Mark Twain - O Príncipe e o Mendigo
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O PRÍNCIPE E O POBRE MARK TWAIN
PREFÁCIO Vou-vos contar uma história tal como me foi contada por alguém que a ouviu do seu pai, cujo pai a tinha ouvido do pai DELE, este último tendo-a ouvido, da mesma maneira, do pai DELE - e assim por diante, mais e mais para trás, este conto foi preservado durante trezentos anos ou mais, ao ser passado de pais para filhos. Pode ser História ou pode ser só lenda, uma tradição. Pode ter acontecido ou pode não ter; mas PODIA ser verdade. Nos velhos tempos talvez só os sábios e os cultos acreditassem nele; ou talvez só gostassem dele e o levassem a sério os ignorantes e os simples.
I O NASCIMENTO DO PRÍNCIPE E DO POBRE Na muito antiga cidade de Londres, num certo dia de Outono do segundo quartel do sécu século lo XVI, XVI, nasc nasceu eu um rapa rapazin zinho ho de uma uma famíl família ia pobr pobree cham chamad adaa Ca Cant nty, y, que que não não o desejava. No mesmo dia, nasceu outra criança inglesa, essa de uma família rica, Tudor de nome, que o desejava muito. Toda a Inglaterra também o queria. O Reino tinha-o esperado tanto, e desejado tanto, e rezado a Deus para que ele nascesse, que agora, que ele tinha realmente chegado, o povo estava quase doido de alegria, a dançar nas ruas de felicidade e júbilo, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Todos se permitiram ter um dia de descanso, altos e baixos, ricos e pobres, e fizeram festas, bailaram e cantaram até quase endoidecer; esta festa durou vári vários os dias dias.. Dura Durant ntee o dia, dia, Lond Londre ress vali valiaa a pena pena ser ser vist vista, a, com com aleg alegre ress pend pendõe õess 1
desfraldados em todas as varandas e telhados e esplêndidos cortejos a desfilar. À noite também valia a pena, com grandes fogueiras em todas as esquinas e grupos de foliões a pular à volta delas. Não se falava noutra coisa em toda a Inglaterra senão no novo menino, Edward, Príncipe de Gales (1), que dormia envolto em sedas e cetins, inconsciente desta agitação, sem saber que grandes senhores e damas tomavam conta dele e o admiravam - e também sem se importar muito com isso. Mas ninguém falava do outro bebé, Tom Carity, embrulhado nos seus pobres farrapos, a não ser na família de pobres que ele tinha acabado de importunar com a sua presença.
II OS PRIMEIROS ANOS DE TOM Deixemos passar alguns anos. Londres tinha cinco séculos e era uma grande cidade para a época. Contava com cem mil habitantes - há quem diga que havia o dobro. As ruas eram muito estreitas, tortas e sujas, especialmente na parte onde Tom Canty vivia, não muito longe da ponte de Londres. As casas tinham sido construídas em madeira, com o segundo andar projetado para fora do primeiro e o terceiro com as ombreiras para fora do segundo. Quanto mais altas as casas fossem, mais largas ficavam. Pareciam esqueletos formados por toros de madeira, fortes e cruzad cruzados, os, com argama argamassa ssa coberta coberta de estuque estuque aplica aplicada da entre entre elas. elas. As traves travessas sas eram eram pintadas de encarnado, azul ou preto, conforme o gosto do dono, o que lhes dava um aspecto muito pitoresco. As janelas faziam-se pequenas, fechadas, com vidros em forma de losango, e abriam para fora com dobradiças, como se fossem portas. A casa onde o pai de Tom vivia chamava-se Offal Court, perto de Pudding Lane. Era pequena, degradada e pouco firme, e estava pejada de famílias extremamente pobres. A tribo dos Carity ocupava um quarto no terceiro andar. O pai e a mãe tinham uma espécie de estrado no canto; mas Tom, a avó e as duas irmãs, Bet e Nan, tinham o chão todo para eles e podiam dormir onde quisessem. Havia ali restos de um ou dois cobertores e alguns molhos de palha velha e suja, mas esses não podiam ser verdadeiramente chamados de camas; de manhã, eram arrumados num monte e, à noite, podia-se escolher na pilha, para uso próprio. Bet Bet e Na Nan n tinha tinham m quin quinze ze anos anos - gêmea gêmeas. s. Eram Eram menina meninass bem bem disp dispos osta tas, s, suja sujas, s, vestidas com farrapos, * profundamente ignorantes. A mãe era como elas. Mas * pai e a avó eram um bom par de diabos. Embebedavam-se sempre que podiam; então zangavamse um com o outro ou com alguém que se lhes metesse no caminho; bêbedos ou sóbrios, estavam sempre a dizer palavrões e blasfêmias; John Canty era um ladrão e a sua mãe uma mendiga. Transformaram as crianças em mendigos, mas não conseguiram fazê-los ladrões. No meio da terrível escumalha que morava na casa, mas sem fazer parte dela, havia um velho padre que que o rei tinha expulso de casa com uma pensão de alguns fartbings 2
C) e que tinha o hábito de se esconder com as crianças e ensinar-lhes o bom caminho. O padre padre Andrew também ensinou a Tom um pouco de latim e a ler e escrever; escrever; e teria feito o mesmo com as meninas, mas elas tinham medo que os amigos fizessem troça perante uma instrução tão esmerada. Todo o beco de Offal Court era um cortiço igual à casa dos Carity. Bebedeiras, desordens e discussões eram de Henrique VIII, ao separar-se da Igreja Católica e criar a Igreja de Inglaterra, expulsou dos templos e conventos os padres que se recusaram a converter-se, dando-lhes uma pensão simbólica. praxe todas noites e durante quase toda a noite. Ali, as cabeças partidas eram tão habituais como a fome. Contudo, o pequeno Tom não se sentia infeliz. Tinha uma vida muito difícil, mas não sabia. Era a mesma vida que tinham os outros miúdos de Offal Court, portanto ele achava que era normal e confortável i À noite, quando voltava para casa com as mãos vazias, já sabia que, primeiro, o pai ia insultá-lo e agredi-lo e que, quando tivesse acabado, seria a vez da avó fazer-lhe o mesmo, com mais requintes; e que, durante a noite, a sua mãe esfomeada lhe passaria às escondidas qualquer resto ou casca que tivesse conseguido guardar-lhe, mesmo passando ela fome, embora muitas vezes o marido lhe batesse violentamente por causa disso. Mesmo assim, a vida de Tom corria-lhe bastante bem, especialmente no Verão. Pedia apenas apenas o suficiente para escapar do pior, pois as leis eram severas severas e os castigos pesadospesadosentão, podia ficar bastante tempo a ouvir o padre Andrew contar velhas lendas cheias de enca encant nto o e fábul fábulas as sobr sobree giga gigant ntes es e fada fadas, s, anões anões e gêni gênios os,, cast castelo eloss encan encanta tados dos e maravilhosos reis e príncipes. A sua cabeça acabou por ficar cheia dessas coisas tão bonitas e, muitas noites, enquanto estava deitado às escuras na palha pobre e suja, cansado, esfomeado e com o corpo moído, dava asas à sua imaginação com imagens deliciosas da vida agradável de um príncipe mimado, a morar num lindo palácio. Com o tempo, um desejo passou a persegui-lo noite e dia; queria ver, com os seus próprios olhos, um príncipe príncipe verdadeiro. verdadeiro. Um dia falou nisso aos seus camaradas camaradas de Offal Court, Court, mas os outros outros miúdos riram-se dele e fizeram troça com tanta crueldade, que desde aí Tom resolveu guardar os seus sonhos para si mesmo. Lia muitas vezes os livros velhos do padre e pedia-lhe para lhos explicar. Aos poucos, os sonhos e as leituras provocaram-lhe algumas mudanças. As pessoas com que sonhava eram tão finas que começou a lamentar-se das roupas esfarrapadas e da sujidade, a querer ser mais limpo e estar mais bem arranjado. Continuava a brincar na lama da mesma maneira e não deixava de se divertir; mas, em vez de chapinhar no Tamisa só por gosto, começou a achar que também valia a pena pelos banhos a que dava ensejo. Às vezes Tom presenciava algum acontecimento no mastro de Cheapside ou nas feir feiras as;; e de vez vez em quan quando do a cria crianç nçaa e os outr outros os habi habita tant ntes es de Lond Londre ress tinh tinham am oportu oportunid nidade ade de ver uma parada parada militar, militar, quando quando alguém famoso famoso que tinha tinha caído caído em desgraça era levado preso para a Torre por terra ou pelo rio. Num dia de Verão viu queimar, na pira de Smithfield, Smithfield, a pobre Ana Askew Askew e mais três homens, ouviu o sermão que o bispo fez sobre eles, assunto que não lhe interessava. Realmente, a vida de Tom era variada e não desagradável de todo. 3
Aos poucos, as leituras e os sonhos de Tom sobre a vida principesca tiveram um efeito tão forte sobre si próprio que, inconscientemente, começou a fazer o papel de príncipe. As suas conversas e maneiras tornaram-se curiosamente cerimoniosas e corteses, para grande divertimento dos amigos mais próximos. Mas agora a influência de Tom sobre esses miúdos crescia todos os dias e passaram a olhá-lo com respeito, como um ser superior. Parecia saber tanto! E conseguia dizer e fazer tantas coisas maravilhosas! E, além disso, era tão profundo e esperto! Os comentários e as representações de Tom foram relatados pelos rapazes aos adultos; e esses também passaram a conversar sobre Tom Carity e a achá-lo a mais prendada e extraordinária criatura. Os crescidos traziam as suas dúvidas a Tom para que lhes desse uma solução e muitas vezes ficavam surpreendidos com a esperteza e sabedoria das suas decisões. Na realidade tinha-se tornado um herói para todos os que o conheciam, menos para a sua própria família, que não lhe dava nenhum valor. Ao fim de algum tempo, Tom organizou uma corte real em privado! Ele era o príncipe; os seus camaradas mais especiais faziam de guardas, chanceleres, palafreneiros, fidalgos, aias e família real. Todos os dias o príncipe, de brincadeira, era recebido com os complicados cerimoniais que Tom tirava das suas leituras cavalheirescas; todos os dias os grandes negócios do reino faz-de-conta eram discutidos no conselho real e diariamente sua majestade faz-de-conta lavrava decretos para os imaginários exércitos, armadas e vicereinos; terminada a comédia, lá ia vestido de farrapos, recolhia algumas moedas na mendigagem, comia as côdeas, aturava os insultos e pancadas do costume e, finalmente, deitava-se num molho da palha pestilenta e voltava aos seus sonhos de vã grandeza. Mesmo assim, o seu desejo de ver, pelo menos uma vez, um príncipe verdadeiro de carne e osso continuava a crescer-lhe lá dentro, dia a dia, semana a semana, até absorver todos os outros desejos e tornar-se a única paixão da sua vida. Num dia de janeiro, na habitual volta da mendigagem, Tom andava com desânimo para cima e para baixo, na área à volta de Mincing Lane e Littie East Cheap. Estava descalço e com frio, olhava para as terríveis empadas de porco e outras invenções mortais que estavam nas montras - para ele eram delícias próprias dos anjos; quer dizer, a julgar pelo cheiro, porque nunca tinha tido a boa sorte de possuir e comer uma delas. Caía uma neblina fria; o ambiente era sombrio; estava um dia melancólico. Nessa noite, Tom chegou a casa tão molhado, cansado e esfomeado, que era impossível que o pai e avó não se comovessem com o seu aspecto desconsolado - à moda deles. Assim, deram-lhe logo uma estalada e mandaram-no para a cama. Durante muito tempo a dor e a fome, a gritaria e pancadaria que iam pelo prédio mantiveram-no acordado; mas, por fim, os seus pensamentos voaram para terras românticas e distantes e adormeceu na companhia dos príncipes cobertos de outro e jóias. E então, como de costume, sonhou que ele mesmo era um príncipe. Toda a noite privou com grandes senhores e damas, num brilho de luzes, a respirar belos perfumes, a beber ao som de música deliciosa; e, quando acordou de manhã e viu a miséria à sua volta, o sonho tinha tido o efeito habitual - intensificara mil vezes a sordidez daquele ambiente. Vieram então a amargura, a tristeza e as lágrimas.
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III O ENCONTRO DE TOM COM O PRÍNCIPE Tom acordou com fome e, esfomeado, foi vadiar, mas com os pensamentos ocupados nos esplendores imaginários do sonho dessa noite. Vagueou ao acaso pela cidade, sem reparar para onde é que ia. Por aqui e por ali, acabou por dar por si em Temple Bar, o mais longe de casa que já tinha ido, naquela direção. Parou e, por uns momentos, tomou consciência de onde estava, para cair de novo nos sonhos, enquanto passava para fora das muralhas de Londres. Nessa altura, o Strand já tinha deixado de ser uma estrada rural e considerava-se uma rua, mesmo pouco construída; pois, embora houvesse uma fileira bastante compacta de casas de um dos lados, do outro só se viam algumas grandes construções dispersas, que eram palácios de fidalgos ricos, com amplos e maravilhosos jardins a estender-se até ao rio. Foi então que Tom descobriu a aldeia de Charing, e sentou-se a descansar na bonita cruz ali erigida por um algum rei esquecido de outros tempos; depois passeou por uma bela e pacata estrada, passou pelo palácio monumental do grande cardeal e foi em direção a um palácio ainda mais imponente e majestoso - Westminster. E Tom ficou a olhar, agradavelmente surpreendido com o vasto volume de alvenaria, as alas que se abriam até ao longe, os carrancudos bastiões e torres, a imensa entrada de pedra com as suas barras douradas e magnífica fileira de leões de granito e as outras imagens e símbolos da realeza britânica. Como é que poderia não esperar ver, numa altura destas, um principe, um príncipe em carne e osso, se os céus o permitissem? De cada lado do portão dourado estava uma estátua viva, quer dizer, uma sentinela empertigada, imponente e imóvel, coberta da cabeça aos pés com uma armadura de metal brilhante. A uma distância respeitosa havia muitos camponeses e pessoas da cidade, à espera de alguma oportunidade de espreitar a realeza. Magníficas carruagens, com magníficas pessoas dentro e magníficos lacaios fora, chegavam e partiam através de outras nobres entradas que se abriam na cerca real. O pobre Tom, todo esfarrapado, aproximou-se mais * ia a passar lenta e timidamente pelas sentinelas, com * coração a bater e a esperança a aumentar, quando de repente viu uma coisa através das barras douradas e quase o fez gritar de alegria. Lá dentro estava um belo menino, de tez bronzeada, cujas roupas eram todas em seda e cetim, com jóias a brilhar; à cintura trazia uma pequena espada e uma adaga, ambas cobertas de brilhantescalçava elegantes borzeguins com saltos vermelhos; e na cabeça trazia um garboso chapéu carmesim com as plumas presas por uma grande pedra brilhante. Oh! Era um príncipe um verdadeiro e autêntico príncipe - sem sombra de dúvida; e o desejo do coração do pobre menino estava finalmente satisfeito. A respiração de Tom tornou-se rápida e curta com a excitação e os olhos abriram-se de espanto e alegria. Na sua cabeça tudo se apagou perante um único desejo: aproximarse do príncipe e comê-lo com os olhos. Antes que pudesse perceber o que estava a fazer, tinha colado o rosto nas barras do portão. Imediatamente um dos soldados empurrou-o 5
com rudeza, atirando-o para cima da multidão boquiaberta de simplórios do campo e desocupados da cidade. O soldado disse-lhe: - Vê se tens maneiras, ó pedintezinho! A turba gritou e riu-se; mas o jovem príncipe veio até ao portão com o rosto vermelho e os olhos a brilhar de indignação e gritou: - Como vos atreveis a tratar assim o pobre miúdo? Como vos atreveis a tratar de tal modo o mais pequeno vassalo do rei, meu pai? Abri o portão e deixai-o entrar! Deviam ter visto como a volúvel multidão tirou logo o chapéu! Deviam ter ouvido como eles davam vivas, a gritar «Longa vida ao Príncipe de Gales!» Os guardas apresentaram armas com as alabardas, abriram o portão e fizeram outra vez continência quando o Príncipe da Pobreza entrou, com os seus andrajos esvoaçantes, para apertar as mãos do Príncipe da Abundância Ilimitada. Edward Tudor disse-lhe: - Pareceis cansado e com fome; vê-se que tendes sido maltratado.Vinde comigo. Meia dúzia de lacaios aproximaram-se imediatamente para fazer não sei o quê interferir, com certeza. Mas foram afastados por um gesto real e pararam onde estavam, que nem outras tantas estátuas. Edward levou Tom para uma rica sala do palácio, a que chamava de seu gabinete. À sua ordem foi trazido um repasto tal que Tom nunca tinha visto, a não ser nos livros. O princípe, com educação e delicadeza principescas, mandou embora os criados, para que o seu humilde hóspede não se sentisse embaraçado com a sua presença depreciativa; então, sentou-se ao pé de Tom e fez-lhe perguntas enquanto ele comia. - Como te chamas, meu rapaz? - Tom Canty para vos servir, senhor. - Que nome estranho. Onde viveis? - Na cidade, para vos servir, senhor. Offal Court, ao pé de Pudding Lane. - Offal Court! Na verdade, esse também é um nome estranho. Tendes pais? - Pais eu tenho, senhor, e também uma avó que não aprecio muito, Deus me perdoe se é pecado dizê-lo, e também duas irmãs gêmeas, Nan e Bet. - Então essa avó não é boa para vós, pelo que vejo. - Nem é boa para mais ninguém, para servir vossa senhoria. Tem um mau coração e trabalhou como o Diabo no tempo dela. - Ela maltrata-vos? - Há alturas em que não se mexe, quando está a dormir ou tomada pela bebida; mas quando está acordada bate-me bastante. Os olhos do príncipe brilharam de fúria e gritou: - O quê? Bate-vos? 6
- Oh! Sim. Certamente, para vos servir, senhor. - Bate-vos! E vós, tão frágil e pequeno. Escutai-me: antes que chegue a noite será atirada da Torre. O rei, meu pai... - Na verdade, senhor, esqueceis a sua baixa condição. A Torre é só para os grandes. - Isso é verdade, certamente. Não tinha pensado nisso. Vou cuidar para que tenha outro castigo. E o vosso pai trata-vos bem? - Não trata melhor do que a vovó Canty, senhor. - Talvez os pais sejam todos iguais. O meu também não tem muito bom feitio. Castiga com mão pesada, embora me poupe; mas não me poupa com palavras, verdade seja dita. Como e que a vossa mae vos trata? - Ela é boa, senhor, e não me dá nem tristeza nem dor de espécie nenhuma. E a Bet e a Na são como ela. - Que idade têm elas? - Quinze, para vos servir, senhor. - Lady Elizabeth, minha irmã, tem catorze anos, e Lady Jane Grey, a minha prima é da minha idade e bastante bonita e graciosa; mas a minha irmã, Lady Mary, com a sua cara zangada... Dizei-me: as vossas irmãs proíbem os lacaios de sorrir, sob pena de o pecado destruir as suas almas? - As minhas irmãs? Pensais, senhor, que elas têm lacaios? Por um momento o pequeno príncipe contemplou o pequeno pobre com toda a seriedade e depois disse: - Ora dizei-me, porque não? Quem as ajuda a despir à noite? E quem as veste quando acordam? - Ninguém, senhor. Deveriam elas tirar a roupa para dormirem nuas, como os animais? - A roupa! Mas só têm uma? - Ah! Saiba vossa senhoria, o que fariam elas com mais? Na verdade só têm um corpo cada uma. - Que pensamento estranho e fantástico! Perdoai-me, não queria fazer troça. Mas a vossa Nan e a vossa Bet, em breve, terão roupas e lacaios; o meu tesoureiro cuidará disso. Não, não me agradeceis; isto não é nada. Falastes bem; tendes uma prosa fácil. Estudastes? Não sei se estudei ou não, senhor. O bom reverendo que se chama padre Andrew ensinou-me, com a sua bondade, a ler os livros dele. Sabeis latim? - Só um pouco, senhor.
