Mestre Eckhart - A Mística de Ser e de Não Ter
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Mestre Eckhart - A Mística de Ser e de Não Ter...
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MESTRE ECKHART
Ter A Mística de Ser e de não Ter Centro de Investigação e Divulgação Publicações CID Espiritualidade/5
Coordenadores: Aredngelo R. Buzzi Leonardo Boff
MESTRE ECKHART A Mística de Ser e de não Ter Coordenação e introdução de Leonardo Boff, O.F.M.
Tradução de Raimundo Vier, O.F.M. Fidelis Vering, O.F.M. Leonardo Boff, O.F.M.
VOZES
Petrópolis 1983 Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 25600 Petrópolis, RJ Brasil Diagramação Beatriz Salgueiro,
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Dedico este texto aos confrades confrades dominicanos do Brasil, da mesma Ordem de Mestre Eckhart, pelos apóstolos, pastores, confessores, doutores, místicos e mártires que deram à Igreja no Brasil.
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������� INTRODUÇÃO.................................................................................................................................. 6 Mestre Eckhart: A mística da disponibilidade e da libertação ....................................................... 6 O CAMINHO DO SEGUIMENTO........................................................................................... 6 O CAMINHO DA MÍSTICA .................................................................................................... 7 A QUESTÃO FUNDAMENTAL DE TODA MÍSTICA .......................................................... 8 COMO SE EXPRIME A MÍSTICA .......................................................................................... 9 A VIDA DO MESTRE ECKHART ........................................................................................ 12 A OBRA LITERÁRIA DE MESTRE ECKHART.................................................................. 15 A QUESTÃO FUNDAMENTAL DA MÍSTICA E A PROPOSTA DE ECKHART ............. 16 O TOTAL DESPRENDIMENTO E A PERFEITA LIBERDADE COMO CAMINHOS À UNIDADE ............................................................................................................................... 19 OBSTÁCULOS À COMPLETA DISPONIBILIDADE ......................................................... 20 MEIOS PARA A PERFEITA DISPONIBILIDADE .............................................................. 21 MESTRE ECKHART E A MÍSTICA DE LIBERTAÇÃO ..................................................... 22 TEXTOS ........................................................................................................................................... 26 O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO.................................................................................... 27 II. O HOMEM NOBRE ............................................................................................................... 45 III. CONVERSAÇÕES ESPIRITUAIS ....................................................................................... 50 1. A VERDADEIRA OBEDIÊNCIA ...................................................................................... 50 2. QUAL A ORAÇÃO MAIS FORTE E QUAL A OBRA MAIS EXCELENTE.................. 51 3. OS PREOCUPADOS, CHEIOS DE SI MESMOS ............................................................. 51 4. COMO É ÚTIL RENUNCIAR EXTERIOR E INTERIORMENTE .................................. 52 5. O QUE FAZ A ESSÊNCIA E O FUNDAMENTO SEREM BONS................................... 52 6. O DESPOJAMENTO E A POSSE DE DEUS .................................................................... 53 7. COMO O HOMEM DEVE AGIR DA FORMA MAIS RAZOÁVEL POSSÍVEL ............ 54 8. O EMPENHO CONSTANTE NO MÁXIMO CRESCIMENTO........................................ 55 9. COMO A INCLINAÇÃO PARA O MAL PODE TORNAR O HOMEM PIEDOSO........ 55 10. COMO A VONTADE TUDO PODE E COMO TODAS AS VIRTUDES RESIDEM NA VONTADE COM A CONDIÇÃO DE QUE SEJA RETA ..................................................... 56 11. O QUE O HOMEM DEVE FAZER QUANDO É PRIVADO DE DEUS E QUANDO DEUS SE ESCONDEU ........................................................................................................... 57 12. A QUESTÃO DO PECADO: COMO A GENTE DEVE SE COMPORTAR QUANDO SE ENCONTRA EM PECADO .............................................................................................. 59 13. OS DOIS ARREPENDIMENTOS .................................................................................... 59 14. A VERDADEIRA CONFIANÇA E A ESPERANÇA ...................................................... 60 15. AS DUAS CERTEZAS DA VIDA ETERNA ................................................................... 60
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16. A VERDADEIRA PENITÊNCIA E A ETERNA BEM-AVENTURANÇA.................... 61 17. COMO O HOMEM DEVE MANTER-SE EM PAZ QUANDO NÃO SE ENCONTRA EM AFLIÇÃO EXTERNA, COMO CRISTO E MUITOS SANTOS, E COMO DEVE SEGUIR A DEUS .................................................................................................................... 62 18. DE QUE MANEIRA O HOMEM, CONFORME A SITUAÇÃO, PODERÁ ACEITAR ALIMENTOS FINOS, VESTES NOBRES E ALEGRE COMPANHIA, QUE LHE CABEM SEGUNDO O COSTUME ...................................................................................................... 63 19. POR QUE DEUS FREQÜENTEMENTE TOLERA QUE PESSOAS DE BEM SEJAM IMPEDIDAS NA PRÁTICA DO BEM................................................................................... 64 20. QUE O CORPO DE NOSSO SENHOR SEJA RECEBIDO FREQÜENTEMENTE E DA MANEIRA E DEVOÇÃO COM QUE ISTO SE DEVE FAZER ........................................... 64 21. O ZELO ............................................................................................................................. 66 22. COMO SE DEVE SEGUIR A DEUS DE MANEIRA PERFEITA .................................. 68 23. AS OBRAS INTERIORES E EXTERIORES ................................................................... 69 IV. O DESPRENDIMENTO, A COMPLETA DISPONIBILIDADE, A TOTAL LIBERDADE ............................................................................................................. 74 V. TRÊS SERMÕES DO MESTRE ECKHART ........................................................................ 80 1. DEUS É UM ........................................................................................................................ 80 2. DEUS É UM, ELE É UM NEGAR DO NEGAR ................................................................ 82 3. A EXCELÊNCIA DE MARTA SOBRE MARIA............................................................... 84 VI. LEGENDAS DO MESTRE ECKHART ............................................................................... 90 1. DE UMA BOA IRMÃ E DA BOA CONVERSAÇÃO QUE TEVE COM MESTRE ECKHART............................................................................................................................... 90 2. DO BOM-DIA ..................................................................................................................... 90 3. MESTRE ECKHART E O GAROTO NU .......................................................................... 91 4. MESTRE ECKHART, COMENSAL .................................................................................. 91
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������ �������� � ������� �� ��������������� � �� ���������� Leonardo Boff, O.F.M. A mística não conhece confissões. Ela perpassa todas as religiões. É a irrupção de Deus dentro da vida humana. Embora dentro, Deus está sempre para além de todas as religiões. Ele se comunica a todos e se deixa encontrar por todos os que O procuram.1 Basicamente discernimos dois caminhos de encontro com Deus; eles não se excluem, mas se permeiam; não obstante, cada qual possui características próprias: é o caminho do seguimento e o caminho da mística.
� ������� �� ���������� O caminho do seguimento é o caminho da fé.2 Caminhar na fé implica mover-se na obscuridade, convencido «das realidades que não se vêem» (Hb 11,1). Por isso vigora sempre um componente de esperança em toda fé verdadeira (cf. Hb 11,1), esperança de que o não visto e o não experimentado exista de fato e constitua nossa plenitude. O cristianismo deu a sua versão ao caminho da fé na forma de seguimento de Jesus Cristo, expoente supremo da fé (cf. Hb 12,2). Seguir Jesus supõe conhecer sua gesta histórica e o valor último que lhe atribuímos. O cristianismo crê que nele Deus mesmo se entregou totalmente e mostrou seu verdadeiro rosto. Em conseqüência disto, toda a vida, as atitudes, os gestos e o destino de Jesus se apresentam como determinantes para a existência humana assim como Deus quer que a vivamos. Então crer cristãmente significa seguir o mais possível Jesus Cristo; segui-lo na vida, no seu projeto histórico e, se for necessário, em seu destino. Seguir Jesus na vida: a vida de Jesus foi mareada particularmente por duas paixões: amor ao Pai e amor aos oprimidos. O amor ao Pai se reveste de profunda intimidade num diálogo filial. Jesus experimenta o Mistério último não como abismo mas como ternura, Abba (papaizinho), fonte inesgotável de amor e compaixão para com todos, particularmente com perdidos e desamparados (cf. Mt 5,45; Lc 15). Desta experiência, Jesus deriva uma prática de solidariedade para com os marginalizados e pecadores. Irrompe seu amor para com os oprimidos. Deles é preferentemente o Reino dos céus (Lc 6,1). O serviço desinteressado a eles equivale ao verdadeiro culto a Deus e constitui o critério derradeiro de nossa salvação (Mt 25,40). Seguir Jesus no seu projeto histórico: o Reino de Deus constitui a proposta de Jesus. Reino traduz a utopia mais fundamental do coração humano: um mundo onde todo o diabólico e o sinistro 1
Sobre o tema da mística existe uma literatura considerável; citaremos alguns títulos apenas como orientação: R. Otto, West-hstliche Mystik, Gotha 1926; A. Brunner, Der Sch,ritt über die Grenzen. Wesen und Sinn der Mystik. Würzburg 1972; C. Albr ec h t, Das mystische Erkennen, Bremen 1958; A, Mager, Mystik a/s seelische Wirklichkeit, Graz 1945; J. Tyzi a k, Morgenkindische Mystik, Düsseldorf 1949; F.-D. Ma as z. Mystik im Gresprhch, Wiirzburg 1972; A. Mercier (org.), Mystik und Wissenschaftlichkeit, Berna e Frankfurt 1972; H. Urs von Balthasar e outros, Grundfragen der Mystiic, Einsiedeln 1974; R. C. Zaehne r, Mysticism, Sacred and Profane. Oxford 1957; J. M ar é ch a I, Etudes sur Ia psychologie des mystiques, 2 vol. Bruxelas-Paris 1937-1938; A. Stolz, Théologie de ia mystique, Chevetogne 1947; Vários, U nciersta,nding Mysticism (edited by R. Woods). N. York 1980. 2 Para esta temática são representativos: H. Echegar ay, A prática de Jesus, Petrópolis 1981; J. Sobrino, Cristología desde América Latina, México 1976; L. Boff, Paixão de Cristo-paixão o do mundo, Petrópolis 1976.
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tenham sido superados; onde a criação não é mais ameaça à existência humana; onde as relações humanas e sociais se regem pela justiça, amor, fraternidade e perdão; onde o ser humano se descobre filho de um Pai amoroso. Jesus propõe este projeto como sendo a vontade de Deus não como imposição mas como proposição. Por isso junto com o anúncio do Reino de Deus se encontra sempre o convite à conversão, vale dizer, à acolhida por parte dos ouvintes. Este Reino não cai pronto do céu; significa um processo imenso onde Deus e o homem constroem juntos, cada qual à sua maneira, o novo céu e a nova terra. Toda realização humana de fraternidade, toda transformação da sociedade que propicia mais vida para todos, toda superação do espírito de vingança constituem mediações que concretizam e antecipam o Reino de Deus. Segue Jesus de verdade não tanto aquele que o professa como Senhor e Deus encarnado mas aquele que toma a sério sua causa e se faz agente de construção do Reino dentro da história. Seguir Jesus em seu destino: a prática derivada da proposta de Jesus provocou um conflito com os distintos agentes históricos de sua sociedade e religião. Jesus teve de sofrer o que todos os profetas e transformadores deste mundo sofreram: a maledicência, o isolamento, a perseguição e a condenação à tortura e à morte. Assume tal injunção com hombridade. O martírio é o preço a pagar pela fidelidade à causa jamais traída. Quem se propõe seguir Jesus sabe que deve viver a bemaventurança das perseguições como o seu Mestre (Mt 5,10s). Como se depreende, caminhar na fé na forma do seguimento de Jesus envolve crer apesar da contradição; é esperar contra a esperança; encerra resistir quando tudo ao derredor vacila. O discípulo não é maior que o Mestre (Mt 10,25) e pode conhecer a mesma configuração dolorosa na cruz (Jo 21,18-19). Aqui não se fala de grandes elevações e arroubos espirituais. Eles podem existir, como Jesus no monte Tabor (Le 9,28-36) ou na inundação da alegria no Espírito Santo que lhe arranca uma oração arrebatada (Le 10,21-23). Mas a característica fundamental do seguimento se realiza na prática ética, no compromisso transformador do mundo, no serviço humilde aos deserdados deste mundo. A fé e o seguimento convivem com a solidão (Jo 16,32) e até com o sentimento de desamparo por parte de Deus (Mc 15,34). O que importa é a decisão da vontade de permanecer fiel e de sustentar, contra todas as aparências, a unidade e a comunhão com Deus: «não seja o que eu quero, mas o que tu queres» (Mc 14,36). A disponibilidade e prontidão em fazer a vontade do Pai constituem a marca registrada do comportamento de Jesus (cf. Mc 14,36; Mt 26,39; Lc 22,42; Jo 4,34; 5,19; 20,30.36; 6,38; Fl 2,8; Rm 15,3; Hb 10,7-9). Esta determinação de crer sem ver, de aderir sem experimentar e de resistir apesar de não enxergar nenhuma saída constitui uma nota característica do caminho do seguimento.3 É bem verdade que pertence também ao seguimento de Cristo a experiência daquilo que S. Paulo chama os dons do Espírito. Especialmente a quem se deixa assimilar pela prática e mensagem de Jesus é dada a sabedoria da vida, o sentido do serviço fraterno, a intuição do verdadeiro rumo das coisas (1Cor 12 e Rm 12). Mas tudo isto se ordena à fortificação da convivência fraterna. O que permanece mesmo não são os carismas extraordinários como a profecia, a ciência e o falar em línguas (1Cor 13,8); o que permanece é o «melhor dom», o amor que nunca se acaba (1Cor 12,31; 13,8). É ele que nos mediatiza a salvação. Sem ele nenhuma visão, nenhum estremecimento do espírito em contata com o Uno, nenhum mergulho no Mistério insondável que perpassa todas as coisas resiste diante de Deus e se sustenta definitivamente. Apesar deste caminho da obscuridade no seguimento a Cristo pode, aqui e acolá, irromper o clarão da experiência mística que Paulo traduziu na fórmula: «Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Mas ele só se torna possível àqueles que conduziram a vida em Cristo e no Espírito de Cristo.
� ������� �� ������� Comecemos por esclarecer a palavra mística pois ela já nos introduz nas características deste 3
Cf. A. Schulz, Nachfolge and Nachahmen, Munique 1962; H. D. B e t z, Naehfolge und Nachahmung Jesu Christi im NT, Tübingen 1967.
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caminho de encontro com Deus. Mística é um adjetivo (em grego mystikós) da palavra mistério (mystérion).4 Na Bíblia do Antigo e do Novo Testamento a palavra mistério possui vários significados. Primeiramente significa o segredo humano que não deve ser revelado: os desígnios secretos do rei (Tb 12,7.11; Jt 2,2), os planos de guerra (2Mc 13,21), os projetos íntimos do amigo (Eclo 22,22; 27,16.21). Pode significar também o desígnio último de Deus só conhecido pelas pessoas especialmente inspiradas por Deus (Dn 2,28.29.47). Para Paulo o grande mistério — projeto fundamental do Pai — é Jesus Cristo, escondido desde sempre e somente revelado r evelado agora à Igreja pelos apóstolos (1Cor 2,6-16; Ef 3; Cl 1,26-29). Na Igreja antiga a palavra mistério (em latim se traduzia comumente por sacramentum) constitui a chave principal para expressar a fé cristã.5 Mistério designa o plano eterno de Deus de salvação dos homens e de libertação da criação, em realização desde o princípio do mundo, prefigurado nas religiões, mais densamente articulado no Antigo Testamento, plenamente concretizado em Jesus Cristo e tornado presente no tempo pela Igreja mediante a palavra, os sinais sacramentais, as celebrações litúrgicas e a prática dos cristãos. Este mistério possui essencialmente uma dimensão cósmica (mystérion kosmikón) pois pervade toda a criação e ordena tudo para culminar em Cristo e no Espírito e finalmente desembocar no Pai. Mística e místico é tudo o que se refere a este mistério. Em outras palavras, as realidades profanas e sagradas se fazem sacramentos e mistérios na medida em que deixam transparecer o Mistério (o plano divino) a que servem. Mística é aquela pessoa que consegue ver na história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, tudo ordena e tudo eleva. Como já acenamos no início, a mística é um fenômeno universal. O cristianismo lhe dá a sua versão centrada em Cristo, no Espírito, na Trindade, na graça que nos faz templos de Deus, na Providência divina etc. Não intencionamos aqui identificar as características da mística cristã.6 Queremos tão-somente refletir sucintamente sobre a questão de base de toda mística, de sua linguagem. Isso nos ajudará a entender a mística do mestre Eckhart.
� ������� ����������� �� ���� ������� Toda mística, cristã ou pagã, vive de uma experiência radical: aquela da unidade do mundo com o supremo Princípio ou do homem com Deus. Trata-se de uma experiência imediata de Deus ou simplesmente do Uno. Esta experiência imediata da unidade tem como trans-fundo outra experiência não menos fundamental: aquela da dualidade e da separação: Deus-criação; eu-mundo; uno-múltiplo. A experiência da disjunção faz sofrer e exaspera o desejo de unidade. A unidade é fruto de uma busca radical. Eclode como termo de um processo, não raro extremamente oneroso. Se ela é objeto de uma experiência imediata, não é, entretanto, um dado imediato. Constituirá sempre um complexo problema para a interpretação resolver esta aparente contradição. A unidade não é algo que se opõe à multiplicidade. A unidade de que falam os místicos é unidade da multiplicidade, com ela, nela e por ela. A experiência de unidade faz com que se supere, ao nível da experiência, o fosso que separa Deus e o mundo. Como chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus? Eis a questão essencial. A resposta se orienta por duas vias arquetípicas com suas correspondentes linguagens. Uma consiste na mística do desnudamento do mundo, do deserto, da radical pobreza e do esvaziamento interior e exterior. Busca Deus para além de qualquer realidade. Tudo se esvai diante dele. Resta apenas a fímbria de um sinal passageiro. O espírito mergulha de tal forma no Uno que se unifica (fica uno) com Ele no esquecimento místico de todos os seres e também de si mesmo. O 4
Para um estudo minucioso sobre o termo mistério, veja o meu artigo: O que significa propriamente Sacramento, em Revista Eclesiástica Brasileira, 34 (1974), 860-895, 5 Veja o lúcido artigo de L. Bouyer, "Mystique", em La em La Vie Spirituelle, suppl. maio (1949). 3-23. 6 Cf. H. Ur s von Balthasa r, "Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik", em Grundfragen der Mystik, 37-71; F.-D. Maas z, Mystik z, Mystik im Gresprlich, Würzburg 1972, 83-124; Veja o livrinho muito instrutivo de I. Ragui n, Chemins de la contemplation, Paris 1969.
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centro atrai de tal maneira os raios que eles coincidem com a fonte da luz. A linguagem da mística do desnudamento se recolhe no silêncio sacrossanto. Tudo o que se disser é tagarelice. A experiência não se diz, vive-se. A outra via é a da mística da inserção no mundo. Penetra-se nas realidades que nos toca viver. A partir da busca insaciável i nsaciável de Deus o mundo se sacramentaliza como lugar de sua presença; o mundo se torna então transparente. Deus reside em sua intimidade; é o Coração do coração, o sem Fundo do fundo, a luminosidade de cada ser. A linguagem desta mística se articula com a especulação e com o discurso altamente simbólico e evocativo da louvação l ouvação (doxologia). Na mística do desnudamento se enfatiza a unidade na diástase. Por um momento rompem-se os véus da separação Deus-homem e se celebra o esponsório místico entre Deus e o homem. A dualidade persiste porque um não é o outro mas ela é transponível numa unidade inefável. Na mística da inserção se acentua a diástase na unidade. Na experiência Deus emerge como o sempre Maior. A unidade existe como algo a ser continuamente buscado e eclode na medida da intensidade da busca. Em ambos os caminhos místicos a experiência da unidade em Deus ou da unidade de Deus no mundo exige um preço a pagar: impõe um tirocínio árduo. Ela não se dá a espíritos medíocres, distraídos e preguiçosos. Nem aos meramente curiosos das possibilidades da mente. Ela irrompe nos exigentes consigo mesmos, nos limpos de coração e naqueles que a desejam com todo o coração e com toda a alma. Se o desejo não for exercitado até as suas possibilidades mais radicais não se criam as condições da paixão mística. Na mística, portanto, existe a experiência da unidade seja imergindo em Deus seja imergindo no mundo, sempre contudo no transfundo da dualidade. Como expressar a unidade na diferença e a diferença na unidade? Como viver Deus no mundo e o mundo em Deus? A dialética é o instrumento que a linguagem utiliza para expressar a unidade na diversidade e a diversidade na unidade.7 A dialética consiste naquela forma de articulação do pensamento mediante a qual cada coisa aparece imbricada na outra. Para o pensamento dialético nada há de absolutamente disjuntivo. Tudo é colocado num movimento conjuntivo, num processo copulativo e numa marcha coincidencial. O sim e o não, a vida e a morte constituem pólos dialéticos de uma mesma verdade e de um mesmo supremo princípio. Em razão disto, a linguagem mística se reveste de paradoxos: Deus é tudo e Deus é nada. O mundo é infinito e o mundo é finito. As trevas são luminosas e a luz é tenebrosa. O grande saber é não saber e o absoluto saber consiste em não saber que não se sabe. A questão da dialética nos encaminha assim para o problema da linguagem própria da mística.8
���� �� ������� � ������� Toda mística vive, como asseveramos, da experiência imediata da unidade. Esta é a característica protoprimária que cabe aprofundar com mais detalhe. Como se há de compreender o caráter imediato da experiência? Nosso conhecimento comum e científico opera mediante conceitos, modelos e palavras. pala vras. As palavras substituem as coisas e os paradigmas organizam o caos de nosso conhecimento construindo a realidade conhecida. A mediação faz com que nosso acesso à realidade não seja jamais cara-a-cara. Construímos uma uma ponte entre ela e nós. 7
Boas reflexões se encontram em M. de Gandillac, "La 'dialectique' de Maitre Eckhart", em Vários, La Vários, La tnystique rhe'nnue, Paris 1963, 59-94; S. Br et o n, "Les methamorphoses du langage religieux chez Maitre Eckhart", em Recherches de science religieuse, 67 (1979), 373-396, 8 Cf. Y. Congar, "Langage des spirituels et langage des théologiens", em La em La mystique rhénane, 15-34; A. M. Haas, 'Die Problematik von Sprache und Erfahrung in der deutschen Mystik", em Grundfragen der Mystik, 73-104.
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Aqui aflora um problema de grande envergadura: a ponte que é? É parte da própria realidade? Se for parte da própria realidade, então a pergunta fica irrespondida, pois continua a questão: como acedemos à realidade? É nossa subjetividade? A questão permanece porque perguntamos: onde ficou a realidade? É projeção de nossa subjetividade? Podemos responder, obviando uma longa discussão filosófica, que a mediação é a própria realidade mas num outro modo de ser, adequado à nossa consciência. Dito em palavras simples: conheço a mesa mediante a imagem que faço da mesa. Esta imagem refaz a realidade consoante a estruturação própria do conhecimento. Este se processa na forma da abstração das qualidades concretas da mesa. Assim nossa imagem (idéia) da mesa não é pesada como a realidade da mesa, nem possui cor, nem é quadrada como o é a mesa. Na história do pensamento humano constata-se uma discussão sempre de novo retomada: estamos condenados a apenas representar a realidade sem jamais entranhar-nos nela numa comunhão direta e imediata? Não existiria o conhecimento intuitivo, diferente daquele representativo? A mística testemunha que é possível um conhecimento sem a mediação. Tocamos imediatamente o real. Isso implica que nos fazemos uma coisa só com o real. Nisso reside o segredo íntimo da experiência mística: a experiência da unidade de tudo com o supremo Princípio. Só pode falar da unidade quem se sente um com o Uno. E só se sente um com o Uno quem tem acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno não são absolutamente, de forma total e simples duas realidades. Vigora uma unidade dialética entre e ntre eles. Sustentar esta unidade não equivale, repetimos, a afirmar uma unidade monolítica, dura e sem diferenciação. Dizemos que é uma unidade dialética, a saber, uma unidade na diferença. Ser um com Deus sem deixar de ser eu; ser um com o mundo sem que a consciência deixe de ser consciência. Se fosse uma unidade simples, nem teríamos consciência da diferença nem falaríamos da unidade. Só podemos falar da unidade no transfundo da diferença. Por ser dialética, esta unidade só brota dentro de determinadas condições, minuciosamente analisadas pelos místicos: concentração total, desnudamento interior completo e liberdade plena face a tudo para além do bem e do mal. Enquanto nos perdemos na discussão sobre o bem e o mal, ainda não experimentamos a unidade. Vivemos, sofremos e lutamos no reino das diferenças e da dualidade. Experimentar unidade implica ter religado tudo, também o mal, também o inferno, também o nada a Deus. Na verdade só entende estas frases quem está no processo de busca da unidade. Nelas mesmas, estas frases não são evidentes nem comunicam a experiência. Mas quem está criando as condições para que ecloda a unidade percebe o aceno e a direção verdadeira. Se a mística é uma experiência imediata de Deus então não poderia ser expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos falaram e nos legaram escritos seus. Apesar de se sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo da busca. Em razão da diferença entre experiência e linguagem, a gramática dos místicos é sui é sui generis. O descuido das propriedades do discurso místico fez com que se originassem polêmicas infrutíferas e até condenações odiosas, como é o caso exemplar do Mestre Eckhart. Ec khart. Primeiramente o místico intenciona exprimir a unidade do todo. A unidade não é uma parte ao lado de outras. É o todo. Mas as palavras são sempre palavras das partes; o discurso é sempre regional. Não existe uma palavra que expresse tudo e o todo. Cada palavra é uma entre outras do dicionário. Por isso há muitas palavras, já que nenhuma delas pode dizer tudo. Oxalá houvesse uma só palavra. Por ela teríamos compreendido tudo, abarcado tudo, visto tudo e expresso tudo. O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário
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humano. Daí se entenda o porquê dos superlativos, das hipérboles, das combinações de termos contraditórios empregados pelos místicos. Assim se lêem expressões como supra-essencial, supraeminente, superinfinito, hipercósmico, superdivino. Ou então paradoxos como douta ignorância, sóbria ebriedade e outros deste jaez. A linguagem dos místicos é como uma hipérbole que atinge o seu equilíbrio somente quando ultrapassa a perfeição do círculo. Continuamente e de forma quase obsessiva diz o místico: indizível, incompreensível, misterioso. Quando, a despeito de toda limitação, ousam dizer algo, sentem que mais blasfemam do que louvam a Deus, mais mentem do que expressam a verdade. Tauler, discípulo do Mestre Eckhart, com referência à Trindade, escreve: «Tudo o que se pode dizer deste mistério não é essencialmente verdade, antes assemelha-se à mentira».9 O mesmo Tauler conta o seguinte episódio: um mestre louvava a Deus em palavras. Outro mestre, então, lhe replicou: «Cala-te, pois blasfemas a Deus»!10 A beata Ângela do Foligno em arrebatamento místico exclamava: «Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio, silêncio...»11 Outras vezes, quando comunicava experiências divinas, dizia: «Eu blasfemo».12 Entretanto o Mestre Eckhart teve a seguinte frase condenada pelo Papa João XXIII: «Deum ipsum quis blasphemando Deum laudat».13 Traduzindo: «Mesmo blasfemando a Deus a gente louva o próprio Deus» (DS 956). Outras vezes as formulações parecem contradizer a gramática filosófica e teológica. Assim, por exemplo, o Mestre Eckhart dizia: «Omnes creaturae sunt unum purum nihil » (DS)14: «Todas as criaturas são um puro nada». São João da Cruz diz o mesmo: «Todo o ser das criaturas, comparado com o ser infinito de Deus, é nada. Também a alma, cativa das coisas criadas, é nada e desce mais abaixo do nada, aos olhos de Deus.»15 Não é raro encontrar formulações assim: «Se Deus existe como as criaturas existem, então Deus não existe». Outras vezes topamos com expressões de teor panteísta: «Tudo é um. Tudo é Deus»! A razão filosófica o teológica não se permite falar desta maneira. Mas ela opera com mediações, conceitos com alcance e limites bem definidos. Ao passo que a mística, em razão do que vê e experimenta, extrapola continuamente para se adequar ao que não pode ser expresso adequadamente. O saber da ciência vive na divisão. O experimentar do místico vive da unidade. Em segundo lugar, para se fazer justiça à linguagem dos místicos, importa dar-se conta de sua natureza específica.16 Ela não intenciona descrever o mundo em sua objetividade; quer traduzir uma experiência do espírito. Ao dizer, por exemplo, «o mundo é nada» não quer fazer uma afirmação sobre os objetos, mas sobre o sentir do sujeito. O sujeito se encontra de tal maneira imerso em Deus e percebe Deus tão dentro de cada ser, que Deus ocupa todos os espaços. Os objetos existem na medida em que o místico como que os vê sendo tirados do nada pelo amor de Deus. O absoluto é tão absoluto que um desvio dele assume a característica de um desvio absoluto. Isto é o que o místico experimenta. A luz de Deus é tão luminosa que nossa luz não passa de trevas exteriores. Quem quiser ganhar tem que perder (cf. Jo 12,25); se almejar o Uno tem que se esvaziar de tudo até poder ser plenificado só pelo Uno. Como dizia com acerto Simone Weil: «Ser nada, para estar no seu devido lugar no todo».17 Para o pensamento da objetividade, o mundo possui sua densidade própria e consistência relativa. Não é um nada. Mas aqui nos movemos dentro de outro registro, diferente daquele dos místicos. O místico não nega o mundo e não há como negá-lo. Mas não vê o mundo a partir do mundo. Contempla-o a partir de Deus, em Deus, com Deus e para Deus. O mundo é relação e pura relação; não existe, é nada, fora desta relação divina que continuamente o cria e o tira do nada. O místico vê o nada presente na origem de cada ser; e o nada não permanece na origem passada; 9
Sermo 28,1, em F. V etter, Die Predigten Taulers (Deutsche Texte des Mittelaters, XI), Berlim 1910, 114. Sermo 30,2, em F. V e t te r, op. cit., n. 60c, p. 293. 11 Cf. Le livre des visions et instructions, Paris 1895, 84. 12 Id. 21. 13 Lateinische Werke, 3, 949. Os dados completos das citaç5es de Eckhart serão fornecidos mais adiante. 14 Deutsche Werke, 1, 220. 15 Subida ao monte Cannelo, livro I, cap. 4 16 Cf, A. Mercier, "Mystik und Vernunft", em Mustik und Wissenschaftlichkeit, 9-25. 17 La pesamteur et la grdce, Paris 1948, 41. 10
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continua presente no originário de cada criatura; ela permanentemente sai, pelo gesto criador de Deus, do nada, num processo que o místico capta porque se coloca dentro de Deus. Este caminho da busca da unidade com Deus é diverso do outro, do seguimento. A mística supõe, como o seguimento, a fé. Mas a fé do místico possui uma ressonância de experiência pessoal, de profundidade subjetiva e de vibração interior que não necessariamente está presente no seguimento. No seguimento pode persistir a fé sem a comoção; a fé é uma decisão da liberdade que se orienta preferentemente pelo comportamento ético. Em todos os homens religiosos há um componente de mística e de seguimento. Por isso dizíamos que eles se permeiam e, de forma alguma, se excluem. Em todos a fé jamais é pura objetividade da vontade; há também uma dimensão de interioridade, de sentido gratificante e de experiência de Deus. Deus jamais é somente ponto de referência para o seguimento. Jesus não é apenas um modelo e arquétipo de urna existência humana ideal à luz do desígnio do Eterno. Cristo possui uma imanência nas pessoas, seu Espírito continua a iluminar a existência, exatamente lá onde se faz noite. O místico, entretanto, vive absorvido nesta imanência de Deus cm todas as coisas ou das coisas em Deus. O mundo perde consistência definitiva e se transfigura em sinal de uma realidade divina inefável. O místico também conhece um árduo caminho ético e ascético. É condição de toda mística de encontro com o Uno. Só os puros verão a Deus. Mas eles não apenas vêem a Deus; saboreiam Seu advento na história, na alma, nos acontecimentos. O mundo está dependurado num ponto supremo. E este é Deus. Passemos agora ao Mestre Eckhart. Nele de certa forma se encontram os dois caminhos. A hegemonia, entretanto, possui a mística. Mas ela nunca se basta a si mesma. Ela conduz a um caminho de desprendimento e de perfeita liberdade que permite vislumbrar Deus em todas as coisas. Sua síntese de fé e de experiência, de reflexão e de intuição constitui uma das maiores expressões do cristianismo histórico. Dele muito temos de aprender.
� ���� �� ������ ������� A mística é uma resposta às crises do tempo. Havia condições materiais, religiosas, políticas e ideológicas que favoreciam a emergência da experiência mística. O tempo em que viveu o Mestre Eckhart é marcado por profundas rupturas. A grande síntese medieval entre ciência e fé, entre trono o altar, entre evangelho e história estava prestes a se dissolver. A luta renhida entre o Papado e a poderosa família imperial dos Staufer (especialmente Frederico II, 1212-1250) levou a enfraquecer profundamente estes dois poderes. Os Papas acabaram no exílio babilônico de Avignon (13091377). As catástrofes naturais impactaram os espíritos do tempo, como terremotos, enchentes, febre negra que introduziu na arte, pela primeira vez, o motivo da dança da morte. É o tempo do «outono da Idade Média» (Huizinga). A crise histórica se reflete no pensamento; impera o nominalismo: as palavras são meras palavras (nomina, flatus voeis) e não colhem a realidade das coisas. Os significantes ficam arbitrários ao sabor dos que dispõem de poder. Em situações assim de desorientação dos espíritos e de vacilação de todas as instâncias de referência e de legitimidade, faz-se sentir fortemente a necessidade de uma nova verdade. Ela deve possuir uma evidência em si mesma, para além das contendas religiosas e políticas. A ruptura é costurada e a desarmonia superada. A experiência religiosa imediata, o acesso direto à fonte da verdade, a Deus, constituem os conteúdos existenciais consistentes da mística. Ela não afasta Deus do processo histórico. Reintrodu-lo com novo vigor a ponto de ser experimentado. Esta mística já se notava na última fase do grande teólogo e místico franciscano S. Boaventura (t 1274). Nas místicas Matilde de Marburgo (t 1283) e Hadewijch (t 1260) ganha força poética e influencia significativamente os inumeráveis conventos femininos de Flandres, Alemanha e França. Os dominicanos doutos recebem o encargo pastoral de acompanhar estes conventos femininos (cura monialium). Dentre tantos aflora o mais genial dos místicos medievais, o mais
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especulativo e ousado da mística cristã, o Mestre Eckhart. Pouco sabemos de sua vida. 18 Sejam aqui elencadas algumas datas: 1260: nasceu em Hochheim perto de Gotha na Turíngia. Muito jovem ainda entrou para a Ordem dos Dominicanos que havia sido aprovada em 1216 pelo Papa Honório 1277: encontramos Eckhart estudando artes em Paris, o que incluía lógica, gramática, retórica, música, astrologia, geometria e aritmética. Aí certamente conheceu os famosos professores Siger de Brabant (1240-1280), grande aristotélico, e João Duns Scotus, sutil doutor franciscano. 1280: estuda Eckhart teologia no Studium Generale da Ordem dos Pregadores em Colônia. Aí é aluno do doutor universal, S. Alberto Magno, cientista, filósofo e teólogo aristotélico. 1293-1294: regressa a Paris para lecionar, como bacharel, as Sentenças de Pedro Lombardo (t 1160) que era o texto-base para os estudantes de teologia. 1294: é enviado ao convento de Erfurt como Prior e é nomeado vice-provincial (vigário) da província da Turíngia. 1302-1303: retorna a Paris para doutorar-se em teologia. É nomeado ordinário da faculdade como exegeta dos textos bíblicos. É o tempo em que começa a ser chamado de «Mestre» (Meister, Magister). 1303-1311: é provincial da Saxônia abrangendo todo o norte da Alemanha e Holanda, incluindo 47 conventos de frades e 9 de religiosas dominicanas. Assume uma função administrativa de grande envergadura com a fundação de novos conventos, com a direção espiritual dos irmãos e irmãs e com a condução de negócios e acertos com os mais distintos senhores feudais. 1310: no capítulo geral de Estrasburgo, Eckhart é eleito vigário-geral (substituto do superiorgeral dos Dominicanos) com especiais encargos de reforma para toda a Boêmia. Neste mesmo ano os confrades do sul da Alemanha, sabendo de sua habilidade e senso espiritual, o elegeram como seu Provincial (Província Teutônica). 1311: aguçam-se as rivalidades teológicas entre as duas grandes escolas em Paris, os franciscanos e os dominicanos. Eckhart é enviado a Paris para assumir a cátedra. Escreve a famosa obra Opus tripartitum e confecciona vários comentários bíblicos. Mais místico que polemista, Eckhart deixa Paris. 1314-1322: encontramo-lo em Estrasburgo como vigário do Geral da Ordem. Sua função principal reside na pastoral das religiosas conventuais e na direção espiritual. Em função disto viaja muito e prega amiúde ao povo, na língua alemã. 1323/1324: é enviado a Colônia como diretor do Studium Generale. Dedica-se ao ensino da teologia, à pregação ao povo e à produção intelectual. 1326: o arcebispo de Colônia, o franciscano Henrique II de Virneburg, inicia um processo inquisitorial contra o Mestre Eckhart por supostas doutrinas heréticas. Começa então, como sói acontecer com as instâncias doutrinais até os dias de hoje, um verdadeiro processo kafkiano acerca das várias sentenças do Mestre. A comissão designada pelo arcebispo elenca 120 proposições do Mestre Eckhart tiradas de seu livro Da divina consolação, das obras latinas e dos sermões em alemão. É verdade que Eckhart possui um estilo paradoxal e que suas pregações exigiam subtilidade em seus ouvintes. A linguagem dos místicos, como já consideramos anteriormente, não é aquela dos pregadores e dos teólogos; ela é evocadora de uma experiência que o povo fiel também faz, embora não tenha condições de articulá-la num discurso transmissível e universalizante. Eckhart protesta contra este procedimento de arrancar frases de toda uma imensa 18
Para a biografia de Mestre Eckhart, vejam-se os títulos mais significativos: J. K o c h, "Kritische Studien zum. Leben Meister Eckharts" (em duas partes), em Arehivum Fratrunz Praedieatorum, 29 (1959), 5-51; 30 (1960), 5-52. Id., "Zur Einführung", em Meister Eekhart der Frediger, Festschrift zum Eckhart-Gedenkjahr (Por Udo M. Nix e R.-L. Oechslin), Friburgo 1960, 1-24; J. Quin t, Meister Eelehart, Deutsche Predigten und Traktate, Munique 1959, 10-50; M. H. Lauren t, "Autour du proces de Maitre Eckhart. Les documents des Archives Vaticanas, doc. VIII", em Divus Thomas 39 (1986), 436-444; J. Ancelet-Hustache, Maitre Eckhart. Les traités, Paris 1971, 5-33; Freiheit and Gelassenheit. Meister Eckhart heute (coleção de estudos publicada por Udo Kern), Munique-Mainz 1980, 9-19.
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obra. Apela para o privilégio de isenção conseguido pelos dominicanos e franciscanos e pede para ser julgado pela Sé Apostólica ou pela Universidade de Paris. Antes porém de dirigir-se a Avignon onde estava o Papa, no dia 13 de fevereiro de 1327, diante de todo o povo faz uma profissão de ortodoxia: «Eu, Mestre Eckhart, doutor em sagrada teologia, protesto diante de todas as coisas, tomando a Deus como testemunha, que eu sempre reprovei todo erro sobre a fé e toda corrupção dos costumes, tanto quanto pude, já que tais erros seriam e são contrários à minha condição de mestre e contrários também à minha Ordem. Se, portanto, se encontrar alguma proposição errônea em fé e moral que eu tenha por acaso escrito, dito ou pregado, em privado ou em público, em qualquer tempo ou lugar, direta ou indiretamente, expondo uma doutrina menos sã e até falsa, então eu a revoco aqui explícita e publicamente diante de todos e de cada um dos que aqui estão presentes, como não escrita ou não dita.»19 Eckhart se dirige a Avignon com seu Provincial e mais três confrades professores de teologia. O processo continua em Avignon, agora reduzido a apenas a 28 proposições, suspeitas de heresia. Eckhart procurou explicar-se junto à comissão constituída para julgar sua doutrina. O efeito parece ter sido minguado porque o Papa João XXII no dia 27 de março de 1329 com a Constituição In agro dominico condenou 28 proposições do Mestre Eckhart. Os admiradores do grande místico cristão ainda hoje sofrem com as palavras duras do Papa na introdução do documento condenatório. Considera Eckhart um inimigo que semeia abrolhos na seara do Senhor (daí o título In agro dominico). Continua o texto: «Com dor comunicamos que, neste tempo, alguém das terras alemãs, Eckhart de nome, doutor e professor de Sagrada Escritura, da Ordem dos Pregadores, quis saber mais do que era necessário, em dissonância com a sensatez e com as diretrizes da fé, porque afastou seu ouvido da verdade e voltou-se às fabulações». 20 O texto final diz: «Nós... expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os livros e opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos ou alguns deles».21 A instituição religiosa assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos do controle, dificilmente, convive com a experiência dos místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que experimentaram o inefável do Mistério. Assim Eckhart ficou na história da espiritualidade como um caso exemplar de um eminente teólogo, depois de tantos anos de ensinamento e de edificação da fé junto ao povo, ter sido vítima da incompreensão curial. O Mestre Eckhart não assistiu à sua condenação. Em final de abril de 1328 morreu em Avignon. O documento papal o dá já como morto. Mas recorda que, por um instrumento público, Eckhart de antemão havia retratado todos os seus possíveis erros, submetendo-se pessoalmente e seus escritos ao melhor juízo da Sé Apostólica. Esta retratação antes da morte e da condenação pouco valeu para o destino da obra do grande Mestre. É verdade que teve grandes discípulos como Tauler (1300-1361) e Suso (1296-1366). Místicos como Ruysbroeck (1293-1381), os ingleses Juliana de Norwich, Walter Hilton e mais tarde Teresa d'Ávila e João da Cruz foram influenciados por ele. Mas sobre Eckhart desceu, por causa das condenações, um grande silêncio entre os católicos. Entretanto nunca morreram as intuições do Mestre. Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal, teólogo, diplomata, legado pontifício e prodigioso sábio, colecionou as obras de Eckhart. A sua Douta ignorância (1440) e a Apologia da douta ignorância (1449) estão explicitamente sob a influência do Mestre Eckhart. O próprio Hegel mostrava-se entusiasmado pelo pensamento dialético do grande místico. A partir do século XIX, com a descoberta dos manuscritos, mais e mais se foi refazendo a imagem de Eckhart. Hoje é venerado como um dos representantes mais dignos e autênticos da mística cristã da união com Deus e da imanência divina nas profundezas dos abismos humanos que Eckhart tão magistralmente conhecia. 19
Veja o texto segundo A. Demp f, Meister Eekhart, Friburgo 1960, 19. Veja a tradução de toda a bula papal, em J. Quin t, Meister Eekhart, 449-455, aqui 449. 21 As proposições condenadas se encontram também no Enehiridion Symbolorurn, Denzinger-Schänmetzer 1963, n. 950-980. 20
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� ���� ��������� �� ������ ������� Apesar de todos os seus afazeres, viagens e responsabilidades institucionais, Eckhart produziu, como outros tantos mestres medievais, uma vasta obra literária. A edição mais crítica começou em 1936 pela Sociedade Alemã de Investigações (Deutsche Forschungsgemeinschaft) e ainda está em curso.22 São duas grandes partes: a obra latina e a obra alemã. A obra latina já foi concluída, com extremo rigor e minuciosidade. Destacamos os títulos principais: Prologi in Opus tripartitum. Coma o nome diz a Obra tríplice se desmembrava num (1) Opus propositionum que deveria encerrar mil questões. Conhecemos o desenvolvimento apenas do prólogo e da questão, extremamente profunda, Esse est Deus. Em seguida (2) viria o Opus quaestionum: deveria ser uma espécie de Suma Teológica à semelhança daquela de S. Tomás de Aquino. Não se encontrou nenhum manuscrito. Por fim (3) o Opus expositionum, que encerra as grandes exposições do Mestre sobre o Gênese, o Êxodo, o Livro da Sabedoria e sobre o Evangelho de São João. Dentro desta parte existe ainda um interessante comentário ao pai-nosso e o esquema de vários sermões latinos. Collatio in libros Sapientiarum e Quaestiones parisienses são textos acadêmicos; guardam interesse porque mostram como Eckhart, mesmo nas questões clássicas, é original e já prenuncia suas intuições básicas. Em latim se publicam ainda Acta et regesta vitam magistri Echardi illustrantia bem como o Processus contra magistrum Echardum. A edição das obras em alemão é extremamente dificultosa por razões críticas. Publicaram-se já 86 sermões (Meister Eckharts Predigten em três volumes por J. Quint) e os Tratados (Meister Eckharts Traktate) que serão apresentados par nós em tradução portuguesa pela primeira vez em nossa história lingüística: Das Buch der göttlichen Tröstung: O livro da divina consolação. Von dem edlen Menschen: Do homem nobre. Die Reden der Unterweisung: Palestras de instrução, conversações espirituais. Von Abgeschiedenheit: Do desprendimento e da disponibilidade. Existem ainda algumas legendas sobre o Mestre que apresentaremos também em tradução (Eckhart-Legenden). Lendo-se a produção alemã do Mestre Eckhart destinada preferentemente ao povo ficamos pasmados pelas exigências espirituais e intelectuais que fazia a seus ouvintes. Podemos até compreender as apreensões das autoridades eclesiásticas. Poderiam os simples fiéis captar a mensagem tão profunda de um mestre espiritual tão mergulhado no mistério da unidade de Deus? Aos críticos responde: «Que posso fazer se alguém não me entende?... A mim me basta que em mim e em Deus seja verdadeiro o que digo e escrevo».23 No final do livro da divina consolação responde: «Dir-se-á que não se deve falar ou escrever sobre doutrinas profundas para os iletrados. A isso digo: se não é lícito instruir os iletrados, nunca ninguém se fará letrado, e já não haverá quem possa ensinar ou escrever. Com efeito, é por isso que se cuida de instruir os iletrados: para que, de iletrados, se tornem letrados. Se nada houvesse de novo, nada ficaria velho».24 Outra vez tranqüilizava os fiéis com estas sábias palavras: «Quem não entender este discurso, não se preocupe em seu coração. Enquanto o homem não estiver à altura desta verdade, não entenderá o discurso. Mas não deixa de ser uma verdade desvelada que veio imediatamente do coração de Deus».25 22
Veja a edição critica: Die lateinisehen Werke, publicada por Konrad Weiss, Josef Koch, Karl Christ, Bruno Decker, Ernst Benz, Bernhard Geyer, Erich Seeber, Heribert Fischer, Verlag W. Kohlhammer, Stuttgart 1936s. Seguem-se as Die deutschen Werke publicadas e traduzidas do alemão arcaico por Josef Quint. 23 Veja o texto na tradução portuguesa mais adiante: Da divina consolação. 24 Id., ibid. 25 Cf. o sermão 32 da edição de J. Quin t, Meister Eckhart, deutsche Predigten und Traktate, 309.
