Michel Henry - Cultura e Barbárie

July 26, 2019 | Author: BrunoMoriPorreca | Category: Fenomenologia (Filosofia), Ciência, Vida, Conhecimento, Realidade
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Capítulo de livro de Michel Henry...

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Capítulo 1 Cultura e Barbárie

A barbárie não é um início, sempre segue um estado de cultura que necessariamente a precede, e é só em relação à cultura que ela pode aparecer como empobrecimento e degenerescência. A barbárie, diz Joseph de Maistre, é uma ruína, não um rudimento. A cultura, portanto, é sempre primeira. Mesmo as formas mais toscas de atividade e de orga organi niza zaçã çãoo soci social al,, aque aquela lass que que pode podemo moss atri atribu buir ir,, por por exem exempl plo, o, às hord hordas as prim primit itiv ivas as,, já são são modos de cultura, apresentam justamente uma organização, leis implícitas, tipos de conduta que se destinam todos a tornar possível a existência e a sobrevivência do grupo. Mesm Mesmoo quan uando essa essass form formas as ele element mentar arees pare arecem cem fixad ixadas as e sua sua tran transm smiissão ssão cega cega con conduz à simples recondução de estruturas indefinidamente repetidas, estão em ação forças profundas que não se limitam a manter o estado de coisas que permite a continuidade da vida. Dir-se-ia, antes, que elas se mantêm à espreita e que, não contentes em preservar o que exist xistee, aguar guarddam, am, com com uma paci paciêência cia à altu altura ra dos milé milénnios ios que atra atrave vess ssam am,, a ocasi casião ão de se apoiar nesse saber adquirido para dar um salto, descobrir relações ainda despercebidas, despercebidas, inventar uma ferramenta, uma ideia, construir-se um novo mundo. O que é então a cultura? Toda cultura é uma cultura da vida em seu duplo sentido, pois a vida constitui ao mesmo tempo o sujeito dessa cultura e seu objeto. É uma ação que a vida exerce sobre si mesma e pela qual ela se transforma , uma vez que é a própria vida que transforma e é transformada. “Cultura” não designa nada mais. “Cultura” designa a autotransformação da vida, o movimento por meio do qual ela não deixa de modificar car a si mesma a fim de alcançar formas de realização mais elevadas, a fim de crescer. Porém, se a vida é esse movimento contínuo de autotransformação e de autorrealização, ela é a  própria cultura, cultura, ou pelo menos menos a traz inscrita inscrita em si e desejada desejada por si como o que ela é.

De que vida falamos aqui? Que força é essa que se mantém e cresce continuamente? De modo algum a vida que constitui tema da biologia, o objeto de uma ciência, suas moléculas e partículas que o cientista procura atingir por intermédio de seus microscópios, cuja natu nature reza za ele ele elab elabor oraa medi median ante te proc proced edim imen ento toss múlt múltip iplo los, s, para para cons constr trui uirr labo labori rios osam amen ente te um conceito cada vez mais adequado e cada vez mais sujeito à rev revisão. De modo que jamais se saberá ao certo o que é essa vida estudada pelos biólogos, a não ser no fim ideal e, enquanto tal, jamais alcançado pelo prog rogresso científico. Porém, se hoje só dispomos de uma noção imperfeita do que é a vida biológica, convém observar que a humanidade, em todo caso, viveu durante milénios sem ter qualquer ideia a respeito, sem duvidar de sua existência - sem que precisamente qualquer das modificações da vida humana, sua manu manute tenç nçãão, seu cres cresci cime ment ntoo, sua sua cult cultuura, lhe lhe deva eva nada. ada. Dess Dessaa form forma, a, já pres presse sent ntim imos os essa prim rimeira verdade, sobre a qual não é inútil meditar no fim do século XX, a saber, que a cultura não tem originalmente e em si nada a ver com a ciência e dela não resulta de modo algum. algum. A vida de que falamos não se confunde, portanto, com o objeto de um saber científico, obj objeto cujo cujo conh conheecime cimennto seri seriaa rese reserv rvad adoo aos que estã estãoo de posse sse des desse sabe aber e que tive tivera ram m de adquiri-lo. É antes o que todo mundo sabe, sendo aquilo mesmo que somos. Mas como “todo mundo”, isto é, cada um como ser vivo, pode saber o que é a vida, a não ser na medida em que a vida sabe a si mesma e esse saber original de si constitui sua essência própria? Pois a vida se sente e se experimenta a si mesma, de modo que não há nada nela que ela não experimente e não sinta. E isso porque o fato de sentir a si mesma é justamente o que faz dela a vida. Desse modo, tudo o que traz em si essa propriedade maravilhosa de se sentir é vivo, ao passo que tudo o que se acha desprovido dela não é senão a morte rte. A pedra, ra, o mar, as estrel relas são “coisas”. As plantas, as árvores, os vegetais em geral também são coisas, a menos que se faça surgir neles uma sensibilidade em sentido transcendental, ou seja, essa capacidade de experimentar a si mesmo e se sentir que faria deles, justamente, seres vivos - não mais no sentido da biologia, mas no sentido de uma vida real, que é a vida vida feno fenome meno noló lógi gica ca abso absolu luta ta cuja cuja essê essênc ncia ia cons consis iste te no próp própri rioo  fato de se sentir ou de experimentar a si mesmo e não é nada mais -, o que ainda denominaríamos subjetividade.