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- Pois aprendeí-o, meu rapaz; só é difícil ao princípio. O grego é mais difícil; mas não acho que nenhuma delas nem quaisquer outras línguas sejam dificieis para a Lady Elizabeth e para a minha prima. Deveríeis ouvir essas damas falarem! Mas contai-me do vosso Offal Court. Tendes lá uma vida agradável? - Na verdade tenho, para vos servir, senhor, exceto quando se tem fome. Há espectáculos de fantoches e de macacos... Oh, que criaturas tão diferentes! E como se vestem! Quando se apresentam gritam e brigam até morrer. É muito divertido de ver e custa só um fartbíng. Embora seja difícil arranjar o farthing, para vos servir. - Contai-me mais. - Algumas vezes nós, lá em Offal Court, lutamos uns contra os outros com paus, à maneira dos aprendizes. os olhos do príncipe brilharam. Disse: - Isso eu gostaria de ver! Contai-me mais. - Fazemos corridas, senhor, para ver quem de nós é o mais rápido. - Isso eu também gostaria! Continuai. - No Verão, senhor, chapinhamos e nadamos nos canais e no rio, e cada um empurra o mais próximo, e atira-lhe água, e mergulhamos, e gritamos, e corremos, e... - Valeria o reino do meu pai alegrar-me assim pelo menos uma vez! Por favor continuai. - Dançamos e cantamos no mastro de Cheapside; brincamos na areia, cobrindo-nos uns aos outros; às vezes fazemos bolos de lama - chafurdamos bastante na lama, senhor, com o perdão de vossa senhoria. - Oh, por favor, não digais mais nada destas maravilhas! Se eu pudesse vestir-me com roupas iguais às vossas, descalçar-me e chafurdar na lama, uma vez que fosse, sem ninguém para me admoestar ou proibir, mesmo que tivesse de abdicar da coroa! -E se eu me pudesse vestir ao menos uma vez, doce senhor, como vós estais vestido... Só uma vez... - Oh, gostaríeis? Então assim será. Tirai os vossos a farrapos e colocai estes esplendores, meu rapaz! É uma curta felicidade, mas não será mais pequena por isso. TêIa-emos enquanto pudermos e trocamos outra vez antes que alguém nos venha perturbar. Minutos mais tarde, o pequeno Príncipe de Gales estava coberto com os esvoaçantes restos da roupa de Tom e o pequeno Príncipe da Pobreza via-se ataviado com a bela plumagem da realeza. os dois puseram-se ao lado um do outro em frente de um grande espelho e, veja-se, um milagre: não parecia que uma troca tinha sido feita! olharam um para o outro e depois para o espelho. Por fim, o príncipe disse surpreendido: - Que achais disto? - Ah, meu bom senhor, não me peçais uma resposta. Não é próprio da minha condição falar tais coisas. 8
- Então falo eu. Vós tendes o mesmo cabelo, os mesmos olhos, a mesma voz e jeito, a mesma forma e estatura, o mesmo rosto e expressão, isso é o que vejo. Se estivéssemos os dois despidos, ninguém poderia dizer qual sois vós e qual é o Príncipe de Gales. E agora que estou vestido como vós estáveis, parece-me que estou mais próximo de sentir o que sentistes quando o bruto do soldado... Dizei-me, isto na.vossa mão, não é um arranhão? - Sim, mas é uma coisa leve e vossa senhoria sabe que o pobre soldado... - Calai-vos! Foi um ato cruel e vergonhoso! – gritou o pequeno príncipe, batendo com os pés descalços. - Se o rei... Não vos moveis daqui até eu voltar! É uma ordem! Num instante apanhou e guardou um objeto de importância nacional que estava em cima de uma mesa e, saindo pela porta, correu pelos jardins do palácio em farrapos esvoaçantes, com o rosto vermelho e os olhos a brilhar. Assim que chegou ao portão agarrou-se às grades, tentando sacudi-Ias, a gritar: - Abram! Abram o portão! O soldado que tinha maltratado Tom obedeceu imediatamente; e, quando o príncipe passou pelo umbral, a deitar fumo com real fúria, o soldado mandou-lhe uma sonora estalada nas orelhas, que o atirou aos piparotes para a estrada, e disse-lhe: -Toma lá, filhote de ladrão, pelo que me fizestes ouvir de Sua Majestade! A multidão agitou-se às gargalhadas. O principe levantou-se da lama e avançou com energia para a sentinela, a gritar: - Sou o Príncipe de Gales, a minha pessoa é sagrada; e vós sereis enforcado por me teres posto as mãos em cima! O soldado apresentou armas com a alabarda e disse, em tom de brincadeira: - Saúdo Vossa Graciosa Alteza. - E depois, zangado: - Vai-te embora, seu porco maluco! Nesta altura, a multidão rodeou o pobre principezinho e correu com ele pela estrada abaixo, apupando-o e gritando «Passagem para sua alteza real! Passagem para o Príncipe de Gales!»
IV COMEÇAM AS PROVAÇÕES DO PRÍNCIPE Depois de horas de correria e perseguição obstinada, o pequeno príncipe foi finalmente abandonado pela turba e deixado sozinho. Enquanto tinha alimentado a fúria da multidão, ameaçando-a com uma pose real e dando ordens que só faziam rir, fora um bom motivo de diversão; mas quando o cansaço, finalmente, o obrigara a calar-se, deixou de ter interesse para os seus atormentadores, que foram à procura de divertimento noutro sítio qualquer. Olhou então à sua volta, mas não conseguia reconhecer o sítio. Estava dentro da cidade de Londres - era tudo o que sabia. Continuou a andar a eito e dentro de pouco 9
tempo as casas começaram a rarear e os traseuntes a serem menos frequentes. Lavou os pés feridos no pequeno riacho que passava então onde agora é a Rua Farringdon; descansou alguns momentos e depois continuou até chegar a um grande espaço que tinha apenas algumas casas dispersas. Havia também uma igreja enorme, que ele reconheceu. Por toda a parte se viam andaimes e enxames de trabalhadores, pois estava a ser beneficiada com grandes obras. O principe encorajou-se imediatamente - sentia que os seus problemas estavam a acabar. Disse para si mesmo: «É a antiga igreja de Grey Friars, que o rei, meu pai, tirou aos monjes para fazer um asilo de crianças pobres e abandonadas, chamando-a agora de Igreja de Cristo (1). Com certeza que servirão com alegria o filho daquele que generosamente fez tanto por eles.» Meteu-se logo no meio de um grupo de rapazes que corriam, pulavam, jogavam à bola, saltavam ao eixo e se divertiam noutras brincadeiras, com grande algazarra. Estavam todos vestidos de igual, segundo a moda dos operários e aprendizes naquela época - ou seja, com uma boina no topo da cabeça, chata e preta, do tamanho de um prato, de onde saía um franja até ao meio da testa, com o cabelo cortado a direito a toda a volta; um colarinho de padre à volta do pescoço; uma túnica azul justa, que ia pelo menos até aos joelhos; mangas compridas e cinto largo encarnado; meias amarelas, presas por ligas acima dos joelhos; e sapatos baixos, com grandes fivelas de metal. Era uma farda bastante feia. Os rapazes pararam de brincar e juntaram-se à volta do príncipe, que lhes disse, com ingénua dignidade: - Meus bons rapazes, dizei ao vosso mestre que Edward, Príncipe de Gales, deseja falar com ele. Estas palavras provocaram grande gritaria e um deles, com modos rudes, disse-lhe: - Sois vós, mendigo, um mensageiro de Sua Graça? Esta piada provocou orgulhosamente e respondeu:
mais
gargalhadas.
o
pobre
Edward
empertigou-se
- Eu sou o príncipe; e é de mau tom que vós, que viveis da bondade do meu pai, me trateis assim. Estas palavras foram muito apreciadas, como se provou pelas gargalhadas. O jovem que tinha falado primeiro gritou para os seus camaradas: - E vós, porcos, escravos, pensionistas do pai de sua principesca graça, onde estão as vossas maneiras? Vergai os ossos, todos vós, e prestai homenagem à sua nobre atitude e reais farrapos! Com espalhafato e alegria todos se ajoelharam e fingiram que prestavam homenagem à sua vítima. O principe deu um pontapé ao que estava mais perto e disse-lhe, furioso: - Tomai isto, até que amanhã chegue e vos mande fazer uma forca! Ah, mas isto não tinha piada nenhuma - passava do engraçado! As gargalhadas pararam imediatamente, substituídas pela fúria. Uma dúzia deles gritou: 10
- Agarrem-no! Para o bebedouro dos cavalos, para o bebedouro dos cavalos! Onde é que andam os cães? Aqui Leão! Ho, vem cá, Presas! Seguiu-se coisa nunca antes vista em toda a Inglaterra - a sagrada pessoa do herdeiro do trono rudemente esbofeteada por mãos plebeias, atirada aos cães e mordida. Quando chegou o entardecer desse dia, o príncipe viu-se bem no meio da área da cidade densamente construída. O corpo tinha nódoas negras, as mãos sangravam e os trapos estavam todos sujos de lama. Continuou a vaguear, cada vez mais desnorteado, tão cansado e fraco que mal conseguia arrastar um pé atrás do outro. Tinha deixado de fazer perguntas a quem quer que fosse, pois em vez de informações só lhe traziam insultos. Dizia consigo mesmo: «Offal Court, é esse o nome; se conseguir encontrá-lo antes de gastar todas as forças e cair, então estou salvo - pois essas pessoas vão levar-me ao palácio e provar que não sou um deles, mas o verdadeiro príncipe, e voltarei ao meu lugar, Às vezes lembrava-se do tratamento que tinha recebido dos brutos do hospital de Cristo e dizia para consigo próprio: «Quando for rei, eles não vão ter apenas comida e abrigo, mas também o ensinamento dos livros; pois uma barriga cheia vale de muito pouco quando a mente e o coraçao estão famintos. Lembrar-me-ei sempre disto, para que a lição deste dia não se perca e o meu povo continue a sofrer; pois o conhecimento adoça o coraçao e traz boas maneiras e gestos caridosos.» As luzes começaram a brilhar, veio a chuva, levantou-se o vento e a noite fez-se dura e tempestuosa. O desabrigado herdeiro do trono de Inglaterra continuava a andar, perdendo-se ainda mais no labirinto de becos esquálidos. De repente, um enorme rufião bêbedo agarrou-o pelo pescoço e disse-lhe: - Estou a ver que andas outra vez na rua a esta hora da noite e nem trouxeste um fartbing para casa! Se por tal coisa eu não partir todos os ossos do teu fraco corpo, então não me chame John Canty! O príncipe soltou-se e disse-lhe, com um tom decidido: - Oh, sois o seu pai de verdade? Permita o doce céu que sejais; então ide buscá-lo e devolver-me ao meu lugar! - O seu pai? Não sei o que é que queres dizer; mas sei que sou o teu pai e em breve vais ter que te haver comigo... - Oh, parai com isso, que não agüento mais. Levai-me ao rei meu pai, que ele vos fará mais rico que os vossos maiores sonhos. Acreditai-me, homem, acreditai-me! Não faleis mentiras, mas só a verdade! Estendei a vossa mão e salvai-me! Eu sou realmente o Príncipe de Gales! O homem baixou os olhos para ele, estupidificado, e depois abanou a cabeça e murmurou: - Está completamente maluco, como qualquer Zé então agarrou-o outra vez pelo pescoço e disse-lhe, com uma gargalhada brutal e um palavrão: - Mas maluco ou são, eu e a avó Carity vamos descobrir logo onde é que te dói ou eu não seja um homem a sério!
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Com estas palavras arrastou o principe, que tremia e se debatia inutilmente e meteuse pelo pátio em frente, seguido por um enxame da ralé barulhenta e divertida.
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V TOM COMO UM ARISTOCRATA Tom Carity, sozinho no gabinete do príncipe, resolveu aproveitar bem a oportunidade. Ficou a virar-se para cá e para lá em frente do grande espelho, a admirar a sua elegância; depois depois,, afa afasto stou-se u-se,, imitand imitando o a atitude atitude bem-edu bem-educad cadaa do princip principe, e, ainda ainda a observ observar ar o resultado no espelho. A seguir, desembainhou a bonita espada e fez uma vênia, beijou a lâmina e empunhou-a à frente do peito, como tinha visto fazer a um nobre cavaleiro, cinco ou seis semanas antes, quando saudava o oficial da Torre, ao entregar à sua guarda os grandes senhores de Norfolk e Surrey. Depois brincou com a adaga incrustada com pedras que que pend pendia ia da sua sua coxa coxa;; insp inspec ecci cion onou ou os extr extrao aord rdin inár ário ioss orna orname ment ntos os da sala sala;; experimentou todas as suntuosas cadeiras e pensou como ficaria orgulhoso se a malta de Offal Court pudesse espreitar pela fechadura e ver a sua grandeza. Perguntou-se se eles iriam acreditar no fantástico acontecimento quando lhes contasse, ao voltar para casa, ou se abanariam a cabeça a dizer que a sua exaltada imaginação tinha, finalmente, tomado conta da cabeça. Devia ter passado meia hora, quando subitamente lhe ocorreu que o principe tinha saído há muito tempo; começou a sentir-se solitário; logo a seguir parou de brincar com as coisas bonitas que tinha à volta e ficou a ouvir ansiosamente os ruídos de fora; foi ficando nerv nervos oso, o, depo depois is agita agitado do e, por por fim, fim, preo preocu cupa pado do.. Imagi Imagine ne-se -se,, se algu alguém ém viess viessee e o apanhasse com a roupa do principe, sem que o príncipe ali estivesse para explicar. Não poderiam eles enforcá-lo imediatamente e só depois inquirir sobre o seu caso? Tinha ouvido dizer que os grandes decidiam depressa sobre os pequenos assuntos. O seu medo cresceu mais e mais; e foi a tremer que abriu devagarinho a porta da antecâmara, resolvido a correr e encontrar o príncipe, com a proteção e liberdade que ele lhe podia dar. Seis maravilhosos cavaleiros e dois jovens pajens do mais alto nível, vestidos como borboletas, levantaram-se num pulo e dobraram-se de alto a baixo à sua frente. Tom deu um pulo para trás e fechou a porta . Pensou: «Oh, estão a fazer troça de mim! Vão já contar tudo. Oh! Porque é que vim aqui para acabar com a minha vida?» Andava para um lado e para o outro, cheio de inomináveis receios, de ouvido atento e olhos abertos ao menor ruído. Foi então que a porta se abriu e um pajem vestido de seda lhe disse: - Lady Jane Grey! A porta fechou-se e um menina, com ar doce, ricamente vestida, fez-lhe uma vênia. Mas parou imediatamente e disse-lhe, com voz preocupada: - Estais triste, meu senhor? Tom estava quase sem respirar, mas conseguiu dizer: - Ah, tende piedade, vós! Na verdade não sou fidalgo, mas o pobre Tom Carity de Offal Court, na cidade. Por favor deixai-me falar com o principe e ele, com a sua graça, me devolverá os meus trapos e me deixará sair imediatamente. Oh, sede misericordiosa e salvai-me! 13
Nesta altura, o rapaz estava de joelhos, a suplicar tanto com os olhos e as mãos postas como com as palavras. A menina parecia aterrorizada. Gritou-lhe: - Oh, meu senhor, de joelhos? E perante mim! Depois fugiu de medo; e Tom, atingido pelo desespero, deixou-se cair, murmurando: «Não há ajuda possível, não há esperança. Agora eles vão vir para me levar.» Enquanto ele jazia dormente de terror, terríveis rumores corriam pelo palácio. O segredo voou de lacaio para lacaio, de senhor para dama, por todos os longos corredores, de and andar para ara andar ndar,, de salão lão em salão: lão: «O prín prínci cipe pe enlo enlouq uque uece ceu u, o prín prínci cipe pe enlouqueceu!» Rapidamente, todas as salas e todas as câmaras de mármore estavam cheias de senhores e damas a sussurrar animadamente e todos os rostos mostravam consternação. Veio então um magnífico oficial, a andar de grupo em grupo, fazendo uma solene proclamação: - Em nome do rei!Que ningém dê ouvidos a este rumor falso e louco, nem o comente, nem o transmita, sob pena de morte. Em nome do rei! Os murmúr murmúrios ios acaba acabaram ram imediat imediatamen amente, te, como como se os que sussur sussurrav ravam am tivessem tivessem ficado mudos. Logo a seguir, começou-se a ouvir em todos os corredores: «O principe! Vejam, o príncipe vem aí!» O pobre Tom vinha a andar devagar por entre os grupos que o saudavam, a tentar responder aos cumprimentos e a olhar humildemente para aqueles ambientes estranhos, com olhos deslumbrados e patéticos. Grandes fidalgos andavam ao seu lado, fazendo-o apoiar-se neles e assim acelerando os seus passos. Atrás dele seguiam os médicos da corte e alguns lacaios. Então Tom viu-se numa sala ainda mais majestosa e ouviu a porta a fechar-se atrás dele. À sua volta estavam aqueles que'o tinham acompanhado. À sua frente, a pouca distância, reclinava-se um homem muito grande e muito gordo, com um rosto largo e balofo e uma expressão severa. A enorme cabeça tinha cabelos brancos; e a barba, que ele usava a toda a volta do rosto, como uma moldura, também era branca. As roupas eram muito ricas, mas estavam velhas e um pouco esgaçadas nalguns sítios. Uma das pernas, inchada, apoiava-se numa almofada e estava toda envolvida em ligaduras. Este inválido, de cariz severo, era o temível Henrique VIII! Começou a falar - e o seu rosto tornava-se doce enquanto dizia: - Como estais, meu senhor Edward, meu príncipe? Decidistes enganar-me, o bom rei, vosso pai, com uma brincadeira sem graça? O pobr pobree Tom Tom ouvi ouviu u o come começo ço dest destee disc discur urso so o melh melhor or que que as suas suas facu faculd ldad ades es entorpecidas o permitiam; mas, quando as palavras, «a mim, o bom rei», entraram nos seus ouvidos, ficou branco e caiu instantaneamente de joelhos, como se tivesse levado um tiro. Levantando as mãos, exclamou: - Vós, o rei? Então estou verdadeiramente perdido!
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Este discurso pareceu deixar o rei pasmado. Os seus olhos passearam de rosto em rosto, sem se fixarem, e depois detiveram-se, surpreendidos, no rapaz à sua frente. Depois disse, num tom de profunda desilusão: - Que pena, tinha achado o boato exagerado; mas receio que não o seja. Deu um pesado suspiro e disse, com voz suave: - Vinde ao vosso pai, criança: vos não estais bem. Tom foi ajudado a levantar-se e aproximou-se de Sua Majestade de Inglaterra, trémulo e humilde. O rei segurou o rosto assustado entre as mãos, olhou-o com determinação e amor durante um tempo, como se ali pudesse encontrar algum sinal de razão, e deu-lhe umas palmadas carinhosas. Então disse-lhe: - Não reconheceis o vosso pai, criança? Não quebreis assim o meu coração de velho: dizei que me reconheceis. Vós reconheceis-me, não é verdade? - Sim; vós sois o rei meu senhor, que Deus conserve! - Verdade, verdade, está muito bem, descansai, parai de tremer assim- não há aqui ninguém que vos possa ferir; não há aqui ninguém que não vos ame. Estais melhor agora; o mau sonho já passou, não é verdade? E agora sabeis quem sois, não é verdade? - Suplico a vossa graça que me acrediteis, não falei senão a verdade, meu temido senhor; pois nasci pobre e somente por uma amarga confusão aqui me encontro, embora nada tivesse feito de que possa ser culpado. Sou muito novo para morrer e vós podeis salvar-me com urna só palavra. Oh senhor, falai! - Morrer? Não faleis assim, doce principe, vós não ides morrer! Tom caiu de joelhos com um grito de alegria: - Deus recompense a vossa generosidade, oh meu rei, e vos preserve por muito tempo para abençoar esta terra! Então, levantando-se num pulo, virou o rosto sorridente para os dois fidalgos que estavam mais perto e exclamou: - Vós ouvistes! Não vou morrer; foi o que o rei disse! Não aconteceu nada, exceto que todos fizeram uma vênia com profundo respeito; mas ninguém falou. Tom hesitou, um pouco confundido, e depois virou-se timidamente para o rei e disse-lhe: - Agora posso ir-me? - Ir-vos? Certamente, se o desejais. Mas porque não vos atardeis mais um pouco? Onde poderíeis vós ir? Tom baixou os olhos e respondeu humildemente: - Por ventura me enganei; mas, julgando-me livre, pensei em procurar outra vez o canil onde nasci e cresci na desgraça, mas onde vivem a minha mãe e irmãs, e portanto é
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o meu lar; enquanto a estas pompas e esplendores não estou acostumado; oh senhor, por favor, deixai-me ir! Durante algum tempo, o rei ficou silencioso e pensativo e o seu rosto mostrava uma crescente tristeza e incómodo. Depois disse, com um tom de esperança na voz: - Talvez que ele esteja louco só neste aspecto e mantenha o juízo são no que toca a outros assuntos. Deus faça que assim seja! Vamos fazer uma experiencia. Então fez uma pergunta a Tom em latim e ele respondeu bastante mal na mesma língua. O rei mostou-se deleitado. Os fidalgos e doutores também manifestaram a sua satisfação. O rei disse: - Não foi de acordo com a sua educação e possibilidades, mas mostrou que a sua mente está apenas doente e não fatalmente atingida. Que dizeis vós, senhor? O fisico interpelado fez uma grande vênia e respondeu: - É minha convicção, senhor, que estais certo no que adivinhastes. O rei pareceu satisfeito com este encorajamento e continuou bem disposto: - Agora reparai todos: vamos experimentá-lo mais. Fez uma pergunta a Tom, em francês. O miúdo ficou um momento calado, envergonhado pelos muitos olhos que estavam fixados nele, e falou com acanhamento: - Não tenho conhecimentos dessa língua, preze a vossa majestade. O rei atirou-se para trás na cadeira. Os presentes correram a assisti-lo; mas ele afastou-os e disse: - Não me perturbem: não é nada senão uma vil tontura. Levantai-me! Assim, chega... Vinde cá, criança; isso, descansai a essa pobre cabeça, assim perturbada, perto do coração do vosso pai, e descansai. Em breve ficareis bom. - Depois, virou-se para a corte; o seu lado terno desapareceu e faíscas malignas começaram a dançar nos seus olhos. Disse assim: - Ouvi todos vós! Este meu filho está louco; mas não é permanentemente. Excesso de estudo foi o que provocou isto e também confinamento um pouco exagerado. Que fique longe dos livros e dos professores, é o que deveis cuidar! Satisfazei-o com desportos, distraí-o com atívidaes saudáveis, para que a sua saúde volte. Levantou-se mais alto e continuou com toda a energia: - Ele está louco; mas é o meu filho e o herdeiro de Inglaterra; e, louco ou são, todavia reinará! E ouvi o que mais digo e proclamai-o: aquele que falar da sua perturbação estará a agir contra a paz e a ordem deste reino e irá para a masmorra! ... Dai-me de beber; estou a queimar por dentro; esta dor enfraqueceu as minhas forças... Aqui, levai a taça... Segurai-me... Aqui, assim está bem. Ele está louco? Estivesse ele mil vezes mais louco, contudo é o Príncipe de Gales e sou eu, o rei, quem o afirma. Amanhã mesmo será sagrado na sua dignidade principesca, como deve ser, segundo o antigo costume. Dai imediatamente as ordens convenientes, meu Lord Hertford (1).