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Seu intuitus mysticus o fazia entender que as profundezas da alma são habitadas pela Palavra de Deus. Esta nasce sempre de novo na alma dos seres humanos desde que estes criem o espaço interior suficiente e se coloquem na plena disponibilidade. Com isso já entramos a expor, sucinta-mente, alguns lampejos da mística do Mestre Eckhart.26
� ������� ����������� �� ������� � � �������� �� ������� Provavelmente nenhum místico cristão expressou a experiência de unidade de tudo com tudo e com Deus de forma mais persistente do que o Mestre Eckhart. Evidentemente ele articula esta questão básica dentro do horizonte cristão, particularmente do dogma trinitário. Mas lhe dá urna versão personalíssima que o tornou famoso até os dias de hoje. Antes de mais nada existe nele uma experiência-choque inaugural: a semelhança que as coisas possuem entre si. Assim, por exemplo, a grande maioria dos homens se admira — para ficar dentro de um exemplo citado pelo próprio Mestre — que uma hastezinha de erva seja tão diferente da outra. Eckhart não vê assim. Para ele, maior admiração ainda é o fato de as coisas serem tão semelhantes: «Em sua suprema pureza todas as hastezinhas são um, como também são um todas as coisas».27 Esta unidade de todas as coisas radica na unidade de Deus. Que seja um, constitui, para o Mestre, a suprema e última realidade de Deus. É mais fundamental que o ser, a bondade, a justiça e o amor. «Bondade e justiça são um vestido que envolve Deus. Tirem de Deus tudo o que o reveste, e tomem-no puro em suas roupas íntimas (Kleider-kammer), quando Ele, descoberto e desnudo, está em si mesmo»28; aí está Deus COMO um e unidade. «Que Deus seja um, isto é a divindade completa de Deus... Se assim não fora, Deus não seria Deus... Todo número depende do um, mas o um não depende de ninguém».29 Assim é Deus. A luz desta intuição podia também escrever numa homilia: «Deus não está em nenhum lugar. O menor de Deus repleta todas as criaturas e sua grandeza não se encontra em nenhum lugar» 30 porque Ele é a unidade de tudo e de todos os lugares. Tudo dimana deste um. «Ele é a riqueza em profusão porque é um. Ele é o primeiro e o supremo porque é um. Por isso o Um penetra todas e cada uma das coisas e permanece um, unificando o separado. Por isso é que seis não são duas vezes três, mais seis vezes um. »31 Que é afinal este Um? O Mestre Eckhart responde dentro de uma difícil especulação: «Um significa aquilo ao qual não se pode acrescentar nada... Um é a negação da negação. Todas as criaturas carregam uma negação em si; uma nega a outra. Um anjo tem em si uma negação pelo fato de não poder ser o outro anjo. Deus, porém, é a negação da negação. Ele é um e nega todos os outros, pois nada existe fora de Deus. Todas as criaturas são em Deus e são sua própria divindade e 26
Elencamos alguns dos principais títulos que orientam sobre o pensamento e a mística de Mestre Eckhart: T. Schalle r, "Die MeisterEckhart-Forschung bis zur Gegenwart", em FZPhTh, 15 (1968), 262-316; Id., "Zur Eckhart-Deutung der letzten 30 Jahre", em FZPh,Th, 16 (1969), 22-39; T. Degenhar t, Studien ZUM Wandel des Eckhctrtbildes, Leiden 1967; W. M. F u e s, Mystik ais Erkenntnis? Kritische Studien ,tzur Meister-Eckhart-Forschung, Bonn 1978; H. Fischer, Meister Eckhart: Einführung in sein philosophisches Denken, Friburgo-Munique 1974; U. Kern (e outros), Gesprdch mit Meister Eckhort, Berlin 1982; Id. (e outros), Frei heit und Gelassenheit. Meister Eckhart heute, Mainz-Munique 1980; A. H a a s, Meister Eckhart als normative Gestalt geistigen Lebens, Einsiedeln 1979; D. Miet h, Die Einheit volt vita activa wnd vita contemplativa in den deutschen Predigten mui Traktaten Meister Eckharts und bei Johannes Tauler, Regensburg 1969; W. Bõhme (e outros), Meister Eckhart heute, Karlsruhe 1980; E. Soude k, Meister Eckhart, Stuttgart 1973; B. Welt e, Meister Eckhart. Gedanken zu seinen Gedanken, Friburgo 1979; J. Kop e r, Die Metaphysik Meister Eckharts, Saarbrücken 1955; H. H o f, Scintilkt animae. Eine Studie zu einem Grundbegriff im Meister Eckharts Philosophie, Lund-Bonn 1952; U. K e r n, "Meister Eckhart", em Theologische Realenzykloplldie, vol. 8, Berlin-N. York 1982, 258-264; K. F. K e 11 e y, Meister Eckhart crn Divine Knowledge, New Haven 1977; J. Ancelet-Hustache, Maitre Eckhart et kt mystique rhénane (Maitres srdrituels, 7), Paris 1956; J. A. Bize t, Mystigues allerno/ruis da XIV. siècle, Aubier-Montaigne 1957; Vários, La mystique rhénane, Paris 1963; V. Lossk y, Théologie négative et cannaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris 1960. 27 Deutsche Werke I, Predigt 22, 519; abreviaremos por DW. 28 DW II, Predigt 40, 687. 29 DW I, Predigt 21, 515. 30 DW II, Predigt 35, 668. 31 Lateinisehe Werke IV, Sermo 29, 266; abreviaremos por LW.
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isto significa a plenitude».32 Dizer que Deus é a negação da negação é dizer que Deus é pura afirmação, que Ele é só positividade sem padecer qualquer tipo de limitação. Portanto, Deus não é como a criatura que está num lugar e não pode ocupar simultaneamente todos os lugares. Onde está uma criatura não poderá estar a outra. Deus nega esta negação, porque Ele e somente Ele pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo: «Deus está todo inteiro em cada criatura, em cada uma como em todas».33 Se Deus é assim tão um a ponto de se encontrar na intimidade de cada ser, como é possível então que haja outros seres ao lado dele? Como se passa do Uno para o múltiplo? É possível pensar a Trindade como co-existência do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sendo um só Deus? Eckhart responde que é possível porque esta unidade é radicalmente dinâmica e desbordante de si mesma. Não é apenas uma unidade exclusiva só de Deus (puritas essendi) mas também uma unidade inclusiva em todos os demais seres (plenitudo essendi). Aqui G Mestre pensa a realidade de Deus em termos de espontaneidade vital, de um viver.34 Define assim a vida como um viver: «A vida significa uma espécie de fervilhamento (exseritionem) no qual uma coisa fermenta e se derrama primeiramente sobre si mesma, efundindo tudo o que ela é naquilo que ela é, antes de desaguar e espalhar para fora. É por este motivo que a emanação das Pessoas em Deus é a razão e o preâmbulo da criação. »35 Deus é fundamentalmente vida; como dizia já Aristóteles, «o Vivente eterno perfeito»36, o «princípio sem princípio», pois tudo o que vive, em sentido estrito, não recebe o princípio de sua atividade do exterior; possui-o em si mesmo. A Deus somente cabe em sentido pleno a vida e o viver.37 Viver é jorrar livremente, sem necessidade de responder por que (quare). «Você pode perguntar durante mil anos à vida: por que vive? E ela responderá sempre: vivo porque vivo, vivo por viver. A razão é que a vida tira sua vida de seu próprio fundo e jorra de seu próprio ser. É por isso que ela vive sem perguntar o porquê, pois que ela vive em si mesma».38 Assim é Deus vivo. Para expressar esta dinâmica imanente à vida e ao Uno, o Mestre Eckhart usa as expressões bullitio e ebullitio, bulição e ebulição.39 Deus é um processus sine variatione (um processo sem variação) que está constantemente em bulição e ebulição, fermentando e extravasando. «É necessário que alguma coisa bula (do verbo bulir) totalmente em si mesma para que seja plenamente perfeita e na ebulição seja mais que perfeita».40 A bulição (bullitio) significa o processo vital da processão das três divinas Pessoas e a ebulição (ebullitio), a ação da SS. Trindade considerada para fora em razão das criaturas. Todo este processo revela a passagem do Uno para o múltiplo sem ferir o Uno. Antes, de sua riqueza fervilhante tudo jorra e se expande. Eckhart reserva a palavra divindade (Gottheit) para Deus nesta absoluta unidade. E usa a palavra Deus (Gott) para o processo trinitário e criacional. No fervilhar da unidade eclode a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que, entretanto, não rompe a unidade porque a natureza divina permanece sempre una e única. Por isso deve-se falar em Unitrindade. O Pai se desdobra no Filho e o Filho retorna para o Pai. Mas para que os dois sejam um, é aspirado o Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho como o nexo e o vínculo entre ambos. No processo de geração do Filho, sua imagem absoluta, o Pai gera igualmente todos os demais seres. «Tudo Deus gerou em seu Filho Unigênito e faz com que nós sejamos o mesmo Filho».41 Todos são filhos no Filho, gerados nele, com ele e para ele. «Devemos ser um só Filho que o Pai gerou eternamente. Quando o Pai gerou todas as criaturas, gerou-me a mim e eu emanei
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DW I, Predigt 21, 514. LW II, 247-248: In Eccli. n. 19-20. 34 Para toda esta questão veja V. Losski, Théologie négative et connaissance de Dica chez Maitre Eckhart, Paris 1960, 114s; 350-358. 35 LW II, 22: Exp. in Ex. 36 Metaph. XII, 1072b, 26-30. 37 LW III, 51, n. 62: Exp. in Jo. 38 DW I, 91-92: Predigt 5. 39 Para esta questão veja M. de Gandilla c, "La 'dialectique' de Maitre Eckhart", em La mystigue rhénane, 75-77, e em V. Lossk y, Théologie négative, 117-120; cf. também 102-103; 366-367. 40 LW IV, 428: Sermo 49, 3. 41 DW II, 651: Predigt 28. 33
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com todas as criaturas e permaneci apesar disto dentro do Pai. »42 Para entendermos estas expressões arrojadas que, assim como soam, conflitam com a doutrina trinitária, precisamos compreender a relação entre Deus e as idéias eternas. Todas as criaturas são, primeiramente, idéias eternas na inteligência do Pai. Nele elas existem como protótipos. Como tais não se distinguem da natureza de Deus, pois em Deus não há separação alguma, entre essência e existência, entre pensamento e realidade. Em Deus tudo é divino, quer dizer, tudo é Deus. Nós existimos como idéias eternamente pensadas e amadas de Deus. Somos eternos pela eternidade de Deus. Mestre Eckhart vê a realidade, não do lado de fora, como algo histórico e consistente em si mesmo. Ele não nega esta dimensão. Mas se detém na consideração da realidade enquanto idéia de Deus e em Deus e como realização de um desígnio divino. Por isso cada ser é eterno, infinito, divino e uno como Deus. Comentando o prólogo do evangelho de S. João («no princípio») Eckhart diz: «Com esta palavra nos é dado compreender que nós somos um único Filho que o Pai gerou eternamente da escondida escuridão da eterna escondidade, mas permanecendo no primeiro princípio da primeira pureza que lá é a plenitude única de toda a pureza. Aqui eu descansei e dormi eternamente no secreto conhecimento do Pai eterno, ficando dentro e não sendo ainda proferido. Desta pureza ele me gerou eternamente como o seu Filho unigênito, na imagem de sua eterna paternidade, para que eu seja Pai e gere aquele do qual eu fui gerado». 43 Em outras palavras: Nós somos gerados junto com o Filho Unigênito, como idéias eternas do Pai no Filho. Nós e o Filho eterno, ao nível íntimo do processo trinitário, não constituímos realidades diferentes. Aí tudo é Deus. Se o Pai gera o Filho é porque de certa forma quer ser gerado (correspondido) pelo Filho (e por nós que estamos, eternamente, dentro da Filho). Eckhart oferece uma analogia sugestiva: é como o grito dado na montanha que gera o seu eco. Quando grito: quem está lá? ouço em eco a mesma pergunta: quem está lá? Ao gritar: venha para fora! escuto o eco gritando a mesma coisa: venha para fora! Assim é Deus com o Filho.44 «No mesmo movimento em que o Pai gera o seu Filho Unigênito em mim, gero-o eu de volta para dentro do Pai».45 Como já asseveramos: tais afirmações só se deixam entender, se nos colocarmos dentro do processo trinitário onde tudo é Deus, apesar das distinções de Pessoas. Também as idéias eternas (e cada um representa uma idéia eterna) são essencialmente Deus. Todas as coisas, portanto, possuem duas faces: uma voltada para Deus e outra voltada para o mundo. A voltada para Deus nos faz ver tudo eterno e infinito como Deus mesmo. A voltada para o mundo nos faz contemplar tudo como criado e temporal, distinto de Deus. A mística de Eckhart se concentra na contemplação das coisas enquanto estão eternamente em Deus. Ele vê as coisas temporais e nossa própria filiação enquanto são idéias e protótipos eternos em Deus. Para ele isto não constitui mera especulação. Os sermões mostram que tal consideração funda uma mística ardente expressa num vocabulário inovador e contagiante da experiência vivida pelo Mestre. Certa feita perguntaram a Eckhart se ele era eterna-mente filho em Deus. Ao que ele respondeu: sim e não. Sim enquanto o Pai eternamente me gerou; não enquanto não sou o Unigênito.46 Cada criatura carrega dentro de si a idéia de Deus (Urbild). Eckhart denomina a isso de chama, centelha (Funke, Fünklein).47 Esta chama não se perde nem pode ser total-mente destruída. Só pode ser coberta. Qual é a natureza desta chama? Há uma discussão interminável sobre este tema, dadas as variações de vocabulário do Mestre. Num texto famoso diz: «A chamazinha é tão aparentada com Deus (Gottverwandt) que se constitui um Uno só, sem distinção (ein einiges Eines, unterschiedslos)».48 Se tomarmos a sério a perspectiva de Eckhart de considerar todas as criaturas 42
DW I, 517: Predigt 22. Id.. 518. 44 Id., 519. 45 Id., ibid. 46 DW I, 518: Predigt 22. 47 Veja a obra já citada de H. H o f, Scintilla Aninute, esp. 161-220. 48 DW I, 518: Predigt 22. 43
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enquanto idéias de Deus e realidades dentro do próprio Deus, então é possível compreender a «chama» dentro de uma perspectiva ortodoxa. Não se deve considerá-la como algo da criação, mas como algo estritamente teológico, quer dizer, visto a partir da natureza do próprio Deus, antes ainda da criação quando tudo era desígnio eterno. Nesta mesma linha devem ser entendidas frases como esta do Mestre Eckhart: «Entre o homem e Deus não existe só nenhuma diferença, como também nenhuma pluralidade, não existe senão a unidade». 49 Em termos de criação, tal afirmação é incorreta; em termos de eternidade, nas idéias de Deus (que são o próprio Deus), pode ser corretamente interpretada. O famoso tema da «geração de Deus na alma» (Gottesgeburt in der Seele) pode ser interpretado dentro desta mística teológica. O Pai gera eternamente o Filho com igual natureza. O Filho é a Imagem eterna e infinita do Pai. Mas Deus em seu amor gera o Filho dentro da alma porque quer colocar aí perfeição, luz e graça. Na alma o Pai gera sua Imagem eterna e em nós surge também esta imagem. No sermão 40, Mestre Eckhart explica melhor este processo: «Quando o homem libera e põe a descoberto a Luz divina que Deus por sua natureza criou nele, então se revela a Imagem de Deus nele. Ao nascer se conhece a revelação de Deus. Dizer que o Filho nasceu do Pai significa que o Pai, em forma paterna, revela seu Mistério a ele. Por isso: quanto mais e com maior claridade o homem põe a descoberto a imagem de Deus, com tanto mais claridade Deus nasce nele. O nascer de Deus se entende assim: o Pai põe a descoberto a Imagem e brilha no homem».50 Quanto mais o homem revela a imagem de Deus que está nele, tanto mais se assemelha a Deus, e quanto mais se assemelha tanto mais é unido a ele (mit ihm vereint).51 Que processo se deve percorrer para que o nascimento de Deus na alma aconteça? Eckhart desenvolveu um caminho que chamou de Abgeschiedenheit, da perfeita liberdade, da plena disponibilidade e do total desprendimento.
� ����� �������������� � � �������� ��������� ���� �������� � ������� Abgeschiedenheit, palavra cunhada por Mestre Eckhart, é de difícil tradução (em francês détachement, em inglês detachment ou desinterest). A palavra está em conexão com disponibilidade plena, com liberdade de e para, com desprendimento, pobreza, despreocupação, esvaziamento de si, perfeito equilíbrio interior. As descrições que Eckhart faz da Abgeschiedenheit nos revelam as distintas significações.52 Todas as significações não visam a si mesmas, senão abrir o homem à presença de Deus em todas as situações e estar em união com ele. Primeiramente se trata de uma atitude fundamental. Atitude de total abertura para o que der e vier, de libertação de imagens, de fixações e libertação para o que se antolhar à pessoa em cada momento. Para desenvolver esta atitude o homem deve esvaziar-se totalmente no querer, no saber e no ter. Particularmente não deve querer nada, porque enquanto quer isto ou aquilo não é livre nem disponível para o que se apresentar. «É querer simplesmente ser». 53 Deve ser tão pobre e vazio que não deve se perturbar na busca e no encontro com Deus. Enquanto busca Deus assim, não é ainda libertado, porque na verdade está buscando a si mesmo ou algo para si mesmo. Deve ser, por isso, «despreocupado face ao amor e à dor, honra, vergonha e ofensa». 54 A montanha dá-nos o melhor exemplo pois permanece inalterável face ao vento e às intempéries. Assim é Deus porquanto tudo ama e tudo suporta. 49
DW II, 687. Cf. K. W eis s, "Meister Eckhart der Mystiker. Bemerkungen zur Eigenart der Eckhartschen Mystik", em Freiheit und Gelassenheit, 103-120. 50 DW II, 687-688. 51 Id.,. ibid. 52 B. Welt e, Meister Eekhart. Gedanken zu seinen Gedanken, Friburgo 1979, 31-56. Conceito próximo à Abgeschiedenheit de Eckhart é aquele da Gelassenheit de M. Heidegger (Pfullingen 1959) ou aquele da Epoehé de E, Husserl (ldeen za einer reinen Phi4nomenologie, I. Buch, Haag 1950, § 31, 63s). Veja também J. D. Caput o, "Meister Eckhart und the later Heidegger", em The Jaurnal of the History of Philosophy, 12 (1974), 479-494; 13 (1975), 61-80. 53 DW V, 540: "Sie will nicht s anders als sein". 54 DW V, 540.
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Devemos ser como o sol. Para uns faz bem, para o olho doente faz mal. O sol não muda num caso e no outro. Os homens são os que mudam. Ou devemos ser como o fogo do fogão. Ele permanece sempre igual. As coisas que cozinhamos mudam porque a água exige um grau de calor, o pão outro e a carne outro. As coisas ficam bem ou mal cozidas ou se queimam. Não é que o fogo mudou; as coisas é que são diferentes e mudam. Esta atitude se apóia sobre um puro nada.55 Enquanto tivermos alguma coisa dentro de nós, ainda não somos totalmente disponíveis nem totalmente livres. Para Eckhart enquanto não nos libertarmos das imagens de Deus, de querer reservar um lugar para Deus no coração, Deus não pode estar plenamente em nós. Só a autêntica e radical pobreza (eigentlichste Armut) permite que Deus mesmo seja o lugar onde age Ele na alma. Para situar-se nesta suprema disponibilidade para Deus, a pessoa não deve assentar-se em nada a não ser num puro nada. Somente então é pura receptividade. Quando alguém é tão livre que tudo acolhe, na maior pureza, entrega e disponibilidade, este é o homem verdadeiramente edel (nobre, grande, realizado). «Estar vazio de toda criatura, é estar cheio de Deus. E estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus.» 56 Mais adiante assevera o Mestre: «Na máxima disponibilidade (desprendimento) o conhecimento é sem conhecimento, o amor sem amor e a luz escuridão... Pobres de espírito são aqueles que entregaram todas as coisas a Deus, assim como Ele as possuía quando ainda não éramos.»57 Quem se encontra nesta máxima disponibilidade se encontra também na suprema felicidade. Esta atitude — Abgeschiedenheit — leva a fazer diferentemente a oração. A oração não é perfeita e a pessoa não está na plena disponibilidade enquanto ainda pede e suplica isto ou aquilo a Deus ou pede para tirar ou conceder. A perfeita oração não pede nada nem espera nada. Dispõe-se a receber tudo. Está de tal maneira em Deus que tudo o que vier é bem-vindo. Nesta liberdade somos ricos de tudo porque estamos abertos a tudo. Quando alguém alcançou esta atitude, liberta realmente o que esconde dentro de si: a chamazinha de Deus, colocada no fundo do espírito. Ela quer subir, chegar ao alto, ao coração de Deus. Esta semente germina em cada coração. O coração pode fazer-se terra estéril, cheia de espinhos e abro-lhos; mas apesar disto guarda dentro de si um tesouro precioso, a semente de Deus que sempre pode brotar. As preocupações e o apego às coisas do interesse terreno são como que entulhos que lançamos sobre esta fonte interior. Eles encobrem a fonte, mas não podem extingui-la. Ela pode um dia jorrar. O desafio proposto à vida é viver de tal maneira desprendido e livre que facilitemos a fonte irromper e transformar-se num manancial de águas vivas. Então Deus nasce de novo dentro da alma.58 Façamos o que o escultor faz com a madeira. Ele não introjeta uma estátua nela. Ele tira a estátua da madeira. Assim deve proceder o homem: ele guarda dentro de si Deus; conserva em sua alma a Imagem de Deus e a filiação divina; pela disponibilidade total vai liberando Deus das profundezas do coração para a plena luz do dia.
���������� � �������� ��������������� O empecilho mais fatal no caminho para a perfeita liberdade (Abgeschiedenheit) é o apego à própria vontade. Ela se manifesta, diz Mestre Eckhart, em frases como estas: «Eu gostaria de ser tão bom e estar em paz com Deus como o estão tantos outros... Gostaria de ser feliz e bem sucedido como o são tantos outros... Eu iria bem se fizesse isso ou aquilo, se fosse a tal e tal lugar, vivesse no mundo ou entrasse num convento».59 Leda ilusão. Adverte-nos o Mestre: «Nisso tudo está 55
DW V, 544: "Sie steht auf einen reinen Nichts"; cf. Shizuteru U e d a, "Das 'Nichts' bei Meister Eckhart und im Zen-Buddhismus, unter besonderer Berücksichtigung des Grenzbereichs von Theologie und Philosophie", em Transzendenz und Immanenz (hrsg. von D. Papenfuss und J. Sõring) , Stuttgart 1978; M. Nambar a, 'Die Idee des absoluten Nichts in der detuschen Mystik und ihre Entsprechung im Buddhismus", em Archiv für Begriffsgeschichte, vol. 6, Bonn 1960. 56 DW V, 542. 57 DW V. 545. 58 DW V, 501. 59 DW V. 506.
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apenas o teu eu e nada mais».60 De pouco vale fugir ou trocar de situação. O teu eu sempre te acompanha. Quem, porém, deixar a si mesmo, este deixou verdadeiramente tudo: «Se um homem deixou um reino ou mesmo todas as coisas e se não tiver deixado a si mesmo, não terá, na verdade, deixado nada. Se deixar a si mesmo, embora fique na honra e na riqueza ou continue a possuir o que quer que seja, o homem deixou efetivamente tudo».61 Outros, diz Eckhart, se afastam dos homens, procuram viver em paz, buscam a religião. Isso é melhor? O Mestre responde: Eu digo que não! E oferece as razões: quem está bem, este ficará assim em qualquer parte. Quem possui Deus, este O possui em qualquer parte, seja na rua, na igreja, no convento ou no deserto.62 O que importa é apreender Deus em todas as coisas, pouco interessando se estamos bem ou mal, no meio da multidão ou na solidão, na igreja ou bordando. O decisivo é agarrar Deus em tudo e sempre. Não quer isto significar que tudo seja igual. Rezar, certamente, é mais importante que bordar. Porém mais importante de tudo o mais é possuir a mesma disposição, o mesmo amor, a mesma seriedade em tudo o que fazemos. Com razão dizia o Mestre que devemos cuidar com o mesmo respeito os vasos sagrados como a vassoura de limpeza da casa. O obstáculo verdadeiramente temível é o apego ao próprio projeto, na linguagem espiritual, à própria vontade. «Nada faz mais verdadeiro o homem do que a renúncia da própria vontade. Sem esta renúncia em todas as coisas, não fazemos nada diante de Deus». 63 Quem aprendeu a renunciar a tudo, a seus desejos, a seus projetos, às imagens que povoam seu espirito, somente este se encontra em plena liberdade e total disponibilidade. Este é invencível e realmente grande (edel).
����� ���� � �������� ��������������� Já referimos a primeira e fundamental condição: renunciar à própria vontade. Quem a realiza e reza uma ave-maria, vale mais do que rezar mil vezes todo o saltério.64 Mestre Eckhart chama a isto também de obediência verdadeira.65 Em seguida importa antes ser bom do que fazer boas obras. «A gente não precisa pensar tanto no que deve fazer; deve-se antes pensar no que se deve ser. Se alguém é bom, também boas serão suas obras; se alguém é justo, justas serão também suas obras... As obras não nos santificam. Nós é que santificamos as obras».66 Basear-se no ser e não no ter: eis o que nos garante estar em Deus. Possuir Deus ou estar em Deus não significa ter algo. Consiste em estar de tal forma unido a Deus que nem se precisa pensar nele. «O homem não deve se contentar com um Deus pensado, pois quando o pensamento passa, passa também Deus. Deve-se antes possuir um Deus essencial que de muito ultrapassa os pensamentos dos homens e a todas as criaturas. Este Deus não passa». 67 Conseguiremos esta atitude de permanente unidade com Deus quando procurarmos fazer tudo o que fazemos com verdade, com correção, com desprendimento e total empenho. Quem vive assim, encontra Deus como Deus é, vale dizer, presente em todas as coisas. As coisas se tornam transparentes e a imagem de Deus nelas começa a tornar-se visível.68 Chega-se à perfeita disponibilidade pelo desejo incessante e insaciável de Deus. Mas não se trata de um desejo de posse, pois isto constituiria um obstáculo porque colocaria o eu e não Deus no centro. Trata-se de uma busca de Deus que deixe Deus ser Deus (Deus essencial na terminologia de Eckhart). Ela deve ser adequada à natureza de Deus; por isso deve ser uma sede insaciável. 60
60. Id., ibid. Cf. R. Sehürmann, "Maitre Eckhart expert en itinéraire", em vie spirituelle, 1971, 20-35. DW V, 507. 62 DW V, 508-509. 63 DW V, 516. Cf. H. P i esc h, Meister Eekharts Ethik, Luzerna 1935, 64 Id., ibid. 65 DW V, 505. 66 DW V, 508. 67 DW V, 510. 68 Id., ibid. 61
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Onde quer que vamos, o que pensarmos e fizermos, a sede nos acompanha. Quanto maior a sede tanto maior o desejo da água. Assim deve ser nossa busca do Deus essencial.69 Eckhart nos faz uma advertência séria: para se chegar a esta atitude precisa-se de diligência e dedicação, uma exata consideração da interioridade humana e um conhecimento crítico, verdadeiro e real das paixões concernentes às coisas e às pessoas. Isso ninguém aprende fugindo, esquivandose das coisas e buscando uma solidão fácil. Ele precisa aprender a solidão interna, onde quer que esteja. Precisa aprender a atravessar (durchbrechen) as coisas e apreender Deus dentro, delas. É como o aprendizado da escrita. No início custa terrivelmente. Cada letra exige um esforço inaudito. A pessoa precisa de dedicação para apropriar-se de cada letra. Mas quando domina a arte, nem precisa mais pensar. Basta-lhe apenas que saiba que sabe escrever. Assim deve o homem estar tão possuído pela presença de Deus e fazer tudo aos olhos dele que nem precisa fazer esforço para saber-se em sua presença. Está em Deus essencial de forma essencial.70 O ideal de Mestre Eckhart vem expresso magistralmente no fim de seu pequeno tratado do Homem nobre: «Um com o Uno, um do Uno, um no Uno e no Uno Um para sempre.
Amém». 71
������ ������� � � ������� �� ���������� A mística do mestre alemão não se caracteriza por divinas audições, revelações celestes e arroubos extáticos. Tais fenômenos podem ocorrer. São testemunhados pela tradição mística espanhola e italiana. Os grandes místicos como São João da Cruz e Santa Teresa d'Ávila advertem sempre sobre o caráter despistador de tais ocorrências. Elas são dons gratuitos mas não critérios da verdade mística. Em Eckhart se nos apresenta a fé e a agudeza do pensamento, a força do desejo e a intensidade da busca como caminhos de encontro e união com Deus. Destarte o caminho místico não aparece como privilégio de alguns mas como caminho possível a todos. Não o extraordinário, mas o ordinário constitui o lugar do encontro com o Absoluto. Queremos interrogar a Mestre Eckhart em que medida sua experiência de Deus nos ajuda em nossa busca de um Deus vivo no interior de nossa situação histórica. Sentimos a urgência de uma mística que irrompa da ação e do processo de libertação dos oprimidos. Eckhart foi um homem de ação. Como superior religioso durante muitos anos teve que caminhar milhares de km desde o norte da Holanda até Praga.72 Foi missionário popular altamente apreciado pelo povo. Utilizou a língua vernácula, o alemão do povo humilde; foi um dos criadores, quatro séculos antes de Lutero, da prosa alemã. Aprendeu a concentrar-se e a buscar Deus no coração dos afazeres deste mundo. Em todos os seus escritos volta sempre de novo a idéia: não fugir, não esconder-se, não ceder à vontade de solidão, mas assumir a vida, acolher as injunções mais adversas, conservar-se sempre soberano e livre face a qualquer situação. Desenvolveu um caminho de grande liberdade e de profunda libertação que nos inspira ainda hoje em nosso afã por um rosto de Deus libertador.73 A mística em si mesma é libertadora. Ela rompe com os esquemas montados pela vontade de poder e de organização, seja da religião, seja da sociedade O místico, por natureza, é um criador e não um mero reprodutor do capital religioso. Em razão disto, todo místico padece as suspeitas e os controles das instituições porque a legitimidade de sua experiência não provém dos critérios estabelecidos mas pela verdade intrínseca do que experimenta e testemunha. O místico invoca Deus e não as autoridades religiosas como o garante de sua verdade. Em Eckhart encontramos amiúde este expediente. 69
Id. ibid. Cf. E. 13 e n z, "Mystik als Seinerfüllung bei Meister Eckhart", em Sinn und Seta. Etin philosophisches Symposion (hrsg. von R. Wisser), Tübingen 1960, 399-415. 70 DW V. 510. 71 DW V, 504. 72 R. Schürmann, Maitre Eckhart ou /a joie errante, Paris 1972; cf. também H. Weber, "Mystique parce que théologien: Maitre Eckhart", em La vie spirituelle 62 (1982), 730-744. 73 Para este tema veja os estudos reunidos por E. Bonn1 n, Espiritualidad y liberación en América Latina, DEI, Costa Rica 1982; veja também todo o número da Revista Eclesiástica Brasileira de dezembro de 1980 dedicado à espiritualidade de libertação.
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O místico desmascara toda ilusão e alienação. É aqui que sua prática possui relevância política. Thomas Merton em sua última palestra no Oriente — Marxismo e perspectivas monásticas74 — o enfatizou vigorosamente. Existe significativa literatura que identificou a relação da mística de Eckhart com a política e até com a revolução de cunho popular.75 Evidentemente importa evitar extrapolações antihistóricas. A consciência histórica possível a seu tempo permitiu a Eckhart elaborar a temática dentro do registro religioso e não daquele especificamente político. Por outra parte, a totalidade da vida, também a dimensão mística, se encontra articulada com a infra-estrutura da vida; entronca-se com as forças sociais e recolhe as aspirações mais manifestas do povo. A mística, par mais que irrompa para cima, não perde as raízes de baixo. Pelo contrário: pelo fato de enraizar-se profundamente no interior dos desejos de toda uma geração ela se torna significativa e ergue seu vôo para o alto. O tempo de Eckhart é caracterizado por grandes conflitos na sociedade e na Igreja ensejando movimentos populares de reforma de cunho pauperista e de forte crítica às instituições, manejando uma retórica contra o dinheiro e os abusos do poder dos príncipes e hierarcas.76 A própria utilização da linguagem popular por parte de Eckhart significava um fato político; tomava o partido dos humildes abandonados social e religiosamente. A sua vigorosa teologia negativa tem conseqüências políticas. A tendência das instituições é de enquadrar Deus dentro das malhas da linguagem religiosa. Os poderosos deste mundo utilizam Deus e a teologia como justificadores de seu poder. Eckhart insiste na via negativa; quer dizer, Deus está para além de todos os nossos modelos; para chegarmos ao Deus vivo precisamos negar nossas fantasias e representações sobre Deus. Ele é mistério de vida em ebulição e se reflete principalmente nas almas dos justos e das pessoas que se orientam pela luz e pela bondade da prática. Com isso Eckhart desautoriza todo triunfalismo eclesiástico que pretende saber de Deus e domesticá-lo dentro dos quadros estabelecidos. Desfetichiza o Deus da política. O lugar privilegiado pelo Mestre Eckhart para o encontro com Deus é o mundo e a vida. Os tratados que apresentaremos traduzidos neste livro testemunham esta opção do Mestre. Não é uma mística livre do mundo, mas livre para o mundo.77 Primeiramente o mundo é visto como trampolim para saltar para além do presente quadro, na direção de Deus. É o momento da nadidade do mundo. Ele é sinal da outra dimensão, de Deus. Em seguida o mundo é concreção e advento de Deus. O mundo é afirmado em sua densidade concreta mediante a qual transparece a Divindade. Uma das características fundamentais da mística de Eckhart reside no esforço de superação da relação sujeito-objeto em nosso caminhar para Deus. A grandiosidade da fé cristã não consiste em afirmar que Deus e mundo se enfrentam e, de certa forma, se opõem pelo fato de um ser Criador e outro criatura. A novidade reside na afirmação da mútua imanência: Deus está no interior mais secreto de cada criatura e cada criatura se encontra no coração de Deus. Vigora uma dialética de mútua implicação. Politicamente esta intuição é carregada de conseqüências: a sociedade humana não deve ser feita de oposições e conflitos de interesses. No projeto de Deus ela é pensada e querida como um jogo de relações de colaboração, interpenetração e de fraternidade. Só desta forma ela se mostra como imagem do Deus trino. A contemplação vivida pelo Mestre Eckhart jamais reside num mero contemplar exterior do curso do mundo e da natureza, mas num processo de participação no ser habitado pelo Ser. Seu caminho espiritual não visa encontrar um esquema teórico do que somos mas um guia prático do 74
T. Merton, "Marxism und Monastic Perspectives", em A New Charter for ligmasticism (ed. por J. Moffitt), Notre Dame 1970, 69s. Diz Merton que "todo o Novo Testamento pode ser entendido — por uma mentalidade orientada pelo marxismo — como um protesto contra a alienação religiosa" (76). 75 Veja B. w. Tuchma n, A Distant Mirror: The Calamitous Fourteenth Century, N. York 1978; J. Bernhart, Die philosophische Mystik des Mittelalters, Munique 1922, 165s; Mindschedler, "Meister Eckharts Lehre von der Gerechtigkeit", em Studia philosophica (Jahrbuch der schweizerischen philosophischen Gesellschaft, 13 (1953), 58-98); mais especificamente E. Bloc h, Atheism in Christianity, N. York 1972, 63s; H. L e y, Studie zur Geschichte des Materialismos im Mittelalter, Berlin 1957; Id., "Maitre Eckhart dans la miroir de l,idéologie marxiste", em La vie spirituelle 51 (1971), 62-79; M. Fox, "Meister Eckhart und Karl Marx: The Mystic as Political Theologian", em Understauding Mvsticism (ed. por R. Woods, OP), N. York 1980, 541-563. 76 Veja a primeira parte da nota anterior e ainda- G. D ebu y. "Les pauvres des campagnes dans l'Occident médievel", em Revue d'histoire de l'Église de France, 52 (1966), 25-32; H. Gruo dm a n n, Religiõse, Bewegungen int Mittelalter, Hildesheim 1961. 77 Cf. B. Welt e, Meister Eckhart, 176.
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que nós deveremos ser.78 Sua mística se orienta na superação da clássica distinção entre vida ativa e vida contemplativa.79 No famoso sermão sobre Marta e Maria que apresentaremos neste livro, surpreendentemente prefere Marta a Maria, vale dizer, prefere aquela que está trabalhando e preocupada com as coisas do que Maria que docemente está sentada aos pés do Senhor ouvindo suas explanações (cf. Lc 10,38-42). Marta atarefada no serviço, inquieta e preocupada com muitas coisas pode estar até mais perto do Senhor do que Maria. Tudo depende de como se envolve com as coisas. «Tu estás junto das coisas, mas as coisas não estão dentro de ti», assevera o Mestre. Estar junto das coisas implica não deixar-se tomar pelas coisas; não permitir que a lógica do interesse e da posse oriente o sentido da vida. Então as coisas não entram no coração. Mas não basta esta liberdade senhorial. Importa ainda o olhar da fé que descobre nas coisas a proximidade de Deus. Deus está próximo de duas maneiras nas coisas e pelas coisas. Numa primeira maneira na medida em que as coisas remetem o espírito para Deus; não seguram nossa atenção unicamente para elas, mas se abrem para o espaço da eternidade. Numa segunda maneira na medida em que elas conduzem para uma presença inefável de Deus dentro das coisas. A ocupação com as coisas não se transforma em preocupação. Esta relação nos coloca aos pés do Senhor. Marta, embora atarefada, está também como Maria sentada aos pés de Jesus. Eckhart pensa que Marta está mais perto do que Maria. Maria pode degustar subjetivamente o gozo de ouvir as palavras de Jesus. Desta forma se entretém consigo mesma e nesta exata medida não se entretém com Deus. Marta sempre que com as coisas está em Deus, se libertou do subjetivismo e assim está mais plenamente próxima de Deus. O que Eckhart intenciona é mostrar que tanto Maria concentrada em Deus como Marta ocupada com os afazeres deste mundo podem estar sempre na proximidade de Deus porque Deus se faz presente em todas as coisas, em cada situação e em toda hora. Sua presença não depende de nós. Ela está sempre aí plena e completa. Depende de nós captá-la e viver sempre no vigor de sua presença. A mística então não consiste numa forma de vida ao lado das outras, mas naquela atitude mediante a qual nos situamos bem diante das coisas, decifrando o que elas contêm e escondem: a presença inefável de Deus. No nosso tempo nos defrontamos com dois desafios fundamentais em nosso caminho espiritual: como conviver com as contradições, a mobilidade, o ruído e a dispersividade de nosso mundo secularizado e pervadido pelos meios de comunicação de massa? O segundo desafio é ainda mais provocante: como superar a miséria e a exploração com que milhões são humilhados? Como libertarmo-nos social e pessoalmente para dar lugar aos sinais do Reino em termos de justiça social, participação e fraternidade? O Mestre Eckhart nos poderá ajudar no encaminhamento destas duas tarefas. Com referência a nossa convivência com o mundo contraditório: como é tonificante ouvir a mensagem deste homem do Espírito acerca do total desprendimento e da perfeita liberdade. Não se trata apenas de despir-se de todo acúmulo do ter e de refugiar-se num recanto onde podemos respirar espiritualmente. Neste afã podemos cair numa desastrosa ilusão de buscarmo-nos a nós mesmos, de inflacionarmos nossa interioridade centrada no ego des-vinculado dos outros e do ritmo da vida. O desafio reside em sermos soberanos e livres, fortes e maduros para assimilarmos as contradições sem nos deixar enredar no novelinho de seus interesses. Importa sabermos resistir, manter uma paciência objetiva em consonância com o pulsar da vida, deixar ser com soberania e hombridade aquilo que não podemos mudar ou que ultrapassa as possibilidades reais do nosso desejo.
Isso não significa cinismo nem indiferença face às interpelações desafiantes do real. É sabedoria medida e sentido de finitude. O limite é assumido sem irritação e também sem orgulho. Triunfa somente aquele que sabe esperar e sabe também o momento de agir. Saber esperar implica manter o desejo livre da impaciência e do nervosismo. Saber o momento de agir exige a liberdade do eu desapegado de si mesmo e centrado sobre o ponto maduro da situação que pode ser 78
M. F o x, Meister Eckha,rt und Karl Marx, 543. Veja o estudo minucioso de D. Mi et h, Die Einheit von Vita activa und Vita contemplativa in den deutschen Predigten und Traktaten Meister Eckharts anel bei Johannes Tauler, Regensburg 1969, 202s. 79
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mudada pela prática lúcida. A outra tarefa é a da libertação como transformação da realidade iníqua ou desumana. A mística do Mestre Eckhart se assenta fundamentalmente na ação e não apenas na reflexão. Não é um místico do convento ou apenas do espaço sagrado, mas da rua, do trabalho e das viagens. É dele a famosa frase: «Se alguém está como esteve Paulo em arrebatamento místico e sabe que algum doente deseja um prato de sopa, é melhor deixar o arrebatamento e ir atender ao enfermo necessitado».80 Ou também: «Na contemplação você se serve a você mesmo, nas boas obras serve a muita gente».81 Para o Mestre a ação que realmente vale para Deus e para a salvação é aquela que nos torna bons a nós mesmos a ponto de tudo o que fizermos ser bem feito. A ação deve orientar-se a não repetir o que sempre foi, mas a abrir o espaço para que Deus apareça, pois Ele está escondido dentro de todas as coisas e de todas as pessoas. A transformação vai liberando a imagem de Deus de dentro das situações, especial-mente aquelas que ocultam Deus pela injustiça e pelo apego desumanizador às coisas. Ao comentar o pai-nosso diz com acerto: se não dividirmos o pão-nosso e não o fizermos realmente de todos, não comemos apenas o pão de nossa mão, senão que roubamos o pão dos outros. O grande pregador possui um sentido afinado pelo tema da justiça e da solidariedade para com os outros, especialmente aqueles mais afetados pela sorte da vida. Ataca duramente a mentalidade mercantilista que estava nascendo no tempo e postula que cada homem, por mais humílimo que seja, possa ser um nobre e aristocrata. Este título não é conferido pela sociedade; é uma conquista da pessoa pela capacidade de doação, de ser livre para os outros e de 'poder estar sempre junto de Deus em cada ação que empreende. Não é sem razão que se tenha aproximado o Mestre Eckhart a algumas intuições do marxismo, especialmente por sua mística orientada pela ação e vivida junto do povo.82 Para concluir queremos citar um belo texto deste grande místico do século XIV: «Uma pessoa que dominou sua vida vale mais do que mil pessoas que dominaram somente o conteúdo de livros. Ninguém pode conseguir nada na vida sem Deus. Se eu estivesse à procura de um mestre para aprender, eu deveria ir a Paris ou freqüentar as faculdades onde se fazem os mais altos estudos. Mas se eu estiver interessado na perfeição da vida, eles lá nada me poderão informar. Aonde, pois, deveria eu ir? A alguém que tem uma natureza pura e livre e a nenhum outro lugar: nele eu encontraria a resposta para aquilo que tão ansiosamente estou buscando. Homens, por que buscais ossos entre os mortos? Por que não buscais a vida eterna nos lugares santos da vida? Os mortos nada podem dar ou tomar. Se um anjo tivesse que buscar Deus fora de Deus, ele O buscaria numa criatura pura, livre, plenamente disponível e não em outro lugar. A perfeição depende somente do acolher a pobreza, a miséria, as durezas, os desapontamentos e tudo o mais que vier no decurso da vida, livremente, avidamente até a morte, como se a pessoa estivesse preparada para tal. Portanto, sem emocionar-se nem sequer perguntar o porquê.»
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DW V, 514-515. Id., ibid. 82 Veja a nota 75. 81
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� ����� �� ������ ���������� O Livro da Divina Consolação é uma das jóias da literatura espiritual do Ocidente. Nele o Mestre Eckhart mostra todo o vigor e a madureza de seu gênio religioso. O texto foi escrito para a rainha Inês da Hungria. Seu marido, o rei André, morreu em 1301. Deixada só e desprezada, a rainha teve que empenhar suas próprias jóias para poder comer. Foi recolhida por seu pai, imperador da Áustria. Este foi assassinado em 1308. Neste contexto de desconsolo, Eckhart escreve seu pequeno tratado sobre a consolação divina. Longe de exaltar o sofrimento pelo sofrimento, procura ressaltar as chances de crescimento que propicia. Ele despoja a pessoa das fixações terrenas e a abre para a única Realidade que realmente plenifica o coração, Deus. A linguagem vem calcada sobre experiências tiradas do quotidiano; as palavras-geradoras como consolação, alegria, felicidade, disponibilidade e despojamento são mais que vocábulos religiosos; traduzem, de forma muito existencial, a própria trajetória religi osa do Mestre. A tradução foi feita do alemão (Das Buch der göttlichen Tröstung: Meister Eckharts Trakt ate. Die deutschen Werke V, W. Kohlhammer, Stuttgart 1963, 471-497).