Agora, se disséssemos que essa propriedade extraordinária de experimentar a si mesmo é um saber, e sem dúvida o saber sob sua forma mais profunda, e que desse modo a vida é em si mesma, enquanto viva, esse saber original, como se fala também e sobretudo de saber a propósito da ciência, importa especificar de que tipo de saber se trata em ambos os casos e como um se distingue do outro, se não quisermos que o debate relativo à cultura e à barbárie, que mantém uma relação essencial, positiva ou negativa, com o saber em geral, se perca no terreno do vago. O saber científico é objetivo por princípio. No entanto, por isso se entende e se confunde habitualmente duas coisas. “Objetivo” significa, em primeiro lugar, que o saber da ciência é racional, universalmente válido e como tal reconhecido por todos. É o saber verdadeiro por oposição às opiniões variáveis dos indivíduos, aos pontos de vista particulares, a tudo o que é apenas “subjetivo”. Ora, essa pretensão de superar a particularidade e a relatividade do “subjetivo” deve ser apreendida em sua significação plena. Superando em muito a mera rejeição das diferenças individuais, ela remete à natureza profunda da experiência e da condição humana, e só pode ser compreendida a partir dela. Foi a esse título que ela desempenhou, na época de Galileu, papel decisivo no nascimento da ciência moderna, isto é, da ciência matemática da natureza. O mundo, com efeito, dá-se a nós em aparições sensíveis, variáveis e contingentes que não passam ainda de um fluxo heracliteano - o rio no qual jamais nos banhamos duas vezes -, no qual não subsiste nenhum ponto de apoio fixo para um conhecimento sólido. Ora, segundo essa ciência galileana da natureza que revolucionaria o modo de pensar do homem europeu e faria dele o que ele é, permanece possível exibir, além da relatividade de suas aparências subjetivas, um ser verdadeiro do mundo, um mundo em si. E isso na medida em que, no conhecimento deste mundo, faz-se justamente abstração das qualidades sensíveis e, de maneira geral, de tudo o que é tributário da subjetividade para só reter, como verdadeiramente, as formas abstratas do universo espaço-temporal. Essas formas se prestam, então, a uma determinação geométrica que é a mesma para todo espírito. Assim se propõe, em lugar das impressões individuais e das opiniões variáveis que elas suscitam, um conhecimento unívoco do mundo, do que é verdadeiramente.

A esfera da subjetividade, das sensações, das opiniões, dos pensamentos pessoais etc. - o que se pode chamar de mundo do espírito ou da espiritualidade humana - repousa sobre essa natureza, cujo verdadeiro ser é evidenciado pela ciência e se explica, finalmente, por ela. As “ciências do espírito” ou, como se diz hoje, as “ciências humanas” não têm qualquer autonomia, não constituem o simétrico das ciências da natureza, suas pesquisas parecem provisórias, votadas, mais cedo ou mais tarde, a ceder lugar a outro saber, aquele que, afastando-se da realidade psíquica, isto é, do nível da experiência humana, orienta-se para seus subterrâneos ocultos, ou seja, o universo das moléculas e dos átomos. Se a cultura tem por objeto essa esfera da espiritualidade humana, é com boas razões que ela regressa, todos os dias, em prol de disciplinas mais apropriadas, que poderíamos chamar de ciências do fundamento. Não se pode ignorar a extraordinária rejeição, por parte da fenomenologia husserliana, dessas reses bem conhecidas que sustentam a ideologia cientificista e positivista de nossa época1. As determinações geométricas às quais a ciência galileana tenta reduzir o ser das coisas são idealidades. Estas, longe de poder explicar o mundo sensível, subjetivo e relativo no qual se desenrola nossa atividade cotidiana, se referem necessariamente a esse mundo da vida, é somente em relação a elas que têm sentido, é sobre o solo incontornável desse mundo que elas são construídas. Desse ponto de vista, se considerarmos a Terra não como um planeta que gira em torno do Sol em construções teóricas da ciência, mas como o solo de toda experiência à qual as idealizações científicas inevitavelmente remetem, é preciso retomar a louca sentença de Husserl e dizer, com ele: “A Arquioriginária Terra não se move”.2

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A este respeito, conferir Edmund Husserl. La Grisis des Sciences Européenes et la Phénoménologie Transcendentale. Trad. Gérard Granel. Pans, Gallimard, 1976. 2 Manuscrito de Edmund Husserl, maio de 1934. Trad. Dicier Franck. In: Philosophie, n. 1, janeiro de I984.

Por outro lado, na condição de idealidades, as determinações geométricas e matemáticas de que se valeu as ciências da natureza supõem a operação subjetiva que as produz e sem as quais não existiriam. Não há na natureza número ou cálculo, adição ou subtração, reta ou curva: trata-se de significações ideais que encontram sua origem absoluta na consciência que as cria, no sentido estrito da palavra, e devemos chamá-la de consciência transcendental. Se, por conseguinte, as idealizações geométricas e matemáticas provêm da subjetividade, é que, longe de reduzir esta última a uma aparência, o mundo da ciência encontra nela, pelo contrário, o princípio que engendra continuamente, como a condição permanente de sua própria possibilidade. Enfim, na medida em que o mundo do espírito, com suas leis e criações próprias, repousa, ao que parece, sobre uma natureza, sobre uma corporeidade humana ou animal, essa natureza não é precisamente o mundo da ciência, com suas idealidades abstratas, é o da vida - um mundo ao qual só há acesso no interior de uma sensibilidade tal como a nossa, e que só se dá a nós através do jogo sem fim de suas aparições subjetivas constantemente em modificação e renovadas. A ilusão de Galileu, como a de todos aqueles que, depois, consideram a ciência dele, um saber absoluto, foi justamente a de ter tomado o mundo matemático e geométrico, destinado a fornecer um conhecimento unívoco do mundo real, por esse mesmo mundo real, esse mundo que só podemos intuir e experimentar nos modos concretos de nossa vida subjetiva. Ora, essa vida subjetiva não cria apenas as idealidades e abstrações da ciência (como de todo pensamento conceptual em geral), ela dá forma, primeiro, a esse mundo da vida em meio ao qual se desenrola nossa existência concreta. Pois uma realidade tão simples quanto um cubo ou uma casa não é uma coisa que exista fora de nós e sem nós, de algum modo por si mesma, como o substrato de suas qualidades. Ela só é o que é graças a uma atividade complexa da percepção que coloca, além da sucessão de dados sensíveis que temos, o cubo ou a casa como um polo idêntico ideal ao qual se referem todas essas aparições subjetivas. Cada percepção de uma face do cubo ou de uma fachada da casa remete às percepções potenciais das outras faces ainda não percebidas segundo um jogo de relações indefinidas. O mesmo vale para todo objeto em geral, para toda formação transcendente, a qual implica a cada vez uma operação sintética específica da subjetividade transcendental, sem a qual ela não existiria.

