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ESPECIAL | O DESAFIO DE TRATAR A DEPENDÊNCIA QUÍMICA
APRENDIZAGEM As células cerebrais especializadas em erros
DEU BRANCO Por que ficamos paralisados em situações de grande tensão
ANDARILHOS NOTURNOS O que a ciência descobriu sobre o sonambulismo
Os caminhos que o cérebro percorre para encontrar boas
SOLUÇÕES
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ISSN 1807-1562
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Cientistas desvendam processo que faz você se apegar a determinados raciocínios e inibir outros
carta da editora
A teimosia do cérebro
T
odo mundo quer acertar. Não importa a área da vida – ansiamos por ter ideias inteligentes, fazer a melhor escolha, tomar a decisão mais acertada. Não é difícil perceber que vários fatores podem nos atrapalhar no momento de privilegiar determinada linha de pensamento e seguir esse caminho. O que a maioria das pessoas não percebe é que um aspecto que nos faz nos apegarmos a certos pontos de vista (em detrimento de outros, mais eficientes) está diretamente relacionado com nosso próprio funcionamento cerebral. Essa espécie de “teimosia” é resultado do que os neurocientistas denominaram efeito Einstellung (fixação funcional). Trata-se da “persistente tendência do cérebro de se ater a uma solução familiar para resolver um problema – aquela que primeiro vem à mente – e ignorar outras possibilidades”, explicam os cientistas Merim Bilalić e Peter McLeod, ambos doutores em psicologia. Eles sabem do que falam: a pesquisa de Bilalić sobre esse fenômeno ganhou o Prêmio da Sociedade Psicológica Britânica para Contribuições Excepcionais de Pesquisa Médica para a Psicologia e McLeod, presidente da Fundação Oxford para Neurociência Teórica e Inteligência Artificial, tem feito importantes incursões nesse assunto. Os dois reconhecem que, na maioria das vezes, tipo de raciocínio é um processo cognitivo útil, já que por meio dele desenvolvemos métodos bem-sucedidos para resolver os mais variados problemas do cotidiano, desde descascar uma fruta até resolver uma equação matemática. E, se funciona, não há motivo para tentar várias técnicas diferentes toda vez que precisamos novamente desempenhar aquela atividade. O problema com esse atalho cognitivo é que ele pode inibir a busca de soluções mais eficientes ou apropriadas. Diante disso, podemos pensar: se nosso cérebro nos faz acreditar em certas abordagens, a ponto de ignorar outras mais adequadas, ou mesmo desconsiderar que elas existam, o que podemos fazer? Ficamos reféns desse órgão tão sofisticado, com o qual nos confundimos? Simples: desconfie de suas certezas e não se contente logo de cara com as boas soluções. É claro que, ao compreender como esse curioso processo ocorre em sua cabeça, fica muito mais fácil acreditar – e apostar – que, não raro, seu cérebro poderá encontrar outras saídas ainda melhores que a primeira. Boa leitura, boas escolhas!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
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sumário | agosto 2017 CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
Artimanhas do
capa
cérebro 24 teimoso por Merim Bilalić e Peter McLeod Boas ideias são sempre bemvindas, mas algumas linhas de raciocínio podem bloquear outras melhores ainda – e nos prender a determinados padrões de pensamento
16 Ao longo do tempo por Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde
A maneira como percebemos truques visuais oferece pistas sobre as mudanças que ocorrem no cérebro à medida que envelhecemos
20 Andarilhos noturnos O comportamento de sonâmbulos – que caminham, comem, conversam e podem até ter ações agressivas enquanto dormem – intriga cientistas e leigos
36 A língua e suas salivas por Elizabeth Brose
especial
55 dependência química O desafio de tratar a
Há décadas o poder público tem tentado, sem sucesso, combater o consumo de drogas. Intervenções policiais – como a ocorrida recentemente na região da Cracolândia, em São Paulo – revelam uma situação crônica e persistente que envolve complexas questões de saúde mental e física, sociais, urbanísticas e de segurança pública
56 As múltiplas faces do tratamento 68 Armadilhas do DNA 4
A psicanálise trabalha com o equívoco, com o intervalo entre uma palavra dita e a sua reedição; seguindo os preceitos da linguística, é possível evocarmos o que Lacan ensinou: entre um significante e outro, revela-se o sujeito de modo fugidio
40 Alerta antecipado contra Alzheimer Teste de acompanhamento ocular passa a ser considerado ferramenta importante na luta contra o tipo mais frequente de demência
42 Deu branco por Amy Arnsten, Rajita Sinha e Carolyn M. Mazure
Circuitos neurais responsáveis pelo autocontrole consciente são vulneráveis mesmo em situações de frustração e ansiedade leves. Quando esse sistema é desativado, impulsos primitivos são liberados sem controle, provocando paralisia
seções
nas bancas
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A ciência do sono
CARTA DA EDITORA
Tem gente que jura que dormir é perder tempo. No entanto, o que inúmeras pesquisas revelam é o contrário: a boa qualidade do sono é fundamental para a saúde física e mental e a insônia já é considerada um problema de saúde pública, associada a quadros de A ciência do depressão, ansiedade e psicose. No Dossiê Mente e Cérebro – Ciência do sono, especialistas tratam desse fenômeno tão fascinante e complexo que é o adormecer, bem como das dificuldades nessa área. “A insônia representa hoje um dos distúrbios mais prevalentes na clinica medica. Sabemos que, em uma cidade como São Paulo, mais de 30% das pessoas sofrem com o problema”, afirma o coordenador do Laboratório do Sono do Hospital Português. A Organização Mundial da Saúde (OMS) ratifica: aproximadamente um terço da população mundial enfrenta problemas para dormir de forma satisfatória. As longas jornadas em vigília podem, ironicamente, prejudicar nosso tempo acordados, que tanto prezamos. Um estudo desenvolvido pelo psicólogo Ian Deary, da Universidade de Edimburgo, Escócia, já mostrou, por exemplo, que, depois de uma noite de plantão, a capacidade do médico de lembrar uma série de fatos – como resultados de exames e histórico do paciente – diminui quase 20%. Ou seja: de cada cinco informações, uma seria esquecida por causa do sono atrasado. Procure seu exemplar nas bancas ou compre na Loja Segmento: www.lojasegmento.com.br. D O S S I Ê
6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
1
psicologia • psicanálise • neurociência
SONO O que acontece quando adormecemos
A relação entre comida e descanso
Epidemia de insônia
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
14 CINEMA Um instante de amor por Nayara Cesaro Penha Ganhito
34/50 NEUROCIRCUITO Padrões mentais Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
52
Como recuperar as horas mal dormidas
Sonhos que nos preparam para a morte
CIÊNCIA PARA VIVER MELHOR
Aprendendo com os erros por Markus Ullsperger
78 LIVRO Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano por Hugo Lana
80 LIVROS/LANÇAMENTOS
Técnicas para estudar Existem muitas maneiras de estudar. Alguns preferem sublinhar trechos importantes dos textos, outros fazem várias leituras do mesmo conteúdo ou simulam testes e questionários. Mas o que de fato funciona para fixar informações? A edição nº 10 de NeuroEducação apresenta a visão da neurociência e da psicologia cognitiva sobre a eficácia de dez técnicas de estudo. O pesquisador Regan Gurung, professor de psicologia e desenvolvimento humano da Universidade de Wisconsin, autor do texto de capa da edição, reúne dicas valiosas para que professores compreendam como os seus alunos estão estudando e possam ajudá-los a utilizar estratégias comprovadamente mais eficazes. Nas bancas e na Loja Segmento: www.lojasegmento.com.br.
colunas 12 PSICANÁLISE Consumo e fantasia
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
por Christian Ingo Lenz Dunker
82 LIMIAR Visceral mente por Sidarta Ribeiro
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
agosto 2017 • mentecérebro
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palavra do leitor www.mentecerebro.com.br
Escritórios regionais: Brasília – Sonia Brandão (61) 3321-4304/9973-4304
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Spektrum der Wissenschaft Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 69126 Heidelberg, Alemanha Editor-chefe: Carsten Könneker Gerentes editoriais: Hartwig Hanser e Gerhard Trageser Diretores-gerentes: Markus Bossle e Thomas Bleck
MENTE E CÉREBRO
É muito bom que ESPECIAL | NOV AS ESTRATÉGIA Mente e Cérebro traga S PARA VENCER A DOR CRÔNICA na capa o tema do estresse (edição 294, de julho), dando ao assunto o peso que merece. Passei por uma situação bastante grave de pressão Atitudes aparen temente simples podem ter grande impacto no trabalho, que sob os efeitos graves re sobrecarga no trab da alho resultou em um sério e na vida pessoa l problema muscular, para enfrentar o acompanhado de um quadro de depressão (hoje atenuado) que durou dois anos. Com a ajuda inestimável da psicoterapia me reergui e hoje tenho clareza do meu processo de crescimento. Mas durante muito tempo achei que a situação que vivia na vida profissional, em uma empresa extremamente predadora, podia ser exagero meu. Quando percebi que as pessoas ao meu redor (colegas, colaboradores e até chefes imediatos) adoeciam mental e fisicamente, me dei conta de que eu precisava fazer coisas saudáveis por mim, sem me deixar contaminar pela “loucura organizacional”. Foi ótimo ler o artigo sobre o enfrentamento do estresse. Gratidão. Maria Elisa Cestari São Paulo – SP OX
OBESIDADE
Cirurgia bariátrica muda o corpo, mas não evita angústia
Cartas para a revista Mente e Cérebro: Rua Cunha Gago, 412 1o andar – São Paulo/SP CEP 05421-001 Cartas e mensagens devem trazer o nome e o endereço do autor. Por razões de espaço ou clareza, elas poderão ser publicadas de forma reduzida. PUBLICIDADE Anuncie na Mente e Cérebro e fale com o público mais qualificado do Brasil.
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[email protected] Editora Segmento Rua Cunha Gago, 412 – 1o andar São Paulo/SP – CEP 05421-001 www.editorasegmento.com.br Edição no 295, agosto de 2017, ISSN 1807156-2. Distribuição nacional: DINAP S.A. Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678.
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NEUROCIÊNCIA
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Os códigos secre tos da memória
SAÚDE
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O tempero que combate Alzheimer e Parkin son
ISSN 1807-1562
REDAÇÃO Comentários sobre o conteúdo editorial, sugestões, críticas às matérias e releases. redacaomec@editorasegmento. com.br tel.: 11 3039-5600 fax: 11 3039-5610
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estress e
CORRUPÇÃO E PSICOPATIA Quero sugerir um artigo que fale sobre o que acontece na cabeça de pessoas que se envolvem em corrupção, que egoisticamente prejudicam outras sem o menor peso na consciência. Penso que esse tipo de conduta possa se enquadrar num diagnóstico de psicopatia, mas seria interessante ir mais fundo para entendermos do ponto de vista da ciência esse comportamento que parece tão disseminado em nosso país. José Anderson Lima Goiânia - GO
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Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez
PARA PENSAR Olá! Eu me pergunto: uma mente condicionada por política, economia, filosofia, religião, cultura, nacionalismo, propagandas, sentimentalismo, crenças, descrenças e tantas outras coisas pode ser inteligente? Inteligência é uma reação condicionada? Ou inteligência é outra coisa e a confundimos com a memória condicionada? Se podemos recriar um processo, seja qual for, não é apenas imitação? Uma forma de cópia? Nisso pode existir originalidade? Ou criação, como algo jamais visto? É outra coisa? E não se sabe o que é? Uma ideia não
é o pensamento como resposta da memória? E nesse caso, a resposta pode ser inédita? Ou tão somente reação do conteúdo armazenado, programado, condicionado? Ideia é um fato? Podemos perceber que, ao olharmos qualquer coisa, esse olhar pode estar livre da palavra, da ideia do simbolismo? E ver realmente? Ou nós nos habituamos a ver, ouvir, etc. com o véu de ideias, sobre o fato? E desse jeito não estaremos embaraçados em ideias, promovendo apenas mais embaraços no viver? Questões para pensar. Abraços. Linda Seraos Via Facebook
EDIÇÃO ESPECIAL ANO XII
psicologia • psicanálise • neurociência
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A construção da
criatividade • O que atrai boas ideias • O papel dos grupos no processo criativo • Como a paixão nos impele a criar
CRIATIVIDADE Parabéns pelo Especial Criatividade, está muito bom. Celso Lozano São Paulo - SP
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO! Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
[email protected] ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. A premiada deste mês é Maria Elisa Cestari – São Paulo, SP
XEXPOSIÇÕES
Olhares e silêncios entre mães e filhas Inspirado no conceito de devastação, de Lacan, projeto fotográfico da artista Paula Huven capta interação íntima entre gerações de mulheres
paula huven
“DIFÍCIL” foi o comentário mais escutado pela artista depois das sessões de fotos, feitas por trás de um falso espelho
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associação livre
Devastação. Ateliê da Imagem Espaço Cultural.
Avenida Pasteur, 453, Urca, Rio de Janeiro. De segunda a sexta, das 10h às 21h; sábado, das 10h às 16h. Informações: (21) 2244-5660. Grátis. Até 20 de agosto.
divulgação
O
psicanalista Jacques Lacan usou o termo ravage, traduzido em português como “devastação”, para se referir à complexa relação entre mãe e filha e seu espelhamento nas experiências amorosas e na interação com o próprio corpo. “A filha espera mais substância de sua mãe do que de seu pai”, disse em um de seus seminários. A artista plástica mineira Paula Huven explora esse conceito no campo da arte na série Devastação – fotografias nas quais mães e filhas confrontam seus olhares. As duplas de mãe e filha que participaram do projeto se sentaram em frente a um falso espelho atrás do qual estava Paula com sua câmera. Assim permaneceram por cerca de 15 minutos, com a chance de se contemplar e confrontar seus olhares. Risadas, choro, desvio de olhar, toques e abraços estão entre as reações captadas nesse encontro, permeado por sentimentos de identificação e desconforto. “Difícil” foi uma das palavras mais escutadas pela artista depois da sessão de fotos. “Se o espelho um dia trouxe a confirmação de nossa diferença, hoje ele restitui o rasgo, transformando parte de um corpo no outro. O olhar que um dia separou hoje gera o encontro, para que, talvez, possamos novamente nos separar”, analisa a antropóloga Carolina Junqueira dos Santos, autora de texto crítico que acompanha os registros fotográficos.
OBRAS Em tempos de incerteza, o devaneio é a via de fuga (170 x 215 cm, à esquerda) e Encontro (190 x 315 cm, acima). A proposta do artista foi criar metáforas visuais para experiências psíquicas e sentimentos
As telas gigantes e perturbadoras de Fábio Magalhães
A
s imagens produzidas por Fábio Magalhães chamam atenção por serem ao mesmo tempo hiper-realistas e surrealistas – compará-las a impossíveis “fotografias do inconsciente” não seria exagero, considerando-se o processo criativo do artista na produção de Além do visível, aquém do intangível. A intenção de Fábio foi expressar experiências psíquicas e sentimentos em metáforas, o que resultou nas telas gigantes e oníricas expostas na Caixa Cultural em São Paulo. As obras foram separadas em cinco eixos temáticos: O grande corpo, Retratos íntimos, Superfícies do intangível, Latências atrozes e Limites do introspecto. “A pintura de Fábio Magalhães se constitui nesse lugar inquietante entre o visível, reconhecível e familiar e o inefável e intangível”, comenta a curadora Alejandra Muñoz. Além do visível, aquém do intangível. Caixa Cultural São Paulo. Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo. De terça a domingo, das 9h às 19h. Informações: (11) 3321-4400. Grátis. Até 24 de setembro.
agosto 2017 • mentecérebro
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associação livre XINCLUSÃO
Fotógrafa cria álbum sensorial de bebê para pais cegos gaúcha Márcia Beal, que produz ensaios fotográficos de gestantes e recém-nascidos, ficou surpresa quando recebeu em seu estúdio o casal Jorge e Carlise Vieira – ambos eram cegos, mas pretendiam fazer as fotos da filha para mostrar a amigos e à família. Ao fim do ensaio, Márcia teve a ideia de entregar algo além das fotografias ao casal. Jorge, aliás, cego desde o nascimento, não tinha a concepção do que pudesse ser uma foto. Assim, com a ajuda do designer Hayaks Winter e o artista visual Marco Escada, Márcia iniciou um projeto que entregaria aos pais nove meses depois – um álbum sensorial, com imagens tridimensionais do rosto do bebê Natália, de forma que os pais pudessem relembrar usando o tato, além de objetos (como lacinhos que a criança usou), texturas – como tecidos das roupas – e cheiro do perfume da criança. Textos em braile descrevem as cenas fotografadas, contando se a criança está dormindo, se sorri, que roupas usa, se está junto com os pais. Por enquanto, o álbum foi feito apenas para os pais de Natália. “O custo é alto e não fica financeiramente viável”,
O ENSAIO TRAZ IMAGENS em 3D do rosto da criança, textos em braile, texturas e aromas capazes de despertar lembranças
márcia beal
A
diz Márcia, que está à procura de apoio de empresas ou institutos para dar continuidade ao projeto e poder oferecer o serviço com preço acessível para pessoas com deficiência visual. “Lembrar-me de Jorge e Carlise dizendo que era a primeira vez que estavam vendo uma fotografia sem ser pelos olhos de outra pessoa me enche de emoção até hoje”, diz.
XTEATRO
Sobre conflitos familiares encedor do prêmio Pulitzer de melhor drama, Agosto ganha sua primeira adaptação para os palcos brasileiros. Mais conhecido por sua versão para o cinema, Álbum de família (2013), protagonizada por Meryl Streep e Julia Roberts, o texto de Tracy Letts conta a história de uma família
de mulheres cheia de ressentimentos, porém reunida novamente por causa do diagnóstico de câncer terminal da mãe e do repentino desaparecimento do pai. A protagonista Violet espera pela morte depois de enfrentar um longo processo de quimioterapia e descobre que ficará aos cuidados de uma empregada que não conhece. O texto foca o período de breve convivência dela com as três filhas, que se reúnem para saber o que fazer. A mãe não consegue esconder a mágoa por sua preferida, a mais velha, ter voltado para casa apenas depois de saber que o pai sumiu durante esse período turbulento. Ainda há o conflito entre a filha do meio, que abdicou da própria vida para cuidar dos pais idosos, e a mais jovem, que coloca seus projetos pessoais à frente de qualquer demanda da família. Agosto. Teatro Oi Futuro Flamengo. Rua Dois de Dezembro,
63, Flamengo, Rio de Janeiro. De quinta a domingo, às 20h. Informações: (21) 3131-3060. R$ 30. Até 17 de setembro.
