança de não ter necessidade disso, porque - pensava ele - não tardaria que um navio viesse buscá-lo. Consagrava, portanto, todos os seus esforços à instalação de sinais na praia e na falésia. Ao lado do fogo sempre aceso no areal, amontoou enormes quantidades de ramos e sargaços, com os quais contava fazer grandes colunas de fumo mal uma vela aparecesse no horizonte. Teve depois a ideia de enterrar um mastro na areia, do cimo do qual pendesse uma vara. Em caso de alerta, Robinson amarraria um molho de lenha a arder à extremidade da vara e fá-la-ia subir nos ares, puxando uma liana amarrada à outra ponta da vara. Mais tarde, fez uma descoberta ainda melhor: no alto da falésia erguia-se uma grande árvore morta, um eucalipto cujo tronco estava oco. Encheu o tronco com galhos e ervas secas, que, se lhes deitasse fogo, transformariam toda a árvore numa imensa tocha, visível a muitos quilómetros de distância. Alimentava-se, ao acaso, de mariscos, raízes de plantas, cocos, bagas, ovos de pássaros e de tartaruga. Ao terceiro dia, deitou fora a carcaça do bode, que já cheirava muito mal. Mas depressa se arrependeu porque os abutres, que se regalaram com ela, passaram a segui-lo constantemente, espiando-o na esperança de novas dádivas. De vez em quando, irritado com a sua presença, atirava-lhes pedras e paus. As sinistras aves afastavam-se então preguiçosamente, mas voltavam logo a seguir.

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IV Por fim, Robinson cansou-se daquela espera, vigiando um horizonte sempre vazio. Decidiu começar a construção de um barco com envergadura suficiente para lhe permitir navegar até às costas do Chile. Para isso, necessitava de ferramentas. Resignou-se, portanto, embora de má vontade, a visitar os destroços do Virgínia, para de lá trazer o que pudesse ser-lhe útil. Atou com lianas uma dúzia de toros, construindo uma espécie de jangada, que embora instável poderia ser utilizada desde que não houvesse ondulação forte. Serviu-se de uma vara robusta para deslocar a jangada até aos primeiros rochedos, pois aí a profundidade era pequena pela maré baixa. Depois, apoiou-se nos rochedos para prosseguir. Deu, assim, duas voltas aos destroços do navio. A parte visível do casco estava intacta e devia ter encalhado num recife escondido debaixo de água. Se a tripulação tivesse ficado abrigada na entrecoberta, em vez de se expor no convés varrido pelas vagas, talvez ainda estivessem todos vivos. O convés estava atravancado de mastros quebrados, vergas e cabos de tal modo emaranhados uns nos outros que era difícil abrir caminho entre eles. Reinava a mesma desordem nos porões, mas a água não penetrara neles e Robinson encontrou caixas cheias de biscoitos e carne seca, de que comeu o mais que pôde, na falta de algo para beber. É certo que havia garrafões de vinho e licores, mas Robinson era abstémio nunca tendo provado uma bebida alcoólica, e estava resolvido a manter essa regra. A grande surpresa do dia foi a descoberta, na parte traseira do porão, de quarenta barris de pólvora negra, mercadoria de que o capitão nunca lhe falara, certamente com receio de o assustar. Robinson demorou vários dias a transportar na sua jangada e a levar para terra todos aqueles explosivos, pois durante metade do dia 16

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a maré alta interrompia a sua atividade, impedindo-o de manobrar com a ajuda da vara. Aproveitava essas alturas para pôr os barris ao abrigo do sol e da chuva, sob uma cobertura de folhas de palmeira fixas com pedras. Trouxe igualmente do navio duas caixas de biscoitos, um óculo, dois mosquetes de pederneira, uma pistola de dois canos, dois machados, uma pá, uma enxada, um martelo, alguma estopa e uma peça de tecido de lã vermelha, de fraca qualidade, que se destinava sem dúvida a eventuais trocas com os indígenas. No camarote do capitão encontrou o famoso barril de tabaco, bem fechado e contendo o grande cachimbo de porcelana, intacto apesar da sua fragilidade. Carregou também na jangada uma grande quantidade de pranchas arrancadas ao convés e às divisórias do navio. Por fim, encontrou, no camarote do imediato, uma Bíblia em bom estado, que embrulhou num pedaço de vela, para a proteger. Logo no dia seguinte, começou a construir uma embarcação que batizou com o nome de Evasão.

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V No meio de uma clareira perfeitamente plana, Robinson pôs a descoberto, libertando-o das ervas que o cobriam, um belo tronco de murta, seco, são e bem desenvolvido, que poderia constituir a peça-mestra do seu futuro barco. Pôs-se imediatamente a trabalhar, sem deixar de vigiar o horizonte que podia avistar do seu estaleiro, pois continuava esperançado em que aparecesse algum navio. Depois de desbastar os ramos do tronco, trabalhou-o com o machado, procurando dar-lhe a forma de uma viga retangular. Apesar de todas as suas buscas no Virgínia, não conseguira encontrar pregos, nem parafusos, nem broca, nem sequer uma serra. Trabalhava lentamente, cuidadosamente, reunindo as peças do barco como um jogo de paciência. Contava que a água, fazendo inchar a madeira, daria ao casco uma solidez e impermeabilidade suplementares. Lembrou-se mesmo de endurecer à chama as extremidades das peças e de as molhar depois de as encaixar umas nas outras, de modo a soldá-las melhor. Cem vezes a madeira rachou sob a ação ora da água, ora da chama, mas recomeçava sempre, sem nunca sentir cansaço ou impaciência. O que mais fazia falta a Robinson para estes trabalhos era a serra. Essa ferramenta - que é impossível fabricar com meios improvisados - ter-lhe-ia poupado meses de trabalho com o machado e a faca. Uma manhã, ao despertar, julgou sonhar ao ouvir um ruído que não podia ser senão o de alguém em plena ação de serrar. O ruído parava de vez em quando, como se o serrador mudasse de toro, e recomeçava em seguida com uma regularidade monótona. Robinson saiu de mansinho do buraco na rocha onde se habituara a dormir e encaminhou-se tão silenciosamente como um gato para o local de onde provinha o ruído. A princípio nada viu, mas acabou por descobrir, junto de uma palmeira, um caranguejo gigantesco que serrava, com as pinças, um coco preso entre as patas. Nos ramos da árvore, a seis 19

metros de altura, outro caranguejo serrava o pé dos cocos para os fazer cair. Os dois caranguejos não pareceram nada incomodados com a chegada de Robinson e continuaram tranquilamente o seu ruidoso trabalho. Na falta de verniz ou mesmo de alcatrão para untar o casco, Robinson decidiu-se a fabricar uma espécie de cola. Teve para isso de arrasar quase na sua totalidade um pequeno bosque de azevinho que descobrira logo que começara a trabalhar. Durante quarenta e cinco dias, retirou dos arbustos a casca exterior e recolheu a de dentro, cortando-a em tiras. Pô-las depois a ferver num caldeirão, durante muito tempo, até que, a pouco e pouco, se decompuseram num líquido espesso e viscoso. Espalhou então esse líquido ainda a escaldar, pelo casco da embarcação. O Evasão estava concluído. Robinson começou a juntar as provisões que levaria consigo, mas interrompeu pouco depois essa tarefa, lembrando-se de que seria melhor começar por lançar o seu novo barco à água, para ver como se comportava. A verdade é que tinha grande receio dessa experiência, que iria decidir do seu futuro. Como é que o Evasão se aguentaria no mar? Seria suficientemente estanque? Não iria virar-se à primeira onda? Nos seus piores pesadelos, o barco afundava-se a pique mal chegava à água, e Robinson via-o afundar-se como uma pedra nas profundezas verdes... Acabou por se decidir a lançar o Evasão ao mar. Verificou logo que era incapaz de arrastar por cima das ervas e da areia até ao mar aquele casco que devia pesar mais de quinhentos quilos. Na verdade, esquecera-se completamente do problema do transporte do barco até à beira-mar. Isso devia-se em parte ao facto de estar demasiado influenciado pela leitura da Bíblia, em especial das páginas que falavam da Arca de Noé. Construída longe do mar, a arca apenas tivera de esperar que a água chegasse até ela, sob a forma de chuvas e torrentes que desciam do alto das montanhas. Robinson cometera um erro fatal, ao não construir o Evasão diretamente na praia. Tentou então colocar toros arredondados por debaixo da quilha para a fazer rolar. Mas o barco não se moveu, e o resultado foi arrombar uma das pranchas do casco, ao fazer força sobre ela com uma estaca colocada sobre um cepo e utilizada como alavanca. Ao cabo de três dias de esforços inúteis, a 20

fadiga e a cólera obscureceram-lhe a razão. Teve então a ideia de cavar uma vala na falésia, desde o mar até ao local onde se encontrava o barco, o qual poderia então deslizar pela vala e atingir o nível da praia. Atirou-se vigorosamente ao trabalho, mas concluiu que esses aterros lhe levariam dezenas de anos até estarem completados. E renunciou.

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VI Nas horas mais quentes do Verão, os javalis e os seus primos da América do Sul, os pecaris, costumam afundar o corpo em certos pântanos da floresta. Agitam a água com as patas até se formar uma lama muito líquida e mergulham depois, ficando apenas com a cabeça de fora, mas ao abrigo do calor e dos mosquitos. Desencorajado pelo fracasso do Evasão, Robinson tivera a oportunidade de seguir, um dia, uma manada de pecaris, vendo-os deixara-se escorregar para a lama fresca, mantendo à superfície apenas o nariz, os olhos e a boca. Passava dias inteiros assim deitado no meio das lentilhas-de-água, dos nenúfares e dos ovos de rã. Os gases que se evolavam da água estagnada perturbavamlhe o espírito. Por vezes, julgava-se ainda no meio da família, em York, e ouvia as vozes da mulher e dos filhos. Ou então imaginava que era um bebé de berço, e via nas árvores que o vento agitava por cima da sua cabeça, pessoas adultas inclinadas para ele. Quando à noitinha saía da lama tépida, a cabeça andava-lhe à roda. Já não conseguia deslocar-se senão com as mãos no chão, e comia fosse o que fosse, com o nariz na terra, como um porco. Deixara de se lavar e uma crosta de terra e lama seca cobria-o dos pés à cabeça. Certo dia, quando estava a roer um tufo de agriões, à beira de um charco, pareceu-lhe ouvir música. Era como que uma sinfonia do céu, com vozes de anjos acompanhadas por acordes de harpa. Robinson pensou que estava morto e que aquilo que ouvia era a música do paraíso. Ao levantar os olhos, porém, viu surgir uma vela branca no horizonte, a leste. Precipitou-se logo para o estaleiro do Evasão, onde as ferramentas estavam todas espalhadas, e conseguiu encontrar o isqueiro. Correu em seguida para o eucalipto oco, acendeu um molho de ramos secos e empurrou-o pela abertura existente no 22

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tronco, junto ao solo. Uma coluna de fumo acre começou a formar-se pouco depois, mas o lume parecia tardar em pegar. De resto, para quê? O navio vinha direito à ilha. Dentro em pouco lançaria a âncora perto da praia e dele partiria uma lancha. Rindo como um louco, Robinson corria em todas as direções, à procura de umas calças e de uma camisa, que acabou por encontrar debaixo do casco do Evasão. Correu depois para a praia, enquanto esgatanhava o rosto com as unhas, procurando desemaranhar a barba e os cabelos, que pareciam a máscara de um animal. O navio estava agora muito próximo e Robinson via-o distintamente, inclinando com graciosidade o velame para as vagas orladas de espuma. Era um desses galeões espanhóis que outrora transportavam, através do Oceano, o ouro, a prata e as pedras preciosas do México. À medida que se aproximava, Robinson distinguia no convés uma multidão colorida. Parecia estar a desenrolar-se uma festa a bordo. A música provinha de uma pequena orquestra e de um coro de crianças vestidas de branco, agrupadas no castelo da popa. Havia pares a dançar com elegância, em torno de uma mesa coberta por uma baixela de ouro e cristal. Ninguém parecia ver o náufrago, nem sequer a costa ao longo da qual o navio seguia agora, depois de ter virado de bordo. Robinson seguia-o correndo na praia. Gritava, agitava os braços, parava para apanhar seixos, que atirava na direção do navio. Caiu, levantou-se, caiu novamente. O galeão chegava agora ao fim da praia, onde começava uma zona de dunas de areia. Robinson atirou-se à água e nadou com todas as suas forças para o navio, do qual já só via o casco da popa, ataviado de brocados. Uma rapariguinha estava encostada a uma das janelas abertas na amurada e sorria-lhe tristemente. Robinson estava certo de conhecer aquela jovem. Mas, quem seria? Abriu a boca para a chamar. A água salgada entroulhe pela garganta e os seus olhos já só viam a água verde e uma pequena raia que fugia, recuando... Uma coluna de chamas arrancou-o ao desfalecimento. Que frio ele tinha! Lá no alto da falésia, o eucalipto ardia como uma tocha na noite. Robinson dirigiu-se a cambalear para aquela fonte de luz e calor. 24

Passou o resto da noite encolhido nas ervas, o rosto voltado para o tronco incandescente, e aproximando-se dele à medida que o calor diminuía. Com os primeiros alvores da madrugada conseguiu, finalmente, identificar a jovem do galeão. Era a sua própria irmã, Lucy, que morrera vários anos antes da sua partida. Portanto, aquele barco, aquele galeão - tipo de navio que, de resto, desaparecera dos mares havia mais de dois séculos - não existia. Tratava-se de uma alucinação produzida pelo seu cérebro doente. Robinson compreendeu finalmente que os banhos na lama e toda aquela vida de preguiça que levava estavam a enlouquecê-lo. O galeão imaginário constituía um sério aviso. Era necessário recuperar o domínio de si próprio, trabalhar, tomar o destino nas mãos. Voltou as costas ao mar, que tanto mal lhe fizera, fascinando-o desde a sua chegada à ilha, e encaminhou-se para a floresta e o maciço rochoso.

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VII Durante as semanas seguintes, Robinson explorou metodicamente a ilha e tratou de localizar as fontes e os abrigos naturais, os melhores locais para a pesca, os sítios onde havia cocos, ananases e rebentos de palmeiras. Fez da gruta que se abria no maciço rochoso do centro da ilha o seu armazém principal. Transportou para ali tudo o que pôde retirar dos destroços do navio, os quais, por sorte, haviam resistido às tempestades dos meses anteriores. Depois de ter depositado os quarenta barris de pólvora negra na parte mais funda da gruta, ali armazenou também três arcas com roupas, cinco sacos de cereais, dois cestos de louça e pratas, várias caixas de objetos diversos - candeeiros, esporas, joias, lupas, óculos, canivetes, cartas marítimas, espelhos, dados de jogar -, uma mala com material de navegação, cabos, roldanas, lanternas, linhas, flutuadores, etc. e, enfim, um cofre com moedas de ouro, prata e cobre. Os livros que encontrou nas cabinas do barco encalhado haviam sido de tal modo lavados pela água do mar e da chuva, que o texto impresso desaparecera. Mas Robinson pensou que, secando essas páginas brancas ao sol, poderia utilizá-las para escrever o seu diário, desde que encontrasse um líquido que pudesse fazer de tinta. Esse líquido foi-lhe fornecido por um peixe que nessa altura abundava perto da falésia do levante, o peixe-ouriço. Trata-se de um animal terrível, com mandíbulas poderosas e picos venenosos a cobrirem-lhe o corpo. Em caso de perigo, enche-se de ar e fica redondo, parecendo uma bola. Como todo aquele ar se lhe acumula no ventre, flutua de costas, sem que essa posição pareça incomodá-lo. Ao remexer com um pau num desses peixes que ficara na areia, Robinson verificara que tudo o que lhe tocava no ventre adquiria uma cor vermelha brilhante que não saía facilmente e poderia servir-lhe de tinta. Apressou-se a aparar uma pena de abutre e pôde assim, sem demora, escrever as primeiras palavras numa folha de papel. Foi então que resolveu registar diariamente, no livro, o essencial dos principais factos que 26

lhe fossem acontecendo. Desenhou na primeira página o mapa geográfico da ilha e escreveu por cima o nome que acabava de lhe dar: Speranza, o que queria dizer esperança, pois decidira nunca mais se deixar abater pelo desespero. Entre os animais da ilha, os mais úteis seriam sem dúvida as cabras e os cabritos, que ali abundavam, se conseguisse domesticá-los. Ora as cabrinhas, embora não fugissem quando se aproximava, defendiam-se encarniçadamente quando tentava mungi-las. Construiu então uma cerca, feita de paus colocados horizontalmente e atados em estacas, que depois revestiu de lianas entrelaçadas. Fechou lá dentro cabritos muito jovens, que com os seus gritos atraíram as mães. Robinson libertou depois as crias e aguardou vários dias, até que os úberes inchados de leite começaram a provocar dores às cabras e estas se deixaram mungir com alívio. O exame dos sacos de arroz, trigo, cevada e milho que salvara dos destroços do Virgínia, provocou-lhe uma dolorosa deceção. Os ratos e o gorgulho haviam devorado uma parte, de que não restava senão a casca misturada com dejetos. Outra parte estava deteriorada pela água das chuvas e do mar. Foi necessário escolher cada cereal grão a grão, um longo e cansativo trabalho de paciência. Mesmo assim, Robinson conseguiu semear alguns acres de pradaria, que previamente queimara e lavrara com uma placa de metal proveniente do Virgínia, na qual fizera um orifício suficientemente grande para nele introduzir um cabo. Assim, criando um rebanho doméstico e um campo cultivado, Robinson começara a civilizar a sua ilha, mas a obra era ainda frágil e limitada, e sentia nitidamente que aquela continuava a ser uma terra hostil e selvagem. Foi nesse estado de espírito que, uma manhã, surpreendeu um vampiro agarrado a um cabrito, cujo sangue chupava. Os vampiros são morcegos gigantes que podem atingir setenta e cinco centímetros de envergadura e se deixam cair suavemente, de noite, em cima dos animais adormecidos, para lhes sugarem o sangue. Noutra altura, quando andava a apanhar conchas nas rochas meio cobertas de água, Robinson recebeu um jacto de água em cheio 27

no rosto. Um tanto abalado pelo choque, deu alguns passos, mas viu-se obrigado a parar novamente, atingido na cara por um segundo jacto. Acabou por descobrir, num buraco da rocha, um pequeno polvo cinzento que tinha a espantosa faculdade de expelir água pela boca com extraordinária pontaria. Num dia em que partira a enxada e deixara fugir a sua melhor cabra leiteira, Robinson entregou-se de novo ao desespero e retomou o caminho do lamaçal. Ali chegado, tirou as roupas e deixou-se escorregar para dentro da lama morna. Logo os vapores envenenados da água estagnada, acima da qual voavam nuvens de mosquitos, o envolveram e lhe fizeram perder a noção do tempo. Esqueceu a ilha com os seus abutres, vampiros e polvos, e julgou-se de novo criança em casa do pai, que era vendedor de tecidos em York; e parecia-lhe ouvir as vozes dos pais, irmãos e irmãs. Compreendeu então que os perigos da preguiça, do desencorajamento e do desespero continuavam a ameaçá-lo e que seria necessário trabalhar sem descanso para lhes escapar. O milho perdeu-se completamente e os terrenos onde Robinson o havia semeado foram novamente invadidos pelos cardos e urtigas. A cevada e o trigo, porém, prosperaram e a primeira alegria que lhe deu Speranza foi acariciar as pequenas hastes, maleáveis e tenras. Quando chegou a altura da ceifa, procurou qualquer coisa que pudesse servir-lhe de foice ou gadanha e acabou por encontrar um velho sabre de abordagem que decorava o camarote do comandante e trouxera juntamente com os outros despojos. Primeiro, quis fazer o trabalho metodicamente, como vira aos camponeses da sua terra. Porém, ao manejar aquela arma heroica, apoderou-se dele uma espécie de ardor belicoso e investiu fazendo-a rodopiar por cima da cabeça, ao mesmo tempo que soltava rugidos de fúria. Poucas espigas se estragaram com este tratamento, mas a palha partida, dispersa e espezinhada, ficou inutilizável. Depois de ter extraído o grão das espigas batendo-as com um malho em cima de uma vela dobrada ao meio, joeirou o grão fazendo-o passar de uma cesta para outra, ao ar livre, num dia em que uma aragem viva arrebatava as cascas e as pequenas impurezas. No final verificou, com orgulho, que a sua 28