Sem dúvida, em nossa vida cotidiana não prestamos atenção a essa consciência que constitui o mundo de nosso ambiente habitual. Percebemos a casa e permanecemos desatentos à nossa percepção da casa. Sempre temos consciência do mundo, e jamais consciência de nossa consciência do mundo. E tarefa da filosofia evidenciar essa atividade incansável da consciência que percebe o mundo, que concebe as idealidades e as abstrações da ciência, que imagina, que se recorda etc., produzindo desse modo todas as representações irreais que acompanham continuamente o curso de nossa vida real. É verdade que certos cientistas não temem colocar em dúvida a própria existência dessa consciência que a filosofia clássica situava no centro da ciência, como de todo conhecimento em geral, e antes de mais nada do conhecimento sensível do mundo à nossa volta. Desse modo, os fundadores do behaviorismo exigiam que lhes “mostrassem” essa pretensa consciência como as outras ciências são capazes de mostrar, em seus tubos de ensaio ou na ponta de seus microscópios, os objetos a que elas se referem 3. Eles não percebem que a consciência é justamente essa faculdade de “mostrar” à qual eles, as demais ciências e toda forma de conhecimento em geral recorrem constantemente. Se perguntarmos, então, em que consiste essa consciência cujas operações transcendentais constituem os objetos do mundo da percepção antes de criar as idealidades do mundo científico, convém antes observar que a faculdade de que se trata é a mesma em ambos os casos, tanto na percepção mais simples e mais imediata quanto na visão científica mais elaborada; é justamente a faculdade de mostrar, de tornar visível, de instalar na condição da presença. Esse tornar visível é ele mesmo um fazer-vir-adiante na condição do objeto, de tal maneira que a visibilidade na qual toda coisa se torna visível não é senão a objetividade enquanto tal, ou seja, no primeiro plano de luz no qual se mostra tudo o que nos aparece - realidade sensível ou idealidade científica. A consciência é tradicionalmente compreendida como o “sujeito”, mas este é a condição do objeto, o que faz que as coisas se tornem objetos para nós e, desse modo, mostrem-se a nós de forma a podermos conhecê-los.

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Conferir John B. Watson, The Ways of Behaviorism. Nova York e Londres, Harpers and Brothers, 1928, p. 7.

Ora, essa concepção implícita da consciência, isto é, da fenomenalidade dos fenômenos, encontra-se no plano de fundo da maior parte das filosofias, como da própria ciência. Em Kant, por exemplo, que se esforça por evidenciar a possibilidade da experiência, essa possibilidade é a dos objetos, ou seja, o conjunto das condições (as intuições do espaço e do tempo e as categorias do entendimento) graças aos quais os objetos podem nos ser dados, graças aos quais, por conseguinte, podemos nos relacionar com eles e ter experiência deles. Essa possibilidade de se relacionar com os objetos, de se superar na direção deles, para atingi-los, na fenomenologia husserliana é a intencionalidade, que define o fundo da própria consciência, sua capacidade de mostração e exibição, ou seja, a fenomenalidade propriamente dita. É extremamente notável que, nas filosofias que pretenderam rejeitar os conceitos de consciência ou de subjetividade (ou ainda no pensamento antigo, que não usava esses conceitos), são os mesmos pressupostos que estão secretamente em ação. Saber, é sempre ver; ver, é ver o que é visto; o que é visto, é o que está diante de nós, o que está posto diante, é o objeto. É precisamente na medida em que é posto diante, onde ele é objeto, que ele é visto, conhecido, de modo que o saber, a consciência, é essa posição-diante como tal, é a objetividade e o que a funda, em última instância. O afastamento, pela fenomenologia pós-husserliana, heideggeriana e pós-heideggeriana particularmente, dos conceitos de “subjetividade" e de “consciência” é justamente a rejeição de tudo o que não se reduzisse a essa eclosão primitiva do Fora no qual se mantém o Objeto.

Dissemos que a característica distintiva do saber científico é sua objetividade - e entendíamos por isso seu caráter suprassubjetivo e supraindividual, sua universalidade. O que é verdadeiro cientificamente é tal que é reconhecido por todo espírito (com o mínimo de competência requerida). Porém, a objetividade do saber científico no sentido de sua universalidade repousa sobre a objetividade ontológica de que acabamos de tratar, sobre o fato de que o que é verdadeiro deve poder ser demonstrado, ou seja, finalmente mostrado, trazido a essa condição de estar lá diante - nessa condição de ob-jeto que todo olhar poderá descobrir, ver, a fim de estar certo do que vê. É por essa via que o saber científico é homogêneo com o saber da consciência em geral, e simplesmente o prolonga, porque obedece, como ele, ao telos da evidência, isto é, a um mesmo esforço para colocar em plena luz diante do olhar o que, nessa luz, será claramente percebido e, dessa maneira, percebido sem dúvida4. O problema da cultura - como aquele correlato da barbárie - só se torna filosoficamente inteligível se for deliberadamente referido a uma dimensão de ser na qual não intervenham mais nem o saber da consciência, nem o da ciência, que é uma forma elaborada daquele, se for relacionado com a vida e somente com ela. Tal é a primeira implicação da afirmação segundo a qual a cultura é a cultura da vida. Ela não significa apenas que a cultura é a autotransformação da vida. Essa autotransformação, com efeito, não poderia ser cega, ela deve, à medida que visa a um crescimento, apoiar-se sobre um saber: é portanto sobre um saber outro que o da ciência e da consciência que repousa a cultura. Esse saber é justamente o da vida, a qual, assim como demos a entender, constitui por essência esse saber, sendo o próprio fato de experimentar a si mesmo em cada ponto de seu ser, e desse modo essa autorrevelação com a qual começa e termina a vida. Em que consiste, mais precisamente, esse saber original da vida sobre o qual repousa a cultura, em que difere daquele da consciência e da ciência, a ponto de excluí-los irremediavelmente de si?

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 A modificação das condições da objetividade na ciência moderna, e especialmente na escala microfísica, em nada modifica esse último requisito de um dar-se na presença sem o qual nenhum experimento e nenhuma teorização seriam possíveis.

