MARUBO, Nelly_diss. 2017
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NOKẽ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE ‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS’ O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO ...
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional
Nelly Barbosa Duarte Duarte Dollis
OVIMA AWE NOKẽ MEVI REVÕSHO REVÕSHO SH OVIMA
‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS N OSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
Rio de Janeiro- Fevereiro 2017
Nelly Barbosa Duarte Duarte Dollis
OVIMA AWE NOKẽ MEVI REVÕSHO REVÕSHO SH OVIMA
‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS N OSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Bruna Franchetto - Orientadora
Rio de Janeiro – Janeiro – Fevereiro Fevereiro 2017
CIP – Catalogação na Publicação
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Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Nelly Barbosa Duarte Dollis
NOKẽ MEVI REVÕSHO SH OVIMA AWE
‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS N OSSAS MÃOS’
O TRABALHO MANUAL DOS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por: ____________________ Profª Bruna Franchetto (orientadora) ________________ Profº Carlos Fausto (PPGAS/UFRJ) ____________________ Profª Lydie Oiara Bonilla Jacobs (UFF) ____________________ Profª Luiza Elvira Belaunde Olschewski (PPGAS/UFRJ, suplente interna) ____________________ Profª Elsje Maria Lagrou (IFICS/UFRJ - suplente externo)
Rio de Janeiro - Fevereiro de 2017
Para Tamã-Sheta, minha mãe, que me disse as seguintes palavras, em algum momento no final de 2014: Mia vana yoã shomãivo aska ak ῖ yoãvõ yoãrivi ik ῖ keme mῖ chinãi mai, yoã vana M ῖ kokavo aska matsawã, shõ aa mamẽ kasma. Ãtoro anopa ak ῖ ã yoã mῖ ikit ῖ pa.
ikiyavõ vana, romeyavõ vana, aka m ẽ kῖ , atona asho atõ ikima. Askai yoãna rivara ik ῖ ro mῖ ak ῖ , atoivo vosh aska vana ã yoãrinki aweskin yoãrai ikn onãtakin koῖ ro min ak ῖ, ninkãki.
Você tem que escutar as palavras que são contadas do jeito que elas são. As histórias nunca são iguais; você nunca deve dizer: “Foi ele que contou a verdadeira história”. Como dizem seus tios ( koka-vo, irmãos da mãe), nem a fala dos pajés (shõ ikiya-vo) e dos xamãs ( romeya-vo) pertence a eles mesmos. Você deve compreender a forma específica pela qual a pessoa interpreta os acontecimentos. Preste atenção em quem é a pessoa que narra.
Agradecimentos Quero agradecer primeiramente o meu avô João Tuxaua ( Niwa Wani) que desde a minha existência esteve presente nos meus pensamentos, protegendo-me através dos seus peshoti-akaivo (guia) e pela inspiração e pela força que me motivaram a seguir nesta pesquisa. Agradeço os meus familiares, amigos, colegas, professores. Agradeço as aĩvo-rasĩ
(mulheres) marubo, as principais idealizadoras deste trabalho, que além de
confiarem em mim, me deram a responsabilidade de registrar suas falas e pensamentos, ajudando no desenvolvimento desta pesquisa; sem elas, nada teria sido possível. A minha orientadora, Bruna Franchetto que me recebeu de braços abertos e compreendeu os momentos de dificuldade e provação pelos quais passei. Sem o trabalho dela nas pontas das mãos, eu não teria chegado a concluir em tempo esta dissertação. Sem a bolsa concedida pelo CNPq e sem a dedicação da coordenação e dos funcionários do PPGAS, não teria saído do lugar do começo. O Museu do Índio (FUNAI-RJ), seu diretor – José Carlos Levinho – e todos os que lá trabalham foram incentivo e porto seguro. A todos os professores do curso de Mestrado em Antropologia Social do PPGAS (Museu Nacional, UFRJ): Marcio Goldmam, Edmundo Pereira, Luiza Elvira Belaunde, Carlos Fausto, que nos ensinaram esforçando-se para nos fazer entender qualidade e teorias. A todos os colegas, em especial aqueles que me auxiliaram de alguma maneira no desenvolvimento da pesquisa com suas sugestões, e aos demais pelo convívio durante nossa temporada no curso, com debate e discussões teóricas e metodológicas. Aos meus amigos Aline Moreira e João Rezende pela paciência de ter me aturado durante meus refúgios nas suas residências, haja vista a necessidade de buscar paz para a elaboração desta dissertação. Também agradeço meu grande amigo Irmão Nilvo que sempre esteve presente para me encorajar nos momentos de fraqueza da jornada acadêmica. Ao meu querido colega Gustavo Godoy e às demais pessoas que me ajudaram na formatação e na correção ortográfica deste texto. Finalmente, agradeço a todas as pessoas que considero importantes nessa empreitada, de coração; desculpem-me em não citar os nomes, pois são muitos, além do que, acho, seria injusta com os demais. Espero que todos se sintam incluídos, os que me
ajudaram na construção do pensamento durante minha estadia na universidade e fora dela, na multidisciplinaridade, no diálogo de saberes e na constituição coletiva de conhecimentos para melhores condições de vida em sociedade.
RESUMO O objetivo desta dissertação é apresentar os relatos dos Marubo do rio Curuçá sobre a importância do trabalho manual, com foco nas palavras de sete mulheres marubo, que são as principais inspiradoras desta pesquisa e que vivem nas aldeias de Boa Vista e Nazaré do rio Ituí e nas aldeias Maronal e São Sebastião do rio Curuçá, na Terra Indígena do Vale do Javari (Amazônia ocidental). Enfatizo os contextos dos conhecimentos tradicionais de modo geral e a continuidade da memória que cada artesã traz dos seus ascendentes clânicos. Para tanto, desenvolvo uma explicação sobre os diversos subgrupos clânicos Marubo, de forma a apresentar e ressaltar, a partir do próprio ponto de vista das mulheres Marubo, as distinções no trabalho dos artesões de cada subgrupo clânico e a diferenciação entre mevĩ sho shovima awe, ‘trabalho das mãos’, e mevi revõsho shovima awe , ‘produção das pontas das mãos’. Sendo assim, nas falas das minhas protagonistas, a diferenciação na execução do trabalho manual (‘trabalho das mãos’ e ‘produção nas pontas das mãos’), com b ase no pertencimento clânico, serve para explicar e especificar o modo de ser de cada clã. A dissertação inclui um inventário dos adornos marubo femininos e masculinos, com descrição dos processos de produção, desde a coleta das matérias-primas, seus valores e significados, a imbricação de tradição e inovação.
Palavras chave: Marubo; cultura material; clãs marubo; mulheres indígenas; artes indígenas.
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to present the stories and explanations told by the Marubo of the Curuçá River on the significance of manual labor, focusing on the words of seven Marubo women, who are the main inspirers of this research and who live in Boa Vista and Nazaré villages on the Ituí river and in Maronal and São Sebastião villages on the Curuçá River, in the Indigenous Land of the Javari Valley (Western Amazon). I emphasize the contexts of traditional knowledge in general and the continuity of memory that each artisan brings from her clan ascendants. I develop an explanation of the various Marubo clans, in order to present and highlight, from the Marubo women's point of view, the distinctions in the work of the artisans of each clan and the differentiation between mevĩsho shovima awe, 'work of the hands' and mevi revõsho shovima awe, 'production with the tips of the hands'. Thus, in the speeches of my protagonists, the differentiation in the execution of manual labor ('work of the hands' and 'production with the tips of the hands'), based on the clanic membership, serves to explain and specify the way of being of each clan. The dissertation includes an inventory of male and female marubo adornments, with a description of the production processes, from the collection of raw materials, their values and meanings, the imbrication of tradition and innovation.
Key-words: Marubo; material culture; marubo clans; indigenous women; indigenous arts.
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Capítulo 1 UMA INTRODUÇÃO AO TRABALHO-CONHECIMENTO DAS MÃOS Neste primeiro capítulo, descrevo os antecedentes, a natureza e os objetivos do meu projeto e de minha pesquisa de mestrado. No segundo capítulo, apresento o contexto geral da área e do povo conhecido como ‘os Marubo’, com uma discussão desta denominação e da auto-denominação; em seguida percorro as aldeias marubo para conhecer um pouco da sua organização social, em particular do sistema de clãs, e falo das mulheres que motivaram minha pesquisa com suas falas sobre as limitações que cercam a voz pública feminina. No terceiro capítulo, passo, finalmente, à descrição dos artefatos produzidos majoritariamente pelas mulheres (mas não somente), abordando vários aspectos: a valorização das descobertas, a tradição (os objetos ‘antigos’), a inovação (os ‘novos’ objetos), a criatividade. Cada seção dedicada a cada artefato se organiza em tópicos: coleta da matéria prima, origem (narrativas), processos de produção e transformação, posturas e valores. Uma breve descrição da festa wakaia/tanamea, quando diversas comunidades aldeãs se encontram e quase todos os adornos
são exibidos por mulheres e homens dos diferentes clãs, conclui o terceiro e último capítulo, antes das considerações finais.
1.1 O conhecimento e o trabalho manual O título deste trabalho, Nokẽ mevi revõsho shovima awe, é uma das expressões que escutei várias vezes das mulheres quando comentavam sobre seu trabalho manual 1: noke-N mevi revo-N-sho
shovi-ma
awe
12-N mão ponta-N-GEN
criar-CAUS pertence
Uma tradução para o português poderia ser a seguinte: ‘O que é transformado pela ponta das nossas mãos’, embora o verbo desta frase signifique, entre outras coisas, ‘criar’ e ‘fazer existir’. 1
O leitor precisa saber que há diferença entre os sentidos de duas frases. Mevῖ shovima awe significa ‘trabalho das mãos’, como o trabalho da roça, a construção da maloca, a fabricação da canoa, capinar ao redor da casa, todas tarefas masculina. Mevi revõsho shovima awe significa ‘trabalho das pontas das mãos’, como, para os homens, arco e flechas, cestaria, pentes, chapéus de penas e, para mulheres, os cestos feitos de tucum, peneiras, abanadores, esteiras, saias de algodão, redes de tucum, redes de algodão e indumentárias ou adornos.
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Outra frase que poderia servir de título seria Nokẽ mevĩsho shovia awe. noke-N mevĩ -sho
shovi-a
awe
12-N mão-GEN
criar-PRES
pertence
Se tomarmos cada palavra desta frase, chegamos a uma aproximação: nukẽ (pronome pessoal) é uma marca de primeira pessoa plural, ‘nós’ ou ‘nosso’; mevĩ -sho, palavra com dois morfemas, ‘mão-movimento’, ou seja, fazer /trabalhar com as mãos em movimento; surgir/começar, surgimento/começo; awe, tudo aquilo que alguém faz e lhe pertence; sho (sufixo genitivo); shovi-a (verbo transitivo), criar, fabricar, produzir 2. O problema está na tradução da frase inteira, onde se conectam as palavras. Fazer é saber, saber fazer as coisas, conhecimento que faz com que as coisas sejam feitas. Fazer é com as mãos, é o saber das mãos. É um saber-fazer total, incorporado, para cada pessoa que sabe-faz. É um saber-fazer que ‘pertence’ a quem sabe-faz, assim como as coisas que passam a existir pelo seu trabalho. Das mãos o saber entra na pessoa, é interiorizado e é exteriorizado. E o saber pela escrita, escrevendo, escrito, que é o meu caso? A mesma frase se aplicaria quase naturalmente, já que escrever passa pelas mãos, ou, melhor, é conhecimento que a mão faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e que faz crescer a pessoa. Para entender um pouco melhor este ‘saber fazer’, costumo lembrar o que ouvi muitas vezes do segundo irmão mais velho da minha mãe – Ivinipapa, pai de Ivini, conhecido como Alfredo ou Alfredão. Perguntou-me, uma vez: “O que o médico faz para ele ter o seu conhecimento?”. Respondi: “No estudo ele busca determinadas situaç ões sobre as quais ele quer aprender.” Meu tio comentou: “Enquanto faço uma maloca ou um cesto, eu tenho todo o conhecimento que está na minha cabeça, não estou fazendo somente uma maloca ou um cesto; cada contexto, cada objeto, é um saber total, não é somente fazer uma coisa e deixá-la pronta”. Isso é importante para compreender o que vou dizer. Produzir com as mãos e é um conhecimento total. O leitor verá que escolhi traduções, traduções atalho, que sempre deixam um amargo na boca: ‘trabalho manual’, ‘ar tesanato’, ‘artesãs’, ‘artesão’. Daqui em diante, 2
Meu avô, João Tuxaua, dizia: “ ẽa shovima yora ”, ‘eu fiz gente’, já que ele se definia como responsável das ‘novas gerações’, através da fertilização xamânica de mulheres que não podiam mais ter filhos por ter sido vítimas também de ações ou eventos xamânicos. João Tuxaua se dizia responsável pela ‘criação’ de um povo, que seria denominado de ‘Marubo’. Voltarei a esses momentos mais adiante, neste mesmo capítulo.