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silvana marques
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o que há para ver e ler
| na rede
Mãe de criança com síndrome de West escreve diário nas redes scrito com a intenção de dividir sua experiência com outros pais e também de elaborar suas vivências, o blog Diário da mãe da Alice fala sobre as experiências da jornalista Mariana Rosa, mãe da garotinha de 3 anos que dá título ao blog e páginas na rede, que tem síndrome de West, um tipo raro e severo de epilepsia na infância, que afeta o desenvolvimento. Nas redes, Mariana compartilha suas pesquisas sobre tratamentos e formas de entender e lidar com os sintomas, as idas constantes ao hospital e fala sobre inclusão. Referência virtual para famílias com crianças com o mesmo distúrbio, ela lançou recentemente, com ajuda de financiamento coletivo de seus leitores, livro homônimo (editora Scrittore, R$ 35,00), uma coletânea de crônicas sobre Alice e sua experiência em ser mãe de uma criança com deficiência: diariodamaedaalice.wordpress.com. A JORNALISTA Mariana Rosa fala sobre inclusão e o cotidiano de cuidados com a filha
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E
EM QUATRO CAPÍTULOS, psicanalistas falam sobre os fundamentos da teoria do inconsciente
Série do Museu Freud explica conceitos de psicanálise
reprodução
O
que é inconsciente? O que significam termos como complexo de Édipo e ego? Esses são alguns dos temas abordados de forma didática e acessível na série O que é psicanálise, produzida pelo Museu Freud em Londres. Cinco psicanalistas europeus esclarecem essas dúvidas, divididas em quatro capítulos: fundamentos da abordagem psicanalítica (trata, entre outros temas, da concepção de inconsciente e do método de associação livre), estágios psicossexuais do desenvolvimento, a mãe como objeto primordial de amor e definições de id, ego e superego. A série foi legendada em português pelo núcleo de estudos em psicanálise Elabora e está disponível no canal Elabora Psicanálise, no YouTube. agosto 2017 • mentecérebro 11
psicanálise
inconsciente a céu aberto
Consumo e fantasia
Q
uem observa o mundo corporativo a média distância, com alguma ciência da complexidade representada por assuntos como motivação, emoção ou liderança, percebe um grande descompasso. A exigência de controle, verificabilidade e “compliance” dos processos não é compatível com o universo errático dos palestrantes, dos livros de gerência miraculosa ou com os discursos “neuroeconômicos” sobre o capital humano. Ao mesmo tempo é preciso um discurso e uma linguagem que tornem o consumo, a realização, a expressão e a invenção de nossas fantasias. Decisões sobre campanhas de marketing e suas escolhas discursivas são tomadas em meio a palpites sustentados pela arrogância personalista dos envolvidos. É neste cenário que os livros de Isleide Fontanelle, Cultura do consumo (FGV, 2017), e Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional, de Luiz Aidar (Estação das Letras e Cores, 2017), surgem como um oásis de sobriedade. Uma caravana de lucidez atravessando o deserto das opiniões. A relação econômica entre produção, a estilística identitária do consumo e os prazeres emocionais nele envolvidos são analisados de forma convergente. No primeiro caso se reconstitui um debate que remonta ao nascimento do liberalismo com Adam Smith e sua noção de interesse, retirada de Mandeville, este, médico e filósofo do século 17, que escrevia como a supressão de nossos desejos pode nos 12
fazer adoecer. As disciplinas do consumo dividem-se, desde a origem, entre o marketing e a psicologia comportamental de um lado e as relações públicas e a psicanálise do outro. O papel de Edward Bernays, sobrinho de Freud, na criação do negócio da propaganda nos Estados Unidos do pós-guerra é recuperado, com o intrigante caso sobre como as mulheres são levadas a fumar como um “ato de libertação”. Também não se deixará de lado que John Watson, criador do behaviorismo e mentor de Skinner, deixou suas atividades acadêmicas para integrar o mundo da publicidade. A emergência e consolidação da cultura do consumo (1945-1990), bem como suas formas contemporâneas marcadas pelo consumo de experiências, pelo prossumo (fusão do produtor com o consumidor), pelo consumo consciente, responsável, verde, sustentável, ético ou ativista, não pode ser compreendida sem o entendimento do capitalismo em sua forma imaterial, baseado na força da marca, na cultura estruturada como entretenimento, no branding e no papel identitário e expressivo do consumo, particularmente, com a vida digital. Escritos de forma envolvente e convincente, os dois livros têm um
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
mérito adicional para o leitor brasileiro, pois concorrem para profissionalizar a discussão sobre o consumo e os meios de comunicação, mostrando como muito além da prática há um conjunto de problemas mais ou menos recorrentes nesta matéria, para a qual economia e sociologia ou antropologia e psicologia não podem ser dispensadas. A passagem de uma sociedade da produção para uma cultura do consumo inverterá o papel do Supereu, de interditor para o de instância que nos obriga a gozar, nos levando assim à obrigação de felicidade. Como um carro que acelera e freia, como uma educação que teme o consumismo assim com a exclusão do mercado, que detesta logomarcas até transformar o próprio eu em uma delas, que quer a liberdade do consumo sem pagar por isso, sem incorporar sua substância perigosa. Assim, o circuito do consumo é, necessariamente, ambíguo, paradoxal e cínico. Sua estrutura precisa ser a da fantasia para nos fazer acreditar, mas não muito. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto), shutterstock (imagem)
A relação com produtos é ambígua, paradoxal e cínica; esse cenário inverte o papel do Supereu, que passa de interditor para o de instância que nos obriga a sermos felizes
cinema
UM INSTANTE DE AMOR 120 min – França, 2016 Direção: Nicole Garcia Elenco: Marion Cotillard, Louis Garrel, Alex Brendemül
Uma pedra no caminho do amor Sob a óptica de mulheres, tanto na direção quanto no roteiro, filme trata de facetas atualmente não óbvias do feminino, mas bastante presentes no universo das relações contemporâneas por Nayra Cesaro Penha Ganhito
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Diz-se que a histeria
m instante de amor, ambientado nome original do filme é Mal de pierres, como “feminismo no interior da França dos anos numa alusão a pedras (ou cálculos) espontâneo” é a 50, recorre a uma estratégia desconcerrenais. A mãe, que mantém a moça sob tante para abordar o desejo feminino. neurose mais plástica estreita vigilância, impõe a ela a escolha Acompanhamos na tela a narrativa a internação num sanatório e o em sua apresentação. entre clássica, o belo desempenho de Marion casamento com um pedreiro, o calado É possível que Cotillard e a fotografia cuidadosa, mas José, que surpreenderá quem assiste ao as luzes se acendem e estranhamos filme. Gabrielle escolhe o casamento, sua expressão seu aparente anacronismo: o que mas declara que não tem amor pelo assuma hoje levou a diretora a filmar essa história rapaz e não fará sexo com ele. novas roupagens em pleno século 21? O “drama de A jovem ama a palavra escrita. Lê época” seria um convite à reflexão a e escreve com avidez, como forma – na depressão, no respeito do que mudou para as mulhede expressão e escoamento de suas pânico, na anorexia res após décadas de emancipação? A angústias, sobretudo em cartas de ou apenas nas liberação sexual e o acesso ao mundo amor carregadas de erotismo. Escrita do trabalho teriam nos protegido das repetitivas histórias bruta, urgente, sem outro escopo sedemandas de nosso próprio desejo? A não o endereçamento das exigências tumultuadas história de Gabrielle se apresenta tamde sua paixão. Apesar de bela, sua esde amores bém como história clínica. A premente crita não chega a ser uma saída subliinsatisfatórios necessidade de amar – e ser amada matória, nem oferece para Gabrielle pelos homens – é desorganizadora uma aspiração ao ofício de escritora. tanto para a personagem quanto para o A personagem continua à espreita meio familiar e social provinciano no qual ela vive. Sua alma daquilo que não acredita encontrar na relação com o madramática, o erotismo exacerbado sem vias de satisfação, a rido. Entretanto, engravida dele e sofre um aborto; uma atração pelo impossível e suas misteriosas dores remetem à crise renal diagnosticada nesse contexto a leva à internanoção de histeria na teorização freudiana sobre o feminino. ção numa clínica de águas termais na Suíça, na melhor A jovem não escapa da intervenção médico-psiquiátrica: tradição da época. “Ela tem estas cãibras”, diz sua mãe ao médico. “Mas com É onde encontrará, finalmente, seu instante de amor: ela nunca sabemos se é de verdade ou se é fingimento.” O a realização plena, amorosa e sexual na figura de um te-
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divulgação
nente amante da música e da literatura. Embora seduzido pela jovem, trata-se de um homem impotente em face da doença e da morte anunciada. O ardente desejo da jovem fará desse limite o objeto de uma verdadeira recusa (um mecanismo de defesa radical descrito por Freud que retira de um fato ou representação seu significado, a fim de evitar seu efeito potencialmente traumático; para isso, toda a parte da realidade ligada ao elemento desagradável é recusada também). Essa experiência ressignifica toda a trama a posteriori: nem tudo é o que parece e a cura virá de onde menos se espera, embora ainda sob a égide do amor e da maternidade, como na resolução clássica da feminilidade preconizada por Freud, hoje questionada. Podemos especular a respeito das Gabrielles de nosso tempo. A abolição da noção de neurose dos compêndios psiquiátricos pode ter mitigado estigmas ligados à histeria, desde a Antiguidade ligada às mulheres e ao feminino (hysterus = útero) e fonte de equívocos e preconceitos. Mas o mal-estar sobrevive, separado da sexualidade, disperso nos diagnósticos de transtorno dissociativo, de humor ou compulsivo agora despidos de seu fundo conflituoso. Os médicos do filme são homens – um responde às demandas da mãe de domar e adequar o comportamento da filha; o segundo afirma secamente: “Não nos interessamos por sua vida privada”. A paixão da protagonista, medicalizada, talvez não fosse escutada hoje mais do que foi no sanatório. Diz-se que a histeria como “feminismo espontâneo” é a neurose mais plástica em sua apresentação, uma
vez que responde diretamente às imposições culturais. É possível que sua expressão assuma hoje novas roupagens – na depressão, no pânico, na anorexia ou apenas nas repetitivas histórias tumultuadas de amores insatisfatórios. As saídas sublimatórias no mundo do pensamento e do trabalho poderiam erotizar outros campos da existência, oferecendo certa satisfação pulsional. Talvez não adoecesse de amor, sendo a sexualidade menos proibida e já não circunscrita às relações monogâmicas. Entretanto, os mistérios do amor e do desejo persistem numa era que se quer pragmática e libertária, e com eles os impasses nos encontros. Em vez da repressão, lidamos com imperativos de gozo; idealizações do amor romântico coexistem com as relacionadas à experimentação e à liberdade; o sexo não resolve as vicissitudes da escolha do objeto amoroso e o tipo de relação estabelecida com ele. Restos transgeracionais de séculos de patriarcado garantem não apenas que Gabrielles ainda estão por aí, mas que todas nós somos um pouco Gabrielle. Nesse filme, mãos femininas na direção e no roteiro permitem que o drama de época transponha o tempo, reconhecendo na mulher – tantas vezes retratada pelo olhar masculino – sua condição de sujeito. A mesma que possibilitaria uma aventura psicanalítica capaz de escutar a feminilidade em seus determinantes contemporâneos. NAYRA CESARO PENHA GANHITO é psiquiatra e psicanalista, professora do curso de psicopatologia psicanalítica na clínica contemporânea (módulo sono-sonhos), do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. agosto 2017 • mentecérebro 15
genética e saúde mental
Ao longo do tempo A maneira como percebemos truques visuais oferece pistas sobre as mudanças que ocorrem no cérebro à medida que envelhecemos
por Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde
OS AUTORES STEPHEN L. MACKNIK e SUSANA MARTINEZ-CONDE são professores de oftalmologia do Centro Médico SUNY Downstate, em Nova York. São coautores de Truques da mente (Zahar, 2011).
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s anos passam e começamos a sentir alterações significativas na percepção óptica, mesmo sem desenvolver nenhum tipo de doença ocular ou até algum transtorno mental. Muita gente passa a ter dificuldade com atividades diárias simples, como dirigir com segurança, caminhar em terreno irregular ou subir e descer escadas. Infelizmente, os mecanismos subjacentes aos prejuízos relacionados com a idade no modo como assimilamos informações não são bem compreendidos. Há poucos estudos sobre os tipos de mudanças perceptivas que ocorrem na fase adulta, particularmente em indivíduos mais velhos. E existem ainda menos pesquisas que correlacionam essas alterações com funções cognitivas e movimentos oculares. Mas as ilusões visuais começam a oferecer dados importantes sobre isso. Sabemos que mecanismos ópticos e neurais específicos servem de mediadores de determinados truques visuais; por isso, a forma como a percepção muda com a idade fornece indícios de como o envelhecimento pode afetar populações de células cerebrais relacionadas. Essas alterações sugerem também que as ilusões não são apenas um acidente ou erro de evolução, mas fazem parte do modo como assimilamos informações. E o desgaste com a idade (que, deixemos claro, permite que o observador veja o mundo de forma mais precisa) indica que alguns aspectos da percepção ilusória podem sobreviver por mais tempo. Essa vantagem se torna menos importante à medida que as funções cognitivas diminuem com o passar dos anos. Outros tipos de prejuízos visuais podem nos ajudar a entender a neurodegeneração que ocorre enquanto o cérebro envelhece. No entanto, ilusões podem se destacar em relação a outros biomarcadores ópticos, porque os cientistas da visão com idade mais avançada – eles mesmos especialistas em percepção ilusória – estão profundamente conscientes de que as próprias observações muitas vezes não combinam com as dos participantes mais jovens de seus experimentos. Uma coisa agosto 2017 • mentecérebro 17
genética e saúde mental
EM MOVIMENTO: ilustracão criada pelo neurocientista e engenheiro Jorge Otero-Millan
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é ter dor nas costas ou perder a capacidade de correr 1,5 quilômetro em oito minutos ou, ainda, ter problemas para memorizar números de telefone. Essas coisas são irritantes. Mas, quando o cérebro deixa de captar alguns sentidos, como as novas e fascinantes ilusões que apresentamos aqui (especialmente quando os colegas mais jovens se mostram animados), a situação pode ficar desanimadora. Certamente, a dificuldade está relacionada com a mente, o que faz esses neurocientistas se perguntarem se não estão perdendo lentamente a capacidade cognitiva. O psicólogo Lothar Spillmann, atualmente professor visitante da Universidade Nacional de Taiwan, é um exemplo disso. Ele passou a maior parte de sua carreira na Universidade de Freiburg. Então completou 65 anos (idade de aposentadoria obrigatória no sistema universitário alemão) e teve de disputar um emprego continuado no exterior. Agora, com 77, ele continua sendo um cientista bastante produtivo e uma figura internacional respeitada no campo da ciência perceptiva. Referência mundial na área, o psicólogo descobriu diversas e importantes “falsas impressões”, como na ilusão de OuchiSpillmann, que produz efeito de movimento. Então, você pode imaginar a preocupação de Spillmann quando descobriu (no mesmo ano em que se aposentou na Alemanha) que era cego para a ilusão provavelmente mais significativa das duas últimas décadas, as “cobras que giram”, de Akiyoshi Kitaoka.
COBRAS NO CÉREBRO A maioria das pessoas que visualizam as cobras que giram (apresentadas na forma de um cérebro pelo neurocientista e engenheiro Jorge Otero-Millan) percebe a ilusão. O geneticista e pintor Alex Fraser e a bióloga Kimerly J. Wilcox, ambos da Universidade de Cincinnati, descobriram esse tipo de movimento ilusório em 1979, quando provocaram um efeito de arranjos espirais repetitivos em forma de dentes sombreados. O truque visual de Fraser e Kimerly não foi tão eficaz quanto as cobras que giram, desenvolvidas mais de 20 anos depois por Akiyoshi Kitaoka, mas gerou diversas ilusões relacionadas. Essa família de fenômenos perceptivos caracteriza-se pela composição, em intervalos regulares, de manchas coloridas ou em tons de cinza e de brilhos específicos. Em 2005, o neurocientista Bevil R. Conway e seus colegas, então da Escola Médica Harvard, mostraram que o layout ilusório de Kitaoka ativa os neurônios sensíveis ao movimento do córtex visual, ofe-
jorge otero-millan (brain-shaped rotating snakes illusion ); from “anew motion illusion: the rotating-tilted-lines illusion,”by simone gori and kai hamburger, in perception, vol. 35, nº. 6; june 2006 (rotating-tilted-lines illusion); from “a new visual illusion of relative motion,” by baingio pinna and gavin j. brelstaff, in vision research, vol. 40, nº. 16; july 1, 2000 (pinna illusion)
PESSOAS MAIS VELHAS percebem rotação menos enganosa do que os mais novos
recendo uma base cerebral para o porquê de a maioria de nós perceber a rotação: vemos as cobras girar porque nossas células neurais visuais respondem como se estivéssemos na presença de um deslocamento real. Em nossa própria pesquisa, com Otero-Millan, agora um colega de pós-doutorado da Universidade Johns Hopkins, encontramos uma relação direta entre a percepção de giro e a produção de movimentos oculares transitórios, como o piscar das pálpebras e pequenas ações involuntárias, chamadas de microssacadas. Será que falhas na atividade ocular relacionadas com a idade podem explicar por que Spillmann e outras pessoas mais velhas têm dificuldade para enxergar as “cobras” girar? Talvez. Mas a ilusão de Ouchi-Spillmann, que ele ainda percebe, parece depender também do funcionamento dos olhos. Portanto, é provável que certos processos visuais, como a percepção e a adaptação de movimento, além da assimilação de brilho (também suscetíveis ao envelhecimento), estejam envolvidos de maneira diferente com cada ilusão. Ou a perda associada com a idade talvez reflita uma combinação de prejuízos oculomotores e visuais. ANO APÓS ANO Em um estudo de 2009, a psicóloga Jutta Billino e os psicólogos Kai Hamburger e Karl Gegenfurtner, da Universidade Giessen Justus Liebig, na Alemanha, aplicaram uma bateria de testes com truques visuais envolvendo o
movimento, como as cobras que giram, em 139 indivíduos, tanto jovens, quanto idosos. Eles observaram que os participantes mais velhos percebiam uma rotação menos enganosa do que os mais novos, não apenas na ilusão das cobras, mas também nas “linhas que giram inclinadas”, retratadas acima à esquerda. Para experimentar esse truque visual, mova sua cabeça para a frente e para trás, fixando o olhar na área central (ou, como alternativa, mantenha o pescoço imóvel e mexa a tela ou página que está lendo). A maioria dos adultos jovens visualiza um deslocamento que não é real: o anel gira em direção às regiões central e circundante. Mas a ilusão de Pinna, que foi a primeira a criar efeito de movimento rotativo (à direita), funciona para a maioria dos observadores, independentemente da idade: ao mover sua cabeça (ou a imagem) para a frente e para trás, você verá os anéis internos e externos girando em direções opostas. Seja o que for que altere essas várias percepções à medida que os anos passam, não se trata simplesmente de uma falha na assimilação de movimentos ilusórios, mas reflete mudanças contínuas no cérebro e no sistema visual. Esperamos que essas descobertas conduzam a pesquisas futuras e a uma compreensão mais complexa dos mecanismos subjacentes a esse tipo de percepção, bem como os efeitos neurodegenerativos específicos do envelhecimento em diferentes circuitos neurais.
PARA SABER MAIS The neuroscience of illusion. Susana MartinezConde e Stephen L. Macknik, em Scientific American, edição especial, vol. 20, nº 13, págs. 4-7; inverno de 2013. Microsaccades and blinks trigger illusory rotation in the “rotating snakes” illusion. Jorge Otero-Millan, Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde, em Journal of Neuroscience, vol. 32, nº 17, págs. 60436051; 25 de abril de 2012. Age effects on the perception of motion illusions. Jutta Billino, Kai Hamburger e Karl Gegenfurtner, em Perception, vol. 38, nº 4, págs. 508-521; 2009. Neural basis for a powerful static motion illusion. Bevil R. Conway, Akiyoshi Kitaoka, Arash Yazdanbakhsh, Christopher C. Pack e Margaret S. Livingstone, em Journal of Neuroscience, vol. 25, nº 23, págs. 56515656; 8 de junho de 2005. Perception of illusory movement. Alex Fraser e Kimerly J. Wilcox, em Nature, vol. 281, págs. 565-566; 18 de outubro de 1979. Japanese optical and geometrical art. Hajime Ouchi. Dover Publications, 1973.
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sono
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Andarilhos
noturnos Há muito, o comportamento de pessoas que caminham, comem e até conversam dormindo, como se estivessem num sonho, intriga tanto cientistas quanto leigos. Em algumas situações, os sonâmbulos podem ter ações agressivas sem a menor consciência do que fazem
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sonambulismo está aumentando. Segundo psiquiatras da Universidade Stanford, só nos Estados Unidos 8,4 milhões de adultos – o que representa 3,6% da população americana com mais de 18 anos – têm tendência ao sonambulismo. Especialistas falam de um aumento de 2% no número encontrado pelos mesmos autores há uma década. Um subgrupo desses andarilhos noturnos pode ser perigoso para um fenômeno preocupante e arriscado: a violência no sono. O sonambulismo agressivo na população geral gira em torno de 2%, segundo pesquisas conduzidas nos Estados Unidos e na Europa. Nem todos os sonâmbulos exibem comportamento agressivo – e o que causa essa reação ainda é um mistério –, mas identificam-se três distúrbios associados à violência no sono. Em transtornos de sonambulismo, a pessoa opera em um estado mental que fica entre o sono e o despertar, apresentando comportamentos complexos sem consciência evidente. Em comparação, pessoas com epilepsia noturna do lobo frontal experimentam ações inadvertidamente violentas, repetitivas e breves, como correr ou chutar, que precedem uma convulsão. Um terceiro problema, o distúragosto 2017 • mentecérebro 21
sono
Noites em claro podem causar distúrbios psiquiátricos A privação de sono causa rearranjos no circuito neural, o que torna as pessoas mais sujeitas a perturbações mentais Não há dúvida de que as pessoas precisam dormir. A qualidade do descanso está associada a várias disfunções físicas e psíquicas, desde problemas no sistema imunológico, déficits cognitivos, até o descontrole do peso. “Quase todas as desordens psiquiátricas mostram alguns problemas com o sono”, avalia o psicólogo Matthew Walker, da Universidade da Califórnia. Antigamente os pesquisadores acreditavam que problemas psiquiátricos é que desencadeavam problemas do sono. Novas pesquisas, no entanto, sugerem que o que ocorre, na verdade, é o inverso. Ou seja, problemas com o sono é que podem causar distúrbios mentais. A equipe de Walker e seus colaboradores da faculdade de Medicina da Universidade Harvard chegaram a essa conclusão, publicada recentemente na Current Biology, depois de estudarem 26 estudantes saudáveis, com idades entre 24 e 31 anos, que passaram algumas noites acordados (estudando) ou dormindo a noite toda. Desse total, 14 voluntários ficaram 35 horas seguidas sem “pregar os olhos” antes de serem submetidos a um exame de ressonância magnética funcional (fMRI, na sigla em inglês) que esquadrinhava o cérebro dos participantes enquanto viam um conjunto de 100 fotos que se tornavam gradativamente mais perturbadoras. As primeiras imagens eram fotos de cestos de vime vazios sobre uma mesa; depois, de uma tarântula sobre o ombro de uma pessoa e, finalmente, fotos de vítimas de queimaduras e outros acidentes traumatizantes. Os pesquisadores monitoraram principalmente a amígdala – uma estrutura cerebral que decodifica a emoção – e observaram que os dois grupos de voluntários exibiam o mesmo padrão de atividade cerebral quando eram mostradas imagens leves. Mas, quando as cenas se tornavam mais assustadoras e violentas, a amígdala dos que tiveram privação do sono “surtou”, mostrando atividade 60% maior que em relação à resposta normal. Além disso, os pesquisadores observaram que entre os que ficaram sem dormir havia cinco vezes mais neurônios transmitindo impulsos no cérebro. 22
Walker descreveu a resposta emocional ampliada, quando se está cansado, como “profunda”. “Nunca vimos uma diferença tão grande entre dois grupos em nossos estudos anteriores”, comentou. A equipe também verificou os resultados da fMRI para determinar se qualquer outra região do cérebro tinha um padrão similar de atividade, o que indicaria que as regiões do cérebro estavam se comunicando. Nos participantes normais, a amígdala parecia estar interagindo com o córtex medial pré-frontal – uma camada externa do cérebro que ajuda a contextualizar experiências e emoções. Mas nos cérebros cansados, a amígdala parecia estar “reconectada” a uma área do cérebro chamada locus coeruleus, que secreta norepinefrina – um precursor do hormônio adrenalina que aciona reações do tipo atacar ou fugir. “O córtex medial pré-frontal é um policial do cérebro emocional”, observa Walker. “Ele nos torna mais racionais. A conexão inibidora piora quando as pessoas sofrem privação de sono. A amígdala parece ser capaz de ser estimulada repentinamente. Pessoas nesse estado parecem exibir um comportamento emocional pendular, passando de aborrecidas ou irritadas a apáticas ou sonsas, momentaneamente.” “Parece haver uma relação causal entre o sono afetado e alguns transtornos psiquiátricos”, comenta Robert Stickgold, professor associado de psiquiatria na Universidade Harvard, não envolvido no estudo. Ele menciona pesquisas relacionando a apneia do sono (quando a respiração é interrompida) com déficits de atenção, hiperatividade e evidências de conexão entre depressão e insônia como exemplos. “Pode ser que regiões mediais frontais enviem ao resto do cérebro comandos para relaxar circuitos extremamente cansados ou alterados pela falta de sono”, diz. A equipe de Walker, agora, planeja examinar os efeitos da interrupção de certos tipos de sono, como o REM ou o de ondas lentas. “Acredito que podemos começar a pensar em uma nova função para nosso cérebro, ao dormir: parece mesmo que, entre outras coisas, o sono, na verdade, prepara o cérebro para as interações sociais e emocionais do dia seguinte”, diz o cientista.
bio comportamental do sono REM (sigla em inglês para “movimento rápido dos olhos”), ocorre quando os centros de movimento no tronco cerebral – que criam paralisia durante o sono profundo – se deterioram, geralmente devido a uma doença do sistema nervoso, como Parkinson. Sem essa paralisia, o corpo fica livre para se mover e agir como se estivesse no sonho, causando ferimentos acidentais tanto a quem dorme quanto à pessoa com quem divide a cama. Há alguns anos, o pesquisador Eric Olson, do Centro Mayo de Distúrbios do Sono, revisou os registros de 93 pacientes com o distúrbio comportamental do sono REM e descobriu que 64% atacaram seus cônjuges e 32% haviam se machucado durante o sono. Como várias doenças podem estar por trás da violência no sono, investigar os incidentes é compreensivelmente difícil. O pesquisador Michael Cramer Bornemann, especialista em sono do Centro Regional de Distúrbios do Sono de Minnesota, e seus colegas do Sleep Forensics Associates já lidaram com mais de 200 casos forenses relacionados a distúrbios do sono, geralmente a pedido da lei. Desses casos, apenas os de sonambulismo foram associados a comportamentos criminosos. Ele estima que cerca de um terço das situações registradas envolve sedativos, como o Ambien, que podem aumentar o risco de transtornos de sonambulismo. Em um estado que fica entre o despertar e o adormecer, essas pessoas podem caminhar, comer, ou até dirigir enquanto dormem. Porém, mesmo sendo possível avaliar a probabilidade de alguém ter distúrbios de sono, decidir se aquele indivíduo estava acordado ou dormindo durante um incidente específico é outra história. Em 1997, Scott Falater, do estado do Arizona, esfaqueou repetidamente sua mulher e a empurrou na piscina do casal. Quando a polícia – acionada por um vizinho – chegou, Falater parecia inconsciente do que havia acontecido com sua mulher. Ele alegou estar adormecido durante o incidente. A psicóloga Rosalind Cartwright – consultada pela defesa de Falater – escreveu um relatório do caso, fazendo um paralelo com um assassinato por sonambulismo no Canadá. Nos dois casos, o assassino não ti-
É praticamente impossível – e eticamente problemático – reconstruir as circunstâncias de uma dada noite ou induzir um paciente a caminhar ou falar enquanto dorme nha motivo aparente e era conhecido por ter uma relação positiva com a vítima. Os dois homens alegaram não se lembrar do ataque. Cartwright acrescenta que essas pessoas estavam passando por intenso estresse pessoal e privação de sono na época do ataque, o que aumenta o risco de distúrbios do sono. Falater estava tomando pílulas de cafeína pela primeira vez em muitos anos. Cartwright observou que a adição desse estimulante à sua rotina diária pode ter aumentado ainda mais o risco de ter o sono interrompido. Os julgamentos, porém, tiveram resultados muito diferentes. Enquanto o caso do Canadá acabou em absolvição, os jurados ficaram céticos em relação à história de sonambulismo de Falater. Ele foi considerado culpado de homicídio e condenado à prisão perpétua. Como Cartwright aponta no relatório, não existe teste único para diagnosticar transtornos do sono com certeza. Ela conduziu uma bateria de testes psicológicos e quatro noites de estudos antes de testemunhar que um distúrbio do sono poderia estar envolvido no caso de Falater. Mesmo assim, é praticamente impossível – e eticamente problemático – reconstruir as circunstâncias de uma dada noite ou induzir um paciente a caminhar ou falar durante o sono. Cramer Bornemann salienta que a violência no sono apresenta desafios importantes para o sistema legal. Apesar de o sistema atual reconhecer apenas a mens rea, uma mente culpada é requisito para um ato culposo – talvez a compreensão tudo-ou-nada da mente seja inapropriada. Em vez disso, a violência no sono pode ser mais bem explicada em termos de níveis de consciência, despertar, autocontrole e sono.
