Mente.e.Cérebro.Ed.312.Janeiro.2019.pdf

May 22, 2019 | Author: FranciscoRibas | Category: Thought, Ciência, Time, Human, Psicologia e ciência cognitiva
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 | ESPECIAL | O PODER DA MÃO DE BORRACHA SOBRE SUA PERCEPÇÃO DO MUNDO ANO XIII No 312

CIÊNCIA PARA REALIZAR

PLANOS NÃO IMPORTA QUANTO SEUS PROJETOS PESSOAIS SÃO BONS, SUA CABEÇA VAI QUERER SABOTAR VOCÊ. PREPARE-SE PARA EVIT EV ITAR AR ARMADILHA ARMADILHASS

DINHEIRO

TECNOLOGIA

DECISÃO

Pessoas gratas lidam melhor com

Aparelhos

   

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fazer a melhor escolha

carta da editora editora

Quando ótimas intenções intenções não bastam

H

á muito tempo cientistas buscam maneiras de auxiliar as pessoas a fazer escolhas que sejam mais saudáveis, tanto do ponto de vista mental quanto emocional, o que certamente influi na forma como nos relacionamos com

nosso corpo. Mas a tarefa desses estudiosos, convenhamos, não é das mais fáceis, já que inúmeras variáveis estão em jogo. Mais fortemente nas últimas duas décadas, as pesquisas nesse campo têm se intensificado e mostrado que, em grande parte dos casos, não basta simplesmente entender como determinado comportamento pode ser prejudicial para mudá-lo. “Passamos mais tempo nos esforçando para alinhar nossas ações com aquilo que queremos do que transformando algo de fato”, afirma o psicólogo Martin Hagger, pesquisador da Universidade Curtin, em Perth, na Austrália, ouvido em um dos textos desta edição. Afinal, é muito mais fácil arranjar justificativas para evitar ter o trabalho mental (e muitas vezes físico também) de empreender mudanças – pois para atingir qualquer propósito é preciso empreender transformações, o que inevitavelmente exige esforço Atualmente, pesquisadores trabalham em investigações que vão bem além das ultrapassadas noções de força de vontade, e muitos deles acreditam que para ter sucesso é necessário muito mais do que a capacidade de controlar os próprios impulsos. O primeiro passo, considerado essencial, é a consciência de que conseguir agir de forma diferente daquela a que estamos acostumados realmente não é fácil. Entender os motivos de determinados comportamentos, comportamentos, no entanto, ajuda a amenizar as dificuldades inerentes ao processo.

 Boas descobertas, boa leitura.

GLÁUCIA LEAL, LEAL, editora-chefe [email protected] @glau_f_leal 3

sumário |

janeiro 2019

6

Existe escolha certa? Todos os dias, tomamos milhares de decisões das mais banais, que passam despercebidas até aquelas que traçam os rumos de nossa vida. Entre todas as nossas opções, a de se comprometer a fazê-las de forma cuidadosa é seguramente a melhor

capa 14

Como a ciência pode ajudar você a realizar seus planos Quando surgem as dificuldades, os melhores propósitos podem parecer, de repente, muito distantes ou mesmo inalcançáveis. Mas em geral é nessas fases da vida que é preciso organizar-se – não só de forma externa, mas também internamente

19

Dois passos para a mudança Muitos de nossos propósitos se perdem pelo caminho porque, no fundo, não tínhamos clareza do que de fato queríamos. Há mais possibilidade de sucesso quando entendemos com clareza o que está por trás de nossas intenções

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Pessoas gratas lidam melhor com finanças Pesquisadores acreditam que a gratidão tem forte relação com o autocontrole, condição essencial para cumprir metas

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O encéfalo e os desafios da era digital Alguns autores apontam as redes sociais e os videogames interativos como principais responsáveis pelas mudanças comportamentais recentes. Com ganhos e perdas, chegamos à época da comunicação instantânea e onipresente e novos desafios se manifestam

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de borracha engana o cérebro Considerado um marco na história da neurociência, experimento capaz de confundir o cérebro revelou que é possível romper a barreira entre a consciência que temos de nós mesmos e os objetos que nos circundam

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psicologia

Existe escolha certa? Todos os dias, tomamos de 2.500 a 10 mil decisões. Nesse total, estão incluídos desde os pequenos impasses sobre nossa marca de café preferida até considerações a respeito da pessoa com quem queremos dividir (ou continuar dividindo) a vida. Entre todas as nossas opções, quaisquer que sejam, a de se comprometer a fazê-las de forma cuidadosa é seguramente a melhor por Gláucia Leal 

psicologia

s mecanismos que in fl uenciam uenciam nossas decisões têm sido investigados pela ciência há muito tempo. Um marco nesse campo foi a troca de cartas entre dois eminentes matemáticos franceses, Blaise Pascal e Pierre de Fermat, em 1654. Seus insights sobre  jogos de azar formaram a base da teoria da probabilidade. probabilidad e. No século 20, o tema atraiu a atenção de psicólogos, cientistas sociais e economistas. Algumas “teorias da decisão” consideram que os seres humanos tendem a pesar cada opção, levando em conta seu valor e probabilidade para, em seguida, tomar a resolução “mais adequada”. Na prática, porém, não é bem assim. Talvez seja mais fácil entender como gostaríamos de fazer escolhas, guiados por princípios lógicos, do que como de fato as fazemos.

O

Desabituados a exercitar o pensament pensamento o crítico, abrimos espaço para preconceitos; em situações novas ou nas quais temos informação limitada, muitas vezes baseamos nossas decisões em conexões aleatória aleatórias; s; cientistas chamam esse fenômeno de “efeito ancoragem” A verdade é que uma gama de fatores molda e embasa nossas opções: tendências inatas, emoções, expectativas, equívocos, características de personalidade, aspectos culturais e conteúdos inconscientes. Às vezes, a tomada de decisão pode parecer inconsistente ou perversa, e o mais intrigante talvez seja o quão frequentemente forças aparentemente irracionais nos ajudam a fazer a opção certa – se é que ela existe. 7

psicologia

Num evento recente sobre o tema, promovido pelo instituto independente de pesquisa Ernst Strüngmann Forum, em Frankfurt, na Alemanha, que reuniu cientistas e pensadores, foi salientado que, todos os dias, tomamos de 2.500 a 10 mil decisões. Nesse total, estão incluídas desde as pequenas preocupações sobre a marca de café que preferimos até considerações sobre a pessoa com quem queremos dividir (ou continuar dividindo) a vida.

Raiva, nojo e medo Não é novidade que nossas emoções podem ser a força motriz nos processos de tomada de decisão. Do ponto de vista evolutivo, muitas vezes o que sentimos (mais até do que aquilo que pensamos) nos direcionou para a sobrevivência. A raiva, por exemplo, pode nos motivar a punir um transgressor, o que, para nossos antepassados, foi fundamental na manutenção da ordem e da coesão do grupo. Já o nojo nos torna exigentes e moralistas, levando a escolhas que podem evitar doenças e o descumprimento de normas sociais. O medo, por sua vez, nos deixa mais cuidadosos – e, às vezes, nos mantém vivos. Se pensarmos na reação de seres humanos pré-históricos diante de um ruído nos arbustos, talvez valha considerar 8

psicologia

que os mais corajosos, que não apostaram na possibilidade de haver um predador escondido entre as folhagens, tenham pago com a própria vida pelo erro de avaliação – e, assim, não conseguiram passar seus genes para a geração seguinte. Especialistas consideram que emoções nos ajudam a nos concentrar no que realmente importa em dado momento, já que até mesmo as situações diárias mais básicas são complexas para nosso cérebro e exigem que inúmeras informações sejam levadas em conta. Por isso, sempre que possível é preciso simpli ficar.