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cada uma destas palavras em português deve ser pensada como tendo atrás dela tudo o que tentei explicar anteriormente. As mulheres dizem “ nokẽ mevi revõsho shovima awe” com um tom de satisfação diante de suas próprias ações e feitos. Os bens que manufaturam são a base sobre a qual se eleva a sua autoestima, como prova do seu valor e de seu conhecimento. Para as mulheres, o que se transfoma nas pontas das mãos são cestas de folhas novas de tucum (txitxã ), abanadores ( wekoti), peneiras (toati), saias (vatxi) e pintura corporal (kene). Cada um destes ‘objetos’ tem um grafismo específico, chamado de kene, mesmo nome da pintura corporal. Não se produzem estas coisas à toa, apenas para fins utilitários, mas para conseguir realizar o desenho e conhecer a história dos objetos. Há uma grandeza em saber transformar algo em padrões de desenhos.
1.2 Quem sou eu? Meu nome é Varῖ -Mema, sou da etnia Marubo, mas, na verdade, eu sou varinawavo/vari-shavovo que é o nome do meu clã. Sou filha de Ranẽ -Tupane do clã ranenawavo e de Tamã-Sheta do clã Tama-shavovo/Tama-isko-shavo . No mundo dos nawa, meu
nome é Nelly Barbosa Duarte Dollis. Sou neta de João Tuxaua, que teve sete mulheres. A minha avó, sua segunda esposa, ele criou desde pequena. Minha mãe tem quatro irmãos e é a única filha mulher. Nasci na aldeia, erguida em 1977 pela Fundação Nacional do ÍndioFUNAI, conhecida antes como ‘Frente de Atração’ e denominada depois de Posto Indígena Curuçá, no vale do rio Javari, Amazonas. Sempre tive na minha vida a presença dos nawa, pescadores, madeireiros, indigenistas e, principalmente, pesquisadores. Assim, essa presença tão forte dos nawarasῖ (nawa-rasῖ , branco-PL) fez com que meu pai se convencesse de que eu deveria estudar na cidade. Fiz o ensino fundamental e o ensino médio em quatro cidades do Amazonas: Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Manaus. Cursei Bacharelado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 2008/2014) e estou agora terminando o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Ainda pequena, fui morar com Dom Alcimar Caudas Magalhães, bispo da Pastoral Indigenista, que me chamou para estudar na cidade. Ele e meu pai fizeram um acordo: “você vai levar ela para que aprenda a ler e para ela ensinar a outras crianças que estão esperando aqui na aldeia”. Para ele, eu podia fazer qualque r cursinho para atuar dentro da comunidade. Meu pai tinha o sonho que eu virasse professora ou alguém na área da saúde. Eu nunca sonhei
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com isso; gostava de contar histórias, estando ali no meio de adultos, e de ouvir o que as freiras e os padres contavam. Todas as vezes que eu voltava para a aldeia, nas férias, tinha que contar aos meus pais o que tinha feito. Até uma música que ouvida na cidade e cantarolada por mim sem querer, tomando banho, meu pai pedia para eu cantar na frente de todo mundo. Sentia muita vergonha. Tudo o que eu aprendia, meus pais cobravam e queriam que eu expusesse na frente da comunidade. Ele queria que eu me tornasse uma liderança, porque não teve filho homem. Como eu era quem estava aprendendo a vida de duas sociedades, seria uma porta-voz. Comecei a sentir que tanto na minha família, como na sociedade nawa, não poderia viver normalmente. Ficava me perguntando o tempo todo quem eu era (porque me sentia estrangeira na minha própria família): “e aí, vocês gostam de mim ou me fizeram s ó para eu ter essa responsabilidade? Por que as minhas irmãs não podem ter essa mesma responsabilidade?”. Depois, sai do convento e terminei o ensino médio em Manaus. Dei um tempo sozinha, sem ter contato com ninguém da aldeia, por dois anos. Neste período, fiz curso de auxiliar de administração, trabalhei na empresa Panasonic, da Zona Franca. Sentiame livre de cobranças, não precisava explicar quem eu era. Dei-me conta que deveria voltar. Meu pai não precisou me chamar, eu mesma senti a necessidade de retomar o contato com a minha família. Voltaram as cobranças: “O que você vai fazer, vai voltar, não vai voltar?”, Acabei voltando, aceitando uma proposta para trabalhar na UNIVAJA, uma ONG, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Após mais uma fuga para Manaus, voltei de novo para trabalhar na FUNASA, no estoque de remédios, depois como auxiliar de dentista. Não via nada que eu pudesse fazer além disso. Soube de um curso de Antropologia Aplicada em Manaus, organizado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Não consegui fazer o curso; o coordenador, que tinha que dar uma declaração, falou um monte de coisas absurdas para minha família, disse que eu tinha fugido e que estava indo “atrás de macho”, coisas assim. Acabei ficando doente, três meses no hospital com tuberculose. Não sabia o que tinha, nunca tinha ouvido falar. Nesse tempo, meus dois irmãos morreram de hepatite delta (uma menina de 14 anos e um menino de 10 anos). Senti naquele momento que tinha que ajudar meus pais, mergulhados numa crise profunda. Voltei para Manaus para trabalhar de novo na Panasonic, mas logo pedi demissão e voltei para Atalaia do Norte. Comprei casa na cidade e acolhi meus pais que estavam sem condições emocionais e mesmo materiais de sobrevivência e sem saber viver na cidade. Convivi com eles em depressão, mãe e pai dos
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meus próprios pais. Chegaram quatro crianças, meus sobrinhos, trazidos por minha mãe para que estudassem na cidade, apesar de ter escola na aldeia. A responsabilidade foi aumentando. Comecei a trabalhar com os Maristas que davam palestras nas escolas. Em 2006, vim para o Rio de Janeiro, onde os Maristas têm uma escola, na Barra da Tijuca. Em 2008, entrei na Universidade Federal do Amazonas, campus de Benjamin Constant. Escolhi estudar Antropologia. Minha mãe teve a terceira recaída de câncer, cuidei dela mesmo fazendo curso e consegui acabar. Naquela época, conheci as mulheres marubo da aldeia Boa Vista, do Rio Ituí. Elas trabalham com artesanato e se queixavam por ninguém querer mais aprender essas artes. Eu trabalhava na FUNAI de manhã e de tarde estudava. Um dia cheguei em casa à noite e as mulheres estavam lá, querendo falar comigo. Pediram a minha ajuda como “antropóloga”, não só materialmente: “Queremos a história do nosso artesanato no papel; como somos as autoras das nossas falas, nós queremos que você conte do jeito que a gente contar para você”. Até então, eu estava querendo pesquisar os antropólogos, como é que os antropólogos brancos atuam nas aldeias, conversar com eles e escrever sobre eles. Já que os antropólogos estudam indígenas, eu queria estudar os antropólogos. Esse pedido das mulheres foi mais forte. Tentei fugir porque essa cobrança era tão forte quanto as cobranças da minha família e as conversas eram sempre bem emotivas: “já estamos morrendo, já estamos acabando e você não pode fugir, seu avô foi responsável pelo povo, você tem que ter essa responsabilidade também”. Os Marubo mais velhos acham que a pessoa que sai da aldeia, quando aprende com outra sociedade, tem obrigação de retornar com aquilo que aprendeu. Não tem como fugir. Minha mãe f aleceu em maio de 2015, disseram: “ela morreu, mas você não vai desistir, você está viva! O estudo não é só para você, como Branco faz”. Agora, estou reaprendendo e aprendendo a viver com a ausência da minha mãe. Quase desisti do mestrado, mas antes de morrer minha mãe segurou minha mão e disse: “Quando você for para qualquer lugar, é como se eu fosse você, e você fosse eu. Você está fazendo algo pelo seu povo. Estou morrendo, mas você não vai desistir por isso. Ficarei muito triste se você não for. Quero que você mostre para o seu pai que você não precisou ser homem para ser liderança.” Eu vim e é por ela que estou aqui. É comum as mulheres indígenas não receberem apoio das lideranças das aldeias, quando elas procuraram estudar na cidade por seu próprio interesse. Podem receber apoio de seus parentes próximos, embora eles possam ser os primeiros a não aprovar uma decisão dessa natureza, pois concebem as mulheres como não sendo capazes e como sendo fracas para resistir ao envolvimento com homens não indígenas. Muitas fases dos meus estudos não
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foram fáceis. Nunca tive apoio dos meus parentes ou do meu povo. Quase sempre acharam que eu não teria a mesma competência dos homens. Meu povo costuma falar que as mulheres só pensam em namorar, são fáceis para os homens nawa e “se estragam rápidas”. Assim, não se pode confiar muito no seu aprendizado escolar, já que logo ficam grávidas. De qualquer maneira, meus pais me salvaram nesta busca incessante de estudar; eles mesmos diziam que, ainda que não gostassem do longo caminho de estudo que escolhi, o que importava era me ver feliz, acreditando que algum dia seria alguma coisa na vida. A trajetória dos meus estudos foi minha teimosia em focar meus objetivos, “mesmo sendo estragada”. Alguns dos meus parentes me acusavam de não gostar dos meus próprios parentes e essas acusações ocorriam por eu não me contentar só de querer aprender a falar, ler e escrever. Porém, diante dessas criticas depreciativas da estudante mulher indigena, nas minhas idas e vindas também comecei a ouvir pressões e cobranças, já que sempre me diziam: “você não é nawa-shavo (branco-feminino), olhe, nunca se esqueça da importância dos seus avôs, eles são yora kuῖ (gente de verdade)”. Muitas vezes os meus interlocutores faziam questão de me
contar como eram meus avôs e suas vidas no meio dos Marubo. Era para eu valorizar meu avô João Tuxaua, por ele ter sido importante, pois ele tinha o dom especial de ajudar a sua gente por meio dos seus peshoti-akaya, seus ‘guias’, cujas orientações ele seguia fielmente. Compreendo as cobranças dos meus interlocutores; meu avô fez o que fez graças ao dom que recebeu dos yovevo (guias dos xamãs) a favor de seu povo. Agora é minha vez de fazer algo para o meu povo, através dos conhecimentos adquiridos dos nawa.