Benedictus Deus et Pater Domini nostri Jesu Christi etc. (2Cor 1,3. ).
O nobre apóstolo São Paulo diz as palavras seguintes: «Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, um Pai de misericórdia e Deus de toda consolação que nos consola em todas as nossas aflições». Há três formas de aflição que afetam e oprimem o homem no presente estado de miséria. Uma nasce dos danos aos bens externos, outra dos danos que atingem seus parentes e amigos, e a terceira, dos danos advindos à sua própria pessoa, na desestima, na desgraça, nos sofrimentos corporais e nas aflições do coração. Por isso tenciono assentar neste livro alguns ensinamentos com os quais o homem possa consolar-se em todas as suas desventuras, tristezas e sofrimentos. O livro consta de três partes. Na primeira encontram-se algumas verdades das quais se pode deduzir o que serve para consolar o homem, plena e eficazmente, em todos os seus sofrimentos. Seguem-se depois cerca de trinta pontos de doutrina, em cada um dos quais se pode encontrar a mais autêntica e completa consolação. E enfim, na terceira parte do livro, encontram-se alguns exemplos de obras praticadas e palavras pronunciadas por pessoas sábias nos seus sofrimentos. 1
Em primeiro lugar, importa saber que o Sábio e a Sabedoria, o Verdadeiro e a Verdade, o Justo e a Justiça, o Bom e a Bondade estão relacionados entre si da maneira seguinte. A Bondade não é criada nem feita nem gerada; no entanto, é geradora e engendra o Bom, e o Bom, enquanto Bom, é não-feito e incriado, e contudo, é prole gerada e Filho da Bondade. A Bondade engendra-se e tudo o que ela é, no Bom: o Ser, o Saber, o Amar e o Operar ela os derrama todos juntos no Bom, e o Bom recebe todo o seu Ser, Saber, Amar e Operar do coração e do mais intimo da Bondade e dela somente. O Bom e a Bondade são uma só Bondade, plena-mente una em tudo, menos o engendrar (de uma) e o ser-engendrado (de outro); e contudo, o engendrar da Bondade e o serengendrado no Bom é plenamente um Ser, uma Vida. Tudo o que pertence ao Bom, ele o recebe da Bondade na Bondade. Ali ele existe e vive e mora. Ali ele se conhece a si mesmo e tudo o que conhece, e ama tudo o que ama, e opera com a Bondade na Bondade, e a Bondade com ele (opera)
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todas as suas obras, como está escrito e diz o Filho: «O Pai opera as obras permanecendo e morando em mim» (Jo 14,10). «O Pai opera até agora, e eu opero» (Jo 5,17). «Tudo o que é do Pai é meu, e tudo o que é meu e daquilo que é meu, é de meu Pai: dele no dar e meu no receber» (Jo 17,10). Outrossim, importa saber que, quando falamos do «Bom», o nome ou a palavra não designa e contém senão a Bondade nua e pura, nem menos nem mais; entretanto, o que então se quer significar é o Bom enquanto é a Bondade que se dá (ou engendra). Quando falamos do «Bom», o que se quer dar a entender é que o seu Ser-Bom lhe é dado, infundido e inengendrado pela Bondade não-engendrada. Por isso diz o Evangelho: «Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu ao Filho o ter também ele a vida em si mesmo» (Jo 5,26). Ele diz: «em si mesmo», e não «de si mesmo», pois foi o Pai quem lha deu. Tudo o que acabo de dizer do Bom e da Bondade vale igualmente do Verdadeiro e da Verdade, do Justo e da Justiça, do Sábio e da Sabedoria, do Filho de Deus e de Deus Pai, de tudo o que nasceu de Deus e não tem pai na terra, e onde não há geração alguma de coisa criada ou do que não é Deus ou do que não contém outra imagem que não seja o Deus puro somente. Pois assim fala São João no seu Evangelho: que «o poder e a capacidade de se tornarem filhos de Deus foi dado a todos aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas por Deus e de Deus somente» (Jo 1,12s). Por «sangue» ele entende tudo aquilo que no homem não está sujeito à sua vontade. Por «vontade da carne» entende tudo aquilo que, embora se submeta à sua vontade, não o faz sem alguma resistência e relutância, e o que propende para a concupiscência da carne, e o que pertence à alma e ao corpo juntos e não se encontra propriamente na alma sozinha; e por conseguinte, estas potências da alma vão se cansando, enfraquecendo e envelhecendo. Por «vontade do varão» entende São João as forças supremas da alma, cuja natureza e cujo obrar não se misturam à carne e que residem na pureza da alma, separadas do tempo e do espaço e de tudo o que ainda tem alguma relação ao tempo e ao espaço ou algum gosto por eles, forças que nada têm em comum com coisa alguma, e nas quais o homem é formado segundo Deus e pertence à linhagem e à parentela de Deus. Todavia, como não são o próprio Deus, e como são criadas na alma e com a alma, devem depor sua forma própria e revestir a forma de Deus somente, a fim de que, nascidas de Deus, outro Pai não tenham senão Deus; e assim também elas são filhos de Deus e filho unigênito de Deus. Pois sou filho de tudo o que me forma e engendra à sua imitação e em si e à sua semelhança. À medida em que um tal homem, filho de Deus, bom enquanto filho da Bondade, justo enquanto filho da Justiça, é filho dela (isto é, da Justiça) somente, esta é não-engendrada-e--geradora, e o filho por ela gerado tem o mesmo e único ser que a Justiça tem e é; e assim ele toma posse de tudo o que é próprio à Justiça e à Verdade. De toda esta doutrina que está escrita no santo Evangelho e é conhecida com segurança à luz natural da alma dotada de razão, depara-se ao homem verdadeira consolação para todo sofrimento. Diz Santo Agostinho: Para Deus nada é distante ou demorado. Se queres que nada seja distante nem demorado para ti, conforma-te a Deus, pois ali mil anos são como o dia de hoje. Da mesma forma digo eu: Em Deus não há tristeza, nem sofrimento, nem desventura. Se queres ver-te livre de toda desventura e sofrimento, segura-te e volta-te com lealdade a Deus somente. Por certo, a fonte de todo sofrimento está em não te converteres para Deus somente. Com efeito, se lá estiveres, informado e nascido na justiça exclusivamente, coisa nenhuma te faria sofrer, assim como nada faz sofrer ao próprio Deus justo. Diz Salomão: «Nenhum mal atingirá e justo» (Pr 12,21). Não diz «o homem justo», nem «o anjo justo», nem este ou aquele ser. Ele diz: «o justo». O que de qualquer modo pertence ao justo e, particularmente, o que faz a sua justiça ser sua e o torna justo, isto é filho e tem um pai na terra e é criatura e é feito e criado, pois seu pai é criatura, feita ou criada. Não assim o Justo puro: não tendo pai criado ou feito, e sendo Deus e a Justiça uma unidade perfeita, e a Justiça o seu único Pai, por isso a dor e a desventura não podem invadi-lo (isto é, o justo), como não podem invadir a Deus. A Justiça não lhe pode causar dor, pois outra coisa não é senão alegria, prazer e deleite; e ademais: se causasse dor ao justo, a Justiça a causaria a si mesma. Nenhuma coisa desigual e injusta, nem coisa alguma feita ou criada seria capaz de lançar na dor o homem justo; pois tudo o que é criado é de muito inferior a ele, tanto quanto é inferior a Deus, e
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não causa nenhuma impressão ou influência no justo, nem se engendra naquele cujo pai é Deus somente. Por esse motivo deve o homem fazer grande empenho em depor sua forma própria e a de toda criatura e em não reconhecer como pai senão a Deus somente; então nada lhe causará aflição ou tristeza, nem Deus nem a criatura, nem o criado nem o incriado, e todo o seu ser, viver, conhecer, saber e amar lhe vem de Deus, e está em Deus e (é o próprio) Deus. E eis um segundo ensinamento igualmente consolatório para o homem em todas as suas desventuras. É coisa certa que o homem justo e bom se alegra muito mais, indizivelmente mais até, com a obra da justiça do que com o deleite e a alegria que ele, ou mesmo o mais excelso dos anjos, tira do seu ser ou de sua vida naturais. E foi por isso que os Santos alegremente entregaram suas vidas pela Justiça. Digo pois: se o homem bom e justo que sofre um mal exterior se mantém inabalável na serenidade e na paz do seu coração, então o que eu dizia é verdade: o justo não se entristece, pouco importa o que lhe ocorra. Se, ao contrário, ele se entristece com o mal exterior, então Deus procedeu com justiça permitindo que esse mal lhe ocorresse, visto que pretendia e supunha ser justo, embora se deixasse abater por coisas de tão pequena monta. Se tal é pois o direito de Deus, então, na verdade, longe de entristecer-se por causa disso, deveria alegrar-se, e até mais do que se alegra com a própria vida; vida essa que todo homem desfruta com mais alegria e que lhe é mais valiosa que o mundo inteiro; com efeito, se não fosse vivo, que lhe aproveitaria o mundo inteiro? A terceira palavra que se pode e deve saber é esta: só Deus, de acordo com a verdade natural, é fonte e origem única de todo ser-bom, de toda verdade essencial e de consolação, e tudo o que não é Deus traz em si, por natureza, certo amargor e desconsolo e aflição, e nada acrescenta à Bondade que deriva de Deus e é Deus, senão que (o amargor) diminui e encobre e oculta a doçura, a delícia e a consolação que Deus dá. E digo mais, que todo sofrimento provém do amor àquilo de que a perda me privou. Portanto, se a perda de coisas exteriores me faz sofrer, eis aí um indício seguro de que tenho amor às coisas exteriores e, por conseguinte, de que na verdade eu amo o sofrimento e o desconsolo. Com efeito, que há de estranhável em que eu depare com o sofrimento se amo e busco o sofrimento e o desconsolo? O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser-Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir-me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual. — E com isso damos por encerrada a primeira parte deste livro. 2
Seguem-se agora, na segunda parte, cerca de trinta pontos, cada um dos quais servirá por si só de consolo eficaz a todo homem sensato. O primeiro é este: Não há desventura ou desgraça que não venha unida a alguma ventura, nem mal que seja mal somente. Por isso diz São Paulo que Deus, em sua fidelidade e bondade, não permitirá que alguma provação ou aflição se nos torne intolerável, mas providenciará e dará sempre alguma consolação que nos sirva de ajuda (cf. 1Cor 10,13). Dizem também os Santos e os mestres pagãos que Deus e a natureza não consentem que haja um mal ou sofrimento puro. Tomemos o caso do homem que, tendo possuído cem marcos, perde quarenta deles, ficando com sessenta. Se esse homem ficar ruminando a perda dos quarenta marcos, permanecerá desconsolado e aflito. Com efeito, como poderia consolar-se e deixar de sofrer o que volta sua atenção à desgraça e à dor, absorvendo-as e por elas deixando-se absorver, mirando-as e por elas deixando-se mirar, palestrando e entretendo-se e como que entrevistando-se com seu infortúnio? Se, ao invés, voltasse o pensamento aos sessenta marcos que ainda tem e, dando as costas aos quarenta que perdeu, se concentrasse naqueles, para olhá-los de frente e entreter-se com eles, certamente se consolaria. O que é algo e é bom, é capaz de consolar; mas o que não é, nem é bom, o que não é meu e está perdido para mim, necessariamente gera desconsolo e sofrimento e aflição.
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Por isso diz Salomão: « Nos dias de aflição não olvides os dias de bem-estar» (Eclo 11,27). Quer dizer: sempre que estejas infeliz e desconsolado, pensa no bem e na felicidade que ainda tens e guardas. Outra coisa que poderá consolar o nosso homem é a consideração de que há muitos milhares de pessoas que, se possuíssem os sessenta marcos que tu ainda tens, ter-se-iam por grandes senhores e senhoras e, julgando-se muito ricos, alegrar-se-iam de coração. Há outra coisa que serve de consolo ao homem. Ponha-mos que, embora enfermo e padecendo grande dor corporal, ele disponha de uma casa e de tudo o que necessita em matéria de alimentação e bebida, de assistência médica e serviço de criadagem, em simpatia e ajuda dos amigos: como deverá proceder nesse caso? Ora, pergunto eu: O que fazem os pobres que têm de suportar doenças e desgraças iguais, e até piores, e não têm ao menos quem lhes ministre um copo de água fresca? Outro remédio não têm senão procurar, de casa em casa, um bocado de pão seco, na chuva, na neve e no frio. Portanto, se queres receber consolação, esquece os que estão bem e pensa nos que passam mal. Digo, outrossim: Todo sofrimento vem do amor e da inclinação. Portanto, se sofro por causa de coisas transitórias, a razão disso está em que eu, com meu coração, continuo a amar e a pender para as coisas que passam; não amo a Deus com todo o meu coração, e ainda não amo o que Deus quer ver amado por mim e com Ele. Assim sendo, por que me admiro que Deus consinta, e com toda a justiça, que eu sofra agravos e dores? Diz Santo Agostinho: Senhor, eu não quisera perder-te, mas na minha cobiça eu quis possuir (juntamente) contigo, as criaturas; e por isso te perdi, pois não toleras que contigo, que és a Verdade, se compartilhe a falsidade e a ilusão das criaturas. Diz ainda em outro lugar que é por demais cobiçoso o que não se contenta com Deus somente. E em mais outro lugar diz: Como poderiam bastar os dons de Deus às criaturas a quem não basta o próprio Deus? Ao homem bom deve servir de tormento, e não de consolação, tudo o que é estranho a Deus e diferente dele e (tudo o que) não é, exclusivamente, o próprio Deus. Deve dizer, sempre: Senhor Deus e minha consolação, quando me remetes de Ti para qualquer outra coisa, dá-me um outro Tu, para que eu vá de Ti para Ti; pois nada quero senão a Ti. Quando Nosso Senhor anunciou todo o bem a Moisés e o enviou à Terra Santa, que é o Reino dos Céus, Moisés disse: «Senhor, não me mandes aonde não queiras vir também Tu» (cf. Ex 33,15). Toda propensão e todo deleite e amor provêm do que se assemelha a nós, pois todas as coisas propendem para, e amam o que é semelhante a elas. O homem puro ama tudo o que é puro, o justo ama e tende para a justiça; a boca do homem fala daquilo que traz no seu íntimo, pois, como diz Nosso Senhor: «A boca fala da abundância do coração» (Lc 6,45); e Salomão diz que «o trabalho do homem está em sua boca» (Ecl 6,7). Daí que o persistir alguém em tender para fora e ali encontrar consolação é sinal seguro de que não é Deus, e sim a criatura que mora no seu coração. Eis por que o homem bom deveria envergonhar-se muito diante de Deus e de si mesmo ao dar-se conta que Deus não está nele e que não é Deus, o Pai, que nele opera as obras, mas que, ao contrário, é a criatura importuna que continua a viver nele e a determinar-lhe a inclinação e a produzir suas obras. Por isso diz o rei Davi, lamentando-se, no Saltério: «Meu pão é o pranto, de dia e de noite, enquanto insistem: Onde está o teu Deus?» (51 41,4). Na verdade, a propensão para a exterioridade e a consolação no desconsolo, assim como o prazer, o interesse e a freqüência com que disso falo, denotam com verdade que Deus não se faz visível em mim, não vigia em mim, não opera em mim. E ademais, ele (isto é, o homem bom) deveria sentir vergonha de expor-se assim aos olhos das pessoas de bem. O homem bom nunca deve deplorar seus males e sofrimentos; antes, deve lastimar o mesmo hábito de lastimar-se e o deparar em si, ainda, tais queixas e aflições. Dizem os mestres que debaixo do céu há um fogo imenso e poderosamente cálido e que, no entanto, o céu não é afetado em nada por ele. Ora, como se diz num escrito, a parte mais ínfima da alma é mais nobre que a parte mais alta do céu. Como pode então um homem ter a presunção de ser homem digno do céu e de ali ter o coração, quando ainda se estristece e sofre com coisas tão pequenas! Passo agora a falar de outra coisa. Não pode ser bom o homem que não quer o que Deus quer
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em cada caso particular, pois é impossível que Deus queira uma coisa que não seja um bem; e é principalmente porque Deus a quer que ela se torna, e é, necessariamente boa e, ao mesmo tempo, a melhor. Por isso Nosso Senhor ensinou aos apóstolos, e a nós através deles, a rezar todos os dias que se faça a vontade de Deus. E no entanto, quando a vontade de Deus vem e se faz, nós nos queixamos. Sêneca, um mestre pagão, pergunta: Qual é a melhor consolação no sofrimento e no infortúnio? E responde que o homem deve aceitar todas as coisas como se assim as tivesse desejado e pedido; com efeito, tu as terias desejado se tivesses sabido que todas as coisas acontecem por vontade de Deus, com a vontade de Deus e na vontade de Deus. Diz um mestre gentio: ó Guia e Pai e Senhor soberano do alto céu, estou disposto a tudo quanto queiras; dá-me a vontade de querer consoante a tua vontade! Nisso o homem bom deve confiar em Deus, e crer nele, e ter por certo e reconhecê-l'O como bom, a ponto de ser impossível a Deus, em sua bondade e amor, permitir que algum sofrimento ou mal sobrevenha ao homem, salvo para preservá-lo por esse meio de um sofrimento maior, ou mesmo para dar-lhe, já na terra, maior consolação, ou para transformá-los em algo melhor, patenteando assim de modo mais forte e cabal a glória de Deus. Mas seja isso como for: pela só razão de ser vontade de Deus que tal coisa aconteça, deve a vontade do homem bom achar-se tão completamente uma e unida à vontade de Deus que o homem queira, com Deus, a mesma coisa, ainda que isso lhe acarrete algum mal e até mesmo a condenação. Eis por que São Paulo, por causa de Deus, e por causa da vontade de Deus, e para glória de Deus, desejava estar separado de Deus (cf. Rm 9,3). Pois o homem verdadeiramente perfeito deve, habitualmente, estar morto para si mesmo e despojado de si mesmo em Deus, e revestido da vontade de Deus, de modo tal que toda a sua felicidade consista em nada saber de si mesmo e de tudo (o mais), para, ao invés, saber só e unicamente a Deus, e em não querer nem conhecer outra vontade que não a de Deus, e em querer conhecê-l'O assim como Ele me conhece, como diz São Paulo (cf. 1Cor 13,12). Tudo o que Deus conhece e tudo o que ama e quer, Ele o conhece, ama e quer em si mesmo em sua própria vontade. 'Quem o diz é o próprio Senhor: «A vida eterna consiste em se conhecer a Deus somente» (Jo 17,3). Por essa razão dizem os mestres que os bem-aventurados no reino do céu conhecem as criaturas sem quaisquer imagens delas; antes, conhecem-nas na única imagem que é Deus e em que Este se conhece e ama e quer a si mesmo e a todas as coisas. É o que o próprio Deus nos ensina a rogar e a desejar, dizendo: «Pai nosso», «santificado seja o teu nome», isto é: o conhecer-Te a Ti somente (cf. Jo 17,3); «venha o teu reino», de sorte que eu nada conheça ou reconheça de valioso senão a ti, o Bem por excelência. Por isso diz o Evangelho: «Bem-aventurados os pobres de espírito» (Mt 5,3), isto é, de vontade, e pedimos a Deus que a sua «vontade se faça na terra», isto é, em nós, «como no céu», isto é, no próprio Deus. Tão unida à de Deus é a vontade de um tal homem que ele quer tudo o que Deus quer e assim como Deus o quer. E como, de certa forma, Deus quer inclusivamente que eu tenha feito pecado, eu não quereria não ter feito pecado, pois assim se faz a vontade de Deus «na terra», isto é, na ação má, «como no céu», isto é, no agir bem. Destarte o homem quer sentir falta de Deus por amor de Deus, e estar separado de Deus por amor de Deus, e é nisso que consiste a reta contrição dos meus pecados; pois assim o pecado me causa dó sem dor, assim como a Deus tudo o que é mau causa dó sem dor. A dor, e a maior das dores, eu a tenho por causa do pecado — pois eu não faria pecado, nem a troco de tudo o que há de criado ou de criável, e nem mesmo que pudesse haver mil mundos num tempo eterno —, mas sem dor; e as dores, eu as tiro e recebo na vontade e da vontade de Deus. Tal é a única dor perfeita, visto proceder e brotar do amor puro da bondade e alegria puríssimas de Deus. Assim se verifica e se constata o que eu disse neste livrinho: que o homem bom, na medida em que é bom, entra totalmente no próprio ser da Bondade que é Deus em si mesmo. E agora atenta para a vida admirável e venturosa que este homem tem «na terra» «COMO no céu», em Deus mesmo! A um tal, a desventura se torna em ventura, e os males, amáveis; e contudo, repara nisso mesmo ainda um consolo especial: pois, quando possuo a graça e a bondade, das quais acabo de falar, encontro-me igual e plenamente consolado e contente em todo o tempo e em todas as coisas; se ao contrário nada disso possuo, devo dispensá-lo por amor a Deus e à sua vontade. Se
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Lhe aprouver dar-me o que desejo, muito que bem, e regozijar-me-ei; se ao contrário não quiser concedê-lo, aceitá-lo-ei, renunciando ao meu desejo com a mesma vontade com que Deus não o quer; e assim recebo, ainda que sentindo falta e não recebendo. O que me falta então? Por certo, a Deus se recebe mais propriamente renunciando que recebendo; pois quando o homem recebe, é o dom, em si mesmo, que lhe dá alegria e consolo. Mas quando não se recebe, então nada se possui nem se encontra nem se sabe em que se possa ter alegria, salvo a Deus e a vontade de Deus somente. Há um outro consolo ainda. Quando o homem perdeu um bem exterior ou um amigo ou um parente, um olho, uma mão, ou o que quer que seja, poderá ter a certeza de que, se o suportar com paciência e por amor de Deus, terá a seu favor junto a Deus, pelo menos, tudo aquilo a cujo preço não teria querido suportar a perda em questão. (Por exemplo:) Um homem perde um olho: se não tivesse consentido em prescindir desse olho ao preço de um mil, ou de seis mil marcos, ou mais, então certamente recebeu a seu favor com Deus e em Deus tudo aquilo a troco do que não quisera ter suportado o referido prejuízo ou sofrimento. E deve ser isto o que o Senhor quis dar a entender quando disse: «Melhor te é entrar na vida eterna com um só olho do que com ambos os olhos ser lançado na geena do fogo» (Mt 18,9). E o mesmo, sem dúvida, quis Deus dizer com as palavras: «Todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, terras ou casa, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna» (Mt 19,29). E ouso dizer com certeza, na verdade de Deus, e pela minha salvação, que aquele que por causa de Deus e da Bondade abandonar pai e mãe, irmão e irmã, ou seja lá o que for, recebe o cêntuplo de duas maneiras. Em primeiro lugar, seu pai, sua mãe, seu irmão e sua irmã lhe serão cem vezes mais caros do que o são agora; em segundo lugar, verá que não apenas cem, mas todas as pessoas, enquanto são pessoas e homens, ser-lhe-ão incomparavelmente mais caros do que o são para ele agora, por natureza, o pai, a mãe, ou o irmão. Que o homem não se dê conta disso, isto se deve só e unicamente ao fato de ainda não ter deixado totalmente, e só e apenas por causa de Deus e da Bondade, pai e mãe, irmã e irmão e todas as coisas. Com efeito, como teria deixado pai e mãe, irmã e irmão por causa de Deus o que ainda os encontra na terra em seu coração, e que ainda se entristece e (ainda) pondera e atenta para o que não é Deus? Como teria deixado todas as coisas por causa de Deus o que ainda volta sua atenção e sua vista para este e para aquele bem? Diz Santo Agostinho: Deixa de lado este bem e aquele bem, e restar-te-á a Bondade pura em si mesma, a pairar em sua pureza casta e simples: e isto é Deus. Pois, como declarei acima: Este bem ou aquele bem nada acrescenta à Bondade, senão que oculta e encobre a Bondade em nós. Tudo isso o verifica e sabe quem O vê e contempla na Verdade, porque é verdadeiro na Verdade; portanto, é ali, e em nenhuma outra parte, que se há de verificá-lo. Todavia, convém saber que o possuir-a-virtude e o querer-sofrer têm certa gradação, exatamente como o vemos na natureza: um homem avantaja-se a outro no tamanho, na beleza, na aparência, no aspecto, no saber, nas aptidões. Da mesma forma um homem pode ser bom, e todavia — sem apartar-se de Deus ou da Bondade — estar mais ou menos apegado, com amor natural, ao pai, à mãe, à irmã, ao irmão. Contudo, será bom ou melhor na mesma proporção em que se deixar consolar e tocar em menor ou maior grau por esse amor ou afeto natural ao pai e à mãe, à irmã e ao irmão, e a si mesmo, e deles tomar consciência. Não obstante, como escrevi acima: Se o homem fosse capaz de aceitar isto mesmo na vontade de Deus, visto ser vontade de Deus que a natureza humana tenha tal imperfeição — principalmente pela justiça de Deus em vista do pecado do primeiro homem — e se, caso assim não fosse, estivesse disposto a renunciar de bom grado a todas elas na vontade de Deus, tudo estaria bem com ele, e, por certo, sentir-se-ia consolado no sofrimento. Tal é o sentido da palavra de São João, de que «a luz verdadeira resplandece nas trevas» (Jo 1,5) e da de São Paulo, que «na fraqueza a virtude se manifesta plenamente» (2Cor 12,9). Pudesse o ladrão sofrer a morte verdadeira, plena, pura, gostosa, voluntária e alegremente por amor à divina justiça, pela qual e conforme a qual o Deus justo quer que o malfeitor seja morto, com certeza salvar-se-ia e entraria para a bemaventurança. Há mais outra consolação. Dificilmente se encontra uma pessoa que, para salvar a vida de alguém, não se dispusesse a ficar privada de uma vista por espaço de um ano, ou mesmo a ficar cega, se depois pudesse recuperar o olho e deste modo salvar da morte o amigo. Se pois um homem
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se dispõe a sacrificar, por um ano, o próprio olho, para salvar da morte um homem que, de qualquer modo, terá de morrer dentro de uns poucos anos, quanto mais justa e prontamente deverá sacrificar dez ou vinte ou trinta dos anos que talvez lhe restam de vida, a fim de conquistar sua própria bemaventurança eterna e contemplar para todo o sempre a Deus em sua luz divina e, em Deus, a si mesmo e a todas as criaturas ! Eis mais outra consolação: Para um homem bom, enquanto bom, e nascido da só Bondade e enquanto imagem da Bondade, tudo o que é criado, e isto e aquilo, é incômodo, amargo e danoso. E portanto, o perder tais coisas significa ficar livre de, e perder, sofrimentos, desventuras e danos. Efetivamente, perder um sofrimento é um real consolo. Por isso o homem não deve lastimar os seus males. Antes, deve lastimar-se por não dispor de consolo, e por não poder degustar-lhe os efeitos, assim como o vinho, conquanto doce, não sabe ao enfermo. E deve lastimar-se — como escrevi acima — por não ter deposto ainda totalmente a forma das criaturas e não haver revestido todo o seu ser com a forma da Bondade. O homem que sofre deve recordar, outrossim, que Deus fala a verdade e que as suas promessas são feitas em seu próprio nome, enquanto Verdade. Se fosse infiel à sua palavra, à sua verdade, Deus seria infiel à sua Divindade e já não seria Deus, pois Ele é sua palavra, sua verdade. Ora, a palavra de Deus é que a nossa dor está transmudada em alegria (cf. Jr 31,13). Se eu soubesse com certeza que todas as minhas pedras se transformariam em ouro, quanto mais e maiores elas fossem, tanto melhor seria para mim; não só isso: eu sairia a pedir pedras e, se possível, as compraria, e grandes, e muitas; quanto mais e maiores fossem, tanto mais vantajoso para mim. Desta forma o homem com certeza se consolaria grandemente em todo o seu sofrer. Eis outro exemplo semelhante. Um vaso não comporta duas qualidades de bebida. Se se destina a conter vinho, é preciso despejar a água; o recipiente tem de estar vazio e livre. Da mesma forma, se quiseres acolher a Deus e sua divina alegria, forçoso te é que despejes primeiro as criaturas. Diz Santo Agostinho: «Despeja e encher-te-ás. Aprende a não amar, e aprenderás a amar. Afasta-te, e achegar-te-ás». Em suma, tudo o que deve acolher e ser receptivo deve necessariamente estar vazio. Dizem os mestres: Se o olho, no ato de perceber, tivesse em si alguma cor, ele não perceberia a cor que tem, nem a que não tem; é por carecer de todas as cores que ele conhece todas as cores. A parede tem uma cor, e por isso ela não conhece a própria cor, nem qualquer outra, e não se alegra com a cor, nem o ouro a alegra mais que o azul ou a cor do carvão. O olho não tem cor, e não obstante a tem, no sentido mais verdadeiro, pois conhece-a com prazer e deleite e alegria. E quanto mais perfeitas e puras são as forças da alma, tanto mais perfeita e complexivamente acolhem o que apreendem, e tanto mais recebem e se deleitam, e tanto mais se tornam uma só coisa com aquilo que percebem; tanto assim que afinal a força suprema da alma, despida de todas as coisas, e nada compartilhando com coisa alguma, recebe em si nada menos que o próprio Deus com toda a abundância e plenitude do seu ser. E provam os mestres não haver gozo nem deleite comparável a essa união, a esse transcurso e a essa delícia. Eis por que diz Nosso Senhor em significativa passagem: «Bem-aventurados os pobres de espírito» (Mt 5,3). Pobre é o que nada tem. Ser «pobre de espírito» quer dizer: assim como o olho é pobre e destituído de cor e suscetível a todas as cores, assim o pobre de espírito é receptivo para todo o espírito, e o espírito de todos os espíritos é Deus. O fruto do espírito é o amor, a alegria, e a paz. O estar desnudo, o ser pobre, o nada ter, o estar vazio, transforma a natureza; o vazio faz a água subir morro acima e outras coisas maravilhosas das quais não cabe falar agora. Portanto, se quiseres ter e encontrar alegria e consolação total em Deus, trata de desembaraçar-te de todas as criaturas e de toda consolação criatural; pois é certo que, enquanto a criatura te consola, ou é capaz de consolar-te, jamais encontrarás consolação verdadeira. Mas quando nada pode consolar-te a não ser Deus, então, em verdade, Deus te consola e nele terás tudo que é deleite. Enquanto te consola o que não é Deus, não terás consolação aqui nem acolá. Se ao contrário a criatura não te consola e não te sabe, então encontrarás consolação aqui como lá. Se fosse possível esvaziar perfeitamente uma vasilha e mantê-la vazia de tudo o que pode enchê-la, inclusive do ar, a vasilha sem dúvida renegaria e esqueceria a sua natureza, e o vazio a levantaria até o céu. Da mesma forma o estar nu, pobre e vazio de todas as criaturas soergue a alma para Deus. Também a igualdade e o calor arrastam para cima. A igualdade em Deus é atribuída ao
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Filho, o calor e o amor ao Espírito Santo. A igualdade em tudo e, de modo especial, e em primeiro lugar e sobretudo na natureza divina, é nascimento do Uno, e a igualdade do Uno, no Uno e com o Uno é princípio e origem do florescente e ardente Amor. O Uno é princípio sem nenhum princípio. A igualdade é princípio desde o Uno somente, e do Uno e no Uno recebe o ser e o ser princípio. É da natureza do amor o efluir e proceder de dois. O uno enquanto uno não produz amor. Tampouco o produz o dois enquanto dois: o dois enquanto uno, sim, necessariamente produz amor espontâneo, impetuoso, ardente. Diz Salomão que todas as águas, isto é, as criaturas, correm e refluem para a sua origem (Ecl 1,7). Portanto, é necessariamente verdadeiro o que eu dizia: a igualdade e o amor ardente atraem às alturas, conduzindo e introduzindo a alma ao primeiro Princípio do Uno, que é «Pai de todos no céu e na terra» (cf. Ef 4,6). Digo pois que a igualdade nascida do Uno atrai a alma ao mais íntimo de Deus, assim como Ele é o Uno em sua oculta união, pois é isso o que se entende por Uno. Temos disso uma imagem visível: quando o fogo material inflama a acha, uma centelha toma a natureza do fogo, igualando-se ao fogo puro imediatamente inferior ao céu. Logo esquece e renega pai e mãe, irmão e irmã na terra e precipita-se às alturas e ao pai no céu. O pai da centel ha terrena é o fogo, sua mãe é a acha, seus irmãos e irmãs são as demais centelhas; a primeira centelhinha não espera por elas. Pressurosa, sobe para junto do seu verdadeiro pai, que é o céu; pois quem conhece a verdade bem sabe que o fogo, enquanto é fogo, não é o pai real e verdadeiro da centelha. O pai real e verdadeiro da centelha e de tudo o que é da natureza do fogo é o céu. É mais, importa observar bem que a tal centelhinha não só abandona pai e mãe, irmão e irmã na terra; antes, abandona, olvida e renega inclusive a si própria, mercê do seu amor, ansiosa por alcançar o céu, seu verdadeiro pai, pois inevitavelmente se extinguiria no frio do ar; outrossim, manifesta o amor natural a seu verdadeiro pai no céu. E como já se disse do estar vazio ou desnu, que a alma, quanto mais pura e nua e pobre for, e quanto menos criaturas possuir, e quanto mais vazia se encontrar de tudo que não seja Deus, tanto mais pura será sua posse de Deus e em Deus, e maior sua união com Deus e sua intuição em Deus, e a de Deus nela, face a face, como que sobreformada na imagem de Deus, na palavra de São Paulo — isto mesmo digo da igualdade e do fogo do amor: pois quanto mais uma coisa se assemelha a outra, tanto mais tende para junto dela, e tanto mais veloz e prazeroso e deleitoso é seu curso; e quanto mais se afasta de si mesma e de tudo que não é a meta que persegue, e quanto mais dessemelhante se torna de si mesma e de tudo o que não é aquela, tanto mais se assemelha aquilo que persegue. E como a igualdade flui do Uno e atrai e alicia pela força e na força do Uno, por isso não há descanso nem satisfação para o que atrai, nem para o que é atraído, até que se unam numa coisa só. Por isso disse o Senhor pelo Profeta Isaías, segundo o sentido: Não há igualdade ou paz de amor que me baste, enquanto eu não me manifestar em meu Filho e me abrase e inflame no amor do Espírito Santo (cf. Is 62,1). E Nosso Senhor rogou ao Pai que nos tornássemos um com ele e nele, e não apenas unidos. Desta palavra e desta verdade temos uma imagem visível e um, testemunho manifesto na própria natureza exterior. Ao produzir seu efeito, acendendo e inflamando a acha, o fogo começa a refiná-la em extremo, tornando-a diferente de si mesma; tira-lhe a espessura, o frio, o peso e a umidade, assemelhando-a gradativamente a si mesmo, o fogo; mas o fogo e a acha não descansam nem sossegam nem se contentam com tal ou qual grau de calidez ou ardor ou igualdade, até que o fogo se inengendre à acha, comunicando-lhe a sua própria natureza e o seu próprio ser, de sorte que tudo seja um fogo só, e igualmente próprio a ambos, sem diferença e sem mais nem menos. E por isso, até que tal ocorra, sempre há um fumaçar, um entrepelejar, um crepitar, um forcejar e porfiar entre fogo e acha. Mas, uma vez afastada e deposta toda desigualdade, o fogo se acalma e a acha silencia. E acrescento com verdade que a força oculta da natureza secretamente odeia a igualdade e a dualidade, buscando nela o uno que ama por ele mesmo somente, assim como a boca apetece e ama o sabor e a doçura no vinho. Tivesse a água o sabor do vinho, já a boca não o amaria mais do que a água. Por esse motivo eu dizia que a alma odeia a igualdade na igualdade e não ama em si e por si mesma; ama-a por causa do uno que nela se oculta e é o verdadeiro «Pai», princípio sem princípio «de todos» «no céu e na terra». Digo pois: Enquanto houver e aparecer alguma igualdade entre o fogo e a acha, não haverá prazer verdadeiro nem silêncio nem repouso nem contentamento. E por isso dizem os mestres: A gênese do fogo só se dá através do conflito, da comoção e da agitação e
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no tempo; o nascimento do fogo, porém, e o prazer, é intemporal e indistante. O prazer e a alegria a ninguém se afiguram longos ou distantes. Tudo o que acabo de dizer, Nosso Senhor o quis significar dizendo: oA mulher, quando vai dar à luz, sente dor, sofrimento e tristeza; mas depois de ter dado à luz o menino, já não se lembra da aflição e da dor» (Jo 16,21). E Deus nos diz e exorta no Evangelho que roguemos ao Pai celeste que a nossa alegria se torne perfeita; e São Filipe disse: «Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta» (Jo 14,8); pois «Pai» denota nascimento e não igualdade, e significa o Uno em que a igualdade silencia e onde se cala tudo o que tem cobiça de ser. Agora o homem pode reconhecer claramente por que e donde lhe vem o desconsolo em todos os seus sofrimentos, desventuras e males. Ele nasce sempre e tão-somente do seu distanciamento de Deus, da falta de liberdade em relação à criatura, da desigualdade com Deus e da frieza no amor a Deus. Mas há outra coisa ainda que, ponderada com atenção, é apta a proporcionar verdadeira consolação nos infortúnios e sofrimentos exteriores. Um homem segue pela estrada ou faz um certo trabalho ou deixa de fazer outro, e nisso sofre um acidente: quebra urna perna ou um braço, ou perde um olho, ou contrai uma doença. Se ele então ficar pensando sem cessar que, caso tivesse seguido por outro caminho ou feito outro serviço, tal coisa não lhe teria acontecido, isso o deixará desconsolado e oprimido pela aflição. O que deveria pensar é que, se tivesse tornado um outro caminho ou feito ou omitido um trabalho diferente, bem que poderia ter sofrido outro prejuízo ou dissabor muito maior; e assim, com razão, sentir-se-ia consolado. Ou então, ponhamos que tenhas perdido mil marcos. Neste caso, em lugar de chorar o dinheiro perdido, deverias agradecer a Deus que te deu os mil marcos para que pudesses perdê-los e que, pela prática da virtude da paciência, te faz merecer a vida eterna, coisa não concedida a muitos milhares de homens. Ponho um outro caso para mostrar como o homem pode consolar-se. Um certo homem gozou por muitos anos de honra e bem-estar e, em dado momento, por disposição de Deus, tudo perde. Este homem deve refletir com sabedoria e render graças a Deus. Com efeito, ao perceber o mal e o infortúnio presentes, ele se dá conta dos bens e da segurança que foram seus no passado; seu dever é agradecer a Deus pela segurança que por tantos anos lhe foi dado desfrutar, e sem ao menos aperceber-se da sua boa fortuna; e deixe de resmungar. Antes, deve ponderar que o homem, enquanto ser natural, nada tem de si mesmo, tirante a sua malícia e os seus achaques. Tudo o que é bom e bondade lhe vem de Deus, a título de empréstimo e não de propriedade. Pois quem conhece a verdade sabe que Deus, o Pai celeste, dá todo o bem ao Filho e ao Espírito Santo; à criatura porém não dá bem algum, mas só lho cede em empréstimo. O sol dá calor ao ar; a luz, só lha dá em empréstimo; é por isso que ao pôr-do-sol o ar perde a luz, mas retém o calor, pois este lhe é dado em próprio. E por isso dizem os mestres que Deus, o Pai celeste, é Pai do Filho, e não seu Senhor, como também não é o Senhor do Espírito Santo. Mas Deus-Pai-Filho-e-Espírito-Santo é um só Senhor, e isso, das criaturas. E dizemos que Deus foi Pai eternamente; mas desde o momento temporal em que criou as criaturas, Ele é Senhor. Pois bem. Posto que tudo o que é bom ou consolador ou temporal foi dado ao homem de empréstimo, com que direito irá ele queixar-se quando o emprestador deseja retomá-lo? O que lhe cabe fazer é agradecer a Deus que por tanto tempo lho emprestou. Outrossim, deve render-lhe graças por não lhe ter retirado tudo o que lhe emprestou; como aliás seria justo que o fizesse quando o homem se irrita com a retomada, por Deus, de parte daquilo que nunca lhe pertenceu em próprio. Diz pois acertadamente Jeremias, o Profeta, em sua grande dor e lástima: «É graças ao Senhor que não fomos aniquilados; sim, não se esgotou a Sua misericórdia» (Lm 3,22). Se alguém, em dia de frio intenso, me emprestou sua túnica, seu casaco de pele e seu manto, e quisesse retomar o manto, deixando-me a túnica e o casaco, eu deveria demonstrar-lhe o merecido agradecimento e ficar contente. E, sobretudo, convém reconhecer o quanto é injusto irritar-se e lamentar-se quando se perde alguma coisa; pois ao pretender que um bem que tenho me foi dado em próprio, e não simplesmente emprestado, eu me arvoro em senhor, ambicionando ser filho de Deus por natureza e em sentido perfeito, quando nem sequer sou filho de Deus por graça; pois o próprio do Filho de Deus e do
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Espírito Santo é o serem iguais em todas as coisas.