colheita totalizava trinta galões de trigo e vinte de cevada. Para moer grão, preparara um almofariz e um pilão - um tronco de árvore escavada e um ramo resistente com a extremidade arredondada - e o forno estava a postos para a primeira cozedura. Foi então que tomou de repente a decisão de não fabricar pão com essa colheita, reservando-a toda para a próxima sementeira das suas terras. Ao privar-se assim de pão, pensava realizar um ato meritório e razoável. Na realidade, estava apenas a obedecer a uma nova tendência, a avareza, que viria a fazer -lhe muito mal. Foi pouco depois desta primeira colheita que Robinson experimentou a enorme alegria de encontrar Tenn, o cão do Virgínia. O animal saltou de uma moita a gemer e a contorcer-se de alegria, fazendo uma grande festa por voltar a encontrar o antigo dono. Robinson nunca soube como o cão passara todo aquele tempo na ilha, nem por que razão não viera ter com ele mais cedo. A presença desse companheiro incitou-o a levar a cabo um projeto que havia muito tempo concebera: construir uma verdadeira casa, para não continuar a dormir a um canto da gruta, ou debaixo de uma árvore. Escolheu para a sua habitação um sítio ao pé do grande cedro, no centro da ilha. Começou por escavar um fosso retangular, onde colocou uma camada de seixos que cobriu de areia branca. Em cima destas fundações perfeitamente secas e permeáveis, ergueu paredes sobrepondo troncos de palmeiras. O teto fabricou-o com um entrançado de caniços revestido de folhas de árvoreda-borracha dispostas em escamas, como ardósias. A superfície exterior das paredes foi revestida com uma argamassa de argila. Por cima do solo arenoso colocou um lajedo feito de pedras chatas e irregulares, unidas de junco, alguns móveis de vime, a louça e as lanternas retiradas do Virgínia, o óculo, o sabre e uma das espingardas pendurada na parede, criaram uma atmosfera confortável e íntima de que há muito Robinson se encontrava privado. E adquiriu até o hábito, depois de tirar das arcas do Virgínia as roupas nelas contidas - e algumas eram muito belas! -, de se vestir todas as noites para jantar com casaca, calções justos e compridos, chapéu, meias e sapatos. Mais tarde verificou que o sol só era visível do interior da habitação a certas horas do dia e que, para saber as horas, seria mais prático fabricar uma espé29

cie de relógio que funcionasse dia e noite dentro de casa. Ao fim de algumas tentativas construiu uma coisa parecida com uma clepsidra, isto é, um relógio de água como os que existiam antigamente. Consistia simplesmente num garrafão de vidro transparente em cujo fundo fizera um pequeno orifício por onde a água se escoava gota a gota, caindo numa gamela de cobre pousada no chão. O garrafão levava vinte e quatro horas a esvaziar-se e Robinson fizera nas paredes vinte e quatro círculos paralelos, cada um assinalado com um número. O nível do líquido indicava assim as horas, a qualquer momento. Precisava também de um calendário que lhe indicasse o dia da semana, o mês e o número dos anos que iam decorrendo. Perdera completamente a noção do tempo que passara desde a sua chegada à ilha. Um ano, dois anos, talvez mais? Resolveu começar do zero. Ergueu diante da casa um mastrocalendário: era um tronco sem casca, no qual fazia todos os dias um pequeno entalhe, uma vez por mês um golpe mais profundo e, ao fim do décimo segundo mês, inscreveria um grande «1» relativo ao primeiro ano do seu calendário local.

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VIII A vida seguia o seu curso, mas Robinson sentia cada vez maior necessidade de organizar mais eficazmente o emprego do seu tempo. Ainda receava a perigosa tentação da lama que talvez o transformasse num animal. É muito difícil manter a nossa natureza humana quando ninguém está presente para nos ajudar! Os únicos remédios que ele conhecia contra esta perniciosa tendência eram o trabalho, a disciplina e a exploração de todos os recursos da ilha. Quando o calendário já tinha mil dias gravados, decidiu dar leis à ilha Speranza. Envergou um traje de cerimónia, pôs-se diante de uma escrivaninha que concebera e construíra de modo a poder escrever de pé; abriu em seguida um dos mais belos livros, apagados pela água, que encontrara no Virgínia, e escreveu:

CONSTITUIÇÃO DA ILHA SPERANZA INICIADA NO MILÉSIMO DIA DO CALENDÁRIO LOCAL

Artigo 1º: Robinson Crusoe, nascido em York a 19 de Dezembro de 1737, é nomeado governador da ilha de Speranza, situada no Oceano Pacífico, entre as ilhas Juan Fernandez e a costa oriental do Chile. Nessa qualidade, são-lhe conferidos todos os poderes para legislar no conjunto do território insular e das suas águas territoriais. Artigo 2º: Os habitantes da ilha são obrigados a pensar em voz alta. (Com efeito, como não tinha ninguém com quem falar, Robinson receava perder o uso da palavra. Já começava a sentir, quando queria falar, a língua um pouco entaramelada, como se tivesse bebido um pouco de vinho a mais. A partir 31

desse momento, obrigava-se a falar constantemente com as árvores, as pedras, as nuvens e também, naturalmente, com as cabras e com Tenn.) Artigo 3º: Sexta-feira é dia de jejum. Artigo 4º: É proibido trabalhar ao domingo. Todo o trabalho deve cessar às dezanove horas de sábado, em toda a ilha, e os habitantes devem vestir os seus melhores trajes para jantar. No domingo de manhã às dez horas, reunirse-ão no templo para fazerem as suas orações. (Ao estabelecer estas leis, Robinson não podia deixar de as redigir como se a ilha contasse numerosos habitantes. Parecia-lhe absurdo, com efeito, fazer leis para um homem apenas. Além disso, imaginava que talvez um dia o acaso lhe trouxesse um ou vários companheiros...) Artigo 5º: Só o governador está autorizado a fumar cachimbo, mas apenas uma vez por semana, no domingo à tarde depois do almoço. (Descobrira pouco antes a utilização e o prazer que lhe proporcionava o cachimbo de porcelana do capitão Van Deyssel. Infelizmente, a reserva de tabaco contida no pequeno barril não duraria muito tempo e esforçava-se assim por fazê-la durar tanto quanto possível.) Concedeu a si próprio alguns momentos de reflexão antes de determinar as penas em que incorreriam aqueles que não respeitassem estas leis. Deu alguns passos em direção à porta, que abriu de par em par. Como a natureza era bela! A folhagem das árvores era como um mar verde agitado pelo vento e que se confundia ao longe com a linha azul do Oceano. Mais para além, só o céu, absolutamente azul e sem nuvens. Ah, não! Não era absolutamente azul! Robinson teve um sobressalto ao avistar, para os lados da praia grande, uma nuvem de fumo branco que se erguia no ar. E, no entanto, estava certo de não ter deixado alguma fogueira acesa para aqueles lados. Seriam visitantes? Tirou da parede uma espingarda, uma bolsa de pólvora, outra de balas e o óculo. Assobiou depois para chamar Tenn e embrenhou-se na 32

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espessura do mato, evitando o caminho que o levaria diretamente da gruta à praia. Três pirogas compridas, com flutuadores e balancins, haviam sido puxadas para a areia seca. Uns quarenta homens estavam de pé, formando um círculo ao redor de uma fogueira, da qual se elevava uma coluna de fumo pesado, espesso e branco. Robinson reconheceu, com a ajuda do óculo, os temíveis índios araucanos da costa do Chile, do tipo costinos. Este povo resistira aos invasores incas e infligira depois sangrentas derrotas aos conquistadores espanhóis. Pequenos, entroncados, usavam uma rudimentar tanga de couro. O rosto largo, com os olhos extraordinariamente afastados, tornava-se ainda mais estranho em virtude do costume que tinham de arrancar completamente as sobrancelhas. Todos possuíam uma cabeleira negra muito comprida, que sacudiam orgulhosamente a todo o momento. Robinson conhecia-os das frequentes viagens que fizera a Temuco, sua capital. Sabia que se acaso tivesse estalado outro conflito com os espanhóis, nenhum homem branco por eles seria poupado. Teriam feito a longa travessia das costas do Chile até Speranza naquelas pirogas? Não era impossível, dada a sua reputação de navegadores experimentados. Mas era mais provável que tivessem colonizado uma ou outra das ilhas Juan Fernandez - e Robinson pensou logo que tivera sorte em não cair nas suas mãos, pois tê-lo-iam certamente reduzido à condição de escravo, ou talvez até o tivessem massacrado! Graças às narrações que ouvira na Araucanía, adivinhava o significado da cerimónia que se desenrolava na praia naquele momento. Uma velha, magra e despenteada, ia e vinha, cambaleando, no meio do círculo formado pelos homens. Aproximava-se da fogueira, atirava para as chamas um punhado de pólvora e aspirava avidamente o pesado fumo branco que logo se evolava. Voltava-se depois para os índios, que se mantinham imóveis, parecendo passá-los em revista, homem por homem, parando ora diante de um, ora diante de outro. Voltava depois para junto da fogueira e tudo recomeçava. Tratava-se de uma feiticeira encarregada de descobrir entre os índios o causador de uma desgraça qualquer que atingira a tribo — doença, morte 34

inexplicável ou, simplesmente, um incêndio, uma tempestade, uma má colheita... E, de repente, escolheu realmente a vítima. O seu longo braço magro estendeu-se para um dos homens, ao mesmo tempo que da sua boca muito aberta saíam maldições que Robinson não podia ouvir. O índio designado pela feiticeira atirou-se para o chão, de barriga para baixo, sacudido por grandes estremeções de terror. Um dos outros dirigiu-se para ele. Ergueu o machado - uma grande lâmina que lhes serve, simultaneamente, de arma e ferramenta - e começou por atirar pelos ares a tanga do miserável. Descarregou-o depois sobre ele a golpes regulares, cortando-lhe a cabeça, em seguida os braços e as pernas. Por fim, os seis pedaços da vítima foram atirados ao fogo, cujo fumo imediatamente se tornou negro. Os índios desfizeram o círculo e dirigiram-se para as embarcações. Seis deles tiraram de lá alguns odres e encaminharam-se para a floresta. Robinson escondeu-se rapidamente entre as árvores, sem perder de vista os homens que invadiram os seus domínios. Se descobrissem vestígios da sua presença na ilha, poderiam lançar-se em sua perseguição e dificilmente lhes escaparia. Felizmente, porém, a primeira nascente de água encontrava-se na orla da floresta e os índios não tiveram que penetrar muito no interior. Encheram os odres, que transportavam aos pares, pendurados de uma vara, e dirigiram-se para as pirogas, onde os companheiros se haviam já instalado. A feiticeira estava acocorada numa espécie de assento ornamentado, instalado à ré de um dos barcos. Quando finalmente as pirogas desapareceram atrás das falésias, Robinson aproximou-se da fogueira. Distinguiam-se ainda os restos do homem tão cruelmente sacrificado em consequência de ter sido declarado responsável por uma calamidade qualquer. Foi cheio de temor, desgosto e tristeza que Robinson voltou à sua habitação de governador e retomou a redação das leis de Speranza. Artigo 6º: A ilha de Speranza é declarada praça-forte. Fica subordinada ao comando do governador, que assume a patente de general. O recolher é obrigatório uma hora após o pôr do Sol... 35

Durante os meses seguintes, Robinson construiu à volta da casa e da entrada da gruta uma vedação com ameias cujo acesso era por sua vez defendido por um fosso com dois metros de largura e três de profundidade. As duas espingardas e a pistola estavam a postos - e carregadas - no parapeito das três seteiras centrais. Em caso de ataque, Robinson podia fazer crer aos assaltantes que não era o único defensor da fortaleza. O sabre de abordagem e o machado também estavam ao alcance da mão, mas era pouco provável que viesse a verificar-se um corpo a corpo, pois espalhara armadilhas nas proximidades do fosso. Instalou primeiro uma série de poços em forma de funil e dispostos em xadrez, no fundo dos quais colocou um espeto afiado à chama, coberto por tufos de erva assentes numa fina rede de juncos. Enterrou depois no solo, na orla da floresta, onde logicamente se reuniriam os eventuais assaltantes antes de atacarem, dois tonéis de pólvora que uma corda de estopa permitiria fazer explodir à distância. Por fim, tornou móvel a pequena ponte pela qual se atravessava o fosso, manobrando-a de dentro da fortaleza. Todos os dias ao entardecer, antes de tocar a recolher na sua trompa, fazia a ronda, acompanhado de Tenn, que parecia ter compreendido o perigo que ameaçava Speranza e os seus habitantes. Procedia-se depois ao encerramento da fortaleza. Deslocavam-se blocos de pedra para lugares previamente calculados de modo a obrigar os eventuais assaltantes a dirigirem-se para as armadilhas. Retirava a passadeira-ponte levadiça, todas as entradas eram barricadas e tocava-se a recolher. Robinson preparava então o jantar, punha a mesa na sua bela casa e retirava-se para a gruta. Voltava de lá alguns minutos depois, lavado, penteado, perfumado, a barba aparada e vestindo o seu uniforme de general. Finalmente, à luz de um candelabro feito de varinhas untadas de resina, jantava lentamente, sob o olhar entusiasta e atento de Tenn.

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IX A este período de intensa atividade militar seguiram-se chuvas abundantes. Foi necessário fazer muitas reparações na casa, nos caminhos e currais danificados pelas torrentes de água. Depois veio novamente a altura da colheita de cereais. Foi tão abundante que se tornou necessário limpar e secar outra gruta, perto da grande, onde já não cabiam grãos. Desta vez, Robinson já não se privou da alegria de fazer pão, o primeiro que comia desde a sua instalação na ilha. Esta abundância de cereais em breve levantou o problema da luta contra os ratos. Com efeito, os roedores pareciam multiplicar-se na mesma proporção em que aumentavam as provisões suscetíveis de os alimentar, e como Robinson tencionava acumular colheita após colheita, enquanto tivesse forças para isso, era-lhe necessário lutar contra os roedores. Certos cogumelos vermelhos com pintas amarelas deviam ser venenosos, pois vários cabritos tinham morrido depois de os comerem misturados com a erva. Robinson extraiu deles um suco acastanhado, com o qual embebeu alguns grãos de trigo. Espalhou depois esses grãos envenenados pelos locais por onde os ratos passavam. Mas estes regalaram-se com eles e nem sequer ficaram doentes. Fabricou depois ratoeiras nas quais os animais caíam por um alçapão. Porém, teriam sido necessários vários milhares. Além disso, teria de afogar os ratos apanhados nas ratoeiras, mergulhando-os nas águas da ribeira e assistir, horrorizado, à sua agonia. Robinson presenciou um dia um duelo terrível entre dois ratos. Cegos e surdos para tudo o que os rodeava, os dois roedores, engalfinhados, rolavam no solo soltando guinchos de raiva. Acabaram por se estrangular um ao outro e morreram sem se desprenderem. Comparando os dois cadáveres, Robinson apercebeu-se de que pertenciam a duas variedades diferentes. Um, muito negro, redondo e pelado, parecia-se em todos os aspetos aos que se habitua37

ra a ver nos navios em que viajara. O outro, cinzento, mais alongado e com pelo mais espesso, bastante parecido com os arganazes dos campos, habitava nos prados da ilha. Robinson compreendeu rapidamente que a primeira espécie provinha dos destroços do Virgínia e proliferara graças às reservas de cereais, ao passo que a outra sempre vivera na ilha. As duas espécies pareciam dispor de territórios e recursos bem diferenciados. Robinson verificou-o certa noite, ao soltar na pradaria um rato preto que acabava de apanhar na gruta. Durante muito tempo, apenas o ondular da erva indicava que se desenrolava uma caçada impiedosa. Depois, Robinson viu jorrar areia na base de uma duna, a alguma distância. Quando lá chegou, já só restavam do rato tufos de pelos e pedaços de carne. Espalhou então dois sacos de cereal pela pradaria, tendo primeiro traçado com os grãos um fino rasto que partia da gruta. Este pesado sacrifício corria o risco de se revelar inútil. Mas não foi. Ao cair da noite, os pretos vieram em grande número recuperar os grãos que, certamente, consideravam sua propriedade. Os cinzentos juntaram-se para repelirem essa súbita invasão. A batalha desenrolou-se. Parecia que uma tempestade levantava por toda a parte pequenos jatos de areia. Os pares de combatentes rolavam como bolas vivas, ao mesmo tempo que uma chiadeira ensurdecedora subia do solo. O resultado do combate era previsível. Um animal que se bate no território do adversário sai quase sempre vencido. Nesse dia, todos os ratos negros morreram.

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X Robinson nunca fora vaidoso e não sentia prazer especial em se ver ao espelho. No entanto, havia tanto tempo que isso não lhe acontecia que ficou muito surpreendido quando um dia, ao tirar um espelho de um dos baús do Virgínia, pôde voltar a ver o seu próprio rosto. Ao fim e ao cabo, não mudara muito. Apenas a barba estava mais comprida e muitas rugas novas lhe sulcavam agora a face. O que o inquietou, apesar de tudo, foi o seu ar sério, uma espécie de tristeza que nunca o abandonava. Tentou sorrir. Nessa altura sentiu um calafrio, ao dar-se conta de que não era capaz. Bem se esforçou, tentou a todo o custo franzir os olhos e levantar os cantos da boca. Impossível: já não sabia sorrir. Tinha a impressão de que o seu rosto era de madeira, uma máscara imóvel, congelada numa expressão taciturna. Depois de muito refletir, acabou por compreender o que se passava. Era por estar sozinho. Havia demasiado tempo que não tinha alguém a quem sorrir, e deixara de saber fazê-lo: quando queria esboçar um sorriso, os músculos não lhe obedeciam. Continuou a olhar-se ao espelho com uma expressão dura e severa e o coração apertava-se-lhe de tristeza. Assim, tinha tudo de que necessitava naquela ilha: bebida e comida, uma casa, uma cama para dormir; mas ninguém a quem sorrir, e o seu rosto era como gelo. Foi então que baixou os olhos para Tenn. Estaria Robinson a sonhar? O cão estava a sorrir-lhe! Num dos lados do focinho o lábio negro estava levantado, pondo a descoberto uma dupla fila de colmilhos. Ao mesmo tempo, inclinava comicamente a cabeça para um dos lados e os olhos cor de amêndoa franziam-se ironicamente. Robinson agarrou com ambas as mãos a grande cabeça felpuda e as pálpebras humedeceram-se-lhe de emoção, enquanto um impercetível tremor lhe agitava as comissuras dos lábios. Tenn continuava a sorrir-lhe à sua ma eira e Robinson olhava-o atentamente, para responder a sorrir. 39

A partir desse momento, foi como que um jogo entre ambos. De repente, Robinson interrompia o trabalho, ou a caçada, ou o passeio pela praia, e fixava Tenn de certa maneira. O cão sorria-lhe a seu modo, enquanto o rosto de Robinson recuperava a maleabilidade e se humanizava e, pouco a pouco, sorria.