1.3 As mulheres marubo protagonistas (a voz das mulheres) Um grupo de mulheres marubo oriundas das Aldeias Boa Vista, Maronal, Nazaré e São Sebastião, amigas da minha mãe, foram as protagonistas da minha pesquisa. A maneira de elas entenderem o trabalho dos pesquisadores despertou o desejo de colaborarem com uma pesquisa acadêmica para transmitir seus conhecimentos acerca do que se faz com as mãos. Mulheres de outras aldeias manifestaram interesse em participar da pesquisa. Ao expressarem o descontentamento sobre como os funcionários tratam os pacientes na Casa de Saúde Indígena-CASAI, quando são removidos para o municipio de Atalaia do Norte-AM, onde permanecem para fazer tratamento de determinadas enfermidades, surgiu a ideia de me pedir para que falasse do “trabalho manual e da produção nas pontas das mãos” (mevisho shovima awee e mevi revõsho shovima awe ), para que seus filhos e netos pudessem
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ter acesso, mais tarde, ao que foi contado por elas. Condividem com os mais velhos o medo de que instituições como a FUNAI e a SESAI logrem em fazer desaparecer seus costumes e tradições: “ china keyoã ”, ‘diluem o pensamento’. Há dois mundos relacionados ao ‘trabalho manual’, chamado de ‘artesanato’ pelos nawa. Como diz Lagrou (2013: 11): Um texto que esboçar o quadro da arte indígena brasileira não senão começar com um paradoxo: trata-se de povos que não partilham nossa noção de arte. Não somente não têm palavra ou conceito equivalente aos arte e estética de nossa tradição ocidental, como parecem representar, no que fazem e valorizam, o polo contrário do fazer e pensar do Ocidente neste campo. Dois problemas centrais e interligados ressaltam desde o começo da discussão: a tradicional distinção entre e artefato e o papel na inovação na produção selecionada como “artistas”.
Fazer ‘artesanato’ faz parte do que é ser uma mulher mevi yosika ou mevi revo yosika, ‘que tem saber nas mãos ou tem saber nas pontas das mãos’ e conhece a história daquilo que é produzido com as mãos ou nas pontas destas. Além disso, depois da morte, este trabalho faz com que uma mulher (ou um homem) seja preparada para voltar para o lugar de origem. Na sociedade marubo, o espírito se prepara - espiritual e fisicamente - desde o nascimento, então tudo o que fazemos tem a ver com preparar a alma para que não se perca neste mundo. Não posso ser sovina com minha irmã, porque se eu negar uma fruta (um mamão, por exemplo) ou qualquer outra coisa, quando eu morrer, o espírito do mamão vai fazer minha alma ter uma morte eterna. Vivemos neste mundo uma realidade de mundo de morte; depois da morte do corpo vivemos na outra vida eternamente voltando para a origem de onde viemos. Cada clã tem um local de origem, ao qual os seus membros voltam, numa viagem, depois da morte. Há vários caminhos de retorno dos clãs. Um deles viaja pela água, outro pelo ar (por cima das árvores, caminhando). Temos uma cosmologia que é transmitida na educação. Quando furamos um aruá ou um coquinho (para fazer um colar), que é a primeira coisa que aprendemos quando pequenos, nossa mãe fala: “olha, fure direitinho e não deixe espalhar, se não o pássaro vem e come”. Não é um pássaro visível, não é um espírito, é a forma de ensinar às crianças como ter cuidado com suas coisas, já que se não cuidar, o que ela estiver fazendo não rende. Para render, você tem que guardar tudo direito no recipiente, ou seja, tendo orientação e sabendo disso, nada deixará espalhado quando levantar. Assim, a criança aprende a ser organizada, responsável com seu trabalho, com forma perfeita. Esse ensinamento está ligado ao trabalho manual, à arte e ao preparo da comida. As mulheres ensinam como educar os filhos e é por isso que elas têm essa ligação forte com o
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‘trabalho manual’ ou artesanato, que é onde encontram a fonte do respeito como mulheres. Aprender histórias de trabalho manual é ter sabedoria nas mãos e na alma, para a pessoa se tornar preparada e equilibrada. A importância do ‘artesanato’, quase sempre considerado uma espécie de ‘arte menor’ pelos nawa, nunca deve ser menosprezada. As mulheres marubo são tímidas, não têm momento de voz. As mais velhas até que algumas vezes têm espaço. A tradição sempre dá a voz ao homem. O homem tem que estar na reunião, tem que falar em pé, e as mais velhas tentam ter voz, mas a mulher mais nova não tem esse momento por ter medo de poder ser objeto de comentários negativos pelos txai-rasῖ filhos do irmão da mãe e filhos da irmã do pai. Quando eu trouxe as mulheres marubo para participar da Oficina de Miçangas no Museu do Índio do Rio de Janeiro, o irmão mais velho da minha mãe disse: “Para quê que você levou as mulheres? Elas não sabem de nada”. As mulheres marubo, contudo, querem falar de seus conhecimentos. Como minha mãe dizia, cada um tem uma forma de contar história, não há uma história verdadeira, a verdade é sempre “a história que minha mãe me contou”, “a história que minha avó me contou”. Os homens não são donos das ‘verdadeiras’ histórias. A partir das explicações que ouvia das mulheres em cada encontro, de como concretizavam seus pedidos, comecei a elaborar um projeto de pesquisa, ainda na graduação. Confesso que fiquei temerosa de enfrentar um assunto e um contexto tão complexos. Com a inquietação causada pelos pedidos das mulheres marubo, procurei meu professor Rafael Pessôa São Paio, para perguntar o que achava da ideia. Ele mais do que depressa me respondeu entusiasmado: é uma ideia ótima, eu farei questão de ser seu orientador. Ao longo do curso, procurei compartilhar meus pensamentos com as colegas com quem mais convivia. As cobranças das mulheres marubo foram aumentando para que visibilizasse suas falas na universidade. Sem saber por onde iniciar, um dia a professora Gilse Eliza Rodrigues me indicou uma oportunidade para me aproximar de outras mulheres indígenas, através do Projeto de Extensão da universidade: o projeto “Diálogo Feminino”. Essa experiência me levou a ter certeza de que eu tinha que falar sobre o que as Marubo estavam propondo: o ‘trabalho manual’ (mevῖ shovia awe), que está em suas mãos. Nos encontros realizados durante o projeto, eu ouvia e via os depoimentos queixosos e sensíveis das mulheres, comentando sobre seus filhos estar desvalorizando sua cultura, pois o estudo na cidade não incentivava e nem valorizava suas culturas. Sensibilizada com a questão, resolvi atender aos pedidos das mulheres, apesar de sentir o peso de uma imensa responsabilidade. Por estar ciente do tamanho da confiança que estas mulheres estavam depositando em mim e sabendo como eu serei cobrada constantemente, por ter
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assumido esta responsabilidade, mantive a coragem para poder simplificar a complexidade do assunto, que me complicava na hora da tradução para a língua portuguesa.
Foto 2: Encontros do Projeto de Extensão ' Diálogo Feminino' com mulheres indígenas do Vale do Javari na cidade do Atalaia do Norte-AM, 2008 (foto de Lenice Tikuna)
Foto 2: Meus dois professores (Gilse e Rafael) apoiadores do Projeto de extensão 'Diálogo feminino' na CASAI de Atalaia do Norte (foto de Nelly B. D. Dollis)
Ainda na graduação, as mulheres Marubo, com o argumento de que não conseguiam ficar sem fazer nada, pediam material dos nawa que facilitassem a produção de artesanatos no tempo em que se encontravam na CASAI, fazendo algum tratamento de saúde. Mesmo não podendo ajudar em muita coisa, comecei a anotar tudo o que elas falavam comigo. No curso de graduação não coube nenhuma pesquisa de campo e houve pouco aprofundamento.
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Em nossas conversas, as mulheres marubo enfatizavam continuamente que nõ anõ noi-pa ikivo (‘aquilo que tenho como valioso, precioso, importante’), aquilo que mais sabem
fazer, são os artesanatos, parte em relevo do ‘trabalho manual’ tradicional. Decidiram que as ações do grupo deveriam começar pela seara de seus domínios: o artesanato. O respeito de seus homens e de outros indígenas, assim como a organização de movimento incipiente, deveria ser atingido por meio do fortalecimento de seu trabalho. Queriam que as ajudasse, dentro da Associação batizada por elas pelo nome de Ainvoras M , que significa, na língua marubo, ‘trabalho de mulheres’. Foi neste contexto que souberam em 2010, do edital do Museu do Índio para projetos na Ação de Promoção do Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas. Reuniram-se para formular uma proposta, que se transformou no Projeto Ainvorasin Meti , elaborado por mim. Em termos gerais, o projeto visa estimular a confecção
de artesanatos tradicionais nas aldeias e, a partir disso, fazer surgir um movimento de transmissão de saberes das mais velhas para as mais jovens. Para tanto, as mulheres elaboraram uma lista de materiais necessários à produção des artesanatos. O projeto foi aprovado e o recurso descentralizado para a Coordenação Regional da FUNAI de Juruá (AM)3, com a minha orientação e a de Shawa Shavo Shëta (Marta Comapa, filha do irmão mais novo do meu pai), para acompanhar a CRVJ na aquisição dos materiais e na sua distribuição. Estava para entrar no curso de mestrado. Em função do projeto mencionado, as mulheres, com os materiais em mãos, partiram para a produção nas aldeias. Com base na compreensão delas mesmas, aproveitaram o material para criar uma coleção a ser apresentada ao Museu do Índio como prova do resultado do projeto e como reciprocidade ou gratidão pela confiança depositada nelas. É importante destacar que a exibição desta coleção era considerada pelas mulheres como uma questão de honra. À medida que o dialogo do MI com as mulheres foi se estreitando, nasceu a oportunidade de conciliar as atividades de registro com uma exposição no MI, respeitando iniciativas e pretensões das mulheres. Ainda que a associação das mulheres marubo não tenha se concretizado legalmente, o movimento suscitou uma grande união entre as mulheres, criando um espaço político nas discussões relativas ao Vale do Javari. As mulheres se reuniam regularmente na minha casa 3
A Coordenação Regional do Juruá (AM) foi restruturado como Coordenação Regional do Vale do Javari, (Decreto n.º 7.778 de 27 de julho de 2012), para atender a reivindicação das lideranças que queriam a criação de uma coordenação regional que pudesse atender somente as demandas do Vale do Javari. Esta é a segunda maior terra indígena do país, com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e com uma população estimada em aproximadamente 5 mil pessoas.
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de Atalaia do Norte, junto com minha mãe Tamã Sheta (Nazaré), antes dela falecer. Assim, minha casa foi escolhida como sede provisória da futura associação. Mesmo tendo permanecido distante e em silêncio, com a morte da minha mãe, ao fazer trabalho de campo, em fevereiro 2016, elas pediram que não parasse o que havia começado, já que elas sempre estariam comigo.