Importa saber, outrossim, que já a natural virtude humana é tão nobre e forte que não há tarefa exterior difícil demais ou grande bastante em que ela não possa exercer-se e imprimir-lhe a sua forma. E há uma obra interior que nem o tempo nem o espaço podem circunscrever ou abarcar; e há nela algo de divino e igual ao Deus incircunscrito no tempo e no espaço — Ele está igualmente presente em toda a parte e em todo o tempo; e assemelha-se a Deus também por não haver criatura alguma capaz de acolhê-la perfeitamente em si ou de assumir em si a forma da bondade divina. E por isso deve haver algo de interior e superior e incriado, sem medida e sem modo, onde o Pai celeste possa imprimir-se e derramar-se e revelar-se, a saber: o Filho e o Espírito Santo. E como é impossível pôr obstáculo a Deus, assim não há quem possa impedir a obra interior da virtude. É obra que brilha e reluz de dia e de noite, enaltecendo e cantando os louvores de Deus e entoando um cântico novo, consoante a palavra de Davi: «Cantai a Deus um cântico novo» (Sl 95,1). É terreno o louvor daquele e desamada de Deus é aquela obra que é exterior e circunscrita ao espaço e ao tempo, obra estreita e sujeita a ser tolhida e vencida, a afadigar-se e a esmorecer com o tempo e a rotina. A obra de que falo consiste no amar a Deus, no querer o bem e a bondade, e em querer o homem fazer com vontade pura e total tudo o que se propõe a fazer e quereria fazer em todas as obras boas; o que equivale a dizer que já agora e fez, assemelhando-se também nisto a Deus, de quem escreve Davi: «Tudo o que quis, agora o fez e operou» (S1 134,6). Para essa doutrina, temos na pedra um testemunho visível: a obra exterior da pedra consiste em cair e descansar sobre a terra. Esta obra pode ser impedida e, de fato, a pedra não cai em todo o tempo e sem cessar. Mas há outra obra mais íntima à pedra: é a sua tendência para baixo. Esta lhe é inata e não lhe pode ser tirada nem por Deus, nem pela criatura, nem por quem quer que seja. É obra que a pedra exerce dia e noite, sem cessar. Ainda que re-pousasse mil anos lá no alto, o seu pendor para baixo não seria menor nem maior do que no primeiro dia. Exatamente o mesmo, digo, ocorre com a virtude: sua obra, de natureza interior, é um como tender e inclinar-se para todo o bem e um fugir e resistir a tudo o que é mau e ruim e dessemelhante à Bondade e a Deus. E quanto mais maldosa a obra, e mais dessemelhante a Deus, tanto maior será sua resistência; e, ao revés, quanto mais importante e semelhante a Deus, tanto mais lhe parecerá fácil e grata e prazerosa. Só uma é sua queixa e um só seu pesar — se lhe é possível sentir pesar —: que o sofrer por causa de Deus, e as obras exteriores e temporais — dada a sua pequenez — não lhe permitam revelar-se e manifestar-se e configurar-se plenamente. Não é seu desejo ter (já) sofrido e superado a dor e o sofrimento; quereria e desejaria sofrer sempre e sem cessar por Deus e pela prática do bem. Toda a sua felicidade está no sofrer, não no ter-sofrido, por causa de Deus. Daí a palavra memorável de Nosso Senhor: «Bem-aventurados os que sofrem por causa da justiça» (Mt 5,10). Não diz: «os que sofreram». Um tal homem (de virtude) odeia o ter-sofrido, pois não é este o sofrer que ele ama; e ter-sofrido é um ultrapassar e uma perda do sofrer por amor a Deus, o qual unicamente lhe é caro. E por isso digo que um homem assim também odeia o ainda-ter-de-sofrer, pois também isto não é sofrer. Todavia, odeia menos o sofrer-no-futuro do que o ter-sofrido, por ser este mais distante e dessemelhante ao sofrer, visto pertencer totalmente ao passado. Quando, ao contrário, alguém (ainda) irá sofrer, isto não o priva por inteiro do sofrimento que ama. São Paulo declara que consentiria em separar-se de Deus por causa de Deus (Rm 9,3), e para a maior glória de Deus. Há quem afirme que São Paulo disse tal coisa no tempo em que ainda não era perfeito. Eu penso, ao contrário, que esta palavra brotou de um coração perfeito. Diz-se também que sua intenção era a de ficar separado de Deus por algum tempo (somente). Eu (porém) digo que a um homem perfeito repugnaria igualmente separar-se de Deus por uma hora ou por um milhar de anos. Mas caso fosse vontade de Deus e para honra Sua que ele ficasse separado de Deus, então os mil anos, e a própria eternidade lhe seriam tão fáceis como um dia ou uma hora. Também nisso a obra interior é divina e semelhante a Deus, e trai uma propriedade Sua: assim como a totalidade das criaturas, e fossem mil os mundos existentes, não venceriam por um cabelo o valor de Deus, assim digo, como já o disse antes, que aquela obra exterior, por ampla e grande e longa e larga que seja, não aumenta em nada absoluta-mente a bondade da obra interior; esta traz em si mesma a sua bondade. Por esse motivo, jamais será pequena a obra exterior, sendo grande a obra interior, nem grande e boa, sendo pequena ou sem valor a obra interior. Sempre a
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obra interior porta em si mesma toda a sua grandeza e largura e extensão. A obra interior recebe ou deriva todo o seu ser do e no coração de Deus, e de nenhuma outra parte; recebe e Pilho e nasce como filho no seio do Pai celeste. Não assim a obra externa que, ao invés, recebe a sua bondade divina por intermédio da obra interior, e como algo que se distribui e derrama numa como descensão da deidade revestida de distinção, de quantidade, de partes, coisas essas — como as semelhantes a elas, assim como o própria igualdade — totalmente estranhas e alheias a Deus. (Pois) tudo isso inere e subsiste e repousa no que é (individualmente) bom, no que é iluminado, no que é criatura, e completamente cego Para a bondade e a luz em si e para o Uno em que Deus gera o seu Filho unigênito, e nele, a todos os que são filhos nascidos de Deus. Ali (isto é, no Uno) se dá a emanação e a origem do Espírito Santo, do qual exclusivamente, enquanto é Espírito de Deus, e enquanto o próprio Deus é Espírito, o Filho é concebido em nós, e (ali) se dá (também) a emanação (do Espírito Santo) de todos aqueles que são filhos de Deus, conforme nascem menos ou mais puros de Deus somente, sobreformados segundo Deus e em Deus, e libertos de toda multiplicidade encontradiça ainda, em virtude de sua natureza, nos anjos mais sublimes; e, a bem dizer, libertos até mesmo da bondade, da verdade e de tudo o que — e seja apenas em pensamento e na denominação — envolve a suspeição ou a sombra de alguma diferença, e entregues (unicamente) ao Uno que se encontra livre de toda espécie de multiplicidade e diferença; (Uno este) em que também Deus-Pai-Filho-e-Espírito-Santo perde e se despoja de todas as diferenças e propriedades, e é, e são, Um só. Este Uno é o que nos torna bem-aventurados, e quanto mais afastados estivermos do Uno, tanto menos somos filhos e filho, e tanto menos perfeitamente brota em nós e emana de nós o Espírito Santo; e, ao contrário, quanto mais próximos estamos do Uno, tanto mais verdadeiramente somos filhos e filho de Deus e tanto mais também emana de nós Deus, o Espírito Santo. É isso que Nosso Senhor, o Filho de Deus na Divindade, quis significar quando disse: «Quem beber da água que eu dou, nele nascerá uma fonte de água que jorra para a vida eterna» (Jo 14,4), e São João declara que isto Ele o disse do Espírito Santo (Jo 7,39). Na deidade, o Filho, consoante a sua propriedade, outra coisa não dá senão o ser-Filho, o sernascido-de-Deus, fonte, origem e emanação do Espírito Santo, do amor de Deus, e sabor pleno, reto e total do Uno, ou Pai celeste. Por isso a voz do Pai fala do céu ao Filho: «Tu és meu Filho amado, em quem sou amado e me comprazo» (Mt 3,17), pois sem dúvida, ninguém, a não ser o Filho de Deus, ama a Deus de modo adequado e puro. Pois o Amor, o Espírito Santo, brota e emana do Filho, e o Filho ama ao Pai por Ele mesmo, e ao Pai nele mesmo, e a si mesmo no Pai. Pelo que diz muito bem Nosso Senhor: «Bem-aventurados são os pobres em espírito» (Mt 5,3), isto é: os que nada têm do espírito próprio e humano, e assim despojados se achegam a Deus. E São Paulo diz: «Deus no-lo revelou em seu Espírito» (Cl 1,8). Diz Santo Agostinho que compreende melhor a Escritura, aquele que, despojado de todo espírito, procura o sentido e a verdade da Escritura nela mesma, isto é, no Espírito em que foi escrita e pronunciada: no Espírito de Deus. São Pedro assevera que todos os homens santos falaram no Espírito de Deus (2Pd 1,21). E São Paulo diz: Ninguém pode conhecer e saber o que há no homem senão o espírito que está no homem, e ninguém pode saber o que é o Espírito de Deus e o que há em Deus, senão o Espírito que é de Deus e é Deus (1Cor 2,11). Por isso um escrito, ou uma glosa diz muito acertadamente que ninguém é capaz de compreender ou de ensinar o que São Paulo escreveu, se não tiver o espírito em que São Paulo falou e escreveu. E' esta é a minha queixa constante e única: que pessoas de espírito grosseiro, desprovidas e totalmente carentes do Espírito de Deus, pretendam opinar com seu tosco entendimento humano sobre o que ouvem ou lêem na Escritura ditada e escrita pelo e no Espírito Santo, sem refletir no que está escrito: «O que é impossível aos homens é possível a Deus» (Mt 19,26). E (o mesmo vale) também, em geral, no domínio da natureza: o que é impossível à natureza inferior, isto é rotineiro e conforme à natureza superior. Ao que se deve acrescentar o que eu já disse antes: que o homem bom, nascido em Deus como filho de Deus, amá-lo-á por Ele mesmo e nele mesmo, e muitas outras palavras que pronunciei anteriormente. Para compreendê-lo ainda melhor importa saber, como aliás também já o observei várias vezes, que um homem bom, nascido da Bondade e de Deus, entra em tudo o que é próprio à natureza divina. Ora, segundo a palavra de Salomão, é próprio de Deus o produzir todas as coisas por causa de si mesmo, isto é, não visando a nenhum porquê fora de si mesmo, mas tão-
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somente ao por-causa-de-si-mesmo; Ele ama e faz todas as coisas por causa de si mesmo. Se pois o homem tem amor a Ele e a todas as coisas, e pratica todas as suas obras sem visar à retribuição, à honra ou ao bem-estar, mas a Deus e à sua glória somente, isto é sinal de que é filha de Deus. Ademais, Deus ama e opera todas as coisas por causa de si mesmo; por outras palavras: Ele ama pelo amar e opera pelo operar; com efeito, Deus não teria gerado seu Filho único na eternidade se o ter-gerado não fosse igual ao gerar. Por isso dizem os santos que o Filho foi gerado eternamente de modo tal que, não obstante, continua sendo gerado sem cessar. E quanto ao mundo, Deus nunca o teria criado se o ser-criado não fosse o mesmo que o criar. Por isso Deus criou o mundo de modo tal que continua ainda a criá-lo sem cessar. Tudo o que é passado e futuro é estranho e alheio a Deus. E por isso, quem nasceu de Deus como filho de Deus, ama a Deus por Deus mesmo, isto é: ama a Deus por causa do amar-a-Deus e opera todas as suas obras por causa do operar. Deus jamais se cansa de amar e de operar, e tudo o que Ele ama é para Ele um só amor. E por isso é verdade que Deus é o amor. E foi pela mesma razão que eu disse acima que o homem bom desejaria, em todo o tempo, sofrer por causa de Deus, e não ter-sofrido; sofrendo, ele tem o que ama. Ele ama o sofrer-por-causa-de-Deus e sofre por causa de Deus. Por isso e nisso ele é filho de Deus, configurado segundo Deus e em Deus que ama por causa de si mesmo, isto é: ama por amor e opera por operar; pelo que Deus ama e opera sem cessar. E o operar de Deus é sua natureza, seu ser, sua vida, sua bem-aventurança. Da mesma forma, para o filho de Deus, para o homem bom enquanto é filho de Deus, o sofrer por causa de Deus e o obrar por causa de Deus é na verdade o seu ser, a sua vida, o seu operar, a sua felicidade; pois assim o diz Nosso Senhor: «Bemaventurados são os que sofrem por causa da justiça» (Mt 5,10) Digo, ademais, em terceiro lugar, que o homem bom, na medida em que é bom, tem algo próprio a Deus, não só porque tudo ama e opera por causa de Deus a quem ama e por quem opera, mas porque aquele que ama, ama e opera também por causa de si mesmo; pois o que ele ama é o Deus-Pai ingênito, e a quem, ama é o Filho-de-Deus engendrado. Mas o Pai está no Filho, e o Filho no Pai. Pai e Filho são um. Sobre a maneira como em sua parte mais íntima e mais excelsa a alma haure e recebe no seio e no coração do Pai celeste o Filho de Deus e o vir-a-ser-filho-de-Deus, procura-o depois deste livro, onde escrevo «Sobre o homem nobre que partiu para uma região longínqua a fim de ser investido na realeza e voltar» (Le 19,12). Convém saber, outrossim, que na natureza a impressão e o influxo da natureza superior ou suprema é para cada (ser) mais deleitoso e prazeroso do que sua própria natureza e essência específica. A água, por sua natureza própria, corre para baixo e rumo aos vales, e nisso está sua essência. Contudo, sob a impressão e o influxo da Lua, ela renuncia e olvida a sua própria natureza e corre morro acima e para o alto, e tal ex-curso lhe é muito mais fácil que o curso para baixo. Nisso deve o homem reconhecer se anda acertado, e se vê um motivo de alegria e regozijo no abandono e na renúncia de sua vontade natural e no despojamento total de si mesmo em tudo o que Deus quer que ele sofra. Tal é o sentido verdadeiro da palavra de Nosso Senhor: «Quem quiser vir a mim deve renunciar a si mesmo e negar-se a si mesmo e tomar a sua cruz» (Mt 16,24), isto é, deve depor e largar tudo o que é cruz e sofrimento. Com efeito, para o homem que se renunciasse a si mesmo, despojando-se totalmente de si próprio, já não haveria cruz ou dor ou sofrimento; para ele, tudo seria deleite, alegria e regozijo do coração, e um homem assim viria e seguiria a Deus verdadeiramente. Pois assim como nada pode entristecer ou causar dor a Deus, assim nada haveria que pudesse afligir ou fazer sofrer a um tal homem. Portanto, a palavra de Nosso Senhor: «Quem quiser vir a mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» não é um mero preceito, como geralmente se diz e supõe: é, antes, uma promessa e uma instrução divina sobre o modo como todo o sofrer e fazer e viver do homem se transforma em objeto de alegria e deleite; em suma, é uma recompensa, mais que um preceito. Pois um homem desse feitio tem tudo o que quer, e nada quer de ruim, e isso é ser bem-aventurado. Mais uma vez, pois, Nosso Senhor diz com acerto: «Bemaventurados os que sofrem por causa da justiça» (Mt 5,10). Ao demais, quando Nosso Senhor, o Filho, diz: «este negue-se a si mesmo e tome a sua cruz e venha a mim», o que Ele quer dizer é isto: faça-se filho, como eu sou Filho, Deus engendrado, e (torne-se) o mesmo uno que eu sou e que eu, inabitando e inestando, derivo do seio e do coração do Pai. Pai, diz o Filho, eu quero que aquele que me segue, que vem a mim, esteja ali onde eu estou
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(cf. Jo 12,16). Ninguém, no sentido próprio da expressão, vem ao Filho enquanto este é Filho, salvo o que se torna por sua vez filho, e ninguém está ali onde está o Filho que, no seio e no coração do Pai, é um no uno, senão aquele que é filho. «Levá-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração», diz o Pai (Os 2,16). (Falar) de coração a coração, (ser) um no uno, eis o que Deus ama. Tudo o que é estranho e alheio a isso, Deus o odeia; é ao uno que Deus nos chama e atrai. Todas as criaturas buscam o uno, mesmo as mais ínfimas, e as supremas tomam conhecimento dele; sobreelevadas à (sua) natureza, e revestidas de uma forma superior, buscam o um no uno, o um em si mesmo. Por isso o Filho parece querer dizer: no Filho da Deidade, no Pai, onde eu estou, ali deve estar o que me serve, o que me segue, o que vem a mim. Mas ainda há mais outra consolação. Importa saber que a natureza em peso é incapaz de destruir ou corromper ou sequer tocar o que quer que seja, sem tencionar algo de melhor, em lugar daquilo que tocou. Não lhe basta criar um bem igual: sempre visa a produzir algo de melhor. Como assim? Um médico sábio não apalpa um dedo ferido, causando-lhe dor, salvo para melhorar o estado desse órgão ou o do homem inteiro, proporcionando-lhe alívio. Se lhe é possível curar o homem, ou apenas o dedo, tratará de fazê-lo; caso contrário, cortará o dedo a fim de salvar o homem. E é muito preferível sacrificar o dedo, conservando o homem, a deixar perecer tanto o dedo como o homem. Um prejuízo é preferível a dois, máxime quando um destes for muito maior do que aquele. Convém saber também que o dedo e a mão, e cada um dos órgãos, têm por natureza muito mais amor ao homem — de quem é órgão — do que a si mesmo, incorrendo de bom grado e sem hesitar em perigos e danos, em benefício do homem. Digo com toda a certeza e consoante a verdade que um tal órgão absolutamente não se ama a si mesmo, salvo em atenção àquele, e naquele, de quem é órgão. Por isso seria muito justo, reto e normal que não tivéssemos amor algum a nós mesmos, salvo em vista de Deus e em Deus. Se assim fosse, ser-nos-ia fácil e grato tudo o que Deus quer de nós e em nós, máxime quando sabemos com certeza que, muito menos (que a natureza), Deus toleraria um achaque ou prejuízo, sem ver e tencionar um lucro incomparavelmente maior. Deveras, quem não nutre tal confiança em Deus, bem que merece o sofrimento e a dor. Há mais outro consolo. Diz São Paulo que Deus disciplina a todos aqueles que adota e recebe como filhos (cf. Hb 12,6). O sofrer faz parte do querer-ser-filho. Foi por não poder sofrer na Deidade e na eternidade que o Filho de Deus foi enviado pelo Pai celeste ao tempo, a fim de que, feito homem, pudesse sofrer. Portanto, se queres ser filho de Deus, mas sem querer sofrer, então andas muito errado. Está escrito no livro da Sabedoria que Deus examina e prova o justo como se prova e examina e abrasa o ouro na fornalha (cf. Sb 3,5-6). Para o cavaleiro é sinal de insigne confiança da parte do rei ou príncipe o ser enviado ao combate. Tenho visto um senhor que, por vezes, depois de admitir a alguém na sua criadagem, o fazia sair à noite para então, (montado) a cavalo, investir contra ele e provocá-lo à luta. E' numa dessas ocasiões, quase foi morto por um homem a quem submetera a essa prova; e desde então passou a gostar muito mais deste criado do que dantes. De Santo Antão, o eremita, se lê que certa vez teve de sofrer mais que de costume da parte dos espíritos malignos; e tendo superado o sofrimento, Nosso Senhor lhe apareceu em forma visível e perceptivelmente alegre. Ao que disse o santo homem: «Ó amado Senhor, onde estavas há pouco, quando estive em tão grande apuro?» E Nosso Senhor lhe disse: «Aqui estive, exatamente como aqui estou agora. Mas eu quis e desejei ver até onde ia a tua piedade». Um pedaço de prata ou de ouro certamente é puro; mas se dele se quer fazer uma vasilha para uso do rei, costuma-se abrasá-lo muito mais intensamente que algum outro. Por isso está escrito, a respeito dos apóstolos, que eles se alegraram por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus (At 5,41). O Filho de Deus por natureza condescendeu em tornar-se homem, para assim poder sofrer por ti, e tu queres tornar-te filho de Deus e não homem, para não precisares sofrer por causa de Deus nem de ti mesmo. Quisesse o homem ter presente e ponderar o quanto na verdade Deus mesmo, a seu modo, e todos os anjos, e todos os que conhecem e amam a Deus, se alegram com a paciência do homem
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que sofre dores e males por Deus, em verdade, isso deveria bastar, por si só, a deixá-lo consolado. E há mesmo quem sacrifique seus bens e sofra dissabores a fim de contentar um amigo e fazer-lhe algum bem. Por outro lado, é preciso ponderar o seguinte. Se um homem tivesse um amigo que por amor dele sofresse dores e contratempos, mui justo seria, por certo, que se encontrasse ao lado dele, consolando-o com sua presença e com (toda) outra consolação que pudesse proporcionar-lhe. Por isso, no livro dos Salmos, Nosso Senhor diz estar perto do homem bom que sofre (S1 33,19). Dessa palavra podem tirar-se sete ensinamentos e outros tantos motivos de consolo. Primeiramente, temos a palavra de Agostinho: a paciência no sofrer por causa de Deus, diz, é melhor, mais valiosa, mais excelsa e nobre que tudo aquilo que se pode tirar ao homem contra a sua vontade; tudo isso são (apenas) bens exteriores. Não obstante, é sabido que entre os amantes deste mundo não há um só, par muito rico que seja, que não estivesse disposto a sofrer de bom grado uma dor considerável, e mesmo a suportá-la por longo tempo, se depois disso pudesse ser o senhor poderoso de todo este mundo. O segundo ensinamento — e não só o deduzo daquela palavra onde Deus diz estar perto do homem que sofre — mas tomo-o (diretamente) da e na palavra; digo pois: se Deus está comigo quando sofro, que mais quero, que outra coisa desejo? Pois se sou homem de bem não quero outra coisa, e nada desejo fora de Deus. Diz Santo Agostinho: «Bem cobiçoso e néscio é o homem a quem Deus não basta», e em outro lugar: «Como pode o homem contentar-se com as dádivas interiores e exteriores de Deus, se não lhe basta o próprio Deus?» E em mais outro lugar: «Senhor, se nos rejeitas de Ti, dá-nos um outro Tu, pois nada queremos senão a Ti». Por isso diz o livro da Sabedoria: «Com Deus, a sabedoria eterna, vieram-me todos os bens» (Sb 7,11) . O que significa, em um sentido, que nada é bom nem pode ser bom que nos venha sem Deus, e tudo o que vem com Deus é bom, e só é bom porque vem com Deus. Sobre Deus vou silenciar. Se a todas as criaturas do mundo inteiro se tirasse o ser que Deus dá, elas seriam reduzidas a um mero nada, desalegres, sem valor e dignas de ódio. Muitos outros sentidos primorosos comporta a palavra: com Deus nos vem todo o bem; sua exposição porém nos levaria muito longe. Diz o Senhor: «Com ele estarei na adversidade» (SI 90,15). Comenta São Bernardo: «Senhor, tu estás conosco no sofrimento; deixa-me pois sofrer em todo o tempo, para estares sempre comigo, e para que eu Te possua sempre». Em terceiro lugar, digo que a palavra: «Deus está conosco na adversidade» significa que Ele próprio sofre conosco. Na verdade, quem conhece a verdade sabe que digo a verdade. Deus sofre com o homem e, a seu modo, sofre até antes, e incomparavelmente mais do que sofre aquele que sofre por amor dele. Digo pois: se o próprio Deus quer sofrer, justo é que (também) eu sofra, pois se me porto bem, eu quero que Deus quer. Rogo todos os dias, e Deus manda que assim rogue: «Senhor, faça-se a Tua vontade!» E, no entanto, quando Deus quer o sofrimento, o que eu quero é queixar-me do sofrimento: coisa muito fora de propósito. Outrossim, afirmo como coisa certa que Deus tanto se agrada em sofrer conosco e por nós, quando sofremos por causa de Deus somente, que Ele sofre sem sofrimento. Tão grato lhe é o sofrer que o sofrimento, para Ele, não é sofrimento. E por isso, se procedêssemos com retidão, para nós também o sofrimento não seria sofrimento, e sim, deleite e consolação. Em quarto lugar, digo que a simpatia dos amigos diminui, naturalmente, o (próprio) sofrimento. Ora, se o sofrimento que um homem compartilha comigo é capaz de me consolar, quanto mais não me há de consolar o compadecimento de Deus. Em quinto lugar, se devo e quero sofrer com um homem a quem amo e que me ama, tanto mais devo sofrer de bom grado com Deus que, pelo amor que me tem, sofre comigo e por mim. Em sexto lugar, digo: se de fato Deus sofre antes que eu sofra, e se sofro por amor de Deus, facilmente todo o meu sofrer se converterá para mim em consolação e alegria, por grande e multiforme que possa ser. É uma verdade de natureza: quando o homem opera em vista de outra obra, o fim pelo qual opera está mais perto do seu coração, e a obra que faz está mais longe dele, e só lhe interessa em atenção ao fim pelo qual a faz. O construtor talha a madeira e apara as pedras, a
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fim de construir uma casa contra o calor do verão e o frio do inverno; seu interesse primeiro e total é a casa, e nunca talharia as pedras, nem faria todo aquele trabalho, a não ser em vista da casa. Sabemos que uma pessoa enferma que bebe vinho doce costuma declarar que este lhe parece ser amargo. E é verdade, pois o vinho perde a sua doçura fora, no amargor da língua, antes de alcançar a parte interior onde a alma percebe o sabor e o julga. Da mesma forma, e num sentido incomparavelmente mais elevado e verdadeiro, Deus, como o ser mais próximo à alma, é o (agente) mediador do homem que faz todas as suas obras por amor dele, e nada há que possa afetar-lhe a alma ou o coração sem perder necessariamente o seu amargor e sem tornar-se totalmente doce, mercê de Deus, e da doçura de Deus, antes mesmo de conseguir tocar o coração do homem. Há ainda um outro testemunho e uma outra analogia. Dizem os mestres que debaixo do céu e ao redor de toda a sua extensão, há fogo; e é por isso que as chuvas, os ventos e os temporais e tempestades vindos de baixo são incapazes de aproximar-se do céu, para ao menos tocá-lo: tudo é consumido e destruído pelo ardor do fogo, antes de alcançar o céu. Exatamente assim, digo eu, tudo o que se suporta e faz por amor de Deus torna-se doce na doçura de Deus, antes que chegue ao coração do homem que sofre e obra por amor de Deus. Com efeito, é isso mesmo que significa a expressão «por amor de Deus», visto que nada chega ao coração sem passar pela doçura de Deus, onde perde o seu amargor. E além disso, é consumido pelo fogo ardente do amor divino que circunda e envolve o coração do homem bom. Já se vê claramente, agora, como são muitas e eficazes as maneiras por que o homem bom pode consolar-se em todas as situações: no sofrer, na dor, no obrar. Uma é a maneira (de consolarse) quando sofre e obra por causa de Deus; e outra quando (já) está no divino amor. Também lhe é possível verificar e saber se faz todas t odas as suas obras por amor de Deus e se está no amor a mor de Deus; com efeito, na medida em que o homem se encontra aflito e desconsolado, o seu obrar não se deu por amor a Deus somente. E repara que na mesma medida também não está firme no divino amor. «Com Deus e à frente de Deus», diz o rei Davi, «caminha um fogo, consumindo ao redor tudo que a Deus se opõe» (cf. Sl 96,3) e tudo o que é dessemelhante de Deus, isto é: a dor, o desconsolo, o desassossego e a amargura. Resta o sétimo (motivo de consolação) na palavra que declara estar Deus conosco e compartilhar o nosso sofrimento, a saber: Deus, em virtude do seu modo próprio de ser, pode consolar-nos fortemente, visto ser Deus a unidade pura, exclusiva de toda multiplicidade (resultante) de alguma distinção, e seja apenas pensada; pois que tudo o que nele há é o próprio Deus. E como isto é verdade, eu digo: Tudo o que o homem bom sofre por causa de Deus, ele o sofre em Deus, e Deus sofre com ele no sofrimento dele. Se sofro em Deus, e Deus sofre comigo, como pode o meu sofrer consituir para mim um sofrimento, quando o sofrer perde o (caráter de) sofrimento, e quando o meu sofrimento está em Deus e o meu sofrimento é Deus? Verdadeiramente, assim como Deus é a Verdade, e como encontro o meu Deus, a Verdade, onde quer que eu encontre uma verdade, assim também, não menos nem mais, quando encontro um sofrer puro, um sofrer por amor de Deus e em Deus, encontro o meu sofrer como (o meu) Deus. Quem não compreende isto, culpe a sua própria cegueira, e não a mim, nem a divina Verdade ou a Bondade amorável de Deus. Por este modo, pois, deveis sofrer por amor de Deus, porque sofrer assim é coisa sumamente salutar, e a mesma bem-aventurança! «Bem-aventurados», disse Nosso Senhor, «são os que sofrem por causa da justiça» (Mt 5,10). Como poderia um Deus amante da Bondade permitir que seus amigos, os homens bons, não estivessem sempre e sem cessar no sofrimento? Se um homem tivesse um amigo disposto a sofrer durante uns poucos dias para assim lucrar grandes vantagens, honrarias e comodidades, e possuí-las por muito tempo, e se aquele homem quisesse impedi-lo nisso pessoal-mente ou por intermédio de outrem, não seria considerado amigo dele, nem lhe demonstraria amor. Por isso Deus não poderia permitir, de forma alguma, que seus amigos, os homens bons, jamais estejam livres de sofrimento, se não pudessem sofrer sem sofrimento. Como apontei acima, toda a bondade do sofrimento exterior provém e flui da bondade da vontade. E por isso, tudo aquilo que o homem quereria sofrer e está disposto e deseja sofrer por amor de Deus, ele o sofre (de fato) ante a face de Deus e por causa de Deus e em Deus. Diz Davi no livro l ivro dos Salmos: «Pronto estou para toda a adversidade, e diante de mim e em meu coração está sempre a minha
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dor» (cf. SI 37,18). Diz São Jerônimo que a cera, posto que seja pura e bastante macia para tomar todas as formas que dela se devam ou queiram tirar, contém em si tudo aquilo que dela se pode figurar, ainda que ninguém tire dela qualquer figura exteriormente visível. Também escrevi acima que a pedra não é menos pesada quando não repousa sobre a terra de modo visível; seu peso está inteira e perfeitamente no seu tender para baixo e no estar disposta, em si mesma, a ir para baixo. No mesmo sentido escrevi acima que o homem bom já fez, já fez, agora, no céu e na terra, tudo o que quis fazer, assemelhando-se também nisso a Deus. Por onde se pode ver e reconhecer o espirito grosseiro das pessoas que costumam admirar-se em ver homens bons sofrendo dores e contratempos e que, à vista disso, muitas vezes julgam erroneamente que tudo aquilo provém de algum pecado oculto, pelo que dizem às vezes: «E eu imaginava que esse homem fosse tão bom! Como se explica que ele padeça tão grandes dores e contratempos, quando eu acreditava que ele fosse um homem sem falha?» E eu concordo com elas: Sem dúvida, se as coisas que elas padecem fossem padecem fossem (verdadeiros) sofrimentos, e dores e desgraças para elas, então elas não seriam boas nem sem pecado. Mas se são pessoas boas, os ditos sofrimentos não são sofrimentos nem desgraças para elas; antes, são para elas uma grande ventura e felicidade. «Bem-aventurados», diz Deus, a Verdade, «são todos aqueles que sofrem por causa da justiça» (Mt 5,10). Por isso se diz no livro da Sabedoria que «as almas al mas dos justos j ustos estão na mão do Senhor. Aparentemente eles estão mortos aos olhos dos insensatos: seu desenlace é julgado como uma desgraça, e sua morte como uma destruição, quando na verdade estão na paz» (Sb 3,1), no regozijo e na beatitude. Na passagem onde São Paulo descreve as múltiplas e grandes penas sofridas por numerosos santos, ele diz que o mundo não era digno deles (Hb 11,36s). Esta palavra, se bem entendida, tem um sentido tríplice. O primeiro é que este mundo não merece a existência de muitos homens bons. Um segundo sentido é preferível e denota que a bondade deste mundo se apresenta como desprezível e sem valor; só Deus tem valor, e por isso eles são valiosos para Deus e dignos de Deus. O terceiro sentido é aquele em que penso agora, a saber: que este mundo, ou seja, as pessoas que amam este mundo, não são dignas de padecer dores e adversidades por causa de Deus. Por isso está escrito que os santos Apóstolos se alegraram por terem sido considerados dignos de sofrer ultrajes por causa do nome de Deus (At 5,41). Mas basta de palavras. de palavras. Pois na terceira parte deste livro vou escrever sobre várias formas de consolação que também devem e podem consolar o homem bom no seu sofrimento; com a diferença de que agora as encontrará nas obras, e não apenas nas palavras de homens bons e sábios. 3
No livro dos Reis se lê que um homem amaldiçoou o rei Davi e o cobriu de graves insultos. Um dos amigos de Davi lhe disse que ia matar aquele cão insolente. Mas o rei lhe disse: «Não ! Talvez o Senhor me dê bens pelos insultos de hoje» (2Rs 16,5s). No livro dos Padres se lê que um homem veio queixar-se a um deles do seu muito sofrer. Este lhe disse: «Queres, filho, que eu rogue a Deus que te livre dos sofrimentos?» «Não, pai», disse o homem, «pois reconheço que eles são salutares para mim. Antes, pede a Deus que me dê a graça de suportá-los de boa vontade». Certa feita perguntaram a um homem enfermo por que não pedia a Deus que lhe restabelecesse a saúde. O homem disse que preferia não fazê-lo, por três motivos. Primeiro, porque cria estar certo de que um Deus cheio de amor jamais permitiria que ele estivesse doente se não fosse para o seu bem. Um outro motivo, disse, é que o homem, posto que seja bom, quer tudo o que Deus quer, e não que Deus queira o que o homem quer; (pois) isto seria coisa mui descabida. Portanto, se Ele quer que eu esteja enfermo — e se não o quisesse, eu não estaria enfermo —, então não devo desejar estar são. Pois, sem dúvida, se fosse possível que Deus me desse a saúde sem que Ele o quisesse, então o ser curado por Deus seria para mim coisa sem valor e indiferente. O querer vem do amar, o não-querer vem do não-amar. Muito preferível, melhor e mais proveitoso é para mim que Deus me ame estando eu doente, do que estar são de corpo e não ser amado de Deus. O que Deus ama, algo é; o que Deus não ama, nada é, assim diz o livro da Sabedoria (cf. Sb 11,25). Também nisto está a verdade: que tudo o que Deus quer é bom pelo fato e no fato mesmo de que Deus o quer. Deveras, e para falar à maneira humana, eu preferiria que um homem rico e poderoso,
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um rei por exemplo, me amasse, deixando embora de beneficiar-me por algum tempo, a logo receber alguma coisa por sua ordem sem gozar do seu amor sincero; e que, por amor, nada me desse agora, contanto que deixasse de presentear-me agora só porque tenciona cumular-me, depois, de presentes tanto mais ricos e magníficos. E suponhamos, mesmo, que o homem que me ama e nada me dá agora, não tencione dar-me coisa alguma mais tarde; pode ser que, pensando melhor, me dê alguma coisa. Aguardarei com paciência, tanto mais que a sua dádiva é graciosa e imerecida. Uma coisa é certa: o homem de cujo amor eu não fizesse caso e cuja vontade eu contrariasse, mirando apenas às suas dádivas, com toda a justiça me deixaria sem nada e, além disso, com razão me odiaria e me abandonaria à desgraça. O terceiro motivo pelo qual não me interessa e até me repugna pedir a Deus que me restitua a saúde é que não quero nem devo pedir coisa de tão pouco valor a um Deus tão rico, benevolente e generoso. Suponhamos que eu viajasse cem ou duzentas milhas para ver o Papa e, admitido à sua presença, lhe dissesse: «Senhor e Santo Padre, percorri duzentas milhas, em viagem difícil e onerosa, para vir até aqui. E agora peço a Vossa Santidade — pois foi com esse fim que vim à Vossa presença —, que me deis uma fava!» Na verdade, o Papa, e cada um que tomasse conhecimento do fato diria, e com toda a razão, que eu sou um tolo de marca maior. Mas é verdade certa que, em comparação a Deus, todos os bens, e mesmo a criação inteira, valem menos que uma fava, comparada a todo este mundo corporal. Por isso, posto que seja homem bom e sábio, cabe-me desdenhar, com razão, o desejo de pedir que Deus me dê saúde. Nesse contexto digo, ademais, ser indício de ânimo fraco o alegrar-se ou preocupar-se alguém com as coisas passageiras deste mundo. E o homem que descobrisse tal coisa em si deveria envergonhar-se mui sinceramente diante de Deus e dos seus anjos e diante dos homens. Pois não é assim que nos envergonhamos, e muito, de um defeito facial que as pessoas percebem (apenas) exteriormente? Mas por que prolongar o discurso? Tanto os livros do Antigo e do Novo Testamento como os dos Santos, e também os dos pagãos, estão repletos de exemplos de como homens piedosos, por amor a Deus e também por virtude natural, entregaram suas vidas e espontaneamente se negaram a si mesmos. Sócrates, um mestre pagão, diz que as virtudes tornam possíveis coisas impossíveis e, ademais, fáceis e agradáveis. Não quero deixar de mencionar também aquela mulher piedosa de quem nos fala o livro dos Macabeus: como um dia presenciou com seus próprios olhos as torturas terríveis, desumanas e horripilantes infligidas e aplicadas aos seus sete filhos, e como assistiu a tudo de ânimo alegre, alentando-os e exortando-os um a um a sacrificar de bom grado corpo e alma por amor à justiça de Deus. E assim concluo este livro. Mas gostaria de acrescentar mais duas palavras. A primeira é esta: um homem bom e divinal deveria sentir-se viva e profundamente envergonhado por deixar-se abalar pela dor, quando vemos como o mercador, para tirar um lucro insignificante, e ainda por cima incerto, percorre, vezes seguidas, terras distantes, por caminhos difíceis, cruzando montanhas e vales, desertos e mares, ameaçado de perder a vida e os bens nas mãos de bandidos e assassinos, sofrendo grandes privações à míngua de comida e bebida e sono, e sujeitando-se a outros incômodos mais: tudo isso ele o desconhece de bom grado por causa de um lucro tão pequeno e incerto. O cavaleiro arrisca no combate os haveres, a vida e a alma em troco de uma glória passageira e de curtíssima duração, e nós reputamos por um prodígio uns poucos sofrimentos por Deus e pela bem-aventurança eterna! et erna! A outra palavra que (ainda) quisera dizer é que muito indivíduo de espírito grosseiro dirá que das palavras que escrevi neste livro, e noutra parte também, muitas não são verdadeiras. A um tal eu respondo o que diz S. Agostinho no primeiro livro das Confissões. Observa ele que tudo o que ainda está por vir, mesmo daqui a milhares e milhares de anos, caso o mundo subsista por tanto tempo, Deus (já) o fez agora, e ainda hoje fará tudo o que já passou há muitos milênios. Que posso eu fazer, se alguém não compreende? E outra vez diz, noutro lugar, que manifestamente se ama por demais a si mesmo o homem que quer cegar os outros para que a sua cegueira fique oculta. A mim me basta que em mim e em Deus seja verdadeiro o que falo e escrevo. A quem vê uma vara mergulhada na água ela parece ser torta, embora seja perfeitamente reta; o que vem do fato de ser a água mais grosseira que o ar; sem embargo, tanto em si mesma como aos olhos de quem a vê
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somente na pureza do ar, a vara é reta e não torta. Diz Santo Agostinho: «Aquele que, sem conceitos múltiplos, sem objetos múltiplos e sem representações figurativas conhece interiormente o que nenhuma visão exterior introduziu, sabe que isso é verdadeiro. Mas o que nada sabe disso, este se ri e escarnece de mim; eu porém tenho pena dele. E, no entanto, indivíduos deste jaez pretendem contemplar e perceber coisas eternas e obras divinas e situar-se na luz da eternidade, quando o seu coração continua borboleteando no ontem e no amanhã.» Sêneca, um mestre gentio, diz: «De coisas grandes e elevadas convém falar com sentimentos grandes e elevados e com alma sublime». Dir-se-á também que não se deve falar ou escrever sobre tais doutrinas para os iletrados. A isso respondo: se não é lícito instruir os iletrados, nunca ninguém se fará letrado, e já não haverá quem possa ensinar ou escrever. Com efeito, é por isso que se cuida de instruir os iletrados: para que, de iletrados, se tornem letrados. Se nada houvesse de novo, nada ficaria velho. «Os que gozam de saúde», diz Nosso Senhor, «não necessitam de medicamenta» (Lc 5,31). O médico existe é para curar os doentes. Mas se há quem entenda mal estas palavras, que pode fazer o homem que bem exprime esta palavra que é boa? São João anuncia o santo Evangelho a todos os crentes, e também a todos os descrentes, a fim de que se façam crentes e, no entanto, ele principia o Evangelho com G enunciado mais sublime sobre Deus que o homem pode fazer neste mundo; e, por sinal, muitas vezes as suas palavras, como as de Nosso Senhor, foram mal entendidas. Que o Deus de amor e misericórdia, a (própria) Verdade, nos dê, a mim e a todos os que irão ler este livro, encontrar e tomar consciência da verdade em nós. Amém. Tradução de Raimundo Vier, O.F.M.