Tendemos a ser muito mais cautelosos quando há a possibilidade de grandes ganhos ou de perdas pequenas. No entanto, escolhemos opções arriscadas sem grande apreensão se existe a probabilidade de pequenos ganhos ou de perda significativa; temos inclinação para subestimar eventos raros, mas que podem ser graves O pesquisador Gordon Brown, da Universidade de Warwick, no Reino Unido, a firma, porém, que na maioria das vezes tendemos a classi ficar possibilidades com base em processos cognitivamente fáceis, como comparações binárias. Por exemplo: ao decidir se R$ 5,50 é muito mui to para pagar por um suco, você pode se lembrar de meia dúzia de ocasiões em que o mesmo produto custou menos e de apenas duas nas quais pagou mais, o que o fará colocar coloca r essa bebida especí fica na categoria “cara” – e, eventualmente, eventual mente, optar por não comprá-la. Essa é uma típica “decisão por amostragem”, útil quando temos à disposição opções simpli ficadas, mas que pode levar a decisões ruins quando as informações usadas para classificar possibilidades estiverem incorretas, forem limitadas ou 9

psicologia

se basearem em crenças falsas. A decisão por amostragem pode infl uenciar uenciar nossas escolhas até quando enfrentamos ameaças mais imediatas. Pessoas que vivem em sociedades com altas taxas de mortalidade, por exemplo, são mais propensas a decidir colocar-se em risco em comparação com alguém que tem pouca experiência de perigo. Ainda do ponto de vista da evolução, por meio da aprendizagem podemos aprimorar nossa capacidade de escolher as informações sobre as quais baseamos nossas decisões. A seleção natural pode explicar até a intrigante propensão da maioria das pessoas para evitar fazer escolhas mais amplas – e simplesmente “seguir o rebanho”. O pesquisador Rob Boyd, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, destaca que nós, humanos, evoluímos à medida que aprendemos com os outros e os imitamos – até porque essa é, muitas vezes, uma boa opção. Na maioria das situações, saber por si só qual é a melhor coisa a fazer está além da capacidade de um úni10

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co indivíduo. Mas somos bons em reconhecer o que os outros fazem de forma acertada – e copiar. Resultado: nossas tendências conformistas em geral nos levam a escolhas surpreendentemente e ficazes, que nos permitem nos socializar quando começamos um novo curso ou trabalho e a adquirir produtos de qualidade mesmo quando não somos experts.

 Avaliação  A valiação de riscos O lado ruim da situação é que, excessivamente conformados, corremos o risco de nos desresponsabilizar por nossas opções e cair nas armadilhas da manipulação, sem sequer nos darmos conta disso. Desabituados a exercitar o pensamento crítico, abrimos espaço para preconceitos. Assim, em situações nas

novas

quais

ou

trabalha-

mos com informação limitada, temos o hábito infeliz de basear nossas decisões em conexões Esse

aleatórias.

efeito,

conhe-

cido como “ancoragem”, foi apresentado pela primeira vez pelos psicólogos Daniel Kahneman, da Universidade Princeton, ganhador do Nobel de Nobel de Economia em 2002, e Amos Tversky, já falecido, que participou da pesquisa que rendeu o prêmio ao colega. Os dois revelaram algumas atitudes peculiares em relação ao risco. Por exemplo, tendemos a ser muito mais cautelosos quando há a possibilidade de 11

psicologia

grandes ganhos ou de perdas pequenas. No entanto, escolhemos opções arriscadas sem grande apreensão se existe a probabilidade de pequenos ganhos ou de perda signi ficativa. Essa inclinação para subestimar eventos raros, mas catastróficos,

tem sido chamada de “efeito cisne negro”.

O que se pode dizer sem medo de errar é que nossas escolhas, quaisquer que sejam, grandes ou pequenas, estão sujeitas a uma quantidade enorme de in fl uências uências e variáveis, nem todas sob nosso controle. Mas tudo indica que a compreensão mais clara das forças que sustentam nossas decisões pode nos ajudar a fazer melhores escolhas. Um exemplo prático? A descoberta recente de pesquisadores das universidades Ben-Gurion, em Israel, e Stanford sobre a “fadiga de decisão”, que faz com que juízes sejam quatro vezes mais propensos a conceder penas menores de manhã do que à tarde, poderá persuadir não só os pro fissionais, mas qualquer A AUTORA

pessoa a ser mais cuidadosa quando se vê diante de um di-

GLÁUCIA LEAL é

lema. E, com certeza, de todas as escolhas que enfrentamos

jornalista, psicóloga e psicanalista, editora-chefe de

todos os dias, a de se comprometer a tomar boas decisões é

Mente e Cérebro

seguramente a melhor. 12

capa capa

Como a ciência pode ajudar você a você  a realizar seus planos Quando surgem as dificuldades, os melhores mel hores propósitos podem parecer, parecer, de repente, muito distantes ou mesmo inalcançáveis. Mas em geral é nessas fases da vida que é preciso organizar-se – não só de forma externa, mas também internamente 14

capa

A

lguma vez você já abandonou seus projetos em momentos de crise? Se a resposta é sim, com certeza você não é o único. Um exemplo: estudos desenvolvidos por vários institutos de pesquisa americanos

mostram o mesmo dado: em média, uma em cada quatro pessoas desiste de seus planos para o ano seguinte já no

fim

da

primeira semana de janeiro e outras tantas deixam de lado seus propósitos nos três meses seguintes. Ou seja, se você fez juras bem-intencionadas enquanto assistia à queima de fogos há um mês atrás, é bastante provável que seus propósitos já estejam se perdendo no horizonte. E não importa qual seja a proposta – mudar de carreira, arranjar arra njar um novo emprego, ter uma alimentação mais saudável, exercitar-se regularmente, ler pelo menos um livro por mês, ficar mais perto das pessoas queridas, deixar de comprar por impulso ou simplesmente manter o armário arrumado, por exemplo – sua realização requer esforço. E qualquer um que tenha tentado mudar um hábito sabe quanto pode ser difícil e às vezes frustrante manter a transformação. Mas por que é tão difícil mudar, apesar de nossas boas intenções? O que sabem aquelas poucas pessoas que conseguem o que o resto de nós não entende? Essas perguntas são tão intrigantes para os cientistas quanto para nós, interessados em nossos próprios objetivos. E décadas de pesquisa podem nos dar uma boa ideia das respostas. Mudanças de estilo de vida exigem ajustes na mentalidade, motivação e intenção. Sonhar grande pode ser divertido, mas alinhar as expectativas à realidade ajuda a enfrentar melhor os desa fios e a colocar em prática planos especí ficos para enfrentá-los. O 15

capa

importante é começar aos poucos, com prazos curtos e metas alcançáveis para reforçar a autocon fiança. Também é fundamental encontrar motivação pessoal e criar novas rotinas que farão seus comportamentos desejados tão automáticos quanto os maus hábitos que pretende eliminar. Difícil? A boa notícia é que, usando algumas técnicas cienti ficamente comprovadas, é possível fazer uma pequena (e produtiva) revolução na própria vida, sem precisar para isso recorrer a programas ou livros de autoajuda.

Nova abordagem Há muito tempo cientistas buscam maneiras de auxiliar as pessoas a fazer o que é bom para elas. No entanto, nos últimos ú ltimos 15 anos, a maioria das hipóteses não foi adequada para ser testada no mundo real. Muitos pesquisadores acreditavam que as pessoas optariam por não fumar se simplesmente entendessem como o hábito é prejudicial, por exemplo. Contudo, não há evidências de que saber dos efeitos mortais causados pelo consumo do cigarro tenha de fato provocado grande impacto nas taxas de desistência. “Passamos mais tempo nos esforçando para alinhar nossas ações com aquilo que queremos do que transformando algo de fato”, afirma o psicólogo Martin Hagger, pesquisador da Universidade Curtin, Curtin , em Perth, na Austrália. Em outras palavras, é muito mais fácil uma pessoa arrumar motivos e desculpas que justi fiquem o fato de ainda fumar, alimentar-se mal ou não passar fio dental antes de dormir do que eliminar hábitos prejudiciais.