1.4 Natureza e objetivos desta dissertação (e além dela) Esta dissertação tem a finalidade de falar de tudo àquilo que minhas interlocutoras e meus interlocutores tentaram transmitir sobre a importância do trabalho manual e do trabalho feito com as pontas das mãos ( mevi shovima awe e mevi revõsho shovia awe ) marubo, valorizando o conhecimento tradicional para novas gerações. Filhos e netos estão no processo de aprendizagem do mundo ocidental e acabam não priorizando ou deixando os conteúdos e os modos de ensinamento que levam a incorporar a cultura de seus antepassados. Para os mais velhos, deixar de valorizar os detalhes das tradições, ou seja, deixar de respeitar os interditos associados à cultura é deixar de seguir o “verdadeiro” jeito de existir. É frequente ouvir nas reuniões e conversas marubo a seguinte frase dirigida aos jovens: nõ anõ eseya tavama, nokẽ ese keyosho nõ shoko rivi, “se deixarmos de praticar aquilo que é nosso,
vivemos sem passado”. Na maioria das vezes, ouvimos a frase em português: “estamos perdendo a cultura”. Diante de todo esse questionamento, as mulheres me propuseram trazer a descrição e as explicações dos seus costumes, tais como relatadas pelos mais velhos e pelas protagonistas, escritas por mim, pois, por eu se yora shavo (mulher marubo), parente e falante da língua, teria facilidade para compreender o que elas (mulheres marubo) falam. Os nawa-rasῖ não podem ter a mesma perspectiva com relação a relatos e narrativas contados pelas mulheres marubo: anõ pakῖ yoã tῖpa ,‘não contariam de modo adequado’ (como uma roupa que veste bem ou como um homem que combina com sua esposa). Os nawa-rasῖ não têm a mesma vivência; nawã meki akῖ noke nõ yoã natõ akatῖpa , ‘os nawa não fariam a mesma reflexão correta como nós fazemos’. Isso fará uma grande diferença para filhos e netos, hoje estudantes na escola, no momento em que poderão compreender nokẽ na ese, ‘o contexto que faz parte da gente’ (cultura?), no futuro, ao terem acesso aos resultados desta pesquisa. Em termos gerais, meus interlocutores apresentam seus relatos enfatizando que eles são ditos a partir do seu verdadeiro ponto de vista, para que a sociedade não indígena entenda
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os processos de aprendizagem e o modo de saber tradicionais. Segundo eles, falar da produção manual e da cultura em geral do seu povo não é simplesmente ‘história’, mas tudo aquilo que engloba os conhecimentos que dão sentido a sua existência, o que tem a ver com o contexto histórico dos seus antepassados, a importância deste contexto para poder identificar a memória e a herança dos clãs nos processos do trabalho manual. Dessa forma, é possível conduzir “a conhecimentos acerca de context os e, portanto, as produções indígenas devem ter uma apreciação que não se retrinja às formas concretas, mas que englobe igualmente outras expressões culturais que compartilham de um mesmo modelo de experiência coletiva”, nas palavras de Van Velthem (2003:44). Para meus protagonistas, isso remete aos padrões de trabalho manual dos clãs, o modo como vêm sendo desenvolvidos ao longo da trajetória de cada clã. Portanto, eles acham necessário exigir da pesquisadora um olhar atento dirigido aos trabalhos manuais de cada artesã e sua relação com cada clã, já que é assim que é avaliado o produto, com referência a um ‘protótipo’ do fazer bem feito ou mal feito. Dessa forma, a exigência imposta a uma pesquisadora marubo faz com que sejam explicitados os modos de ensinamento para filhos e filhas: a pesquisadora é necessariamente aprendiz. Se eu estivesse presente na aldeia durante esse percurso de aprendizagem, teria recebido esses conhecimentos, através das minhas avós e de minha mãe, praticando junto com elas todos os trabalhos manuais, e não seria uma pesquisadora recebendo os ensinamentos tradicionais através do nawa wicha, ‘riscos do branco’ 4. Tio Alfredo contava que ao mesmo tempo em que se aprendem as coisas com as pontas das mãos, apreendem-se com o chinã , o pensamento localizado no peito-coração. Quando se ensina o chinã , ensina-se também a alma ( vaka), preparando-a para o percurso no caminho dos mortos ( veivai ). Perguntei a ele se isto funciona. Ele retrucou a minha pergunta: “Como alguém faz para virar médico?” Expliquei que ele aprende através dos livros, depois escrevem, essa escrita são avaliados pelos seus chefes ( kakaya-ras ĩ ), para se tornar médico. Ele disse: “Essas coisas que você segue não estão longe do que estamos falando, principalmente você, que está tendo o conhecimento do nawa-rasĩ e através dos riscos incorporados. Você usa o objeto de trabalho deles ( laptop) para criar a nossa fala, faz isso com seus dedos, fazendo seus dedos aprenderem você incorpora nosso conhecimento”. 4
Wicha significa traçar/traçado, riscar/riscado. É um termo usado, por exemplo, para se referir ao traçar/traçado dos grafismos da pintura corporal.
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De tudo isso deriva o meu modo de apresentar o trabalho manual das mulheres marubo, numa conjugação de perspectivas tradicionais com a maneira pela qual as protagonistas entendem a pesquisa realizada por antropólogos. Procurei ressaltar o dilema vivenciado por elas no cotidiano das aldeias, particularmente, quanto às mudanças de práticas e de concepções a respeito de um tema tão íntimo quanto difuso dentro do próprio povo marubo. Daí surgiu o convite e a confiança para que fosse realizada uma etnografia por uma aĩnvo marubo.
Nesse sentido, fica evidente o afeto que atravessa a prática e os ensinamentos envolvidos no trabalho manual marubo, que faz parte do cotidiano das aĩvo-rasĩ shavo (mulheres mais idosas), descritos pelas histórias de vida, onde aparecem as yomemavo-rasĩ (mulheres memórias dos seus antepassados, ao mesmo tempo em que buscam uma desconstrução de certas visões diante da atual realidade, trazida pela sociedade nawa, implicando num redimensionamento intelectual. As novas gerações constroem outras perspectivas da cultura material, a partir da uma experiência de convívio com a sociedade não indígena e até mesmo com as aĩvo-rasĩ kanivena-rasĩ (mulheres mais jovens) de outras etnias. A contribuição da minha dissertação vem de minha aceitação das propostas das mulheres marubo, para serem autoras desta pesquisa. A razão foi dada por elas, uma vez que não têm total liberdade para se expressarem em público, fazendo com que seu valor (feminino) fique em segundo plano, o que se reflete nas etnografias feitas por pesquisadores nawa. Qualquer exposição perante os txai-rasῖ (os (os filhos dos irmãos da mãe e os filhos das
irmãs do pai), segundo elas, é o risco dos txai-rasῖ ficarem ficarem de olho em qualquer ato falho que elas possam cometer, gerando chacotas nas brincadeiras das festas ( txai-võ anõ waka anea , ‘seu ato servirá para dar nomes aos igarapés’). Vale a pena dar um exemplo. Imaginemos que uma jovem mulher tenha a coragem de falar publicamente diante de seus txai-rasῖ anunciando anunciando que ela irá para a cidade de Atalaia estudar, argumentando retoricamente, em seu discurso, que ela será diferente dos homens, que vão para a cidade estudar e acabam fazendo tudo menos estudar (casam, por exemplo). A jovem irá para a cidade, mas, ao invés de estudar, acaba casando. A chacota a espera na primeira festa da qual ela participará. Numa pantomima de caça, o txai falará: “eu fui caçar queixada no igarapé ‘disse que ia estudar, mas casou’”. As mulheres morrem de medo dessas chacotas. Para não expor os conhecimentos femininos, os homens, em geral, justificam:
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Aῖvorasῖ rake veyasma, yoini anipa rake china kima veya yavoma, pasnã chtavo venẽ kasma ashõki yoῖni yama mashoῖ, ato weta shoῖ, ato wai ashoῖ, askakῖ kashma ashõki yoma nai ewe mesteã ivoro vene ato kashama
ashõrivi.
‘As mulheres não enfrentam o perigo, são vistas como não capazes de agir sem medo diante dos animais ferozes, são frágeis e dependentes dos homens na caça, na pesca, na roça, tudo o que exige esforço maior é dos homens, que precisam facilitar para elas’.
Algumas mulheres marubo me contaram que os discursos em publico são somente para o sexo masculino. Assim, para valorizar a sua importância, o homem dis que só ele desempenha o papel de representante da família, ou seja, em outras palavras, que só ele tem poder de chefia entre os seus. As mulheres, mesmo assumindo diversos papéis, são chamadas chamadas de sheta mavo, ‘sem dentes’ (para dizer que não tem coragem), ou ravῖ yavo, ‘envergonhadas’. Elas são, contudo, as principais responsáveis pela educação dos filhos, são as que conhecem os trabalhos manuais e os contextos históricos dos conhecimentos tradicionais, opinam sobre as posturas masculinas nas falas públicas, principalmente quando elas são casadas com chefes. Nesta dissertação, tento dar voz às mulheres marubo que querem expressar seus conhecimentos, contando aquilo que elas não têm oportunidade de fazer ouvir. Segundo elas, os homens tem papel importante na aldeia, possuem ‘palavra pensamento/pensante” ( chinã vanã yavo), mas não são detalhistas como elas quando ensinam seus filhos. São elas as
responsáveis para mostrar aos filhos os conhecimentos relativos a como se deve agir na vida em sociedade. O aprendizado marubo é, ao mesmo tempo, com as mãos e com o chinã (pensamento-conhecimento), (pensamento-conhecimento), para dominar os saberes tradicionais. As idealizadoras desta pesquisa foram sete mulheres oriundas de diferentes aldeias das duas calhas dos rios Itui e Curuça, incluindo minha mãe, que atuou como minha orientadora. Contudo, conforme foi ocorrendo ao longo das conversas entre elas, ao tratar da necessidade de tr ocas ocas de saberes, os conhecimentos ‘imateriais’ dos homens também passaram a fazer parte do contexto do desenvolvimento da pesquisa. A pesquisa está focada no estudo das falas ou narrativas desses progonistas marubo, aquilo que eles próprios entendem da sociedade a qual eles pertencem. Para trazer as falas originais ( nokẽ vana koῖ , ‘nossa fala verdadeira’), o melhor método de pesquisa deveria ser o registro audiovisual das narrativas dos próprios falantes (autores das falas). Isso tem a ver com o que dizia minha mãe: “das histórias orais dos nossos antepassados cada família/clã traz a versão que ouviu e da forma como recebeu e elaborou a
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narrativa ao longo de gerações; o que importa não é a diferença entre as histórias das diferentes famílias/clãs, o importante da história é a consciência de fazer parte da família/clã do qual faço parte”. Em outras palavras, não existe uma narrativa ou uma versão maior e melhor de uma narrativa. Cada contador produz pr oduz uma única narrativa, herdada e elaborada, que desaparece com ele, com o desaparecimento do narrador. Não consegui realizar registros audiovisuais consistentes e completos, infelizmente, por causa da minha própria timidez, das condições da pesquisa, de minha identidade como pesquisadora marubo, entre outros fatores condicionantes. Entendo que a contribuição da minha dissertação vem de um esforço para explicar a importância do trabalho manual feminino, que engloba conhecimentos conhecimentos complexos materiais e imateriais, trabalho cotidiano que precisa registrar para entender a sociedade marubo. Ouvindo os relatos das minhas protagonistas, eu pude constatar que cada contexto narrado traz explicações sobre a existência de tudo aquilo que faz parte da cultura. Sem eu saber, os conhecimentos conhecimentos marubo fizeram e fazem parte da minha vida, desde que comecei a ouvir meus pais que queriam que eu tivesse alguma noção das lembranças de relatos da memoria de seus próprios pais, mas nunca havia imaginado que um dia eu ia ajudar a descrever parte disso em nawã wicha (‘nos riscos dos nawa’), o que me levou a pensar nas dificuldades da tradução e à
preocupação preocupação por não saber saber distinguir e organizar organizar os diversos assuntos assuntos trazidos pelas mulheres. mulheres. Nos relatos que contextualizam o trabalho manual, meus protagonistas quase sempre começavam realçando a importância do clã na vida da pessoa que procura obter os conhecimentos pertinentes (materiais e imateriais), para depois passar ao processo de aprendizado por parte das crianças desses conhecimentos, nos quais estão em primeiro plano as histórias das relações de parentesco clânico, como pressuposto para entender a perfeição dos padrões e as discussões atuais na interface entre tradição t radição e inovação. As mulheres com as quais convivi diziam que o conhecimento é importante por ser herdado dos clãs principais, sem maiores explicações. Logo comecei a procurar saber sobre esses clãs, que elas afirmavam ter existido, e sobre os vene-pavo (clãs maiores) e os poto-pavo (clãs menores). Formulei a pergunta: “o que e como são, hoje, estes clãs?”. Era evidente a centralidade dos clãs para os casamentos, o parentesco, os comportamentos, os modos de relatar histórias e os trabalhos ‘com as (pontas das) mãos’. Ao trazer para a etnologia e a etnografia sobre os Marubo uma análise dos conhecimentos relativos ao trabalho manual, esta dissertação traz junto os argumentos das mulheres que recolocam questões acerca do parentesco e dos clãs. Afinal, nenhum relato, mesmo o mais aparentemente simples, ocorria sem incluir, desde o começo, as referências clânicas.