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XI Robinson não parava de organizar e civilizar a sua ilha e de dia para dia o trabalho crescia e maior era o número das suas obrigações. De manhã, por exemplo, começava por se lavar e vestir, depois lia algumas páginas da Bíblia, em seguida punha-se em sentido diante do mastro, no qual içava a bandeira inglesa. A seguir, procedia à abertura da fortaleza. Fazia oscilar a pequena ponte por cima do fosso e abria as saídas tapadas com rochas. O trabalho da manhã começava com a ordenha das cabras e prosseguia com a visita à tapada artificial para coelhos, que Robinson arranjara numa clareira arenosa. Ali cultivava nabos silvestres, luzerna e um canteiro de aveia, de maneira a reter uma família de lebres chilenas que, sem isso, viveriam dispersas pela ilha. Eram aquilo que se chama agutia, lebres com patas compridas, muito grandes e com orelhas pequenas. Um pouco mais tarde, ia verificar o nível dos viveiros de água doce, onde se multiplicavam as trutas e as carpas. Ao fim da manhã, comia rapidamente com Tenn, dormia uma pequena sesta e vestia o grande uniforme de general para desempenhar as obrigações oficiais da parte da tarde. Devia fazer o recenseamento das tartarugas do mar, cada uma das quais tinha o seu número de matrícula, inaugurar uma ponte de lianas audaciosamente lançada por cima de um barranco com cem pés de profundidade, em plena floresta tropical, acabar a construção de uma choupana feita de fetos na orla da floresta que bordejava a baía, e constituiria um excelente posto de observação para vigiar o mar sem ser visto e, ao mesmo tempo, um retiro de sombra verde e fresca para as horas mais quentes do dia. Era frequente Robinson fartar-se de todos estes trabalhos e de tantas obrigações. Perguntava a si próprio para que serviria tudo aquilo, e para quem, mas logo se lembrava dos perigos da ociosidade, da lama dos pecaris 41

em que se arriscava a cair novamente, se cedesse à preguiça, e lançava mãos ao trabalho ativamente.

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XII Logo desde os primeiros dias, Robinson servira-se da gruta do centro da ilha para guardar o que tinha de mais precioso: as colheitas de cereais, as conservas de fruta e carne, mais ao fundo os baús com roupas, as ferramentas, as armas, o ouro e, finalmente, na parte mais recuada os seus barris com pólvora negra, que teriam bastado para fazer ir pelos ares toda a ilha. Desde há muito que não tinha necessidade de caçar com a espingarda, mas dava-lhe satisfação ter toda aquela pólvora ao seu dispor: tranquilizava-o e dava-lhe uma sensação de superioridade. No entanto, nunca empreendera a exploração do fundo da gruta, e pensava por vezes nisso com certa curiosidade. Por detrás dos barris de pólvora, o túnel continuava por uma espécie de galeria, a pique, e resolveu um dia meter-se por ela para ver onde iria ter. A exploração apresentava uma dificuldade principal, na falta de iluminação. Não possuía senão tochas de madeira resinosa, mas avançar para o fundo da gruta com uma tocha na mão implicava correr o risco de provocar a explosão dos barris, tanto mais que deviam restar vestígios de pólvora no solo. Havia ainda o problema do fumo, que rapidamente tornaria o ar irrespirável. Por momentos teve a ideia de abrir uma chaminé de arejamento e iluminação no fundo da gruta, mas a natureza da rocha tornava este projeto impraticável. Só havia, portanto, uma solução: aceitar a obscuridade e procurar habituar-se a ela. Por conseguinte, avançou tão longe quanto lhe foi possível, com uma provisão de bolos de milho e um púcaro de leite de cabra, e esperou. À sua volta reinava a calma mais absoluta. Sabia que o Sol estava a baixar no horizonte. Ora, a abertura da gruta estava situada de tal maneira que, em dado momento, os raios do Sol poente ficavam exatamente no eixo do túnel. Durante um segundo a gruta ficaria iluminada, mesmo até ao fundo. Foi isso que realmente se verificou, com a duração de um relâmpago. 43

Mas foi o suficiente para que Robinson soubesse que o seu primeiro dia terminara. Adormeceu, comeu um bolo, voltou a dormir, bebeu leite. E, de repente, o relâmpago surgiu novamente. Tinham decorrido vinte e quatro horas mas, para Robinson, tinham sido como um sonho. Começava a perder a noção do tempo. As vinte e quatro horas seguintes passaram-se ainda mais rapidamente, e Robinson já não sabia se estava a dormir ou continuava acordado. Por fim, resolveu levantar-se e dirigir-se para o fundo da gruta. Não levou muito tempo a encontrar, tateando, o que procurava: a abertura de uma chaminé vertical e muito estreita. Fez imediatamente algumas tentativas para por ela escorregar. As paredes da galeria eram lisas como carne, mas o orifício era tão estreito que metade do seu corpo ficou lá preso. Teve então a ideia de tirar a roupa toda e de esfregar o corpo com o leite coalhado que restava no fundo do púcaro. Mergulhou em seguida com a cabeça para a frente e, desta vez, escorregou lentamente mas com regularidade, como uma rã pela goela da serpente. Chegou suavemente a uma espécie de nicho morno, cujo fundo tinha exatamente a forma do seu corpo agachado. Aí se instalou, enrolado sobre si próprio, com os joelhos puxados até ao queixo, as pernas cruzadas e as mãos apoiadas nos pés. Sentia-se tão bem assim que adormeceu logo a seguir. Quando acordou, teve uma enorme surpresa: a obscuridade à sua volta tornara-se branca! Continuava a nada ver, mas passara a estar envolvido pelo branco, em vez de negrura! E a cavidade onde se encontrava assim acachapado era tão suave, tão morna e branca, que não podia deixar de pensar na mãe, que o embalava cantarolando. O pai era um homem pequeno e pouco saudável, mas a mãe era uma mulher grande, forte e calma, que nunca se zangava e adivinhava sempre a verdade, bastando-lhe olhar para os filhos. Um dia em que ela estava no primeiro andar com todos eles, estando o pai ausente, declarou-se o fogo no armazém do rés-do-chão. A casa era muito velha, e toda de madeira, e o fogo propagou-se com uma velocidade terrível. O pequeno vendedor de tecidos regressou a toda a pressa e pôs-se a lamen44

tar, correndo na rua em todos os sentidos, enquanto via arder a casa com a mulher e os filhos lá dentro. De repente, viu a esposa sair tranquilamente do meio de uma torrente de chamas e fumo, com os filhos todos aos ombros, nos braços, às costas, e agarrados ao avental. Era assim que Robinson a revia, no fundo do seu buraco, como se fosse uma árvore vergada sob o peso dos seus frutos. Ou então, lembrava-se da noite do dia de Reis. Amassava a farinha onde se escondia a fava que designaria o rei da festa no dia seguinte. A Robinson, parecia-lhe que toda a ilha de Speranza era um imenso bolo e que ele próprio era a pequena fava escondida no fundo da crosta. Compreendeu que tinha de sair do seu buraco se não quisesse lá ficar para sempre. Ergueu-se com dificuldade e içou-se pelo túnel. Quando chegou à parte de trás da gruta, procurou, às apalpadelas, a roupa, que enrolou como uma bola debaixo do braço, sem perder tempo a vesti-la novamente. Estava inquieto, porque a obscuridade branca persistia à sua volta. Teria ficado cego? Avançava a cambalear para a saída quando, de repente, a luz do Sol lhe bateu em cheio no rosto. Era a hora mais quente do dia, aquela em que até os lagartos procuram a sombra. Robinson, no entanto, tremia de frio e apertava as coxas, ainda húmidas do leite coalhado, uma de encontro à outra. Correu para casa, com a cara escondida nas mãos. Tenn saltitava à sua volta, feliz por voltar a vê-lo, mas desconcertado por o ver tão nu e tão fraco.

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XIII Robinson desceu mais vezes à cavidade da gruta, para ali encontrar de novo a paz maravilhosa da sua infância. Habituara-se a parar a clepsidra quando o fazia, pois não havia horas nem maneira de ocupar o tempo no fundo da gruta. Mas estava perturbado, e perguntava-se se não seria a preguiça que o atraía, tal como outrora o levara a mergulhar no lamaçal. Para pensar noutra coisa, resolveu fazer uma cultura com os sacos de arroz que conservava desde o primeiro dia. A verdade é que sempre recuara perante o desmedido trabalho que acarreta a preparação de um arrozal. Com efeito, o arroz deve crescer debaixo de água, e o nível desta tem de ser sempre controlado, e por vezes modificado. Viu-se, portanto, obrigado a deter o curso de um ribeiro em dois locais: um a jusante, para inundar um prado, e outro a montante, com uma derivação para poder suspender a chegada da água e proceder à secagem da pradaria. Mas também foi necessário construir diques e duas comportas, que podiam estar abertas ou fechadas, conforme se desejasse. E ao cabo de dez meses, se tudo corresse bem, a colheita e o descasque do arroz exigiriam muitos dias de trabalho aturado. Assim, terminado o arrozal, e coberto o arroz semeado com um lençol de água, Robinson perguntou mais uma vez a si próprio com que objectivo se sobrecarregava com tanto esforço. Se não estivesse sozinho, se a mulher e os filhos, ou pelo menos um companheiro, estivessem com ele, saberia por que razão trabalhava. Mas a solidão tornava o seu esforço inútil. Então, com as lágrimas nos olhos, voltou a descer ao fundo da gruta... Desta vez ficou lá dentro tanto tempo que por pouco não enfraqueceu demasiado para poder subir de novo, e podendo ter morrido no fundo do seu buraco. Procurou, portanto, uma maneira de arranjar coragem para viver como um homem e levar por diante todo aquele trabalho que tanto o aborrecia. 46

Lembrou-se de que o pai o mandava ler os Almanaques de Benjamin Franklin, filósofo, sábio e homem de Estado americano daquele tempo. Nesses almanaques, Benjamin Franklin dá preceitos morais que justificam os homens que trabalham e ganham dinheiro. Robinson pensou que se inscrevesse esses preceitos por toda a ilha, de maneira a tê-los sempre debaixo dos olhos, não voltaria a desencorajar-se e cederia com menos frequência à preguiça. Por exemplo, cortou tantas rodelas quantas as necessárias para desenhar na areia das dunas as letras que formavam a seguinte frase: «A pobreza priva o homem de toda a virtude; é difícil um saco vazio manter-se de pé.» Na parede da gruta incrustara pequenas pedras que constituíam um mosaico onde se lia: «Se o segundo vício consiste em mentir, o primeiro é endividar-se, pois a mentira monta a cavalo na dívida.» Pequenos cavacos de pinho envoltos em estopa estavam dispostos num leito de pedras, prontos a serem inflamados, e permitiriam ler o seguinte: «Se os malandros conhecessem todas as vantagens da virtude, tornar-seiam virtuosos por malandrice.» Havia, enfim, uma máxima mais comprida que as outras – com cento e quarenta e duas letras - e Robinson lembrara-se de tosquiar cada letra no dorso de uma cabra, de tal maneira que, se por acaso as cabras, deslocandose, pusessem as cento e quarenta e duas letras na devida ordem, fazendo aparecer a máxima cujo teor era o seguinte: «Aquele que mata uma bácora aniquila todas as bácoras a que ela podia ter dado origem até à milésima geração. Quem desperdiça uma única moeda de cinco xelins, assassina montões de moedas de ouro.» Robinson ia dar início a esta tarefa quando, de repente, teve um estremecimento de surpresa e medo: uma fina coluna de fumo branco erguia-se no céu azul! Vinha do mesmo local que da primeira vez, mas as inscrições que ele espalhara pela ilha não iriam agora permitir que os índios o descobrissem? Enquanto corria para a sua fortaleza seguido de Tenn, amaldiçoava a ideia que tivera. Deu-se ainda um incidente um tanto ridículo que lhe pare47

ceu ser um mau sinal: atemorizado por esta inesperada correria, um dos bodes mais mansos atacou-o brutalmente, de cabeça baixa. Robinson evitouo à justa, mas Tenn rolou sobre si próprio, a ganir, projetado como uma bola para um maciço de fetos. Logo que Robinson se fechou com Tenn na fortaleza, depois de colocar os blocos de rocha nos seus lugares e de retirar a ponte, começou a interrogarse sobre se a sua conduta seria razoável. Com efeito, se os índios tivessem dado pela sua presença e resolvido tomar a fortaleza de assalto, não só teriam a vantagem do número, como beneficiariam do efeito da surpresa. Em contrapartida, se não se preocupassem com ele, completamente absortos nos seus ritos assassinos, que alívio para Robinson!; quis tirar as coisas a limpo. Sempre seguido de Tenn, que coxeava, pegou numa das espingardas, pôs a pistola à cintura e caminhou sob as árvores em direção à praia. Viu-se forçado, no entanto, a voltar atrás por se ter esquecido do óculo, do qual poderia ter necessidade. Desta vez, eram três as pirogas alinhadas paralelamente na areia. O círculo de homens à volta da fogueira era, aliás, maior que da primeira vez e, examinando-os com o óculo, Robinson ficou com a impressão de que não se tratava do mesmo grupo. Já tinham cortado um infeliz aos bocados, à machadada, e dois guerreiros regressavam da fogueira, para a qual haviam atirado com os restos. Foi nessa altura que se deu um acontecimento extraordinário, certamente inesperado neste género de cerimónias. A feiticeira, que estava agachada no chão, levantou-se repentinamente, correu direita a um dos homens e estendeu para ele o seu braço abrindo muito a boca, da qual saía um jorro de maldições, que Robinson adivinhava sem poder ouvi-las. Haveria, portanto, uma segunda vítima nesse dia! Visivelmente, os homens hesitavam. Finalmente um deles, de machado na mão, dirigiu-se para o indigitado culpado, que dois outros já haviam levantado e atirado ao chão. O machado desceu uma primeira vez e a tanga de couro voou pelos ares. Um segundo golpe ia ser desferido no corpo nu quando o infeliz deu um salto e fugiu, a correr, em direção à floresta. No óculo de Robinson, parecia dar saltos sem sair do mesmo lugar, perseguido por dois índios. Na realidade, corria direito a Robin48

son com uma rapidez extraordinária. Não era mais alto do que eles mas muito mais esguio, e verdadeiramente feito para a corrida. A pele parecia mais escura, e assemelhava-se antes a um negro. Talvez fosse isso que levara a feiticeira a indicá-lo como culpado, pois em qualquer grupo de homens, aquele que não se assemelha aos outros é sempre detestado. Entretanto, ele ia-se aproximando, de segundo para segundo, e o seu avanço em relação aos dois perseguidores continuava a aumentar. Robinson tinha a certeza de não poder ser visto da praia, se não julgaria que o índio o avistara e vinha refugiar-se junto dele. Era necessário tomar uma decisão. Dentro de alguns instantes, os três índios encontrar-se-iam frente a frente com ele, e talvez se reconciliassem, passando Robinson a ocupar o lugar da vítima! Foi esse o momento que Tenn escolheu para ladrar furiosamente, na direção da praia. Maldito animal! Robinson precipitou-se para o cão e, rodeando-lhe o pescoço com o braço, apertou-lhe o focinho com a mão esquerda, ao mesmo tempo que encostava a espingarda ao ombro com a outra mão, da melhor maneira possível. Apontou para o meio do peito do primeiro perseguidor, que não estava a mais de trinta metros, e puxou o gatilho. No mesmo momento em que o tiro era disparado, Tenn fez um movimento brusco para se libertar. A espingarda desviou-se, com grande surpresa de Robinson, e foi o segundo perseguidor que deu um enorme salto e se estatelou na areia. O índio que o precedia parou, voltou para junto do corpo do companheiro, inclinou-se para ele, ergueu-o, inspecionou a primeira fila de árvores onde a praia acabava e, por fim, fugiu a toda a velocidade para o círculo dos outros índios. A alguns metros dali, num maciço de palmeiras anãs, o índio que escapara inclinava a fronte até ao chão e procurava, tateando, o pé de Robinson, para o colocar em cima da nuca, como sinal de submissão.

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XIV Robinson e o índio passaram a noite atrás das ameias da fortaleza com o ouvido atento a todos os ruídos noturnos da floresta. De duas em duas horas, Robinson mandava Tenn em missão de reconhecimento, com o encargo de ladrar se encontrasse alguma presença humana. Voltava sempre sem ter dado o alerta. O índio, que amarrara na cintura umas velhas calças de marinheiro que Robinson o obrigara a enfiar, estava abatido, sem energia, como que atordoado por causa da sua horrível aventura, bem como pela espantosa construção para a qual fora trazido. Não tocara no bolo de trigo que Robinson lhe dera e mascava constantemente favas selvagens, cuja proveniência Robinson ignorava completamente. Um pouco antes do nascer do dia adormeceu em cima de um monte de folhas secas, apertando contra si o cão, também adormecido. Robinson conhecia o hábito de certos índios do Chile de utilizarem um animal doméstico como cobertor vivo, para se protegerem do frio da noite. Surpreendeu-o, no entanto, a paciência de Tenn, de natureza habitualmente bastante arisca. Teriam os índios esperado pelo dia para atacar? Robinson, armado com a pistola, as duas espingardas e tantas balas e pólvora quanto podia transportar, deslizou para fora da muralha e dirigiu-se à beira-mar, fazendo um grande desvio pelas dunas. A praia estava deserta. As três pirogas e os seus ocupantes haviam desaparecido. O cadáver do índio morto na véspera com um tiro de espingarda fora levado. Não restava senão o círculo negro da fogueira mágica, onde os ossos se misturavam com ramos calcinados. Robinson pousou na areia as suas armas e munições com uma sensação de enorme alívio Em seguida, sacudiuo um grande ataque de riso, meio nervoso e meio louco, que nunca mais acabava. Quando parou para respirar, lembrou-se de que era a primeira vez que ria desde o naufrágio do Virgínia. Talvez tivesse reaprendido a rir por ter 50

encontrado, finalmente, um companheiro? De repente, desatou a correr, lembrando-se do Evasão. Sempre evitara regressar ao local onde o construíra e onde sofrera tão grande deceção. No entanto, a pequena embarcação devia lá continuar, aguardando que uns braços suficientemente fortes a empurrassem para o mar! Talvez o índio pudesse ajudar Robinson a lançar o Evasão à água, e o seu conhecimento das ilhas seria, depois, muito precioso. Ao aproximar-se da fortaleza, Robinson viu o índio completamente nu a brincar com o cão. Ficou zangado com a falta de pudor do selvagem e, também, com a amizade que parecia ter nascido entre ele e o cão. Depois de o ter obrigado a vestir novamente as calças, demasiado grandes, arrastou-o até ao Evasão. As giestas haviam invadido tudo e o pequeno barco parecia flutuar num mar de flores amarelas. O mastro caíra e algumas pranchas da coberta estavam parcialmente levantadas, certamente por causa da humidade, mas o casco parecia inteiro. Tenn, que ia à frente dos dois homens, deu algumas voltas ao barco. Depois, num impulso, saltou para a coberta, que abateu imediatamente sob o seu peso. Robinson viu-o desaparecer no porão, com um latido de medo. Ao chegar junto do barco, viu que a ponte caía aos bocados sempre que Tenn fazia uma tentativa para sair da sua prisão. O índio pousou a mão no rebordo do casco, fechou-a e abriu-a novamente, sob o olhar atento de Robinson: tinha a mão cheia de uma serradura vermelha, que o vento espalhou. Desatou a rir. Robinson, por sua vez, deu um pequeno pontapé no barco, ergueu-se nos ares uma nuvem de poeira, ao mesmo tempo que um grande buraco se abria no flanco da embarcação. As térmitas haviam roído completamente o Evasão, e não havia nada a fazer.