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Atualmente pesquisadores trabalham em investigações que vão bem além das ultrapassadas noções de força de vontade, e muitos deles acreditam que para ter sucesso é necessário muito mais do que a capacidade de controlar os próprios impulsos. O primeiro passo, considerado essencial, é a consciência de que conseguir agir de forma diferente daquela a que estamos acostumados realmente não é fácil. Entender os motivos de determinados comportamentos, no entanto, ajuda a amenizar as di ficuldades inerentes ao processo. “O que torna complicado mudar hábitos é justamente o que os faz tão úteis no dia a dia”, diz a psicóloga e especialista em comportamento Wendy Wood, Wood, da Universidade do Sul da Califórnia. Eles tornam a vida mais fácil e ajudam a ganhar tempo por não termos de pensar, por exemplo,

Muitos psicólogos acreditam que manter o objetivo traçado seria a exceção, principalmente quando é preciso rever estratégias em razão de uma nova configuração configuração econômica, social ou mesmo na vida pessoal em como colocar os sapatos antes de sair de casa. Só o fato de estarmos em determinado lugar é su ficiente para agirmos de determinada maneira manei ra – fato que, infelizmente, é igualmente verdade para os “pecadinhos” que queremos eliminar. Um experimento realizado por Wood e seus colegas e publicado no Personality and Social Psychology Bulletin  demonstra claramente essa realidade. Os pesquisadores distribuíram porções de pipoca fresca e da semana anterior para pessoas que habitualmente comiam esse alimento no cinema. Eles fizeram o teste em vários ambientes e descobriram que, embora os voluntários que receberam porções murchas 17

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e ressecadas não tivessem gostado, gostado , comeram até o final a quantidade que lhes foi oferecida. A boa notícia é que esse padrão se manteve apenas quando estavam assistindo a trailers de filmes na sala de cinema, mas não enquanto assistiam a vídeos de música em uma sala de conferências, onde a mudança de disposição anulou o impulso irracional de comer. Planejar com antecedência como diminuir os “riscos” de situações como essa, que se tornam verdadeiras armadilhas, é uma maneira de quebrar hábitos. A pessoa que pretende parar de consumir cafeína, por exemplo, pode encontrar outro caminho para o trabalho que não passe por uma cafeteria. Ter um novo hábito, como entrar em forma ou ler mais clássicos, por exemplo, geralmente requer escolher entre algo agradável, familiar e outra coisa que não seja (pelo menos inicialmente) tão prazerosa assim. O que piora a situação é que a maioria das pessoas subestima a di ficuldade de manter a força de vontade, o que geralmente as coloca em apuros. Diversos estudos publicados na Psychological Science mostram que os participantes mais decididos a manter sua opinião foram também mais propensos a ceder à tentação de voltar a fumar ou comer lanches gordurosos. Por outro lado, candidatos modestos, com avaliações mais realistas de suas habilidades, se saíram melhor.

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capa capa

Dois passos para a

mudança Muitos de nossos propósitos se perdem pelo caminho porque, no fundo, não tínhamos clareza do que de fato queríamos. Há mais possibilidade de sucesso quando entendemos com clareza o que está por trás de nossas intenções 19

capa

M

udanças duradouras requerem a renovação periódica de nossas escolhas e dos compromissos assumidos conosco. “Se a pessoa simplesmente pensar ‘Eu consigo, basta evitar’, é provável que

falhe porque as situações que se apresentam estão sujeitas a variáveis mais complexas”, diz Mary Jung, pesquisadora da Universidade da Colúmbia Britânica, que nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da relação das pessoas com a apropriação de comportamentos saudáveis. Ela salienta que faz toda a diferença o fato de as pessoas compreenderem que “escorregar” de vez em quando é normal, e isso não deve ser interpretado como sinal para desistir. “Se você perdeu uma etapa de exercício, não significa que falhou, mas apenas que terá de tomar algumas providências para deixar seu treino em dia”, afirma Mary. A pesquisadora enfatiza a importância de dedicar algum tempo imaginando o resultado do sucesso de seus esforços e os obstáculos especí ficos que certamente aparecerão ao longo do caminho. Vamos imaginar que sua meta seja economizar mais dinheiro neste ano. Em vez de tentar resolver tudo de forma abstrata, é possível formar duas imagens mentais: a primeira poderia ser a de maior saldo bancário e a outra de si mesmo lutando contra a vontade de se juntar com os amigos no caro restaurante inaugurado recentemente. Vários estudos mostram que a técnica de dois passos, chamada de oposição de ideias, ajuda as pessoas a procrastinar menos e a enfrentar os desafios com mais entusiasmo. Para aumentar as chances de alcançar um objetivo, em primeiro lugar é preciso descobrir exatamente por que se almeja – e o que sustenta esse desejo. “Pensamentos “Pensamentos do tipo ‘eu de-

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veria’ poder mantê-lo firme por um ou até dois meses em seu objetivo, mas em geral não se sustentam por muito mais do que isso, ou se o fazem é à custa de muito sacrifício”, argumenta o psicólogo Richard M. Ryan, da Universidade de Rochester. Ele e seu colega Edward L. Deci desenvolveram um modelo de motivação chamado teoria da autodeterminação, autodeterminaç ão, segundo a qual as pessoas com necessidades psicológicas se sentem mais satisfeitas, competentes e capazes de manter relacionamentos afetivos saudáveis e, o mais importante, autônomas e com liberdade para escolher o que fazer. Para atender à necessidade de se sentir competente, uma estratégia eficaz é procurar atividades que favoreçam a sensação de ser bom em algo. alg o. Acompanhar e reconhecer o próprio progresso em alguma atividade ao longo do tempo, por exemplo, sem cair na tentação de invalidar as próprias conquistas, é uma maneira de reforçar o sentimento de realização. Algo que pode contribuir para reafirmar objetivos é pensar como os novos hábitos poderão melhorar o seu relacionamento com pessoas próximas e queridas, bem como ajudá-lo a estabelecer novos vínculos. Essa linha de raciocínio nos ajuda a perceber que a realização da meta está associada à satisfação emocional. “A vontade intensa de conquistar autonomia, o último pilar da teoria de autodeterminação, é forte, mas, se você estiver motivado apenas por pressão externa, mais cedo ou mais tarde provavelmente irá se rebelar 21

capa

e sabotar seus próprios esforços”, acrescenta Ryan. Por isso, encontrar atividades que atendam às suas necessidades pessoais, por outro lado, pode aumentar as probabilidades de permanecer no propósito. Porém, tendemos a ignorar a importância de motivadores internos. É o que aponta uma pesquisa sobre os efeitos de incentivos financeiros para perder peso. Estudos de curto prazo feitos na década de 70 ofereceram resultados promissores, demonstrando que pessoas que receberam recompensas financeiras foram induzidas a perder mais quilos do que aquelas sem o estímulo monetário. “No entanto, estudos mais recentes revelam que, após a retirada do dinheiro, as pessoas voltaram a engordar”, observa o psicólogo Pedro J. Teixeira, professor da Universidade Técnica de Lisboa. Teixeira é também coautor de um artigo no qual descreve uma bem-sucedida intervenção para

