MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental
May 8, 2017 | Author: Wellington Mendes | Category: N/A
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hoje numerosos e excelentes dicionários e enciclopédias de música com ensinamentos os mais variados, mas sem dúvida mais raramente conduzem-nos a uma verdadeira história dessa arte até os nossos dias, em sua maravilhosa trajetória através dos séculos: seus encontros, desenvolvimentos, o surgimento dos homens que não cessam de inventála e reinventá-la. Quisemos aqui traçar uma história da prática e da estética musicais, de seus instrumentos e regras hoje variáveis, de seus compositores, sobretudo aqueles a quem foram dedicados, em virtude da grandeza de sua genialidade criativa, grandes capítulos. Mas quisemos igualmente que esta
História da música "ocidental" com suas evoluções e mesmo com suas revoluções específicas, não ficasse dissociada da história geral: história política, socioeconómica, cultural e religiosa, preocupando-nos assim em esclarecer as situações sóciohistóricas da música ao longo dos séculos. Destinada a todos os leitores, a todos os apaixonados pela música, os praticantes ou ouvintes, a todos aqueles que querem saber mais, esta história se abre, antes que se comece o seu relato, com um "Léxico musical explicativo", um pouco como se entrega em mãos a chave de uma fábrica.
HISTÓRIA DA MÜSICA OCIDENTAL
JEAN & BRIGITTE
MASSIN
HISTORIA DA MÚSICA OCIDENTAL
Tradução Ângela Ramalho Viana Carlos Sussekind Maria Teresa Resende Costa
EDITORA NOVA FRONTEIRA
Título Original: Histoire de la Musique Occidentale © Messidor - Temps Actuels, 1983 © Fayard/Messidor - Temps Actuels, 1985 para edição n ã o ilustrada. Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo C E P : 22251-050 - Rio de Janeiro - R J - Brasil Tel: 537 8770 - Fax: 286 6755 http:://www.novafronteira.com.br Equipe de p r o d u ç ã o
SUMÁRIO
Leila Name Regina Marques Sofia Sousa e Silva Michelle Chao Mareio
Araújo
Edição de originais Antônio
Monteiro César
SOBRE OS COLABORADORES
xiii
PREFÁCIO Brigitte e Jean Massin
xvii
Guimarães
Benjamin
índice onomástico Isabel Grau
LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO
Nana Vaz de Castro Pedro de Moura
Aragão
Os instrumentos, a orquestra, as vozes 3 Philippe Beaussant, com a colaboração de Jean-Yves Bosseur e Jean Massin
Revisão Ana Lúcia
Kronemberger
Ângela Pessoa Marcelo Eufrasia Projeto gráfico e editoração eletrônica Silvia Negreiros CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS M371h
Massin, Jean História da m ú s i c a ocidental / Jean 8c Brigitte Massin ; tradução de Maria Teresa Resende Costa, Carlos Sussekind, Angela Ramalho Viana. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira,
1997
Tradução de: Histoire de la musique ocidentale I S B N 85-209-0907-8 1. M ú s i c a - História e crítica. I . Massin, Brigitte. I I . Título.
97-1719.
1
C D D 780.9 C D U 78(091)
O solfejo e a harmonia Michèle Reverdy
45
As formas e os gêneros musicais Philippe Beaussant, com a colaboração de Brigitte e Jean Massin e de Marc Vignal
63
A notação e a interpretação Jean-Yves Bosseur
99
Primeira Parte DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO XIV
123
1. Pensar a música na Idade Média Françoise Ferrand
125
2. Os primeiros cânticos da Igreja Françoise Ferrand
135
3. Técnica e notação do canto gregoriano Michel Hugh
141
4. A liberdade e a brecha: tropos, seqüências, dramas litúrgicos Françoise Ferrand
151
Historia da música ocidental
vi
Sumário
vii
5. A música profana nos séculos XII e XIII Françoise Ferrand 6. A polifonia, desde seus primordios até o fim do século XIII Françoise Ferrand
161
20. Antonio Vivaldi (1678-1741) Ivo Supicic
423
185
21. Domenico Scarlatti e a música instrumental italiana Stéphane Golãet
433
7. A Ars Nova e Guillaume de Machaut Françoise Ferrand
195
22. A música vocal italiana de Pergolesi a Cimarosa Jean-Fançois Labie
441
23. Johann Sebastian Bach (1685-1750) Philippe Beaussant
453 477
235
24. Georg Friedrich Haendel (1685-1759) Jean-François Labie 25. Jean-PhiHppe Rameau (1683-1764) Philippe Beaussant
289
26. A Querelle des Boujfons Stéphane Golãet
Segunda Farte OS SÉCULOS XV E XVI
209
8. A música no século XV Bernard Gagnepain 9. A música no século XVI: Europa do Norte, França, Italia, Espanha Jean-Pierre Ouvrard 10. A música luterana no século XVI Marc Vignal
211
11. A música inglesa no tempo dos Tudor e dos primeiros Stuart Jean-François Labié
293
Terceira Parte
493 501
Quinta Parte O SÉCULO XVIII: SEGUNDA METADE
507
27. O nascimento de uma nova linguagem musical Marc Vignal
509
O SÉCULO XVII
313
12. Situação sócio-histórica da música no século XVII Ivo Supicic 13. Claudio Monteverdi (1567-1643) Jean-Ives Bosseur 14. As invenções italianas do espírito barroco Philippe Beaussant 15. A música barroca da França "clássica" Philippe Beaussant
315
28. A formação de um novo público e suas conseqüências musicais Marc Vignal
513
327
29. As novas correntes musicais de 1750 a 1780 Marc Vignal
525
341
30. Caracterização do "classicismo" vienense Marc Vignal 31. Joseph Haydn (1732-1809) Marc Vignal 32. Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Brigitte e Jean Massin
545
16. Heinrich Schütz (1585-1672) Marc Vignal 17. A música alemã entre Schütz e Bach Marc Vignal 18. A música inglesa depois de Cromwell: Henry Purcell Jean-François Labié
359 385 393
33. A música da Revolução Francesa Gérard Gefen
557 567 583
399 Sexta Parte
Quarta Parte A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
409
19. Situação sócio-histórica da música no século XVIII Ivo Supicic
411
NO LIMIAR DO SÉCULO XIX
597
34. Ludwig van Beethoven (1770-1827) Jean Massin 35. Weber e seus contemporâneos germânicos Brigitte Massin
599 623
viü
História da música ocidental
36. Franz Schubert (1797-1828) Brigitte Massin
631
37. A ópera italiana de Cherubini a Rossini Jean-François Labié
647
Sétima Parte OS FILHOS DO SÉCULO
659
38. Situação sócio-histórica da música no século XIX Ivo Supicic
661
39. A ópera italiana: Donizetti, Bellini, Verdi Jean-François Labié 40. A música francesa: o reinado de Eugène Scribe Stéphane Goldet
673
52. A música russa: de Glinka ao "Grupo dos Cinco" Michèle Reverdy 53. Modest Mussorgski (1839-1881) Michèle Reverdy 54. Piotr Tchaikovski ( 1840-1893) Michèle Reverdy 55. A música tcheca: Smetana, Dvorák Michèle Reverdy 56. Grieg e os músicos escandinavos Stéphane Goldet
819 825 831 837 843
Nona Parte 689
41. Hector Berlioz (1803-1869) Brigitte Massin
699
42. Felix Mendelssohn (1809-1847) Brigitte Massin 43. Robert Schumann (1810-1856) Brigitte Massin 44. Frédéric Chopin (1810-1849) Dominique Bosseur
713
45. Franz Liszt (1811-1886) Dominique Bosseur 46. Richard Wagner (1813-1883) Dominique Bosseur
1X1
Sumário
721 737 745 757
Oitava Parte A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XLX
771
47. Viena, da valsa à opereta Stéphane Goldet
773
48. Anton Bruckner (1824-1896) Marc Vignal 49. Johannes Brahms (1833-1897) Stéphane Goldet 50. A música francesa: Offenbach, Gounod e Bizet Stéphane Goldet
777
51. César Franck, os "franckistas" e Chabrier Gérard Gefen
805
783 793
A VIRADA DO SÉCULO XX
847
57. Hugo Wolf (1860-1903) Stéphane Goldet 58. Gustav Mahler (1860-1911) Marc Vignal 59. Richard Strauss (1864-1949) Stéphane Goldet 60. Dois antigos e um moderno: Reger, Pfitzner, Busoni Stéphane Goldet 61. A ópera italiana: depois de Verdi, Puccini Jean-François Labié 62. Scriabin e seus contemporâneos russos Michèle Reverdy 63. Jean Sibelius (1865-1957) Marc Vignal 64. Claude Debussy (1862-1918) Michèle Reverdy 65. Os contemporâneos franceses de-Debussy Michèle Reverdy 66. Maurice Ravel (1875-1930) , Michèle Reverdy 67. A música espanhola: Albeniz, Granados, Manuel de Falla Michèle Reverdy 68. A música inglesa Jean-François Labié
849 857 869 879 885 895 901 907 917 925 933 939
Historia da música oádental
X
Décima Parte A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO X X
945
69. Erik Satie, o "Grupo dos Seis" Michèle Reverdy 70. Janácek, Martinu, Kodály: a Europa Central Michèle Reverdy
947
71. Bela Bartók (1881-1945) Michèle Reverdy
957 963
72. À maneira de preâmbulo à "Escola de Viena": música atonal, dodecafônica, serial 973 Marc Vignal 73. Arnold Schõnberg (1874-1951) Marc Vignal
979
74. Alban Berg (1885-1935) Michèle Reverdy
987
75. Anton Webern (1883-1945) Jean-Yves Bosseur
995
Sumário
85. Máscaras e pilhagens: os minstrels Jacques B. Hess 86. Um canto de desamparo: o blues Jacques B. Hess 87. Uma música de salão e de saloon: o ragtime Jacques B. Hess 88. Das cidades e dos homens: os avatares de uma grande arte Jacques B. Hess 89. Revoltas e interrogações: o free jazz e agora Jacques B. Hess 90. Pequena história do rock'n'roll Thierry Châtain
A SEGUNDA M E T A D E D O SÉCULO X X
1087 1095 1105 HH
77. Igor Stravinski (1882-1971).... Jean-Yves Bosseur
1011
78. Serguei Prokofiev (1891-1953) Philippe Olivier
1023
91. 92. 93. 94. 95. 96.
79. Dimitri Chostakovitch (1906-1975) Philippe Olivier
1033
I N D I C E ONOMÁSTICO (COMPOSITORES)
80. Os compositores da América Latina Michèle Reverdy
1043
81. Charles Ives e seus contemporâneos norte-americanos Jean-Yves Bosseur 82. Edgar Varèse (1883-1965) Michèle Reverdy
1047 1053
Décima Primeira Parte 1063
83. Pode-se dizer o que é o jazz . Jacques B. Hess
1065
84. Uma poesia épica coletiva: negro spirituals Jacques B. Hess
1071
•
1123
Brigitte Massin, com contribuições de Jean-Yves Bosseur, Michel Chion, Michèle Reverdy e Marc Vignal
1003
7
1081
Décima Segunda Parte
76. A geração de 1900 na Alemanha Stéphane Goldet
O JAZZ
1077
Os iniciadores A nebulosa de Darmstadt A revolução eletroacústica O grande ateliê europeu Os provocadores Prospectiva de um labirinto
H25 143 1165 H83 1201 1215
1
1235
XIU
SOBRE OS COLABORADORES
Philippe Beaussant Diretor do Instituto de Música e Dança Antigas, musicólogo, autor de obras sobre Couperin, Rameau e Lully, bem como de romances e ensaios; produtor da RadioFrance. Dominique Bosseur Doutor em Letras, professor-assistente da Universidade da Córsega; com colaborações em diversas obras e revistas consagradas à estética contemporânea. Jean-Yves Bosseur Doutor em Letras, professor-pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques [Centro Nacional de Pesquisas Científicas], compositor, co-fundador do grupo Intervalles, autor com D. Bosseur de Révolutions musicales. Thierry Châtain Jornalista, colaborador regular da revista Rock and Folk, do Libération e da Année du Rock. Michel Chion Compositor, musicólogo, ensaísta, diretor de filmes, crítico da Cahiers du Cinéma, antigo membro do Groupe de Recherches Musicales [Grupo de Pesquisas Musicais] do INA, autor de diversos livros sobre a música e o cinema. Françoise Ferrand Professor-conferencista da Universidade de Rouen, autor de várias obras e estudos sobre a poesia lírica, a canção e a estética musical da Idade Média e início da Renascença.
xiv
História da música oádental
Bernard Gagnepain Professor de história da música pré-clássica e de paleografía musical do Conservatório Superior de Música de Paris. Diretor do Seminário Europeu de Música Antiga (Bruges). Gérard Gefen Escritor, produtor da Radio-France, colaborador das revistas Compact e La Lettre du musicien. Autor de uma obra sobre Wilhelm Furtwangler. Stéphane Goldet Produtora da France-Musique, colaboradora regular da revista Avant-Scène Opéra. Autora de uma obra consagrada a Hugo Wolf e de outra sobre o Quarteto de cordas no século XX. Jacques B. Hess Responsável pelo curso de história do jazz na UER de Música e Musicología de Paris-Sorbonne (Paris-IVe). Michel Hugh Conferencista sobre paleografía musical na Sorbonne, diretor da seção de musico¬ logia do Instituto de Textos. Jean-François Labié Historiador da música, especialista em historia da arte barroca, produtor da Radio-France, colaborador regular das revistas Avant-Scène Opéra e Diapason. Publicou uma importante obra dedicada a Haendel. Philippe Olivier Crítico musical do Libération, colaborador da Radio-France, autor de La Musique au quotidien. Jean-Pierre Ouvrard Professor da Universidade François Rabelais em Tours, autor de muitas obras e artigos sobre a canção francesa polifónica do século XVI, colaborador regular ou ocasional de diversos conjuntos e instituições de música antiga. Michèle Reverdy Compositora, professora de análise do Conservatório Superior Nacional de Música de Paris, produtora da France-Culture, autora de dois livros sobre a obra de Olivier Messiaen.
Sobre os colaboradores
xv
Ivan Supicic Presidente da Sociedade Internacional de Musicología, redator-chefe da International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, professor da Academia Musical de Zagreb e professor-associado da Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg. Marc Vignal Crítico musical, produtor da France-Musique; autor de livros sobre Mahler e Sibelius, autor de uma importante obra sobre Haydn.
XVll
PREFÁCIO
Por que e para quem? Por que senão para satisfazer uma necessidade que de início foi nossa (só existe trabalho válido sob essa condição) e que sabemos ser a necessidade de muitos? A de explorar os oceanos da música e conhecê-los melhor, para neles encontrar ainda mais alegria. Uma necessidade de todas as épocas: terá algum dia havido, em milênios, uma sociedade humana sem música? No entanto, de maneira mais premente, uma necessidade de nossa época. Por uma razão capital: a arquitetura, a escultura e a pintura requerem o espaço como dado primordial de sua existência; a música requer o tempo. Numa só olhadela podemos apreender a totalidade do quadro mais vasto, ou até do conjunto dos afrescos do teto da Capela Sistina (uma apreensão muito insuficiente, é claro, e que pede uma contemplação mais longa, com o exame de cada detalhe); mas é impossível que uma só "escutadela" nos forneça a totalidade da mais breve obra musical que se possa imaginar (um único som só poderia constituir um fato musical no seio de praias de silêncio que o cercassem). "A música por vezes se apossa de mim como um mar", dizia Baudelaire. Como o mar, ela solicita nosso embarque para uma navegação, de curso mais longo ou mais curto. Qualquer música (mesmo circular ou repetitiva) exprime, de certo modo, uma história a que devemos estar atentos do começo ao fim. Essa duração necessária da atenção explica por que, dentre todos os mundos da arte, o mundo da música não é o mais imediatamente fácil de penetrar em profundidade. Mas, o fato de a música ser a arte da duração também explica, sem dúvida, por que seu lugar não pára de crescer, nem pára sua necessidade de se afirmar, num universo em que vivemos cada vez mais em função do tempo, dos horários cronometrados e dos relógios de ponto, da duração psicológica e de uma evolução
xvüi
História da música ocidental
acelerada da história. Pouco a pouco, já se vão cerca de dois séculos, nossos valores se inverteram, passando do absoluto em si para o relativo, que exige outros tipos de perfeição, do ser imutável para o tornar-se, da fixidez para o movimento, do estático para o dinâmico, da eternidade para a história. O que cada um de nós atualmente sabe é que, mais ainda do que seu corpo, a matéria primordial do homem é seu tempo. Daí nossas angústias e nossas revoltas; daí também nossas aspirações e as novas formas de nossas sensualidades, nossas ternuras e nossas alegrias. Daí a maior necessidade e a maior presença da música hoje em dia: a um só tempo, ela exorciza e transfigura nossa obsessão com o tempo que escoa. A música está em nossa vida por toda parte (a ponto de, vez por outra, sua presença superar nossa necessidade, nos lugares públicos: quanto mais gostamos de música, mais sentimos necessidade de saborear também o silêncio). Ela vem solicitar-nos através do rádio, da televisão, do cinema, do disco, da fita cassete: uma só exibição da Nona Sinfonia na telinha e um só filme de Bergman sobre A flauta mágica atingem mais ouvintes e conquistam mais apaixonados, talvez, do que 180 anos em todos os teatros de ópera e salões de concerto do mundo: o disco ressuscitou para nós centenas de obras-primas, até então reservadas apenas aos "ratos" de biblioteca e aos ratos propriamente ditos, ou, pelo menos, tão-somente ao prazer de uns raros conhecedores. A esse impulso da difusão musical corresponde um maior desenvolvimento da atividade e da prática musicais. Os malhumorados viviam repetindo que a proliferação do disco fonográfico e, mais especificamente, a revolução do long-play condenariam à extinção a espécie dos instrumentistas não profissionais; foi o contrário que se constatou. O mesmo acontecerá, provavelmente, com o disco a laser e o compact disc. Atendo-nos a isso, o atual avanço da música pareceria estar ainda por demais ligado a motivações socioculturais, se de pronto não acrescentássemos o essencial: a música é uma necessidade do coração e da imaginação e, se é principalmente uma necessidade de nossa época, é porque atende ainda mais às necessidades do coração e da imaginação de nossos contemporâneos. A função sacralizadora da música é algo a que os seres humanos da pré-história já recorriam. Sua função estimulante, nós a conhecemos desde que existem músicas guerreiras. A função erótica da música é encontrada nas festas, nos banquetes e nas bodas de todas as épocas e lugares. Quanto à sua função pacificadora, nós a conhecemos desde os antigos mitos de Orfeu, desarmando as divindades infernais com seu canto, e de Davi, tocando para o rei Saul a fim de acalmar seus acessos de melancolia furiosa. Mas o papel desempenhado pela música em nossa vida vai muito mais longe, quando lhe abrimos nossa mais secreta porta (Beethoven seria o primeiro a proclamá-lo com plena consciência): ela é a mediadora que nos reconcilia com nós mesmos, nos dá acesso àquela região íntima, lá no fundo de nós, onde enfim encontramos nosso eu (consciente e inconsciente, às vezes reconciliados como que por milagre) em plena liberdade.
Prefácio
xix
Na medida em que nossa civilização torna-se mais abstrata, mais funcional, mais coletiva, mais programada (por um processo que seria indispensável aprimorar, sob diversos aspectos, mas que seria inútil rejeitar, a tal ponto a trajetória global é simultaneamente inelutável e válida), mais experimentamos a necessidade de multiplicar e aprofundar os recursos de nossa fantasia e de nossa singularidade. Uma das maravilhas da música é que ela é o poderoso meio de uma comunhão em cujo seio cada um se sente abençoadamente solitário e único. A sensualidade de uma clarineta ou de um violoncelo, a respiração melódica de um canto, o inesperado de uma modulação imprevisível que recria toda a luz da paisagem, o surgimento de um ritmo que nos arranca do desgaste de nossos cansaços, o brilho súbito de um timbre ou o suntuoso adensamento de uma complexidade harmônica, que nos revelam que ainda não havíamos chegado ao fim de nossa emoção ou nossa alegria — como prescindir de tudo isso? A música tem o poder, duplo e singular, de nos desligar de todos os entraves externos e de nos ligar a todo o devir do Universo, através de nosso próprio âmago. Ela não se opõe à nossa civilização; permite-nos viver nela na liberdade, que é sempre preciso reconquistar, de nossas ternuras e nossos sonhos, nossos desejos e nossos ímpetos. Ora, paradoxalmente, enquanto se multiplicam de maneira prodigiosa a escuta e até a prática da música, muitos de seus amantes, sobretudo entre os apaixonados mais recentes, procuram alguém, não raro em vão, a quem se dirigir para melhor conhecer sua história e suas técnicas. O excesso de erudição douta os desanima, o excesso de facilidade dos apanhados superficiais os deixa famintos. Eles querem partir para a descoberta, mas com que mapas podem orientar-se para empreender a exploração da região encantada onde reina essa sereia, a música, ainda por demais desconhecida, embora nos tenha fascinado de passagem? No entanto, quanto mais amamos, mais queremos conhecer, pois pressentimos que, quanto melhor conhecermos, ainda mais profundamente poderemos amar. Por isso, esperamos que este trabalho não seja inteiramente inútil. "Obra de divulgação?" Sim, se fizerem questão, no sentido que o dicionário Robert confere a essa fórmula: "Adaptar um conjunto de conhecimentos técnicos de maneira a torná-los acessíveis ao leitor não especializado." Mas não esconderemos nossa repulsa por tal expressão e pelo ar de condescendência com que ela é acompanhada, quando articulada por bocas elitistas: em "divulgação" persiste o "vulgo", "essa palavra que a língua francesa nos fornece, com tanta felicidade, para exprimir aquela multidão dotada de inúmeras línguas e pouquíssimas cabeças" (d'Alembert). Pois então, deixemos esse termo para os técnicos culturais que lançam um olhar de cima para baixo sobre a pobre humanidade. Não trabalhamos para o vulgo, mas para o público mais valioso que há: os que têm fome e sede de conhecer e de amar.
XX
Historia da música ocidental
Por que e para quem? — perguntávamos no começo. Desde que destinamos nosso primeiro trabalho em comum aos "beethovemanos leigos" — já se vão hoje trinta anos —, nenhum de nós dois parou de trabalhar na mesma direção. Tanto melhor se, nesse percurso, alguns especialistas também puderam encontrar do que se alimentar; quanto a esse aspecto, a competência e a qualidade de nossos colaboradores parecem-nos garantir ainda melhor essas provisões. Mas trata-se, antes de mais nada, de nos preocuparmos com os "peões da música" e de não nos dirigirmos primordialmente aos grandes cavaleiros da equitação musical. Queremos ajudar cada um a encontrar as chaves que lhe permitam entrar em sua casa e sentir-se enfim à vontade dentro da música. A quem Franz Schubert optou por dedicar seu Trio em mi bemol? "Aos que nele encontrarem prazer." Que nos permitam oferecer esta História da música ocidental, antes de mais nada, aos que nela encontrarem o caminho de sua alegria. Uma História da música ocidental. Por que ocidental? Esse adjetivo, naturalmente, não esconde nenhuma segunda intenção política ou ideológica. Se houvéssemos interrompido essa história no século XIX, teríamos falado de música européia; no século XX, porém, a própria música européia tornou-se inseparável das influências que vieram estimulá-la de além-mar, tanto do jazz quanto de um Charles Ives ou um John Cage. Outras interações se exercem, outras aberturas hoje lhe chegam de muitas das tradições musicais asiáticas e africanas. Duas razões nos fizeram decidir não abordar aqui esses estilos musicais magníficos, que nosso etnocentrismo ingênuo teria outrera chamado de "exóticos" e que hoje aprendemos cada vez mais a admirar e amar. A primeira, que já seria suficiente, é que as dimensões deste livro bem poderiam duplicar-se em função disso, além de se decuplicar o número de colaboradores, a tal ponto os trabalhos etnomusicológicos se particularizam ao se aprofundar. A segunda é que a maioria dessas tradições musicais apresenta mais uma continuidade do que uma história, pelo menos até seus contatos (benéficos ou maléficos?) com a Europa. Ao contrário, desde os primeiros cânticos cristãos até a música eletroacústica, há uma perpétua sucessão de combates (não sangrentos, mas amiúde encarniçados) entre um musical "antigo" e um "novo" — onde o "novo" nunca demora muito a se tornar o "antigo" de um "novo" mais recente — através do questionamento teórico e da transformação prática das formas e das intenções da composição e da execução musicais. Fora da música "ocidental", dificilmente encontraríamos tamanha abundância, quase permanente, de peripécias tão significativas, de mutações ou até de revoluções, que, cada qual a seu turno, originaram obras que impuseram a admiração por sua originalidade ainda inédita, e não por suafidelidadeao venerado ensino dos mestres. Uma história só é possível onde a investigação de uma mudança que se pretende um progresso vence uma tradição que se pretende imemorial.
Prefácio
xxi
Um último limite a esclarecer: é comum convencionar-se que a "história" sucede à "proto-história" a ser datada do surgimento de textos escritos. Por isso é que não se falará aqui da música hebraica, da grega e da romana, embora elas estejam nas origens da música medieval. Pedimos ao leitor, com muita insistência, que não tome esse silêncio como um indício de desprezo: os celtas não tinham literatura escrita quando os latinos já a possuíam, mas ninguém jamais nos fará dizer que a civilização gaulesa era inferior à romana! Se a geografia não lhe oferecesse a encarnação indispensável, não haveria história, mas tão-somente uma idéia platônica ou uma ficção romanceada da história. Em contrapartida, o curso da história impõe à geografia inúmeras modificações, que vão desde o cultivo do solo até a urbanização e, vez por outra, ao próprio traçado dos cursos d'água e do litoral. Do mesmo modo, retraçar a história da música exige que falemos daquilo que a condiciona intrínsecamente: seus instrumentos (dentre os quais a voz não é o menos significativo), suas combinações funcionais (como o solfejo), suas técnicas, suas formas e seus gêneros: em suma, sua gramática e seu vocabulário. Pois a música é uma linguagem, e todos os que se servem dela a entendem assim. "A língua que falo é compreendida no mundo inteiro", disse orgulhosamente Haydn a Mozart. Posto que queríamos oferecer este livro, antes de mais nada, aos amantes "leigos" da música,fizemoscom que a história propriamente dita fosse precedida de um léxico musical comentado, mais ou menos como se faz a "entrega das chaves" de uma fábrica a seu destinatário. O leitor, sobretudo se só tiver abordado a música através dos discos e do rádio, talvez não o julgue inútil, por nele encontrar prontamente a definição e a explicação dos termos técnicos mais correntes e mais indispensáveis. Ao longo dos capítulos seguintes, os outros termos técnicos que surgirem (muitas vezes em relação a um período histórico mais restrito, como a Idade Média, por exemplo) serão explicados e definidos quando de sua primeira menção. Tal como a da arquitetura, das artes plásticas ou da literatura, a história da música é indissociável da história geral. Da história política e, mais ainda, da socioeconómica, cultural e religiosa. Que a história da música seja indissociável dela, entretanto, não significa que lhe esteja subordinada. Tal como a linguagem e as outras artes, a música perderia qualquer valor específico, qualquer importância intrínseca, se fosse considerada como a superestrutura de tais ou quais infra-estruturas. Um rio só obedece a suas próprias leis, mas determina seu curso em função das configurações e relevos que encontra. Assim, se ignorássemos tudo o que diz respeito ao luteranismo, um certo aspecto musical de Bach nos escaparia; desconhecendo tudo sobre a ascensão da burguesia no fim do século XVIII, a nova linguagem musical de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert se nos tornaria parcialmente inexplicável; ao ignorarmos tudo sobre o impulso romântico da poesia, as
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História da música ocidental
intenções expressivas de Berlioz, Schumann, Liszt — e até já as de Beethoven e Schubert — permaneceriam inacessíveis. Demos, portanto, muita importância ao esclarecimento das sucessivas situações sócio-históricas da música através dos séculos, quer em capítulos especiais, quer no correr dos outros capítulos. Fizemos tanto maior questão de insistir nessas ligações quanto mais elas nos fazem apreender melhor a realidade humana da música. Na teologia dos clérigos da Idade Média, a música primordial era a dos anjos: ao 1er os comentários extasiados de algumas pessoas sobre o "angelical" Mozart, tem-se a impressão de ainda estar nessa época. No entanto, a música não nos cai do céu nem de sabe-se lá que inspiração quase divina e desencarnada. Ela é feita por seres humanos que vivem sua vida, e que inventam ou executam composições no cerne de uma história em que se acham imersos, querendo ou não, e da qual somente sua genialidade (ou seu talento, pelo menos) consegue emergir, a ponto de nos atingir através das eras. Sempre tendemos, com facilidade, a esquecer a ganga de suores e cansaços, muitas vezes de decepções e humilhações, de incompreensões e também de encontros fraternos, em cujo bojo se formam os diamantes da música. Por isso é que, se um título excessivamente longo não trouxesse o risco de ser um desserviço à difusão de nosso trabalho, teríamos preferido intitular este livro de História da música ocidental e de seus músicos. "Não sei escrever poemas: não sou poeta", escreveu Mozart a seu pai. "Não sei dispor minhas frases de um modo tão artístico que elas disseminem alternadamente sombra e luz: não sou pintor. Não sei exprimir com gestos e pantomimas minhas idéias e meus sentimentos: não sou bailarino. Mas sei fazê-lo através dos sons: sou músico." E Beethoven: "O que trago no coração precisa sair, e é por isso que escrevo!" Ou ainda, a propósito de sua Missa Solemnis: "Vinda do coração, que ela chegue ao coração!" As idéias e sentimentos que Mozart exprime através dos sons não são as idéias e os sentimentos de Bach; o que Beethoven traz no coração e que precisa sair não se encontra no coração de Haydn. Quando se fala em expressivo fala-se, necessariamente, em individual, e se o faz mais e mais à medida que se acentua a evolução histórica na qual a arte se distingue progressivamente do artesanato, de um lado, e da ciência, do outro. Há que ter um senso estético muito arcaico para gostar em bloco dos artistas de uma época inteira ou de toda uma escola, de preferência a qualquer outra. A galáxia da arte constitui-se de tal maneira que nela só importam as primeiras pessoas do singular, podendo ser largadas de mão as obras sem originalidade, repertoriadas pela erudição, mesmo quando o desgaste da memória e a falta de qualquer documentação condenam uma pessoa singular a nos permanecer anônima, como o escultor das grandes estátuas da catedral de Naumburg. Descobrir a música — e, neste ponto, o adjetivo talvez não seja um excesso: a música "ocidental" — é, acima de tudo, reconhecer que cada criador não se parece
Prefácio
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com nenhum outro e é insubstituível, quer pelo que nos diz, quer pela maneira como no-lo diz (coisas que, aliás, são uma só). Posto que a música não é uma entidade abstrata e coletiva, composta e praticada por cérebros e mãos intercambiáveis, optamos deliberadamente, nesta história, por reservar um grande espaço à vida dos músicos. Não é simples a relação entre o que, num outro texto, propusemos chamar de "biografia vivida" e "biografia criadora"; isso se liga fortemente aos dados sócio-históricos e, de maneira ainda mais intensa, às fantasias do inconsciente; mas, seja qual for essa complexidade, parece-nos impossível amar a música, isto é, amar os músicos, sem nada querer saber de sua vida e suas personalidades humanas globais. Ou seja, a importância aqui atribuída às biografias não é imputável à preocupação de distrair o leitor frivolo ou cansado. Por certo haverá outros leitores, mais resistentes e mais vorazes, que lamentarão não encontrar nas páginas seguintes certos nomes, certas listas de obras e certos esclarecimentos instrumentais ou técnicos. Nossa primeira resposta é que os limites necessários de um livro já volumoso exigiam escolhas: porventura causará surpresa, numa "história da literatura ocidental" do mesmo calibre, que não sejam mencionados, ou que sejam simplesmente citados de passagem, autores notórios como Jean-Baptiste Rousseau, tido como o maior poeta do século XVIII, Victor de Laprade, que cedo pertenceu à Academia, enquanto Baudelaire e Nerval nunca fizeram parte dela, ou mesmo Sully Prudhomme, que recebeu um dos primeiros prêmios Nobel de literatura? Insistimos, todavia, sobretudo num ponto: uma "história" não pode e nem pretende ser um "dicionário" ou uma "enciclopédia". Felizmente, não faltam enciclopédias nem dicionários de música, alguns recentes e excelentes — senão exaustivos, ao menos tendendo assintoticamente à exaustividade. Se muitos de nossos leitores se descobrirem com o apetite aberto para neles ir buscar informações complementares, nós nos felicitaremos por isso, como uma prova de que nosso trabalho não foi em vão. A verdade é que temos consciência das orientações e inflexões subjetivas que demos a este livro, ao conceber sua arquitetura, calcular as proporções de suas partes e organizar a sucessão de seus capítulos. Ao se proporem um objetivo análogo, outros organizadores poderiam, com igual legitimidade, conceber outros itinerários, calcular outras proporções e sublinhar outras etapas privilegiadas; reservar duas vezes mais páginas para Donizetti ou Saint-Saëns, por exemplo, e duas vezes menos para Schubert ou Varèse. Esta História leva nossa marca; reivindicamos nossa responsabilidade — e não nos declaramos culpados. Do mesmo modo, fazemos ainda mais questão de reivindicar a escolha e sublinhar a importância da participação dos colaboradores que nos deram a honra e a amizade de nos conceder seu concurso. Elogiá-los seria por demais pretensioso de
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História da música oádental
nossa parte: a qualidade de seus textos parece-nos bastar para isso, mais ainda do que a eminência de seus títulos. Foi de propósito que os desejamos numerosos e quisemos que suas contribuições fossem, muitas vezes, mais consideráveis que a nossa. Não apenas para garantir por toda parte o mais alto nível de competência. Não apenas para evitar, em tantas páginas, a monotonia de uma mesma escrita. Mas também para que nossa inevitável subjetividade fosse temperada pela multiplicidade da subjetividade deles: a imparcialidade de todos nunca pode ser assegurada senão pelas parcialidades sustentadas de cada um. Para haver sucesso e coerência nesse tipo de jogo em equipe, era preciso, é claro, zelar pelas articulações entre os capítulos e os ajustes dos acréscimos, dos esclarecimentos ou das alusões. Agradecemos vivamente a todos por se haverem prestado a isso de tão bom grado. Mas era igualmente preciso zelar para que muitos pudessem falar de tal ou qual aspecto, cada um dentro de sua perspectiva própria: diversas perspectivas de uma mesma estátua ou um mesmo edifício, vistos por diferentes ângulos, não se contradizem, mas se completam. E o que nos importava mais do que tudo era que, ao término da montagem, todos se sentissem na completa liberdade de serem senhores dos textos por eles assumidos através de sua assinatura. "Uma obra-prima é hospitaleira", dizia Victor Hugo: "Nela entro tirando o chapéu, e acho belo o rosto de meu anfitrião." Todo o nosso esforço comum consistiu em balizar percursos, dispor esclarecimentos, desbastar acessos a essa hospitalidade inúmera, para que, entre tantas acolhidas oferecidas, cada um encontre as amizades e até os amores que lhe darão mais alegria de viver. A maravilha da música que amamos está em que, por toda parte, em nosso trabalho, nossos trajetos e nossos sonhos — num leito de hospital, que seja, e até entre os muros de um cárcere —, sempre podemos ouvi-la cantar no fundo do coração. BRIGITTE e JEAN MASSIN
LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO
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OS INSTRUMENTOS, A ORQUESTRA, AS VOZES
OS INSTRUMENTOS DE SOPRO Neste tipo de instrumento, o som resulta da vibração da coluna de ar contida em um tubo. Três fatores intervém: o comprimento do tubo, a forma interior (ou "furo") do tubo e a produção do som. COMPRIMENTO DO TUBO A vibração do ar contido em toda a extensão do tubo produz um som denominado "fundamental". Quando se modifica o comprimento do tubo, são obtidos sons de alturas diferentes, o que se faz com recurso a diversos procedimentos: • Justaposição de tubos de diferentes comprimentos (flauta de Pã, órgão). • Abertura de orifícios ao longo do tubo: quando todos os orificios estão tapados, o tubo produz o som "fundamental"; cada orifício aberto ao longo do tubo, de alto a baixo, equivale a um encurtamento deste. • Vara (trombone): quando puxada, o tubo é alongado; quando recolhida, reduzse o tamanho deste. • Pistões: sistema complexo de derivações que permite a passagem do ar por redes de circuitos de maior ou menor comprimento (trómpete, trompa). "FURO" • Cónico (oboé). • Cilíndrico (flauta). O comportamento da coluna de ar contida no tubo varia de acordo com a forma interior do mesmo. O enrolamento do tubo sobre si mesmo não tem qualquer influência sobre o efeito vibratório.
Léxico musical explicativo
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Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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PRODUÇÃO DO SOM
Família das flautas
Talvez seja o mais importante dos três fatores; é o que determina o "timbre" do instrumento. A vibração do ar no tubo é produzida quando o ar que o instrumentista expira entra em choque contra um obstáculo. Desde as origens dos instrumentos de sopro, este fenômeno sempre foi produzido de três maneiras, com variantes:
Flauta. Em francês, flûte; em italiano/Zawto; em inglês,flute;em alemão Flõte. Instrumento de tubo cilíndrico, perfurado por vários orifícios, em que a vibração do som é obtida por um "bisel". Há duas famílias, conforme seja o tipo do bisel.
1.0 bisel: o jato de ar expirado bate contra uma fenda talhada em bisel, aí se rompe e separa-se em dois. (Não é o bisel que vibra, mas apenas o ar que contra ele se choca.) Há duas variantes, que determinam dois tipos de flautas: • a ponta (flauta vertical ouflautadoce, charamela, diversos tipos de tubo de órgão); • a embocadura (flauta transversal ou transversa: neste instrumento, os lábios do exécutante dirigem o jato de ar sobre a borda do orifício feito no tubo). 2. A palheta: é constituída por uma lâmina feita da madeira de cana, que se põe a vibrar sob o efeito do ar expirado. A palheta pode ser: • simples, fixada a uma ponta (clarineta); • dupla, feita de duas lâminas, fixadas contiguamente e que vibram uma contra a outra (oboé). 3. A embocadura: é um pequeno bocal, geralmente metálico, sobre o qual se aplicam os lábios do instrumentista (trompa, trómpete). Neste caso, são os próprios lábios que fazem o papel de uma palheta dupla.
bisel
dupla
simples
X
pistões
X
>
embocadura
PRODUÇÃO DO SOM PALHETA
orificios
Flauta
TUBO cilíndrico
cónico
FURO
X
Oboé Come inglês
X
X
X
Fagote Clarineta
X
X
X
Saxofone
X
Trómpete
X
X
1
X
Trompa
X
X
1
X
Trombone
X
X
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Tuba
X
Corneto
X
Trompa de caça
X
X
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Trómpete natural
X
X
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X
X
X X X
X X
X X
Flauta doce. Flauta inglesa, flauta vertical; em francês, flûte à bec; em inglês, recorder, em alemão, Blockflõte. O som é produzido por uma ponta provida de um diminuto orifício que dirige o fio de ar para o bisel, como num apito. As mais antigas flautas desse tipo remontam ao Magdaleniano (10000 a.C). Da Idade Média até o começo do século XVIII, asflautasdoces, sempre de madeira, gozaram de grande popularidade. A literatura para a flauta doce é muito rica até o início do século XVIII, época em que o instrumento começa a ofuscar-se diante da flauta transversa. A família das flautas doces inclui flautas baixo, tenor, alto, soprano e sopranino, todas com oito orifícios. Flauta transversa ou transversal. Flauta alemã; em francês, flûte traversière; em alemão, Querflõte. O som é produzido pelos lábios doflautista,que dirigem o jato de ar na direção de um orifício feito lateralmente no tubo, que serve de embocadura; o instrumento deve ser colocado transversalmente à boca do instrumentista e mantido em posição horizontal, e disso lhe vem o nome. Flautas deste tipo podem ser vistas em alguns baixos-relevos indianos que datam aproximadamente do século II a.C. Menos utilizada que a flauta doce durante a Idade Média e o Renascimento, a flauta transversa ou transversal desenvolveu-se sobretudo a partir do século XVII, e no século XVIII praticamente eliminou sua rival. Os primeiros aperfeiçoamentos da flauta transversa devem-se à família Hotteterre (ca. 1700). Aos poucos, foi-lhe sendo acrescentada uma série de chaves. Do início do século XTX em diante, asflautastransversas passaram a ser feitas de metal (mas continuaram fazendo parte da família das "madeiras"!) e foram munidas de chaves e anéis que facilitam o dedilhado. Theobald Bõhm foi, por volta de 1830, o grande artesão responsável pela metamorfose deste instrumento, que é, entre todos os outros, a um só tempo o mais antigo e o que mais transformações sofreu em sua estrutura. (Veremos adiante que, ao contrário daflauta,o violino, por exemplo, é um instrumento que há séculos se mantém imutável.) O sistema de Bõhm foi, mais tarde, adaptado a outros instrumentos, particularmente ao oboé. A flauta possui uma sonoridade doce e redonda, ampla no registro grave, pura no médio, luminosa no agudo. É o mais ágil dos instrumentos de sopro.
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O trómpete, a trompa e o trombone têm, em quase toda a extensão de seu comprimento, a forma de um cilindro, que se abre progressivamente até o "pavilhão".
Flautim ou piccolo. Tem a metade do tamanho da flauta de concerto e toca uma oitava acima desta, com sonoridade radiosa e penetrante. É o mais agudo dos instrumentos de sopro e, ao tocar fortissimo, pode dominar toda a orquestra. Seu nome completo em italiano é flauto piccolo (pequena flauta), sendo designado, nessa língua, apenas como piccolo ou como ottavino.
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Léxico musical explicativo
Siringe ou Flauta de Pã. Em francês, syrinx. É aflautade Pã da Grécia antiga, constituída em geral por nove tubos, desiguais em comprimento, unidos uns aos outros e justapostos horizontalmente em ordem decrescente por tamanho. É também chamada de flauta mística ou flauta pastoril. Flajolé. Em francês, flageolet. Pequenaflautadoce, com quatro orifícios ñaparte da frente e dois na de trás, para os polegares. Família dos oboés Oboé. Em francês, hautbois; em italiano, oboe; em inglês, oboe; em alemão, Hoboe. Instrumento de palheta dupla, com tubo cónico provido de orifícios. É muito antigo, conhecido em todo o Oriente, na África e na Antigüidade grega. Na Idade Média, o oboé recebeu na França os nomes de chalumeau (charumela), chalemie, douçaine (dulcina) e bombarde (bombarda). A bombarda bretã (bombarde bretonne) é, pode-se dizer, prima do oboé. Foi na França que este instrumento se desenvolveu e aperfeiçoou-se: por isso, tomou na Europa o nome francês de hautbois ("madeira alta", literalmente), por oposição a grosbois, instrumento grave da mesma família e ancestral do fagote. Como sucedeu com aflauta,foi um membro da família Hotteterre que, por volta de 1700, aperfeiçoou o oboé e lhe deu suas características modernas; contudo, em meados do século XIX, esse instrumento recebeu, adaptados, certos elementos do mecanismo que Bõhm concebera para a flauta. O oboé é um instrumento essencialmente melódico: menos ágil que a flauta, tem um caráter pastoril, por vezes melancólico, mas sabe ser também agreste e jovial. O timbre do oboé impõe-se a qualquer massa sonora de que ele faça parte. Corne inglês. Em inglês, English horn; em alemão Englisches Horn e, às vezes, Altoboe; em italiano, corno inglese. A antiga designação francesa deste instrumento, hautbois de chasse (ou oboe da caccia em italiano, que daria em português "oboé de caça"), era mais exata. O nome atual, traduzido do francês cor anglais (literalmente trompa inglesa), ilude: o instrumento nada tem a ver com a trompa. O corne inglês é um oboé grave, por sinal absolutamente semelhante em aspecto ao oboé comum. É mais longo (um metro em vez de sessenta centímetros) e termina com uma campana ou pavilhão em forma de bulbo. A sonoridade do corne inglês é doce, nostálgica, um tanto velada e muito expressiva. Com palheta dupla e registro uma quinta abaixo do oboé, um parente do corne inglês é o oboé tenor (em francês, taille), muito usado em música militar no passado. Esse tipo de oboé grave foi fabricado na Inglaterra até o século XVIII com o nome de Vaux humane (do latim vox humana). Oboé de amor ou oboe d'amore. Em francês, hautbois d'amour; em alemão, Liebesoboe; em italiano e inglês, oboe d'amore. Instrumento intermediário entre o oboé
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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e o corne inglês, utilizado no século XVIII. Com relação à origem de seu nome, cf. mais adiante viola d'amore. Fagote. Em alemão, Fagott, em italiano, fagotto; em francês antigo, fagot, atualmente em francês basson; em inglês, bassoon. Instrumento de palheta dupla, com tubo cónico, que é o baixo da família dos oboés e, de modo geral, do conjunto das madeiras. O fagote deve seu nome ao comprimento de seu tubo (mais de dois metros). O tamanho levou os fabricantes a dobrá-lo, o que fez com que ele tomasse a forma de duas toras de madeira abraçadas formando um fagot, que em francês significa feixe de lenha. Anteriormente, o fagote chamou-se, em francês, grosbois ("madeira grave") por oposição a hautbois ("madeira alta"). O fagote desenvolveuse durante o século XVII, quando se tornou, juntamente com o oboé, parte integrante da orquestra. A sonoridade do fagote é poderosa, cheia, sobretudo no grave, bem timbrada, mais velada nos registros médio e agudo. É um admirável baixo para o ensemble da família das madeiras, mas pode também mostrar-se encantadoramente melancólico em solos. Contrafagote. Em francês, contrebasson; em italiano, contra fagotto; em inglês, double bassoon; em alemão, Kontra fagott. Instrumento de palheta dupla e furo cónico. Soa na oitava grave do fagote e faz, com relação a este, o papel que tem o contrabaixo em relação ao violoncelo. Cromorno. 1. Em francês, cromóme; em alemão Krumhorn, em italiano, sforta. Instrumento de palheta dupla, parente do oboé, bastante utilizado até o século XVII. A palheta vinha encerrada numa caixa em que o exécutante soprava. O nome cromorno prende-se ao fato do tubo deste instrumento ter sua parte inferior recurva (em inglês antigo, crump-horn, ou seja, trompa retorcida, literalmente). Os cromornos, de timbre suave e anasalado, formavam uma família que ia do soprano ao baixo. 2. Registro de órgão, cujo nome deriva do instrumento acima e que foi utilizado do século XVI ao século XVIII. Clarineta ou clarinete Instrumento de palheta simples e furo cilíndrico, cuja origem pode ser atestada desde 2000 anos a.C. no Egito, nas índias, em todo o mundo árabe e na Grécia, onde era conhecido por aulos. Na Idade Média, denominado charamela ou pelo nome francês chalumeau, tinha a palheta encerrada numa caixa onde o exécutante soprava (cf. cromorno). Contrariamente àflautae ao oboé, a clarineta só começou a desenvolver-se a partir da metade do século XVIII e foi pouco usada até essa data. Por volta de 1700, um alemão de Nuremberg, de nome Johan Christoph 1
Parecida com a clarineta, a salmoa foi um instrumento mais usado que ela antes que Derner a aperfeiçoasse.
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Léxico musical explicativo
Derner, ao pôr a palheta diretamente em contato com a ponta, suprimindo a caixa que a encerrava, criou de fato o instrumento. Vivaldi e Rameau figuram como inovadores, pois foram os primeiros a utilizar a clarineta em sua nova forma. No final do século XVIII, já aperfeiçoada, a clarineta ganhou de Mozart seus foros de nobreza e, no século XIX, o mecanismo concebido por Bõhm para aflautafoi a ela adaptado. A clarineta é o instrumento que possui maior extensão entre as "madeiras". As particularidades de sua concepção fazem com que tenha uma série de registros especiais e que sua sonoridade altere-se sensivelmente com a altura do som (tessitura): charamela (grave), sonoro e caloroso; médio, menos doce, mais desagradável; clarino, luminoso; agudo, brilhante; superagudo, incisivo. O nome clarineta resulta da sonoridade de seu terceiro registro, que fazia lembrar a de um pequeno trómpete, o clarino, instrumento de nome italiano usado no século XVIII, no tempo em que a clarineta estava sendo inventada. A família das clarinetas compreende, além da clarineta comum: no registro agudo, a pequena clarineta ou requinta, e no registro grave, a clarineta alto, a clarineta baixo ou clarone, e a clarineta contrabaixo, todas essas três com forma semelhante à de um saxofone. Há ainda o cor de basset (em francês), corno di basseto (em italiano) ou Bassethorn (em alemão), surgido na Baviera em torno de 1770; este último, pouco empregado hoje em dia, foi usado com freqüência por Mozart, que demonstrou especial predileção por ele, principalmente em suas obras maçônicas, e dele se valeu até em seu Requiem. A clarineta é um instrumento transpositor. Chamam-se assim os instrumentos que, por motivos históricos, fazem soar suas notas diferentemente das que estão escritas na partitura, ou seja, a nota natural e geradora do instrumento soa como o dó notado, que valerá como uma referência para todas as demais. Desde Schõnberg, Prokofiev e outros, a tendência que prevalece atualmente é a de, cada vez mais, escrever os sons tais como são percebidos pelo ouvido. Saxofone Instrumento de palheta simples, furo cónico e construção metálica, o saxofone foi criado pelo belga Adolphe Sax em tomo de 1840. Por sua palheta simples, ele se assemelha à clarineta, e pelo furo cónico, ao oboé, mas o resultado sonoro nada tem a ver com o de qualquer desses dois. Utilizado por Rossini e Berlioz desde sua criação, somente na França o saxofone ganhou lugar nas orquestras, pelo menos até o início do século XX. Mais tarde, a partir de 1920, tornou-se um dos principais instrumentos sofistas da música de jazz. A sonoridade do saxofone é clara e cheia, e sua agilidade pode mostrar-se extraordinária. Há uma família completa de saxofones: sopranino, soprano, alto, tenor, barítono e baixo. É um instrumento transpositor.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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Saxhorne. Instrumento dotado de pistões inventado por Adolphe Sax em 1843; também ele constitui uma família e deve sua popularidade principalmente às bandas de música (orquestras de metais e percussões que tocam ao ar livre) militares e municipais. Em português é também chamado de fliscorne. FAMÍLIA D O S S O P R O S AGUDO
flautim
MÉDIO
flauta
soprano saxofone oboé
clarineta
saxofone alto
M É D I O GRAVE
oboé d'amore corne inglês
Bassethorn ou cor de basset
saxofone tenor
BAIXO
fagote
clarineta baixo
saxofone baixo
Trompa Em francês, cor, em italiano, corno; em inglês, horn; em alemão, Horn. Instrumento metálico de furo cilindro-cônico, provido de embocadura e pistões. Como indica o nome que se dá em português à versão primitiva desse instrumento, bem como sua designação em francês e em italiano, a trompa tem sua origem em chifres (cornos) e nas presas de elefante (o poema medieval francês La Chanson de Rolland menciona o olifante, trombeta de marfim que os cavaleiros, de modo geral, levavam consigo) e nas grandes conchas de que era feita; esses materiais são utilizados ainda hoje, sobretudo no Oriente. Se aflautasempre foi pastoril ou mágica, a trompa era essencialmente guerreira e aristocrática (e ainda o é na Ásia). Seja ela de madeira, terracota ou metal, é encontrada em todas as civilizações (o cornu romano), sempre com a mesma forma cónica que traz desde a origem. Para que tivesse um som mais profundo, o tubo sofreu diversos alongamentos. Se a trompa de caça (cor de chasse) fosse desenrolada teria 4,50m de comprimento; com seu tubo tantas e tantas vezes recurvado, ela apareceu por volta de 1600 na França. Na trompa natural, quando se modifica a pressão dos lábios sobre a embocadura, obtém-se a série dos harmônicos naturais, vale dizer, uma escala sonora muito imperfeita e muito incompleta. Mas foi desta maneira que a trompa existiu até o século XLX. E foi só em 1760 que um trompista inaugurou a técnica dos "sons fechados", que permitia produzir uma parte dos semitons intermediários. Para que se pudesse tocar em diferentes tonalidades, passou-se, a partir de 1770, a empregar roscas que alongavam (ou encurtavam) o tubo de acordo com a necessidade. Em 1813, o alemão Stõlzel teve a idéia de fixar no instrumento pistões que fecham ou abrem circuitos de diferentes comprimentos, dotando a trompa de roscas permanentes que lhe permitem abordar todas as notas. Daí o nome da trompa moderna: "trompa cromática de pistões".
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Léxico musical explicativo
Além de todas as facetas ligadas a suas antigas funções (evocações de caça, de guerra, daflorestae da vida ao ar livre), a trompa tem um vasto campo expressivo — nobre, poético e mesmo sonhador — bem como um papel preciso na orquestra, onde reforça o registro médio. É um instrumento transpositor. Trómpete Em inglês trumpet; em francês trompette; em italiano, tromba; em alemão, Trompete. Instrumento metálico, com furo cilindro-cônico, munido de embocadura e pistões. Tanto a origem do trómpete, como sua estrutura e os problemas que trouxe aos fabricantes são parecidos com os da trompa. Existe desde os mais remotos tempos da Antigüidade, na Ásia, no Egito, na Grécia e em Roma. Como a trompa, está ligado à guerra, mas tinha uso mais cerimonial do que esta. No entanto, parece ter sofrido uma eclipse não experimentada pela trompa; só vamos reencontrá-lo no Ocidente no século XIII, com o nome de "trómpete sarraceno", que faz supor tratar-se de um caso de importação. Reto no início, tornou-se recurvo no século XVI e, até o século XVIII, participou mais do que a trompa da vida musical, ligado a todas as expressões de glória ou manifestações do poder. Assim como a trompa, por volta de 1770 o trompeté recebeu roscas e, aproximadamente em 1815, ganhou seus pistões, tão característicos dele que, em português, também é conhecido como pistão, sobretudo na música popular. O trómpete não tem a sonoridade da trompa, mas o brilho é uma propriedade sua. Ele é ágil e pode, melhor do que a trompa, executar toda uma sorte de trinados, arpejos e cadências ornamentais. No entanto, é capaz de mostrar grande doçura quando é tocado piano. Também é um instrumento transpositor. Clarino. Pequeno trómpete de nome italiano bastante usado no século XVIII, com sonoridade mais aguda, porém mais doce que a do trompeté. Foi provavelmente para este instrumento que Bach escreveu o Concerto de Brandenburgo n° 2. Cometo 1. Em italiano cornetto; em francês, cornet, em inglês, cometi; em alemão Cornett ou Zink. Instrumento de sopro que esteve em uso até o século XVII. Como o oboé, tinha furo cónico, tubo com orifícios e era de madeira, mas estava provido de uma embocadura, como um trómpete. Com sonoridade doce e clara, foi o instrumento favorito dos italianos no século XVI e no início do século XVII, até o desenvolvimento do violino, que o suplantou em seus empregos. Os cornetos estavam agrupados em família, e os mais longos e graves, por lembrarem a forma da serpente, fizeram com que este nome fosse dado ao baixo do cometo. A serpente — também chamada serpentão — era usada nas igrejas para dobrar a voz dos baixos e, até o século XIX, continuou sendo usada nos meios rurais.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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2. Registro de órgão: jogo de mutações compostas que comporta cinco tubos por nota e imita a sonoridade do instrumento acima. O registro, destinado a tocar partes de solo, é um dos mais belos do órgão clássico. Cometa de pistões. Instrumento provido de embocadura, furo cónico e pistões, que lembra bastante o trómpete, mas distingue-se deste por ter o furo mais grosso, o tubo mais curto e o pavilhão maior. A sonoridade, um pouco vulgar, está de acordo com as proporções, mas o instrumento é ágil, de fácil emissão, o que explica sua popularidade em todos os orfeões (corais populares mantidos pelas municipalidades ou empresas privadas) no século XIX. De certa forma, caiu em desuso. Trombone Em inglês e italiano, Trompone; em alemão Posaune. Instrumento com embocadura, furo cilindro-cônico e vara, cuja origem é semelhante à da trompa e à do trómpete. A "pré-história" deste instrumento pouco difere da do trómpete, e o próprio nome atesta que têm a mesma filiação (tromba, em italiano). Por sinal, o nome alemão do trombone, Posaune, é também uma deformação de buccina, nome latino do trómpete. Quanto ao seu antigo nome francês, sacqueboute (em português "sacabuxa"), surgiu de sua semelhança com uma arma de assalto que assim era chamada. Na origem, o trombone não passava de uma variante grave do trómpete. Mas, enquanto este último se conservava imutável, o trombone, com a invenção da vara no século XV, recebeu um tipo de aperfeiçoamento que o pôs na dianteira. Daí sua importância em toda a música polifónica que se fez do século XV ao século XVII. Johann Sebastian Bach ainda o utilizava para dobrar vozes em seus corais, mas, ao que tudo indica, tratava-se já de um arcaísmo. O trombone viria a reaparecer com Mozart, Beethoven, Schubert e os românticos. A vara, formada por duas partes que se encaixam, é um recurso que, perrnitindo facilmente o alongamento ou o encolhimento do tubo, dá ao instrumento uma escala cromática, que se interrompe, porém, no meio do seu registro, pela falta de algumas notas. Mas o manejo da vara é mais difícil que o dos pistões que foram acrescentados à trompa e ao trómpete no século XIX. O trombone é o instrumento grave dos metais. Sua sonoridade tem um poderio e uma majestade que dominam toda a orquestra. Tuba Tem o mesmo nome em alemão, inglês, italiano e francês. De furo cónico, com embocadura e pistões, este instrumento grave, cujo nome vem do latim tuba (trómpete), apareceu no século XIX. Aperfeiçoado por Sax, o inventor do saxofone, ele se parece com a trompa, mas o furo é cónico em toda a extensão do tubo. A execução da tuba é relativamente simples, e seu emprego mais habitual é limi-
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Léxico musical explicativo
tado quase só ao papel de baixo da família dos metais, se bem que suas possibilidades sejam mais variadas. Bugie. Em alemão, Flügelhorn; em inglês, flugel horn; em francês, bugie; em italiano, fli corno. Instrumento da família da tuba, que atua no registro médio. Cornamusa ou gaita de foles Em francês, cornemuse; em inglês, bagpipe; em alemão Sackpfeife; em italiano, cornamusa, piva ou zampogna. Instrumento de foles, que se destina a ser tocado ao ar livre. É constituído por vários tubos com palhetas fixados em um saco, em geral feito de pele de carneiro, que armazena o ar. Um dos tubos destina-se ao sopro do exécutante, os outros (prima e bordões) servem para produzir os sons diversificados pelo escapamento do ar.
Os instrumentos, a orquestra, as vozes
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Harmonio ou órgão de sala. Em francês, inglês e alemão, harmonium. Órgão de palhetas livres, com um ou dois teclados e pequeno número de registros, cuja folaria (se não for elétrico) é acionada através de pedáis. O harmonio foi inventado por Alexandre Debain em 1842. Na falta do órgão, é um instrumento comum nas igrejas, e pode também ser visto em algumas residências, mas distingue-se fundamentalmente do órgão pela ausência de tubos.
O ÓRGÃO
Museta. Em francês, musette. Instrumento de foles, de origem francesa, pouco diferente da cornamusa; o tubo da folaria, com embocadura, foi nele substituído por um fole que o tocador aciona com a mão direita. Muito em voga nos séculos XVII e XVIII, foi depois suplantado pelo acordeão. Deu o nome à musette, dança francesa que freqüentemente acompanhava, de caráter pastoril, ritmo variável, sempre em três partes.
Diz-se que o órgão é o rei dos instrumentos. Decerto é o mais polivalente: é a soma de tudo o que se pode fazer com os instrumentos de sopro. Por outro lado, o órgão é o resultado mais refinado da combinação da ciência empírica com a engenhosidade artesanal. Fica-se perplexo quando se constata que, no fim da Idade Média— numa época em que a "mecânica" não existia, em que a ciência acústica estava por nascer, em que o arado ainda era uma ferramenta primitiva, em que nem o papel nem a imprensa sequer tinham sido imaginados, e em que todos os outros instrumentos de música estavam em sua infância —, o órgão já possuía todas as características que tem hoje, com toda sua complexidade!
Regai
DESCRIÇÃO
Em francês, régale. Instrumento de foles e teclado, espécie de órgão portátil, com palhetas metálicas e batentes, e de sonoridade rouca, que caiu em desuso no início do século XVIII. Emprestou seu nome a um registro de órgão. Algumas invenções do início do século XIX Acordeão. Em alemão, Akkordeon ou Ziehharmonika; em francês, accordéon; em inglês, accordion; em italiano, fisarmónica. Instrumento portátil dotado de fole e palhetas livres metálicas, cuja ventilação, proporcionada pelo fole controlado manualmente, produz sons que são selecionados pelo acionamento de um teclado. Posteriormente, o acordeão passou a ter dois teclados, o do acompanhamento e o do solo. Foi inventado por um austríaco de nome Demian, que o patenteou em 1829, depois de muitas pesquisas, realizadas em diferentes países, entre as quais as do alemão Friedrich L. Buschmann. Teve uso mais generalizado na música popular, mas muitos compositores eruditos, entre os quais Jean Wiener, que escreveu um Concerto para acordeão, não desdenharam compor para esse instrumento. Harmônica ou gaita de boca. Em francês, alemão e inglês, harmonica. Pequeno instrumento de sopro, provido de palhetas livres metálicas, que se toca com a boca. Foi inventado por Friedrich L. Buschmann em 1828, um ano antes do acordeão.
Os principais elementos do órgão 1. Afolaría: os pulmões. 2. Os tubos. Não devemos fiar-nos naquilo que vemos: um grande órgão possui, por trás de sua fachada (a mostra) milhares de tubos que medem desde 10,40 metros de altura (32 pés) até um centímetro (3/8 de uma polegada). Os tubos achamse agrupados por famílias, chamadas "registros" ou "jogos", que produzem a extensão de uma escala cromática completa. 3. Os someiros. São um tipo de caixa que fica entre a folaria e os tubos. Os someiros recebem o "vento" (o ar) e o distribuem por canais alongados, ditos gravuras, onde existem furos destinados a receber, em cada um, o pé de um tubo. Estes furos, se a tecla não for tocada, ficam fechados por válvulas (sopapos). 4. A consola, ou console. É a peça que suporta os teclados ou manuais (estes em número de um a cinco, ou, mais habitualmente, dois ou três) e a pedaleira. 5. A transmissão: complexo dispositivo mecânico que sai da consola e põe para funcionar três séries de mecanismos: (a) comandos de registros: ao puxar um "registro" (ou seja, acionar determinado puxador, no console) o organista faz passar o. "vento" pela gravura que corresponde a todos os tubos de uma mesma família;
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(b) comandos que ligam a tecla à abertura dos sopapos: quando um "registro" é puxado e o ar chega à gravura correspondente a uma família de tubos, a tecla que for abaixada fará "soar" o tubo que corresponde à nota escolhida, enquanto os outros tubos permanecem silenciosos; (c) as cópulas dos manuais uns com os outros. A transmissão, feita até o século XX por um prodigioso conjunto de pequenas varetas de madeira leve e fios de metal, é das partes mais complexas desta fábrica de sons que é o órgão. Hoje, é feita por transmissão elétrica, o que permite ao organista manter-se a certa distância dos tubos. Mas a transmissão elétrica, no dizer de alguns, não conserva todas as qualidades da transmissão mecânica.
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3. Jogos de palheta. São aqueles em que uma lingüeta de metal vibra contra uma ponta ou bico no interior do pé do tubo. Possuem sonoridade vigorosa, de timbre alto, e podem ser empregados em solos ou como base para um grande tutti: (a) trompeté; (b) cromorno; (c) museta. A arte do organista consiste, antes de tudo, em saber dosar, na registração (escolha dos registros), a afiança ou oposição dos jogos em função da obra que interpreta. ETAPAS DA HISTÓRIA DO ÓRGÃO
Os diferentes jogos No que diz respeito à produção de sons, vamos reencontrar no órgão as principais características dos instrumentos de sopro. Os registros ou jogos distinguem-se de acordo com: (a) o modo como são produzidos os sons: tubo de palheta (cf. clarinete) e tubos flautados ou tubos de boca (cf.flautadoce); (b) a forma dos tubos: cilíndricos (largos ou estreitos) e cónicos. Os tubos são geralmente de metal (estantío e chumbo), às vezes de madeira. Por pertencer o órgão a esferas extremamente conservadoras, continua-se ainda hoje a medir os tubos em pés e polegadas e a denominar um jogo segundo o comprimento de seu tubo mais alto. Por exemplo: um jogo de 32 pés (10,40m), um jogo de 16 pés, um jogo de 8 pés, um jogo de 4 pés. Um jogo de 8' soa de acordo com a nota escrita; um de 4' soa na oitava acima; um de 16' na oitava abaixo. Assim, se forem puxados os registros de 16' + 8' + 4', serão ouvidas três oitavas tocadas simultaneamente por uma mesma tecla. Os jogos se dividem em três grandes classes, de características bem definidas: 1. Jogos de fundo on fundos do órgão. Tubos de boca de diferentes séries de tamanho, cujos timbres são diferenciados pela maior ou menor largura do tubo, pelo tamanho da abertura de sua extremidade e por diversos artifícios, como pavilhões, "chaminés" etc. Os principais jogos de fundo são: (a) montra (grandes tubos da fachada), (b) flautas (tubos largos, som doce e arredondado), (c) gambas (tubos estreitos, som mais incisivo) e (d) bordões (tubos fechados, som doce e velado). 2. Jogos de mistura. Muitos tubos estão associados a uma mesma nota, que, quando tocada, se faz acompanhar por seus harmônicos, de modo a produzir uma sonoridade mais rica: (a) "cheio" do órgão ou órgão pleno: três a cinco fileiras de tubos para cada nota, acrescidas aos fundos do órgão, é usado para obter-se uma sonoridade rica, poderosa, brilhante; (b) címbala: tutti menor que o anterior; (c) corneta: registro solista que tem de cinco a dez fileiras de tubos para cada nota e possui uma doce e variada gama sonora.