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Quando uma mulher marubo me dizia que a razão de ser do meu trabalho era mostrar “o que realmente somos”, ela queria dizer “o que sou por pertencer a um determinado clã, lugar de origem do meu conhecimento”. Nesta dissertação apenas arranho o tema dos clãs marubo, no segundo capítulo. 5 Na minha leitura dos autores que pesquisaram os Marubo, averiguei que todos oferecem descrições e análises da estrutura de parentesco e dos clãs, para entender a organização social marubo. Tudo isso me trouxe inquietações, a vontade de aprofundar a perspectiva dos Marubo, como protagonistas, acerca da importância dos clãs e das relações (de parentesco) tecidas através deles. É exatamente esse tema que precisa ser desenvolvido e aprofundado, o que pretendo fazer no doutorado.
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Outros temas entram, hoje, nas discussões entre as mulheres, como, sobretudo, a mistura de ideias de outros povos, que, segundo elas, traz problemas mentais e físicos, bem como o impacto cultural (o distanciamento dos mais jovens da “cultura”).
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Capítulo 2 OS MARUBO DO RIO CURUÇÁ
2.1
A região
Mapa 1: Terra Indígena do Vale do Javari (CTI 2011)
A Terra Indígena do Vale do Javari é localizada no extremo oeste do estado do Amazonas, na região de tríplice fronteira - Peru, Colômbia e Brasil - onde vivem os povos indígenas Marubo, Mayoruna, Matis, Kanamari, Kulina e Korubo, com uma extensão terretórial de 8.544.444 hectares, sendo a segunda maior Terra Indígena do país. A TI do Vale do Javari também concentra, no seu interior, o maior número de índios isolados do mundo (em torno de 27 grupos), segundo informações da Coordenação de Índio Insolados da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Mantém ainda grande quantidade de biodiversidade preservada em sua área. A TI do Vale do Javari foi demarcada e homologada em 2001 pelo Governo Federal. Os Marubo vivem nas margens do rio Curuçá em nove aldeias: São Salvador Volta Grande, São Sebastião, Morada Nova, Matxi Keyawai, Maronal, Jaburo, Machi Matxi e Komãya. Antes de apresentar as aldeias do rio Curuçá, ressalto que Sui Waka (o rio Curuçá),
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tributário do roe ene waka (rio Javari), era considerado, antigamente, pelos Marubo, como local proibido para se morar. Segundo os mais velhos, não se podia explorar o Sui Waka, por ser um rio em que não se podia tomar banho, o que causaria febres. Era chamado de inonawavõ waka, isto é, ‘rio do clã dos jaguares’.
Encontramos mais informações na introdução da tese de Welper (2009:13): As aldeias marubo (constituídas por um número bastante variável de malocas) estão localizadas nos médios e altos cursos dos rios Ituí (12 aldeias) e Curuçá (9 aldeias), afluentes do rio Javari (marco natural da fronteira entre o Brasil e o Peru), mas há também um significativo núcleo populacional na área urbana do Município de Atalaia do Norte, sede do poder administrativo e executivo da política municipal e indigenista (ver anexo 36 e mapaaldeias 2008). Embora os Marubo informem que ambos os rios (Ituí e Curuçá) eram territórios de seus antepassados, a ocupação do primeiro rio, tal como hoje se configura, resultou de uma fissão ocorrida em meados da década de 60, estando a população antes disto concentrada nas cabeceiras dos rios Arrojo e Maronal, afluentes do rio Curuçá.
Para enriquecer os dados oferecidos por Welper, relato a seguir uma narrativa míticohistórica marubo, contada para mim pelos meus avôs (minha avó paterna Iraci e meu avô materno, João Tuxaua) e pelos meus pais, de modo a compreender os processos de maea dos meus antepassados e a origem dos diversos povos que aconteceu em noa tava. O significado de maea é de um processo-deslocamento do ponto de surgimento noa tava, ‘rio abaixo’, onde o rio fica grande, Manaus, Rio de Janeiro, entre outras grandes cidades na beira do mar, para as cabeceiras dos rios, noa revo. O povo Marubo foi adquirindo sua sabedoria ao longo dessa caminhada, que atravessou as moradas de diversas gentes-animais, onde descobriram e aprenderam as artes de se alimentar, de plantar, de colher o que plantam, do xamanismo, entre outras sabedorias que foram aprimoradas na viagem até a cabeceira dos rios. Contam que, assim, foram responsáveis por rate-ni-tivo (acordar.assustado-conhecer-fazer existir) outros povos; conforme suas descobertas, fizeram existir outras espécies de seres. As narrativas sobre maea falam de deslocamentos no espaço, que continuaram, como os que aconteceram na década de 1940. Ao longo de toda a trajetória dos Marubo, sempre houve a divisão de um rio para outros rios. Os mais velhos dizem que, antes da década de 1940, os Marubo habitavam próximos uns aos outros, que cada maloca ou oca era representada por um cacique ( kakaya ) importante. O princípio do desmembramento do povo Marubo ocorreu na época dos seringueiros e quando houve o rapto de quatro mulheres pelo
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povo Mayoruna. Os Marubo, numa vingança xamânica, amaldiçoaram o rio Curuçá, além de massacrar os Mayoruna. Os pajés haviam falado que essa maldição provavelmente podia afetar aquele que frequentasse o rio, de modo que, para evitar a maldição, os Marubo passaram a frequentar menos as suas margens e mais os seus igarapés. Além disso, houve desentendimentos e conflitos internos por causa de mulheres, o que levou ao deslocamento definitivo de alguns Marubo para o rio Ituí. Missionários evangélicos (Novas Tribos) acompanharam a mudança para o Ituí e lograram converter parte destes Marubo. Os velhos do Curuça comentam intensamente que os jovens de Ituí daquela época foram e ficaram afastados de suas origens, e são considerados pessoas sem sabedoria na alma e mais ainda sem sabedoria nas mãos. Até hoje, os Marubo do Ítui são vistos como tendo incorporado ou misturado pensamentos dos missionários com conhecimentos marubo. 6 Não são estas apenas acusações ou críticas dos do Curuça direcionadas aos do Ituí; observei atitudes de vergonha ou silenciamento dos segundos na presença dos primeiros quando se trata da transmissão de conhecimentos tradicionais.
2.2
Deslocamentos, mudanças Segundo meus protagonistas, esses deslocamentos mexeram com o mundo dos
Marubo. Conheceram (e fizeram existir) - ato nĩ oĩ nãnã niki shovi mati - outros clãs, outras etnias e os nawa-rasĩ, que transformaram as novas gerações em ‘más gerações’ ( ichna revo shovi mati), dando como exemplo os filhos que não obedecem aos pais e não valorizam a sua
própria cultura. Antigamente evitava-se que crianças e jovens tivessem acesso a visões ou informações prejudiciais. Assim, por exemplo, a família impede que a criança coma frutas “gêmeos” (frutos duplos ou geminados), apenas mostrando medo através de gestos ou da expressão do rosto; o que é ouvido, visto, ingerido faz existir uma espécie de ‘cópia’ em que m vê, ouve, ingere. Para explicar verbalmente para as crianças aquilo que é proibido, tem que esperar a idade certa; se não tiver idade para entender, não se explica, só se proíbe. Antes de explicar para uma criança que tem idade para entender o porquê ela não pode comer algo, a mãe pede para que ela cuspa como sinal de desgosto e se tiver com vontade de engolir a saliva, que não a engula, mas a cuspa. 6
Um exemplo de revisão cultural missionária: para os Marubo é proibido comer carne e em seguida mamão (o mamão amolece a carne e causa tumores ou inchaços). Uma mulher marubo evangelizada, digamos, diz para seus filhos que pode comer mamão depois da carne se beber água pensando em Yose (Deus ou Jesus). Já exixtem traduções de partes do Velho e do Novo Testamento para o Marubo, em diferentes suportes.
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Como toda sociedade indígena, os Marubo também mudaram e continuam mudando. Com isso as ‘proibições’ se diluem e enfraquecem. Segundo a minha mãe ( Tamã Sheta), quando os Marubo moravam nas cabeceiras dos rios, com os poucos contatos que tinham com os nawa-rasῖ suas vidas foram se modificando em pequenas coisas, os homens começaram a fazer roças grandes com artefatos dos nawa-rasῖ , adquirindo facas, facões, enxadas, machados, e as mulheres ficaram sem tempo para fazer panelas de barros e saias de algodão por quererem acompanhar os maridos nas cidades dos nawa-rasῖ , quando começaram a dar importância às panelas de alumínio, canecos, pratos, agulhas, tecidos industrializados, rede de tecido, até o omomento em que começaram a gostar de consumir sal. 7 Tamã Sheta fez um relato da sua vida, no dia 6 de maio de 2014: Quando casei com teu pai e conheci a família dele, que fazia parte dos clãs ranenawavo e ni-nawavo, considerados em constante contato com os nawa-rasῖ , eu tive a oportunidade de ver de perto outro aspecto da vida marubo: as suas mulheres acordavam mais tarde, tomavam banho em plena luz do dia, se preocupavam menos com as refeições do dia, produziam confecções sem se preocupar com as horas do dia. Tudo isso era o contrario da minha vida na maloca dos meus pais, onde cresci com minha mãe me acordando cedo, quando aparecia a estrela d’alva ela já me chamava para sentar no chão e esfriar o traseiro, acabar de acordar e pentear os cabelos. Em poucos minutos, meu pai começava a chamar meus irmãos e as noras com os nomes mais carinhosos que ele achava, e ela mesma começava a preparar os alientos. Depois saiamos para tomar banho, quando começava a clarear o dia; meu pai, os filhos e outros meninos saiam para tomar banho juntos. Assim que chegavam do banho, faziam a primeira refeição do dia e, enquanto comiam, meu pai perguntava sobre a terefa de cada um dos homens que viviam na mesma maloca. Conforme a resposta, meu pai os orientava. Minha mãe fazia o mesmo com as mulheres, mas ela não era muito de dar ordens, gostava mais de dar exemplos. Assim como você, sua avó era filha de rane-nawavo e casou-se, ainda criança, com meu pai (João Tuxaua), considerado um kakaya muito importante entre os Marubo. A primeira mulher do meu pai foi a irmã do pai de minha mãe. Portanto, a irmã do pai da minha mãe ensinou minha mãe sobre as tarefas que são responsabilidades domesticas e sobre o comportamento adequado para uma mulher de chefe. Por isso que te digo, as famílisa marubo não são todas iguais; é claro que não tem como você perceber logo ao chegar numa aldeia, já que quem não tem conhecimento não entende como somos realmente.
Essa fala da minha mãe aconteceu quando eu mostrei a ela a tese de Welper (2009), que trata de João Tuxaua. Naquele momento, ela pediu para que eu incluísse nesta minha
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Em “Chaquira, el inka y los blancos: las cuentas de vidrio en los mitos y en el ritual kaxinawa y ameríndio”, Lagrou (2003) mostra o sentido das mudanças nos processos de produção como consequência do contato com o mundo não indígena, o que me lembra o argumento oferecido por Tamã-Sheta.
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dissertação um pouco do dia a dia vivido por ela, complementando as informações sobre a chegada dos Marubo à margem do rio Curuçá. Os do clã tama-ua-vo , antes de morar na aldeia Maronal, viviam todos juntos na aldeia Kapi-vana-wai e outro clã vivia na aldeia Mãse-matxi. Eram duas aldeias que ficavam uma na frente da outra, sendo que na aldeia Kapi-vana-wai viviam, além de outros clãs, os tama-ua-vo com o kakaya Itxã-papa, e na aldeia Mãse-matxi vivia a família do clã ino-nawavo com o kakaya Kẽshõ-papa. Os moradores de Kapi-vana-wai mudaram para a nova aldeia
chamada Shavẽwãi-shovo , enquanto algumas famílias do clã Txona-vo construíram sua nova aldeia chamada Orõ-Manã . Com a morte da matriarca Isa-pei- Maia, os Tama-ua-vo fizeram uma nova aldeia chamada Txanã-Matxi no encontro do igarapé Vaῖ -ya com o rio Curuçá. Os dois irmãos mais novos tama-ua-vo , casados com as mulheres do clã sata-shavovo , construíram sua nova morada Iskõ-Matxi abaixo do igarapé Voῖ -tekõya, um braço do rio Curuçá. Incluo aqui o mapa feito por Welper (2009: 89) para mostrar as localizações citadas nos relatos anteriores; a autora detalha as andanças dos grupos marubo na época de João Tuxaua.