Qualquer que seja seu objetivo será necessário esforço não só para concretizá-lo, mas também para par a manter a conquista. O primeiro passo é saber que mudanças de hábitos exigem ajustes de mentalidade, motivação e intenção perda de peso, no periódico cientí fico Medicine and Science in Sports and Exercise . No estudo, mulheres obesas que haviam sido incentivadas a explorar motivações pessoais e a escolher seus próprios objetivos se dedicaram muito mais aos exercícios físicos e perderam signi ficativamente mais peso. O acompanhamento dessas voluntárias mostrou que três anos mais tarde elas ainda preservavam a autonomia para controlar o peso. Ainda que o objetivo pareça ter origem externa, é possível apropriar-se dele, encontrar razões pessoais para persegui-lo 22

capa

e, dessa forma, aumentar as chances de alcançá-lo. alcançá-lo . Por exemexemplo, se o médico faz várias recomendações a um paciente de meia-idade, com intuito de baixar suas taxas de colesterol, ainda que o homem considere um exagero do médico e a firme que se sente bem de saúde, ele pode se perguntar como suas escolhas alimentares atrapalham a conquista de objetivos mais amplos, como passar mais tempo com os netos ou viajar. Esse processo pode ajudar a encarar o objetivo (aparentemente) externo como um caminho na transformação pessoal, na medida em que o envolvimento com ele aumenta. Teixeira acredita que o compromisso com as metas é o caminho para a conquista da autonomia, e somente assim é possível abrir possibilidades para mudanças duradouras. “Uma das chaves essenciais para a concretização de nossos planos é descobrir a motivação certa, aquela que realmente nos move”. Outro segredo para

firmar

mudan-

ças duradouras é começar devagar e, gradualmente, chegar a desafios maiores. “As mudanças mais bem-sucedidas são aquelas em que pegamos o ritmo pouco a pouco durante algumas semanas; com isso é possível ir fazendo ajustes e evitar a sensação frustrante de se esforçar tanto por algo e depois falhar”, afirma Mary Jung. “Em relação ao condicionamento físico, por exemplo, se não tenho certeza de que alguém pode fazer algo, não é uma boa ideia pedir que comece justamente com essa tarefa; o ideal é que se atinja o propósito em etapas, até para que esse comportamento se sedimente no cérebro”. No entanto, por mais sensato que isso possa parecer, as pessoas geralmente fazem o oposto – não raro, entram em dietas extremas ou exageram na prática de exercícios físicos para os quais não estão preparadas. Há também aqueles que fazem 23

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votos súbitos de praticar piano ou estudar mandarim por uma hora todos os dias. A abordagem gradual funciona porque aumenta um ingrediente essencial para a realização realiz ação do objetivo: a con fiança. Apesar das reais dificuldades, o sentimento é necessário para ter sucesso. Esse tipo de motivação é muito diferente do otimismo infundado daqueles que superestimam sua capacidade de resistir a tentações, explica Mary. Conseguir superar desa fios externos tem menos a ver com força de vontade e mais com habilidades específicas de enfrentamento, como o gerenciamento de problemas e a capacidade de se reerguer depois de contratempos. Aos poucos, o desenvolvimento dessas habilidades e a definição de objetivos modestos que permitam encontrar maneiras de lidar com eventuais problemas aumentam a segurança e as chances de persistir a longo prazo.

Fazer planos específicos sobre como agir diante de escolhas difíceis costuma ajudar a dizer não às tentações e seguir firme em direção às metas É claro que, depois de cada tropeço, a crença em si fica um pouco abalada. Pessoas que falham repetidamente na tentativa de alcançar um objetivo tendem a duvidar de sua capacidade de realizar qualquer coisa. Por isso, especialistas insistem: é preciso ir aos poucos. Por exemplo, se você se esforçar para manter a casa arrumada, no início deve focar um dos quartos – ou até mesmo um armário ou escrivaninha. Mantenha a área 24

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limpa por uma semana, comemore a conquista e, depois, escolha outra área para a próxima semana. Manter uma bancada em ordem pode parecer extremamente fácil – mas não para alguém com forte inclinação para a desorganização.

No piloto automático Em última análise, podemos pensar que mudanças duradouras requerem incorporar o novo comportamento, torná-lo automático, de forma que não nos incomode. Uma maneira de começar o processo para adquirir um hábito é dizer para si mesmo, de maneira realista, o que pretende fazer e de que forma vai se movimentar para pôr o plano em prática. prática . Com isso, é possível traçar a estratégia para determinar quando, onde e como pretende alcançar seus objetivos. Hipoteticamente, se você pretende comer três porções de legumes todos os dias, poderia dizer a si mesmo: “Assim que sair do trabalho, no caminho de volta para casa, passo no supermercado para comprar esses alimentos”, diz o psicólogo Peter Gollwitzer da Universidade de Nova York, criador da técnica “se-então”, chamada de execução de intenção. A intenção é criar um sinal automático que faça emergir o comportamento que você quer. Num estudo em psicologia da saúde, Gollwitzer, e seus colegas falaram para um grupo de mulheres alemãs sobre os benefícios para a saúde de comer cinco porções de frutas e vegetais por dia. Também instruíram algumas participantes a utilizar a execução de intenção e oposição de

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capa

ideias mentais. mentais . As voluntárias mantiveram mantive ram a dieta saudável durante dois anos depois do estudo, enquanto aquelas que não haviam recebido a instrução voltaram à antiga forma de alimentação após poucos meses. Outros estudos mostraram que a execução de intenção reduziu em 43% a gravidez na adolescência em uma cidade britânica com taxas acima da média em comparação com um grupo controle e, da mesma forma, com pré-adolescentes que, depois de dizer para si mesmas como agiriam diante da oferta de um cigarro, diminuíram o consumo. É evidente que alguns tipos de execução de intenção funcionam melhor que outros. Gollwitzer descobriu recentemente que dizer um motivo para seus planos – como “Quando eu chegar ao refeitório, vou pegar uma salada porque quero ser saudável” – não funciona porque pensar sobre o motivo interrompe o automatismo. A pesquisa sugere que os objetivos precisam estar bastante claros antes de o interessado iniciar o programa. Outra constatação importante é que a execução de intenção mais eficaz é em forma positiva: “Vou ignorar o telefone” em vez de “Não vou atender ao telefone”, por exemplo. Adicionar imagens mentais também ajuda. “Assim, a declaração não é apenas escrita ou repetida como um mantra, mas, na verdade, elaborada na mente”, conclui Gollwitzer.

Grandes objetivos Algumas dessas estratégias, especialmente as que envolvem colocar ênfase em metas realistas, olhar para dentro de si e fazer planos concretos, são semelhantes às utilizadas na te26

capa

rapia comportamental cognitiva para tratar doenças graves como ansiedade e depressão. Saber disso aumenta as esperanças daqueles com desafios mais modestos. PARA SABER MAIS

Visual attention and goal pursuit deliberative and implemental mindsets affect breadth of attention. Oliver B. Büttner. Frank Wieber. Anna Maria Schulz. Ute C. Bayer. Arnd Florack. Peter M. Gollwitzer. Personality and Social Psychology Bulletin, outubro de 2014 Não fui eu, foi meu cérebro! Caio Margarido Moreira. Mente e Cérebro Especial, nº 35 – O segredo da decisão , págs. 10-17, 2012.

Algumas dessas ferramentas, porém, podem não ser a melhor opção para todos. Alguns, de fato, podem se sentir mais confortáveis se tiverem um psicólogo que possa acompanhá-los, o que não é um problema, trata-se apenas de outra forma de buscar atingir objetivos. Pesquisas anteriores mostram que a execução de intenções não funciona tão bem para hábitos profundamente arraigados.

The pull of the past: when do habits persist despite conflict with motives? David T. Neal, Wendy Wood, Mengju Wu e David Kurlander em Personality and Social Psychology Bulletin, vol. 37, no 11, págs.1428-1437; novembro de 2011.