A flauta de Pã, a siringe dos gregos e da América do Sul, sugere que, desde os mais remotos tempos, já se pensava em um alinhamento dos tubos, que permitisse uma emissão sucessiva de diferentes sons. No entanto, o órgão de boca, típico das montanhas do Camboja e do Laos, é uma cabaça munida de vários tubos que soam simultaneamente. Seria esta a origem do órgão ocidental, que nos teria chegado através da China? O instrumento mais antigo mencionado na Bíblia é o órgão, e o primeiro de que há notícia vem do Egito, data do século III a.C. é tinha folaria hidráulica. Em Bizâncio e na parte oriental do Mediterrâneo, desde longa data se tocava órgão, enquanto o Ocidente ainda o desconhecia. No século VIII, o imperador Constantino V ofereceu a Pepino, o Breve, um instrumento que talvez fosse um órgão; posteriormente, Carlos Magno mandou construir um instrumento parecido, que teria sido o primeiro órgão ocidental. Durante a Idade Média, foram usados pequenos órgãos positivos ou portáteis. A evolução se fez no sentido do enriquecimento da sonoridade, quando, para cada nota, começou-se a pôr várias fileiras de tubos para cantar simultaneamente: é o aparecimento do tutti. Com a amplidão das catedrais, o órgão avantajou-se, chegando a ter 32 pés já no século XIV. No Renascimento, a evolução foi inversa: buscaram-se jogos que fossem capazes de expressar o detalhe: veio a invenção dos someiros de registros, que permitem isolar um ou outro jogo, foram criados os jogosflautadose aprimoradas as palhetas. O século XVII é o primeiro grande século do órgão, que alcança então o seu equilíbrio. Os tutti são aperfeiçoados e os jogos de mistura solistas tornam-se mais puros. Diversas tendências surgem. Na França, o órgão é rico de timbres, opondo aos elaborados jogos sofistas o brilho dos "cheios"; seu apogeu se dá por volta de 1670-1700. Na Alemanha, prevalece um instrumento não tão timbrado, porém mais homogêneo e adequado à polifonia, já com uma pedaleira mais desenvolvida. A Itália se mostra mais tímida, com seu órgão ripieno, de um ou dois teclados e sem pedaleira independente. Já a Espanha gosta das palhetas brilhantes, e a Inglaterra segue a França. No século XVIII aperfeiçoou-se o órgão clássico, sem inovações. No século XIX, o advento do romantismo trouxe profunda transformação. Aos registros claros e
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bem timbrados prefere-se uma concepção "orquestral", mais fundida, e, em certos casos, o "colossal". É a época do grande fabricante Cavaillé-Coll (Notre-Dame de Paris, Saint-Sulpice, Sheffield, Amsterdã), mas — fato não tão auspicioso — é também a época em que "voltam à moda" os órgãos clássicos, muitas vezes desfigurados. Com o século XX, vieram numerosos aperfeiçoamentos técnicos (a transmissão eletropneumática, por exemplo). Por outro lado, observa-se uma tendência "neoclássica" bem nítida, restabelecidos os órgãos antigos no estado primitivo, sem transformações. Para concluir, é preciso ter sempre em mente que cada órgão resulta de uma concepção particular e artesanal, e que não há dois instrumentos exatamente iguais, ainda que tenham sido obra de um mesmo fabricante: os órgãos dependem do tamanho do lugar em que estão, de certas técnicas particulares, do número de jogos e do equilíbrio destes. Por isso, um organista deve sempre adaptar-se ao instrumento que vai tocar, mesmo se for executar as mesmas peças.
OS INSTRUMENTOS DE CORDAS TANGIDAS O ancestral comum dos instrumentos de cordas tangidas parece ser o arco musical. No entanto, é na África que se pode seguir com mais clareza o caminho que leva do arco musical à harpa, por um lado, e à guitarra, por outro. O arco musical é encontrado na África negra: a boca do músico ou uma cabaça serve como ressonador. Vários arcos fixados numa mesma cabaça poderiam ser vistos como o embrião da harpa, bem como uma cabaça com uma corda distendida sobre ela poderia ser algo equivalente a uma guitarra elementar (monocórdia). Harpa Em alemão, Harfe; em francês, harpe; em inglês, harp; em italiano, arpa. Desde o terceiro milênio a.C. pode a harpa ser atestada em todo o antigo Oriente, bem como no Egito e na Suméria, ainda na forma de um arco musical de três a sete cordas. Era o instrumento das mulheres e dos cegos no Egito, onde, no Novo Império, já se viam harpas com quatro cordas e medindo dois metros de altura. A harpa do rei hebreu Davi deriva, sem dúvida, da harpa egípcia. Não muito mais tarde, a forma em arco foi substituída pela forma triangular (Fenicia), que subsistiria. Mas o mundo islâmico haveria de abandoná-la. O Extremo Oriente a ignorou. E o Ocidente antigo preferiu a lira. A partir da alta Idade Média, a harpa reapareceu no mundo escandinavo, céltico e germânico. Entre os celtas (os primitivos habitantes da Irlanda e do País de Gales), a harpa jamais chegou a cair em desuso.
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A harpa permaneceu até o século XVIII como um instrumento secundário, limitado ao diatonismo, apesar de alguns esforços no sentido de aperfeiçoá-la. A harpa cromática de pedal, que permite executar sustenidos e bemóis, apareceu no fim do século XVII, mas seu uso só se difundiu na metade do século XVIII. Foi na França que tocar harpa se tornou moda (era o instrumento de Maria Antonieta e de Madame de Genlis, uma virtuose da época). Foi também na França que Sébastien Érard, por volta de 1800, fez o aperfeiçoamento definitivo do instrumento. Teoricamente falando, o sistema da harpa é simples: há sete pedáis que permitem elevar ou abaixar em um semitom cada uma das sete notas da escala, de uma só vez, em todas as oitavas (em todos os dós, todos os rés, etc). Com suas 46 cordas, a harpa tem extensão de seis oitavas e meia (quase tanto quanto o piano). A sonoridade da harpa é quente, aveludada, luminosa; os arpejos, que lhe devem o nome, assentam-lhe particularmente bem, tanto quanto todas as formas de glissando, o que contribui para seu maior encanto e doçura. É, ao que se diz, um instrumento feminino... embora "o Harpista" seja um célebre personagem do Wilhelm Meister, de Goethe. Lira Em italiano lira; em inglês e francês, lyre. Instrumento de cordas tangidas ou dedilhadas, conhecido em toda a alta Antigüidade, na Mesopotamia, no Egito, na Palestina e sobretudo na Grécia, onde adquiriu seu nome. A lira era formada por uma carapaça de tartaruga que funcionava como caixa de ressonância, de onde partiam dois chifres de cabra unidos por uma travessa. Foi feita primeiramente com sete e, mais tarde, com doze cordas. A mitologia atribui a invenção da lira a Apoio (como acontece com a flauta, cuja origem é atribuída ao sátiro Mársias), que a teria transmitido a Orfeu, o qual, por sua vez, teria ensinado os homens a tocá-la. Alaúde Em inglês, lute; em francês, luth; em italiano, liuto; em espanhol, laud; em alemão, Laute. O alaúde e a guitarra estão unidos por uma origem comum, por sinal obscura. Instrumentos arcaicos do gênero do alaúde e da guitarra foram encontrados em todos os continentes, mas é provável que fossem mais cultivados na Ásia (China e India). No Egito, estão representados nos baixos-relevos do Médio Império. O alaúde (de fundo abaulado) e a guitarra (de fundo plano) apareceram na Idade Média mais ou menos na mesma ocasião, mas só o alaúde deixa clara sua origem mourisca (al'ud). Contudo, o desenvolvimento da guitarra na Espanha e seu nome medieval (guitarra moresca) parecem indicar a mesma filiação, apesar de observarse certa conexão com a palavra grega cithare (cítara).
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O alaúde, cuja caixa tem a forma de uma pêra cortada ao meio, é dotado de pares de cordas, que podem ser em número de cinco, seis, dez e até quatorze. Foi um dos favoritos entre os instrumentos do Renascimento e do século XVII. Sua influência sobre o desenvolvimento da música mostrou-se considerável (tomada de consciência da harmonia, desenvolvimento do canto solista acompanhado, nascimento da suíte instrumental). A escrita para o alaúde fazia-se em um tipo especial de notação denominado tablatura. No final do século XVII, o alaúde pouco a pouco entrou em declínio, até que foi suplantado pelo cravo no início do século XVIII. A sonoridade do alaúde é doce, cheia, sonhadora. É, por excelência, o instrumento da música intimista.
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recida com a do alaúde. Mas enquanto este se desenvolveu, principalmente nos séculos XVI e XVII, quando recebeu várias melhorias, a guitarra conservou-se sempre mais simples. Não deixou, porém, de ser tocada por grandes músicos dessa época e foi muito popular em todas as classes sociais {"sitost levé ma guitare je touche", dizia Ronsard). Diferencia-se a guitarra do alaúde pelo fundo plano, a largura da caixa e suas seis cordas simples. Possui sonoridade mais brilhante, é dotada de grande diversidade de timbres e expressões, além de facultar maior velocidade às execuções. É instrumento muito popular na Espanha, de onde saiu, durante o Renascimento, para difundir-se pela França e depois pela Europa. Mas seu repertório é essencialmente espanhol. Paganini tocava guitarra com a mesma mestria que demonstrava ao violino. 1
Tiorba ou arquialaúde É um alaúde de dimensões um pouco maiores, em cujo longo braço se assenta uma dupla série de cordas: as do alaúde e outra série de cordas mais compridas, que permitem a emissão de notas graves. Tais mudanças fizeram-se necessárias por causa do desenvolvimento do baixo contínuo no século XVII.
Vihuela Instrumento intermediário entre o alaúde e a guitarra, com seis fileiras de cordas duplas. Durante o século XVI, antes de ceder lugar à guitarra, foi o mais popular dos instrumentos na Espanha.
Guitarrone Nome italiano de uma grande tiorba, de braço descomunal (dois metros); é uma espécie de alaúde baixo que permitia acompanhamentos tão densos como os do cravo (século XVII). Mandora ou alaudina Em francês, mandore; em italiano, mandola ou pandurina. Pequeno alaúde. Bandolim Em francês, mandoline; em inglês, mandolin; em italiano, mandolino. Instrumento descendente do alaúde, do qual conservou a forma e as cordas dispostas aos pares, que, no bandolim, são metálicas e tangidas com um plectro. Também chamado mandolim ou mandolina, é o único instrumento da família do alaúde que sobreviveu, especialmente na Itália, onde é bastante popular desde o século XVIII. Existem vários tipos, com pequenas diferenças: bandolim napolitano, bandolim português, bandolim americano, etc.
OS INSTRUMENTOS DE CORDAS FRICCIONADAS O princípio da corda friccionada é conhecido há muito tempo em toda a Ásia e no mundo árabe (rebab). Quanto à sua aparição no Ocidente, é difícil saber-se ao certo: supõe-se que não tenha sido posto em prática na Antigüidade greco-romana, no Egito ou no antigo Oriente Próximo. Na lenda, a invenção do arco é atribuída a Ravana, rei de Lanka e um dos heróis do Ramayana, a célebre e lendária epopéia indiana: é, em todo caso, provável que as cordas friccionadas tenham origem asiática. Viela e rabeca É com estes dois nomes que os instrumentos de arco aparecem nas üuminuras e esculturas da Idade Média e, às vezes, também com os nomes de rota (do latim rota) ou giga (do francês gigue). A viela — em francês, vièle ou vielle; em latim medieval vécla; em inglês, tiddle —tem o corpo plano, com o braço feito de uma peça presa a este corpo. É preciso
Guitarra ou violão Em espanhol, guitarra; em francês, guitare; em inglês, guitar, em italiano, chitarra; em alemão, Gitane. Mais conhecido como violão em Portugal e no Brasil, é talvez o principal instrumento da música popular brasileira. A origem da guitarra é pa-
"Logo que me levanto, toco minha guitarra". Poeta renascentista francês do século XVI, Pierre de Ronsard (1524¬ 1585) integrava o grupo dos poetes de La Pléiade, com Joachim Du Bellay e cinco outros. Dito "o príncipe dos poetas", Ronsard influenciou significativamente os rumos da música na Franca em meados do século XVI (Cf. adiante, neste livro, Parte II, "A música no século XVI: Europa do Norte, Franca, Itália e Espanha"). (N. T.)
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não a confundir com a viela de roda, na qual o arco é substituído por uma roda acionada por uma manivela: este, um instrumento bem mais primitivo, é o que é tocado pelo Leiermann — o tocador de viela de roda —, do ciclo de Lieder intitulado Winterreise [Viagem de inverno], de Schubert. A viela era o instrumento usado por pessoas de certa educação musical, pertencentes à sociedade letrada medieval: abades, cavaleiros, trovadores, etc. Já a rabeca (rebab, em árabe) — em francês rebec, em espanhol, rubebe; em italiano ribecche; em alemão, Heine Geigen — é um instrumento sem braço, constituído por uma peça inteiriça em forma de pêra, com três ou quatro cordas. De caráter popular, sobreviveu por muito tempo nos meios interioranos. Em português, o nome rebeca, ou rabeca, designa genericamente os ancestrais medievais do violino, mas também o instrumento do gênero do violino, mas de timbre mais grave, ainda em uso na música popular de diversos países, inclusive o Brasil (congadas, reisados, etc), aproximando-se, neste sentido também, do inglês fiddec. A família das violas Em inglês, viol; em alemão Gamba; em francês, viole. A viola é um instrumento muito mais evoluído do que os dois últimos e só apareceu no século XV. Trata-se, na verdade, de uma família completa: Viola de braço (viola da braccio) • Descante de viola: espécie de viola sopranino, tem praticamente a mesma tessitura do violino (em francês, pardessus de viole) • Viola soprano: uma quarta mais baixo que o violino (em francês, dessus de viole) • Viola alto: tem a mesma tessitura que a viola de orquestra atual (em francês, alto de viole) Viola da gamba (viole de gambe) • Viola tenor: tessitura a meio-caminho entre a viola atual e o violoncelo (em francês, taille de viole) • Viola baixo: tem a mesma tessitura do violoncelo (em francês, basse de viole) Viola contrabaixo ou contrabaixo de viola (violone) As três primeiras violas são tocadas com o instrumento mantido sobre os joelhos do músico. As três outras ficam entre as pernas, sem encostar no chão, menos o violone, que se apóia no chão. As violas têm seis cordas (na França, algumas vezes mais); o braço está dividido em trastes, como o da guitarra; o arco é empunhado com a mão pelo lado de fora dele e voltada para baixo. Este instrumento, sobretudo a viola baixo, tem uma sonoridade doce, delicada e extremamente sutil. Contou com fervorosos adeptos nos séculos XVII e XVIII; por longo
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tempo, essas violas foram preferidas ao violino. A família das violas freqüentemente era usada em consort (conjunto instrumental), um pouco como um quarteto de cordas. Viola d'amore. Nome italiano de uma viola tenor dotada de seis cordas principais, tocadas com arco, e de outras cordas simpáticas que vibram por ressonância; disto resulta uma sonoridade suave e um tanto misteriosa. O nome lhe vem de sua origem mourisca: deformação de viola da more ("de mouros", em italiano). Por analogia, o oboe d'amore, que tem, como a viola d'amore, o registro mediano e uma sonoridade velada, tomou este nome. A família do violino Em inglês, violin; em francês, violon; em italiano, violino; em alemão, Violine ou Geige. O violino apareceu por volta de 1520, mas os mais antigos instrumentos que chegaram até nós datam do fim do século XVI. A ciência empírica dos artesãos de antigamente é motivo de admiração quando se pensa que, após séculos de pesquisa e trabalho que separam o violino assinado por Linardo em 1581 e os de hoje, nada se encontrou que valesse a pena mudar no instrumento: acrescenta-se ou corta-se um centímetro no comprimento, um ou dois milímetros na espessura, melhora-se o verniz e pronto. Qualquer tentativa de inovação mostrou-se inútil: a forma, as dimensões, o peso, a estrutura, a montagem (há, no violino, 71 peças coladas) foram fixadas milimétricamente, em seus mínimos detalhes, há quatro séculos. Os grandes luthiers que asseguraram a predominância do violino foram os artesãos italianos que viveram no século XVII na cidade de Cremona, onde trabalharam Andrea Amati e seus filhos, e depois Stradivari (1644-1737) e os sucessores destes últimos. ELEMENTOS DO VIOLINO • O tampo harmônico, construído com madeira de pinho, tem três milímetros de espessura, um contorno cortado com goiva e dois furos em forma de f, que são os ouvidos. • O fundo é construído em madeira de bordo. • As costilhas são os lados. • A alma é um pequeno cilindro de seis milímetros de diâmetro, não colado, que une a parte interna do tampo ao fundo, e cuja localização tem grande importância para a sonoridade. • O braço, feito de madeira de bordo, é cortado numa peça única em cuja extremidade há um acabamento em forma de voluta, herança do gosto barroco. • O ponto, em madeira de ébano, está colado na parte de cima do braço. • As cravelhas, em ébano, são as peças onde as cordas se enrolam e são afinadas.
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• O cavalete, de madeira de bordo, é a peça onde as cordas se apóiam no centro do tampo: tem dois milímetros de espessura na aresta superior e é talhado à perfeição; sua espessura e dimensões, calculadas milimétricamente, influem de maneira considerável na sonoridade: é o cavalete que comunica as vibrações ao tampo. • As cordas são em número de quatro, das quais uma ou duas feitas de tripa de carneiro ou fio metálico; as cordas suportam uma tensão de trinta quilos e a pressão sobre o cavalete é de doze quilos. • Os filetes decorativos contornam todo o tampo e são formados por 24 peças coladas. • O arco, que há séculos mede exatamente 75 centímetros, tem uma espessura de seis milímetros no talão e 5,3 milímetros na ponta, feito em madeira de Pernambuco. É provido de crina de cavalo (o náilon revelou-se umfiasco...)e pesa 65 gramas. As crinas são recobertas de colofônio, uma resina obtida a partir da essência de terebintina, o que lhes permite aderir às cordas e fazê-las vibrar. 1
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A sonoridade do violino — mais rica e mais brilhante do que a das violas em voga no século XVII — foi não só a causa de seu sucesso (na Itália), como também da desconfiança que, por muito tempo, despertou nos músicos ("Nous appelons violes celles desquelles les Gentil-hommes, Marchantz et autres gens de Vertuzpassent leur temps... et le violon... pour conduire quelques noces ou mômeries", Philibert Jambe de Fer, 1556). Foi na qualidade de instrumento para danças que o violino ingressou na corte, através de "Les 24 Violons du Roi". Depois disso, graças a Lully, o violino se impôs à orquestra por volta de 1660. Foram os italianos que lhe deram foros de nobreza, fazendo dele o instrumento de predileção do concerto. Sua supremacia afirmou-se desde então, mantendo-se já há três séculos, sem dar qualquer mostra de enfraquecimento. O violino se tocava antigamente de maneira bastante livre. A posição do instrumento sob o queixo só se estabeleceu aos poucos. É uma posição racional, mas quantas dificuldades, sobretudo para a mão esquerda! A mão direita está imobilizada pelo manejo do arco, e o pulso da esquerda só serve como suporte; restam quatro dedos, que devem trabalhar numa posição recurvada, antinatural, virados ao contrário, e têm de fazer tudo: "calibrar" a nota, dar-lhe os sons brilhantes dos vibratos, etc.
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Viola. Em inglês, viola; em italiano, viola; em francês, alto; em alemão, Bratsche, de viola da braccio. A viola é um violino mais avantajado e soa uma quinta abaixo do violino. Longe de ser um parente pobre, a viola tem individualidade, com seu timbre caloroso, algo velado, mais terno e mais predisposto à melancolia do que o do violino. Violoncelo. Em italiano e inglês, violoncello, ou o diminutivo "cello"; em francês, violoncelle, em alemão, Violoncell. O violoncelo soa na oitava grave da viola, mas não reproduz em sua forma exatamente as proporções do violino; é seguro verticalmente e apóia-se no chão pelo espigão. Tem menos agilidade que o violino, mas uma grande extensão, e seu som é aveludado, bem timbrado. Apesar destas qualidades, o violoncelo teve dificuldade de destronar a viola baixo: em 1750, ainda não havia sido bem aceito na França. Foi Boccherini (cerca de 1765) que fez do violoncelo um instrumento apreciado e o impôs para sempre. Contrabaixo. Em italiano, contrabasso, em francês, contrebasse, em inglês, doublebass; em alemão Kontrabass. Soa na oitava grave do violoncelo e serve, na orquestra, para reforçar a sonoridade de base. O instrumentista toca de pé, e a extensão considerável dos intervalos que sua mão esquerda tem de abranger ao longo do braço do instrumento não permite grande velocidade. A força e a robustez da sonoridade lhe dão peso e valor.
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No violino e nos instrumentos da mesma família, emprega-se a surdina, pequeno dispositivo de chifre ou metal que se coloca sobre o cavalete para atenuar as vibrações. Por analogia, este nome é também dado ao pedal esquerdo do piano. O pizzicato é o procedimento que consiste em pinçar a corda com os dedos sem o recurso do arco. "Chamamos violas àquelas de que se servem os gentis-homens, mercadores, e toda gente de bem, para passar seu tempo... e o violino... para acompanhar casamentos ou folias" (Philibert Perna de Ferro, 1556). (N. T.) Conjunto de 24 instrumentos da família do violino que existia na corte de Luís XTV, por ocasião da chegada da ópera à França. (N. T.)
Alguns instrumentos mais raros Arpeggione. Nome italiano do instrumento de seis cordas e arco, inventado em 1823 pelo luthier vienense J.G. Staufer, que lhe deu o nome de guitare d'amour. Schubert escreveu para piano e arpeggione a Sonata D 821, que hoje faz parte do repertório dos violoncelistas, já que o arpeggione não se conseguiu impor. É também chamado de guitarra-violoncelo. Viola bastarda ou viola-lira. Instrumento antigo de cordas, parecido com a viola baixo, que possuía de seis a sete cordas de tripa e de nove a 27 de metal, estas últimas ditas "cordas simpáticas". Entre 1766 e 1775, Joseph Haydn escreveu 175 obras para este instrumento, pelo qual se tomara de amores o príncipe Esterhazy, seu patrão. É o barítono da família das violas da gamba, intermediário entre a viola tenor e a viola baixo. Tromba marina. Nome italiano de um instrumento de uma só corda, com aproximadamente dois metros de altura, tocado com arco, que produz somente os sons harmônicos, com timbre brilhante e metálico. Por causa de seu grande tamanho, foi objeto da cobiça do "Bourgeois Gentilhomme", protagonista da comédie-ballet homônima de Molière.
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OS INSTRUMENTOS DE TECLADO É comum, hoje em dia, falar-se do cravo como se ele fosse um "antecessor" do piano. Nada mais falso: são duas filiações distintas em tudo. O próprio princípio do instrumento é inteiramente diferente nos dois casos, como se pode perceber de imediato pelo quadro da página 25.0 piano suplantou o cravo porque correspondia melhor a certo tipo de sensibilidade própria ao final do século XVTJI. Na verdade, os dois coexistiram por algum tempo, mas isto não significa que o piano tenha nascido a partir do cravo. São apenas primos e têm um ancestral comum: um instrumento utilizado até hoje no Oriente e na Grécia, derivado da harpa e formado por uma base de madeira sobre a qual se acham distendidas algumas cordas. Estas podem ser arranhadas com a unha ou com um plectro, que pode ter formas diferentes e ser feito de materiais também diferentes. Trata-se do saltério {psalterion) dos gregos (o nome grego deriva do próprio ato de arranhar). Com este formato e tocado deste modo, passou o saltério ao Ocidente medieval. Entretanto, suas cordas, ao invés de arranhadas, podem ser percutidas com dois pequenos malhos ou maços, produzindo um som mais doce e revelando possibilidades totalmente diferentes. Há referências a este segundo instrumento na Idade Média, tanto com a designação de saltério (fonte de confusões!), como com os nomes de dulcimer (nome inglês, do latim dulce meios), manicórdio (manicordion), timpanão (tympanon) e até mesmo com o de zimbalão ou cimbalom (cymbalum), um instrumento medieval que chegou à idade moderna e é tocado particularmente na Hungria; suas cordas são percutidas por duas baquetas manejadas pelo instrumentista. O cravo deriva do instrumento de cordas arranhadas (impropriamente ditas "pinçadas") a que foram adaptados um mecanismo e um teclado. O piano deriva do instrumento de cordas percutidas, tendo o dulcimer como seu antepassado. Por motivos cronológicos, convém começar pelo cravo. Cravo e espineta Por volta do século XV, o cravo aparece sob uma forma mais reduzida, chamada espineta, cujo primeiro exemplar conhecido data de 1493. Por que este nome? Foi tirado do espinho que arranhava a corda... Em teoria, o princípio é simples, mas a execução é muito delicada. As cordas, como no saltério, estão esticadas horizontalmente. Cada tecla levanta uma pequena peça de madeira disposta na vertical, denominada saltarelo ou lámela, à qual estáfixadauma ponta (o espinho), feita do fragmento de uma pena de corvo, que belisca a corda ao passar por ela. Toda a astúcia está no engenhoso mecanismo que permite à ponta retornar à posição, sem que, na sua descida, volte a beliscar a corda... Tão delicada quanto este mecanismo é a escolha do lugar exato onde a corda deve ser beliscada ou, "pinçada", para melhor soar.
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Os instrumentos, a orquestra, as vozes
Os instrumentos de teclado Cordas distendidas sobre uma caixa de ressonância de madeira As cordas
As cordas
são arranhadas com
são percutidas
a unha ou com um plectro
com pequenos martelos
SALTÉRIO (Bíblia, Oriente, Grécia, Espanha, Idade Média)
DULCIMER (Timpanão, Cimbalom) Idade Média
Introdução do teclado e do mecanismo que arranha as cordas
Introdução do teclado e transmissão direta da tecla ao martelo
ESPINETA
CLAVICORDIO
século XV
século XV
Introdução de um segundo teclado: possibilidade de registro
Invenção do escape
CRAVO
PIANOFORTE
séculos XVI-XVIII
meados do século XVIII
Invenção do duplo escape, introdução de pedáis, etc. PIANO Início do século XIX
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Léxico musical explicativo
A espineta de pequenas dimensões é retangular e colocada sobre uma mesa. Se for de tamanho maior, ela tem forma trapezoide e é provida de pés. Este instrumento teve uma modesta carreira até o século XVIII, paralelamente ao cravo, assim como o piano de armário ou vertical acompanhou a do grande piano de concerto. O cravo surgiu no século XVI, com dimensões maiores que as da espineta: já tinha a forma, embora não tão pesada, do nosso piano de cauda. Porém, diferentemente da espineta, o cravo tem um segundo jogo de cordas, que toca em oitava; por analogia com o órgão, este jogo de cordas denomina-se "quatro pés" para distinguir-se do outro jogo, que é chamado de "oito pés". Os fabricantes Rückers, de Antuérpia, estão na origem deste aperfeiçoamento que, como o órgão, iria permitir ao cravo "registrar". Muito rapidamente, sempre como no órgão, um segundo teclado veio sobrepor-se ao primeiro, ficando então completo o instrumento, no que diz respeito às suas principais possibilidades expressivas. Uma série de sutilezas de fabricação (tipos de material, modo do ataque à corda e certas delicadezas de feitura) fizeram com que, durante o século XVII, o cravo viesse a alcançar sua perfeição. A família Rückers destaca-se entre os fabricantes de cravos, tanto pelos instrumentos dotados de admirável amplitude sonora, como pelo esplendor da fabricação e da parte decorativa, confiada a grandes artistas da época. O século XVIII trouxe poucas melhorias: o som do cravo tornou-se mais límpido e mais fraco. Em todo o caso, este era o gosto da época. Como aconteceu com o órgão, tudo já estava pronto no cravo por volta de 1700. Não é verdade que o cravo tenha uma sonoridade afetada e seca. Ele possui belos baixos profundos e uma admirável riqueza, ou plenitude, de sons... A falha do cravo (que é também a do órgão) está em que não é possível agir diretamente sobre a corda para fazer um crescendo ou um decrescendo. Mas a possibilidade de "registrar", ou seja, de fazer oposições e contrastes de timbres, está mais de acordo com a estética da época que promoveu sua criação. A mudança desta estética e deste gosto, e o desejo de um fraseado provido de nuanças, deslocaram as preferências, cada vez mais, para uma outra família: a das cordas percutidas. Daí a pesquisa que acabou por conduzir ao "pianoforte" (o próprio nome já indica a que ideal o novo instrumento vinha responder) e, em conseqüência, ao abandono do cravo. Após um século e meio de esquecimento, faz-se, em nossos dias, justiça ao cravo e aos numerosos fabricantes que — depois de haverem construído, no início do século, o primeiro cravo moderno — vêm trabalhando para tornar novamente o cravo um instrumento vivo. Graças às numerosas obras que lhe têm sido consagradas por muitos músicos contemporâneos, o cravo passa hoje por um renascimento inesperado, tendo-se elaborado um estilo original de tocá-lo, que não deixa entrever qualquer sombra de arcaísmo.
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Virginal. Pequena espineta usada na Inglaterra, principalmente por moças; daí o seu nome. Mas a palavra quase sempre designa, naquele país, qualquer instrumento de teclado e cordas pinçadas ou beliscadas. Do clavicordio ao piano Do dulcimer de cordas percutidas deriva a família de instrumentos cujo último rebento é o piano. O primeiro membro dessa família foi o clavicordio, que parece ter surgido no século XV (decididamente, de extraordinária riqueza em matéria de construção de instrumentos). Entretanto, o mais antigo clavicordio que se conhece data de 1543. Sobre uma caixa de madeira são fixadas as cordas, paralelamente ao teclado. Na extremidade de cada tecla, uma pequena peça metálica vai percutir a corda. A sonoridade do clavicordio é fraca, mas doce e delicada, além de permitir, até certo ponto, nuanças no "ataque" às cordas. Bach, segundo consta, amava este instrumento e possuía vários deles. Pesquisas feitas simultaneamente na Alemanha, na Inglaterra e na França, no começo do século XVIII, conduziram, pouco depois de 1710, à criação do pianoforte (inicialmente denominado forte-piano). Tais pesquisas foram desenvolvidas na Alemanha por Andreas Silbermann, apesar das reticências por parte dos músicos, entre os quais Johann Sebastian Bach. O instrumento não conseguiu imporse antes de 1770. Foi preciso esperar pelo francês Êrard, no começo do século XIX, para que o pianoforte, progressivamente, se tornasse o piano. O princípio é o do "escape" — e, mais tarde, do "duplo escape" — que, de um lado, permite ao martelo ser solidário com a tecla no momento do ataque à corda (portanto, também solidário com o dedo, que toca "forte" ou "piano") e tornar, logo em seguida, a cair, de maneira a deixar a corda vibrar livremente; de outro lado, permite desprender um abafador de feltro que faz cessar a vibração no instante em que o dedo solta a nota. Pode-se dizer que com esta invenção — e por conseguinte, com Erard — nasceu o piano, a despeito de aperfeiçoamentos introduzidos posteriormente (châssis de ferro, cordas cruzadas, martelos revestidos de feltro, maior extensão do teclado, pedáis, etc.). ELEMENTOS DO PIANO • Teclado: 7 oitavas e 1/4; teclas brancas para a escala diatónica (em marfim) e teclas pretas para os semitons (em ébano). • Mecânica: martelo revestido de feltro, mecânica delicada do "duplo escape", abafador de feltro. • Cordas: três cordas para cada nota, salvo nos graves; cordas de aço revestidas de fio de cobre nos graves. • Caixa harmônica: caixa que, por sua própria ressonância, aumenta a sonoridade.
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• Châssis: feito de madeira nos pianos antigos, cedeu lugar ao châssis de ferro, ou de liga metálica, constituído por uma peça única (a tensão das cordas exerce sobre o châssis uma tração da ordem de vinte toneladas!). • Pedáis: impropriamente chamados "doce" e "forte". O primeiro, o pedal da surdina (esquerdo) desloca a mecânica para direita, de modo que os martelos façam percutir apenas duas cordas, ao invés de três; o segundo (da direita) levanta os abafadores para que as cordas continuem a vibrar depois de a mão ter soltado o teclado. TIPOS DE PIANO • Piano de cauda. O grande piano de concerto chega a ter 2,60m de comprimento: suas dimensões permitem maior ressonância da caixa harmônica e das cordas mais longas. É a disposição mais racional e que melhores resultados dá. • Meia-cauda, quarto-de-cauda, crapaud são designações dadas ao piano de cauda que foi reduzido em seu tamanho por motivo de economia e espaço. • Piano vertical ou piano de armário: as cordas estão dispostas obliquamente no sentido vertical; os martelos também estão em posição vertical e recuam sob a ação de uma mola. • Piano de pedaleira: piano equipado com pedaleira, criado para exercitar os organistas. Schumann e outros compositores escreveram música para esse instrumento. EM TORNO DO PIANO Pianola ou piano mecânico. Instrumento inventado em 1900 pelo norte-americano Votey. Através de uma folaria, acionada por pedáis, passa um rolo de música, perfurado, que recobre uma barra com um número de furos igual ao das notas; a coincidência dos furos da barra com os do rolo produz o som. A pianola pode também ser utilizada como instrumento de teclado normal, munido de registros e pedáis. Os seus fabricantes, a firma yEolian, vendiam aos usuários sinfonias, arranjos de óperas, etc, na forma de rolos perfurados. A aparição do disco fez com que este instrumento entrasse em declínio. Luteal. É um acessório do piano de cauda, ao qual acrescenta possibilidades de jogos ("harpa", "cravo") e timbres, sem impedir a execução normal do instrumento. Inventado em torno de 1920, foi utilizado praticamente só por Ravel para evocar o zimbalão húngaro em Tzigane e o cravo em L'Enfant et les sortilèges [O menino e os sortilégios]. Piano preparado. Os compositores norte-americanos Henry Cowell e Charles Ivés, já no início do século, exploraram os recursos do "piano preparado", que modifica a vibração das cordas pela introdução, entre elas, de uma variedade de materiais (borracha, madeira, metal, etc.). Alguns decênios mais tarde, John Cage deu um impulso decisivo às técnicas do piano preparado, através de obras como as Sonatas
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and interludes [Sonatas e interlúdios, 1945-1948]. Em 1949, por essa iniciativa, Cage recebeu o prêmio da National Academy of Arts and Letters "por ter alargado as fronteiras da arte musical".
AS PERCUSSÕES Depois dos instrumentos soprados, friccionados, arranhados e pinçados (ou beliscados), chegamos aos que são percutidos. Nunca esquecer que o piano é um desses, se bem que a seu modo... Desde a Idade Média, passando pelo Renascimento e até o século XVII, as percussões eram numerosas e variadas nos conjuntos instrumentais destinados à música de dança. Seria um erro esquecer isso e pensar que o emprego maciço de percussões seja uma inovação recente. Elas praticamente desapareceram das orquestras barroca e "clássica" afastadas pela busca cada vez mais intensa do primado da melodia. Excetuando-se algumas pesquisas relacionadas com o exotismo — a música "turca" da ópera de Mozart Die Entführung aus dem Serail [O rapto de serralho], por exemplo —, somente os tímpanos conservaram o direito de ser lembrados na orquestra nobre, onde seu papel permaneceu secundário, salvo em algumas exceções, como a Sinfonia n° 103, chamada Drum roll [Rufo dos tímpanos], que Haydn compôs em Londres. O estatuto das percussões começou a mudar com Beethoven, que, segundo bem disse Bucurechliev, teve a maior importância como promotor do timbre enquanto valor musical essencial: ao uso mais percussivo que fez Beethoven do piano (o papel capital do trinado como timbre, por exemplo), corresponde o papel fundamental dos tímpanos na orquestra beethoveniana: nesse sentido, a Quarta, a Sétima e a Nona Sinfonias são características. Em sua Nona Sinfonia, Beethoven confere foros de nobreza à música "turca" mencionada acima (címbalos, triângulo, bombo) sem que houvesse qualquer necessidade de exotismo. O papel de Berlioz, seja como teórico, seja como compositor, foi ainda mais importante. Berlioz foi até chamado de "artilheiro", pela abundância das percussões que se ouvem em algumas de suas obras. (Chama-se, atualmente, de bateria o conjunto de percussões utilizadas nas formações de jazz, mas o termo nada tem a ver com canhões.) A lição de Berlioz acabou por vencer as delicadas repugnancias do "bom gosto" neoclássico, e, depois disso, desde que Schõnberg instaurou sua "melodia de timbres" (Klangfarbenmelodié), de Stravinski e Bartók a Várese — este último, o terceiro nome capital desta história, depois de Beethoven e de 1
Mais próximo da música militar (ou mesmo do som de uma artilharia), o "ritmo de bateria" é um ritmo persistente, dado quase sempre pelo baixo, cuja pulsação regular pode tornar-se bastante expressiva e, por vezes, inquietante.
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Berlioz —, as percussões passam definitivamente a marcar sua presença na música. Sua presença está cada vez mais forte nas composições contemporâneas e justifica a existência de formações exclusivamente consagradas a elas, como é o caso do conjunto francês intitulado Percussions, de Estrasburgo. Os instrumentos de percussão — não temos intenção de fornecer aqui uma lista exaustiva deles — podem ser classificados de diversas maneiras. Berlioz os dividia em instrumentos que produzem um som definido (portanto, mais suscetíveis de produzirem efeitos melódicos) e instrumentos que produzem um som indeterminado. Na prática atual, prefere-se distinguir três categorias: os que possuem teclado, aqueles em que a superfície sobre a qual se faz a percussão é de pele e os que chamaríamos de "acessórios". OS INSTRUMENTOS D E PERCUSSÃO COM TECLADO Glockenspiel
Nome alemão do instrumento formado por um conjunto de lâminas de aço de dimensões variáveis, movido por intermédio de um teclado; chama-se também "jogo de timbres" (tradução literal do alemão) ou"carrilhão de teclado". Em italiano, campanelli ou campanette; em francês, canillón. Em Die Zauberflóte [A flauta mágica] de Mozart, era o instrumento inseparável da personagem Papageno. Atualmente, existem diferentes tipos de Glockenspiel, tocados com martelo.
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Vibrafone Em inglês, vibes, por abreviatura; em francês, vibraphone. Só apareceu por volta de 1930. Tem teclado metálico e é tocado com baquetas. Possui um motor elétrico que imprime rotação às aselhas dentro dos tubos ressonadores, produzindo um som contínuo, com particular efeito de vibrato. A tessitura é de três oitavas, às vezes de quatro. OS INSTRUMENTOS D E PELE
Tímpanos ou timbales Em francês, timbales; em inglês, timpani ou kettle drums; em italiano, timpani; em alemão, Pauken. Grandes ressonadores de cobre, de forma parabólica quase hemisférica (daí seu apelido, em francês, de bassine à confitures ou seja, "tacho de fazer doce"), cobertos por uma pele ou membrana esticada cuja tensão se pode alterar, afinando assim o instrumento. Os tímpanos são tocados com diversos t i pos de baquetas ou grandes maços, que variam de acordo com o som desejado, mais duro ou mais suave. Em geral, os tímpanos estão agrupados dois a dois, na orquestra, afinados na tônica e na dominante. Pode haver, na orquestra, quatro ou até mais: para a execução do "Tuba miram" do Requiem de Berlioz são necessários dez músicos tocando dezesseis desses instrumentos. Tambor ou caixa
Celesta Em inglês, dulvitone. A feição definitiva adquirida por este instrumento não é anterior a 1886. É uma espécie de piano em que as cordas estão substituídas por lâminas metálicas com ressonadores de madeira. A celesta tem pouca ressonância, mas o som é particularmente cristalino e delicado, como facilmente se pode perceber na peça de Bartók intitulada Música para cordas, percussão e celesta.
Em francês, tambour, em inglês, drum; em alemão, Trommel; em italiano, tamboro. Este instrumento existe desde a pré-história, mas só foi aparecer na música rnilitar ocidental no século XVI. Possui duas peles superpostas: a membrana superior, mais espessa, onde batem as baquetas, e a inferior, à qual é fixada uma corda de tripa animal, cuja maior ou menor tensão permite modificar o "timbre". Bombo
Xilofone Em francês e inglês, xylophone; em alemão, Xylophon ou Strofiedeh em italiano, silofono. Originário provavelmente de Java, seu uso na Europa desde o século XVI pode ser atestado por uma gravura de Holbein (1525). Tem o teclado de lâminas de madeira que são tocadas com baquetas de ebonita e comporta quase sempre duas (às vezes, quatro) fileiras de lâminas. Foi utilizado na orquestra de música erudita pela primeira vez na Danse macabre [Dança macabra] de Saint-Saèns.
Em francês, grosse caisse; em alemão, Grosse Trommel; em inglês bass drum; em italiano grass cassa ou tamburo grande. Enorme tambor tocado com maços forrados de cortiça ou feltro. Tambor de guerra ou caixa clara Em francês, caisse claire, em inglês, side drum ou snare drum; em alemão, Kleine trommel ou Militartrommek em italiano, tamburo siccolo ou militare. Pequeno tambor de membrana dupla usado em orquestras.
Marimba É de origem africana, da mesma família do xilofone. Seu som é mais grave, e as baquetas percutem de modo mais suave; sob as lâminas de madeira, são colocados diversos tipos de ressonadores.
OS "ACESSÓRIOS" (enumerados em ordem alfabética) Bigorna. Em francês, enclume; em inglês, anvih em alemão, Amboss; em italiano, incuáine. Pequena barra de ferro tocada com martelo.
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Bongôs. Em francês, bongóes; em inglês, bongóes. Par de pequenos tambores de som agudo, tocados com baquetas ou com as mãos.
Templeblock (ingl.). Bolas de madeira ocas e esculpidas que se tocam com baqueta de madeira ou revestida de feltro.
Cabaça. Em francês, guerro ou guiro. Instrumento feito da casca de determinados frutos que, depois de vazios, o exécutante usa para produzir sons, fazendo-lhe sulcos e raspando-a com um pedaço de pau.
Triângulo. Em inglês e francês, triangle; em italiano, triangolo; em alemão, Triangle. Barra de metal em forma de triângulo, que é tocada com baqueta de metal e emite uma nota de som cristalino.
Castanholas. Em espanhol, castañuelas; em francês, castagnettes; em alemão Kastagnetten, em inglês, castanets. Instrumento formado por duas peças simétricas de madeira (antigamente, também de marfim), que o exécutante segura numa das mãos, fazendo-as bater uma contra a outra.
Wood-block (ingl.). Toco retangular de madeira, que se toca com baquetas.
Clavas. Em espanhol e francês, claves. Instrumento de percussão de origem cubana formado por duas peças de madeira que, batidas uma contra outra, produzem um som seco. Crótalos ou címbalos antigos. Em latim, crotalum; em francês, crotales; em alemão Zimbeh em inglês, cymbalum. Pequenos discos metálicos que produzem uma nota cristalina, muito aguda. Flauta-jazz. Em inglês, slide flute, Swancefluteou lotusflute;em francês, flûte à coulisse ou jazzo-flûte. Flauta de bisel, mas sem orifícios, que são substituídos por um émbolo de vaivém que dispensa uma das mãos do exécutante. Gongo. Em francês e inglês, gong. Disco metálico, em geral de bronze, ligeiramente abaulado, com uma saliência arredondada no centro, que pode estar em posição horizontal ou suspensa (por uma armação ou pela mão) e, quando tocado por um maço, produz um som determinado e forte. Maracas. Misto de cabaça e matraca, espécie de par de chocalhos de origem ameríndia, providos de contas ou sementes em seu interior. Pandeiro. Em francês, tambourin ou tambour de basque; em inglês, tambourine; em italiano, tamburo basco ou tamburino; em alemão, Schenellentrommel. Pequeno tamborim guarnecido de soalhas, tocado com a mão e não com baquetas. Pratos ou címbalos modernos. Em francês, cymbales; em inglês, cymbals; em italiano cinelli ou piattv, em alemão, Becken. Dois discos metálicos que são batidos um contra o outro. Um só dos pratos pode estar suspenso e ser tocado com uma baqueta. Tanta. Em inglês, francês e italiano, tam-tam. No Extremo Oriente, é constituído por um disco de metal plano, que dá um som de altura mdeterminada e por isto se distingue do gongo. Na África, tem a forma de um grande tambor de madeira cavado no tronco de uma árvore, particularmente sonoro e tocado com um maço resistente. É usado para transmitir mensagens e acompanhar danças.
A extensão contemporânea das percussões Hoje, o campo instrumental praticamente não tem limites estabelecidos. Poderse-ia dizer, parafraseando Berlioz, que qualquer corpo sonoro pode tornar-se instrumento de música, desde que haja a intenção de encará-lo como tal. O potencial instrumental nutriu-se, ao longo deste século, mais de objetos incorporados à execução musical do que propriamente de instrumentos inventados. Só o instrumentarium explorado por Mauricio Kagel já dava para constituir um repertório considerável de instrumentos a serem integrados às categorias existentes, se o próprio Kagel não houvesse antes demonstrado que qualquer ambição de estabelecer uma lista exaustiva no domínio da instrumentação já nasce caduca.
A LUTERIA ELETRÔNICA Os instrumentos eletrônicos constituem uma categoria instrumental nova e totalmente à parte. É neste domínio que as inovações se vêm revelando de forma mais determinante. Entre os numerosos instrumentos inventados e experimentados já há mais de meio século, é preciso citar o trautonium, o melocórdio e as ondas Martenot. Este último, inventado por Maurice Martenot e apresentado em Paris em 1928, é um instrumento de teclado, com extensão de sete oitavas e cujos sons, oriundos das oscilações de lâmpadas eletrônicas, permitem variações de timbre muito sutis, bem como toda sorte de efeitos de vibrato e de glissando, graças a uma fita percorrida digitalmente. As ondas Martenot são mais particularmente apropriadas às músicas microtonais, que executam de maneira muito controlada. Baseados na utilização da corrente elétrica e funcionando a partir de geradores de som sintético, os órgãos elétricos, principalmente o órgão Hammond, há vários anos vêm ganhando um impulso considerável. A automatização de múltiplos efeitos de vibrato, de reverberação, de ataque, bem como das combinações de timbres, inclusive de figuras rítmicas, favorece um acesso relativamente direto à execução instrumental, mas com o risco de limitar-se a um circuito fechado de possibilidades. Um risco de natureza similar parece muitas vezes estar envolvido na utilização do sintetizador, hoje ligado às correntes musicais mais diversas, que abrangem
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desde a música experimental até a música pop, passando pela assim chamada música de variedades, sobretudo pela musak (a música de ambiente, destinada a grandes espaços comerciais, lugares públicos, etc.)- Um sintetizador é um conjunto de elementos eletrônicos destinado à produção de sons (por meio de geradores) e à transformação desses (por meio de filtros, moduladores, etc.). Pode ser utilizado como instrumento autônomo ou transformar fontes sonoras exteriores, o que o aproxima de certas técnicas próprias da música concreta. Tem uma memoria que lhe permite armazenar determinada quantidade de informação, e seu pequeno tamanho torna possível seu manejo até mesmo durante os concertos. É preciso ainda assinalar a importância da eletrificação dos instrumentos tradicionais. Para muitos músicos, a amplificação dos instrumentos por meio de microfones dotados das mais variadas propriedades constitui um verdadeiro prolongamento de seus recursos, cujo domínio tende a tornar-se parte do aprendizado instrumental, quanto mais não fosse pelo incontestável papel do fenômeno da gravação na vida musical. Da eletrificação, surgiu um instrumento que se afastou progressivamente das origens para adquirir certa independência e servir como detonador de novos tipos de efetivos instrumentais: a guitarra elétrica. É inegável que diálogos fecundos podem ser travados entre as fontes instrumentais cuja "sedimentação" de um modo geral se vem fazendo há vários séculos e as técnicas derivadas da eletrônica que se revelaram capazes de multiplicar ao infinito suas potencialidades, facultando o ingresso em dimensões inexploradas, principalmente as microorgânicas. Contudo, a prevalência dos instrumentos sintéticos sobre categorias de instrumentos fundados em princípios físicos elementares, bem como a da música reproduzida mecanicamente sobre a música produzida ao vivo, ameaçaria afastar-nos deste sentimento de mtimidade que existe entre execução e interpretação musical e as faculdades corporais, em qualquer de suas múltiplas relações.
A ORQUESTRA, O REGENTE Qualquer formação instrumental que reúna um número considerável de músicos pode ter pretensões a receber o nome de orquestra. Na música contemporânea, principalmente, a divisão e o número dos músicos variam de acordo com as obras e a vontade expressa do compositor. A orquestra clássica requer certa dosagem das sonoridades, que, com numerosas variantes, habitualmente se busca conservar. Esta dosagem é o resultado de uma longa série de ensaios e tentativas que se sucederam ao longo da história da música ocidental.
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Pode-se dizer, um tanto por alto, que até 1750 não existia uma formação instrumental típica. As formações do Renascimento eram geralmente constituídas por pequenos efetivos, compostos quer por instrumentos de uma mesma família (a das flautas doces, a das violas, a dos cromornos, etc.) tocando em consort, quer por oposições de grupos (cordas contra metais, cordas contra madeiras, etc), quer ainda por pequenas formações em que se mesclavam as famílias de instrumentos. A primeira grande orquestra de que se tem realmente notícia, formada por 33 músicos, é a que foi reunida para a execução da ópera Orfeo [Orfeu] de Monteverdi, em 1607. Era formada por dois cravos, dois violoni, dez violas, dois violinos, duas harpas, dois órgãos, duas violas baixo, quatro trombones, dois cornetos, um flajolé e quatro trompetes. Tratava-se de um conjunto de muitos timbres, mas pouco homogêneo. A orquestra italiana, depois de Monteverdi, reduziu-se quase sempre a um conjunto de cordas acrescido de alguns instrumentos de sopro. A orquestra dos "clássicos" vienenses não se caracterizou pelo aumento dos efetivos: a orquestra de Haydn, quando este começou a trabalhar para o príncipe Esterhazy (23 músicos), não ultrapassava muito a de Bach em Coethen, e as dimensões da sala do palácio Lobkowitz em que foi criada a Sinfonia Heróica, de Beethoven, não permitem supor que lá houvesse mais de trinta músicos. Em outros lugares, porém, como em Paris, no Concert Spirituel, já nos anos que vão de 1770 a 1780, o número de exécutantes estaria entre sessenta e oitenta. Mas a grande novidade não está aí, e sim na promoção dos instrumentos de sopro: na relação numérica entre sopros e cordas, em sua importância qualitativa, na freqüência de suas intervenções capitais, bem como na individualização cada vez mais acentuada do papel específico de cada um deles; e, em conseqüência, na diversificação crescente do naipe dos sopros pela introdução de instrumentos novos. A orquestra romântica haveria de ampliar esta orientação. E o mesmo aconteceria no que diz respeito ao avanço dos instrumentos de percussão. O quadro da página seguinte pode mostrar-se bastante sugestivo se tivermos em conta que na orquestra do jovem Haydn, por volta de 1760-1765, geralmente só havia dois oboés e duas trompas, tocando lado a lado com as cordas e o baixo contínuo, o qual, em breve, iria desaparecer. Na evolução da orquestra romântica, Berlioz ocupa, entre Beethoven e Wagner, um lugar excepcional, talvez mais como teórico, pensador e profeta do que por suas criações, apesar de geniais. Movido pelo senso da desmedida, Berlioz aspira a "execuções monstro", "babilónicas". A orquestra ideal para Berlioz comportaria 467 músicos, distribuídos entre 120 violinos, dezesseis trompas, oito pares de tímpanos e assim por diante. O Requiem de Berlioz exige um enorme efetivo de instrumentistas, porém, o que constitui a característica de sua idéia de orquestra não é tanto o emprego dos instrumentos, mas a escolha deles, além do recurso a certas possibilidades, como, por exemplo, a divisão dos violinos em quatro grupos. É isto que faz de Berlioz o criador da orquestra moderna.
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O solfejo e a harmonia
de tonalidade passou a fazer-se, às vezes, a cada novo acorde. Assim, pouco a pouco, o ouvinte foi deixando de perceber a tonalidade principal: era o advento da música atonal e da música cromática, já no século XX. A música cromática utiliza todos os sons da escala cromática, quer dizer, a sucessão completa de todos os semitons, que correspondem, no teclado de um piano, a todas as teclas brancas e pretas. Na música cromática, não há mais notas preponderantes que façam o papel de tônica ou de dominante, como acontece na música tonai. Foi tal o desconforto dos compositores neste estágio evolutivo da linguagem musical, que um deles, Arnold Schõnberg, sentindo a necessidade de buscar um novo código, concebeu o que ficou conhecido como sistema serial. Uma série é a escolha— feita antes da composição da obra — de uma determinada ordem de desenvolvimento dos doze graus da escala cromática.
A escala pentatônica — ou modo pentafônico —, característica da música chinesa, é uma série de cinco sons, de cujo efeito se pode ter idéia tocando apenas as teclas pretas do piano (exemplo: Debussy, Pagodes, da série Estampes). Na escala de tons — como o nome indica —, as notas estão todas separadas por um tom, como por exemplo Prélude, da suíte Pour le piano [Para o piano] de Debussy. Alguns compositores chegaram ao ponto de superpor tonalidades diferentes, como é o caso de Darius Milhaud, que fez uso, às vezes abusivamente, da politonaliãade.
Exemplo 9
Chama-se contraponto à arte de combinar entre si as linhas melódicas. O primeiro "gesto contrapontístico" esboçou-se na Idade Média, ao que tudo indica no século IX, quando os monges tiveram a idéia de acompanhar o cantochão com uma segunda voz que seguia a melodia gregoriana, em paralelo, à distância de um intervalo de quarta. Esta primeira polifonia (música a várias vozes) denominava-se, em latim, organum. A cada nota do cantochão correspondia uma nota do acompanhamento: punctum contra punctum [ponto contra ponto]. Essa a gênese do termo contraponto. No século XI, o contraponto enriqueceu-se: as vozes que acompanhavam o cantochão já não eram paralelas a ele: movimentavam-se mais livremente, não mais nota contra nota. O apogeu da arte contrapontística é a obra de Johann Sebastian Bach, que, de forma maravilhosa, extrai todas as possibilidades do contraponto, como por exemplo: • o cânone: a conhecida canção infantil francesa Frère Jacques é de hábito cantada como um cânone, no qual a mesma melodia é retomada sucessivamente por diferentes vozes, que se acompanham umas às outras; • o movimento contrário: consiste em tocar ou cantar todos os intervalos "ao inverso" (uma terça ascendente torna-se descendente, e assim por diante).
Escala c r o m á t i c a
(É possível substituir notas sustenido por bemol: dó sustenido = ré bemol, ré sustenido = mi bemol, etc.). Um exemplo é a série da Sinfonia opus 21, de Webern: Exemplo 10
\
'
1
»
Como se pode observar, os doze sons da escala cromática estão todos aí, e nenhum é repetido. Numa obra serial, as notas da série sempre são tocadas de acordo com a estrita ordem estabelecida de antemão. Elas também podem estar agrupadas em acordes. Por outro lado, a série pode sofrer todos os tipos de tratamento próprios do contraponto (cf. adiante). Finalmente, a série pode ser transposta: pode começar por outra nota, desde que conserve a mesma estrutura melódica, isto é, que mantenha os mesmos intervalos nos devidos lugares. Nem todos os compositores do início do século XX adotaram o sistema serial. Mas todos se mostravam insatisfeitos com o sistema tonai, tornado caduco, e procuraram fugir dele. Alguns, como Ravel e Debussy, voltaram-se para os modos antigos, misturando-os, em suas obras, com passagens escritas no sistema tonai, só que tudo muito "adaptado" pela intervenção de acordes cada vez mais complexos e pela introdução de "notas estranhas" (cf., adiante, Harmonia). Exemplos disso podem ser encontrados em Fêtes [Festas] ou no primeiro movimento de La Mer [O mar], de Debussy. Ravel e Debussy valeram-se igualmente da escala pentatônica e da escala de tons, também chamadas, impropriamente, de escalas defectivas ou modos defectivos.
O CONTRAPONTO
Exemplo 11 Frère Jacques em movimento paralelo (normal) e em movimento contrário
i» i f
1111
f--t=f
1~
\ r
r
f A
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Léxico musical explicativo
• o movimento retrógrado: consiste em começar a melodia pelo fim e terminá-la no que seria o seu começo. Exemplo 12 Frère Jacques em movimento retrógrado
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O solfejo e a harmonia
Depois da oitava, os intervalos passam a ser a duplicação de todos os que acabamos de descrever: • a nona é formada por uma oitava mais uma segunda e, como a segunda, pode ser maior ou menor. Exemplo 14 Segunda maior
N o n a maior
m
• também é possível combinar o movimento contrário com o movimento retrógrado:.
d ó
dó ré
rt
Exemplo 13 Frère Jacques em movimentos retrógrado e contrário
A HARMONIA
OS INTERVALOS Um intervalo é a distância que separa duas notas. O intervalo é melódico se as notas são ouvidas uma depois da outra e harmônico quando são ouvidas simultaneamente. (Todos os exemplos mostrados adiante são no sentido ascendente.) A segunda é o intervalo que separa duas notas vizinhas: dó-ré é um intervalo de segunda. A segunda é dita segunda maior quando as duas notas estão separadas por um tom e menor quando um semitom separa as notas. Em ordem crescente, relacionam-se a seguir, acompanhados de exemplos, os outros intervalos. • terça menor, por exemplo: ré-fá, um tom e meio; • terça maior: dó-mi, dois tons; • quarta justa: dó-fá, dois tons e um semitom; • quarta aumentada, também chamada trítono, pois é formada de três tons; a quarta aumentada foi banida da música religiosa na Idade Média, época em que a chamavam de diabolus in musica ("o diabo na música"): por exemplo, fá-si; • quinta diminuta: si-fá, dois tons e dois semitons; • quinta justa: dó-sol, três tons e um semitom; • quinta aumentada: dó-sol sustenido, quatro tons; a quinta aumentada é um intervalo produzido pelo emprego da escala de tons; • sexta menor: mi-dó; • sexta maior: dó-la; • sétima diminuta: si-lá bemol; • sétima menor: si-lá; • sétima maior: si-lá sustenido; • oitava: dó-dó. A oitava é a duplicação da mesma nota, no intervalo do primeiro som harmônico.
A harmonia é a ciência dos acordes. Um acorde é uma superposição de vários sons ou de vários intervalos. A harmonia decorre diretamente do modo, da escala ou do sistema empregado. O acorde mais característico do sistema tonal é o acorde perfeito. Ele é formado por três sons superpostos — duas terças "empilhadas" uma sobre a outra. É maior o acorde quando sua primeira terça — a mais grave — for maior, e menor quando sua primeira terça for menor. (Exemplo: no começo da Sinfonia Júpiter, de Mozart, a orquestra dá um acorde perfeito maior de dó J 1
Exemplo 15 Acorde perfeito
Acorde perfeito
menor
maior
O acorde perfeito formado a partir da tônica de uma tonalidade maior é maior, e o acorde perfeito formado a partir da tônica de uma tonalidade menor é menor. Para escrever-se um acorde de sétima, "empilha-se" uma terça suplementar: Exemplo 16 Acorde de s é t i m a
Dá-se o nome de homófono ao canto harmonizado simplesmente, em que todas as vozes seguem um ritual igual.
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Léxico musical explicativo
Esses acordes podem ser invertidos, isto é, a nota mais grave de todas passa a ocupar a posição mais aguda, e vice-versa. Exemplo 17
Exemplo 19 Acorde perfeito
Éft
-J-mi
Inversões de u m acorde perfeito Primeira inversão
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O solfejo e a harmonia
Segunda inversão
Apojatura superior do m i
Em nossa época, a complexidade sempre crescente dos acordes acabou por transformá-los em clusters. Esta palavra inglesa, que significa grupo ou cacho, é suficientemente explícita: um cluster musical é uma agregação extremamente cerrada de sons. No fim da peça de Varèse intitulada Ionisation, ouvem-se clusters tocados no piano: todas as notas compreendidas entre os dois sons escritos na partitura são tocadas simultaneamente.
Apojatura inferior do m i
Exemplo 18 Cluster de
Ionisation
5»a
I Este sinal indica que a nota é tocada uma oitava abaixo. O pianista, aliás, deve tocar as notas com os antebraços. Um acorde pode ser plaqué, isto é, com as notas tocadas todas juntas, ou arpejado, com as notas sucedendo-se uma após outra. Mas nem tudo é assim tão simples! Os compositores não se contentam — e não se contentavam mesmo na época "clássica", quando o reino da tonalidade estava firmemente estabelecido — em apenas enfileirar acordes. É comum que estes sejam ornamentados com notas estranhas ou não harmônicas, que acrescentam um "algo a mais" ao acorde, em geral uma dissonância. Tais notas são: • o retardo: uma nota do acorde precedente que "atrasa" até a entrada do acorde seguinte; • a apojatura (do italiano appoggiatura) longa ou breve: uma das notas do acorde, em vez de ser tocada ao mesmo tempo que as outras, é precedida por uma nota que é estranha ao acorde. 1
2
1
2
Um acorde dissonante (por oposição a consonante) é aquele que se mostra desagradável ao ouvido e à sensibilidade, segundo os limites e as convenções de uma época e de uma cultura determinadas. Certas apojaturas breves são ditas acciacatura.
No final do segundo movimento da Sinfonia Júpiter, de Mozart, ouve-se uma cadência perfeita cujo último acorde está apojaturado. • nota de passagem: aquela que liga um acorde a outro; • notas ornamentais: aquelas que cercam a nota principal, adornando-a.
O RITMO O ritmo é primordial na música, pois comanda as estruturas temporais, e uma das dimensões do espaço musical depende precisamente das relações de duração. Isto em todos os níveis: relações de duração entre as diferentes partes da obra — e aqui nos aproximamos do conceito de forma —, bem como relações da frase musical com sua vizinha, ou mesmo de cada som com os que o sucedem ou precedem. Antes de falar de ritmos precisos, é preciso saber que os ritmos estão inscritos num andamento. O andamento indica a velocidade geral de uma peça musical; muitas vezes, é também designado pela palavra italiana tempo. Com freqüência, para obter maior precisão na interpretação de sua música, o compositor escreve, no alto da partitura, o andamento metronômico. O metrónomo, um objeto bastante conhecido, é um pequeno instrumento, baseado no sistema do pêndulo, dotado de uma haste cuja oscilação produz um tic-tac ritmado que o músico pode ter como referência enquanto toca, com vistas a dar regularidade à sua interpretação. Fazendo-se correr um peso colocado sobre esta haste, ela oscilará
Léxico musical explicativo
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O soifejo e a harmonia
mais rápido ou mais devagar, na velocidade do andamento desejado. A graduação do metrónomo pode ser feita segundo urna escala que indica o número de batidas por minuto, o que lhe permite assinalar o andamento que está notado na partitura. Exemplo: J = 60: significa que sessenta seminimas são tocadas em um minuto; portanto, uma seminima por segundo. J = 80: significa que oitenta mínimas são tocadas em um minuto. Os andamentos estão geralmente indicados na partitura por termos e expressões em italiano. Do andamento mais lento ao mais rápido, a progressão é aproximadamente a seguinte (nunca esquecendo que certas indicações podem variar de acordo com as épocas ou se superpor, em alguma medida, umas às outras): • Largo (muito lento) • Larghetto • Lento • Adagio (calmo) • Adagietto • Andante (em passo tranqüilo, andando); de certo modo equivalente a Tempo di mareia (tempo de marcha) • Andantino: o menos vagoroso dos andamentos lentos • Allegretto: o mais vagoroso dos andamentos rápidos; equivalente de certo modo aTempo di minuetto ("tempo de minueto") • Allegro: quando não houver em seguida a marcação de um tempo preciso, equivale mais ou menos ao Scherzo (brincadeira, divertimento) • Vivace (quase igual ao precedente, embora algo mais rápido) • Presto (rápido) • Prestissimo (muito rápido) Algumas indicações podem ser acrescidas aos andamentos: • Molto (muito) • Assai (bastante) • Moderato (moderadamente, com comedimento) • Ma non troppo (mas não demais), etc. 1
Conforme acompanhem andamentos lentos ou rápidos, estas indicações produzem efeito inverso. Por exemplo: adagio molto produz o efeito de tomar mais
1
Note-se que o sentido inicial de tais termos e expressões na língua italiana raramente se conservou no que diz respeito ao andamento musical: allegro comumente significa "jovial, divertido" (como alegre em português). Mas quem iria pensar em alegria ao ver a palavra Allegro marcada no alto do primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven?