D O S S I Ê
psicologia
psicanálise
1
neurociência
A ciência do
SONO O que acontece quando adormecemos A relação entre comida e descanso Epidemia de insônia
Leia mais assuntos relativos a este tema no Dossiê Mente e Cérebro – Sono, já nas bancas.
Como recuperar as horas mal dormidas Sonhos que nos preparam para a morte
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Artimanhas do
cérebro teimoso Boas ideias são sempre bem-vindas, mas algumas linhas de raciocínio podem bloquear outras melhores ainda – e nos prender a determinados padrões de pensamento. Enquanto refletimos sobre determinada questão, a tendência de nos atermos a ideias familiares pode inibir soluções ainda mais promissoras. Entender como esse processo funciona ajuda a evitar armadilhas cerebrais por Merim Bilalić e Peter McLeod
OS AUTORES MERIM BILALIć é doutor em psicologia, professor de ciência cognitiva na Universidade de Klagenfurt, na Áustria, e pesquisador sênior associado da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Sua pesquisa sobre o efeito Einstellung ganhou o Prêmio da Sociedade Psicológica Britânica para Contribuições Excepcionais de Pesquisa Médica para a Psicologia em 2008. PETER MCLEOD é doutor em psicologia, membro emérito da Universidade de Oxford. É presidente da Fundação Oxford para Neurociência Teórica e Inteligência Artificial. agosto 2017 • mentecérebro 25
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m um experimento clássico de 1942, o psicólogo americano Abraham Luchins pediu a voluntários que fizessem alguns exercícios básicos de matemática visualizando mentalmente jarros de água. Considerados três recipientes vazios, com diferentes capacidades, os voluntários deveriam calcular como transferir precisamente determinada quantidade de água entre as vasilhas. Os participantes podiam encher e esvaziar cada jarro quantas vezes quisessem, mas tinham de colocar o líquido até o limite dos recipientes. A solução era simples: primeiro, encher o segundo jarro, que era o maior deles, depois esvaziá-lo no primeiro e, finalmente, encher o terceiro recipiente duas vezes. Luchins apresentou aos seus voluntários vários outros problemas que podiam ser resolvidos essencialmente com os mesmos três passos. Eles realizaram as tarefas rapidamente. Mas, quando o psicólogo apresentou um desafio com uma solução mais simples e rápida que as anteriores, os voluntários não conseguiram enxergá-la. Dessa vez, Luchins pediu aos participantes que distribuíssem 20 unidades de água utilizando recipientes com capacidade de 23, 49 e três unidades de líquido. A solução é óbvia, certo? Basta encher o primeiro jarro e esvaziá-lo no terceiro: 23 - 3 = 20. Mas muitas pessoas insistiram em resolver o problema mais fácil do jeito antigo, esvaziando o segundo recipiente no primeiro e depois duas vezes no terceiro: 49 - 23 - 3 - 3 = 20. Quan-
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do Luchins lhes deu um problema com uma solução de dois passos, mas impossível de ser resolvido com o método de três etapas ao qual os voluntários haviam se acostumado, a maioria desistiu dizendo que era impossível. O experimento dos jarros de água é um dos exemplos mais famosos do efeito Einstellung (fixação funcional): a persistente tendência do cérebro de se ater a uma solução familiar para resolver um problema – aquela que primeiro vem à mente – e ignorar outras possibilidades. Frequentemente esse tipo de raciocínio é um processo cognitivo útil. Por meio desse processo, denominado heurística, a pessoa encontra um método bem-sucedido para, por exemplo, descascar uma laranja – e não há motivo para tentar uma série de técnicas diferentes toda vez que precise novamente tirar a casca da fruta. O problema com esse atalho cognitivo é que ele pode inibir a busca de soluções mais eficientes ou apropriadas. Com base no trabalho inicial de Luchins, psicólogos replicaram o efeito Einstellung em vários estudos laboratoriais que envolveram tanto novatos como experts em áreas específicas e a avaliação de uma gama de habilidades mentais. Mas como e por quê exatamente o efeito ocorria nunca havia ficado claro. Recentemente, ao registrarmos os movimentos oculares de enxadristas altamente qualificados, desvendamos o mistério. Ocorre que pessoas sob a influência desse atalho cognitivo ficam literalmente cegas para certos detalhes que poderiam oferecer solução
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mais eficaz. Novas pesquisas sugerem também que muitas propensões cognitivas descobertas por psicólogos, como as que ocorrem em uma sala de tribunal e nos hospitais, por exemplo, de fato são variações do efeito Einstellung. VOLTA À ESTACA ZERO Desde o início dos anos 90, psicólogos têm estudado o efeito Einstellung ao recrutar enxadristas de vários níveis de habilidade, de amadores a grandes mestres. Nesses experimentos, pesquisadores apresentaram aos jogadores disposições específicas de peças de xadrez em tabuleiros virtuais e lhes pediram que chegassem ao xeque-mate com o menor número possível de lances. Os nossos estudos, por exemplo, confrontaram enxadristas peritos com cenários em que poderiam realizar jogadas sofisticadas usando uma sequência bem conhecida, chamada “mate sufocado” (ou mate de Philidor). Nessa manobra de cinco lances, a rainha é sacrificada para atrair uma das peças do adversário para uma casa com o objetivo de bloquear a rota de fuga do rei. Os jogadores tinham também a opção de colocar o rei em xeque-mate em apenas três lances, com uma sequência muito menos familiar. Como nos estudos dos jarros de
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Muito além do que os olhos veem O jogo intelectualmente exigente de xadrez provou ser um meio excelente para psicólogos estudarem o efeito Einstellung – a tendência do cérebro de se ater a soluções que já conhece em vez de procurar por outras potencialmente superiores. Experimentos mostram que essa propensão cognitiva literalmente muda a forma como até enxadristas experientes veem o tabuleiro à sua frente. Dispositivos de monitoramento ocular revelaram que, assim que enxadristas identificaram o mate sufocado como uma solução, passaram muito mais tempo olhando para as casas relevantes para essa manobra familiar (laranja), que para casas pertinentes à sequência mais eficiente de três lances (magenta), apesar de insistirem que estavam procurando outras possibilidades. Inversamente, quando o mate sufocado era inviável, o olhar dos jogadores se deslocava para regiões do tabuleiro cruciais para a estratégia mais rápida.
Problema com duas soluções
Problema com uma solução
Período de resolução
Período de resolução
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40 Tempo gasto olhando para casaschave (%)
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Intermediário
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água de Luchins, a maioria dos jogadores não conseguiu encontrar a solução mais eficiente. Durante alguns desses estudos, perguntamos aos jogadores o que se passava em suas mentes. Eles disseram que haviam encontrado a solução do mate sufocado e insistiram que estavam procurando um caminho mais curto, sem sucesso. Mas os relatos verbais não ofereceram nenhuma explicação sobre o motivo pelo qual eles não conseguiam encontrar a solução mais rápida. Decidimos então tentar algo um pouco mais objetivo: acompanhar movimentos oculares com uma câmera infravermelha. Saber para que parte do tabuleiro as pessoas olhavam e por quanto tempo elas fixaram os olhos nas diferentes áreas nos revelaria, sem equívocos, quais aspectos do problema estavam notando ou ignorando. TRAQUINAGEM NA FILOSOFIA Nesse experimento, seguimos o olhar de cinco enxadristas experientes enquanto eles examinavam um tabuleiro que podia ser resolvido tanto com a manobra mate sufocado, mais longa, quanto com a sequência mais curta, de três lances. Após uma média de 37 segundos, todos os jogadores insistiram que o mate sufocado era a maneira mais rápida possível para encurralar o rei. Mas, quando apresentamos um tabuleiro que só podia ser resolvido com a sequência de três lances, eles encontraram a solução sem nenhum problema. E, quando dissemos aos jogadores que esse mesmo xeque-mate rápido tinha sido possível no tabuleiro anterior, eles ficaram chocados. “Não, isso é impossível”, exclamou um jogador. “É um problema diferente; tem de ser. Eu teria notado uma solução tão simples.” Claramente, a mera possibilidade da sequência para um mate sufocado estava mascarando teimosamente soluções alternativas. De fato, o efeito Einstellung foi potente o suficiente para rebaixar experientes mestres de xadrez temporariamente ao nível de jogadores muito mais fracos. A câmera infravermelha revelou que, mesmo quando os jogadores afirmavam estar procurando por uma solução mais rápida, e de fato acreditavam estar fazendo isso, na realidade não desviavam o olhar das casas que já haviam identificado como parte da
O efeito Einstellung é a tendência do cérebro de se ater à solução mais familiar para um problema e teimosamente ignorar alternativas; psicólogos conhecem esse fenômeno mental desde a década de 40, mas só agora têm uma compreensão sólida de como isso ocorre sequência de lances para o mate sufocado. Comparativamente, quando apresentados ao tabuleiro de uma solução, os jogadores inicialmente olharam para as casas e peças importantes para o mate sufocado e, uma vez que percebiam que isso não funcionaria, dirigiam sua atenção para outras casas e logo descobriam a solução mais curta. Recentemente, a pesquisadora Heather Sheridan, da Universidade de Southampton, na Inglaterra, e Eyal M. Reingold, da Universidade de Toronto, publicaram estudos que corroboram e complementam nossos experimentos de monitoramento ocular. Eles apresentaram duas situações diferentes a 17 enxadristas novatos e 17 experientes. Em um cenário, uma manobra familiar de xeque-mate, como o mate sufocado, era vantajosa, mas perdia para uma solução menos óbvia. Na segunda situação, a sequência mais conhecida seria um erro claro. Como em nossos experimentos, uma vez que amadores e mestres enxadristas olhavam para a manobra familiar e útil, seus olhos raramente se desviaram para casas que lhes indicariam o caminho para a melhor solução. Mas, quando a sequência bem conhecida era obviamente um erro, todos os peritos, e a maioria dos novatos, detectaram a alternativa. O efeito Einstellung não é, de forma alguma, limitado a experimentos controlados em laboratório e nem mesmo a jogos mentalmente desafiadores, como o xadrez. Em vez disso, é a base de muitas propensões cognitivas. O filósofo, cientista e ensaísta inglês Francis Bacon foi especialmente eloquente sobre uma das formas mais comuns de proagosto 2017 • mentecérebro 29
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Nem tão racional quanto imaginamos Na hora de tomar decisões, muitas pessoas rejeitam a opção lógica e acabam obtendo um resultado melhor. Mas para isso é preciso descobrir formas menos convencionais de pensar; para entender como o cérebro faz essas escolhas, cientistas usam uma atividade lúdica
Ao voltar de uma viagem de férias, José e Maria perceberam que a empresa aérea havia danificado objetos de arte idênticos que os dois tinham comprado. O gerente da empresa garante que ficaria muito feliz em compensá-los pelos danos, mas ele está em apuros, pois não faz a menor ideia de quanto esses objetos raros podem ter custado. Ele acredita que, se perguntar o preço aos passageiros, eles certamente irão inflacioná-lo. Então, o gerente resolve ser mais ardiloso. Pede que cada um dos viajantes, separadamente, anote em um papel o preço das peças quebradas, atribuindo um valor inteiro, em dólares, entre 2 e 100. Se os dois marcarem o mesmo número, ele aceitará o valor e pagará a cada um deles a quantia mencionada. Mas, se escreverem números diferentes, poderá considerar o valor mais baixo como o preço correto e desconsiderará o maior. Pagará então aos dois o valor mais baixo incluindo um bônus e uma penalidade – a pessoa que tiver anotado o número mais baixo receberá US$ 2 a mais como prêmio por sua honestidade, e a que marcar o valor mais alto terá US$ 2 a menos do que o valor mais baixo, como uma espécie de punição pela desonestidade.
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Cenários como esse, nos quais as pessoas fazem escolhas e são recompensadas de acordo com a decisão que tomam, são conhecidos como jogos. Chamei esse de “dilema do viajante”. O objetivo era confrontar a proximidade entre o comportamento racional e os processos cognitivos, estudando o funcionamento mental diante de opções complexas, que envolviam perdas e ganhos. O dilema do viajante (DV) atinge esses objetivos porque a lógica do jogo estabelece que 2 é a melhor opção, ainda que muitas pessoas prefiram um número próximo de 100. Os jogadores amealham uma grande recompensa por não obedecerem à razão. Pode parecer contraditório, mas, ao jogar o DV, é preciso usar certa racionalidade ao optar por não ser racional. Outros pesquisadores que usaram o DV e tentavam expandi-lo relatavam descobertas resultantes de experiências em laboratório, com insights sobre a tomada de decisão. Apesar disso, permanecem sem resposta as questões sobre como a lógica e a razão podem ser aplicadas ao DV. Porque 2 é a escolha racional, pense em uma linha de raciocínio que Maria deverá seguir: a primeira ideia que lhe vem à cabeça é que deve escrever o maior número possível, 100, pois assim receberá US$ 100 – desde que José seja igualmente ambicioso, ou viceversa. (Se o objeto custou muito menos que US$ 100, os passageiros estariam tentando tirar proveito da proposta feita pelo gerente.) No entanto, logo ocorre a Maria que se em vez de 100 ela marcar 99, vai conseguir um pouco mais de dinheiro, porque receberá US$ 101. Mas certamente José também teria
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por Kaushik Basu
essa ideia, e se os dois marcarem 99, Maria ganhará US$ 99. Então seria melhor ela marcar 98, pois nesse caso receberia US$ 100. A mesma lógica também levaria José a escolher 98. E, nesse caso, ela marcaria US$ 97 e receberia US$ 99. Seguindo esse raciocínio, os dois diminuiriam sucessivamente suas escolhas até chegar ao menor valor permitido: 2. É muito pouco provável que Maria realmente desenvolvesse esse raciocínio sequencial até chegar ao resultado 2. Na verdade, é exatamente este o ponto que interessa aos cientistas: para onde a lógica nos leva. Especialistas em jogos utilizam esse tipo de análise, chamada de retroindução, que prevê que cada jogador vai escrever 2 e eles vão acabar recebendo 2 dólares cada. Virtualmente, todos os modelos usados chegam a esse resultado para o DV – os dois jogadores ganham US$ 98 menos do que deveriam se cada um, inadvertidamente, escolheu 100. O dilema do viajante está relacionado com outro mais popular, o dilema do prisioneiro, no qual dois presos, suspeitos de terem cometido um crime grave, são interrogados separadamente e cada um pode escolher entre incriminar o outro (e ter a pena abrandada por colaborar) ou permanecer em silêncio (o que deixará a polícia sem evidências claras do crime se o outro acusado também não disser nada). Essa história tem conotação diferente, mas a matemática da recompensa para cada opção do dilema do prisioneiro é idêntica àquela de uma variante do DV. Os cientistas analisam os jogos sem qualquer artimanha que as narrativas
possam conter, estudando a chamada matriz de compensação (ganho ou perda do jogador em função de sua jogada) de cada um – uma grade que contém todas as informações sobre as potenciais opções e compensações de cada jogador. Apesar dos nomes, o dilema do prisioneiro e a versão de duas opções do DV não podem ser considerados realmente um dilema. Cada participante vê uma opção correta unívoca, o que quer dizer 2. Essa opção é chamada de escolha dominante porque é a melhor a fazer, não importando o que o outro faça. Se escolher 2 em vez de 3, Maria vai receber 4 dólares em vez de 3 dólares se José escolher 3, e ela recebe 2 dólares, em vez de nada, se José escolher 2. No caso da versão completa do DV, não há opção dominante. Se José escolher 2 ou 3, o melhor para Maria é optar pelo 2. Mas se ele escolher qualquer número de 4 a 100, ela será beneficiada se escolher um número maior que 2. O resultado “eficiente” é aquele em que os dois viajantes escolhem 100, pois isso significa ganho máximo para ambos. Porém, o anseio que obtivesse maior lucro faria com que as pessoas passassem de 100 para um número mais baixo, na expectativa de obter sempre maiores ganhos individuais. O AUTOR KAUSHIK BASU é doutor em economia, professor de estudos internacionais e diretor do Centro de Economia Analítica da Universidade Cornell.
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pensões cognitivas em seu livro Novum Organum, de 1620: “A compreensão humana, uma vez que tenha adotado uma opinião... busca todas as outras coisas para apoiar e concordar com ela. E, apesar de haver um número e peso maiores de instâncias a serem encontradas no outro lado, estas ele ou negligencia ou despreza; ou ainda, por alguma razão, as deixa de lado e rejeita... Homens... marcam os eventos realizados, mas onde falham, embora isso aconteça muito mais frequentemente, os negligenciam e ignoram. No entanto, com uma sutileza muito maior, essa traquinagem se insinua na filosofia e nas ciências, em que a primeira conclusão “colore” (confere cor) e coloca em conformidade consigo mesma tudo o que vem depois”. Na década de 60, o psicólogo inglês Peter Wason deu um nome a essa propensão em particular: “viés de confirmação” (confirmation bias). Em experimentos controlados, ele demonstrou que, mesmo quando pessoas tentam testar teorias de forma objetiva, tendem a buscar evidências que confirmam suas ideias e ignorar qualquer coisa que as contradiga. Em A falsa medida do homem (Martins Fontes, 1999), por exemplo, o pesquisador Stephen Jay Gould, professor da Universidade Harvard, reavaliou dados citados por pesquisadores que tentavam estimar a inteligên32
cia relativa de grupos raciais, classes sociais e sexos diferentes ao medir o volume de seus crânios, ou pesar seus cérebros, pressupondo que a inteligência se correlacionava com o tamanho do cérebro. Gould revelou distorções massivas de informações. Ao descobrir que, em média, cérebros franceses eram menores que alemães, o neurologista francês Paul Broca descartou as discrepâncias com base na diferença de tamanho corporal médio entre os cidadãos das duas nações. Afinal, ele não podia aceitar que os franceses eram menos inteligentes que os alemães. Mas, quando descobriu que os cérebros de mulheres eram menores que os de homens, não aplicou a mesma correção para o tamanho corporal, porque não teve nenhum desconforto com a ideia de que elas eram menos inteligentes. Surpreendentemente, Gould concluiu que Broca e outros como ele não eram tão repreensíveis como poderíamos pensar. “Na maioria dos casos discutidos neste livro podemos estar bastante certos de que as propensões eram inconscientemente influentes e que cientistas acreditavam estar seguindo uma verdade imaculada”, escreveu Gould. Em outras palavras, assim como observamos em nossos experimentos de xadrez, ideias confortavelmente familiares cegaram Broca e seus contemporâneos para os erros em seus
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raciocínios. E aqui está o verdadeiro perigo do efeito Einstellung. Podemos acreditar que estamos pensando de modo liberal, com a mente aberta, completamente inconscientes de que nosso cérebro está desviando seletivamente a atenção de certos aspectos do nosso ambiente que poderiam inspirar novos pensamentos ou formas de raciocínio. Quaisquer dados que não se encaixem na solução ou teoria que já adotamos são ignorados ou descartados. A natureza sub-reptícia do viés de confirmação tem consequências infelizes na vida cotidiana, como foi documentado em estudos sobre tomadas de decisão entre médicos e jurados. Em uma revisão de erros médicos de raciocínio, o médico Jerome Groopman observou que, na maioria dos casos de diagnóstico equivocado, “os médicos não erraram devido à sua ignorância de fatos clínicos, mas porque caíram em armadilhas cognitivas”. Quando médicos herdam um paciente de um colega, por exemplo, o diagnóstico do primeiro clínico pode cegar o segundo para detalhes importantes e contraditórios da saúde do paciente que poderiam mudar o diagnóstico. É mais fácil simplesmente aceitar a conclusão – a “solução” – que já está à sua frente que repensar toda a situação. Da mesma maneira, ao examinarem radiografias de tórax, radiologistas muitas vezes se fixam na primeira anormalidade que encontram e deixam de notar outros sinais que deveriam ser óbvios, como um inchaço que poderia indicar câncer. Se esses detalhes secundários são apresentados isolados, no entanto, eles os veem imediatamente. É POSSÍVEL RESISTIR? Estudos relacionados revelaram que jurados começam a decidir se alguém é inocente ou culpado muito antes da apresentação de todas as evidências. Suas impressões iniciais do réu, por outro lado, mudam o modo como eles avaliam evidências posteriores e até suas memórias de provas que viram antes. Da mesma forma, se um entrevistador considerar um candidato fisicamente atraente, ele ou ela perceberá automaticamente a inteligência e personalidade daquela pessoa em uma luz mais positiva e vice-versa. Essas propensões,
ou vieses, também são alimentados pelo efeito Einstellung. É mais fácil tomar uma decisão sobre alguém se mantivermos uma visão consistente daquela pessoa, em vez de analisar e classificar evidências contraditórias. Podemos aprender a resistir ao efeito Einstellung? Talvez. Em nossos experimentos de xadrez e nos experimentos posteriores de acompanhamento realizados por Sheridan e Reingold, alguns enxadristas excepcionalmente qualificados, como grandes mestres, de fato identificaram a melhor solução, menos óbvia, mesmo quando uma sequência mais lenta, porém mais familiar de lances era possível. Isso sugere que quanto mais experiência alguém tem em seu campo, seja xadrez, ciência ou medicina, mais imune ela é à propensão cognitiva. Mas ninguém é completamente imune. Até os grandes mestres falharam quando deixamos a situação suficientemente complicada. Lembrar ativamente de que você é suscetível ao efeito Einstellung é outro modo de combater essa situação. Ao considerar, por exemplo, as evidências da contribuição relativa dos gases de efeito estufa produzidos pelo homem e dos que ocorrem naturalmente, produzindo as mudanças da temperatura global, lembre-se de que se já acredita saber a resposta, você não julgará a evidência com objetividade. Em vez disso, notará evidências que embasam a opinião que já formou, avaliando as provas como sendo mais fortes que de fato são, e assim poderá considerar mais memoráveis que as evidências que não endossam a sua opinião. Precisamos aprender a aceitar nossos erros se quisermos aprimorar nossas ideias. O naturalista inglês Charles Darwin desenvolveu uma técnica notavelmente simples e eficiente para fazer exatamente isso. “Durante muitos anos segui uma regra de ouro, mais exatamente, a de, sempre que eu me deparasse com um fato publicado, uma nova observação ou um pensamento que fosse contestado por meus resultados gerais, fazer um memorando disso sem falta e imediatamente”, escreveu ele. “Porque eu tinha constatado por experiência que esses fatos e pensamentos eram muito mais propensos a escapar da memória que os favoráveis.”