Mapa 3: Vale do Javari apud Welper (2009:89)
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Segundo Alfredinho (o filho mais velho de Alfredo com a sua terceira esposa), a atual aldeia Maronal, em que ele reside, foi construída pelo pai em 1982, com a chegada dos funcionários da Fundação Nacional do Índio-FUNAI na região, dada a necessidade de erguer um novo local que facilitasse a entrada dos nawa que iriam trabalhar no meio deles. Assim, surgiu também uma pista de pouso e foi chamado José Nunes, membro da Missão Novas Tribos, com a finalidade de alfabetizar os jovens marubo. O desejo de Alfredo, chefe de Maronal, era de formar uma geração para que, no futuro, a presença dos nawas nas aldeias não fosse tão necessária, para os filhos, netos e sobrinhos não precisassem viver na cidade com o que aprenderam com os nawa-rasῖ , minimizando os impactos culturais. Alfredinho disse no dia 27 de abril de 2016: Meus parentes tiveram um pouco de conhecimento da leitura e da escrita, não tanto como nawa-rasῖ , mas assim como meu pai sonhou para mim, eu penso em captar os conhecimentos dos nossos ancestrais aproveitando o pouco de aprendizado que tivemos da escrita nawas. Com isso, pretendo estimular os estudantes a escrever as histórias de como surgimos, como surgiram nossos alimentos, como contam os mais velhos, ritos, plantas medicinais, como eram nossos antigos rome- yarasῖ (pajés), como era a educação dos nossos ancestrais.
Olhando para mim, acrescentou: Mema, eu me preocupo muito com nosso futuro. Os pesquisadores estudam a nossa realidade, mas não estão preocupados com o futuro da nossa sociedade. Eles fazem pesquisas sobre a forma como eles acham que somos, mas nossos jovens de hoje já não estão mais dando importância, só querem aprender o modo de vestir dos nawas, assim como eles disperdiçam o conhecimento dos nossos ancestrais, também percebo que não estão apredendo nada que preste para se defender, não estão aprendendo da forma certa como verdadeiros nawa-rasῖ . Nossos irmãos, filhos e netos só querem aprender o modo de ser dos veio nawa-vo chinãsho shokoyavo, ‘os nawa inúteis que não se importam com o saber’.
Conversando com os mais velhos, eu os escuto falar que nosso povo não é mais o mesmo: está ficando doente e deprimido ( chinã pãchῖ -kavo), era saudável ( nami tono-kavo), as mulheres e os homens eram chinã keska-pavo, mas hoje os filhos estão ficando raquíticos (chinã keska-mavo ), tudo mudou, a educação, a forma de cuidar do corpo, a preocupação que havia com o ambiente em que vivíamos não é mais a mesma. Não seremos os mesmos; uma das consequências por permanecer mais do que o tempo necessário em um só lugar é que uma aldeia habitada por mais tempo atrai energias negativas, as cultivações de plantas ficam sem vida por causa da terra que está ficando sem nutrientes.
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Voltemos aos Marubo do rio Curuçá, entre os quais se move esta dissertação. Apresento, abaixo, o mapa do rio Curuçá, desenhado por mim com a ajuda da minha tia (meia irmã da minha mãe, uma das protagonistas desta pesquisa) Ino Tamã Shavo (Ilda) e da minha irmã mais velha Isa Pei Maia (Natividade), enquanto elas contavam para mim sobre a via de acesso ao rio Curuçá a partir da cidade de Atalaia do Norte, até as aldeias deste rio, sobre os principais igarapés (tributários) do rio Curuçá, os igarapés denominados na língua, a distribuição das aldeias nas margens, o número de malocas em cada aldeia, a quantidade de pessoas que moram em cada maloca e os clãs aos quais as pessoas pertencem. Trata-se de informações que retomarei na parte que se segue (Os “Marubo”). Isapei-Maia (comunicação pessoal, 23 de agosto 2016): Atalaia nawã shava nõ anõ pokeka ivo, nokẽ shenirasῖ ipawatõ iki nokẽ shavapas noke shoko shokosma, atiãro nawa askakῖ oῖyarivi kai apawavo, ramaro noke ichnavis voi nawa oῖnõ inã amiska, Sui revõka kãtxiya, rawe nokẽ shenirasῖ ipawãtõ iki enema, Cruzeiro kiri taẽ võvõ matsawã, txeshẽ
avo askasivi, Atalaia kiri vei, Cruzeiro kiri voi amiska, vevõ motore yamasho wetsa winakarã matsawã ipawa. Ramaro, noke motore ãtsaka aya, rama yorashavo rasῖ kopῖmati yawã kavo, askasho pokei enesmavo, vevoro nõ anõ kẽã westichtase viarivi ipawa. Atalaia namã iwãi kaa oshe westsase ipawa,
winaa tiãro, ramaro yora osha kaya ivoro, revoka ã nokoika oito shavakaiã, vestika ikiya quatro shavapa quatro yame aka matsawã.
Atalaia é uma cidade nawa que visitamos com frequência, hoje não somos iguais aos de antigamente, de ficar mais tempo nas nossas aldeias, não víamos os nawas com tanta frequência como fazemos hoje, agora até nós estamos sempre por aqui na cidade deles. São os que moram na cabeceira do rio Curuçá que continam fazendo como antigamente, deslocando-se para Cruzeiro a pé. Os que moram no rio Ítui visitam tanto a cidade de Cruzeiro como a cidade de Atalaia do Norte. Quando não tinham motor de rabeta, iam para a cidade remando; hoje todos possuem motor, as mulheres tem dinheiro para sacar na cidade, então eles não descem mais para comprar o que necessitam como antes. Quando vinham para Atalaia era uma viagem de um mês, hoje com motor, aquele que faz parada para dormir, leva oito dias de dormida até a última aldeia, enquanto aquele que viaja dia a noite faz quatro dias e quatro noites. Ino Tama-Shavo (19 de abril de 2016): Atalaia namã itaῖ nõ vẽvẽã neska, Suῖ oma nisho katxiyavo yora Kanamari, Sui nakika kãtxiyavo Mayoruna, Kulina e Marubo. Roe enẽ wakã karo nawarasῖ nõ oῖ võvõa rasῖ katxia, nõ oῖ võvõtika shavapa anero Atalaia, anosho nõ oῖ võvõka shava wetsaro Benjamin Constant, Tabatinga kopi mati tsekai nõ anõ shokoa ẽ yoãvre, vevõ tiã atovõ rãtxa (lancha recadão) awe
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vivani tachi nana matsawã ipawa, arose (arroz), avo, avo poto (sabão, sabão em pó), sheo (agulha), resisi (linha de costura), vatxi (tecido saia), piarasῖ vatakavo (comidas doces), pia õsi-õsipa (alimentatos de diversos tipos), maneyoa-raῖ (panelas), tsano-rasῖ (talheres) , kẽtxarasῖ (pratos) , senotirasῖ (facas), richkiti (facões) , roerasῖ (machados), õpo pani (rede), tipi (espingarda), mara eshe (cartucho), wetati (anzóis), resisi anõ wetati (linha de pesca) , atõ awe wetsarasῖ aka vivarãi tachi mãtsawã ipawavo. Roe enesh (rio Javari) oi, Itaquai, tavania ano osha rave vakῖ karã, roe enẽ nawa vô keyakavo akavo tavaniro, Kanamari rasῖ kãtxiaya tavani oiro, suῖ ikoa ano waka teaya shokoa tavania, nawa awestichta nia shava Caroço, Suῖ titai teã Pardo nokonia anõ moka nawa rasῖ kãtxia shava rave vakῖ Nova Esperança, Terrinha aka, Todos os Santos anõ ichna toῖyavo shokoa iva vainavo, Bananeira, São Salvador, Volta Grande, São Sebastião, askavai Tashaya, Yoraya, Txona- Anãya, Shoriya, Kaῖ -tekãya, Kariya, Morada nova, Yovῖya, Kapeya, Inῖtiaya, Matxi Keya-waiya, Yawaya, Shawẽwaya, Kari-Oshoya, Vekotapãya, Vaῖya, Maronal, Tsainamãpa, Vari-nawavo, Machi-Matxi, Ranõya, Kereya, Voῖ -Vakõya, Voreya, Txashoya, Komãya.
O deslocamento que fazemos para a cidade de Atalaia do Norte é assim: antes de entrar no Curuçá mora o povo kanamari do Vale do Javari, dentro do Rio Curuçá moram os povos Kulina, Mayoruna e Marubo. No rio Javari moram os nawarasῖ e a cidade mais visitada é Atalaia. Outras cidades que visitamos para tirar dinheiro são Benjamin Constant e Tabatinga; as populações dessas cidades vinham até onde morávamos, trazendo suas mercadorias, como arroz, sabão, sabão em pó, agulha, linha de costura, tecido para saia, comidas doces, alimentação de diverso tipo, panelas, talheres, pratos, facas, facões, machados, rede, espingarda, cartucho, anzois , linha de pesca e outras mercadorias para troca . O deslocamento ocorre assim, saindo de Atalaia passa pelo Itaquai, só neste rio são quatro dias, sendo que dois dias e duas noites, passa pelos não índios conhecidos na região como povo cabeludo (os Israelitas), passa pelos Kanamari que moram no Javari, depois passa pela Frente de Proteção aos Índios Isolados – FPVJ, já dentro do Curuçá mora um homem não indígena chamada de Caroço, ai chega ao primeiro tributário do rio Curuçá, o igarapé Pardo onde vivem os Mayoruna, nas aldeias de Nova Esperança e Terrinha. Chega-se a outro igarapé, Todos os Santos, onde, segundo as pessoas que conhecem este rio, vivem índios isolados plantadores de maconha clandestinos, depois vem os igarapés Bananeira e São Salvador, com a primeira aldeia marubo, então a segunda aldeia marubo, Volta Grande, a terceira aldeia, São Sebastião, outros igarapés denominados na língua Tashaya, Yoraya, Txona- Anãya, Shoriya, Kaῖ -tekãya, Kariya, a aldeia Morada Nova, os igarapés Yovῖya, Kapeya, Inῖtiaya, aldeia Matxi Keya-waiya, os igarapés Yawaya, Shawẽwaya, Kari -Oshoya, Vekotapãya, Vaῖya, as aldeias Maronal e Tsainamãpa, Vari-nawavo, Machi-Matxi, os igarapés Ranõya, Kereya, Voῖ -Vakõya, Voreya e Txashoya, e a aldeia Komãya. Elaborei o mapa abaixo para ilustrar os relatos de Isapei-Maia e de Ino Tama-Shavo.