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lento; adagio ma non troppo, de certo modo, o de acelerar; allegro ma non troppo, por sua vez, torna mais lento, ao passo que allegro molto acelera. Há outras indicações que, a rigor, não impõem um andamento, mas —• por exemplo, Maestoso ("majestoso") ou Grave ("grave") — sugerem um andamento lento. Já Con brio ("com brio" ou "com ímpeto") ou Confuoco ("com fogo") forçosamente acentuarão a vivacidade do tempo. Indicações como Moderato (isoladamente) ou Tempo giusto servem como uma chamada para o equilíbrio entre o lento e o rápido, algo como um andamento que está entre o Andantino e o Allegretto. Para comodidade de leitura, os ritmos propriamente ditos distribuem-se em compassos de dois, três, quatro, cinco ou seis tempos, etc, compassos esses sempre limitados por barras verticais na pauta musical. No interior do compasso, os tempos não são acentuados igualmente. O primeiro tempo é sempre forte, o segundo e o terceiro fracos, salvo no compasso de quatro tempos, em que o terceiro tempo é forte. A síncope é um deslocamento do acento, que passa a incidir sobre um tempo fraco, prolongado pelo tempo ou por parte do tempo forte que a ele se segue, tornando forte o tempo que seria normalmente fraco. O contratempo é a acentuação de um tempo fraco, mas sem o prolongamento para além desse tempo. Na chamada "música erudita", os ritmos inscritos nos compassos podem ser binarios ou ternarios. São ditos binarios os compassos quando cada tempo é divisível por dois, quatro, oito, etc., e ternarios quando cada tempo é divisível por três, seis, nove, etc. Pode-se, no entanto, excepcionalmente, inserir um ritmo ternario num compasso binário. Este ritmo é chamado tresquiáltera, ou tercina. O inverso é igualmente possível: no caso, diríamos duasquiálteras ou bisina. 1
Exemplo 20
Compasso binário 2/4 barra de compasso ou travessão
I I* compasso ;¡ 2* compas»
¡] 3* compuso y 4* compasso ;
Neste exemplo, o primeiro compasso tem uma nota para cada tempo, isto é, uma seminima para cada tempo. No segundo compasso, cada tempo comporta duas notas: duas cólchelas que são tocadas duas vezes mais rapidamente que as seminimas. No terceiro compasso, o primeiro tempo apresenta quatro semicolcheias (duas vezes mais rápidas que as colcheias). Por fim, o primeiro tempo do quarto compasso está preenchido por um ritmo ternário: é uma tercina.
Existem também as possibilidades de quatrina, quintina, seisquiáltera ou sextina, etc., de uso análogo.
Léxico musical explicativo
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O solfejo e a harmonia
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A DINÂMICA
Exemplo 21 Compasso b i n á r i o 6/8 r-f-s
v
]
r r1 CLfLXT
1
Este é também um compasso de dois tempos, em que cada tempo é divisível por três (segundo compasso do exemplo 21). No terceiro compasso, lê-se um ritmo binário formado por duas quiálteras. Existem possibilidades de variações rítmicas, tanto quanto de variações melódicas ou harmônicas. Alguns exemplos: • a diminuição rítmica: uma mesma fórmula é repetida em execução mais rápida; • o aumentorítmico:uma mesma fórmula é repetida mais lentamente; • a polirritmia: várias frases de ritmos muito diversificados são executadas simultaneamente; é freqüente, por exemplo, ouvirmos um ritmo binário sobrepondose a um ritmo ternario; • o perpetuum mobile é um movimento perpétuo que faz desfilar durante certo tempo sempre os mesmos valores rítmicos, como semicolcheias, por exemplo; • o ostinato rítmico é a adoção de uma fórmula rítmica que se repete incansavelmente; • o cânone rítmico envolve procedimento similar ao do cânone melódico. O ritmo seguiu a mesma evolução que os outros elementos da linguagem musical. Como a harmonia ou o contraponto, o ritmo tornou-se, gradativamente, cada vez mais complexo. Aos poucos, terminou prevalecendo o encanto pelos compassos desiguais (como em Bartók), sem falar do enriquecimento proporcionado pelo conhecimento da música produzida fora do mundo europeu. Na música atual, a noção de compasso tende a desaparecer para dar lugar, na maior parte das vezes, a uma notação proporcional às durações. Nas obras contemporâneas, é freqüente "contar" segundos e não "batidas". É um erro acreditar que uma música ritmada seja uma música escandida. Nada mais pobre, do ponto de vista do ritmo, do que uma marcha militar! O ritmo musical é uma pulsação, uma respiração que corresponde a estruturas humanas. E por isso que o compasso não passa de uma prática de notação. Na verdade, o ritmo está ligado a toda uma frase, um período, e até mesmo à obra inteira. Um dos compositores que mais ativamente participou da evolução do ritmo na música moderna foi Claude Debussy: basta ouvir a música de Debussy e sentir como ela se desloca livremente no espaço-tempo, dando ao ouvinte uma percepção muito elástica da duração, sem jamais imprimir divisões arbitrárias a esta.
Fonte de vida indispensável à obra musical, a dinâmica designa as flutuações de intensidade. Não se pode executar um obra sem fazer variações de dinâmica. Seria insuportável, tanto para o músico como para quem ouve, ter de agüentar uma peça musical executada uniformemente forte ou uniformemente piano. A exemplo do que aconteceu com os outros parâmetros musicais, a concepção da dinâmica se aperfeiçoou ao longo dos séculos. Até a época de Mozart, as notações de nuances na partitura eram em geral negligenciadas, deixando-se ao intérprete a liberdade de escolher, de acordo com a percepção que ele mesmo tinha da obra. Entretanto, quanto mais a música escrita tornava-se complexa, menos o compositor confiava a dinâmica ao instrumentista. Cada vez mais exigentes e precisos, os compositores passaram a multiplicar, na partitura, indicações relativas à interpretação. Na música contemporânea, é comum ver indicada na partitura uma nuance para cada nota (como, por exemplo, nas composições de Boulez). As variações de dinâmica mais comuns são: • pianissimo: muito suave (notação pp); • piano: doce, suave (notação p); • mezzo-forte: mais ou menos forte, é a nuança mediana (notação mf); • forte: forte (notação / ) ; • fortissimo: muito forte (notação ff); • sforzando: reforço brusco da intensidade (notação szf); ' crescendo: aumento progressivo da intensidade; pode também ser notado com o sinal • diminuendo: diminuindo; também notado com o sinal • mezzo voce: à meia voz; • sotto voce: murmurado, em voz baixa.
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AS FORMAS E OS GÊNEROS MUSICAIS
A música é uma linguagem, e seus elementos constitutivos foram apresentados organizadamente no capítulo precedente. Desses elementos, a linguagem musical — como, aliás, todas as demais linguagens — retira as formas que lhe são próprias. E as formas de qualquer linguagem organizam-se em vários e diferentes níveis. 1. Primeiramente, há a forma gramatical, por assim dizer "morfológica" no sentido próprio do termo. Tal palavra tem tal forma,flexiona-sede tal maneira, assume tal forma no plural e tal outra no feminino. As palavras concordam umas com as outras, produzindo-se a forma que indica a função relativa de umas para com as outras. Do mesmo modo se faz o encadeamento dos acordes e do mesmo modo se constrói a linguagem usada pelo músico, não importa se harmônica, polifónica, em imitação, etc. A isto chamamos formas elementares da gramática musical. 2. Há, em seguida, uma organização das estruturas elementares da linguagem: eu organizo orações, conecto umas às outras, introduzo relações lógicas, expresso relações de causa, de conseqüência e de simultaneidade, estabeleço comparações. Esta é a vida da linguagem. Assim também procede o músico quando emprega as complexas estruturas que relacionam as idéias musicais umas às outras: ele se vale de uma forma rondó, de uma forma Lied, de uma forma da capo, de uma forma sonata... A estas, chamamos formas musicais propriamente ditas. 3. Finalmente, o escritor que procura passar uma mensagem o faz de um modo que lhe é particular: adota um gênero, determinado ou livre, que corresponde a seu estado de espírito, à sua maneira de ser, à sua sensibilidade, ao seu gosto e também ao gosto do público. E escreverá um romance ou uma biografia, um ensaio ou uma tragédia, uma comédia ou um poema épico. Cada um desses gêneros tem seu tom próprio: leve ou grave, narrativo ou lírico, dialogado ou impessoal, etc. Cada
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Léxico musical explicativo
gênero possui suas próprias leis, que não são necessariamente arbitrárias, mas destinadas a lhe reforçar os efeitos. E assim também procede o músico quando decide escrever um concerto — cujas leis são diferentes das que regem uma sinfonia—ou resolve compor uma sonata, que obedece outras leis que não são as da suíte, e assim por diante. A isto chamamos gêneros musicais. 4. A partir do romantismo até nossos dias, a literatura e a música, numa evolução análoga, foram cada vez mais se mostrando tendentes a afastar-se das leis estritas dos gêneros, que os doutos tantas vezes buscam conservar rígidos e que, com isso, acabam por se esclerosar. A que gênero, por exemplo, poderia pertencer o "poema em prosa" de Baudelaire Une Mort héroïque [Uma morte heróica] que diríamos quase um conto? E o Ulysses, de Joyce, que se apresenta como uma nova Odisséia, é um romance ou uma epopéia? O mesmo aconteceu com a música. Inicialmente, com o romantismo, compuseram-se certos tipos de obras que não podiam ser definidas como pertencentes a um gênero estritamente estruturado (poema sinfônico, noturno, estudo, rapsódia, etc). Mais recentemente, cada obra específica da música moderna e contemporânea vem tendendo a criar sua própria forma singular, não menos estrita talvez, mas determinada em função do objetivo preciso por ela visado. O que se deve deixar bem claro, seja no caso da música, seja no da literatura, é que tal emancipação não é de modo algum uma regressão dos gêneros, mas antes uma transgressão deles rumo ao seu progresso. Os compositores contemporâneos podem ainda compor sinfonias, concertos e quartetos, sem por isso se mostrarem retrógrados. E mesmo quando formulam uma obra regida apenas pela singularidade, esta formulação continua sendo determinada por um conhecimento assumido — e ultrapassado, com conhecimento de causa — dos gêneros tradicionais e de suas estruturas. Não se trata de uma volta à selva, mas das aventuras lúcidas de uma liberdade altamente civilizada. "No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação, o objetivo é a liberdade e a força de ir sempre mais além", dizia Beethoven, o que não o impediu de estudar minuciosamente as fugas de Bach e de Haendel antes de escrever as fugas gigantescas de algumas de suas últimas obras, dentro de um espírito completamente novo, com aquela liberdade soberana que levou os sabichões da época a acusálo de irregularidade e de desconhecimento das regras. A gramática foi feita para servir à expressão e não o contrário, mas sempre é vantajoso conhecê-la bem para poder transgredi-la quando for preciso, por necessidade íntima e não por ignorância, depois de haver exaurido todos os seus recursos.
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As formas e os gêneros musicais
AS FORMAS ELEMENTARES Baixo contínuo (ou simplesmente contínuo)
1
2
Procedimento comum nos séculos XVII e XVIII, o baixo contínuo (em italiano basso continuo) consistia em escrever na partitura somente a melodia (vocal ou instrumental) e a parte do baixo acompanhada por algarismos. Esses últimos formavam um código que permitia ao cravista ou ao organista improvisar "à primeira vista" um acompanhamento completo no teclado. Trata-se, portanto, de uma espécie de estenografía musical, em que os algarismos sugerem os possíveis acordes a serem executados. Este procedimento — que exige do intérprete iniciativa, intuição, conhecimento do estilo do autor e do período em que a obra foi escrita, além, naturalmente, de um perfeito domínio da harmonia — era designado pela expressão "fazer o baixo contínuo". Quase sempre o baixo contínuo era feito por um instrumento de teclado que, no baixo, era dobrado por uma viola, um violoncelo ou um fagote. Às vezes, um alaúde ou uma tiorba podia substituir o instrumento de teclado. Qualquer cravista daqueles tempos sabia tocar o baixo contínuo à primeira vista. Um bom exemplo é o acompanhamento de cravo ouvido no segundo movimento do Concerto de Brandenburgo n° 2, de Johann Sebastian Bach. Este costume particular é uma das características fundamentais da música barroca dos séculos XVII e XVIII: a monodia acompanhada substituía a polifonia, em que todas as vozes têm igual importância. O interesse, então, passou a concentrarse, por um lado, na melodia e, por outro, no baixo que dava a base dos acordes; as "vozes intermediárias" tornaram-se secundárias. Foi a prática do baixo contínuo que permitiu, durante dois séculos, a lenta maturação da consciência harmônica, até que, já no primeiro terço do século XVIII, essa consciência tornou-se tão forte que levou Rameau a julgar a melodia como mera emanação da harmonia (ver esta palavra supra). Baixo obstinado ou ostínato (em inglês, ground) Procedimento muito utilizado nos séculos XVII e XVIII, o baixo obstinado (em italiano basso ostinato) caracteriza-se por um motivo que se repete, de forma insistente e mdefinida, na parte do baixo, sobre a qual as outras vozes se desenvolvem e constróem diversos tipos de variações. O célebre Canon de Pachelbel está construído sobre um baixo obstinado. Monteverdi escreveu um moteto inteiro, para seis vozes solistas, coro e orquestra, es-
1
2
Seguimos aqui a ordem alfabética. O leitor não há de surpreender-se ao encontrar novamente, nesta parte do livro, certas noções já estudadas no capítulo precedente; o contexto agora é diferente, e elas estão ligadas a outras formas. Muitas vezes também chamado "baixo cifrado"; já a denominação "baixo geral" é a tradução literal de seu nome alemão Generalbass.
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Léxico musical explicativo
truturado totalmente sobre um basso ostinato de quatro notas, que se repete mais de duzentas vezes sem que isto o torne enfadonho. A chacona e a passacalha são geralmente escritas sobre um baixo obstinado, embora Bach não tenha recorrido a esse procedimento em sua Chaconne para violino solo. Cânone Recurso de escrita polifónica segundo o qual duas ou mais vozes vão "entrando" sucessivamente, retomando sempre o mesmo tema melódico e guardando até o fim o mesmo intervalo de tempo que as separa. O exemplo mais simples de cânone é a canção infantil francesa, universalmente conhecida, Frère Jacques. O cânone é a forma mais estrita de imitação. E a fuga é um desenvolvimento e uma ampliação do princípio do cânone. Cantus firmus
Melodia, geralmente tomada da liturgia, expressa em valores longos, que serve de coluna vertebral para um desenvolvimento polifónico. Este procedimento de escrita, muito freqüente durante a Idade Média, é característico do estilo de Johann Sebastian Bach, em cuja obra vamos encontrar os melhores e mais clássicos exemplos: os Seis corais Schübler e o primeiro e o terceiro coros da Cantata n° 80. Contraponto Técnica de escrita musical que consiste na superposição de várias "vozes", as quais, conservando sua autonomia melódica, resultam num conjunto harmonioso. Dizse, metaforicamente, que o contraponto é uma música "horizontal", enquanto a harmonia seria^ ao contrário, uma música "vertical". De maneira mais precisa, pode-se dizer que o contraponto estimula o ouvinte a pôr sua atenção no encaminhamento simultâneo das diferentes linhas melódicas, ao passo que a harmonia, ao contrário, está presa à sucessão, no tempo, de "massas" sonoras constituídas pela soma das notas emitidas, no mesmo instante, por diferentes "vozes". Na Tocata e fuga em mi maior de Johann Sebastian Bach, por exemplo, alternam-se, logo no início, três tipos de escrita claramente distintos: (a) longas passagens monódicas (a uma só voz), em que o organista faz brilhar, por toda a extensão do teclado e da pedaleira, uma profusão de fogos de artifício sonoros; (b) sucessões de acordes tocados fortemente (= escrita harmônica); (c) passagens polifónicas nas quais cada voz guarda sua independência (= contraponto). A fuga que vem depois da primeira parte é evidentemente, por definição, um exemplo de contraponto. O contraponto é a principal técnica de escrita musical da Idade Média e do Renascimento, períodos que poderiam ser denominados de "era polifónica". A escrita harmônica desenvolveu-se sobretudo a partir do século XVII, sem que, por isso, tenha feito desaparecer o contraponto. O estilo da imitação tem seu funda-
A s formas e os gêneros musicais
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mento no contraponto; o cânone, o ricercare e a. fuga são codificações particulares desse estilo. Fuga Composição de estilo contrapontístico (ver contraponto), que desenvolve ao máximo todas as possibilidades da escrita de imitação e que tem sua origem no cânone. A fuga obedece a regras muito estritas, que fazem dela um gênero bastante difícil. Mas nada seria tão falso quanto ver na fuga um gênero acadêmico. A extrema precisão e o grande rigor de suas regras, que fazem da fuga a "forma" por excelência, não são arbitrários e jamais constituíram empecilho à liberdade de invenção de um Johann Sebastian Bach. É na fuga que "forma" (em todos os sentidos da palavra) e "conteúdo" coincidem mais exatamente: quanto mais a "forma" lato sensu identifica-se com uma estrutura (e, portanto, com uma "forma" musical no sentido preciso da palavra), mais denso poderá tornar-se o conteúdo. É difícil descrever em detalhes a estrutura da fuga sem entrar em considerações técnicas. Simplificadamente, poderíamos dizer que a fuga compõe-se de diversas partes: 1. Exposição: o tema da fuga é exposto sucessivamente por todas a vozes (em geral, as fugas são a três ou quatro vozes, algumas vezes a cinco). Na primeira vez que aparece, o tema é exposto sozinho por uma das vozes: é o enunciado. Logo uma segunda voz o expõe novamente no tom da dominante: é a resposta; enquanto a primeira voz continua o seu caminho, agora trabalhando o contratema. A terceira voz, por sua vez, "entra" quando a segunda voz já expõe o contratema, ao passo que a primeira prossegue em sua trilha; em seguida, se for o caso, entrará uma quarta voz. 2. Desenvolvimento: depois da exposição, inicia-se um passeio pelos tons vizinhos (modulações), durante o qual se pode ouvir uma ou diversas reexposições totais ou parciais, digressões sobre o tema ou o contratema e, entre as modulações, um desenvolvimento contrapontístico livre, chamado episódio. O desenvolvimento culmina quase sempre numa longa nota pedal (ou seja, nota sustentada por uma das partes, enquanto as outras fazem ouvir um encadeamento de acordes mais ou menos livres com relação a essa nota) da dominante. 3. Stretto: exposição em que as sucessivas "entradas" se vão precipitando cada vez mais,ficandomais próximas umas das outras, de tal modo que o tema e o contratema sempre venham entrelaçados. 4. Conclusão: é geralmente precedida de uma nota pedal da tônica. O grande mestre da fuga foi Johann Sebastian Bach, autor de Die Kunst der Fuge [A arte da fuga]. Exemplos da arte da fuga em sua obra são Das wohltemperierte Klavier [O cravo bem temperado] e a Fuga sobre um tema de Legrenzi.
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Léxico musical explicativo
O terceiro movimento do Concerto de Brandenburgo n° 4 é um exemplo de fuga bastante livre, conciliada com o estilo concertante. Harmonia Em sentido estrito, é o conjunto de regras que regem a formação e o encadeamento dos acordes. Em sentido amplo, a harmonia opõe-se ao contraponto. Enquanto este último considera a superposição das "vozes" no sentido de seu desdobramento melódico no tempo, a harmonia, ao contrário, prende-se ao efeito produzido pela emissão simultânea dos diferentes sons das diversas "vozes". Na prática, harmonia e contraponto coexistem em qualquer composição. Mas, em certas épocas os compositores deram preferência à perspectiva temporal do desdobramento e, portanto, à beleza proveniente do encaminhamento paralelo de várias melodias (Idade Média, Renascimento, Johann Sebastian Bach), ao passo que, em outras, enfatizou-se o efeito produzido, de momento a momento, pela superposição dos sons emitidos simultaneamente. Imitação É um dos casos particulares do contraponto. A imitação consiste em reproduzir, numa das vozes, um desenho melódico anteriormente ouvido em outra voz. Um bom exemplo é o início da Cantata n° 80 de Johann Sebastian Bach, em que a entrada das diferentes vozes do coro se faz em imitação. A imitação é, na verdade, um dos fundamentos da escrita polifónica. O cânone, o ricercare e a fuga são modalidades específicas de imitação. Leitmotiv (motivo condutor) Motivo melódico, rítmico ou harmônico que reaparece diversas vezes no decorrer de uma mesma obra, sempre ligado a uma mesma situação, a uma mesma idéia, a um mesmo sentimento ou a uma mesma personagem. O retorno do motivo tem o efeito de suscitar, no ouvinte, a evocação mental da situação, idéia, sentimento ou personagem a que o motivo foi previamente associado: é um pouco o fenômeno da "associação de idéias". Wagner valeu-se sistematicamente deste recurso, e foi por sua causa que a palavra alemã Leitmotiv entrou no vocabulário musical. Mas, antes dele, Johann Sebastian Bach — com os corais das Paixões — e sobretudo Mozart já o haviam espontaneamente utilizado. Pode-se dizer que o emprego do coral "Ein feste Burg" na Cantata n° 80 de Johann Sebastian Bach prende-se à idéia do Leitmotiv. Melodia Sucessão de diferentes sons ligados por relações que lhes permitem ser percebidos por um ouvinte como um conjunto coerente. É esta "lógica" na sucessão de sons,
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inconscientemente reconhecida como tal pelo ouvinte, que consitui a melodia. Au Clair de la lune [À luz da lua] é uma melodia, ao passo que os sons produzidos por um gato andando sobre as teclas de um piano, mesmo que ele o faça com todo o cuidado, não constituirão uma melodia, a não ser que o acaso reunisse os sons produzidos segundo uma espécie de lógica acidental. A melodia é sentida espontaneamente como uma linha sinuosa, o que quer dizer que todos os pontos que a constituem estão ligados entre si por uma "lógica" que se percebe inconscientemente. Esta linha tem uma direção geral percebida como horizontal (desdobramento no tempo). Nada impede imaginarmos — e criarmos—uma melodia em que a sucessão dos sons que estão organizados segundo suas alturas seja substituída por uma sucessão dos timbres (de instrumentos diferentes ou diferentemente associados) relativos a um mesmo som ou a um mesmo acorde ou agregado de sons; donde o termo Klangfarbenmelodie ("melodia de timbres"), criado por Schõnberg em 1911, uma inovação que viria a exercer grande influência sobre a composição musical. Não confundir melodia, no sentido de forma da gramática musical, com melodia enquanto gênero musical, tipo de composição para solo vocal e acompanhamento instrumental característico da música francesa (as mélodies de Duparc, Fauré, Debussy, etc.). Modulação A palavra muitas vezes é empregada erradamente, com o sentido de uma "modificação na intensidade do som" (piano-forte). Mas, em música, modular significa nada mais que passar de uma tonalidade para outra. A modulação é um dos fundamentos da composição. Uma obra em que não existissem modulações seria de uma monotonia insuportável, a menos que fosse o caso de uma monotonia proposital. Exemplo: o Bolero, de Maurice Ravel. A obra inteira permanece na obsessiva tonalidade de dó maior, sem modulação e sem mudança rítmica. A diversidade é obtida apenas pela orquestração, ou seja, o emprego dos timbres instrumentais. Mas, de repente, no final, intervém uma brusca modulação para mi maior, cujo efeito é tanto mais surpreendente por haver a música permanecido estacionária tanto tempo, até aquele momento, na mesma tonalidade. Ornamento Procedimento de escrita musical usado pelo compositor, ou eventualmente pelo intérprete em sua execução, que consiste em ornamentar, embelezar, variar uma nota ou linha musical, particularmente fazendo acompanhar certas notas de fugitivas passagens para notas que lhes são vizinhas. O ornamento (abbellimento, em italiano) existe na música ocidental desde o canto gregoriano e desenvolveu-se entre os séculos XTV e XVI. Na época barroca,
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o ornamento era regra de execução obrigatória: os cravistas costumavam acrescentar grande quantidade de ornamentos ao texto escrito, e os cantores freqüentemente improvisavam passagens inteiras, com grande virtuosismo. Os hábitos musicais de hoje muitas vezes fazem esquecer o quanto, antigamente, era importante a iniciativa pessoal na execução das obras. A ornamentação improvisada sempre foi um dos procedimentos essenciais, através dos quais se manifestava a liberdade deixada ao intérprete (ver também baixo contínuo). Muito numerosos no início, e diferentes em cada país, os ornamentos não poderiam ser todos relacionados aqui. Rossini foi dos primeiros a escrever, nota por nota, os ornamentos que aparecem em suas óperas e a exigir que fosse cantado aquilo que estava escrito, codificando, dessa forma, o bel canto. Com isso, Rossini fez da coloratura —trecho de virtuosismo feito de trinados, escalas, arpejos, grandes saltos, etc., que se articulavam sob a forjna de vocalises nas árias de bravura cantadas nas óperas, como as duas árias da Rainha da Noite em Die Zauberflõte [A flauta mágica], de Mozart, por exemplo — um verdadeiro condensado dos ornamentos usuais. A partir do século XIX, os ornamentos mais usados são a apojatura (do italiano appoggiatura), o grupeto (do italiano gruppetto), o mordente (do italiano mordente) e o trinado, trino ou ainda trilo (do italiano trillo). A apojatura, nota dissonante com relação a determinado acorde, precede de um intervalo de segunda e prepara a nota esperada pela harmonia, fazendo com que esta nota, desse modo, ganhe relevo.
O coulé, termo francês que designa um ornamento da música antiga próximo da apojatura, permitia reunir dois sons separados por uma terça. O grupeto (em francês doublé ou tour de gosier) é um ornamento rápido, em que a nota principal está rodeada por três ou quatro notas conjuntas superiores e inferiores.
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O trinado, trino ou trilo (também dito groppo ou gruppo; em francês trille) é a alternância rápida da nota principal com a nota imediatamente superior. O trinado comporta certa liberdade de execução.
O trinado passou a ter grande importância a partir de Beethoven, quando deixou de ser ornamental para tornar-se prâticamente temático, impondo uma concepção totalmente nova do timbre, como nos finali das sonatas para piano opus 109 e opus 111, de Beethoven. (Na música antiga, a suspensão — em francês suspension — partia de princípio similar, mas produzia um efeito de surpresa ao atrasar, por meio de ligeira síncope, o início do ornamento.) O trêmulo (do italiano tremolo), próximo do trinado, consiste em repetir a nota principal em um movimento rápido e regular.
Ao inverso do trêmulo, a aspiration ou accent, ornamento usado pelos cravistas franceses, consistia em acrescentar, no fim de uma nota sustentada, uma apojatura que lhe cortava o som, abreviando-a, mas de modo a conferir-lhe destaque. Polifonia Em sentido estrito, é a combinação de diversas "vozes" simultâneas que guardam certa autonomia melódica (ver contraponto e voz). Em sentido amplo, diz-se de qualquer música escrita para mais de uma voz ou mais de um instrumento.
Grupeto inferior ou invertido
ll=p-ii¡|p Grupeto superior ou normal
O mordente (em francês mordant pu pincé) é um ornamento rápido em que a nota principal, depois de alternar-se com a nota que está imediatamente meio tom abaixo (ou acima), volta a ser tocada ou cantada.
Ricercare
Peça polifónica escrita em estilo de imitação. A fuga é uma forma codificada do ricercare, que desapareceu no século XVII, cedendo o lugar àquela que foi sua herdeira. A palavra italiana ricercare, entretanto, continuou sendo usada durante o século XVIII para designar uma fuga irregular. Temperamento Sistema de equalização dos semitons da escala cromática, destinado a remediar a diferença existente entre os valores acústicos puros (determinados matemática-
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mente) e aqueles utilizáveis na prática musical (ver, na Parte IV deste livro, o que se diz sobre Das wohltemperierte Klavier [O cravo bem temperado], de Bach). O temperamento permite a prática da "modulação enarmônica" entre as notas representadas nos instrumentos de som fixo por meio de um único som intermediário, como é caso de um dó sustenido ou de um ré bemol.
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primeira, podendo ou não apresentar ornamentos improvisados, como nas árias italianas de opera seria. É a forma por excelência das árias de óperas italianas do início do século XVIII, bem como das que são ouvidas nas cantatas de Johann Sebastian Bach. Forma Lied
Voz Na escrita musical, chama-se voz qualquer parte vocal ou instrumental que tenha autonomia melódica e se desenvolva no seio de um conjunto polifónico. Assim, tanto se pode falar de um coro a quatro vozes como de um quarteto instrumental escrito para quatro vozes.
AS FORMAS MUSICAIS PROPRIAMENTE DITAS Forma é a estrutura interna que determina o curso de um movimento musical. Não se deve confundir forma neste sentido com as formas externas (ou concretas), que é mais adequado chamar de gêneros musicais (sinfonia, suíte, concerto, cantata, ópera, etc). As formas musicais propriamente ditas são: Forma binária Estrutura de uma peça dividida em duas partes perfeitamente distintas. É a forma habitual das danças da antiga suíte, bem como da "forma sonata" rudimentar do jovem Haydn ou do jovem Mozart, quando ainda não cuidavam das partes de desenvolvimento. Rondó Alternância de episódios com refrão, sendo a peça iniciada pelo refrão. Exemplos: La Livri no Concerto n" 1, de Rameau. A forma rondó (do francês rondeau) está presente na maior parte dos últimos movimentos dos concertos da época clássica, bem como em muitos dos últimos movimentos das sinfonias, quartetos e sonatas da mesma época, em geral com a designação italiana de rondó. Fala-se de "rondósonata", em referência à forma sonata quando os refrões, por sua natureza e relações mútuas, dão a nítida impressão de uma forma constituída por exposição, desenvolvimento e reexposição, como nos finali das Sinfonias n° 97, n° 99 e n° 102, de Haydn, ou ainda da Sinfonia n° 2, de Beethoven. Forma "da capo" (ou forma ternária: A-B-A) A primeira parte termina na tônica; a segunda parte apresenta-se contrastada, principalmente no plano da tonalidade, e a terceira é a reexposição na íntegra da
Forma tripartida, aparentada com a forma da capo no piano tonal (o fim da primeira parte se faz na tônica, e não na dominante, como acontece na forma sonata), mas que se aplica essencialmente à música instrumental, quase sempre aos movimentos lentos, com a repetição da primeira parte escrita na íntegra. Um exemplo típico é o segundo movimento do quarteto A cotovia opus 64 n" 5, de Haydn. Com relação ao Lied como gênero vocal, ver adiante. Forma "tema e variações" É constituída por um tema, ou antes, por uma melodia que, depois de exposta, é apresentada seguidas vezes modificada por variações rítmicas, melódicas, instrumentais, de modulação, etc. Essa forma era usada com freqüência nos movimentos lentos (Concerto para piano n" 15 K 450, de Mozart; Sinfonia n° 85, conhecida como La Reine [A rainha], de Haydn;Trio para piano e cordas opus 97, dito Trio Erzherzogs [Arquiduque], de Beethoven; Quarteto Der Tod und das Mãdchen [A morte e a donzela], de Schubert, nos movimentos finais (Sonata opus 109e Sonata opus 111, de Beethoven) e, mais raramente, em alguns primeiros movimentos, entre os quais o do Quarteto opus 76 n° 6, de Haydn, e o da'Sonata opus 26, de Beethoven. A forma variação, em muitos casos, deu origem a um gênero musical além da obra independente enquanto tal. O tema da obra pode ser proposto ao compositor como um jogo de salão, ou ser tomado de empréstimo a outro músico, ou ainda ser originalmente criado pelo próprio compositor. As obras-primas do gênero produziram-se quando o compositor, por meio de uma série de elaborações e utilizando geralmente em cada variação apenas um aspecto ou fragmento do tema, fez surgir um mundo tão denso e diverso quanto homogêneo. Estão neste caso as Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach e as Variações Diabelli opus 120, de Beethoven. Quando se limita a dar diferentes roupagens ao corpo do tema, a variação pode constituir mero exercício de virtuosidade, uma espécie de alta costura musical. Quando, no entanto, ela se exerce em profundidade sobre um esquema temático dissecado, transmudado, revela-se como uma das atividades essenciais da criação musical. Ficamos perplexos com a plenitude cósmica obtida por Beethoven a partir do tema aparentemente anodino proposto por Diabelli, mas esta operação não é, no fundo, distinta do trabalho temático que faz geniais as outras obras de Beetho-
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ven. Não seria, no essencial, um paradoxo definir a Quinta Sinfonia de Beethoven como uma arquitetura toda construída a partir de variações sobre urna célula rítmica de quatro notas ainda mais anodina: uma simples letra do alfabeto morse! Forma sonata A forma sonata surgiu por volta de 1740 e teve entre seus primeiros grandes representantes Cari Philipp Emanuel Bach. Mas só foi elevada à perfeição com Haydn, Mozart e, pouco mais tarde, Beethoven. Como maneira de pensar, a forma sonata praticamente se aplica a qualquer peça musical de Haydn, Mozart, Beethoven e de grande parte de seus sucessores, não importa qual seja a "forma" dessa peça musical no sentido mais estrito, ou seja, rondó, tema e variações, etc. Enquanto estrutura com exposição, desenvolvimento e reexposição bem definidos, a forma sonata vale para a maior parte dos primeiros movimentos de sinfonias, concertos, quartetos, sonatas, etc, da época clássico-romântica, mas também para muitos movimentos lentos e muitos finali, bem como para determinados minuetes particularmente desenvolvidos. 1
OS GÊNEROS MUSICAIS (MÚSICA VOCAL) PEÇAS E BREVES PEQUENAS OBRAS
Madrigal. Com relação aos gêneros da Idade Média, o madrigal (em francês e inglês, madrigal; em italiano madrigalé) é o primeiro que pode ser considerado verdadeiramente moderno. (Quanto à sua origem, desenvolvimento e diversificação, cf. a segunda parte deste volume.) O madrigal chegou ao seu apogeu com Monteverdi, na época em que também tem início seu declínio histórico. Ária. Melodia extremamente desenvolvida, em geral acompanhada por orquestra, escrita para um cantor ou cantora sofista cujo virtuosismo tende, de hábito, a valorizar a peça. A ária (do italiano aria; em inglês e francês, air) tem seu lugar em obras vocais, como óperas, oratórios e cantatas, mas pode também constituir uma peça separada, como as "árias de concerto" que Mozart escreveu para suas cantoras preferidas e que estão entre as mais belas composições no gênero. Sobre o surgimento e desenvolvimento da ária na ópera italiana e, em especial, na ópera napolitana do final do século XVII, ver adiante.
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A reexposição está muitas vezes ligada a uma coda, que termina a peça: peroração do discurso musical, a coda explora freqüentemente um dos temas principais que sustentaram este discurso; geralmente brilhante e triunfal, muitas vezes é inquieta, sobretudo em Beethoven, como se trouxesse um novo matiz de mistério; também pode concluir abruptamente, ou por uma intervenção violenta ou por uma citação mutilada. As peças da música dita "clássica" não se encerram obrigatoriamente com fanfarras, tão razoáveis quanto tranquilizadoras.
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A ária pode adotar as mais variadas formas: ostinato, binaria, mas tem principalmente a forma da capo desde Alessandra Scarlatti. O que caracteriza a ária é o fato de ser nitidamente distinta do recitativo: a ária é o must do espetáculo lírico, a parte que se aplaude, que se bisa... É o manjar dos gourmets do canto lírico. Uma das maiores críticas feitas a Mozart por seus contemporâneos foi a de que o número de árias (apesar da incomparável beleza delas) em suas óperas era muito pequeno com relação à quantidade de recitativos acompanhados e de conjuntos vocais (duos, trios, quartetos, quintetos e sextetos). O século XIX italiano e italianizante manteve vivo o culto da ária, mas a concepção romântica do drama lírico — sobretudo a partir de Wagner e também, até certo ponto, de Verdi em sua última fase — acabou por suprimir da ópera a "ária de bravura", bem como a fronteira entre a ária e o recitativo. Arieta. Pequena ária, muitas vezes de virtuosismo (como as de Rameau), mas que expressa sentimentos simples. Por isso, foi bastante comum na opéra comique francesa. O nome (em francês ariette, em italiano arietta) passou à música instrumental com duas peças curtas de Joseph Haydn para depois, estranhamente, vir a designar uma obra-prima, a Arietta que finaliza a Sonata opus 111, de Beethoven. Na música vocal, a designação reapareceu com as Ariettes oubliées [Arietas esquecidas], de Debussy. Arioso. Forma menos rígida, que fica a meio caminho entre a ária e o recitativo acompanhado, sobretudo quando é narrativo. O arioso (termo italiano) aparece já com Monteverdi, Handel e Bach (nas Paixões) e abre o caminho para a fusão entre recitativo e ária que caracteriza o drama musical moderno. O termo foi retomado por Beethoven na Sonata opus 110, em que há um Arioso dolente. Cantilena. Na Idade Média, peça que pertencia ao canto litúrgico ou ao canto épico profano (evolução da cantilena para a canção de gesta). O termo cantilena (em italiano cantilena; em francês cantilène) foi também aplicado a peças instrumentais, designando sempre uma pequena música construída em torno de uma melodia muito legato e muito cantabile, para uma ou várias vozes, que podia ser tanto vocal como instrumental. Cavatina (do latim "cavare", cavar). Na origem um prolongamento melódico do recitativo acompanhado, a cavatina precedia a ária e comportava uma única seção sem repetição; mais tarde, tornou-se um tipo distinto de peça musical de caráter simples e expressivo, como por exemplo a Cavatina de Barbarina em Le Nozze di Figaro [As bodas de Figaro], de Mozart. Passou igualmente a designar, por extensão, uma composição instrumental muito melódica e de sentido lírico, destituída do desenvolvimento central, como a sublime Cavatina do Quarteto n° 13, de Beethoven. Recitativo. Forma em que a frase musical procura adaptar-se aos ritmos, aos impulsos de ritmo ou de intensidade, bem como às intenções do texto literário. Ao
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contrário da ária, o recitativo (do italiano recitativo) não possui uma forma propriamente dita: tudo será determinado pela palavra, pelo verso e pelo sentido. Na ópera italiana, a função do recitativo é a de relacionar as árias urnas com as outras, expondo as peripécias da ação sob a forma de monólogo ou diálogo. Em sua forma primitiva, é dito recitativo secco (recitativo seco), geralmente acompanhado apenas por um cravo, e subsistiu sob esta forma na opera buffa. O recitativo accompagnato (recitativo acompanhado) por toda a orquestra — pois era às vezes acompanhado pelas cordas apenas ou, já pouco mais tarde, só por sopros ou por um instrumento solista concertante—veio aparecer tardiamente na opera seria e depois no Sz'tt£5pz'e/mozartiano na ópera de Beethoven; cada vez mais rico e aperfeiçoado, viria a resultar na melodia contínua wagneriana. e
Lied. Peça vocal para uma só voz, em geral com acompanhamento de piano, cuja construção está baseada num poema. O Lied (plural: Lieder) é essencialmente alemão e, até certo ponto, opõe-se à mélodie, seu equivalente francês. O Lied remonta à tradição popular medieval (Volkslied), organizada e elaborada artisticamente no decorrer do século XVII (Kunstlied), mas foi no final do século XVIII, no momento em que se deu a tomada de consciência da música (e da sociedade) alemã, que o Lied tornou-se um dos gêneros favoritos dos músicos germânicos. Logo de saída — apesar de já existirem alguns belos Lieder compostos por Mozart e Beethoven — o jovem Schubert, com dezessete anos, levou o Lied ao ponto máximo da perfeição. Schumann, Brahms, Hugo Wolf e alguns outros, cada qual a seu modo, conceberam as mais variadas modalidades de encontro do texto poético com o texto musical, mas não chegaram a superar essa perfeição em suas obras-primas. O Lied pode apresentar-se sob diferentes formas: construção estrófica pura ou variada — esta última é a de algumas das maravilhas de Schubert, que ganharam grande popularidade: Heidenrõslein [Pequena rosa das urzes], Die Forelle [A truta], Der Lindenbaum [Atília]; recitativo livre ao estilo Durchkomponiert, em que a expressão do texto poético e o sentido das palavras e das frases é que criam, a cada vez, a forma musical apropriada. Não há lugar, no Lied, para façanhas de virtuosismo dos intérpretes. Primordial é o papel do piano, que vai muito além de um instrumento "acompanhador". Trata-se de verdadeiro diálogo e mesmo de uma música a três vozes: a humana e as das duas mãos do pianista. A passagem do piano para a orquestra irá, desse modo, operar-se naturalmente. Os Wesendonck-Lieder, de Wagner, abriram caminho para os grandes ciclos de Mahler, e o exemplo foi com freqüência seguido no século XX, desde os Gurrelieder de Schõnberg. Outra transformação do Lied que não se pode esquecer é o fato de que, originalmente escrito para uma só voz, ele se estendeu a pequenas formações de exécutantes: os quartetos e quintetos vocais de Schubert, freqüentemente tão belos quanto seus mais belos Lieder, são
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muitas vezes compostos sobre os mesmos textos literários que alguns de seus Lieder para uma só voz. Por fim, o termo Lied foi aplicado a uma composição puramente instrumental: a série de peças para piano Lieder ohne Worte [Canções sem palavras], de Mendelssohn, que, numa tradução errônea e forçada por certa afetação, recebeu em francês o deplorável nome de Romances sans paroles [Romances sem palavras]. Romanza. Canto o mais das vezes amoroso, sempre sentimental, muito em voga no fim do século XVIII na França. A mais célebre das romanzas (em francês romance), para não falar das compostas por Gossec, Méhul e Grétry, é Plaisir d'amour ne dure qu'un moment [Prazer de amor só dura um momento]. Por ser um gênero fácil, quase banal mesmo, a romanza foi cultivada durante todo o século XIX com incrível fecundidade. Já no século XVIII, contudo, essa palavra italiana passou também a ser usada na música instrumental, designando uma peça particularmente melodiosa, que fala ao coração, no verdadeiro sentido da indicação cantabile empregado por Mozart e Beethoven. A obra-prima, neste caso, é a Romanza que constitui o movimento lento do Concerto em ré menor para piano e orquestra K 466, de Mozart, ainda mais primorosa que a Romanza n° 1 em sol maior para violino e orquestra opus 40, e a Romanza para violino e orquestra n° 2 em fá maior opus 50, do jovem Beethoven. Balada. 1. Na Idade Média: forma literária e musical (em francês ballade, em inglês ballad, em alemão Ballade) com regras precisas, cuja característica principal é o retomo de um refrão. O exemplo literário marcante é a Ballade des pendus [Balada dos enforcados], do poeta medieval francês François Villon. 2. A partir do século XVIII na Alemanha: poesia de caráter ao mesmo tempo narrativo e lírico, encontrada com freqüência nas obras de Goethe, Schiller, Bürger e outros, sobre a qual se compunha música vocal com grande liberdade, geralmente ao estilo Durchkomponiert, com grandes passagens quase recitativas e estrofes de feitios os mais variados. Muitos dos Lieder de Schubert são, na verdade, baladas: algumas são muito longas e outras bem mais curtas. Entre essas últimas, estão alguns dos pontos altos de sua obra: Erlkónig [O rei dos elfos] e Der Zwerg [O anão]. 3. Na música instrumental: peça composta para piano, cuja única coisa em comum com a balada vocal é o seu caráter dramático e, por vezes, a evocação de determinado poema. Mélodie. A definição geral é exatamente a do Lied: peça vocal para uma voz, geralmente com acompanhamento de piano, cuja letra é um poema, em geral previamente escrito. O Lied é essencialmente alemão. A mélodie é sobretudo francesa. A diferença essencial reside no fato de que, pela simplicidade de sua estrutura e de seu desenvolvimento melódico, o Lied está em geral próximo de suas origens po-
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pulares (Volkslied), enquanto a mélodie é uma peça erudita ou, pelo menos, sempre refinada na linguagem e nos propósitos. As mélodies de Berlioz transcendem, pela qualidade, qualquer produção francesa anterior. Mas foi principalmente com Duparc, Fauré, Chabrier e Chausson, entre 1875 e 1900, que a mélodieteve seus melhores momentos,bem como, decerto, com Debussy, que renovou o gênero. Vaudeville (voix-de-ville, "vozes da cidade"). Antes de vir a designar uma comédia bufa cuja intriga é tão complicada quanto burlesca, o vaudeville era, desde o século XV, uma canção formada de quadras que são todas cantadas com a mesma melodia. E neste sentido, o finale da ópera de Mozart Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho] é um vaudeville. Nos séculos seguintes, o vaudeville transformou-se numa canção satírica, de troça e chistes políticos, bem mais popular que as airs de cour. A "comédia de vaudeville" foi uma das fontes da opéra comique (ópera cômica) francesa. OBRAS D E ESTRUTURA COMPLEXA
Música lírica Uma tradição bem enraizada reserva o epíteto de "lírica" à música de ópera. No século XX, contudo, a designação da ópera como "drama lírico" tornou-se cada vez mais comum desde Pelléas etMélisande, de Debussy. O que caracteriza a música "lírica", no sentido em que é-aqui entendida, é não apenas o fato de estar ligada a um espetáculo cênico, mas o de haver sido composta para um libreto (do italiano libretto) que, ou foi escrito especialmente para ela (caso mais comum) ou é uma adaptação muito precisa, com vistas à obra musical, de um texto literário, geralmente uma peça de teatro, como, por exemplo, as que foram feitas da peça de Maeterlinck para Pelléas et Mélisande ou do drama de Büchner para Wozzeck. Como a música lírica está ligada à ação dramatúrgica, a qualidade do libreto e o peso da colaboração entre libretista e músico são importantes para assegurar a coesão arquitetura! da obra lírica. A debilidade ou fraqueza de um libreto pode condenar uma ópera a não passar de trechos musicais justapostos, mesmo que, muitas vezes, individualmente admiráveis. Certas colaborações, por outro lado, mostraram-se exemplares: neste caso estão a de Mozart com Lorenzo Da Ponte e a de Strauss com Hofmannsthal. Situação ideal é, por exemplo, a de Wagner: um músico que, reunindo as qualidades de autêntico poeta, compunha os próprios libretos. 1
À parte este último caso, certos comentadores de obras líricas teriam evitado uma série de tolices se houvessem mostrado maior interesse pela própria música, ao invés de dirigi-lo tão vivamente para o libreto. Um esboço psicanalítico do texto de Maeterlinck, bom ou mau, só de forma reflexa esclarece as intenções psicológicas e a dramaturgia propriamente musical de Debussy.
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Ópera, opera seria, opera buffa, opéra comique, opereta. Com relação às origens, características e evolução destes gêneros ver infra: os capítulos 13, 14, 15, 22, 25, 26, 29, 37, 39, 40, 47, 50, 59, 61, entre outros. Pastoral. Obra de dimensão pequena e inspiração bucólica que guarda mais semelhança com a opéra comique do que com a grande ópera. Por exemplo: Acis et Galatée [Acis e Galatéia] de Lully, Daphnis et Eglé [Dafne e Egle] de Rameau, Le Devin du village [O adivinho da aldeia] de Jean-Jacques Rousseau, Ascanio in Alba [Ascânio em Alba] de Mozart... O nome pastoral (em francês, pastorale) estendese a obras instrumentais que pretendem evocar a vida no campo e a bucólica felicidade pastoril, valendo-se de tonalidades muito simples, adaptadas aos instrumentos dos pastores. Quase sempre a tonalidade usada é fá maior que, inclusive, é a principal tonalidade da Pastoral Symphonie [Sinfonia pastoral], de Beethoven. Singspiel. Na Alemanha, originalmente espetáculo de teatro em que se achavam incluídas peças musicais. No século XVIII, o Singspiel tornou-se o equivalente tipicamente germânico (mais natural e bem comportado, apenas mais feérico) da opera buffa italiana. No Singspiel o recitativo secco é substituído por diálogos simplesmente falados. Com Die Entführung aus dem Serail [O rapto do serralho], Mozart compôs a obra-prima do gênero, e com Die Zauberflõte [Aflautamágica] levou a termo a trajetória do mesmo, transcendendo-o. Melodrama. Obra dramática que comporta um texto declamado (não cantado) com acompanhamento de instrumentos de música (e que nada tem a ver com o "melodrama romântico"). Jean-Jacques Rousseau foi um dos precursores do gênero com o seu Pygmalion [Pigmalião]. Depois dele, o melodrama tomou-se mais propriamente germânico, procedendo, como o Singspiel da mesma repugnância pelos virtuosismos do bel canto italiano. Os melodramas de Benda apaixonavam Mozart, que escreveu uma composição no gênero chamada Semiramis, infelizmente perdida. Beethoven empregou magnificamente o melodrama tanto em Egmont, como na última versão de Fidelio, e também Schubert fez uso do melodrama em suas óperas. No século XX, o melodrama teve sua última e renovada expressão no Sprechsgesang de Schõnberg — Pierrot lunaire [Pierrô lunar] — e de alguns dos seguidores deste, bem como com Stravinski, em Histoire du soldat [História do soldado], por exemplo. Música de cena. Dá-se este nome à música escrita para uma obra cênica (tragédia, comédia, drama, etc.) cujo texto literário, preexistente à música (seja de que época for), não foi destinado, pelo menos na totalidade, a ser cantado, mas a ser falado pelos atores. Libertada das amarras do libreto, a música de cena não é de forma alguma uma parente pobre da ópera. Nos melhores casos, apresenta uma coesão musical tão harmoniosa quanto a da melhor das óperas, embora as peças que a compõem sejam separadas umas das outras pelos atos ou cenas da peça que é
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encenada. Como gênero, existe desde o século XVII. Estão nesta categoria a música de Marc-Antoine Charpentier para Andromède [Andrómeda] de Corneille e as de Purcell para as tragédias de Dryden. Menos praticada no século XVIII — embora a esse gênero esteja ligado, por exemplo, Thamos in kõing in Aegypten [Tamos, rei no Egito] de Mozart —, a música de cena viria aflorescerno século XIX com as obras compostas por: Beethoven para Egmont, de Goethe; Schubert para Rosamunda, de Helmina von Chézy; Mendelssohn para A Midsummer-Night's Dream [Sonho de uma noite de verão], de Shakespeare; Schumann para Manfred, de Byron; e ainda por Fauré para Pelléas etMélisande, de Maeterlinck; Debussy para Le Martyre de Saint Sébastien [O martírio de São Sebastião], de D'Annunzio; Milhaud para Protée [Proteu], de Claudel, entre outras. Nessas composições, em geral são mais numerosas as peças puramente instrumentais: abertura ou prelúdio, entreatos ou interlúdios (estes podem situar-se entre duas cenas ou mesmo no decorrer de uma cena, como é o caso do interlúdio que acompanha a morte de Clãrchen em Egmont), balés, etc. Mas as peças vocais não deixam de ser importantes. Por exemplo: em Egmont, os dois Lieder de Clãrchen (talvez os primeiros Lieder a contarem com acompanhamento de orquestra) e o melodrama final; e, em Rosamunda, uma romanza, uma "melodia pastoril" e três coros. Tais peças podem, inclusive, ter um papel predominante com relação às peças instrumentais, como acontece em Le Martyre de Saint Sébastien [O martírio de São Sebastião]. Nesta obra, os coros ganham particular destaque, e o mesmo se pode dizer com relação a obras de Schubert, Mendelssohn, Schumann, etc. A música de cena é um dos domínios da composição musical em que o autor da música, por não estar obrigado a acompanhar palavra por palavra um longo texto ou a comentar as peripécias de uma intriga, sente-se mais livre para dar o melhor de si e fazer com que sua música rivalize com um texto literário de que ele gosta, ao invés de simplesmente ilustrar esse texto ou fornecer-lhe mero cenário sonoro. Deve-se associar a música de cena, mais talvez que a música de balé (de hábito puramente instrumental), à música de filme, cada vez mais importante, que tem em Alexander Nevski, de Prokofiev, um dos seus pontos altos. Musica de igreja. Não seria de todo paradoxal defini-la como uma música de cena a serviço de uma ação (litúrgica e não teatral) e composta para textos não especificamente escritos para ela. Uma vez que esta música é comandada pelas formas litúrgicas e paralitúrgicas das cerimônias religiosas (no caso, cristãs e, na maior parte das vezes, católicas), limitar-nos-emos a lembrar algumas definições para os leitores não cristãos ou pouco interessados em religiões e ritos. A missa é o ato essencial da liturgia cristã. As partes não cantadas (sobretudo o canon, cujo texto gira em torno da "consagração" do pão e do vinho) são as mais numerosas. As cantadas podem ser: o Introito (muitas vezes omitido), o Kyrie (sú-
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plica à Santíssima Trindade), o Gloria (glorificação da Santíssima Trindade), o Credo (resumo dos dogmas), o Ofertorio (muitas vezes omitido), o Sanctus (proclamação da santidade divina), seguido do Benedictus (reconhecimento do Messias) e do Agnus Dei (súplica ao Cristo antes da comunhão), cujas últimas palavras são Dona nobis pace ("Dá-nos a paz"). O Sanctus e o Benedictus, o Agnus Dei e o Dona nobis são freqüentemente cindidos em duas peças musicais distintas. O Introito da missa dos mortos começa pelas palavras Requiem aeternam dona eis ("Dê-lhes repouso eterno"), e daí o nome de Requiem dado à missa dos mortos posta em música. Em certas missas para celebrações específicas é costume inserir certos textos poéticos — hinos, seqüências, prosas, antífonas, etc. —, que podem ser compostos para serem incluídos no curso da própria missa {Dies trae, nas missas de Requiem), ou constituir peças separadas, como o Stabat mater (A mãe de Jesus ao pé da cruz) de Pergolesi. Outros hinos, como o Te Deum (agradecimento a Deus por uma vitória, uma sagração, uma cura, etc), são sempre peças musicais à parte. Por fim, a aclamação hebraica de louvor, Alleluia, seguida ou não de um versículo, tantas vezes musicada, sugere tradicionalmente melismas e vocalises. As Vésperas (em latim, Vesperae), que são as preces litúrgicas ao entardecer, seguidas das Completas, rezadas ao cair da noite, consistem, em essência, no canto de salmos, cuja escolha depende do dia ou da festa, e do Magnificat, canto de agradecimento a Maria, grávida de Jesus. O único gênero de música de igreja que não é determinado por imperativos litúrgicos ou paralitúrgicos é o moteto, sobre o qual é forçoso discorrer mais longamente. Moteto. Peça vocal exclusivamente destinada à igreja e, no início, reservada ao coro, mas que depois passou a incluir um ou mais solistas e orquestra. Na Idade Média (século XIII), o moteto (do latim motetus) consistia na superposição de diversas melodias com textos diferentes. Sobre as origens do moteto (em italiano moteto, em francês motet), ver adiante. A um cantus firmus constituído por melodia litúrgica sobrepunha-se uma melodia independente, com texto muitas vezes profano. No princípio, só ela era chamada pelo nome de moteto. Posteriormente, a palavra passou a designar uma peça polifónica, composta geralmente em estilo de imitação: Dufay, Ockeghem, Josquin Des Prés (século XV); depois Orlando de Lassus, Palestrina e Victoria (século XVI) foram os grandes mestres do moteto polifónico. No século XVII, a aparição da monodia acompanhada e do baixo contínuo transformaram o desenvolvimento do moteto. O nome passou a designar uma peça, geralmente de grandes dimensões, para um ou mais solistas, com coro e quase sempre orquestra. O moteto, a essa altura, mal se distinguía da cantata. Mas, pouco usada na Itália e na Alemanha, esta palavra era, no século XVII, o nome que se dava na França a qualquer
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composição religiosa sem função Mtúrgica precisa (motets a uma ou duas vozes de Lully e Couperin, bem como os grandes motets ainda de Lully, de Charpentier, de Delalande e de Campra). O anthem é o equivalente inglês do moteto-cantata. Neste contexto, os grandes motetos polifónicos a capella (sem qualquer acompanhamento instrumental) de Bach constituem exceções. Ulteriormente, a designação de moteto serviria para qualquer peça religiosa que não fosse inspirada nem na missa, nem no oratório (Brahms, Bruckner, Liszt). Da igreja ao concerto Cantata. Peça vocal composta de várias partes, para uma ou mais vozes, incluindo, por vezes, um coro e acompanhamento de cravo ou orquestra, que se destinava a concertos ou à igreja, mas jamais ao teatro. Na realidade, a cantata (em francês cantate, em alemão Kantate e, em italiano, cantata) é difícil de ser definida, pois apresenta formas muito diversas. Não é fácil distingui-la do oratório. Seu nome significa simplesmente peça cantada (cantata) por oposição à peça que é "soada" (sonata), num instrumento de sopro ou de cordas, e também à que é "tocada" (toccata) num instrumento de teclado. A cantata apareceu no começo do século XVII com a monodia acompanhada, e seu desenvolvimento corresponde ao do baixo contínuo. A cantata nasceu em Florença no círculo do conde Bardi: as Nuove musiche, de Caccini (1617), foram as primeiras cantatas, e o gênero se difundiu rapidamente com os mestres italianos Luigi Rossi, Carissimi, Cavalli, depois com Stradella, mas principalmente com Alessandro Scarlatti, que deixou mais de quinhentas cantatas. Na Alemanha, a cantata revelou-se, antes de tudo, um gênero religioso, que se desenvolveu particularmente graças à introdução do coro, e não raro da música orquestral. Tornou-se parte essencial do culto luterano no final do século XVII e na primeira metade do século XVIII, quando foi cultivada, inicialmente por Schütz, Buxtehude, Pachelbel, Kuhnau e depois por Mattheson e Telemann, mas sobretudo por Johann Sebastian Bach. Na França, com a introdução de um elemento dramático na cantata profana, a cantate française tornou-se uma ópera em miniatura (Campra, Bernier, Rameau), ao passo que os grandes motets de Charpentier e Delalande constituíam formidáveis cantatas sacras para vários solistas, coro e orquestra. Johann Sebastian Bach também escreveu certo número de cantatas profanas, como a Kaffee-Kantate [Cantata do café] BWV211, musicalmente muito parecidas com suas obras sacras, a ponto de algumas vezes compreenderem trechos idênticos: o coro inicial da Cantata BWV214, por exemplo, composta para o aniversário da rainha da Polônia é o mesmo que o do Weinachts Oratorium [Oratório de Natal]. A cantata "patriótica" apareceu com os músicos da Revolução Francesa (Gossec, Cherubini, Méhul). De 1803 a 1969, um tipo de cantata que consistia numa cena para três personagens e música orquestral, mas sem coro, serviu como peça
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de concurso para o famoso Prix de Rome, na França. Menos oficialmente, a cantata continua sendo composta por numerosos músicos, em dimensões e com estruturas tão variadas quanto permite a plasticidade do gênero. É interessante notar que a música composta por Prokofiev para o filme Alexander Nevski, de Serguei Eiseinstein, pôde ter como subtítulo a palavra "cantata". Mas a obra mais significativa deste gênero no século XX é a Cantata profana, de Bartók, uma de suas obras capitais. Oratório. Cantata de vastas dimensões, com muitos personagens, sobre um tema sacro (pelo menos na origem). A diferença essencial entre o oratório (em italiano e francês oratorio, em latim e alemão oratorium, em inglês oratory) e a cantata (cf. supra) é o caráter mais dramático deste último, que o torna uma espécie de ópera sacra sem encenação, ao passo que a cantata se mostra mais lírica. Desde a Idade Média, certas cenas da Bíblia eram representadas, recitadas e cantadas nas igrejas. Destes dramas litúrgicos resultaram, no século XV, os mistérios e as paixões. No século XVI, São Filipe de Néri retomou a idéia destas encenações no Oratório de Santa Maria in Vallicella, em Roma (essa é a origem da designação oratório paia esse gênero de música). Com o surgimento da monodia acompanhada e da ópera, o oratório encontrou seu caminho definitivo: Rappresentazione di anima e di corpo [Representação da alma e do corpo], de Cavalieri (1600), é o primeiro oratório propriamente dito. Carissimi, no século XVII, deu ao oratório uma dimensão dramática com a introdução da parte recitante en Jephte [ Jefté]. Os grandes mestres do oratório foram Charpentier, na França, com suas Histoires sacrées [Histórias sagradas], Alessandro Scarlatti, na Italia, e sobretudo Haendel. O Messiah [Messias], que reproduz dramaticamente os grandes episodios da vida do Cristo, Israel in Egypt [Israel no Egito], Belshazzar [Baltasar] e Judas Maccabaeus são modelos no gênero. As Paixões de Johann Sebastian Bach também são oratorios, embora a introdução do coral lhes dê um caráter mais litúrgico. Nos séculos seguintes, o oratório permaneceu preso à temática religiosa: Die Schõpfung [A Criação], de Haydn; Christus am Olberge [Cristo no monte das Oliveiras], de Beethoven; Die Legende von der heilige Elisabeth [A lenda de Santa Elisabeth], de Liszt; Le Roi David [O rei David] de Honegger; Job, de Dallapiccola. Mas, com Die Jahreszeiten [As estações], de Haydn, inaugurou-se a possibilidade do oratorio corn tema profano, embora geralmente exaltando valores que o compositor, mesmo se for ateu, considera essenciais: A survivor from Warsaw [Um sobrevivente de Varsóvia], de Schõnberg; La Garde de la Paix [Em defesa da paz], de Prokofiev; Il canto sospeso [O canto suspenso], de Luigi Nono.
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Prêmio de composição conferido anualmente, entre as datas indicadas no texto, pela Academia de Belas Artes de Paris, a um estudante do Conservatório de Paris, que passava quatro anos na VUla Mediei, em Roma. Berlioz (1830), Bizet (1875) e Debussy (1884) receberam essa láurea, entre outros. (N. T.)
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Sucede ainda que o oratorio pode apresentar-se muitas vezes como uma "ópera de concerto". Muitos deles foram depois levados à cena e passaram a compartilhar da mesma sorte que as óperas e os espetáculos de balé. Quase já não nos lembramos mais de que oratório foi o título original de obras como La Damnation de Faust [A danação de Fausto], de Berlioz, Œdipus Rex [Édipo rei], de Stravinski, Jeanne d'Arc au boucher [Joana d'Arc na fogueira], de Honegger, e Moses undAron [Moisés e Aarão], de Schõnberg.
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A variação ou double. Uma peça pode ser seguida por uma variação que consiste em ornamentar o material já apresentado. No barroco francês, tem o nome de double. 1
DIFERENTES DANÇAS
Allemande. É o primeiro movimento da suíte. De andamento moderado ou lento, a allemande (em italiano, allemanda) desenvolve-se com regularidade, algo pomposamente. Foi sempre de forma binária (séculos XVII e XVIII), tendo desaparecido por volta de 1750. Exemplos: o n° 2 da Suíte para violoncelo n° 6e o n° 1 da Partita para violino solo, de Bach. 2
OS GÊNEROS MUSICAIS (MÚSICA INSTRUMENTAL) Suíte Seqüência de movimentos de dança, com ritmos, características e tempos diversos, a suíte é a mais antiga das formas de composição musical. Existe desde a Idade Média, quando já se tinha o costume de agrupar as danças aos pares (uma dança lenta sucedida por outra geralmente viva, como o par pavana/galharda). A suíte desenvolveu-se sobretudo no século XVII, graças à influência dos alaudistas, mas foi um cravista alemão, Froberger, que, por volta de 1650, codificou a sucessão dos movimentos: um prelúdio facultativo (muitas vezes substituído por uma abertura "à francesa"), seguido de uma allemande (em italiano allemanda), uma courante, uma sarabanda (em espanhol zarabanda, em francês sarabande) e uma giga (em italiano giga, em francês gigue, em inglês jig), ou seja, lento - vivo - lento - vivo. Entre a sarabanda e a giga, eram eventualmente intercaladas outras danças em número variável, bem como peças livres Carias" ou "airs", "divertimentos", etc). Por conseguinte, a suíte pode comportâr de quatro a oito movimentos, e às vezes mais. A suíte (suite) é um gênero essencialmente francês ou de inspiração francesa. Os alemães lhe dão o nome de partita. Couperin, que imprimiu à suíte uma forma muito livre, chamava-a ordre. Movimentos de dança da suíte ESTRUTURA GERAL
O rondó. Forma que tem sua origem, ao que tudo indica, em uma forma poética medieval do mesmo nome, o rondó (em francês rondeau) é constituído pela alternância de um refrão com episódios musicais. Tornou-se uma das formas favoritas dos músicos franceses, sobretudo depois de Couperin. A forma binaria. A maior parte das danças apresenta esta forma, em especial as quatro danças fundamentais da suíte: a allemande, a courante, a sarabanda e a giga. A peça se divide em duas partes. A primeira expõe o tema e modula para o tom da dominante. Esta primeira parte é repetida integralmente antes de se passar à segunda, que retoma, na dominante, o material temático da primeira parte. A segunda parte, por sua vez, deverá modular para retornar à tônica, antes de ser repetida.
Bourrée (séculos XVII e XVIII). Dança francesa, geralmente a dois tempos e de andamento rápido, a bourrée começa num tempo fraco, o que lhe dá um caráter particular. Sempre teve forma binária. Chacona. Em espanhol chacona, em francês chaconne, em italiano ciaccona e em inglês chacony. É uma dança lenta, de origem espanhola, decerto importada da América, que lembra muito a passacale. Courante e corrente. A courantefrancesaera uma dança bastante viva e animada em sua origem, mas que se tornou nobre e circunspecta a partir do século XVII. De ritmo ternario (3/2), por vezes binário (6/4), caracteriza-se pelo ataque sobre uma colcheia em tempo fraco. A forma da courante é sempre binária. A corrente italiana, provavelmente uma deformação da precedente, é mais viva que esta e escrita no compasso de 3/8, com suas colcheias iguais. Exemplos: Suíte para violoncelo e Partita em ré menor para violino, de Bach. Forlana. Dança italiana (Veneza) nos ritmos de 6/4 e 6/8, a forlana (em francês forlane) tinha andamento moderado e esteve bastante em voga no século XVIII. Galharda. Dança de passos saltitados e ritmo ternário, a galharda (em italiano gagliarda, em inglês gaillard, em francês gaillarde) é originária da Itália. No século XVI, vinha normalmente após a pavana, à qual se achava acoplada. Gavota. Dança de origem francesa (da região do Gap, cujos habitantes são ditos gavots) de ritmo binário (2/2), andamento moderado, mas alegre e ligeira. Algumas vezes, a gavota (em francês gavotte, em inglês gavot, em italiano gavotta) é seguida por uma segunda gavota, apresentada como trio, à maneira do minueto. Exemplo: Suíte n" 6 para violoncelo, de Bach. Giga oujiga. Ultima peça da suíte, a giga (em italiano giga e em francês gigue) é, ao que tudo indica, uma dança de origem escocesa (em inglês, jig). Seu ritmo pode
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A ordem seguida aqui é alfabética. - Um outro tipo de dança, também chamada de allemande, próxima da valsa, surgiu no final do século XVIII. É também conhecida como detacher Tanz.