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��. � ����� ����� Este texto constituiu, provavelmente, um sermão pronunciado diante da rainha Inês da Hungria. De forma indireta, Eckhart deixa entrever sua própria trajetória espiritual. Descreve os seis passos da ascensão do espírito a Deus. Na me-dida em que ascende, a pessoa vai liberando a semente divina depositada dentro de seu coração, até aparecer a perfeita filiação divina. «O homem deve apartar-se de todas as imagens e de si mesmo, e distanciar-se e desassemelhar-se de tudo se é que realmente quer e deve acolher o Filho e tornar-se filho no seio e no coração do Pai... No uno se encontra a Deus e quem quer encontrar a Deus deve tornar-se uno». Esse ideário, como enfatizamos na introdução, pertence ao cerne da mística do Mestre Eckhart. A tradução foi feita do alemão (Vom edlen Menschen: Meister Eckharts Traktate. Die deutschen Werke V, W. Kohlhammer, Stuttgart 1963, 498-504). Nosso Senhor diz no Evangelho: «Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou» (Lc 19,12). Com estas palavras, Nosso Senhor nos ensinou como é nobre o homem em sua natureza criada e como é divino o que lhe é acessível por graça e, ademais, como o homem deve chegar até lá. Outrossim, alude-se nestas palavras a uma grande parte da Sagrada Escritura. Importa saber, em primeiro lugar — como aliás é claro e manifesto — que o homem tem em si duas espécies de natureza: corpo e espírito. Por isso diz um escrito: Quem se conhece a si mesmo, conhece todas as criaturas, pois todas as criaturas são ou corpo ou espírito. E a Escritura diz do homem que há em nós um homem exterior e um outro, o homem interior. Ao homem exterior pertence tudo aquilo que se prende à alma, e contudo está revestido de carne e misturado com ela e (por isso) opera juntamente com e em cada órgão corporal, com o olho, por exemplo, ou com o ouvido, a língua, a mão, etc. A isso tudo a Escritura chama de homem velho, homem terreno, homem exterior, homem inimigo, homem
servil. O outro homem que há em nós é o homem interior; e este, a Escritura lhe chama homem novo, homem celeste, homem jovem, amigo, e homem nobre. E é deste que fala Nosso Senhor ao dizer que «um homem nobre partiu para uma terra distante e tornou posse de um reino e voltou». Cumpre saber, outrossim, que no dizer de São Jerônimo, como dos mestres em geral, cada homem, desde o começo de sua existência humana, tem um espírito bom ou anjo, e um espírito mau ou demônio. Os conselhos do anjo bom incitam constantemente ao que é bom, ao que é divino, ao que é virtude e celestial e eterno. O espírito mau aconselha e instiga o homem constantemente ao temporal e transitório e ao que é desvirtude, mau e diabólico. O mesmo espírito mau parlamenta sem cessar com, o homem exterior e, através dele, tenta secretamente o homem interior, exatamente como a ser-pente dialogava com Eva, a mulher, e através dela com o homem Adão (cf. Gn 3,1s). O homem interior é Adão. O homem na alma é a árvore boa a que se refere Nosso Senhor (cf. Mt 7,17) e que sempre e sem cessar produz fruto bom. Outrossim, ele é o ca mpo em que Deus implantou sua imagem e semelhança e onde semeia a boa semente, raiz de toda sabedoria, de todas as artes, de todas as virtudes, de toda bondade: a semente de natureza divina (2Pd 1,4). Semente de natureza divina é o Filho de Deus, a Palavra de Deus (Lc 8,11). O homem exterior é o homem inimigo e mau que semeou e lançou o joio (cf. Mt 13,24s). Dele diz São Paulo: Deparo em mim algo que me embaraça e é contra o que Deus manda e o que Deus aconselha e o que Deus falou e ainda fala no mais alto e no fundo de minha alma (cf. Rm 7,23). E alhures diz e lamenta: «Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que acarreta a morte?» (Rm 7,24). E em mais outro lugar diz que o espírito do homem e sua carne lutam constantemente um contra o outro. A carne recomenda o vício e a maldade; o espírito inculca o amor de Deus, a alegria, a paz e toda a virtude (cf. G1 5,17s). Quem segue o Espírito e vive pelo Espírito e segundo o seu conselho, tem a vida eterna (cf. G1 6,8). O homem interior é aquele de
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quem Nosso Senhor diz que «um homem nobre partiu para uma terra distante a fim de tomar posse de um reino». Ele é a árvore boa que, no dizer de Nosso Senhor, produz sempre frutos bons e nunca maus, visto querer a bondade e aspirar à bondade, tal como flutua em si mesma, incontaminada pelo isto e pelo aquilo. O homem exterior é a árvore má que em tempo algum pode dar fruto bom (cf. Mt 7,18). Da nobreza do homem interior e da desvalia do homem exterior, da carne, dizem também os mestres gentios Túlio e Sêneca: Alma alguma dotada de razão é sem Deus; a semente de Deus está em nós. Tivesse ela um cultor bom, sábio e diligente, tanto melhor medraria e cresceria para Deus de quem é semente, e seu fruto tornar-se-ia igual à natureza de Deus. A semente da pereira desenvolve-se em pereira, a semente da nogueira em nogueira, a semente de Deus, em Deus (cf. 1J0 3,9). Se porém a boa semente tiver um cultor tolo e mau, então cresce o joio, encobrindo e embaraçando a semente boa e não lhe permitindo vir à luz nem germinar. Orígenes, um grande mestre, diz: Como o próprio Deus semeou e implantou e inengendrou esta semente, ela pode certamente ficar encoberta e oculta, nunca porém ser destruída ou em si apagada: ela arde e brilha, resplende e queima, e sem cessar tende para Deus. O primeiro degrau do homem interior e novo, diz Santo Agostinho, consiste em modelar o homem sua vida pelo exemplo de pessoas boas e santas, mas continuando a caminhar pegado às cadeiras e cosido às paredes, e a sustentar-se com leite. O segundo degrau é aquele em que o homem já não olha apenas para os modelos exteriores, inclusive os de homens bons, mas corre a buscar, pressuroso, a doutrina e o conselho de Deus e da sabedoria divina, dando as costas à humanidade e voltando o rosto para Deus, deixando o regaço da mãe e sorrindo para o pai. O terceiro degrau consiste em apartar-se o homem mais e mais de sua mãe e em distanciar-se sempre mais do seu colo, fugindo ao cuidado e depondo o temor, de modo tal que, embora pudesse praticar o mal e a injustiça sem dar escândalo a toda a gente, nem assim quereria fazê-lo; tão íntima é sua união de amor com Deus, e tão zelosa a sua diligência (que não descansa) até que seja introduzido na alegria, na doçura e na bem-aventurança que lhe façam aborrecer tudo que lhe é dessemelhante e alheio. O quarto degrau consiste em que o homem cresça e se fixe mais e mais no amor e em Deus, dispondo-se assim a enfrentar com vontade e gosto, com sofreguidão e alegria, toda a espécie de provação, de tentação, de contrariedade e de padecimento. O quinto degrau está em que o homem viva em toda a parte na paz interior, descansando tranqüilamente na riqueza e na superabundância da suprema e inefável sabedoria. O sexto degrau consiste no despojar-se! da imagem (humana) e no revestir a imagem da eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal, de modo tal que, feito filho de Deus, e atraído por Deus, o homem se transmude em imagem de Deus. Degrau ulterior ou mais elevado não há. E ali reinam a paz e a bem-aventurança eternas, pois o fim último do homem interior e do homem novo é: a vida eterna. Com referência a este homem interior e nobre, no qual se encontra impressa e implantada a semente de Deus e a imagem de Deus, e à maneira como se manifesta esta semente e esta imagem da natureza e da essência divina, o Filho de Deus, e como dela se toma conhecimento, e também como por vezes ela se oculta — sobre isso o grande mestre Orígenes apresenta uma comparação: O Filho de Deus, diz, está no fundo da alma como uma fonte viva. Mas se alguém a entupir com terra, isto é, com a cobiça terrena, ela ficará obstruída e oculta e, portanto., despercebida; e, contudo, a nascente permanece viva em si mesma, e logo que se afaste a terra lançada de fora sobre ela, tornará a aparecer e dela nos aperceberemos. E diz ele que a isso, se alude no primeiro livro de Moisés, onde está escrito que Abraão cavara poços de água viva no seu campo, mas .que uns malfeitores os encheram de terra; todavia, depois de removida a terra, os poços reapareceram, vivos (cf. Gn 26,14s). Há mais outra analogia para o caso. O sol brilha sem cessar; contudo, quando uma nuvem ou a neblina se interpõe entre nós e o sol, já não lhe percebemos o brilho. Do mesmo modo, quando o
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olho está doente em si mesmo, e enfermiço, ou velado, é-lhe impossível perceber o brilho. E já tive a oportunidade de propor um outro símile muito claro: quando um mestre faz uma imagem de madeira ou de pedra, ele não introduz a imagem na madeira; o que ele faz é aparar as lascas que ocultavam e encobriam a imagem; não dá coisa alguma à madeira, mas lhe tira e escava a cobertura e afasta a ferrugem, fazendo aparecer o brilho do que jazia oculto debaixo dela. Este é o tesouro que jazia oculto no campo, como diz Nosso Senhor no Evangelho (Mt 13,44). Diz Santo Agostinho: Quando a alma do homem se eleva inteiramente à eternidade, e a Deus somente, a imagem de Deus irrompe à luz; mas quando a alma se volta para fora, e fosse para a prática externa da virtude, a imagem de Deus fica totalmente encoberta. E é isso o que deve significar (o costume de) as mulheres trazerem a cabaça coberta, enquanto os homens (a trazem) descoberta, segundo a doutrina de São Paulo (cf. 1Cor 11,4s). Portanto: tudo aquilo que na alma se volta para baixo recebe um manto ou véu daquilo a que se volta; aquilo porém que na alma se remonta ao alto, isso é pura imagem de Deus, prole de Deus, desvendada e nua na alma desnuda. Do homem nobre — (isto é) de como a imagem de Deus, o Filho de Deus, a semente da natureza divina em nós nunca é destruída, posto que possa ser encoberta — diz o rei Davi no livro dos Salmos: Embora acometido de muitas privações, sofrimentos e calamidades, o homem permanece contudo na imagem de Deus e a imagem (de Deus) nele (cf. Sl 4,2s). A luz verdadeira reluz na treva, posto que não a percebamos (cf. Jo 1,5). «Não repareis na minha tez morena», diz o Livro do Amor. «Sou morena mas formosa e de boa compleição, mas e sol me descorou» (Ct 1,5). «O sol» é a luz deste mundo e significa que (mesmo) o que há de mais sublime e de melhor nas coisas criadas e feitas encobre e descora a imagem de Deus em nós. «Tira as escórias à prata», diz Salomão, «e terás um vaso purísimo» (Pr 25,4), a imagem, o Filho de Deus, na alma. E é isto o que Nosso Senhor quer dizer com as palavras: «Um homem nobre partiu», pois o homem deve apartar-se de todas as imagens e de si mesmo, e distanciar-se e desassemelhar-se de tudo isso, se é que realmente quer e deve acolher o Filho e tornar-se filho no seio e no coração do Pai. Qualquer espécie de mediação é estranha a Deus. «Eu sou», diz Deus, «o Primeiro e o Último» (Ap 22,13). Não há distinção nem na natureza de Deus, nem nas Pessoas em relação à unidade da natureza. A natureza divina é una, e cada Pessoa também é una e é o mesmo uno que é a natureza. A distinção entre ser e essência é tomada coma uno e é uno. (Somente) ali onde ele (isto é, este Uno) não (mais) se contém em si, ele recebe, possui e produz distinção. Por isso: no uno se encontra a Deus, e quem quer encontrar a Deus deve tornar-se uno. «Um homem», diz Nosso Senhor, «partiu». Na distinção não se encontra nem o uno, nem o ser, nem a Deus, nem repouso, nem bem-aventurança, nem satisfação. Sê uno, para que possas encontrar a Deus! Na verdade, se fosses devidamente uno, também permanecerias uno no distinto, e o distinto tornar-se-ia uno para ti e de modo algum lograria impedir-te. O uno permanece uniformemente uno em mil vezes mil pedras como em quatro pedras, e mil vezes mil é tão certamente um número simples como (o) quatro é um número. Diz um mestre pagão que o um nasce do Deus supremo. O seu próprio é ser um com o uno. Quem o procura abaixo de Deus ilude-se a si mesmo. E, em quarto lugar, diz o mesmo mestre, este uno com nada tem amizade mais propriamente dita do que com as virgens ou donzelas, como diz São Paulo: «Dei-vos em matrimônio e desposei-vos como virgens puras ao Uno» (2Cor 11,2). Exatamente assim deveria ser o homem, pois assim fala Nosso Senhor: «Um homem partiu». «Homem», na acepção própria da palavra latina, significa, em um sentido, aquele que com tudo o que é e com tudo o que é seu se sujeita e obedece a Deus e, levantando os olhos ao céu, contempla a Deus, e não o que é seu: isto ele sabe (estar) atrás, abaixo e junto de si. Esta é a humildade perfeita e propriamente dita; este nome lhe (ao homem) vem da terra. Mas não pretendo estender-me agora sobre este assunto. A palavra «homem» significa também algo que transcende a natureza, o tempo e tudo o que diz respeito ao tempo ou sabe a tempo; e o mesmo se diga do espaço e da corporeidade. Ademais, este «homem» de certa forma nada compartilha com coisa alguma, isto é, não se configura ou assemelha com isto nem com aquilo, e nada sabe do Nada, de sorte que em nenhuma parte dele se encontra ou percebe algo do Nada; tão perfeita é sua imunidade ao Nada que nele só encontrarás vida, ser, verdade e bondade puros. Uma pessoa assim
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é na verdade um homem «nobre», nem menos nem mais. Há mais outra interpretação e outro ensinamento referente ao que Nosso Senhor chama um «homem nobre». Convém saber, com efeito, que aqueles que conhecem a Deus, sem véu, conhecem ao mesmo tempo as criaturas; pois o conhecimento é uma luz da alma, e todos os homens, por natureza, aspiram ao conhecimento, pois mesmo o conhecimento de coisas más é bom. Ora, dizem os mestres: se se conhece a criatura em sua essência própria, isto se chama «conhecimento vespertino», no qual se vêem as criaturas em imagens múltiplas e diversas; quando, ao invés, se conhecem as criaturas em Deus, isto se chama, e é, um «conhecimento matutino», e por este modo se contemplam as criaturas sem quaisquer distinções e despidas de todas as imagens e despojadas de toda igualdade no Uno que é o próprio Deus. Também este é o «homem nobre» do qual diz Nosso Senhor: «Um homem nobre partiu»: nobre, porque é uno e conhece a Deus e as criaturas no Uno. Vou referir e entrar em mais outro sentido do que seja o «homem nobre». Digo pois: quando o homem, a alma, o espírito contempla a Deus, ele se sabe e conhece como conhecente, quer dizer: ele sabe que contempla e conhece a Deus. Ora, houve quem opinasse — como aliás parece ser assaz verossímil — que a flor e o cerne da bem-aventurança residem naquele conhecimento em que o espírito conhece que conhece a Deus; pois, se eu tivesse tudo o que é deleite e não o soubesse, que me aproveitaria isso, e que espécie de deleite seria isso para mim? No entanto, eu digo com certeza que assim não é. Embora seja verdade que sem isso a alma não seria bem-aventurada, não obstante, a bem-aventurança não reside nisso; pois a bem-aventurança consiste, primacial-mente, em que a alma contemple a Deus sem véu. É nisso que ela recebe todo o seu ser e a sua vida e tira do fundo de Deus tudo o que ela é, sem nada saber de saber nem de amor nem do que quer que seja. A alma se aquieta total e exclusivamente no ser de Deus. Nada sabe ali senão o ser e Deus. Quando porém ela sabe e conhece que contempla, conhece e ama a Deus, isto constitui — segundo a ordem natural — uma saída do Primeiro, e um retorno a Ele; pois não se conhece como branco senão quem realmente é branco. Por isso, aquele que se conhece como branco, constrói e trabalha sobre o ser-branco, e não tira o seu conhecer imediatamente e — (enquanto ainda) o ignora — diretamente da cor, mas deriva o conhecer e o saber que tem dela (isto é, da cor) daquilo que calha ser branco, e não exclusivamente da cor em si; antes, tira o conhecer e o saber de alguma coisa colorida ou branca, e se conhece a si como branco. Uma coisa branca é algo muito inferior ao ser-branco (ou: à brancura) e muito mais extrínseco do que este. Uma coisa é a parede e outra coisa muito diferente é o fundamento em que assenta a parede. Dizem os mestres que uma é a força por cuja virtude o olho vê, e outra, a força pela qual ele conhece que vê. Aquilo, ou seja, o ver, ele o tira exclusivamente da cor, e não do que é colorido. Dai ser perfeitamente indiferente que a coisa colorida seja uma pedra ou (um pedaço) de madeira, um homem ou um anjo: o essencial está unicamente em que tenha cor. Do mesmo modo, digo eu, o homem nobre colhe e tira todo o seu ser, todo o seu viver e sua bem-aventurança somente de Deus, COM Deus e em Deus, e não do conhecer-, contemplar- ou amar-a-Deus ou de algo semelhante. Por isso diz Nosso Senhor, em palavra feliz e memorável, que a vida eterna consiste nisto: em se conhecer a Deus por único Deus verdadeiro (Jo 17,3), e não: em conhecer que se conhece a Deus. Com efeito, como poderia conhecer-se como conhecendo-a-Deus o homem que não se conhece a si mesmo? Pois, certamente, o homem não se conhece a si mesmo nem as demais coisas, antes conhece na verdade a Deus somente quando se torna bem-aventurado e é bem-aventurado na raiz e no fundamento da bem-aventurança. Mas quando a alma conhece que conhece a Deus, ela obtém ao mesmo tempo o conhecimento de Deus e de si mesma. Mas — como já mostrei — há uma força graças à qual o homem vê, e uma outra pela qual sabe e conhece que vê. É verdade que agora, cá embaixo, em nós, a força pela qual sabemos e conhecemos que vemos, é mais nobre e mais elevada do que aquela que nos faz ver; pois a natureza, em suas operações, começa pelo mais ínfimo, ao passo que Deus começa, em suas obras, pelo mais perfeito. A natureza faz o homem a partir da criança, e a galinha, do ovo; Deus, ao invés, faz o homem antes da criança e a galinha antes do ovo. A natureza primeiro aquece e abrasa a acha, e só depois dá origem ao ser do fogo; mas Deus dá, primeiro, o ser a toda criatura e, depois, no
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tempo, mas sem tempo, (dá) a cada um em particular tudo o que lhe (isto é, ao ser) pertence. Outrossim, Deus dá o Espírito Santo antes dos dons do Espírito Santo. Digo pois que na verdade não há bem-aventurança sem que o homem tome consciência e bem saiba que vê e conhece a Deus; mas Deus me livre de ver nisso o fundamento da minha bemaventurança! Se há quem se satisfaça com isso, bem lhe haja; mas a mim me causa dó. O calor do fogo e o ser do fogo diferem muito e distam espantosamente um do outro na natureza, ainda que no espaço e no tempo um esteja bem junto ao outro. O contemplar de Deus e o nosso contemplar são completamente distantes e desiguais um do outro. Por isso disse Nosso Senhor com muito acerto que «um homem nobre partiu para uma terra distante a fim de tomar posse de um reino e regressar». Pois o homem deve ser um em si mesmo e deve procurá-lo (isto é, o ser-um) em si e no Uno e recebê-lo no Uno, isto é: somente contemplar a Deus; e «regressar», isto é: saber e conhecer que conhece e sabe a Deus. Tudo quanto aqui se expôs, o profeta Ezequiel o predisse ao declarar que «uma águia poderosa, de grandes asas, de longas penas rêmiges, coberta de plumas, de plumagem multicor, veio ao Líbano e colheu a copa de um cedro, arrancou a ponta dos seus ramos e a trouxe para baixo» (Ez 17,3s). O que Nosso Senhor chama «um homem nobre», o profeta lhe chama «uma grande águia». Ora, quem é mais nobre do que aquele que nasceu, por um lado, do que há de mais elevado e de melhor na criatura e, por outro, do fundo mais íntimo da natureza divina e de sua solidão? «Eu conduzirei a alma nobre à solidão», diz Nosso Senhor no profeta Oséias, «e ali falarei ao seu coração» (Os 2,14). Um com o Uno, Um do Uno, Um no Uno, e no Uno Um para sempre. Amém. Tradução de Raimundo Vier, O.F.M.
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���. ������������ ����������� Antes de 1298, portanto com pouco menos de quarenta anos, Eckhart chega. a Erfurt vindo de Paris onde chegara a ser Mestre de Teologia. Tem a seu encargo a formação dos jovens estudantes e noviços. À noite, após a ceia, reúnem-se em círculo ao redor do Mestre e colocam questões que tinham ficado abertas nas aulas. É nesta ocasião que Eckhart, de forma direta e curta, expõe suas intuições místicas e ascéticas. Neste texto não aparecem ainda os grandes temas que constituirão a originalidade deste grande místico cristão. Mas emergem com constância alguns temas que compõem seu caminho espiritual, especialmente aquele da perfeita disponibilidade, desprendimento e liberdade. «Atitude livre é aquela de quem não se perturba com nada nem está preso a nada, nem condicionou sua felicidade a uma situação dada, nem se preocupa consigo mesmo... mas se despojou de si mesmo». A chave da união com Deus reside no completo esvaziamento de si mesmo, dos interesses, das fantasias. Somente então Deus ocupa a totalidade do espaço do coração e não apenas um lugar. Este pode ver Deus assim como Ele é em sua essência e natureza, enchendo tudo e resplendendo dentro de todas as criaturas. A tradução foi feita do alemão (Reden der Unterweisung: Meister Eckharts Traktate. Die deutschen Werke V, W. Kohlhammer, Stuttgart 1963, 505-538). Estas são as conversações que o vigário da Turingia, o prior de Erfurt, frei Eckhart, da Ordem dos Pregadores, manteve com seus filhos (espirituais) que lhe colocavam muitas questões quando estavam sentados juntos para as preleções da tarde.
�. � ���������� ���������� A obediência verdadeira e perfeita é uma virtude que antecede a todas as demais virtudes. Sem ela nenhuma obra, por maior que seja, pode acontecer ou ser feita; assim, se uma obra, por menor ou insignificante, for realizada na perfeita obediência, ela se torna mais útil, por exemplo, rezar ou assistir à missa, meditar ou qualquer coisa que possas imaginar. Toma uma ação qualquer mesmo a mais irrelevante, como quiseres ou seja lá como for: a verdadeira obediência torna-a mais nobre e melhor. A obediência realiza o melhor em todas as coisas e de forma perfeita e acabada. Com efeito, a obediência jamais perturba nem cria obstáculo algum a nada, pouco importa o que alguém faça, contanto que proceda da verdadeira obediência. Quem obedece assim não negligencia nenhum bem. A obediência não deve jamais se mostrar preocupada, nenhum bem lhe faz falta. Sempre que o homem, na obediência, sai de seu eu e se despoja de suas coisas e interesses, Deus necessariamente penetra nele; pois quando alguém não quer nada para si mesmo, Deus quer para ele, na mesma medida em que quer para si mesmo. Quando me despojei de minha vontade, depositei-a nas mãos de meu Superior e não quis mais nada para mim, então é necessário que Deus queira para mim; se nisso Ele me negligencia, Ele se negligencia ao mesmo tempo a si mesmo. Assim ocorre em todas as coisas: sempre que eu não quero nada para mim Deus o quer para mim. Mas atenção! Que quer Deus para mim se eu não quero nada para mim? Sempre que abandono meu eu, Deus necessariamente deve querer por mim tudo o que Ele quer para si mesmo, nem mais nem menos. E isso Ele o quer na mesma medida com a qual Ele o quer para si mesmo. E se Deus não fizesse isto — pela verdade que é Deus — Deus não seria justo nem seria Deus, porquanto é assim sua natureza e essência. Na verdadeira obediência não se deve encontrar «eu quero assim ou assado» ou «isto ou aquilo» mas unicamente uma perfeita renúncia de si mesmo. Por isso a melhor oração que o homem pode fazer não deve soar assim: «Senhor, dá-me esta virtude ou esta maneira de agir»,
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nem: «dá-me, Senhor, a Ti mesmo ou a vida eterna», mas somente: «Senhor, não me dês nada, senão aquilo que Tu queres; faze, Senhor, em cada momento, o que Tu queres e como Tu queres». Esta oração excele à outra como G céu à terra; quem rezou assim rezou bem: este, na verdadeira obediência, saiu de seu eu e mergulhou em Deus. Como a verdadeira obediência não conhece nenhum «eu quero assim», também não se deve jamais ouvir «eu não quero»; pois o «eu não quero» é um verdadeiro veneno para qualquer obediência. Santo Agostinho disse: «Servo fiel é aquele que não gosta que se lhe diga ou dê o que ele gostaria de ouvir ou ver, mas seu fundamental e supremo desejo é ouvir antes o que mais agrada a Deus».
�. ���� � ������ ���� ����� � ���� � ���� ���� ��������� A oração mais forte e como que a mais poderosa para alcançar todas as coisas, a obra mais digna entre todas é aquela que brota de uma atitude livre (lediges Gemlit). Quanto mais livre for a atitude, tanto mais forte, digna, útil, louvável e perfeita é a oração e a obra. A atitude livre pode tudo. Que é uma atitude livre? A atitude livre é aquela de quem não se perturba com nada nem está preso a nada; nem condicionou a sua felicidade a uma situação dada, nem se preocupa consigo mesmo, antes está mergulhado totalmente na amorosíssima vontade de Deus e se despojou de si mesmo. Ninguém pode realizar alguma obra, por mais insignificante que seja, que não haura daí sua força e seu poder. Deve-se rezar tão intensamente que se deseje que todos os membros, todas as forças do homem, os olhos, os ouvidos, a boca, o coração, enfim, todos os sentidos estejam orientados para a oração; e não se deve parar antes de sentir que se vai unir Àquele que se tem presente e para a qual se reza, isto é: Deus.
�. �� �����������, ������ �� �� ������ Há os que dizem: «Ah, Senhor, eu gostaria tanto de estar bem com Deus; gostaria de ter a piedade e a paz com Deus como tantos as têm; como gostaria que acontecesse isso comigo, pudesse eu ser também pobre»! Há outros que dizem: «Se eu não estiver neste ou naquele lugar, se não fizer isso ou aquilo eu não me realizo»! ou «eu preciso viver no estrangeiro ou num eremitério ou num convento»! Ora, nisso tudo se esconde o teu eu e nada mais! É o teu egoísmo, mesmo quando não tens consciência disto, nem o creias: jamais irrompe uma intranqüilidade em ti que não venha do teu egoísmo, quer o concientizes quer não. Há os que pensam que para se realizar têm que fugir disto ou buscar aquilo, ir para tais e tais lugares ou encontrar-se com tal gente, proceder de tal maneira ou unir-se a este grupo ou fazer tal coisa. Não é por isso que este modo de ser ou estas coisas te criam obstáculos. És tu mesmo o obstáculo para ti mesmo nas coisas, pois te relacionas erroneamente com elas. Por isso, começa primeiro contigo mesmo. Deixa tudo para lá! Não fujas de ti mesmo; para onde quer que fujas, encontrarás sempre obstáculos e perturbações. Pessoas que procuram paz em coisas exteriores, seja em lugares ou em situações diferentes, seja junto a outras pessoas, em obras, no estrangeiro, na pobreza ou mesmo na humilhação, enquanto procurarem desta forma e em tais realidades, nada encontram. Por mais impressionante que tudo seja, não é nada e não confere nenhuma paz. Quem procura assim, procura de forma totalmente errada. Quanto mais se afastam, menos encontram o que procuram. Andam como quem errou o caminho: quanto mais se anda, mais se perde. Então que fazer? Primeiramente a pessoa deve renunciar a si mesma, porquanto quem
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renunciou a si mesmo, renunciou a tudo. Efetiva-mente, se um homem renunciou a um reino ou ao mundo todo, e se conserva a si mesmo, este não renunciou a nada. Se um homem renunciou a si mesmo, renunciou a tudo, mesmo que conserve para si riqueza, honra ou o que quer que seja. São Pedro disse: «Eis, Senhor, que deixamos todas as coisas...» (Mt 19,27). Na verdade ele não havia deixado nada mais do que uma simples rede e seu pequeno barco. Um santo comentando estas palavras afirmou: «Quem abandona, livremente, as pequenas coisas, abandona não somente estas, mas todas as coisas que as pessoas do mundo conquistam, até mesmo tudo o que elas sequer podem desejar. Quem renunciou a sua própria vontade e a si mesmo, renunciou tão verdadeiramente a todas as coisas como se elas fossem sua propriedade e as tivesse possuída com pleno direito. Tudo o que não quiseste desejar, o entregaste e abandonaste por amor a Deus». Com razão falou Nosso Senhor: «Felizes os pobres em espírito» (Mt 5,3), isto é, pobres em sua vontade. Disso ninguém deve duvidar, porque se houvesse outra maneira melhor, Ele o teria dito como também disse: «Quem quiser me seguir, renuncie primeiro a si mesmo» (Mt 16,24). Disso depende tudo. Vigia sobre ti mesmo; onde encontrares a ti mesmo aí renuncia a ti mesmo; isso vale mais que tudo.
�. ���� � ���� ��������� �������� � ������������� Deves saber que jamais alguém renunciou tanto nesta vida que não encontre nada a que ainda não devesse renunciar. São poucos os que têm plena consciência disto e se mantêm firmes. No fundo, trata-se de uma troca proporcional e de um negócio justo: na medida em que sais de todas as coisas, nesta mesma medida — nem mais nem menos — Deus entra em ti com tudo o que Ele tem. Mas somente com a condição de que tu em todas as coisas te despojes completamente de ti mesmo. Começa com isso e paga para isto o quanto puderes. É mais urgente pensar no que se deve ser do que pensar no que se deve fazer. Se as pessoas e suas atitudes forem boas, suas obras brilham com toda claridade. És justo, então tuas obras serão justas. Não se pense em fundamentar a santidade num fazer; antes deve-se fundamentar a santidade num ser, pois as obras não nos santificam; nós é que santificamos as obras. Por mais santas que forem as obras, elas, enquanto obras, jamais chegam a nos santificar. Mas na medida em que nosso ser e nossa natureza forem santos, nesta mesma medida santificamos todas as nossas obras como o comer, o dormir, o acordar, ou outra coisa qualquer. De nada valem as obras, pouco importa quais, daqueles que não são portadores de uma natureza elevada. Tira disto a seguinte lição: coloca todo o teu empenho em ser bom; não te preocupes com o que fazes ou com o tipo de obras que fazes mas com o fundamento e o motivo das obras.
�. � ��� ��� � �������� � � ���������� ����� ���� A razão que confere bondade à natureza e ao fundamento do ser humano e de suas obras é esta: a atitude do homem voltada totalmente para Deus. Coloca nisso todo teu empenho, que Deus se torne grande para ti; em tudo o que fazes ou deixas de fazer orienta teus anseios e tua diligência para Ele. Com efeito, quanto mais límpido fores nisto, melhores serão tuas obras, pouco importa quais forem. Une-te a Deus e todo bem se unirá a ti. Procura a Deus e encontrarás Deus e com Ele todo o bem. Se neste espírito andares sobre uma pedra, eu te digo e garanto que tal fato constitui uma obra que agrada a Deus em grau mais alto do que se recebesses o corpo de Nosso Senhor. Tudo porque não re-paraste em ti mesmo e nos teus interesses e foste menos centrado em teu próprio propósito. Quem se une a Deus, Deus se unirá a ele e todas as virtudes. O que antes buscavas, agora te busca a ti; o que antes procuravas com afinco, agora isto te procura com afinco a ti; aquilo de que tu antes corrias, agora corre de ti. Por isso: quem se prende forte-mente a Deus, a
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este se prende tudo o que é divino; dele foge tudo o que é distante e estranho a Deus.
�. � ������������ � � ����� �� ���� Há pessoas que se afastam totalmente dos homens; gosta-riam de viver sempre sozinhos ou na igreja e pensam Que nisto encontram paz. Perguntaram-me: Isso tudo é o melhor? Eu respondi: Não! Vê por quê: Se alguém está bem, estará bem em todos os lugares e no meio de todo tipo de pessoas. Se está mal, estará mal em todos os lugares e no meio de todo gênero de pessoas. Quem está bem com todas as coisas, traz, verdadeiramente, Deus consigo. E quem traz Deus verdadeiramente consigo, o traz em todos os lugares, na rua e no meio da multidão, tão bem quanto se estivesse numa igreja ou no deserto ou em seu quarto. Se ele verdadeiramente o possui, e somente a Ele, então ninguém pode ser um obstáculo a este homem. Por quê? Porque este possui unicamente a Deus e sua intenção se orienta somente a Deus e todas as coisas se tornam para ele simplesmente Deus. Tal homem traz Deus em todas as suas obras e em todos os lugares; é Deus quem faz as obras deste homem; pois a obra pertence própria e verdadeiramente mais a quem a causa do que a quem a executa. Se tivermos sempre e tão-somente a Deus em mente, então Ele fará nossas obras; na operação destas obras todas não será impedido por ninguém, nem pela multidão nem pelo lugar. Assim esta pessoa não será impedida por ninguém, pois não procura nem anseia nada para si e nada lhe agrada senão Deus. E Deus se unirá a esta pessoa em todos os seus anelos. Como nenhuma multiplicidade consegue distrair Deus, assim nada pode distrair esta pessoa nem dispersá-la. Ele é um naquele Uno no qual toda a multiplicidade é um e uma não-multiplicidade. O homem deve apreender Deus em todas as coisas; deve acostumar o seu espírito a ter sempre Deus presente, no sentimento, na intenção e no amor. Quando estiveres na igreja ou no quarto repara bem como te voltas para Deus: esta mesma atitude conserva-a e leva-a para dentro da multidão, na inquietação e na diversidade. Já o disse várias vezes: quando se fala de «igualdade» não se pensa que se deva apreciar da mesma maneira todas as obras, todos os lugares ou todas as pessoas. Isto seria totalmente incorreto, pois é manifesto que rezar é melhor do que bordar e uma igreja é mais digna que uma rua. Deves manter uma mesma e igual atitude em todas as coisas, uma mesma confiança, um mesmo amor ao teu Deus e uma mesma seriedade. Olha, se mantiveres assim uma tal atitude, ninguém te impedirá de ter Deus sempre presente. Em quem Deus não habita verdadeiramente ou quem procura Deus nisso e naquilo, mas sempre a partir de fora, ou quem procura Deus em forma desigual, seja em obras, no meio da multidão ou em lugares determinados, este não possui Deus. Facilmente pode ocorrer qualquer coisa que perturbe tal homem, pois ele não possui Deus, não procura somente a Ele, nem ama a Ele unicamente nem anseia somente por Ele. Por isso não apenas o perturba a má sociedade mas também a boa, não somente a rua mas também a igreja, não somente as más palavras e as más obras mas também as boas palavras e as boas obras. Isso porque a perturbação habita dentro dele e porque Deus não se tornou nele todas as coisas. Se assim fosse, ele se sentiria bem em todas as circunstâncias e no meio de qualquer tipo de pessoas; pois ele possui Deus; ninguém pode tirá-lo dele nem alguém poderia perturbá-lo em sua obra. Em que pois reside este verdadeiro ter Deus de tal forma que a gente verdadeiramente o passa a possuir? Este verdadeiro ter Deus consiste numa atitude e num voltar-se a Deus e num ansiar por Deus, interior e espiritual. Não consiste num contínuo e simultâneo pensar Deus. Ansiar assim por Deus seria impossível à natureza, além de ser muito penoso; de mais a mais não seria o melhor. O homem não se deve contentar com um Deus pensado, pois quando o pensamento passa, passa também Deus. Deve-se antes possuir um Deus essencial que incomensuravelmente ultrapassa os
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pensamentos do homem e toda a criatura. Este Deus não passa, a menos que o homem voluntariamente se aparte dele. Quem possui Deus assim, isto é, em sua essência, apreende Deus divinamente e Deus se lhe torna transparente em todas as coisas, pois todas as coisas começam a ganhar o sabor de Deus e a imagem de Deus se lhe torna visível de dentro de todas as coisas. Deus brilha nele por todo o tempo. Nele se opera uma conversão libertadora e a marca de seu Deus amado e presente se imprime nele. Sirva-nos de comparação um homem tomado de terrível sede. Pouco importa o que faça em vez de beber e em que coisas pense; enquanto a sede perdurar, seja fazendo isto, ou estando com aquele outro, sabe lá com que desejos, pensamentos ou em que afazeres, não lhe sai da cabeça a idéia da bebida; quanto maior for a sede, tanto mais forte, penetrante, presente e persistente é a idéia da bebida. Ou então é como o homem que ama apaixonadamente. Nada lhe agrada nem lhe passa outra coisa pelo coração que o amor; nada mais anseia senão o amor. Isto é certo: onde quer que este homem esteja, seja lá em companhia de quem, pouco importa o que comece ou empreenda, jamais se apaga nele o que ele tanto ama; em todas as coisas ele encontra a imagem de seu amor; e esta imagem lhe é tanto mais presente quanto mais e mais forte for o amor. Tal homem não procura sossego, pois nenhum desassossego o perturba. Este homem é grandemente louvado frente a Deus porque compreende as coisas divinamente e de forma mais alta do que elas são em si mesmas. Cuidado porém: para isso se necessita de diligência e de dedicação e de vigilante atenção acerca da interioridade humana e de um conhecimento claro, verdadeiro, refletido e real daqueles. objetos sobre os quais está aplicado o espírito, seja que se encontre no meio das coisas ou no meio da multidão. Isto não se pode aprender fugindo das coisas e se refugiando externamente na solidão; antes a pessoa precisa aprender uma solidão interior, pouco importa onde e com quem esteja. Faz-se mister aprender a atravessar as coisas e apreender seu Deus dentro delas e representar Deus a si mesmo com força expressiva e de uma forma essencial. Tal pessoa é semelhante a alguém que quer aprender a escrever. Se quiser dominar esta arte, deve se exercitar nesta operação muito, e muitas vezes por mais árido e penoso que lhe seja ou por mais impossível que lhe pareça: se se aplicar diligentemente e com freqüência ele acaba aprendendo e se apropriando da arte. Primeiramente deve orientar seus pensamentos a cada uma das sílabas e retê-las bem na mente; depois, quando já dominar a arte, ele se li-berta completamente da imagem e da reflexão; escreve livre e espontaneamente. Assim o mesmo ocorre quando sé trata de tocar viola ou de outra obra que dependa de habilidade. Basta à pessoa unicamente saber que quer praticar sua arte; e mesmo se não está plenamente consciente, ela realiza seu ato em virtude de sua habilidade, pouco importa em que esteja pensando. Assim deve o homem ser penetrado pela presença divina e ser formado pela forma de seu Deus bem-amado; deve estar em Deus tão essencialmente que sua presença o ilumine sem qualquer esforço; acima de tudo deve conseguir um despojamento de todas as coisas e alcançar permanecer livre face a elas. Para tanto, no início, são indispensáveis reflexão e diligente penetração como o estudante com referência à sua arte.
�. ���� � ����� ���� ���� �� ����� ���� �������� �������� Ocorre assim com muita gente e facilmente se chega a isso quando queremos as coisas com as quais convivemos e não nos constituem nenhum empecilho nem chegam a impregnar a cabeça com imaginações obsessivas, porque quando o coração está cheio de Deus, as criaturas não podem ter nem encontrar aí nenhum lugar. Mas isto não nos basta. Devemos saber usar em grande medida todas as coisas, seja lá como forem, onde quer que estejamos, pouco importa o que ouçamos ou vejamos, por mais estranho e desmedido que isso possa parecer. Somente então nos comportamos como convém e não como antes. Nesta diligência o homem não pode nunca pretender chegar ao fim; antes, pode crescer incessantemente e chegar sempre mais a um verdadeiro crescimento. Deve-se usar atentamente em todas as ações e em todas as coisas a própria razão e possuir
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em tudo uma consciência aguda acerca de si mesmo e de sua interioridade e apreender Deus em tudo da forma mais profunda possível. Pois deve-se ser como o Senhor disse: «Sede como homens que vigiam e esperam seu Senhor de volta» (Lc 12,36). Vejam, estes homens que esperam são vigilantes e olham ao redor de si para saber donde o Senhor poderá vir e esperam-no em tudo aquilo que ocorre, por mais estranho que possa parecer, pois ele pode vir daí de dentro. Assim devemos nós também conscientemente aguardar Nosso Senhor em todas as coisas. A isso pertence, ineludivelmente, empenho; precisa-se gastar o que se pode em pensamentos e forças em função disto; só então as pessoas possuem a atitude correta e podem apreender imediatamente Deus em todas as coisas e imediatamente encontrar Deus em todas as coisas. Evidentemente uma obra é sempre diferente da outra; mas se alguém age a partir de uma mesma atitude, suas obras serão todas iguais. Para aquele que age corretamente, para quem Deus se tornou algo próprio, para este Deus brilha sem mediações tanto nas coisas profanas quanto nas coisas mais sagradas. Atenção: isto não deve ser entendido no sentido de que se deva fazer algo de meramente mundano ou menos bom e adequado, mas no sentido de que tudo o que exteriormente sensibilizar o olho ou o ouvido seja reconduzido a Deus. Para quem Deus for presente em todas as coisas e quem dominar e usar maximamente sua razão, este somente sabe da verdadeira paz e possui o verdadeiro Reino dos céus. Para quem mantém uma atitude correta, de duas uma: ou deve aprender a surpreender Deus em todas as coisas e a possui-lo ou então deverá abandonar todas as obras. Como, porém, o homem nesta vida não poderá ficar sem atividade, já que esta pertence à essência humana, pois existe toda sorte de atividade, por isso deve aprender a possuir Deus em todas as coisas e a permanecer sem obstáculo em todas as obras e em qualquer circunstância. Em razão disso: quando alguém se dispôs a isto e quiser atuar no meio dos homens, deve antes imbuir-se fortemente de Deus e colocá-lo bem fundo no seu coração e estar unido a Ele em todo o seu agir, pensar, querer e em todas as suas forças de tal sorte que não veja nos outros outra coisa senão Deus.
�. � ������� ��������� �� ������ ����������� O homem jamais deve julgar tão bem sua ação, mesmo que a tenha feito perfeitamente, a ponto de se tornar desligado das obras e seguro de si mesmo e de reduzir sua razão à ociosidade ou ao endormecimento. Deve se medir continua-mente com estas duas forças, a razão e a vontade, a fim de lograr o melhor em sumo grau; destarte encontra-se decididamente armado contra todo e qualquer dano; assim não perde nada em cada coisa, antes pelo contrário, cresce ininterruptamente e em alto grau.
�. ���� � ���������� ���� � ��� ���� ������ � ����� ������� Sabe que as solicitações para o vício jamais são para o homem de bem sem bênção e proveito. Pois presta atenção: eis aí dois homens: o primeiro é feito assim pela natureza que não é tentado por nenhuma fraqueza ou apenas um pouco; o outro é de tal natureza que é sensível às tentações. Pela simples presença exterior das coisas, seu homem exterior fica logo excitado, seja para a ira ou para a vanglória ou talvez para a sensualidade, conforme o que o afeta. Em suas forças superiores ele fica bem firme, imóvel e não quer cometer o erro, como irar-se ou qualquer outro pecado; luta, portanto, fortemente contra a fraqueza; talvez se trate de uma fraqueza radicada na própria natureza como é o caso de homens que por natureza são irados ou subservientes ou têm qualquer outra falta; apesar disso não querem cometer pecado. Tal homem merece ser muito mais louvado, sua re-compensa é maior, sua virtude mais excelente do que o primeiro; isso porque a perfeição da virtude vem somente pela luta, como já S. Paulo o dissera: «A virtude se aperfeiçoa na
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fraqueza» (2Cor 12,9). A inclinação ao mal não é pecado, mas o querer pecar, isto sim, é pecado; querer irar-se, isto também é pecado. Com efeito, o homem justo se pudesse realizar seu desejo não deveria desejar ser livre da inclinação ao pecado, pois sem esta inclinação ele ficaria inseguro em todas as coisas e em todas as obras, despreocupado face às coisas e privado da honra da luta, da vitória e da recompensa. A inclinação e a tendência ao vício produzem a virtude e o prêmio pelo esforço. A inclinação faz o homem bem mais diligente e cuidadoso em se exercitar na virtude, impulsiona-o fortemente para a virtude e esta inclinação se constitui num duro chicote que o compele à vigilância e à virtude; quanto mais fraco se encontrar o homem, tanto mais e melhor deve se armar com força para a vitória; como se depreende, a virtude e o vício residem na vontade.
�0. ���� � ������� ���� ���� � ���� ����� �� �������� ������� �� ������� ��� � �������� �� ��� ���� ���� Ninguém precisa temer nada enquanto estiver de boa vontade, nem deve se acabrunhar por não haver realizado as obras que se havia proposto; nem se deve julgar longe da virtude; quando se encontra com reta e boa vontade, nada poderá prejudicá-lo, nem no amor nem na humildade nem em qualquer outra virtude. Antes pelo contrário, o que profundamente e com toda a vontade quiseres, isto o terás e Deus e todas as criaturas não to poderão arrebatar enquanto a vontade permanecer inteira e verdadeiramente divina e orientada para o presente. Não se diga: «Eu gostaria para dentro de pouco tempo», pois isto seria ainda futuro; mas diga-se: «Eu quero que isto aconteça agora mesmo»! Ora, nota bem: Se alguma coisa está a mil milhas de distância e eu a quiser ter, então eu a tenho mais propriamente do que se eu a tivesse sobre os meus joelhos e não a quisesse. O bem não é menos forte para o bem do que o mal para o mal. Guarda isto: mesmo que eu não faça nenhuma ação má, mas tiver a vontade para o mal, pequei como se tivesse feito a ação realmente; eu poderia em plena vontade fazer um pecado tão grande quanto o de matar o mundo inteiro, embora não tenha realmente executado tal crime. Por que não vale o mesmo também para uma boa vontade? Efetivamente vale e incomparavelmente muito mais. Com efeito, com a vontade eu posso tudo. Posso carregar a pena de todos os homens; posso alimentar todos os pobres; fazer as obras de todos os homens e o que quer que tu possas imaginar. Se não é a vontade que te faz falta mas unicamente a possibilidade de fazer, em verdade diante de Deus fizeste tudo isto; ninguém te pode tirar isto nem te contestar por um só momento; pois querer fazer, enquanto tenhas a possibilidade, e haver feito é igual diante de Deus. Ademais, se eu quiser ter tanta vontade quanto o mundo inteiro tem e se meu desejo é correspondentemente tão grande e total, então eu, verdadeiramente, o tenho; pois o que eu quero ter, eu o tenho. Da mesma forma: se eu, verdadeiramente, quiser ter tanto amor quanto todos os homens já adquiriram, e se eu quiser louvar da mesma maneira a Deus, ou o que quer que possas imaginar, então tu terás realmente tudo, contanto que a vontade seja total. Agora, poderias perguntar, quando a vontade é uma vontade reta? A vontade é total e reta quando ela estiver sem ligação ao próprio eu, e quando se tiver despojado de si mesma e se tiver modelado e conformado à vontade divina. E com tal vontade podes tudo, amar ou o que tu quiseres. Agora perguntas: Como poderia eu ter o amor já que eu não o sinto, nem constato sua presença assim como o vejo em muitos homens que atestam grandes obras nos quais eu descubro grande senso religioso e encontro maravilhosamente aquilo que eu não tenho? Quanto a este ponto deves considerar duas propriedades que se encontram no amor: a primeira é a essência do amor, a outra sua operação ou manifestação. A sede da essência do amor está somente na vontade; quanto mais vontade alguém tiver, tanto mais amor tem. Entretanto, quem tem mais vontade, se um, se outro, ninguém poderá saber; isto fica escondido na alma, porquanto Deus está escondido na profundidade da alma. Este amor reside unicamente na vontade; quem tem
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mais vontade, tem também mais amor. Mas existe também uma segunda propriedade: é a manifestação e a operação do amor. Ela se faz visível como interioridade, devoção e exuberância da alegria; mas isto não é de modo nenhum o melhor. Tais manifestações freqüentemente não provêm do amor, mas, às vezes, da natureza, mostrando-se como um bem-estar ou um doce sentimento; pode ser influência da atmosfera ou pode ser induzido pelos sentidos; e aqueles que experimentam tais coisas, nem sempre são os melhores. Pode ser que venham realmente de Deus, porque Nosso Senhor dá-o a tais pessoas para atraí-las a si ou estimulá-las e também para desapegá-las de outras pessoas. E quando estas pessoas crescem em amor, então não têm mais tantos sentimentos e emoções; evidencia-se então que elas possuem o amor: sem tais escoras, guardam total e firme fidelidade a Deus. Suponhamos que se trate de perfeito e pleno amor, ainda assim não é o melhor. Isso se vê pelo seguinte: é preciso às vezes renunciar, por amor, a estes transportes afetivos em razão de uma coisa melhor e, às vezes, para praticar uma obra de amor que se faz necessária, seja espiritual ou corporal. Como já disse uma vez: Se alguém estiver em êxtase, como esteve S. Paulo, e souber que um enfermo necessita de uma sopinha, deixe seu êxtase de amor e sirva o necessitado com grande amor. Eu julgo tal gesto muito melhor. E não se pense que se perdeu em graça divina; pois o que o homem livremente deixa por amor, receberá em troca muito mais, como disse Cristo: «Quem deixar alguma coisa por meu amor, receberá o cêntuplo» (Mt 19,29). Sim, o que o homem deixa ou renuncia por amor de Deus, encontrá-lo-á novamente em Deus. Por exemplo, se alguém deseja ardentemente consolos sensíveis ou paz interior e, embora faça tudo para consegui-lo, Deus não lho concede e até lho nega: se esta pessoa livremente renuncia a tudo isto por amor de Deus, encontrará isso tudo seguramente em Deus, como se estivesse em plena posse de todo o. bem que existe no mundo; a condição é que se tenha livremente despojado e humilhado e tenha renunciado por amor de Deus; este receberá o cêntuplo. O que alguém gostaria de ter, mas renuncia a esse desejo e se priva dele por amor de Deus, seja algo corporal ou espiritual, isto tudo ele encontra em Deus como se fosse posse sua e dela se tivesse livremente abdicado; por amor de Deus o homem deve voluntariamente deixar-se roubar de todas as coisas e no amor ser despojado e privado de todo consolo, por amor. Que a gente por amor deva renunciar, às vezes, a tais sentimentos, o acena Paulo que tanto sabia amar, quando diz: «Eu desejei ser anátema por amor a meus irmãos» (Em 9,3). Ele ideou isso na linha desta última forma de amor a que nos referíamos acima e não na linha da primeira forma, pois daquela ele não quereria em nenhum momento estar separado por amor de tudo o que acontece no céu e na terra, vale dizer, o consolo. Sabe, porém, que os amigos de Deus jamais estão sem consolo; o que Deus quiser, é para eles o maior consolo, seja o consolo ou o desconsolo.
��. � ��� � ����� ���� ����� ������ � ������� �� ���� � ������ ���� �� �������� Deves também saber que a boa vontade jamais pode perder Deus. O que pode porém perdêlo é, às vezes, o sentimento da alma; imagina-se então muitas vezes que Deus se tenha retirado. Que deves então fazer? Faze exatamente o mesmo que farias caso estivesses na maior consolação; aprende a fazer assim quando estiveres em grandes sofrimentos e comporta-te como te comportavas antes. Não há melhor conselho para encontrar Deus, senão este de encontrá-lo lá onde a gente se sente longe dele. E como eras, quando o tinhas anteriormente, assim permanece agora; assim como o perdeste, irás também encontrá-lo. A boa vontade, entretanto, jamais produz a falta de Deus. Muitos dizem: «Nós temos boa vontade», mas não possuem a vontade de Deus; querem ter a sua vontade própria e pretendem ensinar a Nosso Senhor como ele deve agir desta ou daquela maneira. A gente deve procurar em Deus qual é a sua amantíssima vontade.
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Deus intenciona que em todas as coisas renunciemos à nossa vontade. São Paulo se entretinha muito com Nosso Senhor e Nosso Senhor com ele. Mas isso não lhe valeu nada até que renunciasse a sua própria vontade e dissesse: «Senhor, que queres que eu faça?» (At 9,6). E o Senhor sabia muito bem o que ele deveria fazer. Da mesma forma quando o anjo apareceu a Nossa Senhora: pouco importa o que eles falaram entre si, isto jamais faria de Nossa Senhora mãe de Deus; do momento em que ela renunciou à sua vontade, tornou-se imediatamente mãe verdadeira da Palavra eterna e concebeu no mesmo instante a Deus; e ele era seu filho segundo a natureza. Nada faz mais verdadeiro o homem do que a renúncia de sua própria vontade. Verdadeiramente, sem a renúncia da própria vontade em todas as coisas, não conseguiremos nada diante de Deus. Mais ainda se conseguirmos realmente renunciar à própria vontade e se ousarmos despojar-nos interior e exteriormente de todas as coisas, então sim fizemos tudo, antes disto não fizemos nada. Encontram-se poucas pessoas que não gostariam, consciente ou inconscientemente, de realizar tal renúncia da vontade; experimentariam nisso grandes sentimentos; gostariam da maneira e do resultado: mas tudo isto não passa de pura vontade própria. Deves entregar-te totalmente a Deus em todas as coisas e então não te preocupes com o que Ele fará por Ele mesmo. Seguramente, são milhares os homens que morreram e estão no céu e jamais chegaram a uma renúncia perfeita de sua vontade. Andar totalmente à luz da vontade de Deus, sem vontade própria, somente isso seria a perfeita e verdadeira vontade. E quem andou mais dessa forma, tanto mais e verdadeiramente foi colocado em Deus. Sim, uma ave-maria pronunciada neste espírito de renúncia de si mesmo é mais proveitosa que mil saltérios sem ela; sim, um passo neste espírito vale mais do que atravessar o mar sem ele. O homem que renunciou totalmente a si mesmo com todas as suas coisas é transportado plenamente para Deus de tal sorte que se o tocássemos, tocaríamos primeiramente em Deus; ele está envolto em Deus e Deus envolto nele como este meu capuz envolve minha cabeça; quem quisesse me tocar, precisaria tocar primeiro meu hábito. Da mesma forma também ocorre com a bebida e a língua. Se eu beber, a bebida deve primeiro correr por sobre a língua; aqui recebe a bebida seu gosto. Assim o vinho pode ser doce quanto quiser, se a língua estiver coberta de amargar, ele terá o gosto amargo, porque ao passar pela língua recebeu o gosto amargo dela. Semelhantemente se alguém se tiver despojado total-mente de si mesmo, estaria completamente envolto por Deus; nenhuma criatura poderia tocá-lo sem antes tocar em Deus; tudo o que viesse a esta pessoa viria a ela passando por Deus; de Deus receberia seu gosto e assumiria um caráter divino. Por maior que seja a dor, ela passa antes por Deus de sorte que Deus. sofre primeiro. Sim, pela verdade que Deus é: não há dor que afete o homem, por insignificante que seja, como urna indisposição ou alguma contradição, que não afete também incomensuravelmente mais a Deus do que ao homem; isto porém à condição de o homem estar em Deus; e esta dor contraria muito mais a Deus do que ao homem. Se Deus suporta a dor em vista de um bem que ele previu para ti, tu deves também voluntariamente sofrer aquilo que Deus sofre e aquilo que chega a ti passando por ele; destarte a dor se tornará divina por natureza. Tudo recebe seu gosto de Deus e se torna divino, corno o desprezo e a honra, a amargura e a doçura, as trevas mais escuras e a luz mais clara; pois tudo o que afeta a este homem se amolda a Deus; por isso o homem não deve aspirar a outra coisa nem gostar de qualquer outra coisa: desta forma apreende Deus tanto na amargura quanto na maior doçura. A luz brilha nas trevas; é então que a percebemos. Para que existe a doutrina e a luz senão para que os homens façam uso delas? Quando estão nas trevas ou na dor, então verão a luz. Sim, quanto mais nós pertencemos a nós mesmos, menos pertencemos a Deus. O homem que se despojou daquilo que lhe é próprio jamais será privado de Deus em nenhuma obra que faça. Pode acontecer que alguém pense mal ou fale mal ou lhe ocorram coisas que o desagradem; então Deus que estava presente desde o começo da obra, necessariamente toma sobre si os prejuízos; mas tu não deves demitir-te de modo nenhum de tua obra. Para isso temos um exemplo em S. Bernardo e em muitos outros santos. De tais ocorrências não podemos nesta vida ser totalmente poupados, porque de vez em quando uma ratazana cai dentro do trigo, nem por isso o nobre trigo é jogado fora. Verdadeiramente, para aquele que é bem intencionado e se entende sempre a partir de Deus, todos os sofrimentos e ocorrências se transformam em bênção. Pois todas as coisas boas concorrem
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para os bons, como diz São Paulo (Rm 8,26); e Santo Agostinho comentou: «Sim, até o pecado».