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XV Robinson interrogara-se durante muito tempo sobre o nome que deveria dar ao índio. Não queria dar-lhe um nome cristão enquanto não estivesse batizado. Resolveu, finalmente, dar-lhe o nome do dia em que o acolhera. Foi assim que o segundo habitante da ilha passou a chamar-se Sexta-Feira. Passados alguns meses, Sexta-Feira aprendera inglês suficiente para compreender as ordens do amo. Também sabia desbravar o terreno, lavrar, semear, transplantar, sachar, ceifar, colher, bater, moer, amassar e cozer pão. Sabia fazer uma omeleta, coser as roupas de Robinson e engraxar as botas. Tornara-se um servidor modelo. À noite, vestia uma libré de lacaio e servia o jantar ao governador. Passava-lhe depois pelos lençóis uma caixa de ferro cheia de brasas. Por fim, ia estender-se numa liteira que encostava à porta de casa e que partilhava com Tenn. Robinson, por seu lado, estava muito contente por ter finalmente alguém a quem mandar trabalhar e a quem ensinar a civilização. Sexta-Feira sabia agora que tudo o que o amo lhe mandava fazer era bom, e tudo o que lhe proibia era mau. Assim, era mau comer mais do que a parte que Robinson lhe destinara. Era mau fumar cachimbo, bem como passear completamente nu, ou esconder-se para dormir quando havia trabalho a fazer. Sexta-Feira aprendera a ser soldado nas ocasiões em que o amo era general, sacristão quando ele orava, pedreiro quando construía, transportador quando viajava, batedor quando caçava e a abanar o mata-moscas quando ele dormia. Robinson tinha ainda razão para estar contente. Sabia agora o que fazer com o ouro e as moedas que salvara dos destroços do Virgínia. Pagava a Sexta-Feira. Meio soberano de ouro por mês. Com esse dinheiro, Sexta-Feira, comprava comida suplementar, pequenos objetos de uso corrente igualmente provenientes do Virgínia ou, muito simplesmente, meio dia de repouso — não lhe era permitido comprar um dia 52

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inteiro. Fizera uma cama de rede que prendera entre duas árvores e onde passava todo o tempo livre. O domingo, naturalmente, era o dia mais belo da semana. De manhã, o servo do governador levava-lhe uma espécie de bengala que se assemelhava simultaneamente ao cetro de um rei e ao báculo de um bispo. Depois, abrigado sob um guarda-sol feito de pele de cabra, que Sexta-Feira levava atrás de si, caminhava majestosamente por toda a ilha, inspecionando os campos, os arrozais e os pomares, os rebanhos e as construções em curso. Felicitava ou censurava, dava ordens para a semana seguinte, fazia projetos para os anos futuros. Vinha depois o almoço, mais demorado e suculento que durante a semana. Da parte da tarde, Sexta-Feira limpava e embelezava Speranza. Arrancava as ervas dos caminhos, plantava flores defronte da casa, aparava árvores de ornamentação. Sexta-Feira soubera despertar a benevolência do amo com várias boas ideias. Uma das grandes preocupações de Robinson era desembaraçar-se do lixo e detritos da cozinha e da oficina, sem atrair os abutres e os ratos. E não sabia como fazê-lo. Os pequenos carnívoros desenterravam tudo o que ele enterrava e as marés voltavam a depositar na praia tudo o que atirava ao mar; se os queimava, provocava uma fumarada nauseabunda que empestava a casa e as roupas. Sexta-Feira teve a ideia de aproveitar a voracidade de uma colónia de grandes formigas vermelhas que descobrira perto de casa. Todos os restos depositados no meio do formigueiro eram devorados em menos de nada, e os ossos ficavam imediatamente descarnados e secos. Sexta-Feira ensinou igualmente a Robinson a servir-se das bolas. Muito divulgadas na América do Sul, constituem uma arma formada por três seixos redondos, atados a cordões ligados em estrela. Lançados com perícia, giram como estrelas de três pontas, e logo que o seu movimento é interrompido por um obstáculo, envolvem-no e amarram-no solidamente. Sexta-Feira atirava as bolas às pernas das cabras que queria imobilizar para tratar delas, ordenhá-las, ou matá-las. Mostrou depois a Robinson que também podiam servir para capturar cabritos e mesmo aves pernaltas. Por fim, 54

convenceu-o de que, se utilizasse seixos maiores, poderia servir-se das bolas como de uma arma terrível, capaz de arrombar o peito de um homem depois de quase o ter estrangulado. Robinson, que continuava a temer um regresso ofensivo dos índios, ficou-lhe grato por poder aumentar o seu arsenal com esta arma silenciosa, fácil de substituir e, no entanto, mortífera. Exercitaram-se durante muito tempo no mato, utilizando como alvo um tronco de árvore com a grossura de um homem. Por último, o índio teve a ideia de fabricar para os dois uma piroga semelhante às que existiam no seu país. Começou a desbastar, com o machado, o tronco de um pinheiro de grande diâmetro e muito direito. Era um trabalho lento e paciente, que em nada se assemelhava à pressa febril com que Robinson construíra o Evasão. Robinson, de resto, ainda vexado pelo seu fracasso, não se metia nisso, e contentava-se em ver trabalhar o companheiro. SextaFeira começara por fazer lume sob a parte do tronco que queria desbastar, processo que tinha a vantagem de apressar consideravelmente o trabalho, mas que implicava o risco de tudo comprometer se a árvore se incendiasse. Depois, pôs de lado esse processo, e executou a parte final do trabalho servindo-se de um simples canivete. Quando a piroga ficou pronta, era suficientemente leve para Sexta-Feira poder erguê-la acima da cabeça à força de braços e foi assim, como se tivesse a cabeça enfiada num capucho de madeira, que desceu para a praia, com Tenn a correr-lhe à volta das pernas e seguido de longe por um Robinson resmungão. Quando, porém, o pequeno barco começou a dançar sobre as ondas, Robinson viu-se forçado a renunciar à inveja, tomou lugar atrás de Sexta-Feira e pegou num dos remos curtos e leves que o índio fizera com ramos de araucária. Deram depois, pela primeira vez, a volta à ilha por mar, acompanhados de longe por Tenn, que corria, ladrando, ao longo da margem.

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XVI Aparentemente, tudo corria bem. A ilha prosperava ao sol, com as suas culturas, os rebanhos, os pomares e as casas que iam sendo construídas de semana para semana. Sexta-Feira trabalhava arduamente, e Robinson reinava como um senhor. Tenn, que envelhecia, dormia sestas cada vez mais longas. Na realidade, porém, nenhum dos três era feliz. Sexta-Feira era dócil por gratidão. Queria agradar a Robinson, que lhe salvara a vida. Mas não compreendia nada de toda aquela organização, aqueles códigos, aquelas cerimónias, e nem sequer a razão de ser dos campos cultivados, dos animais domesticados e das casas. Não via qualquer sentido em tudo aquilo. Robinson bem lhe explicara que assim se procedia na Europa, nos países civilizados, mas Sexta-Feira não via por que razão se devia fazer a mesma coisa numa ilha deserta do Pacífico. Robinson, por seu lado, bem via que Sexta-Feira, intimamente, não aprovava aquela ilha demasiado bem administrada e que era a obra da sua vida. Não havia dúvida de que Sexta-Feira fazia o melhor que podia, mas logo que tinha um momento livre só lhe dava para a asneira. Por exemplo, em relação aos animais comportava-se de maneira absolutamente incompreensível. Para Robinson, os animais ou eram úteis, ou prejudiciais. Os úteis deviam ser protegidos, para se multiplicarem. Quanto aos prejudiciais, era necessário destruí-los da maneira mais expedita possível. Impossível fazer com que Sexta-Feira o compreendesse! Ora dedicava a um animal qualquer uma amizade entusiasta e absurda, quer fosse útil ou prejudicial, ora perpetrava, sobre outros, atos de uma crueldade monstruosa. Assim, um dia, apanhou e começou a criar um casal de ratos! Até mesmo Tenn compreendeu que devia deixar em paz aqueles horríveis animais, que Sexta-Feira tomara sob sua proteção. Robinson teve dificuldade em se desfa56

zer deles. Uma vez, levou-os na piroga e atirou-os ao mar. Os ratos voltaram à praia a nado e regressaram a casa. Robinson insistiu, mas desta vez utilizando uma artimanha que resultou plenamente. Além dos ratos, levou também uma tábua bem seca. Pôs os ratos em cima da tábua, e pousou-a na água. Agarrados àquele barco improvisado, os ratos não se atreveram a atirar-se à água para voltarem à ilha, e a corrente levou-os para o largo. SextaFeira nada disse, mas Robinson percebeu que ele sabia tudo. Como se Tenn lho tivesse contado! De outra vez, Sexta-Feira desapareceu durante várias horas. Robinson preparava-se para partir à sua procura quando viu uma coluna de fumo erguerse por detrás das árvores, do lado da praia. Não era proibido acender fogueiras na ilha, mas o regulamento exigia que o governador fosse prevenido, com a indicação da hora e local escolhidos. Isso destinava-se a evitar qualquer confusão com as fogueiras rituais dos índios, que podiam voltar a qualquer momento. Se Sexta-Feira se esquecera de prevenir Robinson, era certamente porque o que ia fazer lhe desagradaria. Robinson levantou-se, suspirando e dirigiu-se para a praia, depois de ter assobiado a Tenn. Não compreendeu logo a estranha ocupação a que Sexta-Feira se entregava. Em cima de um tapete de cinzas ainda ao rubro, colocara uma grande tartaruga, voltada de costas. A tartaruga não estava morta, e agitava furiosamente as quatro patas no ar. Robinson julgou mesmo ouvir uma tosse um pouco rouca, que devia ser a sua maneira de gritar. Fazer gritar uma tartaruga! Era preciso o índio ter o diabo no corpo! Quanto ao objetivo da horrível operação, só o compreendeu ao ver a carapaça da tartaruga ficar rígida, tornar-se quase chata e, naturalmente, despegar-se do corpo do animal. Entretanto, Sexta-Feira cortava com uma faca os bocados que ainda estavam colados ao interior da carapaça. De repente, a tartaruga rolou na areia, largando a carapaça. Apoiou-se nas suas quatro patas e correu para o mar, seguida de Tenn, que corria atrás dela a ladrar. Mergulhou em seguida nas ondas. 57

— Ela faz mal — disse tranquilamente Sexta-Feira —, amanhã será comida pelos caranguejos! Pôs-se depois a esfregar com areia a parte de dentro da carapaça, que agora parecia um enorme prato um pouco encurvado. — É um escudo, explicou ele a Robinson. É assim que os fazemos na minha terra. Nenhuma flecha consegue atravessá-lo, e até as bolas grandes são repelidas sem o partir! Robinson zangara-se muito com Sexta-Feira por causa da sua crueldade nesta questão do escudo. Um pouco mais tarde, porém, teve ocasião de verificar até que ponto Sexta-Feira podia ser bondoso e dedicado para com um animal que adotasse. Infelizmente, desta vez tratava-se de um pequeno abutre que os pais haviam abandonado. Era um animal horrível, com a cabeça desproporcionada, os olhos exorbitados, as patas pesadas e desajeitadas e o pequeno corpo pelado e torcido como o de um enfermo. Abria muito o enorme bico, estendia-o, piando, sempre que alguém se aproximava dele. Sexta-Feira começou por lhe dar pedaços de carne fresca, que o animal engolia com avidez. Mas pouco depois, o abutre começou a mostrar sinais de doença. Dormia o dia inteiro e sob a rala penugem, a moela tornara-se saliente como uma bola dura. A verdade é que não conseguia digerir aquela carne demasiado fresca. Era necessário encontrar outra coisa. Sexta-Feira pôs então a apodrecer ao sol pedaços de tripas de cabra. Neles apareceram, pouco depois, larvas brancas e gordas, que fervilhavam na carne nauseabunda. Sexta-Feira apanhou-as com uma concha. Meteu-as em seguida na boca e mastigou-as demoradamente. Por fim, deixou escorrer para o bico do pequeno abutre a pasta branca e espessa resultante da sua mastigação. — Vermes vivos demasiado frescos — explicou ele. — Pássaro doente. Necessário mastigar, mastigar. Mastigar sempre, para os pássaros pequenos. Robinson, que o observava, sentiu o estômago contrair-se-lhe de nojo, e fugiu para não vomitar. No fundo, porém, admirava os sacrifícios que SextaFeira era capaz de fazer quando resolvia ajudar um animal. 58

XVII Desde que Sexta-Feira aparecera, Robinson não voltara ao fundo da gruta. Tinha esperança de que, graças ao seu novo companheiro, a vida na ilha, o trabalho e as cerimónias o distrairiam suficiente mente para não voltar a sentir necessidade daquela espécie de droga. Ora uma noite acordou a meio do sono e não conseguiu voltar a adormecer. Lá fora não havia um sopro de vento e as árvores completamente imóveis, pareciam dormir, tal como Sexta-Feira e Tenn, abraçados diante da porta, como era seu hábito. Robinson sentiu-se invadido por uma sensação de grande felicidade. Com efeito, como era noite, não havia necessidade de trabalhar, nem de cerimónias, nem de uniformes, nem de governador, nem de general. Era como se fossem férias, em resumo. Robinson gostaria que a noite nunca acabasse, que as férias durassem sempre. Mas sabia que o dia ia chegar e com ele, todas as suas preocupações e obrigações. Levantou-se e foi parar a clepsidra, abriu em seguida a porta e passou por cima dos corpos de Sexta-Feira e Tenn, dirigindo-se depois para a gruta, ao fundo da qual, justamente, a noite nunca acabava e o sono durava sempre. No dia seguinte de manhã, Sexta-Feira ficou muito surpreendido por não encontrar Robinson. Dormira duas horas a mais por que o amo não o acordara, e sentia-se de muito bom humor. Que fazer? Na verdade, havia as couves para regar, as cabras para ordenhar e uma pequena cabana de observação a acabar, no cimo do cedro gigante, ao pé da gruta. Mas como Robinson não estava lá, todas essas obrigações de homem branco deixavam de existir, e Sexta-Feira só obedecia ao seu coração de índio. Os seus olhos pousaram num cofre que estava debaixo da mesa de Robinson — fechado, mas não à chave — cujo conteúdo já tivera ocasião de explorar. Arrastou-o pelas lajes e pô-lo ao ombro. Saiu depois, seguido de Tenn. 59

A noroeste da ilha, lá onde a grande pradaria acabava e começavam as areias, florescia uma plantação de catos e cactáceas que exibiam as formas e silhuetas mais bizarras. Dir-se-ia um cortejo de manequins de cauchu verde, eriçados de picos com bolas, raquetas, caudas, trombas. Sexta-Feira atirou ao chão o cofre, que lhe magoava o ombro. As dobradiças da tampa saltaram e uma porção de tecidos preciosos e joias cintilantes espalhou-se em desordem junto aos catos. Sexta-Feira nunca teria pensado em vestir-se com aquelas roupas, mas achou divertido enfiá-las nos catos, que tinham todos formas vagamente humanas. Durante mais de uma hora entreteve-se a vestir as insólitas plantas, do tamanho de homens, com capas, xailes, chapéus; enfiou-lhes vestidos, calças, luvas e, por fim, cobriu-as com pulseiras, colares, brincos, diademas, e encontrou até, no fundo do cofre, sombrinhas, lornhões e leques, com que completou a ilusão. Contemplou depois a sua obra, aquela multidão de grandes damas, prelados, mordomos e monstros estapafúrdios, que pareciam contorcer-se nos seus sumptuosos atavios, como se fizessem vénias ou dançassem um bailado fantástico e imóvel. Ria muito e pôs-se a imitar aqueles homenzinhos e mulherzinhas absurdos, gesticulando e saltitando, enquanto Tenn corria e latia alegremente à sua volta. Voltou depois as costas aos catos vestidos, e dirigiu-se para as dunas que o separavam da praia. O tempo estava magnífico e Sexta-Feira cantava, feliz, correndo na areia branca e pura da praia. Como era belo, assim nu e feliz, sozinho com o sol e o cão, com liberdade para fazer o que lhe apetecesse, longe do enfadonho Robinson! Apanhava seixos cor de malva, azuis ou pintalgados, bastante mais bonitos, na sua variedade e simplicidade, que as grandes joias complicadas que pendurara nos cactos. Atirava-os a Tenn, que corria atrás deles a ladrar e lhos trazia de volta. Depois atirou, desta vez para o mar, bocados de madeira, e o cão deitava-se às ondas, chapinhava na água com as quatro patas e voltava para Sexta-Feira, deixando-se arrastar pela rebentação. Chegaram assim perto do arrozal, que brilhava ao sol como um espelho líquido. Sexta-Feira apanhou uma pedra achatada e lançou -a ao rés da água para fazer ricochete. A pedra saltou sete vezes antes de desaparecer, sem 60

produzir salpicos. O que Sexta-Feira não previu foi que Tenn se lançasse à água para ir buscar a pedra. O impulso atirou-o a uma vintena de metros, mas já não conseguia sair dali; a água não era suficientemente profunda para que pudesse nadar, e patinhava na lama. Deu meia volta e procurou regressar para junto do índio. Com um primeiro salto soltou-se da lama, mas tornou a cair pesadamente e começou a debater-se, fazendo movimentos desesperados. Estava quase a afogar-se. Sexta-Feira debruçou-se para a água suja e perigosa. Iria saltar para salvar Tenn? Teve outra ideia. Correu à comporta que servia para esvaziar a água. Enfiou uma vara no primeiro furo da peça e serviu-se dela como uma alavanca, com todas as suas forças. Logo a água começou a correr do outro lado da comporta, ao mesmo tempo que o nível do arrozal baixava rapidamente. Alguns minutos depois, a cultura de arroz estava a seco. A colheita estava perdida, mas Tenn pôde chegar, trepando, ao pé do dique. Sexta-Feira deixou-o a sacudir-se da lama e dirigiu-se, a dançar, para a floresta.

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XVIII Quando Robinson saiu da gruta, onde permanecera cerca de trinta e seis horas, não ficou muito surpreendido por não encontrar Sexta-Feira. Só Tenn o aguardava fielmente à entrada da casa. Tinha, de resto, um ar preocupado, de quem se sente culpado, o pobre Tenn, e foi ele que levou Robinson, primeiro à plantação de catos e cactáceas, onde se exibiam as mais belas roupas e todas as joias do Virgínia, e depois ao arrozal, onde a sementeira do ano secara ao sol. Robinson encheu-se de cólera. Pelo sim pelo não, fechou a comporta de evacuação da água do arrozal e abriu o canal de alimentação. Talvez o arroz ainda voltasse a pegar? Depois passou todo o dia a tirar dos cactos, no meio das mais atrozes picadelas, as roupas e as jóias, ou seja, o que de mais belo possuía na ilha. Estava tanto mais furioso quanto ele se sentia um pouco culpado: se não tivesse descido à gruta, nada daquilo teria acontecido. No dia seguinte, resolveu partir à procura de Sexta-Feira. A sua cólera desvanecera-se e a ausência do companheiro inquietava-o. Começou, portanto, a bater a floresta virgem, com a ajuda de Tenn. O cão, que compreendera perfeitamente a necessidade de encontrar Sexta-Feira, remexia nos maciços de arbustos, enfiava-se nos matagais, seguindo pistas cujo cheiro evocava o do índio, e ladrava para avisar Robinson quando encontrava alguma coisa. Foi assim que descobriu, numa pequena clareira, o que devia ser o acampamento secreto de Sexta-Feira. Havia, entre duas árvores, uma rede de lianas forrada com uma almofada e um colchão de ervas secas. Era uma cama suspensa, com toda a evidência muito confortável. Depois, sentada numa espécie de cadeirão de ramos de árvores ligados uns aos outros, via-se uma engraçada boneca de palha entrançada, com cabeça de madeira e longos cabelos de ráfia. A verdade é que, para não estar sozinho, Sexta-Feira fabricara uma namorada! Por fim Robinson viu, pendurados perto da rede e à mão de quem 62

nela estivesse deitado, inúmeros objectos, simultaneamente úteis e divertidos, com os quais o índio devia distrair-se durante as sestas. Assim, havia uma flauta de cana, uma zarabatana, cocares de penas como os que usam os Peles-Vermelhas da América do Norte, pequenas flechas, peles de serpente secas, uma espécie de pequena guitarra, etc. Robinson ficou espantado e invejoso, ao ver como Sexta-Feira parecia ser feliz e divertir-se sem ele! De que serviam então todos os trabalhos e todas as obrigações que impunha a si próprio dia após dia? Sexta-Feira não podia estar longe. De repente, Tenn ficou imóvel perante um maciço de magnólias invadido pela hera; e depois avançou pé ante pé, com as orelhas levantadas e o pescoço estendido. Parou, por fim, com o nariz encostado a um dos troncos. Este agitou-se, e Sexta-Feira rebentou a rir. O índio dissimulara a cabeça sob um capacete de folhas e flores. Desenhara no corpo todo, com suco de jenipapo — planta que deita tinta verde quando se parte uma haste —, ramos e folhas que se espalhavam pelas coxas e pelo dorso, enrolando-se. Assim disfarçado de homem-planta, e sempre a rir às gargalhadas, executou uma dança triunfal à volta de Robinson e depois fugiu direito ao mar, a toda a velocidade, para se lavar nas ondas.