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A passacale e a chacona constituem, a partir de Lully, a grande peça final da ópera à francesa (até Rameau, inclusive). Na Inglaterra, o tema "obstinado" da passacale chama-se ground. O célebre Bolero de Ravel assemelha-se à passacale e retoma sua origem espanhola.
ser binário ou ternario, mas sua característica nos dois casos é a escrita em tercinas de colcheias iguais (Itália) ou pontuadas (França). A giga italiana é composta em imitação ou emfugato. Sempre teve forma binária (séculos XVII e XVIII). Minueto. Dança de origem francesa (província de Poitou), muito rápida e viva na origem (menuet em francês significa: a pequenos passos). No século XVIII, o andamento do minueto (menuet em francês, minuetto em italiano), que já era moderado durante o século XVII, tornou-se muito lento, "de uma nobre simplicidade", no dizer de Rousseau. O minueto tem ritmo ternário, com os tempos um tanto acentuados a partir de 1720, e sua forma sempre foi binária. Quase sempre é seguido por um segundo minueto na forma de írio e constitui, em geral, a penúltima peça da suíte (antes da giga final). O minueto, com o seu trio, é a única dança da suíte que passou à sinfonia (Haydn e Mozart), antes de ceder lugar ao scherzo. É muitas vezes substituído também pela simples indicação "tempo di minuetto" no alto da página de uma peça (Sonata opus 49n°2e Sonata opus 54, de Beethoven), vale dizer, um andamento entre allegreto e allegro.
Passepied. Dança vivaz e alegre no compasso de 3/4 ou 3/8, o passepiedfrancês,de origem bretã, é semelhante ao minueto; seu ataque, no entanto, se faz num tempo fraco (século XVIII). Pavana. Danse de cour, lenta, nobre e cerimoniosa, de origem italiana (em italiano pavana ou padovana, em francês pavane, em inglês pavan), é geralmente seguida por uma vivaz galharda (século XVI).
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Passacale oupassacalhe (séculos XVII e XVIII). Ao lado da chacona, com a qual se parece muito, a passacale (em espanhol pasacalle, em italiano passacaglia, em francês passacaille ou passecaille) é, de todas as danças, a mais extensa e a que mais longamente foi desenvolvida. Sua origem é espanhola, mas, segundo parece, teria vindo das índias, sendo introduzida na Espanha por marinheiros, no século XVI, como sucedeu com a chacona. Era, então, uma dança viva e licenciosa, que consistia na repetição infindável de um mesmo motivo à maneira da farândola. Dessa sua forma original, conservou duas características: a repetição e o baixo ostinato. Da Espanha passou à França, onde a passacaille tornou-se, pouco a pouco, uma dança lenta e nobre. Pode mostrar-se sob dois aspectos: 1. Variação: o tema é anunciado pelo baixo e durante a obra inteira será retomado indefinidamente, sempre igual, sem qualquer alteração. As outras vozes fazem variações sobre esse baixo. Exemplo: Grande passacale em dó menor para órgão, de Bach. Há uma variante desta fórmula: o tema não está presente em todas as variações, onde aparece apenas subentendido. Exemplo: a chacona da Partita em ré menor para violino solo, de Bach. 2. Rondó: o tema retorna periodicamente, sob forma de um refrão, intercalado por vários episódios. É a forma da passacaille (ou da chaconne) àfrancesa.Exemplo: Grande passacale em si menor, de Couperin.
Ern Mozart, Beethoven e Schubert, o frio normalmente nada tem que lembre um segundo minueto e faz, às vezes, vivo contraste (poesia sonhadora e terna) com o minueto que o precede e é repetido depois dele. Não confundir sobretudo o trio intercalado num minueto (ou num scherzo, ou em qualquer outra peça do mesmo tipo) com o trio, obra de câmara para três instrumentos. Uma coisa é o trio do minueto do Quarteto opus 1S n" 4, de Beethoven, e outra o Trio opus 70 n° 2, do mesmo autor, para piano, violino e violoncelo.
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Sarabanda. Dança grave e lenta, talvez importada do Oriente, que apareceu na Espanha no século XVI. Na origem muito lasciva, a sarabanda (em espanhol zarabanda, em francês sarabande, em italiano sarabanda) marcou presença no século XVII em toda a música européia, como uma forma nobre e em geral ricamente ornamentada. Escrita em três tempos, caracteriza-se por fazer a acentuação incidir no segundo tempo. Tem lugar logo depois da courante na suíte tradicional, onde é um dos movimentos principais, e prefigura o movimento lento da sonata (séculos XVI a XVIII). Exemplo: Partita para violino solo, de Bach. Algumas outras danças, que não pertencem à suíte
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Allemande. Dança da época de Schubert, mas já conhecida no tempo de Haydn e Mozart, a allemande (allemanda em italiano) ou deutscher Tanz tem compasso ternário, iniciado no terceiro tempo, e caráter popular. É uma das ancestrais da valsa. Barcarola. Canção de barqueiros (em francês barcarolle), especialmente dos gondoleiros venezianos. Por extensão, peça musical de ritmo análogo (geralmente nos compassos de 6/4 ou 9/8), caráter nostálgico e um tanto indolente. Basse-danse. Nome genérico que se dá em francês às danças em que os pés deslizam ou levantam pouco do chão (branle, pavana, allemande, tordion, sarabanda, gavota, minueto, etc.). Bolero. Dança popular espanhola, originária da seguidilha, cujo compasso de 3/4 é formado por seis colcheias, com a segunda delas dividida em duas semicolcheias; em geral, é acompanhada por castanholas. Branle. Dança de origem francesa, normalmente em compasso binário, mas às vezes também ternário, que era quase sempre cantada; desapareceu no final do século XVII. 1
Também aqui, a ordem seguida é alfabética.
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Czarda ou csarda. Dança húngara em compasso de 2/4, que tem a primeira parte lenta (denominada lassu) e a segunda incisivamente ritmada (chamada frisca).
Tarantela. Dança saltitada, de andamento muito rápido em compasso de 3/8 ou 6/8, cujo nome está ligado à cidade italiana de Tarento (em italiano, tarantella).
Escocesa. Dança nacional de caráter sério com efeitos de museta, em compasso ternário (mais raramente binário). Também tipo de dança derivada da polca (valsa escocesa).
Tordion ou tourãion. Dança francesa do século XVI, rápida e em três tempos.
Fox-trot. Dança de salão com ritmo de marcha, bastante rápida e originária do ragtime. Habanera. Dança íbero-cubana, de preferência lenta, em compasso de 2/4 ou 4/8, antecessora do tango. Laendler. Dança de roda, em compasso ternário, de caráter popular, originária da alta Áustria. É uma das ancestrais da valsa. Mazurca. Dança nacional polonesa em compasso ternário, com uma primeira seminima pontuada. Paso-doble. Dança latino-americana, muito rápida, de origem africana. Passamezzo. Dança de ritmo binário, bailada com passos curtos e regulares, muito apreciada na Itália do século XVI. Poica. Segundo Maurice Tassart, "na origem, dança camponesa tcheca (e não polonesa), em dois tempos, caracterizada pelo meio passo que lhe inspirou o nome (pulka = metade)." Acolhida por volta de 1837 pela alta sociedade de Praga, entrou na moda de maneira avassaladora e teve seu apogeu com as composições de Johann Strauss filho. Polonaise. Nome francês de uma antiga dança solene polonesa em três tempos, cujo ritmo se parece com o do bolero. Ragtime. Literalmente, "tempo rasgado": estilo pianístico da época que precede o jazz (Scott Joplin), exclui o improviso e tem a acentuação mcidindo sobre o primeiro e o terceiro tempos, no baixo, e sobre o segundo e quarto na parte da melodia (off-beat). Exemplos de ragtime podem ser encontrados inclusive em Debussy, que o emprega em algumas de suas peças para piano, bem como em Stravinski. Rigodão. Antiga dança provençal, o rigodão (em francês rigaudon) tem ritmo binário e caráter arrebatador. Saltarelo. Dança saltitada, de origem italiana (em italiano saltarello, em francês saltarelle), de andamento rápido, em compasso de 6/8, cujas colcheias (primeira e quarta) são pontuadas. Tango. Dança originária da Argentina, importada pela Europa depois da Primeira Guerra Mundial; é aparentada com a habanera por seu ritmo binário e sua pulsação lenta.
Valsa. Dança de origem alemã e austríaca (em alemão Walzer, em francês valse, em inglês waltz), em três tempos, que data do início no século XIX. Os pares volteiam de duas maneiras simultâneas: em torno de si mesmos e ao redor da sala. Concerto Composição instrumental em que um instrumento solista ou um grupo de instrumentos opõem-se a uma formação orquestral. (A indicação tutti, palavra italiana que significa todos, refere-se ao conjunto dos instrumentos que estão em jogo.) O concerto (do italiano concerto) apareceu na Itália no século XVII. Em sua forma antiga, apresenta-se sob dois tipos: • o concerto grosso, no qual um grupo de instrumentos (concertino) opõe-se individualmente à orquestra (ripieno); • o concerto para um ou mais solistas. Os Concertos de Brandenburgo, de Bach, constituem um gênero misto, pois estão a meio caminho entre os dois tipos: o quinto deles encaminha-se na direção do concerto para instrumento sofista. O Concerto para dois oboés, de Vivaldi, está mais próximo do concerto grosso, enquanto seu Concerto para violino, violoncelo e cordas é nitidamente um concerto para vários solistas individualizados. O Concerto para oboé e cordas, também de Vivaldi, é um típico exemplo do concerto para instrumento solista, tal como este apareceu no começo do século XVIII. Coube a Mozart dar ao concerto sua forma clássica, que pode ser analisada do seguinte modo: • Primeiro movimento: allegro, na forma sonata. • Segundo movimento: lento (andante ou adagio), geralmente na forma tema e variações, ou na forma Lied. • Terceiro movimento: vivo (allegro), sempre na forma rondó. No final do primeiro movimento (às vezes do último e raramente do segundo), a orquestra dá livre curso ao instrumento solista para que este execute a cadência, uma seção de grande virtuosismo, construída a partir de um tema musical da obra. Em princípio, a cadência teria de ser tocada de improviso pelo exécutante. O compositor não a escrevia, deixando-a a cargo da fantasia do intérprete. Mas se fosse ele o próprio intérprete, podia fazer um esboço de suas cadências e, ciumentamente, guardá-las consigo. Algumas delas chegaram até nós, vindas das mãos de Mozart. A surdez progressiva de Beethoven fez com que se processasse uma mudança na situação: já que ele teria de renunciar a esta prática e aos aplausos devidos ao virtuosismo, passou a escrever inteiramente suas cadências e inclusive publicou-as. Dessa forma, ele as propunha (de fato, chega quase a impô-las) a seus
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Czarda ou csarda. Dança húngara em compasso de 2/4, que tem a primeira parte lenta (denominada lassu) e a segunda incisivamente ritmada (chamada frisca).
Tarantela. Dança saltitada, de andamento muito rápido em compasso de 3/8 ou 6/8, cujo nome está ligado à cidade italiana de Tarento (em italiano, tarantella).
Escocesa. Dança nacional de caráter sério com efeitos de museta, em compasso ternário (mais raramente binário). Também tipo de dança derivada da polca (valsa escocesa).
Tordion ou tourdion. Dança francesa do século XVI, rápida e em três tempos.
Fox-trot. Dança de salão com ritmo de marcha, bastante rápida e originária do ragtime. Habanera. Dança íbero-cubana, de preferência lenta, em compasso de 2/4 ou 4/8, antecessora do tango. Laendler. Dança de roda, em compasso ternário, de caráter popular, originária da alta Áustria. É uma das ancestrais da valsa. Mazurca. Dança nacional polonesa em compasso ternário, com uma primeira seminima pontuada. Paso-doble. Dança latino-americana, muito rápida, de origem africana. Passamezzo. Dança de ritmo binário, bailada com passos curtos e regulares, muito apreciada na Itália do século XVI. Polca. Segundo Maurice Tassart, "na origem, dança camponesa tcheca (e não polonesa), em dois tempos, caracterizada pelo meio passo que lhe inspirou o nome (pulka = metade)." Acolhida por volta de 1837 pela alta sociedade de Praga, entrou na moda de maneira avassaladora e teve seu apogeu com as composições de Johann Strauss filho. Polonaise. Nome francês de uma antiga dança solene polonesa em três tempos, cujo ritmo se parece com o do bolero. Ragtime. Literalmente, "tempo rasgado": estilo pianístico da época que precede o jazz (Scott Joplin), exclui o improviso e tem a acentuação mcidindo sobre o primeiro e o terceiro tempos, no baixo, e sobre o segundo e quarto na parte da melodia (off-beat). Exemplos de ragtime podem ser encontrados inclusive em Debussy, que o emprega em algumas de suas peças para piano, bem como em Stravinski. Rigodão. Antiga dança provençal, o rigodão (em francês rigaudon) tem ritmo binário e caráter arrebatador. Saltarelo. Dança saltitada, de origem italiana (em italiano saltarello, em francês saltarelle), de andamento rápido, em compasso de 6/8, cujas colcheias (primeira e quarta) são pontuadas. Tango. Dança originária da Argentina, importada pela Europa depois da Primeira Guerra Mundial; é aparentada com a habanera por seu ritmo binário e sua pulsação lenta.
Valsa. Dança de origem alemã e austríaca (em alemão Walzer, em francês valse, em inglês waltz), em três tempos, que data do início no século XIX. Os pares volteiam de duas maneiras simultâneas: em torno de si mesmos e ao redor da sala. Concerto Composição instrumental em que um instrumento solista ou um grupo de instrumentos opõem-se a uma formação orquestral. (A indicação tutti, palavra italiana que significa todos, refere-se ao conjunto dos instrumentos que estão em jogo.) O concerto (do italiano concerto) apareceu na Itália no século XVII. Em sua forma antiga, apresenta-se sob dois tipos: • o concerto grosso, no qual um grupo de instrumentos (concertino) opõe-se individualmente à orquestra (ripieno); • o concerto para um ou mais solistas. Os Concertos de Brandenburgo, de Bach, constituem um gênero misto, pois estão a meio caminho entre os dois tipos: o quinto deles encaminha-se na direção do concerto para instrumento solista. O Concerto para dois oboés, de Vivaldi, está mais próximo do concerto grosso, enquanto seu Concerto para violino, violoncelo e cordas é nitidamente um concerto para vários solistas individualizados. O Concerto para oboé e cordas, também de Vivaldi, é um típico exemplo do concerto para instrumento solista, tal como este apareceu no começo do século XVIII. Coube a Mozart dar ao concerto sua forma clássica, que pode ser analisada do seguinte modo: • Primeiro movimento: allegro, na forma sonata. • Segundo movimento: lento (andante ou adagio), geralmente na forma tema e variações, ou na forma Lied. • Terceiro movimento: vivo (allegro), sempre na forma rondó. No final do primeiro movimento (às vezes do último e raramente do segundo), a orquestra dá livre curso ao instrumento solista para que este execute a cadência, uma seção de grande virtuosismo, construída a partir de um tema musical da obra. Em princípio, a cadência teria de ser tocada de improviso pelo exécutante. O compositor não a escrevia, deixando-a a cargo da fantasia do intérprete. Mas se fosse ele o próprio intérprete, podia fazer um esboço de suas cadências e, ciumentamente, guardá-las consigo. Algumas delas chegaram até nós, vindas das mãos de Mozart. A surdez progressiva de Beethoven fez com que se processasse uma mudança na situação: já que ele teria de renunciar a esta prática e aos aplausos devidos ao virtuosismo, passou a escrever inteiramente suas cadências e inclusive publicou-as. Dessa forma, ele as propunha (de fato, chega quase a impô-las) a seus
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futuros intérpretes, como um elemento indissociável da arquitetura dos seus concertos para piano. Seu exemplo foi seguido, às vezes de modo discutível, por compositores menos geniais na arte de associar improvisação e arquitetura. Mozart e Beethoven marcaram não somente a forma, mas o espírito do gênero concertante. Nos seus concertos, todos obras-primas, o indivíduo (solista) dialoga com a comunidade (tutti) de maneira tão antagônica quanto fraterna, havendo mesmo um tipo de diálogo no qual se tece uma sucessão de perguntas e respostas que vão, por exemplo, da angústia à exultação (Andante con moto do Concerto para piano e orquestra n" 4, em sol maior, opus 58, de Beethoven). Mas, tais culminâncias só podem ser atingidas mediante duas condições: quando se consegue apreender as relações singular-plural, ou individual-universal, e quando se verifica uma situação sócio-histórica propícia. No caso de uma dessas duas condições faltar, o concerto estará correndo risco de rebaixar-se ao nível de uma proeza fútil, escrita para um solista vedete. Foi por isso que Schubert — numa sociedade fechada, sufocado por sua solidão e de gênio profundamente avesso ao virtuosismo — permitiu-se, no gênero concertante, apenas quatro obras não muito extensas, mais condescendentes que convictas.
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príncipe Ccethen). As serenatas escritas por Mozart em Salzburgo para o príncipearcebispo e outras, como a dedicada ao burgomestre Haffher, são grandes composições orquestrais (mais extensas que qualquer uma das suas sinfonias!), de espírito semelhante ao divertimento, embora mais mundano e afetado, numa sucessão de diversas peças (oito na Serenata K250 e sete na Serenata K320), que têm intercalados em meió a elas todo um concerto para violino (Serenata Haffher K250) ou uma sinfonia concertante para sopros (Posthornserenade K 320) em três breves movimentos. Assim, por volta de 1773-1779, pôde a serenata aparecer como a majestosa rainha das composições orquestrais. Mas a sinfonia viria barrar o caminho deste gênero, estruturalmente vago e socialmente elitista. Com o Mozart dos anos vienenses — Eine Kleine Nachtmusik [Pequena música noturna], para quinteto de cordas —, bem como com o jovem Beethoven (Opus 8, para trio de cordas, Opus 25, para flauta, violino e viola) e os sucessores de ambos, a serenata instrumental estava destinada a tornar-se uma obra de música de câmara suave e intimista. Sonata
Divertimento Típico da época clássica (Haydn, Mozart), o divertimento (do italiano divertimento) é um gênero de composição que dá uma impressão mais leve do que as sinfonias ou quartetos, seja pela sucessão menos rígida de seus numerosos movimentos (vestígio da antiga suíte), seja pelo uso de instrumentos solistas, seja como resultado de sua destinação social, etc. Serenata Música do anoitecer, por oposição à "alvorada", "alborada" ou "aubade", que é a música do amanhecer, matinatta, em italiano. Em sentido estrito, a serenata — do italiano serenata, em francês sérénade, em inglês serenade, em alemão Serenade ou Stãndchen — é um concerto de vozes e instrumentos, dado à noite, ao ar livre, sob as janelas de alguém (normalmente alguém do sexo feminino!) para render-lhe homenagem. No caso da serenata da ópera Don Giovanni, de Mozart, há um cantor e um bandolim. Em Schubert, com o nome alemão Stãndchen, encontramos este mesmo tipo de serenata: para voz e piano, com letra de Rellstab, como a célebre Serenata D 957 n° 4, ou para voz feminina e quarteto vocal, como é a D 920, com letra de Grillparzer. Nos tempos do estilo galante, outro tipo de obra completamente diferente chegou ao seu auge com este mesmo nome graças à "serenata" barroca, que evoluiu gradualmente para o instrumental puro e para uma composição destinada a celebrações solenes (Serenata BWV173 A, de Bach, comemorativa do aniversário do
Composição que compreende vários movimentos, destinada a um reduzido número de instrumentos, geralmente dois ou três e, mais tarde, a apenas um ou dois. 1. A sonata pré-clássica. A sonata teve origem no século XVII, na Itália. Do ponto de vista da sua construção, distinguem-se, por volta de 1700, dois tipos de sonata cultivados na Itália, ou, sob influência italiana, em outros países: • a sonata da chiesa (de igreja), em quatro movimentos: grave ou adagio - allegro - adagio - allegro; • a sonata da camera (de câmara) em três movimentos: allegro - adagio - allegro. A primeira dessas duas modalidades foi mais difundida na Alemanha, Inglaterra e França, onde era grande a influência dos músicos italianos. Do ponto de vista do efetivo instrumental, distinguem-se igualmente dois tipos: • a sonata a tre (sonata a três), em que as duas vozes superiores estavam em condições de igualdade, isto é, tinham o mesmo desenho e tocavam na mesma altura, e a terceira voz fazia o papel de baixo contínuo, sendo executada, de fato, por dois instrumentos, um baixo e um teclado (em geral de cordas) ou um alaúde; é a sonata-trio ou trio-sonata, o gênero mais importante da música de câmara barroca. • a sonata para solo, que era composta para um instrumento e baixo contínuo, ou simplesmente para cravo. As 550 sonatas de Domenico Scarlatti devem ser postas à parte, pois não têm as mesmas características das sonatas que lhes são contemporâneas, nem das que são posteriores a elas. São pequenas peças, de um só movimento, que o autor chamava essercizi (exercícios) e não pertencem a qualquer gênero.
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2. A sonata clássica firma-se como gênero por volta de 1760 e tem seus movimentos planejados em allegro (movimento lento) — minueto —finale, sendo adotada, para o primeiro desses movimentos, a chamada forma sonata, à qual já nos referimos. Por agum tempo, a palavra sonata (do italiano sonata, música para ser tocada, "soada", por oposição a cantata, música cantada) continuou a ser utilizada para designar obras escritas para um, dois ou três instrumentos. Na terminologia moderna, entretanto, designa exclusivamente as obras compostas para um instrumento (sonata para piano) ou para dois instrumentos (sonata para piano e violino ou para piano e violoncelo). As obras para três instrumentos são chamadas trios (piano, violino e violoncelo, por exemplo); para quatro, quarteto; para cinco, quinteto, e assim por diante. Antes de Beethoven, e contrariamente à sinfonia, a sonata clássica só raramente tinha quatro movimentos. As sonatas de Mozart têm quase todas três, e as de Haydn, dois ou três. Em Mozart, a sonata é geralmente constituída por dois movimentos bem vivos que enquadram um movimento lento (mais raramente, um minueto). Nas sonatas de Haydn, a natureza e a ordem dos movimentos diferem mais; o minueto, contudo, nunca vem em primeiro lugar, como acontecerá com a Sonata para piano n°22, emfá maior, opus 54, de Beethoven. As sonatas de Beethoven são escritas em dois, três ou quatro movimentos, diversidade que, no caso de Beethoven, mais do que no de seus predecessores, visa a fins expressivos os mais variados. Como em suas outras obras, Beethoven substituiu, em muitas de suas sonatas, o minueto pelo scherzo. 1
3. Na época romântica, as sonatas de Schubert, Schumann, Brahms, Chopin e Liszt retomam, por motivos diversos, a herança clássica, refletindo-se nelas as novas preocupações da época. A sonata de Liszt, por sua estrutura feita de um só movimento que sintetiza os diversos movimentos tradicionais, abriu uma via que somente no século XX seria novamente palmilhada (Sinfonia de câmara opus 9, de Arnold Schõnberg, Sinfonia n° 7 opus 105, de Jean Sibelius). 4. No século XX, as três sonatas de Debussy — para piano e violino; para piano e violoncelo e para flauta, viola e harpa — ou as três sonatas para piano de Pierre Boulez rompem com a forma sonata, embora conservando o espírito do gênero, ao passo que as sonatas de outros compositores, como Serguei Prokofiev, permanecem mais fiéis aos ideais clássico-românticos.
Constitui exceção, entre algumas obras de qualidade extraordinária, a Sonata para dois pianos e percussão, de Bartók.
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Sinfonia Vasta composição instrumental de vários movimentos, que exige o concurso de orquestras sinfônicas ou, mais raramente, de formações orquestrais menores (sinfonia para cordas, sinfonia para orquestra de câmara etc). Após uma evolução gradual, a estrutura da sinfonia fixou-se por volta de 1770. 1
1. A sinfonia primitiva é uma peça de forma mal definida, composta para um grupo de instrumentos. Executada antes do início das óperas italianas, confunde-se com a abertura e tem uma estrutura tripartida: vivo-lento-vivo. Na obra de Mozart, certas sinfonias de sua juventude não se distinguem de aberturas de óperas. 2. Na época clássica, a sinfonia separou-se da abertura de ópera e tornou-se um gênero musical independente. Os pioneiros desta tendência foram Carl Philipp Emanuel Bach (sinfonias em três movimentos), alguns compositores italianos como Sammartini, Johann Stamitz e os músicos da Escola de Mannheim. Por volta de 1770, o quadro da sinfonia já estava fixado até certo ponto, graças sobretudo a Haydn. O gênero adotava então, de hábito, uma estrutura de quatro movimentos: • primeiro movimento: rápido (algumas vezes, precedido por uma introdução lenta); • segundo movimento: lento; • minueto; • quarto movimento: rápido. Em cada um dos movimentos, como maneira de pensar, reina a forma sonata; aliás, esta forma, em sentido estrito, não estava excluída a priori de qualquer deles. A forma "variações" e a forma Lied estão presentes com freqüência nos movimentos lentos, ao passo que a forma rondó — de espírito menos tenso e relativamente mais fácil de ser seguida por causa de seu refrão — prevalece nos últimos movimentos. Note-se que Mozart — nisso seguindo uma tradição de Salzburgo — escreveu em 1786 uma sinfonia em três movimentos, sem o minueto (Sinfonia n° 38, denominada Praga). Com Beethoven, a ordem e a natureza dos movimentos não mudam: a subversão tem lugar no interior deles. Na sua Sinfonia n° 9, contudo, o scherzo vem em segundo lugar e o movimento lento em terceiro; já a execução do quarto movimento exige um grande coro.
No final do século XVIII, desenvolveu-se também a sinfonia concertante, um gênero então muito apreciado, que aliava a estrutura sinfônica ao concerto (geralmente para vários solistas). Estão neste caso as duas sinfonias concertantes de Mozart, uma para sopros e outra para violino e viola, que são verdadeiras obras-primas. O gênero, logo em seguida, veio a desaparecer, embora não se tenha deixado de buscar inserir a forma concertante numa sinfonia, como é o caso do solo de viola em Harold en Italie [Haroldo na Itália], de Berlioz, do solo de piano na Symphonie sur un chant montagnard français [Sinfonia sobre um canto francês das montanhas], de Vincent d'Indy, e principalmente da obra de Bartok, Concerto para orquestra.
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3. Depois de Beethoven, compositores como Schubert, Mendelssohn, Schumann, Bruckner ou Brahms modificaram bem pouco o aspecto externo da sinfonia. Mas a orquestra foi aumentada, os desenvolvimentos adquiriram outra amplitude (Bruckner) e as intenções descritivas ou filosóficas fazem-se perceber mais claramente (Berlioz, Liszt). Com Mahler, uma etapa essencial foi vencida: Mahler não apenas alterou o número de movimentos (em sua Sinfonia n° 3 há seis movimentos, na Sinfonia n° 8, apenas dois), como também subverteu a natureza e a ordem de sucessão deles (na sua Sinfonia n° 9 há dois movimentos lentos que enquadram dois outros, rápidos, com caráter de scherzo), além de ter conferido a suas obras sinfônicas dimensões consideráveis: a execução da Sinfonia n° 3 de Mahler dura uma hora e quarenta e cinco minutos. Pouco depois de Mahler, as sinfonias de Sibelius orientaram-se no sentido de uma concentração do pensamento, praticamente desconhecida desde a época de Beethoven, contribuindo desse modo para a liquidação da forma sonata.
por argumentos exteriores que lhes determinam até certo ponto a estrutura; que não basta uma partitura ter um título ou caráter evocativo para que a composição seja um poema sinfônico; que as estruturas das grandes obras de música "pura" (concertos de Mozart, sinfonias de Haydn) são tão diversas quanto as dos poemas sinfônicos de Liszt ou de Richard Strauss; por fim, que, por melhor que seja o "tema" ou o argumento, ele jamais poderá garantir sozinho a coesão e o valor musicais: um poema sinfônico é, antes de tudo, também feito de notas. O interesse de um número cada vez maior de compositores pelo poema sinfônico não deve ser relacionado à tola querela "música de programa contra música pura": a Pastoral Symphonie [Sinfonia pastoral], de Beethoven, a Symphonie Fantastique [Sinfonia fantástica], de Berlioz, e a Faust-Symphonie [Sinfonia Fausto], de Liszt, são tão "de programa" quanto Mazeppa, poema sinfônico do próprio Liszt. A idéia do poema sinfônico prende-se, antes, à tomada de consciência cada vez maior das afinidades entre conhecimento poético e expressão musical, de uma parte, e, de outra, à necessidade crescente dos compositores de se libertar do modelo tirânico da sinfonia clássica e das receitas fabricadas por uma classe de falsos eruditos com base nas criações geniais dos grandes vienenses.
PARA ALÉM DOS GÊNEROS PROPRIAMENTE DITOS
Fantasia. Em sua acepção mais geral, o termo fantasia (em alemão, Fantasie; em francês, fantaisie; em inglês, fantasy ou fancy; em italiano, fantasia) designa uma peça instrumental de forma bastante livre, próxima da improvisação, mas que não deixa de estar relacionada com outras formas mais estritas já em uso. Concretamente, a fantasia evoluiu entre dois pólos que se relacionam por meio dela: de um lado, a liberdade — ou, melhor dizendo, a desconsideração pelas normas — e, de outro, o rigor (Fantasia para piano em dó menor K 475, de Mozart).
Abertura. Em sua acepção mais geral, o termo (em francês ouverture, em inglês overture, em alemão Ouverture) designa uma peça orquestral tocada ainda com a cortina cerrada, antes de uma representação operística ou mesmo de qualquer espetáculo. Durante a primeira metade do século XVIII (Rameau, Gluck), começou-se a levantar o problema das relações musicais e dramáticas entre a abertura e a obra que ela antecede. Esse problema tem sido resolvido, até os dias de hoje, de maneiras as mais diversas, muitas vezes pela substituição da "abertura" por um "prelúdio", como se deu no Lohengrin, de Wagner. Com Leonora III (1805), Beethoven escreveu menos uma abertura do que uma peça de concerto independente. Em 1807, Beethoven deu mais um passo com Coriolano, abertura de concerto, que não era mais seguida por ópera alguma. Em 1822, fez o mesmo com a Consagração da casa. Mendelssohn, com Fingals Hõhle [A gruta de Fingal] e Mélusine, seguiu-lhe o exemplo e foi, por sua vez, seguido por outros. Dali por diante, não se pode mais discernir qual linha divisória separa a abertura de concerto e o poema sinfônico. Poema sinfônico. Gênero musical assim denominado pela primeira vez por Franz Liszt, que corresponde a uma obra orquestral determinada, quanto à sua concepção e estrutura, por um argumento exterior, de ordem poética, descritiva, pictórica, lendária, filosófica, etc. O poema sinfônico engloba praticamente tudo quanto permite a imaginação, seja no plano da estrutura, seja no da inspiração. Observese, entretanto, que bem antes do século XIX existiram peças musicais inspiradas
Prelúdio. Por oposição à introdução, teoricamente ligada ao que a segue, o prelúdio (em alemão, Vorspiel ou Prãludium; em francês, prélude; em inglês, prelude; em italiano, preludio) é uma peça autônoma que serve para introduzir o corpo principal de uma obra de que faz parte, ou mesmo uma outra obra, ou ainda um grupo de obras sem relações diretas com ele. Por exemplo: breves intervenções de órgão antes das diversas partes da missa; ou, nas Suítes inglesas de Bach, os prelúdios que se distinguem das danças propriamente ditas. Por extensão, peça que introduz uma fuga, uma cantata, uma ópera, o que faz do termo, de certo modo, sinônimo de introdução ou abertura. Com seus prelúdios para piano, Chopin escreveu uma série de peças curtas que nada introduzem a não ser o silêncio ou a peça seguinte, mas cuja origem é possível buscar, em parte, no hábito dos pianistas improvisarem brevemente antes de tocarem. O único grande sucessor de Chopin na composição de prelúdios para piano foi Debussy. Rapsódia. O termo rapsódia (em alemão, Rhapsodie; em francês, rhapsodie ou rapsodie; em inglês, rhapsody; em italiano, rapsodia) designa geralmente, desde o
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século XIX, uma peça instrumental de essência romântica ou pictórica, com um só movimento e de forma livre (guardando certa proximidade com a improvisação) e caráter contrastado. Estudo. Os estudos (em alemão, Etüden ou, antigo, Übung; em francês, étude) são peças centradas em determinado problema técnico de execução, como os estudos de Czerny, mas não necessariamente incompatíveis com os mais elevados valores musicais, como os estudos para piano de Liszt, Chopin e Debussy. Impromptu. Peça de caráter lírico ou virtuosístico, de estilo improvisado, escrita quase sempre para piano (Schubert, Chopin). Na verdade, com diversas denominações — Bagatelles [Bagatelas], de Beethoven; Impromptus [Improvisos], Moments musicaux [Momentos musicais] ou simplesmente Klavierstücke [Peças para piano] de Schubert, etc. — muitas vezes escolhidas pelos editores e não pelos autores, o impromptu (palavra francesa) expressa a reivindicação pelas pequenas formas livres, impressionistas ou sonhadoras, face às grandes estruturas da sonata ou mesmo da fantasia. Mas esta liberdade não exclui a busca de uma arquitetura musical: as peças de Schubert, por exemplo, comportam quase sempre uma parte central análoga ao trio de um minueto ou de um scherzo; e muitas das obras de Schumann (Carnaval, Kreisleriana, etc.) são feitas de uma sucessão de pequenas peças cujo conjunto não é de forma alguma fruto do acaso. Está neste caso em ação a mesma estética romântica que substitui o longo poema épico, como a Henriade, de Voltaire, ou didático, como Les jardins [Os jardins], do abade Delille, por uma coletânea de poemas rigorosamente reunidos, como Les contemplations [As contemplações], de Victor Hugo.
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po di minuetto, intencionalmente arcaizante, mas onde a admirável frase confiada às trompas no trio atinge, talvez, o mais alto vôo poético em toda a obra. Música de câmara. Em sentido moderno, o termo aplica-se a composições para pequeno número de instrumentos solistas (de dois a nove, ou mesmo dez). Até mais ou menos 1740, antes da aparição dos concertos públicos, a expressão designava a música própria para ser tocada em residências particulares (mesmo que fosse a do rei), por oposição à música tocada em igrejas e teatros. Ainda bastante vaga até a metade do século XVIII, a distinção entre música de câmara, no sentido moderno, e música sinfônica ou para orquestra tornou-se clara com Haydn e Mozart. Do ano de 1770 até a morte de Beethoven e de Schubert, música de câmara designava exclusivamente o quarteto para cordas, apesar da existência dos quintetos de Mozart e de Schubert ou dos trios de Haydn e de Beethoven. Durante todo o século XIX, a música de câmara permaneceu como domínio privilegiado dos amadores; só depois, principalmente com Schõnberg, é que penetraria no campo do poema sinfônico e se encontraria com a orquestra num terreno completamente novo (a música "sinfônica" do século XX tende, volta e meia, a tratar como solista cada membro da orquestra, apesar do grande número de músicos). Atualmente, as fronteiras voltaram a ser bem delimitadas, e seria lícito perguntar se o fenômeno "música de câmara" não corresponderia definitivamente a uma atitude em face do fenômeno sonoro: a capacidade de alguém não só tocar e ouvir-se, mas também de recolher-se e ouvir os outros. A música de câmara, no sentido moderno, nascida pouco antes de 1789, seria ao mesmo tempo competição e dialogo. 1
Noturno. Em sua origem, espécie de serenata vesperal (notturno, em italiano), escrita para sopros ou cordas (Mozart). Durante o romantismo, peça de caráter elegíaco, em um só movimento, geralmente para piano. O pianista e compositor irlandês John Field (1782-1837) foi quem abriu caminho para os Nocturnes de Chopin, os Nachstücke de Schumann e os Nocturnes de Fauré, entre outros. Scherzo. Peça de forma análoga à do minueto (com trio central), só que mais rápida, mais tensa e mais expressiva. Tomou o lugar do minueto em alguns quartetos tardios de Haydn, antes que Beethoven e seus sucessoresfizessemdisso um procedimento corrente. Devem-se a Chopin quatro Scherzi para piano, todos peças independentes. Em italiano, a palavra significa "brincadeira" ou "diversão", mas o caráter humorístico aos poucos desapareceu. A expressividade do scherzo é quase sempre dramática, ou mesmo trágica, em Beethoven e nos românticos em geral. O sentido humorístico, entretanto, permanece ligado à indicação sherzando aposta a um andamento. Uma demonstração disso bastante interessante pode ser encontrada na Sinfonia n° 8, de Beethoven, cujos movimentos centrais são um Allegretto scherzando (uma brincadeira com o metrónomo de Maelzel) e um Tem-
É significativo que o quarteto para cordas tenha aparecido em torno de 1760, seguido logo depois do quinteto para cordas. Em Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, os quartetos e quintetos para cordas acompanham a divisão sinfônica em quatro movimentos, que progressivamente se foi impondo. O mesmo aconteceu com os trios para piano, violino e violoncelo, que constituem, em menor grau, um gênero maior. Já no que diz respeito aos divertimentos e serenatas executados por trios para cordas, ao quinteto para piano e cordas Die Forelle [A truta] de Schubert, ao septeto para sopros e cordas de Beethoven, ao octeto para sopros e cordas de Schubert, o número de movimentos pode ir de cinco a oito, conservando-se a antiga divisão da suíte. Alguns dos últimos quartetos de Beethoven chegam a ter de seis a sete movimentos, mas num sentido absolutamente contrário ao de um arcaísmo!
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A NOTAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO I
Observar as transformações da notação ao longo das sucessivas épocas da escrita musical permite apreender as características que os músicos esforçaram-se por privilegiar no mundo sonoro, considerando-se as mutações do pensamento estético. Seria imprudência admitir como o mais adequado o sistema atual de notação, que tende a universalizar o resultado de muitos séculos de tentativas. Nosso solfejo corresponde a uma concepção da música orientada para a fixação de certas propriedades do som: prioritariamente, a altura e a duração. Este mesmo solfejo, entretanto, pode revelar-se muito impreciso quando estão em jogo características como timbre e intensidade. Outras civilizações deram maior importância a qualidades deixadas em segundo plano por nosso sistema de notação. Arioja^ãrj^chi^ nesa, por exemplo, destinada a instrumentos de cordas pinçadas, revela-se de uma minúcia preciosa quando se trata de precisar o modo de ataque e de sustentação do som (existem inventariadas 26 variedades de vibrato para diversificar a execução instrumental). Querer um sistema de notação generalizável, que pudesse abranger todas as músicas, seria tentar impor um único sistema de pensamento e análise.
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Na verdade, pensamento musical e notação musical influenciam-se mutuamente, e a evolução da escrita depende muito das tensões e interações que têm lugar entre ambos. Movido pelas necessidades de uma estética sempre em evolução, o compositor é levado continuamente a transgredir as regras da notação vigente em sua época. Assim, ele contribui para criar uma notação musical que lhe faculta imaginar múltiplas extensões de seu pensamento. A ambigüidade dos signos de que o compositor se serve para transmitir suas idéias musicais dá à notação uma flexibilidade que lhe permite adaptar-se a diferentes contextos estilísticos e pessoais. Com isso, a notação cobre diversas funções: orienta a execução do intérprete, proporciona um repertório em que o compositor vai buscar as ferramentas necessárias para comunicar o que ainda está só em pro-
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jeto, conserva o que deve aparecer como o arcabouço da obra e, dessa forma, possibilita analisá-la, classificá-la. Contudo, a confiança no escrito parece-nos às vezes por demais presente, pois a notação só nos dá um quadro teórico abstrato, que ganhará corpo com a intervenção do intérprete. Já em 1741, declarava Depuits em seus Principes pour toucher de la vièle [Princípios para tocar viela] : "Não importa que nos afastemos um pouco da regra, contanto que interpretemos a peça de maneira tão sensível e perfeita como se a estivéssemos seguindo." De fato, a notação só funciona em sua relação com os subentendidos, cuja descrição dificilmente será bastante exaustiva, implícitos na prática de uma época. O compositor dispõe atualmente de um amplo leque de sistemas de transmissão, como se lhe fosse dado escolher entre diversos "tons de voz", desde os mais autoritários, até os mais tolerantes: uma vista de olhos sobre os vários séculos de notação deveria permitir-nos abordá-la de maneira relativizadora, como uma problemática essencialmente flutuante. Nenhuma notação pode pretender assegurar-nos um controle absoluto sobre uma obra, ou indicar-nos em que latitude deve o intérprete situar-se em face do que está escrito e qual a proporção de iniciativa pessoal lhe cabe. Os compositores, por sinal, jamais deixaram de jogar com a atração psicológica da notação, com o impacto que ela exerce sobre a interpretação. Basta citar as "notações para o olho" desenvolvidas no Renascimento por um músico italiano como Luca Marenzio, ou ainda a escolha de valores rítmicos tão breves por Beethoven para expressar certas passagens lentas de sua música, como o Adagio da sua Sonata para piano opus 111.
IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO Os primeiros documentos que podemos consultar sobre a notação musical no Ocidente datam aproximadamente do século III a.C, originários da Grécia: é uma notação que se mostra essencialmente alfabética, ou seja, as notas da escala estão associadas a letras do alfabeto, em diferentes posições. Na Grécia antiga, sem dúvida, conviveram muitos sistemas de notação, destinados tanto à voz como aos instrumentos então usados (na forma de tablatura ). Na época alexandrina (século IV d.C), por influência de Aristóxeno, a oitava era dividida em 24 partes, o que inclui intervalos de quarto de tom. Entretanto, tais sistemas parecem mais ligados à teoria que à prática: é como se devessem, antes de tudo, corresponder a uma ordem ideal abstrata, capaz de revelar as conexões profundas da música com as ciências da matemática e da astronomia. No século IV, contam-se no mínimo 1.260 sinais ou interpretações desses sinais. 1
Notação da música polifónica por meio de letras, algarismos e diferentes símbolos dispostos em tabelas, como as tabelas matemáticas.
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A notação e a interpretação
Boécio (475-526), o último teórico da música antiga, nos transmitiu, em caracteres latinos, a notação alfabética da Grécia, associando quinze notas correspondentes a uma extensão de duas oitavas às quinze primeiras letras do alfabeto. Pouco mais tarde, esta classificação iria limitar-se às notas compreendidas no interior de uma oitava, de A a G, e foi justamente este o sistema alfabético de correspondência que se difundiu nos países anglo-saxônicos e na Alemanha. Sem dúvida, mais até que as teorias da Grécia, a cantilação hebraica e a recitação litúrgica bizantina exerceram influência decisiva sobre as primeiras músicas da cristandade e sobre a futura notação neumática. A etimologia da palavra "neuma" é discutível: tanto pode proceder de pneuma (sopro), quanto de neuma (sinal). Como sinal, o neuma poderia estar ligado ao sistema de gestos que se encontra na cantilação bizantina sob o nome de "quironomia": gestos indicativos de uma elevação, um abaixamento ou uma inflexão da voz, feitos pelo regente do coro, o Domestikos, sempre situado em relação aos cantores de maneira que todos estes pudessem seguir os movimentos de suas mãos. Os contornos da linha melódica eram, portanto, espacialmente representados de maneira analógica, bastando apenas um passo para que se realizasse a transição do gesto à inscrição gráfica. Aliás, este destaque "espacializado" que se confere às inflexões vocais nas formas de notação neumáticas está presente em outras culturas que não a nossa (cf. a salmodia budista, o nó japonês, etc). Bem entendido, as fórmulas neumáticas, para os cantores, constituem apenas pontos de referência, e o papel da notação é essencialmente o de um lembrete, um apoio para a memória, por assim dizer. A notação ocidental visivelmente instaurou-se em função da voz e de seus registros, bem como das propriedades gramaticais das línguas grega e latina. Desde o século II a.C, Aristófano de Bizâncio havia concebido um sistema de notação para a língua grega em que o acento agudo indicava a elevação da voz, o acento grave sugeria o seu abaixamento, o acento cincunflexo sinalizava uma elevação suave e um ponto marcava a queda, seguida da interrupção da voz, no fim da frase. O próprio termo acento (accentus - ad cantus) nos faz mergulhar na origem da constituição melódica. Os primeiros neumas derivam espontaneamente destas regras prosódicas pelo fato de a Igreja do Oriente recorrer à língua grega para 1er as Sagradas Escrituras: os neumas, de certo modo, vieram ampliar as implicações musicais do texto declamado. Esta a razão por que estão inscritos, sobre as palavras destinadas a serem cantadas, sinais que, ao invés de indicarem um determinado som, como em nossa notação simbólica, abrangem várias notas de maneira aproximada. Os neumas, cuja criação data do século VII, não foram utilizados apenas na música reli1
Do latim cantillare (cantarolar). Forma de melodia religiosa mais próxima da declamação do que do canto propriamente dito. Trata-se, por conseguinte, de um recitativo litúrgico, inicialmente usado nas sinagogas para a leitura de textos da Bíblia.
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Léxico musical explicativo
giosa; ainda vamos encontrá-los, por exemplo, no século XIV, na arte dos mestrescantores na Alemanha. Estes sinais "estenográficos" conferem grande flexibilidade ao canto: os Aleluias, por exemplo, em geral dão oportunidade a todo tipo de extravasamentos melódicos, que concretizam de certa forma o fervor da fé. Cada neuma corresponde a uma sílaba do texto, mas, no caso da última sílaba do Aleluia, é uma verdadeira ramificação de natureza melódica que se projeta da escritura. Certo número de efeitos, que os neumas por si só não poderiam traduzir, são expressos por sinais anexos, como o apóstrofo para indicar uma repercussão da voz (o strophicus), ou um Vpara o vinnula (literalmente, "que relincha"). Já alguns efeitos, como os "neumas liquescentes", evocam técnicas de canto praticadas no * Oriente. Estes primeiros ornamentos eram muito considerados por sua difícil execução, e Guido d'Arezzo aconselhava que, caso não se conseguisse introduzir no canto esses sons "produzidos naturalmente pelos italianos", as notas fossem cantadas de maneira plana^como sucede geralmente com a interpretação do canto gregoriano nos dias de hoje. Nesse tipo de notação, não estão fixados os intervalos e as alturas dos sons. Quando ela se organiza em função de uma linha ideal, traçada depois com uma ponta seca, que situa a nota fá, a notação é dita diastemática (diastema = intervalo). Nesse caso, a superposição dos grafismos no sentido vertical sugere, de modo relativo, as alturas dos sons. A notação diastemática difundiu-se durante os séculos X e XI; nela encontramos a inscrição de letras ao lado dos neumas, para maior precisão. As indicações rítmicas permanecem mais incertas; entretanto, os episemas, pequenos traços colocados em cima ou embaixo do acento grave, que implicam o prolongamento de um som, e abreviações como í (tenere = manter) ou x (expectare = esperar) prenunciam já os sinais de accelerando e rallentando. Com Hucbald, o presumido autor do manual intitulado Musica enchiriadis, que data aproximadamente do fim do século IX, a notação alfabética associou-se aos neumas para fornecer pontos de referência mais estáveis no que diz respeito à altura. Hucbald desenhou pautas de linhas paralelas (que chegavam até dezoito em certos casos), com abreviações colocadas antes de cada linha indicando o intervalo (se de tom ou de semitom) que deveria ser transposto de uma linha para outra, e "decupou" o texto pelas Unhas da pauta de modo a casar as linhas do texto com a da curva melódica. A forma gráfica do neuma foi aos poucos se desagregando, até se decompor em pontos isolados ou unidos por "ligaduras", no caso dos melismas cantados numa única sílaba. A notação quadrada posta em uso na França depois do século XII, principalmente pelos trovadores (troubadours) e pelos troveiros (trouvères), foi de certo modo deduzida dos primitivos neumas, e a evolução que teve lugar a partir dela até se chegar à notação mensurada mostrar-se-á de uma lógica implacável. As ligaduras implicam, com efeito, considerações rítmicas entre as notas que consti-
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tuem uma fórmula melódica: sua interpretação depende do contexto musical, e a noção de modo rítmico, por isso mesmo, não tardaria a impor-se. Em 1025, Guido d'Arezzo (995-1050) enfatizava a importância das linhas na leitura e, para facilitá-la, estabeleceu diferentes cores — amarelo para o ut, vermelho para o fá —, que passaram a ser usadas freqüentemente com este propósito. Para evitar confusão, letras (à guisa de claves) foram colocadas antes das linhas. As formas das claves atuais derivam das formas dessas letras: F (clave de fá), C (clave de dó) e G (clave de sol). Ao que tudo indica, também teve origem com Guido d'Arezzo a denominação das notas ainda hoje usadas, sobretudo na França, na Itália e nos países de cultura e língua latinas — a qual teria provindo de um hino muito conhecido na época: "UT queant Iaxis I REsonare fibris I Mira gestorum I FAmuli tuorum I SOLve polluti I LAbii reatum I Sánete Johannes" (o S e o J=I são as iniciais que dão o SI). O nome da sétima nota, si, levou muito mais tempo para se impor. De fato, em decorrência de sua situação na escala, esta nota pode ser "bemolizada" ou natural; era, então, assinalada por um b de forma redonda se estivesse colocada um semitom acima do lá, ou por um b de forma quadrada no caso de estar situada um tom acima do lá. Disso resulta a forma atual do bequadro, saída diretamente da notação dessa época. A partir do século XII, o sinal de bemol passou a ser colocado diante do signo do sétimo grau da escala para indicar que o si está separado do lá por um semitom; mas, pouco a pouco, as letras foram-se desprendendo da nota si para adaptaremse indiferentemente aos outros graus da escala. O bemol já abaixa o mi no século XIV, ao passo que o bequadro podia elevar o fá, o dó e o sol. Na época do Roman de Fauvel [Romance de Fauvel], apareceu o sustenido, cuja forma advém do b cortado por uma barra. Desse momento em diante, as funções destes sinais não tardarão a ser regulamentadas. A partir do século X, começou a aumentar o interesse pela precisão de uma escrita que expressasse as relações de duração, o que coincide com a aparição da polifonia. No século XI, as "simples", punctum et virga, tinham sensivelmente a mesma duração, enquanto uma clivis — duas notas unidas por uma ligadura — ou um poãatus valiam duas "simples". No final do século XII, a "simples" deixou de ser considerada indivisível, para tornar-se uma "longa" que podia decomporse em "breves". Delineia-se, assim, uma concepção proporcional dos valores de duração. Em resposta às necessidades do moteto, a "notação quadrada" adaptou-se, de certo modo, à concepção modal do ritmo, codificada no século XIII por teóricos 1
Poema medieval francês de Gervais du Bus. Um dos manuscritos do Roman de Fauvel comporta numerosos elementos musicais monofônicos e polifónicos, formando 167 números, numa das mais vastas coletâneas da música francesa do século XIV. (N. T.)
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SINAIS NEUMÁTICOS
NOTAÇÃO
NOTAÇÃO
QUADRADA
MODERNA
virga
punctum
podatus
torculus
porrectus
como Francon de Colonia, para atingir seu pleno desenvolvimento no século XIV, com a Ars Nova. A passagem para a notação mensurada, acrescida de novos valores como o da semibreve por volta de 1250, constitui uma mutação de suma importancia no pensamento musical. Dali por diante, os valores de ritmo iriam organizar-se segundo modos, como disso dão testemunho os escritos teóricos de Johannes de Garlândia, que definiu, por volta de 1240, seis modos principais. Assim, a "música mensurada" dá os meios para m^tmguir nitidamente duas categorias de canto: um marcado pela "rítmica", outro pela "métrica". Se o primeiro depende fundamentalmente do ritmo interno de cada verso (o que, no "cantochão" Htúrgico, implica precisamente um modo de canto muito ligado e contínuo), o segundo insinua relações entre notas longas e breves ligadas a uma concepção mais puramente musical do tempo. "O que distingue o ritmo e o metro", declarava Rémi d'Auxerre no século EK, "é o fato de o ritmo ser apenas uma sucessão livre e harmoniosa de palavras, sem proporção, nem sistema, mdefinida, isenta de qualquer lei, além de não ter pés métricos organizados; o metro, ao contrário, é uma sucessão de pés determinados e definidos." Os valores do ritmo são teoricamente divisíveis em três partes (divisão perfeita) ou duas (divisão imperfeita). No século XIII, a divisão ternária parece prevale-
A notação e a interpretação
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cer largamente, pois o algarismo três reflete a perfeição da Santíssima Trindade. "A música começa com o número 3" escreveu Johannes de Mûris, "este número elevado ao quadrado produz 9, e o 9 contém os elementos de todos os outros números, pois com ele temos de retornar à unidade." Na prática, as divisões dependem do contexto no qual se encontra inscrita cada figura de nota. Assim, no sistema de notação concebido por Petrus de Cruce mais ou menos no final do século XIII — a notação dita petroniana —, a breve pode valer de duas a sete semibreves, e, mais tarde, de duas a doze. A complexidade de tais sistemas é grande, o que não deixa de causar certa confusão. Entretanto, as "ligaduras", cujas funções haviam se tornado menos equívocas a partir da segunda metade do século XIII, serviam com freqüência para garantir a unidade de cada grupo de notas. Esta complexidade foi motivo de descontentamento para um bom número de músicos. O teórico inglês Walter Odington (século XTV) lamentava que se houvessem inventado quase tantos novos sinais, quantos eram os copistas de música existentes no mundo. O século XIII, com efeito, revelou-se particularmente fértil em invenções e aperfeiçoamentos no que diz respeito à notação:figurasde silêncio ou pausa (pequenas barras verticais) que se vão tornando cada vez mais precisas, barras de separação, que deixam já pressentir o papel das futuras barras de compasso, como as de certas partituras de Pérotin, separando as cláusulas nas obras polifónicas, e finalmente as letras f,ceg, estilizadas, que se colocam no começo das pautas, como claves indicadoras do registro vocal. A partir do fim do século XIII, "modo" passou a designar a maneira de dividir a longa; "tempo", a forma de divisão da breve; e "prolação", a divisão da semibreve; por exemplo, a "prolação maior" corresponderá a uma divisão da semibreve em três mínimas e a "prolação menor" corresponderá a uma divisão em duas mínimas. Em seu tratado Ars Nova, escrito em torno de 1320, Philippe de Vitry estende as divisões binária e ternária a todos os valores rítmicos, pondo desse modo em questão a supremacia do "modo" ternario, que prevalecera durante o século precedente: os modos ternários são ditos "perfeitos" e os binários "imperfeitos". Para indicar as passagens do ternário ao binário, tornou-se necessário inventar sinais capazes de dar conta da natureza da divisão e do valor a ser dividido; essa a razão por que Philippe de Vitry designou o "tempo perfeito" por um círculo (a imagem da perfeição) e o "tempo imperfeito" por um semicírculo, do que derivam os sinais C e (p para indicar respectivamente os compassos de quatro e dois tempos. Também a mudança de cor servia para indicar a passagem de um modo de divisão a outro: por exemplo, o vermelho para indicar a passagem do perfeito ao imperfeito. Embora os sistemas de notação variassem muito de país para país, os princípios definidos em Paris pelos adeptos da Ars Nova se foram gradativamente impondo e tornaram possível canalizar aquilo que tendia a dispersar-se. Novos valores rítmicos foram introduzidos, e o músico passou a dispor de um sistema que se aproximava visivelmente daquele que iria constituir a notação atual. O "ponto",
Léxico musical explicativo
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A notação e a interpretação
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contudo, ainda continuava a ter funções diferentes de acordo com o contexto em que era usado: tanto aumentava a duração da nota em metade de seu valor (a função que hoje lhe damos), como servia de sinal de separação colocado depois de um grupo de notas que formavam um tempo completo. Com a Ars Nova, a escala de cinco gradi (graus) destinada a determinar o valor do "tempo primeiro" (a unidade mais longa a ser fracionada) leva-nos diretamente à noção de "tempo". Tal preocupação, que concerne à duração absoluta e não mais apenas às proporções entre os valores relativos das notas, parece ser própria dos séculos XIII e XTV. Johannes Verulus de Agnania (século XIV) tentou estimar o valor exato da breve em relação ao instans ("instante"), considerado a menor unidade sideral. Todas estas pesquisas, decerto, mantinham estreita relação com os desenvolvimentos da ciência e da astronomia. A partir do século XV, com Dufay e seus contemporâneos da Escola da Borgonha, um movimento de simplificação e esclarecimento parece operar-se; a única diferença notável é a importância crescente das notações "brancas", em que as figuras de notas aparecem vazias. Por volta de 1400, tais notas "vazias", que haviam começado a ser usadas na metade do século XIV, vieram ocupar o lugar das "pretas" para assinalar a passagem a outro modo de divisão, como sucedia com a cor vermelha, preconizada por outros sistemas de notação com este propósito. Tais distinções, todavia, tornam-se logo caducas com o desenvolvimento subseqüente. O acontecimento que influiu decisivamente na transformação da escrita musical foi a imprensa, inventada durante a segunda metade do século XV. O testemunho mais antigo a esse respeito é dado pelo Saltério de Mogúncia, datado de 1457. A imprensa conduzirá irreversivelmente à padronização da escrita musical, inclusive reduzindo e depois suprimindo as ligaduras, relacionadas em demasia com a grafia manuscrita. Os procedimentos de gravação (a imprensa musical veio a adotar a tipografia somente quando o século já estava para acabar) influiriam, de então por diante, sobre o formato das figuras das notas: de quadradas ou em forma de losango, passam a arredondadas; as variantes individuais tendem a desaparecer para dar lugar a normas que haveriam defirmar-secada vez mais até chegarem ao ponto em que hoje se encontram. Se a notação tem incontestavelmente tendência a uniformizar-se, por outro lado ela é fartamente nutrida pela inventividade e o talento improvisador dos músicos, que muitas vezes exercem, nessa época, o triplo papel de compositor, instrumentista e cantor. A este propósito, bastaria citar as obras vocais de Dunstable ou as da Escola da Borgonha, que deixam ao cantor da parte superior a possibilidade de variar a linha melódica e ornamentá-la com cadências que realcem suas qualidades de solista. Assim é que as peças renascentistas estão repletas de "diminuições" (a fragmentação das notas longas para inserir toda sorte de melismas, escalas e ornamentos) e passaggi, fórmulas melódicas que eram aprendidas de cor para serem usadas no interior dos intervalos melódicos escritos. Exis-
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Léxico musical explicativo
tem obras didáticas sobre o assunto, que são verdadeiros repertórios de efeitos a serem enxertados num texto fixado pela escrita e ajudam os cantores a adaptá-los às obras de Willaert, Lassus e outros. O crescimento do papel do virtuose profissional, a partir do último quartel do século XVI, com mestres do porte dos Gabrieli, Merulo ou Cabezón, só faz confirmar a importância da contribuição individual no que diz respeito à interpretação. Não seria o caso de nos alongarmos aqui na descrição dos múltiplos efeitos (tremoli, tremoletti, groppi, mordentes...) que só muito esquemáticamente apareciam marcados nas partituras, pois dependiam antes de mais nada da personalidade do exécutante. Basta uma olhada nos testemunhos da época para sabermos que a interpretação não devia qualquer obediência à partitura fornecida pelo compositor, a qual representava nada mais que um pretexto para excursões de toda sorte da parte do músico. "O caráter da coloratura depende da habilidade e da individualidade do exécutante: a minha opinião é que todas as vozes devem ser ornamentadas, mas não simultaneamente; dessa maneira, cada uma delas sobressairá por sua vez" (Hermann Finck, Practica musica, 1556). Os ornamentos constituem a parte decorativa com relação à estrutura de base da obra que se encontra fixada pela notação. As diferentes maneiras de representar os sinais que correspondem aos ornamentos, as quais variam de acordo com os compositores, com os países, etc, marcam bem esta distinção de estatuto entre aquilo que deve ser considerado como arquitetura determinante da obra e aquilo que está apenas florindo nos arredores. Certos sinais gráficos ligados a ornamentos, como os trinados, parecem sair naturalmente dasfigurasneumáticas e sugerir, como no passado faziam os neumas, o contorno aproximativo de um melisma decorativo. Assim, "transcrever os ornamentos equivale" — segundo o musicólogo Charles Burney—"a repetir o nonsense e a impertinência de uma conversa que, se já inicialmente era aborrecida, mais insípida ainda irá tornar-se à medida que o tempo e as maneiras que a engendraram vão ficando cada vez mais distantes". Durante o Renascimento, coexistiram vários sistemas de notação por conta da própria natureza dos instrumentos. A "tablatura", cuja origem remonta à Idade Média, teve notável progresso, talvez porque refletisse, com particular acuidade, o aspecto visualizado da interpretação em certos instrumentos, como os de teclado J? os de cordas pinçadas. A partir do século XIV, o deslocamento da atividade musical da Igreja para a Corte favoreceu a expansão da prática instrumental e de sua aprendizagem. Com o aumento do número de instrumentistas amadores, apareceu a necessidade de se inventarem notações mais diretamente ligadas a certos instrumentos do que ao solfejo, definido em função das limitações vocais. Através das informações que proporciona com relação ao dedilhado, a tablatura, utilizada até o século XVIII, mostrava como tocar, ao invés de pôr a ênfase naquilo que devia ser tocado, como é o caso da notação convencional, a qual, em compensação, tem a vantagem de aplicar-se a qualquer instrumento, seja qual for.
A notação e a interpretação
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Os séculos XVll e XVIII O sistema de notação só haveria de estabilizar-se de maneira clara a partir do século XVII. Numerosas variantes podem, entretanto, ser assinaladas, principalmente no que diz respeito ao número de linhas da pauta musical (por exemplo, seis para a mão direita, oito para a esquerda, na música de órgão de Frescobaldi), embora a pauta de cinco linhas viesse cada vez mais se generalizando, salvo no caso do cantochão, tradicionalmente escrito em quatro linhas. Na virada do século XVI para o século XVII, a barra de compasso, muito utilizada nos movimentos de dança, tornou-se mais freqüente e ganhou as funções que lhe damos hoje. Em vez de servir de ponto de referência para a leitura, como nas polifonias primitivas, a barra começou a servir também para dividir as seqüências musicais em compassos iguais e para sugerir o lugar do acento, o que de certa forma vem demonstrar que, não muito antes, na época em que o madrigal estava em seu apogeu, o acento devia ser relativamente livre, ou melhor dizendo, deveria estar ligado à estrutura poética. De fato, até o século XVIII não há como questionar a flexibilidade da notação e, por conseguinte, também da interpretação musical. Isso é plenamente confirmado pela importância dos ornamentos, de um modo de escrita como o baixo cifrado e de um modo de expressão vocal como o recitativo. O mesmo poderíamos dizer desta surpreendente declaração de Couperin: "Nós escrevemos uma coisa e tocamos outra." O artigo "Interpretation" da Enciclopédie Fasquelle, redigido por Marc Pincherle, está repleto de testemunhos sobre a tolerância para com o intérprete. Nos séculos XVII e XVIII, os tratados escritos sobre como interpretar a notação (os quais não são de natureza muito diversa das introduções que costumam preceder certas partituras atuais) sublinham a marcante variabilidade dos sistemas de notação. É claro que não poderia deixar de haver abusos na arte de ornamentar, e o aspecto "decorativo" acabava, algumas vezes, por importar mais que a própria obra, arriscando prejudicar a inteligibüidade do texto musical. Era o que denunciavam, no começo do século XVII, os adeptos da Escola Florentina, como Galilei, Peri e Caccini, entre outros. Isso os levou a reduzir os ornamentos a efeitos (affetti) mais expressivos e mais concisos que as passagi. Este interesse pela expressividade fará com que tais compositores introduzam efeitos como a esclamazione (o decrescendo e crescendo de uma nota) e o rubato (literalmente, "roubado"), que consiste em relaxar a rigidez do tempo: o rubato viria a mfluir consideravelmente sobre a interpretação durante o romantismo, em particular sobre a interpretação pianística. Estes "efeitos", de acordo com os compositores e os países, recebiam diferentes nomes; poderíamos citar os agréments do estilo francês (de 1650 a 1750), ou o que 1
Atualmente, a barra dupla marca o fim de uma seção ou da peça. No interior da música, pode também indicar uma mudança de armadura ou de compasso. Precedida por dois pontos verticais, a barra dupla passa a indicar que se deve repetir a seção ou a peça.