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Um dos nobres ajoelhou-se em frente da cadeira real e disse: - Sua majestade o rei sabe que o Grande Marechal Hereditário de Inglaterra jaz detido na Torre. Não seria próprio de um preso... - Chega! Não insulteis meus ouvidos com esse odiado nome. Deverá esse homem viver para sempre? Deverei ser contrariado na minha vontade? Deverá o príncipe deixar de ser sagrado porque até agora o reino não tem um marechal livre da mancha da traição, que o possa investir nas suas honras? Avisai o Parlamento para que me traga a condenação de NorfoIk antes que o Sol nasça de novo, ou então terão que responder pela ofensa! Lord Herteford disse: - A vontade do rei é lei - e, levantando-se, voltou para o seu lugar. Lentamente a ira foi-se afastando do rosto do rei, que disse: - Beijai-me, meu principe. Aqui... que receais? Não sou o vosso pai bem-amado? - Sois para mim melhor do que mereço, ó poderoso e gracioso senhor; isso eu sei, na verdade. Mas, mas... Entristece-me pensar naquele que deve morrer e... - Ah, isso é bem vosso, bem vosso! Vejo que o coração ainda é o mesmo, mesmo que a mente tenha sofrido dano, pois sempre tivestes um gentil espírito. Mas este duque está entre vós e as vossas honras: colocarei outro no seu lugar. Descansai, meu príncipe; não preocupeis a vossa cabeça com este assunto. - Mas não é verdade que assim apresso o seu fim, meu soberano? Quanto tempo poderia ele viver, se não fosse por mim? - Não penseis nele, meu príncipe; não o merece. Beijai-me outra vez e ide para os vossos afazeres e divertimentos; pois a minha doença perturba-me. Estou cansado e devo repousar. Ide com o vosso tio Hertford e a vossa gente, mas voltai quando o meu corpo estiver restaurado. Tom, com o coração pesado, foi levado da sua presença e sentia-se mais e mais preocupado, enquanto, passava por entre as faiscantes filas de cortesãos que o saudavam; pois percebia que agora estava prisioneiro e poderia ficar para sempre fechado naquela gaiola dourada, um príncipe triste e sem amigos, a menos que Deus na Sua misericórdia tivesse pena dele e o libertasse. E, virasse-se para onde se virasse, aparecia-lhe a flutuar no ar uma cabeça cortada com o rosto do grande duque de Norfolk, que ele ainda se lembrava da Torre, com os olhos reprovadores fixados nele. Os seus antigos sonhos tinham sido tão saborosos; mas a sua realidade era tão aterradora!
VI TOM RECEBE INSTRUÇOES 17
Tom foi levado para o salão de uns aposentos senhoriais e obrigado a sentar-se coisa que detestou, pois ficou rodeado de damas e cavalheiros mais velhos de alta estirpe. Pediu-lhes que se sentassem e eles limitavam-se fazer vênias e murmurar agradecimentos, mas ficavam de pé. Teria insistido mais, mas o seu «tio» conde de Hertford segredou-lhe ao ouvido: - Por favor deixai de insistir, meu senhor; não próprio que eles se sentem na vossa presença. Foi anunciado o Lord Saint John que, depois de fazer uma vênia a Tom, disse-lhe: - Venho a mandado do rei, para tratar de um assunto que requer privacidade. Fará vossa alteza real o favor de dispensar todos os que vos acompanham, com excepção do meu senhor, o conde de Hertford? Ao reparar que Tom parecia não fazer idéia de como agir, Hertford segredou-lhe para assinalar com a mão e não se incomodar a falar, a não ser que lhe apetecesse. Quando os cavalheiros se retiraram, Lord Saint John disse-lhe: - Sua majestade deu ordens de que, devido a importantes razões de Estado, sua graça, o príncipe, deve esconder a sua doença de todos os modos que lhe seja possível, até que ela passe e ele volte a ser como era antes. Deverá com toda a vontade jamais negar a quem quer que seja que é o verdadeiro príncipe e o herdeiro da grandeza de Inglaterra; deve manter a sua dignidade principesca e deve receber a reverência e o respeito que lhe pertencem, sem palavras ou sinais de protesto; que deixe de falar a qualquer dos plebeus que a doença trouxe para a sua imaginação perturbada, estragando-lhe o julgamento; deve lutar com insistência para trazer novamente à-sua memória aqueles rostos que tem por dever conhecer; e quando não conseguir lembrar-se deve ficar quieto, não deixando mostrar que se esqueceu nem pela aparência, nem pela surpresa, nem por nenhum outro sinal; quando das cerimônias oficiais, sempre que qualquer assunto o deixe em dúvida sobre o que deveria dizer ou deveria fazer, não deve mostrar nem ignorância nem nervosismo perante os curiosos que o olham, mas deve antes pedir conselho sobre esse assunto ao Lord Hertford, ou à minha humilde pessoa, que terrios ordens do rei para estar ao seu serviço e sempre perto dele, até que esta ordem seja revogada. Ao dizer tal, sua majestade o rei, que mandou saudações a sua alteza real, reza a Deus para que o sare rapidamente na Sua misericórdia e o tenha agora e sempre à Sua sagrada guarda. O Lord SaintJohn fez uma reverência e ficou à espera. Tom respondeu-lhe, resignadamente: - O rei falou. O rei será obedecido. Lord Hertford disse-lhe: - No que respeita às ordens de sua majestade sobre livros e assuntos igualmente sérios, decerto agradará a vossa alteza que possa aliviar o vosso tempo com divertimentos 18
leves, nao aconteça que fiqueis cansado com o banquete e possais sofrer dano por causa disso. O rosto de Tom mostrou curiosidade e surpresa; e corou quando viu a pena com que o olhava o Lord Saint John. Sua senhoria disse-lhe: - A vossa memória continua a enganar-vos e vós mostrastes surpresa; mas não deixeis que tal vos perturbe, pois esta é uma perturbação que se irá quando a vossa doença passar. O meu Lord Hertford falava no banquete da cidade que sua majestade, o rei, prometeu que vossa alteza assistiria, já faz dois meses. Lembrai-vos agora? - Lamento confessar que realmente me tinha esquecido - disse Tom, com voz hesitante; e corou novamente. Nessa altura foram anunciadas Lady Elizabeth e Lady Jane Grey. Os dois fidalgos trocaram olhares significativos e Hertford foi rapidamente até à porta. Quando as duas meninas chegaram, disse-lhes em voz baixa: - Rogo-vos, senhoras, para fazerdes menção de não reparar nos seus humores, nem para mostrardes surpresa quando a sua memória falhar; decerto ficareis preocupadas ao ver como ele tropeça no mais pequeno pormenor. Entretanto, Lord Saint John dizia ao ouvido de Tom: - Por favor, meu senhor, tende sempre na mente os desejos de sua Majestade. Lembrai-vos do que puderdes; fazei menção que vos lembrais de todo o resto. Não deixeis que elas percebam que mudaste muito na vossa maneira, pois sabeis como vos querem com ternura as vossas amiguinhas e como ficariam perturbadas. Desejais, senhor, que eu permaneça? E o vosso tio? Tom mostrou concordância com um gesto e uma palavra murmurada, pois já estava a aprender e no seu coração puro tinha resolvido comportar-se o melhor que pudesse, de acordo com as ordens do rei. Apesar de todas as precauções, a conversa entre as crianças, às vezes, tornou-se um pouco embaraçosa. Mais do que uma vez, para dizer a verdade, Tom esteve quase a desistir e a confessar-se incompetente para o seu tremendo papel; mas o tato da princesa Elizabeth salvou-o, ou uma palavra de um dos dois atentos cavaleiros, dita aparentemente por acaso, teve o mesmo feliz resultado. Uma vez, a pequena Lady Jane virou-se para Tom e surpreendeu-o com esta pergunta: -já hoje visitastes sua majestade a rainha, meu senhor? Tom hesitou, mostrou-se preocupado e estava quase a gaguejar alguma coisa ao acaso, quando o Lord SaintJohn tomou a palavra e respondeu por ele, com a gentileza natural de um cortesão habituado a resolver sempre as mais subtis dificuldades:
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- já visitou de fato, senhora, e a rainha muito o animou no que respeita à situação de sua majestade; não é verdade, vossa alteza? Tom murmurou qualquer coisa que ficou como uma concordância, mas sentiu que estava a cair num campo perigoso. Algum tempo depois mencionou-se que ele não deveria estudar mais nesta altura, ao que a pequena dama exclamou: - Mas que pena, que pena! Estáveis a progredir tão bem! Mas esperai com paciência; não será por muito tempo. Sereis agraciado com sabedoria igual à do vosso pai e fareis a vossa língua dominar tantos idiomas como ele, meu bom príncipe! - O meu pai! - gritou Tom, descaindo-se por um momento. - Digo-vos que não consegue falar nem o seu próprio idioma a não ser de um modo que só suínos que chafurdam no chiqueiro o conseguem entender; e quanto a conhecimentos de qualquer espécie que seja... Olhou para cima e deu com o severo aviso que brilhava nos olhos de Lord Saint John. Parou, corou e, depois, continuou, em voz baixa e triste: - Ah, a minha doença apanhou-me de novo e a minha mente perdeu-se! Não queria ofender sua graça, o rei. - Nós sabemo-lo, senhor - disse a princesa Elizabeth, segurando a mão do «irmão» entre as suas. - Não vos preocupeis com isso. Não é vossa culpa, mas da vossa perturbação. - Dais-me um gentil conforto, doce senhora - disse Tom, agradecido -, e o meu coração pede-me que vos agradeça pelo vosso esforço, se posso ser tão franco. A graciosa LadyJane disse a Tom uma frase em grego. A perspicácia de Lady Elizabeth imediatamente viu, na serena impassividade do rosto de Tom, que este não tinha percebido nada e fez um comentário sobre ele em excelente grego, para depois desviar a conversa para outro assunto. O tempo passava-se agradavelmente, sem grandes problemas, e Tom estava cada vez mais e mais à vontade, vendo que todos estavam tão enternecidamente empenhados em ajudá-lo e em não reparar nos seus erros. Quando veio à conversa que as jovens damas o deviam acompanhar, nessa tarde, ao banquete do alcaide, o seu coração deu um salto de prazer e alívio, pois sentia que não devia ficar sem amigos entre uma multidão de estranhos, enquanto uma hora atrás a idéia de elas também irem lhe teria provocado um insustentável terror. os dois fidalgos, ou seja, os anjos da guarda de Tom, tinham passado a entrevista com muito menos tranqüilidade que os demais participantes. Parecia-lhes que estavam a conduzir um enorme navio por um perigoso canal. Estavam permanentemente atentos e percebiam que a sua missão não era uma brincadeira de crianças. Assim, quando a visita 20
das damas estava terminada e Lord Guilford DudIey foi anunciado, não só acharam que a sua carga já era excessiva, como também que era melhor retroceder com o navio antes que começasse nova e perigosa viajem. Portanto, respeitosamente aconselharam Tom a dar uma desculpa, coisa que muito o alegrou, enquanto se notava uma sombra de descontentamento no rosto de Lady Jane Grey, ao ouvir que se negava a entrada do belo rapaz. Seguiu-se uma pausa, uma espécie de compasso de espera, que Tom não conseguia compreender. Deu uma olhadela para Lord Hertford, que lhe fez um sinal que ele também não conseguiu perceber. A rápida Elizabeth veio em seu auxílio com a habitual graça. Fez uma reverência e disse: - Temos autorização de sua graça, o príncipe, meu irmão, para nos irmos? Tom disse-lhes: - Na verdade vossas senhorias podem ter de mim o que desejaram, bastando pedir; contudo, preferia dar-lhes qualquer outra coisa dentro dos meus pobres poderes, do que autorização para retirar a luz e a bênção que é a vossa presença aqui. Ide-vos então e que Deus esteja convosco! - Depois riu-se consigo próprio e pensou: «Não foi em vão que só lidei com príncipes nas minhas leituras e que ensinei à minha língua alguns dos truques da sua prendada e graciosa maneira de falar!» Quando as ilustres meninas se tinham ido embora, Tom virou-se com determinação para os seus guardiões e disse-lhes: - Permitam vossas senhorias que eu possa ir para algum canto e descansar! Lord Hertford respondeu-lhe: - Sois vós que mandais e somos nós que obedecemos, para vos servir. De fato, é necessário que descanseis, uma vez que ides viajar para a cidade dentro em breve. Tocou numa sineta e um pajem apareceu, recebendo ordens para convocar a presença de Sir William Herbert. Este cavaleiro veio imediatamente e levou Tom para uma sala interior. O seu gesto, quando entrou, foi para pegar uma taça com água; mas um lacaio vestido de seda e veludo apanhou-a primeiro, ajoelhou num joelho e ofereceu-a numa salva de ouro. A seguir, o cansado prisioneiro sentou-se e começou a tirar os borzeguins, pedindo timidamente com os olhos que o deixassem sozinho, mas outro perturbador vestido de seda e veludo ajoelhou-se e fez-lhe o trabalho. Tom tentou mais uma ou duas vezes fazer as coisas sozinho, mas sendo sempre impedido no mesmo momento, finalmente desistiu, com um gesto de resignação, e murmurou: «Admira-me que não tenham também que respirar por mim!» De chinelos e envolvido num suntuoso robe, deitou-se finalmente para descansar, mas não para dormir, pois a sua cabeça estava demasiadamente cheia de 21
pensamentos e o quarto apinhado de pessoas. Não podia afastar os primeiros, portanto deixou-os ficar; e não sabia como dispensar os segundos, logo esses também ficaram, para sua grande pena e pena deles. A partida de Tom tinha deixado sozinhos os seus dois guardiães. Conversaram algum tempo, andando de um lado para o outro a sacudir as cabeças, e então Lord Saint John disse: - Sem rodeios, o que é que vós achais? - Sem rodeios então, penso o seguinte: o rei está perto do seu fim e o meu sobrinho está louco, louco subirá ao trono e louco continuará. Deus proteja a Inglaterra, pois vai precisar! - De fato, assim parece ... Mas, não estais apreensivo quanto... no que respeita a ... Lord Saint John hesitava e finalmente parou de falar. Era evidente que sentia que estava a pisar um terreno delicado. Lord Hertf.ord parou à sua frente, olhou-o com olhos francos e diretos, e disse-lhe: - Falai; não há ninguém a ouvir a não ser eu. Apreensivo sobre o quê? - Receio muito dizer o que vai na minha cabeça, sendo vós de um sangue tão próximo dele, meu senhor. Mas, implorando perdão se estou a ofender, não parece tão estranho que a loucura tenha mudado de tal modo a sua postura e atitude? Não que a postura e a fala não sejam ainda as de um príncipe; mas que tenham mudado apenas num ou outro detalhe sem importância, em relação ao que ele era antes. Não parece estranho que a loucura tenha eliminado da sua memória as feições do próprio pai; os hábitos e regras que são o seu dever desde que se conhece; e que, deixando-o com o latim, o tenham feito esquecer o grego e o francês? Aterrorizou-me ouvi-lo dizer que não é o principe e, portanto... - Por favor, meu senhor, estais a pronunciar uma traição! Esquecestes as ordens do rei? Lembrai-vos que, só por vos ouvir, sou cúmplice do vosso crime. Sirjohn empalideceu e apressou-se a dizer: - Errei, confesso-o. Não me denuncieis, concedei-me essa graça pela vossa cortesia, e não pensarei nem falarei mais em tal coisa. Sede clemente comigo, ou estarei arruinado. - Estou satisfeito, meu senhor. Se não ofenderdes novamente, aqui ou aos ouvidos de outros, será como se não tivésseis falado. Mas não precisais de ficar apreensivo. Ele é o filho da minha irmã; não são a sua voz, o rosto e o corpo meus conhecidos desde o berço? A loucura pode provocar todos os pequenos pormenores conflituantes que vistes nele e muitos mais. Este é o próprio príncipe que eu conheço tão bem e que em breve será o vosso rei; pode ser vantajoso para vós lembrar-vos de tal coisa e preocupar-vos mais com isso do que com o outro assunto. 22
Depois de mais alguma conversa Lord Hertfórd dispensou o seu colega guardião e sentou-se para ficar de vigia sozinho. Depressa caiu numa profunda meditação. Evidentemente que quanto mais pensava mais preocupado ficava. Aos poucos pôs-se a andar de um lado para o outro e a murmurar consigo próprio. «Ora, tem que ser o príncipe! Alguém, em todo o reino, diria que pode haver dois tão maravilhosamente iguais, não sendo do mesmo sangue e condição? E, mesmo que isso fosse verdade, seria um milagre muito estranho que o destino colocasse um no lugar do outro. Não, isso é pura loucura! A seguir disse-se: Se ele fosse um impostor e se intitulasse príncipe, isso seria natural; seria razoável. Agora, já alguma vez existiu algum impostor que, sendo chamado de príncipe pelo rei, pela corte e por todos, tenha negado essa dignidade e se declarado contra a sua confirmação? Não! Pela alma de santo Swithin, não! Este é o verdadeiro príncipe, que enlouqueceu!