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XIX A vida retomou o seu curso, melhor ou pior. Robinson continuava a fingir que era o governador e general da ilha. Sexta-Feira fingia que trabalhava arduamente para manter a civilização. Só Tenn não fingia que dormia a sesta durante todo o dia. À medida que envelhecia ficava cada vez mais gordo e lento. Sexta-Feira, por seu lado, arranjara um novo passatempo. Descobrira o esconderijo onde Robinson guardava o pequeno barril de tabaco e o comprido cachimbo do capitão Van Deyssel. Sempre que tinha ocasião, ia fumar uma cachimbada na gruta. Se Robinson desse com ele, certamente o puniria com severidade, porque já quase não tinha tabaco. Fumar era um prazer que Robinson já só muito raramente se permitia, nas grandes ocasiões. Nesse dia, Robinson descera à beira-mar para inspecionar as redes colocadas no fundo e que a baixa-mar acabava de pôr a descoberto. Sexta-Feira pôs o pequeno barril debaixo do braço e foi instalar-se bem ao fundo da gruta. Construíra aí uma espécie de canapé, com tonéis cobertos de sacos. Meio deitado para trás, tira longas fumaças do cachimbo. Depois, expulsa dos pulmões uma nuvem azul que se dilui na luz fraca que provém da entrada da gruta. Prepara-se para tirar nova fumaça do cachimbo quando ouve ao longe gritos e latidos. Robinson regressara mais cedo que o previsto, e chamava por ele com voz ameaçadora. Tenn ladra. Ouve-se um estalido. Robinson pegou, portanto, no chicote. Com certeza que se apercebeu do desaparecimento do pequeno barril de tabaco. Sexta-Feira levanta-se e encaminha-se para o castigo que o espera. De repente, para: que fazer do cachimbo, que continua a segurar na mão? Atira-o com toda a força para o fundo da gruta, onde se encontram os barris de pólvora. Em seguida, corajosamente, vai ao encontro de Robinson. Este está furioso. Quando vê Sexta-Feira, ergue o chicote. É nesse momento que os quarenta barris de pólvora explodem. Uma torrente 64

de chamas vermelhas jorra da gruta. Robinson sente-se levantado no ar, arrastado, e antes de perder os sentidos, ainda tem tempo para ver as enormes rochas do topo da gruta rolarem umas por cima das outras, como se fossem peças de um jogo de construções.

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XX Ao abrir os olhos, a primeira coisa que Robinson viu foi um rosto inclinado para ele. Sexta-Feira segurava-lhe a cabeça com a mão esquerda e tentava fazê-lo beber água fresca, no côncavo da mão direita. Robinson, porém, cerrava os dentes, e a água escorria à volta da boca, pela barba e pelo peito. O índio sorriu e levantou-se, ao vê-lo mexer-se. Logo uma parte da camisa e a perna esquerda das calças caíram por terra, esfarrapadas e sujas. Desatou a rir e, contorcendo-se um pouco, desembaraçou-se do resto da roupa. Apanhou depois um pedaço de espelho, que se encontrava no meio de vários objetos domésticos despedaçados, mirou-se fazendo caretas e estendeu-o a Robinson, dando nova gargalhada. Este não tinha nenhum ferimento, mas estava sujo de lama, e a sua bela barba ruiva ficara meio queimada. Levantou-se e, por sua vez, arrancou os farrapos carbonizados ainda agarrados ao seu corpo. Deu alguns passos. Sob a espessa camada de lama, poeira e terra que o cobria, apenas algumas contusões. A casa ardia como uma tocha. A muralha da floresta desmoronara-se no fosso que a bordejava. Todas as outras construções - o templo, o banco, o redil, o mastro-calendário - haviam voado em estilhaços como resultado da explosão. Os dois homens contemplavam aquele panorama de desolação quando um montão de terra subiu para o céu a uma centena de metros e, meio segundo depois, outra terrível explosão os atirou novamente por terra. A seguir, uma chuva de calhaus e raízes redemoinhou à sua volta. Fora um dos barris de pólvora que Robinson enterrara no caminho, com o cordão de estopa que permitia fazê-lo detonar à distância. Aterrorizadas com esta segunda explosão, muito mais próxima, as cabras precipitaram-se em molho na direção oposta, depois de deitarem abaixo a cerca do curral. Galopavam agora em todos os sentidos, como loucas. Iam dispersar-se pela ilha e regressar ao estado selvagem. A entrada da gruta estava obstruída por um amontoado de rochedos. Um deles formava como que um pico acima do caos e dele devia desfrutar-se uma vista extraordinária da ilha e do mar. Robinson olhava à sua volta e apa66

nhava maquinalmente os objetos que a gruta vomitara antes de se fechar: uma espingarda com o cano torcido, sacos rotos, cestos sem fundo. SextaFeira imitava-o, mas em vez de, como Robinson os arrumar junto do cedro, acabava de os destruir. Robinson deixou-o à vontade mas, apesar de tudo, estremeceu quando o viu espalhar às mãos-cheias o pouco trigo que ficara dentro de uma panela. A noite caía e eles acabavam de encontrar um objeto intacto — o óculo — quando descobriram o cadáver de Tenn debaixo de uma árvore. Sexta-Feira apalpou-o com atenção. Aparentemente, não tinha nada quebrado, e até parecia ter escapado ileso. Pobre Tenn, tão velho e tão fiel! Talvez a explosão o tivesse feito morrer de medo muito simplesmente! Levantou-se vento. Foram ambos lavar-se ao mar. Partilharam depois um ananás selvagem, e Robinson lembrou-se de que fora a primeira coisa que comera na ilha, a seguir ao naufrágio. Por fim, estenderam-se junto do grande cedro, tentando dormir. Robinson refletia, enquanto olhava a Lua por entre os ramos negros do cedro. Assim, toda a obra realizada na ilha, as culturas, a criação de animais, as construções, todas as provisões que acumulara na gruta, tudo se perdera por culpa de Sexta-Feira. E, no entanto, não lhe queria mal. A verdade é que havia muito que se fartara daquela organização enfadonha e preocupante, mas não tivera coragem de a destruir. Agora, eram ambos livres. Robinson sentia curiosidade sobre o que iria passar-se e compreendia que seria SextaFeira quem, daí em diante, conduziria o jogo. Continuava a olhar o céu e a refletir quando viu, de repente, a Lua deslizar muito depressa por detrás de um ramo e reaparecer do outro lado. Depois parou e, logo a seguir, recomeçou a deslizar no céu negro. Nesse mesmo momento, ouviu-se um terrível ruído seco. Robinson e Sexta-Feira puseramse de pé num salto. Não era a Lua a mover-se, mas sim a árvore que desabava. Minado pela explosão, o grande cedro não conseguira resistir ao vento noturno. Abateu-se no meio da floresta, esmagando dezenas de arbustos sob o seu peso, e o solo estremeceu com o choque do enorme tronco. 67

XXI Sexta-Feira deu início à nova vida com um longo período de sestas. Passava dias inteiros na rede de lianas entrançadas que amarrara entre duas palmeiras, à beira-mar. Mexia-se tão pouco que os pássaros vinham pousar nas árvores mesmo ao pé dele. Atirava-lhes então flechas com a zarabatana e à noite assava, com Robinson, o produto daquele género de caçada, certamente o método menos trabalhoso que existia. Robinson, por seu lado, transformava-se completamente. Usara até aí o cabelo muito curto, quase rapado, e, pelo contrário, uma grande barba, que lhe dava o aspecto de avô. Cortou a barba – a qual, de resto, já ficara bastante estragada com a explosão - e deixou crescer o cabelo, que acabou por cobrir toda a cabeça de caracóis dourados. De um momento para o outro parecia muito mais novo, quase irmão de Sexta-Feira. Já não tinha nada da aparência de um governador, e ainda menos de general. O seu corpo também se transformara. Sempre receara as queimaduras do sol, tanto mais que era ruivo. Quando tinha de se expor ao sol cobria-se dos pés à cabeça, punha um chapéu e, além disso, nunca esquecia o grande guarda-sol de pele de cabra. Assim, conservava a pele branca e fina, como a de uma galinha depenada. Encorajado por Sexta-Feira, começou a expor-se nu ao sol. A princípio ficava todo encolhido, numa posição feia e envergonhada. Depois descontraíra-se, a pele estava mais rija e adquirira um tom acobreado. Tinha agora orgulho do seu peito desenvolvido e dos músculos salientes. Exercitava-se com Sexta-Feira em todo o género de jogos. Faziam corridas na areia, desafiavam-se a nadar, no salto em altura, a lançar bolas. Robinson também aprendera a andar apoiado nas mãos, como fazia o companheiro. Começava por encostar os pés a um rochedo, separava-se depois desse ponto de apoio e partia, pesadão, encorajado pelos aplausos de Sexta-Feira. 68

Mas, acima de tudo, observava Sexta-Feira, via o que ele fazia e, graças a ele, aprendia como se deve viver numa ilha deserta do Pacífico. Por exemplo, Sexta-Feira, passava muitas horas a fabricar arcos e flechas. Fez primeiro arcos simples, com as madeiras mais maleáveis, como a aveleira, o sândalo, o amaranto, a copaíba. Depois, segundo a técnica chilena, fabricou arcos compostos – feitos de várias peças - mais potentes e duradoiros. Fixava a um arco simples lâminas de chifre de bode, cuja elasticidade aumentava a da madeira. Mas era sobretudo ao fabrico de flechas que dedicava a maior parte do seu trabalho, pois se aumentava constantemente a força dos arcos, era para poder atirar flechas cada vez mais compridas. Em breve conseguia fazê-las com um metro e meio de comprimento. Cada flecha compõe-se de três partes: a ponta, a haste e as penas. Sexta-Feira passava horas a equilibrar estes três elementos, pondo a haste a balouçar sobre a aresta de uma pedra. Não há nada mais importante para a eficácia de uma flecha que a relação entre o peso da ponta e o das penas da outra extremidade. Sexta-Feira colocava nas suas flechas tantas quantas podia, utilizando penas de aves ou folhas de palmeira. Por outro lado, para as pontas não se servia de pedra ou metal, mas sim de ossos, principalmente omoplatas de cabra, nas quais recortava as pontas em forma de pequenas asas. Robinson acabou por compreender que Sexta-Feira não procurava obter projéteis precisos e fortes, destinados a enterrarem-se no corpo das aves ou dos coelhos. O que ele queria, realmente, era que as suas flechas voassem o mais alto possível, durante o máximo de tempo e atingindo a maior distância. Não disparava as flechas para matar, mas sim pelo prazer de as ver planar no céu, como gaivotas. Um dia em que um vento forte provocava grande ondulação, Robinson ficou a ver Sexta-Feira atirar as flechas em direcção ao Sol. Pegou numa particularmente comprida - ultrapassava dois metros - com penas de albatroz ao longo de pelo menos cinquenta centímetros da haste. Retesou depois o arco com todas as suas forças, apontando para cerca de quarenta e cinco graus na direcção da floresta. A corda, ao afrouxar, roçou a braçadeira de couro em que ele envolvia o antebraço esquerdo, para o proteger. A flecha subiu até 69

pelo menos cem metros de altura. Ali pareceu hesitar mas, em vez de descer sobre a praia, foi arrastada pelo vento e dirigiu-se para a floresta. Ao desaparecer por detrás das primeiras árvores, Sexta-Feira voltou-se para Robinson, com um sorriso feliz a iluminar-lhe o rosto. — Ela vai cair em cima dos ramos e não vais encontrá-la — disse Robinson. — Não vou encontrá-la — disse Sexta-Feira —, mas porque aquela não voltará a cair.

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XXII Antes da explosão, Robinson mandava Sexta-Feira cozinhar tal como aprendera no seio da sua família, em York. Se, no princípio da sua estada na ilha, se vira obrigado a assar a carne sobre uma fogueira, depressa se voltara para receitas que se aproximavam da carne de vaca cozida, prato preferido dos ingleses daquela época. Agora, porém, Sexta-Feira ensinava-lhe receitas características das tribos araucanas, ou outras que, muito simplesmente, inventava. Para Sexta-Feira, naturalmente, o ideal era comer o melhor possível, mas fosse onde fosse, e a qualquer hora. E, sobretudo, sem necessidade de uma cozinha, ou de utensílios especiais. A explosão destruíra os pratos e as caçarolas que havia na ilha. Assim, por exemplo, a maior parte das aves que agora comiam eram preparadas por Sexta-Feira na argila. Era a maneira mais simples e divertida de cozinhar uma galinha ou qualquer outra ave. Sexta-Feira esvaziava-a e metia-lhe depois sal no ventre, pimenta e ervas aromáticas à vontade, e mesmo um pouco de recheio, mas isto não era indispensável. Não lhe arrancava as penas. Depois, preparava argila molhada — não demasiado mas o bastante para ser fácil amassá-la e modelá-la — e estendia-a, de modo a ficar homogénea e lisa. Depois, enrolava esta massa à volta da ave, encerrando-a bem na pasta e fazendo uma bola de argila semelhante a um grande ovo ou a uma bola de râguebi, conforme o tamanho. A camada de argila devia ter um a três centímetros de espessura. Num buraco qualquer acendia uma fogueira com lenha bastante abundante, pois eram necessárias muitas brasas. Quando o lume estava bem pegado, metia a bola de argila no buraco, no meio das brasas. Mantinha o fogo aceso durante uma hora ou duas. A argila secava e endurecia como um pote de barro. Quando a bola estava bem rija, tirava-a do buraco e partia-a. As penas ficavam coladas à argila e a ave como se tivesse sido assada no forno, tenra e saborosa.

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Mas o que mais agradava a Sexta-Feira nesta maneira de proceder, era que se partia sempre a bola de barro em que a ave era metida, e não havia, portanto, louça para lavar e arrumar. Quanto aos ovos, Robinson estava habituado a metê-los em água a ferver, durante mais ou menos tempo, conforme desejava ovos quentes, escalfados ou bem cozidos. Sexta-Feira ensinou-lhe que se podia dispensar a caçarola e a água. Furando-os de um lado ao outro com uma haste pontiaguda e fina, confecionou uma espécie de espetada de ovos que fazia girar acima do lume. Robinson sempre pensara que um bom cozinhado nunca devia misturar carne com peixe, sal com açúcar. Sexta-Feira mostrou-lhe que às vezes, estas misturas são possíveis, e mesmo muito suculentas. Assim, por exemplo, antes de pôr uma fatia de pecari a grelhar, abria com o canivete uma série de fendas profundas na carne e colocava em cada fenda uma ostra ou um mexilhão crus. A carne recheada com marisco tinha um sabor delicioso. Para misturar o gosto açucarado com o do sal, punha à volta do peixe rodelas de ananás, ou recheava um coelho com ameixas. Acima de tudo, porém, ensinou Robinson a fabricar açúcar. Mostrou-lhe uma espécie de palmeira barriguda, mais grossa no meio do que na base e no cimo, ou seja, com forma de quilha. Quando se abate esta árvore e se cortam as folhas, vêem-se imediatamente gotas de uma seiva espessa e açucarada, que começam a escorrer. É preferível que a árvore esteja exposta ao sol, e é necessário que o cimo — de onde a seiva sai — seja colocado mais alto que a base, o que não admira, visto que normalmente, a seiva tem tendência para subir pelo tronco. Este açúcar líquido pode escorrer durante meses, com a condição de se humedecer o corte com regularidade, pois os poros de onde sai têm tendência a fechar-se. Sexta-Feira mostrou a Robinson que expondo ao lume este melaço, ele se transformava em caramelo. Untava com ele frutos que assava no espeto, mas também carne, e mesmo peixe.

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XXIII No entanto, foi a propósito de um cozinhado que Robinson e Sexta-Feira discutiram pela primeira vez. Antigamente - antes da explosão - nunca podia haver discussões entre ambos. Robinson era o amo. Sexta-Feira não podia deixar de obedecer. Robinson podia repreender, ou mesmo bater em Sexta-Feira. Agora, porém, Sexta-Feira era livre. Igual a Robinson. Podiam, portanto, zangar-se um com o outro. Foi o que aconteceu quando Sexta-Feira cozinhou numa grande concha rodelas de serpente com uma guarnição de gafanhotos. Havia vários dias, de resto, que irritava Robinson. Nada é mais perigoso do que a irritação quando se é forçado a viver sozinho com outra pessoa. Na véspera Robinson tivera uma indigestão de filetes de tartaruga com mirtilos. E Sexta-Feira punha-lhe agora debaixo do nariz um fricassé de pitão com insetos! Robinson sentiu um vómito e, com um pontapé, atirou com a grande concha para a areia, de mistura com o conteúdo. Sexta-Feira, furioso, apanhou-a e brandiu-a por cima da cabeça de Robinson. Iriam os dois amigos bater-se? Não! Sexta-Feira desapareceu. Duas horas depois, Robinson viu-o voltar arrastando atrás de si sem cuidado nenhum, uma espécie de manequim. A cabeça era feita com um coco, as pernas e os braços de hastes de bambu. Mas, além disso, estava vestido com velhas roupas de Robinson, como um espantalho para pardais. No coco, em cima do qual pusera um chapéu de marinheiro, Sexta-Feira desenhara as feições do amigo. Colocou o manequim de pé, junto de Robinson. — Apresento-te Robinson Crusoe, governador da ilha de Speranza — disse-lhe. Apanhou depois a concha suja e vazia, que ainda ali estava, e, com um rugido, quebrou-a em cima do coco, que caiu, no meio das hastes de bambu partidas. A seguir, Sexta-Feira desatou a rir e foi abraçar Robinson. Este compreendeu a lição contida nesta estranha comédia. Num dia em que Sexta-Feira cotnia grandes vermes de palmeira vivos, enrolados com 73

ovos de formigas, Robinson, desesperado, foi até à praia. Esculpiu na areia molhada uma espécie de estátua deitada de barriga para baixo e com utna cabeça cujos cabelos eram algas. Não se via o rosto, escondido sob o braço dobrado, mas o corpo escuro e nu assemelhava-se ao de Sexta-Feira. Mal Robinson tinha acabado a sua obra, apareceu o índio, com a boca ainda cheia de vermes de palmeira. — Apresento-te Sexta-Feira, o comedor de serpentes e vermes —, disse-lhe Robinson, mostrando a estátua de areia. Arrancou depois um ramo de aveleira, que limpou de ramagens e folhas, e pôs-se a chicotear as costas e as nádegas do Sexta-Feira de areia, que fabricara com esse objetivo. A partir daí, passaram a ser quatro a viver na ilha. Havia o verdadeiro Robinson e o boneco Robinson, o verdadeiro Sexta-Feira e a estátua de Sexta-Feira, e todo o mal que os dois amigos podiam fazer um ao outro — as injúrias, as pancadas, as zangas — faziam-na à cópia do outro. Entre si só trocavam amabilidades.