��. � ������� �� ������� ���� � ����� ���� �� ��������� ������ �� �������� �� ������ Em verdade, ter cometido pecado não é pecado desde que o lamentemos. Por tudo o que possa acontecer no tempo ou na eternidade o homem não deve querer pecar, nem mortal nem venialmente. Quem quiser estar bem com Deus, deve sempre ter diante dos olhos o fato de que Deus, fiel e amoroso, transportou o homem de uma vida pecadora para uma vida divina, de um inimigo ele fez um amigo, o que é muito mais do que criar uma nova terra. Somente este fato constituiria um dos mais fortes impulsos para lançar o homem totalmente em Deus; e deveríamos nos admirar em ver o quanto o homem precisa se incendiar de forte e grande amor para despojar-se totalmente de si mesmo. Sim, quem se conformou totalmente à vontade de Deus não deve querer que não tenha acontecido o pecado no qual caiu. Evidentemente não no sentido de que este pecado seja contra Deus e porque a pessoa agiu contra Deus, mas no sentido de que ela, através do pecado, pôde se ligar a um amor maior, se rebaixou e se humilhou. Deves confiar plenamente em Deus porque Ele não teria deixado acontecer isto senão com a intenção de tirar daí um bem maior para ti. Quando porém o homem se levanta plenamente de seu pecado e se afasta totalmente dele, Deus que é fiel faz de conta como se o homem jamais tivesse caído em pecado e não quer em nenhum momento fazer-se compensar por todos os seus pecados: mesmo que sejam tantos quantos os dos homens tomados conjuntamente, mesmo assim Deus não exigiria jamais compensação; Deus poderia manter com tal homem toda a intimidade como jamais manteve com uma criatura. Quando o encontra agora assim modificado não considera como este homem tinha sido antes. Deus é um Deus do presente. Assim como ele te encontra, assim ele te acolhe, não como tu foste antes, mas como és agora. Toda ofensa e todo ultraje cometidos contra Deus por todos os pecados, Ele suportaria de boa vontade e durante muitos anos a fim de que o homem chegue ao conhecimento de seu grande amor e a fim de que o amor e o agradecimento humanos sejam tanto maiores, o zelo tanto mais ardente como naturalmente e muitas vezes sói acontecer depois do pecado. Por isso Deus suporta prazerosamente os ultrajes dos pecados, como já suportou com freqüência e com mais freqüência ainda os deixa suportar por aqueles que escolheu para, segundo a sua vontade, realizarem grandes coisas. Constata isto: Com quem o Senhor foi mais amoroso e íntimo do que com os Apóstolos? E entretanto nenhum deles foi poupado de cair em pecado mortal; todos cometeram pecado mortal. Isso ele também demonstrou com freqüência no Antigo e no Novo Testamento àqueles que eram, não raro, seus prediletos; e hoje em dia ainda sabemos de pessoas de altas posições que antes de chegarem ao que são, de certa forma, pecaram. Com isso Nosso Senhor deseja que reconheçamos sua misericórdia; ademais ele nos quer exortar para uma maior e mais verdadeira humildade e piedade. Sempre que o arrependimento é renovado, renova-se também e se fortalece o amor.
��. �� ���� ��������������� Há dois tipos de arrependimento: um é temporal ou dos sentidos; o outro é divino e sobrenatural. O temporal se abisma em sempre maiores aflições e coloca o homem em tal estado de miséria, como, se ele tivesse que desesperar-se; neste estado, o arrependimento se detém na aflição e não progride nada; isto não leva a nada. O arrependimento divino é totalmente diverso. Logo que o homem sente um desagrado, imediatamente se eleva a uma grande confiança em Deus e adquire uma grande segurança. Nasce dai uma alegria espiritual, que tira a alma de toda aflição e miséria e firmemente a vincula a Deus.
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Pois, quanto mais frágil o homem se souber e quanto mais tiver pecado, tanto mais razão tem ele para, com amor indiviso, vincular-se a Deus, em quem não há pecado e fragilidade. O melhor plano, pois, em que nos podemos colocar, se queremos devotamente aproximar-nos de Deus, será o de nos deixarmos livrar do pecado pela força do arrependimento divino. E quanto mais grave considere alguém o seu pecado, tanto mais Deus se inclina ao perdão, para visitar a alma e expulsar o pecado; pois cada um se empenha ao máximo para eliminar aquilo que mais o aborrece. E quanto maiores e mais graves forem os pecados, com tanto mais vontade Deus se apressa a perdoá-los, parque os detesta. Se pois o arrependimento divino se eleva a Deus, os pecados somem mais depressa no abismo de Deus do que num piscar de olhos, e são tão perfeitamente desfeitos, como se nunca houvessem existido, desde que o arrependimento se torne perfeito.
��. � ���������� ��������� � � ��������� O verdadeiro e perfeito amor se mostra nisto: que se tenha grande esperança e confiança em Deus; pois só na confiança se sabe que há um amor verdadeiro e total. Pois, se alguém ama outrem de todo o coração e com toda a perfeição, surge a confiança; pois tudo quanto se ousa esperar de Deus, nele verdadeiramente se encontra e ainda mil vezes mais. E assim como alguém não pode nunca ter demasiado 'amor a Deus, assim também nunca seria possível ter nele demasiada confiança. Tudo quanto o homem fosse capaz de fazer não seria tão proveitoso como a imensa confiança em Deus. Ele jamais deixou de operar grandes coisas com aqueles que nele depositaram grande confiança. Em todos esses homens Ele deixou bem claro que essa confiança emana do amor, pois o amor não apenas confia, mas possui um verdadeiro saber e uma certeza que não padece dúvida alguma.
��. �� ���� �������� �� ���� ������ Há nesta vida duas certezas da vida eterna. Uma certeza vem de que Deus mesmo o diga ao homem ou lho transmita por um anjo ou lho revele por uma iluminação especial. Tal coisa porém acontece raramente, e só a poucas pessoas é dada. A outra certeza é incomparavelmente melhor e mais proveitosa, e dada a todos os homens perfeitos amigos de Deus, muitas vezes. Vem daí que o homem, em virtude do amor e da familiaridade de que usa com Deus, tão perfeitamente nele confia e dele tanta certeza sente, que já não lhe é possível duvidar, tornando-se destarte tão firme, por amá-lo indistintamente em todas as suas criaturas. E ainda que todas as criaturas se lhe opusessem e até sob juramento dele se desligassem, ou ainda que Deus mesmo se lhe ocultasse, ele não perderia a confiança, pois o amor é incapaz de desconfiar. Cheio de boa-fé, ele só pode esperar o bem. E' não há necessidade de que se diga algo a quem ama, ou a quem é amado, pois pelo fato de que o homem percebe e sente que Deus é seu amigo, também sabe o que lhe é proveitoso e contribui para a sua bem-aventurança. Pois, por mais que tu lhe sintas amor, fica sabendo: Deus te ama incomparavelmente mais e confia incomparavelmente mais em ti. Pois Ele é a fidelidade em pessoa; disto tem certeza! Disto estão persuadidos todos quantos o amam. Esta certeza é imensamente maior, mais completa e mais genuína que a primeira e não pode falhar. A inspiração, pelo contrário, poderia ser espúria e a iluminação, um engano. Esta certeza, porém, se apodera de todas as forças da alma e não pode enganar aqueles que sinceramente amam a Deus. Duvidam dela tão pouco quanto do próprio Deus poderiam duvidar, pois o amor expulsa todo o temor. O amor não conhece o temor (1Jo 4,18), como diz São Paulo Apóstolo. Também está escrito: «O amor encobre a multidão dos pecados» (1Pd 4,8). Pois onde há pecado, não pode haver plena confiança, nem amor. Pois o amor encobre plenamente os pecados. Nada sabe dos pecados. Evidentemente, não é que não tenha havido pecado, mas o amor age de tal modo que apaga
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plenamente os pecados, como se nunca tivessem ocorrido. Pois todas as obras de Deus são tão esplendidamente perfeitas e tão ricas em abundância que, onde Deus perdoa, plena-mente perdoa, e com mais prazer as quedas grandes que as pequenas. Com isto Ele cria a perfeita confiança. Isto é algo incomparavelmente melhor, traz mais recompensa e é também muito mais autêntico que o primeiro tipo de saber; pois nem o pecado nem outra coisa qualquer o pode entravar. Pois aquele a quem Deus tiver encontrado em semelhante amor, a este ele também logo julga, quer tenha ele pecado muito ou não tenha pecado. Aquele, no entanto, a quem mais tiver sido perdoado, também deverá ter mais amor, como disse Nosso Senhor: «A quem mais tiver sido perdoado, mais também há de amar» (Lc 7,47).
��. � ���������� ���������� � � ������ ��������������� Muita gente é de opinião que devem fazer grandes obras exteriores, como jejuar, andar descalço e coisas semelhantes, que se chamam obras de penitência. A mais genuína e melhor penitência, porém, com que se produz vigorosa emenda e ótima melhora, está em que o homem se aparte total e perfeitamente daquilo que não é plenamente Deus e divino nele ou nas criaturas, e retorne total e perfeitamente ao seu bom Deus, mediante um amor inabalável, de modo que nele sejam grandes os desejos e a devoção para com Ele. Nas obras em que mais disto tiveres, também mais justificado serás; quanto mais tiveres esta atitude, tanto mais autêntica será a tua penitência e tanto mais pecados hás de apagar e juntamente ainda as penas todas. Sim, certamente tu te poderias voltar em breve tão vigorosamente e com tão sincera repugnância contra todos os teus pecados e te voltar com o mesmo ardor para Deus, que, mesmo que tivesses praticado todos os pecados que foram cometidos desde os tempos de Adão e continuam sendo feitos, ser-te-iam perdoados totalmente, junta-mente com as penas, de modo que, se morresses agora, serias levado até a visão de Deus. É esta a verdadeira penitência e se baseia particular-mente e do modo mais perfeito no santo sofrimento que há na perfeita penitência satisfatória de N. S. Jesus Cristo. Quanto mais o homem nela se coloca, nela tanto mais os pecados todos o abandonam e igualmente as penas devidas. O homem deverá habituar-se a situar-se, com todas as suas obras, dentro da vida e paixão de N. S. Jesus Cristo. Em tudo o que o homem faça, ou deixe de fazer, no seu viver e seu sofrer, tenha ele diante dos olhos o seu Redentor, como teve Ele a nós diante dos olhos seus. Tal penitência não é senão o coração desprendido do espírito deste mundo e elevado às coisas divinas. Faze de bom grado as obras que mais te possibilitem isto e pelas quais tenhas melhor tal disposição e tais frutos. Onde porém uma obra externa te impede tal disposição, seja embora jejum ou vigília ou leitura, ou o que quer que seja, deixa então isso, sem medo de que possas omitir algo da penitência. Pois Deus não olha quais sejam as obras, mas unicamente considera o amor, a devoção e a mente presente em tais obras. Pois Ele não aprecia tanto as nossas obras, quanto a mente presente nelas, e que só a Ele amemos em todas as coisas. Pois é demasiadamente ávido o homem a quem Deus não basta. Todas as tuas boas obras tenham a sua recompensa bastante no fato de que Deus as conhece e que seja Ele quem tens em mente com elas. Que isto te baste! E quanto mais pura e simplesmente tu o tenhas em tua mente, com tanto mais propriedade as tuas boas obras expiam os teus pecados. Também te deves lembrar de que Deus é o Redentor universal do mundo inteiro. Portanto lhe deves muito mais gratidão do que se Ele a ti tão-somente tivesse remido. De modo semelhante, também tu deves ser para ti um redentor universal de tudo quanto tens corrompido em ti por teus pecados. E em tudo isto te deves apoiar totalmente nele, pois tu, pelos teus pecados, tens estragado tudo que há em ti: o coração, os sentidos, corpo e alma, tuas energias e tudo quanto existe em ti; tudo isto está bem doente e estragado. Por isso, busca refúgio junto àquele em que não há estrago, mas em quem tudo é perfeito, de modo que possa ser Redentor Universal de todo o estrago que há em ti, por dentro e por fora.
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��. ���� � ����� ���� ��������� �� ��� ������ ��� �� �������� �� ������� �������, ���� ������ � ������ ������, � ���� ���� ������ � ���� O temor e o desalento podem sobrevir ao homem pelo fato de a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos santos ter sido austera e cheia de labores, enquanto o homem nessas coisas tão pouco consegue e tão pouco se sente impelido para tais coisas. Por isso, os homens, que se sentem tão longe de tudo isso, freqüentemente se julgam também longe de Deus, a quem não podem seguir. Ninguém pense assim! O homem jamais se deve considerar longe de Deus, nem por causa de seus defeitos, nem por causa da sua fraqueza, nem por outro motivo qualquer. E' ainda que grandes defeitos te possam arrastar para longe, a ponto de que não te possas considerar corno perto dele, tu deves considerar a Deus como perto de ti. Pois há uma grande desgraça nisto: alguém colocar a Deus longe de si. Pois, quer o homem caminhe longe ou perto, Deus jamais se afasta para longe. Ele sempre permanece perto; e se não pode ficar dentro, Ele não se afasta para mais longe do que até diante da porta. Assim também acontece com o rigor da imitação de Cristo. Pondera em que pode consistir a tua imitação neste ponto. Deves saber e ter notado a que coisa tu és mais fortemente admoestado por Deus: pois de modo algum os homens são todos chamados por um só caminho a Deus, como disse São Paulo (cf. 1Cor 7,24). Se julgas que o teu caminho mais próximo a Deus não leva através de muitas boas obras e grandes fadigas ou privações (que aliás também não importam muito, a não ser que o homem esteja especialmente movido por Deus e disponha de força para fazê-las convenientemente sem per turbação de sua vida interior), se portanto disto nada se encontra em ti, fica tranqüilo, e não dês demasiada importância a tudo isto. Possivelmente porém dirás: Nada importam!? Por que então nossos antepassados e muitos santos assim procederam? Ora, considera: Nosso Senhor lhes deu este modo de agir e lhes deu igualmente a força para agir desta maneira e foi nisto que se agradou deles; eles tinham que alcançar o mais perfeito precisamente naquilo. Pois Deus não vinculou a salvação dos homens a alguma maneira singular. O que se encontra num tipo de ação, não se acha em outro. A capacidade de assegurar o fim, Deus a deu a todos os métodos bons e não a negou a nenhuma maneira apta, pois uma coisa boa não é contra a outra. E os homens devem saber que procedem mal se, às vezes, notam ou ouvem dizer que alguém seja bom, apesar de não seguir os modos de agir deles, e se, por isso, pensam logo que tudo estaria perdido. Pois logo que lhes desagrade o modo deles, desaprovam o bom modo deles e suas boas intenções. Isto não está certo! Pois o que mais importa é atender à boa intenção que há no proceder de alguém, e não se despreza a sua maneira de agir. Não é possível que cada um seja obrigado a uma só maneira, nem que todos os homens tenham uma só forma; nem tampouco pode, ser que um só homem tenha todas as maneiras de proceder, ou que um só proceda segundo os modos de cada um. Cada um, portanto, fique com o seu modo bom e integre nele todos os demais modos e abrace pela sua maneira tudo que é válido em todos os modos. Mudança de maneiras levam à inconstância tanto as maneiras como também o próprio espírito. O que um método pode dar, também se pode obter por outro, desde que este seja bom e louvável e nele se procure a Deus. De resto, nem todos os homens podem seguir um único caminho. Vale isto também quanto à imitação da vida austera daqueles santos. Pois podes amar e ter agrado no que fizeram, sem que daí sejas obrigado a fazer o mesmo. Agora poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo teve inquestionavelmente a maneira mais perfeita de viver. Seria justo que nós o imitássemos sempre. Sem dúvida! É justo que se siga a Nosso Senhor e, no entanto, não deve ser em todos os modos. Nosso Senhor jejuou 40 dias; ninguém deve empreender o mesmo. Cristo fez muitas coisas com a intenção de que o imitássemos espiritualmente, não fisicamente. Por isso, devemos esforçar-nos por segui-lo segundo o espírito; pois Ele procura mais o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos segui-lo segundo o modo próprio de cada um de nós. Como então? Escuta bem: Em todas as coisas! — E de que maneira? — Assim como eu já disse muitas vezes: Eu considero uma obra espiritual muito melhor do que uma corporal. Como assim?
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Cristo jejuou 40 dias. Segue-o prestando atenção ao de que mais gostas ou a que estejas mais disposto. Presta atenção naquilo e controla-te. Muitas vezes será conveniente para ti que te abstenhas disto mais do que simplesmente te privares de todo e qualquer alimento. Assim também te é às vezes mais penoso não falar certa coisa do que te absteres de toda conversa. Assim também parece por vezes mais difícil ao homem tolerar uma pequena ofensa, de pouca monta, do que suportar um rude golpe, para o qual estava preparado. Mais difícil lhe é estar sozinho numa multidão do que a sós numa ermida; assim também como por vezes é mais difícil renunciar a uma ninharia do que a algo de grande; ou mais penoso pode ser fazer uma obra insignificante do que fazer alguma que se considere muito grande. Eis como um homem em toda a sua fraqueza pode muito bem seguir a Nosso Senhor sem que precise, neste seu caminho de seguimento, considerar-se muito distante dele.
��. �� ��� ������� � �����, �������� � ��������, ������ ������� ��������� �����, ������ ������ � ������ ���������, ��� ��� ����� ������� � ������� Não há motivo para te preocupares com alimentos e vestes, por te parecerem demasiadamente distintos e finos: antes habitua teu coração e teu sentir a que sejam superiores a estas coisas. Nada deverá dispor o teu ânimo para a alegria e o amor, senão Deus somente. Tua mente deve ser superior e indiferente a todas as demais coisas. Por quê? Seria uma vida interior muito fraca, se dependesse da vontade exterior para vingar; o interior deve determinar o exterior, na medida em que isto esteja a teu alcance. Se te ocorrer algo contrário, poderás aceitá-lo com a mente de que, noutra circunstância, mudarás de bom grado e prontamente. O mesmo vale quanto ao alimento, aos amigos e parentes e a tudo quanto Deus te quer dar ou tirar. E assim considera isto melhor que tudo: que o homem totalmente se abandone a Deus, a ponto de antes aceitar, com alegria e gratidão — onde quer que Deus lhe queira impor, pena, humilhação e sofrimentos — do que querer colocar-se, por iniciativa própria, nessas penitências. Por isso, aprendei de Deus em todas as coisas e segui-o fielmente, e tudo dará certo! Deste modo, pode-se tolerar honra e louvor. Caso porém sobrevenha ao homem injúria e humilhação, isto seria igualmente aceito e suportado de boa mente. Por isso, comam e festejem com o coração tranqüilo todos os que estariam não menos dispostos a jejuar e fazer penitência. Será este por certo também o motivo pelo qual Deus priva os seus. amigos de grandes e múltiplos sofrimentos; de outra maneira, não o permitiria a sua fidelidade sem limites, uma vez que tão grandes e tantas bênçãos existem no sofrimento, e Deus não quer, nem deve deixar, que os seus seguidores percam tão magnífica oportunidade de enriquecer-se dos seus benefícios. De fato, porém, Deus se dá por contente com a boa vontade; se não, ele não deixaria passar para eles nenhuma ocasião de sofrimento, uma vez que é indizível a bênção que do sofrimento promana. Portanto, se Deus se dá por contente, deves também tu estar contente; mas se algo diferente lhe agrade acontecer contigo, não fiques menos contente. Pois deve o homem interiormente de modo tão perfeito conformar-se com a vontade de Deus, que não se deve inquietar com modos e feitos. Particularmente deves fugir de toda forma estranha, seja no vestir, seja no comer, seja no falar, como, por exemplo, usar palavras altissonantes, ou curiosidades de gestos, que para nada adiantam. De outro lado, também deves saber que não te é vetada toda a singularidade. Há tantas coisas esquisitas que devem observar-se em muitas ocasiões e para com muitas pessoas; pois quem for algo de especial e singular, também deverá em muitas ocasiões e muitas vezes fazer algo de singular. O que importa é que o homem em todas as coisas e situações se revista da forma de Cristo, de modo que nele se encontre um reflexo de todas as obras de Jesus e do seu modo de ser e operar. Deverá o homem, numa perfeita semelhança com Cristo, trazer em si, na medida do possível, todo o modo de Jesus operar. Tu deves operar, e Ele deve tomar forma em ti. Faze tu, com plena dedicação e com toda a mente, a obra que te cabe. Habitua sempre o teu espírito a isto e à tarefa
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que tu, com todas as tuas boas obras, te formes nele.
��. ��� ��� ���� �������������� ������ ��� ������� �� ��� ����� ��������� �� ������� �� ��� Deus fiel permite que seus amigos freqüentemente caiam em fraquezas somente para que lhes falte todo o arrimo, algo em que se possam apoiar. Pois para um homem que ama a Deus, seria um grande prazer, se pudesse fazer muitas e grandes obras, seja vigílias, jejuns ou outros exercícios, seja, particularmente, grandes e penosas obras. Constituem para eles tais obras motivos de grande satisfação, apoio e esperança, de modo que as suas obras lhes sejam apoio, firmeza e razão de confiança. Justamente tal segurança lhes quer Deus tirar. Pois quer Deus que só Ele seja o nosso arrimo e razão de confiança. Não é por outra razão que Ele quer isto, senão por sua bondade e misericórdia. Pois Deus não é movido para qualquer obra que seja, a não ser por sua própria bondade. As nossas boas obras em nada contribuem para que Deus nos dê ou faça algo. Nosso Senhor quer que os seus amigos se desprendam delas, e por isso os priva de tal apoio para que só Ele seja o apoio deles. Pois Ele lhes quer conceder grandes coisas e isto unicamente por sua libérrima bondade. Ele mesmo quer ser arrimo e conforto deles, enquanto que eles mesmos se devem saber e considerar um puro nada no meio de todas as grandes dá-divas de Deus. Pois quanto mais desnudada e privada de tudo uma pessoa se entrega a Deus e é por Ele acolhida e sustentada, tanto mais é assumida no que é de Deus e tanto mais dele se torna capaz e receptiva com todos os preciosíssimos dons divinos. É pois em Deus tão-somente que a criatura humana deve depositar toda a sua esperança.
�0. ��� � ����� �� ����� ������ ���� �������� �������������� � �� ������� � ������� ��� ��� ���� �� ���� ����� Quem gostaria de receber o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo não precisa preocupar-se com o que há de sentir, ou quão grande há de ser a unção interior e a devoção, e sim atenda ele no que seja a disposição de sua vontade e intenção. Não dês importância ao que sentes, mas antes tem em grande conta aquele a quem amas e almejas. Deve ser esta antes de tudo a disposição de quem sem ansiedade quer receber a Nosso Senhor: que a sua consciência esteja livre de toda argüição de pecado. A outra disposição é que o homem tente voltar a sua alma a Deus, de modo que nada deseje e procure senão a Deus e as coisas divinas, e tudo deteste que não se conformar com o Senhor. Pois o homem sabe quão distante ou próximo se acha de Deus pelo pouco ou muito que ele tem deste proceder. Em terceiro lugar, deve ele ter a intenção de que o amor ao Santíssimo Sacramento e a Nosso Senhor em virtude da Sagrada Comunhão cresçam mais e mais e que pela comunhão freqüente a reverência não diminua. Pois o que traz a vida para um, traz a morte para outros. Por isso, deves ser atento a que cresça em ti o amor a Deus e que não se apague a tua reverência. Quanto mais vezes comungares com tal disposição, tanto mais também crescerás no bem e tanto melhor e útil será para ti. Por isso, não deixes que por conversas ou sermões cheguem a privar-te do teu Deus, pois quanto mais, tanto melhor será para ti e tanto mais agradável será a Deus. Pois é este o desejo do Senhor, que Ele habite no homem e com o homem. Talvez agora me digas: ó meu Senhor, eu me encontro tão vazio e frio e inerte, que não me animo a ir ao Senhor. Respondo: tanto mais necessidade tens de ir para junto de teu Deus! Pois nele te tornas inflamado e ardente; nele te tornas santificado; a Ele tão-somente estarás obrigado e unido. Pois no Sacramento e não em outra parte encontrarás tão propriamente a graça para que as tuas forças naturais fiquem tão perfeitamente unidas e recolhidas mediante a força sublime da presença
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corporal do Corpo de Nosso Senhor, que todos os sentidos divagantes e o ânimo do homem se tornem recolhidos e unidos e aqueles mesmos sentidos que sozinhos tendiam para baixo, agora ficam elevados e orientados em perfeita ordem a Deus. Pela virtude do Deus, que habita no interior, serão habituados às coisas interiores e libertados dos empecilhos corporais (que provêm das coisas terrenas), para tornar-se hábeis para as coisas divinas. Confortado assim pelo seu Corpo, o teu próprio corpo se renova. Pois devemos ser transformados nele e com Ele plenamente unificados (cf. 2Cor 3,18), de modo que aquilo que é seu fica nosso, e aquilo que é nosso fica seu; nosso coração e o seu se tornam um, e nosso corpo e o seu um corpo. Deste modo, nossos sentidos, nossa vontade e nossas tendências, nossas forças, faculdades e membros hão de ser inseridos nele, de modo que Ele seja percebido e sentido em todas as faculdades e forças do corpo e da alma. Agora poderias talvez objetar: Ah! meu Deus, eu não constato em mim nada dessas grandes coisas, mas tão-somente percebo a minha pobreza. Como poderia eu ter a ousadia de ir a Ele nesse estado de coisas? Ora, se queres transformar a tua pobreza em riqueza, vai para o pleno tesouro de toda a imensa riqueza, e ficarás rico. Pois deves saber que só Ele é aquele tesouro que te pode bastar e plenamente saciar. «Por isso — assim dirás — eu vou a ti, para que a tua riqueza encha a minha pobreza de bens e para que a tua imensidão torne repleto o meu vazio, e a tua infinita e imensurável divindade ocupe a minha vil e corrupta humanidade». «Mas, Senhor, pequei muito; tanto que não posso expiar tudo». Ora, justamente por isso deves ir a Ele. Ele expiou condignamente todo o pecado. Nele podes perfeitamente oferecer ao Pai celestial um digno sacrifício por todas as tuas culpas. «Ah! Senhor, quanto gostaria eu de bendizer-te e louvar-te, mas não posso!» Vai a Ele, pois só Ele é aceitável agradecimento ao Pai e infinito, adequado e perfeito louvor a toda a perfeição divina. Numa palavra, se queres, plenamente livre de todo defeito e ornado de todas as virtudes e graças, ser conduzido feliz para dentro do teu princípio, deves proceder de modo que possas receber o Santíssimo Sacramento de modo digno e freqüente, pois destarte serás unido a Ele, engrandecido e elevado com este seu Corpo. Sim, no Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo a alma é tão intimamente inserida em Deus, que todos os anjos, quer os querubins quer os serafins, vêem-se sem condições para saber ou descobrir diferença entre os dois; pois, onde tocam em Deus, tocam na alma; e onde a alma está, aí está Deus. Nunca se fez tão estreita união, pois a alma está mais estreitamente unida a Deus do que o corpo e a alma constituindo o homem. Mais estreita é esta união ainda do que aquela de uma gota de água que alguém junte a um barril com vinho; pois aí haveria água e vinho; lá porém há transformação tal, que nenhuma criatura estaria em condições de descobrir a diferença. Agora poderias dizer: Como pode dar-se isto? Pois eu não sinto nada! O que importa? Quanto menos sentires e quanto mais firmemente creres, tanto mais louvável será a tua fé e tanto mais será ela considerada e louvada; pois uma fé sincera é para o homem mais do que um simples opinar. Pois temos por ela um verdadeiro saber. De fato, o que mais nos falta é uma fé verdadeira e sincera. O fato de que nos parece que temos mais vantagem numa que noutro provém apenas de razões externas. Realmente, não há mais certeza num (no constatar) que no outro (no crer). Aquele que crê com a mesma firmeza, possui também do mesmo modo. Poderias talvez objetar: De que modo posso crer em coisas tão elevadas, quando na verdade não me encontro em tal estado sublime, mas me vejo frágil e desviado para tantas coisas? Bem, deves considerar duas coisas que também não faltaram em Nosso Senhor Jesus Cristo. Também Ele tinha faculdades sublimes e outras comuns e, de acordo com isto, tinha dois planos de ação. Suas faculdades mais sublimes estavam na posse e no gozo da eterna bem-aventurança; as inferiores se atuavam na mesma hora no maior sofrimento e na luta deste mundo e, no entanto, nenhuma dessas ações impedia a outra nas suas ações próprias. Semelhantemente deve acontecer contigo: que tuas faculdades superiores se elevem a Deus e lhe sejam totalmente devotadas e unidas. Mais! O sofrimento todo deve ser inteiramente deixado ao corpo, às faculdades inferiores e aos sentidos, porquanto o espírito deve elevar-se com todas as suas forças e com todo o
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desprendimento deve abismar-se em Deus. Por isso, o sofrimento dos sentidos e das faculdades inferiores e também esta dificuldade não abalam o espírito; pois quanto maior e mais violenta for a luta, tanto maior e mais honrosa será a vitória e a glória do vencedor. Pois, quanto maior o obstáculo e mais violento o ataque das paixões e dos vícios de que triunfas, tanto maior será o teu crescimento na virtude e tanto mais serás agradável a Deus. Portanto, se queres receber dignamente ao teu Deus, cuida que as forças superiores do teu ser se orientem para Deus, que a tua vontade procure a do Senhor; cuida daquilo que nele almejas e da maneira como a tua fidelidade com Ele se firma. Com tal disposição de alma, o homem jamais recebe o precioso Corpo de Nosso Senhor sem receber graças especiais; quanto mais vezes assim comungar, tanto mais abençoado será. Sim, o homem poderia receber o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo com tal disposição e devoção que, caso fosse dado ao homem ser colocado no ínfimo coro dos anjos, ele com uma única comunhão, feita assim com tal disposição, seria elevado para dentro do segundo coro dos anjos; sim, com tal devoção tu o poderias receber, que serias julgado digno do oitavo ou nono coro dos anjos. Sendo assim, houvesse dois homens iguais em tudo pelo seu modo de vida, mas se um homem tivesse recebido dignamente o Corpo de Nosso Senhor uma vez mais que o outro, seria ele diante do outro como um sol radiante e alcançaria uma união superior com Deus. Tal recepção e ditosa fruição do Corpo de Nosso Senhor não se dão apenas na recepção visível, mas se encontram também na comunhão espiritual feita com sincero desejo e devota união. Tal comunhão pode o homem fazer com tanta confiança, que ele se pode tornar mais rico em graça que qualquer homem na terra. E pode o homem fazê-lo mil vezes ou mais por dia, esteja ele onde estiver, esteja doente ou sadio. No entanto, deve a pessoa preparar-se como para a recepção do Sacramento, segunda uma boa ordem e disposição e segundo a força do desejo. Não havendo esse desejo, seja ele então estimulado e preparado e se proceda então neste sentido. Assim nos tornamos santos neste século e felizes na eternidade. Pois estar com Deus e segui-lo: eis a eternidade! Que nos dê tal graça o Mestre da Verdade, o Amigo da Pureza e a Vida da Eternidade. Amém.
��. � ���� Se alguém deseja receber o Corpo do Senhor, poderá aproximar-se sem grande apreensão. É no entanto justo e muito útil que antes se confesse, ainda que a consciência de nada o acuse, e o faça tendo em mente o fruto do sacramento da penitência. Se no entanto suceder que algo o acuse, mas ele for impedido por justa razão de se confessar, então procure a Deus e com grande arrependimento se lhe declare culpado e se contente com isto, até que tenha oportunidade para se confessar. Se no meio tempo lhe fugir a consciência, ou a acusação do pecado, então diga a si mesmo que também Deus o esqueceu. Deve-se confessar antes a Deus que aos homens e, quando se pecou, levar bem a sério a confissão diante de Deus e acusar-se com veemência diante dele. É isto algo que ao confessar-se sacramentalmente não pode ser levianamente omitido, ou posto de lado, por atender sobretudo à penitência exterior. Pois é a atitude interior do homem que faz as suas obras serem justas, divinas e boas. Cumpre-nos aprender a estar livres no meio das ocupações. No entanto, para um homem não exercitado é um empreendimento difícil chegar a tal ponto que nem coisas nem obras o impeçam. Será necessário muito zelo para tanto, e também que Deus lhe esteja continuamente presente e o esplendor divino lhe brilhe abertamente em todo o tempo e lugar. Requer-se para isto um zela infatigável e sobretudo duas coisas: uma, que o homem se tenha recolhido interiormente para que o espírito esteja a salvo das imagens de fora, para que fora dele fiquem e não caminhem presunçosamente com ele, ou não encontrem nele repouso. A outra é que o homem não divague nem se distraia nem se dê tampouco nas suas imagens interiores, sejam apresentações ou elevações do espírito ou imagens externas ou qualquer coisa dessas, que estejam no momento presentes. Deve o homem habituar a isto todas as suas forças. Para tanto treine-as e mantenha assim o controle do seu interior.
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Poderás talvez objetar: Ora, o homem deve voltar-se para as coisas externas, se é que deve atuar no exterior, pois nenhuma obra pode ser feita a não ser da maneira que lhe é própria. Isto é bem verdade. No entanto, as formas externas são para o homem bem avisado não algo de exterior, pois todas as coisas têm para o homem interior uma maneira interior e divina de existência. O que importa sobretudo é o seguinte: que o homem tenha sua razão habituada e cultivada na familiaridade com Deus; destarte, acontece que as coisas no seu interior se tornam algo de divino. Pois nada é tão próprio, presente e próximo à razão quanto Deus. Não se volta a razão para algo diverso. Ela não se volta às criaturas, a não ser que se lhe faça violência e injustiça, ficando com isto francamente distorcida e pervertida. Se a razão, por desgraça, ficar assim pervertida num jovem ou em outra pessoa qualquer, cumpre que seja ela corrigida num penoso esforço. Deve-se usar do máximo esforço, para que a razão seja corrigida e habituada ao que é certo. Pois por mais condizente e próprio que Deus seja com relação à alma, se esta for uma vez mal orientada e fixada nas criaturas, se prezar as figuras e formas e a elas se habituar, então será enfraquecida nesta parte e também em si mesma tão incapaz e tão embargada a todo nobre sentimento e vontade, que ao homem toda indústria e esforço de que seja capaz ainda serão pouco para que possa reencontrar-se plenamente. E ainda que ele faça todos estes esforços, mesmo assim precisa de contínua vigilância. Antes de tudo cumpre ao homem cuidar de habituar-se (à familiaridade com Deus) firme e retamente. Se alguém não habituado e não exercitado neste sentido quisesse proceder e agir como uma pessoa habituada, estragar-se-ia totalmente e isto não daria em nada. Só quando alguém se tiver desprendido de todas as coisas e tornado alheio a elas, poderá realizar com cuidado todas as suas obras e se lhes devotar sem preocupação, ou as dispensar sem qualquer dificuldade. De outro lado, se o homem amar algo e nisto sentir prazer e se conscientemente ceder a tal prazer, seja comida ou bebida ou seja o que for, não se poderá dar tal caso sem dano para um homem indisciplinado. Deve o homem habituar-se a não apetecer e nada procurar de sua própria vontade, mas encontrar e abraçar a Deus em todas as coisas. Pois Deus não concede um bem e jamais deu algum, para que seja possuído e nele se descanse. Pelo contrário, todos os dons que Ele deu no céu e na terra, Ele dispensou para que pudesse dar uma só dádiva, e esta dádiva é Ele mesmo. Com todos aqueles benefícios ele nada mais visa senão nos preparar para um só dom: Ele mesmo. E todas as obras que Deus fez no céu e na terra, Ele as executou unicamente para poder concretizar uma só obra: isto é, ser feliz para que pudesse fazer-nos felizes. Digo por conseguinte: devemos aprender a considerar a Deus atuante em todas as obras e dádivas. Nenhuma coisa nos deve bastar em si mesma. Não devemos parar em nenhuma. Pois nesta nossa vida nunca houve para um homem — por mais que ele tenha prosperado — a possibilidade de parar. O que mais importa é que o homem sempre se mantenha orientado para os dons de Deus, e isto sempre de novo. Quero mencionar brevemente uma pessoa que ardente-mente desejava obter algo de Deus; eu no entanto lhe disse que ela não estava bem preparada para isto, e se Deus lho concedesse, estando ela ainda despreparada, seria para o dano dela. Perguntareis: Por que ela não estava preparada? Pois que tinha boa vontade, e vás dissestes que essa realizaria todas as coisas, e que nela se encontrariam todo bem e toda perfeição?! Isto é certamente verdade. No entanto, devem-se distinguir dois significados da vontade: uma vontade é casual e secundária, a outra é uma vontade básica, decisiva, criativa e firmemente estabelecida e determinada. Ora, certamente não basta que a alma num determinado momento em que procura a união com Deus esteja separada das coisas do mundo, mas há de ter um desprendimento bem exercido e firmado que proceda e persista: só assim será possível que ela receba grandes coisas de Deus e ao próprio Deus em todas as coisas. Quando se está despreparado, se vicia o dom e se perde a Deus juntamente com o dom. Esta é também a razão pela qual Deus nem sempre pode dar como pedimos. Não é certamente por causa dele, pois Ele tem mil vezes mais pressa em dar do que nós em receber. Somos nós que lhe fazemos violência e injustiça, impedindoo, pela nossa falta de verdadeira disposição, de agir segundo a boa vontade que lhe é conatural. Deve o homem aprender a eliminar em todos os dons o seu próprio eu e não reservar nada
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para si e nem procurá-lo, nem a utilidade nem o prazer, nem o sentimento devoto nem a doçura, nem o prêmio celestial nem a sua vontade própria. Deus jamais se deu nem futuramente se dará em alguma vontade qualquer alheia. Ele s6 se dará onde encontrar a sua própria vontade divina. Quando Deus encontra a sua vontade, se dá e entra nela com tudo o que Ele é. E quanto mais nos despojamos da nossa vontade, tanto mais nos tornamos presentes na vontade dele. Por isso, não basta que realmente alguma vez nos renunciemos a nós mesmos e a tudo que somos e podemos, mas devemos praticá-lo continuamente e assim nos tornarmos, em todas as coisas, simples, despojados de nós mesmos e livres. É igualmente de máxima utilidade que o homem não se dê por satisfeito, se tiver em mente as virtudes como a obediência, a pobreza e outras virtudes; antes, deverá o próprio homem se exercer e comprovar nas obras e frutos de virtude e, além disso, desejar e procurar ser exercitado e provado pelos homens; pois não basta que ele pratique as obras da virtude, preste obediência e sobre si tome a pobreza ou o desprezo ou que se mantenha de qualquer maneira humilde e conformado. Ele deverá persistir e jamais dar-se por satisfeito, até que possua a virtude nos seus fundamentos e na sua natureza. Como se patenteia que se adquiriu a virtude? No fato de se estar inclinado para ela mais que para qualquer outra coisa, e praticar-se as obras da virtude sem especial empenho sobre a vontade, e atuar-se sem explícito bom propósito para um objetivo justo e grande, que não seja resultante de um especial bom propósito em relação a uma coisa justa e grande, mas sim que ela opere por sua natureza ela mesma e por amor à virtude; não por outro motivo qualquer. Destarte a virtude é perfeita, e não antes. Cumpre que se aprenda a renunciar a si mesmo, até que já não se tenha nada mais para si mesmo. Toda tempestade e toda falta de paz nascem da própria vontade, quer reparemos quer não. Cumpre colocar-nos com tudo que é nosso — mediante um despojamento puro da vontade própria e do nosso desejo — dentro da boa e caríssima vontade de Deus, com tudo quanto se possa querer e pretender em todas as coisas. Uma pergunta: devemos então afastar propositalmente mesmo todo doce sentimento da presença e familiaridade de Deus? Não poderia isto provir até da lassidão e do pouco amor a Ele? Pode ser: se não atendermos a uma diferença. Pois nasça esta disposição da preguiça ou de verdadeira renúncia e do abandono de si mesmo, sempre se deverá ver se nos encontramos em tal estado conformados, estando não menos fiéis a Deus do que quando estamos nas mais vivas consolações, de modo que também nesse estado se faça tudo aquilo que se pratica no outro, e não menos, e que se proceda com tanta independência diante da ausência de consolações e auxílios, como quando se sente a confortante presença de Deus. Para o homem que se tiver consolidado numa vontade tão perfeita, tempo algum é breve demais. Pois se a sua vontade for tal, que ele quer perfeitamente tudo quanto pode — não apenas agora, mas ainda em mil anos, se chegasse a viver tanto — digo que uma tal vontade e disposição traz tanto fruto quanto se obtém com mil anos de trabalho: pois diante de Deus ele tudo fez.
��. ���� �� ���� ������ � ���� �� ������� �������� O homem que inicia uma vida ou obra nova deve dirigir-se a seu Deus e pedir com grande força e com toda a devoção que Deus lhe conceda o que lhe for melhor e mais do agrado e glória de Deus, de modo que não se procure o que for da própria vontade e sim o que for unicamente da vontade do bom Deus. O que Deus então lhe dispensar, acolha o homem das mãos de Deus e o tenha pelo melhor que lhe possa ter sido indicado. E esteja plenamente contente com isto. Ainda que posteriormente outra maneira lhe agrade mais, deve ele pensar: «É esta a maneira que Deus dispôs quanto a ti, e por isso é a melhor». Ponha ele assim a sua confiança em Deus e subsuma todas as formas boas sob esta, nela acolhendo todas as coisas, sejam elas de que espécie forem. Pois o que Deus dispensou em benefícios de uma maneira também pode ser encontrado em todas as outras formas boas. Pois em uma só forma se devem abraçar todas as formas boas e não
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justamente a peculiaridade singular da forma respectiva. Pois o homem deve fazer uma só coisa de cada vez, pois não pode fazer tudo. Tem que ser um só, mas neste ser deve abraçar todas as coisas. Pois se o homem quisesse fazer tudo, isto e mais aquilo, e se quisesse abandonar o seu modo e abraçar o de outro, resultaria uma grande inconstância. Assim, um homem que, saindo do mundo, abraçasse a vida religiosa numa determinada Ordem escolhida de vez para sempre, tornar-se-ia mais facilmente perfeito do que outro que passasse de uma Ordem para outra, por mais santa que esta fosse. Isto provém da mudança da escolha. Abrace portanto o homem uma boa maneira e permaneça nela e enquadre nela todas as boas formas e considere esta maneira como indicada por Deus. Não comece portanto hoje uma coisa e amanhã outra e não pense ele que na forma uma vez escolhida possa ele perder alguma coisa. Pois com Deus presente não se pode perder nada; tampouco como Deus pode perder uma oportunidade, tampouco o homem, tendo a Deus presente, pode perder alguma coisa. Receba ele pois de Deus um bem e nele integre todo o bem. Ficando porém patente que não sintonizam esses bens a ponto de um bem excluir o outro, então tome-o como sinal seguro de que tal outro bem não procede de Deus. Um bem verdadeiro nunca é contrário a outro, pois como disse Nosso Senhor Jesus Cristo: «Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruína» (Le 11,17), e como também disse: «Quem não estiver comigo, está contra mim, e quem não recolhe comigo, dispersa» (Lc 11,23). Seja portanto para ti um sinal seguro: se um bem não admite outro, nem mesmo um bem inferior, ou até o destrói, então este bem não vem de Deus. Pois o bem divino é dado para resultar em algo de bom e não para destruir. Assim também dizia uma breve observação que alguém fez, dizendo que não padece dúvida de que o Deus fiel acolhe a cada homem no que ele tiver de melhor. Isto é muito certo e de modo algum Deus acolhe um homem derrubado e prostrado no chão, quando Ele o poderia muito bem ter encontrado corno alguém firme e em pé. Pois a bondade de Deus visa o melhor para todas as coisas. Alguém perguntou: por que então Deus não chama da presente vida aquelas pessoas das quais sabe que perderão a graça batismal? Não sabe Ele que hão de cair e não se levantarão novamente? Por que não os deixa morrer na infância, antes de chegarem ao uso da razão? Seria isto, certa-mente, o melhor para eles. Respondi: Deus não é destruidor de um bem, mas Ele o conduz à perfeição. Deus não destrói a natureza mas a leva ao estado perfeito. Também a graça não destrói a natureza; pelo contrário, leva-a à perfeição. Se Deus destruísse a natureza, já no início, far-lhe-ia violência e maldade: tal coisa Deus não faz. O homem possui vontade livre com a qual pode optar pelo bem ou pelo mal. Deus lhe propõe a morte pela maldade; e pela probidade, a vida. Ele quer o homem livre e dono de suas ações, sem que sofra de violação da natureza sua ou de coação. A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. A glorificação da natureza será graça levada à perfeição definitiva. Não há portanto nada em Deus que chegue a destruir algo que de algum modo participe do ser. Deus, ao contrário, leva todas as coisas à perfeição. Da mesma forma, também nós não devemos destruir em nós um bem, por menor que seja, nem arruinar uma maneira inferior por uma forma superior, mas procurar aperfeiçoá-las até o mais alto grau. Conta-se que alguém pretendia começar uma vida nova, desde os fundamentos. Eu lhe falei assim: O homem é uma criatura que procura a Deus em todas as coisas; ele deveria tornar-se uma criatura que encontra a Deus em todo o tempo, em todos os lugares e junto a todos os homens e em todas as condições. Nisso pode crescer e fortalecer-se sem cessar, sem nunca chegar ao fim do aumento.