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VII O PRIMEIRO JANTAR REAL DE TOM A certa altura, depois da 1 hora da tarde, Tom passou resignadamente pela provação de ser vestido para jantar. Viu-se ataviado com o mesmo luxo de antes, mas com todas as peças diferentes, desde o barrete até às meias. A seguir, foi levado com muita cerimônia para uma sala espaçosa e ornamentada, onde já estava posta mesa para um. O mobiliário era todo de ouro maciço, embelezado com desenhos que o tornavam de um valor incalculável, uma vez que era obra de Benvenuto. A sala estava quase cheia de nobres servidores. Um capelão fez as orações e Tom preparava-se para começar, pois a fome sempre fizera parte da sua natureza, mas foi interrompido pelo nosso senhor o conde de Berkeley, que prendeu um guardanapo à volta do seu pescoço; pois o grande lugar de colocador de guardanapo do Príncipe de Gales era um direito hereditário da sua nobre família. O escanção de Tom estava presente e antecipou-se a todas as suas tentativas de se servir do vinho. Também lá estava o provador de Sua Alteza o Príncipe de Gales, pronto para ser mandado provar qualquer prato suspeito e, assim, correr ele o risco de ser envenenado. O nosso senhor D'Arcy, primeiro-camareiro real, estava lá, para fazer sabe Deus o quê; mas estava, o que é o importante. O senhor mordomo-chefe também estava e ficava atrás da cadeira de Tom, acompanhando as solenidades conduzidas pelo senhor grande-camareiro e pelo senhor cozinheiro-chefe, que ficava ao pé dele. Além destes, Tom tinha mais trezentos e oitenta e quatro servidores; mas, evidentemente, não estavam todos na sala, nem sequer um quarto deles, nem Tom sequer sabia da sua existência. Todos os que estavam presentes tinham sido bem treinados durante a hora precedente para terem em mente que o príncipe estava temporariamente ensandecido e para terem cuidado em não mostrar surpresa perante as suas excentricidades. Essas excentricidades» depressa lhes foram exibidas; mas a tristeza e a pena que sentiam não afetava o seu sangue-frio. Era com profundos cuidados que viam o seu querido príncipe tão alterado. O pobre Tom comeu principalmente com os dedos; mas ninguém se riu, nem pareceu ter reparado nisso. Inspecionou o guardanapo com curiosidade e grande interesse, pois o tecido era muito belo e fino, e depois disse com simplicidade: - Por favor levai-o, não vá a minha falta de jeito sujá-lo. O colocador de guardanapos hereditário levou-o com uma atitude reverente, sem qualquer tipo de protesto. Tom examinou os nabos e a alface com grande interesse e perguntou o que eram e se se deviam comer; pois só recentemente é que essas coisas eram plantadas em Inglaterra, em vez de serem importadas da Holanda como artigos de luxo. Esta pergunta foi 24
respondida com grande respeito e sem que se manifestasse alguma surpresa. Quando acabou o doce, encheu os bolsos com nozes; mas ninguém parecia ter reparado ou ficado perturbado com isso. Mas logo depois foi ele próprio que se sentiu perturbado e embaraçado, pois fora a única coisa que o tinham deixado fazer com as suas próprias mãos durante toda a refeição, e não tinha dúvidas de que era impróprio e pouco principesco. Nesse momento, os músculos do nariz começaram a contrair-se e a ponta desse órgão levantou-se e enrugou-se. Isto continuou e Tom começou a mostrar-se cada vez mais incomodado. Olhou a pedir ajuda para cada um dos fidalgos à sua volta e lágrimas vieramlhe aos olhos. Eles acorreram com a preocupação estampada no rosto e pediram para saber o que é que o preocupava. Tom disse-lhes, com angústia genuína: - Imploro a vossa indulgência: sinto uma comichão cruel no nariz. Qual é o hábito e a norma para esta emergência? Por favor, apressai-vos, pois não vou agüentar por muito tempo. Ninguém se riu; todos ficaram amargamente perplexos e olhavam uns para os outros com profunda preocupação, à procura de um conselho. Mas, cuidado, estava aqui um beco sem saída e não havia nada na História de Inglaterra que dissesse como sair dele. O mestre de cerimônias não estava presente; não havia ninguém que se sentisse seguro para se aventurar nesta área nova, ou se arriscasse a tentar resolver o problema. Horror! Não existia um coçador hereditário. Entretanto, as lágrimas corriam pelas bochechas de Tom. O seu nariz contorcido pedia alívio ainda com mais urgência. Por fim, a natureza quebrou as barreiras da etiqueta: Tom rezou por perdão, caso estivesse a fazer alguma coisa errada, e aliviou os preocupados corações da sua corte ao coçar ele mesmo o nariz. Acabada a refeição, um fidalgo segurou à sua frente um prato de ouro, largo e pouco fundo, com água de rosas, para que limpasse a sua boca e dedos; e o nosso senhor, o colocador de guardanapos hereditário, ficou ao lado com uma toalha, para que ele se secasse depois. Confuso, Tom olhou para o prato por um instante, depois levou-o aos lábios e tomou um gole com toda a seriedade. Voltou-se então para o fidalgo que o servia e disse-lhe: - Não, não gostei nada, meu senhor; tem um bom aroma mas falta-lhe sabor. Esta nova excentricidade da mente arruinada do príncipe fez doer todos os corações à sua volta; mas a triste visão não levou ninguém a manifestar-se. O disparate inconsciente que Tom fez a seguir consistiu em levantar-se da mesa na altura em que o capelão tinha tomado o seu lugar atrás da cadeira, com as mãos levantadas e os olhos fechados virados para cima, e começava a rezar e dar a bênção. E ainda ninguém parecia ter notado que o príncipe tinha feito algo de inusitado. A seu pedido, o nosso pequeno amigo foi então levado para a sua sala privada e lá deixado sozinho entre as suas coisas. Penduradas em cima dos livros, espalhados pelos 25
lambris de carvalho, estavam várias peças de uma armadura de metal brilhante, trabalhado com belos desenhos gravados a ouro. Esta panóplia marcial pertencia ao verdadeiro príncipe - um presente de Madame Parr, a rainha. Tom colocou as perneiras, as luvas, o elmo com plumas e ainda outras peças que eram possíveis prender sem assistência. Durante algum tempo pensou em pedir ajuda e acabar de se armar, mas veio-lhe à memória as nozes que tinha trazido do jantar e a alegria que seria comê-las sem ninguém a olhar para ele e sem grandes hereditários para o aborrecer com serviços indesejados; portanto, colocou as belas peças nos seus diversos sítios e logo estava a partir as nozes e a sentir-se quase que naturalmente feliz, pela primeira vez desde que Deus o tinha castigado fazendo-o príncipe. Quando as nozes acabaram, encontrou um livro sobre etiqueta na corte inglesa, entre os muitos volumes convidativos que estavam num armário. Recostou-se num suntuoso sofá e começou a ler com sincera boa vontade. Por agora deixemo-lo nesta situação.
VIII A QUESTÃO DO SELO À volta das 5 horas, Henrique VIII acordou de uma sesta que não o tinha descansado e murmurou para si próprio: «Sonhos pesados, sonhos preocupantes! O meu fim aproximase, é o que dizem estes avisos e o meu fraco pulso assim o confirma.» Num instante brilhou uma chama de maldade nos seus olhos e murmurou: «Todavia não morrerei sem que ele se vá antes.» Os seus servidores viram que ele estava acordado e um deles perguntou a sua graça se queria receber o Lord Chanceler, que estava à espera lá fora. - Admiti-o, admiti-o - disse o rei com decisão. O Lord Chanceler entrou e ajoelhou ao lado da cama do rei, enquanto lhe dizia: - Já dei as ordens e, de acordo com a vontade do rei, os pares do reino, com as suas túnicas, estão na Câmara onde, tendo confirmado a sorte do duque de Norfolk, humildemente esperam as decisões de vossa majestade sobre o assunto. O rosto do rei iluminou-se com uma grande alegria. Disse: - Levantem-me! Irei pessoalmente perante o Parlamento e com a minha própria mão porei o selo na ordem que me livra do... A sua voz falhou; uma palidez acinzentada lavou a cor do seu rosto; os lacaios ajudaram-no a voltar para as almofadas e apressaram-se a dar-lhe os tônicos. Então disse, num tom triste:
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- Meu Deus, como ansiei por esta doce hora! Demorasse mais a chegar e seria roubado desta oportunidade tão desejada. Mas apressai-vos, apressai-vos! Deixai que outros façam este alegre trabalho que me é negado. Coloco o meu grande selo nas mãos da comissão; escolhei vós os lordes que a devem formar e que se metam ao trabalho. Apressai-vos, homem! Antes que o Sol se levante e se ponha de novo, trazei-me essa cabeça para que a possa ver! - Assim seja, conforme a vontade do rei. Quer vossa majestade dar ordens para que o selo me seja entregue, para que possa prosseguir com este assunto? - O Selo! Mas quem, senão vós, guarda esse selo? - Vossa majestade retirou o selo da minha posse há dois dias, dizendo que não deveria executar a sua função até que a vossa real mão o usasse para a ordem contra o duque de Norfo1k. - Assim o disse, na verdade; estou-me a lembrar... O que é que eu fiz com ele?... Estou muito fraco... Amiúde nestes dias a memória me tem traído... É estranho, estranho... O rei caiu num murmúrio sem sentido, sacudindo fracamente a sua cabeça branca de tempos a tempos, enquanto tentava lembrar-se o que é que tinha feito com o selo. Finalmente, Lord Hertford ousou ajoelhar-se e dar a informação: - Senhor, se a tal posso atrever-me, várias pessoas aqui, eu inclusive, nos lembramos de que colocastes o grande selo nas mãos de sua alteza o Príncipe de Gales, para que o guardasse até ao dia... - É verdade, inteiramente verdade! - interrompeu o rei. - Ide buscá-lo! Ide, que o tempo voa! Lord Hertford correu para os aposentos de Tom, mas em breve voltava, preocupado e de mãos vazias. Disse o seguinte: - Entristece-me, senhor, trazer-vos tão más e indesejadas novas; mas é a vontade de Deus que o mal do príncipe ainda subsista e que ele não consiga lembrar-se de que recebeu o selo. Assim, vim imediatamente contar-vos, pensando que seria grande perda de tempo e de pouca utilidade que se procedesse a uma busca na grande quantidade de quartos e salas que pertencem a sua alteza... Aqui, um gemido do rei interrompeu o fidalgo. Depois de uma pausa, sua majestade disse, com um tom de voz profundamente triste: - Não o importuneis mais, pobre criança. A mão de Deus caiu pesadamente sobre ele e o meu coração dói de pena; lamento que não possa carregar a sua provação nos meus ombros, já pesados com tantos problemas, e assim dar-lhe descanso.
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Fechou os olhos, caiu num murmúrio e depois ficou calado. Algum tempo depois abriu outra vez os olhos e passeou-os distraidamente pela sala, até se fixarem no Lord Chanceler, que ainda ali estava ajoelhado. Instantaneamente o seu rosto enrubesceu de fúria: - O quê, ainda aí estais! Pela glória de Deus, se não tratardes imediatamente deste assunto do traidor, amanhã a vossa mitra estará de férias, por falta de uma cabeça para decorar! Tremendo, o Chanceler respondeu: - Por Deus, majestade, peço a vossa compaixão! Mas estava à espera do selo. - Homem, perdestes o juízo? O Selo pequeno, que antigamente gostava de levar comigo para o estrangeiro está no meu tesouro. E uma vez que o grande selo desapareceu, não será esse suficiente? Perdestes o juízo? Ide-vos! E cuidai de não voltar sem trazer a sua cabeça! O pobre Chanceler não demorou muito a afastar-se desta perigosa proximidade; nem a comissão levou tempo algum a sancionar a decisão do escravizado Parlamento, indicando o dia seguinte para a decapitação do primeiro nobre de Inglaterra, o desgraçado duque de Norfolk.
IX O CORTEJO NO RIO Às 9 da noite toda a enorme margem do rio em frente ao palácio brilhava com luzes. O próprio rio, até onde os olhos podiam alcançar em direção à cidade, estava de tal maneira coberto com barcos de pescadores e barcaças de luxo, todas emolduradas com lanternas coloridas, a balançarem-se suavemente na água, que parecia um jardim brilhante e interminável, as flores a agitarem-se na brisa suave do Verão. A grande plataforma com as escadas de pedra que desciam até à água, suficientemente grande para conter o exército de um principado alemão, valia a pena ser vista, com fileiras de alabardeiros reais de armadura polida e com os grupos de servidores magnificamente vestidos a andar para cima e para baixo e de um lado para o outro, na pressa das preparações. Por fim, foi dada uma ordem e, imediatamente, todas as criaturas desapareceram das escadas. Agora, o ar estava pesado com o clima de suspense e expectativa. Até onde se podia alcançar via-se a miríade de pessoas nos barcos levantar-se e proteger os olhos do brilho das lanternas e tochas com as mãos, fixando-os no palácio. Uma fila de quarenta ou cinqüenta barcas aproximou-se dos degraus. Estavam todas ricamente engalanadas e as suas grandes proas e popas mostravam belos entalhes. 28
Algumas estavam decoradas com pendões e fitas; outras com brocados e tapeçarias brasonadas; outras ainda com bandeiras de seda que tinham cosidas inúmeras campainhas de prata, as quais se agitavam em cascatas de alegres sons quando a brisa lhes batia. Cada barcaça era puxada por uma chalupa. Além dos remadores, estas chalupas levavam um certo número de soldados, com capacetes e peitorais de metal brilhante, e ainda um grupo de músicos. A guarda-avançada da tão esperada procissão, um corpo de alabardeiros, aparecia agora no portão principal. Estavam vestidos com uma malha justa às riscas pretas e castanhas, tinham barretes de veludo decorados dos lados com rosas de prata e dois medalhões de tecido escarlate e azul bordados a ouro com o brasão do príncipe. As varas das alabardas estavam cobertas de veludo escarlate preso com ganchos dourados e decorado com berloques de ouro. Formavam duas longas linhas, que fechavam os lados do cortejo, que iam da entrada do palácio até à beira da água. Foi então desdobrada no espaço aberto uma passadeira às riscas com as cores ouro e escarlate características dos atavios principescos. Isto terminado, soou lá de dentro um floreado de trompas. Um bonito prelúdio subiu ao ar, vindo dos músicos nas chalupas; e dois servidores com bastões brancos saíram do portão, a caminhar com passos lentos e solenes. Eram seguidos por um oficial que transportava o bastão da cidade, depois do qual veio outro com a espada da cidade; vinham então os sargentos da guarda municipal com o equipamento completo e com medalhões nas mangas; depois o grão-mestre da Jarreteira com a sua capa; depois vários cavaleiros da Ordem do Banho, com um laço branco na manga, seguidos pelos comendadores; depois os juizes, com as cabeleiras e capas escarlates; depois o Lord Chanceler de Inglaterra, numa túnica escarlate aberta à frente, debruada com pele de esquilo; uma comissão de regedores com as suas capas carmins e, por fim, os chefes das diferentes organizações civis com os seus trajes de cerimônia. Desceram então pelas escadas doze cavaleiros franceses esplendidamente ataviados com gibões de damasco branco com riscas douradas, capas curtas de brocado vermelho, forradas de veludo violeta e meias cor-de-carne; estavam no séquito do embaixador francês e seguiram-se-lhes doze cavaleiros do séquito do embaixador espanhol, vestidos de brocado negro sem adornos. Atrás destes estavam vários nobres ingleses com os seus validos. Ouviram-se as trombetas dentro do palácio; e o tio do príncipe, o futuro grande duque de Somerset, emergiu do portão ataviado com um gibão de brocado preto e uma capa de cetim escarlate floreado a ouro, com fitas de rede prateada. Virou-se, tirou o chapéu emplumado, dobrou o corpo numa profunda reverência e começou a andar para trás, inclinando-se a cada passo. Seguiu-se um prolongado toque de trombeta e ouviu-se uma proclamação: «Abram alas para o grande e poderoso Lord Edward, Príncipe de Gales!» Do alto das paredes do palácio subiu com estrondo uma longa fileira de línguas de fogo- a multidão no rio explodiu num poderoso som de boas-vindas; e Tom Canty, a causa e herói de tudo aquilo, apareceu à vista de todos e inclinou ligeiramente a sua principesca cabeça. Estava magnificamente metido num gibão de cetim branco, com o peitilho de brocado púrpura salpicado de diamantes e debruado de arminho. Sobre isto usava um manto de brocado branco, tecido com o brasão de três plumas, forrado de cetim azul, bordado com 29
pérolas e pedras preciosas e preso com uma fivela de brilhantes. À volta do pescoço pendia o colar da ordem da Jarreteira e diversas ordens principescas estrangeiras e qualquer luz que lhe tocasse provocava um brilho de cegar. O Tom Canty, nascido numa barraca, criado nas sarjetas de Londres, habituado a farrapos e suja miséria, que belo espetáculo este!
X O PRÍNCIPE EM APUROS
Tínhamos deixado John Carity a puxar o indignado príncipe para dentro de Offal Court, com uma turba barulhenta e deliciada nos calcanhares. Não houve uma única pessoa entre eles que oferecesse uma palavra de ajuda ao cativo e muito menos que o ajudasse; aliás, mal o ouviam, tal era a agitação. O príncipe continuou a lutar para se libertar e a enfurecer-se com o tratamento que recebia, até que, John Carity, num ataque de fúria, levantou o punho, pesado como um carvalho, sobre a sua cabeça. Um único aliado do miúdo deu um pulo para segurar a mão do homem e aparou a pancada com o pulso. Canty rosnou-lhe: - Meteste-vos, não vos metestes? Aí tendes a vossa recompensa! O seu punho abateu-se cobre a cabeça do intrometido; ouviu-se um grito, uma forma indistinta caiu entre os pés da multidão e, depois, ali ficou sozinha no chão. A turba continuou o seu divertimento, nada perturbada por este episódio. A seguir, o príncipe viu-se na casa de John Carity, com a porta fechada para afastar os intrusos. Na fraca luz de uma vela de sebo, espetada numa garrafa, conseguiu ver as formas do terrível antro e dos seus ocupantes. Duas miúdas sombrias e uma mulher de meia-idade encostavam-se num canto contra a parede, com a atitude de animais habituados a maus tratos, com a espectativa e o medo de apanhar outra vez. Num outro canto encostava-se uma bruxa velha de cabelos brancos e olhos cruéis. John Carity virouse para esta última: - Esperai! Temos aqui uma boa palhaçada. Não a estragai sem a apreciar primeiro; depois deixai a vossa mão ser tão pesada quanto queirais. Vem cá rapaz. Agora falai da vossa loucura outra vez, se não vos esquecestes. Dizer o vosso nome. Quem sois vós? O sangue ofendido subiu mais uma vez às bochechas do pequeno príncipe, que levantou os olhos firmes e indignados até ao rosto do homem e disse-lhe: - É muito má educação da vossa parte dar-me ordens. Digo-vos agora, como vos disse antes, que sou Edward, Príncipe de Gales, e ninguém mais. Perante esta resposta, uma surpresa atordoante pregou a bruxa ao chão e ela ali ficou quase sem respirar. Olhou para o príncipe com um assombro estúpido, a que o rufião do filho achou tanta graça que rompeu numa estrondosa gargalhada. Mas o efeito na mãe e 30
irmãs de Tom Carity foi diferente. O seu medo de violência física foi substituído imediatamente por um receio de outro tipo. Correram para ele com dor e tristeza nos rostos, exclamando: - Oh, pobre Tom, pobre menino! A mãe caiu de joelhos à frente do príncipe, pôs-lhe as mãos nos ombros e olhou com insistência para o seu rosto, através de lágrimas crescentes. Disse-lhe então: - Ó meu pobre menino! Essas leituras loucas fizeram finalmente o seu trabalho e tiraram-vos o juízo. Ah, porque é que vos agarrastes a elas quando tanto vos avisei? Partis o coração da vossa mãe. - O príncipe olhou-a no rosto e disse delicadamente: - O vosso filho está bem e não perdeu o juízo, boa senhora. Confortai-vos: levai-me ao palácio onde ele está e imediatamente o rei, meu pai, o devolverá a vós. - O rei vosso pai! ó meu filho! Desdizei essas palavras. Chamai de volta a vossa pobre memória que vagueia. Olhai-me. Não sou eu a mãe que vos gerou e que vos ama? O príncipe abanou a cabeça e disse relutantemente: - Deus sabe quanto me custa acabrunhar o vosso coração- mas, na verdade, nunca antes olhei para o vosso rosto. A mulher deixou-se cair sentada no chão e, tapando os olhos com as mãos, começou a chorar e a soluçar de partir o coração. - Continuemos com o espetáculo! - gritou Carity. - Que é isso, Nan e Bet? Suas ordinárias sem maneiras! Quereis ficar de pé na presença do prícipe?já de joelhos, suas pobres nojentas, e prestem-lhe homenagem! Estas palavras foram seguidas de outra gargalhada cavalar. Timidamente, as miúdas começaram a interceder a favor do irmão; e Nan disse: - Pai, deveríeis era deixá-lo ir para a cama, pois o descanso e o sono curarão sua loucura: deixai, por favor. - Deixai, pai - disse Bet -, ele está mais cansado do que pode agüentar. Amanhã voltará a ser ele próprio, e pedirá com boa vontade e voltará para casa sem ser de mãos a abanar. Este comentário acalmou a alegria do pai e trouxe-lhe à cabeça os assuntos importantes. Virou-se zangado para o príncipe e disse-lhe: - Amanhã temos que pagar dois penníes àquele que é dono deste buraco; dois pennies, notai bem; todo esse dinheiro por meio ano de renda, ou então vamos daqui para fora. Mostrai o que juntastes com o vosso peditório de preguiçoso.