PARA SABER MAIS The mechanism and boundary conditions of the Einstellung effect in chess: evidence from eye movements. Heather Sheridan e Eyal M. Reingold, em PLOS ONE, vol. 8, no 10, artigo n o e75796; 4 de outubro de 2013. www.plosone. org/article/info%3Adoi %2F10.1371%2Fjournal. pone.0075796 The science of genius. Dean Keith Simonton, em Scientific American Mind; novembro/dezembro de 2012. Why good thoughts block better ones: the mechanism of the pernicious Einstellung (set) effect. Merim Bilalić, Peter McLeod e Fernand Gobet, em Cognition, vol. 108, no 3, págs. 652-661; setembro de 2008.
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SENSO DE LOCALIZAÇÃO
Proteínas que ajudam a encontrar caminhos Nossos olhos carregam substâncias sensíveis à luz que costumam funcionar de forma similar ao sistema usado por insetos para se locomover e se desviar de obstáculos Muitos seres vivos podem se orientar por direções e localizações geográficas ao perceber os sensores do campo magnético da Terra – uma força invisível para nós, mas capaz de fazer as agulhas da bússola apontarem para o norte. Ao longo da evolução, alguns animais migratórios como pássaros, baleias e tartarugas marinhas desenvolveram o sentido magnético para ajudá-los a percorrer longas distâncias. De fato, nos últimos anos, cientistas têm mostrado constantemente novos exemplos dessa percepção em diversas espécies, como moscas, galinhas, ratos-toupeiras, lagostas, moluscos, tubarões, raias, trutas, morcegos, borboletas, vacas, baratas e, recentemente, raposas. Tubarões, por exemplo, dispõem de células detectoras de eletricidade localizadas ao longo do seu corpo, usadas para identificar flutuações no campo magnético da Terra. Outros animais podem contar com um mineral magnético chamado magnetita, encontrado no nariz dos salmões e das trutas e nos bicos dos pombos. Já a maioria das aves se beneficia de um mecanismo que, associado à luz, atua sobre as proteínas dos olhos. Os pássaros são capazes de perceber campos magnéticos visualmente, por meio de padrões luminosos que se sobrepõem à visão comum.
Agora alguns cientistas estão interessados em saber se os seres humanos também podem ter senso magnético. O neurobiólogo Steven M. Reppert e seus colegas, pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts em Worcester, descobriram recentemente que o olho humano carrega uma proteína sensível à luz que pode funcionar de forma similar ao receptor magnético das moscas. Segundo Reppert, podemos simplesmente não estar conscientes do efeito dos campos magnéticos em nossa visão. No entanto, prestar atenção ao que ocorre nos organismos mais simples que o dos humanos pode trazer revelações surpreendentes. Já sabemos, por exemplo, que assim como acontece com muitos animais, a retina envia muito mais sinais ao cérebro das pessoas do que se supunha há duas décadas. A maioria das informações viaja através do tálamo ao córtex visual e, em seguida, para as regiões que executam o processamento consciente. No entanto, algumas informações se desviam para o núcleo supraquiasmático, o relógio biológico do corpo, permitindo, por exemplo, que pessoas cegas tenham habilidades inconscientes para navegar entre obstáculos, sem esbarrar neles, mantendo os ritmos circadianos saudáveis.
neurocircuito
Como o cérebro nos permite traçar rotas Depois de andar por uma região desconhecida da cidade, você certamente consegue retornar ao metrô, ao carro ou a outro ponto de partida. Isso ocorre graças ao córtex entorrinal, uma área do cérebro recentemente associada ao senso de direção. De acordo com pesquisadores da Universidade College London, variações dos sinais nessa região podem ajudar a explicar por que algumas pessoas se orientam no espaço melhor do que outras. Descobertas nessa área garantiram ao neurocientista John O’Keefe o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina de 2014. Ele descobriu as “células de localização” no hipocampo, região associada com a memória. Esses neurônios são ativados quando nos movemos para áreas específicas, então se agrupam e formam um mapa do ambiente. O’Keefe apoiou sua pesquisa em estudos anteriores de Edvard Moser e May-Britt Moser, do Instituto Kavli
de Sistemas de Neurociência, na Noruega, que identificaram “células de rede” no córtex entorrinal, uma região vizinha do hipocampo. Considerados o sistema GPS do cérebro, esses neurônios podem nos informar onde estamos em relação ao ponto de partida. O terceiro tipo, as células de orientação (encontradas também na região entorrinal), dispara quando deparamos com pontos de referência – “em relação à montanha”, por exemplo. Em conjunto, esses neurônios especializados parecem nos permitir a locomoção pelo espaço, precisamente em ambientes não bem conhecidos – alguns grupos de células estão envolvidos na orientação, enquanto outros, na construção da rota para chegar a determinado ponto. Até a conclusão desse estudo, pouco se sabia sobre como e onde esses sinais de localização no espaço eram gerados no cérebro.
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Mapa mental
CÓRTEX PRÉ-FRONTAL está envolvido no planejamento da rota e nos permite mudar estratégias de navegação
CÓRTEX PARIETAL MEDIAL codifica direções centradas no corpo, como esquerda e direita
ESTRIADO DORSAL armazena informações necessárias para nos locomovermos por caminhos que conhecemos, indicando a direção a seguir e estimando a distância até o destino
CÓRTEX ENTORRINAL abriga as células de rede, que nos dizem onde estamos em relação ao ponto de partida; essa área contém também células de orientação, que indicam a direção para a qual olhamos ou na qual estamos pensando
HIPOCAMPO guarda células de localização, o que nos permite memorizar mapas de ambientes conhecidos
CEREBELO está envolvido no controle motor e nos mantém conscientes do nosso próprio movimento
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psicanálise e tradução
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A língua e suas salivas A psicanálise trabalha com o equívoco, com o intervalo entre uma palavra dita e a sua reedição; seguindo os preceitos da linguística, é possível evocarmos o que Lacan ensinou: entre um significante e outro, revela-se o sujeito de modo fugidio por Elizabeth Brose
A AUTORA ELIZABETH BROSE é psicanalista, pós-doutoranda em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP. Atualmente traduz do alemão o texto de Freud Psicopatologia da vida cotidiana para a editora Autêntica.
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psicanálise e tradução
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s línguas são comparáveis a tecidos, cujos fios o bicho-da-seda produz, ou às teias que as aranhas tecem de tanto salivar. A língua viva depende de seus falantes – que registram, escrevem. Falar, ler, escrever, escutar. Em “Uma rosa é uma rosa é uma rosa...”, a poeta Gertrude Stein nos direciona na leitura e releitura de uma palavra que, ao ser repetida, se altera. E na última pronúncia de “uma rosa”, mesmo que as palavras sejam lidas silenciosamente, aquela imagem acústica que criamos dentro de nós já vai se tornando carregada de algum outro sentido que não o primeiro, o original, digamos assim. Parecendo uma árvore carregada de laranjas. Se víssemos o detalhe, o zoom da primeira laranja, logo mais uma e mais uma... Por fim, em zoom out, nos seria revelada uma complexidade de frutas penduradas em galhos presos a um tronco comum: a laranjeira. Mais ou menos assim transmitimos por palavras o que vamos percebendo e as palavras nos fazem perceber. A psicanálise – principalmente na volta a Sigmund Freud empreendida por Jacques Lacan – trabalha com o equívoco, com o intervalo entre uma palavra dita e a sua reedi(c)ção. Seguindo os preceitos da linguística, talvez compreendamos melhor se evocarmos o que Lacan ensinou: entre um significante e outro, revela-se o sujeito de modo fugidio. Traduzir um texto de Freud é uma operação que se realiza a partir da ideia do equívoco, da incompletude das línguas, da não equivalência entre elas. As traduções são fronteiras entre o (im)possível. Freud tanto narra quanto disserta. Narrações são marcadas pelo contar de ações via instâncias narrativas. Um narrador (ou mais de um) conta a um outro (narratário) uma sequência de ações. Narrar difere assim do teatro, porque interpõe entre o público e a ação essas instâncias transparentes que amaciam, tranquilizam o susto, a surpresa e o terror. As histórias do mundo da fantasia, do “era uma vez”, são contadas a crianças por alguém, um contador, no tempo verbal adequado do “era”, distanciando aquele que ouve daquele que age (a personagem).
As línguas e seus lapsos, as brechas e os furos, buracos negros de significados e o sem sentido e o para além do senso... Assim, de equívoco em equívoco, desloca-se a palavra Além disso, a voz orienta os percursos da imaginação. Assim, evita-se a maior emoção do palco, aquela que produz a catarse. Freud narra, por exemplo, o cumprimento dos obsessivos, o tirar o chapéu, e conclui com frases que são de tirar o chapéu mesmo. Essas abstrações costumam ser dissertadas. Dissertar é aquele jeito de escrever argumentando, que alguns leigos chamam de teorizar. Na dissertação, desenvolve-se uma série de pensamentos, que aprendemos na escola que devem ser de preferência concatenados, coerentes e coesos. Dominando a organização narrativa e a dissertativa e através desses modos de escrever, Freud vai apresentando ao leitor os lapsos dessas e nessas organizações e as relações entre linguagens distintas como a dos sonhos e a de seus relatos. A riqueza do Freud escritor também se dá no fato de tanto ser direto e claro nas palavras (mesmo nos neologismos) quanto de oferecer a sensação de montanha-russa ao escorregarmos por suas deliciosas frases quilométricas, repletas de vírgulas e novas orações. O leitor só sabe que pôs os pés no chão no ponto final. Nesse momento, o coração pulsa e a criança diz: de novo! E então relê, reedita a frase do começo, pois o verbo alemão pontua o fim da frase que se recomeça no sentido. Como se nada disso fosse suficiente, há ainda nos textos de Freud, frequentemente, a sensação de terceira dimensão temporal, tantos são os variados tempos dos verbos que apontam para um tempo modalizado, um possível, um que de fato aconteceu etc. Essa complexidade do texto original coloca o tradutor diante de alternativas e o resultado é, no melhor sentido, uma versão possível de uma série de versões. Aquela versão que ele, humano e limitado, encontra depois de passar pelo crivo da fórmula inexata: o que esse conceito que me fala de sensações táteis ou imagéticas em alemão pode
ter querido dizer há cem anos e como ele foi dito em português por este e por aquele tradutor. E depois de substituir com cuidado uma palavrinha composta alemã por outra(s) tanta(s) pesquisadas nas memórias, em dicionários, carregados de palavras penduradas em seus verbetes... E então se lembra de um texto literário que surpreende com uma palavra em frase que se renova. Essas são algumas das tantas possibilidades que encantam o processo investigativo da tradução e que, também, acalmam a angústia do impossível: a tradução perfeita, ideal, das línguas que fazem UM. As línguas e linguagens não fazem uma unidade, uma completude. As línguas e seus lapsos, as brechas e os furos, buracos negros de significados e o sem sentido e o para além do senso... Assim, de equívoco em equívoco, desloca-se a palavra. Daí que as línguas não se encaixam, as línguas não se beijam. As línguas... IDIOMAS E SONHOS Se este texto fosse um vídeo na timeline do Facebook, o roteiro seria assim: dicionários apareceriam como caixas, onde todas as palavras se encontrariam e de onde elas sairiam com suas saias leves e dançantes e lembrariam cobras encantadas rumo ao céu daquele cesto de palha do encantador de serpentes. Nessa dança formariam sintaxes, estruturas; o cipó onde, se fosse um sonho, os macaquinhos-prego se pendurariam. Cada macaco no seu galho. Cada macaco, uma palavra materna. Das nossas falas transcontinentais da língua portuguesa a suas escritas e ainda outras escritas em idiomas estranhos, essa caixa conteria o universo das palavras (das nossas falas transcontinentais da língua portuguesa a suas escritas e ainda outras escritas em idiomas estranhos). Repetidas vezes... E a cada vez uma frase nova ou seminova se ergueria no mercado medieval e mediador das línguas.
PARA SABER MAIS Psicanálise entre línguas. Emiliano de Brito Rossi, Pedro Heliodoro Tavares, Walter Carlos Costa. Editora 7 Letras, 2017. Análise psicanalítica de discursos - Perspectivas lacanianas. Christian Ingo Lenz Dunker, Clarice Pimentel Paulon e José Guillermo Milán-Ramos. Estação das Letras e Cores, 2016. O amor da língua. JeanClaude Milner. Editora Unicamp, 2012. Outros escritos. Jacques Lacan. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Zahar, 2003.
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patologia
Alerta antecipado contra Teste de acompanhamento ocular passa a ser considerado ferramenta importante na luta contra o tipo mais frequente de demência
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Alzheimer
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Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existam hoje no mundo cerca de 35,6 milhões de pessoas com a doença de Alzheimer. No Brasil, há cerca de 1,2 milhão de casos, a maior parte deles ainda sem diagnóstico. Nos Estados Unidos, um em cada nove americanos com 65 anos ou mais tem esse tipo da demência. Terapias promissoras devem surgir em forma de novas drogas nos próximos anos para combater essa disfunção cerebral – hoje sem cura ou tratamento eficaz –, mas alguns especialistas suspeitam que ensaios clínicos falharam até agora porque os fármacos foram testados tarde demais na escala de progressão da doença. Quando pacientes apresentam os sintomas, seu cérebro já perdeu muitos neurônios; nenhuma terapia é capaz de reavivar células mortas, e pouco pode ser feito para criar novas. Por essa razão, pesquisadores que realizam testes em humanos agora procuram participantes cognitivamente saudáveis, mas que já estejam à beira do declínio. Esses pacientes “pré-clínicos” de Alzheimer talvez representem uma janela de oportunidade para a intervenção terapêutica. Mas é um desafio identificar essas pessoas antes que tenham sintomas. Atualmente, a maioria dos pacientes com Alzheimer é diagnosticada após um minucioso exame médico e extensivos testes para avaliar a função mental. Outros exames, como análises do fluido espinal, ou líquido cefalorraquidiano, e tomografias por emissão de pósitrons (PET), podem detectar sinais de doença iminente e ajudar a identificar a janela pré-clínica, mas eles são caros ou difíceis de manipular. “Não existe ainda um único teste barato, rápido e não invasivo que possa identificar pessoas em risco de Alzheimer”, resume Brad Dolin, diretor de tecnologia da Neurotrack, em Palo Alto, na Califórnia, empresa que está desenvolvendo um teste de triagem visual computadorizada para a doença. Ao contrário de outros testes cognitivos, a avaliação criada pela empresa Neurotrack não
considera habilidades motoras ou de linguagem. Participantes visualizam imagens em um monitor enquanto uma câmera monitora seus movimentos oculares. O teste se baseia em pesquisas realizadas por Stuart Zola, cofundador da companhia e pesquisador da Universidade Emory, em Atlanta, na Geórgia, que estuda aprendizagem e memória em macacos. Quando apresentados a um par de imagens, uma inédita e outra familiar, primatas fixam o olhar mais demoradamente na novidade. Mas se o hipocampo estiver danificado, como ocorre em pessoas com Alzheimer, o objeto de estudo não manifesta preferência pelas imagens inéditas. Essas constatações parecem se sustentar em pessoas. Em um estudo publicado em 2013, Zola e seus colegas aplicaram o teste de meia hora em 92 idosos. As pontuações previram quem desenvolveria Alzheimer com três anos de antecedência. Desde então, a empresa desenvolveu um teste de cinco minutos baseado na internet, com auxílio de webcams, e iniciou um estudo de três anos com até 3 mil idosos em Xangai no inverno boreal de 2014. Estudos adicionais nos Estados Unidos avaliarão essa ferramenta juntamente com varreduras PET e outras medidas para prognóstico pré-clinico de Alzheimer. Além disso, de acordo com a CEO da Neurotrack, Elli Kaplan, diversas companhias farmacêuticas incluirão o método em ensaios clínicos de terapias para a doença nos próximos anos. Especialistas não envolvidos com a empresa acreditam que o exame é promissor. “O paradigma do teste tem uma excelente base de literatura”, diz Peter Snyder, da Universidade Brown, em Providence, Rhode Island. Hemogramas, exames de varredura retinal e testes cognitivos computadorizados também são considerados como formas simples de monitoramento de Alzheimer pré-sintomático. Não está claro qual deles é mais preciso, e médicos provavelmente gostariam de aplicar vários deles para avaliar a progressão da doença. (Por Esther Landhuis, jornalista científica) agosto 2017 • mentecérebro 41
neurociência
Deu Circuitos neurais responsáveis pelo autocontrole consciente são vulneráveis mesmo em situações de frustração e ansiedade leves. Quando esse sistema é desativado, impulsos primitivos são liberados sem controle, provocando paralisia mental por Amy Arnsten, Rajita Sinha e Carolyn M. Mazure
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rovas, entrevistas de emprego, reuniões decisivas não costumam ser tarefas fáceis. Em geral, provocam tensão e desconforto emocional e até físico. Embora na maioria dos casos o fato de estar bem preparado para esses desafios diminua consideravelmente essas sensações, para alguns a pressão torna as aptidões de raciocínio lentas e, em situações mais raras, pode até mesmo bloqueá-las temporariamente. A experiência – também conhecida como paralisia mental, congelamento cerebral, aflição, nervosismo, apagão, “branco” ou uma dúzia de outros termos – é familiar a qualquer um que tenha se atrapalhado ao falar em público, enfrentado bloqueio ao redigir um texto ou lutado para terminar um teste longo, no qual precisava muito ser aprovado.
AS AUTORAS AMY ARNSTEN é professora de neurobiologia e pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade Yale. RAJITA SINHA é professora de psiquiatria e psicologia e reitora-associada para assuntos acadêmicos da Universidade Yale. CAROLYN M. MAZURE é psiquiatra, professora da mesma instituição e diretora do Yale Stress Center.