Consideremos um estudante de biologia ocupado em ler um livro sobre o código genético. Sua leitura é a repetição, mediante um ato de sua consciência, dos complexos processos de conceptualização e teorização contidos no livro, isto é, expressos pelos caracteres impressos. Porém, enquanto lê e para que sua leitura seja possível, ele vira as páginas do livro com as mãos, move seus olhos, a fim de percorrer com o olhar e recolher em si, uma após a outra, as linhas do texto. Quando estiver fatigado por seu esforço, ele se erguerá, sairá da biblioteca, subirá as escadas para ir à lanchonete, onde descansará um pouco, comerá e beberá algo. O saber contido no manual de biologia, e o qual o estudante assimilou durante sua leitura, é o saber científico. A própria leitura da obra é a aplicação de um saber da consciência; consiste, por um lado, na percepção das palavras, isto é, na intuição sensível dos caracteres lançados no papel, e, por outro, na apreensão intelectual das significações ideais de que as palavras são portadoras, significações que compõem o todo do livro, ou seja, o saber científico nele embutido. O saber que tornou possível o movimento das mãos e dos olhos, o ato de se erguer, de subir as escadas, de beber e comer, o próprio repouso, é o saber da vida. Se perguntarmos qual desses três saberes é fundamental, forçoso é rejeitar de uma vez só o conjunto dos preconceitos de nossa época, a saber, a crença de que o saber científico não só é o mais importante, como, na realidade, ele é o único verdadeiro saber, que saber significa ciência, ou seja, esse tipo de saber matemático da natureza introduzido na época de Galileu, e que tudo o que precede essa vinda da ciência rigorosa no Ocidente não passou de um amontoado de conhecimentos inorgânicos, pressentimentos confusos, para não dizer preconceitos e ilusões. Não se pode esquecer, no entanto, que o início é sempre o mais difícil; e como a humanidade pré-científica, desprovida de todos os meios que poria à sua disposição a técnica moderna, poderia não só ter sobrevivido e se desenvolvido, como ainda ter produzido, em numerosos campos, por exemplo, no da arte e da religião, os resultados extraordinários que os homens de nossa época seriam incapazes de alcançar, se não dispusesse desse saber fundamental que é o da vida?

Observemos nosso estudante de biologia: não é o saber científico que lhe permite adquirir o saber científico contido no livro - não é em virtude de semelhante saber que ele move suas mãos ou olhos, ou que concentra seu espírito. O saber científico é abstrato, é a intuição intelectual de certo número de significações ideais. Porém, o ato de mover as mãos não é nada abstrato. O saber científico é objetivo, primeiro no sentido de que é conhecimento de uma objetividade, a qual só é percebida à medida que se encontra nessa condição de estar lá adiante e, assim, de se mostrar e, assim, de poder ser atingida por um olhar e, assim, de poder ser conhecida. Mas o saber-mover-as-mãos, o saber-virar-os-olhos - o saber da vida não é de nenhum modo objetivo, nem em sentido algum, não tem objeto, porque não traz em si a relação com o objeto, porque sua essência não é essa relação. Se o saber incluído no movimento de remexer as mãos tomando-o possível tivesse um objeto, no caso, essas mãos e seu deslocamento potencial, esse movimento das mãos não se produziria. O saber se manteria diante dele como diante de alguma coisa objetiva, da qual o separaria para sempre a distância da objetividade, que ele jamais estaria em condições de alcançar. É na exata medida em que o movimento das mãos é considerado alguma coisa objetiva, e enquanto o for, que a possibilidade - para aquele que o contempla como um ob-jeto - de agir sobre ele e desencadeá-lo aparece como enigmático e da ordem da magia. E é somente ao penetrar na vida, nela reconhecendo a essência que exclui de si toda exterioridade, porque exclui de si toda relação com o objeto, toda intencionalidade e todo êxtase, que se dissipa esse enigma. A capacidade de se unir ao poder das mãos e de se identificar com ele, de ser o que ele é e de fazer o que ele faz, apenas detém um saber que se confunde com esse poder ,   porque ele não é senão a experiência que este tem constantemente de si - senão sua subjetividade radical. Somente na imanência de sua subjetividade radical, e por seu intermédio, é que o poder das mãos, um poder qualquer em geral, é possível - isto é, está de posse de si e  pode, assim, a qualquer momento, se desencadear. Semelhante saber, excluindo de si o êx-tase 5 da objetividade, um saber que nada vê e para o qual não há nada a ver, que consiste, pelo contrário, na subjetividade imanente de sua pura experiência de si e no páthos dessa experiência, é esse justamente o saber da vida.

5 O autor emprega o termo ekstasis, do grego, com o significado de “fora de si mesmo". Optamos pela palavra “extase”. (N.T.)

Ora, o saber da vida (expressão que nos aparece desde já como tautológica) não é apenas a condição externa do saber científico, no sentido de que o cientista deve saber virar as páginas de seu livro, é também sua condição interna. O saber científico, como se disse, não passa de uma modalidade do saber da consciência, isto é, da relação com o objeto. Porém, esta só é possível sobre o fundo da vida nela mesma. A relação com o objeto é a visão do objeto, quer se trate da visão sensível do objeto sensível, quer da visão intelectual de um objeto inteligível, tal como número, relação abstrata, todo tipo de idealidade etc. Ora, o saber contido na visão do objeto não se esgota em absoluto no saber do objeto. Ele implica o saber da própria visão, a qual não é mais a consciência, a relação intencional com o objeto, mas a vida. É o que resulta do cogito de Descartes, uma das análises mais famosas do pensamento filosófico e que, a despeito da superabundância de comentários, ainda é muitas vezes mal compreendido. A principal razão dessa má interpretação é interessante, porque oferece um exemplo notável do que se pode chamar de ilusão do saber teórico - ilusão que reveste sua forma extrema na cultura moderna, com a substituição do conteúdo referencial de todo discurso pelo modo próprio segundo o qual tal conteúdo se coloca e se apresenta por si mesmo na aparição do ser, desse mesmo discurso, ou seja, de um texto e de seu modo de dado objetivo. Com efeito, o cogito intervém em um texto, o das duas primeiras Meditações, e pode ser considerado parte desse texto, como uma proposição: “Penso, logo existo”. Isto é evidente. Vejo que, para pensar, é preciso que eu exista. Como vejo que dois mais três somam cinco etc. O que é evidente, o que vê a consciência em uma visão clara e distinta, é o objeto dessa visão, no caso, minha existência implicada por meu pensamento. O cogito, assim compreendido e apresentado, é um momento do saber teórico, o primeiro, ao mesmo tempo que o modelo de todo saber teórico possível, o qual, contanto que se submeta a essa condição do ver de maneira clara e distinta, será certo e seguro. Quanto a essa atualização do saber teórico na evidência, e uma modalidade do saber da consciência em geral, isto é, de uma consciência de objeto.