O príncipe disse-lhe: - Não me ofendeis com esses assuntos sórdidos. Digo-vos outra vez que sou o filho do rei. 31
Uma palmada sonora da enorme mão de Carity no ombro do príncipe atirou-o, cambaleante, nos braços da boa senhora Carity, que o abraçou encostado ao peito, para o proteger da chuva de murros e bofetadas. As meninas, assustadas, refugiaram-se no canto delas; mas a avó avançou com vontade, para ajudar o filho. O príncipe deu um pulo para longe da senhora Canty, exclamando: - Vós não sofrereis por mim, senhora. Deixai estes porcos fazer o que quiserem somente em mim. Este discurso enfureceu os porcos a tal ponto que se puseram ao trabalho sem perda de tempo. Os dois juntos deram uma boa tareia no rapaz e depois bateram nas meninas e na mãe por terem mostrado simpatia pela vítima. - Agora - disse Carity - para a cama, todos vós. O divertimento deixou-me cansado. Apagou-se a luz e a família recolheu-se. Assim que o ressonar do chefe da casa e da sua mãe mostrou que eles dormiam, as meninas arrastaram-se até onde estava o príncipe e cobriram-no carinhosamente com palha e trapos, para o proteger do frio; e a mãe também veio para ao pé dele, acariciou-lhe o cabelo a chorar, ao mesmo tempo que lhe murmurava ao ouvido palavras entrecortadas de compaixão e conforto. Também guardara um naco para ele comer; mas as dores do rapaz tinham-lhe tirado todo o apetite - pelo menos para côdeas escuras e sem sabor. Estava comovido pelo preço que ela tinha pago e a bravura que tinha mostrado para o defender, e ainda pela sua compaixão; agradeceu-lhe com palavras nobres e principescas e pediu-lhe que fosse para a cama e esquecesse as suas penas. E ainda acrescentou que o rei seu pai não deixaria que a sua leal ternura e zelo ficassem sem recompensa. Esta recaída da sua loucura» partiu-lhe outra vez o coração e apertou-o outra vez contra o peito antes de voltar para a cama, afogada em lágrimas. De manhã, deitada a pensar, começou a meter-se-lhe na cabeça a sensação de que havia neste rapaz alguma coisa que faltava em Tom Carity, louco ou são. Não conseguia descrever o que era, contudo, o seu perspicaz instinto maternal parecia detectá-lo e percebê-lo. E se o rapaz afinal não fosse o filho dela? Oh, que absurdo! Quase que se riu com a idéia, apesar das suas tristezas e problemas. De qualquer maneira, a impressão não a deixava, nem ela queria afastá-la ou ignorá-la. Por fim, percebeu que não teria paz enquanto não achasse um teste que provasse, claramente e sem nenhuma dúvida, se aquele miúdo era ou não filho dela e, assim, eliminasse tão cansativos e preocupantes pensamentos. Mas era mais fácil dizer do que fazer. Ficou a pensar em muitos testes que pareciam prometedores, mas nenhum era absolutamente seguro. Evidentemente que estava a dar voltas à cabeça em vão. Quando este pensamento deprimente lhe passava pela mente, o ouvido captou a respiração regular do rapaz e percebeu que ele tinha adormecido. E enquanto prestava atenção, o respirar ritmado era interrompido por um grito baixo e nervoso, como acontece com as pessoas num sonho agitado. Imediatamente, meteu-se nervosamente ao trabalho de acender a vela, sem fazer barulho e a murmurar consigo própria: «Já deveria saber, não o tivesse visto nessa altura! Desde esse dia, quando a pólvora explodiu no seu rosto, que ele nunca mais deixou de acordar dos seus sonhos ou pensamentos sem deixar de colocar as mãos à frente dos 32
olhos, tal como fez nesse dia, e como nenhum outro o faria, não com as palmas viradas para dentro, mas sempre com as palmas para fora; já vi cem vezes e nunca variou nem nunca falhou. Sim, vou saber agora mesmo!» Assim se arrastou até ao pé do rapaz adormecido, com a vela tapada. Inclinou-se sobre ele com todo o cuidado, mal respirando na sua excitação contida, e, de repente, iluminou-lhe o rosto, enquanto batia com os nós dos dedos no chão, ao lado da sua cabeça. Os olhos do adormecido abriram-se completamente e olhou com surpresa à sua volta - mas não fez nenhum movimento especial com as mãos. A pobre mulher quase desmaiou de surpresa e dor; mas conseguiu esconder as suas emoções e embalar o rapaz até que dormisse outra vez; depois, afastou-se e ficou tristemente a falar consigo própria sobre o desastroso resultado da experiência. Tentou convencer-se de que a loucura de Tom tinha abolido este seu gesto habitual; mas não conseguiu. «Não», dizia, «as suas mãos não estão loucas, não poderiam desaprender um hábito tão antigo em tão curto espaço de tempo. Oh, que dia complicado que eu tive!» Mesmo assim não conseguia levar-se a aceitar o veredito do seu teste; portanto, acordou o rapaz uma segunda vez e depois uma terceira - com os mesmos resultados do primeiro teste -, até que caiu no sono, consternada, a dizer: «Mas não posso abandoná-lo oh, não, não posso, não posso - ele tem que ser o meu menino!» Terminadas as interrupções da pobre mãe, e as dores do príncipe tendo perdido gradualmente o poder de o perturbar, o cansaço por fim selou-lhe os olhos num sono profundo e descansado. As horas passavam e ele continuava a dormir como um defunto. Depois, a letargia começou a passar. Em seguida, semiadormecido e semiacordado, murmurou: - Sir William! Momentos depois: - Oh, Sir William Herbert! Aproximai-vos e escutai o sonho mais estranho que alguma vez... Sir William! Onde estais? Homem, pensei que me tinha transformado num pobre e... Eh aí! Guardas! Sir William! - Como vos sentis? - perguntou um sussurro ao pé dele. - Quem estais a chamar? - Sir William Herbert. Quem sois vós? - Eu? Quem poderia ser senão a vossa irmã Nan? Oh Tom, tinha-me esquecido! Pobre rapaz, ainda estais louco, que jamais eu acordasse para sabê-lo outra vez! Mas, por favor, segurai a vossa língua, ou apanharemos todos até morrer. O príncipe, surpreendido, quase que se levantou, mas uma lembrança forte das suas feridas pisadas trouxe-o à realidade e deixou-se cair no meio da palha fedorenta com um suspiro: - Ai de mim, então não era um sonho!
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Num instante toda a pesada pena e tristeza que o sono eliminara tinham voltado a cair em cima dele e percebeu que não mais era um príncipe mimado num palácio, mas um pobre, vestido de farrapos, no meio de pedintes e ladrões. No momento seguinte ouviram-se algumas pancadas na porta; John Carity parou de ressonar e gritou: - Quem bate? O que quereis? Uma voz respondeu: - Sabeis quem é aquele a quem destes um murro? - Não. Nem sei nem me interessa. - Talvez mudeis de opinião depois de saber isto; se quiserdes salvar o pescoço, nada além da fuga vos pode valer. O homem está neste momento a entregar a sua alma. É o cura, o padre Andrew! - Deus tenha misericórdia! - exclamou Carity. Acordou a família e deu as ordens com brusquidão. - Todos de pé a voar; ou ficamos e podeis apostar que perecemos! Nem tinham passado cinco minutos e a família Canty estava toda em fuga pelas suas vidas. John Carity arrastava o príncipe pelas ruas escuras, segurando-o pelo pulso e avisando-o em voz baixa: - Cuidado com a língua, meu louco varrido, e não faleis o nosso nome. Escolherei um novo nome, bem depressa, para tirar os cães da lei do nosso rasto. Cuidado com a língua, digo-vos! Para o resto da família rosnou estas palavras: - Se por acaso nos separarmos, que cada um vá ter à ponte de Londres; quem chegar primeiro até à última loja de roupas da ponte que espere até que os outros cheguem, depois iremos juntos para Southwark. De repente, o grupo saiu da escuridão e caiu na luz e no meio de uma multidão de pessoas que cantavam, dançavam e gritavam, amontoadas na margem do rio. Havia uma fila de fogueiras até onde os olhos podiam alcançar, para cima e para baixo do Tamisa; a torre de Londres estava iluminada e a ponte de Southwark também; o rio inteiro brilhava com o clarão de belas e coloridas luzes; contínuas explosões de fogo-de-artificio enchiam o céu com uma mistura intrincada de explosões esplendorosas e uma pesada chuva de faíscas estonteantes que quase transformavam a noite em dia por toda a parte havia multidões de foliões e Londres parecia estar toda na rua. John Canty soltou uma imprecação furiosa e ordenou a retirada; mas era tarde demais. Num istante ele e a sua tribo estavam separados, sem hipótese de se juntarem outra vez. Não estamos a considerar o príncipe como a fazer parte da tribo; Canty continuava a segurá-lo. O coração do príncipe batia fortemente, com uma grande esperança de poder escapar agora. Um corpulento barqueiro, bastante excitado com o álcool, viu-se rudemente empurrado por Carity, nos seus esforços de passar pela multidão; colocou a sua mão enorme no ombro dele e disse-lhe: 34
- Onde ides tão depressa, meu amigo? Sujas a tua alma com afazeres sórdidos, enquanto todos os que são leais e verdadeiros estão de folga? - Os meus afazeres são meus e não vos dizem respeito - respondeu Carity, com brutalidade. - Retirai a vossa mão e deixai-me passar. - Se esse é o vosso humor não passareis enquanto não tiverdes bebido em honra do Príncipe de Gales, isso vos digo eu - respondeu-lhe o barqueiro, impedindo resolutamente o caminho. - Dai-me uma taça então, mas apressai-vos, apressai-vos! Nessa altura já havia outros foliões interessados. Gritaram: - A taça da amizade! Fazei o patife mal disposto beber pela taça da amizade, ou então dá-lo-emos a comer aos peixes. Foi então trazida uma enorme taça; o barqueiro, agarrando-a por uma das alças, apresentou-a a Canty como era costume, e este teve que agarrar a alça do outro lado, com uma das mãos, e tirar a tampa com a outra, conforme uma velha tradição. Evidentemente que isto deixou o príncipe com as mãos livres por um momento. Não perdeu tempo, mergulhou na floresta de pernas à sua volta e desapareceu. No momento seguinte seria mais difícil encontrá-lo debaixo daquele agitado mar de gente do que procurar uma moeda no meio do Atlântico. Depressa o príncipe percebeu este fato e imediatamente ocupou-se com os seus problemas, sem pensar mais em John Carity. Também depressa percebeu uma outra coisa, que a cidade festejava um falso Príncipe de Gales no seu lugar. Concluiu logo que o pobre miúdo, John Carity, tinha deliberadamente aproveitado a estupenda oportunidade e se tornado um usurpador. Portanto, só havia uma rota a seguir - encontrar o caminho para Guildhall, fazer-se reconhecer e denunciar o impostor. Também decidiu que a Tom deveria ser permitido um tempo razoável de preparação espiritual, para depois ser enforcado, afogado e esquartejado, como era a lei e o uso do tempo em casos de alta traição.
XI EM GUILDHALL A barcaça real, rodeada por uma maravilhosa flotilha, começou o seu percurso triunfal pelo Tamisa abaixo, no meio de uma floresta de barcos iluminados. O ar estava repleto de música; as margens do rio viam-se salpicadas de luzes; à distância, a cidade estendia-se a perder de vista, emanando um brilho suave das suas inúmeras fogueiras; sobre a cidadela subiam ao céu muitas espirais de fumo incrustadas com luzes cintilantes, como se fossem lanças cobertas de brilhantes atiradas ao ar; à medida que a flotilha passava, era saudada das margens com o ruído dos vivas e os incessantes clarões e estrondos da artilharia.
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Para Tom Canty, semienterrado, em almofadas de seda, estes sons e o espetáculo todo eram uma maravilha impressionante e indizivelmente sublime. Para as pequenas amigas ao seu lado, a princesa Elizabeth e LadyJane Grey, não era nada de especial. Chegada a Dowgate, a flotilha foi rebocada até Bucklersbury pelo límpido Walbrook, cujo canal está agora enterrado há séculos sob acres de prédios, passando por casas e pontes pejadas de foliões e brilhantemente iluminadas, até por fim parar num lago onde agora é Barge Yard, no centro da antiga cidade de Londres. Tom desembarcou, ele e a sua galante procissão atravessaram Cheapside e percorreram o curto caminho para o Guildhall, através da velha judiaria e da Rua Bassinghall. Tom e as suas pequenas acompanhantes foram recebidos com a devida cerimônia pelo alcaide e pelo conselho dos anciãos, com as suas correntes douradas e túnicas escarlates de cerimônia, e conduzido para uma rica banqueta oficial no topo do grande salão, precedido por arautos, que liam uma proclamação, e pelo bastão e espada da cidade. As damas e cavaleiros que deviam ficar ao pé de Tom tomaram os seus lugares atrás das cadeiras. Numa mesa mais baixa sentavam-se os grandes da corte e outros convidados de alta estirpe, com os magnatas da cidade; os cidadãos comuns tomaram os seus lugares numa multitude de mesas na pista do salão. Da sua altura imponente, os gigantes Gog e Magog, ancestrais guardiões da cidade, contemplavam o espetáculo aos seus pés, com os olhos de quem há gerações esquecidas se habituou a tais coisas. Ouviu-se um toque de corneta e uma proclamação, e um mordomo gordo apareceu numa plataforma na parede da esquerda, seguido pelo seus servidores, que transportavam, com impressionante solenidade, uma real peça de carne, a fumegar de quente e pronta para a faca. Depois da ação de graças, Tom, tendo sido previamente instruído, levantou-se - e toda a assembléia juntamente com ele - e bebeu de uma imponente taça com a princesa Elisabeth; dela, a taça passou para Lady Jane e depois para as outras pessoas. Assim começou o banquete. Por volta da meia-noite, a animação estava no máximo e desenrolavam-se todos os espetáculos pitorescos que eram tão apreciados nesses tempos. Ainda existe uma descrição desta festa, escrita em estilo singular por um cronista que a presenciou. Abriam-se alas e entraram um barão e um conde, vestidos de turquesa, com grandes túnicas de brocado dourado. Usavam chapéus de brocado escarlate, bordados com florões de ouro, e umas bonitas espadas chamadas cimitarras, penduradas em enormes bandas. Eram seguidos por outro barão e outro conde, com longas túnicas de riscas amarelas e brancas e ainda uma risca vermelha sobre as brancas, à moda russa, com chapéus de pele de esquilo. Usavam botas com as biqueiras compridas e enroladas para cima e tinham na mão um pequeno machado. Seguia-se um cavaleiro e depois, o Lord Grande Almirante, acompanhado de cinco fidalgos com gibões de brocado escarlate, todos abertos à frente e atrás e atados com correntes de prata, tendo sobre os ombros uma capa curta carmim e na cabeça chapéus ao estilo dos bailarinos, com uma pluma de faisão. Este era o modelo prussiano. Vinham, depois, cinco portadores de tochas, vestidos de carmim e verde como os mouros, com as feições pintadas de escuro. Vinha depois um morno e os menestréis a 36
dançar, mascarados; e também as damas e cavaleiros, com tanta alegria que dava gosto vê-los. Tom olhava para os que dançavam do alto da sua cadeira, perdido na admiração do estont estonteant eantee carnav carnaval al de cores cores caleido caleidoscó scópic picas as formad formado o pela pela confus confusão ão rodopi rodopiant antee das criaturas lá em baixo. Enquanto isso, o esfarrapado, porém verdadeiro principezinho de Gales, proclamava os seus direitos e as suas penas, denunciando o impostor e exigindo entr entrad adaa nos nos port portõe õess de Guild Guildhal hall! l! A multi multidã dão o apre apreci ciav avaa imen imensa samen mente te o episó episódi dio o e comprimia-se com o pescoço esticado para ver o pequeno provocador. A seguir começaram a troçar dele e a provocá-lo, para que entrasse numa fúria maior e ainda mais divertida. Lágrimas de desespero saíam-lhe dos olhos, mas agüentou-se e desafiou a turba com nobrez nobreza. a. Outras Outras provoc provocaç ações ões se seguir seguiram, am, mais mais brincad brincadeira eirass o espica espicaçar çaram am e então então exclamou: - Digo-vos de novo, manada de patifes sem maneiras, que sou o Príncipe de Gales! E por mais isolado e sozinho que esteja, sem ninguém que me creia ou me ajude na necessidade, não deixarei que me vençam e mantenho o que digo! - Sejais vós príncipe ou não é tudo o mesmo; tendes coragem e também não é um amigo que vos falta! Aqui estou do vosso lado para o provar; e faço questão de vos dizer que não poderíeis ter um pior amigo do que Miles Hendon, mesmo que nem vos cansásseis a procurar. procurar. Descansai Descansai o vosso pequeno queixo, meu filho, pois falo a língua destes baixos ratos de canil como se fosse um deles. O que assim dizia era uma espécie de Don Caesar de Bazan na roupa, aspecto e atitude. Era alto, magro e musculoso. O gibão e as calças eram de tecidos caros, mas desbotados e esgaçados, e os adornos de laço dourado estavam tristemente manchados; a gola estava amachucada e estragada; a pluma do chapéu de abas largas partira-se e ficara com um aspecto sujo e vergonhoso; trazia na cintura uma espada longa numa bainha de ferro ferro enferr enferruja ujado; do; pela maneira maneira como como se porta portava va via-se via-se imediata imediatamen mente te que era um espadachim habituado a disputas. O discurso desta figura fantástica foi recebido com uma explosão de apupos e gargalhadas. Gritavam: «Este é outro príncipe disfarçado!», «Cuidado com a língua, amigo, que este parece perigoso! », «Bolas, parece mesmo - olhai para aqueles olhos!», «Afastem o miúdo dele - atirem o bebê para o bebedouro de cavalos!» Imediatamente uma mão agarrou o príncipe, impulsionada pela boa idéia; no mesmo instante, a espada do desconhecido estava desembainhada e o atacante foi atirado ao chão com uma sonora vergastada das costas da lâmina. No momento seguinte uma série de vozes gritou «Matem o cachorro! Matem-no! matem-no!,, e a turba fechou-se à volta do guerreiro, que se encostou a um muro e começou a dar espadeiradas. As vítimas caíam para todos os lados, mas a onda da multidão passava por cima das suas formas prostradas e atirava-se ao campeão cada vez com mais fúria. Os seus momentos pareciam contados, quando de repente soou uma trombeta e uma voz gritou: «Passagem para o mensageiro do rei!» e um grupo de cavaleiros cavaleiros veio a galope contra a multidão, que fugia o mais depressa depressa que as pernas permitiam. O descarado desconhecido agarrou o príncipe e depressa estavam longe do perigo e da multidão. 37
Voltemos a Guildhall. De repente, muito mais alto do que o ruído alegre da festa, ouviu-se o som claro de uma trompa. O silêncio foi imediato - uma profunda agitação; e então ouviu-se a voz do mensageiro do palácio começou a fazer uma proclamação, com toda a gente de pé a ouvir. As palavras finais, pronunciadas com solenidade, foram: - O rei está morto! A enorme audiência inclinou a cabeça sobre o peito, de uma só vez; manteve-se assim, em profundo silêncio, por uns momentos; depois todos ajoelharam, como um único corpo, estenderam os braços na direção de Tom e um enorme som explodiu com tanta força que parecia sacudir o prédio: - Longa vida ao rei! Os olhos ofuscados do pobre Tom percorreram este espetáculo impressionante até se deterem, sonhadores, nas princesas que se ajoelhavam ao seu lado e, depois, no conde de Hertford. Uma súbita vontade criou vida no seu rosto. Falou baixo ao ouvido de Lord Hertford: - Dizei-me com toda a verdade, pela vossa fé e honra! Desse eu agora uma ordem, que a ninguém exceto ao rei é permitido dar, seria essa ordem obedecida e ninguém se levantaria para a contrariar? - Ninguém, meu senhor, em todos estes reinos. Vós sois o rei e a vossa palavra é lei. Muito entusiasmado, Tom respondeu com uma voz forte e decidida: - Então que a partir de hoje a lei do rei seja a lei do perdão e que nunca mais seja a do sangue! Levantai-vos e parti! Ide à Torre e dizei-lhes que o rei decreta que o duque de NorfoIk não deve morrer! Estas palavras foram ouvidas e comunicadas rapidamente, de boca em boca, a todos os recantos do salão, e enquanto Hertford saía a correr, outro prodigioso grito fez-se ouvir: - O reino de sangue acabou! Longa vida a Edward, rei de Inglaterra!