Pessoas que pretendem derrubar rotinas que perdura-

Implementation intentions: strong effects of simple plans. Peter M. Gollwitzer em American Psychologist, vol. 54, no 7, págs. 493–503, julho de 1999.

ligados. O importante parece ser tentar variadas táticas e

Self-Determination Theory: an approach to human motivation and personality. Site da Universidade de Rochester: www.psych. www.psych. rochester.edu/SDT/theory. php.

de agir do dia para a noite. Sempre pode ser um bom

ram por toda a vida talvez não se bene ficiem da técnica, assim como outras podem achar que seus objetivos não são facilmente divididos em pequenos passos e depois encontrar o que funciona melhor em cada situação. Talvez o mais importante seja não esperar mudar seu jeito momento para começar a dar passos em direção direçã o ao melhor de nós mesmos. Mesmo no meio da crise.

27

dinheiro

Pesquisadores acreditam que a gratidão tem forte relação com o autocontrole, condição essencial para cumprir metas

Pessoas gr gratas atas lidam melhor com finanças

dinheiro

C

erto, todo mundo já ouviu dizer que o sentimento de gratidão nos ajuda a ser mais felizes e abertos em relação à vida. Agora, a ciência aponta que o sentimento pode ser também um grande aliado para abandonar o cigarro, se manter firme na dieta e poupar dinheiro. Pesquisadores das Universidades Harvard, Northeastern e da Califórnia pediram a 75 voluntários para escrever detalhes de um dia típico ou de um evento em que se sentiram felizes ou gratos. Em seguida, deveriam deveria m graduar (em uma escala de 1 a 5) o quanto experimentavam esses dois últimos sentimentos no momento. Depois, tiveram a oportunidade de escolher uma quantia em dinheiro: um valor pequeno Uma ajudinha, por favor (entre US$ 11 e US$ 80) pago Receber opinião de especialistas em finanças, ou mesmo do gerente do banco, é útil, sem dúvida, imediatamente ou mais alto mas para algumas pessoas pode pode causar uma (entre US$ 25 e US$ 85) que espécie de descompromisso com o gerenciamento seria entregue entre uma seas próprias finanças. O periódico científico Public Library Science divulgou um trabalho mostrando que, mana e seis meses depois. quando recebemos o conselho de um consultor, Os resultados, publicao cérebro tende a desativar áreas associadas à decisão racional. “É como se abandonássemos dos na Psychological Sciena responsabilidade quando confiamos em uma ce , mostraram que os mais autoridade”, explica Gregory Berns, professor de gratos conseguiram esperar neuroeconomia e psiquiatria da Universidade de Emory, nos Estados Unidos. mais e, consequentemente, embolsaram mais dinheiro. Em média, só abriam mão de ganhar US$ 85 após três meses se recebessem pelo menos US$ 63 no ato, enquanto os menos gratos aceitaram a partir de US$ 55 nas mesmas condições. Os pesquisadores acreditam que a gratidão tem forte relação com o autocontrole, condição essencial para cumprir metas, e apontam para a importância da in fl uência uência de estados emocionais positivos na hora de tomar decisões financeiras. 29

tecnologia

O encéfalo e os desafios desafios da era digital Alguns autores apontam as redes sociais e os videogames interativos como principais responsáveis pelas mudanças comportamentais recentes. Com ganhos e perdas, chegamos à época da comunicação instantânea e onipresente e novos desafios se manifestam. A inclusão do distúrbio de dependência da internet chegou a ser considerada na última edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5)  – a proposta, entretanto, não foi aprovada por Jorge A. Quillfeldt

tecnologia

O

encéfalo humano – que reúne dentro da caixa craniana o cérebro, o cerebelo e o tronco encefálico – é, até prova em contrário, o pedaço de matéria organizada mais complexo em todo o mun-

do conhecido. Muitos o consideram uma espécie de apogeu da evolução da vida, mas não deixa também de ser um triunfo da história da matéria que compõe o próprio Universo. Quase todos os átomos da Tabela Periódica foram gerados por nucleossíntese atômica no interior de antigas estrelas que depois explodiram como supernovas, liberando essa matéria que, então, pôde se reorganizar em novas estrelas – agora com planetas e moléculas de todo tipo. Sobre esse substrato material a vida surgiu e desenvolveu-se, pelo menos em nosso planeta.

A capacidade de executar multitarefas esbarra na limitação humana e, não por acaso, a demanda das tecnologias da informação se torna uma importante fonte de estresse Daí a poética observação do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan: “Somos basicamente a matéria das estrelas contemplando-se a si mesma”. Essa minúscula porém inquieta massa de tecido neural pesa pouco mais de um quilo – cerca de 2% do nosso peso – mas consome mais de 20% da energia disponível, quase que apenas para manter a custosa comunicação eletroquímica entre os neurônios. O tecido nervoso difere de todos os outros na medida em que, nele, a diferenciação é a regra, não havendo duas células idênticas. Não bastasse isso, próximas ou distantes, todas se conectam aos mais intrincados padrões espaciais, formando as redes neurais. Diferentemente, os outros tecidos 31

tecnologia

do corpo são compostos por células relativamente homogêneas, cada uma fazendo mais ou menos a mesma coisa, e quase sempre simultaneamente. Ou seja: operam em massa. No tecido nervoso a ação celular massiva não é comum, exceto em situações patológicas, como num episódio epiléptico. Cada um dos mais de 80 bilhões de neurônios dessa verdadeira “galáxia” neural que é o encéfalo humano recebe, de outros neurônios, milhares de conexões – as chamadas sinapses, computando o conjunto de sinais recebidos como se fosse uma “pesquisa de opinião”, e decidindo se enviará um potencial de ação ao longo de seu axônio rumo a alguns ou muitos neurônios-alvo. Cada um destes, por sua vez, registrará essa minúscula contribuição em meio às milhares de outras que também recebe, decidindo se vai disparar ou não. Existem cerca de mil diferentes tipos de células no encéfalo, mas mesmo as similares podem produzir diferentes atividades devido à forma como se interconectam, o que oferece uma ideia da complexidade desse órgão. O encéfalo é comumente considerado um “computador”, mas tal analogia, popular há várias décadas, é pobre e até mesmo problemática. É pobre porque dispositivos cibernéticos até são capazes de armazenar e processar muitas memórias, ou emular esta ou aquela propriedade cognitiva com maior ou menor e ficiência, 32

tecnologia

mas todos esses processos são por demais simples e rígidos se comparados ao que um verdadeiro encéfalo faz: processar informações analógicas multissensoriais de forma altamente “paralelizada”, registrá-las em redes neurais dinâmicas construídas mediante a plasticidade das conexões sinápticas, e, deste modo, modular a execução de comportamentos adaptativos, inatos ou aprendidos. É problemática porque analogias contrabandeiam, como cavalos de troia, uma série de pressuposições conceituais que acabam di ficultando os avanços teóricos, já que impõem um modelo que de fato é distante da realidade biológica. O encéfalo não é, en fim, um computador como os que conhecemos e, em que pese o ultraotimismo de