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Mapa 4: Sui Waka (Rio Curuçá, desenho de minha autoria)
2.3
Os “Marubo”
Antes de tudo, quero ressaltar que a palavra ‘Marubo’ nada significa para o povo chamado pelos não índios de ‘marubo’, a não ser o fato dele ser, exatamente, um exônimo que ficou congelado nos registros e documentos oficiais. Na realidade, os Marubo não existem para os Marubo, já que eles se identificam internamente pelos nomes dos clãs ou subgrupos ou famílias (a ivo nawa-rasῖ ). Certa vez, eu perguntei para minha mãe porque aceitamos ser chamados de ‘marubo’. Ela me disse: “as pessoas que falam português aceitam ser chamadas de ‘marubo’. Acho que eles têm dificuldade de explicar como a gente se denomina, porque os não indígenas ( nawa-ras ῖ 8) não conseguiriam nos chamar pelos nomes dos clãs”. Como dizia meu avô João Tuxaua: “quem denominou nosso povo de ‘Marubo’ são os nawa-ras ῖ Txami Koro, eles falavam língua kastilhiano” (na pronuncia do meu avô, se referindo ao castelhano). Quando chegaram à nossa terra explorando pae (látex), ao deparar8
A palavra nawa denomina um grupo diferente do grupo ao qual o falante pertence: um colombiano, um brasileiro, todos os que “surgiram depois do povo yora”, como dizia meu avô. Por isso, os Marubo a utilizam com dois significados: (1) para designar um clã em relação ao outro; e (2) para designar os não indígenas em relação aos indígenas. Estes últimos são chamados yora. O morfema { -rasĩ }, na palavra nawarasĩ , é uma das formas para indicar o plural na língua marubo.
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se com a gente, nos deram esse nome, talvez a gente parecia Marubo. Eu perguntei para Keyashini (Carlos Vargas) 9, que sabia falar kastilhiano, e ele me respondeu que esses nawa
disseram que a gente era yochin10”. Ao que consta na pesquida de Melatti (1977:92); “Chegou o momento de alertar o leitor de que “Marubo” não é uma autodenominação do grupo indígen que estamos examinando. Aliás, na região, mais de um grupo é assim denominado pelos funcionários da FUNAI. Na maior parte dos casos, os chamados Marubo que aparecem nas notícias de jornais não pertencem ao grupo de que estamos tratando, mas a outros, em fase de atração. Além disso, os índios focalizados neste trabalho não reconhecem nenhum laço com os demais grupos denominados Marubo.”
No mito de origem dos Marubo, narrado por k ẽchῖtso-rasῖ 11, os surgimentos dos clãs têm características que identificam as personalidades ruins, boas, festeiras, afetivas, fofoqueiras, entre outras. Por exemplo: os shane-nawa , para outros clãs, por sua origem ser o pássaro azulão, costumam ter filhos deficientes; os homens não temem guerrear e com isso tem costume de bater nas mulheres com a justificativa de que assim serão respeitados e temidos pelas suas mulheres. Os shawã-nawa são homens de boa fama, mas as mulheres são causadoras de intrigas que podem resultar em guerra. Os pais repassam essas histórias a seus filhos, para que saibam como serão seus futuros esposos ou esposas, de modo a se preparar para o tipo de personalidade que os filhos herdarão. Ao narrar histórias, na sociedade Marubo, o narrador, seja mulher ou homem, no começo da narrativa, sempre deixa claro que não há semelhanças de conhecimentos já que a sociedade é dividida em clãs ou subgrupos e cada subgrupo é dividido em famílias. O povo Marubo entende que, quando ocorre união de dois clãs, a responsabilidade pela educação dos filhos é essencial para não denegrir a reputação da família. Por exemplo: se um homem matar anta e não convidar ninguém para compartilhar a sua caça, as pessoas com quem ele convive irão questionar seu pertencimento clânico por ter aquela atitude egoísta. A sociedade em que está espalha a sua má fama de mesquinho, seu nome será citado como exemplo negativo para
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Keyashini significa ‘velho alto’, era marubo, primo de João Tuxaua, e recebeu o nome em portug uês do caucheiro Carlos Vargas, que o tinha adotado. Seu pai foi assassinado por parentes, que entregaram a esposa, mãe de Keyashini, ao próprio Carlos Vargas. Keyashini-Carlos Vargas aprendeu o castelhano da região de fronteira entre Brasil e Peru. Estamos, aproximadamente, nos anos 50 do século passado. 10 yochĩ é um termo de difícil tradução. É o duplo das coisas; televisão passa yochĩ , o que vejo numa foto é yochĩ , minha sombra é yochĩ. 11 A palavra k ẽc hi-tso designa o ‘curandeiro’, um dos dois tipos de x amã, aquele que faz o ritual de pajelança sobre o doente, não entra em transe. O morfema { -tso} indica a velhice da pessoa.
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alertar as crianças no futuro. Assim, o indivíduo nunca deverá esquecer de que clã ele foi gerado para preservar os nomes dos clãs. Ser ‘marubo’, então, é uma ficção interna e uma necessidade externa. A não -ficção interna são os clãs.
2.4
As aldeias, as malocas, as famílias e os clãs Como a dissertação trata da importância dos ‘trabalho manual e trabalh o produzido
nas pontas das mãos’ ( mevῖsho shovima awe e mevi revõsho shovima awe ) marubo e, ao mesmo tempo, de sua relação com a distinção entre os clãs, de acordo com a proposta das colaboradoras de minha pesquisa, introduzo, a seguir, as famílias e os clãs de cada maloca de cada aldeia ao longo do rio Curuça. O leitor pode ficar confuso ao ler o que se segue, confuso diante do quebra-cabeça dos clãs marubo. Voltarei a tratar deste tema complexo mais adiante (2.5). A descrição que segue pode ser cansativa e de difícil compreensão, mas responde a uma das exigências das mulheres Marubo, minhas consultoras: falar dos Marubo habitantes do rio Curuça, hoje, e de seus clãs. A aldeia São Salvador já mudou três vezes de localização e é liderada pelo chefe Aldelino (Washa-kamã -Washa clã onça), do clã-jaguar ( ino-nawa ou kamã-nawa) e que vive com sua esposa Yene-shavo Mashe, do clã-araras-vermelhas ( shawã shavo), com quem tem cinco filhos, que são do clã-japó ( mai-iskovo). Metõpa, tio viúvo de Adelino, é do clã-jaguar. Ravẽ -pa
‘Pai da Rave’ (Vina) é filho do finado João Kulina, que foi casado com a mãe de
Aldelino; a mãe de Ravẽpa é não índia ( nawa shavo-mulher não índia), mas ele foi criado entre os Marubo como membro da família de Aldelino e casou com Memi-Tama-shavo ( Emãewa/mãe de Ema), uma mulher marubo do clã shane-shavo , ‘clã-azulão’, e com ela tem três
filhos, que são do clã-japim, isko-nawavo ; o resto da família dessa aldeia vive na cidade de Atalaia do Norte. A adeia Volta Grande têm duas malocas e seu chefe principal é Sebastião, mais conhecido como Saba, sendo que entre os Marubo seu nome é Shetã-papa (pai de Sheta, do clã rane-nawa , clã-colar). Ele é viúvo da primeira esposa e casou-se novamente com duas irmãs do clã tama-shavo , clã-árvore, assim como a primeira esposa falecida. Saba teve sete filhos com sua primeira esposa; seu filho mais velho Kãῖpa (ou Nilo, do clã-sol, vari-nawa) é o segundo kakaya da aldeia, também casado com duas mulheres, sendo a primeira da etnia Mayoruna e a segunda filha de Alfredo da aldeia Maronal e do clã-azulão, shane-shavo . O quinto filho do Saba Vimi/Võpa (Josiney) tem apenas uma esposa, Peko/Tapõwã , do clã-
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jaguar, ino-shavo. Outros três filhos de Sabá vivem na cidade de Atalaia do Norte, dois casados com nawa-shavo e um casado com uma marubo do clã rovo-shavo , clã- macaco-decheiro. Todos os filhos de Saba trabalham em instituições indigenistas. A aldeia São Sebastião, composta por seis malocas, é considerada a segunda aldeia principal dos Marubo do rio Curuçá e está mudando pela segunda vez. A maloca de Iskãpa (João Batalha), do clã rovo-nawa, abriga Iskãpa e sua esposa Itxa-Maia, do clã ino-shavo, seus oito filhos e seu sobrinho Panã/Wasi-nawa (Fernando) casado com sua filha mais velha, com a qual tem um filho. A segunda maloca tem como kakaya Nãkẽ -pa (Américo), do clãcolar (rane-nawa ). Nela mora a esposa Ravẽ -ewa (Ilda), do clã rovo-shavo (clã macaco-decheiro, e eles tem seis filhos que são do clã satã-nawavo (clã-lontra). O velho mais filho de Nãkẽ -pa
é Vina/Kayã-sheni (Alciney), com duas esposas, Vena e Vô, do clã shane-isko-
shavovo (japim azulão); o segundo filho só tem uma esposa, Rovo-shavo, do clã shane-iskoshavo (clã japim azulão); o terceiro filho tem duas esposas, Chori do clã koro-shavo (clã-
cinza) a e a outra é nawa-shavo, peruana da comunidade de Limoeira. Das filhas de Nãkẽ -pa, uma é mãe solteira de cinco filhos, outra têm dois filhos e vive junto com o pai destes, mas sempre nega ter marido e a ultima filha tem apenas 12 anos. A terceira maloca é do chefe Maiã-papa (Said), do clã rane-nawa (clã-colar), viúvo de duas mulheres do clã rovo-shavovo (clã-cinza), com quem teve sete filhos; casou se novemente com duas irmãs também do clã rovo-shavovo e com elas vive nesta maloca. A quarta maloca é liderada por Penῖ -papa-pai do Penῖ (João Macaquinho), do clã tamaiskovo/tamawa (clã-árvore-japim), casado com Penῖ -ewa, mãe da Penῖ (Rosa), do clã raneshavo (clã-colar), com cinco filhos, que são do clã ni-nawavo (clã-mato); nesta maloca vivem
filhos e netos de Penῖ -papa. A quinta maloca da aldeia São Sebastião é liderada por Teka, do clã sata-nawa (clã-lontra), cuja mãe é do clã rovo-shavo (clã-cinza), viúva de shane-nawa (clã-azulão) e que se casou novamente com Américo, tornando-se sua segunda esposa; por não ter filhos com Américo, ela vive na maloca dos seus filhos. Na sexta maloca vivem os dois irmãos de Said, Peῖ -pa (Lauro) casado com Peῖ -ewa, do clã rovo-shavo (macaco-decheiro), e Romeya, casado com uma kanamari com quem teve sete filhos e que abandonou para casar com Vonchi-Tama-shavo, com quem teve três filhas. Ainda nessa maloca vivem os filhos do finado Vanẽ -pa (José Rufino, irmão do Clóvis Rufino, ex-coordenador do Conselho Indígena do Vale do Javari-CIVAJA, hoje chamada de UNIVAJA). Vanẽ -pa era do clã ninawavo (clã-mato), tinha três esposas do clã sata-shavo (clã-lontra), sendo as duas primeiras
filhas de Said e a terceira filha da Tekã-ewa . Ainda na sexta maloca, mora a irmã de Vanẽ -pa, Kenẽ -ewa
(Marelene Rufino, do clã ni-shavo, clã-mato), casada com o filho de Said
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( Mene/Waka-nawa, Manoel Reis), com quem ela teve três filhos; seu pai é nawa (Antonio Rufino), casado com sua mãe ( Tamã-ewa (Rita), que faleceu em 2015) e criou Tama e Vimi. Com Tamã-ewa, Antonio Rufino teve quatro filhas ( Peko, Txoko, Kama e Wã-Maia). Outro filho de Said, Koa/Yochῖ -pa (Raimundo, do clã sata-nawa) é casado com uma Tikuna e Rava/kevã-pa (Ivan Manoel Batalha) é casado com Vãti, filha de Lauro e do clã vari-shavo
(clã-sol). Algumas famílias dessa maloca vivem na cidade de Atalaia do Norte. A aldeia Morada Nova é liderada pelo kakaya Vamã-pa (Alberto), do clã sata-nawa, casado com duas mulheres. Com a primeira esposa, Sinã-ewa do clã shono-shavo , teve sete filhos; com a segunda esposa, Vô do clã ni-shavo, teve seis filhos. Na mesma aldeia mora o casal Yoati-Võchῖ -pa e Pasha- Aῖvo/Mashe. Ronῖ -pa (Manelão),
do clã rovo-nawa, filho de nawa fugitivo da polícia por ter
matado um sargento, é o kakaya da aldeia Matxi-Keyawai. Sua mãe se chamava Rave e era do clã sata-shavo (clã-lontra). Manelão casou se com Peko do clã sata-shavo (clã-lontra); este casamento é considerado pelos Marubo como “casamento que não presta”, por Manelão ter casado com uma mulher da mesma linha do clã da mãe, o que fez com que seus filhos fossem considerados irmãos dele mesmo, de Manelão, já que sua esposa seria a sua sobrinha. Ainda nessa aldeia vivem mais três casais e seus filhos, com duas mulheres casadas com homens mayoruna. A aldeia Maronal é composta por sete malocas. A primeira maloca é do principal kakaya Ivinῖ -papa (Alfredão), do clã tama-uavo (clã-flor-árvore). Aqui vivem os filhos mais
velhos de João Tuxaua ( Ni-ua Wani/ Itsã-papa), sendo o segundo deles o principal kakaya e fundador da aldeia. Ivinῖ -papa teve três mulheres, todas do clã shane-shavo (clã-azulão), as duas primeiras já falecidas, e vive somente com a terceira. Com as três esposas teve doze filhos. A segunda maloca é a do seu filho mais velho, Chorῖ -pa do clã shane-iskovo (clãazulão-japim), da esposa deste Panã-ne-ewa, e seus filhos. Na terceira maloca vive Tamã-pa do clã sata-nawa (clã-lontra) e o genro de Memῖ -papa (Sacarias, o irmão mais velho de Alfredão). O kakaya da quarta maloca é o patriarca da família Pekõ-pa, do clã tama-uavo (flor-árvore); nela vivem shono-nawavo (clã-samauma), rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro , sata-nawavo (clã-lontra). A quinta maloca é de Chinῖ -pa do clã rovo-nawa (clã macaco-de-
cheiro) casado com Pani do clã shono-shavo (clã-samauma) e seus filhos ainda pequenos. Ao lado, a sexta maloca é de Rave, do clã sata-shavo (clã-lontra), uma mãe solteira que resolveu viver sozinha junto com seus filhos. A sétima maloca é dos dois irmãos mais novos de Alfredão, o kakaya da aldeia. Tama-Saῖ -pa (Pedro) assumiu, em 2015, após a morte de seu irmão Vanẽ -patxo (José), o papel de kakaya da maloca. Vanẽ -patxo era casado com duas
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irmãs, Venẽ -ewa e Peῖ -ewa, do clã sata-shavovo (clã-lontra), e com elas teve onze filhos, todos do clã rovo-nawavo (clã macaco-de-cheiro). Estes já são adultos casados, sendo que três vivem na cidade de Atalaia do Norte com suas famílias: Manoel Chorῖ -pa é vereador, casado com uma nawa-shavo ; Kenã-pa (Paulo), coordenador da UNIVAJA, é casado com Vo/TamaSaῖ -wa (Sônia)
do clã vari-shavo (clã-sol); Vane/Vinã-wa (Amélia, pedagoga) trabalha na
Secretaria Municipal da Educação Indígena – SEMDI e é casada com o Panã / Ramῖ -pa (Walcerley) do clã vari-nawa (clã-sol).