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Léxico musical explicativo
Designação verbal das notas e das escalas (como indicação, por exemplo, para discos provenientes de países estrangeiros)
Português
Francês
Inglês
Alemão
Lá dobrado bemol
La double bémol
A double flat
Asas
Lá bemol
La bémol
Aflat
As
Lá
La
A
A
Lá sustenido Lá dobrado sustenido
La dièse
A sharp
Ais
La double dièse
A double sharp
Aisis
Si dobrado bemol
Si double bémol
B double flat
Heses
Si bemol
Bflat B
B
Última sonata, de Schubert: B-dur
Si
Si bémol Si
H
Sinfonía Inacabada, de Schubert:
Si sustenido
Si dièse
SÍ dobrado sustenido
Si double dièse Ut double bémol
B sharp B double sharp
His Hisis
Exercícios práticos
Sonata opus 110, de Beethoven: As-dur
H-nwll
Dó dobrado bemol
C double flat
Ceses
Cflat
Ces
Dó
Ut bémol Ut ( = Dó)
C
C
Sinfonía n° 5, de Beethoven: C-moll
Dó sustenido
Ut dièse
C sharp
Cis
Quarteto n° 14, de Beethoven: Cis-moll
Dó dobrado sustenido
Ut double dièse
C double sharp
Cisis
Ré dobrado bemol
Ré double bémol
D double flat
Deses
Ré bemol Ré
Ré bémol
Des
Ré
D flat D
Ré dobrado sustenido
Ré dièse
D sharp
Dis
Mi dobrado bemol Mí bemol
Ré double dièse
D double sharp
Disis
Mi double bémol
Eses
Mi
Mi bémol
E double flat Eflat
Mi sustenido Mi dobrado sustenido
Mi Mí dièse
E sharp
Eis
Fá dobrado bemol
Mi double dièse
E double sharp
Eisis
Fá bemol Fá
Fá double bémol
F double flat
Feses
Fá bémol
F flat
Fes
Fá sustenido Fá dobrado sustenido
Fá
F
F
Fa dièse
F sharp
Fis
Sol dobrado bemol
Fa double dièse Sol double bémol
F double sharp
Fisis Geses
Dó bemol
E
D
Es E
Sinfonia n° 9 de Beethoven: D-matt
Sinfonia Heróica, de Beethoven: Es-dur
Adagio da Sonata opus 116, de Beethoven: Fis-moll
Sol bemol Sol Sol sustenido
Sol bémol Sol
Sol dobrado sustenido
G double flat G flat G
Ges G
Sol dièse
G sharp
Gis
Sol double dièse
G double sharp
Gisis
maior
majeur
major
dur
menor
mineur
minor
moll
Sinfonia K 500, de Mozart: G-mall
0 dó só foi introduzido no século XVII pelos italianos, que achavam difícil pronunciar ut.
A notação e a interpretação
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os ingleses denominam grace e os alemães Manieren e Verziehungen. Uma das qualidades da arte francesa foi precisamente a diversidade dos agréments, que eram inscritos levando-se em conta o contexto musical. A ornamentação, além de ser uma brecha por onde se podia contemplar a invenção do músico solista, era também uma maneira de "embelezar" notas longas, impossíveis de serem sustentadas por certos instrumentos, como o cravo, e de fazer com que uma obra estivesse sempre apresentando novas facetas, conforme a orientação que lhe dava o intérprete. Alguns compositores definiram seus repertórios de ornamentos fazendo uma "tabela" para eles (Carl Philipp Emanuel Bach, Couperin, Chambonnières, Rameau, Anglebert, Tartini, etc); outros deixavam os ornamentos a critério do intérprete. Mais tarde, determinados ornamentos vieram a ser transcritos, isto é, passaram definitivamente a fazer parte do discurso musical. Mas a tendência que se foi firmando entre os compositores (Leopold Mozart e Carl Philipp Emanuel Bach, por exemplo) era a de ter sob controle o uso que se fazia dos ornamentos em suas músicas. Em muitos casos, estará inclusive explicitado que os intérpretes deveriam abster-se de ornar as notas escritas, ou então limitar-se ao emprego de alguns agréments. Certas edições, por exemplo das Sonatas opus 5 de Arcangelo Corelli (1700), apresentavam simultaneamente uma versão simples, despojada de qualquer artifício, e outra na qual todas as obras estão ornamentadas. O ornamento mais freqüentemente usado era o trinado que, duzentos anos depois, no século XLX, junto com a apojatura, permaneceria como um dos últimos vestígios de uma prática que, até o século XVIII, teve um papel incontestável e persistiu nas óperas, particularmente nos recitativos, de Gluck e de Mozart. Muito mais que hoje em dia, o músico instrumentista (ou cantor) era como que um cúmplice do compositor, que — como Corelli, Haendel ou Tartini — transmitia-lhe algumas vezes apenas as "grandes Unhas" da obra, um esboço que só ganharia corpo através do talento pessoal do intérprete. As repetições da capo das árias da época barroca tornaram-se, para os cantores, pretextos para demonstrações de virtuosismo: era uma maneira de escapar do jugo da obra, fazendo com que o intérprete se destacasse diante do auditório. A arte do acompanhamento estava naturalmente orientada para uma prática em que a interpretação participava da responsabüidade composicional, já que fre¬ qüentemente apenas se lhe fornecia um esboço dos acordes que deviam ser executados com relação à parte soUsta. Por exemplo, em seu Nouveau traité de l'accompagnement au clavencin [Novo tratado de acompanhamento ao cravo], de 1707, Saint-Lambert admitiaque os acordes pudessem ser substituidos por outros e que era necessário adornar a Unha do baixo, estando ela insuficientemente preenchida, com toda a sorte de enfeites. Um acompanhador deveria compreender por meias palavras aquilo que o compositor deixava subentendido. Para tanto, mais do que de sua técnica instrumental, ele devia estar nutrido dos princípios essenciais da composição musical, da ciência da harmonia e do contraponto. Em 1752, por
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Léxico musical explicativo
exemplo, Quantz prevenia que era melhor, para um estudante, que ele se abstivesse de tocar um solo ao estilo italiano enquanto não possuísse conhecimentos de harmonia. A improvisação recebera considerável impulso desde o século XIV. O contraponto improvisado, vocal ou instrumentalmente, a partir de melodias do cantochão, sobretudo o contrapunto alla mente, que fez grandes progressos na Itália do século XVI, caminhou lado a lado com a improvisação poética, vindo ambos a constituir procedimentos que fizeram grande sucesso nas cortes principescas da Europa. Formas como a toccata, o ricercare, o prelúdio ou a fantasia convinham particularmente ao improviso, bem como as suítes de danças, que permitiam aos músicos pôr à mostra o seu sentido da variação, pois em certos casos era indicada uma única linha melódica, vindo as outras enxertadas ao sabor da interpretação. A técnica do baixo contínuo (cifrado), que se perpetuou por quase urn século e meio, era explicitamente dirigida à capacidade de improvisação do instrumentista, que contava assim com a possibilidade de harmonizar a linha do baixo prescrita ao seu instrumento particular. Com efeito, a formulação do baixo contínuo era suficientemente "geral" para admitir a realização do acompanhamento por diferentes instrumentos, como a tiorba, o cravo, o órgão, etc, levando-se em conta as circunstancias que presidiam à execução, as condições acústicas do lugar, etc. Na época barroca, em que era assegurado ao intérprete um lugar central, grande parte da interpretação musical continuava impregnada da viva relação para com "mestres" que inculcavam o "bom gosto" na arte de interpretar. É que, até o fim do século XVIII, os intérpretes pareciam essencialmente preocupados com o estado da linguagem musical, e não com a notação de suas técnicas. À medida que a atividade do intérprete distinguia-se da do compositor, que as técnicas de um e de outro foram ganhando em especificidade, começou a diminuir a parcela de liberdade que tocava ao intérprete, que se foi tornando cada vez mais submisso àfidelidadeao texto escrito. Esta tendência — que, historicamente, começou a ampliar-se no final do século XVIII — coincide com a afirmação do direito moral do compositor sobre sua obra, do sentimento de propriedade artística. Em 1791, por exemplo, Grétry expressou sua esperança de que "em breve haverá leis que farão respeitar as propriedades artísticas". Se observarmos as características da atividade musical nos séculos XVII e XVIII, é forçoso notar que as licenças eram inumeráveis e que o sacrossanto respeito que certos músicos e musicólogos preconizam hoje para com as obras do passado era totalmente estranho à atitude então adotada. A obra, portanto, parecia infinitamente menos protegida. A noção de plágio só apareceu um tanto tardiamente. As próprias editoras nem sempre mostravam-se muito preocupadas com seus produtos. O jornal L'Avant Coureur, por exemplo, noticiava em 1769: "Os duos de violino de de Machi, já anunciados, não serão vendidos com este nome, porque sucede tratar-se dos mesmos anteriormente publicados por Domenico Wateski..." Obras que nos parecem
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hoje objetos culturais que merecem ser tratados com infinita deferência e cuidados foram manipuladas em sua época com a mais desenvolta indiferença. Era freqüente intercalar, em uma dada obra, o fragmento de outra obra, de compositor diferente: "Este trecho pode servir de andante numa sinfonia caso se reforme alguma delas; ele ficaria muito bem antes do Allegro da sinfonia do outro caderno", escrevia Gossec em 1768, referindo-se a uma peça para duas trompas, duas clarinetas e dois fagotes. Assim é que as primeiras representações do Orfeo [Orfeu], de Gluck, inclusive a sua estréia em 1762, estavam "trufadas" com inserções de obras de Johann Christian Bach, Haendel, Mazzinghi e outros. Em certos casos, os acréscimos podiam ser integrados de acordo com o gosto do exécutante: "Aqui, toca-se qualquer moteto que se deseje", indicava Charpentier em muitas de suas obras.
Indicações escritas para a execução e a interpretação Estas indicações são geralmente dadas em italiano, poucas em latim. Traduziram-se apenas as que possam provocar dúvidas no leitor. Parece inútil lembrar que affettuoso quer dizer afetuoso, agitato agitado, grave grave, grazioso gracioso, moderato moderado, etc. Para as indicações relativas a andamentos, cf. supra p. 58; para as que dizem respeito às variações de dinâmica, cf. supra p. 61. ADVÉRBIOS, GERUNDIOS E PARTICIPIOS QUE MODIFICAM O ANDAMENTO ( O U A EXPRESSÃO) Poco, Poco apoco, Un pocopiù,
Più, Molto più: pouco, pouco a pouco, u m pouco mais,
mais, muito mais. Molto, Non molto, Non tanto, Non troppo: muito, n ã o muito, n ã o tanto, n ã o demais. Assai: bastante, tanto quanto necessário. Quasi: quase (Andantino quasi allegretto). Mosso, Più mosso, Stretto: animado, mais animado, cerrado ou apressado. Accelerando. Rallentando, Ritardando, Ritenuto, Slargando: alargando. Ad libitum (latim), A piacere, Rubato, Senza tempo: à vontade, ao bel-prazer, n ã o rigorosamente (falando-se do tempo), sem compasso. TERMOS RELATIVOS À EXPRESSÃO Affettuoso. Agitato. Appassionato. Cantabile (cantante, falando ao coração). Con anima (com alma). Con brio (com í m p e t o ) . Confiwco. Con moto (com movimento). Dolente (doloroso). Espressivo ou Con espressione. Grave. Grazioso. Maestoso
(majestoso).
Moderato. Mosso (animado). Risoluto (com decisão). Scherzando (brincando com humor). Serioso. Sostenuto (sustentado, com firmeza). Spiritoso ou Con spirito. Vivace ou Vivo (com vida, vivaz). TERMOS RELATIVOS À EXECUÇÃO Legato (notas ligadas), que é o oposto de Staccato (notas bem destacadas umas das outras). Tenuto, Sostenuto (som sustentado, muito sustentado). Leggiero (ligeiro, com leveza). Manato (com o ritmo bem marcado). Pesante (pesadamente, com insistência).
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As adaptações geralmente admitidas eram dos mais diferentes tipos: • redução, como no caso das Indes galantes, [Indias galantes], obra publicada em 1735 por Rameau com o subtítulo de Ballet réduit à quatre grands concerts [Balé reduzido a quatro grandes concertos]; • corte, como acontecia com Frescobaldi, que admitia serem as seções de suas obras tocadas na íntegra ou em parte: "Nas canzone, pode-se terminar nas cadências, e do mesmo modo nos ricercari, sempre que estas peças parecerem muito longas"; ou com Rameau, que indicou: "Pode-se, falando em geral, dispensar os doubles (variações) e as repetições num rondó que se mostre muito difícil", em suas Pièces de clavecin [Peças para cravo], publicada em 1724; • deslocamento: "Além do mais, embora tenham estes versículos sido escritos para o Kyrie, alguns poderão servir, caso se julgue oportuno, a outros usos", assinalava Frescobaldi, em suas Fiori musicali [Flores musicais]. Tais prescrições provam incontestavelmente que o discurso musical admitia enorme diversidade e que o compositor não julgava os múltiplos desvios dos intérpretes como um atentado à personalidade de sua obra. A redução do número de vozes, por exemplo, era muitas vezes tolerada, até pelo próprio Mozart. Em 1783, por ocasião de vários concertos, ele insistiu para que "fosse dada aos exécutantes a faculdade de escolher entre tocá-los com a orquestra completa, em que se incluiriam oboé e trompa, ou somente a quattro". Havia ainda o costume nada incomum de transformar certas partes vocais em partes instrumentais. Por outro lado, o efetivo vocal ou instrumental para uma mesma obra podia aumentar ou diminuir (por exemplo: fazia-se, de um concertino para três solistas e grande orquestra, um trio de solistas), sem que a identidade da obra fosse por isso afetada. Mas, além da flexibilidade de que as obras compostas até o século XVIII dão testemunho, é preciso chamar a atenção para a relativa indiferença de que eram objeto determinadas propriedades da execução musical, como o ritmo e a altura das notas, que aparecem hoje em algumas partituras tão precisamente notadas. Pode-se ver nisso a vontade de preservar a parcela de iniciativa pessoal que cabia ao intérprete? Ou trata-se, antes, de uma "neutralidade" do compositor face a certas decisões, sobretudo aquelas referentes às variações de dinâmicas, que, até o fim do século XVI, estavam em geral reduzidas a forte e piano, modos de ataque e andamentos? É neste sentido que Marin Marais (1656-1728) deixaria, no seu segundo livro de Pièces pour viole [Peças para viola] a indicação: "Rondó metade picado e metade tocado à arcada, e caso se preferir, picado do começo ao fim e o mesmo para a arcada". As indicações de andamento estão também sujeitas a grandes variações, a ponto de não causar espanto uma prescrição como essa de Demachy em suas Pièces de viole [Peças para viola], de 1685: "Pode-se tocar os prelúdios como se queira, lentamente ou depressa". Outro exemplo, ainda das Fiori musicali de Frescobaldi: "Al-
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guns Kyrie poderão ser tocados num movimento vivo, outros num movimento lento, conforme o julgamento do exécutante." Os compositores pareciam, por outro lado, dar grande atenção às dificuldades técnicas de suas obras e fazer com que o acesso a elas não ficasse restrito aos virtuoses. Era dentro desse espírito que faziam certas concessões às normas da partitura (transposições, supressões parciais), as quais muito bem demonstram como os compositores facultavam ao intérprete bastante mais do que simples obediência ao que estava estipulado: "Quando a mão não conseguir alcançar facilmente duas teclas ao mesmo tempo", declarava Rameau referindo-se às suas Pièces de clavecin, de 1724, "pode-se abandonar aquela que não faz falta ao canto, pois não se deve querer o impossível". Com esta mesma intenção, Frescobaldi escreveria, ao fim do seu prefácio para as Fiori musicali: "Fiz tudo o mais fácil que podia", depois de haver admitido que "embora os Cantifermi devam ser tocados ligados, se isso for impossível para as mãos, pode-se soltar as notas para maior comodidade". Do mesmo modo, a atenção concedida ao gosto do público mostra-se diretamente assinalada na interpretação, quando Johann Joachim Quantz escreve, em 1752 , em seu Versuch einer Anweisung die Flote traversiere zu spielen [Ensaio de um método para aprender a tocar a flauta transversa]: "Quando uma peça é repetida uma ou várias vezes, principalmente se for ela rápida, por exemplo um allegro de concerto ou de sinfonia, toca-se sempre a segunda vez um pouco mais depressa que a primeira, para não adormecer os ouvintes." A "cadência" de concerto, essa "composição dentro da composição", constituía certamente um dos terrenos de predileção para o intérprete. Haendel foi particularmente celebrado pelos ritornelli para cravo ou órgão que ele próprio introduzia em seus oratórios. Na Sonata para dois violinos e viola da gamba de Mattheson, contemporâneo e amigo de Haendel, cada músico dispunha de oito compassos para tocar de acordo com sua imaginação in stylo phantastico: um princípio como este não deixa de evocar o dos breaks na música de jazz. Século XIX e século XX As cadências dos instrumentos solistas nos concertos ou nas trio-sonatas raramente eram estipuladas pelo compositor. A cadência ganhava, então, um aspecto de cappricio, que às vezes mal tinha relações temáticas com a obra que a acolhia. Entretanto, a partir de Beethoven, os compositores ou alguns grandes virtuoses passaram a escrever as cadências. É preciso observar, por sinal, que, à medida que avançava o século XIX, a improvisação e todos os floreados que o intérprete acrescentava ao que estava escrito começaram a ser postos de lado: Rossini, por exemplo, desde 1815, excluía da ópera qualquer coisa improvisada. Numerosos, porém, foram os compositores que, como Beethoven, Schumann, Mendelssohn ou Liszt, entregavam-se, a um só tempo, à obra escrita e à arte de improvisar sobre temas
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dados e disso tiraram um ensinamento precioso — porque baseado na força do instante — no que diz respeito à relação com o público. A improvisação impregnou profundamente a escrita musical destes compositores, embora Beethoven tenha declarado em 1808: "A bem dizer, só se improvisa quando não se presta atenção ao que se toca, e esta é a melhor e única maneira de improvisar." O impulso romântico do século XIX engendrou certo número de crenças, como a elevação do artista à categoria de herói-criador, o culto da obra de arte, a necessidade de sua preservação, etc. A partir do momento em que Mendelssohn conseguiu reanimar o interesse pelas obras do passado — ou seja, em 1829, com a execução da Mathauspassion [Paixão segundo São Mateus], de Johann Sebastian Bach —, o espirito de conservação "museográfico" não mais cessou de desenvolver-se até resultar, em nossos dias, numa mentalidade radicalmente oposta ao espírito que prevalecia na vida musical anterior ao século XVIII: quer dizer, marcada pelo predomínio do que é conservado sobre o que é criado, do passado sobre o presente. No século XIX, o número de ouvintes de música aumentou de maneira inconteste. Na formação da orquestra sinfônica, este interesse encontrou um instrumento privilegiado, que convinha particularmente a salas de concerto destinadas ao grande público. Tecnicamente, o século XIX ofereceu aos compositores a possibilidade de precisão no que se refere ao andamento e à altura absoluta dos sons. No primeiro caso, o metrónomo, inventado por Maelzel e utilizado já por Beethoven, veio permitir que o andamento fosse marcado com muitíssimo mais rigor do que no passado, pois passou a existir, como referência, uma norma numericamente controlável. Contudo, as indicações numéricas do andamento jamais chegaram a substítuir completamente a floração de sugestões verbais de origem italiana. Quanto à altura absoluta dos sons, o diapasão, usado a partir de 1859, proporcionou um ponto de referência estável para a afinação dos instrumentos, o que pôs fim a especulações que, por muitos séculos, variavam de acordo com épocas e lugares. Já no século X, o monje Notker, da abadia de Sankt-Gallen, indicava que o tubo mais grave do órgão, que correspondia a um ut, deveria medir uma vara e meia e servir de padrão aos outros sons da escala. Quando, já no início do século XX, alguns compositores sentiram a necessidade de integrar, em suas pesquisas, materiais sonoros inusitados na música tradicional, as carências de uma notação que, por mais de um século, muito pouco havia evoluído não podiam deixar de ser sentidas. Basta citar as partituras e projetos dos futuristas italianos, concebidos para objetos cujo resultado não podia ser tão controlável como aquele que asseguram os intrumentos musicais propriamente ditos. Certas observações de Bartók no que concerne à transcrição das músicas de transmissão oral dão testemunho de como tais dificuldades eram sentidas. Numa carta de 1913, Bartók escreve: "Nas melodias populares (...) há muitos sons estra-
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nhos, determinados deslizamentos de voz, sons cuja altura não pode ser exatamente precisada." Dessa forma o compositor será levado a acrescentar, ao repertório existente, sinais para indicar, por exemplo, um efeito de deslizamento:
IÉÜH Tais efeitos não podem, na verdade, ser comunicados por meio dos sinais convencionais. "Do contrário", declara Bartók em outra carta, "será necessário substituí-los por grande número de explicações em cada página." Tornou-se evidente que, na medida em que se desenvolveu a experiência com novos recursos sonoros, principalmente com a obra de Varèse, revelou-se indispensável que a notação convencional sofresse extensões. Para indicar, por exemplo, intervalos de altura menores que o semitom (microtonalidade), vários sistemas de sinais foram adaptados às convenções existentes por compositores como Alois Haba e Ivan Wyschnegradsky. Mais recentemente, os efeitos vocais — e mesmo corporais — explorados por Stockhausen em Momente ou por Ligeti em Aventures, nouvelles aventures fizeram com que houvesse um aumento considerável no repertório dos diversos sinais e símbolos destinados à interpretação musical, com risco até do intérprete ver-se confundido pelo acúmulo das informações a serem assimiladas. O problema reside justamente na função que o compositor deseja conferir à notação. Para uma boa parte dos compositores, a música do século XX tenta reduzir ao máximo as incertezas, os imponderáveis da interpretação. "Eu vivo dizendo que minha música devia ser lida, executada, mas não interpretada", declarou francamente Stravinski. Apesar de representar uma estética muito divergente, Schõnberg, neste aspecto, aproxima-se da tomada de posição de Stravinski quando escreve: "A peça é orquestrada de tal sorte (pelo menos esta foi minha intenção) que o som dependa dos intérpretes tocarem ou não exatamente o que escrevi." Mas o estado presente da notação estaria em condições de pernritir-lhe isso? O próprio Schõnberg esforçou-se para pôr em dia um sistema de notação que fosse mais apropriado à sua concepção de harmonia do que este que conhecemos, o qual reflete prioritariamente a ordem tonai, justamente o ponto questionado pelo fundador do dodecafonismo. Schõnberg sonhava com um sistema de notação que assegurasse lugar igual a cada um dos doze sons da escala cromática, o que não poderia deixar de ter influência decisiva sobre a própria percepção. Arthur Honegger, por sua vez, previa uma mecanização progressiva da interpretação musical, até que uma orquestra totalmente mecanizada viesse substituir a existente. Os recentes desenvolvimentos das técnicas da escrita e da própria produção do fenômeno musical por meio de computadores têm confirmado incontestavelmente as intuições de Honegger. Mas, é claro, trata-se aqui apenas de uma das tendências do pensamento musical.
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Hoje, contamos com varios sistemas de notação cujo desenvolvimento se dá de forma autônoma, desde os mais estritos aos mais abertos. A experiência da eletrônica, não resta dúvida, contou muito para a precisão que exigem algumas partituras elaboradas a partir dos anos 1950. Através da notação, o som parece cerceado em função de suas múltiplas propriedades, o que faz, às vezes, com que a leitura fique extremamente complexa. Neste caso, a única coisa que se pede do intérprete é que ele seja tão fiel quanto possível. Naturalmente, é difícil avaliar em que momento o acúmulo de informações não poderá mais ser assimilado pelo intérprete: as partituras de música serialista regurgitam destes casos limites, para não dizer de impasses para a leitura, como algumas vezes sucede. O trabalho a partir de novas fontes acústicas, como a eletrônica, fez com que surgissem técnicas de notação a ele apropriadas. Em certos casos (por exemplo, os Studie, de Stockhausen) a notação inventada mostrou-se suficientemente precisa para que a experiência eletrônica pudesse ser repetida por outro músico. Tais casos, porém, continuam a ser muito raros, pois a ramificação das técnicas eletroacústicas é tal, após uma vintena de anos, que a notação das operações efetuadas em laboratório (por exemplo, no caso de Telemusik, de Stockhausen) está longe de permitir que uma obra possa ter sempre execuções que se assemelhem. Contudo, a inevitável degradação do suporte sobre o qual está inscrita a obra eletrônica faz com que a problemática da notação não possa ser totalmente posta de lado. Determinados efeitos sonoros, ainda que puramente instrumentais, engendraram alguns conjuntos de sinais que dispensam um certo tipo de precisão, tornada inútil para enfatizar os aspectos mais determinantes da interpretação. Depois de Penderecki, numerosos compositores esforçaram-se, principalmente na Polônia, para, de maneira esquemática, reduzir a notação a sinais capazes de dar conta das características mais gerais do resultado que desejavam obter. (No caso da partitura, extraída da obra Anaklasis, de Penderecki, aqui reproduzida, vêem-se clusters densos e estáticos.) Tal notação, destinada a facilitar a decifração, de modo que a concentração possa recair principalmente sobre a produção do som, possui preciosas qualidades em termos de eficácia. Além destas formas de notação — que prolongam e completam o sistema existente, mais do que põem em questão a própria natureza da relação do intérprete com o texto escrito pelo compositor —, outras mais deliberadamente "subversivas" apareceram, e é em parte por intermédio delas que o compositor procura abolir a hierarquia, ou a cesura, entre o amador e o profissional, entre o criador e o exécutante e até mesmo as clivagens que persistem entre as diversas disciplinas artísticas. Alguns compositores julgam que, ao invés de esforçar-se para "conservar" as características de uma obra, das quais hoje se podem encarregar os meios de reprodução mecânica mais minuciosamente do que qualquer sistema de notação (Bartók observou que "as únicas notações verdadeiras são os sulcos marcados no
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disco"), a notação deveria antes constituir um catalizador para a interpretação musical. E é por isso que compositores como Earle Brown puderam, em seu trabalho de notação e comunicação com os intérpretes, sentir-se mais próximos das práticas vigentes no Renascimento ou na época barroca do que do modo de interpretar do Romantismo, tendente a sacralizar a criação do compositor.
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Esse é o caso principalmente das partituras "gráficas", em cuja origem encontram-se Earle Brown, John Cage ou ainda Morton Feldman. Em algumas destas partituras (por exemplo, December 52, de Earle Brown), o músico se vê confrontado com uma escrita em que não existe qualquer sinal convencional. E se elas são complementadas — o que quase sempre acontece — por prescrições verbais que visam a dar indicações para decifrar o fenômeno gráfico elaborado pelo compositor, tais prescrições não são, todavia, concebidas de modo a trazer respostas unilaterais às questões levantadas pelas notações e, se ofizessem,acabariam resultando num novo código, que apenas estaria substituindo outro. Neste caso, as notações constituem por si mesmas verdadeiros stimuli para que os músicos possam exprimir-se através de seu mundo sonoro, o que implica tocarem — sozinhos ou em grupo — seus instrumentos sem que estejam subordinados a um estilo de música imposta ou tenham que recair em clichês formados pelo hábito. Tais notações podem então ser consideradas como "mapas" que permitem estabelecer novas estratégias de interpretação e estimulam a criatividade. Neste sentido, são "experimentais", na acepção que John Cage dá ao termo: aquilo que é produzido na execução, como resultado efetivo, não é predeterminado pela natureza dos sinais inscritos na partitura. Mais indagações que ordens, assimiladas a um processo e não a obrasobjetos, tais notações encontrarão tantos modos de abordagem quantos sejam os indivíduos ou os processos. "Uma indagação, não um objeto, mas de preferência um processo e,finalmente,este processo deve ser considerado como próprio de cada indivíduo" (John Cage). Além do sistema de notação gráfica, apareceram, um decêncio mais tarde, as partituras ditas "verbais". Estão neste caso muitas das obras de Christian Wolff, Karlheinz Stockhausen, Luc Ferrari e Jean-Yves Bosseur, em que a partitura, escrita com palavras, vale como um "roteiro" que os músicos memorizam e tomam como base de seu ato musical. A importancia conferida à palavra na partitura revelou uma nova maneira de encarar a escrita musical, provocando entre os intérpretes um tipo de comunicação original, menos formalizado, vez que, sendo menos codificado, estimula muito mais a personalidade musical do intérprete do que a escrita tradicional o fazia. A partitura verbal torna-se simplesmente uma instigação à produção do ato musical, fornece indicações, informações sobre um itinerário possível apresentado ao indivíduo, além de colocar em questão o estatuto do compositor, que só aparece aqui na qualidade de "regulador" da performance. A independência do escrever, do tocar e do escutar parece bem ser o traço dominante das partituras que estamos considerando: cada modo de atividade deve poder desenvolver-se no sentido que lhe é próprio, sem querer justificar-se através de qualquer outro. A questão, por isso, não é saber se a escuta de tal ou qual fenômeno sonoro permitirá pressentir as propriedades de sua notação original, pois a validade do fenômeno musical não está em atingirmos o que estivesse além
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de sua "evidência", quer dizer, da maneira pela qual ele se apresenta a nós. É nesta senda que, segundo Dieter Schnebel por exemplo, a música poderá talvez reencontrar "algo daquele caráter imediato que uma vez já teve". As modalidades divergentes de experiência do som na escrita, na interpretação e na escuta levaram compositores como Dieter Schnebel ou Mauricio Kagel a reavaliar seus suportes: a partitura, que quase sempre não passava de um intermediário destinado a ofuscar-se por trás do fenômeno musical por excelência, que é a apresentação e execução em concertos, tornou-se para eles um elemento inseparável da performance. Nada daquilo que se manifesta durante o ato de escrever é para passar em silêncio, para ficar esquecido por negligência ou automatismo, não tanto pela preocupação com um determinismo expresso de maneira renovada, mas pelo desejo de deixar atuar uma pluralidade de determinações em que "uma coisa tenha todos os efeitos" (J. Cage), influindo sobre o que, no resultado final, aparece como partitura, como se nenhum elemento devesse ser considerado "dado de antemão", ou pudesse ser logo de saída aceito sem estar sujeito à questão de que também ele faz parte do processo de notação com todas suas implicações: qualidade do material utilizado, formato, tipografia etc. Tudo que possa penetrar no campo de estímulos do intérprete — como alguns caracteres que já aparecem em várias partituras de Erik Satie, entre as quais Sports et divertissements [Esportes e divertimentos] — deve ser interrogado, como suscetível de informá-lo sobre sua futura interpretação e de diversificar sua abordagem de um texto que ele, o intérprete, subscreverá. Mas também é possível detectar nesta démarche uma nova forma de desmembrar o fenômeno da escrita com seu mundo de determinações e sua tendência ao maneirismo, ao "grafismo artístico". Neste tipo de notação, com efeito, volta a impor-se a figura do autor, com seus gostos e estilo pessoal. É de um maneirismo desse tipo que, a nosso ver, dão testemunho particularmente os grafismos de Sylvano Bussotti, que "sublimam" de certo modo as notações musicais no interior de partituras revalorizadas enquanto objeto. As notações convencionais aparecem descontextualizadas, dissipam qualquer aspecto de compreensão unívoca e se transformam em motivos para extrapolações interpretativas propostas à imaginação lúdica dos exécutantes. Sylvano Bussotti escreveu: U m a vez vencido (...) o choque da primeira visão desconcertante, suscetível unicamente de engendrar encantamento e dúvida, a dupla intenção torna-se clara: por u m lado, a utilização do repertório de s í m b o l o s tradicionais n u m contexto inédito, o que provoca polivalências de significações, forçando o sentido habitual e sobretudo orientando a escrita da página segundo os princípios de um uso corrente ultrapassado como a dec o m p o s i ç ã o temporal subdividida em valores aritméticos, à qual se substitui uma livre apreciação óptica das durações no espaço da página. Por outro lado, nasce (...) a invenção a u t ô n o m a de sinais totalmente novos, que m a n t ê m com o sinal escolástico apenas
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uma relação alusiva que, nos casos extremos, é reabsorvida e acaba desaparecendo por trás das aparências musicalmente indecifráveis das pictografías autênticas.
A um só tempo, os centros de interesse que apresenta o livro/partitura são deslocados e desacelerados, e defasadas as relações entre o olho e o ouvido no que concerne à escrita do texto. Em todos estes casos, por meio de alusões indiretas e tomadas de empréstimo, seria possível inventar sinais que, por si mesmos, não admitem nem correspondências "alusivas" entre o óptico e o sonoro, nem sentido privilegiado de leitura, que estejam livres de apreciações visuais para favorecer o acesso à definição de uma situação sonora que não remete a nada, a não ser a ela mesma? Seria possível ao vocabulário sonoro ilimitado de que hoje dispomos satisfazerse com um sistema de escrita comum a todos, com um solfejo uniforme? A variabilidade de implicações do fenômeno sonoro que estamos em condições de viver ativamente, desde que nos coloquemos a salvo dos dogmas restritivos, das interdições acadêmicas e dos anátemas, poderia responder qualquer outra coisa que não uma pluralidade de modos de transmissão de uma atividade musical recolhida em sua polivalência? Se for este o caso, compor tornou-se inventar uma escrita.
PRIMEIRA PARTE
DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO X I V
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PENSAR A MÚSICA NA IDADE MÉDIA
Os mistérios elementares, absolutos, incorruptíveis, da ciência de Deus revelam-se na treva mais que luminosa do süêncio. DIONISIO, O AREOPAGITA
O termo Idade Média, que devemos aos historiadores românticos e que designa o período compreendido entre a Antigüidade e os tempos modernos, tem pouco valor operacional. Na verdade, reúne em um mesmo bloco os sete primeiros séculos do cristianismo, a Renascença carolíngia, que a eles sucede no século VIII, o período do ano mil, em que se multiplicam centros de pensamento e de criação nas escolas monásticas como nas cortes reais, e que conduz à segunda Renascença, talvez a mais brilhante, a do século XII, assinalada pelo aparecimento das línguas vernáculas nas diferentes culturas da Europa. Em seguida vem finalmente o que se pode chamar, com Georges Duby, de o "tempo das catedrais", que aos poucos se foi tornando, no transcorrer dos séculos XIV e XV, o das cidades, dos mercadores e do primeiro humanismo. Não se deve pensar a Idade Média como idade das transições, segundo a crença tantas vezes reiterada, mas como idade da gênese das formas da arte no Ocidente, essas formas que, em todos os domínios, tão logo aparecem, impõem-se com a força de obras-primas consumadas, escapando às vicissitudes da História e triunfando sobre a precariedade das técnicas graças à força unificadora de algumas grandes correntes de pensamento.
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XIV
Desde os primeiros tempos, as obras de beleza, sejam elas oferecidas por soberanos ou por bispos, à glória de Deus ou à edificação de seu povo, constituem — como acontece igualmente em relação ao conjunto do saber — o fruto da reflexão dos clérigos. A música segundo Boécio E a música é, sem dúvida alguma, o domínio em que as teorias podem justificar a organização das formas com o máximo de precisão. Desde o século VI, ocupar-se de música era essencialmente elaborar uma filosofia musical, refletir sobre a função dos sons — e, num plano secundário, compor melodias ou executá-las. A própria noção de música tem abrangência muito mais vasta do que em nossos dias, compreendendo os dados metafísicos que se acham em seus fundamentos tanto quanto a matemática que a organiza. É, portanto, antes de mais nada, objeto de considerações teóricas. Na origem dessas concepções, está a obra de um filósofo latino, Boécio, lida e relida incansavelmente durante dez séculos, fonte e fermento unificador a que sempre voltavam os teólogos das diferentes escolas. Anicius Manlius Tbrquatus Severinus Boetius (480-524) pertencia a uma família cristã. Era homem de ciência, dotado de tão vasto saber que houve quem sobre ele levantasse suspeitas de magia. Filho de um cônsul romano, chegou a assumir a direção dos negócios do Estado, tornando-se, ele próprio, cônsul em 510. Mas, injustamente acusado de participar numa conspiração tramada pelo imperador de Bizâncio contra Teodorico, o Grande, foi exilado para Pavia, onde ficou preso, foi submetido a torturas e morto. Sabendo-se condenado, escreveu durante seu cativeiro o De consolatione philosophiae, [Sobre a consolação da filosofia], obra em que a herança da sabedoria dos antigos (Platão, Aristóteles) alia-se à reflexão religiosa. Se não foi canonizado, como há quem afirme ter sido, pelo menos seu culto instaurou-se desde o século VIII na diocese de Pavia. O conjunto dos escritos de Boécio era fartamente comentado nas escolas, tornou-se objeto de reflexão nos mosteiros e alimentou o pensamento de um Roscelin, de um Anselmo de Cantuária, de um Guillaume de Champeaux, dos filósofos da Escola de Chartres e dos monges da abadia de Saint Victor. Santo Tomás de Aquino valeu-se, em grande medida, do tratado De Trinitate [Sobre a Trindade] de Boécio, na Summa theologica [Suma teológica], ao discorrer sobre a pessoa divina. O livro de Boécio De institutione musica [Sobre a formação da música] foi uma fonte importante para todos os teóricos da música, desde a época carolíngia até o Quattrocento italiano e o século XVI francês. No século X, oflamengoHucbald refere-se a Boécio como Doctor Mirabilis [Doutor Admirável], e no famoso trata-
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do Musica enchiriadis [Manual da música] ele é mencionado como Doctor Magnificus [Doutor Magnífico]. Por sua vez, Guido d'Arezzo, cujo tratado musical intitulado Micrologus é o fundamento do saber musical da Idade Média, recomenda a todos a leitura de Boécio. Nos séculos subseqüentes, os teóricos Jean de Murs (século XIII), Jacques de Liège (século XIV) e Tinctoris (século XV) retomam as teorias de Boécio na parte de seus tratados reservada à música especulativa. O pensamento de Boécio organiza-se em torno da idéia de que, por obra da razão divina, estabeleceu-se a harmonia de todas as coisas segundo a ordem dos números. Essa ordem figurava na inteligência do Criador e foi a partir dela que nasceram os elementos em sua multidão, a sucessão das estações, o curso dos astros celestes. No princípio de tudo está, portanto, o número. E a música, segundo Boécio, outra coisa não é senão a ciência dos números que governam o mundo. Sobre essa base e inspirado em Quintiliano e em Macrobio, o filósofo distingue três grandes categorias na música, em que vê a fonte da harmonia universal. Em primeiro lugar, a Musica mundana, a música do mundo, isto é, a harmonia fundamental que preside ao deslocamento dos astros, ao movimento dos elementos, à sucessão das estações e também à música das esferas, ou seja, à música produzida pelas esferas no movimento concéntrico que realizam em volta da Terra e que, por força do hábito, cessamos de perceber. Em segundo lugar, a Musica humana, a harmonia entre corpo e alma do ser humano, entre sua sensibilidade e sua razão, entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido — enfim, a tomada de consciência, por esse sujeito, de estar em harmonia com o mundo. Finalmente, a Musica instrumentons, que, por meio da arte, imita a natureza. Os espíritos medievais do período románico e do período gótico retomam essa definição da música, partindo sempre do princípio de que tudo é governado pela harmonia; e, como tudo o que é belo inscreve-se numa relação harmoniosa de ordem divina, o caráter transcendental do Belo se depreende de sua própria natureza. Recorrendo, ao mesmo tempo que às teorias de Boécio, à doutrina de Santo Agostinho, estendem esses conceitos de consonância e de justas proporções ao domínio das ciências, da moral, da política e da economia, coisas que, todas elas, devem estebelecer-se, com referência ao modelo proposto por Deus no mundo invisível, numa relação de conformidade e de harmonia no mundo visível. Vê-se, assim, que o vasto domínio da música não está longe de cobrir inteiramente o campo das analogias que organizaram o saber ocidental até o século XVI. Para dar uma idéia da amplitude desse domínio, reproduzimos aqui o esquema construído por Edgar de Bruyne, em seus Études d'esthétique médiévale [Estudos de estética medieval], tomando como base a reflexão dos principais teóricos.
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"Música: ciência de toda e qualquer proporção. 1. Música sobrenatural ou espiritual: harmonia dos coros angélicos e dos santos (musica coelestis: Jacques de Liège). 2. Música puramente matemática: proporções em si. 3. Música metafísica: harmonia realizada no mundo material e considerada como objeto de especulação filosófica "eorum quae harmonia quadam reguntur rationalis consideratio". a. Harmonia dos princípios metafísicos: proportio materiae ad formam (ver Alberto Magno e seus contemporâneos). b. Harmonia do universo. Por exemplo: das estações, das transformações elementares (musica mundana: Boécio). c. Harmonia fisiológica, psicológica, moral do homem (musica humana em sentido amplo: Boécio). 4. Música sensível: harmonia perceptível pelos sentidos. a. no mundo visível: dança plástica; b. no mundo sonoro: 1. Harmonia das esferas (musica mundana: Reginon; coelestis: Zamora) 2. Harmonia dos sons, produzida por instrumentos (musica instrumentons: Reginon). 1. produzidos pela natureza. Por exemplo: a voz humana (musica humana: Reginon; musica vocalis: Renascença). 2. produzidos pela arte: os instrumentos musicais (musica artificialisr. Reginon; musica instrumentalis: Renascença)." Mesmo com o risco de nos tornarmos um tanto fastidiosos, passemos agora à música enquanto ciência matemática, pois é nela que se encontra a chave das escolhas estéticas medievais, tanto na arquitetura como na escrita musical. Segundo Boécio — como vimos -—-, a música seria a "ciência dos números". É pelo número e pela relação numérica que devemos compreender as grandezas espaciais estudadas na geometria e os movimentos temporais que a música estuda. Sem a aritmética, nenhuma das duas poderia subsistir. Fica estabelecido, antes de mais nada, que o princípio de todos os números é "a Unidade", e que a mãe de toda proporção é "a Igualdade". Por outro lado, as coisas criadas obedecem a dois princípios: o da Unidade, pelo qual elas permanecem imutáveis e idênticas a si próprias (princípio masculino simbolizado pela mónada); e o da Multiplicidade, da variação, da instabilidade e da mudança (princípio feminino simbolizado pela díade). Da mónada derivam todos os números ímpares, assim como os quadrados dos números; da díade, derivam os números pares. Por intermédio da aritmética, Boécio estabelece uma equivalência entre os números musicais e os números correspondentes àsfigurasgeométri-
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cas, ou seja: para começar, uma equivalência entre o quadrado dos números e o quadrado, etc. Ao domínio do Mesmo pertencem: As figuras quadradas 2x2 3x3 4x4 Os quadrados dos números 4 9 16 As relações de igualdade 2/2 3/3 4/4 Ao domínio do Outro, pertencem: Os retângulos p.a.l. Os números p.a.l. As relações de desigualdade 1
1x2 2 1/2
2x3 6 2/3
3x4 12 3/4
Uma vez estabelecidos tais princípios, Boécio afirma que as figuras mais belas e mais deleitáveis obedecem às proporções mais simples, e é aí que se fundam as relações entre a arquitetura e a música. No que concerne à arquitetura, Boécio retoma as idéias de Vitrúvio, a saber, que as mais belas proporções são as do quadrado e as do retângulo. Os retângulos mais simples são os que se encontram numa relação de 2/1, proportio dupla (proporção dupla), ou de 3/2 (a unidade mais a metade), sesquiáltera, e de 4/3 (a unidade mais 1/3), dita sesquitertia. Ora, no que diz respeito à música, as relações mais simples — portanto, as que se deve utilizar, por serem as mais belas — são a oitava (de 2/1), a quinta (de 3/2) e a quarta (de 4/3). Essas considerações foram aplicadas, não ficaram no terreno da pura especulação intelectual. Assim, no século XIII, o grande arquiteto Vülard de Honnecourt deixou-nos um álbum de plantas e desenhos de uma inteligência e de uma qualidade que forçosamente nos fazem pensar nos de Leonardo da Vinci. Um dos projetos é a planta de uma igreja cisterciense ideal. Traçada ad quadratum (o que significa que o quadrado é a unidade de base), ela se inscreve num retângulo de proporção 3/2, isto é, um triplo duplo quadrado, que é também a relação da quinta musical; o coro tem a proporção 4/3 (a relação da quarta); cada transepto representa a relação da oitava, 4/2 ou 2/1; o cruzamento da nave com o transepto forma o quadrado, 4/4. A música a ser ouvida nessa nave tão admirável, de proporções tão simples quanto perfeitas, deveria fundar-se nas mesmas proporções que aquelas utilizadas pela arquitetura — as mesmas, por sinal, que regem o universo. Ou seja: a metafísica matemática de Boécio cria uma estética capaz de materializar, através da beleza, no templo de Deus e na música que o celebra, a idéia de que a arte e a música se fazem segundo justas proporções, imitando o modelo p.a.l. = parte altera longior (outra parte rnais longa):figuracujo lado comprido supera em uma unidade o lado curto. (N. T.)
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pode fazer mal à saúde do corpo, ao passo que a bela música eleva à contemplação do divino. Entende-se porque a música ocupou espaço tão importante no ensino medie¬ val: ela não apenas tem um valor intelectual, como também um valor moral, pois ajuda o homem a elevar-se, a aproximar-se da verdade e a recriar sua unidade interior no seio da paz, longe da agitação e da instabilidade deste mundo, tão freqüentemente denunciadas em De consolatione philosophial. Por todos esses motivos, mais vale dedicar-se à reflexão teórica sobre a música, já que ela aproveita ao espírito e fortifica a alma, dando ao homem o governo dos seus sentidos, ao passo que a música sonora, em que estes se deleitam, pode deixar a alma amolecida. Diz Boécio à Fortuna, em sua consolatione. Admito que tuas palavras são especiosas e como que impregnadas do doce mel da retórica e da música; enquanto se as ouve, n ã o cessa o efeito do encantamento. Mas, para u m infeliz, o sentimento de sua infelicidade é mais penetrante ainda.
Album de Villard de Honnecourt, meados do século XIII: Planta para u m a igreja ad quadratum. (Roger-Viollet)
divino. O espírito ascende da beleza das qualidades móveis àquela das proporções imutáveis; em seguida, da beleza das relações simples realizadas no mundo e na ordem matemática, ele se eleva à beleza do arquiteto divino, em cuja inteligência vive o modelo do universo. Assim como a harmonia governa a beleza do céu, da mesma forma deve ela governar a música, para que esta se encontre numa relação de concordância com o universo e com o homem, tal como o amor de Deus faz com que todas as coisas se ordenem com perfeição e se ponham de acordo entre si. Por outro lado, e sempre dentro de uma perspectiva platônica, Boécio desenvolve a idéia de que a unidade da alma do universo reside numa concórdia musical e de que a combinação harmoniosa dos sons nos faz tomar consciência de nossa própria unidade, da ordem interior que nos governa. A música permite à alma humana pôr-se em relação harmoniosa com a alma do Universo, o que nos leva, muito naturalmente, à teoria dos efeitos da música: a que é mal composta, de maneira puramente instintiva e sem respeitar os números, corrompe a alma e
Entretanto, a ser o caso de estabelecer-se uma hierarquia entre os sentidos, Boécio e os teóricos medievais reconhecem à audição uma superioridade em relação à visão. Efetivamente, por via do ouvido, a emoção e a ciência penetram ao mesmo tempo na alma e no espírito. v Essa filosofia musical comporta dois corolários: o primeiro é que os teóricos hão de estabelecer doravante uma distinção entre música especulativa e música prática (o que entendemos hoje por música), e o segundo (decorrência do primeiro) é que o termo musicus designa funções bem diferenciadas: em primeiro lugar, o teórico que reflete de maneira puramente abstrata sobre a organização e a função da música; depois, o compositor e, em seguida a este, o crítico que julga, segundo critérios científicos, o valor das composições. Em último lugar vêm o instrumentista ignorante e o cantor, que executam a música sem compreendê-la. A Idade Média só sente desprezo por esses últimos, que não passam de intérpretes, uma atitude radicalmente oposta à do Baixo Império, em que um bom flautista era pago a peso de ouro. O conjunto das teorias de Boécio e de seus sucessores vai não apenas impor-se durante séculos ao Ocidente: servirá, ademais, de ponte entre a época medieval e as "renascenças" italiana e francesa. Assim é que o gosto pelas teorias neoplatônicas de Boécio se manifesta largamente entre os humanistas e os artistas italianos do século XV, que retomam por sua conta a idéia do Timeu, segundo a qual as artes devem sua perfeição à ciência matemática. "Os inovadores de Florença", nos diz André Chastel, haviam proclamado com convicção, como u m a profissão de fé, a necessidade de haver referência, nas artes visuais, ao Ordo mathematicus. Assim aconteceu com Alberti... e Brunelleschi.
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A propósito, não é indiferente observar que o compositor Guillaume Dufay escreveu o moteto Nuper rosarum flores para a inaguração da cúpula de Brunelleschi, na catedral de Florença, em 15 de agosto de 1436. Os presentes acreditaram estar ouvindo coros angélicos, tal o encantamento que a música neles provocou. Ora, as proporções desse moteto, o número e a repartição dos valores de duração correspondem exatamente às medidas das diferentes partes do edifício, inclusive às da cúpula. A voz tenor chega a ser duplicada na quinta para criar-se uma relação igual à das nervuras com seu reforço interno. Piero delia Francesca publica o tratado De corporis regularibus [Sobre as regras do corpo]. Seu amigo Luca Pacioli, que freqüenta todas as cortes de Florença, de Urbino, de Roma, publica De divina proportione [Sobre a proporção divina] em 1509, em Veneza, mesma cidade onde a edição princeps da obra de Boécio já havia sido publicada em 1492, quando os cálculos matemáticos e o simbolismo dos números ocupavam todos os espíritos. E sabe-se a tempestade que provocara o andaluz Ramos de Pareja ao publicar em Bolonha, em 1482, seu De musica tractatus sive musica pratica [Tratado sobre música ou música prática], com o qual em vão tentara introduzir a oitava e o cromatismo. Quanto à teoria dos efeitos da música, é amplamente desenvolvida nos círculosflorentinospor Marcilio Fisino (1433-1499) e impregna todo o pensamento humanista. Na França, um século mais tarde, editam-se e reeditam-se ainda os escritos de Boécio, que permanece como referência obrigatória para todos. Ronsard justifica o desejo de ter seus poemas musicados por compositores contemporâneos — Janequin, Goudimel, Lassus, etc. —, endossando as idéias de Boécio, que ele cita em data bem tardia, 1560, na sua Épître au roi Charles DC [Epístola ao rei Carlos IX], onde, depois de declarar que aquele que não gosta de música é indigno de olhar a luz do sol e se faz semelhante aos porcos, acrescenta: Aquele que a honra e reverencia é de hábito homem de bem, tem a alma sã e galharda, e, por inclinação natural, ama as coisas elevadas, a filosofia, o manejo de assuntos políticos, o trabalho das guerras.
A isto segue-se uma passagem sobre os efeitos da música, que tanto pode impelir a atos de heroísmo quanto — sobretudo se utilizar o modo cromático — arrastar à lascívia e à luxúria. Em suma, os que crêem inovar por um retorno às fontes outra coisa não fazem que seguir a mais imutável das tradições. Se a influência do pensamento de Boécio sobre os espíritos foi tão forte e durou tanto tempo é porque suas teorias sobre a música foram exploradas com exclusividade por clérigos, únicos detentores do saber, e porque estes punham esse saber, antes de tudo, a serviço do poder da Igreja. Ora, o pensamento do filósofo romano inscreve-se perfeitamente na continuidade do pensamento dos padres da Igreja latina e, em particular, no de Santo
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Agostinho, que, sensível até as lágrimas à beleza dos hinos, empenha-se incessantemente em fazer a ligação entre o cristianismo e a herança que ficou dos antigos (Pitágoras e Platão), afirmando que a música é uma ciência e que ela participa da Numerositas divina, isto é, da ordem matemática desejada por Deus. Com o peso de sua autoridade, o ponto de vista de Santo Agostinho vem a calhar para a Igreja. Firmada em tais referências, ser-lhe-ia possível, numa primeira etapa, eliminar aos poucos os velhos cultos pagãos em nome da ciência da Antigüidade pagã. Em seguida, estaria a Igreja em condições de recusar, de sufocar qualquer forma de música que não fosse por ela ensinada no Quadrivium (juntamente com a geometria, a astronomia e a álgebra) e que não tivesse por função edificar a alma dos fiéis — qualquer música, em suma, que, não sendo a um só tempo ciência e recurso a serviço de uma ética, não dependesse diretamente de seu ensino e de sua autoridade, e que não contribuísse para a extensão e a unificação da cristandade.
As funções da música Para chegar à música dita "prática", falta agora examinar qual o lugar que os teóricos estavam dispostos a conceder-lhe. Coerentes consigo mesmos, declaram estes que, ciência por sua natureza, a música tem como função primeira o louvor de Deus. A figura de Davi cantando e acompanhando-se na lira, tão freqüente nos textos como nos portais das catedrais e na iconografia, aí está para lembrar a todos disso e para dar a entender que os cânticos da Igreja imitam os do salmista cantor de Deus. A música deve ser feita, também, à semelhança dos coros angélicos, que celebram, nos orbes eternos, a glória divina que os aureola de luz. Os anjos músicos, inscritos segundo uma ordem precisa nosflancosdo edifício de pedra ou nas enigmáticas iluminuras dos manuscritos, convidam a alma a perceber a imaterial ressonância de seu canto. "Por isso, com todos os anjos e todos os santos", diz o texto do Prefácio da missa, "nós proclamamos tua glória". Guillaume de Machaut, cônego da catedral de Reims, de abobadas povoadas por anjos, repete, fazendo eco aos teóricos, que a música serve para "enaltecer Deus e sua glória", como o fazem os anjos que o vêem face a face. Nesse domínio, o pensamento medieval acha-se bastante impregnado do Liber de coelesti hierarchia [Livro sobre a hierarquia celeste] do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, pensador neoplatônico (provavelmente do século V), que contém meditações sobre os nomes divinos e a hierarquia dos seres de luz. Trata esse livro abundantemente dos anjos, dos mensageiros de Deus, esses "pregoeiros do silêncio divino". Põe-lhes na boca o canto do Sanctus, que se segue ao Prefácio:
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A palavra de Deus transmitiu aos habitantes da Terra certos hinos que a primeira hierarquia canta e nos quais se manifesta santamente a e m i n ê n c i a da iluminação, a mais alta dentre todas, que Lhe pertence. Uns, efetivamente, traduzindo essa i l u m i n a ç ã o em termos sensíveis, n u m clamor que faz lembrar o bramido das grandes águas, exclamam: 'Bendita seja a glória do Senhor no lugar de Sua morada!' Outros anunciam esta muito célebre e augusta palavra divina: 'Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos. D e Sua glória está cheia a Terra inteira!'
As liturgias orientais, fossem elas judias ou cristãs, tiveram seu papel nessa importância que assumiu o canto de louvor no Ocidente. Não demorou muito, porém, para que os Padres da Igreja — a começar por Santo Agostinho, mas também São Basilio, São João Crisóstomo, São Bernardo — denunciassem os "encantamentos" da música, que tão facilmente deleita os sentidos, desse modo enfraquecendo a alma. Os primeiros cristãos não haviam banido de seus cantos todo melisma, todo ornamento? "Deus não escuta a voz, mas o coração", advertiu São Cipriano, e São Jerónimo chega ao ponto de desejar que uma certa cacofonía impeça ao ouvinte uma escuta por demais complacente da beleza das vozes. ^/ De qualquer modo, o chantre formado na Schola Cantorum [Escola de cantos] ^ ) deve cantar docemente, com humildade, sem jamais se pôr em destaque, e atento \ ^ apenas — recomenda São Bento — à edificação dos fiéis. Além de servir ao puro louvor, a outra função da música que justifica sua presença no culto é ser um suporte — e nada mais que um suporte — da palavra, dos textos das Sagradas Escrituras escolhidos para as liturgias. Cada ofício se compõe de uma sucessão de textos tirados tanto do Antigo como do Novo Testamento. Esses textos reúnem os dois aspectos da palavra: do Antigo Testamento, o logos criador, tal como o define o Gênesis e o celebra o Salmo 32: "Por sua palavra foram feitos os céus, e pelo sopro de sua boca todo o seu exército"; do Novo Testamento, o Verbo encarnado para a obra de redenção, Verbo-Cristo, Verbo-vida, tal como o define o Evangelho de São João. Essa palavra é verdade, autoridade e afirma-se como universal. Por outro lado, cada fragmento escolhido e cantado deve ser considerado como um pequeno logoi em si, em que está contido o poder do livro como um todo: "Cada palavra da divina escritura", diz Orígenes, "é como se fosse uma semente... À primeira vista, parece magra... mas, se encontra um jardineiro experiente (...), ganha a dimensão de uma árvore e se expande em galhos e ramagens." A citação bíblica resume o verbo, concentra a potência do logos. Ora, cantar é transmitir, pela harmonia dos sons e por meio de algumas palavras, o sentido eterno do logos sagrado. Não deve ser senão isso.
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OS PRIMEIROS CÂNTICOS DA IGREJA C o m o pregoeiros do silêncio divino DIONISIO, O AEROPAGITA
Até o fim do século XII, o lugar por excelência do cântico de louvor é o mosteiro, longe do mundo. O preparo da terra inculta e a frutificação da alma se fazem simultaneamente no silêncio e na solidão. Dois espaços dão ritmo a esse trabalho: o quadrado do claustro, microcosmo que prefigura a morada paradisíaca, tendo ao centro a fonte ou o poço como signo da graça; e a igreja, com o quadrado como medida e o Cristo na cruz como forma — a igreja, signo material da encarnação e lugar de redenção. Dois tempos diversos dão ritmo à aventura individual e coletiva: aquele que projeta a história individual numa marcha para a eternidade orientada pela história da salvação e aquele que organiza os grandes movimentos cíclicos da natureza, a alternância dos dias e das noites, escalonando-os em orações. Foi São Bento (480-543), o primeiro dos grandes fundadores de ordens religiosas, quem ritmou o percurso das horas, estabelecendo o ofício divino, os oito momentos do dia e da noite em que o monge dedica o melhor de sua energia à prece coletiva e cantada. É em torno das Horas que se organiza, portanto, a vida dos mosteiros, ou seja: oito reuniões de oração ao longo das 24 horas. Matinas Laudes Prima
Noz'fe e alvorada 6h da manhã 7h da manhã
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Terça MISSA Sexta Noa Vésperas Completas
9h da manhã Meio-dia 3h da tarde 6h da tarde Cair da noite
A missa situa-se no centro e no ponto culminante do dia. Distinguem-se comumente as Horas maiores (Marinas, Laudes, Vésperas e Completas) das Horas menores (Prima, Terça, Sexta e Nona). O canto dos salmos é a parte essencial das horas. Nas Matinas, cantam-se o Salmo 94, antifonado (canto de dois coros alternados, por oposição ao canto responsorial, de solista e coro), com refrão, um hino, que varia segundo o calendário Htúrgico, e três noturnos, cada um dos quais é composto de três salmos e enquadrado por um cântico antifonado e três lições ou leituras. Os Laudes e as Vésperas são construídos de maneira similar, com o canto de cinco salmos enquadrado por um cântico antifonado e uma leitura breve, seguida de um hino. Nas Completas, temos novamente três salmos, uma antífona, um hino (Nunc dimittis) e uma antífona mariana (isto é, em honra à Virgem). As Horas menores compreendem apenas um hino e três salmos cada uma e utilizam a mesma antífona como enquadramento. No espaço quadrado, portanto, seguindo o tempo das horas, o homem reencontra sua harmonia na harmonia dos números, por meio do cântico de louvor que dirige ao seu Deus. A liturgia da missa ordena-se em torno da Eucaristia cotidiana, isto é, da reatualização da Ceia e do sacrifício do Cristo. Em torno desse núcleo fixo que constitui o "ordinário da missa", organiza-se o "próprio da missa", que segue ao longo de um ano a história da vida de Cristo, em torno das duas grandes festas, a de seu nascimento, o Natal, fixada em 25 de dezembro no calendário romano, e a de sua morte e de sua ressurreição, a Páscoa — que é uma festa móvel. A esses dois eixos, precedidos pelo Advento, no tocante ao Natal, e pela Quaresma, no que diz respeito à Páscoa — duas ocasiões de penitência —, devem-se acrescentar a festa da Ascensão e, dez dias depois, a de Pentecostés, em comemoração à descida do Espírito Santo (simbolizado por línguas de fogo) sobre os apóstolos. A cada dia, por outro lado, correspondem preces particulares, freqüentemente dirigidas a diversos santos, que integram igualmente o próprio da missa. O conjunto da missa constitui-se de cânticos em alternância com leituras salmódicas: SLNAXE (reunião) Introito (cântico de entrada) Kyrie (ordinário - cantado)
Os primeiros cânticos da Igreja
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Gloria (ordinário - cantado) Coleta (próprio - recitado) Epístola (próprio - recitado) Gradual (próprio - cantado) Aleluia (próprio - cantado) Evangelho (próprio - recitado) Credo (ordinário - cantado) Ofertorio (próprio - cantado) Secreta (próprio - recitada ou cantada) EUCARISTIA Prefácio (próprio - recitado) Sanctus (ordinário - cantado) Canon (ordinário - cantado) Agnus Dei (ordinário - cantado) Comunhão (próprio - cantada) Pós-comunhão (próprio - recitada) Ite Missa est ou Benedicamus Domino (ordinário - cantado) A primeira liturgia cristã nasceu, de certa forma, de uma extensão do culto judaico. De fato, os primeiros cristãos seguiam o culto na sinagoga, a que acrescentavam cerimônias privadas eucarísticas. O primeiro canto cristão teve origem, portanto, no canto hebraico. Comparando-se os cantos da igreja antiga com as melodias hebraicas, é fácil constatar semelhanças evidentes. Por outro lado, o hábito do canto "responsorial", em que um solista canta os textos bíblicos com resposta da congregação, também foi tomado à liturgia judaica. Ainda nos séculos III e IV, no momento em que se fixava o ritual da missa, o ofício compunha-se de duas partes. Em primeiro lugar, a Sinaxe. Um cântico de entrada, entoado pelo fiel mais idoso, era seguido da resposta de toda a comunidade e da leitura de três passagens das Sagradas Escrituras (leitura feita em cantilação, recto tono), cada uma delas alternando com o canto responsorial de um salmo. Depois vinha a Homilia, finda a qual os não-cristãos e os catecúmenos deviam retirar-se. Em seguida, a Eucaristia: a prece dos crentes, a oferenda de objetos postos sobre o altar, a comunhão acompanhada do canto de um salmo e a prece final seguida do despedimento dos fiéis. Estabelecido esse quadro, a liturgia desenvolveu-se rapidamente, sobretudo a partir do momento em que o imperador Constantino reconheceu o cristianismo (ano 313, édito de Milão) e fez da Igreja o que ela passaria a ser daí por diante: uma instituição. A seu sucessor, Teodósio, não restava senão fazer da nova religião uma religião de Estado. Vale notar que, durante esse tempo, por toda parte se desenvolveram liturgias em línguas vernáculas, na igreja siríaca, na igreja copta, e também na Palestina,
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onde se conservou a língua de Cristo, o aramaico, ao passo que, em Roma, a unidade litúrgica se alcançou provisoriamente em torno do grego. O litoral italiano da região de Ravena sofreu fortemente a influência da tradição bizantina. Mas, desde o século IV, o rito conhecido como "romano antigo", que seria suplantado pelo rito dito "gregoriano", utilizava o latim. Observe-se que o termo "canto gregoriano" é aplicado erroneamente, por extensão abusiva, a toda forma de cantochão, quando, na verdade, não passa de um dos ramos de um tronco feito de múltiplas Mturgias, as quais a reforma do papa Gregorio I teve por objetivo afastar, numa tentativa de fazer adotar, pelo conjunto da cristandade, a nova liturgia romana. O mais distante desse novo canto romano é certamente o canto galicano, que, por seu fausto e seus embelezamentos retóricos, estaria mais próximo das cerimônias orientais. O canto galicano foi igualmente sensível a influências dos cantos das judiarías de Marselha e das regiões renanas. Os centros mais importantes foram Lyon, Toulouse, Roma, Paris, Colônia e sobretudo Metz, onde foi considerável o seu desenvolvimento. Em Paris, no século VI, São Germano escreveu em hexámetros a Hturgia de uma missa que era cantada pelo clero, pelo povo e por três crianças (em que figurava o cântico das Três crianças na fornalha) e em três línguas: latim, grego, hebraico. A ordem era muito diferente da ordem romana. Em substituição a essas liturgias, Pepino e Carlos Magno esforçaram-se por impor, vencendo resistências, o rito romano. Este, por sua vez, deixa-se impregnar, às vezes, pelas liturgias que veio substiüiir: é o que acontece nas Improperio, preces da Sexta-feira Santa. As liturgias moçárabes, que os historiadores atuais preferem chamar de hispânicas, desenvolveram-se entre os cristãos que viviam sob a lei islâmica. Na Espanha e em Portugal, continuaram em uso até ofimdo século XI, mas, depois que os mouros foram expulsos do solo espanhol, o rito romano acabou por se impor. Na época, o mais importante centro musical era Córdoba, onde se desenvolvia a brilhante civilização moçárabe; mas Toledo, então capital, Sevilha e Saragoça eram também centros muito ativos. Há quem pense que essas músicas possam ter introduzido elementos orientais nas liturgias galicana e ambrosiana. É difícil pronunciar-se a respeito, tanto mais que os manuscritos remanescentes são ilegíveis, pois a notação não dá indicações sobre os intervalos. Graças a uma autorização especial, Toledo manteve alguns desses cânticos em seus ofícios. A liturgia ambrosiana deve seu nome a Santo Ambrosio, bispo de Milão (374¬ 397). Essa cidade foi, juntamente com Roma, no século IV, um dos grandes centros de renovação e difusão da música. Santo Ambrosio, além de combater a heresia ariana, empreendeu a reforma da liturgia em Milão. É-lhe atribuída a introdução de admiráveis hinos latinos nos ofícios. Com a beleza do canto, queria ele popularizar o dogma recém-promulgado da Santíssima Trindade, e, de fato, tão belas eram essas melodias que produziam um efeito quase mágico sobre a
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multidão. Santo Ambrosio é apontado como autor de quatorze hinos, três dos quais foram introduzidos no breviário romano (Aeterne rerum conditor, Splendor paternae gloriae e Aeterna Christi muñera). Compostos de oito estrofes de quatro octossílabos iâmbicos, esses hinos, por sua magnificência, obtiveram imenso sucesso e foram considerados modelos dignos de imitação ao longo dos séculos. Para São Bento, "ambrosiano" é sinônimo de "hino". Se a fonte dessas músicas é latina ou oriental é questão ainda não elucidada até hoje. O canto, como em toda a tradição latina, ou é silábico, ou semi-silábico, ou melismático, mas apresenta grande flexibilidade na utilização dos intervalos e dos modos (não indicados com precisão), além de uma grande exuberância de melismas. A Itália Setentrional, dependente da igreja siríaca, pode ter recebido influências desta. De qualquer modo, os freqüentes intervalos de quartas ascendentes e descendentes que se encontram nas melodias ambrosianas, seguidos às vezes de uma terça descendente, dão a essas melodias um desenho em que sobressai o parentesco com as melodias orientais. O canto ambrosiano preservou-se e mantém-se ainda, em toda a sua magnificência, em Milão, em certos vales italianos dos Alpes e na diocese de Lugano. Foi ao tempo de um certo Paulo Diácono, nos anos 780 — passados quase dois séculos da morte do papa Gregorio, ocorrida em 604 —, que se começou a atribuir a este último a paternidade do canto que leva o seu nome — lenda à qual vieram acrescentar-se, um século mais tarde, a da pomba que murmurava ao seu ouvido, a da chibata com que ele punia os alunos da Schola, etc. Originário do patriciado romano, de início prefeito de Roma, depois monge beneditino, fundador de sete mosteiros, Gregorio foi eleito papa em 590. Parece que sempre se sentiu saudoso da vida monástica. Moralista, administrador, foi também liturgista. Não tinha, no entanto, a sensibilidade musical de Santo Agostinho. Seu biógrafo lhe atribui um "sacramentário" (coletânea das orações da missa) e o estabelecimento do "antifonário". Difícil afirmá-lo com certeza, uma vez que a transmissão das melodias se fazia oralmente, como observa Michel Huglo, mais adiante, neste livro. Por outro lado, duzentos anos separam da obra atribuída a Gregorio os primeiros testemunhos manuscritos, e mais de trezentos medeiam entre essa obra e os textos das melodias ditas gregorianas. Além do quê, é provável (há quem diga: é certo) que esse rito romano tenha largamente tomado empréstimos à tradição do cantochão de que acabamos de falar, e, em particular, às diversas liturgias galicanas. Não resta dúvida de que, lentamente, no correr dos séculos, o rito romano impôs-se à cristandade ocidental. Mas o que tinha ele de "gregoriano"?