Ora, se o texto do cogito é uma evidência no interior do saber teórico, o que ele significa é bem diferente, é a rejeição e a exclusão de todo saber desse tipo, do saber da ciência e da consciência, em geral, em prol de um saber de outra natureza, cuja característica essencial e distintiva é justamente a de excluir de si toda relação com o objeto e toda objetividade possível, toda evidência e, por conseguinte, todo saber teórico ou científico, em particular. Eis como: Descartes coloca em questão o ver em geral como fonte e fundamento de todo conhecimento, qualquer que ele seja. Em geral: quer se trate da intuição sensível do mundo sensível, quer da intuição intelectual das verdades racionais. Se, com efeito, o mundo sensível talvez não exista (não passando de um sonho), se o conjunto das verdades racionais for falso (o Gênio Maligno me enganando quando creio que dois mais três equivalem a cinco, ou que “para que eu pense, é preciso que eu exista”), é somente porque a visão, qualquer visão concebível, é falaciosa, tanto a mais clara quanto aquela que permanece confusa. A evidência aparentemente mais indubitável - por exemplo, a do cogito - não poderia escapar a uma dúvida que atinge a evidência enquanto tal. Porém, se a visão for ela mesma falaciosa, se o meio de visibilidade no qual toda coisa se torna possível não é tal, não é um fazer aparecer ou um fazer ver, mas um induzir em erro, um dissimular ou enganar, se a condição transcendental de todo conhecimento possível é em si, na verdade, um princípio de falsidade e de erro, como um discurso teórico qualquer pode prosseguir e como, antes de mais nada, a vida dos homens pode simplesmente continuar?

Ela pode continuar porque dispõe de um saber outro que não aquele que parte à deriva na primeira Meditação. Esse segundo saber é a vida, seu sentir-a-si-mesma e seu experimentar-a-si-mesma-em-cada-ponto-de-seu-ser, “sentir” e “experimentar” nos quais não há nem relação com o objeto nem objeto, nem êx-tase de um mundo, nem mundo “sentir” e “experimentar” totalmente indiferentes ao destino dessa relação com o mundo, bem como com o próprio mundo, sua existência ou sua inexistência, por exemplo. Assim, quando sonho, pode ser que a peça que acredito ver e os personagens com os quais acredito falar não existam. Mas se, durante esse sonho, fico aterrorizado, este é o que é, absolutamente intacto e inalterado em seu ser pelo fato de se tratar de um sonho, de haver ou não uma peça ou personagens, ou mundo - intacto e inalterado em seu ser pela alteração da visão, pela perturbação do meio extático de visibilidade no qual se torna visível tudo o que me é dado a ver. Se, todavia, o terror permanece intacto a despeito da perversão da relação com o mundo e do fim de toda objetividade, é na medida em que essa relação intencional com um mundo não intervém mais no próprio terror e nele não tem lugar - é na medida em que o terror não se dá jamais a si mesmo por intermédio dessa relação, de uma visão qualquer, assim como do êx-tase no qual se funda toda visão. Como o terror se dá a si mesmo? Enquanto sente e experimenta em si mesmo cada ponto de seu ser, no se-sentir-a-si-mesmo como tal, o qual constitui a essência da afetividade. A afetividade transcendental é o modo original de revelação em virtude do qual a vida se revela a si mesma e é assim possível como o que ela é, como vida.

É dessa forma que a vida se opõe radicalmente ao saber da consciência e da ciência, ao que chamamos, em geral, de conhecimento. Na cogitatio, no sentido em que a entende a quase totalidade dos comentadores de Descartes - especialmente Husserl e Heidegger -, existe um cogitation, a consciência é sempre consciência de alguma coisa, ela revela outra coisa que não a si mesma. Com a sensação, por exemplo, alguma coisa é sentida, revelada, portanto, nessa sensação e por seu intermédio. Do mesmo modo a percepção revela o objeto percebido, a imaginação, um conteúdo imaginário, a memória, uma lembrança, o entendimento, um conceito etc. Em seu saber próprio, pelo contrário, a vida não revela nada de outro, nenhuma alteridade, nenhuma objetividade, nada que seja diferente dela, nada que lhe seja estranho. E é justamente por isso que ela é a vida, porque o que ela sente originalmente é ela mesma, o que ela experimenta originalmente é ela mesma, aquilo pelo que ela é afetada originalmente é ela mesma - porque tudo o que traz em si essa essência de se autoafetar, no sentido de ser si mesmo o que é afetado e o que afeta, isto e somente isto é vivo. Porém, a autoafecção não é um conceito vazio ou formal, uma proposição especulativa, ela define a realidade fenomenológica da própria vida - uma realidade cuja substancialidade é sua fenomenalidade pura, e cuja fenomenalidade pura é a afetividade transcendental. É porque o terror não é nada mais que a afetividade de sua autoafecção que ele é absolutamente, e não seria menos do que isso, se não houvesse nada mais no mundo, ou melhor, não houvesse mundo algum: haveria, em todo caso, essa experiência pura de si, muda, que o terror tem de si mesmo, sua paixão - haveria vida. Ora, o que é verdadeiro em relação ao terror, em seu ser próprio, na carne de sua afetividade, mesmo que as representações que o acompanham no sonho do mundo se revelassem ilusórias, não o é menos da visão, mesmo que nesta façamos abstração de tudo o que ela vê e do próprio ver como faculdade de se relacionar com o que é visto, enquanto fazer ver. Pois se esse fazer ver fosse, na realidade, um dissimular, um deformar e um induzir em erro, ele não deixaria de existir em sua pura experiência de si, enquanto ver se sentindo e experimentando a si mesmo em cada ponto de seu ser, enquanto visão viva. Sentimus nos videre, diz Descartes.6 Assim, há um se-sentir-a-si- -mesmo da visão que permanece, que é absolutamente “verdadeiro”, mesmo que o ver dessa visão e tudo o que ela vê sejam falsos.