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EM FASES ATRIBULADAS nos tornamos mais suscetíveis a infecções e alergias; em crianças as consequências podem aparecer mais tarde, em forma de doenças inflamatórias
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Durante décadas, cientistas acreditaram ter entendido o que se passa no cérebro durante a realização de uma prova ou um tiroteio, em meio a uma batalha. Nos últimos anos, porém, uma linha diferente de pesquisa colocou a fisiologia do estresse sob uma perspectiva inteiramente nova. A resposta a essa situação não é uma reação primária que afeta partes do cérebro comuns a várias espécies, de salamandras a seres humanos. O estresse pode prejudicar nossas faculdades mentais mais sofisticadas, as áreas do cérebro mais desenvolvidas nos primatas. Livros mais antigos explicavam que o hipotálamo, uma estrutura antiga do ponto de vista evolutivo alojada na base do cérebro, reage ao estresse desencadeando a secreção de uma onda de hormônios das glândulas pituitária e adrenais que acelera o coração, eleva a pressão arterial e diminui o apetite. Pesquisas recentes revelam um papel inesperado para o córtex pré-frontal, a área imediatamente atrás da testa que serve como o centro de mediação
de nossas habilidades cognitivas superiores, entre elas concentração, planejamento, tomada de decisão, percepção, julgamento e a capacidade de recuperar lembranças. O córtex pré-frontal evoluiu mais recentemente e pode ser muito sensível a ansiedades e preocupações diárias. Quando as coisas vão bem, o córtex préfrontal atua como um centro que mantém nossas emoções e impulsos básicos sob controle. Novas pesquisas demonstram que o estresse agudo e incontrolável desencadeia uma série de eventos químicos que enfraquece a influência do córtex pré-frontal e reforça o predomínio das partes mais antigas do cérebro. Basicamente, transfere o controle de alto nível sobre o pensamento e a emoção do córtex pré-frontal para o hipotálamo e outras estruturas mais antigas. Conforme elas assumem essas funções, podemos nos sentir tomados pela ansiedade paralisante ou então sujeitos a impulsos que normalmente conseguimos manter sob controle: tolerância para
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neurociência
excessos de comida, bebida, drogas ou gastos exagerados. Simplificando, perdemos o freio. A crescente compreensão de que o estresse agudo pode comprometer a função das áreas “executivas” mais nobres do cérebro humano vem atraindo o interesse de cientistas. Agora eles não apenas tentam desvendar o que acontece na sua mente quando você “trava”, mas também desenvolvem intervenções comportamentais e farmacêuticas para ajudá-lo a manter o controle da situação. A perda de controle fascina os cientistas há décadas. Após a Segunda Guerra Mundial cientistas analisaram a razão de pilotos altamente qualificados em tempos de paz cometerem erros primários na manobra de naves numa batalha. O que realmente acontece por trás do osso frontal humano permaneceu um mistério até a chegada recente da neuroimagem. Em escaneamento do cérebro a agitação de atividade no córtex pré-frontal dá uma pista de como o mestre controlador do cérebro é vulnerável. O córtex pré-frontal é sensível ao estresse devido ao seu status especial na hierarquia de estruturas cerebrais. É a região mais evoluída do cérebro, maior proporcionalmente no ser humano que em outros primatas, chegando a um terço do córtex humano. Amadurece mais lentamente que qualquer outra área do cérebro e atinge a maturidade plena só com o fim da adolescência. A área pré-frontal abriga o circuito neural para o pensamento abstrato e nos permite concentrar e permanecer na tarefa, enquanto armazena informações no bloco de rascunho mental operacional. Essa área de armazenamento de memória temporária opera de modo a nos permitir manter “em mente” informações como a soma de dígitos que precisamos elevar para a próxima coluna ao realizar a adição. Como unidade de controle mental a área pré-frontal também inibe ações e pensamentos inadequados. O centro executivo neurológico funciona por meio de uma extensa rede interna de conexões entre neurônios de forma triangular, denominados células piramidais. Esses neurônios também enviam conexões para locais mais distantes do cérebro que controlam nossas emoções, desejos e hábitos. Quando relaxados, os circuitos nesta rede vibram jun-
“Congelar” em situações de ansiedade é uma experiência comum, causada pela perda de controle sobre “funções executivas”, associadas às emoções tos de satisfação. A memória operacional nos lembra daquele compromisso da próxima semana e outros circuitos enviam uma mensagem para regiões inferiores do cérebro de que talvez seja melhor abrir mão de uma segunda taça de vinho. Enquanto isso, uma mensagem para a amígdala, estrutura profunda do cérebro que controla as reações de medo, garante que o grandalhão se aproximando na calçada não está a ponto de nos agredir. A manutenção dessa rede pode ser um processo frágil e, quando o estresse chega, mesmo pequenas mudanças no âmbito neuroquímico podem enfraquecer conexões de rede instantaneamente. Em resposta ao estresse, o cérebro se inunda com produtos químicos de excitação, como a noradrenalina e a dopamina, liberadas pelos neurônios no tronco cerebral, enviando projeções por todo o cérebro. Níveis elevados dessas substâncias químicas de sinalização no córtex pré-frontal desligam o disparo neuronal, em parte pelo enfraquecimento temporário dos pontos de conexão, ou sinapses, entre os neurônios. A atividade da rede diminui, assim como a capacidade de regular o comportamento. E esses efeitos pioram conforme as glândulas adrenais perto dos rins, sob o comando do hipotálamo, liberam o cortisol, hormônio do estresse, enviando-o para o cérebro. Nesse caso, o autocontrole depende de um ato de equilíbrio delicado. SEM CAIR DA BICICLETA A expressão “travar” representa com precisão uma descrição dos processos biológicos ocultos. A máquina neural do córtex pré-frontal e sua capacidade de manter a memória operacional concentrada nas tarefas devidas podem impedir a cascata de neurotransmissores gerada no interior do cérebro de desencadear uma onda emocional de pânico. Nossa pesquisa, que esclarece a facilidade com que o córtex pré-frontal pode ser agosto 2017 • mentecérebro 45
A MEMÓRIA OPERACIONAL nos lembra daquele compromisso da próxima semana e outros circuitos enviam uma mensagem para regiões inferiores do cérebro de que talvez seja melhor abrir mão de uma segunda taça de vinho
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desligado, começou há cerca de 20 anos. Estudos em animais por uma de nós (Amy), juntamente com a falecida Patricia GoldmanRakic, pesquisadora da Universidade Yale, foram os primeiros a ilustrar como mudanças neuroquímicas durante o estresse podem desativar rapidamente a função pré-frontal. O trabalho mostrou que os neurônios do córtex pré-frontal se desconectam e também param de disparar após serem expostos a uma enxurrada de neurotransmissores ou hormônios de estresse. Em contrapartida, áreas mais profundas no cérebro exercem uma forte influência sobre nosso comportamento. A dopamina chega até uma série de estruturas cerebrais profundas, chamadas coletivamente de gânglios ou núcleos da base, que regulam vontades, respostas habituais emocionais e motoras. Os gânglios da base são essenciais não apenas quando andamos de bicicleta sem cair, mas também quando nos entregamos a hábitos viciantes, como os que nos fazem sentir compulsão por aquele sorvete proibido. Em 2001, os neurobiologistas Benno Roozendaal, agora na Universidade de Groningen, na Holanda, James McGaugh, da
Universidade da Califórnia em Irvine, e seus colegas encontraram alterações semelhantes na amígdala, outra região mais antiga do cérebro. Na presença de noradrenalina e cortisol a amígdala alerta o resto do sistema nervoso a se preparar para o perigo e reforça memórias relacionadas ao medo e a outras emoções. Agora, essa pesquisa se estende aos humanos. Ela começou a mostrar que algumas pessoas parecem mais vulneráveis que outras, devido à sua composição genética ou a um histórico prévio de exposição ao estresse. Depois de a dopamina e a noradrenalina desligarem circuitos na área pré-frontal, exigidos para maior cognição, enzimas costumam eliminar os neurotransmissores para que o desligamento não persista. Assim, podemos retornar à nossa normalidade quando o estresse diminuir. Mas certas formas de um gene podem enfraquecer essas enzimas, tornando as pessoas mais vulneráveis ao estresse e, em alguns casos, a doenças mentais. Da mesma forma, fatores ambientais podem aumentar a vulnerabilidade, por exemplo, a intoxicação por chumbo pode simular aspectos da resposta ao estresse e destruir a cognição. Outra pesquisa se concentra no que acontece quando o ataque ao córtex pré-frontal persiste por dias ou semanas. O estresse crônico parece expandir a intrincada teia de conexões entre os neurônios nos centros emocionais inferiores, enquanto as áreas envolvidas em raciocínio flexível e sustentado – qualquer coisa desde a filosofia de Immanuel Kant até cálculo – começam a murchar. Nessas condições, os dendritos receptores de sinais na amígdala primitiva aumentam e os do córtex pré-frontal encolhem. John Morrison, da Mount Sinai School of Medicine, e seus colegas mostraram que os dendritos pré-frontais podem se desenvolver novamente se o estresse desaparecer, mas essa capacidade de recuperação pode não ocorrer se o estresse for grave. Uma de nós (Rajita) encontrou essa evidência em humanos, em que a retração na massa cinzenta pré-frontal está relacionada à exposição ao estresse. Essa sequência de eventos moleculares nos torna mais vulneráveis ao estresse posterior e, provavelmente, contribui para distúrbios de depressão, dependência a drogas e
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neurociência
Os efeitos sobre o córtex A área bem atrás da testa, conhecida como córtex pré-frontal, é o centro executivo de controle do cérebro, responsável pela capacidade de inibição de impulsos inadequados. Mas tensões comuns cotidianas e agudas podem prejudicar esse senso básico de autocontrole, permitindo que as emoções e a impulsividade dominem.
ilustração de axs biomedical animation studio ; fonte: “stress signalling pathways that impair prefrontal cortex structure and function”, de amy f. t. arnsten, em nature reviews neuroscience, vol. 10, junho de 2009
Teste de realidade e monitoramento de erro
NÃO ESTRESSADO Sinais do córtex pré-frontal mudam para áreas mais profundas no cérebro, regulando nossos hábitos (corpo estriado), apetites básicos, como a fome, o sexo e a agressão (hipotálamo) e respostas emocionais, como o medo (amígdala). O córtex pré-frontal também regula as respostas de estresse do tronco cerebral, inclusive a atividade dos neurônios que produzem a noradrenalina e a dopamina. Níveis moderados desses dois neurotransmissores ativam receptores que fortalecem conexões no córtex préfrontal (detalhe).
Corpo estriado
Córtex pré-frontal
Inibição de ações inadequadas Hipotálamo Amígdala
Regulação de emoções Neurônio do córtex pré-frontal
Regulação direta de noradrenalina e de dopamina pelo córtex pré-frontal
Células produtoras de noradrenalina e dopamina
ESTRESSADO A amígdala comanda a produção de noradrenalina e dopamina em excesso sob condições estressantes. E isso bloqueia o funcionamento do córtex pré-frontal, mas fortalece a atividade no corpo estriado e na amígdala. Níveis altos de noradrenalina e dopamina no córtex pré-frontal ativam receptores que abrem canais e desconectam as ligações entre os neurônios préfrontais, enfraquecendo o papel da área no controle de emoções e impulsos (detalhe).
Orientação de atenção e pensamento de cima para baixo
Níveis de excelência de dopamina e noradrenalina
Canal
Sinal transportado ao neurônio seguinte quando o canal está fechado
Perda da regulação pré-frontal
Comportamentos compulsivos
Respostas emocionais
Receptor
Níveis elevados de noradrenalina e dopamina
Altos níveis de dopamina e noradrenalina inundam receptores
Canal abre ao receber neurônio, e sinal é perdido
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neurociência
PISAR NO FREIO Uma pergunta que ainda surpreende os pesquisadores é o motivo de o cérebro ter mecanismos internos para enfraquecer suas funções cognitivas mais sofisticadas. Ainda não sabemos ao certo, mas a ativação dessas reações primárias talvez tenha salvado vidas humanas quando um animal selvagem predador estava escondido nos arbustos. Se, de repente, virmos um tigre majestoso na 48
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FÚRIA VERDE: o personagem Hulk representa a impossibilidade de manter o equilíbrio em situações-limite
ansiedade, inclusive estresse pós-traumático. O gênero parece ser um fator na determinação da reação ao estresse. Nas mulheres, o hormônio estrogênio pode amplificar a sensibilidade. Como uma de nós (Carolyn) e colegas mostraram, o estresse da vida representa um risco maior para depressão em mulheres que em homens e é mais provável que reduza a abstinência de certos comportamentos de dependência, como o fumo, para mulheres, em comparação com os homens. Nos homens o estresse pode desempenhar um papel mais relevante no agravamento de compulsões, provocando comportamentos habituais mediados pelos gânglios da base. É preciso desenvolver mais trabalhos sobre como o estresse altera o lócus do autocontrole pré-frontal do cérebro. Cientistas investigam como outros neuroquímicos afetam o córtex pré-frontal. Trevor W. Robbins e Angela Roberts, da Universidade de Cambridge, lideram um grupo que observa se a serotonina, que desempenha um papel essencial na depressão, pode modular o estresse e a ansiedade pela sua ação no córtex pré-frontal. Esses estudos permanecem um desafio, pois padrões éticos modernos para experimentos com seres humanos requerem que as pessoas não sejam expostas a situações de estresse psicológico extremo. Na verdade, os participantes do estudo sabem que podem parar o experimento a qualquer momento, tendo controle sobre a situação, o que não acontece na vida real. Vários laboratórios tiveram sucesso na simulação de efeitos de estresse não controlado ao levarem participantes do estudo para assistir a filmes perturbadores ou, conforme foi feito pelo grupo de Rajita, considerar brevemente suas próprias experiências estressantes para observar suas reações.
floresta, é muito mais útil congelar, para que o animal não possa nos ver, que relembrar um poema de William Blake. Com as lentas e deliberadas redes sofisticadas ausentes do cérebro nossos caminhos cerebrais primitivos podem nos deter num instante ou nos preparar para a fuga. Esses mecanismos podem ter uma função semelhante diante dos perigos do mundo moderno – vamos dizer, quando um motorista imprudente nos “fecha” no trânsito e precisamos pisar no freio. Mas, se permanecemos nesse estado, a função pré-frontal se enfraquece, uma desvantagem devastadora nas circunstâncias em que precisamos nos engajar na tomada de decisão complexa. DE OLHO NO PERIGO Uma resposta lógica para nossa compreensão crescente sobre os temores é traçar estratégias para manter nosso centro de controle neural intacto. Cientistas esperam que o entendimento dos eventos moleculares que levam o cérebro a se degenerar a partir de um estado “refletivo” para um “reflexivo” possa levar a tratamentos melhores para distúrbios de estresse. Algumas dessas ideias confirmam o que já sabemos. Treinamento para emergências ou para o serviço militar se relaciona a ensinar os gânglios basais e outras estruturas cerebrais a aprender reações automáticas necessárias para a sobrevivência. A pesquisa com animais sugere que a sensação de controle psicológico, que se torna uma segunda natureza para um soldado ou um técnico de emergência médica, continua sendo fator decisivo para saber se sucumbiremos ao estresse. Falar em público anima os que se sentem confiantes diante de uma plateia. Para outros, isso induz a nada além do terror, e a sua mente “trava”. As rotinas de exercícios de um sargento são espelhadas em estudos com animais que mostram que os jovens crescem e se tornam mais capazes de lidar com o estresse se tiveram múltiplas experiências bem-sucedidas ao lidar com uma versão leve na juventude. Da mesma forma, estudos em seres humanos indicam que o sucesso na gestão de situações desafiadoras pode construir resiliência (capacidade de lidar com problemas, superar
Cientistas reconhecem a eficácia de psicoterapias combinadas com medicação para ajudar a manter a autonomia em momentos críticos
obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas). Em contraste, se as crianças evitarem essas experiências podem se tornar mais sensíveis e sobrecarregadas pelo estresse e depressão ao crescerem. Indícios para novos tratamentos podem emergir lentamente dos laboratórios. A droga prazosina, um tratamento genérico de pressão arterial que bloqueia algumas das ações prejudiciais da noradrenalina, está sendo testada em veteranos e civis com distúrbio pós-traumático. A prazosina também parece diminuir tanto a compulsão por álcool quanto os níveis de consumo. Um estudo bem recente de Sherry McKee, da Yale, e de seus colegas descobriu que outro medicamento genérico para a pressão arterial, denominado guanfacina, pode inibir algumas reações de estresse e fortalecer redes corticais pré-frontais, ajudando as pessoas a lutar contra o fumo durante exposição ao estresse. (Pesquisadores de Yale recebem apoio financeiro da Shire Pharmaceuticals para uma forma de liberação prolongada de guanfacina usada no tratamento de déficit de atenção e hiperatividade em crianças e adolescentes, mas não para a forma de liberação imediata da droga usada em adultos neste estudo.) Além disso, muitos estudos mostram que estratégias comportamentais como relaxamento, respiração profunda e meditação podem reduzir a resposta ao estresse. E aquele senso de controle? Aprender como o cérebro reage ao estresse talvez torne possível desenvolver maior autonomia. Assim, eventualmente, na próxima vez que estiver fazendo um teste ou falando em público e der um “branco”, você possa dizer para si: “É apenas meu cérebro tentando me salvar de algum perigo”. Talvez isso traga um sorriso reconfortante para o seu rosto, mesmo que não traga a resposta correta ou aquela palavra para a mente.
PARA SABER MAIS Prefrontal cortical network connections: key site of vulnerability in stress and schizophrenia. Amy F. T. Arnsten, em International Journal of Developmental Neuroscience, vol. 29, nº 3, págs. 215-223, 2011. Stress signalling pathways that impair prefrontal cortex structure and function. Amy F. T. Arnsten, em Nature Reviews Neuroscience, vol. 10, págs. 410-422, junho de 2009. Can’t remember what I forgot: your memory, your mind, your future. Sue Halpern. Three Rivers Press, 2009.
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MEMÓRIA
É possível aprender a esquecer?
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Dispomos de mecanismos de controle que nos permitem esconder ativamente uma recordação; esse processo, no entanto, pode prejudicar a memória geral
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neurocircuito
Se uma panela quente cai do fogão, é muito provável que sua primeira reação seja fazer um gesto para segurá-la, mas no último momento você retira a mão para evitar a queimadura. Isso ocorre porque o controle executivo tem a função de intervir para interceptar a ação, quebrando a cadeia de comandos automáticos. Algumas pesquisas recentes sugerem que o mesmo pode ser verdade quando se trata do reflexo da recordação – o que significa que o cérebro é capaz de interromper a recuperação espontânea de registros dolorosos. As memórias são inseridas em uma teia de informações interligadas. Como resultado, uma lembrança pode acionar outra, fazendo-a aflorar sem esforço consciente. “Quando recebemos um estímulo que funciona como lembrete, a resposta automática da mente é nos fazer ‘um favor’, buscando conteúdos associados”, diz o neurocientista Michael Anderson, pesquisador da Universidade de Cambridge. “O problema é que às vezes somos lembrados do que não queremos.” Estudos de imagem já haviam indicado que as áreas frontais do cérebro podem amortecer a atividade do hipocampo, uma estrutura crucial para a memória, suprimindo assim a recuperação de lembranças. Buscando aprender mais sobre o assunto, Anderson e seus colegas investigaram o que acontece depois que a ação do hipocampo é interceptada. Os cientistas deram a 381 estudantes universitários a tarefa de decorar pares de palavras vagamente relacionadas. Mais tarde, mostraram um vocábulo aos voluntários e pediram, primeiro, que recordassem o
outro e, em seguida, que fizessem o oposto: ativamente não pensassem sobre a outra palavra. Às vezes, entre uma tarefa e outra, eram mostradas aos participantes imagens incomuns, como um pavão de pé em um estacionamento. Em artigo publicado no periódico científico Nature Communications, os pesquisadores descobriram que a capacidade dos participantes de recordar posteriormente os pavões e outras imagens estranhas foi cerca de 40% menor por terem sido instruídos a evitar memórias de palavras antes ou depois de ver as imagens, em comparação com os ensaios em que os estudantes tinham sido convidados a se lembrar das palavras. A descoberta fornece evidência adicional de que dispomos de um mecanismo de controle de lembranças e sugere que tentar esconder ativamente uma recordação específica pode afetar negativamente a memória geral. Os pesquisadores chamam o fenômeno de “sombra amnésica” porque aparentemente bloqueia a lembrança de eventos não relacionados, que aconteceram enquanto a atividade do hipocampo estava diminuída. Atualmente, Anderson e a neurocientista Ana Catarino pesquisam a possibilidade de treinar pessoas para suprimir memórias. Eles estão conduzindo uma experiência na qual acompanham atividade cerebral dos participantes e, em tempo real, os informam sobre atividade amortecida de seu hipocampo. Os pesquisadores levantam a hipótese de que, uma vez aperfeiçoado, esse processo pode ajudar as pessoas a aprender como controlar o que querem esquecer, de forma seletiva. O que ainda não está claro é que destino dar à carga emotiva que acompanha as recordações dolorosas.
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ciência para viver melhor
Aprendendo
com o
erro
Cientistas identificam células que monitoram o desempenho cerebral, detectam equívocos e governam a habilidade de melhorar o próprio desempenho com base nos enganos que cometemos Por Markus Ullsperger
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inguém gosta de errar – e, não por acaso, passamos grande parte de nossas existências corrigindo deslizes. Embora todos prefiram evitar os enganos, a maioria das tolices que cometemos por ignorância, descuido ou mesmo desatenção tem um lado bom: oferecem ao cérebro informações sobre como melhorar, fazendo um ajuste fino da percepção e do comportamento. Do ponto de vista evolutivo, aprimorar-se por meio dos erros é essencial para a sobrevivência da espécie humana e, no âmbito individual, pode ser um excelente caminho para a aprendizagem, nos mais variados níveis. Nos últimos anos, neurocientistas descobriram que o córtex frontal medial desempenha papel fundamental na detecção de erros e no ajuste nas respostas a eles. Os neurônios frontais tornam-se ativos sempre que pessoas (ou macacos) alteram o comportamento depois de um feedback negativo ou de ter a recompensa diminuída por causa dos equívocos cometidos. Estudos recentes mostram que, desde a infância, desenvolvemos boa parte de nossas habilidades com base nas lições decorrentes de 52
nossos fiascos. Características individuais, entretanto, podem tornar o erro mais ou menos útil no processo de aprendizagem. Variações genéticas que afetam a sinalização do neurotransmissor dopamina colaboram para esclarecer essa diferença entre as pessoas. A tecnologia pode ajudar: alguns padrões de atividade cerebral frequentemente abrem possibilidades de prevenir disparates com o uso de aparelhos portáteis, capazes de detectar estados cerebrais que antecedem o engano ou nos tornam propensos a cometê-lo. O equipamento de detecção de erros do cérebro surgiu por um feliz acidente no início da década de 90. O psicólogo Michael Falkenstein, pesquisador da Universidade de Dortmund, Alemanha, e um grupo de colegas desenvolviam um projeto de monitoramento neural de voluntários utilizando eletroencefalografia (EEG) durante um experiO AUTOR MARKUS ULLSPERGER é doutor em neurologia, chefe do grupo de pesquisa de neurologia cognitiva do Instituto Max Planck de Pesquisa Neurológica em Colônia, Alemanha.