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TÉCNICA E NOTAÇÃO DO CANTO GREGORIANO
Para a transmissão dos cantos litúrgicos, a notação musical não é de modo algum necessária. Deve-se, entretanto, matizar essa declaração de princípio com uma distinção prévia. Em primeiro lugar, o termo "cantos litúrgicos" não abrange as leituras tiradas da Bíblia, que são executadas pelos leitores, pelos subdiáconos e diáconos, cabendo exclusivamente a estes últimos a leitura do Evangelho. Em todas as Hturgias da bacia mediterrânea, as leituras do ofício noturno e da missa são "cantiladas", isto é, lidas recto tono, seguindo pequenas fórmulas de entonação, de meia-cadência para a pontuação "fraca" e de cadência mais ornamentada para a pontuação "forte", ou seja, no fim do período. Esquematizando, podemos assim descrever a cantilação da leitura: dois altos platôs ligados entre si por vale estreito (é a cadência intermediária do ponto e vírgula). De um salto, acede-se à altura (é a fórmula breve de entonação), descendo-se de maneira gradativa (é a fórmula de cadência). Sobre os platôs, a leitura se executa como no Sprechgesang do Pierrot lunaire [Pierrô lunar] de Schõnberg, articulando bem, mas sem variações melódicas... Nisso consiste o recto tono. As cadências e semicadências não se improvisam: as fórmulas melódicas devem ser adaptadas ao texto segundo leis absolutamente precisas que nós, francófonos, concebemos com dificuldade, já que nossa língua francesa atual deixou de levar em conta esse importante elemento lingüístico. O acento tônico, alma da palavra grega ou latina, tem, de fato, posição preponderante na entonação e uma situação menos privilegiada nas cadências. Também nas Bíblias e nos lecionados,
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XTV
tanto no Oriente como no Ocidente, é freqüente encontrarmos, mesmo em épocas muito antigas, signos convencionais destinados a lembrar aos leitores as sílabas sobre as quais deviam fazer-se entonações e cadências. Muitas vezes, esses sinais não são traçados pela mão do copista que transcreveu o texto sagrado: são acrescentados pelo clérigo ao preparar este, antecipadamente, a leitura que lhe compete fazer. Semelhantes acréscimos estenográficos são encontrados no Ocidente. Os especialistas chamaram esses signos de notação ecfonética, ou seja, notação dos finais. Na verdade, os sinais convencionais assim acrescentados, que lembram uma pequena fórmula de clausula rítmica, não chegam a constituir uma notação musical propriamente dita. Em uma notação musical, por mais simplificada que seja, a cada nota da melodia corresponde um sinal preciso, seja um ideograma — acento agudo, acento grave, etc. —, seja uma das letras do alfabeto, seja, finalmente, um signo convencional que indica o intervalo a separar cada grau da escala de sons, ou seu lugar no interior do tetracórdio ou grupo de dois tons mais um semitom. As origens da notação musical Mas, e por falar nisso, por que a notação musical? Qual a vantagem de impor um suplemento de trabalho aos copistas? Num mundo em que a transmissão do saber se fazia antes que tudo pela oralidade, num universo em que a assimilação prazerosa da Bíblia pela memória — meãitatio — substituíra a de Virgílio, nesse povo de clérigos, de salmistas e de chantres que passavam dez anos de sua existência ensaiando os cânticos — recorâatio — a serem apresentados de cor durante a celebração litúrgica, é o caso de indagar-se a razão de ser de uma notação musical. O mais curioso, nessa história das origens, é o fato de que duas esferas litúrgicas bem delimitadas tenham sentido a necessidade de fixar no pergaminho a linha melódica dos cantos melismáticos da missa e do oficio: os países de língua grega submetidos ao basileus de Bizâncio, no Oriente; o império carolíngio, no Ocidente, e também a Espanha, que, desde o século VII, possuía um repertório aparentado aos ritos galicanos, diferentes do rito romano pelo estilo de seus cantos. Dessa constatação geográfica à hipótese de uma origem única para as notações musicais bizantinas e latinas, não havia mais que um passo. Esse passo foi dado galhardamente por musicólogos como J. Wolf, J.B. Thibaut, Constantin Floros, etc., que fundamentaram sua hipótese menos sobre semelhanças gráficas do que sobre ressonâncias helénicas na designação de certos neumas latinos: apostropha, quilisma (Kylisma), epiphonus, etc. Ora, esses termos helenizados só aparecem na tradição musical muito tempo depois da invenção e do uso repetido dos sinais neumáticos. Em que época e em que região podemos situar a invenção dos primeiros sinais de notação musical? Os paleógrafos estão de acordo quanto a que os neumas — ou seja, as combinações de acentos e de sinais de pontuação do discurso (pontos,
Técnica e notação do canto gregoriano
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vírgulas, pontos de interrogação, etc.) — foram acrescentados na segunda metade do século IX aos manuscritos anteriores ao ano 800. Por conseguinte, os neumas terão sido inventados por volta de 800-830. Difundiram-se por toda parte, mas diferenciando-se conforme as regiões, um pouco como aconteceu com os estilos da iluminura... Hucbald, teólogo e teórico musical, monge de Saint-Amand, ensinou em seu tratado intitulado De harmonica institutione [Sobre a criação harmônica] que "os neumas, tão úteis para socorrer a memória, diferenciam-se gráficamente em cada região". O primeiro testemunho da notação musical data de 830: conhece-se até mesmo o nome do copista! Trata-se de Engildeu, monge de Santo Emerano de Ratisbona, que acrescentou, sobre meia página deixada em branco ao fim de um tratado de Santo Ambrosio, um tropo com as respectivas notas. Dez anos mais tarde, Aureliano de Réomé, que trata dos tons salmodíeos e dos modos gregorianos, faz três referências às figurae notarum, ou seja, os desenhos das notas, embora admitisse que uma "nota ¡material de música não se pode fixar por escrito..." Tal observação, atribuída a Isidoro de Sevilha no século VII, é muito justa: não é possível fixar os sons por escrito. A própria "figura das notas" indica, quando muito, uma direção da melodia para o agudo (acento agudo / ) ou para o grave (acento grave \ ou ponto.) ou combinações desses movimentos [A VA/], mas não a altura relativa ou absoluta dos intervalos que separam cada nota de outras. Era preciso, portanto, continuar a aprender de cor as melodias: os neumas ajudavam a memória, fazendo lembrar o desenho melódico das fórmulas de entoação e de cadências que são características de cada modo.
A estrutura da modalidade gregoriana Acontece, de fato, que o canto gregoriano não é composto de maneira espontânea, ao sabor da inspiração genial do compositor. Cada peça, seja uma antífona ou um responso, é "centonizada", ou seja, é formada por fórmulas já prontas que, escolhidas em função do modo da peça, costuram-se umas nas outras por recitativos de ligação, com ornamentos no grave ou no agudo... O chantre que abria um antifonario com notação em neumas reconhecia instantaneamente essas fórmulas, pois sabia em qual modo a peça estava composta. E sabia porque aprendia a reconhecer os modos valendo-se de um livro que continha todos os cânticos do repertório, classificados não segundo a ordem das festas litúrgicas (Natal, Epifanía, Quaresma, Páscoa, etc), mas segundo a ordem dos oito tons salmodíeos que se encadeiam com essas antífonas. Para apreciar a disposição muito estruturada da modalidade gregoriana, é preciso compreender bem o mecanismo da salmodia. Nos outros repertórios latinos anteriores ao canto gregoriano, a salmodia não é montada em "esquemas" previamente definidos: ela adere à estrutura da antífona para melhor ser enquadrada
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por esta. Pois, no fundo, uma antífona é exatamente isto: um quadro, um módulo no qual flui o recitativo salmódico. Um salmo, na liturgia cristã, não se canta isolado, não se executa independentemente. É a antífona, no plano doutrinário, que lhe dá um significado neotestamentário, mas é também a antífona que o introduz numa das oito partes preestabelecidas que melhor lhe convém. Eis como: No sistema diatónico da monodia gregoriana -— as teclas brancas do piano — só há quatro maneiras de terminar um canto: em ré (ou lá, por transposição), em mi (ou si), em fá (ou dó), ou em sol. As antífonas, destinadas aos fiéis, não são compostas num âmbito muito extenso: uma quinta, uma sexta, raramente mais que isso... Por outro lado, a alegria e o entusiasmo se exprimem melhor subindo em direção aos agudos, ao passo que a tristeza ou o respeito se fazem assinalar de preferência baixando aos graves da escala. Para cada peça, portanto, será escolhida uma salmodia "mais no alto" ou uma "mais no baixo" — aquela que melhor convirá a seu ambitus (espaço compreendido entre a nota mais baixa e a nota mais alta) e a seu ethos (caráter, disposição de humor). Todos os cantosfinalizadosem ré, classificados no tonário, serão subclassificados no "escaninho" do primeiro tom (ré agudo) ou no do plagal ré grave. A diferença não é enorme, sem dúvida, mas é suficiente para justificar essa triagem. Temos, assim, quatro modos possíveis, isto é, quatro maneiras de dispor tons e semitons em relação a uma tônica (no caso, a final), mas oito tons, porque a antífona de um determinado modo deve harmonizar-se com um dos dois tons salmodíeos, agudo ou grave, comandados por seu final: Antífona com final ré
com recitação do salmo em lá com recitação do salmo em lá
= 1° tom = 2° tom
Antífona com final mi
com recitação do salmo em si (ou em dó) com recitação do salmo em lá
= 3° tom = 40 tom
Antífona com final fá
com recitação do salmo em dó com recitação do salmo em lá
= 5° tom = 6° tom
Antífona com final sol
com recitação do salmo em ré com recitação do salmo em dó
= 7° tom = 8° tom
É digno de nota que os tons salmodíeos do agudo (1, 3, 5, 7) escolhem uma corda recitativa na quinta da final, enquanto os outros tomam a quarta (4, 8) ou a terça (2, 6). Essa arquitetura básica, que dá preferência a duas estruturas musicais — a quinta e a quarta — definidas pelos músicos da Antigüidade grega como "consonâncias
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Técnica e notação do canto gregoriano
perfeitas", constitui o próprio fundamento da modalidade gregoriana. Na verdade, em toda peça ornamentada com melismas, as fórmulas de entoação, as pausas cadenciáis, os neumas "pesados" e apoiados — em suma, o arcabouço da peça — acham-se ligados à tônica final do modo por meio de qualquer uma das quatro consonâncias estabelecidas sobre proporções numéricas simples: quarta (4: 3), quinta (3 :2), oitava (2 :1) e tom (9 : 8). Mas também — como se viu na salmodia (2 e 4 tons) — por meio da terça maior ou menor. Jamais por meio de semitom (a sensível) ou por meio de quarta aumentada (o "trítono" ou "tritom", chamado no século XVI de diabolus in musica [o diabo na música]). Para evitar o trítono (fá - si), basta utilizar a única nota "móvel" da escala diatónica antiga, o si bemol. Na realidade, durante três séculos na França e na Itália, e durante quatro ou cinco na Baviera e na Áustria, não se colocou o problema da escrita musical... A tradição oral transmitia de boca a ouvido, de mestre a discípulo, tanto as melodias mais simples do ofício feriai hebdomadário, como as mais melismáticas com todo o detalhe de seus ornamentos. o
o
As tentativas Os problemas de escrita vieram a ser colocados no dia em que alguém procurou fixar a linha melódica em todos os seus detalhes. Mas por que essa escrita da melodia? Por que tantas minúcias? A tradição oral, sustentada pela memória coletiva de milhares de chantres distribuídos pela Europa, ter-se-ia estiolado? Certamente que não: mas era preciso acelerar a formação dos chantres, que tomava tempo demais — pelo menos dez anos, declara Guido d'Arezzo. Já desde a época de Hucbald, no final do século IX, evidenciara-se a insuficiência dos neumas sem pauta para assinalar o valor exato dos intervalos melódicos. Nas obras de teoria musical, fazia-se necessário, para fins de demonstração, dar exemplos precisos... Como proceder? A engenhosidade dos sábios da Idade Média é inversamente proporcional à modicidade dos meios de que dispunham... Hucbald, que vira nos velhos tratados de música greco-romana os graus do grande sistema perfeito — a escala da música antiga, que compreendia quinze graus de lá a lá — serem designados pelas letras do alfabeto, propôs acrescentar essas letras ao lado de cada nota da notação neumática sem pauta: desse modo, o cantor poderia reconhecer com certeza a melodia que por acaso houvesse perdido nitidez em sua memória, ou, melhor ainda, poderia decifrar à primeira vista uma peça de canto recém-registrada nessa nova notação e que ele jamais houvesse ouvido antes (ignotum cantum). Esse problema do "branco" na memória ou da decifração à primeira vista de composições novas pela leitura sempre preocupou os chantres e os maîtres ès arts que ensinavam música entre ofimdo século LX e meados do século XI, pelo menos nas regiões de línguas románicas, porque, nas de língua "tudesca", isto é, para leste do Reno, a rotina e o conservadorismo prolongaram o uso da notação neumática 1
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Primeira parte: das origens cristãs ao século XXV
até 1350 e, em certos casos, além dessa data. O paradoxo chegava ao ponto de composições feitas na França e na Itália, ao tempo em que a pauta já se generalizara, serem transcritas em espessos e angulosos neumas nos mosteiros da Baviera e da Áustria. Para precisar os intervalos melódicos do canto, lançou-se mão de diversos procedimentos: em primeiro lugar, a notação alfabética boeciana, substituída na Itália por uma notação alfabética contínua de a a p: a (lá), b (si bemol), c (dó),... m (mi), n (fá), o (sol), p (lá). Essa notação, importada por Guilherme de Volpiano, que se tornou em 990 abade de Sainte-Bénigne de Dijon, foi aplicada na prática para notar os cânticos da missa de um gradual hoje conservado em Montpellier, e difundiu-se na Normandia, chegando a Fécamp, a Saint-Évroult e ao Mont-SaintMichel durante a reforma das instituições monásticas empreendida por este abade. Na Itália, um outro sistema foi inventado no século X: a notação alfabética de A a G para a parte grave da escala e de a até a (dois a minúsculos superpostos) para a oitava dos agudos. Como era preciso notar também o sol grave que aparece em algumas peças do modo de ré que alcança sons gravíssimos na escala, recorreu-se à utilização do T (gama) do alfabeto grego, uma vez que o G maiúsculo e o g minúsculo já haviam sido empregados. Daí provém a designação de "gama" aplicada ao conjunto. Conservou-se uma única folha do antifonário de San Michèle di Murano notado segundo os princípios desse sistema: o que mais chama a atenção nesse precioso remanescente é que as letras da notação não se acham escritas horizontalmente alguns milímetros acima do texto litúrgico: sobem e descem em função da progressão melódica que evolui para o ápice da melodia e em função da descida progressiva em direção à tônica final. Por exemplo, numa antífona do 8 tom: o
e d c h 8 entonação
d
A invenção de Guido d'Arezzo Quando, por volta de 1000-1050, Guido d'Arezzo iniciou sua carreira de mestre da escola claustral de Pomposa, admirável mosteiro de estilo románico na costa baixa do Adriático, ele ensinava às crianças as letras do alfabeto que representavam as notas... Mas procurava, ao mesmo tempo, um sistema que fosse mais "falante" — mais "cantante" seria, no caso, o termo apropriado... Conhecia o tratado de Hucbald e um outro tratado anônimo a que já se fez referência e que se intitula Musica enchiriadis, nos quais, para explicar os diversos intervalos às crianças e aos adolescentes, seus autores desenham no pergaminho as seis cordas da citara. Um dos manuscritos do Enrichiadis do século XI descreve a bratsche ou viola di braccio e, no correr da descrição, explica que o semitom situa-se entre a terceira e a quarta corda, o que confere ao instrumento os graus do-ré-mi/fá-sol-lá (claro que não se atribuíam então tais nomes aos graus desse hexacórdio!)... E de fato, no capitei do terceiro tom, conservado no Museu do Farinier, em Cluny, vê-se um menino aprendiz de música que pousa o dedo na terceira corda de uma lira-cítara apoiada em seu joelho esquerdo. Essas seis linhas constituem, sem dúvida, uma pauta, com a diferença que, em lugar de claves, indica-se, no princípio de cada entrelinha, se o intervalo é um T (tom) ou um S (semitonus, semitom). Pois aí está, fundamentalmente, o ponto importante do "solfejo": não cantar um tom onde deveria soar o semitom. Para chamar a atenção dos meninos, Guido d'Arezzo valia-se de cores: o vermelho para a linha do fá, o amarelo para a linha do dó e, além disso, uma letra-chave no início de cada linha: começando de baixo para cima, D para o ré, F para o fá, A para o lá e finalmente C para o dó. Acima do dó, encontram-se o mi e e em seguida o sol com a letra-chave G, que, na escrita gótica alemã, tornou-se a nossa "clave de sol"... Na pauta primitiva do século IX, não se escreviam notas nem neumas, mas tão somente as sílabas do texto cantado:
c a h g g cadência
Substituam as letras por quadradinhos e materializem o lugar das notas sobre linhas paralelas e entre as linhas: terão redescoberto a pauta musical! Na realidade, a célebre invenção de Guido d'Arezzo não se deu exatamente assim. Uma invenção, por mais genial que seja, é fruto da imaginação criadora. Mas a imaginação jamais parte do nada — ex nihilo — como a criação do TodoPoderoso: procede pela combinação engenhosa e racional de elementos preexistentes.
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Técnica e notação do canto gregoriano
—e De
— um lau — au
—a — da — mus
Te Muito pouco cômodo para registrar um repertório de 2.000 peças! Mas Guido conhecia os neumas, aqueles acentos e aqueles pontos que materializavam cada nota da melodia: em vez de situá-los de forma aproximativa, por que não os dispor sobre a pauta colorida na altura exata indicada pela letra-chave? Estava inventada, a partir daí, e pronta para o uso, a pauta musical. O sucesso foi imediato, mas despertou inveja: Guido teve que deixar Pomposa e atravessar a pé os Apeninos, para ser recolhido pelo bispo de Arezzo, Teobaldo, que lhe confiou os meninos da catedral-escola. Pouco depois, Guido d'Arezzo explicava seu pro-
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cesso de notação ao papa João XIX, que logo o fez aplicar aos livros de canto da Igreja romana. A difusão da pauta colorida consumara-se na Itália desde 1160-1180. Na França, ela se fez mais lentamente, porque as regiões de langue d'oc, ao sul do Poitou, utilizavam um sistema de pontos dispostos em degraus sobre uma pauta "invisível" — na verdade, as linhas pares da pautagem preparada com vistas à escrita dos textos, que o notador aproveitava como eixo para a distribuição desses pontos. A notação preconizada por Guido d'Arezzo penetrou na França pelo vale do Ródano, e chegou a Nîmes, a Valência, a Viena, mas não a Lyon, onde, em pleno século XIII, conservava-se ainda a notação neumática sem pauta! E mais que isso: há o testemunho de dois beneditinos do século XVTI, que registraram por escrito observações sobre os usos htúrgicos vigentes no seu tempo, pelas quais ficamos sabendo que, em Lyon, nessa época, os cônegos da Primacial de Saint-Jean executavam de memória todos os cânticos fitúrgicos. Os livros serviam apenas como meio de controle para o ensaio (recordatio) do sábado. Também aconteceu assim com os cartuxos que, para a notação em seus graduais e antifonarios, adotaram o sistema de Guido d'Arezzo com suas linhas vermelhas, pretas e amarelas. Em Chartres e na Normandia, o verde substituiu o amarelo: tanto faz, de qualquer modo salvou-se o princípio de, por meio de uma cor, assinalar o termo superior do semitom. Não demorou muito e, ainda no correr do século XII, particularmente no norte da França, o sistema foi simplificado, traçando-se pautas de quatro linhas vermelhas com letras de claves de dó, na época ut (C), e de fá; no leste da França, as quatro linhas eram pretas.
Terá sido Guido d'Arezzo o autor dessa melodia-solfejo? Até hoje se discute! Mas pouco importa. O gênio consiste às vezes em adaptar, e não necessariamente em criar. E não há como deixar de reconhecer que esse hino, convidando tão naturalmente ao canto, obteve um tal sucesso na prática em nível escolar que bem depressa entrou nos hinários fitúrgicos — a não ser na Alemanha. Ficou fácil, daí por diante, solfejar (em latim, solfare) e redescobrir, por associação de idéias, a nota musical correspondente a cada sílaba de solmização: ut, ré, mi, fá, sol, lá — um "hexacórdio natural", como se dirá mais tarde. Mas, haverá quem pergunte, e o si? Guido não deu nome a essa letra por causa de sua "mobilidade"; na mesma melodia, ele pode ser "mole", ao subir, e "duro", ao descer, mas não em todos os modos... Não se podia solfejar: lá, b molle, ut, ré, ut, b durum... Ficava comprido demais! Por convenção tácita, faziam-se seguir as mesmas sílabas de solmização acima do lá, exprimindo-se o semitom (si bemol) por lá-fá e o tom pleno (si natural) por lá-mi: lá sol a fá sol G fá mi F (ré) Elá (mi) (ré) (ut) D sol Cfá (ut) B mi A ré ut
A solmização
Esse procedimento da solmização conservar-se-ia em uso até o século XVIII, até a época de J.-J. Rousseau. Mas o si, formado talvez pela reunião das iniciais de São João (Sánete Iohannes) no hino-solfejo de 24 de junho (festa de São João Batista), começou a usar-se desde o século XVI. Deve-se a G. Doni (f 1647) a transformação do ut em dó, designação que tem origem na primeira sílaba de seu próprio sobrenome.
O sistema de Guido d'Arezzo tinha um grande valor para o ensino da música prática às crianças, mas exigia um modo próprio de aplicação: Guido assinalou-o numa carta a seu ex-confrade de Pomposa, Michel. Na verdade, as notas da escala não podiam mais ser designadas por letras, como na notação alfabética, porque a maior parte dos cantos gregorianos não começa do grave da escala antiga, mas das notas compreendidas entre ut (= dó) e sol. Era preciso dar-lhes nomes: mas quais? Guido teve a engenhosa idéia de pegar as sílabas de abertura de cada hemistiquio de um antigo hino a São João Batista, subir um grau na escala a cada corte de sílaba e designar, com as sílabas assim destacadas, as notas correspondentes na pauta: UT RE MI SOL
queant laxis sonare fibris ra gestorum FA muli tuorum ve polluti LA bii reatu (Sánete Iohannes)
O ritmo gregoriano O melhoramento da notação no plano melódico não iria causar alguma perda no plano rítmico e dinâmico? Já no século IX, Hucbald constatara que a precisão melódica das letras apostas aos neumas não devia acarretar a eliminação destes, que exprimiam tantas nuanças agógicas e dinâmicas, hoje perdidas em conseqüência da interrupção da tradição oral do canto a partir do século XVI. Em Sankt Gallen e em Metz, desde o século IX foram acrescentadas, ao lado dos neumas, letras "significativas" — e não melódicas —, ou seja, as iniciais das palavras latinas que
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designavam uma subida ou uma descida dignas de nota, mas expressas "qualitativamente"; por exemplo, "mais agudo", "mais grave" ou "uníssono". Essas indicações também diziam respeito à dinâmica ou à rítmica: "mais depressa" (celeriter), "sustente" (tenete), etc. Na verdade, essas letras, tão numerosas na tradição de Sankt Gallen (no gradual de Einsiedeln, vêem-se mais de 22.000!), não são a rigor necessárias à interpretação do ritmo. Devem ser entendidas como anotações de cantores e de notadores que, durante os ensaios, querem deixar tudo registrado em seus mínimos detalhes. Jamais, entretanto, uma notação musical conseguirá notar tudo em qualquer que seja o repertório: "a música começa além das notas", disse Jacques Challey, acrescentando: "Só de sessenta anos para cá é que, com Debussy e Stravinski, os compositores passaram a pedir aos intérpretes para tocar uma peça como eles a haviam escrito. Os etnomusicólogos, como Simha Arom, enfrentam problemas muito delicados quando pretendem transcrever as músicas étnicas que gravaram em fita: claro que esses problemas não são de melodia nem de ritmo, mas há certas nuanças de expressão, certos ataques da voz, variações e ornamentos mínimos, que é melhor desistir de escrever em uma pauta de cinco linhas... O enciclopedista Isidoro de Sevilha (f 697) tinha razão ao dizer que "a menos que os sons sejam lembrados pelo homem, eles perecem, pois não é possível escrevê-los" (Etymologiarium, capítulo III, 15). Voltando ao ritmo: é preciso resignar-se a ignorar "a" solução. Há cerca de um século e meio admite-se que o ritmo gregoriano é um ritmo oratório, isto é, que se canta como se fosse a declamação de um discurso: prótase < > apodóse. As sílabas todas iguais? Sim, em princípio, mas que a inteligência decida na prática, pois sabe-se que certas sílabas têm articulação mais longa, mais difícil do que outras. Por outro lado, a fonação difere de região para região. Se compreendi bem o capítulo 15 do Micrologus de Guido d'Arezzo, eu diria que as cadências e semicadências dos cantos em prosa é que eram medidas, mas não segundo a "medida" (o compasso) praticada na polifonia desde 1180 (a observação é de Francon, cem anos mais tarde). Nesse domínio é sempre preciso lembrar que estamos diante de um canto sacro tirado dos livros sagrados da Bíblia, e que não são nem as tresquiálteras, nem as síncopes, nem as precipitações intempestivas do movimento que poderão conferir a serenidade necessária ao canto litúrgico, o qual deve, segundo os regulamentos da função de chantre, "edificar os ouvintes". O canto deve elevá-los em direção ao espiritual, ao invés de abaixar-se ao nível dos laicos cantus.
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A LIBERDADE E A BRECHA: TROPOS, SEQÜÊNCIAS, DRAMAS LITÚRGICOS
"Tal como ela se mostra à época do advento dos carolíngios, não resta à música senão morrer" (Jacques Challey). De fato, a reforma romana impusera ao Ocidente uma sujeição que tornava impossível a renovação das formas. E é difícil imaginar como a monodia eclesial, desde então sujeita aos despóticos ne varietur àt São Gregorio, pudesse escapar ao conformismo e à esterilidade. Ora, a renascença carolíngia (exatamente como a do século XII, em grande parte preparada pelos períodos intermediários) assinala-se por um formidável espírito de invenção ao qual não se pôde manter indiferente a música. Além do mais, as exigências tanto musicais como metafísicas de Santo Agostinho a respeito do Jubilus, o cântico de louvor livre e gratuito que se expande no êxtase do amor divino, não se combinam com a estreiteza e a fixidez da liturgia gregoriana. Os ouvidos não eram insensíveis aos cânticos ornamentados da tradição judaica, que os primeiros cristãos recusaram por amor à austeridade, o mesmo acontecendo com os cânticos dos cultos gregos e bizantinos que continuavam a fascinar o Ocidente. Sem falar que é preciso levar em conta uma característica constante do espírito medieval, que é o desenvolvimento dos textos de autoridade por meio da glosa, do comentário exegético, da análise marginal ou intertextual — um espa-
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ço em branco era por vezes reservado a esse fim nas entrelinhas dos manuscritos —, exercícios cotidianos dos clérigos empenhados na busca de sentido e na decifração dos signos. Todas estas razões — ê outras, sem dúvida, que escapam ao historiador — fazem com que, desde o século LX, no Ocidente, seja por efeito de uma tradição reencontrada ou de pura invenção, os tropos surjam na fiturgia, primeiro na da missa, depois na dos ofícios. O período mais fecundo situa-se entre os séculos X e XII, quando o canto eclesiástico monódico atingiu seu apogeu, mas a invenção de novas melodias prosseguiria de maneira mais ou menos regular até o século XVI. A essa altura, o Concilio de Trento (1545-1563) intervém para proibir o uso das formas inovadoras, decretando o retorno com exclusividade aos modelos do canto gregoriano. Somente cinco seqüências sobreviveram às decisões do concilio: Victimae Paschali Laudes, atribuída ao monge Wipo de Borgonha ( t 1048); Veni Sánete Spiritus, que tudo faz crer seja de Stephen Langton, arcebispo de Cantuária (t 1228), a menos que tenha sido escrita pelo papa Inocêncio III (1198-1216); o Stabat Mater, o Dies Irae; e Lauda Sion, cujas palavras são atribuídas a Santo Tomás de Aquino.
Os tropos O termo Troprio (do grego tropos, melodia) designa, desde o século V, hinos breves que se cantavam depois de cada versículo de salmo. Na Idade Média, tropus é o nome dado a uma figura de retórica, e o adjetivo tropológico refere-se, desde São Jerôriimo, ao sentido alegórico de um texto, por oposição ao sentido literal. Na esfera da música monódica, o termo tropo define-se como "o desenvolvimento musical ou literário, ou ainda músico-literário, de uma peça de canto, ou de uma parte de peça de canto, que figura no gradual onde se encontram os cânticos da missa e no antifonário que contém os do ofício" (Michel Huglo). Em dois grandes centros religiosos, durante o século IX, apareceram os tropos: a abadia de Sankt Gallen-Gall, na Suíça, e a abadia de Saint-Martial, de Limoges. Há uma história que se conta de um beneditino de Jumièges que, foragido da invasão dos normandos, refugiou-se em Sankt Gallen. Mostrou aos monges dessa abadia seu antifonário, onde se podia ver que haviam sido inscritas palavras sob os vocalises do Aleluia. O monge Notker, constatando a eficácia mnemotécnica do processo, pôs-se a imitá-lo, com variantes, sob o olhar crítico de seu mestre Iso; depois foi a vez de Tutilon, de Hartmann. Por menor que seja a veracidade dessa história, o fato é que os tropos integraram-se muito rapidamente à liturgia. No que concerne à missa, é preciso distinguir os tropos do próprio da missa — cujo uso se perdeu desde o século XII, mas que foram numerosos — dos tropos do ordinário da missa que ainda são cantados. São eles:
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Tropos do próprio da missa: tropos do Introito, 382; do Gradual, 20; do Aleluia, 53; do Ofertorio, 64; e da Comunhão, 82. Tropos do comum: os do Kyrie, 165; do Gloria, 92; do Hosanna, 45; e do Agnus Dei, 87. Uma total liberdade de invenção caracteriza os tropos do ordinário da missa, ao passo que os do próprio da missa estão submetidos ao quadro musical da peça que serve de base à sua elaboração. Para o Ofício, os principais tropos compostos são os do Deus in adjutorium e do Benedicamus domino. Distinguem-se três tipos de tropos, a maior parte deles bem diferenciados, embora possa acontecer que se desmembrem para combinar-se entre si: o desenvolvimento melismático de uma melodia preexistente; o acréscimo de um texto literário novo a um cântico preexistente; o acréscimo, a um cântico, de um texto literário novo e de uma melodia nova. O primeiro tipo é certamente o mais antigo. O acréscimo melismático recebe o nome de Neuma ou então de Melodia, e, em se tratando do Aleluia, de Sequentia. Lamentavelmente, e talvez por causa da dificuldade de sua execução, esses tropos foram os primeiros a desaparecer. O segundo tipo — acréscimos de textos aos cânticos preexistentes — é utilizado sobretudo para o canto responsorial e para o Aleluia (por exemplo: Dicite in gentibus). São as Prosae ou Prosulae, mesmo quando, no curso de sua evolução, a prosa é substituída pelo verso. Em se tratando dos Kyrie, não é raro encontrar os dois tipos juntos. O terceiro tipo, finalmente — acréscimo, a um só tempo, de um texto e de uma melodia a um cântico —, utilizase no Introito, no Gloria, no Sanctus, no Agnus Dei. Tem uma escrita inteiramente livre, porquanto não precisa prender-se nem a um texto, nem ao modo de uma melodia preexistente, nem ao comprimento de um melisma.
A seqüência Tropo do Aleluia em seus começos, a seqüência não demorou a tornar-se uma composição independente, tanto no plano musical como no plano literário. Foram compostas 4.500 dessas peças até as proibições ditadas pelo Concilio de Trento; isso diz bem da necessidade existente de ampliar o quadro da Hturgia. As seqüências do primeiro período, as de Sankt Gallen e de Saint-Martial de Limoges, adotavam o princípio de um paralelismo entre o texto literário e o texto musical, de acordo com o seguinte esquema: a bb ce dd cc... f, mas muitas outras eram compostas de maneira mais livre. Durante os séculos X e XI, a seqüência evoluiu da prosa para os versos irregulares e terminados por assonâncias, depois para os versos regulares, mais freqüentemente sob a forma de aa, bb, cc, dd... O modelo aperfeiçoou-se no século XII, particularmente com os poemas de
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Adam de Saint-Victor, que alcançam o ápice da elegância e da perfeição formal. Em Paris, a célebre escola de pensamento da abadia de Saint-Victor brilha em todo o seu esplendor no domínio da monodia, enquanto, a pequena distância, floresce a composição das primeiras grandes polifonias da Escola de Notre-Dame. Do ponto de vista da execução das seqüências, não está fora de cogitações a idéia de que uma voz de organum duplicasse a melodia na oitava, na quarta ou na quinta. Nos Analecta hymnica, a palavra organum aparece 71 vezes a propósito dos 265 textos de seqüências da coleção. Mas pode tratar-se igualmente de um órgão (os textos que evocam um acompanhamento instrumental não são raros). E ainda é preciso aclmitir que essas citações remetam a um simbolismo extraído da Bíblia, mais particularmente dos salmos de Davi, que nada tem a ver, como pensa a maioria dos liturgistas, com a realidade das práticas. Permanece sem solução a questão de saber se a proibição dos instrumentos no culto significa que eles de fato até então fossem utilizados. De qualquer forma, os tropos e as seqüências desarrumam consideravelmente a ordem gregoriana, em nome da liberdade de invenção. Para além do embelezamento da liturgia, não há como deixar de ver neles a brecha que, aumentando pouco a pouco, vai terminar por abalar o edifício inteiro da liturgia romana. Ora, não é na parte mais fraca da arquitetura que aparece essa brecha, mas em seu ápice, no lugar em que a palavra de louvor do Aleluia prolonga-se na gratuidade — o dom de graça do Jubilus. Os acréscimos melódicos devidos aos fervores do imaginário vão acarretar um movimento irreprimível de invenção de formas novas, que aos poucos deixa o templo para estender-se à arte profana. Não há dúvida: o teatro e o canto profano, constantemente malditos pela Igreja, têm como fonte os tropos, e desse minguado filete de alguns cânticos de adoração livres haveria de surgir um rio de criações estranhas ao espaço sagrado. Num movimento de retorno, este se verá invadido por formas musicais que nada mais têm a ver com a liturgia gregoriana. As proibições do Concilio de Trento, incapazes de conter essa corrente, apenas servirão para coagular, num isolamento estrito, a música do cantochão. O drama litúrgico Uma ação teatral cantada durante os ofícios — poderíamos tentar definir assim o drama litúrgico. É o único vestígio de teatro que nos resta do período anterior ao fim do século XIII, o que, para muitos, pode ser motivo de surpresa. Continuava vivo, sem dúvida, o interesse pelas peças da Antigüidade latina: as obras de Plauto e de Terêncio eram conhecidas dos alunos das escolas monásticas de Tours, de Orléans, de Fleury-sur-Loire e de Chartres. Os escribas dos scriptoria de Reims, de Limoges, de Fleury copiavam, no século IX, as comédias de Terêncio;
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mas a Igreja via com desconfiança os mimos e os menestréis que, a seus olhos, não faziam senão retomar a tradição dos histriões e exibicionistas do Baixo Império; daí as proibições que pesavam sobre o teatro. Curiosamente, entretanto, é no seio da própria Igreja que o teatro iria renascer, como um desenvolvimento dos tropos dialogados. O teatro medieval nasceu da liturgia como, antes dele, o primeiro teatro grego se havia desenvolvido a partir dos cultos dedicados a Baco. Para compreender bem esse fenômeno, aparentemente paradoxal, é importante analisar as razões que puderam levar os homens de igreja a introduzirem, no meio das preces, uma forma de espetáculo, por mais embrionária que tenha sido. Em primeiro lugar, esses dramas, ou esses autos, reservados aos clérigos, concebidos e executados por eles tão somente, não têm por função o divertimento: pretendem ser um suporte suplementar — por meio da ação e da encenação que se vêm juntar ao canto — oferecido à palavra sagrada. Os primeiros que surgiram situavam-se no momento do Introito da missa e constituíam, de certo modo, uma expansão do ato sacrificial da Eucaristia. Na civilização medieval, que pensa o gesto como o sinal material de uma palavra, introduzir a mimesis na liturgia cantada deriva de uma preocupação com manifestar visualmente a auctoritas, a autoridade da palavra sagrada, isto é, seu caráter de verdade. Ao sinal verbal acrescenta-se assim o sinal visual na representação de cenas com personagens. Tal é a primeira função desses dramas. Por outro lado, sendo uma manifestação da auctoritas, o drama tem igualmente por objetivo sua transmissão com vistas à edificação dos fiéis que assistem aos ofícios. As cenas desenrolam-se em torno do altar, de modo a serem bem percebidas por toda a assistência: ut videat populus ("para que o público veja") repetem incessantemente os textos. E, enfim, os dramas contribuem para enriquecer e embelezar a liturgia. É preciso levar em conta a influência que terão exercido as cerimônias orientais sobre a Igreja do Ocidente. De fato, a Igreja de Jerusalém desde muito cedo introduzira a dramatização dos ritos, muito antes dos desenvolvimentos da liturgia romana, com a dramatização das homílias e dos evangelhos apócrifos. Devemos observar, contudo, que, se por um lado os monges beneditinos, que não receavam dar a suas abadias um brilho esplendoroso, encenaram freqüentemente dramas fitúrgicos, de que dão testemunho seus manuscritos, por outro, os cistercienses, fiéis à austeridade da regra, sempre os excluíram de seus ofícios. OS DRAMAS DO TEMPO PASCAL Tudo começou com o embelezamento da liturgia da mais importante festa do ano, a da Páscoa. O drama da Visitatio sepulchri, tal como aparece no século X, apresenta-se na forma de um tropo dialogado no momento do Introito da missa: as três Marias descobrem que o túmulo de Cristo está vazio e trava-se o diálogo com o anjo:
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Anjo: "Quem quaeritis in sepulchro, (o) Christicolael" Marias: "Jesum Nazarenum crucifixum, o Caelicolae" Anjo: "Non est hic, surrexit sicut praedixerat; ite, nuntiate quia surrexit. de sepulchro'' 1
Esse tropo dialogado encontra-se registrado, com a respectiva notação, na abadia de Sankt Gallen, bem como na de Limoges. É um cântico, ora responsorial, ora antifonado, como é de costume no Introito. O Quem quaeritis rapidamente expandiu-se por toda a Europa. Mas, em pouco tempo, antes do fim do século X, o curto diálogo que o constitui foi deslocado para as Matinas. Pode-se ver no fato a vontade de fazer coincidir o tempo real em que ele se desenvolve com o momento em que as mulheres se dirigiram para o túmulo. Por outro lado, com essa nova localização, o tropo podia ocupar o tempo deixado livre entre Matinas e Laudes pela supressão dos três salmos que não se cantavam antes da festa da Páscoa. A partir desse deslocamento, os diálogos cantados e mimados terão vida independente e desenvolver-se-ão regularmente. O tropário de Winchester, desde 980, dá uma versão completa do Quem quaeritis. A Regularis concordia, [Boa harmonia canónica], redigida por Ethelwood, bispo de Winchester, embora menos completa, fornece, em compensação, numerosos detalhes concernentes à cenografia, aos gestos e aos figurinos dos personagens. Com o correr dos séculos, os dramas do período da Páscoa (há por volta de dois mil) transformaram-se de múltiplas maneiras: depois do Quem quaeritis, que é o mais importante, outros farão intervir as personagens dos apóstolos Pedro e Paulo, especialmente nas versões dos países germânicos, enquanto um terceiro grupo põe em cena o vendedor de aromas abordado pelas santas mulheres. Esses dois últimos tipos afastam-se bem nitidamente do canto gregoriano. Os dramas ditos da Ressurreição representam o reencontro de Cristo com uma das três Marias depois de ter ressuscitado. Os manuscritos de Rouen propõem diversas versões datadas do século XII e que se divulgaram por toda a Europa, tanto assim que ainda foi possível encontrar a tipologia em Praga no século XIV. Quanto maior o avanço no tempo, mais essas representações ganham em r i queza e em complexidade. Do manuscrito de Fleury, copiado no século XIII pelos monges de Saint-Benoît-sur-Loire, constam as versões mais interessantes. O manuscrito de Tours apresenta variantes longas e muito afastadas do canto gregoriano, que datam dos séculos XIII e XTV; já na versão mais tardia, a do drama de São Quintino, originário da abadia de Origny-Sainte-Benoîte, a língua vernácula intervém consideravelmente.
"Quem procurais no túmulo, (ó) fervorosas do Cristo?" — "Jesus de Nazaré, que foi crucificado, ó habitante do Céu." — "Não está aqui, ressuscitou, como ele havia predito; ide e anunciai que ele ressuscitou do túmulo." (N. T.)
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OS AUTOS DE NATAL O outro grande ciclo, que surge no século XI, é o dos autos de Natal, que têm como ponto de partida um tropo do Introito da terceira missa do dia de Natal. Encenase um diálogo em que intervém os pastores a caminho do presépio. O anjo lhes pergunta: "Quem quaeritis in praesepe, pastores, dicite?' "Salvatorem Christum Dominum, infantem pannis involutum, secundum sermonem angelicum." 1
O tropo conclui com o Introito: Puer natus est nobis [Um menino nasceu para nós]. Em pouco tempo esse curto diálogo cantado e mimado foi, como o da Páscoa, deslocado para as Matinas. Note-se que a célula geratriz dessas duas grandes séries de autos Utúrgicos, os da Páscoa e os do Natal, organiza-se em torno da pergunta: Que procurais? Vem à lembrança a recomendação de São Bento: Deum quaerere (procurar Deus). O espírito medieval é o da busca, coletiva e individual, a partir da qual se deterrmnam as escolhas da existência. Esse espírito aflora também e largamente, seja dito de passagem, nos grandes textos da literatura profana, como os romances de Perceval ou le conte du Graal [Parsifal ou o conto do Graal], de Chrétien de Troyes, no fim do século XII, e, no século XIII, a Queste del Saint Graal [Demanda do Santo Graal]. Um dos grandes eixos de reflexão espiritual da Idade Média acha-se assim introduzido no cerne do teatro nascente. Para os autos de Natal, colocava-se o presépio atrás do altar, e as personagens evoluíam nos dois lados deste. O mais desenvolvido desses dramas é, no século XIII, o de Rouen, onde se podia ver e ouvir cinco pastores como tais trajados, um anjo que canta Noli timere, um coro angélico que canta o Gloria in excelsis e muitas outras ampliações da situação inicial. Nessa mesma época litúrgica, encena-se, desde o século XI, a Vtsitatio magi [Visitação dos magos], por ocasião da festa da Epifanía. Uma das versões, em Limoges, no século XII, desenrolava-se durante o ofertorio da missa: os reis magos, suspensos por cordas, desciam em direção ao altar para trazer seus presentes ao Menino Deus. Uma variante dessa representação, o Offtcium stellae [Ofício da estrela], era dada entre a Terça e a Missa, em Rouen, notadamente nos séculos XII e XIII. Os magos celebravam a estrela que os guiava para o presépio. No manuscrito de Fleury, lêem-se indicações de encenação com muitos detalhes sobre o deslocamento da estrela de uma porta à outra do coro e por cima do altar, sobre a cólera de Herodes ou ainda sobre os figurinos dos pastores.
"Dizei-me, quem procurais no presépio, pastores?" — "O Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, a criança envolta em panos, segundo a palavra do anjo." (N. T.)
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Sempre durante os doze dias das festas de Natal, desenrolava-se também o Ordo prophetarum [Ordem dos profetas], com base num sermão do século VI erroneamente atribuído a Santo Agostinho, em que intervém não somente os profetas da Bíblia, mas também personagens alheios às Sagradas Escrituras tais como Virgílio e a Sibila. A esta última, reservava-se uma melodia especial com que ela anunciava o nascimento de Jesus Cristo. Essa mesma melodia continua a ser cantada, na ilha de Majorca, durante a missa de Natal. E uma lembrança desse drama e do impacto que ele possa ter tido sobre os espíritos subsiste até hoje em Notre-DameLa-Grande de Poitiers, onde as estátuas dos profetas estão colocadas, não na ordem em que figuram no Antigo Testamento, mas exatamente segundo aquela do Ordo prophetarum. Esse auto comporta partes antifonadas, mas afasta-se muito, ele também, da liturgia gregoriana. O AUTO DE DANIEL Além desses dois grandes ciclos que vão progressivamente crescendo em variantes e em complexidade, inventaram-se, nos séculos XII e XIII, cerca de vinte autos cujos temas são tirados ora do Novo Testamento, ora do Antigo, e também da hagiografía. Assim é que, mais uma vez no famoso manuscrito de Fleury, encontramos autos da Ressurreição de Lázaro. Um deles, de autor anônimo, é pobre, sem variedade nas melodias; em compensação, os do clérigo Hilaire, aluno de Abelardo, contêm melodias e ritmos em consonância, como às vezes acontece, com os caracteres das personagens. A música da Conversão de São Paulo é também muito variada. Nessa coleção, figuram ainda diversos autos de São Nicolau, que gozavam de grande popularidade, e um sobre o Filho de Getrão. O afastamento em relação à música litúrgica e mesmo ao texto da Bíblia acentua-se com o Sponsus de Limoges (século XII), que encena a parábola evangélica das virgens sábias e das virgens insensatas à espera da vinda do Esposo. A língua vernácula nele está amplamente representada, de um extremo a outro do texto, em alternância com o latim, até mesmo nos hinos introdutórios. Há um refrão arrematando as melodias das virgens insensatas, o que diz bem da distância a que estamos do canto gregoriano, e mais: pela primeira vez, os diabos fazem sua aparição, no final da representação. Em épocas recentes o Sponsus tem sido encenado na França pelo conjunto musical Organum. Mais favorecido que os outros dramas, o Jeu de Daniel [Auto de Daniel] teve diversas edições e tem sido encenado com grande freqüência (na igreja Saint-Germain-des-Près, em Paris, mas também em 1958 nos Cloisters, dependência em estilo medieval do Metropolitan Museum of Art, no Fort Tryon Park, em Nova York, o que merece ser assinalado; em 1975, estudantes de Oxford vieram montálo no interior da catedral de Beauvais). Há duas versões do Jeu de Daniel no século XII: uma é assinada pelo clérigo Hilaire, e a outra é obra coletiva dos clérigos da catedral de Beauvais, que a representaram. Esse auto, tudo faz crer, era interpre-
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tado nas Matinas do dia I de janeiro, dia da Festa dos Insensatos (Fête des Fous, em latim Officium stultorum) e do Asno (apelido do subdiácono). A história do livro de Daniel é retomada nesta representação, com empréstimos tirados de um texto apócrifo que relata como o profeta Habacuc veio miraculosamente alimentar Daniel em sua prisão. Muitas personagens entram em cena: o rei Baltasar e sua mulher, Dario, os anjos, o profeta Habacuc, personagens da corte da rainha, sátrapas dos reis. A língua vernácula intervém, mas de forma discreta e bizarramente misturada com o latim. Umas cinqüenta melodias, muito simples, sem ornamentos, compõem esse longo drama: litúrgica, há somente uma. A presença de instrumentos, mencionados no texto — órgão, sinos, percussões —, faz ressaltar o seu aspecto espetacular. Com o Jeu de Daniel, consuma-se a independência do drama com relação à liturgia. As partes não litúrgicas desses dramas têm uma escrita que é possível assimilar à do conductus e francamente se emancipam do universo dos modos eclesiásticos. Sem dúvida alguma, esses autos contribuíram para o desenvolvimento da música sacra não litúrgica. Na França, no curso dos séculos seguintes, o teatro religioso ver-se-á impelido para fora da igreja; os mistérios desenrolar-se-ão nos átrios das catedrais, e um espaço rnínimo neles é concedido à música. Na Itália, em contrapartida, mantémse a tradição do teatro sacro no interior do edifício religioso, a qual virá a assumir singular importância na Itália renascentista do Quattrocento; isso, é claro, sobretudo em Florença, onde soberbas sacre rappresentazione aconteceram em Santa Maria dei Fiori, sob a cúpula recém-criada por Brunelleschi. O arquiteto empenha-se de bom grado em utilizar o espaço que concebera e em imaginar, ele próprio, encenações grandiosas para esses espetáculos, com céus abertos, trovões, movimentos de anjos e Deus Pai aparecendo em toda a sua glória por sobre numerosas personagens em trajes de grande aparato. Representações faustosas, cujo dispendioso esplendor chocou o imperador bizantino João VIII Paleólogo quando de sua estada em Florença, em 1439, e que já fazem pressentir a pompa das futuras festas barrocas.
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A MÚSICA PROFANA NOS SÉCULOS X I I e X I I I
A lírica dos trovadores e dos troveiros L a reine chante dulcement, L a voix accorde à Pestrument, Les mainz sunt beles, li lais buons, Dulce la voix, bas li tons.
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THOMAS, Le Roman de Tristan
Até por volta de 1250, a música profana é, toda ela, canto. Por outro lado, não há poesia que não esteja associada a uma melodia. Música e poesia têm assim realizada sua união íntima. Tal como acontece na Uturgia, a função da melodia é ser o suporte necessário de uma palavra, da qual é inseparável. Por sua aliança ao verbo poético, que não se concebe sem ele, o canto participa do sentido, transmite-o na respiração, molda a musculatura dos vocábulos pela articulação, enquanto o verso vive nas vibrações da voz e sua curva se desenha pela da melodia. Música instrumental que independa do canto é inexistente. Só os poderes da palavra contam. Instrumento natural criado por Deus, a voz é considerada superior aos instrumentos feitos pela mão do homem, o que explica também que estes tenham apenas uma função de acompanhamento.
[A rainha canta docemente, / A voz afinada com o instrumento, / As mãos são belas, os lais bons, / Doce a voz, graves os tons.] (N. T.)
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Daí se conclui que o canto profano não resultou de um vago sonho de retorno à Antigüidade, análogo ao que alimentarão os autores do Renascimento, mas de uma extensão, de uma expansão, à língua vulgar e aos temas profanos, da ética e da função do canto no interior da Igreja. Os verbos trabar ("troubadour"= trovador), e trouver ("trouvère" = troveiro) vêm de Tropare e significam inventar, compor tropos. Enquanto o monge, no silêncio e no mundo fechado do mosteiro, celebra a grandeza de Deus com hinos e tropos, o trovador (troubadour) e, depois dele, o troveiro (trouvère) compõem, na intimidade do coração, cantigas de louvação à Dama a quem devotam todo o seu fervor. O amor, o louvor à mulher constituem, de fato, a substância essencial do canto, a motivação mais freqüente da escrita. A repercussão da arte dos trouveurs foi tal, nos séculos que se seguiram, que não há erro em dizer que ela participou da elaboração da cultura ocidental, e essas cantigas, por seu poder de invenção, por seu refinamento, constituíram verdadeiramente o berço da lírica européia. Os trovadores Os trovadores (troubadours) são originários do sul do Loire, das regiões de língua d'oc: Auvergne, Limousin, Périgord, Bordeaux, Toulouse e, do outro lado do Ródano, Marselha e a Provença. Começam a compor por volta dos anos 1100, antecipando-se aos troveiros (trouvères) em mais de meio século. Em sua maioria, são cavaleiros originários da alta, da média e da pequena nobreza. O mais antigo dos trovadores é Guillaume, sétimo conde de Poitiers, nono duque da Aquitânia, amante da dama Maubergeonne, de cuja filha nascerá Eleonora de Aquitânia. Cantor da vida prazerosa, do amor carnal, ele é também, sem dúvida, o primeiro a ter afirmado que o trovador não se propõe de antemão um determinado tema, que o essencial é a própria cantiga, sua elaboração; que fique a cargo de quem o escuta txansmitir-lhe o "contrafecho", o sentido. Ferai tin vers de dreyt rien ("Farei um verso de coisa alguma") escreve Guillaume de Poitiers na canção IV; seu canto não será feito de nada mais... que dele próprio. Guillaume de Poitiers soube, vale notar, impregnar-se da cultura árabe que penetrara as regiões meridionais, pela qual sentia grande admiração. Protegido de Afonso VII de Castela, Marcabru escreveu entre 1130 e 1150, mostrando-se muitas vezes sarcástico e violento. Cercamon era gascão e, talvez, discípulo de Marcabru. A arte de Jaufré Rudel, príncipe de Blaye, atingiu rara perfeição e celebra com melancolia o amor a distância. Outros destacados trovadores foram: Peire Roger, que também freqüentou a corte de Castela, bem como a de Aragão; Rigaut de Barbezieux; Bernard de Ventadour, que, de origem plebéia, foi enobrecido por seu senhor graças à excelência de suas cantigas; Arnaud Daniel, virtuose
A miísica profana nos séculos XII e XIH
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das palavras, admirado por Dante e praticante — mais que qualquer outro — de uma poesia hermética, em que se destaca a célebre Sextina (poema de seis estrofes de seis versos, cada estrofe terminando por uma palavra-chave que reaparece em lugar diferente nos versos de todas as estrofes); Guiraut de Bornelh, cuja obra, escrita entre 1190 e 1240, compõe-se de cantigas difíceis, e de quem Dante celebrou a retidão da vontade; Foulques de Marseille, que declarou que "a poesia sem a música é como um moinho sem água" e que se fez monge na abadia de Thoronet, de onde saiu para tornar-se, em 1205, bispo de Toulouse; o violento guerreiro Bertrand de Bom, cantor dos combates, mas que também se fez monge, vindo a morrer na abadia de Dalon em 1215; Gaulcem Faidit, que percorreu a Europa em todas as direções; Raimbaud de Vaqueiras, amigo de Bonifácio II de Montferrat, que participou da conquista de Constantinopla; Peire Vidal de Toulouse, protegido dos grandes senhores da Europa; Sordel, Guilhem de Montanhagol, que celebra os valores corteses... Não podemos dar aqui os nomes de todos os trovadores, tão numerosos, que cantaram nessas cortes do sul. Sem falar no número mais reduzido, de trobairitz (em francês troubadouresses, "trovadoras") com seus nomes por vezes esplendorosos, como, por exemplo: a condessa de Dié, a mais famosa, mas também Tibor, irmã de Raimbaut d'Orange, Azalais de Porcairages, Maria de Ventadour, Alamanda, Garsenda de Forcalquier, Clara d'Anduze, etc. O refinamento dos versos e a riqueza da melodia fazem das cantigas dos trovadores obras de rara perfeição: por trás dos altos muros dos castelos e independente da cultura dos clérigos, nasce uma cultura cavaleiresca. A elite laica cria desse modo, no momento em que se reforça a ideologia feudal e em que se forjam os valores corteses, uma arte particularmente difícil, que ao mesmo tempo elabora tais valores e os enaltece na beleza do canto. Ricos protetores e mecenas poderosos favorecem as trocas entre as cortes. Mas é preciso entender que são os próprios senhores que fundam a arte destinada a tornar-se o espelho de sua classe: ainda não confiam às penas alheias o encargo de cantar por eles. Cavaleiros afeitos à freqüência e à violência de combates que não se terminam senão para prosseguir em querelas políticas, esses senhores do sul sabem igualmente ser poetas e compositores, e a arte consumada de que dão provas não é como a de artistas que consagrem tempo e energias integralmente a suas obras, mas o produto de homens de poder e de homens de ação. Esses poucos decênios são sem dúvida os únicos momentos da história ocidental em que a elite no poder confunde-se com a elite artística. De tal circunstância resultam traços peculiares a essa arte: cada um, através do eu da ficção poética, acompanhado por seu alaúde ou por sua harpa, canta por si próprio, não resta dúvida, mas também, por meio de um código, contribui para a construção de um sistema de valores fechado e recorrente em que o grupo se reconhece e se encerra, uma ideologia que rejeita com altivez o que lhe é exterior.
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A estética e a ideologia corteses Mais de uma vez afirmou-se que o amor era uma invenção do século XII. Essa fórmula expeditiva, criada pelo historiador Seignobos, significa, na verdade, que, com os trovadores, nasceu uma nova relação para com a mulher amada, ofiríamor. Trata-se de um amor de classe, que pretende, antes de mais nada, ser diferente do amor grosseiro dos plebeus. O imaginário que o fundamenta está em parte calcado nas estruturas religiosas e em parte nas estruturas da sociedade feudal, razão pela qual esse amor instaura relações de submissão do cavaleiro àquela que ele ama. De certo modo, o fin'amor é uma espécie de mística profana paralela ao amor sagrado, que sugere ao amante atitudes mentais moldadas à imagem das atitudes religiosas. Como se fosse uma divindade, a mulher torna-se objeto de adoração, de preces, nesse lugar de culto que é o espaço do poema, da cantiga. O amante a adora, suplica-lhe de joelhos, faz-se, à maneira de Jaufré Rudel, peregrino de seus belos olhos e perde-se em longos momentos de contemplação mística pensando em sua amante. Rigaut de Barbezieux chega ao ponto de comparar o deslumbramento que sente diante de sua dama ao de Parsifal vendo passar, luminoso, o Santo Graal, na corte do rei-pescador: Semblable à Perceval Qui au temps où il vivait Subit une telle fascination Qu'il ne sut demander A quoi servaient la lance, le Graal, je demeure interdit, Mieux-que-Dame, à la vue de votre beauté.
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O coração do amante acha-se üuminado pelo amor, ele vive uma transfiguração que faz, no cantar de Bernard de Ventadour, "que geada lhe pareça flor, e neve, verdura". Alcança, então, esse bem supremo para o qual tende, a alegria. Essa contemplação da dama, essa tensão voltada para a alegria e essa busca do êxtase requerem uma submissão de corpo e alma, para a vida e para a morte, àquela a quem se ama. Já não se trata apenas de uma atitude religiosa, mas da transposição de um modelo de organização da sociedade, o modelo feudal, para o "serviço amoroso": os estreitos laços de dependência de homem para homem, a submissão total do vassalo a seu senhor, que caracterizam o sistema feudal, estão reproduzidos nas relações do amante com sua dama: o trovador consagra-se inteiramente à dama e lhe está inteiramente submetido — presta-lhe homenagem, ou juramento
[Semelhante a Parsifal / Que, no tempo em que viveu, / Sentiu tal fascinação / Que não soube perguntar / Para que serviam / a lança, o Graal, / fico eu perplexo, / Mais-que-dama, à vista de vossa beleza.] (N. T.)
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defidelidade,implora sua piedade, sua graça e declara-se disposto a servi-la e a obedecer a suas ordens com absoluta lealdade. Tais atitudes de humildade implicam que a dama seja considerada superior a seu amante pela beleza, sabedoria e linhagem. Com efeito, a soberana do coração do trovador era também, na realidade, superior a ele em termos hierárquicos, já que freqüentemente ele celebrava em seus versos a mulher de seu senhor — até que, por fim, a idéia da necessidade da superioridade hierárquica impôs-se no código dofin'amor.Eric Koehler detectou nesse traço a aspiração da pequena nobreza a ter acesso à alta, cujo modo de vida compartilhava no seio das cortes senhoriais. De qualquer modo, ofin'amorst dirige a uma dama não apenas superior, mas que guarda suas distâncias e parece ser inacessível. Sua condição habitual de mulher casada vem acrescentar obstáculos à conquista pelo amante. Em outras palavras: nofin''amor,trata-se antes que tudo da exaltação do desejo por meio de um sonho que se alimenta de si mesmo e onde, às vezes, o amante se perde nos olhos amados como o belo Narciso na fonte evocada por Bernard de Ventadour. No curso dessa difícil busca, o amante adquire as virtudes que o tomam digno do objeto amado: a mezura, a medida, o comedimento, em primeiro lugar, depois a paciência, a discrição, a generosidade. Os trovadores, como por exemplo Jaufré Rudel, desenvolvem os temas do amor a distância, o amor de lonh, e também, muito freqüentemente, do desespero que leva à morte por amor. Aí revela-se sem dúvida uma influência da lírica árabe, por sua vez nutrida de cantos persas em que esses temas estão sempre ocorrendo: Lanquan li jorn son lone en mai M'es bèlhs dous chans d'auzèlhs de lonh, E quan me sui partitz de lai Remembra'm d'un'amor de lonh. Vau de talan embroncs e dis Si que chans ni flors d'albespis No'm platz plus que l'iverns gelatz. 1
A Vida — biografia romanceada de Jaufré Rudel — pretende que ele se tenha apaixonado pela princesa de Trípoli simplesmente à vista de um retrato dela: teria feito a viagem para ir ao seu encontro, morrendo nos braços dela ao chegar. Na verdade, a tensão amorosa liga-se àquela que provoca a escrita da cantiga por uma espécie de reciprocidade constante, o que é expresso pelos trovadores ao declararem que somente o amante sincero é capaz de produzir belas cantigas — e o ideal do eu, através da expressão do desejo, escolhe para enunciar-se uma forma [Quando os dias são longos em maio / £ doce ouvir o canto dos pássaros ao longe / E quando de lá parti / Ficoume na lembrança o amor a distância. / Sigo pensativo, triste, de cabeça baixa / E nem cantos nem flores de espinheiro / Me agradam mais que o inverno gelado.] (N. T.)
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rara e difícil. Essa forma é a da Cansó ou cantiga de amor, a mais utilizada pelos trovadores e, em seguida, pelos troveiros. Ela não nasceu do acaso das circunstâncias; reflete, isto sim, uma estética bem determinada, que é importante esclarecer: as noções de harmonia das proporções e de adequação da forma ao tema, chave da estética do século XII, presidem à elaboração da Cansó. Essa teoria da adequação, que encontramos já exposta em Cícero e que será desenvolvida pelas retóricas medievais, Dante a retomará no De vulgari eloquentia [Sobre a eloqüência não erudita] a propósito da Cansó, que ele considera a forma perfeita por excelência: Entre todas, penso que a maneira das canções seja a mais excelente; portanto, se as coisas mais excelentes são dignas da mais excelente solução, as matérias dignas da mais excelente linguagem n ã o erudita são dignas da forma mais excelente e devem, por conseguinte, ser tratadas como canções.