6 Carta a Plemptius de 3 de outubro de 1637. In: Descartes, (Euvres, ed. Adam e Tannery, I, p. 413.

Mas se percebe bem sob que condição: a experiência subjetiva da visão só pode ser absolutamente “verdadeira” quando a visão e o que ela vê são ambos falsos, se o poder de revelação que revela a própria visão for fundamentalmente diferente do poder de revelação no qual a visão descobre o que é visto - já que essa segunda capacidade é duvidosa. O poder de revelação no qual a visão se revela é o saber da vida, ou seja, a vida. O poder de revelação no qual a visão descobre seu objeto, o que ela vê, é o saber da consciência, no qual se funda, por sua vez, a ciência, todo conhecimento em geral. Essas duas capacidades são fundamentalmente diferentes, nisto que a segunda se esgota na relação com o objeto e no que o funda, em última instancia: o surgimento de um primeiro afastamento, o distanciamento de um horizonte, o êx-tase. A fenomenalidade que institui esse poder é a da exterioridade transcendental, na qual se enraíza toda forma de exterioridade e de objetividade, a objetividade do mundo da ciência, em especial. No poder de revelação da vida, pelo contrário, não há mais distância ou diferença, a fenomenalidade em que consiste essa experiência é a afetividade. Descartes jamais duvidou da verdade da ciência, muito menos desejava fazer sua crítica. Sua intenção, bem ao contrário, é de legitimar a ciência, mais exatamente toda a recente ciência matemática da natureza, que ele descobre diante de si maravilhado, e cujos extraordinários desenvolvimentos ele percebe. Porém, o gênio de Descartes foi de pressentir que esse saber não se basta a si mesmo, que supõe outro, de outro tipo. A dúvida que, na primeira Meditação, atinge toda forma de saber, sensível ou inteligível, toda relação com o objeto e, desse modo, todo mundo possível, qualquer que seja, tem por objetivo, barrando justamente essa relação, isto é, toda forma de saber até então reconhecido, fazer surgir o saber secreto que ela contém. Pois Descartes não afirma apenas que existem duas formas de saber heterogéneos, que ele chama, de um lado, de conhecimento da alma, ou ainda de ideia do espírito, e de outro, conhecimento do corpo, isto é, relação com o objeto. A segunda Meditação tem por tema explícito mostrar: 1) que o conhecimento da alma é mais fundamental e mais certo que o conhecimento do corpo - título da Meditação: “Da natureza do espírito e que ele é mais fácil de conhecer que o corpo”; 2) que é sobre esse saber absolutamente certo da vida que repousa o conhecimento do corpo, isto é, do mundo, e, assim, a consciência e a ciência em geral.

A primeira demonstração se faz distinguindo radicalmente a ideia do espírito (o conhecimento da alma) de todas as outras ideias 7, que são as ideias dos objetos, reais ou ideais. Essa diferença consiste em que a ideia do espírito não tem cogitatum, isto é, precisamente, não tem objeto. A ideia do espírito é o poder original de revelação em virtude do qual a cogitatio (a alma, a vida) é a revelação de si mesma, e não de uma objetividade qualquer, de um cogitatum. Desse modo, o terror se revela a si mesmo e não revela em si, em sua afetividade, nada mais do que ela. Que, agora, o saber da vida (o conhecimento da alma) funde com o conhecimento do corpo, todo conhecimento de objeto, isto resulta de que a ideia do espírito não apenas se opõe a todas as outras ideias, como constitui ainda sua essência comum. Dessa forma, toda ideia que traz em si um cogitatum (a ideia de um homem, de um triângulo, de um deus) só pode advir ao ser se for uma ideia do espírito e se, enquanto tal, for antes de tudo a pura e simples experiência de si que a revela a si mesma tal como ela é em si, enquanto cogitation enquanto modalidade da vida, da alma - mesmo que não houvesse qualquer homem, triângulo ou deus. Uma vez que a visão do objeto pressupõe o saber da mesma visão, e em que o saber da visão é seu próprio páthos - a autoafecção da subjetividade absoluta em sua afetividade transcendental (transcendental = que a torna possível como subjetividade, como vida) -, então, essa visão do objeto não é jamais uma simples visão, mas, porque ela se autoafeta constantemente e só vê nessa autoafecção de si, ela é uma sensibilidade. E é por isso que o mundo não é um puro espetáculo oferecido a um olhar impessoal e vazio, mas um mundo sensível, não um mundo da consciência, mas um mundo-da-vida. A saber: um mundo que só é dado à vida, que existe para ela, nela e por ela. Pois aquilo em que se forma todo “mundo” possível, a abertura de um “Fora”, a Exteriorização original de uma exterioridade qualquer (por exemplo, a de um número) só pode se produzir à medida que essa produção afeta a si mesma, na Afetividade dessa produção, por conseguinte, e graças a ela. Assim, as coisas só são sensíveis a posteriori, não revestem essas tonalidades com as quais surgem diante de nós como ameaçadoras ou serenas, tristes ou indiferentes, em virtude de relações que manteriam em uma história com nossos desejos e com o jogo sem fim de nossos interesses respectivos - antes, só fazem tudo isso e só

7 “Respostas às sextas objeções”. In: Descartes, Œuvres, op. cit., VII, p. 443.