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XII O PRÍNCIPE E O SEU SALVADOR
Assim que Miles Hendon e o pequeno príncipe se conseguiram ver livres da turba, mete metera ramm-se se por por viel vielas as e ruas ruas secu secund ndár ária iass em dire direçã ção o ao rio. rio. O cami caminh nho o esta estava va desimp desimpedid edido o até chegarem chegarem à Torre Torre de Londre Londres; s; lá voltara voltaram m a mergulh mergulhar ar no meio meio da multidão, Hendon segurando com força o pulso do príncipe, não, do rei. As espantosas novidades já tinham chegado cá fora e o rapaz soube, por mil vozes que falavam ao mesmo tempo: «O rei morreu!» morreu!» As novidades deram um frio no coração coração do pobre e desamparad desamparado o pequeno. Ficou cheio de amarga tristeza, pois o negro tirano que sempre fora de tamanho terr terror or para para os outro outros, s, tinh tinhaa sido sido tern terno o com com ele. ele. As lágr lágrima imass saía saíam-l m-lhe he dos dos olhos olhos e desfocavam todas as coisas. Por momentos sentiu-se o mais abandonado, perseguido e esquecido de todas as criaturas - quando outro grito agitou a noite com o seu trovão long longínq ínquo uo:: «Lon «Longa ga vida vida ao rei Edwa Edward rd,, o VI!» VI!» e esse esse fez fez os seus seus olho olhoss brilh brilhar arem em e encheram-no de orgulho até às pontas dos dedos. «Ah», pensou, «como parece grandioso e estranho - EU SOU O REP» Os nossos amigos ziguezagueavam devagar entra a multidão que andava pela ponte. Esta estrutura, estrutura, que se mantinha de pé há mais de seiscentos seiscentos anos, sempre como uma rua baru barulhe lhenta nta e popu populos losa, a, era era uma uma obra obra intere interess ssan ante, te, pois pois tinha tinha uma uma dens densaa fileir fileiraa de armazéns e lojas apertados uns contra os outros, com as casas das famílias por cima, espalhados pelos dois lados da ponte, de uma margem até à outra. A ponte sozinha era uma espécie de vila; tinha a sua estalagem, cervejarias, padarias, retroseiros, mercearias, manufaturas e até uma igreja. Olhava para as duas vizinhanças que ligava entre si Londres e Southwark - como se fossem apenas subúrbios e nada mais importante do que isso. Era uma confraria fechada, por assim dizer: uma vila estreita de uma única rua com trezentos metros, a sua população não era maior do que a de uma aldeia. Toda a gente conhecia conhecia intimamente os seus vizinhos, vizinhos, como tinha conhecido conhecido os seus pais e os pais antes deles - e também todos os assuntos familiares. Tinha a sua aristocracia, evidentemente as suas finas e antigas famílias de talhantes, padeiros e sei lá quem mais, que ocupavam as mesmas velhas instalações há quinhentos ou seiscentos anos, e conheciam a grande história da ponte do princípio ao fim, com todas as suas lendas estranhas: todos ali falavam falavam sempre à maneira maneira da ponte, pensavam pensavam como se pensava na ponte, e tinham uma mane maneir iraa de ment mentir ir dire direta ta,, desc descar arad ada, a, típi típica ca da pont ponte. e. Nã Não o podi podiam am deix deixar ar de ser ser mesquin mesquinhos hos,, ignora ignorantes ntes e sujos. sujos. As crianç crianças as nasciam nasciam na ponte ponte lá eram eram educad educadas, as, lá envelheciam e, finalmente, lá morriam sem ter posto os pés noutro lugar do mundo que não fosse a ponte de Londres. Era natural que pensassem que a interminável procissão que passava pela sua rua noite e dia, com o ruído confuso de vozes e gritos, os relinchos e as ferraduras dos cavalos, era a coisa mais importante do mundo - e de fato era, assim que pensavam os habitantes da ponte, e era nisso que acreditavam os seus comerciantes. E tinham razão - ou pelo menos podiam achá-lo do alto das suas janelas janelas -, pois sempre que
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um rei ou herói triunfante dava motivo para grandes festas, não havia sítio como aquele para contemplar à vontade e sem parar a multidão que passava. Os homens nascidos e educados na ponte não conseguiam viver em mais sítio nenhum. A história fala-nos de um deles, que saiu da ponte e se retirou para o campo com a idade de setenta e um anos. Não conseguia viver descansado, andava sempre enervado e, à noite, dava voltas na cama sem conseguir dormir, pois a profunda paz do campo parecia-lhe penosa, horrível e opressiva. Farto de tal suplício, dizem que voltou para a ponte transformado num esqueleto, emaciado e arredio, para se entregar ao repouso e a agradáveis sonhos proporcionados pela música das águas agitadas e do bulício estrepidante da multidão na ponte de Londres. Nos tempos sobre os quais estamos a escrever, a ponte podia oferecer às suas crianças aulas sobre a História de Inglaterra - nomeadamente as lívidas e decompostas cabeças de homens famosos que ficavam espetadas em lanças no topo das entradas. Mas estamos a desviar-nos. O quarto de Hendon era na pequena estalagem da ponte. Quando se aproximava da porta com o seu pequeno amigo, uma voz grossa disse: - Finalmente viestes! Não escaparás de novo, essa vos garanto; e se dar-vos nos ossos até que fiquem uma massa vos ensinar alguma coisa, ides aprender a não nos fazerdes esperar outra vez - e John Carity estendeu o braço para agarrar o rapaz. Miles Hendon pôs-se à frente e disse-lhe: - Não tão depressa, amigo. Estou a achar-vos demasiado rude. O que é que é a vós o rapaz? - Se é vosso interesse meter-vos nos assuntos dos outros, sabei que é meu filho. - É mentira! - gritou com calor o pequeno rei. - Assim por alto acredito em vós, quer a vossa cabeça esteja sã ou partida, meu rapaz. Mas quanto a este rufião nojento, seja vosso pai ou não, não tem o direito de vos bater e fazer mal, portanto deveis preferir ficar comigo. - Prefiro, prefiro; não o conheço, desprezo, e prefiro morrer a ir com ele. - Já vamos ver isso! - exclamou John Carity, passando por Hendon para agarrar o rapaz. Se for preciso força... - Se vos atreverdes a tocar-lhe, ó monte de esterco animado, espeto-vos como um ganso! - disse Hendon, atravessando-se no caminho com a mão no punho da espada. Carity recuou. - Agora tomai nota - continuou Hendon. - Tomei este miúdo sob a minha proteção quando uma turba de pessoas como vós o iam maltratar, talvez matá-lo; não imaginais que o vou entregar agora a um destino ainda pior? Pois quer sejais o seu pai quer não - e, lamento dizê-lo, mas parece-me uma mentira -, uma morte rápida e decente seria melhor para o garoto do que a vida numas mãos brutais como as vossas. Portanto, ide à vossa
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vida, e ide depressa, pois não gosto de muitas palavras, não sendo de natureza muito paciente. John Carity afastou-se a murmurar ameaças e maldições e desapareceu da vista no meio da multidão. Hendon subiu os três lances de escadas até ao quarto levando a sua carga, depois de ter mandado que fosse servida uma refeição lá em cima. Era um quarto pobre com uma cama miserável e bocados de mobília velha, vagamente iluminado por um par de velas. O pequeno rei arrastou-se para a cama e deitou-se, exausto de fome e fadiga. Estivera a pé todo o dia e grande parte da noite, pois agora eram duas ou três horas da manhã e não tinha comido nada entretanto. Murmurou semiadormecido: - Por favor, chamai-me quando a mesa estiver posta - e caiu imediatamente num sono profundo. Um sorriso brilhou nos olhos de Hendon e disse consigo mesmo: «Por Deus, este pequeno mendigo não cede a ninguém e usurpa a cama de uma pessoa com uma graça tão fácil e natural que até parece que é dele» sem nem sequer um se-faz-favor ou alguma coisa parecida. Nos seus ataques doentios chamou-se a si próprio Príncipe de Gales e agüentou esse papel com bravura. Pobre rato sem amigos, com certeza que a sua mente se estragou com as sevicias que sofreu. Bem, serei seu amigo; salvei-o e isso aproximou-me bastante dele; já estou a gostar muito deste pequeno malandro sem papas na língua. Como parecia um soldado a enfrentar aquela escumalha porca e como os desafiou cara a cara! E como tem um rosto gracioso, doce e gentil, agora que o sono afastou os seus problemas e dores! Ensiná-lo-ei e curarei a sua doença; sim, serei como o seu irmão mais velho e tomarei conta dele; e quem o humilhar ou magoar pode encomendar a mortalha, pois a minha fúria fará com que precise dela! Inclinou-se sobre o rapaz e contemplou-o com carinho e pena, dando-lhe palmadinhas meigas nas bochechas e alisando-lhe os caracóis desgrenhados com a enorme mão escura. Um arrepio passou pelo corpo do garoto. Hendon murmurou: «Que falta de idéia deixá-lo aqui deitado sem cobertura, para poder apanhar fluidos fatais. O que é que devo fazer? Talvez acordá-lo e metê-lo dentro da cama, pois precisa bastante de dormir.,, Olhou em volta à procura de alguma coisa que servisse de manta, mas, não encontrando nada, tirou o gibão e embrulhou-o no rapaz, dizendo: «O frio não me incomoda nem um bocadinho» e depois pôs-se a andar pelo quarto de um lado para o outro, para manter o sangue em movimento, enquanto continuava o seu monólogo: - A sua mente ferida convenceu-o que é o Príncipe de Gales; é estranho ter ainda aqui um Príncipe de Gales, agora que aquele que era o príncipe não o é mais, mas sim rei; más esta pobre cabeça está fixada nessa fantasia e não vai perceber que agora deveria abandonar o príncipe e chamar-se rei... Se o meu pai agora ainda estiver vivo, depois de eu ter passado sete anos sem saber nada de casa, metido na minha masmorra estrangeira, vai receber o pobre garoto e dar-lhe generoso abrigo, só por minha causa; assim fará também o meu bom irmão mais velho, Arthur; o meu outro irmão, Hugh - vou partir-lhe a coroa se interferir, esse animal mal treinado, com coração de raposa! Sim, assim é que vamos resolver o assunto, e o mais depressa possível...
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O criado entrou com uma refeição fumegante, colocou-a numa pequena mesa, arrumou as cadeiras e foi-se embora, deixando uns hóspedes baratos como estes para que se servissem a eles próprios. Bateu com a porta e o ruído acordou o rapaz, que se sentou direito e deu uma boa olhadela à volta; então o seu rosto mostrou-se preocupado e murmurou para si: «Al de mim, foi apenas um sonho. A desdita está comigo.,, A seguir, reparou no gibão de Miles Hendon - dele os seus olhos foram para Hendon, percebeu o sacrifício que fora feito por ele e disse docemente: - Vós sois bom comigo, sim, muito bom para mim. Tomai-o e vesti-o; não precisarei mais dele. Depois levantou-se e foi até ao lavatório no canto e lá ficou à espera. Hendon disselhe com voz alegre: - Temos aqui uma bela sopa substancial e um bom naco, tudo saboroso e bem quente; e a refeição e o sono juntos farão de vós um homem novo; nada tendes a recear! O rapaz não respondeu, mas olhou o cavaleiro com uma insistência cheia de sisuda surpresa, misturada com alguma impaciência. Hendon ficou sem perceber e perguntou-lhe: - O que vos falta? - Bom senhor, desejo lavar-me. - Ah, é só isso! Não precisais de pedir permissão a Miles Hendon para fazerdes o que vos aprouver. Sede bem-vindo e ficai à vontade de usar tudo o que aqui está. Mas o rapaz continuou de pé sem se mexer; mais, começou a bater no chão uma ou duas vezes com o seu pezinho impaciente. Hendon estava totalmente perplexo. Disse-lhe: - Deus nos abençoe, o que é agora? - Por favor deitai a água e falai menos! Hendon, contendo uma boa gargalhada e dizendo consigo «Por todos os santos, isto é fantástico!», deu um passo em frente e fez o que o pequeno insolente lhe pedia; depois ficou ali, semiestupefato, até que a ordem «Vamos, a toalha!», o acordou. Pegou numa toalha que estava mesmo à frente do rapaz e entregou-lha, sem fazer comentários. A seguir começou a lavar o seu próprio rosto, enquanto o seu filho adotivo se sentava à mesa e se preparava para comer. Hendon puxou a outra cadeira e ia sentar-se à mesa, quando o rapaz lhe disse, indignado: - Alto lá! Ide-vos sentar na presença do rei? Este golpe deixou Hendon abismado. Murmurou para si: «Ai, a loucura do pobre pequeno parece que aumenta à medida que o tempo passa! Mudou com a grande mudança que houve no reino e agora acha que é o rei! Ora bolas, tenho que aceitá-lo asssim, não há outra maneira não vá ele mandar-me para a Torre!» E, achando a brincadeira divertida, retirou a cadeira da mesa, colocou-se em pé atrás do rei e começou a servi-lo da maneira mais cortês de que era capaz. Enquanto o rei comia, a firmeza da sua dignidade real descontraiu-se um pouco e com o seu crescente contentamento veio o desejo de falar. Disse: 42
- Acho que vos chamais Miles Hendon, se vos ouvi como deve de ser. - Sim, sire ( 1) - respondeu Miles; e pensou consigo: «Se é que devo aceitar a loucura do pobre miúdo, então tenho que o tratar por sire e por majestade, não posso ficar pela metade.» O rei aqueceu o coração com um segundo copo de vinho e disse: - Não vos conheço; contai-me a vossa história. Tendes uma nobre e galante atitude; nascestes fidalgo? - Pertencemos à pequena nobreza, saiba vossa majestade. O meu pai é baronete; Sir Richard Hendon, de Hendon HalI, perto de Monk's Holm, no condado de Kent. - Não me lembro desse nome. Continuai; contai-me a vossa história. - Não é muito, vossa majestade, mas talvez dê para uma curta meia-hora, há falta de melhor do que fazer. o meu pai, Sir Richard, é muito rico e de natureza muito generosa. A minha mãe morreu quando eu ainda era pequeno. Tenho dois irmãos; Arthur, o mais velho, com uma alma igual à do meu pai; e Hugh, mais novo do que eu, um espírito maligno, invejoso, traiçoeiro, vicioso, fraco - um réptil. É assim desde o berço; assim era há dez anos, quando o vi pela última vez - um malandro amadurecido aos dezanove anos, quando eu tinha vinte e Arthur vinte e dois. Não há mais ninguém na família além de Lady Edith, a minha prima - que na altura tinha dezasseis anos -, bonita, gentil, boa, filha de um conde, a última de sua raça, herdeira de uma grande fortuna e de um título caducado. O meu pai era o seu tutor. Amava-a e ela amava-me; mas estava prometida a Arthur desde o berço e Sir Richard não aceitaria que o contrato não fosse cumprido. Arthur amava outra dama e tinha esperanças de que os atrasos e a sorte se juntassem para um dia dar a vitória às nossas diferentes causas. Hugh queria a fortuna de Lady Edith, embora dissesse que era a ela que amava. Mas, tentou conquistá-la, em vão; conseguia enganar o meu pai, mas mais ninguém. Era dele que o meu pai gostava mais, acreditava e confiava nele; pois era o filho mais novo e tinha uma língua suave e insinuante, com a admirável qualidade da mentira. Fiquei furioso, na verdade posso ir um pouco mais longe e dizer muito furioso, se bem que era uma ira inofensiva, que não magoava mais ninguém além de mim próprio, nem trazia vergonha ou perda a quem quer que fosse, nem tinha em si algum germe de crime ou malfazer, nem era imprópria da minha condição de fidalgo. Contudo, o meu irmão Hugh soube aproveitar da minha ira a seu favor - vendo que o nosso irmão Arthur tinha uma saúde fraca, esperava que lhe acontecesse o pior para tirar beneficio, bastando que eu saísse do seu caminho. Depressa este irmão ampliou os meus defeitos até os transformar em crimes; e terminou o seu trabalho de sapa ao descobrir uma escada de corda no meu quarto - lá colocada por ele próprio- para depois, com ela e o testemunho de servos e outros malandros comprados, convencer o pai de que eu estava a preparar-me para raptar a minha Edith e casar com ela, em aberto desafio à sua vontade.
1 Tratamento dado outrora aos senhores feudais, e que se dá hoje a imperadores e reis, ao falar-lhes ou escrever-lhes
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Três anos de banimento de casa e de Inglaterra poderiam fazer de mim um soldado e um homem e ensinar-me algum grau de sabedoria, foi o que disse o meu pai; mas na última batalha fui feito prisioneiro e, desde então, envelheci e desgastei-me durante sete anos numa masmorra estrangeira. Com esperteza e coragem conquistei finalmente a liberdade e «voei,, diretamente para cá; mas mal acabei de chegar, pobre na bolsa e na aparência e ainda mais pobre no conhecimento do que estes sete tristes anos trouxeram a Hendon Hall e às suas pessoas e pertences. Portanto, senhor, para vosso prazer aqui fica contada a minha fraca história. - Fostes explorado de uma maneira vergonhosa! disse o pequeno rei, com os olhos a brilharem. - Mas eu vos compensarei; pela cruz, que o farei! São estas as palavras do rei. Então, inflamado pela história das desgraças de Miles, soltou a língua e contou a história das suas recentes desgraças, para grande surpresa do seu ouvinte. Quando acabou, Miles disse para si próprio: «Deus, que imaginação que ele tem! Verdadeiramente que esta cabeça não é vulgar- ou então, louca ou sã, não poderia tecer uma teia tão rendada. Pobre cabecinha arruinada, jamais deixará de ter amizade e abrigo enquanto eu estiver entre os vivos. Nunca deverá sair de perto de mim; será a minha mascote, o meu pequeno camarada. E há-de curar-se! E que orgulhoso que eu vou ficar quando disser Sim, ele é meu, recolhi-o quando era um pequeno vagabundo sem casa, mas vi o que havia nele, e sempre disse que o seu nome um dia seria famoso - reparem, observem-no - não estava certo?» O rei falou, numa voz pensada e calculada: - Vós me salvastes de injúrias e vergonha, talvez da morte, e assim salvaste a minha coroa. Tal serviço pede uma rica recompensa. Falai do vosso desejo e, se estiver dentro do meu real poder, será satisfeito. Esta fantástica sugestão tirou Hendon das suas divagações. Estava quase a agradecer ao rei e a esquecer-se do assunto, dizendo que tinha apenas cumprido o seu dever e não queria recompensa, quando uma melhor idéia lhe passou pela cabeça e pediu licença para ficar calado alguns momentos a fim de pensar na graciosa oferta - uma idéia que o rei aprovou gravemente, salientando que era melhor não ser precipitado quando se tratava de uma coisa de tal importância. Miles refletiu durante alguns momentos e depois disse a si próprio: «Sim, é o que devo fazer - foi um feliz acidente que eu não tivesse deixado esta oportunidade escapar.» Então ajoelhou num joelho e disse: - O meu pobre serviço não foi além do simples dever de um vassalo; mas, uma vez que vossa majestade o considera merecedor de alguma recompensa, atrevo-me a fazer uma petição. Há cerca de quatrocentos anos, como vossa graça sabe, havendo uma ruim disputa entre John, rei de Inglaterra, e o rei de França, foi decretado que dois campeões deveriam lutar e assim resolver o caso. Os dois reis reuniram-se com o rei de Espanha para testemunhar e julgar o conflito. Mas quando apareceu o campeão francês, era tão temível que os nossos cavaleiros ingleses se recusaram a medir forças com ele. Portanto, parecia que o assunto, que era de peso, se ia resolver contra a monarquia inglesa, por falta de comparência. Mas na Torre de Londres apodrecia, num longo cativeiro, o senhor de Courcy, 44
o mais poderoso cavaleiro inglês, despojado das suas honras e posses. Foi-lhe feito um apelo; acedeu e apresentou-se ataviado para a batalha; mas assim que o francês viu a sua enorme estatura e ouviu o nome famoso, fugiu da luta e a causa do rei francês perdeu. O rei John restaurou os títulos e as posses de Courcy e disse-lhe: «Falai o que desejais e têlo-eis, mesmo que me custe metade do reino»; e então de Courcy, ajoelhado como eu estou agora, respondeu: «Eis o que eu peço, meu senhor: que eu e os meus sucessores possam receber e conservar o privilégio de permanecer cobertos em frente dos reis de Inglaterra, daqui por diante, enquanto durar o trono.» Invocando este precedente a favor do meu pedido, rogo ao rei que me conceda apenas esta única graça e privilégio; que eu e os meus herdeiros, para sempre, possam sentar-se na presença de sua majestade de Inglaterra! - Levantai-vos Sir Miles Hendon, cavaleiro - disse o rei, com seriedade, dando o toque no ombro com a espada de Hendon -, levantai-vos e sentai-vos. O pedido é concedido. Enquanto a Inglaterra existir e a coroa continuar, o privilégio não se extinguirá. Sua majestade afastou-se, meditativa, e Hendon sentou-se na cadeira ao lado da mesa, dizendo consigo: - Se não me tivesse lembrado disto teria que ficar de pé durante semanas, até que a cabeça do meu pobre miúdo se curasse.» E depois continuou a pensar: «E assim me tomei um cavaleiro do Reino dos Sonhos e das Sombras!» Uma situação bastante invulgar e estranha, na verdade, para uma pessoa tão terra-a-terra como eu. Não me vou rir, não, Deus proíba, pois esta coisa que é tão despida de substância para mim é real para ele. E para mim também não é uma falsidade, de certa maneira, pois reflete verdadeiramente o espírito doce e generoso que há dentro dele.