A mente humana é um amálgama das diversas funções cognitivas que, além das sensações e movimentos, envolve atenção, capacidade de antecipação, solução de problemas, emoções memória e linguagem autores como Raymond Kurzweil, estamos longe de construir um “computador” comparável ao nosso encéfalo. A mente humana é um amálgama das diversas funções cognitivas do encéfalo que, além das sensações e movimentos, envolve atenção, processamento visuoespacial, funções executivas (antecipação, solução de problemas e tomada de decisões), emoções (motivação/ inibição), sem se esquecer da memória e da linguagem. O Homo sapiens adquiriu essas capacidades ao longo da evolução por seleção natural, que, ao contrário do que muitos pensam, não deixou de atuar sobre as populações humanas (mutações ocorrem o tempo todo) embora algumas pressões seletivas tenham sido efetivamente 33

tecnologia

suprimidas no contexto das sociedades organizadas. O encéfalo se alimenta de informações sensoriais e verte, como produto

final,

res-

postas motoras – os comportamentos. As sensações capturadas pelos órgãos dos sentidos convergem ao encéfalo, mergulhando, segundo a expressão do neurocientista inglês Charles Sherrington, no “grande plexo intermediário”. Ou num imenso “jardim dos caminhos que se bifurcam”, para usar outra imagem poderosa de Jorge Luis Luis Borges, em que vias preferenciais são percorridas, percor ridas, conexões são plasticamente estabelecidas e/ou interrompidas, e decisões são tomadas, determinando os comportamentos a serem executados. Quanto maior e mais complexa essa rede, mais complexos serão os comportamentos. No Homo sapiens , o encéfalo ordena temporalmente as percepções somatossensoriais (sensações do próprio corpo) e sensoriais (do ambiente) em um todo coerente que se renova reiteradamente a cada instante, mantendo uma unidade que é, de fato, a identidade individual única e indivisível – o ego (ou “eu”), função conhecida como consciência. A maioria dos animais, porém, não parece tê-la no mesmo grau, respondendo a entradas sensoriais principalmente de forma automática, “sem saber”. A consciência é um agente integrador poderoso, mas é limitado pelo fato de operar serialmente – faz uma coisa de cada vez: até podemos executar duas ou mais tarefas simulta-

tecnologia

neamente, alternando-as rapidamente, o que funciona melhor se as adicionais são automáticas (re fl exas), exas), mas, quanto mais tarefas realizarmos ao mesmo tempo, menos precisas serão suas execuções. A capacidade de executar multitarefas é uma limitação humana bem conhecida, e sua alta demanda na sociedade atual – especialmente no terreno das tecnologias da informação – é fonte de muito estresse. Uma preocupação crescente cres cente nos últimos anos é saber como o encéfalo humano vem lidando com o novo ambiente onipresente das tecnologias digitais de comunicação – que, embora tenha revolucionado nossas vidas, cada vez consome mais tempo e envolvimento das pessoas, pelo menos daquelas que têm condições financeiras de acessá-lo (já que a maioria da humanidade nem sonha com isso). Na última década vimos uma explosão de denúncias acerca dos supostos malefícios dessas atividades. Os ambientes arti ficiais de hoje não têm precedentes na história evolutiva da humanidade, não fomos selecionados para muito do que experimentamos, e a adaptação quase sempre é incompleta e custosa. Alguns autores apontam, entre os principais responsáveis pelas mudanças comportamentais, a internet – com destaque para as redes sociais – e os video-

tecnologia

games interativos. E embora estes recursos tenham aspectos inegavelmente positivos, suas limitações

ficam

exacerbadas

com o uso prolongado, resultando em estresse crônico e, por vezes, dependência (análoga ao efeito de drogas). Entre as limitações estão os vínculos não materiais que de fato isolam as pessoas do contato físico real, o que causa evidente impacto sobre sua comunicação e sociabilidade. Sempre existiram existiram diferentes formas de alienação, com ou sem auxílio de substâncias e práticas, mas a insidiosidade da esfera digital é surpreendente. A dependência da internet andou fl e ertando rtando com a quinta e última edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtor-

A solidão ou a ilusão de companhia experimentada por muitos de nós no oceano de indivíduos sem identidade da grande rede é, sobretudo, fruto da forma particular como utilizarmos esse recurso nos mentais(DSM-5) , mas acabou não integrando a edição final

por não ser considerado, até aqui, um distúrbio real: disfunções temporárias temporári as e/ou transitórias são comuns, mas raramente evoluem rumo a um verdadeiro estado patológico. Falando em efeitos das tecnologias de comunicação disponíveis, a humanidade percorreu uma longa sucessão de desafios

cognitivos no curso de sua história, passando da logosfe-

ra (cultura oral) à grafosfera (cultura escrita), e daí, à videosfera (cultura imagética) – para usar a terminologia de Regis Debray. Em cada um desses níveis pudemos desenvolver capacidades mentais, talhadas de acordo com as novas demandas, perdendo ou aprimorando habilidades anteriores. Foi desta forma que a humanidade se erigiu. Agora chegamos à ciber-

tecnologia

videoesfera das relações humanas por comunicação instantânea e onipresente, e novos desa fios se manifestam. Até há pouco tempo, tal percepção era meramente subjetiva, mas agora já dispomos de evidências preliminares obtidas em estudos com usuários pesados de jogos e redes sociais: redução da atenção, aumento da obesidade, perda da identidade e autoestima, diminuição de empatia, aumento do estresse e da depressão e redução da aversão ao risco. Alguns desses fatores  já vêm vêm sendo sendo correla correlacion cionados ados com com micro micromod modiificações nos encéfalos dos usuários, mas isso ainda não quer dizer muito, pois nossos encéfalos sempre se reorganizam plasticamente ao interagir com o mundo – é exatamente para isso que eles evoluíram. Mesmo assim, já se justifica a realização de novos estudos.  A solidão ou a ilusão il usão de companhia experimentada experi mentada por muitos de nós no oceano de indivíduos sem identidade da grande rede é, sobretudo, fruto da forma particular particula r como a utilizarmos. utiliza rmos. A comunicação mútua até existe, mas várias de suas dimensões humanas simplesmente desaparecem, O AUTOR

JORGE A. QUILLFELDT é neurocientista e divulgador da ciência. Licenciado em física, mestre em bioquímica e doutor em fisiologia, é professor titular do Departamento de Biofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IB/UFRGS).

pois, além da palavra escrita, a comunicação humana também emprega – com enorme importância – o contato visual mútuo, a linguagem corporal não verbal, as variações na entonação e volume da voz, e o próprio contato físico direto (toque, abraço, etc.). “E nada disso está disponível no Facebook”, diz Susan Greenfield, uma das principais críticas desta tendência sociocultural global. Talvez

PARA SABER MAIS

Dependências tecnológicas. Igor Lins Lemos. Zagodoni, 2015.

seja hora de refl etirmos etirmos sobre como lidar com essa realidade inédita.

especial

Como uma mão de borracha engana o cérebr cérebro o Considerado um marco na história da neurociência, o experimento que é capaz de “enganar” “enganar” o cérebro demonstrou pela primeira vez que é possível romper a barreira entre a consciência que temos de nós mesmos e os objetos que nos circundam 38

especial

O

nde estão os seus pés? A pergunta pode parecer absurda, mas se você está lendo este artigo é provável que essas duas partes de seu corpo não estejam exatamente diante dos olhos. Mes-

mo assim, é bem provável que saiba exatamente onde eles estão. Pode “sentir” a sua posição, perceber sua postura: essa habilidade, a propriocepção, ou percepção de si, é uma das capacidades menos evidentes, porém mais surpreendentes, surpreendentes, do nosso sistema nervoso. Na realidade, reconhecer as partes do corpo como “próprias” é resultado de um sistema complexo que integra informações visuais, proprioceptivas (os impulsos prove-

O LUGAR DA LEMBRANÇA: existe relação próxima entre memória de curto prazo e memória operativa, funcionamento executivo e inteligência fluida. As áreas fundamentais do cérebro para o bom funcionamento dessas habilidades se localizam nos lobos frontal e parietal do encéfalo.

nientes de

fibras

nervosas

destinadas

exatamente

a

essa tarefa) e sensitivas (por exemplo, a pressão do sapato sobre o seu pé).

Há mais ou menos 20 anos, os neurologistas estavam certos de que todos esses elementos eram necessários para construir a consciência do próprio corpo e, sobretudo, de que não era possível enganar o sistema. No entanto, depois veio a mão de borracha e tudo mudou.