podem fazê-lo porque são afetivas desde o nascimento, porque já um  páthos de seu nascimento, como vinda do ser a si mesmo na embriaguez e no sofrimento da vida. A abstração à qual procede a ciência é, portanto, dupla. É em primeiro lugar a abstração que define o mundo científico enquanto tal - na medida em que exclui, no ser da natureza, as qualidades sensíveis e predicados afetivos que lhe pertencem a priori, para só reter dele as formas que podem se prestar a uma determinação ideal. O fato de não levar em consideração características subjetivas de todo mundo possível é indispensável do ponto de vista metodológico, uma vez que permite a definição de procedimentos que permitem a obtenção de conhecimentos de outro modo inacessíveis, por exemplo: a medida quantitativa. Porém, o desenvolvimento, de resto infinito, desse saber ideal tem legitimidade na medida em que permanece claramente consciente dos limites de seu campo de pesquisa, limites que ele mesmo traçou. Não pode lhe escapar que o afastamento das propriedades sensíveis e afetivas do mundo pressupõe o afastamento da própria vida, isto é, do que constitui a humanidade do homem. É a segunda abstração da Vida, ou seja, da única coisa que realmente importa. O termo abstração o bem fraco aqui, não sendo o mais conveniente, do tato. Pois se a ciência faz “abstração” dos predicados sensíveis da natureza na medida em que não os leva mais em conta em suas metodologias e em seus cálculos, ela não deixa por isso de se desenvolver a partir dessa natureza, da qual só retém os aspectos que lhe importam; e ao conhecimento desta que ela visa, em última instância, seguindo os caminhos que ela escolheu. O que é a vida, ao contrário a ciência não tem nenhuma ideia a respeito, ela não se preocupa em absoluto com isso, não tem nenhuma relação com ela e jamais terá. Pois só há acesso à vida no interior da vida e por seu intermédio, se é verdade que só a vida se relaciona consigo mesma, na Afetividade de sua autoafecção. Porém, na “relação consigo mesma” da vida não há nenhuma "relação com", êx-tase algum, nenhuma “consciência” - ao passo que a ciência se move inteira e exclusivamente no interior da relação com o mundo, e só conhece este, só conhece objetos. É por isso que ela é objetiva por princípio, em razão de seus fundamentos ontológicos últimos. E é por isso também que ela ignora e ignorará sempre o que, tendo a experiência de si mesma e se autoafetando na imanência radical de sua afetividade e somente nela, se presentifica e se essencifica em si mesma como a vida. O mundo, com efeito, é um meio de exterioridade pura. Tudo o que encontra nele a condição de seu ser se propõe sempre como ser-exterior, um pedaço de exterioridade, uma ,

superfície, uma praia oferecida a um olhar, e sobre a qual esse olhar desliza indefinidamente, sem jamais poder penetrar no interior daquilo que lhe escapa por trás de novo aspecto, de nova faixada, de nova tela. Pois esse ser, sendo apenas exterioridade, não tem interior, sua lei é o devir, o surgimento incessante do novas faces, de novos planos, e o conhecimento segue a trilha da sucessão de todos esses logros, os quais só se apresentam a ela para dissimular logo em seguida um ser que ele não tem e remetê-lo a outro, que lho fará a mesma coisa. Nada de interior: nada que seja vivo, que possa falar em seu próprio nome, em nome do que ele experimenta em nome do que ele é. Somente “coisas”, somente a morte: na marcha do mundo e em seu desvelamento estático só se inibe e se ex-põe o sempre adiante, o sempre fora - o objeto. Assim, o jogo de um saber que deixa de fora não só o mundo-da-vida, mas, o que é mais grave, a própria vida, ou seja, o que nós somos, já se mostra desde já pleno de consequências. Se a cultura é o assunto da vida, sua autotransformação e seu crescimento, o que até agora só entrevimos, aparece com uma evidência ameaçadora: a ciência não tendo qualquer relação com a cultura, o desenvolvimento da primeira não tem nada a ver com o da segunda. Pode-se conceber, no limite, um hiperdesenvolvimento do saber científico, acompanhado de uma atrofia da cultura, com sua regressão em certos domínios ou em rodos os domínios ao mesmo tempo e, ao final desse processo, sua aniquilação. Ora, semelhante figuração não é nem ideal nem abstrata, e a do mundo em que vivemos, mundo no qual acaba de surgir um novo tipo de barbarie, mais grave do que todas aquelas que a precederam, e em virtude da qual o homem corre o risco de perecer. O saber da vida como saber em que a vida constitui tanto o poder que conhece quanto o que é conhecido por ele, proporcionando-lhe de maneira exclusiva, seu “conteúdo”, chamo de saber de práxis. O que caracteriza esse saber, como vimos, é que, na ausência de todo êx-tase, não há nele nenhuma relação com um “mundo” possível, qualquer que seja ele. Ao contrário, ao saber que define essa relação chamo de teoria. A teoria compete, por princípio, ser a teoria de um ob-jeto. Sempre, a propósito dc qualquer coisa, falamos de um ponto de vista prático e de um ponto de vista teórico, e de sua diferença como algo evidente. Essa diferença, no entanto, permanece obscura quanto a seu princípio, e isto porque ela se enraíza nas estruturas últimas do Ser e, finalmente, em seu Fundo invisível - e é só aí que ela pode ser esclarecida. Na medida em que a cultura é cultura da vida e repousa sobre o saber próprio desta última, ela é essencialmente prática. Consiste no autodesenvolvimento das potencialidades