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XXIV Sexta-Feira, porém, inventou outro jogo ainda mais interessante e curioso que o das duas cópias. Certa tarde, acordou Robinson rudemente, quando este dormia a sesta debaixo de um eucalipto. Fabricara um disfarce cujo significado Robinson não compreendeu imediatamente. Tinha as pernas enfiadas em trapos, atados como umas calças. Uma curta túnica pendia-lhe dos ombros. Trazia um chapéu de palha, mas isso não o impedia de se abrigar sob um guarda-sol de folhas de palmeira. Mas, acima de tudo, havia feito uma barba postiça, colando flocos de algodão nas faces. — Sabes quem eu sou? — perguntou ele a Robinson, passeando-se majestosamente na sua frente. — Não. — Sou Robinson Crusoe, da cidade York, em Inglaterra, amo e senhor do selvagem Sexta-Feira! — E então eu, quem sou? - perguntou Robinson, estupefacto. — Adivinha! Robinson conhecia Sexta-Feira demasiado bem para não compreender por meias palavras o que ele pretendia. Levantou-se e desapareceu na floresta. Se Sexta-Feira era Robinson, o Robinson de antigamente, amo do escravo Sexta-Feira, Robinson não tinha mais que tornar-se Sexta-Feira o antigo escravo Sexta-Feira. Na realidade, já não tinha a sua barba quadrada, nem o cabelo cortado rente de antes da explosão, e parecia-se de tal maneira com Sexta-Feira que não precisava de fazer muito para desempenhar o seu papel. Contentou-se em esfregar o rosto e o corpo com suco de nozes para ficar mais escuro, e atar à volta da cintura a tanga de couro dos araucanos, que Sexta-Feira trazia no dia em que desembarcou na ilha. Apresentou-se depois a Sexta-Feira e disse-lhe: 75

— Aqui estou, sou Sexta-Feira! Sexta-Feira esforçou-se então por construir frases imensas no seu melhor inglês, e Robinson respondia-lhe com as poucas palavras de araucano que aprendera no tempo em que Sexta-Feira não dizia uma só palavra de inglês. — Salvei-te dos teus congéneres, que queriam sacrificar-te às potências maléficas, disse Sexta-Feira. E Robinson ajoelhou-se, baixando a cabeça até ao solo e murmurando agradecimentos confusos. Por fim, pegando no pé de Sexta-Feira, pousou-o na nuca. Divertiram-se muitas vezes com este jogo. Era sempre Sexta-Feira quem dava o sinal. Quando aparecia com o seu guarda-sol e a barba postiça, Robinson sabia que tinha na sua frente Robinson, e que ele próprio devia desempenhar o papel de Sexta-Feira. Nunca representavam, de resto, cenas inventadas, mas apenas episódios da sua vida passada, quando Sexta-Feira era um escravo amedrontado e Robinson um amo severo. Representavam a cena dos cactos vestidos, a do arrozal posto a seco, a do cachimbo fumado às escondidas ao pé da reserva de pólvora. Mas nenhuma agradava tanto a Sexta-Feira corno a do princípio, quando fugira dos araucânios que o queriam sacrificar e fora salvo por Robinson. Este tinha percebido que essa cena fazia bem a Sexta-Feira porque lhe fazia esquecer a má recordação que conservava da sua vida de escravo. Mas também a ele lhe fazia bem, Robinson, porque nutria ainda alguns remorsos por ter sido um amo severo para Sexta-Feira.

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XXV Um dia, Sexta-Feira voltou de um passeio carregando ao ombro um barril. Encontrara-o perto da antiga fortaleza, ao remexer na areia para apanhar um lagarto. Robinson refletiu demoradamente, depois lembrou-se de que enterrara dois barris de pólvora e os ligara à fortaleza por meio de um cordão de estopa, o que permitiria fazê-los explodir à distância. Só um deles explodira pouco depois da catástrofe. Sexta-Feira acabava de encontrar o outro. Robinson ficou surpreendido ao vê-lo tão contente com o seu achado. — Que vamos fazer com esta pólvora se, como sabes, já não temos espingarda? Como única resposta, Sexta-Feira introduziu a ponta da sua faca na fenda da tampa e abriu a barrica. Em seguida meteu lá a mão e tirou um punhado de pólvora, que atirou para o lume. Robinson recuara, temendo uma explosão. Mas esta não se deu. Fez-se apenas uma grande chama verde, que se ergueu como um sopro de tempestade e logo desapareceu. — Estás a ver? - explicou Sexta-Feira - a espingarda é a maneira mais feia de queimar a pólvora. Quando está fechada na câmara da carabina, ela grita e torna-se má. Quando a deixam em liberdade, é bela e silenciosa. Convidou depois Robinson a atirar ele próprio para o fogo um punhado de pólvora, mas desta vez deu um salto ao mesmo tempo que a chama, como se quisesse dançar com ela. E fizeram o mesmo outra vez, e ainda outra, de tal modo que se formaram grandes cortinas de luzes verdes e saltitantes, e em cada uma delas a silhueta negra de Sexta-Feira aparecia numa posição diferente. Mais tarde, inventaram outras maneiras de brincar com a pólvora. Encheram um pequeno recipiente com resina de pinheiro. Misturaram esta resina — que só por si arde muito bem — com a pólvora. Obtiveram assim 77

uma pasta negra, pegajosa e terrivelmente inflamável. Com ela cobriram o tronco e os ramos de uma árvore morta, que se erguia à beira da falésia. Deitaram-lhe fogo quando chegou a noite: toda a árvore se cobriu então de uma carapaça de ouro palpitante, e ardeu até de manhã, como um enorme candelabro de fogo. Passaram vários dias a transformar toda a pólvora na pasta inflamável e a cobrir com ela todas as árvores mortas da ilha. À noite, quando estavam aborrecidos e sem sono, iam juntos acender uma árvore. Era a sua festa noturna e secreta.

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XXVI Durante os anos que haviam precedido a explosão, e a destruição da ilha civilizada, Robinson esforçara-se por ensinar inglês a Sexta-Feira. O seu método era simples, mostrava-lhe um malmequer e dizia-lhe: — Malmequer. E Sexta-Feira repetia: — Malmequer. E Robinson corrigia-lhe a pronúncia tantas vezes quantas as necessárias. Mostrava-lhe depois um cabrito, uma faca, um papagaio, um raio de sol, um queijo, uma lupa, uma nascente, articulando lentamente: — Cabrito, faca, papagaio, sol, queijo, lupa, nascente. E Sexta-Feira repetia a seguir, durante tanto tempo quanto o necessário para cada palavra lhe sair corretamente pronunciada. Quando a catástrofe se deu, Sexta-Feira já de há muito sabia inglês bastante para compreender as ordens que Robinson lhe dava, e indicar pelos nomes adequados todos os objectos úteis que os rodeavam. Um dia, Sexta-Feira mostrou a Robinson uma mancha que palpitava na erva, e disse-lhe: — Malmequer. — Sim — respondeu Robinson —, é um malmequer. Porém, mal pronunciara estas palavras, o malmequer bateu as asas e pôs-se a voar. — Estás a ver - disse ele imediatamente -, enganámo-nos. Não era um malmequer, mas sim uma borboleta. — Uma borboleta branca — retorquiu Sexta-Feira —, é um malmequer que voa. Antes da catástrofe, quando era o dono da ilha e de Sexta-Feira, Robinson ter-se-ia zangado. Teria obrigado Sexta-Feira a reconhecer que uma flor é 79

uma flor, e uma borboleta uma borboleta. Agora, porém, calou-se e ficou pensativo. Mais tarde, Sexta-Feira e Robinson passeavam pela praia. O céu estava azul, sem nuvens, mas como era de manhã muito cedo, o disco branco da Lua ainda era visível a este. Sexta-Feira, que apanhava conchas, mostrou a Robinson um pequeno seixo, que produzia uma mancha redonda e branca na areia pura e limpa. Ergueu então a mão para a Lua, e disse-lhe: — Ouve: acaso a Lua é o seixo do céu, ou é este pequeno seixo que é a Lua da areia? E desatou a rir, como se soubesse antecipadamente que Robinson não poderia responder a esta estranha pergunta. Houve depois um período de mau tempo. Amontoaram-se nuvens negras por cima da ilha e pouco depois a chuva pôs-se a crepitar na folhagem, a fazer brotar milhares de pequenos cogumelos à beira-mar e a escorrer pelos rochedos. Os dois amigos tinham-se abrigado debaixo de uma árvore. De repente, Sexta-Feira saiu do abrigo e expôs-se à chuva. Atirava o rosto para trás e deixava que a água lhe escorresse pelas faces. Aproximou-se depois de Robinson. — Repara - disse-lhe -, as coisas estão tristes e choram. As árvores choram, os rochedos choram, as nuvens choram, e eu choro com elas. Ai!, ai!, ai! A chuva é o grande desgosto da ilha e de todas as coisas... Robinson começava a compreender. Admitia, pouco a pouco, que as coisas mais distanciadas umas das outras - como a Lua e um seixo, as lágrimas e a chuva - podem assemelhar-se até ao ponto de se confundirem, e que as palavras voam de uma coisa para outra, mesmo que isso confunda um pouco as ideias. Entrou completamente no jogo quando Sexta-Feira lhe explicou as regras do Retrato araucano em cinco pinceladas. Sexta-Feira dizia-lhe, por exemplo: — Qual é a coisa, qual é ela, que é uma mão que te embala, um cozinheiro que põe sal na tua sopa, um exército de soldados que te faz prisioneiro, um grande animal que se zanga, ruge e se agita quando faz vento, uma pele de serpente com mil escamas que brilham ao sol? 80

— É o Oceano! - respondeu Robinson triunfante. E, para mostrar que compreendera a regra do jogo, interrogou Sexta-Feira, por sua vez: — Qual é a coisa, qual é ela, que é uma cabeleira gigante, onde dois homens se escondem como se fossem pulgas, que é uma sobrancelha que se franze por cima do grande olho do mar, que é um nada de verde em muito azul, que é um pouco de água doce no meio de muita água salgada, e um barco sempre imóvel e ancorado? — É a nossa ilha Speranza — exclamou Sexta-Feira e, por sua vez, formulou outra adivinha: — Se fosse uma árvore, seria uma palmeira, por causa dos pelos fulvos que lhe cobrem o tronco. Se fosse um pássaro, seria o corvo do Pacífico, por causa do uivo rouco. Se fosse uma parte do meu corpo, seria a minha mão esquerda, por causa da fidelidade com que ajuda a minha mão direita. Se fosse um peixe, seria uma solha chilena, por causa dos dentes afiados. Se fosse um fruto, seriam duas avelãs, por causa dos pequenos olhos castanhos. O que é? — É Tenn, o nosso cão - respondeu Robinson -, reconheci-o pelo pelo fulvo, pelo ladrar, pela fidelidade, pelos colmilhos aguçados e pelos olhos castanhos. Ao evocar, porém, a imagem do bom Tenn desaparecido, Robinson sentiu a tristeza invadi-lo, e uma estranha bola cresceu-lhe na garganta, impedindo-o de falar. Sexta-Feira deu-se conta, e arrependeu-se da sua falta de tato.

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XXVII Uma manhã, Sexta-Feira acordou com a voz de Robinson, que o chamava pelo nome. Soergueu-se e olhou em volta. Ninguém! E, no entanto, não sonhara. De repente, mesmo por cima da sua cabeça, vindo dos ramos do arbusto debaixo do qual adormecera, o chamamento soou de novo! — Sexta-Feira! Sexta-Feira! Levantou-se e inspecionou a folhagem da pequena árvore. Viu então um pássaro verde e cinzento levantar voo, num golpe de asa, soltando uma espécie de risada, em direção a um pequeno bosque onde os dois amigos raramente penetravam. Quis ter a certeza e dirigiu-se para esse ponto da ilha. Não teve que procurar muito tempo: uma das árvores mais belas - um tulipeiro - parecia carregado de grandes frutos bizarros... que eram, na realidade, outros tantos ninhos de papagaios. Voltou lá de tarde, com Robinson. Os papagaios faziam uma enorme algazarra nos ramos do tulipeiro, mas calaram-se de repente, ao verem os dois amigos aproximarem-se, e foi no meio de um profundo silêncio que SextaFeira e Robinson pararam, debaixo da árvore. — Nunca vi papagaios na ilha — disse Robinson —, devem ter chegado todos ao mesmo tempo, para pôr os ovos, e vêm com certeza de outra ilha, não muito afastada daqui. Sexta-Feira ia a abrir a boca para lhe responder quando foi interrompido pela cacofonia dos papagaios, que recomeçaram a falar todos ao mesmo tempo. Nunca vi, nunca vi, nunca vi, gritava um, outra ilha, outra ilha, outra ilha, repetia outro chegar ao mesmo tempo, chegar ao mesmo tempo, chegar ao mesmo tempo, imitava um terceiro, ao mesmo tempo que um bando inteiro de pássaros verdes, pousados no ramo mais próximo, lhes gritava, os ouvidos, muito afastada, muito afastada, muito afastada. 82

Ensurdecidos com todo aquele barulho, Sexta-Feira e Robinson fugiram até aos grandes pinheiros que bordejavam a praia. — É realmente a primeira vez, desde o meu naufrágio, que sou incomodado pelo barulho das vozes - exclamou Robinson, lembrando-se dos seus longos anos de solidão. — Barulho das vozes barulho das vozes barulho das vozes! — papagueou uma voz áspera, nos ramos do pinheiro mais próximo. Foi necessário irem ainda para mais longe, até à beira-mar, onde as ondas se desfazem na areia molhada. A partir desse dia, Robinson e Sexta-Feira tiveram a maior dificuldade em trocar uma frase sem que logo uma voz trocista, saindo da uma moita ou arbusto próximos, viesse interrompê-los, repetindo algumas palavras que tivessem dito. Desesperado, Robinson já não se deslocava sem um pau, que atirava raivosamente na direção de onde vinha a voz. Nunca atingiu um papagaio, mas era frequente ver-se um deles levantar voo, soltando um grito que mais parecia uma risada trocista. — Na verdade — disse-lhe Sexta-Feira alguns dias depois — parece-me que esta é uma boa lição. Falamos demasiado. Nem sempre é bom falar. Na minha tribo, entre os araucanos, os que mais sabem, são os que menos falam. Quanto mais falamos, menos respeitados somos. Os animais mais tagarelas são os macacos, e entre os homens são as crianças pequenas e as mulheres velhas. E não se deixou perturbar pela gritaria que logo se ouviu, mesmo ali ao lado, repetindo: crianças pequenas crianças pequenas crianças pequenas. Ensinou a Robinson um certo número de gestos com as mãos que poderiam exprimir as coisas mais importantes. Assim, este gesto significava:

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Assim, Robinson e Sexta-Feira mantiveram-se silenciosos durante várias semanas. Certa manhã, os ovos dos papagaios eclodiram, os filhotes aprenderam a voar e um grande ajuntamento ruidoso teve lugar junto à margem. Depois, de uma só vez, no momento em que o Sol nascia, todas as aves levantaram voo dirigindo-se para o largo e, no horizonte, uma grande nuvem, redonda e verde como uma maçã, começou a diminuir, para depois desaparecer. Robinson e Sexta-Feira de novo puderam utilizar a boca para comunicar e sentiram-se muito felizes ao ouvirem novamente o som das próprias vozes. A experiência, porém, fora proveitosa e salutar e daí em diante acontecia que, de comum acordo, se calavam e só comunicavam com gestos das mãos.

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XXVIII As cabras que Robinson domesticara e encerrara em redis haviam regressado ao estado selvagem. Mas, como quase todos os animais que vivem em liberdade, tinham-se organizado em grupos comandados pelos bodes mais fortes e experientes. Estes bodes-chefes obedeciam por sua vez a um boderei, de uma envergadura e força terríveis, que se chamava Andoar. Quando um perigo ameaçava um rebanho, este reunia-se – geralmente numa colina ou num rochedo - e todos os animais da primeira fila baixavam a cabeça e opunham ao inimigo uma barreira de chifres intransponível. Sexta-Feira inventara um divertimento perigoso, mas que o entusiasmava. Lutava com os bodes que surpreendia isolados. Se fugiam, apanhava-os a correr. Agarrava-os pelos cornos e obrigava-os a deitarem-se. Para marcar os vencidos, atava-lhes ao pescoço um pequeno colar de lianas. Aconteceu, porém, que durante uma dessas caçadas ao bode Sexta-Feira recolheu uma pequena cabra que encontrara ferida no recôncavo de um rochedo. Tinha uma pata da frente partida. Era uma cabrinha muito nova, branca, ainda sem chifres. Sexta-Feira fez-lhe umas talas com paus e atoulhas à volta do osso fraturado. Com certeza que uma cabra mais velha, e mais razoável, se teria habituado a esse aparelho que a impedia de dobrar o joelho. Mas a pequena cabra Anda - assim a batizara Sexta-Feira - nunca estava quieta. Saltava como uma louca e tinha muitas dores quando caía sobre as talas. De resto, acabava sempre por se desembaraçar delas e punha-se a andar de lado, soltando gritos lancinantes. A opinião de Robinson era que deviam abatê-la. Em todos os países do mundo se abatem as cabras, os carneiros e até os cavalos que partem uma perna. É que esses animais não conseguem suportar a prisão do gesso ou das talas que imobilizam os ossos fraturados. 86

Sexta-Feira, porém, obstinou-se em querer salvar Anda. Já que ela não pode andar, nem correr, nem saltar, pois bem, imobilizá-la-ia completamente! Amarrou-a, portanto, a um quadrado de madeira colocado no chão. Ao princípio, deitada de lado, Anda debatia-se e balia a tal ponto que cortava o coração. Mas resignou-se e consentiu em comer a erva bem cheirosa e beber a água fresca que Sexta-Feira lhe levava duas vezes ao dia. Ao cabo de três semanas, Sexta-Feira libertou-a. A cabrinha quis logo correr, mas os músculos estavam destreinados. Cambaleava, como se tivesse bebido vinho. Foi necessário ensinar-lhe novamente a andar. Sexta-Feira entregou-se a essa tarefa com uma paciência incansável. Segurava-a pelos flancos, entre as suas próprias pernas, e avançava passo a passo, enquanto os pequenos cascos martelavam e tropeçavam desajeitadamente nos pedregulhos. No entanto, lá conseguiria voltar a saltar e a correr. Era delicioso ver a pequena Anda saltar de rochedo em rochedo, ora atrás de Sexta-Feira ora precedendo-o, embora, neste último caso, o índio tivesse por vezes dificuldade em segui-la. Aconteceu, no entanto, que embora tivesse reaprendido a correr, Anda nunca mais quis pastar sozinha! Bem podia pô-la no meio de um prado coberto de ervas e flores, ou sob a folhagem tenra de um pequeno arbusto as cabras preferem as folhas às ervas -, que ela balia, voltava para SextaFeira, à espera de que este lhe desse na mão as plantas que colhera para ela. Sexta-Feira e Anda eram inseparáveis. À noite, tapava-se com a pelagem quente e viva de Anda, estendida em cima dele. De dia, não se afastava de Sexta-Feira um metro que fosse. — Verás - dizia a Robinson - mais tarde, quando tiver leite, não a ordenharei como fazíamos antigamente! Chupar-lhe-ei as tetas diretamente, como se fosse uma pequena mamã! E ria de satisfação com esta ideia. Robinson escutava-o com alguma inveja, pois sentia-se excluído da grande amizade que unia Sexta-Feira e a cabrinha. — Depois da catástrofe, disse-lhe ele, quiseste que todos fossem livres em Speranza e que não houvesse mais animais domésticos. Então, por que razão reténs Anda junto de ti? 87

—Anda não é um animal doméstico, respondeu Sexta-Feira com dignidade. É livre. Fica comigo porque gosta de mim. No dia em que quiser ir-se embora, não a impedirei! Ora certa manhã Sexta-Feira acordou com a sensação de que se passara qualquer coisa enquanto dormia. Anda estava nos seus braços como de costume. No entanto, olhando-a bem de frente, Sexta-Feira achou-lhe um ar esquisito. Além disso, à sua volta flutuava um cheiro, muito forte, um cheiro a bode! Não disse nada, mas ficou a pensar nisso todo o dia. Na noite seguinte, manteve-se sempre mais ou menos desperto. E eis que à meia-noite, a moita junto da qual repousava pareceu abrir-se como uma grande flor e nela viu aparecer, bem no meio, a mais bela cabeça de bode que jamais lhe fora dado ver. Uns olhos oblongos e dourados brilhavam na espessura do pêlo, uma barbicha fina e sedosa fremia na ponta do queixo, uns cornos grandes e anelados ornavam-lhe a fronte. Ao mesmo tempo, um leve sopro de vento trazia até Sexta-Feira um terrível cheiro a suarda e almíscar. Embora nunca o tivesse visto, Sexta-Feira reconheceu imediatamente Andoar, o rei dos bodes de Speranza. Mas também Anda o vira certamente, pois debatia-se suavemente nos braços de Sexta-Feira, como se quisesse soltar-se dele sem o acordar. Sexta-Feira, porém, apertou-a com mais força e não a deixou ir, até o grande bode desaparecer. Mas logo se lembrou do que dissera a Robinson: se Anda quisesse deixá-lo, não a impediria de o fazer! E corou de vergonha, sob a pele escura. No dia seguinte, entrançou cuidadosamente lianas de cores vivas, para fazer um colar mais sólido e belo que os outros: o colar do rei Andoar. Depois, partiu para a montanha, em busca do seu adversário. Viu-o no alto de um rochedo, imóvel como uma grande estátua coberta de pelos. Trepou lentamente pela rocha, apertando entre os dentes o colar de lianas de cores vivas que deveria assinalar a sua vitória sobre Andoar. Lá no alto, havia realmente pouco espaço para dois! Mas o bode continuava imóvel. Sexta-Feira não sabia que fazer. Seria necessário provocá-lo? Aproximouse, segurando o colar na ponta do braço estendido. Ia tocar no bode quando este avançou bruscamente um metro e investiu com os grandes cornos pela 88