XIII O DESAPARECIMENTO DO PRÍNCIPE Logo a seguir, uma sonolência pesada abateu-se sobre os dois companheiros. O rei disse: - Removei estes farrapos - referindo-se às suas roupas. Hendon despiu o rapaz sem protestos nem comentários, meteu-o na cama e depois olhou à volta do quarto, dizendo para si, pesaroso: «Lá ocupou ele a minha cama, como antes; bolas, o que é que eu posso fazer?» O pequeno rei reparou na sua perplexidade e dissipou-a com estas palavras ensonadas: - Vós dormireis em frente da porta e guardá-la-eis. - Logo a seguir caiu num sono profundo, longe das suas provações. - Pelo amor de Deus, ele devia ter nascido rei - murmurou Hendon com admiração -, fez o papel maravilhosamente! Depois esticou-se no chão, atravessado em frente da porta, dizendo satisfeito:
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- Já dormi pior nestes sete anos; seria uma ingratidão com Aquele que está lá em cima queixar-me disto. Adormeceu na altura em que a aurora nascia. Acordou à volta do meio-dia, destapou o seu inconsciente protegido - uma seção de cada vez - e tomou-lhe as medidas com um cordel. O rei acordou a queixar-se do frio, mesmo na altura em que tinha acabado, e perguntou-lhe o que é que estava a fazer. - Já fiz, meu senhor - disse Hendon -, tenho umas coisas para tratar lá fora, mas voltarei em breve; dormi outra vez, que vos fará bem. Aqui, deixai-me cobrir também a vossa cabeça, que ficareis quente mais depressa. O rei voltou para o país dos sonhos antes que esta conversa acabasse. Miles saiu sem fazer barulho e voltou, igualmente silencioso, ao fim de uns trinta ou quarenta minutos, com um jogo completo de roupa usada para o rapaz, feito de tecido barato e a mostrar sinais de uso, mas limpo e próprio para a estação do ano. Sentou-se e começou a apreciar a sua compra, dizendo para si: - Uma maior bolsa conseguiria melhores coisas, mas quando não se tem uma grande bolsa é preciso ficar-se satisfeito com a pequena que se tem... Vivia na nossa cidade uma dama... - Acho que ele se mexeu... Tenho que cantar mais baixo. Não seria indicado perturbar o seu sono quando o espera uma tão grande viagem, e o pobrezinho está tão cansado... Esta roupa está suficientemente boa, uma costura dela aqui e outra ali vão deixá-la perfeita... Esta outra está melhor, embora também não lhe faça mal uma costura aqui e outra ali... Mas os sapatos são bons e resistentes e vão manter-lhe os pés secos e quentes; coisa nova e estranha para ele, uma vez que, com certeza, está habituado a andar descalço tanto no Verão como no Inverno... Fosse pão o que é tecido, em que um farthing chega para um ano, e ainda com uma bela agulha de graça, só por amor... Agora é que vai ser o diabo para refazer as costuras! E assim fez - o que os homens têm feito sempre, e provavelmente continuarão a fazer, até ao fim dos tempos - segurar a agulha sem tremer e tentar que o fio passe pelo buraco, que é o contrário do que fazem as mulheres. Vezes sem conta o fio ficou de fora, passando por um lado ou pelo outro, ou ainda dobrando-se contra a agulha. Mas Hendon era uma pessoa paciente, tendo passado antes por tais tentativas, quando era soldado. Finalmente conseguiu, pegou na peça de roupa que entretanto estava à espera em cima das suas pernas e começou a coser. «A estalagem está paga - incluindo o pequeno-almoço que chegará daqui a nada •
ainda sobra, o que chega para comprar um par de burros
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para as despesas dos dois ou três dias que vão entre hoje
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a abundância que nos espera em Hendon Hall.»
... Que amava o seu ma ...
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«Bolas, dei uma picada no dedo... Continuemos. Isto não é novidade para mim apesar de que, para dizer a verdade, não goste muito de o fazer... Que bem vamos lá viver! Vai ser uma alegria, garoto! A tua loucura e o teu mau humor vão desaparecer...,> ... Que amava o seu marido com paixão, Mas outro cavaleiro... «Que belos pontos!», exclamou, levantando a peça em frente dos olhos para a contemplar apreciativamente. «Têm uma grandeza e uma majestade ao pé das quais os outros pontinhos mesquinhos parecem miseráveis e plebeus.» Que amava o seu marido compaixão... «Terminei! Olha-me para esta, um bom trabalho, cosido com presteza. Agora acordoo, visto-o, despejo-lhe a água, dou-lhe de comer e lá vamos para a feira, ao pé da estalagem Tabard, em Southwark.» - Por favor, levantai-vos, meu senhor! - «Não deu resposta.» - Então, meu senhor!---Vouter que profanar a sua sagrada pessoa com um toque, já que no seu sono fica surdo às minhas palavras. O quê!» Abriu as cobertas: o rapaz tinha desaparecido! Por momentos olhou à sua volta, mudo de surpresa; e reparou pela primeira vez que os farrapos do seu protegido também tinham desaparecido; então deu-lhe um ataque de raiva e começou a gritar pelo estalajadeiro. Nessa altura entrou um criado com o pequenoalmoço. - Explicai-vos, 6 aborto de Satanás, ou então chegou a tua hora! - gritou o guerreiro. - Onde é que está o garoto? Com frases entrecortadas e trêmulas, o homem deu a informação que lhe era pedida: - Mal vossa senhoria tinha saído, chegou um jovem a correr e disse que era a vontade de vossa senhoria que o rapaz fosse ter convosco ao fim da ponte, do lado de Southwark. Trouxe-o para cima - e quando acordou o miúdo e lhe deu o recado, ele queixou-se de ser perturbado; «tão cedo», como ele disse, mas imediatamente colocou os seus farrapos e foi com o jovem, apenas dizendo que teria sido mais educado se vossa senhoria tivesse vindo pessoalmente, em vez de mandar um desconhecido... e então... - E então vós sois um parvo! Parvo e fácil de levar; deviam enforcar os da tua raça! Contudo, talvez não seja grave. Talvez ninguém quisesse fazer mal ao rapaz. Vou já buscálo. Preparai a mesa. Alto aí! As roupas da cama estavam dispostas de maneira a parecer que tinha alguém lá dentro; isso aconteceu por acidente? - Não sei de nada, vossa senhoria. Vi o jovem mexer-lhes, esse que veio buscar o miúdo. - Com mil mortes! Isso foi feito para me enganar; é evidente que ele queria ganhar tempo. Ai de ti! O jovem estava sozinho? - Completamente sozinho, vossa senhoria. - Estais seguro? - Seguro, vossa senhoria.
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- Arruma essa cabeça parva e pensa outra vez, com calma, homem. Depois de pensar um bocado, o homem disse-lhe: - Quando chegou, ninguém veio com ele; mas agora lembro-me que, quando os dois chegaram ao fim da ponte, um homem com aspecto de rufião apareceu de algum sítio ali perto; e mesmo quando estava a juntar-se a eles... - O que é que aconteceu, então? Deita cá para fora! - interrompeu o impaciente Hendon, como um trovão. - Mesmo nessa altura, a multidão cobriu-os e perdi-os de vista, e não vi mais nada, pois o meu patrão chamou-me, furioso, porque me tinha esquecido de uma ave encomendada pelo escrivão; embora tenha todos os santos por testemunhas que acusarme de tal esquecimento é o mesmo que julgar uma criança pelos seus pecados antes dela nascer... - Fora da minha vista, idiota! A tua choradeira deixa-me doido! Espera! Onde é que vais a correr? Não podes ficar um bocadinho quieto? Eles foram na direção de Southwark? - Sim senhor, vossa senhoria; porque, como já disse a respeito da ave, a criança que ainda não nasceu não tem mais culpa do que... - Ainda estais aqui? E ainda a choramingar? Desaparecei, não vos vá estrangular! O criado desapareceu. Hendon foi logo a seguir, ultrapassou-o e mergulhou pelas escadas abaixo, dois degraus de cada vez, a murmurar: O almirante passou as meias para o colocador de guardanapo hereditário e mal teve ar suficiente dentro do peito, para soprar «Vede, meu senhor!» As meias continuaram a andar para trás na fila, sempre acompanhadas pelo surpreendido e assustado «Vede! Vede!» até finalmente chegarem às mãos do camareiro-chefe às ordens, que olhou por um instante para o que tinha causado todo aquele escândalo e depois sussurou, arreliado: «Corpo de Deus, uma malha a soltarse da costura! Para a Torre com o chefe dos validos das meias reais!» Depois encostou-se no ombro do primeiro-lorde dos cães de caça para recuperar as forças perdidas, enquanto eram trazidas umas meias novas, sem nenhuma malha caída. Mas tudo tem um fim, e portanto chegou a altura em que Tom Canty estava em condições de sair da cama. O cortesão apropriado deitou a água, o cortesão a quem tal competia acompanhou a lavagem, o cortesão de direito ficou de pé com a toalha e, lentamente, Tom passou sem perigos pela fase de purificação, e agora estava pronto para os serviços do cabeleireiro real. Quando finalmente emergiu das mãos deste mestre estava com um ar gracioso e tão bonito como uma menina, na sua jaleca e calção de cetim roxo, com um chapéu emplumado da mesma cor. Dirigiu-se com toda a pompa para a sala do pequeno-almoço, passando pelo séquito de cortesãos, que à sua vista recuavam a abrir caminho, dobrando a espinha, Depois do pequeno-almoço foi levado com grandes cerimônias para a sala do trono, acompanhado pelos grandes cortesãos e pela sua guarda de cinquenta cavaleiros pensionistas (1) com achas-de-armas douradas, para começar a tratar dos assuntos de estado. O «tio» Lord Hertford tomou o seu lugar ao lado do trono, para ajudar a real mente com as suas pertinentes opiniões. 50
Apareceu então o corpo de homens ilustres nomeados pelo falecido rei como seus executores, que vinham pedir a aprovação de Tom para alguns dos seus atos, se bem que não para todos, pois ainda não fora nomeado o tutor. O arcebispo de Canterbury apresentou um r elatório sobre o decreto do Conselho de Executores referente às exéquias de sua falecida e muito ilustrada majestade, que acabou com as assinaturas dos executores, a saber: arcebispo de Canterbury, lorde-primeiro chanceler de Inglaterra, Lord William Saint John John, Lord Russel, Edward, conde de Hertford, John, visconde de Lisle, Cuthbert, bispo de Durham... Tom não estava a ouvir - uma cláusula do documento, lida anteriormente tinha-o surpreendido. Nessa altura virou-se e segredou para Lord Hertford: - Para quando é que eles disseram que o funeral foi marcado? - Dia 16 do próximo mes, meu soberano. - Mas que estranha loucura. Ele conserva-se tanto tempo? Pobre miúdo, ainda pouco habituado aos costumes da realeza; o que ele tinha visto era os mortos esfarrapados de Offal Court serem rapidamente despachados numa cerimônia bem diferente. Contudo Lord Hertford acalmou a sua preocupação com algumas palavras. O secretário de Estado apresentou uma ordem do Conselho a marcar para o dia seguinte, às 11 horas, a recepção aos embaixadores estrangeiros e pediu a concordância do rei. Tom deu uma olhadela inquiridora para Hertford, que lhe segredou: - Vossa majestade deve dar consentimento. Eles vêm testemunhar o pesar dos seus reais senhores perante a grande calamidade que visitou vossa graça e o reino de Inglaterra. Tom fez como lhe era pedido. Outro secretário começou a ler um preâmbulo sobre as despesas da casa do falecido rei, que ascendiam a vinte e oito mil libras durante os seis meses anteriores, quantia fabulosa que o deixou boquiaberto; mas o seu assombro foi ainda maior quando soube que vinte mil libras ainda estavam por pagar; e abriu outra vez a boca quando o informaram que os cofres do rei estavam quase vazios e os seus mil e duzentos servidores bastante preocupados com os pagamentos atrasados que lhes eram devidos. Tom falou com viva apreensão: - Estamos entregues aos bichos, é evidente. Torna-se necessário que tenhamos uma casa mais pequena e mandemos os servidores embora, uma vez que eles só servem para provocar atrasos e para causar aborrecimentos com funções que perturbam o espírito e envergonham a alma, pois fazem de uma pessoa um boneco sem cabeça nem mãos, ou que não sabe usá-las. Estou-me a lembrar de uma casinha que fica ao pé do mercado de peixe, em Billingsgate... Uma nítida pressão no braço de Tom segurou a sua língua e fê-lo corar; mas nenhuma expressão na sala mostrou alguma evidência de que este estranho discurso tivesse sido notado ou levado em consideração. 51
O secretário fez um relatório a dizer que, uma vez que o falecido rei tinha deixado em testamento que fosse conferido o título de duque ao conde de Hertford, que o seu irmão, Sir Thomas Seyrnour, fosse elevado a par do reino e do mesmo modo que o filho de Hertford fosse elevado a conde, juntamente com iguais grandezas para outros servidores da coroa, o Conselho resolvera reunir-se a 16 de Fevereiro para confirmar essas honras; e que, entretanto, o falecido rei não tendo doado por escrito propriedades convenientes para manter essas dignidades, o Conselho, sabendo as suas vontades particulares a esse respeito, tinha pensado que seria apropriado conceder a Seymour «500 libras de terras» e ao filho de Hertford «800 libras de terras mais 300 libras das próximas terras episcopais que ficassem vagas», caso sua majestade concordasse. Tom preparava-se para pronunciar algo a respeito da conveniência de pagar as dívidas do falecido rei antes de esbanjar todo o seu dinheiro; mas um oportuno toque no braço dado pelo perspicaz Hertford evitou-lhe esta indiscrição; portanto, deu o consentimento real, sem comentários mas com bastante desconforto interior. Enquanto ali estava sentado, a refletir por alguns momentos sobre a facilidade com que fazia aqueles estranhos e irradiantes milagres, um feliz pensamento passou-lhe pela cabeça: porque não fazer a sua mãe duquesa de Offal Court e dar-lhe uma propriedade? Mas um triste pensamento afastou imediatamente a idéia; era rei apenas no nome, esses sisudos veteranos e grandes fidalgos eram os seus verdadeiros senhores; para eles, a sua mãe era apenas a criação de uma mente doente; simplesmente ouviriam a sua proposta com orelhas incrédulas, para depois mandar vir o médico. O aborrecido trabalho continuou tediosamente. Liam-se petições, proclamações, patentes e todo o tipo de palavreados repetitivos e documentos cansativos relacionados com os assuntos públicos; e, no fim, Tom acenava pateticamente e murmurava consigo: «Que ofensas terei feito para que o bom Deus me tirasse dos campos, do ar livre e da luz do Sol para me fechar aqui, fazer de mim um rei e me dar tantas preocupações?» Depois, a sua pobre cabeça entorpecida inclinou-se e acabou por encostar-se no ombro. Os assuntos do reino ficaram em suspenso por falta do fator real, que é o poder de ratificar. Seguiu-se um completo silêncio à volta da criança adormecida e os sábios do reino pararam com as suas deliberações. Antes do meio-dia Tom teve uma hora agradável quando, com a permissão dos seus guardiões, Hertford e SaintJohn, conversou com Lady Elizabeth e LadyJane Grey; embora os humores das princesas estivessem um pouco apagados pelo grande golpe que tinha caído sobre a casa real. No fim da visita, a sua «irmã mais velha» - mais tarde a«Maria Sanguinária» da História - deixou-o gelado com uma entrevista ríspida cujo único mérito, aos seus olhos, foi ter sido breve. Ficou alguns momentos sozinho, então um miúdo magro, com cerca de 12 anos, foi admitido na sua presença. A sua roupa, com excepção do colarinho farfalhudo e das fitas nos pulsos, era toda preta - gibão, meias e tudo o mais. Não usava o medalhão de luto, mas apenas um botão de fitas roxas no ombro. Avançou hesitante, com a cabeça descoberta e inclinada, e ajoelhou-se num joelho em frente de Tom, que ficou quieto e contemplou-o cuidadosamente por um momento. Depois disse: - Levantai-vos rapaz. Quem sois vós? Ao que vindes?
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O rapaz levantou-se e ficou em gracioso à-vontade, mas com uma expressão preocupada no rosto. Disse: - Com certeza que vos lembrais de mim, meu senhor. Sou o vosso apanhador de chibatadas. - O meu apanhador de chibatadas? - Ele mesmo, vossa graça. Sou o Humphrey; Humplirey Marlow. Tom percebeu que aqui estava uma pessoa sobre quem os seus guardiões o deviam ter informado. A situação era delicada. O que é que devia fazer? Pretender que conhecia o garoto e depois mostrar, com as suas próprias palavras, que nunca tinha ouvido falar em semelhante pessoa? Não, isso não podia ser. Um pensamento trouxe-lhe algum alívio: situações como esta iriam acontecer com alguma frequência, agora que muitos assuntos urgentes amiúde afastariam Hertford e Saint John da sua presença, sendo eles membros do Conselho dos Executores; portanto talvez fosse uma boa idéia ele mesmo traçar um plano para resolver estas emergências. Sim, esse seria o caminho sensato - podia praticar com este rapaz, para ver se conseguia fazê-lo com outras pessoas. Portanto, coçou o queixo com perplexidade por uns instantes e depois disse: - Agora parece que me estou a lembrar de vós; mas a minha cabeça está estagnada e confusa com o sofrimento... - Ai meu pobre senhor! - saiu-se o apanhador de chibatadas, realmente sentido, acrescentando para si mesmo: «Na verdade isto é como me disseram; a sua mente foi-se; meu Deus, pobre alma! Mas a má sorte apanhou-me, agora me lembro! Foi-me dito para não reparar que há alguma coisa errada com ele. - É estranho como a minha memória tem divagado nos últimos dias - disse Tom -, mas não vos preocupeis que lá vou juntando as coisas; uma pequena indicação muitas vezes é o suficiente para me trazer outra vez fatos e nomes esquecidos. (E não só esses, por minha fé, mas também outros que nunca tinha ouvido...) Dizei-me qual é a vossa função. - É um assunto de pouca importância, meu senhor, no entanto vou-vos dizer, para satisfazer vossa graça. Há dois dias atrás, quando vossa majestade fez três erros em grego... Nas lições da manhã, lembrai-vos? - Sim... Acho que sim. (Não é uma grande mentira; se me tivesse metido com o grego não teria feito três erros, mas uns quarenta!) Sim, agora me lembro; continuai. - O mestre ficou irritado com o que ele considerou ser um trabalho desleixado e burro e prometeu que me açoitaria para valer, e... - Açoitar-vos! - disse Tom, surpreendido a ponto de perder a presença de espírito. Porque é que ele haveria de vos açoitar pelos meus erros? - Ah, vossa graça esqueceu-se outra vez. Ele bate-me sempre a mim, quando não cumpris as vossas lições.