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mento, quando perceberam que sempre que a pessoa pressionava o botão errado, o potencial elétrico em seu lobo frontal subitamente caía cerca de 10 microvolts. O psicólogo William J. Gehring, da Universidade de Illinois, confirmou esse efeito, ao qual os pesquisadores se referem como “negatividade relacionada a erro”, ou NRE. Uma NRE pode aparecer depois de diversos desfechos desfavoráveis ou situações de conflito. Os chamados “erros de ação” acontecem quando o comportamento de uma pessoa produz um resultado não intencional. Pressão do tempo, por exemplo, muitas vezes resulta em equívocos ortográficos durante a digitação ou na anotação de endereços incorretos em e-mails. Uma NRE rapidamente se segue a tais enganos de ação, com um pico em 100 milissegundos depois de a atividade muscular incorreta ter sido praticada. Uma NRE ligeiramente mais demorada, que chega à marca de 250 a 300 milissegundos depois de seu desfecho, aparece em resposta a um feedback desfavorável ou perdas que envolvem dinheiro. A NRE também pode aparecer em situações em que a pessoa enfrenta uma escolha difícil – incerteza de decisão – e continua em conflito mesmo depois de feita a escolha. Por exemplo, uma NRE de feedback pode ocorrer depois que o indivíduo escolheu um caixa no supermercado e, então, percebe que a fila está andando bem mais lentamente que a do lado. Especialistas passaram a questionar que região do cérebro origina a NRE. Por meio de ressonância magnética funcional (RMf), entre outros métodos de obtenção de imagens, eles constataram repetidas vezes que o reconhecimento do erro ocorre no córtex frontal medial, uma área na superfície cerebral no meio do lobo frontal que inclui o cingulado anterior. Tais estudos mostraram que esta parte do cérebro funciona como uma espécie de monitor de feedback negativo, erros de ação e incerteza decisional – e,
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portanto, como um supervisor global do desempenho humano. Além de reconhecer enganos, o cérebro precisa reagir adaptativamente a eles. Nos anos 70, o psicólogo Patrick Rabbitt, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, um dos primeiros a estudar sistematicamente essas reações, observou que erros de digitação são cometidos com pressão ligeiramente menor na tecla que as percussões corretas, como se o digitador estivesse tentando se refrear no último momento. Mais genericamente, as pessoas costumam reagir aos equívocos com uma desaceleração depois de cometê-lo, supostamente para analisar com maior cuidado a questão e mudar de estratégia. Tais mudanças comportamentais revelam uma tentativa do cérebro de evitar deslizes no futuro. O córtex frontal medial também participa desse processo. Estudos com técnicas de imagem mostram que a atividade neural nessa região aumenta, por exemplo, antes de a pessoa desacelerar depois de um erro de ação. Embora o aprendizado por meio de erros possa nos ajudar a evitar futuros passos em falso, inexperiência ou desatenção podem levar a enganos. Muitos dos equívocos, contudo, se revelam previsíveis, prenunciados por alterações reveladoras no metabolismo cerebral. É o que aponta a pesquisa publicada por agosto 2017 • mentecérebro 53
ciência para viver melhor
Quando cometemos equívocos, o cérebro parece “desacelerar” para mudar de estratégia e evitar deslizes futuros; o córtex frontal medial participa desse processo
minha equipe no periódico científico Proceedings of the National Academy of Sciences USA. Juntamente com o neurocientista cognitivo Tom Eichele, da Universidade de Bergen, da Noruega, e outros colegas, pedi a 13 adultos jovens que realizassem uma tarefa enquanto monitorávamos sua atividade cerebral por RMf. Observamos alterações nítidas, mas graduais, na ativação de duas redes cerebrais, que começavam cerca de 30 segundos antes que nossos indivíduos cometessem erros. DISPARATES SUBCONSCIENTES Uma das áreas cerebrais, a região de modo padrão, é geralmente mais ativa quando está em repouso e se acalma quando a pessoa está empenhada numa tarefa. Porém, diante de um erro, a parte posterior dessa rede – que inclui o córtex retroesplênico, localizado perto do centro do cérebro na superfície – tornou-se mais ativa, indicando que a mente estava entretanto em estado de relaxamento. Enquanto isto, a atividade declinou nas áreas do lobo frontal que ganha vida sempre que a pessoa está trabalhando com afinco em algo, sugerindo que ela estava também se tornando menos empenhada na tarefa prestes a acontecer. Nossos resultados mostram que erros são o produto de alterações graduais no cérebro – e não acidentes imprevisíveis. Tais ajustes poderiam ser usados para prenunciar falhas, particularmente aquelas que ocorrem durante tarefas monótonas. No futuro, talvez as pessoas possam usar dispositivos portáteis que monitorem esses estados cerebrais para prevenir erros com consequências graves, como acidentes. Enquanto isso não acontece, uma constatação óbvia – mas nem por isso menos eficiente – parece ser eficaz: na maioria das vezes, respirar fundo e se 54
manter no momento presente é o caminho mais eficiente para evitar erros. Estamos cientes de grande parte dos nossos erros, mas, muitas vezes, erramos sem perceber. Surge aí uma dúvida: nosso cérebro reage a enganos que não identificamos da mesma maneira que àqueles dos quais estamos cientes? As respostas aos equívocos conscientes não têm características em comum – elas apresentam algumas diferenças. O psicólogo cognitivo Sander Nieuwenhuis, atualmente na Universidade de Leiden, na Holanda, e colegas da Universidade de Amsterdã realizaram um estudo no qual mostraram que o córtex frontal medial monitora tanto os erros subconscientes quanto os conscientes. No experimento, voluntários olhavam fixamente uma tela de computador e, quando aparecia um ponto em um dos lados, tentavam dirigir o olhar para a parte oposta. Em seguida, deviam pressionar uma tecla para indicar se achavam que tinham respondido corretamente. As pessoas deixaram de registrar cerca da metade de seus próprios erros, por estar convencidas de que tinham realmente olhado na direção certa, quando não tinham. Os pesquisadores verificaram que, mesmo assim, o córtex frontal medial registrou cada equívoco. Outras partes do cérebro também distinguem entre erros conscientes e inconscientes. Recentemente, meus colegas e eu mostramos que uma região cerebral chamada ínsula permanece silenciosa quando cometemos deslizes dos quais não nos damos conta, embora se apresente alerta em caso de erros dos quais temos ciência. E somente os erros percebidos causam ansiedade e produzem reação corporal.
especial
O desafio de tratar a
dependência
química
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Há décadas o poder público tem tentado, sem sucesso, combater o consumo de drogas. Intervenções policiais – como a ocorrida recentemente na região da Cracolândia, em São Paulo – revelam uma situação crônica e persistente que envolve complexas questões de saúde mental e física, sociais, urbanísticas e de segurança pública
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especial dependência química •
As múltiplas faces do tratamento Muitos profissionais acreditam que o que se contrapõe à dependência não é a abstinência, mas a liberdade de escolha. O enfrentamento do problema requer intervenções amplas nas áreas de saúde mental e educação, além de recursos para ações de habitação, trabalho, lazer e justiça por Luca Loccoman
O AUTOR LUCA LOCCOMAN é psicólogo e psicanalista, especialista em atendimento clínico infantil do Serviço de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), de São Paulo. 56
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especial • dependência química
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urante megaoperação policial, no final de maio, mais de 900 agentes civis e militares prenderam 51 pessoas e retiraram centenas de dependentes químicos da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo. Apesar do alvoroço, a ação resultou na prisão de apenas dois traficantes e na apreensão de aproximadamente 1,5 kg de droga e R$ 1,6 mil em dinheiro, segundo as informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública. A área degradada da capital abriga, há muitos anos, pessoas que usam e comercializam o crack livremente, a qualquer hora do dia ou da noite. O problema é antigo. Os registros de centros de uso dessa droga na cidade datam de 1980, de acordo com a antropóloga Taniele Rui, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela revela que, na época, os usuários se concentravam em São Mateus, zona leste de São Paulo, mas que, com o crescimento da violência e a ação de grupos de extermínio, essas pessoas migraram para a região central, onde se sentiam mais seguras. Os jornais começam a mencionar o termo Cracolândia em meados dos anos 90, época em que foi criada a Delegacia de Repressão ao Crack, uma ação do governo que visava “sumir com a droga do centro”. Mas fracassou, como tantas outras intervenções policiais posteriores. O problema, crônico e persistente, envolve questões sociais, urbanísticas, de saúde e de segurança pública. Em razão da complexidade, a resposta para enfrentar a situação exige intervenções mais amplas e recursos de outras áreas como educação, habitação, trabalho, lazer e justiça. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem proposto discutir formas de enfrentamento do uso abusivo de drogas ilegais, 58
argumentando que o problema tem raízes na desigualdade social e que apenas articulações em rede, da qual participem diversos setores e instituições sociais, podem ser eficazes para resolver a questão. O fato é que as cenas dos usuários de crack que se espalharam recentemente reacenderam o debate: qual seria o tratamento mais indicado para dependentes químicos? GRAVES EFEITOS DO CRACK O assunto é polêmico e divide profissionais. Diversos especialistas afirmam que esse tipo de droga age de maneira tão violenta no organismo do usuário que, muitas vezes, não permite que a pessoa entenda a gravidade de sua situação e o quanto seu comportamento pode ser prejudicial para ele mesmo e para os outros. É com base nessa ideia, aliás, que se sustenta o argumento da internação compulsória temporária, em que profissionais da saúde podem avaliar adultos e crianças adictos para colocá-los em unidades de tratamento, mesmo contra a vontade dessas pessoas. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), referência no tratamento de casos de toxicomanias, se coloca a favor da internação coercitiva e argumenta que esse tipo de intervenção é indicado para situações graves e emergenciais, quando a pessoa não tem condições de fazer avaliações com discernimento (leia quadro ao lado). Laranjeira, coordenador de uma casa de saúde que atende esses casos, afirma que depois da crise inicial a maioria dos indivíduos – que a princípio foram conduzidos de maneira forçada – começa a ter condições de analisar melhor a situação e passa a concordar com o tratamento. Sua recomendação é que, de-
zanone fraissat/folhapress
TRÊS FORMAS DE INTERNAÇÃO Atualmente estão previstos três tipos de internação: voluntária, involuntária e compulsória. A primeira pode ocorrer quando o tratamento intensivo é imprescindível e, nesse caso, a pessoa aceita ser conduzida ao hospital geral por um período de curta duração. A decisão é tomada de acordo com a vontade do paciente. No caso da involuntária, ela é mais frequente em caso de surto ou agressividade exagerada, quando o paciente precisa ser contido, às vezes
até com camisa de força. Nas duas situações é obrigatório o laudo médico corroborando a solicitação, que pode ser feita pela família ou por uma instituição. Há ainda a internação compulsória, que tem como diferencial a avaliação de um juiz, usada nos casos em que a pessoa esteja correndo risco de morte devido ao uso de drogas ou de transtornos mentais. Essa ação, usada como último recurso, ocorre mesmo contra a vontade do paciente.
CRACOLÂNDIA, no centro de São Paulo: confusão entre definição de traficante, usuário e dependente dificulta tratamento e dissemina preconceito
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fotos: assessoria de comunicação/adesaf
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DE BRAÇOS ABERTOS: programa criado na cidade de São Paulo, em 2014, priorizou a política de redução de danos entre dependentes da região central
FAMÍLIA, CODEPENDÊNCIA E LAÇO SOCIAL Ter um ente querido dependente de alguma droga costuma ser muito doloroso. Em geral, os conflitos e as dificuldades são vivenciados por todos que estão ao redor. Nessas situações, é comum que ocorra mudanças significativas na estrutura do sistema familiar. A drogadição pode ser considerada como um sintoma compartilhado, uma vez que, não raro, o impacto que o uso abusivo de substâncias químicas por uma pessoa pode causar àqueles que estão próximos corresponde aos efeitos experimentados pelo próprio adicto. Diante do sentimento de impotência e desespero que os parentes experimentam, é comum que tentem, a qualquer custo, fazer com que o dependente não chegue perto de nenhuma droga ou, ainda, evitem que ele assuma as responsabilidades implicadas no consumo descontrolado, como se essa atitude pudesse protegê-lo. Com o tempo, o acompanhamento dos comportamentos do adicto tende a se tornar o eixo da organização da família, estabelecendo um tipo de relação, definido por diversos especialistas, como codependente. Diante disso, cabe questionar: que lugar o indivíduo que faz 60
uso abusivo de drogas ocupa no seio familiar? O psicanalista francês René Kaës, professor da Universidade Lumière Lyon 2, na França, defende que nossa subjetividade é constituída nos e pelos grupos, que se organizam sobre ideias e crenças comuns, mas também sobre pactos de renúncias, sacrifícios e expulsão de conteúdos. Kaës afirma que, sem se dar conta, cada membro ocupa uma função dentro da família – em muitos casos, o dependente químico faz as vezes do “porta-voz”, que, segundo o psicanalista, indica o funcionamento do grupo e suas perturbações. Desse ponto de vista, o uso tóxico de entorpecentes por um dos membros pode ser visto como um indício de comprometimento das relações grupais. Essa leitura sobre o fenômeno da drogadição permite observar e avaliar a dinâmica da família, os efeitos da dependência sobre seus membros e as respostas de todos diante da situação. E, assim, elaborar intervenções que considerem a implicação subjetiva de cada um, pois a recuperação está relacionada com a segurança e estabilidade que os vínculos familiares e sociais proporcionam.
pois que o quadro é estabilizado, o paciente deve fazer acompanhamento ambulatorial, frequentando clínica especializada semanalmente, com assistência médica, psicológica e de assistentes sociais.
imagens: divulgação
PADRÕES DE USO DE DROGAS O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos profissionais atuais mais respeitados quando o assunto é dependência química, faz um importante alerta: a grande maioria de quem consome substâncias psicoativas (legais ou não) não se torna dependente nem mesmo sofre prejuízos relacionados com o hábito, de acordo com estudos epidemiológicos consistentes. Segundo Dartiu, que é coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), aproximadamente 80% dos usuários de crack são pessoas com família, que trabalham e são produtivas e fazem uso recreativo – o que, obviamente, não significa que o risco não seja alto. Mas apenas uma minoria chega a fumar a pedra de forma prejudicial. “Cabe então abandonarmos a visão moralista e ideológica do problema para podermos manter a clareza ao definir se o padrão de consumo de quem nos procura está sendo efetivamente danoso”, ressalta. No clássico O mal-estar na civilização, de 1930, o criador da psicanálise, Sigmund Freud, salienta que nem todo uso de substâncias químicas é necessariamente prejudicial. Um exemplo disso é o consumo de drogas nas cerimônias rituais de povos primitivos e, atualmente, em ocasiões de celebração, em que se bebe “socialmente”. Já no caso da intoxicação, a psicanálise traz elementos que nos permitem fazer uma leitura do fenômeno como uma tentativa de evitar a dor e o sofrimento que podem emergir dos relacionamentos humanos e, a partir daí, pensar a dependência como uma defesa que ajuda a manter os outros a distância. O que está em jogo nesse caso é o afastamento da realidade para encontrar refúgio num mundo próprio – uma das possíveis saídas para o alívio da angústia, que tem raiz nas renúncias que fazemos em benefício da vida na civilização. O desafio é encontrar maneiras
Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o uso abusivo de drogas ilegais tem raízes na desigualdade social e apenas articulações em rede, da qual participem diversos setores e instituições sociais, são eficazes
DOCUMENTÁRIOS: Crack repensar, produzido pela fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), aborda políticas públicas de combate às drogas; usuários, psicólogos, juristas, defensores públicos e cientistas sociais discutem formas de enfrentar o problema. Hotel Laide, dirigido pela antropóloga Débora Diniz, foi lançado este ano na Defensoria Pública de São Paulo; obra apresenta a trajetória de Angélica, de 24 anos, que vive nas ruas desde os 7 e passou por pensão social, na Cracolância agosto 2017 • mentecérebro 61
especial • dependência química
A PEDRA DA EXCLUSÃO O crack provoca a liberação de grandes quantidades de dopamina no cérebro, o que causa efeitos dez vezes mais intensos que a cocaína. Seu potencial de dependência é agravado pelo fácil acesso ao produto, miséria e presença de transtornos psíquicos por Fernanda Teixeira Ribeiro “Hoje deparei com algo novo. Na avenida Tigertale, em Miami, há uma garagem onde uns sujeitos com alguns trocados no bolso estão experimentando um tipo diferente de ‘viagem’. Estão fumando cocaína. Chamam essa versão de ‘base’. Tenho de perguntar ao traficante o que é isso”, anotou o sociólogo americano James Inciardi, ex-diretor do Centro de Estudos em Álcool e Drogas da Universidade de Delaware, sobre uma pesquisa de campo em 1973. Ele menciona um dos produtos feitos do extrato da planta Erythroxylon coca, que menos de dez anos depois seria batizado por usuários e meios de comunicação de “crack” – uma mistura caseira de pasta básica de cocaína, obtida pela maceração ou pulverização das folhas de coca com solvente (como querosene, parafina e álcool), ácido sulfúrico e bicarbonato de sódio. O nome da droga faz referência aos locais onde era comercializada e fumada: casas abandonadas (crack houses) de bairros pobres de Miami, Los Angeles e Nova York, onde usuários se reuniam em grupo para fumar a droga, vendida em “pedras”, em cachimbos improvisados com materiais como latas e copos de plástico. O fogo fazia os cristais estralar, produzindo o som descrito como cracking. Quando inalada, essa mistura de cocaína penetra na corrente sanguínea através dos pulmões e é rapidamente metabolizada, chegando ao cérebro em menos de 20 segundos. A droga estimula a liberação de grandes quantidades do neurotransmissor dopamina, associado à sensação de prazer e de motivação. Esse componente químico age na fenda sináptica, o espaço entre os neurônios, para levar essa informação de uma célula neural a outra se ligando a receptores nas extremidades dos neurônios pós-sinápticos, isto é, aqueles que recebem o estímulo. O resultado é a sensação de bem-estar. Normalmente, a dopamina que sobra na sinapse é reabsorvida pela membrana dos neurônios pré-sinápticos e a sensação é regulada de forma natural. As substâncias presentes no crack agem 62
diretamente sobre esses receptores, bloqueando-os temporariamente. Assim, a dopamina permanece na fenda sináptica, o que aumenta e prolonga o prazer. Por isso, os efeitos mais característicos da droga são euforia e percepção de que se tem confiança e poder – semelhantes aos da cocaína em pó, mas pelo menos dez vezes mais intensos –, além de constrição das artérias cerebrais, o que aumenta o risco de desenvolver doenças cardiovasculares. O uso contínuo leva à diminuição progressiva da dopamina na sinapse, o que costuma causar ansiedade, irritabilidade, sintomas depressivos e desejo de consumir a droga novamente. A absorção da substância pelo organismo vai se alterando, e ele se “habitua” a ela, dando origem à tolerância, fenômeno toxicológico que induz o dependente a aumentar a quantidade de droga para atingir o mesmo efeito inicial ou a buscar outros tipos de substância, como maconha, nicotina e principalmente álcool, para atenuar a “fissura” e os efeitos indesejáveis do consumo. Embora muita gente acredite que basta experimentar a droga uma única vez para ficar preso a ela, tornando-se uma pessoa agressiva, predisposta a depressão e perda da capacidade de raciocínio, especialistas discordam das abordagens que invariavelmente vinculam drogas à dependência e à criminalidade. Especialistas como a psiquiatra Ana Cecília Marques, da Associação Brasileira do Estudo de Álcool e Drogas (Abead), argumentam que não é só a droga que causa dependência. Segundo ela, o processo é mais complexo, está associado a como cada pessoa reage a ela. Isso envolve mais de um determinante, causas conjuntas, como propensão genética, facilidade de acesso à substância, frequência de uso, presença anterior de transtornos mentais, familiares, entre outros aspectos. Para medir a possibilidade de dependência o caminho mais adequado parece ser levar em conta
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o que a Organização das Nações Unidas (ONU) define como “fatores de risco” – tanto individuais como sociais –, como autoestima baixa, predisposição genética, dificuldade de interação social, ambiente familiar instável, falta de acesso a moradia, saúde e educação. Até para drogas “pesadas” existem usuários ocasionais. Por que alguns conseguem cheirar cocaína esporadicamente e outros são dependentes? O que basicamente os diferencia são outros fatores – se a pessoa tem algum transtorno psíquico associado, como depressão e ansiedade, ou se começa a usar o álcool e a cocaína para resolver problemas. Apesar de não “diagnosticarem” a dependência de substâncias psicoativas, os exames de neuroimagem podem mostrar a extensão dos danos causados pela cocaína e seus derivados. Em pessoas que consomem a droga com frequência, há diminuição do fluxo sanguíneo em áreas relacionadas a comportamentos de dependência, como o córtex pré-frontal, envolvido no planejamento de ações e movimento, e os núcleos da base, associados à cognição, às emoções e ao aprendizado. Também há diminuição da integridade da substância branca na região
do córtex frontal, relacionada por alguns estudos ao aumento da impulsividade nos usuários. A intensidade dos efeitos de euforia é proporcional ao bloqueio da reabsorção de dopamina. Ele ainda é mais intenso no caso do crack, ou seja, da droga fumada, o que explica, em parte, a capacidade dessa versão da cocaína de causar maior dependência. Pesquisadores têm estudado o uso de medicamentos que agem sobre as proteínas transportadoras de dopamina, como o modafinil, para tentar reduzir o desejo incontrolável de usar a droga. Em um experimento com 62 dependentes, cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia observaram que a taxa de abstinência foi maior entre os que usaram o remédio (prescrito em vários países para o tratamento de sintomas da narcolepsia) do que entre os que tomaram placebo.
A AUTORA: FERNANDA TEIXEIRA RIBEIRO é jornalista, especialista em neurociência, pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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especial • dependência química de tornar o sofrimento suportável, visando à transformação – e não à alienação. É, portanto, o valor da droga na relação com o outro que nos permite avaliar se o uso é tóxico ou não. É preciso considerar como se constitui uma relação dual com a substância entorpecente, sem que haja um terceiro que faça um corte nesse vínculo, como pressupõem os laços sociais. Em 1930, Freud alerta sobre os riscos desse tipo de relação. “Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração”, escreveu. Dartiu também parte da premissa de que é essencial identificar o papel que a droga desempenha na vida do paciente. E faz uma importante distinção entre usuário ocasional e dependente – o que permite avaliar com mais rigor cada caso e fazer intervenções mais cuidadosas. Segundo ele, o usuário ocasional é capaz de decidir como, quando e o que vai consumir; já o dependente usa substâncias a despeito da sua vontade, sem controle de quantidade e frequência e sem contexto do
uso. Mas, ainda que a maior parte não se torne adicta, especialistas ressaltam que é importante esclarecer a esses indivíduos os riscos envolvidos nas formas prejudiciais de consumo de substâncias químicas. A identificação da adição depende de um diagnóstico adequado, que deve levar em conta diversos aspectos tanto do indivíduo quanto das características do uso. TRATAMENTO MULTIDISCIPLINAR Em relação à dependência de crack, é comum que, antes de tudo, o paciente receba medicamento para tratar problemas como pneumonia, doenças sexualmente transmissíveis e moléstias de pele, em razão da vulnerabilidade a que essas pessoas costumam ficar expostas. Além disso, um dos efeitos do crack é a redução das sensações de fome e sono. Desemprego e situação de rua também podem ser considerados fatores que aumentam a fragilidade. Se houver necessidade de internação, o ideal é que o paciente compreenda o seu estado e aceite a sugestão da equipe multidisciplinar, pois as ações coercitivas, na esmagadora maioria das vezes, costumam levar ao fracasso do tratamento. Dartiu afirma que, de maneira geral, a internação forçada é negativa. A medida se justificaria apenas em aproxi-
VACINA CONTRA DEPENDÊNCIA Pesquisadores da Faculdade Médica Weill Cornell, em Nova York, desenvolveram e utilizaram em animais de laboratório uma vacina que estimula a produção de anticorpos capazes de se conectar e neutralizar as moléculas de cocaína antes que elas cheguem ao cérebro, impedindo a hiperatividade cerebral. A vacina combina o vírus da gripe comum com uma substância que imita a cocaína, de forma que o corpo “interpreta” a cocaína como algo a ser combatido. Ela vem sendo testada em humanos, mas ainda está longe de ser comercializada. O maior desafio é produzir um volume mínimo suficiente de anticorpos 64
e manter seu efeito ao longo do tempo – o bloqueio dura apenas dois meses. Diferentemente da heroína, não há drogas da mesma classe da cocaína que possam ser usadas como estratégia de redução de danos. Entretanto, um estudo observacional com 50 usuários de crack, conduzido por Dartiu Xavier, apontou que 68% deles conseguiram resistir à abstinência com o uso de maconha. A descoberta mostra que estudar os canabinoides e seu efeito no cérebro pode ajudar a desenvolver tratamentos mais eficazes para a dependência química (por Fernanda Teixeira Ribeiro).