subjetivas que compõem esta vida. Caso se trate da visão, que foi tomada em nossa análise como exemplo destinado a nos fazer compreender a natureza desse saber original da vida, cada um distinguirá facilmente o olho grosseiro a que se refere Marx nos Manuscritos de 1844, incapaz de uma percepção distinta do que ele contempla, assim como de qualquer apreciação artística a seu respeito e, por outro lado, o olho cultivado, cujo exercício refinado e, enquanto tal, em seu  pathos, o prazer estético. Caso se trate das potencialidades subjetivas motoras, cada um agirá de maneira semelhante à diferença entre o corpo de um dançarino capaz de dominar sua força e, ao que parece, multiplicá-la, e o corpo do indivíduo inexperiente e sem habilidade. Isso também vale para a declamação de um ator, a respiração de um cantor etc. Teremos ocasião de discorrer um pouco mais a respeito do saber da vida e de compreender por que a cultura não é simples aplicação de poderes definidos de uma vez por todas, mas justamente seu “desenvolvimento”. Como prática, a cultura assume diferentes formas: formas elementares, primeiro, que são as modalidades concretas da realização do viver imediato. Assim, cada cultura se caracteriza por um fazer específico concernente à produção ativa dos bens úteis à vida e a seu consumo - a alimentação, o vestuário, o habitat etc. -, bem como o jogo espontâneo da própria vida, a celebração de seu destino, o erotismo, a relação com a morte. Semelhante “fazer” se expressa em ritos diversos, que conferem a cada sociedade sua própria fisionomia. A organização social, com sua estruturação aparentemente objetiva, não passa da representação externa, na visão teórica, do que é em si praxis, e que encontra na vida da subjetividade absoluta, e somente nela, o local de sua realidade, bem como o princípio de seu desenvolvimento e das “leis” que o regem: essas leis não são as leis da consciência, não são leis teóricas ligadas à maneira pela qual representamos as coisas e as pensamos, são leis práticas, as leis da vida. Como tais, tendo sua origem na subjetividade, elas se propõem e agem na forma de necessidades, no sentido que conferimos a essa palavra, uma vez que essas necessidades serão compreendidas justamente a partir da essência da vida, como prescritas e desejadas por essa essência. Assim, necessidade e trabalho são duas modalidades elementares da práxis situadas em seu prolongamento recíproco, ou, antes, a atividade sob sua forma espontânea não sendo senão o aumento da necessidade, sua realização. Porém, a subjetividade é inteiramente necessidade. As necessidades superiores, que resultam da própria natureza da necessidade, suscitam as elaboradas formas de cultura, que são a arte, a ética e a religião. A presença dessas formas “superiores” em cada civilização

conhecida não é um mero dado empírico, cuja existência nos limitaríamos a constatar. Arte, ética e religião se enraízam, antes, na essência da vida, a razão de seu surgimento se torna inteligível para quem sabe ler nessa essência. Do mesmo modo, a barbárie, isto é, a regressão dos modos de realização da vida, o termo do crescimento, não é um acontecimento incompreensível e funesto que vem atingir uma cultura, de fora, no fim de seu desenvolvimento. A maneira pela qual ela contamina sucessivamente cada domínio da atividade social, o desaparecimento progressivo, na totalidade orgânica de um “mundo” humano, de suas dimensões estética, ética e religiosa, também pode ser compreendida partindo-se de um processo que afeta a essência do ser, entendido como o princípio do qual procede toda cultura, assim como suas modalidades concretas de realização, especialmente as mais elevadas: é uma doença da vida. As questões concernentes à barbárie, em sua proveniência historial a partir da cultura, assim como essa mesma cultura apreendida como pressuposto de todo desenvolvimento, se organizam como segue: 1. Como compreender a possibilidade da cultura, isto é, como compreender, afinal, a essência da vida? O que esta precisa ser a fim de tornar possível a  priori e assim necessário, o desenvolvimento de uma cultura? 2. Como se efetua semelhante desenvolvimento, para desembocar em formas que se dão como “superiores”? Por que semelhantes formas assumem essas modalidades concretas determinadas que são a arte, a ética e a religião? 1. Como, se a vida produz necessariamente a cultura, seu movimento de autotransformação, finalizado como seu autocrescimento, pode, ao contrário, inverter-se em processos de degenerescência e de empobrecimento? Não é a barbárie em si mesma estranha, enquanto nos limitarmos a constatá-la. É sua própria possibilidade, sua proveniência a partir de uma essência que é construída interiormente como crescimento de si, e que implica justamente a cultura. É preciso confundir a vida fenomenoiógica absoluta com a vida biológica, compreender ingenuamente a primeira partindo da segunda, para que o conjunto dos fenômenos de decomposição que perturbam os organismos vivos sejam transferidos para o plano dos edifícios sociais, para que o declínio e depois a destruição destes pareçam igualmente “naturais”: as civilizações são mortais, assim como os indivíduos, isso é tudo.

Como os indivíduos biológicos! Pois, no que se refere aos indivíduos de que se pode tratar na esfera da cultura ou da barbárie, eles não têm nada a ver com os conjuntos de moléculas, cuja desagregação se pode observar no fim de um processo objetivo. Porque são modos da vida absoluta e trazem em si sua essência, a essência do autocrescimento, o pensamento de que seu desaparecimento ou envelhecimento não é vivido por eles apenas como escândalo: aos olhos do filósofo capaz de penetrar na essência que faz deles seres vivos, ela se descobre como uma impossibilidade de ordem apriorística. Foi o gênio de Nietzsche que lhe permitiu perceber essa aporia e o conduziu, para tentar resolvê-la, a análises extraordinárias. Aqui sobre a Terra tudo cresce e declina. O olhar lançado de cima sobre o todo do ser-exterior interioriza o que ele aprendeu sobre as coisas e se esforça, então, como pode, para se acostumar a isso: é o que se chama de sabedoria - dos historiadores, dos sociólogos, dos etnólogos e dos biólogos, de todos os que se fiam no que veem. Porém, ainda não se sabe nada da vida quando se “filosofa"’ dessa maneira. Do mesmo modo, encontra-se em si, como um princípio selvagem que não tem o que fazer com um saber que não é o seu, e que, à medida que sabe o que é, obedece a outras leis que não aquelas que tentam lhe ensinar nos tratados de ciências positivas. Ela não lhes opõe veleidades, sonhos, mas a realidade pura e simples, aquela que produz os casais e as sociedades e não para de fazê-lo, empurrando-os na direção de sua própria cultura, que é a do Desejo - um Desejo que não tem modelo nas coisas, porque é o Desejo da Vida e, desse modo, o Desejo de Si. A questão que propusemos neste livro não pode prescindir daquelas que acabam de ser enunciadas: compreender a decadência própria à nossa época implica que se saiba como o declínio da Vida, em geral, é possível. Mas ela é mais precisa. Trata-se de evidenciar o caráter específico da barbárie que chega, a cuja sombra nós já titubeamos, como cegos. A afirmação que deseja que o desequilíbrio dos tempos modernos resulte do hiperdesenvolvimcnto do saber científico e das técnicas que ele engendrou, ao mesmo tempo que a rejeição, por ele, do saber da vida, parecerá por vezes demasiado geral e excessiva. Importa, portanto, demonstrá-lo com base em exemplos precisos. Evocaremos, em primeiro lugar, a arte, e não por acaso, pois esta servirá para revelar o que chamaremos aqui, provisoriamente, de barbárie da ciência.

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