Dante prossegue prestando vibrante homenagem aos trovadores provençais, cuja influência não apenas sobre o canto do próprio florentino, mas sobre todos os poetas líricos que se seguiram, nunca será demais ressaltar: Das coisas feitas pela arte, a mais nobre é aquela que envolve a arte por inteiro; ora, uma vez que o que se canta em versos é sem dúvida obra de arte, e a arte só está envolvida por inteiro na canção, a canção é o mais nobre dos poemas, e sua figura é assim mais nobre do que qualquer outra. E que a canção envolve por inteiro a arte dos cantos p o é t i c o s é algo que está manifesto pelo seguinte: todos os esforços da arte encontráveis nas outras formas encontram-se t a m b é m na canção — e n ã o o contrário. Ao alcance dos olhos, temos u m sinal bem acabado do que digo: somente nas canções que fluem dos lábios dos poetas üustres encontram-se as belezas nascidas dos píncaros de seu gênio. É a confirm a ç ã o do que sustentávamos, ou seja, que as matérias dignas da linguagem n ã o erudita mais elevada requerem que as tratemos como c a n ç õ e s .
Do ponto de vista da forma, a Cansó não se desemola de maneira linear: compõe-se, o mais das vezes, de uma seqüência de cinco a sete estrofes, de oito a dez versos cada, que, nos manuscritos, inscrevem-se nas dimensões do quadrado ou do retângulo ideal. A notação da melodia faz-se acima das palavras da primeira estrofe e deve ser retomada para cada uma das estrofes seguintes. É a estrofe que constitui, portanto, a unidade. A melodia tanto pode se desenrolar de maneira contínua, oda continua, com um segmento melódico por verso — é o caso mais freqüente —, como pode ser composta de segmentos repetidos, seja na primeira parte, seja na segunda (raramente). Obtém-se uma harmonia requintada na forma muito difícil das estrofes de oito a dez decassílabos, em que se utiliza o mesmo jogo de rimas; mas as opções quanto às formas estróficas são numerosas, 1.400 variedades tendo sido computadas. Do ponto de vista temático, é freqüente a primeira estrofe propor-se como uma celebração da beleza e da natureza, do canto dos pássaros a que faz eco a cantiga do trovador.
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Languan lo dous temps s'esclaire Et la novéla flora s'espan, Et aug als auzèls retrain Per los brondels lo dousset chan.
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Bernard Marti Em seguida, as estrofes se desenrolam no espaço abstrato do poema, fora de um espaço determinado e fora do tempo, cantando o desejo do amante, seu desespero, ou sua alegria, sua vontade de amar sempre e seu temor dos ciumentos. Ao lado da Cansó, encontram-se outros gêneros com outras funções. O Sirventès, da mesma forma que a Cansó, trata de maneira satírica a atualidade política (Bertrand de Born), a moral (sátira do clero, do papado), a crítica literária (Pierre Rogier, o monge de Montaudon), ou lança invectivas de caráter pessoal, às vezes de grande baixeza, a senhores rivais. O Planh (pranto), que segue a forma da Cansó, é um canto de deploração, de melodia grave e queixosa, sobre a morte de um amigo ou da dama amada, inspirado tanto na deploração dos antigos como no Planetas em língua latina. A Salut d'amour [Saudação de amor] é uma epístola amorosa em versos octossilábicos, de rimas emparelhadas, em forma de saudação. Sem pretender enumerar todas as formas de que se valeram os trovadores, cabe acrescentar, todavia, que eles cultivaram igualmente gêneros de uma fatura mais livre, menos erudita, nos quais se deixa pressentir a influência da tradição oral popular: em especial, as pastourelles (pastorelas) e as aubes (albas ou alvoradas), por um lado, e, por outro, as canções para dançar, as ballades (baladas), as estampies. Como a tradição dessas formas é muito mais abundante entre os troveiros (trouvères), deixaremos para abordá-las quando tratarmos da lírica da França setentrional. No que concerne às melodias, é de se lamentar que subsistam apenas 350, ao passo que 3.500 poemas chegaram até nós. Muitas dessas melodias precisariam ainda ser transcritas em notação moderna, para que fossem executadas e pudéssemos estudá-las com cuidado, o que permitiria uma melhor apreensão dessa música. A música gregoriana dá o substrato das composições dos trovadores, que utilizam os modos eclesiásticos, com preferência pelos modos de rée de sol, revelando porém uma tendência para a polimodaUdade que torna delicada a busca do modo principal. O ambitus é mais extenso do que no canto gregoriano, chegando por vezes a intervalos de décima segunda.
[Quando o doce tempo se aclara / Desabrocha a nova flor / E ouço os pássaros repetirem / seus doces cantos sob os ramos.] (N. T.)
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Os troveiros Nos anos 1180, aparecem na França setentrional e na língua d'oü\ ancestral do moderno francês, as cantigas dos primeiros trouvères (troveiros). Não há como conceber essas peças líricas fora do contexto das cantigas dos trovadores. Como ter-se-á dado a passagem do sul para o norte? É preciso levar em conta, sem dúvida, o mecenato, o mais brilhante dos quais foi o de Alienor (ou Eleonora) de Aquitânia, a neta do primeiro trovador, Guillaume IX. O mecenato dessa princesa aquinhoou, de início, a corte de Poitiers, mas se exerceu ainda com mais largueza depois do casamento de Alienor, em 1152, com Henrique, duque da Normandia e futuro rei Henrique II da Inglaterra. As filhas que ela teve de seu primeiro casamento com Luís VII, rei de França, Aelis de Blois e Marie de Champagne, tomaram a seu cargo a proteção dos trouvères em suas respectivas cortes. Além do que, os fenômenos de tradição oral, de transmissão boca-a-boca do texto das canções, difusão facilitada pelos freqüentes deslocamentos dos senhores, de uma região para outra, de um castelo para outro, pelas viagens de peregrinação e pelas cruzadas, desempenharam um papel decerto determinante, mas bem difícil de apreciar com exatidão. De qualquer modo, prosseguia na França setentrional o movimento de elaboração de uma lírica erudita, nova e vigorosa, que iria encontrar imitadores por toda a Europa. Tal como no sul, trata-se — pelo menos até os anos 1250 — de uma arte da corte, tendo sido os primeiros grandes poetas e grandes compositores de melodias, cavaleiros da alta e da pequena nobreza. Numa lista que não pode ser exaustiva, como eles bem mereceriam — ao todo, contam-se cerca de quarenta —, é forçoso incluir, para a primeira geração, os nomes de: Blondel de Nesle, nascido por volta de 1155, de origem picarda e que, se for verdade a lenda, teria cantado uma canção de Ricardo Coração de Leão, filho de Alienor, diante da prisão onde Ricardo era mantido cativo; Guillaume de Ferrières, vidama de Chartres, cuja carreira se situa nos anos 1180; Gauthier de Dargies, cujo canto, amplo e grave, é de grande perfeição formal, e seu amigo Gace Brulé {ca. 1160-1213), cavaleiro da Champagne, originário de Nanteuil-les-Meaux, perfeito amante cortês, no dizer de seus contemporâneos, e cujas composições atingiram um tal refinamento, uma tal harmonia que dele fazem não somente o maior dos troveiros — os compiladores da época não se enganaram a respeito, nem o próprio Dante, que o celebra —, mas um dos melhores poetas líricos da língua francesa. Não esqueçamos o irônico e divertido Conon de Béthune que, como cruzado, esteve presente ao cerco de Constantinopla em 1204. Em fins do século XII e princípios do século XIII, surgem Richard de Semilli, de versos variados e, sobretudo, Regnault Coucy, mais conhecido como Châtelain de Coucy ("Castelão de Coucy"), que, antes de partir para a cruzada de que não deveria retornar, escreveu uma bela cantiga de despedida à sua dama e é o autor de versos sempre marcados por uma doce melancolia.
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Finalmente, entre os troveiros que, dessa linhagem, não poderíamos deixar de mencionar, está Thibaut de Champagne, conde de Champagne e de Brie, depois rei de Navarra, neto de Marie de Champagne, o qual alguns pesquisadores precipitados quiseram fazer passar como apaixonado por Branca de Castela, mãe do rei São Luís de França. Em suas composições, amplas e refinadas, Thibaut de Champagne maneja a alegoria com elegância, e consagra suas cantigas tanto à contemplação da dama como à celebração do amor sagrado. AS CANTIGAS DE AMOR Chanter m'estuet, preciso cantar; é assim que muitas vezes começa a cantiga dos troveiros. Necessidade de fazer uma obra, necessidade de cantar o amor. Claro que se trata sempre dessefin'amor,que arde no coração do amante desde o primeiro olhar e que, diferentemente daquele que se apodera de Tristão e Isolda, como o escreveu Chrétien de Troyes numa de suas canções, pretende ser um amor de escolha. Em seu De amore [Sobre o amor], André le Chapelain, clérigo ligado à corte de Marie de Champagne, fixa os seus vinte preceitos e evoca os julgamentos de amor que teriam ocorrido nas diferentes cortes. Fictícios, provavelmente, tais julgamentos, ou cours d'amour, eles revelam o aspecto social e codificado do amor cortês. Mas isso não exclui a paixão, a violência dos sentimentos. Na França setentrional, a joie (júbilo) dos trovadores do sul, o êxtase luminoso para o qual estes tendem, cede, por vezes, à expressão de um sofrimento intenso que, como doença, arrasta o amante para uma morte lenta e voluntária. É que o modelo religioso do canto laudatorio, justificado pelo ato de celebração de uma dama mais ou menos transformada em ícone, é sentido, de qualquer modo, como inadequado a seu objeto, na medida em que exalta o desejo, esse desejo condenado com veemência tanto maior quanto é ele o mais das vezes adúltero. A tomada de consciência do paradoxo dessa escolha é muito mais viva entre os troveiros do que entre seus predecessores meridionais, com o pensamento dos clérigos a fazer sentir todo o seu peso sobre uma sociedade laica que pretende disciplinar e dominar. Assim se explica o aparecimento de atitudes freqüentemente masoquistas, expressão do desejo de uma morte sacrificial, quase à imagem da de Cristo, e do sentimento de estar expiando, numa frustração constante e deliberada, a culpa de ter "ousado amar", como dizem os troveiros. Com esses poetas-músicos, a Cansó toma o nome de Grant Chant. Cantiga de amor absoluto por uma dama única e inacessível. Incapaz de sequer enfrentar o olhar da amada, de lhe falar, sem escapatória entre uma lembrança obsessiva e um futuro em que não há esperança, o troveiro, para libertar-se, só acredita nos poderes da escrita e do canto. Semelhante — como já o cantava tão acertadamente Bernard de Ventadour — ao belo Narciso na fonte, ele contempla a imagem de seu desejo e de seu eu nos versos que sabe forjar, nos ornamentos que inventa, na cantiga que se nutre de seu amor como o amor se nutre da cantiga. A tal ponto que
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cantar e amar tornam-se smônimos, num mesmo elã, numa dor que é uma só e a mesma, numa esperança única, a mesma. E a perfeição da poesia como da melodia fica sendo, a seus olhos, a única medida da verdade desse amor, as curvas do canto, a desenvoltura dos melismas permitindo às vozes trocar as caricias a que os corpos se recusam. Mais próximos da herança celta que os trovadores, os troveiros praticaram antes deles, e com maior freqüência, um outro gênero erudito que tinha por tema o amor cortês: o lai. Não se deve confundir esses lais líricos com os lais narrativos, tais como os de Marie de France — que são novelas curtas versificadas sem qualquer ligação com a música. A palavra lai vem, sem dúvida, do celta hid, que significa o canto do pássaro. O gênero é provavelmente, ele próprio, de origem celta. Umas trinta peças chegaram até nós vindas da França setentrional (do sul, há perto de uma dezena). Os lais se caracterizam pela desenvoltura e pela liberdade; as estrofes, em número indeterminado, são sempre heterométricas, cada uma diferindo das outras não só por sua estrutura métrica como por sua melodia. Será preciso aguardar o surgimento de Guillaume de Machaut para verfixar-seo lai como uma forma de doze estrofes, com a última repetindo as rimas e a melodia da primeira. A alternância freqüente de versos longos e de versos muito curtos dá às estrofes dos lais um aspecto serpentino, um desenho em arabescos que as aproxima das estampies poéticas e mostra certo parentesco com as curvas da escultura gótica. O termo da língua provençal descort— discordância (a da alma torturada por um amor infeliz?) —, utilizado mais pelos trovadores do que pelos troveiros, designa, na verdade, a mesma forma lírica. Existem também lais que, por comodidade, são ditos lais arturianos: seqüências de quadras monorrimas inseridas nos romances em prosa do século XIII, em especial no Roman de Tristã [Romance de Tristão]. Essas cantigas são postas na boca das personagens como se elas mesmas as houvessem composto. Lai deplour [Lai de choro], Lai mortel d'Yseut [Lai da morte de Isolda], um dos mais belos (le soleil luit et clair et beau) [brilha o sol e claro e belo], etc. As melodias, a um só tempo simples, refinadas e repetitivas, têm um perfume de arcaísmo, lembrando os hinos latinos e ambrosianos. OS CANTOS À VIRGEM No século XIII, lado a lado com as cantigas de amor profano, compõem-se também, e sempre com palavras da língua corrente, obras de inspiração religiosa. Com efeito, os troveiros já não mais elevam seus cantos, "como a um alto santuário", exclusivamente à mulher amada, mas escrevem também cantigas para a Virgem e cantigas de cruzada exortando à partida para os lugares santos. Essas cantigas constituem um conjunto de peças que é importante e muitas vezes negligenciado no panorama da lírica francesa.
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Algumas com autor reconhecido, mas também freqüentemente de autores anônimos, as cantigas à Virgem dividem-se em duas categorias. As mais numerosas, ao celebrarem a dama que é mais que todas as damas, substituem o culto à dama pela adoração da Virgem, utilizando as mesmas formas que as cantigas de amor. Às vezes são contrafações (contrafacta), isto é, retomam-se a métrica, as r i mas e as melodias de um grant chant, "colando-se-lhes" em cima novas palavras. É o caso de De bonne amour et de loiale amie, [De bom amor e leal amiga], de Gace Brûlé, que se torna uma canção (anônima) à Virgem, e de Ja pour iver, pour noif, ne pour gélée, do mesmo Gace, transformada numa canção à Virgem por Gauthier de Coincy. Um segundo grupo menos numeroso de peças retoma, em língua profana, a Ave Maria e, com mais freqüência, as litanias à Virgem: celebram o mistério da concepção do Cristo e o papel de Maria que intercede junto a Deus pela salvação dos homens. AS CANTIGAS DE CRUZADA Quanto às cantigas de cruzada, representam, de certo modo, os cantos engajados da lírica do século XIII. Abandonando a ausência de precisão geográfica e temporal da cantiga de amor, os troveiros nelas fazem intervir os detalhes históricos e as alusães autobiográficas, sem deixar de conservar ainda a forma do grant chant. Afirmam os troveiros com vigor, nessas cantigas, sua disposição de arrancar-se à dama para partir em alto mar, rumo aos lugares santos, com o fito de libertá-los dos pagãos e de não servir mais que a Jesus Cristo, seu único Senhor, prontos a morrer por Ele, abandonando — como havia pedido São Bernardo e como fazem os cavaleiros do Santo Graal—a cavalaria terrestre pela cavalaria celestial, que põe as armas a serviço de Deus. Não estamos diante de vãs palavras. Muitos desses homens não retornaram das cruzadas, e o dilaceramento necessário ao esforço de partida, o ardor de sua fé dão à sua emoção acentos de uma força que não engana. Não se pode negar, contudo, que a invenção melódica funciona como um suporte muito apagado para essa grande poesia. Paralelamente a esses cantos de estilo elevado, que pertencem ao que hoje chamamos — e isso, depois dos trabalhos de Pierre Bec — de registro "aristocratizante", os troveiros, bem mais que os trovadores, compõem peças mais leves, mais variadas, mais fáceis de escrever, de executar e de ouvir, e que, para fins de maior clareza, designam-se como pertencentes ao registro dito "popularizante". Nelas se repetem motivos comuns a muitos folclores da Europa e do conjunto da bacia mediterrânea; sem sombra de dúvida, fazem parte de uma herança popular — mas o difícil é apreciar a amplitude dessa contribuição e como se deu a passagem de uma tradição puramente oral a uma tradição erudita, das duas a única que foi transmitida por escrito.
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São cantigas cheias de vivacidade e de uma invenção fascinante, que surpreendem por seu frescor, como acontece com o brilho das miniaturas que a passagem dos séculos não conseguiu esmaecer. Nelas desfila um imaginário de jardins fechados, de fontes e de vergéis à espera dos amantes, aos quais o rouxinol dá conselhos, as mulheres cantam "com vozes de sereia" e, por vezes, entre asflores,passa uma fada e é saudada por um cavaleiro. Não se vá pensar, entretanto, que essas peças tenham sido compostas de maneira livre e espontânea, ao sabor das disposições de cada um. Aí também, estamos diante de gêneros bem definidos, facilmente reconhecíveis por sua forma e seu conteúdo. São, de um lado, os gêneros ditos lírico-narrativos: pastorelas {pastourelles), canções de tela (chansons de toile), albas ou alvoradas (aubes; em provençal, albas), reverdies, para citar apenas os mais importantes; de outro, os gêneros ditos líricocoreográficos, destinados à dança, de que tornaremos a falar mais adiante. AS PASTORELAS O gênero lírico-narrativo que inaugurou a tradição mais duradoura é certamente o da pastorela (pastourelle). São cantigas em estrofes, de comprimento variável, de escrita o mais das vezes fácil, mas sempre perfeita, com um refrão que atesta a influência popular, refrão freqüentemente onomatopaico: "Chiberala, chíbele.." "Dorenlot." "L'autrejour, je chevauchoie" [Outro dia, eu cavalgava], diz o cavaleiro que encontra uma pastora e decide seduzi-la. Todas as variantes são possíveis, desde o estupro até o abandono enternecido da pastora, que então parte para ir ao encontro de seu Robin. Gênero sem exigências, de fácil retenção, que se opõe ao grant chant abstrato e imóvel, da mesma forma como a pastora de imediato possuída opõe-se à dama venerada em segredo. A oposição de classe está marcada na própria elaboração dessa forma. É freqüente introduzir-se na pastoreia uma breve cantiga que a pastora cantarola. Por volta de 1285, o troveiro e clérigo Adam de la Halle, originário da florescente e brilhante cidade de Arras, escreveu para o conde de Artois o Jeu de Robin et Marion [Auto de Robin e Marion], primeira peça — com o Jeu de la feuillée [Auto da folhagem], do mesmo autor —- do teatro profano francês. Trata-se de uma pastoreia dramática com personagens, em que um cavaleiro tenta em vão seduzir a pastora Marion, defendida por seu namorado Robin e por outros pastores, que, após o incidente, comem e se divertem. Orgulhoso de sua condição de clérigo, Adam faz troça do cavaleiro desastrado e do mundo camponês. Achavam-se em moda as inserções líricas nos romances. Adam vale-se desse recurso e, entre as réplicas faladas, insere reffões em voga, fragmentos de seus próprios rondós, melodias de pastorelas (pastorelas dentro da pastoreia, como se fazem filmes dentro do filme, romance dentro do romance), e o conjunto, conduzido com grande habilidade, é uma autêntica pequena obra-prima de teatro musical.
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Poucas foram as pastorelas em que se registrou a notação da parte de música, vez que a produção literária era muito mais abundante que a produção musical. Algumas levam a assinatura de nomes ilustres, como Marcabru, no sul, Guillaume le Vinier, Thibaut de Champagne, Jean Bodel, ao norte. O maior número, entretanto, é de autores anônimos. Se, no domínio literário, a pastoreia evolui para a tradição das pastorais dos séculos XVI e XVII, no plano musical ela vai alimentar a canção popular. Esse fenômeno de folclorização, que aparece desde o século XV, faz-se acompanhar de interferências com outros gêneros — chansons de mal mariées ("cantigas de malcasadas"), etc. AS CHANSONS
DE
TOILE
Também conhecidas como chansons d'histoire ("cantigas de história"), as chansons de toile pertencem, igualmente, ao gênero lírico-narrativo e a um conjunto denominado chansons de femmes ("cantigas de mulheres"), que inclui as chansons d'amis ("cantigas de amigos"), as já mencionadas chansons de mal mariées ("cantigas de malcasadas"), etc., cuja tipologia reproduz-se tanto nos refrões da época románica como nos muwashshahas hispano-árabes do século XI. Um certo aroma de arcaísmo paira em torno delas, e é bem difícil datá-las. Subsistiram até hoje cerca de vinte, mas dessas apenas quatro têm uma melodia. Sete figuram inseridas em romances — no Roman de la rose [Romance da rosa], de Jean Renart, no Roman de la violette [Romance da violeta], de Gerbert de Montreuil —, as outras (inclusive aquelas assinadas por Audefroi le Bastard) constam de coletâneas do século XIII. Compõem-se tais cantigas de uma seqüência de estrofes em que os versos se ligam por assonância ou são rimados, cada estrofe seguida de um refrão. Abre-se o primeiro verso com a alusão a alguma mulher — Belle Aiglantine, Belle Aye, Belle Doette, Belle Erembourg—de cujos padecimentos trata a canção. Suportando o mais das vezes uma mãe autoritária, essa mulher chora o abandono por um amigo, uma gravidez mal disfarçada, a morte do bem-amado. Um universo puramente fenrinino inspira essas peças, que se pretende sejam cantadas por mulheres ocupadas em trabalhos de costura, donde esse nome de chansons de toile ("canções de tela"). As melodias, de difícil execução, ornamentadas com numerosos melismas, revestem-se de um carter litânico que acentua o seu arcaísmo ao mesmo tempo que as envolve em mistério. AS ALBAS Pouco representadas nos documentos, as albas ou alvoradas (aubes), em provençal albas, são cantigas dialogadas, com muitos personagens. Têm como tema a separação dos amantes que, após uma noite de amor ilícito, são alertados para o amanhecer por um amigo ou pelo vigia noturno.
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Primeira parte: das origens cristas ao século XIV
AS REVERDIES Mesmo sendo tão poucos os exemplos que delas nos ficaram, podemos dizer que as révérâtes figuram entre as peças mais atraentes da lírica francesa. Cantigas da renovação, do amor e da beleza, de uma graça como raramente se atingiu na poesia, com melodias simples e luminosas, elas fazem surgir diante de nossos olhos alegorias maravilhosas, como a da moça de Volez-vous que je vous chant [Queréis que vos cante?], filha da sereia e do rouxinol, moça-flor, moça-canto, alegorias que transpõem em êxtase as portas de marfim do imaginário medieval. A transmissão e a interpretação das cantigas dos trovadores e dos troveiros Para os 3.500 poemas que nos ficaram dos trovadores, subsistem apenas 350 melodias; o legado musical dos troveiros é muito mais rico: 4.000 textos melódicos (se incluirmos variantes) para 2.500 poemas. Hoje se conhece bem o repertório da lírica dos trovadores e dos troveiros, mas, bem menos, a maneira como eles cantavam suas obras. A restauração de suas melodias por parte do intérprete moderno continua problemática, com múltiplas incertezas quanto às escolhas a serem feitas. Na verdade, as antologias de suas canções — os manuscritos por isso mesmo denominados cancioneiros—não contêm mais que a linha melódica da cantiga, sem nenhuma outra indicação sobre o acompanhamento instrumental. Ora, é freqüente a letra ornada que compõe a inicial de uma peça da lírica do Sul figurar um trovador em longos e ricos trajes, empunhando um instrumento de música. Esse instrumento não está ali, certamente, só como um emblema do canto, mas significa que os poetas-compositores cantavam, eles próprios, suas obras, e mesmo as de seus amigos, como o dão a entender certos textos. Eles se acompanhavam com a viela, com a pequena harpa ou ainda com um alaúde. Qual era então o lugar reservado ao instrumento? Admite-se em geral que seu papel era de interpretar a linha melódica em uníssono com a voz, e que o exécutante, antes e depois de seu canto, incluía um prelúdio e um poslúdio instrumentais improvisados, de que não ficou vestígio algum nos manuscritos. Mas pode-se aceitar igualmente a teoria recente do musicólogo Hendrick Van der Werf, segundo a qual o instrumento não era tocado durante o canto. Como se vê, os conhecimentos a respeito são de tal modo flutuantes que bem demonstram quanto se deve proceder com circunspeção ao reconstituírem-se essas melodias. Por outro lado, se a transcrição dos textos literários passou a ser feita de maneira satisfatória, esse está longe de ser o caso no que se refere às melodias. Com efeito, a maior parte dos manuscritos que as consignaram data da segunda metade do século XIII, momento de completa mutação do signo musical; são manuscritos que, inclusive, apresentam uma defasagem de vários decênios, e até mesmo de um
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século, em relação ao manuscrito original que se perdeu. As melodias revelam, o mais das vezes, grandes divergências entre si, e, sobretudo no tocante à transcrição do ritmo, as incertezas que subsistem são consideráveis. Apenas dois manuscritos do conjunto do repertório existente propõem uma notação mensurada, ou seja, dão indicações dos valores de tempo segundo o sistema adotado para a música polifónica (o que não impede que uma mesma peça possa ser medida diferentemente de uma cópia para outra). Em todos os demais manuscritos, as melodias estão escritas na notação quadrada, que determina tão somente a altura das notas na pauta musical. Por muito tempo, entretanto, os musicólogos empenharam-se em fazer entrar as melodias de trovadores e troveiros no sistema mensurado dito sistema modal. Pierre Aubry, Jean Beck e seus émulos procuraram dar a essas melodias valores de tempo correspondentes aos seis modos rítmicos utilizados pela música polifónica muito depois dessas peças terem sido compostas. A escolha desses modos se faria supostamente em função da alternância de sílabas acentuadas e sílabas não acentuadas do texto poético sobre o qual eram cantadas as melodias, o que criava as seguintes possibilidades: o
I modo: 1 longa + 1 breve, ^ • ou seja: em notação moderna: 3/4, J J o
2 modo: 1 breve + 1 longa, m ^ ou sej a: 3/4, JJ o
3 modo: 1 longa + 1 breve + 1 breve valendo duas unidades (brevis altera), p m m ou seja: 3/4 J J J ou 6/8 J.JJ Esses três modos, sobretudo os dois primeiros, eram os mais freqüentemente utilizados. Vêm em seguida: o
4 modo: duas breves, uma longa, • • • ou sej a: 3/4 J J J- ou 6/8 JJJ. o
5 modo: três longas perfeitas: ^ • ^ ou seja: 3/4 o
6 modo: três breves, • • • ou sej a: 3/4 JJJ No espírito desses musicólogos, estabeleceu-se uma confusão entre os acentos da língua vulgar e os valores longos e breves da escansão latina. As contrafacta que volta e meia se faziam, e que consistiam em adaptar novas letras a melodias já existentes, bem demonstram que o ritmo não era pensado de acordo com esses critérios. Por outro lado, encerrar as frases musicais em compasso rigoroso significava quebrar-lhes o ritmo, falsificar-lhes o desenho. Mais uma vez é preciso lembrar o caráter livre dessas melodias, a maleabilidade de seus melismas; o que não exclui, é claro, um certo ritmo, sob a condição de que não seja predeterminado, de fora, pela aplicação de um sistema rígido de medidas. É preciso que ele se module
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verso após verso, em conformidade com o peso, a posição de certas palavras e a curva da voz. Deve ser concebido de maneira flexível, poder variar de uma estrofe para outra e — por que não? — de uma dada circunstância de execução para uma circunstância de execução diversa. Deve ser-lhe possível evoluir segundo a natureza e o papel do instrumento acompanhador. É por isso que certos musicólogos contemporâneos — Hendrik Van der Werf nos Estados Unidos, Gérard Le Vot na França — adotam, para suas transcrições, um sistema que consiste em indicar na pauta apenas a altura das notas e os agrupamentos melismáticos, o único que permite respeitar o caráter dessas melodias. Que fique por conta do restaurador exécutante da melodia inventar o ritmo que melhor se adapte a ela. Há alguns que captam esse ritmo muito bem, sobretudo aqueles impregnados tanto das melodias gregorianas como das músicas da bacia mediterrânea. O que é preciso é reencontrar a sutileza da invenção num tempo musical perpetuamente aberto. Além do mais, não há por que ter receio de reconstituir a canção em sua integralidade. É comum não se cantarem senão duas estrofes, a fim de que o ouvinte moderno não se canse com fenômenos de repetição. Estes, entretanto, fazem parte da escrita, e não se pode retomar o caminho dessa grande arte seguindo por atalhos que a deformam e prejudicam. O canto da dança e as primeiras danças O gesto, por sua função simbólica, desempenha um papel essencial na civilização medieval, na qualidade de expressão mimética da palavra diante do grupo, pelo grupo e para ele. A dança participa dessa função, inseparável do canto, de que ela determina as formas e que contribui para moldar intrínsecamente. De resto, segundo o teórico do século XIII, Jacques de Liège, não somente a dança não se separa da música, como faz parte do grande conjunto que constitui a Musica. É a música sensível à vista. O movimento da dança nasce do mesmo impulso que produz as cantigas, nas mesmas circunstâncias e com as mesmas funções: celebração religiosa, celebração do amor, reforço ideológico do grupo social envolvido. A dança é designada em latim pela palavra Chorea, em francês pelo termo Carole (verossimilmente de choraula,flautistade coro, donde chorolare, em francês caroler). As carolas são danças coletivas em que os dançarinos, de mãos dadas, formam correntes que se fecham em círculos. Na gestualidade jubilatória dessas formas circulares, o imaginário medieval encontra sua lógica interna. Efetivamente, o círculo simboliza, em primeiro lugar, a unidade e a perfeição, divina, como nas rosáceas das abadias e das catedrais; e simboliza igualmente o mundo, como na Távola Redonda dos cavaleiros do Rei Artur. Por outro lado, cada dançarino, quando estende os braços, inscreve seu corpo num círculo, como o homem representado no centro do mundo na miniatura de um manuscrito de Hildegarde de Bingen.
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De um ponto de vista sociológico, os gestos da carola são os mesmos, quaisquer que sejam os grupos sociais que a executam — os clérigos, os cavaleiros, o povo. Mas cada um permanece, por assim dizer, em seu círculo de origem, o grupo se fecha sobre si mesmo nessas ondas cerradas, sem possibilidade de troca ou de fusão. Em que circunstâncias é dançada a carola? Antes de mais nada, deve-se mencionar o lugar das danças religiosas, que é o interior das abadias e das igrejas, por ocasião de certas festas. Ela é então manifestação de louvor pelo movimento. Assim como a música religiosa pretende ser imitação dos cantos laudatorios angélicos, também os movimentos dos dançarinos imitam as danças dos serafins em volta do trono de Deus. Havia ocasiões, não resta a menor dúvida, em que se dançava no interior das igrejas, mas somente aos clérigos, em princípio, admitia-se que executassem os movimentos (como, ainda em nossos dias, na Etiópia, os diáconos dançam no fundo da igreja). Citemos alguns exemplos: no fim do século XII, após as vésperas da solenidade de Natal, os diáconos da catedral de Amiens reuniam-se para martelar o chão com os passos de um tripudium antes de começar a cantar o Magnificat. Em 1215, no momento da partida para a quinta cruzada, uma chorea é dançada na prestigiosa abadia de Saint-Martial de Limoges antes que os assistentes peguem a cruz para partir. Pierre de Corbeil, arcebispo de Sens, introduziu um rondó no ofício; e, na noite da Páscoa, cônegos e meninos do coro dançavam juntos uma carola em torno do poço do claustro da catedral. Virelais com a respectiva notação musical encontram-se nos manuscritos da abadia beneditina de Rippoli; na de Montserrat, o famoso Libbre Vermeil contém um rondó ad trepidum rotandum (para ser rodado batendo com os pés no chão); e o antifonário dos Médicis, belo manuscrito florentino, comporta toda uma seqüência de rondos. O padre Ménestrier observa, em pleno século XVII, que os cônegos e os meninos do coro dançam ainda hinos nas igrejas, cantando e de mãos dadas. E parece que o rondó ainda era dançado na igreja de Besançon no século XVIII. Entretanto, do concilio de Vannes (465) ao concilio de Trento (1562), passando pelo de Toledo (599) e o de Avignon (1209), a Igreja não cessa de condenar as danças em geral e as que se realizavam dentro das igrejas em particular, por temor aos excessos e à lascívia que se poderiam introduzir com elas, mormente com a participação eventual de mulheres e menestréis. "Chorea, corona diaboli!" ("Dança, coroa do diabo!") exclama, no século XII, Maurice de Sully, arcebispo de Paris, e a ameaça de excomunhão pesa sobre os padres que participam da dança ou a ela assistem. Tais proibições, repetidas mas vãs, provam a presença e a freqüência da dança nas festas religiosas medievais. Por outro lado, a carola faz parte dos divertimentos da classe cavaleiresca, durante as festas luxuosas que esta promove para ornamentar seu poder. O local em
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que se dança pode ser o interior de um castelo, como no Tournoi de Chauvency [Torneio de Chauvency] de Jehan Bretel, mas o mais freqüente é desenrolarem-se as danças nos vergéis, em prados cobertos de violetas, onde correm as fontes, perto das barracas levantadas para o repouso, juncadas de ervas aromatizantes e de flores. Um ménestrel pode lá estar com sua viela, mas são os cavaleiros e as damas que cantam e dançam. Está dito no apatronante romance de Guillaume de Dole, de Jean Renart, em que essas festas e essas danças são evocadas de maneira tão viva, que uma dama de grande beleza se pôs a cantar "com as mãos e os braços", ou seja, dançando. Os integrantes da nobreza, muito ligados à beleza dos corpos e à suntuosidade das roupas, signos de sua inserção na elite social, encontram, nos círculos da carola, uma oportunidade de se colocarem em evidência pelo movimento, cada um saboreando o prazer narcísico de sentir-se olhado pelos outros enquanto dança e de os ver dançando como outras tantas projeções de si próprio. "Essas mãos brancas que tanto lhes agradava ver", lê-se no Roman de Guillaume de Dole, de Jean Renart... ou ainda: "e as belas damas puseram os mantos sobre seus belos corpos"... Razão pela qual não é de surpreender que o tema do olhar apareça tão freqüentemente nas canções de dança e nos jogos mimados que as acompanham, como neste rondei : S'on m'y regarde, prenez-y garde S'on m'y regarde, dites-le moi. 1
Ou neste: Dames, regardez vos bras! Qui suis-je donc, regardez-moi!
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A dança inscreve-se no prolongamento dos divertimentos da vida cavaleiresca, quais sejam a caça e os torneios. É comum serem as carolas formadas exclusivamente por mulheres, objeto do olhar dos homens enquanto estes travam suas justas. Já então os cantos, a música e a dança tornaram-se para a nobreza um meio de embelezar sua vida com festas luxuosas e com a arte, de manifestar sua despreocupação, sua felicidade de colher o momento que passa num sonho concretizado de juventude e de refinamento. Enquanto forma correntes fechadas, ao pé dos castelos cingidos por altas muralhas, a nobreza se isola, tanto do plebeu, que ignora, como da burguesia, que despreza. 1
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[Se alguém olha para mim, estai atentos / Se alguém olha para mim, contai-me.] (N. T.) [Damas, olhai os vossos braços! / Eu? Quem sou? Olhai para mim!] (N. T.)
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O camponês, por seu lado, também se diverte. Dentro da tradição popular das festas de maio, as antigas danças da fecundidade em torno do mastro florido são atestadas e — também elas — condenadas pela Igreja. É claro que todo esse folclore foi confiado à tradição oral, com raros vestígios deixados nos manuscritos. E mesmo esses raros vestígios devem ser interpretados com cautela, como é o caso das cantigas da pastora Marion no Jeu de Robin et Marion, de Adam de la Halle, que nada têm de popular, ou com a dança de seu Robin, que não passa de uma caricatura das danças da nobreza, em que Adam faz troça da tendência à insensatez e do amor grosseiro, com um tiquinho de nada de lubricidade, comumente atribuído aos camponeses. Dança-se ao som de canções e a carola engendra formas musicais de estrutura circular: surgem em primeiro lugar os rondets de carole, peças breves de uns poucos versos, enquadradas por um refrão, de que irão nascer três formas: • o rondeau (rondó): AB aAab AB Refrão Refrão • a bailete, mais tarde a ballade (balada): três estrofes + Refrão • o virelai Aba A Refrão Refrão As estrofes são cantadas por um corifeu, ou chante-avant, uma espécie de "puxador"; o refrão, pelo coro dos dançarinos. Essas peças breves e encantadoras jogam com a circularidade, com o constante retorno dos refrões. É também graças à dança que a música instrumental independente do canto faz uma tímida aparição, com a estampe, a ductia e a nota. A estampie, que tira seu nome de stampare, "bater no chão com os pés" (e que não se deve confundir com a estampie literária), é formada por seções curtas que se repetem, AA, BB..., chamadas puncta. A mais antiga de que se tem registro é aquela para a qual o trovador Raimbaud de Vaqueiras, segundo se conta, escreveu, espontaneamente, assim que acabou de ouvi-la, as palavras "Kalenda Maya, Ni fuelles de faya". Oito delas figuram num cancioneiro da Bibliothèque Nationale. São os primeiros exemplos de música instrumental. Jean de Grouchy considera-as danças difíceis no tocante à escrita e à execução. As ductiae e as notae são menos elaboradas, simples, nitidamente compassadas. A lírica na Europa nos séculos XII e XIII As composições dos trovadores e dos troveiros constituem verdadeiramente o crisol da lírica da Europa medieval. As formas poéticas e musicais inventadas a partir de meados do século XII até ofimdo século XIII, na França meridional inicialmen-
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te, e depois na França setentrional, haveriam de irradiar-se pelos países vizinhos, Itália, Alemanha, Espanha. A ITÁLIA A influência revelou-se marcante, em primeiro lugar, na Itália. Infelizmente não ficou vestígio algum da música de um Cigada, de um Malaspina, de um Sordel, nem de todas aquelas cantigas corteses que se davam o prazer de compor os nobres toscanos e umbríos, entre os quais aquele jovem patrício que não tardaria a renunciar a tais práticas, ardente de um outro amor, o futuro São Francisco de Assis, autor, mais tarde, do Hino ao sol. Graças a ele, a cantiga italiana iria tomar uma orientação nova. De fato, o Poverello quis que o louvor a Deus se expressasse fora da música eclesiástica, em cantigas em língua não erudita e que fossem acessíveis a todos, para o que promoveu a fundação das sociedades de "músicos de Deus". Em conseqüência, a Itália possui grande número de hinos admiráveis em língua vulgar, os Lauâi spirituali, compostos pelas companhias religiosas formadas pelos laudesi que cantavam, em torno de seus capitani no final do século XIII e no início do século XIV, nas grandes procissões penitenciais dosflagelantes,sobretudo na Úmbria. Essas peças alimentam-se tanto do canto gregoriano como das melodias dos trovadores e troveiros, e sua estrutura aproxima-se daquela do virelai, com alternância de solista e coro. É sabida a admiração votada por Dante aos trovadores e troveiros da França e com que atenção ele analisa a arte destes no De vulgari eloquentia. Não há a menor dúvida de que, na dimensão monumental assumida pela Divina comédia, a iluminação pelo amor de Beatriz constitua, de certa forma, o remate prodigioso dessa arte. AGERMÂNIA Nas regiões germânicas floresce, por sua vez, a arte do Minnesang, canções que celebram o amor (Minné) por uma dama venerada, mas também as belezas da natureza, os benefícios de Deus, os laços com a terra natal. Por meio dos Minnesanger, a influência de trovadores e troveiros estender-se-ia até à Áustria. Razões políticas favoreceram as trocas culturais: em 1156, Béatrice de Bourgogne, protetora do troveiro Guillot de Provins, casa-se com o imperador Frederico I , o Barba Roxa. Foi na Baviera que a produção dos Minnesanger mostrou-se mais abundante. O famoso manuscrito de Heidelberg inclui nada menos que 7 mil canções, obras de 140 poetas-compositores, entre os quais o célebre Walther von der Vogelweide (ca. 1170-1230), além de Friedrich von Hause, Reinmar der Alte, Heinrich von Mohrungen, etc. A Barform — com sua estrutura constituída por um Aufgesang composto de um Stollen-Stollen, seguido de um Abgesang, ou seja, uma primeira parte de estrofe formada de dois elementos idênticos, a que seguia-se uma segunda parte, tal como
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a descreve com precisão Hans Sachs em Die Meistersinger Von Nürnberg [Os mestres-cantores de Nurenberg], de Richard Wagner — retoma o modelo de um bom número de canções de trovadores e de troveiros. O Leiche, de que se encontram muitos exemplos, é a variante germânica do lai-descort. Os próprios temas também são retomados: o amor cortês, as queixas contra a avareza do senhor, ou ainda a troça com os camponeses nas peças popularizantes. A tradição religiosa tampouco se acha ausente, tal a influência que sobre essa música exercem as melodias gregorianas; algumas canções contêm tantos melismas que houve época em que se chegou a pensar que se tratasse de partes instrumentais. Outros autores, como Neidhart von Reuenthal (1180-1250), sabem também utilizar o velho fundo popular germânico em melodias de uma simplicidade e de um encanto arcaicos, fundo esse que será uma das fontes constantes da lírica alemã, tanto como os Nibelungen que se escrevem paralelamente à epopéia erudita. A ESPANHA A Espanha é o lugar de encontro das músicas ocidentais e daquelas que pertencem à tradição islâmica. A penetração na Europa do üd árabe (instrumento de cordas pinçadas de que se origina o alaúde ocidental) e de outros instrumentos deve-se a esse contato hispano-mourisco. As trocas entre as duas culturas eram freqüentes e frutíferas. O passado da cidade de Poitiers dá testemunho disso: Guillaume, conde de Poitiers e nono duque de Aquitânia teve muito gosto, quando de suas expedições à Palestina e à Espanha, em unir-se por laços de amizade com intelectuais e artistas sarracenos, cuja brilhante civilização o deslumbrava. No século XIII, Afonso X, dito o Sábio (1221-1284), rei de Castela e de Leão, favorecia essa abertura ao mundo islâmico. Ele sabia árabe e mandara bordar versículos do Corão em seu manto real. Um dos manuscritos das Cantigas de Santa Maria mostra, lado a lado, um músico mouro e um músico cristão tocando alaúdes. Os estudos nesse domínio são muito raros e não dá para entender por que misteriosas razões os pesquisadores ocidentais afastam-se de uma literatura e de uma música que não foram ignoradas pelo Ocidente, ao passo que os trabalhos dos epistemólogos e dos filósofos sobre a contribuição considerável dada pelas ciências e pelo pensamento árabe ao mundo ocidental avançaram muito mais. Não há a menor dúvida de que uma abordagem mais precisa dessa tradição seria de muita ajuda para melhor apreender certos aspectos da lírica medieval. O belíssimo conjunto que constituem as Cantigas de Santa Maria é atribuído a Afonso X, autor de pelo menos um certo número delas. São inspiradas nos Miracles de Notre Dame [Milagres de Nossa Senhora] do troveiro Gauthier de Coincy. Sua estrutura reproduz a dos villancicos, por sua vez herdeiros de nosso virelai, ou seja: um estribilho, seguido da primeira parte da estrofe, depois a segunda que retoma a melodia e as rimas do estribilho, e por fim novamente o estribilho.
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Saborosos de cantar, foi o comentário que ficou sobre os villancicos — doce sabor das vozes que nos foi legado por toda a lírica da época. A lírica profana em língua latina Completamente independente da floração de peças líricas nas línguas vernáculas da Europa, cuja influência haveria de ser tão profunda, a lírica profana em língua latina — que é muito mais reduzida — não deve ser esquecida. Foi essa lírica latina profana, durante a Idade Média, uma fonte que jamais se esgotou, desde as composições de Venantius Fortunatus (530-609), influenciadas pelas formas litúrgicas, passando pelas canções de amor da época carolíngia, que foram condenadas no século LX por serem diabólica, amatoria e turpia ("diabólicas, dissolutas e torpes"), e prosseguindo com as transposições para música dos poemas da obra De consolatione philosophiae de Boécio, das Odes de Horácio e da Eneida de Virgílio, hoje indecifráveis, até, no século XII, as cantigas de Abelardo, sobre cuja autoria, no tocante a seis planetas pelo menos, não pairam dúvidas. Mas, de todas as coleções de lírica latina profana, a mais importante e a mais vasta é a dos Carmina Burana [Cantos de Beuron], manuscrito compilado e conservado até 1803 na abadia de Benediktbeuren (mosteiro beneditino de Beuron), na Baviera. Fora algumas peças germânicas, o conjunto contém essencialmente peças líricas de origem parisiense, compostas nos séculos XII e XIII. Se Geoffroy de SaintVictor é um cônego devoto, dos outros autores dos Carmina Burana — como o denominado "arquipoeta", ou Gauthier de Châtillon, ou Philippe de Grève (nascido em 1236 ou 1237), etc. — pode-se dizer que são monges errantes, isto é, monges itinerantes, que vão de uma universidade a outra, beneficiando-se da proteção eclesiástica e dos privilégios dos clérigos. Não devem, porém, esses monges ser confundidos com os goliardos — supostamente uma combinação do latim gula (gula, glutonaria) com Golias —, ex-padres que se entregavam exclusivamente a uma vida regalada e mesmo dissoluta. O compilador do manuscrito de Benediktbeuren organizou-o adotando a seguinte classificação: 1) canções morais e satíricas (55 aproximadamente); 2) canções de amor (130); 3) canções de beber; 4) seis dramas litúrgicos do ciclo da Páscoa. Primeiros entre os poetas malditos, os monges errantes celebram a embriaguez propícia à inspiração poética, o amor brutal, venal, carnal: são violentos na sátira, chegando por vezes à revolta — e a paródia do culto costuma ir além da simples estudantada. A força da invenção, o poder de renovação caracterizam esses versos, a que seus autores dão, por vezes, volteios delicados para cantar um amor "puro",
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de bom grado espalhando em suas composições alusões mitológicas e citações de Ovidio e Virgüio. As formas musicais de que se valem os autores dos Carmina Burana provêm da liturgia pós-carolíngia, demonstrando mais uma vez que o domínio do sagrado e o do profano não são estranhos um ao outro. A escrita da paródia cabe, de resto, conservar um molde formal em cujo interior se introduz com mais propriedade a subversão que o torna absurdo. Essas formas são de dois tipos: o versus com refrão, ou seja, um hino com muitas estrofes seguido por um refrão de estrutura diferente (eventualmente em francês ou em alemão); e a forma sequentia, de estrofes paralelas, AA, BB', próxima da forma do lai francês. Os copistas efetuaram a notação das melodias sem pautas, baseando-se num modelo francês de notação quadrada. Embora não se trate de um fenômeno único, não resta dúvida que o processo dificulta muito a leitura. Certas peças são contrafacta de textos anteriores, outras beneficiaram-se de uma cópia posterior. Graças ao confronto com tais textos, René Clemencic conseguiu transcrever umas cinqüenta dessas melodias, as restantes tendo permanecido, por enquanto, ainda indecifráveis. Estamos, em suma, diante de uma lírica clerical em língua latina, de que ressalta a extraordinária riqueza de invenção e que difere inteiramente da lírica em língua vulgar dos círculos corteses. A música mantém-se próxima dos modelos litúrgicos, do que resulta serem estes veiculados até um período bem avançado do século XIII.
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A POLIFONIA, DESDE SEUS PRIMORDIOS ATÉ O F I M DO SÉCULO X I I I
Os sentidos se comprazem nas coisas bem proporcionadas. SANTO TOMÁS D E A Q U I N O
Os primordios, do século IX a 1140 Toda gênese é cercada de mistério. Quanto à polifonia, pode-se dizer que ela não nasceu, à maneira dessa ou daquela forma musical, num momento determinado da história, num lugar bem definido: Tanto do ponto de vista do etnólogo como do musicólogo, a superposição de duas ou várias linhas melódicas simultâneas que se desenrolam de maneira homogênea — guardando, cada uma delas, seu caráter particular — é vista como uma tendência espontânea a procurar a consonância de duas ou mais vozes. De acordo com as pesquisas e as conclusões de Marius Schneider, a heterofonia por intervalos de quinta —- tal como se define nossa primeira polifonia — é localizável em três regiões muito afastadas umas das outras: na Europa oriental, desde o sul do Cáucaso até a Sicilia, na África meridional e em certas partes da Ásia. Por outro lado, os especialistas da tradição oral européia tiveram ocasião de notar a presença de canções populares a duas vozes, com uso de quintas paralelas, em locais como a Dinamarca, o País de Gales, a França (Córsega) e a Itália (Lácio e Sardenha). Não estamos portanto interessados em fechar um círculo em torno do nascimento da polifonia na música ocidental; importa-nos antes acompanhá-la a partir
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do momento em que surge nas fontes teóricas, depois nos manuscritos com notação registrada — e que fique assinalado, logo de saída, que, até o século XIII (inclusive) o domínio desses textos é exclusivamente o da música sacra. Será preciso esperar a Súmma musicae [Suma da música] do século XTV para encontrar o termo polifonia usado como designação da escrita vertical, uso que só se deverá impor, de fato, no século XVIII. Aparentemente, o princípio da consonância harmônica já era conhecido desde muito. Santo Agostinho faz-lhe alusão em seu Contra acadêmicos [Contra os acadêmicos]; Boécio menciona-o em diversos dos seus escritos. Segundo André Schaeífher, o canto paralelo em intervalos de quarta ou de quinta desenvolveu-se primeiro na Igreja bizantina, para passar em seguida à de Roma, durante os séculos VII e VIII, por intermédio de um dos diversos papas de origem oriental que subiram ao trono de Pedro. Um texto do Ordo Romanus [Ordem romana] faz alusão a isso. Não resta dúvida de que a polifonia só conseguiu se desenvolver verdadeiramente na música erudita ocidental depois de bem assimilado, pelos cantores, o canto gregoriano imposto por Carlos Magno e uma vez criadas as escolas necessárias à aprendizagem do canto a muitas vozes, ou seja, na época de Carlos, o Calvo. Os primeiros testemunhos de utilização da polifonia figuram nos escritos teóricos do século IX: por exemplo, no De institutione musica de Hucbald de SaintAmand, no manuscrito de Reginon de Prüm ( t 915), no De divisione naturae [Sobre a divisão da natureza], de Johannes Scotus Erígena (ca. 876), e sobretudo na Musica enchiriadis, atribuída a Ogier de Laon — textos aos quais é preciso acrescentar um certo número de tratados italianos. O canto polifónico é aí definido, em primeiro lugar, como o acréscimo, à voz principal (vox principalis), de uma segunda voz paralela, no intervalo de quinta do canto litúrgico: a vox organalis ou organum. Esta última palavra designa inicialmente qualquer instrumento de música, para, mais tarde, restringir-se ao instrumento natural que é a voz humana, por oposição aos outros, ditos "artificiais"; e terminar designando o órgão, instrumento de teclado. Tanto é assim que se chegou a fazer uma aproximação entre o organum vocal e instrumentos a duas vozes da Antigüidade tais como o aulo (flauta) duplo; sem falar que, no grego e no latim, uma única e mesma palavra (phone em grego e vox em latim), é usada para designar tanto a voz humana quanto o instrumento que a acompanha. A voz principal pode, de resto, ser igualmente duplicada na quarta ou na oitava. Pouco a pouco, verifica-se que o organum paralelo pode tornar-se livre no princípio e no fim da frase, particularmente quando se trata de evitar a quarta aumentada, o trítono fá-si, o famoso diabolus in musica ("diabo na música"). Mais tarde, o Micrologus de musica de Guido d'Arezzo (1000-1050) fixa com precisão os intervalos que é admissível utilizar, ao mesmo tempo que cogita do cruzamento possível da voz principal com a voz organal.
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No século XI, o tratado de autoria do compositor John Cotton of AfUighen, nascido na Inglaterra, generalizará o uso do organum livre e introduzirá o movimento contrário para as duas vozes. No que diz respeito à música prática, não chegou até nós nenhuma música polifónica anterior aos raros volumes de tropos que datam do século XI, como a coleção de Winchester, estabelecida, sem dúvida, sobre um modelo de Fleury, que contém cinqüenta organa, ou ainda a dos Aleluias de Chartres, onde se observa o emprego de intervalos de terças, na época considerados dissonantes. Será preciso aguardar o século XII para assistir ao desenvolvimento da escrita dos organa, fundamentalmente na grande escola dita de Saint-Martial de Limoges, o que inclui não apenas a própria abadia mas também as regiões de Toulouse, de Narbonne e do norte da Espanha. Podem-se distinguir, em Saint-Martial de Limoges, dois tipos de organum: em primeiro lugar, o organum melismático, com os melismas aparecendo de fato em grande número (à razão de vinte notas para uma) na voz organal, a tal ponto que a voz principal fica relegada, de certo modo, a um segundo plano e passa a servir apenas de apoio à voz que, tempos antes, era a de acompanhamento. Com o nome de tenor (do latim tenere, sustentar), passa a caber à voz principal o registro grave do canto. Por essa simples denominação da voz que é, na verdade, a voz litúrgica, pode-se compreender que, agora, no espírito dos clérigos músicos, a liturgia importa menos que a função técnica das partes. Com tal mudança, o canto gregoriano se ofusca diante da nova escrita do organum. O outro tipo de polifonia que se encontra em Saint-Martial é o discante, ou seja, o acréscimo, nota contra nota, de uma voz ao canto principal. O discante não demora a perder sua rigidez, e logo iremos topar com quatro notas contra uma, ou três contra duas, ou quatro contra três. Por vezes, também ocorre a troca de motivos entre uma voz e a outra. A Escola de Saint-Martial de Limoges abriu caminho para o amplo movimento musical da Escola de Notre-Dame; por outro lado, como aconteceu com a arte dos trovadores, seus reflexos atingiram fortemente a Inglaterra e sobretudo a Espanha. O que se vê na Espanha é a flexibilidade e a liberdade de invenção prevalecerem sobre a estreiteza dos quadros teóricos, em Santiago de Compostela, cidade que, juntamente com Roma e Jerusalém, constituía um dos três grandes locais de peregrinação da Cristandade. O Liber Sancti Jacobi [Livro de São Tiago], também conhecido como Codex Calixtinus [Código de Calixto, pois sua autoria foi atribuída ao papa Calixto II ( t 1124)], contém, além de diversos conselhos práticos aos peregrinos de Santiago, conducti monofônicos e uns vinte organa em que figuram, pela primeira vez, peças a três vozes.
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Curiosamente, a Igreja, outrora tão ardorosa na imposição do canto gregoriano, deixou que se passasse um século antes de se deixar mobilizar por essas formas de escrita que o relegavam ao segundo plano. Organização da música no período gótico clássico (1140-1280) Tanto na estrutura social como no domínio do pensamento e da arte, o período que corresponde à época gótica clássica é marcado por mutações que contam decerto entre as mais profundas por que passou a Europa ocidental até os tempos modernos. A música, inserida no conjunto dos fenômenos, evolui segundo um movimento sincrónico e paralelo ao da sociedade, das formas de pensamento e das outras artes. A primeira grande mutação — que vai, de certo modo, gerar as outras — é o desenvolvimento rápido das cidades. Desde o fim do século XII, ocorre um deslocamento dos centros de estudo e de saber, mas também de poder e de concentração de riquezas, em direção às cidades, que crescem incessantemente. Daí por diante, o olhar desvia-se dos mosteiros, fermentos do pensamento e da arte precedentes, e volta-se para a cidade. Por um movimento de translatio studii ("deslocamento dos estudos"), pode-se dizer, é para a catedral, igreja do bispo e do clero secular, que vão convergir as forças intelectuais e artísticas. Não mais Cluny, Clairvaux, nem mesmo Saint-Denis, mas Chartres, Soissons, Arras, Laon, Reims e, sobretudo, Paris, com a Notre-Dame em seu centro, e, na outra margem do Sena, a Universidade. Paris, rosa das rosáceas, parisien Paradis ("Paraíso parisiense"), dirão os clérigos, de onde vai irradiar-se para toda a Europa a arte da França—cidade das cidades que, por volta de 1200, tornase a capital de um reino reunificado graças à ação de Filipe Augusto e que, depois de 1200, terá à frente o rei mais prestigioso de seu tempo, São Luís. A bela e inteligente cidade, como também os centros urbanos em seu redor num raio de 150 quilômetros, estavam destinados a viver conjuntamente três grandes surtos de criação: o desenvolvimento do pensamento escolástico, com Alberto Magno, São Boaventura, Guillaume d'Auvergne, Siger de Brabant, Duns Scot e, acima de todos, o autor da Summa theologica, Santo Tomás de Aquino; a construção das catedrais pelos arquitetos Jean de Chelles, Robert de Luzaches, Pierre de Montreuil; e a floração das magníficas polifonias dos dois grandes mestres da Escola de Notre-Dame, Léoriin e Pérotin. Amadurecem as formas paralelamente, em função de disposições mentais comuns, não obstante a diversidade das tarefas, com os estudantes convivendo à sombra da catedral, o arquiteto em tertúlias com o lógico e o compositor, numa época em que o profissionalismo não constitui fator de isolamento e em que o espírito individual pode ainda abraçar a totalidade do saber filosófico e científico.
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A EVOLUÇÃO DAS FORMAS MUSICAIS COM LÉONIN E PÉROTIN Antes de pôr em evidência esses paralelismos e de efetuar as aproximações que se impõem, vejamos o que se passa especificamemnte no domínio da música polifónica. Léonin, primeiro mestre da Escola de Notre-Dame, é reconhecido pelo autor anônimo de um tratado (o Anonymus TV, de Coussemaker) como o melhor compositor de organa de seu tempo. Seu Magnus liber [Livro magno, ca 1180] contém uma série de organa para o Gradual e o Antifonário, 33 para a Missa, 13 para as Horas, com vistas ao embelezamento do serviço divino. Léonin ora pratica a escrita melismática para a voz que ocupa o registro agudo, dando liberdade à voz tenor litúrgica, ora trabalha com o descanto. Foi o primeiro a medir a duração dos valores da voz tenor, de modo a obter um contraponto rigoroso nota-contra-nota, como se vê nitidamente no Audi filia [Ouve filha] do Propter veritatem [Por amor da verdade]. Pérotin, o outro grande mestre de Notre-Dame, retoma a obra de Léonin. Encurta-a — sempre de acordo com o que está escrito no Anonymus TV— para dar às peças polifónicas uma dimensão que convenha ao tempo da liturgia e que seja proporcional ao comprimento das partes de cantochão com as quais elas se alternam. Pérotin escreve de maneira mais breve as velhas seções do descanto e, sobretudo, substitui as cláusulas de organum melismático, longas demais, por cláusulas de descanto necessariamente mais breves. Essas cláusulas (em latim clausulae) constituem autênticas pequenas composições independentes, cujo grande número leva a pensar que devam ter sido executadas fora de um contexto litúrgico definido. Delas nascerá o moteto. Note-se que Pérotin, em seus organa, acrescenta uma ou duas vozes suplementares ao tecido polifónico de Léonin. Seus dois famosos quadrupla (na realidade, três vozes sobre a voz tenor) —Viderunt omnes [Viram todos, 1198], para o Gradual de Natal, e Sederunt principes [Tomaram assento os primeiros, 1199], para a festa de Santo Estêvão, em 26 de dezembro — foram destacados pelos teóricos da época como um acontecimento na evolução da escrita musical. Pérotin dedica toda a sua atenção aos problemas do ritmo. Para a voz tenor, ele utiliza o conjunto dos seis modos rítmicos. Léonin servia-se apenas do quinto modo. A generalização do emprego desses modos na escrita polifónica é resultado da obra de Pérotin. Não há como não admirar a clareza, o vigor quase monumental dessas composições. Até então, o conductus, próprio para "conduzir" o padre ao altar, era uma peça a duas vozes com uma voz tenor não litúrgica, mas sim de composição recente. Pérotin retomou a escrita dos conducti, promovendo, neles também, o acréscimo de uma ou duas vozes. Assumem desse modo os conducti independência cada vez maior em relação à liturgia, tornando-se peças de circunstância para essa ou aque-
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la cerimônia, na oportunidade de acontecimentos religiosos ou políticos. Ainda com relação aos conducti, Pérotin inova, utilizando o sistema modal no que concerne à escrita do ritmo. Em suma, o grande mestre de Notre-Dame dá às formas que herdou uma arquitetura vertical, sólidamente apoiada pela notação do ritmo. Tudo está pronto, a essa altura, para o advento do moteto, o mais complexo, o mais bem resolvido e o mais surpreendente, também, de todos os gêneros polifónicos. Com Pérotin, as clausúlete, como já se disse, assumiram uma vida independente da Uturgia. Não fazia muito sentido cantá-las usando, como únicas palavras, as da voz tenor. Voltou-se, então, a prestigiar o procedimento adotado com êxito nos tropos: encaixar palavras (em francês mot > petit mot > motet) nas melodias preexistentes. Foi assim que nasceu o moteto. Note-se, de passagem, que uma vez mais a palavra serve de apoio à invenção musical. Primeira etapa: a parte ou voz superior é dotada de um texto em latim que comenta as palavras da voz tenor litúrgica. Esta, aliás, tenderá, com freqüência a tornar-se instrumental. Segunda etapa: as vozes superiores têm como texto duas séries diferentes de palavras, ainda em latim e ainda comentando a voz tenor. Terceira etapa: o texto de uma das vozes é de palavras em francês que não comentam mais a voz tenor. Depois, já nenhuma voz comentará a voz tenor, e o moteto terá vida completamente independente da Hturgia. Todo o esforço consistirá em organizar com clareza a escrita do conjunto das vozes. Resolver-se-á a questão diferenciando-se o ritmo de cada uma delas: lento para a voz tenor, mais rápido para o duplum, acelerado para o triplum. A "letra" do triplum é em geral um terço mais longa que a do duplum. "Quem quiser compor um moteto", diz Jean de Grouchy, "deve antes de mais nada dar à voz tenor uma boa ordenação e fixar-lhe o compasso e o modo. Em seguida, sobre essa base, dispor o Motettus, que se manterá em geral à distancia de uma quinta da voz tenor, mas poderá também elevar-se ou baixar. O triplum, acrescentado a essas duas vozes, distará da voz tenor uma oitava, podendo baixar até a quinta... Podese acrescentar-lhes um quadruplum." Escolhe-se um modo rítmico diferente para cada uma das vozes. É freqüente encontrarmos o quinto modo rítmico para a voz tenor, o primeiro para o duplum (ou Motettus), o sexto para o triplum. Naturalmente, esse procedimento, que podia seduzir pela complexidade, não se mostrava capaz, entretanto, de organizar com perfeição a coordenação nota a nota. De 1260 em diante, difunde-se um sistema que fixa os valores respectivos de cada uma delas. É a notação chamada de "franconiana" por associação com o nome 1
Com esta grafia, vale por duplum. (N. T.)
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de Franco de Colônia, que dela expôs os princípios em seu tratado Ars cantus mensurabilis [A arte do canto mensurável]. O sistema compreendia as seguintes divisões e subdivisões: ' máxima ou duplex longa 1 longa •
breve
•
semibreve,
às quais, um pouco mais tarde, Pierre de la Croix acrescentará a mínima. O sistema é ternário: a unidade é constituída pela breve, a que corresponde um tempo. A longa perfeita vale três tempos; a imperfeita, dois — e assim por diante. Enriquecido com todas essas possibilidades, o moteto vai muito rapidamente suplantar os organa e os conducti. Por outro lado, cada vez mais afastado da função fitúrgica, ele vai passar do domínio sacro ao domínio profano, para tornar-se a forma refinada, elaborada, do canto de amor polifónico. O moteto volta-se para os círculos elitistas das cortes e da burguesia cultivada. Jean de Grouchy observa que, enquanto os rondós podem chegar às camadas populares, o mesmo não acontece com os motetos, que apenas os letrados estão em condições de apreciar. As duas ou três vozes acima da voz tenor têm, a essa altura, "letras" em francês, e a voz tenor ora é latina e fitúrgica, ora latina e não fitúrgica, ou pode mesmo ter texto francês, como é o caso da famosa voz tenor de um moteto do manuscrito de Montpellier: "Fraise nouvelle!" [São os primeiros morangos!], que é um pregão de Paris. Adam de la Halle, poeta e compositor originário da cidade de Arras, mas que adquiriu sua "sapiência" em Paris, compôs rondós no estilo do conduetus e foi praticamente o único, em seu tempo, a escrever rondós polifónicos. Deixou ainda onze motetos profanos que são o ponto mais alto de sua obra musical. Para esses motetos, vale-se dos três tipos de combinações, então usuais, com a voz tenor. Por outro lado, de acordo com um procedimento corrente na época, Adam de la Halle insere, no duplum, células de seus próprios rondós, ou dos rondós de compositores como Guillaume d'Amiens, oü ainda refrões anônimos. Ê o princípio do moteto "enxertado". Dir-se-ia que ele brincou com todas as possibilidades que lhe oferecia essa forma. No moteto X, por exemplo: a voz tenor tem texto em francês: "Qui prendroit"; no duplum, encontramos o começo de um de seus rondós: "Hé Dieu, quand verrai." já utilizado no triplum do moteto LX; o triplum (do moteto X) é uma prece à Virgem em latim: Theoteca Virgo yeratica [Relicario da verdadeira Virgem]. As duas grandes coleções de motetos são os manuscritos de Bamberg e de Montpellier. Em pouco tempo, essa forma desenvolveu-se por toda parte na Europa: na Inglaterra, na Alemanha, nas Flandres, na Espanha, com alguns atrasos, às vezes, e com algumas diferenças locais.