2.5 O sistema de clãs Na apresentação das aldeias do Sui Waka (rio Curuçá), descrevi o número de malocas onde as pessoas residem; acho que o leitor teve dificuldade de entender a complexidade dos clãs em que as pessoas se incluem. Chegou a hora de dar alguma explicação sobre os subgrupos clânicos marubo, na perspectiva das minhas interlocutoras. Conversando com os mais velhos, estes relataram sobre diversos processos de surgimento dos clãs principais e dos que surgiram a partir de casamentos entre eles. Os pajés e os xamãs
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marubo dizem que no principio os clãs nãkosh wenia-rasῖ - útero brotar-PL - ‘brotaram do útero (de uma mulher de um dos clãs principais)’. Os clãs nãko-sho wenia-rasῖ passaram a existir, com suas denominações, com o propósito de definir regras rígidas de casamento, quem pode casar com quem. Por isso, os filhos dos clãs principais são considerados wãsho wenia, o que significa o processo de geração de filhos de casamentos realizados entre subgrupos clânicos. Na maioria das vezes, nãkosh wenia é explicado como sendo vene-pavo (vene-pavo , ‘grande- passado’, os clãs
maiores), para dizer que são os primeiros clãs, ou seja, os principais. Por outro lado, wãsh wenia (flor- brotar, ‘brotar das flores’), é explicado como poto-pavo (pequeno-passado, os clãs
menores), continuidade de gerações produtos de casamentos ocorridos entre os clãs. Hoje, com a aproximação de outras sociedades não indígenas, há casamentos entre mulheres marubo e homens não marubo, e vice-versa. Os mais velhos, pajés e xamãs, me contaram o que acontece com esses casamentos. Quando as mulheres geram filhos de homens não Marubo, surgem clãs como vari wa ichnatõsh wenia, ‘ vari de flores estragadas’ ( vari ‘sol’ é nome de um clã, wa ‘flor’, ichnatõsh ‘movimento-de-esperma-estragado’, wenia ‘brotar’): 12
Pajé e xamã são duas categorias distintas entre os Marubo. Pajé, segundo a explicação dos meus interlocutores, é aquele que viaja no mundo dos seres não humanos cujas forças ele traz e une. Xamã interpreta as falas sabias dos seres não humanos e destes recebe as suas forças.
^X
‘flor’ é a genitália, masculina ou feminina, ‘estragado’ é o esperma de um homen que não pertence a nenhum clã. Se acontecer o inverso, no caso de um homem marubo ter filhos com uma nawashavo (não índia), os clãs que surgem são, por exemplo, vari-wa rechõ tsipa – sol-flor
secreção resto, ‘resto de secreção de fl or-sol’. Assim, se uma mulher do clã vari-shavo tiver filhos com um nawa (não índio) ou com outra etnia, por ele não pertencer a nenhum clã, eles são considerados surgidos ou gerados da secreção podre da flor-sol. No caso de um homem do clã vari-nawa ter filhos com uma nawa-shavo (não índia), seus filhos são considerados surgidos ou gerados do ‘resto da secreção da flor -sol’. A sociedade marubo é formada por clãs ou subgrupos; os casamentos são regrados por essa organização em clãs. Tentei organizar uma visualização do sistema dos clãs Marubo nas tabelas abaixo, que explico em sequência.
os pretendentes das mulheres pertencentes ao clã sata-nawavo13 provêm dos clãs ninawa, isko-nawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão
sempre do clã rovo-nawa : MÃE
satã-shavo
PAI
FILHOS
ni-nawa isko-nawa Txonavo ino-nawa/kama-nawa koro-nawa
rovo-nawa
os pretendentes das mulheres do clã ni-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawãnawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã rane-nawa :
13
MÃE
PAI
FILHOS
ni-shavo
sata-nawa shawã-nawa vari-nawa
rane-nawa
O termo Sata-shavo é singular e é usado para se referir a uma mulher do clã Sata-nawa. O plural ou coletivo é Satashavovo. Satanawa é singular e é usado para se referir a um homem, sendo que o coletivo é Sata-nawavo. Todas as denominações de clãs que terminam com {- shavo} referem-se às mulheres do clã. Sata-nawavorasĩ se refere a uma aldeia, um ‘povo’, do clã Sata-nawa.
^c
os pretendentes das mulheres do clã isko-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawanawa, vari-nawa e tsona-nawa/txonavo, mas seus filhos serão do clã shane-nawa:
MÃE
PAI
isko-shavo
sata-nawa shawa-nawa vari-nawa tsona-nawa
FILHOS
shane-nawa
os pretendentes das mulheres do clã kana-nawavo provêm dos clãs satã-nawa, shawanawa e vari-nawa, mas seus filhos serão do clã ino-nashavo/kama-shavo:
MÃE
PAI
FILHOS
kana-shavo
sata-nawa shawa-nawa vari-nawa
ino-nashavo/kama-shavo
os pretendentes das mulheres do clã vari-nawa provêm dos clãs isko-nawa, ni-nawa e kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do tama-oavo:
MÃE
PAI
FILHOS
vari-shavo
isko-nawa ni-nawa kana-nawa
tama-oavo
os pretendentes das mulheres do clã Shawã-nawa provêm dos clãs ni-nawa, iskonawa, txonavo, ino-nawa/kama-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã txashko-nawavo : MÃE
shawã-shavo
PAI
ni-nawa isko-nawa Txonavo ino-nawa/kama-nawa koro-nawa
FILHOS
anakashka-nawa/txashkõnawavo
^`
os pretendentes das mulheres do clã txashkõ-nawavo/Anakash-kashavo provêm dos clãs rane-nawa, shane-nawa, shono-nawa, kananawa e wanivo, mas seus filhos serão do clã do shawã-nawa : MÃE
PAI
FILHOS
anakash-kashavo txashkõ-nawavo
rane-nawa shane-nawa shono-nawa kana-nawa Wanivo
shawã-nawa
os pretendentes das mulheres do clã shane-shavo provêm dos clãs satã-nawa, shononawa, tama-nawa e t xashko-nawavo/anakashkavo, mas seus filhos serão do clã iskonawavo: MÃE
shane-shavo
PAI
sata-nawa shono-nawa tama-nawa anakashkavo/txasko-nawavo
FILHOS
isko-nawa
os pretendentes das mulheres do clã tama-shavo provêm dos clãs shane-nawa, ranenawa e ino-nawa/kama-nawa, mas seus filhos serão do clã do vari-nawa:
MÃE
PAI
FILHOS
tama-shavo
shane-nawa rane-nawa ino-nawa/kama-nawa
vari-nawa
os pretendentes das mulheres do clã txona-shavo provêm dos clãs shawa-nawa, iskonawa, ni-nawa e koro-nawa, mas seus filhos serão do clã shono-nawa : MÃE
txona-shavo
PAI
shawa-nawa isko-nawa ni-nawa koro-nawa
FILHOS
shono-nawa
^5
os pretendentes das mulheres do clã wani-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, ranenawa e shane-nawa , mas seus filhos serão clã do koro-nawa:
MÃE
PAI
FILHOS
wani-shavo
rovo-nawa rane-nawa shane-nawa
koro-nawa
os pretendentes das mulheres do clã shono-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, anakashka-nawa e Shane-nawa, mas seus filhos serão clã do txona-nawa:
MÃE
PAI
FILHOS
shono-shavo
rovo-nawa anakashka-nawa shane-nawa
txona-nawa
os pretendentes das mulheres do clã kama-shavo/ino-shavo provêm dos clãs tamanawa, rovo-nawa e shawa-nawa , mas seus filhos serão clã do kana-nawa : MÃE
PAI
FILHOS
kama-shavo/ino-shavo
tama-nawa rovo-nawa shawa-nawa
kana-nawa
os pretendentes das mulheres do clã rane-shavo provêm dos clãs rovo-nawa, Shawanawa e tama-oavo, mas seus filhos serão clã do ni-nawa: MÃE
PAI
FILHOS
rane-shavo
rovo-nawa shawa-nawa tama-oavo
ni-nawa
^W
os pretendentes das mulheres do clã koro-shavo provêm dos clãs satã-nawa, ni-nawa e isko-nawa, mas seus filhos serão clã do wanivo: MÃE
PAI
FILHOS
koro-shavo
sata-nawa ni-nawa isko-nawa
wanivo
Formulei a figura abaixo para dar um exemplo a partir das minhas relações clânicas14: Como vari-shavo (rane-vari-shavo ), baseado no casamento dos meus pais, simulei o esquema de casamento padrão, como se tivesse me casado com meu primo cruzado (o que não é o meu caso, de fato).
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