��. �� ����� ���������� � ���������� Supondo-se que um certo homem, com todas as suas forças interiores e exteriores, desejasse retirar-se para dentro de si mesmo, e se achasse neste seu estado de tal modo que não houvesse dentro dele qualquer fantasia ou imaginação, qualquer impulso poderoso provindo de Deus, de modo que ele se encontrasse num estado de ausência de qualquer ação interior ou exterior: conviria averiguar bem se acaso neste estado o homem não seria movido por si mesmo para alguma ação. Se
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no entanto constar que o homem não se sente impe-lido a nenhuma obra e nada deseja empreender, ele mesmo deverá então forçar-se para alguma ação, interior ou exterior, pois o homem não pode ficar contente com o nada, por melhor que isto lhe pareça ou seja, para que — se ele se encontrar um dia posto sob dura pressão ou constrangimento (por ação divina) a ponto que pareça antes sofrer uma ação do que fazê-la — aprenda ele a colaborar com Deus. Isto não significa que o homem deva sair do seu interior ou abdicar dele, antes, é precisamente nele, com ele e por ele que deverá aprender a agir de modo que o interior ecloda para a ação e a ação se reintroduza no seu interior e destarte se habitue a agir sem apreensão. Pois cumpre dirigir a atenção sobre essa atuação interior, e agir a partir daí, seja ler, rezar, ou, se for o caso, praticar alguma obra exterior. Quando porém a atividade externa ameaça destruir a vida interior, cumpre optar pela interior. Se porém as duas podem harmonizar-se, isto seria ideal para haver maior co-laboração com a ação de Deus. Ocorre, porém, esta questão: Como falar ainda em colaboração, se o homem se esvaziou a si mesmo e a todas as obras — como observa S. Dionísio: Fala do modo mais belo de Deus aquele que diante da plenitude da riqueza interior de Deus puder mais profundamente calar-se — uma vez que se diluem todas as idéias e imagens e obras, louvor e agradecimento ou o que quer que alguém ainda possa prestar? Resposta: Uma obra no entanto ainda é conveniente e justa: a desmontagem de si mesmo. E ainda assim, por maior e mais radical que seja este morrer a si mesmo e ter-se por pequeno, sempre será insuficiente, se Deus não levar a termo esta ação em nós. A humildade só será suficientemente perfeita quando Deus humilhar o homem pelo homem, ele mesmo. Só então se faz justiça ao homem, e à virtude; não antes. Uma pergunta: Como Deus há de destruir o homem pelo homem mesmo? Parece antes que esta destruição do homem seria uma exaltação do homem por Deus; pois diz o Evangelho: «Quem se humilhar, será exaltado» (Mt 23,12; Le 14,11). Resposta: Sim e não! Como ele deve «humilhar-se» a si mesmo e não consegue humilhar-se bastante, então que Deus o faça; e ele «será exaltado», não certamente como se o «ser humilhado» fosse uma situação e o «ser exaltado» outra. Antes, a mais sublime altura da exaltação está precisamente no mais profundo abismo da humilhação. Pois quanto mais profundo for o abismo e quanto mais baixo, tanto mais elevada e incalculavelmente, sublime será a elevação e a altura; e quanto mais profundo um poço, tanto mais alto será. Altura e profundidade coincidem. Por isso, quanto mais alguém se puder humilhar, tanto maior será. É por isso que diz o Senhor: «Quem quiser ser o maior, torne-se o menor dentre vós» (Mc 9,34). Quem quiser ser aquilo, deve procurar ser isto, O «ser» aquilo só se encontra no «tornar-se» isto. Quem se tornar o menor, será realmente o maior. Quem se tornar o mínimo, será realmente o máximo. E assim se comprova e se cumpre a palavra do Evangelista: «Quem se humilhar, será exaltado» (Mt 25,12; Le 14,11). Pois todo o nosso ser próprio não tem outro fundamento a não ser no ser desfeito. Está escrito: «Eles se tornaram ricos em todas as virtudes» (1Cor 1,5). Isto na verdade jamais pode acontecer, a não ser que antes se tenha ficado pobre em todas as coisas. Quem quiser receber tudo, deve antes desfazer-se de tudo. Eis o negócio justo, o intercâmbio eqüitativo, como já tinha dito muito antes: sendo da vontade de Deus dar-se a si mesmo e todas as coisas para que fiquem ao nosso livre dispor, Ele nos quer primeiro espoliar totalmente de tudo quanto for nosso. Digo e reafirmo: Deus absolutamente não admite que tenhamos como próprio nem mesmo o que pudesse cair nos olhos. Pois todas as dádivas que Ele alguma vez nos tenha dado, tanto na ordem da natureza como na da graça, Ele jamais nos deu a não ser com esta intenção: que nada possuamos como nosso. Pois, para ser totalmente do homem, Deus nunca deu nada a ninguém, nem a sua Mãe nem a outro homem nem a qualquer outra criatura, de qualquer maneira que seja. E para no-lo ensinar e nos munir com este espírito é que Ele freqüentemente nos tira os dois: os bens materiais e espirituais. Pois a posse de tal dom não deve ser nossa, mas dele tão-somente. Nós, ao contrário, deveremos fruir das coisas apenas como emprestadas, e não dadas, sem propriedade real, nem posse delas, quer sejam bens do corpo ou da alma, quer sejam os sentidos ou as energias, bens externos ou glória, amigos, parentes, casas, terras ou outras coisas. Qual afinal a intenção de Deus, para insistir tanto nessa espoliação de tudo? Bem, Ele quer ser s6 e totalmente o nosso bem. É isto que Ele quer e procura, e é só isto que Ele unicamente
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tenciona: que possa ser totalmente nosso. Está nisto o seu maior prazer, sua alegria e delicia. Pois quanto mais coisas tivermos como nossas, tanto menos teremos a Ele, e quanto menos amor tivermos a uma multidão de coisas, tanto mais possuiremos a Ele com tudo quanto Ele nos possa oferecer. Por isso, quando Nosso Senhor nos quis falar de todas as bem-aventuranças, colocou a pobreza de espírito como cabeça de todas elas e a ela como a primeira, em sinal de que toda a bemaventurança e perfeição em seu conjunto e nas suas partes têm seu inicio na pobreza de espírito. E na verdade, se houver um fundamento sobre o qual se pudesse levantar todo o bem, este não haveria sem essa virtude. Por nos guardarmos livres de todas as coisas que existem ao redor de nós, Deus nos quer dar, para propriedade nossa, tudo quanto há no céu e o próprio céu com todas as suas potências, até mesmo tudo quanto dele deriva e quanto possuem todos os anjos e santos, para que tudo isto seja tão próprio nosso como o é deles, e será nosso em maior medida que qualquer coisa que agora me pertença. Em recompensa pelo fato de que eu, por seu amor, me desfiz de mim mesmo, Deus será totalmente meu, com tudo quanto é e quanto possa dar-me; tão perfeitamente meu quanto Ele é seu, não menos, mas até mais. Mil vezes mais Ele será meu do que qualquer coisa que alguém possua ou tenha em sua caixa. Jamais alguém teve algo tão perfeitamente como propriedade sua, como Deus será meu, com tudo quanto Ele é e quanto pode fazer. Tal propriedade deveremos ganhar, permanecendo aqui na terra sem possuir-nos a nós mesmos ou qualquer coisa que não seja Ele mesmo. E quanto mais perfeita e despo-jada for a nossa pobreza, tanto maior será esta propriedade. No entanto, não devemos ambicionar tal recompensa, nem dirigir a nossa cobiça para ela; nosso olhar nem uma vez sequer procure enxergar se ganhamos algo, mas se oriente unicamente pelo amor à virtude. Pois quanto mais livre e indevida for a posse, tanto mais ela será nossa, como diz o nobre São Paulo: «Como quem nada possui, mas tendo tudo» (2Cor 6,10). Não tem propriedade aquele que nada deseja nem quer possuir o que é de sua natureza própria ou existe fora dele, nem Deus nem qualquer outro bem. Queres saber o que é um homem realmente pobre? Realmente pobre no espírito é aquele homem que bem pode dispensar-se de tudo quanto não for necessário. Por isso, disse aquele que permaneceu nu, dentro de um barril, na presença de Alexandre Magno, que tinha G mundo a seus pés: «Eu sou — falou ele — um senhor muito maior que tu, pois minha capacidade de desprezo é maior do que aquilo que ocupaste. O que consideras grande coisa, ocupando-a, para mim é pequeno demais para eu poder sequer desprezar». Muito mais feliz é aquele que pode dispensar todas as coisas e que delas não necessita do que aquele que mantém a posse de tudo por precisar. O melhor homem é aquele que considera prescindível tudo quanto não lhe faz falta. Por isso, aquele que pode dispensar e desprezar a maior quantidade de bens, também na realidade mais deixou. Parece grande coisa alguém dar mil marcos-ouro e construir com os seus haveres muitos eremitérios e mosteiros e distribuir comida a todos os pobres; seria de fato grande coisa. Mas muito mais venturoso seria aquele que desprezasse tantos bens por amor a Deus. Pois aquele homem teria o verdadeiro Reino dos céus, se por amor a Deus pudesse renunciar a todas as coisas, quer Deus as desse quer não. Agora me dirás: «Sim, meu Senhor, mas não seria eu com minhas fragilidades e enfermidades para tanto um empecilho e razão retardadora nessa caminhada de perfeição?» Ora, se há empecilhos desta natureza, roga sempre de novo a Deus e pergunta se não é para sua honra e agrado que Ele te livre de tais males. Pois sem Deus nada consegues. Se Ele te livrar daquilo, agradece. Se não o fizer, pois então carrega isso por seu amor, não já como defeitos resultantes do pecado, mas como grande exercício com que deves ganhar a recompensa e exercer a paciência. Deves estar satisfeito, quer Deus te dê o favor implorado quer não. Deus dá a cada um o que for melhor para ele e o que melhor lhe convier. Quando se faz um paletó para alguém, as peças de fazenda devem ser cortadas sob medida; o que dá certo para um, não estará bem para outro. De cada um se toma a medida como lhe convém. Assim também Deus dá a cada um o que melhor lhe assenta. Sem dúvida, aquele que confia totalmente nele, recebe e possui no pouquíssimo tanto quanto no muitíssimo. Se Deus me quisesse dar o que deu a São Paulo, eu aceitaria com prazer, se fosse da vontade dele. Uma vez que Ele não me quer dar isto — pois só a pouquíssimas pessoas concedeu que já nesta vida possuíssem tanto saber quanto deu a Paulo — uma vez, digo, que Deus
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tanto saber não me concede, estou com esta sua vontade não menos contente e lhe dou não menos graças e estou tão perfeitamente satisfeito pelo fato de Ele me recusar este saber, como se mo tivesse dado; estou tão satisfeito com isto, e o aprecio da mesma maneira, sob pena de não ter o reto espírito, se outra fosse a minha mente. Na verdade é assim que me deve bastar a vontade de Deus. Em toda parte onde Deus quer operar ou dar, a vontade divina me deve ser tão preciosa e querida que para mim não seria de menor apreço o que Ele quer do que quando de fato me desse o seu dom ou operasse em mim o que almejei. Destarte todos os dons, todas as obras de Deus se tornariam minhas, e ainda que todas as criaturas empreendessem o que pudessem, o melhor ou o pior, não conseguiriam tirar-me estas dádivas de Deus. Como poderia eu lamentar-me, uma vez que todas as dá-divas concedidas aos homens se tornaram minhas? Por Deus! Tão bem me contentaria com o que Deus me fizesse ou desse ou recusasse, que eu não pagaria nem um tostão sequer para poder levar uma vida que eu mesmo tolamente imaginasse ser a melhor. Agora vens dizer-me: «Receio que eu não aplique bastante esforço nisso e que não cultive tal mente como poderia e deveria fazer». Suporta com paciência que isto te dê pena. Aceita-o como uma provação e fica tranqüilo. Deus de boa mente sofre opróbrio e vexame e dispensa do seu serviço e do seu louvor para que tenham paz os que o amam e são dele. E por que não iríamos nós experimentar a paz, seja o que for que Ele nos dê ou de que tenhamos que sentir falta? Pois está escrito, e é Nosso Senhor quem diz: Bem-aventurados os que sofrem por causa da justiça (Mt 5,10). Certo! Se um ladrão que a gente quer enforcar e que pelas suas ladroeiras bem o teria merecido, ou se um assassino que por isso estaria sendo levado para se estender sobre a roda de tortura, se tais, digo, pudessem chegar à compreensão e dissessem a si mesmos: Eis, queres sofrer tudo isto por causa da justiça, pois é com razão e justiça que isto te sobrevém — eles seriam sem mais bem-aventurados. De fato, por mais injustos que sejamos, se aceitarmos das mãos de Deus o que nos quer fazer ou não fazer, se tudo isto aceitarmos como justo da parte de Deus, e se assim sofremos por causa da justiça, bem-aventurados seremos. Por isso, não te lamentes. Lamenta-te antes porque ainda te lamentas, e não te dás por contente. Lamenta-te unicamente porque ainda te apóias sobre o muito que pretendes ter, pois um homem de mente reta receberia o desconforto total e a falta de tudo com o mesmo ânimo como acolhe o possuir e o dispor. Agora me dizes: «Eis que Deus realiza grandes obras em tanta gente, de modo que são engrandecidos por graças divinas, e é Deus e não eles quem opera isto». Deves por isso agradecer a Deus e se Ele der a ti, aceita e recebe em nome de Deus! Se não te conceder, então de boa mente dispensa aquilo. Atende apenas a Ele e não te preocupes com a questão se é Deus que opera as tuas obras ou se és tu quem as pratica. Pois Deus, queira Ele ou não, deve realizá-las, se tu apenas tens a Ele na tua mente. Também não te preocupes em saber qual natureza ou maneira de ser Deus queira dar a alguém. Se eu fosse tão bom e santo a ponto de me elevarem entre os santos, as pessoas logo falariam e indagariam se é por obra da graça ou da natureza e se inquietariam com isso. Elas não têm razão. Deixa que Deus opere em ti; atribui-lhe toda boa obra, não te inquietes pela questão se Ele coopera com a tua natureza ou se age sobrenaturalmente. Um e outro âmbito lhe pertencem: a ordem da natureza e a da graça. Que tens a ver com isto, se Ele escolhe isto ou aquilo, ou o que Ele quer operar em ti ou nalgum outro? Que Ele opere onde, quando e como lhe apraz. Certo cidadão queria canalizar uma fonte para dentro de sua horta e disse: «Desde que eu obtenha a água desejada, não me interessa de que espécie seja o rego que conduz a água, ou de ferro ou de madeira, desde que eu obtenha a água desejada». Eis portanto como procedem erradamente os que se preocupam com a questão se Deus opera através da natureza ou mediante a graça. Basta que Ele opere; e tu, queda-te quieto!
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Pois na medida em que estás em Deus, estás em paz, e na medida em que estás fora de Deus, estás fora da paz. Quanto estejas em Deus, OU quanto não, é algo que podes saber pelo fato de estares em paz ou não. Pois quando estás descontente e quando te falta a paz, acontece isto necessariamente, pois a falta de paz vem das criaturas e não do Criador. Nada existe em Deus que temer se deva. Tudo quanto está em Deus é amável. Do mesmo modo também não há nada nele que seja tristeza e luto. Quem tiver em si a plena vontade de Deus e os seus desejos, tal também tem a alegria. Só a experimenta quem tiver a própria vontade plenamente una com a vontade de Deus. Que Deus nos conceda esta união de vontade. Amém. Tradução de Fidelis Vering, O.F.M. e Leonardo Boff, O.F.M.
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��. � ��������������, � �������� ���������������, � ����� ��������� Há uma discussão interminável entre os especialistas acerca da autenticidade deste tratado. A tendência é atribuí-lo ao Mestre Eckhart, apesar de não conter as palavras-chaves de sua mística: o nascimento do Filho na alma, a centelha da alma, o abismo da alma ou a razão superior. Se o texto não fala nestes registros, coloca entretanto as pré-condições éticas para que o 'nascimento do Filho aconteça na alma e se acenda a centelha divina no coração. A palavra Abgeschiedenheit, como já acenamos anterior-mente, é de difícil tradução. Por isso devemos pensar em sinônimos como desprendimento, completa disponibilidade e total liberdade. Este conceito traduz a própria natureza de Deus e o processo do ser humano no caminho de assemelha-mento de Deus. É um dos textos maiores da mística cristã evocando traços da mística oriental. A tradução foi feita do alemão (Von Abgeschiedenheit: Meister Eckharts Traktate. Die deutschen Werke V, W. Kohlliammer, Stuttgart 1963, 539-547). Tenho lido muitos escritos, tanto de mestres pagãos como de profetas do Antigo e do Novo Testamento, e procurei com sinceridade e com todo o empenho a mais alta e a melhor das virtudes, ou seja: a que capacite o homem a melhor e mais estreitamente unir-se a Deus e tornar-se por graça o que Deus é por natureza, e que mais o assemelhe à imagem que dele havia em Deus e na qual não havia diferença entre ele e Deus, antes que Deus produzisse as criaturas. E quando perscruto todos aqueles escritos, tanto quanto a razão mo permite e é capaz de percebê-lo, outra coisa não encontro senão esta: que o puro desprendimento ou total disponibilidade tudo supera, pois de certa forma todas as virtudes visam à criatura, ao passo que o desprendimento está desvinculado de todas as criaturas. Eis por que Nosso Senhor disse a Marta: Unam, est necessarium (Lc 10,42), isto é: Marta, quem quer ter a paz e ser puro deve possuir uma coisa: o desprendimento ou a perfeita liberdade. Os mestres louvam grandemente a caridade, a exemplo de São Paulo, que diz: Seja qual for a obra que eu faça, se não tiver a caridade, nada sou (cf. 1Cor 13,1s). Quanto a mim, mais que toda a caridade, louvo o desprendimento. E isso por que, em primeiro lugar, o que há de melhor na caridade é que ela me força a amar a Deus, ao passo que o desprendimento força a Deus a me amar. Ora, é preferível, de muito, forçar a Deus a vir a mim do que forçar-me a ir a Deus. E isso, porque Deus pode entrar mais intimamente em mim e unir-se melhor comigo do que eu pode-ria unir-me com Deus. Que o desprendimento força Deus a vir a mim, provo-o assim: A cada coisa agrada estar no lugar que lhe é natural e próprio. Mas o lugar natural e próprio de Deus é a unidade e a pureza nascida do desprendimento. É necessário pois que Deus se dê a um coração desprendido. Em segundo lugar, louvo o desprendimento mais que a caridade porque a caridade me força a suportar todas as coisas por causa de Deus, ao passo que o desprendimento faz com que eu não seja acessível senão a Deus. Ora, não ser acessível senão a Deus vale muito mais do que suportar todas as coisas por causa de Deus. Pois no sofrimento o homem visa [ainda], de certa forma, à criatura da qual se origina o sofrimento humano, ao passo que o desprendimento está completamente desatado de toda criatura. E que o desprendimento não dá acesso senão a Deus, eu o provo assim: O que deve ser acolhido deve ser acolhido em alguma coisa. O desprendimento, porém, tão perto está do Nada que coisa alguma é subtil bastante para nele ter lugar, a não ser Deus somente. Só Ele, com efeito, é simples e subtil bastante para bem caber no coração desprendido. É por isso que o desprendimento não dá acesso senão a Deus. Acima de muitas outras virtudes, os mestres louvam também a humildade. Eu, porém, louvo o desprendimento e a total disponibilidade sobre toda humildade; e isso porque pode haver humildade sem desprendimento, mas não pode haver desprendimento perfeito sem humildade
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perfeita, pois a humildade perfeita tende à anulação do próprio eu. Mas o desprendimento toca tão de perto o Nada que não há o que se interponha entre o desprendimento perfeito e o Nada. Eis por que não pode haver desprendimento perfeito sem humildade. Ora, duas virtudes sempre valem mais do que uma só. O segundo motivo que me induz a louvar o desprendimento sobre a humildade é que a humildade perfeita se inclina a todas as criaturas e, nessa inclinação, o homem sai de si, em direção às criaturas, enquanto o desprendimento permanece em si mesmo. Ora, jamais o sair de si é tão nobre que o permanecer em si mesmo não seja mais nobre ainda. Por isso dizia o profeta Davi: Omnis gloria eius filiae regis ab intus, isto é: Toda a glória da filha do rei lhe vem do interior (Sl 44,14). O desprendimento perfeito ou a total disponibilidade não pretende submeter-se nem sobrepor-se a criatura alguma; não quer estar abaixo nem acima; o que ele quer é estar ali por si mesmo, sem querer bem nem mal a ninguém, sem querer ser igual ou desigual a criatura alguma, sem querer ser isto ou aquilo: quer apenas ser, e nada mais. Quanto a ser isto ou aquilo, ele não o quer, pois quem quer ser isto ou aquilo quer ser alguma coisa, ao passo que o desprendimento não quer ser coisa alguma. Por isso deixa estar todas as coisas, sem importuná-las. Mas, dirá alguém: Todas as virtudes certamente se encontravam de forma perfeita em Nossa Senhora; logo devia haver nela também um desprendimento perfeito. E', se o desprendimento é superior à humildade, por que Nossa Senhora se gloriou de sua humildade, e não de seu desprendimento, quando disse: Quia respexit Dominus humilitatem ancillae suae, isto é: Ele olhou a humildade da sua serva (Lc 1,48), — por que não disse, pois: Ele olhou o desprendimento da sua serva? A isso respondo que em Deus há desprendimento e humildade, na medida em que podemos atribuir virtudes a Deus. Ora, deves saber que foi a humildade prenhe de amor que O moveu a inclinar-se à natureza humana, enquanto o Seu desprendimento permaneceu imóvel em si mesmo quando Deus se fez homem, e bem assim, quando criou o céu e a terra, como te explicarei depois. E porque Nosso Senhor, quando quis fazer-se homem, permaneceu imóvel em seu desprendimento, Nossa Senhora bem sabia que Ele desejava dela a mesma coisa e que, nesta ocasião, Ele olhou a sua humildade, e não o seu desprendimento. Eis por que ela permaneceu imóvel em seu desprendimento e se gloriou de sua humildade, e não de seu desprendimento. E se tivesse mencionado, com uma palavra sequer, o seu desprendimento, dizendo: Ele olhou o meu desprendimento, o desprendimento ter-se-ia turvado, deixando de ser total e perfeito, pois, no caso, ele teria saído de si mesmo. Ora, nenhuma saída, por pequena que seja, pode deixar intacto o desprendimento. Eis aí por que Nossa Senhora se gloriou da sua humildade, e não do seu desprendimento. Por isso disse o profeta: Audiam quid laquatur in me Dominus Deus, isto é: Calarme-ei e ouvirei o que o meu Senhor e meu Deus me inspirar, Como se dissera: Se Deus quiser falar-me, que venha para dentro de mim, pois que não quero sair. Também louvo o desprendimento ou a disponibilidade mais que toda misericórdia, porque a misericórdia consiste em sair o homem de si mesmo para ir ao encontro das misérias do próximo que lhe afligem o coração. O desprendimento fica isento disso e permanece em si mesmo, sem deixar-se afligir por coisa alguma. Pois enquanto alguma coisa é capaz de afligir o homem, este não é tal como deveria ser. Em suma: considerando todas as virtudes, nenhuma deparo tão livre de vício e tão apta a unir a Deus quanto o desprendimento. Diz um mestre chamado Avicena: tamanha é a nobreza do homem desprendido que tudo o que ele contempla é verdade, tudo o que ele deseja lhe é dado e tudo o que ele manda deve ser obedecido. E eis uma verdade que deves saber: Quando o espírito livre se mantém verdadeiramente desprendido, ele força Deus a vir ao seu ser; e, se pudesse subsistir sem forma alguma e sem quaisquer acidentes, ele assumiria o ser próprio de Deus. Mas tal ser Deus a ninguém pode dá-lo senão a Si mesmo; eis por que Deus nada mais pode fazer pelo espírito desprendido do que dar-selhe a Si mesmo. E o homem que assim permanece em total desprendimento é de tal modo arrebatado à eternidade que nada de efêmero é capaz de o abalar, e em nada o afeta o ser corporal. De um tal se diz que está morto para o mundo, visto não sentir mais gosto algum pelas coisas terrenas. É o que pensava São Paulo, ao dizer: «Eu vivo, e no entanto, não vivo; é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Mas perguntarás: que é o desprendimento, para ser tão nobre em si mesmo? Quanto a este ponto deves saber que o verdadeiro desprendimento ou a completa disponibilidade nada mais é senão isto: que o espírito permaneça tão insensível em face de todas as vicissitudes da alegria e da
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dor, das honrarias, dos ultrajes e dos insultos, como uma montanha de chumbo é insensível a um sopro de vento. Tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança com Deus. Pois o ser Deus, Deus o deve ao seu desprendimento imutável; e do desprendimento lhe vem a pureza e a simplicidade e a imutabilidade. Assim sendo, se o homem deve assemelhar-se a Deus, na medida em que uma criatura pode ser semelhante a Deus, isso se fará pelo desprendimento. Pois este conduz o homem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Donde resulta uma semelhança entre Deus e o homem, mas tal semelhança deve nascer da graça, pois é a graça que desprende o homem de todas as coisas temporais e o purifica de todas as coisas passageiras. E sabe que estar vazio de toda criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus. Pois bem: deves saber que, desde toda a eternidade, Deus esteve, como ainda está, nesse desprendimento imutável e, ademais, que a criação do céu e da terra tampouco Lhe afetou o desprendimento imutável como se jamais criatura alguma fora criada. Digo mais: todas as orações e boas obras tampouco perturbam o desprendimento divino como se nunca no tempo uma oração ou boa obra fosse feita, e nem Deus se torna mais benigno ou mais disposto em relação ao homem do que o seria se este jamais tivesse feito oração ou obras boas. Digo, outrossim: quando o Filho na Deidade quis fazer-se homem, e homem se fez, e sofreu o martírio, o desprendimento imutável de Deus não mais se alterou do que se jamais se humanara. Ao que poderias dizer: entendo pois que toda oração e todas as boas obras ficam perdidas, dado que Deus não as acolhe como alguém que fosse movido por elas; mas não obstante se diz: Deus quer que Lhe peçamos todas as coisas! Aqui deves escutar-me com atenção e entender corretamente, se o puderes, que Deus, em seu primeiro olhar eterno — se é que podemos admitir aqui um primeiro olhar — viu todas as coisas assim como sucederiam, e nesse mesmo olhar Ele viu quando e como queria produzir as criaturas, e quando o Filho tencionava humanar-se e sofrer. Viu também as mais humildes orações e boas obras que o homem faria; viu as preces e oferendas piedosas que queria ou devia atender; viu que tencionas invocá-lo e rogá-lo com sinceridade no dia de amanhã, mas não é amanhã que Deus quer atender a tua invocação e a tua oração, pois acolheu-a em sua eternidade, antes mesmo que tu fosses homem. Mas se não rogares com instância e seriedade, não será agora que Deus deixará de atender-te, pois já deixou de fazê-lo em sua eternidade. E assim, no seu primeiro olhar eterno, Deus viu todas as coisas, e Ele nada cria de novo, pois tudo foi feito por Ele de antemão. E assim Deus persiste em todo o tempo em seu desprendimento imutável, mas nem por isso se perdem as orações e boas obras dos homens, pois quem faz o bem é recompensado, e quem faz o mal também é remunerado conforme o mereça. É o que diz Santo Agostinho no quinto livro Da Trindade, no último capítulo: Deus autem..., isto é: Deus nos guarde de dizer que Ele ama a alguém no tempo, pois para Ele nada é passado e nada é futuro; Ele amou a todos os santos antes que o mundo fosse criado, assim como os anteviu. E, chegada a hora em que torna visível no tempo o que viu na eternidade, as pessoas imaginam que Deus lhes vote um novo amor; da mesma forma, quando Deus se irrita ou nos concede algum bem, somos nós que nos transformamos; Deus, porém, permanece imutável, assim como a luz do sol faz mal aos olhos enfermiços, e bem aos sadios, conquanto a luz solar permaneça imutável em si mesma. Santo Agostinho trata do mesmo assunto no livro doze Da Trindade, capítulo quatro: Nam Deus non ad tempus videt, nee aliquid fit novi in eius visione: Deus não vê segundo o tempo, e nada se faz de novo em sua visão. Isidoro exprime o mesmo pensamento no livro Do Bem Supremo: «Muitas pessoas perguntam: O que fazia Deus antes de criar o céu e a terra, ou então: De onde Lhe veio a vontade nova de formar as criaturas?» E responde assim: «Jamais houve em Deus uma vontade nova, pois, conquanto a criatura não existisse em si mesma tal como é agora, ela esteve eternamente em Deus e na razão de Deus». Deus não criou o céu e a terra assim como dizemos nós, no curso do tempo: «Que tal coisa se faça!», pois todas as criaturas estão expressas no Verbo eterno. Podemos citar, ainda, a palavra do Senhor a Moisés quando este Lhe perguntou: «Senhor, se o Faraó me perguntar: 'Quem és Tu', que lhe responderei?» O Senhor respondeu: «Dir-lhe-ás: Aquele que é me enviou» (Ex 3,13s). Isto é, aquele que é imutável em si mesmo foi quem me enviou. Mas dirá alguém: Também o Cristo teve um desprendimento imutável quando disse: «A minha alma está triste até a morte» (Mt 26,38), e Maria, quando estava ao pé da cruz — e muito se fala de sua lamentação —, como se pode conciliar tudo isso com o desprendimento imutável? Aqui
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deves saber o que dizem os mestres. Em cada ser humano há dois homens diferentes: um se chama o homem exterior, isto é, o ser sensitivo; serve-se dos cinco sentidos e, no entanto, o homem exterior atua em virtude da sua alma. O outro' chama-se o homem interior, e é a interioridade do homem. Ora, deves saber que um homem espiritual e amante de Deus não recorre às potências da alma no homem exterior senão quando os cinco sentidos o necessitam; e a interioridade não se volta aos cinco sentidos senão enquanto é seu chefe e guia, guardando-os de se entregarem como os animais ao seu objeto sensível, tal como o fazem certas pessoas que vivem na libertinagem dos seus desejos carnais, e procedendo como animais sem razão; tais pessoas mais propriamente se chamam animais do que homens! E as potências que a alma possui para além daquilo que aplica aos cinco sentidos, ela as consagra inteiramente ao homem interior. E quando este homem se volta para uma coisa elevada e nobre, ela toma a si todas as potências que emprestou aos cinco sentidos, e então se diz que o homem está fora dos seus sentidos e arrebatado; pois seu objeto é uma imagem intelectual ou uma coisa intelectual sem imagem. Mas deves saber que aquilo que Deus espera de todo homem espiritual é que este O ame com todas as potências da alma. Por isso disse: «Ama o teu Deus com todo o teu coração!» (Mc 12,30). Ora, certas pessoas despendem absolutamente todas as potências da alma no homem exterior. São as que voltam totalmente os sentidos e a razão aos bens passageiros; estas nada sabem do homem interior. Cumpre que saibas, porém, que o homem exterior pode estar ativo, enquanto o homem interior permanece totalmente livre e inalterado. Ora, também no Cristo havia um homem exterior e um interior, como também em Nossa Senhora. E quando o Cristo e Nossa Senhora falavam sobre assuntos exteriores, eles o faziam segundo o homem exterior, enquanto o homem interior permanecia inabalável no desprendimento. Assim, quando o Cristo disse: «A minha alma está triste até a morte», e quando Nossa Senhora se lamentava ou falava de outras coisas quaisquer, o seu interior mantinha-se imutavelmente desprendido. E eis uma comparação. Uma porta se abre e se fecha sobre um gonzo. Pois eu comparo a tábua externa da porta ao homem, exterior, e gonzo, ao homem interior. Ora, quando a porta se abre e se fecha, a tábua externa se move de cá para lá; o gonzo, porém, permanece imóvel no seu lugar e por isso nunca se muda. O mesmo ocorre aqui, se o compreenderes bem. E agora pergunto pelo objeto do desprendimento puro. E respondo: O objeto do desprendimento puro não é isto nem aquilo. Ele assenta num puro nada, e vou dizer-te por quê. O desprendimento puro assenta naquilo que há de mais elevado. Ora, ali se encontra aquele em cujo íntimo Deus pode agir segundo a sua vontade total. Mas não é em todos os corações que Deus pode agir segundo a sua vontade total, pois embora seja todo-poderoso, só pode agir conforme a disposição que depara, ou cria. E digo «ou cria» por causa de São Paulo, porque nele Deus não encontrou disposição alguma, porém o dispôs pela infusão da graça. Por isso digo: Deus age consoante a disposição que encontra. Sua operação é diferente no homem e na pedra. Temos disso um símile natural: quando se acende um forno e nele se introduz uma massa de aveia, uma de cevada, uma de centeio e uma de trigo, o calor no forno é um só e, todavia, ele não age do mesmo modo nas massas; pois uma se torna um pão bonito, a outra se torna mais grosseira, e a terceira fica mais grosseira ainda. A culpa não é do fogo, e sim, da matéria, que é diferente. Da mesma forma Deus não opera igualmente em todos os corações; opera conforme a disposição e a receptividade que encontra. Se algum coração contém isto ou aquilo, pode haver no «isto ou aquilo» alguma coisa que não lhe permite operar segundo o modo mais elevado. Para estar disposto para o mais elevado, o coração deve assentar num puro nada, onde há também um máximo de possibilidade. E como o coração desprendido se encontra no que há de mais elevado, força lhe é quedar-se no nada, pois ali se encontra o máximo de receptividade. Para tomar uma comparação à natureza: quando quero escrever numa tabuleta de cera, o que nela está escrito, por mais nobre que seja, não deixa de constituir um estorvo, pois não me permite escrever ali; se, não obstante, eu quiser escrever, terei de eliminar e apagar tudo o que está escrito nela. E a tabuleta nunca se prestará melhor à escrita do que quando nada estiver escrito nela. Da mesma forma, para que Deus possa escrever do modo mais elevado em meu coração, mister se faz que saia do coração tudo o que possa chamar-se isto ou aquilo; e tal é, inteiramente, o caso do coração desprendido. E por isso Deus pode agir nele da maneira mais elevada e segundo a sua vontade soberana. Eis por que o objeto do coração desprendido não é isto nem aquilo.
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E agora, outra pergunta: qual é a oração do coração desprendido? Respondo e digo que a pureza desprendida não pode orar, pois quem ora deseja obter alguma coisa de Deus, ou então, deseja que Deus lhe tire alguma coisa. Mas o coração desprendido não deseja nada, como nada tem do que deseje ver-se livre. Por isso dispensa toda oração, e sua oração outra coisa não é senão o estar conforme com Deus. É nisso que consiste toda a sua oração. A propósito disso podemos citar a palavra de São Dionísio sobre o dito de São Paulo: «Muitos são os que correm para obter a coroa, e no entanto, ela será atribuída a um só» (cf. 1Cor 9,24). Todas as potências da alma correm para obter a coroa que, no entanto, só é atribuída à essência. Dionísio, pois, diz: «A corrida não é senão o abandono de todas as criaturas e a união ao Incriado». E quando O alcança, a alma perde o seu nome e Deus a atrai para dentro de si, de modo a já não ser nada em si mesma, assim como o sol atrai a si o arrebol, reduzindo-o a nada. A isso, só o desprendimento puro é capaz de conduzir o homem. Podemos citar também a palavra de Santo Agostinho: há, para a alma, um acesso secreto à natureza divina, onde todas as coisas se anulam para ela. Cá embaixo, este acesso outra coisa não é senão o desprendimento puro. E quando tal desprendimento alcança o seu ponto mais alto, seu conhecimento se torna desconhecimento; seu amor, desamor; e sua luz, escuridão. Podemos citar ainda o que diz um mestre: pobres de espírito são aqueles que entregaram todas as coisas a Deus, assim como Ele as possuía quando não éramos. Só um coração puro e desprendido é capaz de assim proceder. Que Deus prefere estar num coração desprendido a estar em todos os outros corações, nós o reconhecemos nisso: — Se me perguntares: «O que procura Deus em todas as coisas?», eu te respondo com o livro da Sabedoria, onde Ele diz: «Em todas as coisas procuro o repouso» (Ecl 24,11). Em lugar algum porém há repouso completo, salvo no coração desprendido. Por isso é ali que Deus gosta de estar, mais do que em outras virtudes ou em outras coisas quaisquer. Deves saber também que quanto mais o homem se esforçar em dispor-se ao influxo divina, tanto mais feliz será; e o que mostrar um máximo de disposição, gozará de um máximo de felicidade. Ora, ninguém pode abrir-se ao influxo divino, salvo pela conformidade com Deus. Com efeito, quanto mais o homem for conforme com Deus, tanto mais acessível será ao influxo divino. Ora, a conformidade nasce da submissão do homem a Deus; e, ao contrário, quanto mais o homem se submeter à criatura, tanto menos conforme será com Deus. Mas o coração puro e desprendido está livre de toda criatura. Eis por que é totalmente submisso a Deus. E assim, a um tempo, é sumamente conforme com Deus e sumamente acessível ao influxo divino. É o que São Paulo quer exprimir quando diz: «Revesti-vos do Cristo!» Isto é, pela conformidade com o Cristo; pois o revestir-se d'Ele não se torna possível senão pela conformidade com o Cristo. E fica sabendo que quando o Cristo se fez homem, não revestiu um homem: revestiu a natureza humana. Despoja-te, pois, de todas as coisas, e só restará o que Cristo revestiu, e assim terás revestido o Cristo. Quem quiser conhecer a nobreza e a utilidade do desprendimento perfeito deve considerar as palavras que Cristo proferiu a respeito de sua humanidade quando disse aos discípulos: «Convém a vós que eu vá. Porque, se eu não for, não virá a vós o Espírito Santo» (Jo 16,7), como se dissesse: Sentistes agrado demais em minha figura presente, e por isso não podeis receber a alegria perfeita do Espírito Santo. Rejeitai, pois, a imagem visível e uni-vos ao Ser sem forma, pois a consolação espiritual é de natureza mui subtil e só se oferece a quem despreza a consolação carnal. E agora prestai atenção, todos vós, homens sensatos! Ninguém é mais alegre do que o homem soberanamente desprendido. Não há consolação carnal ou corporal que não seja nociva ao espírito, «pois a carne tem desejos contrários aos do espírito, e o espírito, aos da carne» (GI 5,17). Todo aquele, pois, que semear o amor desregrado na carne, colherá a morte eterna, e todo aquele que no Espírito semear o amor verdadeiro, do Espírito colherá a vida eterna. Portanto, quanto mais depressa o homem fugir da criatura, mais depressa lhe acudirá o Criador. Prestai atenção, todos vós, homens sensatos! Se já o agrado que possamos ter na figura corporal do Cristo chega a obstar que venha a nós o Espírito Santo, quanto mais o prazer desenfreado da consolação passageira nos vedará o acesso a Deus! Eis por que o desprendimento é o que há de mais excelente, pois é ele que purifica a alma e perlava a consciência, inflama o coração e desperta o espírito, espicaça o desejo e faz conhecer a Deus, separa da criatura e une-se a Deus. Prestai atenção, vós todos, homens sensatos! O animal mais veloz que a tal perfeição nos
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conduz é o sofrimento, pois quem compartilha a amargura suprema do Cristo, mais que ninguém há de saborear-Lhe a doçura eterna. Nada é mais amargo do que o sofrer, e nada mais doce do que o ter sofrido. Aos olhos dos homens, o que mais desfigura o corpo é o sofrer; aos olhos de Deus, o que mais embeleza a alma é o ter sofrido. O fundamento mais sólido de tal perfeição é a humildade. Com efeito, o espírito daquele cuja natureza cá embaixo rasteja na mais profunda abjeção, voa ao mais alto da Divindade, pois o amor traz sofrimento, e o sofrimento, amor. Todo aquele, pois, que aspira ao desprendimento perfeito, que busque a perfeita humildade, e assim chegará bem perto de Deus. Que lá cheguemos todos, no-lo outorgue o desprendimento supremo — o próprio Deus. Amém. Tradução de Raimundo Vier, O.F.M.
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�. ���� ������� �� ������ ������� O Mestre Eckhart deixou muitos sermões em latim e em alemão. Diversamente dos pregadores de seu tempo que nos legaram sermonários, os sermões de Eckhart são relativamente curtos e extremamente concentrados na temática proposta. Oferecemos três deles, significativos para a mística da unidade, tão central na experiência espiritual do Mestre. O primeiro sermão Deus é um é traduzido do latim, (Meister Eckhart. Die lateinischen Werke IV, W. Kohlhammer, Stuttgart 1956, 263-270). O segundo é traduzido do alemão Deus é um, Ele é um negar do negar (Meister Eckhart. Die deutschen Werke I, W. Kohlhammer, Stuttgart 1958, 517-520). O terceiro igualmente traduzido do alemão A excelência de Marta sobre Maria (Meister Eckhart. Die deutschen Werke III, W. Kohlhammer, Stuttgart 1975, 592-599).
�. ���� � �� Sermão XXIX Décimo terceiro domingo depois da Santíssima Trindade Sobre a Epístola (G1 3,16-22) Deus é um (G1 3,20 e Dt 6,4) Deus. Diz Anselmo: Deus é o ser em comparação ao qual nada de melhor se pode pensar. E Agostinho diz no capítulo 11 do 19 livro Da doutrina cristã: «o Deus supremo é pensado como algo em comparação ao qual nada há de melhor e mais sublime». E mais adiante: «não se encontrará pessoa alguma que creia ser Deus um ser tal que possa haver algo melhor do que Ele». Bernardo pergunta no 59 livro Da meditação: «que é Deus? O ser em comparação ao qual nada pode ser pensado de melhor». E Sêneca, no prólogo das Questões naturais: «que é Deus? O todo que vês, e o todo que não vês. Assim se lhe reconhece a sua grandeza: em que nada de maior se pode excogitar». Deus é infinito em sua simplicidade e simples em sua infinidade. Por isso está em toda a parte e em toda a parte todo inteiro. Em toda a parte mercê de sua infinidade, mas todo inteiro em toda a parte mercê de sua simplicidade. Só Deus se infunde em todas as coisas, em suas essências. Das demais coisas porém nenhuma se infunde em outra. Deus está no mais íntimo de cada coisa, e só no mais íntimo, e somente ele é um. Cumpre notar que cada criatura ama em Deus o um e o ama por causa do um, e o ama porque é um. Primeiro, porque tudo o que é, ama e busca a semelhança de Deus. A semelhança porém é uma certa unidade ou a unidade de certas coisas. Segundo, (porque) no um jamais há dor ou pena ou enfado, e nem sequer há nele passibilidade ou mortalidade. Terceiro, porque no um, enquanto é um, estão todas as coisas. Pois toda multidão é una e um, no Um e pelo Um. E quarto, porque não amaríamos nem o poder nem a sabedoria nem a bondade como tal, nem mesmo o ser, se não se unissem conosco e nós com eles.
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Quinto, porque o que ama verdadeiramente só pode amar um só. Por isso, à palavra Deus é um segue-se a outra: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração» (Dt 6,5). E' sem dúvida, (o que ama) quer que aquilo que ele ama com todo o seu ser seja um só. Sexto, porque ele quer unir-se ao amado. O que não lhe é possível se este não for um. Além disso, Deus só une a si porque é um e enquanto é um. Além disso, pelo fato mesmo de ser um, ele deve necessariamente unir todas as coisas e uni-las em si e consigo. Sétimo, porque o um é indistinto de todas as coisas. Logo, nele, em razão da indistinção ou unidade, estão todas as coisas e a plenitude do ser. Oitavo: repara bem que o um, em sentido próprio, diz respeito ao todo e ao perfeito. Pelo que, mais uma vez, nada lhe falta. Nono: nota que o um, por essência, se refere ao próprio ser ou à essência — ou mais exatamente, à essência una. Pois também a essência é sempre uma só, e em razão da unidade compete-lhe a união ou o ser unido. Cumpre notar, portanto, que aquele que verdadeiramente ama a Deus como ao um e por causa do um e da união, de modo nenhum se preocupa ou interessa pela onipotência ou pela sabedoria de Deus, porque estas pertencem a vários e dizem respeito a coisas várias. Tampouco se preocupa com a bondade em geral: primeiro, porque ela se refere ao que é exterior e está nas coisas e, segundo, porque a bondade consiste na adesão: «aderir a Deus, para mim, é o bem» (Sl 72,28). Décimo: nota que o um é mais alto, anterior e mais simples do que o bom, e está mais perto do ser e de Deus; ou, antes; consoante o seu nome, é um só ser com o próprio ser. Undécimo: Deus é profusamente rico por isso que é um. Com efeito, Ele é o primeiro e o supremo pela simples razão de 'ser uno. Por isso o um desce para todas as coisas e para Cada coisa singular, mas continuando sempre a ser um e unindo as coisas separadas. Por isso o seis não é duas vezes três, mas, seis vezes um. Ouve, pois, Israel, o teu Deus é um único Deus. A isto, nota que a unidade ou o um parece ser o próprio e a propriedade do intelecto somente. Pois consta que os seres materiais são unos e, contudo, não-unos, visto serem extensos ou, pelo menos, compostos de matéria e forma. Os seres imateriais ou espirituais, por sua vez, são nãounos, ou porque neles a essência ,não é idêntica ao ser, ou então, e talvez melhor, porque neles o ser não é idêntico ao pensar. São, pois, compostos de ser e essência ou de ser e pensar. Ver no livro Das causas, o comentário à última proposição. Por isso' se diz significativamente: o teu Deus é um Deus único, o Deus de Israel, o Deus vidente, o Deus dos videntes, isto é, o que pensa e é apreendido pelo só intelecto, o que é totalmente intelecto, Deus é um. Notar que isto pode entenderse de dois modos. Primeiro, assim: Deus, o Um, é. Com efeito, por isso mesmo que é um, competelhe o ser; isto é, que seja o seu ser, que seja ser puro, que seja o ser de todas as coisas. Segundo, assim: o teu Deus é um Deus único, no 'sentido de: nada de outro é verdadeiramente um, porque nada de criado é puro ser e totalmente intelecto. Pois (se o fosse) á não séria criável. Ademais, a respeito de cada coisa eu pergunto se há nela intelecto ou pensar ou não. Se não há, consta que isto, que carece de intelecto, não é Deus ou a primeira causa de todas as coisas que tão (manifestamente) estão ordenadas a determinados fins. Se porém há intelecto nela, então pergunto se há nela algum ser além do pensar ou não. Se não, então já tenho (a certeza de) que é um simples Um, e ademais, que é incriável, primeiro, etc., e portanto, que é Deus. Mas se tiver algum ser distinto do pensar, então é algo composto, e não simplesmente um. Evidencia-se, pois, claramente, que Deus é, em sentido próprio, um só, e que Ele é intelecto ou pensar, e que é só e simplesmente pensar, sem acréscimo de outro ser. Por isso só Deus, pelo intelecto, produz as coisas no ser, porque só nele o ser e o pensar são idênticos. Ademais (evidencia-se) que fora dele nada pode ser pensamento puro, senão que (tudo o mais) tem um ser diferente do pensar; do contrário, não seria criatura, porque o pensar é incriável, e porque «a primeira das coisas criadas é o ser».