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MUSICA, PENSAMENTO ESCOLÁSTICO E ARQUITETURA GÓTICA Dessa evolução das formas musicais até 1280 depreende-se que a organização das obras é preocupação primordial dos compositores do século XIII. Elas se elaboram, como dissemos e como pretendemos agora brevemente demonstrar, num movimento paralelo ao do pensamento escolástico e à elevação da arquitetura gótica, num espaço — a cidade — que é determinante de um habitus mental comum. Alguns traços essenciais, como superposição das vozes, modalidade rítmica e depois compasso, polilingüismo do moteto e secularização da polifonia com usual conservação da voz tenor fitúrgica — se, por um lado, possuem sua lógica interna, por outro, esclarecem-se também uma vez recolocados no contexto do gótico clássico e do pensamento escolástico. Erwin Panofsky, o eminente historiador da imaginação criadora da Idade Média e do Renascimento, demonstrou claramente como a organização tripartida, às vezes quadripartida, torna-se um principo de edificação tanto do pensamento como da arquitetura. Por exemplo: a catedral de Sens (1140) e a basílica de Saint-Denis, tal como foi concebida por Suger (1144), apresentam "um plano rigorosamente longitudinal, com apenas duas torres de fachada e um transepto reduzido ou totalmente ausente". Ora, a organização do gótico clássico prevê "uma nave tripartida, um transepto igualmente tripartido que se funde no antecoro quinquepartido... enquanto, para a nave, estão previstas, no plano, abobadas quadripartidas com o lado mais longo visto de frente e, em elevação, a sucessão triádica das grandes arcadas do trifório e das janelas — e numerosas torres (nove previstas para Chartres, 1194)". Uma evolução paralela das formas produz-se na música a ser tocada nesses novos edifícios. Passa-se do organum a duas vozes (uma das quais se estira em longos melismas) aos organa e aos conducti de Pérotin, em que se encontram superpostas três ou quatro vozes acima da voz tenor, com uma predileção constante pela consonância de quinta. Da mesma forma que, na arquitetura, "conciliavam-se o ideal de uma progressão uniforme de Este para Oeste com os ideais de transparência e de verticalidade" (Panofsky), as polifonias a três e quatro vozes conciliam o antigo desenho melódico com as novas exigências de clareza e de verticalidade. Por outro lado, um dos grandes aspectos do pensamento escolástico, que haveria de constituir uma aquisição duradoura na organização do saber, consiste em reunir todos os elementos de conhecimento sobre um mesmo assunto em sumas e, em seguida, distribuí-los, classificando-os por ordem de importância decrescente em capítulos, subcapítulos, seções, subseções, etc. Esse princípio de clarificação dos dados aparece não somente nos textos, mas também na disposição visual destes nos manuscritos.
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Na arquitetura, o princípio da divisão dos elementos é identificável, por exemplo, na divisão dos suportes em pilares principais, colunetas maiores, colunetas menores — subdivisíveis, por sua vez — ou ainda na divisão dos mainés em perfis primários, secundários, terciários. Ora, na esfera da notação do ritmo musical, a divisão dos valores de duração em longas, breves, semibreves, mínimas, que surge na mesma época, corresponde a uma preocupação semelhante, manifesta um mesmo hábito mental. A escrita do moteto, por sua vez, apresenta semelhanças notáveis com o sistema de pensamento difundido nas escolas. Os filósofos escolásticos não apenas tentaram conciliar a razão com a fé, mas deram um passo com vistas ao que se chamou de "conciliação dos contrários". Abelardo, um século antes, havia percebido na Bíblia e nos textos dos Padres da Igreja — textos ditos de autoridade — um certo número de contradições internas que era importante resolver. Ao ataque dessas contradições, decidiram lançar-se os clérigos do século XIII, armando-se com o seguinte sistema de argumentação: exame da proposição, análise de seu contrário, conciliação conclusiva. Também aí, Panofsky soube perceber como esse habitus mental reproduz-se nas pesquisas dos arquitetos da época gótica. Ficaremos com um único exemplo, o da planta de uma igreja ideal proposta por Villard de Honnecourt em seu álbum de plantas e desenhos. A planta original, proposta por Honnecourt, é revista, após disputatio ("debate"), por dois outros arquitetos, e constatamos que, no tocante à parte do coro, foram "conciliadas" capelas quadradas — segundo o antigo modelo cisterciense — com seu "contrário", as capelas semicirculares góticas. Aqui é preciso lembrar do que disse Jean de Grouchy a propósito do moteto, destinado, segundo ele, a um público letrado (não disse nobre, como se teria dito anteriormente, mas letrado), ou seja, acostumado aos raciocínios escolásticos. De fato, o moteto, em sua elaboração, concilia a antiga voz tenor fitúrgica com uma voz "contra" essa voz tenor, à qual se pode acrescentar uma e até mesmo duas outras vozes. A utilização de três modos diferentes para as três partes soma, ao prazer da exposição tripartida das melodias, o da clara divisão do ritmo segundo três sistemas facilmente identificáveis, não mais à vista, mas à audição. Esse espírito escolástico do moteto fica bem evidenciado naquele que se intitula Bele Ysabelot [Bela Isabelinha], em que uma das vozes expõe uma queixa de amor, enquanto a segunda assume o papel do parceiro amoroso e a terceira comenta o que narram as duas outras. O plurilingüismo,finalmente— cuja freqüência considerável só se explica como uma forma de atender ao gosto desses letrados —, se, por um lado, dificulta a percepção das palavras, por outro, permite diferenciar as vozes diversas, ao mesmo tempo que concilia, pelo uso simultâneo do latim e do francês, a antiga e a nova cultura, o sagrado e o profano. Desse modo, escapa-se a Babel na ocasião mesma em que se poderia julgar que se a está construindo.
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Essa tensão entre o sagrado e o profano nada mais é, no fundo, que o reflexo das tensões que aparecem na sociedade medieval e que encontram, nas polifonias, a conciliação ideal de seus signos de contradição. Tensão entre o poder temporal e o do bispo, que tem sua sede na igreja catedral. Tensão entre uma cavalaria afeiçoada à alegria profana e aos combates, e uma igreja que condena sua frivolidade e sua busca de uma glória vã. Com os pobres e os fracos facilmente excluídos para fora dos muros, a burguesia em ascensão passa também por vivas tensões: de um lado, a tentação de uma felicidade terrestre e de um bem-estar que ela se sente autorizada a fruir em virtude do esforço com que se empenha em conquistá-los pelo trabalho; de outro, a exigência de pobreza e de partilha que vão pregando dominicanos efranciscanos,de que tão magnífico testemunho deu, no início do século XIII, um jovem e rico senhor que veio a tornar-se São Francisco de Assis. O que acontece em termos de espaço repete-se em termos de tempo. A generalização da medida do tempo no fim do século XIII e no século XIV constitui-se numa das mutações essenciais ao Ocidente, e não é por acaso que intervém no exato momento em que se difunde na música o sistema do compasso. Como tão bem o formulou Jacques Le Goff, o tempo de Deus vai ser substituído pelo tempo do mercador. A Igreja compreende o perigo. Ela protesta contra o fato de medir-se o que pertence exclusivamente a Deus, para toda a eternidade: o tempo, esse dom gratuito que Ele faz aos homens enquanto permanecem na Terra. Além disso, a Igreja compreende que logo se estabelecerá a relação entre tempo e dinheiro. Tempo do empréstimo com usura, relação entre o tempo de trabalho do operário e a obra que ele produz e que se compra. Ora, não é possível servir a Deus e ao dinheiro. Substituir a duração indeterminada dos melismas do cantochão por polifonias com tempo contado é introduzir, no templo de Deus, o tempo do mercador. Essa a razão pela qual os cistercienses e os dominicanos rechaçaram energicamente de seus ofícios as polifonias compassadas. Mas não há como voltar atrás. A relação, doravante, está estabelecida entre medida do tempo, valor do homem e valor do objeto. Tudo, agora, há de venderse, trocar-se: o trabalho do operário, que já não se faz humildemente ao ritmo do tempo litúrgico, o do artesão, e também o do professor de universidade. A ciência, fora do mosteiro, se paga. As obras de arte, elas também, são "avaliadas", envolvem negociações. Os monges, em seu anonimato desinteressado, deixam de ter o monopólio da arte sacra, e os cavaleiros já não compõem, eles próprios, as obras que idealizam seu modo de viver. Surge um novo rosto, o do artista pago e disputado por essa ou aquela corte, essa ou aquela capela. É o preciso momento em que a música, de ciência que era, passa a ser uma arte. Herdeira da Ars Antiqua [Arte antiga], aparece a Ars Nova [Arte nóva].
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A ARS NOVA E GUILLAUME DE MACHAUT
O, Guillaume, mondain dieu d'harmonie.
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EUSTACHE DESCHAMPS
A Ars Nova
"Artesão da antiga e da nova forja", tal se pretende Guillaume de Machaut, e assim se pode também definir o século XTV musical durante o quai se generaliza a prática de novos modos de escrita da música a partir de um material antigo. Os teóricos dão ênfase às novas técnicas que elaboram e que as denominações de seus tratados põem em destaque: Ars nove musice [Arte da nova música] de Jean de Murs, Ars Nova de Philippe de Vitry, e este último título terminará designando, por extensão, toda a música do século XTV. Embora retomem em larga escala as formas da música dos séculos precedentes, pretendem esses teóricos que tal música já pertence à Ars Antiqua, também dita Vetus ("velha","anterior"). São autores que devem a celebridade sobrenado a suas obras teóricas. Fato é que nenhuma obra nos resta de Jean de Murs e que apenas uma dezena de motetos do Roman de Fauvel [Romance de Fauvel] e do manuscrito de Ivrea podem ser atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361). Bispo de Meaux, mas também brimante poeta, amigo de Petrarca e dos primeiros humanistas reformadores (como
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[Ó Guillaume, mundano deus da harmonia.) (N. T.)
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Nicole d'Oresme), Philippe de Vitry adquiriu, graças a sua obra teórica, renome europeu. Dele, dizem os contemporâneos que era a "Flos et gemma cantorum" [Flor e jóia dos cantores], ou ainda a "Flos totius mundi musicorum' [Flor dos músicos de todo o mundo]. Seu tratado difundiu-se muito rapidamente por todas as universidades da Europa, até a de Praga. Na verdade, o essencial dos tratados da Ars Nova diz respeito à notação do ritmo. Não que Philippe de Vitry e seus contemporâneos tenham inventado um novo sistema, mas ratificaram e generalizaram os procedimentos existentes, conferindo-lhes maior precisão. Já no fim do século XIII, os velhos modos rítmicos pareciam em grande medida caducos, e, ao sistema ternário que consiste em dividir um valor em três (uma longa igual a três breves), veio acrescentar-se um modo de divisão dos valores binarios, que permitia cfividir essa mesma unidade em duas. Vê-se que o antigo simbolismo religioso do número três ficara esquecido e que as preocupações técnicas suplantavam a busca teológica. Daí por diante, os seis modos rítmicos ficaram reduzidos a dois: o modo perfeito (divisão em três) e o imperfeito (divisão em dois). Ou seja: quando a longa vale três breves, trabalha-se com o modo perfeito; quando ela vale dois breves, com o modo imperfeito; se a breve se divide em três semibreves, é o tempo perfeito; se está dividida em duas semibreves, o tempo imperfeito; finalmente, se a semibreve se divide em três mínimas, estamos diante de uma prolação maior, se em duas, diante de uma prolação menor. Eis as divisões e subdivisões da breve, que passaria a constituir, doravante, a unidade de medida rítmica. Tempo perfeito, prolação perfeita. Tempo perfeito, prolação imperfeita. Tempo imperfeito, prolação maior. Tempo imperfeito, prolação menor.
A Ais Nova e Guillaume de Machaut
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representou, do ponto de vista musical, se não do ponto de vista literário, a forma mais bem resolvida da música do século XIV, Os músicos concentraram seus esforços na busca de uma homogeneidade para as partes. Os empréstimos tomados sob a forma de centonização (introdução de segmentos de melodias preexistentes na melodia nova) desapareceram nas vozes superiores. O trabalho fundamental era feito em cima da voz tenor, à qual se deu uma organização rítmica, singularmente pelo processo da isorritmia. A grande contribuição da Ars Nova foi o moteto isorrítmico. O que era preciso era introduzir valores rítmicos na voz tenor, combinando assim melodia e ritmo. Um modelo rítmico — chamado Talea — foi escolhido, repetindo-se regularmente em toda a extensão da voz tenor. Podia acontecer de o número de notas da melodia não entrosar exatamente com as talea. Nesse caso, recorria-se a certos procedimentos, como retardar as entradas; também havia o recurso de diminuir os valores em fins de frases. Tal emprego de módulos preestabelecidos e repetidos no decorrer da obra faz pensar, de certo modo, no serialismo do século XX. Em todo caso, dois séculos antes do Concilio de Trento, a Igreja já se dava conta de que a música estava se tornando uma arte e já não era a ciência de dar suportes melódicos à Palavra da Verdade. Uma arte que iria proporcionar, no próprio seio da igreja, em plena celebração dos ofícios, prazeres intelectuais aliados aos prazeres dos sentidos, dispersando com isso a atenção dos fiéis e desviando-os dos mistérios divinos. O papa João XXII, que ignorava a isorritmia, mas que mesmo assim estava a par dos progressos recentes da técnica musical, escreveu, em sua decretal Docta Sanctorum Patrum (1324), algumas linhas que manifestam uma admirável compreensão desses fenômenos e que são de grande lucidez com relação a suas conseqüências: Certos discíplos da nova escola, enquanto dedicam toda a sua atenção a medir o tempo, estão empenhados em fazer as notas de uma nova maneira, preferem compor seus p r ó -
O tratado de Philippe de Vitry nomeia também a semi-minime (seminima), mas trata-se decerto de um acréscimo tardio, pois esse valor quase não era empregado antes do fim do século XTV" (uma mínima é divisível em duas seminimas). Para facilitar a distinção entre o ternário e o binário, os músicos empregavam tintas de cores diferentes, o preto para as notas perfeitas e o vermelho para as imperfeitas, mas, a partir de meados do século XTV, os sinais de valores vieram substituir esse procedimento. Felizes por terem à sua disposição um sistema coerente de organização dos ritmos, elegante e novo, os compositores se puseram a utilizá-lo com uma efervescência um tanto febril, com uma embriaguez intelectual que os faz escrever polifonias de rara complexidade. Toda a sua atenção haveria de dirigir-se, dali por diante, para a escrita do moteto, que se prestava às pesquisas intelectuais e que
prios cantos em lugar de cantar os antigos, dividem as peças eclesiásticas em semibreves e m í n i m a s ; estraçalham o canto com notas de curta duração, d e s p e d a ç a m as melodias com soluços, poluem-nas com discantes e chegam ao ponto de entulhá-las com vozes superiores em língua vulgar. Desconsideram, assim, os princípios do antifonário e do gradual, ignoram os tons que já n ã o mais distinguem, que mesmo confundem... Correm sem fazer uma pausa para repousar, inebriam os ouvidos em lugar de acalmá-los, m i mam por gestos o que fazem ouvir. Assim, a devoção que se deveria buscar é ridicularizada, e a lascívia, de que se deveria fugir, é exibida às escancaras.
Duas coleções de manuscritos merecem atenção: pertencente ao mesmo tempo à ArsAntiqua e à Ars Nova, o Roman de Fauvel (1314-1316), longo poema de Gervais du Bus, com acréscimos de Raoul Chaillou du Pestain, propõe-se como uma sátira aos vícios da Igreja e dos poderes temporais, simbolizados na personagem
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principal, Fauvel, um asno alegórico cujo nome é formado em acróstico com as iniciais de Flaterie ("adulação"), Avarice ("avareza"), Vilenie ("vilania"), Variété ("inconstância"), Envie ("inveja"), Lâcheté ("pusüanimidade"). Essa coleção compreende obras monódicas, mas também polifónicas, com motetos isorrítmicos, alguns dos quais atribuídos a Philippe de Vitry. De época mais tardia, o Codex Ivrea (ca. 1360), copiado no ambiente da corte papal de Avignon, comporta 37 motetos — dos quais, mais uma vez, alguns são atribuídos a Philippe de Vitry—, uma missa e peças profanas. Essa vem a ser a coleção mais representativa da Ars Nova, depois, evidentemente, da obra mais importante do século XTV — a de Guillaume de Machaut. Guillaume de Machaut (1300-1377) Muito se tem insistido em fazer de Machaut o último dos troveiros, sob o pretexto de que ele retomou algumas das formas líricas tão características destes, e também porque pôs em música uma parte de sua própria obra poética. É não reconhecer nele o homem dos novos tempos, é ignorar a força e o alcance de sua obra, ignorar também que Machaut teve perfeita consciência de ser o primeiro artista, no moderno sentido da palavra. Uma das constantes do espírito medieval é fundar a evolução do pensamento e das formas na memória do passado sem jamais renegálo. "Somos anões encarapitados nos ombros de gigantes", disse Bernard de Chartres no século XII. Machaut era um gigante encarapitado nos ombros de seus predecessores, "artesão" -— como ele próprio se autodefiniu — "da antiga e da nova forja". A dualidade manifesta-se, nesse espírito excepcional que é o de Machaut, também por outras formas. Foi ele o maior poeta francês de seu século e o primeiro grande compositor, gênio bifronte que une dois ofícios da mesma forma que sabe unir, de maneira coerente, a cultura sacra e a cultura profana — ele que, clérigo tonsurado, cônego da catedral de Reims, passou três quartas partes de sua vida a serviço dos mais notáveis príncipes do mundo. Nessa dualidade, a música profana soube fazer valer seus direitos. Em um texto fundamental que Guillaume de Machaut escreveu quando teve recuo suficiente para fazer uma estimativa de sua obra e, graças a isso, poder aperfeiçoá-la — texto a que deu o título de "Prologue" e que fez editar à frente de seus manuscritos, como uma espécie de arte poética e musical —, ele reivindica para a música essa dupla função, sagrada mas também profana, e isso é algo de inteiramente novo. Declara Machaut:
A Ars Nova e Guillaume de Machaut
...Elle fait toutes les caroles Par bours, par citez, par escoles.
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E emenda com: Où on fait l'office divin Peut-on penser chose plus digne Ne faire plus gracieux signe Comme d'essaucier Dieu et sa gloire..
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Muito embora a música religiosa continue a ser a mais estimável, verdade é que, pela primeira vez, a música profana era aceita e reconhecida por um clérigo nos seus efeitos benéficos sobre a alma humana. Fiel à tradição da música especulativa e metafísica dos séculos precedentes, Machaut abre-se, mesmo assim, às novas funções profanas da música e por aí se caracteriza, com efeito, como o homem da antiga e da nova forja, colocando-se deliberadamente sob o duplo signo de Davi e de Orfeu. De Davi, cantor de Deus, cujos salmos, acompanhados com a harpa, "de Dieu apaisoient l'ire" [de Deus apaziguavam a ira] — e de Orfeu, filho de Apoio, esposo de Eurídice, que tinha o poder de transformar o mundo terrestre. Orpheüs mist hors Erudice D'enfer, la cointe, la faitice, Par sa harpe et par son dous chant. Harpoit si très joliement Et si chantoit si doucement Que les grands arbres s'abaissoient Et les rivières retournoient Pour li oír et escouter; ce sont miracles apertes Que Musique fait. 3
O músico consegue não apenas reunir o divino e o humano, como fez Davi, mas também, agora, como fez Orfeu, transformar o mundo: tornou-se "o mundano deus da harmonia", de que fala Eustache Deschamps. Essa tomada de consciên-
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Et Musique est une science Qui veut qu'on vie, chante et danse Cure n'a de mélancolie...
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[E a música é uma ciência / Que quer que vivamos, cantemos e dancemos / Da melancolia não quer saber... / Ela faz todas as "carolas" [danças de roda] / Nos burgos, nas cidades, nas escolas.] (N. T.) [Onde se faz o ofício divino / Pode-se lá imaginar coisa mais digna / Fazer sinal mais gracioso / Que exalçar Deus e sua glória.] (N. T.) [Orfeu retira Eurídice / do inferno, encanta-a, enfeitiça-a / com sua harpa e com seu doce canto. / Harpejava sim tão lindamente / E sim tão docemente cantava / que as grandes árvores se abaixavam / E os rios voltavam / Para o ouvir e escutar; / ( ) são milagres abertos / que faz a Música.] (N. T.)
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cia dos poderes sobrenaturais concedidos ao artista está reproduzida nas duas magníficas miniaturas que ornamentam o Prólogo, cuja execução foi supervisionada pelo próprio Machaut. São os primeiros retratos de artista de que se tem notícia, e neles vamos nos deter um instante, pois esclarecem o sentido da obra em profundidade. Seu autor é o Maître aux Boqueteaux [mestre dos bosquetes], um dos principais iluminadores da época de Carlos V. O artista é posto em cena numa paisagem que já nada tem de simbólica, mas que antes dá testemunho de sua inserção no mundo. Primeiro quadro: Guillaume, clérigo tonsurado, recebe uma princesa coroada, Natureza, que lhe faz dom de três de seus filhos: Senso ("inteligência"), Retórica e Música. O retrato reproduz traços pessoais — nota-se o estrabismo — de um homem que conversa em pé de igualdade com a filha de Deus (segundo a definição de Santo Tomás) e com os filhos desta, graças aos quais vai engendrar-se a obra. Guillaume decerto não deixa de ser um clérigo tonsurado, mas saiu do anonimato e recebe de Deus dons pessoais, manifestados solenemente por essa visita. Antiga e nova forja. Segundo quadro: o clérigo, sentado em sua morada diante do livro que escreve, é surpreendido pela visita de Amor que, por sua vez, lhe dá três de seus filhos: Doce Pensar, Prazer e Esperança. Não se trata do pequeno deus luxurioso, cúmplice de Eva, mas de um príncipe coroado, portador de asas com as cores do arco-íris, qual um mensageiro de Deus, emanação de Deus, motor da obra por vir: "L'Amor che muove il sole e altre stelle", diz Dante, o amor-iluminação, que faz se moverem o sol e as outras estrelas, vem tocar com suas asas a morada do artista. Este se curva, voltado para o visitante, em sinal de humildade, de submissão medieval. Entre ambos, há uma porta, o espaço vazio da obra por nascer, a distância entre o homem e Deus, que sons e palavras vão tentar preencher. E há o silêncio. É uma anunciação, a que faz o anjo-amor ao artista. Façamos agora o cómputo dos personagens: Natureza e seus três filhos representam um valor longo subdividido em três, ou seja, uma perfeição. Amor e seus três filhos formam uma outra perfeição. Natureza e Amor constituem um conjunto binário — uma imperfeição, portanto, mas, com o artista, somam três, logo, uma Perfeição. Os jogos matemáticos da escrita musical estão aquifiguradosv i sualmente. Graças a esses dois visitantes — feminino-masculino —, a obra é gerada. Nasce o artista, Guillaume. Guillaume de Machaut era originário do povoado de Machault, na Champagne, situado a cinqüenta quilômetros de Châlons-sur-Marne e a quarenta quilômetros de Reims. Um véu de obscuridade estende-se sobre seus estudos. Tê-los-á feito em Reims? Em Paris? O primeiro moteto de Machaut que é possível datar, Bone pastor Guillerme — Bone pastor qui pastores, foi composto em 1324 para a eleição do
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arcebispo de Reims, Guillaume de Trie. Na verdade, o clérigo compositor passou a maior parte de sua vida a serviço dos príncipes mais notáveis da Europa: desde 1323, ele está com o ilustre João de Luxemburgo, depois rei da Boêmia, que veio a morrer em 1346 combatendo cego, a cavalo, sua batalha de Crécy. Tendo seguido esse príncipe em todas as suas campanhas, Machaut percorreu a Polônia, a Sibéria, a Lituânia, a Boêmia, a Itália, passando de quando em quando, sempre com João de Luxemburgo, curtos períodos na França. A partir de 1333, um canonicato em Reims e uma prebenda, obtidos graças a seu protetor, vieram assegurar-lhe uma relativa independência. Com a morte do rei da Boêmia, Machaut entrou para o serviço de Bonne, filha deste, a qual morreria da peste pouco tempo depois. Para evitar a contaminação por uma doença que dizimou a metade da população da Europa, Machaut ficou um ano inteiro fechado dentro de sua casa em Reims, depois do que passou sucessivamente ao serviço de Carlos II, o Mau, rei de Navarra, de Carlos da Normandia, que veio a se tornar o rei Carlos V de França em 1364, de Pedro I de Lusignan, rei de Chipre, do duque de Berry e de Amadeu de Savóia. Terminou seus dias retirado em seu canonicato. O artista sexagenário tinha então um caso com uma admiradora muito jovem, Péronne d'Armentières, que desejava aprender com o mestre a arte dos versos e da composição. O Voir dz'f (1361-1365) — "Dito da verdade" — narra essas trocas intelecuais e amorosas sob a forma de um romance epistolar, o primeiro da literatura francesa. A obra de Machaut é tripla — narrativa, poética e musical. Como narrador, foi ele o autor de urna série de "Dits" [Ditos] dedicados a seus protetores: o Jugement du roi de Bohème [Julgamento do rei da Boêmia, antes de 1346], o Remède de fortune [Remédio de Fortuna, antes de 1357], o Dit de la fontaine amoureuse [Dzf da fonte amorosa, 1361] etc., em que se mostra como conselheiro e confidente dos principes. Por outro lado, Guillaume de Machaut tem em sua bagagem literária cerca de 250 poemas líricos sem música notada: baladas, rondós, virelais, complaintes (queixumes, lamentações), lais, chants royaux (cantos reais). Machaut se entretém nesses trabalhos, como num jogo, com todo tipo de dificuldades formais. Não resta dúvida de que seu ouvido de músico e seu hábito de lidar com as proporções matemáticas serviram para dar-lhe um senso inigualado da aliança dos versos pares e ímpares e do casamento das sonoridades. É poesia doce e transparente que conduz ao jardim fechado do eu, à iluminação pelo amor. A obra musical de Machaut é a um só tempo profana e religiosa. Todas as formas líricas são utilizadas para a música profana: 40 baladas, 20 rondós, 32 virelais ou chansons balladées ("canções em forma de balada"), 18 motetos (sendo dois mistos em latim e em francês), 18 lais; a eles devem-se acrescentar as peças inseridas no Remède de fortune, a saber: um lai, uma complainte, um chant royal, uma baladela, uma balada, um virelai e um rondó.
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Quanto à parte religiosa, está no essencial representada pelo monumento que é a Messe Nostre-Dame [Missa de Nossa Senhora] a que é preciso acrescentar o Hoquet David e seis motetos em latim. O período mais intenso da atividade criadora de Machaut situa-se entre 1349 e 1360; mas, até o fim da vida, à sombra de sua catedral de Reims, ele continuou a compor peças líricas profanas. Uma observação que vale para o conjunto de sua obra: Machaut não inventou nenhuma forma — o que ele fez foi levar à perfeição os gêneros já existentes. OS MOTETOS O compositor tinha predileção por essa forma que oferece ricas possibilidades polifónicas. Deixou 23 motetos, dos quais dezenove a três vozes. Seis são religiosos e inteiramente em latim. Dois têm um duplum em latim e um triplum em francês. Três têm uma voz tenor com texto francês (Fin cuer doulz [Fino e doce coração] n° 11, Pourquoi me bat mes maris [Por que meu marido me bate], lassette n° 16, e Je ne suis mie certein [Não tenho a menor certeza] n° 20). Machaut inovou sem deixar de permanecer fiel a certas modalidades de escrita. Inovou na medida em que introduziu uma quarta parte, a voz contratenor: o moteto não comportava em geral mais que três. Essa parte contratenor está intimamente ligada à parte tenor. Machaut serviu-se largamente da isorritmia, com o sistema das talea na voz tenor, com diminuição dos valores, mas não em excesso. Empregava também a dragma (retomada da mesma melodia com ritmo diferente). Às vezes, as necessidades da isorritmia faziam com que ele recorresse à entrada sucessiva das diferentes vozes, como, por exemplo, no duo do belíssimo moteto Felix Virgo. Fazia ainda preceder certas peças de um introitus, espécie de prelúdio instrumental cujo uso fora instaurado por Philippe de Vitry. Os cálculos rigorosos da isorritmia fascinavam Machaut, que se divertia com multiplicar as dificuldades, escrevendo uma parte contratenor semelhante à parte tenor, só que detrás para diante (n°5),como o fez para o cantuses, tenor do rondó cujo incipit, de resto, alude ao procedimento: "Mafinest mon commencement/Et mon commencement ma fin" [Meu fim é meu começo / E meu começo meu fim]. Claramente se vê que o compositor empenhava-se em seguir o texto literário que escrevera previamente, pelo menos para as vozes superiores — o triplum com freqüência tem escrita silábica—, com valores longos marcando o final das frases. Machaut permaneceu tradicional em suafidelidadeà notação preta e vermelha para m^tinguir ritmo ternário e ritmo binário, embora já existissem os sinais de compasso. Além desta, pode-se-lhe notar outra marca de relativo conservadorismo: as duas partes de cantus são geralmente escritas em tempo perfeito ou imperfeito e prolação maior, a prolação menor só aparecendo em três motetos. No que concerne à execução desses métodos, tudo faz crer que fossem introduzidos instrumentos para a parte tenor. Por exemplo, a voz tenor de Felix Virgo, que
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se apóia nas palavras do Salve Regina, com suas longas notas sustentadas, devia ser executada por um órgão. Em geral, as vozes tenor e contratenor dos motetos profanos podiam ser executadas por sacabuxas, vielas e rabeques. OUTRAS FORMAS LÍRICAS: O RONDÓ Nas festas das cortes, nos concertos e nos banquetes, o rondó e a balada suplantavam o moteto. Nos rondós, Machaut demonstra, com insuperada mestria, sua dupla inteligência da forma poética e da forma musical. O poeta-músico, na maturidade de sua arte, de tal modo articula a adequação da forma e do sentido que, a bem dizer, o sentido cria a forma e a forma o sentido. É o que acontece, por exemplo, nesta peça desprovida de notação musical, em que a forma de rosácea e espelho do rondó (A B a A a b A) é escolhida para descrever o encontro de duas íris, olhos nos olhos, o olhar da bem-amada no olhar do bem-amado — a forma espelho usada para figurar o espelho da contemplação dos dois olhares: De regarder et d'estre regardez Viennent fi bien de l'amoureuse vie Et pour ce, amant n'amie, ne vous gardez De regarder et d'estre regardez. Car en regart amoureux est gardez Don de merci, quant dame est bien servie De regarder et d'estre regardez Viennent l i bien de l'amoureuse vie.
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A mútua adequação entre forma e sentido também é exemplar, como se viu, no rondó Ma fin est mon commencement, ele é musicalmente escrito em movimento retrógrado, cuidando o sentido das palavras tão somente de descrever a forma utilizada. Virtuosismo poético e virtuosismo musical produziram obras-primas como o rondó a quatro vozes Rose, Hz, printemps, verdure [Rosa, lírio, primavera, verdor], obra da maturidade. O cantus é ornamentado muitas vezes com melismas, o que dá maior amplitude a essa forma pouco extensa. Ao inverso de como procedia na escrita de um moteto, Machaut compôs, eventualmente, em seus rondós, as partes tenor e contratenor depois do cantus, como comenta com Péronne d'Armentières no Voir dit. A facilidade com que ele criou obras tão refinadas, enquanto Péronne [De olhar e ser olhado / Vêm todos os bens da vida amorosa. / Amante e amiga, não se ponham em guarda / De olhar e ser olhado. / No olhar amoroso está guardada / A graça da misericórdia, quando a dama é bem servida. / De olhar e ser olhado / Vêm todos os bens da amorosa vida.] (N. T.)
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aprendia os textos lendo por cirna dos seus ombros à medida que o amigo os ia fixando no pergaminho, não deixa de ser surpreendente. ABALADA Machaut manifesta nítida predileção pela balada, seja a balada desprovida de notação musical (de que deixou quase duzentas), seja aquela musicada (22 a três vozes, 16 a duas vozes, 4 a quatro vozes e 1 monódica). Sem mais qualquer traço de canção para dançar, esse poema de amor passava a compor-se, dessa época em diante, de três estrofes. A estrutura de cada estrofe é a seguinte: I ab ab aberto / fechado
+
II + 1 refrão de 1 ou 2 versos
O compositor utilizou na balada todos os recursos do moteto: isorritmia, cânone, combinação de todas as espécies de ritmos ternários e binarios, síncopes. Além disso, com base no modelo do moteto, Machaut compôs baladas duplas e triplas; por exemplo, a balada Ne quier veoir, que faz parte do Voir dit, combinada com a balada Quant Theseus [Quando Teseu], de Thomas Paien, ou ainda a balada a três textos San cuer m'en vois [Sem coração me vou]—Amis, ãolens [Amigos, dolente] — Dame, par vous [Dama, por vós], com seu cânone em uníssono. O Remède de fortune chega a propor uma quádrupla balada: En amer a douce vie, toda em escrita sincopada. São estas peças cujas estrofes são cantadas simultaneamente e que só têm em comum o refrão. Achado curioso, que não teria prosseguimento. OUTROS GÊNEROS LÍRICOS O Remède de fortune propõe também, entre as peças líricas nele inseridas por Machaut, um bom exemplo de chant royal, que vai ainda mais longe que a balada, com cinco estrofes de idêntico esquema métrico, tendo as mesmas rimas e o mesmo esquema melódico, com envoi e sem refrão — gênero difícil, que veio a funcionar como fórmula milagrosa para vencer concursos de poesia e de música no século XV. Como a balada e o rondó, o virelai é uma antiga forma de canção para dançar, com a seguinte estrutura: A
ba
A
refrão
estrofe
refrão
Machaut trata o virelai de maneira mais simples, lembrando-se do caráter popularizante do gênero, que, no século XV, servirá a canções que se aproximam do folclore.
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O Roman de Fauvel apresentava a Machaut modelos de lais com doze estrofes. Ele retomou essa forma (18 vezes), propondo um belo exemplo de lai monódico no Remède de fortune. A forma do lai foi fixada por Machaut em doze estrofes, cada uma delas composta de semi-estrofes, a segunda metade retomando as rimas e a melodia da primeira, todas diferentes em seu esquema e em sua música, com exceção da décima segunda, que reproduz a da primeira, por vezes com um intervalo de quarta ou de quinta. Machaut sentiu-se seduzido justamente por essa variedade, que lhe permitia inventar incessante e livremente, misturar versos pares com ímpares, silabismos e melismas em ornamentos entrelaçados de uma desenvoltura sem igual. Num pólo oposto, a complainte propõe 36 estrofes monódicas sobre uma mesma melodia. Dela, Guillaume de Machaut soube tirar o melhor partido na complainte que começa com o verso "Tel rit au main [matin] qui au soir pleure" [Esse que de manhã ri à noite chora], incluída no Remède de fortune, e que evoca, em sua monotonia e na curva de suas melodias, o movimento da roda da Fortuna, numa bem-sucedida tentativa de figuração. A música religiosa de Machaut compreende, como dissemos, a Messe Nostre Dame, Hoquet David e seis motetos religiosos. Não deixa de ser surpreendente que, ao fim da vida, retirado em seu canonicato, o compositor não tenha voltado a escrever música sacra. As circunstâncias da composição e a data de execução da Messe Nostre Dame permanecem desconhecidas para nós. A ausência de cantochão mariano parece excluir a possibilidade de que ela tenha sido composta por ocasião de uma festa da Virgem, a despeito de seu título (que só figura num único manuscrito), e não há nada que assinale sua destinação a uma festa fitúrgica. (A hipótese da circunstância da sagração do rei Carlos V em Reims está de há muito afastada.) A datação da missa escrita por Machaut também não é fácil de precisar. A opinião de Apel, favorável a uma data mais recuada, com base no argumento de que a missa está escrita em compassos curtos, não pode ser levada em conta. Em contrapartida, é digno de consideração o ponto de vista que sustenta Ursula Günther: a obra seria da maturidade de Machaut, por estar escrita em quatro partes, pela isorritmia recorrente, pela constante utilização do tempo imperfeito e da prolação menor. A data aproximativa de 1364 parece provável. Mas é possível também admitir, em função do aspecto arcaico presente no Gloria e no Credo, que essa missa não tenha sido, de início, concebida como um todo articulado. As missas da época, as Messe ditas de Tournai, de Sorbonne, de Besançon, etc. propõem modelos polifónicos a duas e a três vozes, mas isolados uns dos outros e discordantes. Machaut foi o primeiro a ter composto uma missa completa, inclusive com o Ite missa est, e que é, além do mais, uma missa a quatro vozes, o que constitui outra inovação.
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E, mais uma vez, Machaut estava sendo o artesão da antiga e da nova forja. O Gloria e o Credo estão escritos em estilo de conductus, com um silabismo vertical que, firmado nas quatro vozes e com absoluta segurança de escrita, assume grandeza monumental. Os longos Amen de ambas essas partes apresentam, no entanto, uma isorritmia muito complexa, que contrasta com o silabismo precedente. Em quatro diferentes trechos, a composição introduz realces verbais por efeito de um retardamento nos valores das notas: ao pronunciarem-se as palavras Jesu Christe, no Gloria, que se revestem assim de um fervor particular; nas palavras ex Maria Virgine ("de Maria Virgem"), do Credo, o que indicaria uma devoção particular à "Nostre Damé"; no Homo factus est ("foi feito homem" — onde, depois de assim ter feito o rei São Luís, a assistência se punha de joelhos); e ao se fazerem ouvir as palavras Et in terra pax ("e paz na Terra") — na interpretação de muitos, uma aspiração à paz em pleno desenrolar da Guerra dos Cem Anos. As vozes tenor do Kyrie, do Sanctus e do Agnus Dei são tomadas ao cantochão e são escritas, assim como a voz contratenor e também, em certos momentos, as vozes superiores, no estilo do moteto isorrítmico. O compositor concentrou suas pesquisas principalmente nas talea, em suas justas proporções matemáticas, mesmo que elas não se encaixassem no desenho das melodias preexistentes, assim como na manipulação dos valores das notas para obter silêncios e transições. Tudo brilhantemente enfeitado com os hoquets (em latim hochettusr. frase interrompida bruscamente numa das vozes e que passa a uma das outras) então em moda. Não é difícil compreender que essas pesquisas intelectuais variadas, inseridas num conjunto de grande coerência, possam ter interessado tanto Stravinski quando este escrevia sua própria missa. O leitor que nos perdoe esses saltos no tempo, mas a partitura do Hoquet David, escrita sobre um Alleluia-Nativitas [Aleluia Natividade] de Pérotin, que Machaut talvez tenha desejado completar, com sua voz tenor isorrítmica e suas duas vozes superiores em hoquet, nas quais células de uma passam para a outra, trazem irresistivelmente ao pensamento, por sua economia de meios e sua clareza, a escrita de Anton Webern. A aliança da arte antiga com a arte nova, a clareza das estruturas combinada com a elegância formal, a suavidade das melodias, que se casa com a flexibilidade dos versos enquanto os ritmos novos dão às polifonias toda a sua força de coesão, fazem com que Guillaume de Machaut apareça em seu século como "Vescarboucle qui reluist et esclarcist l'obscure nuit" ("o carbúnculo que reluz e clareia a obscura noite").
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A i4rs Nova na Itália II cantar novo e'l pianger delli augelli...
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PETRARCA
O termo Ars Nova, que designa as formas musicais da Itália do Trecento, poderia fazer-nos pensar numa influência da escrita francesa sobre a que se desenvolvia na península e em qualquer parentesco entre as músicas dos dois países. Não há nada disso: o movimento italiano caracteriza-se por sua independência, afirmada na adoção de uma notação própria, admirável por sua precisão e cujos princípios se acham expostos no Pomerium artis musicae [Limites da arte da música], de Marchetto de Pádua (1321-1326). Se é fato que os papas Bonifácio VIII, em Roma, e Clemente VI, em Avignon, exerceram o mais brilhante mecenato no domínio das artes visuais, estimulando o gênio de um Giotto ou de um Matteo de Viterbo, por outro, foram os príncipes das grandes cidades do norte da Itália que atraíram os músicos e os protegeram: as cortes dos Delia Scala, em Pádua e em Verona; dos Scaligari, também em Verona; dos Visconti, em Milão; e, enfim — e sobretudo — dos notáveis de Florença. Por isso mesmo, fazia-se música quase exclusivamente profana, escrita segundo o apelo das circunstâncias, o mais das vezes para convidar aos prazeres ou cantar-lhes a nostalgia. Subalterno mas familiar dos príncipes, o compositor os inicia numa arte que entra no sistema de educação do homem bem nascido e faz parte do cotidiano de sua vida social — disso dá-nos testemunho o Decamerone de Boccaccio (1355) e o Paradiso degli Alberti de Giovanni da Prato (aproximadamente 1390). Estranhas às complicações e às pesquisas formais da Ars Nova francesa, essas composições caracterizam-se, dir-se-ia, por uma inclinação acentuada para a improvisação melódica. Ao inverso da polifonia francesa que se elaborou a partir da voz tenor, a italiana organizava as vozes com base na voz superior, em que se inscreviam as palavras, cujos autores podiam ser Boccaccio, Petrarca, Sachetti. Três gêneros são cultivados na Itália: o Madrigal, a Caccia (caça) e a Ballata. O madrigal — Francesco da Barberino usa o termo Matricale, que significava escrito na língua materna (vernácula), mas também se diz Mandriale ou Madrialle — é uma composição formada pela seqüência de dois ou três terzetti (tercetos, grupos de três versos) após os quais vem um ritornello com um ou, o mais das vezes, dois versos, freqüente mas não obrigatório, ou seja: a ab ou a a ab. São polifonias a duas vozes, às vezes a três, cuja origem deve ser buscada mais provavelmente na monodia profana do que no conductus, com melismas em fim de frases. A temática dos madrigais é nobre e elevada.
[O canto novo e o pranto dos pássaros.] (N. T.)
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A Caccia (que tem por pendant a. Chasse francesa), mais rara, é uma composição em cânone, para as duas vozes superiores, enquanto a voz tenor faz um contraponto não canónico e sem texto, composto de duas seções, a segunda funcionando como ritornello no estilo do madrigal. A perseguição nas duas vozes superiores presta-se ao tema da caça, mas esse gênero é marcado também pela busca do instante vivo, nos pregões do mercado, nas cenas de pesca, com uma espantosa liberdade de invenção. A Ballata, enfim, em suas origens canção para dançar, na verdade aproxima-se do virelai por sua estrutura, com uma ripresa seguida de uma estrofe cuja segunda parte retoma a música da ripresa, com repetição ou não desta após as estrofes: A bba A bba A bba A — e, na prática, A bba bba bba A. Maestro Piero, Jacopo da Bologna e Giovanni da Firenze (ou da Cascia), a serviço dos príncipes do norte da Itália, escreveram principalmente madrigais e caccie. As composições de Jacopo da Bologna são as mais variadas (madrigais a três vozes), e a ele se deve a primeira transposição para música de um soneto de Petrarca: Non al so amante. Francesco Landim (1325-1397), organista cego, foi o compositor mais importante da Florença do século XIV e o que deixou obra mais abundante (onze madrigais, duas caccie, 141 baladas). Dentro da mais pura tradição italiana, mas também influenciado pela arte de Guillaume de Machaut, seu estilo reveste-se de doçura e elegância. Landim lamentava que a música popular ganhasse terreno em relação ao refinamento da que era composta para os príncipes. O mesmo apego à tradição manifestava-se em Nicolo da Perugia (poemas de Franco Sachetti) e em Bartholino da Padova. Andrea da Firenze ou Andrea dei Servi introduz efeitos dramáticos em suas obras, como na balada Cosa crudel, que deixa pressentir o estilo recitativo do fim do século XTV, ao passo que Paolo Tenorista faz a síntese do passado e do presente, do italiano e do francês, em peças não desprovidas de sutileza e sofisticação. Em verdade, nesse fim de século, a tendência para a ars subtilior ("arte mais sutil") parece irresistível.
SEGUNDA PARTE
OS SÉCULOS X V E X V I
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A MÚSICA NO SÉCULO X V
Per viam subtilitatis EGIDIUS D E M U R I N O
Machaut estava morto havia 33 anos quando o século começou. Para o celebrar, seu discípulo Andrieu optou por exprimir-se sob forma pluritextual, como se fosse esta a técnica que devesse ser considerada a mais promissora na obra de seu mestre. Essa forma, herdada do moteto — do qual constituía a própria essência — e cuja moda entrara em decadência depois de Machaut, transfere-se a outros gêneros profanos, para cujo enriquecimento iria contribuir: este é um dos aspectos daquela acumulação de complexidades que invadem a música da época. E a percepção da obraficavaprejudicada? Pouco importa. A obra de arte não tem porfinalidadeser percebida por um público, mas ser vivida por aqueles que a produzem, com todas as suas imbricações intelectuais e estéticas, com todas as suas exigências racionais: sutis relações semânticas ou alegóricas, por vezes mesmo antinómicas. Muitas provas podem ser encontradas no Manuscrito de Chantilly (Museu Condé), o mais representativo desta arte corretamente chamada de ars subtilior. Não é difícil apreciar, neste rondó pluritextual de Jehan Vaillant, a terna cumplicidade das três vozes, a relação amorosa — poder-se-ia mesmo dizer — dos três textos simultâneos, em que se enlaçam pedidos e promessas:
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Segunda parte: os séculos XV e XVI
Cantus: Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray raillant; Mais sans fausser entièrement tendray, Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay: C'est que toudis loyalment t'àmeray Pour ce que t'es en tout noumé vaillant. Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray faillant. 1
Segundo Cantus: Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort, C'est que de vous seray noumé amis, Madame, ce que vous m'avez proumis Si vous supli qu'en oubli ne soye mis, Car pour vray, trop avancerait mã mort.
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A música no século XV
Essa forma de contraponto literário coloca bem em evidência certo gosto por uma riqueza exuberante, em que se identificava certamente um critério de qualidade da obra de arte, mesmo quando lhe sacrificava a compreensão. À exigência de percepção múltipla, podia-se acrescentar — como é o caso nesta peça — um novo empenho em fazer ressurgir, em uma mesma voz (mesmo ao custo de ignorar a habitual especificidade das duas seções do rondó ou do virelai), motivos melódicos já ouvidos, conferindo-lhes, porém, uma contextualização diferente nas outras vozes. Tal procedimento, que a geração de Dufay não irá preservar, concorria de maneira surpreendentemente eficaz para a unificação interna da obra. Todavia, foram os requintes rítmicos que, em todas as épocas, atraíram preferencialmente a atenção dos historiadores: o emprego de valores cada vez mais breves, com grafia bem amarrada, traduzindo de maneira eloqüente a velocidade da voz superior, e principalmente inesperadas superposições de ritmos conflitantes. Por vezes a complexidade é tal, que a realização prática só poderia ser aleatória. W. Apel, um dos mais eminentes estudiosos da música dessa época, limitouse a reproduzir, abaixo da pauta, os valores iniciais, de modo a fazer aparecer o ritmo autêntico, para além da contagem numérica, indispensável segundo nossas exigências.
J. J I j ; j
Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort.
; r iJ
i j J:
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-4- ~4-^—i-
Tenor (?): Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy
Philipactus da Casería
Coume celle que j'ay plus qu'aultre chière, Cent mille fois, ma douce dame chière. Vueillés dont fayre a mon cuer bone chière Quar chascun jour se met en vo mercy. Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy. 1
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[Mui doce amigo tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei; / E, sem faltar, integralmente manterei, / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido: / Pois que sempre lealmente te amarei / Pelo valor que em tudo te é reconhecido. / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei.] (N. T.) [Minha dama, o que me haveis prometido / A vos amar e desejar me tem comprometido, / Pois, se de vós sou nomeado amigo, / Senhora, o que me tendes prometido, / Sim, vos suplico, não caia no olvido, / Pois tal minha morte apressaria, caso houvesse acontecido. / Minha dama, o que me prometestes / A vos amar e desejar me compromete.] (N. T.) [Cem mil vezes, doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço / Como aquela, mais que outra qualquer, que me é querida, / Cem mil vezes, minha doce e cara dama. / Dai, portanto, a meu coração boa guarida, / Que, cada dia, submeto ao vosso apreço. / Cem mil vezes, minha doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço.] (N. T.)
4-4- 9--t
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- Balada: De ma douleur
Entre os compositores cujos nomes nos foram transmitidos pelos manuscritos e cuja atividade — a acreditar-se nas fontes — parece ter tido como cenário as cortes principescas do sul da França, o reino de Aragão e a ilha de Chipre (a corte dos Lusignan era um importante centro de cultura francesa), nenhum deles destaca-se com relação aos outros. Pierre de Molins, Solage, Suzoy, Grimache, Vaillant, Hasprois, Cuvefier, Senleches, Cesaris, Carmen e Tapissier são os representantes dessa arte que, segundo Ch. Van den Borren, perde-se nas "deliqüescências de uma arteflamejante"para as quais a única saída seria um "retorno à simplicidade para sair desse impasse". As premissas do Renascimento "Fiaminghi, Francesi, Oltramontan? na Itália: "Questi sono i veri maestri delia muszca"(Guicciardini). Deixemos a esse italiano do século XVI a tarefa de reconhecer retrospectivamente uma evidência contra a qual ninguém se ergue: o Quattrocento constitui "uma espécie de deserto que os historiadores da música sempre consideraram com
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surpresa e reserva" (N. Bridgman). Depois de um Trecento musicalmente muito ativo — sobretudo na Toscana — e bastante original, graças a sua vocação para uma certa complacência na expressão melódica, a Itália pós-Landini (morto em 1397) parece nutrir certos complexos em relação às realizações francesas. Lança-se até o fundo em uma produção mais intelectual, menos espontânea (muitas vezes sobre textos franceses), até o ponto de perder aquilo que constituía sua especificidade e fundir-se na estética dos que, na corte papal de Avignon, foram os últimos cultores da ars subtilior. A outros caberá retomar o bastão e não haveriam de ser os italianos, mas aqueles estrangeiros que, naquele início de século, atraídos pelo chapéu pontificai tornado agora novamente romano, ganham o proscênio, sobretudo aqueles músicos vindos do norte, de regiões poupadas pelo conflito franco-inglês, como o principado de Liège e o Cambrésis. De fato, são originários de Liège um certo Johannes Ciconia (morto em 1411 ou 1412), em cuja obra são claramente perceptíveis os elementos de uma linguagem nova, bem como todo aquele grupo de compositores notáveis que constituem o ambiente do jovem Dufay: Arnold de Lantins (o primeiro que, em sua missa Verbum incarnatum, parece haver lançado as bases da missa unitária) e seu irmão Hugo, Jehan Brassart, Johannes Franchois (de Gembloux), Bertram Feragut, este último proveniente de Avignon. Uma arte em que o intelectualismo e o maneirismo cedem vez à naturalidade e à graça está presente nos motetos desses compositores que quase já não recorrem aos procedimentos de isorritmia e que, sem ser verdadeiramente fitúrgicos, foram escritos sobre textos latinos e eram destinados a cerimônias (como o faustoso e ainda bitextual Ut te per omnes/Ingens alumnus Paduae, de J. Ciconia, e o terno moteto mariano Tota pulchra es, árnica mea, de A. de Lantins, em que as duas vozes superiores alternam suas invocações em um belo efeito de eco); o mesmo ocorre nas canções a três vozes, por vezes tão graciosas (Pour resjoïr la compagnie [Para alegrar a companhia], de H . de Lantins), por vezes dotadas de intensa expressão (Or voy je bien queje morray mártir [Agora vejo bem que morrerei mártir], ou Se neprenés de moi pitié [Se não tiverdes de mim piedade], de A. de Lantins).
"A contenção inglesa" De hábito, aos músicos ingleses se reconhecem os méritos de haverem feito intervir na linguagem musical uma suavidade toda nova e de terem sido os primeiros a organizar, de modo unitário, algumas das partes do ordinário da missa— Gloria, Credo e Sanctus, por exemplo. Sem querer subtrair-lhes essa dupla paternidade, é preciso pelo menos matizar esta afirmação, que vem de longa data. Já na década de 1440, Martin Le Franc, poeta da corte de Borgonha, afirmava, em seu Champion des dames [Campeão das damas], a superioridade da arte de além-Mancha e a influência decisiva desta sobre a arte do continente. Em vista do que se disse acima, pode-se desde já constatar que, se os ingleses fizeram alguma coisa pela
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elaboração da missa unitária, os liegenses da Itália nãoficaramatrás. Muito pelo contrário. Sem dúvida, produziu-se nesse domínio, como em outros, uma eclosão simultânea, sem que haja necessidade de justificá-la recorrendo a um jogo qualquer de influências ou interferências. Decerto é preciso considerar como mais autêntico o impacto que puderam ter sobre os músicos franceses os novos agregados sonoros em que se consagram terças e sextas, reputadas, desde o início da polifonia, consonâncias de transição, ao passo que os ingleses beneficiaram-se, nesse domínio, de um longo hábito que Martin Le Franc — que decididamente não é insensível ao fato musical — chama de "nova prática de fazer frisque concordance" (isto é, graciosa concordância). Essa prática é mais antiga do que pensa o próprio Martin Le Franc: basta lembrar a maneira rudimentar de enriquecimento espacial da melodia chamada gymel praticada desde o século XII (cantusgemellus, canto duplo na terça ou na sexta inferior), e cujas características podem ser reencontradas no fabordão (faux-bordon), que os contemporâneos de Dufay tanto admiravam. Mesmo que seja preciso descontar o que há de propaganda no que diz o poeta — que provavelmente tinha interesse em exaltar o mérito dos aliados ingleses e em denegrir a rudeza das quartas e quintas praticadas pelos "franceses de França" —, é bastante verossímil que a superioridade dos ingleses, naquele início do século, possa ter levado Martin Le Franc a adotar o ponto de vista do mais forte, até mesmo porque a atividade artística florescia com mais força na corte de Borgonha do que na da França... ou na de Bourges! A presença dos ingleses na França não se limitava a uma ocupação militar, e a presença, em solo francês, de Dunstable, músico do duque de Bedford, não pôde deixar de ser sentida como uma contribuição do mais alto interesse. Podemos ainda mais facilmente admitir o que afirma Martin Le Franc na medida em que a música inglesa — mais bem conhecida desde que as obras contidas no vasto Manuscrito de Old Hall (escritas provavelmente por volta de 1420, em vida do rei inglês Henrique V, o vencedor da batalha de Azincourt) foram postas em partitura — parece ter experimentado, desde o final do século XIV, uma vitalidade muito nova, e também porque, de uma massa considerável de nomes de compositores, destacam-se aqueles dos dois maiores expoentes da época: John Dunstable, morto em 1453, e cuja carreira, em vista das circunstâncias, foi parcialmente francesa; e Leonel Power, morto em 1445, que parece nunca ter deixado Canterbury. Devem-se a um ou ao outro — pois não é fácil distinguir as produções de ambos — os conjuntos unitários a três vozes que são a missa Alma Redemptoris, atribuída a Leonel, ou a missa Rex seculorum, de Dunstable, em que se encontram reagrupadas as outras partes do ordinarium missae (ordinário da missa) que não o Kyrie — não incluído na liturgia inglesa —, pela intermediação de um cantus firmus único. Mais ainda do que nas missas, contudo, é nos motetos de Dunstable que aparece, com toda a evidência, a preocupação com uma eufonía muito nova, produzida pelo uso sustentado de acordes encadeados de sexta, que parecem descartar
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um pouco o interesse que os continentais demonstravam pelo jogo das linhas: a impressão que prevalece é — curiosamente já — a de uma harmonização. Julguese, desse ponto de vista, o belíssimo moteto Quant pulchra es, em que o conjunto da polifonia aceita desenrolar-se com base na declamação da voz superior. Ultrapassado o acimirável desabrochar desses cinqüenta anos, a música inglesa volta à insularidade e abandona o proscênio. Depois de Dunstable, só se pode citar Walter Frye e Robert Morton (morto em 1475), os quais, por sinal, serviram "à muito nobre, resplandescente e opulenta casa dos Borgonheses, cujo renome hoje corre os sete climas" (Jean Molinet); Morton chegou mesmo a ser professor de contraponto do conde de Charoláis, o futuro duque de Borgonha, conhecido como Carlos, o Temerário. O ESTADO BORGONHÊS E SEU IMPULSO CULTURAL [A existência e o progresso do ducado de Borgonha estão, com efeito, entre os dados mais importantes, sem os quais seria incompreensível a história, não apenas política, mas também cultural, do século XV. Sob o reinado dos quatro duques de Borgonha pertencentes à dinastia dos Valois — Filipe, o Audaz, de 1363 a 1404; João Sem Medo, de 1404 a 1419; Filipe, o Bom, de 1419 a 1467, e Carlos, o Temerário, de 1467 a 1477 —, constituiu-se um Estado poderoso que, pela hábil combinação de casamentos, alianças e anexações, reuniu as duas Borgonhas (a ducal e a condal, que é o Franco Condado) ao que os historiadores tendem atualmente a chamar de "os antigos Países Baixos" (atualmente Holanda, Bélgica, Luxemburgo e norte da França até a Somme — menos alguns enclaves, como Utrecht, Cambrai ou Liège, que estavam sob sua esfera de influência). O "Grão-Ducado do Ocidente", como era então, por vezes, designado, acabaria por assegurar a ligação entre os seus dois conjuntos de territórios, ao ocupar o sul da Alsácia e da Lorena. Diante de um Império Germânico a que faltava a mais elementar coesão, de uma França e de uma Inglaterra tornadas exangües pela Guerra dos Cem Anos (e depois, no que diz respeito à Inglaterra, pela Guerra das Rosas), e de uma Espanha que ainda procurava encontrar-se, o Grão-Ducado do Ocidente regurgitava de recursos industriais, comerciais e agrícolas, beneficiando-se sobretudo das suas terras setentrionais, onde se desenvolvia a atividade tão enérgica quanto inteligente de uma burguesia que se igualava à da Itália dividida, ou mesmo a ultrapassava. Não há nada de surpreendente no fato de o Grão-Ducado borgonhês desempenhar, para artistas e músicos, o duplo papel de um centro de atração e de um viveiro de gênios e talentos de primeira ordem. O dinamismo e o poder de irradiação eram tão acentuados que, mesmo depois do deplorável desastre em que vieram a naufragar as grandes ambições do Temerário e da anexação, pelo rei francês Luís XI, da Borgonha propriamente dita, "os antigos Países Baixos", de então em diante súditos'dos Habsburgo, iriam conservar sua espantosa vitalidade humana, não cessando de produzir músicos e pintores extraordinários durante quase todo o século XVI.
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Falou-se amiúde, na história da música, da "escola borgonhesa", ou dos "francoflamengos": denominações bastante impróprias, às quais não se recorrerá neste livro. É bem mais importante lembrar que, na idade de ouro dos "antigos Países Baixos", que vai, grosso modo, da subida ao trono de Filipe, o Bom até a abdicação de Carlos V de Habsburgo (perto de um século e meio), os gênios musicais são precisamente contemporâneos aos da pintura, desde Van Eyck (só um pouco mais velho que Dufay e Binchois), Van der Weyden (contemporâneo destes) e Memling (contemporâneo de Ockeghem), a Hieronymus Bosch (contemporâneo de Josquin Des Prés), PieterBruegel (pouco mais velho que Orlando ãeLassus). Antes falava-se tolamente de "flamengos primitivos", quando inúmeros deles eram valões, renanos ou brabantinos do norte. Em vez de perder tempo com etiquetas nacionalistas (sem sentido nos séculos XV e XVI), mais vale maravilhar-se com a pléiade de músicos que nasceram no território ou nos arredores do Grão-Ducado do Ocidente para logo formarem novos pontos de convergência em toda a Europa, desempenhando um papel capital no Renascimento musical da própria Itália. Para pôr termo, em tom mais humorístico, à irritante confusão das terminologias geográficas, lembremos que, ainda por volta de 1600, o Rei Lear opunha "os vinhedos da França" ao "leite" da "aquática Borgonha". É evidente que, para Shakespeare, bom vinho, na França, só o Bordelais, e que a Borgonha evocava mais as desembocaduras do Escaut e do Meuse que os vinhedos de Vougeot ou de Chambertin. A geografia histórica por vezes pode parecer ridícula. J.M.] Guillaume Dufay (ca. 1400-1474) Nascido em Cambrai e ali formado como mestre de capela da catedral, primeiro por Nicole Malin e depois por Richard de Loqueville, e finalmente cônego de Cambrai, Guillaume Dufay revelar-se-ia o genial herdeiro das diversas influências mencionadas antes. Como outros clérigos de Cambrai, passou uma parte de sua carreira na Italia. Os contatos que pôde fazer durante o Concilio de Constância (1417-1418), de que participou como integrante do séquito de Pierre d'Ailly, bispo de Cambrai, foram sem dúvida determinantes: não é impossível que tenha encontrado ali os Malatesta, a serviço dos quais iria permanecer durante vários anos. Por volta de 1420, teve início sua estada intermitente de cerca de 25 anos na Itália e na Savóia, durante a qual teve postos em várias cortes principescas, entre as quais a capela pontificial, de 1428 a 1433 e de 1435 a 1437, antes de voltar a Cambrai, onde exerceu suas atividades até a morte, em 27 de novembro de 1474. Sem que haja provas de haver pertencido à brilhante corte de Filipe, o Bom, é certo que Dufay manteve relações com ela, mesmo que a título honorífico, pois existe um documento qualificando-o como cantor do duque de Borgonha e outro como cappelanus. A produção de Dufay abrange todos os gêneros de maneira equilibrada e é bem mais importante até mesmo que a do primeiro compositor cujos contornos aca-
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bamos de traçar, Guillaume de Machaut. As oito ou nove missas, os motetos isorrítmicos, as composições religiosas funcionais escritas no estilo de cantilena e finalmente as canções constituem o rundo a partir do qual pôde proliferar o desenvolvimento posterior. AS MISSAS A constituição de um conjunto coerente de peças para formar ciclos é a grande questão do século. Mesmo que tenham existido, no século XIV, alguns conjuntos, dos quais a Messe de Machaut é o exemplo mais famoso, não se pode dizer que o hábito de considerar as peças do ordinário da missa como um todo estivesse definitivamente estabelecido. Ainda prevaleceria por muito tempo o antigo costume de deixar ao mestre de capela a liberdade de escolher a seu gosto esse ou aquele Kyrie, esse ou aquele Sanctus, sem que se considerasse necessário haver, entre essas peças — que permaneciam separadas no tempo —, uma ligação orgânica. É preciso não esquecer que as dezoito missas gregorianas são apenas grupamentos compósitos e aparentemente fortuitos: o mais das vezes, não existem nem retornos temáticos, nem relação de tonalidade. Nada a estranhar, portanto, no fato de que Dufay, como a imensa maioria de seus contemporâneos, tenha composto um número nem um pouco desprezível de fragmentos (37, no total, ou seja, onze Kyrie, quatorze Gloria, quatro Credo, quatro Sanctus, quatro Agnus Dei). Mas não está nisso o espírito essencial da produção deste compositor; por essa razão, pensou-se serem essas peças inevitavelmente anteriores aos conjuntos cíclicos. Hoje em dia, tal classificação simplista não é mais vista como defensável: a evolução rumo à organização dos ciclos não é simples nem súbita. A idéia de ciclo só iria impor-se na época em que Dufay voltou a Cambrai. Chegou a hora de precisar o que se deve entender pelos termos cíclico e unitário. A partir do momento em que se encontram reunidas ordenadamente em um mesmo manuscrito as cinco ou seis peças musicais do ordinário da missa, há fundamento para se falar em ciclo: é neste sentido que a Messe de Tournai, bastante conhecida atualmente, é uma missa cíclica. Dir-se-á que é unitária a missa na qual o compositor tem o cuidado de juntar as diferentes seções por meio de um elemento comum: naquela época, este elemento foi prioritariamente o cantus firmus, cantado pela voz do tenor, elemento melódico litúrgico ou profano que irá servir de estrutura a cada peça e que dará nome à missa. Sem cantus firmus a missa não tem nome — Sine nomine — e mais freqüentemente será apenas cíclica, a menos que o compositor encontre meios de unificá-la através de um ou outro detalhe, de um ou outro artifício. O que há na produção de Dufay para que lhe seja atribuído o grande mérito de ser um dos criadores da missa unitária? Chegaram a nós de oito a dez missas (há dúvidas com relação a pelo menos duas delas). O exame do conjunto das missas de Dufay faz surgir um encaminhamento de grande interesse. Na missa Sine nomine
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para três vozes, incontestavelmente escrita no início da carreira de Dufay, talvez por volta de 1425, ele ainda não se descarta verdadeiramente da maneira de compor características de Avignon no final do século XIV, com suas angulosidades rítmicas, a declamação rápida do texto e os pequenos conducti instrumentais, bastante convencionais desde a época de Machaut, no final de certos versículos do Gloria e do Credo. O único elemento visível de busca de unidade é a progressão descendente de todos os motivos melódicos iniciais das seções, e mesmo da segunda parte do Gloria, em que a semelhança com o conductus instrumental pelo qual se inicia a balada Resvelliés vous etfaites chière lye—escrita para celebrar, no dia 18 de junho de 1423, a escolha de "bela e boa dama" por Charle gentil, don dit de Malateste ("o gentil Carlos dito de Malatesta") — é evidente demais para ser fortuita. A segunda missa em termos cronológicos, a missa Sancti Jacobi, de 1427, é por mais de um motivo famosa, pois dá provas de um esforço de busca sem precedentes, mas — reconheçamos — sem futuro. Dufay trata polifónicamente as peças do "próprio" do ofício de São Tiago, e o faz tão bem que ali encontramos o Introït, o Aleluia, o Ofertorium e a Communio, além das demais seções que iriam tornar-se habituais. A única exceção é o Gradual. Por honestidade intelectual, é preciso contudo assinalar que apenas um único manuscrito compreende o todo e que talvez se trate de um acaso de transmissão: nos outros manuscritos, figuram somente as peças do or
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