DROGAS DIFERENTES, EFEITO IGUAL As drogas atingem vários alvos diferentes no cérebro, mas todas elas, direta ou indiretamente, aumentam a quantidade de dopamina no núcleo accumbens, provocando o vício. Do conhecimento desses alvos surgem ideias para novos tratamentos.
• Projeção do córtex, amígdala ou hipocampo
A nicotina induz as células da área tegmental ventral (ATV) a liberar dopamina
A cocaína e outros estimulantes semelhantes bloqueiam a percepção da presença de dopamina ou aumentam a liberação de dopamina pelos terminais das células da área tegmental ventral (atv), ampliando a sinalização de dopamina no núcleo accumbens (NA) Neurônio da ATV que libera dopamina
Glutamato
Receptor de glutamato Cocaína
Transportador de dopamina
Neurônio inibitório na ATV
CREB
Delta-FosB Receptor opiáceo
Correspondente natural do ópio
Opiáceos e álcool aumentam a liberação de dopamina ao reduzir a atividade de neurônios que deveriam estar inibindo as células nervosas secretoras de dopamina
Neurônio do NA O ópio e seus parentes naturais ou sintéticos imitam algumas das ações da dopamina nas células do NA
terese winslow
Muitas drogas, incluindo a cocaína, as anfetaminas (speed), a morfina e o álcool, podem alterar por muito tempo as respostas das células do NA e da ATV ao glutamato, contribuindo para o desejo irrefreável pela droga ao aumentar as lembranças de experiências passadas, mesmo quando a substância não está mais sendo consumida
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especial • dependência química madamente 5% dos casos, quando o usuário de crack apresenta também problema mental grave. Diante do argumento da desorientação em que estaria o dependente químico, o psiquiatra defende que a falta de juízo crítico da realidade pode levar o indivíduo a se colocar em situações de risco, mas que esse comportamento está mais associado com quadros de intenso sofrimento psíquico do que com o uso do crack em si. Segundo o psiquiatra, a experiência do Proad mostra que a taxa de recuperação dos dependentes é maior em contexto ambulatorial, não durante internação. “É relativamente fácil alguém ficar longe da droga quando está internado, isolado, em condições ideais. O difícil é se manter longe quando você volta para o convívio com a família, com o emprego, com os problemas”, afirma. Ele observa que o tratamento em regime fechado é muito mais caro e exige mais recursos, tanto para as famílias que procuram uma clínica particular quanto para a construção de políticas públicas para lidar com a questão. Nessa perspectiva, o programa De Braços Abertos deu um importante passo em direção à implantação de uma política de redução de danos em São Paulo. Criada em 2014,
a iniciativa foi estruturada na região do bairro da Luz com o objetivo de atender as pessoas de forma mais integral, envolvendo diferentes recursos, como trabalho, saúde, assistência social, segurança urbana e direitos humanos, com interlocução de experiências com as cidades de Vancouver e Amsterdã. Algo em torno de 65% dos usuários beneficiários do programa relatou ter reduzido o consumo de crack, segundo pesquisa divulgada pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD). Porém, de acordo com Relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos, o De Braços Abertos foi substituído pelo projeto Redenção, da atual gestão de São Paulo. FASE DE RECUPERAÇÃO Estudos desenvolvidos em centros de pesquisa de várias partes do mundo mostram que, de todas as pessoas que procuram ajuda especializada para se livrar das drogas, apenas 30% aproximadamente deixam a dependência. Seja na modalidade de internação ou tratamento ambulatorial, entre os especialistas há maior consenso de que, depois das primeiras avaliações, as chances de sucesso no tratamento aumentam quando as intervenções incluem abordagens médicas e psi-
A AÇÃO DA COCAÍNA A cocaína bloqueia a reabsorção do neurotransmissor dopamina pelos neurônios pré-sinápticos; assim, esse componente químico fica por mais tempo na fenda sináptica entre as células neurais, potencializando a sensação de prazer Sinapse com cocaína
Sinapse normal
Cocaína bloqueia a recaptação da dopamina Dopamina
Receptor de dopamina
Terminal pré-sináptico Dendrito
Mitocôndria
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Dopamina
Receptor de dopamina Dendrito
Mitocôndria
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Terminal pré-sináptico
cossociais, com participação da família e de grupos de apoio, como os Narcóticos Anônimos (NA), além de, quando necessário, uso de medicamentos. A elaboração do projeto terapêutico com a participação do interessado é outro passo fundamental. O período de acompanhamento inicial varia, mas pode levar em média de uma semana a dois meses. Se tudo correr bem, os pacientes entram na fase de recuperação. O dependente de crack tem características específicas. Muitos apresentam compulsão e sofrem bastante para lidar com o desconforto físico, emocional e psicológico – aí mora o perigo de o paciente voltar a usar a droga. A partir desse período, o trabalho é focado na prevenção de recaídas e sua relação com o laço social. A nova política de saúde mental visa ao tratamento em locais que o paciente possa frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da convivência familiar e comunitária. Os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPSad), do Sistema Único de Saúde (SUS), oferecem acompanhamento em saúde mental aberto e comunitário e representam, hoje, uma das principais instituições às quais são encaminhadas as pessoas que sofrem com a dependência química. O dispositivo oferece atividades terapêuticas e preventivas e presta atendimento diário aos usuários dos serviços, dentro da lógica de redução de danos. Com cuidados personalizados, o acompanhamento é feito em diversas modalidades (intensivo, semi-intensivo e não intensivo) e, quando necessário, o paciente é mantido em repouso ou em desintoxicação ambulatorial. A família também é acompanhada, já que seu envolvimento no tratamento é um preditor de sucesso terapêutico da dependência química – e um fator de proteção e prevenção à recaída. Com o tempo, o indivíduo passa a consultar os profissionais de saúde com menor frequência. Quem acompanha esses casos deve ter sempre em mente que as recaídas fazem parte do processo de recuperação e não são um fracasso terapêutico – enxergar a reincidência como retrocesso no tratamento tende a levar à sensação de impotência ou, ainda
Ao contrário do que se acredita, cerca de oito em cada dez usuários de crack são pessoas com família, trabalham, são produtivas e fazem uso recreativo da droga, o que obviamente não significa que o risco seja baixo
pior, à culpabilização ou criminalização do paciente. Quem recai sempre pode continuar de onde parou. Uma questão sempre presente entre profissionais da saúde mental diz respeito às possibilidades de tratar a dependência retirando o contato da pessoa com a droga. O acompanhamento de indivíduos adictos é longo e a melhora é uma conquista do paciente – não de quem intervém. Entre idas e vindas, quem sofre com a dependência tem a chance de aprender a administrar sua relação com as substâncias químicas. Nos casos em que o paciente não se abstém completamente do uso, o indicado é que o profissional o ajude a modificar o padrão de consumo, visando à redução de danos, algo que, assim que alcançado, certamente deve ser comemorado no tratamento. Afinal, como afirma Dartiu, o que se contrapõe à dependência não é a abstinência, mas a liberdade de escolha. Como, então, medir os prejuízos, os avanços? Além da avaliação da condição orgânica, um poderoso indicador é observar se a relação com as drogas passou a ser vivida de maneira que se oponha às trocas comunitárias de forma radical, oferecendo indícios de rompimento com os laços sociais. É justamente esse cenário que vemos na Cracolândia. A maioria ali perdeu, de forma drástica, os vínculos com a família, o parceiro amoroso, o trabalho. A grave situação tende a levar a medidas extremas, e o debate sobre como resolver a questão se intensifica, pois, apesar de todos os esforços, de diversas perspectivas, ainda não há soluções fáceis ou tão efetivas quanto gostaríamos.
PARA SABER MAIS Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD). http://pbpd.org. br/publicacao/pesquisasobre-o-programa-debracos-abertos/. Reflexões sobre o tratamento de dependentes. Dartiu Xavier da Silveira. http://www. sistemadinamico.com. br/portfolio/web/dartiu_ xavier/pt/site_extras_ detalhes.asp?id=3789. Acesso em 3 de jullho de 2017: Shaping vulnerability to addiction – The contribution of behavior, neural circuits and molecular mechanisms. Gabor Egervari, Roberto Ciccocioppo e outros, em Neuroscience & Biobehavioral Reviews, disponível online; maio de 2017: http://www. sciencedirect.com/ science/article/pii/ S0149763417300866 Saúde mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social. Carmen Lúcia Albuquerque de Santana e Anderson da Silva Rosa (orgs.). Epidaurus Medicina e Arte, 2016. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2003.
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especial dependência química •
Armadilhas do DNA A predisposição à dependência de álcool e outras drogas, assim como a tendência à depressão, estão inscritas no código genético. Embora essa constatação não indique que a pessoa esteja sujeita a esses quadros, a identificação de marcadores moleculares pode ajudar na prevenção por John I. Nurnberger Jr. e Laura Jean Bierut
OS AUTORES JOHN I. NURNBERGER JR. é psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Indiana e diretor do Instituto de Pesquisa Psiquiátrica da mesma instituição. LAURA JEAN BIERUT é geneticista, professora da Universidade Washington em St. Louis. 68
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especial • dependência química
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á muito se sabe que a tendência para se tornar dependente de álcool é mais acentuada em algumas famílias. Muitas vezes, esse fato reforça o estigma social ligado ao alcoolismo. Para muitos cientistas, essa suposta hereditariedade sugeria que algum componente genético subjacente à vulnerabilidade à doença fosse transmitido de geração em geração. Com os rápidos avanços tecnológicos ocorridos nos últimos dez anos, já é possível descobrir e analisar genes com relativa facilidade e determinar as raízes biológicas de transtornos complexos, como o abuso e a dependência de substâncias químicas. O exame de padrões de herança em grandes populações e o levantamento de minúsculas variações no genoma de cada indivíduo permitem identificar genes específicos que exercem influência forte ou sutil sobre sua fisiologia e sobre a predisposição a determinadas doenças. Como acontece com vários transtornos humanos, as causas do alcoolismo são múltiplas e sua origem não é inteiramente genética. Os genes, porém, desempenham papel importante, já que interferem em processos físicos e mentais que interagem de maneira complexa uns com os outros e com as experiências de vida, gerando proteção ou suscetibilidade. Aproximadamente uma dezena de genes que influenciam a propensão ao alcoo-
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lismo já foi identificada, embora certamente existam outros. Variantes de cada um dos genes conhecidos aumentam apenas moderadamente a vulnerabilidade ao problema, mas muitas delas são comuns na população e podem ter efeitos mais amplos sobre hábitos de consumo de álcool e sobre transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade. ENZIMA MAIS LENTA Os genes influenciam decisivamente a fisiologia humana porque dão origem a cerca de 100 mil tipos de proteínas, cada qual com papel direto no funcionamento diário do organismo. A forte conexão entre variações na fisiologia e suscetibilidade individual a problemas relacionados ao álcool é bem ilustrada pelo primeiro gene identificado como fator de risco para o desenvolvimento de dependência alcoólica. Décadas atrás, pesquisadores começaram a investigar uma tendência comumente observada em asiáticos, que costumam ficar corados ao ingerir bebidas alcoólicas. Seu exame de sangue mostrou níveis aumentados de acetaldeído, produto da metabolização do álcool, o que resulta em desconfortável sensação de calor na pele, palpitações e fraqueza. Na década de 80, essa reação foi relacionada a uma enzima envolvida no metabolismo do álcool, a acetaldeído-desidrogenase, e o gene que a codifica, o ALDH1, foi identificado. Essa enzima realiza
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a quebra do acetaldeído, mas pequenas variações no gene ALDH1 a faziam trabalhar de forma mais lenta. Quando ingeriam álcool, o acetaldeído – que pode ser tóxico em altas doses – se acumulava no organismo. Desde então, descobriu-se que essa variante do gene ALDH1 é comum em populações asiáticas – 44% dos japoneses, 53% dos vietnamitas, 27% dos coreanos e 30% dos chineses a possuem. Como esperado, essas pessoas são seis vezes menos propensas a desenvolver alcoolismo. Portanto, ela é um exemplo de variação genética que pode prote-
ger contra o desenvolvimento do transtorno. O alcoolismo é geneticamente complexo: muitos genes estão envolvidos no transtorno, e suas interações entre si e com o ambiente devem ser examinadas para obter um quadro completo dos processos que podem levar ao transtorno. O ser humano é igualmente complexo, e os problemas com álcool se manifestam de diversas maneiras, especialmente nos estágios iniciais da doença, embora os casos se tornem clinicamente parecidos em fases agudas e avançadas. Portanto, quando investigam a biologia do alcoolismo, os pesquisaagosto 2017 • mentecérebro 71
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O VOO (2012), dirigido Robert Zemeckis: no filme, o protagonista vivido por Denzel Washington é um piloto reconhecido por sua perícia que enfrenta problemas de alcoolismo
dores costumam definir o problema de forma cuidadosa – distinguindo, por exemplo, dependência real do abuso de álcool, síndrome menos grave do ponto de vista médico. Um padrão psiquiátrico amplamente utilizado para o diagnóstico de dependência, seja de álcool, seja de outra substância química, exige pelo menos três dos seguintes sintomas nos 12 meses anteriores: tolerância a altas doses, reações de abstinência, perda de controle no uso da substância, esforços para parar ou diminuir o consumo, muito tempo gasto com o hábito, desistência da realização de outras atividades e continuação do uso apesar de distúrbios físicos ou psicológicos resultantes. Quem preenche esses critérios tem também com frequência vários casos de alcoolismo na família. Com a participação voluntária dessas pessoas, nós e outros pesquisadores começamos a conectar determinados sintomas às suas origens fisiológicas e, finalmente, aos genes responsáveis. De fato, uma estratégia importante na busca de genes que afetam o risco de dependência de álcool tem sido a análise de endofenótipos: características (fenótipos) que, embora invisíveis externamente, podem ser mensuradas. Assim, o estudo dos endofenótipos permite avaliar se certos padrões são mais comuns em pessoas com um transtorno complexo e qual o risco de desenvolver determinada doença. Essa ideia é baseada no pressuposto de que os endofenótipos revelam melhor as bases biológicas de um transtorno que os sintomas comportamentais, por representarem um traço físico fundamental mais proximamente ligado à sua fonte em um gene variante. 72
Os padrões de atividade elétrica do cérebro, por exemplo, representam uma forma de endofenótipo. Utilizando a eletroencefalografia (EEG), pesquisadores registram padrões de disparo neuronal. Algoritmos computacionais sofisticados podem analisar os dados e identificar as regiões cerebrais de onde os sinais provavelmente se originaram, oferecendo pistas adicionais ao tipo de processamento cognitivo que está ocorrendo. O padrão geral de ondas cerebrais e picos de atividade neuronal em resposta a estímulos específicos, vistos nas leituras de EEG, é distinto para diferentes indivíduos e serve como uma espécie de impressão digital neurológica. Esses padrões podem refletir o equilíbrio geral entre processos cerebrais excitatórios, que tornam os neurônios mais preparados para responder à sinalização vinda de outros neurônios, e inibitórios, que os deixam menos preparados. LAÇOS DE FAMÍLIA É bastante alta a possibilidade de transmissão hereditária de tais padrões eletrofisiológicos, cujas características diferem entre alcoolistas e pessoas sem o problema. Nos primeiros, as excitações excedem e sobrepujam as inibições. Esse desequilíbrio, ou “desinibição”, pode ser visto também nos filhos de pais alcoolistas e prediz com alto grau de acerto se uma pessoa desenvolverá dependência, sugerindo que esses padrões cerebrais são um marcador que indica predisposição ao alcoolismo biologicamente herdada. Além disso, esses padrões de atividade característicos podem apontar a causa da vulnerabilidade herdada: acredita-se que a desinibição
provém de uma ausência generalizada de funcionamento de neurônios inibitórios nas áreas cerebrais responsáveis pelo julgamento e tomada de decisões. As pessoas sem esses circuitos inibitórios em geral são mais suscetíveis a impulsos que se originam nas regiões cerebrais primitivas, como a amígdala. Na década de 80, algumas evidências mostraram que a atividade elétrica cerebral era capaz de revelar o risco de uma pessoa desenvolver dependência de álcool. Isso ajudou a promover a ideia de que identificar os genes por trás dos fenótipos associados ao alcoolismo era algo útil e exequível. Com o apoio do Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo, teve início o Estudo colaborativo da genética do alcoolismo (Coga, na si-
gla em inglês), do qual ambos participamos. Atualmente, o estudo envolve oito centros de pesquisa espalhados pelos Estados Unidos, além de milhares de pacientes e familiares. No início do Coga, pesquisadores tentaram identificar famílias gravemente afetadas pela dependência de álcool. Mais de 50% do risco total de alcoolismo é atribuível a fatores hereditários, o que torna os grupos familiares um importante recurso para rastrear traços específicos e ligá-los aos genes relevantes (veja quadro na pág. abaixo). Cerca de 1.200 pessoas que buscavam tratamento para dependência alcoólica e seus parentes – mais de 11 mil pessoas no total – foram entrevistados. Foi constatado que 262 famílias eram “profundamente afetadas”, o
RASTREAMENTO DE MARCADORES GENÉTICOS Identificar os genes que influenciam um problema complexo como o alcoolismo requer, a princípio, associar características do transtorno a regiões específicas de cromossomos. Essa análise é mais fácil em grupos geneticamente semelhantes, como famílias com vários membros afetados em maior ou menor grau. Trechos de cromossomo conhecidos como marcadores aparecem com mais frequência nos parentes afetados e podem indicar sequências de DNA envolvidas com o desenvolvimento do alcoolismo. Uma investigação detalhada dessas regiões pode, então, revelar o gene cuja função afeta as respostas ao álcool.
Participantes do estudo Dependentes de álcool Não afetados
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AT C G AT T GCACACA CACACACA CACACACA CACACACA CACATGAC GG TACG
Marcador
Marcador Microssatélite
Marcador Genes
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Pacientes
Famílias
Amostra de DNA
Recrutamento
Levantamento cromossômico
Análise de ligação
Voluntários alcoolistas que buscam tratamento e seus parentes são entrevistados e diagnosticados segundo critérios psiquiátricos para dependência de álcool. Todos os participantes fornecem amostras de DNA.
Pesquisadores procuram nos cromossomos de cada pessoa padrões repetidos de DNA, conhecidos como marcadores moleculares. Em um indivíduo, uma sequência alternada das bases citosina e adenina pode se repetir 17 vezes, por exemplo, enquanto no mesmo local outro parente tem apenas 12 repetições dessa sequência.
Os marcadores encontrados com frequência em pessoas com uma característica específica do transtorno e menos frequentemente em um parente não afetado indicam uma região cromossômica ligada a esse traço.
Associação gênica Um mapeamento mais detalhado da região de DNA próxima ao marcador revela genes específicos cujo papel no transtorno pode ser investigado.