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direita e pela esquerda da cintura de Sexta-Feira. O índio ficou imobilizado, como pelas hastes de uma grande pinça. O bode virou depois a cabeça para o lado e Sexta-Feira, perdendo o equilíbrio, caiu do alto do rochedo. Felizmente, a altura não era muito grande, mas havia espinhos e azevinhos na base do rochedo, que lhe dilaceravam profundamente a carne. Sexta-Feira viu-se forçado a ficar na cama de rede durante vários dias. Robinson fazia-lhe aplicações de musgo húmido e Anda lambia-lhe os ferimentos. Falava constantemente de Andoar, que queria encontrar de novo para obter a desforra, mas como era um adversário leal, não cessava de fazer elogios ao rei dos bodes. Andoar, segundo ele, podia ser pressentido a cem metros de distância, para o que bastava o seu terrível cheiro, Andoar nunca fugia quando alguém se aproximava dele. Andoar não o atacara depois da sua queda do rochedo e não tentara feri-lo de morte, como teria feito qualquer outro bode... Sexta-Feira estava muito fraco. Passava todo o tempo deitado, exceto quando apanhava ervas e ia buscar água para Anda. Uma noite, esgotado, caiu num sono profundo. Quando na manhã seguinte acordou, muito tarde, Anda desaparecera. — Estás a ver - disse ele a Robinson - ela quis ir-se embora e foi. Mas Robinson, que não era tolo, riu-lhe na cara. Então Sexta-Feira jurou a si próprio que voltaria a encontrar Andoar, lhe enfiaria o colar de lianas no pescoço e recuperaria Anda. Quando ficou curado, Robinson tentou impedi-lo de procurar novamente o rei dos bodes para o desafiar. Em primeiro lugar, havia o cheiro que SextaFeira trazia agarrado à pele, depois de lutar com bodes. Além disso, a brincadeira era realmente perigosa, como ficara provado com a sua queda do rochedo e os ferimentos que lhe provocara. Tudo o que Robinson pudesse dizer, no entanto, de nada servia. Sexta-Feira queria a desforra, e aceitava alegremente todos os riscos. Partiu de novo certa manhã até aos rochedos, à procura do seu adversário. Não necessitou de muito tempo para o descobrir. A silhueta do grande macho destacava-se no meio de um grande ajuntamento de cabras e cabri90

tos, que fugiram em desordem quando Sexta-Feira se aproximou. Só uma pequena cabra branca continuou fielmente junto do rei, e Sexta-Feira não pôde deixar de reconhecer Anda. De resto, ela não pastava. Era Andoar que o fazia para ela: arrancava um tufo de ervas e apresentava-o a Anda. A cabrinha pegava nelas com os dentes e abanava várias vezes a cabeça, como que a dizer obrigado. Sexta-Feira sentiu-se mordido pelo ciúme. Andoar não procurava fugir. Estava no meio de uma espécie de círculo, delimitado, a um lado, por um muro de pedras vertical e, a outro, por um precipício com uns trinta metros de altura. Sexta-Feira desatou o cordão que enrolava à volta do punho e agitou-o diante do focinho de Andoar, como um desafio. O animal parou de repente de mastigar, conservando uma erva comprida entre os dentes. Mofou, depois, abanando a barbicha, ergueu-se nas patas traseiras, como se quisesse mostrar quanto era belo. Deu alguns passos em direção a Sexta-Feira, agitando no ar os cascos da frente e abanando os enormes chifres, como se cumprimentasse uma multidão vinda para o admirar. Sexta-Feira ficou estupefacto com esta pantomima grotesca. Esse segundo de distração foi a sua perda. O animal já só estava a alguns passos dele quando investiu, dando um salto formidável na sua direção. Voou como uma flecha direito ao peito do índio. Sexta-Feira atirou-se para o lado, mas falhou por um segundo. Uma violenta pancada no ombro direito fê-lo girar sobre si próprio. Foi atirado brutalmente contra as pedras, e ficou estatelado no solo. Se tivesse podido levantar-se imediatamente, teria sido incapaz de evitar novo ataque. Ficou portanto deitado de costas, não vendo, por entre as pálpebras semicerradas, senão um pedaço de céu azul. Este, porém, obscureceu-se bruscamente, e uma cabeça felpuda, terminada por uma barbicha, com o focinho distorcido numa espécie de esgar trocista, debruçou-se sobre ele. Tentou fazer um movimento, mas o ombro dorido provocou-lhe uma dor tão forte que desfaleceu. Quando reabriu os olhos, o Sol estava no zénite e envolvia-o num calor insuportável. Apoiou-se na mão esquerda e encolheu os pés debaixo de si. O muro de pedra refletia a luz como um espelho. O bode estava invisível. 91

Levantou-se cambaleando e ia voltar-se quando ouviu atrás de si um ruído de cascos ecoando nas pedras. O ruído aproximava-se tão rapidamente que ele nem pensou em fazer-lhe frente. la deixar-se cair sobre o lado esquerdo, o do ombro não atingido. Mas um embate ao nível da anca fê-lo tropeçar, com os braços abertos. Andoar parara de repente, firmado nas suas quatro patas musculadas. Sexta-Feira acabou por perder o equilíbrio e caiu para cima do dorso do bode. Andoar vergou um pouco sob o peso, a seguir endireitou-se e voltou a partir a toda a velocidade. Cheio de dores no ombro, o índio não largava o animal. Agarrara-se com as mãos aos chifres, rente ao crânio, e as pernas apertavam-lhe a pelagem dos flancos, enredando nela os dedos dos pés. O bode dava saltos fantásticos para se livrar daquele corpo nu que o incomodava. Deu várias voltas ao monte de pedras onde encontrara Sexta-Feira, sem nunca tropeçar nas rochas. O índio tinha tantas dores que sentia vontade de vomitar e receava desmaiar novamente. Era necessário que Andoar parasse. As suas mãos desceram ao longo do crânio do animal e taparam-lhe os olhos. Se deixasse de ver, com certeza que pararia. Mas não parou. Corria em frente, a direito, como se já não existissem obstáculos. Os seus cascos ressoaram sobre a laje de pedra que avançava para o precipício, e os dois corpos, sempre enlaçados, caíram no vazio.

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XXIX A dois quilómetros dali, Robinson seguira com o óculo a luta e a queda dos dois adversários. Conhecia suficientemente bem aquela parte da ilha e sabia que o fundo do precipício tinha acesso por um pequeno atalho que serpenteava ao longo da montanha. A noite já começava a cair quando descobriu o cadáver de Andoar, no meio das escassas moitas que cresciam por entre as pedras. Tapando o nariz, debruçou-se sobre o grande corpo castanho e reconheceu logo o colar colorido, solidamente atado à volta do pescoço do animal. Ergueu-se, ouvindo rir atrás de si. Sexta-Feira ali estava, de pé. Cheio de arranhões e com um ombro deitado abaixo, mas parecendo feliz. Anda estava a seu lado e lambia-lhe a mão. — O rei dos bodes estava debaixo de mim e protegeu-me quando caímos — explicou ele. O grande bode morreu salvando-me, mas dentro em breve vou fazê-lo voar e cantar.

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XXX Sexta-Feira recompunha-se da fadiga e dos ferimentos com uma rapidez que sempre espantava Robinson. Alguns dias depois voltou junto do cadáver de Andoar. Decepou-lhe primeiro a cabeça, que colocou no meio de um formigueiro. Cortou depois a pele em volta das patas e a todo o comprido do peito e do ventre. Tirou-lhe finalmente a pele e estendeu-a no solo. Do corpo do animal apenas guardou os intestinos. Lavou-os com muita água e pô-los a secar nos ramos de uma árvore. Dirigiu-se em seguida para a beira-mar, cantarolando e levando debaixo do braço a pesada e gordurosa pele de Andoar. Lavou-a nas ondas, para ficar impregnada de areia e sal. Raspou-a depois com conchas, para tirar todos os pelos. Levou vários dias a fazer este trabalho. Finalmente, esticou-a entre dois arcos de madeira, como uma pele de tambor. Depois de bem seca, poliu-a com pedra-pomes. — Andoar vai voar, Andoar vai voar — repetia ele muito excitado, recusando-se sempre a desvendar os seus projetos.

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XXXI Desde a mais tenra infância que Robinson tinha vertigens. Pôr -se de pé em cima de uma cadeira bastava para lhe provocar um certo mal-estar. Um dia subira ao campanário da catedral da sua cidade natal, York. Depois de uma longa escalada por uma escada íngreme e estreita, em caracol, vira-se bruscamente fora da sombra ; das paredes, em pleno céu, numa plataforma de onde se via toda a cidade, com os seus habitantes do tamanho de formigas. Gritou de medo e tiveram de o descer como um embrulho, com a cabeça tapada pela capa de estudante. Por isso, todas as manhãs se esforçava por subir a uma árvore, para vencer o medo. Em tempos teria achado este exercício ridículo e inútil. Mas desde que vivia tomando Sexta-Feira como modelo, achava importante livrar-se daquelas terríveis vertigens. Nessa manhã escolhera uma araucária, uma das maiores árvores da ilha. Agarrou-se ao ramo mais baixo e içou-se, apoiando-se num joelho. Trepou depois os sucessivos andares de ramagens, pensando que gozaria o nascer do Sol um pouco mais cedo no topo da árvore. À medida que subia, sentia a árvore vibrar cada vez mais, e balouçar ao vento. A vertigem começou a contrair-lhe o estômago. Estava já próximo do cimo quando, de repente, se viu suspenso no vazio. Certamente por efeito de um raio, o tronco estava desprovido de ramos ao longo de dois metros. Cometeu então um erro que dificilmente se evita quando se teme a vertigem: olhou para baixo. Não viu senão uma confusão de ramos afundando-se em espiral. A angústia paralisou-o e agarrou-se ao tronco com os braços e as pernas. Compreendeu por fim que devia olhar, não para baixo, mas para cima. Levantou os olhos. No céu azul, um grande pássaro dourado em forma de losango balouçava ao sabor do vento. Sexta-Feira cumprira a sua misteriosa promessa: fazer voar Andoar. 95

XXII Primeiro, amarrara três varas de junco em forma de cruz. Fizera depois um entalhe em cada uma das suas secções, enfiando neles uma tripa. Esticara de seguida sobre a estrutura leve e robusta assim obtida a pele de Andoar, virando e cosendo os bordos sobre a tripa. As duas pontas da vara mais comprida estavam ligadas por um fio bastante frouxo, ao qual atara uma corda, num ponto cuidadosamente calculado, pois daí dependia a inclinação da superfície ao vento. Sexta-Feira trabalhava no seu papagaio desde os primeiros alvores da madrugada e o grande pássaro de pele, havia pouco terminado, agitava-se ao vento, ainda preso às mãos do índio, como se estivesse impaciente por voar. Na praia, o índio gritara de alegria no momento em que Andoar, curvado como um arco, subira como um foguete, arrastando consigo uma grinalda de penas brancas e negras. Robinson descera rapidamente da sua árvore, para ir ter com ele. Encontrou-o deitado na areia, com as mãos cruzadas sob a nuca e a cabrinha Anda enrolada a seus pés como uma bola. Tinha a corda do papagaio atada ao tornozelo. Robinson estendeu-se ao pé dele e ambos observaram durante muito tempo o voo caprichoso de Andoar no meio das nuvens, subindo e mergulhando, vibrando sob uma rajada e baixando depois, quando o vento diminuía. De repente, Sexta-Feira ergueu-se num salto e sem soltar a corda do papagaio, que mantinha amarrada ao tornozelo, imitou a dança aérea de Andoar. Rindo e cantando, agachou-se no solo, todo enrolado, depois saltou levantando os braços, voltou a cair, projetou a perna esquerda para o céu, girou sobre si próprio, acompanhado pelos saltos de Anda. E lá no alto, muito longe, nas nuvens, o belo pássaro dourado, ligado ao tornozelo de Sex96

ta-Feira por trezentos metros de corda, acompanhava-o também na sua dança, girava, mergulhava, saltava com ele. A parte da tarde foi consagrada à pesca com o papagaio, tal como ainda é praticada nas ilhas do arquipélago de Salomão. A corda do papagaio foi atada à parte de trás da piroga, ao mesmo tempo que outra corda do mesmo comprimento partia da cauda do papagaio e acabava num anzol dissimulado por um tufo de plumas. Robinson remava lentamente contra o vento e a certa distância, atrás da piroga, o tufo de plumas cintilava, oscilando com as ondas. Por vezes, um grande peixe atirava-se a esta isca e fechava a bocarra, engolindo o anzol. Sexta-Feira e Robinson viam então, no céu, o grande papagaio agitar-se como a bóia de uma cana de pesca quando o peixe morde. Robinson dava meia volta e, remando no sentido do vento, chegava pouco depois à extremidade da linha, que Sexta-Feira apanhava. No fundo do barco amontoavam-se os corpos brilhantes dos peixes muito redondos, de dorsos verdes e flancos prateados, quase todos peixes-agulha. Ao fim do dia, Sexta-Feira não quis trazer Andoar para terra. Amarrou-o a um dos pimenteiros dos quais estava suspensa a sua rede de dormir. Como um animal doméstico preso pela trela, Andoar passou assim a noite aos pés do dono. E acompanhou-o ainda durante todo o dia seguinte. Durante a segunda noite, porém, deixou de haver vento e foi necessário ir buscar o grande pássaro que pousara suavemente no meio de um campo de flores. Após várias tentativas infrutíferas, Sexta-Feira desistiu de o pôr novamente a voar. Pareceu esquecê-lo e, durante oito dias, apenas dormiu. Pareceu então lembrar-se da cabeça do bode, que abandonara no meio de um formigueiro.

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XXXIII As pequenas formigas tinham trabalhado bem. Nada restava já dos longos pelos brancos e castanhos da barba e da carne. Mesmo a parte de dentro da cabeça fora completamente limpa. Quando Sexta-Feira voltou para junto de Robinson, nesse dia, agitava na mão um soberbo crânio branco com dois magníficos chifres negros, anelados e em forma de lira. Tendo encontrado, por acaso, a corda de lianas que atara ao pescoço de Andoar, prendeu-a à base dos chifres, tal como se põe um laço no cabelo das meninas. — Andoar vai cantar! - prometeu misteriosamente a Robinson, que o observava. Cortou primeiro duas tabuinhas de diferentes tamanhos, em madeira de sicômoro. Com a mais comprida, e graças a dois orifícios feitos lateralmente nas extremidades, uniu as pontas dos dois chifres. A mais curta foi fixada paralelamente à primeira, a meio da cabeça. Um pouco mais acima, entre as órbitas, colocou uma pequena prancha de pinheiro, em cuja aresta superior havia uma dúzia de sulcos estreitos. Por fim, pegou nas tripas de Andoar, que continuavam a balouçar-se nos ramos de uma árvore e que agora não eram mais que uma correia fina e seca curtida pelo sol, e cortou-as em pedaços iguais, com cerca de um metro cada. Quando Robinson o viu esticar, entre as duas tabuinhas e com a ajuda de cavilhas, os doze pedaços de tripa que passavam a guarnecer a testa de Andoar, compreendeu que ele queria fabricar uma harpa eólica. A harpa eólica é um instrumento que se expõe ao ar livre ou numa corrente de ar, e é o vento que toca a música fazendo vibrar as cordas. Todas devem, portanto, poder vibrar ao mesmo tempo, sem dissonâncias, e é necessário que sejam afinadas em uníssono ou em oitavas. Sexta-Feira fixou de cada lado do crânio uma asa de abutre, para canalizar para as cordas todo e qualquer sopro de vento, por mais fraco que fosse. A 98

harpa eólica foi depois colocada entre os ramos de um cipreste morto, que erguia a sua esguia silhueta no meio dos rochedos, num local exposto a toda a espécie de ventos. De resto, mal foi instalada, emitiu logo um som flauteado, frágil e plangente, embora mal houvesse brisa. Sexta-Feira escutou durante muito tempo aquela música tão triste e doce que dava vontade de chorar. Por fim, fez uma careta de desprezo e levantou dois dedos em direção a Robinson. Queria dizer com aquele gesto que o vento era demasiado fraco e só fazia vibrar duas das doze cordas. Foi necessário esperar pela próxima tempestade, que apenas um mês depois teve lugar, para Andoar cantar na sua plenitude. Robinson acabara por instalar o seu domicílio nos ramos de uma araucária, onde construíra um abrigo com placas retiradas da casca. Certa noite, Sexta-Feira veio puxá-lo pelos pés. Levantara-se uma tempestade e no céu lívido via-se a Lua deslizar rapidamente, como um disco, por entre os farrapos de nuvens. Sexta-Feira arrastou Robinson para o cipreste. Muito antes de avistar a árvore, pareceulhe ouvir um concerto celeste, em que se misturavam flautas e violinos. O vento redobrara de violência quando os dois companheiros chegaram ao pé da árvore que cantava. Preso com uma corda curta ao ramo mais alto, o papagaio vibrava como uma pele de tambor, ora imóvel e fremente, ora arrastado por rajadas mais violentas. Sob a luz instável da Lua, as duas asas de abutre abriam-se e fechavam-se ao sabor da borrasca. Andoar-voador e Andoar-cantor pareciam assim reunidos na mesma festa lúgubre. E havia sobretudo aquela música grave e bela, tão pungente que se poderia tomá-la pelo lamento do grande bode, morto ao salvar Sexta-Feira. Abraçados os três sob um rochedo, Robinson, Sexta-Feira e a cabrinha Anda olhavam de olhos abertos para aquele espetáculo terrível e ouviam atentamente aquele canto que parecia, ao mesmo tempo, cair das estrelas e subir das profundezas da terra.