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Com base no exposto, nota que tudo o que segue ao uno ou à unidade, a saber, a igualdade, a semelhança, a imagem, a relação e outras coisas tais, estão, todas elas, propriamente só em Deus. Por isso diz Agostinho no livro Da verdadeira religião, capítulo 53 (c. 30, n. 55): «porém a verdadeira igualdade ou semelhança (e a verdadeira e primeira unidade não se vêem com os olhos carnais, nem com outro sentido qualquer, e sim com o espírito)». A razão disso está ,em que, primeiro, (a igualdade, a semelhança, etc.) sucedem à unidade; e esta, como se disse, é própria a Deus. Segundo: tudo isso denota unidade em muitos. Esta, porém, não existe em lugar ou tempo algum, a não ser no intelecto, e mesmo ali ela não é, mas é pensada. Logo, ali onde o ser não é o pensar, nunca há igualdade. Mas só em Deus o ser é idêntico ao pensar. Terceiro: duas coisas que são semelhantes ou iguais não podem ser a própria semelhança ou a própria igualdade, etc. Quarto: nunca, no universo, há duas coisas totalmente iguais, nem duas coisas que quadrem de todo em todo uma com a outra. Caso contrário já não seriam duas, nem se relacionariam (entre si). Quinto: fora do intelecto só e sempre se encontra e depara a diversidade, a diferença de forma, e outras coisas tais: «Tu porém és eternamente o mesmo» (SI 101,13). Do exposto se pode depreender de que modo «aquele que se une a Deus constitui, com Ele, um só espírito» (1Cor 6,17). Pois o intelecto é, propriamente, de Deus; Deus porém é um. Logo, o quanto cada qual tem de intelecto ou de capacidade intelectual, tanto tem de Deus, tanto do um e tanto do ser-um com Deus. Pois o Deus uno é intelecto, e o intelecto é o Deus uno. Por isso Deus nunca e nenhures é Deus, salvo no intelecto. Agostinho diz no capitulo 15 do livro X (c. 24, n. 35) das Confissões: «onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus, a mesma Verdade». Portanto, subir ao intelecto, e submeter-se a ele, é unir-se com Deus. Unir-se, ser um, é ser um com Deus. Pois Deus é um. Todo o ser além do intelecto, fora do intelecto, é criatura, é criável, é algo outro do que é Deus, não é Deus. Pois em Deus nada há de outro. Ato e potência são divisões da universalidade do ser criado. O ser, porém, é o ato primeiro, e portanto, a primeira divisão. No intelecto, porém, em Deus, não há divisão. Por essa razão a Escritura sempre exorta (o homem) a deixar este mundo, a deixar-se a si mesmo, a esquecer a sua casa e a casa da sua família, a deixar a sua terra e a sua parentela, a fim de fazer-se um grande povo, a fim de que todos os povos sejam nele abençoados (cf. Gn 12,1-3). Isso se realiza de modo excelente no domínio do intelecto, onde sem dúvida, outra coisa não sendo senão intelecto, todas as coisas estão em todas as coisas. Tradução de Raimundo Vier, O.F.M.
�. ���� � ��, ��� � �� ����� �� ����� Sermão n. 21 Unus deus et pater omnium etc. (Ef 4,6) Eu disse, em latim, uma palavra que São Paulo diz na Epístola: «Um Deus e Pai de todos, que é bendito acima de todos e por todos e em nós todos» (Ef 4,6). Uma outra palavra eu a tomo do Evangelho, onde Nosso Senhor diz: «Amigo, passa mais para cima, sobe mais para cima» (Lc
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14,10). Na primeira, onde Paulo diz: «Um Deus e Pai de todos», ele silencia uma palavrinha que contém em si um momento de mudança. Quando diz: «um Deus», ele quer significar que Deus é Um em si mesmo e separado de tudo. Deus não pertence a ninguém, e ninguém lhe pertence; Deus é Um. Diz Boécio: Deus é Um e não se muda. Tudo o que Deus jamais criou, Ele o criou sujeito à mudança. Todas as coisas, assim como são criadas, (assim) são portadoras de mutabilidade. Isso quer dizer que devemos ser um em nós mesmos e separados de tudo e, firmemente imóveis, devemos ser um com Deus. Fora de Deus nada há senão o Nada. Por isso é impossível que em Deus possa haver qualquer espécie de transformação ou mudança. O que procura um outro lugar fora de si, isto se modifica. Deus (porém) tem todas as coisas em si em uma plenitude; por isso nada procura fora de Si mesmo, mas só na plenitude, tal como está em Deus. O modo como Deus a traz em Si, criatura alguma é capaz de compreendê-lo. Um segundo ensinamento (o colhemos ali) onde ele diz: «Pai de todos, tu és bendito». Esta palavra, sim, inclui em si um momento de mudança. Com dizer «Pai» ele já está pensando em nós também. Se Ele é nosso Pai, então nós somos os seus filhos, e assim, quer seja honrado ou injuriado, isso nos sensibiliza. Quando a criança se dá conta do amor que o pai lhe tem, então ela sabe por que lhe é devedora de uma vida tão pura e inocente. Por esse motivo também nós devemos levar uma vida pura, pois diz o próprio Deus: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5,8). Que é pureza de coração? Pureza de coração é o que está separado e apartado de todas as coisas corporais e recolhido e encerrado em si mesmo, para então, (a partir) desta pureza, lançar-se no seio de Deus e ali reunir-se (com Ele). Diz Davi: aquelas obras são puras e inocentes que efluem e se consumam na luz da alma; mais inocentes ainda, porém, são aquelas que lá dentro e no espírito demoram e não saem para fora. «Um Deus e Pai de todos». A outra palavra: «Amigo, passa mais para cima, sobe mais para cima». Das duas (palavras) eu faço uma. Quando Ele diz: «Amigo, passa mais para cima, sobe mais para cima», isso é um diálogo da alma com Deus, no qual lhe foi respondido: «Um Deus e Pai de todos». Diz um mestre: A amizade reside na vontade. Na medida em que a amizade reside na vontade, ela não une. Aliás, eu já o disse alhures: o amor não une; decerto, ele une na obra, mas não no ser. Só por isso ele (o amor) diz: «Um Deus». «Passa mais para cima, sobe mais para cima». Ao fundo da alma nada pode (chegar) salvo a Divindade pura. Mesmo o primeiro dos anjos, por mais próximo e afim que seja de Deus e por muito que tenha em si de divino — seu obrar permanece em Deus, e ele está unido com Deus no ser e não no obrar; tem um demorar-em-Deus e um constante ficar-presente-ali: por nobre que seja o anjo, isto é na verdade um prodígio; e no entanto, ele não pode entrar na alma. Diz um mestre: Todas as criaturas em que há distinção não são dignas de que o próprio Deus nelas opere. A alma em si mesma, ali onde está acima do corpo, é tão pura e tão tenra que nada admite em si que não seja a mera e pura Divindade. E o mesmo Deus ali não pode entrar, a menos que se lhe tire tudo o que lhe tenha sido acrescentado. Por isso a ele se respondeu: «Um Deus». «Um Deus», diz São Paulo. O Um é algo de mais puro que a Bondade e a Verdade. A Bondade e a Verdade nada acrescentam, embora acrescentem em pensamento: quando é pensado, então se acrescenta. O Um, ao contrário, nada acrescenta ali onde Ele (Deus) é em si mesmo, antes de emanar no Filho e no Espírito Santo. Por isso ele disse: «Amigo, sobe mais para cima». Diz um mestre: O Um é um negar do negar. Quando digo: Deus é bom, isso acrescenta algo (a Deus). O Um (ao contrário) é um negar do negar e um denegar do denegar. Que significa «Um»? Um significa aquilo a que nada se acrescentou. A alma toma a Divindade, tal como esta é puramente em si, onde nada se (lhe) acrescentou, onde nada se lhe juntou em pensamento. O Um é um negar do negar. Todas as criaturas trazem em si uma negação: uma nega ser a outra. Um anjo diz que não é um outro (anjo). Deus, porém, tem um negar do negar: é Um e nega todo o outro, pois nada é fora de Deus. Todas as criaturas são em Deus e são a sua própria Divindade, e isto significa a plenitude, como eu disse acima. Ele é um Pai da Divindade inteira. Eu digo uma Divindade por isso que ali nada ainda emana e nada é tocado nem pensado. No ato de denegar algo a Deus — por exemplo, quando lhe denego a Bondade; na verdade, (é claro), nada posso denegar a Deus —, no ato, pois, em que denego algo a Deus eu apreendo algo que Ele neto é; e isso mesmo deve ficar de fora. Deus é Um, Ele é um negar do negar.
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Diz um mestre que a natureza do anjo não atua nenhuma força nem exerce operação alguma que não vise exclusiva-mente a Deus. Do que possa haver além disso eles nada sabem. Por isso ele disse: «Um Deus, Pai de todos»; «Amigo, sobe mais para cima». Certas forças da alma recebem (algo) de fora, por exemplo, o olho: por mais refinado que seja o seu modo de receber e de eliminar o mais grosseiro, sempre recebe alguma coisa de fora que prescinde do aqui e agora. O conhecer porém e a razão, estes descascam tudo e recebem o que desconhece tanto o aqui como o agora; nesta capacidade a razão toca a natureza do anjo. E no entanto, ela recebe dos sentidos; do que os sentidos introduzem de fora, disso a razão recebe. Não assim a vontade; neste ponto a vontade é mais nobre que a razão. A vontade não tira de parte alguma, salvo do conhecer puro, onde não há aqui nem agora. Deus (Nosso Senhor) quer dizer: Por mais excelsa, por mais pura que seja a vontade, ela deve (subir) mais para cima. É um responder, quando Deus diz: «Amigo, sobe mais para cima. E isto será uma honra para ti» (Lc 14,10). A vontade quer a bem-aventurança. Fui interrogado sobre a diferença que há entre graça e bem-aventurança. A graça, tal como a experimentamos aqui nesta vida, e a bem-aventurança que possuiremos na vida eterna, relacionam-se entre si como a flor se relaciona ao fruto. Quando a alma está toda cheia de graça e quando, de tudo o que há nela, nada resta que a graça não ponha em ação e leve a termo, entretanto, nem tudo o que está na alma chega a atuar-se de modo tal que a graça leve a termo tudo aquilo que a alma deve operar. Eu já disse em outra parte: a graça não opera obra alguma; (antes), ela infunde na alma toda a espécie de adorno; esta é a plenitude no reino da alma. Eu digo: a graça não une a alma com Deus; antes, ela é (apenas) um pleno fazer-chegar-a (Deus); esta é a sua obra: re-conduzir a alma a Deus. Ali colherá o fruto nascido da flor. A vontade, na medida em que quer a bem-aventurança, e na medida em que quer estar com Deus, e destarte se deixa atrair ao alto —, numa vontade de semelhante pureza Deus certamente se insinuará; e na medida em que a razão tomar a Deus com a pureza condizente à Sua Verdade, na mesma medida por certo Deus se insinuará na razão. Mas tanto que Ele cai na vontade, esta deve ir mais para cima. Eis por que Ele diz: «Um Deus», «Amigo, sobe mais para cima». «Um Deus»: no ser Deus Um se consuma a Divindade de Deus. Eu digo: Nunca jamais poderia Deus gerar o seu Filho unigênito, se não fosse Um. Do seu ser Um, Deus tira tudo o que opera nas criaturas e na Divindade. Digo mais: Unidade, só Deus a tem. A Unidade é o próprio de Deus; dela Deus tira o ser-Ele-Deus; caso contrário não seria Deus. Tudo o que é número depende do um, e o um não depende de nada. A riqueza e a sabedoria e a verdade de Deus são totalmente um em Deus; é não só Um, é unidade. Tudo o que Deus tem, Ele o tem no Um: é Um nele. Dizem os mestres que o céu gira a fim de trazer todas as coisas ao um; por isso ele corre tão depressa. Deus tem toda a plenitude enquanto Um, e disso pende a natureza de Deus, e nisso está a bemaventurança da alma: em ser Deus UM; é seu ornato e sua honra. Ele disse: «Amigo, sobe mais para cima, e isto será uma honra para ti». A honra e o ornato da alma é o ser Deus Um. Deus faz de conta que é Um, (só) para agradar à alma, e que se enfeita no intuito de levar a alma a apaixonar-se por Ele só. Por isso o homem quer ora uma coisa, ora outra; ora se exercita na sabedoria, ora na arte. Por não possuir o Um é que a alma jamais encontra repouso até que tudo se faça um em Deus. Deus é Um; isto é a bem-aventurança da alma, e seu ornato e seu repouso. Diz um mestre que em todas as suas obras Deus tem em mira todas as coisas. A alma é todas as coisas. O que há de mais nobre, de mais puro, de mais excelso em todas as coisas abaixo da alma, tudo isso Deus o infunde nela. Que assim venhamos a ser um com Deus, auxiliados por «um Deus, Pai de todos». Amém. Tradução de Rctimundo Vier, O.F.M.
�. � ���������� �� ����� ����� ����� Sermão XXVIII
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Intravit Jesus in quoddam castellum, et mulier quaedam, Martha nomine, excepitillum etc. (Lc 10,38). Escreve São Lucas no seu Evangelho: «Nosso Senhor entrou numa cidadezinha; lá o acolheu uma matrona, chamada Marta; tinha esta uma irmã de nome Maria. Esta se quedou aos pés de Nosso Senhor e ia escutando a sua palavra. Marta porém andava atarefada e servia ao Senhor» (Lc 10,38-40). Três razões fizeram Maria sentar-se aos pés de Jesus. A primeira era esta: A bondade de Deus tinha preso a sua alma ao Senhor. A segunda era um grande, indizível desejo; ela suspirava por algo, sem saber o quê; e procurava algo, sem saber o quê! O terceiro era o doce consolo e a delícia que ela hauria da palavra eterna que fluía da boca de Jesus. Também Marta era movida por três razões, que a fizeram movimentar-se e servir ao caríssimo Senhor Jesus. Uma era a sua idade de matrona e o modo de ser empenhada e dedicada ao extremo. Por isso acreditou que a nenhuma outra convinha a atividade como a ela. A outra razão provinha de uma sábia ponderação que sabia orientar a atividade externa para o melhor que o amor possa ditar. O terceiro motivo: a suma dignidade do caro hóspede. Dizem os Mestres que Deus está à disposição e a serviço do homem para a sua necessidade espiritual e corporal, até a última coisa que possa desejar. Ora, Deus nos atende suficientemente quanto às coisas espirituais e, de outro lado, também sacia suficiente-mente a nossa natureza física, como se pode claramente comprovar pelos caros amigos de Deus. Atendimento a nossos sentidos significa que Deus nos dá consolo, delícia e satisfação. Ser mimado com tais coisas não é algo que se situa dentro do âmbito dos sentidos interiores dos caros amigos de Deus. Satisfação espiritual é satisfação no espírito. Falo de satisfação espiritual, quando a parte superior da alma não for curvada para baixo por tais delícias, de modo que não corre o perigo de afogar-se em sentimento delicioso e, sim, esteja solidamente acima de tais coisas. Pois só quando nem afeto nem sofrimento da criatura podem curvar o topo de seu ser, o homem se acha numa atitude espiritual suficiente. Criatura aqui significa tudo quanto houver abaixo de Deus. Marta vem dizer: «Senhor, manda-lhe que me ajude!» Não foi por indignação que Marta disse essas palavras; falou antes impelida por amor e benquerença que a estimulavam a tanto. Parece justo que o chamemos antes de carinhoso atendimento ou graciosa brincadeira. Por quê? Ora, vejam! Ela percebeu que Maria se regalava saciando de melífluos sentimentos o seu coração. Marta bem melhor conhecia sua irmã do que ela a Marta; pois Marta vivera o bastante e sempre retamente; a vida concede o mais distinto e nobre conhecimento. A vida nos faz conhecer melhor o prazer e a luz que tudo quanto nesta vida se possa conhecer de coisas que há abaixo de Deus. Este conhecimento é em certo sentido mais claro que o saber que nos pode oferecer a própria luz da eternidade. Pois a luz da eternidade nos concede conhecer sempre apenas a nós mesmos e a Deus, mas não nos dá conhecer a nós mesmos sem Deus. Mas onde a atenção se fixa sobre nós mesmos, ali acontece que mais nitidamente se verifique a diferença entre igual e desigual. Testemunhas disto nos sejam São Paulo e mestres pagãos: São Paulo, num êxtase espiritual, viu a Deus e a si mesmo em Deus. E no entanto não chegou a conhecer nele formal e exata-mente cada virtude; era porque não as tinha exercido nas suas obras. Os mestres pagãos, por sua vez, obtiveram, pela prática das virtudes, conhecimento tão sublime que conheceram intuitivamente a cada virtude, de modo mais preciso que Paulo ou qualquer santo, no primeiro arrebatamento. Era o caso de Marta. Por isso, ela disse: «Senhor, manda que ela me ajude!» Era como se dissesse: «Minha irmã imagina que ela também já poderia praticar o que quer, desde que ela permaneça sob a tua consolação. Faze pois que ela agora perceba se é assim; manda-a levantar-se e afastar-se de ti!» De outro lado, aqui estava também o seu delicado amor pelo qual ela falou bem ponderadamente. Maria estava tão repleta de desejo que ela anelava por algo, sem saber precisamente o que é que desejava. Suspeitamos que ela, a cara Maria, estava ali sentada mais por causa do doce sentimento do que por causa do aproveitamento espiritual. Por isso, disse Marta: «Senhor, manda que ela se levante!» Pois ela temia que Maria ficasse parada neste suave
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sentimento, sem nenhum progresso. Respondeu-lhe Jesus e disse: «Marta, Marta, tu te preocupas e afliges por muita coisa! Uma coisa basta! Maria escolheu a melhor parte, que jamais lhe será tirada». Jesus disse isto a Marta, não em tom de censura, mas antes lhe deu uma informação e a esperança de que Maria ainda iria dar naquilo que ela almejava. Mas por que Jesus disse: «Marta, Marta» e a chamou duas vezes pelo nome? Diz Isidoro: Não padece dúvida de que Deus, antes de ter-se feito homem, jamais teria chamado pelo nome uma criatura humana que depois se perdesse eternamente; com relação àqueles porém que Ele não chamou pelo nome, a questão fica aberta. Cristo, ao chamar Marta pelo nome, era levado pelo seu eterno saber: saber perfeito e anterior à criação, saber este consignado no livro vivo: «Pai-FilhoEspírito Santo». Quem tiver o seu nome consignado neste livro, e se Cristo pronunciou tal nome, seguro está de que jamais se perderá. Testemunhas nos sejam Moisés, a quem o próprio Deus falou dizendo: «Eu te conheci pelo teu nome» (Ex 33,12) e Natanael, a quem disse o bom Jesus: «Eu te conheci quando estavas debaixo da figueira» (Jo 1,50). A figueira é a imagem da alma que não se fecha a Deus e cujo nome desde sempre está inscrito nele. E assim consta que homem algum se tenha perdido ou no futuro pereça, se o bom Salvador com sua boca o tiver chamado pelo nome; pois registrado está dentro do Verbo Eterno, isto é, no livro que Ele mesmo é. Resta a pergunta: Por que Jesus disse duas vezes o nome de Marta? Quis ele com isto significar que Marta possuía perfeitamente toda a graça temporal e eterna que uma criatura devia ter. Com a primeira indicação insinua a perfeição dela nas ações temporais. Ao repetir o nome «Marta», Jesus quis significar que também nada faltava de quanto era necessário para alcançar a vida eterna. Por isso, acrescentou as palavras: «Tu te preocupas», querendo dizer: Tu estás junto às coisas, mas as coisas não estão dentro do teu espírito; estão, porém, cheios de cuidados aqueles que em todos os afazeres vivem cheios de preocupações. Sem entrave estão porém aqueles que ordenam e dispõem das coisas segundo o exemplo da divina luz. Ora, uma obra qualquer é feita exteriormente, ao nosso redor; uma profissão ao contrário atua carinhosamente a partir de dentro. Pessoas que assim procedem estão junto das coisas que produzem e não dentro delas. Elas estão bem perto das coisas e mesmo assim não possuem menos do que teriam se se achassem lá em cima no círculo da eternidade. Digo «bem perto» porque todas as criaturas conduzem e servem de meio. Há dois tipos de «meio». Um é de tal natureza que não posso chegar a Deus sem ele. É a atuação e «indústria» no tempo que passa. Tal «meio» não diminui a eterna bem-aventurança. O outro «meio» é este: renunciar simplesmente ao primeiro. Pois Deus nos colocou no tempo para que, mediante ocupação sensata durante o nosso tempo, nos tornemos mais próximos e semelhantes a Ele. Paulo pensava nisto ao dizer: «Superai este tempo, pois os dias são maus» (Ef 5,16). «Superar o tempo» quer dizer: subir incessantemente a Deus pela reta razão; não pelas diferentes representações visuais, mas pela verdade iluminada e transbordante de vida. Se Paulo acrescenta: «os dias são maus», entendei-o desta maneira: O «dia» lembra a «noite», pois não houvesse noite, não haveria também dia, nem se falaria dele, pois tudo seria uma só luz. Isso tinha Paulo em mente ao dizer: pois uma vida de luz é precária e pobre naquele em que ainda existam trevas capazes de encobrir e obscurecer a eterna bem-aventurança de um nobre espírito. A isto também se refere Cristo quando diz: «Caminhai enquanto tendes a luz» (Jo 12,35). Pois quem trabalha na luz ascende a Deus livremente e sem mediações: sua luz é seu sustento e seu sustento é sua luz. Esta a situação em que se encontrava a cara Marta. Por isso, Ele lhe disse: «Uma coisa só é necessária», não duas. Eu e tu, uma vez envoltos e unidos pela eterna luz. Eis aí o uno. Este «uno feito de dois» é o espírito ardente que está acima de todas as coisas, mas abaixo de Deus no âmbito da eternidade. Ele é «dois», porque não contempla diretamente a Deus. Seu conhecimento e seu ser ou seu conhecer e o seu ser conhecido não serão nele uma só coisa. Pois só se vê a Deus, onde Ele é visto no seu ser espiritual, que é totalmente sem imagens. Só nesta altura um se torna dois e dois se tornam um, luz e espírito, estes dois são um pelo envolvimento mediante a luz eterna. E agora atendei bem ao que seja o «âmbito da eternidade». Ora, a alma tem três caminhos (para chegar) a Deus. O primeiro: Buscar a Deus com multíplice esforço e ardente amor em todas as criaturas. Este é o caminho a que se referia o rei Davi, dizendo: Achei a paz em todas as coisas»
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(Eclo 24,11). O segundo caminho não tem pista segura; é livre e no entanto determinado; é o caminho de quem sem idéia nem operação da sua vontade se acha arrebatado muito 'acima de si mesmo e de todas as coisas. Tal estado ainda não tem consistência definitiva. É o estado a que Cristo se re-feriu dizendo: «Bem-aventurado és tu, Pedro; carne e sangue não te iluminaram, (e sim uma elevação que se operou na tua mente), ao me chamares de Deus. Foi antes meu Pai celestial que to revelou» (Mt 16,17). Também São Pedro não viu a Deus desveladamente; foi ele sim arrebatado pela força do Pai celestial acima de toda capacidade e compreensão criada até dentro da esfera da eternidade. Digo, portanto, que ele, sem saber, foi arrebatado pelo poder do Pai celestial — num abraço de amor ardente e arrebatador — e em seu espírito arrastado para as alturas (e acima de toda capacidade de compreensão), até o âmbito da eternidade. Lá se participou a S. Pedro, num tom suave e criatural (mas livre de toda experiência terrena e dos sentidos), a verdade da unidade de homem-Deus na Pessoa do Filho do Pai celestial. Ouso até dizer: Tivesse São Pedro visto a Deus imediatamente na sua natureza divina, como mais tarde o viu, e como São Paulo, quando foi arrebatado até o terceiro céu, a linguagem, mesmo a do mais nobre entre os anjos, ele a teria sentido como linguagem grosseira. Assim porém ele balbuciou palavras de doçura de que o amado Jesus não tinha necessidade alguma; Ele que vê as profundezas dos corações e está tão direta e imediatamente diante de Deus na liberdade de perfeita presença. Foi isto que São Paulo tinha em mente ao dizer: «Um homem foi arrebatado e ouviu tais palavras inefáveis que a um homem não é concedido proferir» (cf. 2Cor 12,2-4). Daí podereis concluir que São, Pedro se achava apenas na periferia da eternidade» sem ver a Deus na unidade e no seu ser próprio. O terceiro caminho, se bem que seja dito caminho, é, na realidade, já um «estar em casa». É este: ver a Deus imediatamente, assim como Ele é no seu Ser próprio. Ora, diz o caríssimo Jesus: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6), um Cristo em Pessoa, um Cristo no Pai, um Cristo no Espírito Santo como TRÊS: Caminho, Verdade e Vida, mas como o amado Jesus em que tudo está. Fora desse caminho todas as criaturas são apenas periferia e separação. No Caminho porém para dentro de Deus-Pai, conduzidos pela Luz do seu Verbo e abraçados pelo Amor do Espírito Santo dos Dois: eis aqui algo que está acima de toda palavra e descrição! Escuta pois esta maravilha! Coisa admirável: encontrar-se fora como dentro, abraçar entendendo e ser abraçado; ver e ser o que é visto; segurar e ser segurado — eis aqui o estado final, onde o espírito repousa na paz, união perfeita com o doce Eterno. Mas voltemos agora para a nossa explanação do fato de que a querida Marta e todos os amigos de Deus com ela estão «com os seus cuidados», não porém «dentro dos seus cuidados». Nesse estado d'alma, a atuação no tempo é tão nobre quanto qualquer outra forma pela qual alguém se una a Deus, pois nos aproxima não menos de Deus que a forma mais elevada que nos possa ser concedida, com exceção unicamente da visão de Deus na sua própria natureza. Daí diz Ele (Cristo): «Tu estás junto das coisas, e junto das tarefas, significando que com as forças inferiores da alma ela está, sem dúvida, exposta aos cuidados e às aflições, pois ela não era como que mimada pela gula espiritual. Ela estava junto das coisas, não nas coisas; ela estava... Três pontos são particularmente indispensáveis em nossa atividade. Que atuemos ordenada, inteligente e ponderadamente. Chamo de ordenado ao que corresponde, em todas as coisas, ao que é mais perfeito; chamo de inteligente aquilo em comparação ao qual não se conheça então algo de melhor. E chamo de ponderado ao sentir-se nas boas obras a presença ditosa da verdade cheia de vida e vivificante. Onde houver esses três pontos, ai as obras aproximam não menos de Deus e são não menos proveitosas, como todas as delicias experimentadas por Maria Madalena no deserto. [Nota: Conta a lenda que Maria Madalena viveu em anos posteriores como penitente, no ermo]. Diz Cristo ainda: «Tu te afliges com muita coisa, não por uma». Ele quer dizer: Se uma alma pura e simples e sem nenhum aparato for elevada até a esfera da eternidade, ela se aflige quando por algum fator de separação for impedida de estar em gozo lá em cima. Tal pessoa se entristece por causa desse algo e se encontra em preocupação, apreensão e tristeza. Marta porém estava em sua madura e consolidada virtude e com seu espírito livre, desimpedida por qualquer coisa que
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fosse. Por isso, desejava que sua irmã Maria fosse colocada no mesmo estado d'alma, por ter percebido que aquela não estava lá segundo o seu ser mais profundo. Sem dúvida impelida por seu profundo e maduro espírito, desejou ela que também Maria estivesse vivendo em tudo aquilo que pertence à eterna felicidade. Por isso Cristo responde: «Uma só coisa é necessária». Que é esta uma coisa? É Deus. Esta é indispensável a toda criatura; pois se Deus retirasse o que é dele, todas as criaturas cairiam no nada. Se Deus tirasse à alma de Cristo que é dele — onde o seu Espírito está unido ao Verbo Eterno — apenas restaria Cristo simples criatura. Por onde se vê que bem se necessita daquele um necessário. Marta receava que sua irmã ficasse parada naquela doçura e naquele prazer; por isso desejava que ela amadure-cesse como ela mesma. Por isso falou Jesus e entendeu dizer: Fica despreocupada, Marta, ela (também) optou pela melhor parte. Estas coisas aqui hão de se desvanecer. A maior graça que uma criatura pode receber há de ser concedida também a ela. Será também ela bem-aventurada como tu! Instrui-vos agora sobre as virtudes! Vida de virtude depende de três pontos que se referem à vontade. Um ponto é este: Entregar a própria vontade a Deus, pois é indispensável que se execute plenamente o que então aparece com clareza. Refere-se isto ao despojamento ou ao revestimento. Há três espécies de vontade: uma é sensitiva; outra, racional; a terceira, a vontade eterna. A sensitiva quer instrução, quer que se atenda à verdadeira doutrina; a vontade racional quer que se caminhe em todas as obras de Cristo e dos santos, isto é, que as palavras, os atos e métodos sejam orientados de modo uniforme e ordenados para o que há de mais sublime. Quando tudo isto se fizer, Deus derramará algo mais nas profundezas da alma: é a vontade eterna, com o mandamento amoroso do Espírito Santo. Em tal situação, a alma suplica: «Senhor, faze-me saber qual é tua Vontade eterna!» Se a alma destarte atender ao que há pouco explanamos, e se for do agrado divino, então o amado Pai pronunciará dentro da alma o seu Verbo Eterno. Agora afirmam pessoas probas e honestas que devemos tornar-nos tão perfeitos e santos, que não mais nos possa mover nenhuma alegria deste mundo e fiquemos indiferentes à alegria e ao sofrimento. Mas nisto elas não têm razão. Sustento antes que nunca houve um santo tal que já não pudesse comover-se por coisa alguma. Contra esses tais, eu sustento até que nunca houve um santo, por maior que possa ter sido, que não tivesse sido capaz de se comover. Antes, afirmo a este respeito: Certamente é concedido ao santo já nesta vida, que nada o possa separar de Deus. Pensais que ainda sois imperfeitos enquanto as palavras vos possam comover no sentido da alegria ou da pena? Não é verdade! Pois nem Cristo era assim. Isto Ele deixou transparecer quando disse: «Minha alma está triste até a morte» (Mt 26,38). A Cristo doeram tanto certas palavras que a dor de todas as criaturas posta sobre uma só não a teria feito sofrer quanto Cristo sofreu; isto lhe vem da nobreza de sua natureza e da santa união da divina e humana natureza nele. Por isso, digo: um santo a quem o sofrimento não cause dor e a quem algo de bom não deleite, nunca existiu e nunca alguém chegará a tal situação do espírito. Certamente aqui e ali pode ocorrer que alguém, socorrido pelo amor, pela graça e por um milagre de Deus, continue sereno e equânime ao presenciar que a sua fé, ou algo desta ordem seja blasfemado. Também se admite que o santo pode chegar ao ponto de nada o afastar de Deus, de modo que, sentindo embora a dor no coração porque não estaria confirmado na graça, a vontade no entanto persevera simplesmente em Deus a ponto de dizer: «Senhor, eu sou teu e tu és meu I» O que quer que a uma alma em tal disposição de espírito possa ocorrer, não lhe impedirá a eterna bem-aventurança, pois não atingirá a parte superior do espírito, onde ele está unido com a caríssima vontade de Deus. Diz Cristo: «Tu te ocupas com muitos cuidados». Marta era de tal espírito, que a sua ocupação não a impedia. Seu trabalho e seus afazeres a encaminhavam para a eterna bemaventurança. Esta era certamente visada um tanto mediata-mente, mas a natureza nobre, a aplicação e a virtude no sentido já indicado muito lhe aproveitavam. Também Maria tinha sido uma tal Marta antes de se tornar uma tal Maria; pois quando ainda estava sentada aos pés do Senhor, ela ainda não era a verdadeira Maria: Ela já o era segundo o seu nome, mas não segundo o seu ser; pois ela ainda se detinha na delícia e no doce sentimento, mas já tinha entrado no escola de Jesus e começara a aprender a viver. Marta ao contrário já estava lá madura. Por isso disse: «Senhor, manda que ela se levante!» — como se quisesse dizer: «Senhor, eu gostaria que ela não ficasse aí sentada e entregue
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aos seus doces sentimentos; gostaria mais se ela aprendesse a viver, para que possuísse a vida de um modo mais essencial. Manda que ela se levante, para que se torne madura e perfeita». Ela ainda não se chamava com razão Maria, quando se achava sentada aos pés de Jesus. Isto é que eu chamo de Maria: um corpo bem treinado no trabalho, submissão à sábia doutrina. Obediência porém para mim é isto: que a vontade obedeça ao que a inteligência iluminada manda que se faça. As pessoas corretas e probas pensam poder conseguir que a presença das coisas sensíveis nada mais signifique para os seus sentidos. Pura ilusão! Elas não conseguem! Jamais poderei admitir que um ruído atordoante seja tão delicioso ao meu ouvido quanto uma suave música de harpa. Mas devemos, sim, ser capazes de (quando a razão percebe o ruído) conformar a vontade dirigida pelo conhecimento, para que não se aflija mas diga: Aceito com prazer. Aí a luta se tornará um prazer; pois o que o homem consegue com grande esforço, se transforma em alegria do coração e só então é que se torna proveitoso para ele. Há, no entanto, certa gente que chega ao ponto de dispensar as obras. Digo: Isto não deve ser! Os discípulos, só depois de terem recebido o Espírito Santo, começaram a praticar virtudes. Por isso, quando Maria estava sentada aos pés do Senhor, ela, ainda aprendia, pois apenas tinha sido recebida na escola e apenas aprendia a viver. Só mais tarde, porém, quando Cristo subira ao céu e ela havia recebido o Espírito Santo, é que começou a servir e a viajar para além-mar, pregando e ensinando, como serva dos Apóstolos. Quando os santos começam a ser santos, começam a praticar virtudes; só então eles juntam tesouros para o céu. Todo bem feito antes disso apenas serve para expiar culpas e afastar castigos. Para isto nos sirva de testemunha o próprio Cristo. Desde o momento em que Deus se fez homem e o homem se fez Deus, Ele começou a trabalhar pela nossa salvação até o dia em que morreu na Cruz. Não havia no seu Corpo um membro sequer que não tivesse praticado especiais virtudes. Que Ele nos ajude para que o sigamos na prática de autênticas virtudes. Amém. Tradução de Fidelis Vering, O.F.M.
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��. �������� �� ������ ������� Mais que as doutrinas são as legendas que conservam melhor as mensagens dos grandes mestres espirituais. Assim foi com Jesus, com os monges do deserto, com São Francisco de Assis e assim também é com o Mestre Eckhart. Traduzimos algumas destas legendas onde podemos ver plasticamente a sua envergadura espiritual. A tradução foi feita do alemão (Eelçhart-Legenden: Meister Eckhart. Deutsche Predigten und Traktate, editado por J. Quint, Gari Hanser Verlag, München 1955, 443-448).
�. �� ��� ��� ���� � �� ��� ����������� ��� ���� ��� ������ ������� Uma jovem procurou um convento dos Pregadores e mandou chamar Mestre Eckhart. «A quem devo anunciar?» perguntou o porteiro. «Não sei», disse ela. «Não o sabes? Como assim?», disse ele. A jovem respondeu: «Porque não sou donzela, nem mulher, nem homem, nem esposa, nem viúva, nem virgem, nem senhor, nem serva e nem servo». O porteiro foi ter com Mestre Eckhart (e disse): «Venha ver aí fora a criatura mais estranha que já encontrei. Permita que o acompanhe. Ponha a cabeça para fora e pergunte: «Quem deseja falar-me?» Foi o que ele fez. Disse-lhe ela o que já dissera ao porteiro. «Minha filha, as tuas palavras são verdadeiras e espirituosas. Mas explica-me o que queres dizer com elas». Disse-lhe a jovem: «Se eu fosse donzela, conservaria a minha primeira inocência; se fosse mulher, engendraria sem cessar em minha alma a Palavra eterna; se fosse homem, resistiria com firmeza a todo pecado; se fosse esposa, seria fiel ao meu único e querido esposo; se fosse viúva, ansiaria sem intermissão por meu único amado; se fosse virgem, encontrar-me-ia em serviço reverente; se fosse senhor, teria poder sobre todas as virtudes divinas; se fosse serva, sujeitar-me-ia com humildade a Deus e a todas as criaturas; e, se fosse servo, trabalharia esforçadamente e com toda a vontade e sem murmurar. Nada sou de tudo isso; apenas ando por aí como uma criatura qualquer entre outras criaturas quaisquer». O Mestre foi ter com seus irmãos e lhes disse: «Acabo de ouvir a pessoa mais pura que já me foi dado encontrar, ao que me parece».
�. �� ������� Mestre Eckhart disse a um homem pobre: «Deus te dê um bom-dia, irmão!» — «Guardai-o para vós, senhor: eu nunca tive um dia ruim». «E por que não, irmão?» indagou ele. — «Porque tudo o que Deus quis que eu sofresse, suportei-o de bom grado por seu amor e considerando-me indigno dele; por isso é que nunca ando triste nem aflito». Disse ele: «Onde encontraste Deus pela primeira vez?» — «Quando renunciei a todas as criaturas: foi então que O encontrei». Disse ele: «E onde deixaste Deus, irmão?» — «Em todos os corações sinceros e puros». Disse ele: «Que espécie de homem és tu, irmão?» «Eu sou um rei». E ele disse: «Rei do quê?» — «De minha carne: pois tudo o que meu espírito já solicitou a Deus, minha carne o executou e sofreu com mais presteza e disposição do que o meu espírito o acolheu». Disse ele: «Um rei deve ter um reino. Onde está o teu reino, irmão?» — «Na minha alma». Disse ele: «Como assim, irmão?» — «Quando cerro as portas dos cinco sentidos e anseio por Deus com todo o ardor, então encontro Deus na minha alma, e tão radiante e venturoso como é na vida eterna». Disse ele: «Bem pareces ser um santo. Quem te fez santo, irmão?» — «O meu ficar sentado, quieto, os meus pensamentos elevados e a minha união com Deus — eis o que me atraiu ao céu; pois jamais pude encontrar repouso em coisa alguma que fosse menos que Deus. E agora o encontrei e nele descanso e me alegro eternamente, e isso vale mais na vida terrestre do que todos os reinos. Nenhuma obra exterior é tão perfeita que não
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embarace a interioridade».
�. ������ ������� � � ������ �� Mestre Eckhart deu com um lindo garoto nu. Perguntou-lhe donde vinha. «Venho de Deus», disse ele. «E onde o deixaste?» «Nos corações virtuosos». «Para onde vais?» «Para Deus!» «Onde o encontras?» «Onde larguei todas as criaturas». «Quem és tu?» «Sou um rei!» «Onde está o teu reino?» «No meu coração». «Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!» «É o que faço». Então o conduziu à sua cela e disse: «Toma a veste que queiras!» «Deixaria de ser rei». E desapareceu. Fora o próprio Deus que viera divertir-se com ele.
�. ������ �������, �������� Certa feita um homem pobre veio a Colônia sobre o Reno para ali buscar a pobreza e viver segundo a verdade. E eis que uma donzela foi ter com ele e disse: «Meu caro, não queres cear comigo, no santo amor de Deus?» «Com prazer!» disse ele. Quando estavam acomodados à mesa ela disse: «Come à vontade e não te acanhes!» Ele disse: «Se como demais, erro; se como de menos, também erro. Vou comer como um homem pobre». Perguntou-lhe ela: «Que é um homem pobre?» Ele disse: «Consiste em três coisas. A primeira é que tenha morrido a tudo o que é meramente natural. A segunda, que seja incapaz de exceder-se no desejo de Deus. A terceira é que, mais do que a outrem, deseje a si toda a sorte de sofrimento». Ela perguntou: «Eia, meu caro, dizeme: Que é a pobreza do homem interior?» Ele disse: «Esta reside em três coisas. A primeira é o desprendimento (Abgeschiedensein) perfeito de todas as criaturas no tempo e na eternidade. A segunda é a humildade sincera do homem interior e exterior. A terceira é uma interioridade fervorosa e um coração orientado sem cessar para Deus, lá no alto». «Na verdade, disse ela, agradame ouvir tudo isso. Mas agora, meu caro, dize-me: O que é pobreza de espírito?» Ele disse: «Perguntas demais!» Ela disse: «Nunca me pareceu que pudesse haver demasia no que diz respeito à glória de Deus e à ventura do homem». Tornou o homem pobre: «Dizes verdade. Também ela (a pobreza de espírito), pois, consiste em três coisas. Primeiro, em que o homem nada saiba no tempo e na eternidade senão Deus somente. A segunda, em que não procure a Deus fora de si mesmo. A terceira, em que não carregue de um lugar para outro bem algum espiritual como propriedade particular». Perguntou-lhe ela: «Então o Mestre, e nosso pai comum, não deve levar o seu sermão da cela ao púlpito?» Ele respondeu: «Não!» Ela disse: «E por que não?» Ele disse: «Quanto mais temporal, mais corporal; quanto mais corporal, mais temporal». «Este espírito não vem da Boêmia!», disse ela. E ele: «O sol que brilha em Colônia também brilha em Praga, sobre a cidade». Ela disse: «Quero que me esclareças isto um pouco melhor». «Disso não me compete falar na
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presença do Mestre», tornou ele. Disse o Mestre: «Quem não tem a verdade dentro de si deve amála fora de si; assim a encontrará também no seu interior». «Esta refeição está bem paga», disse ela. Então o homem pobre disse: «Donzela, agora é tua vez de pagar o vinho!» Ela disse: «Com prazer! Interroga-me, pois!» Ele disse: «Como pode o homem reconhecer em sua alma as obras do Espírito Santo?» Ela disse: «Em três coisas. A primeira é que, dia a dia, ele vá se desprendendo das coisas corporais, dos prazeres e do amor natural. A segunda é que cresça sempre mais no amor e na graça de Deus. E a terceira é que, com amor e seriedade, oriente a sua ação ao próximo, antes que a si mesmo». Ele disse: «Eis o que bem confirmaram os amigos eleitos de Nosso Senhor». E prosseguiu: «Como pode um homem espiritual reconhecer que Deus lhe assiste na oração e na prática da virtude?» «Em três coisas. A primeira é aquela com que Deus brinda os seus eleitos, a saber: o desprezo do mundo e os sofrimentos do corpo. A segunda é o crescimento na graça, conforme a grandeza do amor entre ele e Deus. E a terceira: Deus jamais despede o homem sem mostrar-lhe um caminho novo para a verdade». Ele disse: «Assim deve ser, forçosamente! Mas dize-me: Como reconhece o homem que todas as suas obras se conformam com a vontade altíssima de Deus?» Disse ela: «Em três coisas. A primeira é que jamais lhe falte uma cons ciência pura. A segunda, que nunca se aparte da união com Deus. E a terceira, que o Pai celeste, por infusão, e sem cessar, lhe engendre o próprio Filho». Disse o Mestre: «Se todas as dívidas fossem tão bem pagas como este vinho, muitas almas que agora estão no purgatório estariam na vida eterna». Ao que disse o homem pobre: «O que aqui resta a pagar vai por conta do Mestre». O Mestre disse: «Aos velhos há que levar em conta a velhice». Tornou o homem pobre: «Deixa que o amor se realize plenamente, pois ele se realiza sem distinção (de idade)». Disse a donzela: «Sois um Mestre cuja arte se comprovou três vezes em Paris». O homem pobre disse: «Eu preferiria que alguém se comprovasse (só) uma vez na verdade em lugar de três vezes na cátedra de Paris». Mestre Eckhart disse: «Se há uma coisa que eu precisava saber, já a sei». Disse a donzela: «Dize-me, pai, por onde pode o homem saber que é filho do Pai celeste?» «Por três modos, disse ele. Primeiro, fazendo por amor tudo o que faz. Segundo, aceitando com igual disposição tudo o que lhe vem de Deus. E terceiro, pondo toda sua esperança em Deus somente, e em mais ninguém». Disse o homem pobre: «Dize-me, pai, por onde pode o homem saber que a ação da virtude alcança nele o mais alto grau de excelência?» «Por três modos, disse ele: amando a Deus por Deus, o bem pelo bem, a verdade pela verdade!» E prosseguindo, disse: «Filhos amados, como deve viver o homem que ensina a verdade?» A donzela disse: «Deverá viver de modo tal que traduza em obra o que ensina por palavras». O homem pobre disse: «Muito bem. No íntimo, porém, seu estado deve ser tal que possua mais verdade em seu interior do que possa externar por palavras». Assim Mestre Eckhart prega e questiona. A todo aquele que o escuta ou menciona conceda o Senhor feliz de função e após esta vida, a glória da ressurreição.
Amém. Tradução de Raimundo Vier, O.F.M.
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