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especial • dependência química que significa que três ou mais parentes de primeiro grau do paciente tinham sido diagnosticados com o mesmo problema. Os endofenótipos eletrofisiológicos cerebrais dos pacientes e de parentes não afetados foram avaliados, e os indivíduos foram submetidos a entrevistas para avaliar características adicionais associadas ao risco de alcoolismo. Os participantes forneceram amostras de sangue para avaliação do material genético, buscando marcadores moleculares peculiares. Por meio desse método, elos significativos foram encontrados nos cromossomos 1, 2, 4 e 7, e o mapeamento genético subsequentemente identificou diversos genes específicos nessas regiões, incluindo ADH4 e GABRA2, no cromossomo 4, e CHRM2, no cromossomo 7. Outros grupos de pesquisa que estudam populações separadas documentaram associações entre o risco de alcoolismo e os mesmos genes dos mesmos cromossomos. Diversas pesquisas têm mostrado que algumas variantes dos genes que codificam proteínas associadas aos receptores do neurotransmissor inibitório GABA aumentam a vulnerabilidade ao alcoolismo. Uma classe desses receptores, conhecida como GABA, é feita de subunidades proteicas dispostas ao redor de um canal que permite a entra-
da de íons cloreto na célula. Descobriu-se que variações no gene GABRA2, que codifica uma das subunidades do receptor GABAA, influenciam fortemente um endofenótipo da EEG. Neurônios que contêm receptores de GABA são abundantes no córtex frontal, onde a perda generalizada de inibição pode levar a convulsões. Em geral, transtornos convulsivos são tratados com medicamentos que aumentam a atividade gabaérgica, promovendo assim uma inibição. Acredita-se, no entanto, que uma perda menos generalizada de inibição induzida pelo GABA esteja envolvida no baixo controle comportamental ou aumento da impulsividade, característica de vários transtornos psiquiátricos, incluindo transtorno afetivo bipolar e dependência química. Outros estudos demonstraram que variantes do gene GABRA2 estão relacionadas ao alcoolismo. CONEXÃO DIRETA Outro neurotransmissor que se destaca na progressão ao alcoolismo, segundo o estudo de endofenótipos, é a acetilcolina. Neurônios colinérgicos têm papel importante na modulação do equilíbrio geral entre excitação e inibição no cérebro. Nossos experimentos revelaram uma conexão com a região cro-
FUMAÇA PERIGOSA
O Brasil tem
18,2
milhões de fumantes
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O consumo de cigarros é um dos principais fatores de risco para morte precoce e incapacidade em todo o mundo. Entre 1990 e 2015, a porcentagem de fumantes diários no Brasil caiu de 29% para 12% entre homens e de 19% para 8% entre mulheres, segundo resultados de uma pesquisa recém-publicada no periódico científico The Lancet. Ainda assim, o país ocupa o oitavo lugar no ranking de número absoluto de fumantes (7,1 milhões de mulheres e 11,1 milhões de homens)
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NA BALADA: jovens costumam beber em excesso em boates, bares e festas; consequências mais sérias geralmente aparecerão no futuro
mossômica que contém o gene CHRM2, que codifica um tipo particular de receptor de acetilcolina, conhecido como receptor colinérgico muscarínico M2 (CHRM2). A ativação do receptor CHRM2 altera a sinalização neural nas faixas de frequência lenta delta e teta, que reconhecidamente exercem um papel em funções cognitivas como tomada de decisões e atenção (veja quadro na pág. 76). Nós conseguimos ligar também as variantes do gene CHRM2 às condições clínicas de dependência de álcool e depressão maior. As variantes do CHRM2 que aparentemente influenciam a atividade elétrica do cérebro no alcoolismo e na depressão parecem não alterar a estrutura do receptor de acetilcolina, mas sim sua fabricação. Essa associação confirma parte de uma hipótese formulada em 1976 pelo psiquiatra David Janowsky, da Universidade de Vanderbilt em Nashville, segundo a qual o cérebro necessita manter um equilíbrio preciso entre diferentes processos regulatórios para preservar sua atividade normal. Janowsky propôs que a hipersensibilidade muscarínica (efeito aumentado da acetilcolina sobre os recepto-
res colinérgicos muscarínicos) em pessoas com tendência a depressão e condições relacionadas era uma das causas do desequilíbrio cerebral. As relações recentemente descobertas entre CHRM2, alcoolismo e depressão são as primeiras a mostrar uma conexão direta entre um gene específico e essa hipersensibilidade, e os achados relativos ao sistema colinérgico representam novos alvos para o desenvolvimento de tratamentos para alcoolismo e depressão. Um teste importante para confirmar e aprimorar todos esses achados genéticos seria avaliar como eles influenciam as pessoas no início de sua vida, mesmo antes do início da ingestão intensa de álcool, e se as variantes de genes podem predizer o desenvolvimento do alcoolismo. O Coga adicionou essa questão ao estudo, acompanhando membros jovens das famílias de alto risco. Os resultados iniciais mostraram que, em adolescentes, as variantes de risco do gene ADH estão de fato associadas a uma introdução precoce à bebida e ao desenvolvimento subsequente de problemas com álcool. Quando adolescentes, porém, portadores agosto 2017 • mentecérebro 75
especial • dependência química ASSINATURAS NO CÉREBRO REVELAM FATORES DE RISCO Determinados padrões de atividade elétrica cerebral conhecidos como endofenótipos podem ser mensurados. Eles revelam características fisiológicas distintas em dependentes de álcool e outras pessoas com alto risco de desenvolver o transtorno. Pesquisadores têm usado essas diferentes assinaturas da função cerebral para descobrir os genes ligados ao alcoolismo e problemas relacionados.
Quando se monitora a atividade cerebral por meio de eletroencefalografia, vê-se um pico na força do sinal entre 300 e 500 milissegundos após um estímulo, tal como um flash de luz. Conhecida como P300, essa resposta é significativamente mais fraca nos dependentes de álcool, mesmo quando abstinentes, do que em não dependentes. O mesmo endofenótipo é encontrado nos filhos de pais alcoólicos, indicando que essa diferença funcional no cérebro precede o início da ingestão alcoólica compulsiva e é, em si, um fator de risco.
Amplitude (microvolts)
Média das respostas Homens alcoolistas
Homens não alcoolistas
Filhos de homens alcoolistas
Filhos de homens não alcoolistas
30 20 10 0 0 10
0 00 300 500 700 Tempo após o estímulo (milissegundos)
700
Dissecando a resposta
Associação gênica
A P300 consiste em sinais elétricos nas faixas de baixa frequência delta e teta, associadas com consciência e tomada de decisão. Leituras de EEG de não alcoolistas e alcoolistas (veja abaixo) revelam um sinal mais fraco nos dependentes após 300 ms. Esse traço foi associado, em estudos com famílias, tanto ao alcoolismo como à depressão.
Em alcoolistas, uma redução na força dos sinais teta e delta foi relacionada também a variantes do CHRM2, gene que codifica um receptor para a acetilcolina, que regula a excitabilidade neural.
Média das respostas 10
3 2 1
5 Frequência (hertz)
Amplitude (microvolts)
4
Homens não alcoolistas
0 10
Alfa
Homens alcoolistas
Teta
5
Análise de ligação genética
0 0 0
100
300
500
Tempo (milissegundos)
76
Gene CHRM2
Delta 700
Cromossomo 7
lucy reading-ikkanda; para “event-related potentials in coa’s”, por bernice porjesz e henri begleiter, em alcohol health & research world, vol. 21, no 3, 1997 (gráfico no alto à direita); retirado de “the utility of neurophysiological markers in the study of alcoholism”, por bernice porjesz e outros, em clinical neurophysiology, vol. 116, no 5, maio de 2005; utilizado com permissão da elsevier (gráficos à esquerda)
A resposta P300
das variantes de risco do CHRM2 estão mais propensos a sintomas precoces de depressão, e não a distúrbios com álcool. Jovens com a variante de risco do GABRA2 mais frequentemente apresentam problemas de conduta, tais como complicações com a polícia, envolvimento em brigas e expulsão da escola, em vez de início precoce de ingestão alcoólica. Em adultos jovens, as variantes de risco do gene do receptor GABA estão associadas à dependência de álcool. Esses achados reforçam a ideia de que há vários caminhos para o alcoolismo e diferentes vias psicológicas que levam a ele. Talvez as variantes de risco do ADH contribuam para o desenvolvimento do alcoolismo por meio da promoção direta de ingestão alcoólica pesada, enquanto as variantes do gene do receptor GABRA2 predispõem as pessoas a problemas de conduta, que são, por si sós, um fator de risco para o alcoolismo. Por sua vez, o CHRM2 pode agir por meio da depressão e outros sintomas internalizantes para estimular o uso da bebida. POSSIBILIDADES DE ESCOLHA A identificação de um maior número de genes envolvidos com a dependência de álcool possibilitará uma avaliação mais precisa do risco para alcoolismo e a prescrição de tratamentos mais específicos a indivíduos com transtornos relacionados ao consumo de álcool. Em geral, os médicos analisam o perfil genético de uma pessoa e outros fatores de risco familiares e ambientais quando fazem prescrições medicamentosas e comportamentais para doenças como hipertensão, câncer e transtorno afetivo bipolar. A identificação de variantes genéticas nos pacientes para adequar decisões de tratamento ainda está no estágio inicial. Esperamos ter no futuro diretrizes para ajudar no desenvolvimento de tais estratégias individualizadas. Os recentes achados genéticos relacionados ao alcoolismo podem sugerir também meios para melhorar a prevenção e o tratamento do tabagismo e de outras formas de dependência de substâncias. Os transtornos de humor e ansiedade entram nessa categoria. E a associação entre variações do CHRM2, alcoolismo e depressão ilustra
Células-conceito conectam a percepção à memória, produzem uma representação abstrata e esparsa de conhecimento semântico a respeito de tudo que compõe nossos mundos individuais e nos parece significativo como esses distúrbios podem vir, em parte, de uma fonte comum. Entretanto, genética não é destino – que fique bem claro. Os genes podem interagir com situações específicas, como abuso de substâncias, e causar distúrbios em alguns portadores, mas não em outros. Se metade do risco de alcoolismo é herdada, a outra metade deve se originar em outras fontes. Ninguém se torna dependente de álcool sem fazer más escolhas, mas é claro que algumas pessoas são mais sensíveis à bebida que outras expostas ao mesmo conjunto de circunstâncias. Críticos argumentam que a pesquisa genética sobre a dependência de álcool e outros problemas, como o tabagismo, não oferece uma boa relação custo-benefício do ponto de vista da saúde pública. Alguns dizem, por exemplo, que seria melhor direcionar recursos para reduzir o consumo de substâncias com potencial de abuso do que identificar – e estigmatizar – os indivíduos com maior propensão a ser afetados por elas. Sem dúvida, essa abordagem é válida. Mas é essencial também oferecer meios de as pessoas conhecerem melhor seus riscos para que, bem informadas, possam fazer escolhas. Testes genéticos já oferecem oportunidades de autoavaliação impossíveis no passado, e a demanda para a realização de perfis genéticos crescerá nos próximos anos. Os chamados chips de DNA poderiam ser utilizados para detectar as variantes gênicas de uma pessoa bem como variações na atividade gênica, e para produzir uma série de recomendações médicas, psiquiátricas e comportamentais que o indivíduo, segundo sua vontade, pode ou não seguir.
PARA SABER MAIS Álcool e drogas na adolescência - um guia para pais e professores. Ilana Pinsky, Cesar Pazinatto. Editora Contexto , 2014. Endophenotypes successfully lead to gene identification: results from the collaborative study on the genetics of alcoholism. Danielle M. Dick e colegas, em Behavior Genetics, vol. 36, no 1, págs. 112-126, 2006. Evidence of common and specific genetic effects: association of the muscarinic acetylcholine receptor m2 (CHRM2) gene with alcohol dependence and major depressive syndrome. Jen C. Wang e outros, em Human Molecular Genetics, vol. 13, no 17, págs. 1903-1911, 2004. Disponível no site www. niaaa.nih.gov/Publications/Alcoholresearch
agosto 2017 • mentecérebro 77
livro | resenha Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. Christian Dunker. Ubu Editora, 2017. 320 págs. R$ 54,00.
Intimidades elaboradas A seleção de textos apresentada no novo livro de Dunker trata das várias expressões do sofrimento e ressalta que nem toda forma de mal-estar precisa virar sintoma e ser tratada – mas sim ser reconhecida por Hugo Lana
U
Os artigos falam da
gramáticas de reconhecimento e formas ma senhora perambula pelas ruas fragmentação da do sentir. de uma Hamburgo completamenexperiência, A princípio seria possível pensar que te devastada pela guerra à procura do dificilmente textos publicados ao longo que restou de seus pertences. É com narrativas que essa cena que somos apresentados suportam afetos e de mais de duas décadas de reflexão a partir da clínica psicanalítica formariam ao novo livro do psicanalista Christian Dunker, Reinvenção da intimidade: po- constantes mutações algo que não uma massa difusa, sem líticas do sofrimento cotidiano. Em sua políticas e sociais qualquer unidade. Certamente não é o busca por resquícios de uma vida anique se impõem na caso de Reinvenção da intimidade. É justamente na insistência em costurar o quilada pelos bombardeios e pelo que veio depois deles, a mulher encontra a contemporaneidade. que há de mais cotidiano e comum em O resultado é nossas experiências com os movimentos devastação de uma cidade que já havia históricos e normatividades – que enconsiderado sua e que agora é um o impacto e as gendram experiências – que Dunker proconjunto de coisas: ruas sem placas, novas formas de duz um movimento capaz de jogar luz prédios se equilibrando em alicerces reconhecimento no que antes poderia se assemelhar às frágeis e outras pessoas que, como sombras de experiências (e vidas) fragela, caminhavam a esmo na tentativa e do sentir mentadas como nos escombros de uma de reconstruir sentidos aniquilados. cidade. É por meio desse movimento texO livro é uma compilação de textos publicados ao longo de 26 anos de reflexão sobre o tual que o autor desdobra o cotidiano em análises de fôleque temos de mais íntimo (e o que, afinal, é a matéria-pri- go, em que noções como sofrimento e intimidade ganham ma do trabalho psicanalítico) – o sofrimento. A analogia gravidade teórica. Os artigos versam sobre variadas apresentações de sose anuncia por meio da errância de alguém que busca reconstruir uma narrativa. Trata-se da fragmentação da frimentos e seus modos de reconhecimento e tratamento. experiência, das narrativas que suportam afetos e cons- Dunker fala de solidão, desencontros amorosos de catantes mutações políticas e sociais que se impõem na sais, indiferença que permeia o sexo, cuidados parentais e contemporaneidade, impactando e configurando novas seus descontroles, reivindicações e denúncias onipresen-
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tes na internet e nossa renitente crença no Papai Noel e nas promessas de ano novo. No entanto, é na insistência em fazer esses afetos trabalharem não somente em sua dimensão de vivências cotidianas, mas também de seus desdobramentos históricos e epistemológicos, bem como na fineza clínica, que o autor confere ao livro uma interessante unidade, ao tecer repetições que convocam o leitor a pensar sobre sua experiência cotidiana. Como lembra Dunker, Freud “pode nos remeter a uma psicopatologia a partir da vida cotidiana, ou seja, como a vida cotidiana pode nos fazer sofrer, produzindo estados aflitivos ou conflitivos continuados, que terminam por formar sintomas”. É a partir da premissa de que “o sofrimento requer e propaga uma política” que o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) apresenta reflexões metapsicológicas, intuições diagnósticas sobre a depressão, a discussão sobre o problema das formas e das cores na pintura de Turner e ainda investigações a respeito do encaixe quase perfeito da mania nos modelos empresariais, tornando-se uma espécie de exemplo “de nossa normalopatia”. Ele passa ainda pelas aspirações de almas revolucionárias que acabam por se encastelar em condomínios e pelas negociações entre liberdade e justiça que podem desembocar em um “fundamentalismo conjugal” (uma expressão insólita que nos lembra, como em vários momentos do livro, que o humor é uma via do
afeto). O autor mostra que nem toda forma de mal-estar precisa virar sintoma e ser tratada, mas sim reconhecida. O livro traz também a instigante discussão sobre como as formas de sofrer pertinentes ao Brasil atravessaram mutações que têm seu germe nas transformações das formas de reconhecimento inerentes a diferentes “circuitos políticos dos afetos”. A gramática do sofrimento não é a mesma no processo de redemocratização que no da ascensão da “classe batalhadora”, na terminologia de Jessé de Souza, ou ainda no recente processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Com a aposta de que “cada experiência de sofrimento é uma história que se transforma na medida em que é contada”, Dunker apresenta a sua própria errância. E ressalta que a maneira como contamos nos permite justificar e partilhar nosso sofrimento. Após duas semanas de errância pelos escombros de Hamburgo, a senhora que aparece no texto de apresentação – e, não por acaso, é a avó do autor – encontra um objeto pertencente a sua história: uma bicicleta. Mas é algo que já não lhe serve. Dunker pergunta: O fazer? Pedalar até o Brasil?. Foi quando deparou com outra pessoa em situação semelhante e com quem partilhou seu último pedaço de pão. Esse encontro lhe mostrou uma saída. HUGO LANA é psicanalista, doutorando em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Lacuna. agosto 2016 • mentecérebro 79
livros | lançamentos FÍSICA QUÂNTICA
Moléculas da mente
O enigma quântico – O encontro da física com a consciência.
Bruce Rosenblum e Fred Kuttner. Zahar, 2017. 336 págs. R$ 64,90
A mecânica quântica estuda sistemas físicos de escala menor que o átomo, como moléculas e elétrons. Uma das especulações mais comuns nesse campo de conhecimento é se a consciência seria um fenômeno resultante da interação entre partículas subatômicas. Os físicos Bruce Rosenblum e Fred Kuttner, professores da Universidade da Califórnia, se aprofundam no tema em O enigma quântico – O encontro da física com a consciência. Em linguagem clara e livre de termos técnicos, a obra torna esse assunto complexo acessível ao público geral.
PSICOLOGIA PSICANÁLISE
A construção da crença
Inconsciente contemporâneo Sigmund Freud propôs a noção de “psicanálise aplicada” para tratar das possibilidades de interlocução desse campo com outras áreas de conhecimento, desde a medicina até as ciências humanas. Em Sociedade, cultura, psicanálise, o psicanalista Renato Mezan, ganhador do Prêmio Jabuti em 2015, abraça a proposta do criador da psicanálise, discutindo, da perspectiva da teoria do inconsciente, temas diversos, como tolerância, formas contemporâneas do erotismo, a ideia de amor romântico e eventos que marcaram a história recente.
Sociedade, cultura, psicanálise.
Renato Mezan. Blucher, 2017. 559 págs. R$ 115,00
Crenças extraordinárias – Uma abordagem histórica de um problema psicológico. Peter
Lamont. Editora Unesp, 2017. 446 págs. R$ 68,00
Escrito pelo ex-mágico profissional – e atualmente professor de psicologia da Universidade de Edimburgo – Peter Lamont, Crenças extraordinárias busca explicar, da perspectiva histórica, o pensamento supersticioso. O autor analisa fenômenos em que as pessoas acreditam ou acreditaram tendo em vista o contexto temporal e social. Lamont distingue eventos socioculturais associados ao surgimento de determinadas crenças, defendendo que o contexto é decisivo para a construção do significado mágico que se atribui a algumas experiências.
QUALIDADE DE VIDA
Cada vez mais estudos reforçam o peso da genética para uma vida longeva e saudável. O segredo está nos telômeros, novo livro da bióloga molecular Elizabeth Blackburn, Prêmio Nobel de Medicina, escrito com a psicóloga da saúde Elissa Epel, discute o papel dessa estrutura, presente nas extremidades dos cromossomos, para a longevidade: pesquisas recentes sugerem que alterações nos telômeros estão altamente associadas à probabilidade de uma pessoa desenvolver câncer. Ao fim de cada capítulo são sugeridas práticas, baseadas em evidências científicas, para preservar a saúde dessas estruturas. 80
O segredo está nos telômeros – Receita revolucionária para manter a juventude e viver mais e melhor.
Elissa Epel e Elizabeth Blackburn. Planeta de Livros, 2017. 440 págs. R$ 59,90
imagens: divulgação
A genética da longevidade
Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos. Organizado
por Anna Paula Uziel e Flávio Guilhon. EdUERJ, 2017. 504 págs. R$ 58,90
TRANSEXUALIDADE
SENTIDOS
Visibilidade e política
Perfis sensoriais
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, segundo levantamento da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil. Organizado pelo Centro LatinoAmericano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos, livro da coleção Sexualidade, gênero e sociedade lançada pela EdUERJ, reúne textos que dialogam com a psicologia, o direito e as políticas públicas para tratar da necessidade de reconhecimento social e de proteção da população trans, ainda hoje marginalizada.
Tato, visão, olfato, audição, paladar – por meio dos sentidos apreendemos o mundo exterior. No entanto, como seu funcionamento difere entre pessoas? A neurocientista Winnie Dunn, da Universidade do Kansas, explora essa questão em Vivendo sensorialmente. Para a autora, existem “perfis sensoriais” individuais, padrões que são decisivos na forma de interagir e entender o mundo. Ela propõe um questionário simples para que o leitor possa se identificar, reconhecer dificuldades e compreender melhor a si mesmo e ao outro.
Vivendo sensorialmente: entendendo seus sentidos. Winnie
Dunn. Pearson, 2017. 256 págs. R$ 90,00
limiar neurociências
Visceral mente
A
final, onde mora a consciência? Na Grécia homérica de 800 a.C., o conceito de mente não existia, mas as emoções eram representadas como ativação dos órgãos internos. Os pensamentos se ancoravam no espaço neural responsável pela representação dos pulmões, coração, estômago... Eram entranhados e profundos esses primeiros pensamentos. Quatro séculos depois, Aristóteles entregava ao cérebro o papel de resfriar o sangue, atribuindo ao coração os sentidos e movimentos. Hoje em dia, a maior parte das pessoas diria que a consciência fica no cérebro. Aficionados da neurociência destacam o papel de certas regiões cerebrais, focando a interação de circuitos específicos, como o hipocampo e o córtex pré-frontal. Os bem-informados sabem que a consciência depende do espalhamento de atividade elétrica por todo o córtex, para além de modalidades sensoriais específicas. Os mais holistas avançam a ideia de que não faz sentido limitar tais processos ao cérebro, pois suas ramificações sensoriais e motoras fazem do corpo uma extensão palpável da consciência. No limite incorporamos tudo que vemos, ouvimos e sentimos, transformando objetos distantes em íntimas impressões do mundo, nossas preciosas memórias. Surpreendentemente, os micro82
biologistas dizem que tudo isso ainda é pouco. Para entender a consciência seria preciso considerar não apenas o efeito simbólico de outros seres em nossa mente, mas os efeitos psicobiológicos da coleção de bactérias, leveduras, protozoários e vírus que compõem nossa microbiota. Estima-se que uma pessoa normal tenha até três vezes mais micróbios do que células do próprio corpo. Desequilíbrios na microbiota estão relacionados a doenças cardiovasculares, síndrome do intestino irritável, doença inflamatória intestinal, artrite reumatoide, câncer colorrretal e diabetes. O tradicional chá amarelo chinês, feito com fezes de pessoas saudáveis, era receitado há 1.700 anos para tratar diarreia. Hoje a fronteira da medicina descobre o poder terapêutico dos transplantes fecais em casos de graves infecções bacterianas, refratárias a antibióticos. Estudos recentes sugerem que o mesmo pode funcionar para tratar obesidade. Somos o que comemos... É importante lembrar que os microrganismos no lúmen intestinal influenciam a síntese e liberação da serotonina por células enterais. Dependendo do tipo de receptor encontrado, a serotonina pode promover inflamação ou anti-inflamação, regulando por exemplo o metabolismo sanguíneo e ósseo. Até mesmo doenças como depressão e autismo parecem
SIDARTA RIBEIRO
sofrer influência da microbiota, que se configura como uma via de mão dupla para a modificação do humor e das interações sociais. O sistema nervoso entérico nas paredes do canal alimentar contém cerca de 500 milhões de neurônios, utiliza mais de 30 neurotransmissores e envia muito mais projeções para o cérebro do que as que recebe. Esse sistema nos permite sentir eventos digestivos e tem um efeito poderoso sobre o cérebro. Embora ali não ocorra a tomada de decisões ou o planejamento de ações, tais processos sofrem fortes efeitos entéricos. Quase toda a serotonina do corpo é encontrada nas vísceras, o que explica a conexão entre emoções fortes e revulsões gastrointestinais. Para coisas muito desagradáveis, “não temos estômago”. A ingestão de algo impróprio para ser moído, corroído e absorvido manda sinais persistentes para o cérebro que são muito difíceis de abstrair. Ser introspectivo não significa necessariamente enfezar-se. Um pouco de atenção para si, um módico de consciência dos órgãos internos, talvez seja a condição mesma da reflexão. Sentado no trono, o pensador de Rodin contempla a obra. Já dizia Álvaro de Campos: A metafísica é uma consequência de estar mal disposto. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
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Quase toda a serotonina do corpo é encontrada nas vísceras, o que explica a conexão entre emoções fortes e revulsões gastrointestinais