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XXXIV Sexta-Feira colhia flores por entre os rochedos junto da antiga gruta quando viu um ponto branco no horizonte, para leste. Desceu imediatamente e correu a prevenir Robinson, que acabava de se barbear. Talvez Robinson se tivesse emocionado, mas não o deixou transparecer. — Vamos ter visita - disse, simplesmente: Mais uma razão para acabar de me arranjar. Excitado ao máximo, Sexta-Feira subiu ao alto de uma árvore. Levou consigo o óculo que assestou para o navio agora visível com toda a nitidez. Era uma escuna com gávea, um veleiro elegante, talhado para navegar velozmente, com os seus dois altos mastros, dos quais o primeiro - o mastro de mezena - tinha uma vela quadrada, e o outro uma vela triangular. Deslocavase bem a dez ou doze nós de velocidade, e dirigia-se para a costa pantanosa da ilha. Sexta-Feira apressou-se a ir dar estas indicações a Robinson, que passava um pente grosso, de escamas, pela cabeleira vermelha. Voltou depois a subir ao seu observatório. O comandante devia ter-se apercebido de que a costa não era abordável daquele lado, pois virara de bordo. Diminuiu depois o velame e navegou devagar, ao longo da praia. Sexta-Feira foi prevenir Robinson de que o visitante passava as dunas e lançaria a âncora, muito provavelmente, na baía da Salvação. Importava, antes de mais, conhecer a sua nacionalidade. Robinson avançou até à última fila de árvores que bordejava a praia e apontou o óculo para o navio, que se imobilizara a quatrocentos metros da praia. Alguns instantes depois, ouviu-se tilintar a corrente da âncora, ao desenrolar-se. Robinson não conhecia aquele tipo de barco, que devia ser recente, mas reconheceu a Union Jack, a bandeira inglesa, que flutuava à popa. A tripulação lançara ao mar uma embarcação e já os remos cortavam as ondas. Robinson estava muito emocionado. Ignorava há quanto tempo se encontrava na ilha, mas tinha a impressão de nela ter passado a maior parte da sua vida. Diz-se que, quando um homem está prestes a morrer, é frequente rever todo o seu passado, desdobrar-se diante de si como um panorama. Era um 100

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pouco o que estava a acontecer a Robinson, que voltava a ver o naufrágio, a construção do Evasão, o seu fracasso, a grande miséria da lama, a exploração frenética da ilha, depois a chegada de Sexta-Feira, os trabalhos a que Robinson o obrigara, a explosão, a destruição de toda a sua obra e, em seguida, toda uma longa vida feliz e calma, preenchida por jogos violentos e sãos e pelas extraordinárias invenções de Sexta-Feira. Iria tudo isso acabar? Na chalupa amontoavam-se pequenos tonéis destinados a renovar a provisão de água doce do navio. Na parte de trás via-se de pé, com o chapéu de palha descaído sobre a barba negra, um homem de botas e armado, certamente o comandante. A proa da embarcação roçou o fundo e ergueu-se antes de se imobilizar. Os homens saltaram para a espuma das ondas e puxaram a chalupa para a areia, de maneira a colocá-la fora do alcance da maré-cheia. O homem de barba negra estendeu a mão a Robinson e apresentou-se: — William Hunter, de Blackpool, comandante da escuna Whitebird. — Em que dia estamos? - perguntou-lhe Robinson. Admirado, o comandante voltou-se para o homem que o seguia e que devia ser o imediato. — Em que dia estamos, Joseph? — É sábado, 22 de Dezembro de 1787, Senhor. – respondeu aquele. — Sábado, 22 de Dezembro de 1787 - repetiu o comandante, voltando-se para Robinson. O cérebro de Robinson trabalhou a toda a velocidade. O naufrágio do Virgínia dera-se a 30 de Setembro de 1759. Tinham-se portanto, passado exatamente vinte e oito anos, dois meses e vinte e dois dias. Não podia crer que se encontrava há tanto tempo na ilha! Apesar de tudo o que se passara desde a sua chegada àquela terra deserta, um período de mais de vinte e oito anos não parecia poder caber entre o naufrágio do Virgínia e a chegada do Whitebird. E havia outra coisa ainda: calculava que, se realmente se estivesse no ano de 1787, como diziam os recém-vindos, ele teria agora exatamente cinquenta anos. Cinquenta anos! A idade de um velhote, em suma. E ele que graças à vida livre e feliz que levava em Speranza, graças principalmente a 102

Sexta-Feira, se sentia cada vez mais jovem! De qualquer modo, resolveu não revelar aos visitantes a verdadeira data do seu naufrágio, com medo de que o tomassem por mentiroso. — Fui atirado para esta costa quando viajava a bordo do galeão Virgínia, comandado por Pieter Van Deyssel, de Flessingue. Sou o único sobrevivente da catástrofe. O choque, infelizmente, fez-me perder parcialmente a memória e nunca consegui lembrar-me da data em que ela ocorreu. — Nunca ouvi falar desse navio, em porto nenhum – observou Hunter — mas é verdade que a guerra com as Américas modificou todas as relações marítimas. Robinson não sabia, naturalmente, que as colónias inglesas da América do Norte haviam combatido contra a Inglaterra para conquistarem a sua independência, do que resultara uma guerra que durara de 1775 a 1782. Mas evitou fazer perguntas que denunciassem a sua ignorância. Entretanto, Sexta-Feira ajudava os homens a descarregar os barris e guiava-os até a nascente mais próxima. Robinson compreendeu que o índio se mostrava tão prestável com os marinheiros na esperança de estes o levarem o mais cedo possível para bordo do Whitebird. Ele próprio se via obrigado a confessar que ardia em desejos de visitar aquele elegante veleiro, maravilhosamente construído para bater todos os máximos de velocidade, devendo estar apetrechado com os últimos aperfeiçoamentos da navegação à vela. Entretanto, o comandante Hunter, o imediato Joseph e todos os homens que via afadigarem-se à sua volta pareciam-lhe feios, grosseiros, brutais e cruéis, e perguntava-se se conseguiria readquirir o hábito de viver com os seus semelhantes. Começara a mostrar a Hunter os recursos da ilha em caça e alimentos frescos, como os agriões e as beldroegas, graças aos quais as tripulações evitam o escorbuto. Os homens subiam pelos troncos e cortavam com o sabre os palmitos, ao mesmo tempo que se ouviam as risadas dos que perseguiam os cabritos armados de cordas. Sofria ao ver aqueles brutos avinhados mutilarem as árvores e massacrarem os animais da sua ilha, mas não queria ser egoísta para com os primeiros homens que via ao cabo de tantos anos. No 103

local onde antigamente se erguia o banco da Speranza, havia agora ervas altas que ondulavam ao vento com um murmúrio de seda. Um marinheiro encontrou ali, uma após outra duas moedas de ouro. Chamou logo, com grandes gritos, os companheiros e, depois de discussões violentas, resolveram deitar fogo a todo o prado, para facilitar a busca. Robinson não pôde deixar de pensar que aquele ouro lhe pertencia e que os animais iriam ficar privados, por causa do incêndio, da melhor pastagem de toda a ilha. Cada nova moeda encontrada servia de pretexto para outras tantas lutas, frequentemente sangrentas, à facada ou com sabres empunhados. Quis desviar a atenção daquele espetáculo pondo Joseph, o imediato, a falar. Este descreveu-lhe imediatamente, com entusiasmo, o tráfico de negros com que abasteciam de mão-de-obra as plantações de algodão dos Estados do Sul da América. Os negros eram raptados em África e levados para barcos especiais, onde os amontoavam como mercadoria. Eram vendidos nos Estados Unidos e os barcos voltavam carregados de algodão, açúcar, café e índigo. Era um frete de regresso ideal, que se escoava lucrativamente quando passavam pelos portos europeus. Hunter tomou em seguida a palavra e contou, a rir, de que maneira, durante a guerra, afundara um transporte de tropas francesas enviadas como reforço aos insurretos americanos. Todos se haviam afogado sob os seus olhos. Robinson tinha a impressão de ter levantado uma pedra e estar a ver bichos-de-conta negros e vorazes. A chalupa regressara já uma primeira vez ao Whitebird, com um carregamento de frutos, legumes e caça, no meio dos quais se debatiam alguns cabritos amarrados. Os homens aguardavam ordens do comandante antes de efetuarem uma segunda viagem. — Espero que queirais dar-me a honra de almoçar comigo — disse ele a Robinson. E, sem esperar resposta ordenou que levassem a água doce para bordo, e voltassem para o transportar, e ao seu convidado. Quando Robinson saltou para o convés do Whitebird, foi acolhido por um Sexta-Feira radiante, que a chalupa levara na viagem anterior. O índio fora 104

adotado pela tripulação e parecia conhecer o navio como se nele tivesse nascido. Robinson viu-o atirar-se aos cordames, içar-se até ao cesto da gávea e voltar a descer pelas escadas da verga, balançando-se a quinze metros acima das ondas com um riso feliz. Lembrou-se então de que Sexta-Feira amava tudo o que se relacionava com o ar - a flecha, o papagaio, a harpa eólica e que aquele belo e esbelto veleiro, leve e branco, era certamente o objecto aéreo mais maravilhoso que jamais vira. Sentiu-se um pouco triste ao verificar quanto o índio parecia mais feliz do que ele com a chegada do Whitebird. Dera alguns passos no convés quando descobriu uma pequena forma humana, meio nua, amarrada à base do mastro de mezena. Era uma criança, que podia ter uns doze anos. Estava magra como um pássaro depenado e tinha as costas estriadas com marcas ensanguentadas. Não se lhe via a cara, mas os cabelos formavam um emaranhado vermelho que lhe caía sobre os ombros finos e semeados de sardas. Robinson afrouxou o passo quando o viu. — É Jean, o nosso grumete — disse-lhe o comandante. Depois, voltando-se para Joseph: — Que fez ele desta vez? Logo um rosto vermelhusco, com um barrete de cozinheiro, surgiu à escotilha da despensa, como um diabo que sai de uma caixa. — Não consigo fazer nada dele - disse o cozinheiro. – Esta manhã estragou-me um picado de galinha deitando-lhe sal três vezes, por distração. Apanhou as suas doze correadas. E apanhará mais, se não aprender a ter cuidado. E a cabeça desapareceu tão repentinamente como surgira. — Desamarra-o — disse o comandante ao imediato. — Tem de nos servir à mesa. Robinson almoçou com o comandante e o imediato. Não voltou a ouvir falar de Sexta-Feira, que devia estar a comer com a tripulação. Teve dificuldade em chegar ao fim das pastas e carnes com molhos violentamente condimentados de que lhe encheram várias vezes o prato. Perdera o hábito des105

tes alimentos pesados e indigestos, pois há muito que só comia coisas leves, frescas e naturais. Era o grumete Jean quem servia à mesa, quase completamente tapado por um enorme avental branco. Robinson procurou-lhe o olhar sob a massa de cabelos fulvos, mas Jean estava tão concentrado, pelo medo de fazer algum disparate, que parecia não o ver. O comandante estava taciturno e silencioso. Era Joseph quem mantinha a conversa, explicando a Robinson as últimas aquisições da técnica da navegação à vela e da ciência de cruzar os mares. Depois do almoço, Hunter retirou-se para a sua cabina e Joseph levou Robinson para a ponte de comando. Queria mostrar-lhe um instrumento recentemente introduzido na navegação, o sextante, que servia para medir a altura do Sol acima do horizonte. Enquanto escutava a demonstração entusiástica de Joseph, Robinson acariciou com verdadeiro prazer aquele belo objeto de cobre, acaju e marfim que fora retirado de um cofre. Robinson foi depois estender-se no convés para dormir a sesta, como fora seu hábito. Acima dele, a extremidade do mastro da gávea descrevia círculos irregulares num céu perfeitamente azul, onde andava perdido um crescente de Lua translúcido. Voltando a cabeça, via Speranza, uma faixa de areia alourada, depois um amontoado de verdes e, finalmente, o aglomerado caótico dos rochedos. Compreendeu então que nunca mais deixaria a ilha. Este Whitebird, com os seus homens, era o enviado de uma civilização à qual não queria voltar. Sentia-se jovem, belo e forte, com a condição de ficar em Speranza com Sexta-Feira. Sem que o soubessem, Joseph e Hunter haviam-lhe revelado que tinha cinquenta anos. Se partisse, com eles, seria um homem velho, de cabelos grisalhos, porte digno, mas tornar-se-ia também estúpido e mau. Não, continuaria fiel à nova vida que Sexta-Feira lhe ensinara. Quando comunicou a sua decisão de ficar na ilha, só Joseph manifestou surpresa. Hunter reagiu com um sorriso gelado. No fundo, talvez se sentisse aliviado por não ter de levar a bordo dois passageiros suplementares, num navio pequeno onde o espaço estava avaramente distribuído. 106

— Considero todos os géneros e o ouro que embarcámos como o resultado da vossa generosidade. - disse-lhe ele, cortesmente. — Como recordação da nossa passagem por Speranza, permiti-me que vos ofereça o nosso escaler de exploração, que não nos faz falta, por dispormos das nossas duas lanchas de salvamento regulamentares. Era uma canoa leve e com grande estabilidade, ideal para um ou dois homens, em tempo calmo. Substituiria com vantagem a velha piroga de Sexta-Feira. Foi nesta embarcação que Robinson e o companheiro regressaram à ilha, quando a noite chegou. Logo que voltou a pôr o pé nas suas terras, Robinson experimentou uma enorme sensação de alívio. O Whitebird e os seus homens haviam trazido a desordem e a destruição à ilha feliz onde levara uma vida ideal com SextaFeira. Mas que importância tinha isso? Aos primeiros alvores da madrugada, o navio inglês levantaria ferro e retomaria o seu lugar no mundo civilizado. Robinson dera a entender ao comandante não desejar que a existência e a posição da sua ilha no mapa fossem reveladas pela tripulação do Whitebird. O comandante prometera-lho, e Robinson sabia que respeitaria o compromisso. Robinson e Sexta-Feira tinham ainda à sua frente belos e longos anos de solidão.

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XXXV A madrugada ainda estava pálida quando Robinson desceu da sua araucária. Detestava as horas tristes e descoloridas que precedem o nascer do Sol, e habituara-se a esperar pelos primeiros raios de Sol antes de se levantar. Quanto a Sexta-Feira, dormia sempre até tarde. Nessa noite, porém, Robinson dormira mal. Isso devera-se sem dúvida à refeição indigesta que comera a bordo do Whitebird, àquelas carnes, àqueles molhos e àquele vinho, que lhe haviam provocado um sono pesado, entrecortado de momentos em que acordava bruscamente e com pesadelos. Deu alguns passos pela praia. Como esperava, o Whitebird desaparecera. A água estava cinzenta e o céu sem cor. Um orvalho abundante vergava as plantas. Os pássaros conservavam-se num silêncio de morte. Robinson sentiu-se invadir por uma grande tristeza. Dentro de alguns minutos, uma hora no máximo, o Sol levantar-se-ia e devolveria a vida e a alegria a toda a ilha. Entretanto, Robinson resolveu ir ver Sexta-Feira, que dormia na sua rede. Não o acordaria, mas a presença dele confortá-lo-ia. A rede estava vazia. Mas o que mais o surpreendeu foi o desaparecimento dos pequenos objetos com que Sexta-Feira tornava as sestas mais agradáveis: espelhos, pequenas flautas, zarabatanas, flechas, plumas, bolas, etc. A cabrinha Anda também desaparecera. Um medo pânico invadiu-o de repente. E se Sexta-Feira tivesse partido no Whitebird? Correu para a praia: a canoa e a velha piroga lá estavam, puxadas para a areia seca. Se Sexta-Feira tivesse querido voltar para a escuna inglesa, teria utilizado uma das duas embarcações e tê-la-ia abandonado no mar, ou içado para bordo. Por que razão faria a travessia noturna a nado? Robinson começou a percorrer toda a ilha, chamando por Sexta-Feira. Correu de uma praia a outra, das falésias às dunas, das florestas aos pântanos, do monte de pedras aos prados, cada vez mais desesperado, tropeçando e gri108

tando, cada vez mais convencido de que Sexta-Feira o traíra e abandonara. Mas porquê? porquê? Lembrou-se então da admiração de Sexta-Feira pelo belo barco branco, e de como saltava, muito feliz, rindo, de uma verga para outra, muito acima das ondas. Era isso: Sexta-Feira fora seduzido por aquele novo brinquedo, mais maravilhoso do que todos os que ele próprio construíra na ilha. Pobre Sexta-Feira! Robinson lembrava-se, com efeito, dos horríveis pormenores que Joseph, o imediato, lhe contara acerca do tráfico de negros entre África e as plantações de algodão da América. O ingénuo índio estava já com certeza no fundo do porão do Whitebird, agrilhoado às correntes dos escravos... Robinson sentia-se esmagado pela dor. Continuava as buscas, mas só encontrava recordações que lhe feriam ainda mais o coração: a harpa eólica e o papagaio, despedaçados pelos homens da escuna. De repente, sentiu uma coisa dura debaixo dos pés. Era a coleira de Tenn, roída pela humidade. Robinson encostou então a cabeça ao tronco de um eucalipto e chorou todas as lágrimas que tinha no corpo. Quando ergueu a cabeça viu, a alguns metros de distância, uma meia dúzia de abutres que o observavam com os seus pequenos olhos vermelhos e cruéis. Robinson queria morrer e os abutres tinham-no adivinhado. Apesar de tudo, porém, não queria que o seu corpo fosse despedaçado por aquelas aves necrófagas. Lembrou-se então do fundo da gruta, onde passara horas tão boas. A explosão tapara, com certeza, a entrada da grande caverna, mas sentia-se tão diminuído, fraco e desgraçado que estava certo de encontrar uma passagem, uma fenda entre dois blocos. Desceria então ao fundo da cavidade, suave e morno, agachar-se-ia, com a cabeça apoiada nos joelhos, os pés cruzados, e esqueceria tudo, dormiria para sempre, ao abrigo dos abutres e dos outros animais. Encaminhou-se, portanto, a passos curtos, para o amontoado de rochas que se erguia no local da gruta. Depois de muito procurar encontrou, com efeito, uma abertura estreita, como uma passagem para gatos, mas sentia-se a tal ponto mirrado pelo desgosto que tinha a certeza de poder passar. 109

Meteu a cabeça, para tentar ver se a passagem conduzia realmente ao fundo da gruta. Nesse momento, ouviu uma coisa mexer-se lá dentro. Uma pedra rolou e Robinson recuou. Um corpo obstruiu a fenda e passou por ela, com algumas contorções. Robinson tinha na sua frente uma criança, com o braço direito dobrado sobre a testa, para se proteger da luz ou receando uma bofetada. Robinson estava atónito. — Quem és tu? Que fazes aqui? - perguntou-lhe. — Sou o grumete do Whitebird - respondeu o rapaz. – Queria fugir daquele barco, era tão infeliz. Ontem, enquanto servia à mesa do comandante, haveis-me olhado com bondade. Ouvi-vos dizer, depois, que não partiríeis. Resolvi esconder-me na ilha e ficar convosco. — E Sexta-Feira? Viste Sexta-Feira? - insistiu Robinson. — Justamente! Esta noite, eu tinha conseguido atravessar o convés e ia atirar-me à água para tentar chegar à praia a nado, quando vi um homem acostar com uma piroga. Era o vosso criado mestiço. Subiu a bordo com uma pequena cabra branca. Entrou na cabina do imediato, que parecia estar à espera dele. Percebi que ele ficava no navio. Nadei então até à piroga e subi para dentro dela. Remei depois até à praia. — É por isso que as duas embarcações estão lá! – exclamou Robinson. — Escondi-me no meio das rochas - prosseguiu o paquete. — Agora, o Whitebird foi-se embora sem mim, e fico a viver convosco! — Vem comigo — disse-lhe Robinson. Pegou na mão do grumete e, contornando os blocos de pedra, começou a trepar a encosta que levava ao cimo do pico rochoso que dominava o amontoado de pedras. Parou a meio caminho e olhou para o seu novo amigo. Um pálido sorriso iluminou o rosto magro semeado de sardas. Abriu a mão e olhou a outra, aninhada na sua. Era pequena, frágil, mas com calos, provocados pelos duros trabalhos de bordo. Do alto do pico rochoso, via-se toda a ilha, ainda envolta na bruma. Na praia, a canoa e a piroga começavam a girar, apanhadas pelas ondas da maré enchente. Muito longe, para norte, no alto mar, distinguia-se um ponto branco que desaparecia em direção ao horizonte: era o Whitebird. 110

Robinson estendeu o braço nessa direção. — Olha-o bem - disse ele - talvez nunca mais voltes a ver nada de semelhante: um navio ao largo das costas de Speranza. O ponto apagava-se pouco a pouco. Por fim, desapareceu. Foi então que o Sol nasceu. Uma cigarra começou a cantar. Uma gaivota desceu rente à água e de novo levantou voo, batendo muito as asas, levando um pequeno peixe no bico. As flores, umas após outras, abriram as suas corolas. Robinson sentia que a vida e a alegria o penetravam novamente dando-lhe redobradas forças. Sexta-Feira ensinara-lhe a vida selvagem e partira. Mas Robinson não estava só. Tinha agora aquele irmãozinho, cujos cabelos - tão vermelhos como os seus – começavam a relampejar ao sol. Inventariam novos jogos, novas aventuras, novas vitórias. Uma vida completamente nova ia começar, tão bela como a ilha que despertava na bruma, a seus pés. — Como te chamas? — perguntou Robinson ao grumete. — Chamo-me Jean Neljapaev. Nasci na Estónia — acrescentou ele, como para se desculpar de ter um nome tão difícil. — De agora em diante - disse-lhe Robinson - chamar-te-ás Domingo. É o dia das festas, dos risos e dos jogos. E, para mim, serás sempre o filho do domingo.

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