A invenção do truque Em 1998 saiu na

Nature ,

uma das mais prestigiadas revistas de

ciência, a descrição de um experimento aparentemente sim39

especial

ples, para o qual uma pequena página de texto é su ficiente. Os autores são dois neurocientistas do Departamento de Psiquiatria e Psicologia da Carnegie Mellon, a famosa Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia. Chamam-se Matthew Botvinick e Jonathan Cohen e eram, na época, muito jovens, mas tiveram uma grande ideia: utilizar a capacidade do nosso cérebro de deixar-se enganar para entender um pouco mais a fundo como isso funciona. “No passado, as ilusões foram muito usadas em psicologia, por isso podem revelar coisas sobre os processos perceptivos”, escrevem no trabalho. “Com base nisso, desenvolvemos uma ilusão na qual a sensação tátil é destinada a uma mão que não pertence ao sujeito, uma mão estranha. O efeito gerado revela que existe uma interação em três vias entre visão, propriocepção e tato e nos dá, portanto, uma demonstração das bases da identificação do próprio corpo.” Botvinick e Cohen selecionaram inicialmente dez voluntários que foram colocados sentados de frente para uma mesa. O braço esquerdo da pessoa era escondido por uma tela, enquanto à sua frente era colocado um braço de borracha de dimensões semelhantes ao braço real. Os experimentadores pediram aos participantes que mantivessem os olhos fixos no braço de borracha, enquanto, com dois pequenos pincéis, em perfeita sincronia, tocavam simultaneamente o braço real e o falso. Importante: as pessoas sentiram senti ram o pincel sobre a pele do braço que não viam, mas viam o pincel que se movia, com o mesmo ritmo, no braço de borracha. 40

especial

Após dez minutos de estimulação, foi pedido aos indivíduos submetidos ao experimento que respondessem a um questionário sobre a sua experiência e sobre as sensações que experimentaram. O resultado foi surpreendente: quase todos os voluntários a firmaram ter tido a percepção da ilusão do braço de borracha como uma continuidade de seu corpo. Um número de indivíduos estatisticamente não signi ficativo na época – mas sucessivamente ampliado com outros experimentos idênticos ou similares – a firmou também ter provado sensações estranhas, estranhas , como uma perda do sentido de posse do próprio braço real e até mesmo a percepção de que a própria mão estivesse ficando “emborrachada”. “emborrachada”.

Estímulos em conflito “A nossa hipótese é que essa ilusão seja fruto de uma conciliação operada pelo nosso cérebro entre estímulos aparentemente discordantes, nos quais estímulos visuais e táteis sejam integrados à custa da propriocepção verdadeira e própria, levando a uma distorção do senso da posição do corpo”, escreveram ainda Botvinick e Cohen. Para confirmar essa interpretação, os dois pesquisadores realizaram então um segundo experimento: prolongaram os tempos da estimulação e pediram aos participantes que fechassem os olhos e tocassem, com a mão direita, a própria própri a mão esquerda. Também nesse caso, os indivíduos agarraram a mão de borracha ou, de qualquer forma, erraram ao tentar alcançar a própria mão, ficando no meio do caminho entre a verdadeira e a falsa. Tratou-se, nesse ponto, de avaliar quão precisa precis a deveria ser a estimulação para produzir efeito: um grupo de controle foi “pincelado” de modo assíncrono, e a ilusão apareceu somente em 7% dos casos, contra os 42% dos indivíduos cujos estímulos na mão verdadeira e na falsa foram sincronizados. 41

especial

Jogo de espelhos O trabalho de Botvinick e Cohen não nasceu do nada: poucos anos antes, o neurocientista de origem indiana, estabelecido nos Estados Unidos, Vilayanur Ramachandran havia publicado um estudo no qual tinha conseguido gerar, num grupo de pessoas amputadas de um membro, a sensação de que o braço havia reaparecido, projetando, graças a um simples jogo j ogo de espelhos, o braço íntegro no lugar onde deveria estar aquele que faltava. E muitos dos seus pacientes diziam ter tido a sensação de serem tocados no “braço fantasma” quando o braço existente era tocado. Também havia alguns estudos, conduzidos em macacos, que demonstravam a existência, no nível do córtex pré-motor, de áreas em condições de integrar estímulos táteis e visuais em relação ao mapa corporal. O efeito dessa integração é tão intenso que, no experimento dos dois psicólogos da Carnegie Mellon, oito em cada dez voluntários, voluntários, ainda antes de serem submetidos ao questionário, relataram que olharam para o braço de borracha pensando “é o meu braço”, mesmo sabendo não ser.

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especial

A ilusão da mão de borracha, ou rubber hand illusion , representa a primeira demonstração neurocientí fica, feita com um experimento claro, de que é possível romper a barreira entre o eu e os objetos que nos circundam. E se, no início, despertou o interesse principalmente dos neurofisiologistas, porque parecia demonstrar uma prevalência do sentido da visão sobre todos os outros na construção da identidade corporal, com o tempo tornou-se um paradigma importante para estudar a consciência consciência do eu, os seus limites e, sobretudo, os mecanismos pelos quais ela se constrói.

Fugindo de erros O mesmo protocolo da mão de borracha foi empregado para examinar grupos de pacientes com percepções distorcidas do próprio corpo por causa de patologias como a esquizofrenia ou a anorexia. Os estudos nessas pessoas demonstraram que existe provavelmente um “defeito” de integração multissensorial que as torna mais suscetíveis a erros de avaliação. Foi assim que a rubber hand illusion tornou-se um instrumento para medir a maleabilidade da representação corporal: quanto mais instável é a representação do eu no cérebro, mais fácil é para a doença jogar com todos os mecanismos de correções interiores, em parte conscientes consciente s e em parte inconscientes, que nos permitem não incorrer em erros o tempo todo. Também o conceito de maleabilidade da imagem do eu ainda é objeto de discussão, porque nem todos os estudos convergem entre si – como é compreensível se pensarmos que se trata de fenômenos estudados há menos de duas décadas – mas, para o momento, se sustenta e parece ser o mais plausível. Existem, de fato, pesquisas que completaram o quadro descrito pela primeira vez em 1998. Por exemplo, G. Lorimer Mosely e Charles Spencer, da Universidade de Oxford, demons43

especial

traram em 2008 que o braço verdadeiro de quem vive a ilusão se torna meio grau mais frio durante o experimento: uma resposta fisiológica à sua “alienação” do esquema corporal a favor do seu substituto arti ficial. Outros experimentos demonstraram quão real é a integração submetendo a mão de borracha a uma série de manifestações dolorosas: alguns a tiveram apunhalada, outros “luxada” ao dobrá-la de forma não natural. Em todos os casos, o indivíduo submetido ao experimento sentiu-se mal, mal , começou a suar e manifestou todos os sintomas do medo. No entanto, os limites entre o eu e os outros podem ser ainda mais instáveis do que acreditamos: em 2010, Maria Paola Paladino e seus colaboradores da Universidade de Trento, inspirados pela rubber hand illusion, desenvolveram um experimento semelhante com rostos. Pediram aos voluntários que olhassem para um vídeo no qual estava enquadrado o rosto de um desconhecido que era tocado com um pincel, no mesmo

O que é a integração multissensorial? O mecanismo de integração multimodal, ou sensorial, é usado pelo nosso cérebro para juntar as informações sobre um mesmo objeto que provêm de diferentes canais, como a visão, a audição, o tato, o movimento, o paladar, e assim por diante. Para representar de maneira coerente a natureza de um objeto, o cérebro junta aquilo que vem da periferia de modo atento e preciso. Basta imaginar o que acontece quando colocamos na boca uma garfada de comida: vemos o que temos no prato e depois, quando introduzimos o bocado, temos condições de distinguir a diferente consistência e o sabor da comida daquele garfo e de seu eventual sabor metálico. A visão parece ter uma predominância sobre os outros sentidos, ainda que sobre esse ponto a

discussão ainda permaneça aberta. É exatamente a complexidade da integração multimodal que leva, às vezes, a “erros” na sobreposição das informações que estão na origem de diversas curiosas ilusões corpóreas, mas também de sintomas como as alucinações nas psicoses. Essa hipótese foi confirmada também por um modelo computacional (ou seja, uma simulação no computador do fenômeno completo) que demonstrou como o cérebro humano usa a inferência bayesiana, um método estatístico, para calcular a probabilidade de que um evento se verifique. Nesse caso, para avaliar a probabilidade de que aquilo que estamos vendo e aquilo que estamos experimentando se refiram ao mesmo objeto. 44

especial

ponto e na mesma frequência com que eles mesmos eram tocados, na realidade. Os voluntários submetidos ao teste declararam que experimentaram um senso crescente de familiaridade com relação ao rosto do vídeo: “Foi ficando cada vez mais parecido comigo mesma”, declarou uma das voluntárias.

Coisas de louco Henrik Ehrosson, do Karolinska Institut, de Estocolmo, foi além e, partindo sempre do mesmo paradigma experimental, usou a realidade virtual para criar diversas ilusões relativas relati vas à percepção de si mesmo. “Podemos fazer coisas malucas”, declarou, de forma divertida. E realmente conseguiu integrar no esquema corporal das pessoas, graças ao seu vídeo em 3D, todo tipo de objeto, de bastões a espadas. Conseguiu fazer homens grandes e gordos acreditarem ser pequenos como crianças, ou então que tinham um corpo feminino ou até possuir um terceiro braço, invisível. “De uma simples ilusão perceptiva nasceu um filão inteiro de pesquisa que nos permitiu compreender como construímos a nossa identidade corporal, que é uma parte importante na consciência do eu”, explica Patrick Haggard, neurocientista do Institute for Cognitive Neuroscience de Londres, que contribuiu com muitos estudos para o desenvolvimento desse campo de pesquisa. “Agora que compreendemos como funciona a integração multissensorial e, principalmente, agora que temos também uma hipótese sólida sobre as estruturas anatômicas que, no cérebro, mantêm ativo esse sistema, podemos nos concentrar sobre os detalhes finos e avançar além, para elaborar hipóteses sobre as conexões entre o corpo e a mente. O certo é que compreendemos que a consciência não é um fenômeno exclusivamente central, ligado ao encéfalo e ao córtex, mas que depende também do corpo e daquilo que vem da periferia.” 45

cinema  A ESPOSA

100 min . Estados Unidos e Suécia, 2018. Direção: Björn Runge. Elenco: Glenn Glenn Close, Jonathan Pryce, Christian Slater, Harry Lloyd, Annie Starke.

A palavra que combate o invisível Indicada ao Oscar, Glenn Close, interpreta uma dona de casa que sufoca seu talento; ao deixar de participar do que Freud chama de “as “as grandes tarefas da cultura cultura””, mulheres m ulheres ficam socialmente mudas Não é de hoje que mulheres são desestimuladas a desenvolver competências e, muitas vezes, a única saída que lhes parece conciliável com o meio machista em que          A esposa, baseado no livro homônimo, escrito por Meg Wolitzer e dirigido por Björn Runge, aborda esse dilema. Glenn Close, atualmente com 71 anos e indicada para o Oscar de melhor atriz, interpreta Joan, uma dona de casa de terceira idade que recebe a notícia de que seu marido foi agraciado com o Nobel por sua obra literária. Durante a viagem do casal para a premiação em                                                          apoiar o marido Joe Castleman, vivido por Jonathan Pryce, um homem sedutor, que na  juventude foi seu professor professor de literatura. Assediada por um biógrafo, biógrafo, interpretado por Christian Slater, empenhado em escrever a “verdadeira história” de Joe, Joan relembra               ditos claramente, mas que a atormentam.                            46

              

de mero suporte, relegado à mulher. Embora hoje seja possível questionar esse lugar                       

(entendido como a luta por direitos iguais de mulheres e homens, sem dominação             

sociais, o lugar de submissão feminina ainda prevalece de forma intensa. A ideia de que a mulher é intelectualmente inferior ainda se faz bastante presente nos mais variados meios. O psicanalista Joel Birman lembra, em Feminilidades     de um lado, foi fortalecida a ideia do ser frágil, dependente, assexuado e passivo; do outro, prevaleceu a imagem da por  “Sem acesso ao poder tadora de um excesso sexual ameaçador que poderia colocar político, as mulheres em risco o modelo familiar burguês. “No centro desse deba  não teriam meios de garantir os outros direitos te, surgiu a preocupação com a sexualidade feminina, pensada como ameaça à espécie e à ordem social, um tipo de força fundamentais para se bruta, autônoma e próxima da animalidade, que podia explodir tornar sujeitos de suas próprias histórias”, a qualquer hora, desvirtuando a passividade do caráter femini  escreve Maria Rita Khel no. Era preciso, portanto, disciplinar a sexualidade feminina, a           

potencialidade geradora, reprodutiva”, escreve Birman. Ao aceitar, com passividade, ocupar a posição de mantenedoras da ordem e da har                                         Deslocamentos do feminino                  

os outros direitos fundamentais para se tornar sujeitos de suas próprias histórias.”                           

tarefas da cultura”, permanecendo socialmente invisíveis. É o que acontece com Joan, até que o reconhecimento mundial do trabalho do marido a coloca diante de seus pró                 47

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Psicanálise e gênero – Narrativas feministas

e queer no Brasil e na Argentina. Orgs. Carla Françoia, Patricia Porchat e Patrizia Corsetto. Calligraphie, 2018. 200 págs. R$ 65,00.

Coletânea Coletânea discute feminismo e sexualidades Artigos e entrevistas trazem reflexões sobre as transformações sociais, identitárias e tecnológ tecnológicas icas que forçam psicanalistas a repensar a compreensão da teórica

M

ais do que nunca, nos tempos atuais se faz necessário o diálogo. Quando se trata de pensar cultura, afetos, desejos, relações com o corpo (tanto o próprio quanto o do outro) é fundamental abrir espaço para diferentes olhares tangenciados não só por abordagens acadêmicas, mas também por compreensões que se mesclam com a formação daqueles que pensam esses temas. O recém-lançado Psicanálise e gênero – Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina, Argentina , organizado pelas psicólogas e psicanalistas Carla Françoia e Patricia Porchat e pela jornalista Patrizia Corsetto, é um exemplo dessa proposta.

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A coletânea está organizada organizada em duas partes. A primeira apresenta artigos de psicanalistas que, diante de novas questões, situações e demandas que encontram em suas clínicas, buscam respostas para além de concepções clássicas da psicanálise freudiana e dos desdobramentos que resultaram da releitura de Jacques Lacan. A outra parte traz entrevistas com psicanalistas (quatro argentinas, dois argentinos e uma chilena), feitas por Porchat, destacando a trajetórias desses profissionais. A obra considera que o surgimento de novos contextos sociais e “A emergência de novas teorias, os novos sujeitos culturais, bem como a emergência de e identidades e as teorias movimentos sociais e transformações Queer questionam a tecnológicas, propiciam a legitimações normatização naturalizada identitárias múltiplas. “No desenvolda heterossexualidade e se vimento dos estudos de sexualidades, voltam para as sexualidades devedores que são da psicanálise, com transgêneros, transgê neros, que implodem imposição de outras reivindicações, a as desigualdades de gênero” emergência de novas teorias, novos sujeitos e identidades, as teorias Queer questionam a normatização naturalizada da heterossexualidade e se voltam para as sexualidades transgêneros, que implodem as desigualdades de gênero”, escreve a antropóloga e doutora em psicologia Mara Coelho de Souza Lago, na apresentação do livro. Nesse contexto, demandas e angústias podem assumir formas inusitadas e a construção de saberes até há pouco tempo ignorados se faz necessária, o que exige do psicanalista a necessidade de rever o próprio posicionamento e, humildemente, reavaliar as próprias narrativas. 49

     T      H      G      I      L

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História da Pedagogia  P i a g e t • V i g o t s k i • W a l l o n • F r e i r e • R o u s s e a u • D e w e y 

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