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- É verdade; tinha-me esquecido. Vós ensinais-me em particular; quando erro, ele considera que o vosso trabalho não foi bem feito, e... - Ó meu senhor, que palavras são essas? Eu, o mais humilde dos vossos servos, pretender vos ensinar? - Então onde é que está a vossa culpa? Que enigma é este? Sou eu que fiquei completamente louco, ou sois vós? Explicai, dizei-me. - Mas, vossa majestade, não há nada que precise de explicação. Ninguém pode tocar na sagrada pessoa do Príncipe de Gales, muito menos com pancadas; portanto quando vós errais sou eu que as apanho; e acho que está certo, porque esse é o meu lugar e o meu trabalho. Tom olhou para aquele rapaz tranqüilo e disse para consigo: «Meu Deus, que coisa maravilhosa; que profissão mais estranha e interessante; surpreende-me que não tenham contratado um rapaz para ser penteado e vestido no meu lugar - seria ótimo se o fizessem! - e eu não me importaria de apanhar as chibatadas, agradecendo a Deus pela troca!» Então disse em voz alta: - E já apanhastes, pobre amigo, de acordo com a promessa? - Não, meu bom senhor, o meu castigo foi marcado para hoje e talvez venha a ser cancelado por ser impróprio para a época de luto que se abateu sobre nós; não sei, e portanto tomei coragem para vir aqui e lembrar a vossa graça a graciosa promessa de interceder a meu favor. - Com o mestre? Para vos poupar dos açoites? - Ah, então vós lembrai-vos! - A minha memória consertou-se, como podeis ver. Descansai; as vossas costas serão poupadas; vou tomar conta disso. - Oh, obrigado meu bom senhor! - o rapaz gritou, ajoelhando outra vez. - Talvez já tenha ousado demais; contudo... Ao ver a hesitação de mestre Humphrey, Tom encorajou-o a prosseguir, dizendo que estava «em maré de concessões». - Então vou falar, porque está no meu coração. Senhor, vós não sois mais o Príncipe de Gales, mas sim o rei, e assim podeis dar ordens à vontade, que ninguém se oporá; portanto não é mais necessário que vos vexeis com estudos terríveis, mas podeis largar os livros e virar a vossa mente para assuntos menos aborrecidos. Assim fico arruinado e as minhas irmãs órfãs também! - Arruinado? Porquê? - As minhas costas são o meu pão. Oh, meu gracioso senhor! Se ficar sem trabalhar vou passar fome. Se parardes de estudar o meu posto acaba, pois vós não precisareis mais de um apanhador de chibatadas. Não me mandeis embora! Tom ficou impressionado com o patético desespero do rapaz. Disse, numa explosão de real generosidade: 54
- Não vos preocupeis mais, rapaz. O vosso posto será permanente para vós e para os vossos descendentes, para sempre! - Deu-lhe uma pequena pancada no ombro com a folha da espada e exclamou: - Levantai-vos Humphrey Marlow, apanhador de chibatadas hereditário da casa real de Inglaterra! Afastai as vossas penas; vou continuar com os livros e estudar tanto que eles deverão, com toda a justiça, triplicar o vosso salário, de tanto que a vossa função vai aumentar. O agradecido Humphrey respondeu febrilmente: - Obrigado, 6 nobre mestre, esta generosidade principesca ultrapassa em muito os meus mais fantasiosos sonhos de riqueza. Agora serei feliz para o resto da vida e toda a casa de Marlow depois de mim. Tom tinha sido suficientemente esperto para perceber que estava ali um rapaz que lhe podia ser útil. Encorajou Humphrey a falar e não se arrependeu. Este ficou felicíssimo por acreditar que estava a ajudar a «cura» de Tom, pois reparou que, sempre que acabava de lembrar à mente «doente» os diversos detalhes das suas experiências e aventuras, na sala da escola real ou em qualquer outro lugar do palácio, Tom ficava a «lembrar-se,> dessas circunstâncias com muita clareza. Ao fim de uma hora, Tom viu-se bem equipado com muitas informações valiosas sobre as pessoas e os assuntos da corte; portanto, resolveu que aprenderia diariamente com esta fonte; e para tal deu ordens para que Humphrey fosse admitido à câmara real sempre que fosse possível, desde que sua majestade de Inglaterra não estivesse ocupado com outras pessoas. Humphrey tinha acabado de ser mandado sair quando Lord Hertford chegou com mais problemas para Tom. Disse-lhe que os senhores do Conselho, receando que algum relato exagerado sobre a saúde afetada do príncipe se tivesse espalhado lá por fora e chegado ao estrangeiro, achavam pertinente e conveniente que sua majestade começasse a jantar em público dentro de um ou dois dias - pois uma expressão saudável e uma postura vigorosa, ajudadas pela tranqüilidade cuidadosamente contida e pela descontração e graça da atitude acalmariam certamente a curiosidade geral - no caso de os nefastos rumores terem chegado ao estrangeiro mais do que qualquer outro expediente que se pudesse inventar. A seguir, o conde prosseguiu, com toda a delicadeza, a instruir Tom quanto às regras da cerimônia oficial, com a desculpa bastante fraca de lhe «trazer à memória» coisas que ele já sabia; mas, para sua grande satisfação, aconteceu que Tom precisou de muito pouca ajuda nesta área tinha usado Humphrey nesse sentido, pois ele tinha-lhe mencionado que dentro de dias iria jantar publicamente, coisa que sabia pelos rápidos rumores que circulavam na corte. Contudo, Tom manteve estes fatos para si. Ao ver a memória real tão melhorada, o conde aventurou-se a fazer-lhe alguns testes, com uma casualidade aparente, para ver até onde chegava a cura. Os resultados foram bons, aqui e ali, pontualmente - nos pontos que tinha sido cobertos por Humphrey e, no conjunto, o lorde sentiu-se feliz e encorajado. Tão encorajado, de fato, que lhe disse numa voz esperançosa:
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- Estou persuadido de que, se vossa majestade exigir um pouco mais da vossa memória, poderá resolver o enigma do grande selo, uma perda que era importante ontem e, todavia, sem nenhuma importância hoje, uma vez que o seu tempo de serviço terminou com a vida do falecido rei. Pode vossa graça fazer o favor de tentar? Tom estava perdido - o grande selo era uma coisa que ele desconhecia completamente. Depois de alguns momentos de hesitação, olhou para ele e perguntou inocentemente : - Qual é o aspecto dele, meu senhor? O conde começou, quase imperceptivelmente, a dizer para si mesmo: «Meu Deus, a sua esperteza foi-se outra vez! Foi uma má idéia forçá-lo a cansar-se tanto.» Então, levou a conversa para outros assuntos, com a intenção de eliminar o azarado selo dos pensamentos de Tom - uma intenção facilmente conseguida.
XV TOM FAZ DE REI No dia seguinte, vieram os embaixadores estrangeiros e as suas belas comitivas; Tom recebeu-os, sentado no trono com todas as cerimônias. Os esplendores do ato começaram por deleitar os seus olhos e incendiar a sua imaginação, mas a audiência era longa e aborrecida, como o eram a maioria dos discursos. Tom disse as palavras que Hertford colocava na sua boca de tempos a tempos e tentava o melhor que lhe era possível sair-se satisfatoriamente, mas era demasiado «verde» nestas coisas e estava muito pouco à vontade para conseguir mais do que um resultado aceitável. Parecia-se suficientemente com um rei, mas estava mal preparado para se sentir como tal. Ficou cordialmente satisfeito quando a cerimônia acabou. A maior parte do dia foi «desperdiçada» - como lhe chamou, dentro da sua cabeça em trabalhos pertinentes à sua posição real. Contudo, teve uma hora em privado com o seu apanhador de chibatadas que considerou como bem ganha, pois beneficiou tanto do divertimento como das informações recebidas. O terceiro dia do reino de Tom Carity veio e foi-se como acontecera com os outros, mas o céu parecia desanuviar-se sob um aspecto - estava a habituar-se ao ambiente e às circunstâncias. Mas, por causa de um único receio, não podia deixar de ver a aproximação do quarto dia sem sérias apreensões - o jantar em público que ia começar nesse dia. Havia assuntos mais importantes no programa - pois tinha que presidir ao Conselho, que levaria em conta as suas opiniões e ordens a respeito da política a ser seguida com as diversas nações estrangeiras, espalhadas perto e longe por todo o Globo; também, nesse dia, Hertford seria escolhido formalmente para o grande posto de lorde protetor; e outras coisas de importância estavam marcadas para esse quarto dia, mas, para Tom, todas eram 56
insignificantes, comparadas com a provação de jantar sozinho com uma multidão de olhos curiosos fixos nele e uma multidão de bocas a murmurar comentários sobre as suas ações e sobre os seus erros, se tivesse a pouca sorte de cometer algum. Mesmo assim nada podia impedir esse quarto dia e, portanto, lá chegou ele. Encontrou o pobre Tom deprimido e distraído, sensações de que não conseguia livrarse. os habituais deveres da manhã arrastaram-se e cansaram-no. Uma vez mais tinha a pesada sensação de estar cativo. Depois de algum tempo, Tom, que tinha ido até a uma janela e estava a prestar atenção à vida e aos movimentos na grande alameda para lá dos portões do palácio - e não era apenas um interesse passivo, pois desejava muito participar pessoalmente naquela agitação e liberdade -, viu a vanguarda de um grupo de desordeiros, homens, mulheres e crianças do mais baixo e pobre nível, que gritava e urrava à medida que se aproximava pela estrada. - Gostava de saber o que é que aquilo quer dizer! exclamou, com toda a curiosidade de uma criança em relação a tais coisas. - Vós sois o rei! - respondeu solenemente o conde, com uma reverência. - Tenho a autorização de vossa graça para inquirir? - Oh, por favor, sim! Com alegria que sim! - exclamou Tom, excitado, acrescentando para si próprio, com um vivo sentimento de satisfação: Na verdade, ser um rei não é só aborrecimentos, tem as suas compensações e conveniências.» O conde chamou um pajem e mandou-o ao capitão da guarda com a seguinte ordem: - Mandai parar a turba e inquiri sobre a razão de tanta agitação. Por ordem do rei! Segundos mais tarde, uma longa fila de guardas reais, ataviados de metal brilhante, saía dos portões e formava-se na alameda, em frente da multidão. Um mensageiro voltou para relatar que o grupo estava a seguir um homem, urna mulher e uma rapariguinha, que iam ser executados por crimes cometidos contra a paz e a dignidade do reino. Morte - uma morte violenta - para aqueles pobres desgraçados! O pensamento arrepiou o coração de Tom. O espírito de compaixão apoderou-se dele, excluindo quaisquer outras considerações; não pensou nas leis infringidas, nem da tristeza e perda que esses três criminosos tinham infligido às suas vítimas; não conseguia pensar senão no cadafalso e no horrível destino que pendia sobre as cabeças dos condenados. A sua preocupação fê-lo mesmo esquecer momentaneamente que ele não era mais do que a falsa sombra de um rei; antes que desse por isso já tinha gritado a ordem: - Tragam-nos aqui! Corou então, e uma espécie de desculpa ia sair dos seus lábios; mas, ao reparar que a sua ordem não tinha causado nenhuma surpresa, nem ao conde nem ao pajem, que esperava, conteve essas palavras. O pajem fez uma profunda vênia e retirou-se da sala a andar de costas para ir comunicar a ordem, de um modo absolutamente natural. Tom sentiu um ataque de orgulho e uma renovada sensação das vantagens do seu posto real. Disse para consigo: «Na verdade, era o que eu costumava sentir quando lia os contos do 57
velho padre e ficava a imaginar-me como um príncipe, dando ordens e leis a todos, e a dizer: «Façam isto, façam aquilo sem que ninguém se atrevesse a atrapalhar ou contrariar a minha vontade.» Pouco depois ouviu-se os passos ritmados dos soldados a aproximarem-se e os culpados entraram sob a guarda de um xerife, escoltados por alguns guardas reais. O oficial civil ajoelhou em frente de Tom e depois afastou-se; os três condenados também ajoelharam e assim ficaram; o chefe da guarda tomou posição atrás da cadeira de Tom. Este observou os prisioneiros com curiosidade. Alguma coisa nas roupas e aparência do homem despertara nele uma vaga lembrança. «Acho que já vi este homem que aqui está mas quando ou onde não me lembro», pensou. Nesse momento, o homem olhou rapidamente para cima e com a mesma rapidez baixou outra vez a cabeça, sem ser capaz de enfrentar o terrível poder da soberania; mas a rápida visão do rosto, que Tom pôde captar, foi suficiente. Disse para consigo: «Agora o caso está esclarecido; este é o desconhecido que arrancou Giles Witt ao Tamisa e salvou a sua vida naquele ventoso e desagradável primeiro dia do ano novo - um feito corajoso e bom -, pena que tenha feito piores e se colocasse nesta triste situação. Não me esqueci nem do dia nem da hora, porque, pouco depois, quando bateram as 11, a avó Canty deu-me uma tal tareia, tanto em força como em tamanho, que as que levei antes e depois, comparadas com aquela, pareciam carícias de criança.» Tom mandou então que a mulher e a menina fossem retiradas da sua presença; depois dirigiu-se ao xerife e perguntou-lhe: - Bom senhor, qual é o crime deste homem? O oficial ajoelhou e respondeu: - Saiba vossa majestade que ele tirou a vida a uma pessoa por envenenamento. A pena que Tom sentia pelo prisioneiro e a sua admiração por ele como o ousado salvador de um rapaz que se afogava receberam um rude golpe. - Isso foi provado? - Muito claramente, senhor. Tom estremeceu e disse: - Levem-no; fez para merecer a sua morte. É uma pena, pois tinha um bom coração... hum... quero dizer, parecia ter! O prisioneiro juntou as mãos com uma súbita energia e estendeu-as desesperadamente, ao mesmo tempo que implorava ao rei, com frases entrecortadas e aterrorizadas: - Ó rei, meu senhor, se não podeis ter misericórdia pelos que partiram, tende misericórdia de mim! Estou inocente; nem aquilo de que me acusam foi mais do que fracamente provado; contudo não falo em tal coisa; o julgamento contra mim já foi feito e pode não ser mudado; mas é para o meu fim que peço um alívio, pois a minha sorte é mais terrível do que posso suportar. Uma graça, uma graça, meu rei e senhor! Na vossa real compaixão concedei o meu pedido; dai ordens para que seja enforcado! 58
Tom estava surpreendido. Não era esta a conclusão que tinha antecipado. - Pela minha vida, que graça tão estranha! Não é esse o destino que vos espera? - Oh, meu senhor, não é assim! Foi ordenado que eu seja fervido vivo! A terrível surpresa que estas palavras lhe causaram quase que fez Tom saltar da cadeira. Assim que conseguiu recuperar a compostura gritou: - Que se faça como desejais, pobre alma! Mesmo que tivésseis envenenado cem homens não deveríeis ter uma morte tão horrorosa. O prisioneiro dobrou-se até tocar com o rosto no chão e desfez-se em apaixonadas expressões de gratidão, que acabaram assim: - Se alguma vez conhecerdes o que é a desgraça - que Deus tal proíba! -, que a bondade que hoje mostrastes comigo seja lembrada e retribuída! Tom virou-se para o conde de Hertford e disse-lhe: - Meu senhor, é possível que exista uma ordem a condenar este homem a tão cruel destino? - Saiba vossa graça que é a lei para os envenenadores. Na Alemanha, os falsificadores de moeda são fervidos em azeite até morrer, porém não os mergulham de repente, antes os deixam cair aos poucos, com uma corda. Primeiro, os pés, depois as pernas, depois... - Oh, por favor meu senhor, mais não, não posso suportar tal coisa! - gritou Tom, cobrindo os olhos com as mãos para não ver a imagem. - Agora mesmo digo a vossa senhoria para que dê ordens para que a lei seja mudada. Que mais nenhum pobre coitado receba tal tortura. O rosto do conde mostrou profunda alegria, pois era um homem generoso e clemente - uma coisa não muito habitual na sua classe nessa época violenta. Disse: - As nobres palavras que vossa graça pronunciou selaram o vosso destino. A História lembrá-las-á para honrar a vossa casa real. O xerife preparava-se para levar o prisioneiro, mas Tom fez-lhe sinal para esperar e disse: - Senhor, vou inquirir sobre este caso com mais pormenores. O homem disse que o seu ato não foi muito bem provado. Dizei-me o que sabeis. - Para servir vossa majestade, vos digo que durante o julgamento foi provado que este homem entrou na casa da aldeia de Islington onde estava o doente; três testemunhas dizem que foi às 10 horas da manhã e duas dizem que foi alguns minutos mais tarde; que o doente estava sozinho e adormecido; e que o homem voltou e depois se foi embora. o doente morreu em menos de uma hora, contorcendo-se em espasmos e vômitos. - Viram o veneno ser administrado? Foi encontrado algum veneno? - Não, meu senhor. - Então como sabeis que ele foi envenenado? 59
- Saiba vossa majestade que os doutores testemunharam que só se morre com tais sintomas quando se é envenenado. Prova de respeito, esta - nessa época pouco científica. Tom reconheceu o seu peso e disse: - Os médicos sabem da profissão deles - é provável que estejam certos. O assunto parece bastante mal parado para este homem. - Todavia, não é tudo, saiba vossa majestade; há mais e pior. Muitos testemunharam que uma bruxa, que desde então se foi embora da aldeia e que ninguém viu mais, tinha adivi divinh nhad ado, o, e dito dito em priv privad ado o aos seu seus ouvi ouvido doss, que que o doent oentee iria iria morre orrerr por envenenamento; e, ainda mais, que um desconhecido iria dar-lho; um estrangeiro com cabelo castanho e vestido com roupas vulgares e gastas; e certamente que o prisioneiro confere perfeitamente com essa descrição. Queira vossa majestade dar às circunstâncias o valor solene que lhes é devido, considerando que tinham sido adivinhadas. Este argumento tinha uma enorme força nesses tempos tempos de grande superstição. superstição. Tom sentiu que o assunto estava resolvido; se as provas valiam para alguma coisa, a culpa do pobre pobre homem homem estava estava provad provada. a. Mesmo Mesmo assim assim deu ao prision prisioneiro eiro outra outra oportu oportunida nidade, de, dizendo-lhe: - Se podeis dizer algo a vosso favor, dizei-o. - Não que possa servir-me, meu rei. Sou inocente, todavia não posso mostrá-lo. Não tenho amigos, senão poderia provar que não estava em Islington nesse dia; do mesmo modo teria a possibilidade de mostrar que à hora que eles falam estava a mais de uma légua de distância, pois podia ser visto em Wapping Old Stairs; ainda mais, meu rei, poderia provar que, enquanto eles dizem que eu estava a tirar uma vida, eu estava a salvar outra. Um rapaz que se afogava... - Silêncio! Xerife, dizei-me o dia em que o ato foi cometido. - Às 10 horas da manhã, ou alguns minutos mais tarde, no primeiro dia do ano, ilustríssimo... - Libertem o prisioneiro; é essa a vontade do rei! Tom corou logo a seguir a este ataque de realeza; mas escondeu a sua situação, acrescentando: - Enraivece-me que um homem seja enforcado com base em provas tão pouco consistentes e sem nexo! Um murmúrio de admiração percorreu a assembléia, não porque se julgasse no direito de discutir a ordem do rei, cuja conveniência ou necessidade de libertar um condenado estava acima da opinião deles, mas pelo reconhecimento, pela inteligência e esperteza que Tom tinha mostrado. Alguns diziam, sussurrando: - O rei não está louco ' o seu juízo é perfeito. - Com que pertinência fez as perguntas! - E como a decisão imperiosa de bem julgar o caso foi tão digna do seu bom caráter! 60
- Demos graças a Deus, pois ele está curado da sua doença! Este não é um fraco, mas um verdadeiro rei. Agiu do mesmo modo que o seu pai. Os ouvidos de Tom captaram um pouco do aplauso que se sentia no ar. Isto teve o efeito de o deixar bastante à vontade, além de carregar o seu sistema com sensações muito gratificantes. Todavia, estava com vontade de saber que espécie de maldade fatal a mulher e a rapari rapariguin guinha ha poderia poderiam m ter feito; feito; portan portanto, to, deu ordens ordens para para que as duas duas ate aterra rradas das e chorosas criaturas fossem trazidas à sua presença. - O que é que estas duas fizeram? - perguntou ao xerife. - Saiba Saiba vossa vossa majes majestad tadee que elas elas são são acusad acusadas as de crime crime negro negro ('), ('), claram claramente ente provado; portanto, os juizes decretaram que, de acordo com a lei, sejam enforcadas. Venderam-se ao demônio, esse é o seu crime. Tom estremeceu. Tinha sido ensinado a sentir asco por pessoas que tivessem feito coisa tão terrível. Mesmo assim não se ia negar ao prazer de alimentar a sua curiosidade; portanto perguntou: - Onde é que isso aconteceu e quando? - Numa meia-noite de Dezembro; numa igreja arruinada, saiba vossa majestade. Tom estremeceu outra vez. - Quem é que estava presente? - Só estas duas, vossa graça, e o tal, - Elas confessaram? - Não, senhor, elas negam. - Então, dizei-me, como é que se sabe? - Algu Alguma mass teste testemun munha hass vira viram-n m-nas as esgu esgueir eirar ar-s -see lá para para dentr dentro, o, saib saibaa voss vossaa maje majest stad ade; e; isto isto alime aliment ntou ou as susp suspeit eitas as e treme tremend ndos os efeit efeitos os que que têm têm desd desdee entã então o confirmaram e justificaram tal opinião. Em particular, há prova de que, através do maldito poder assim obtido, elas invocaram e trouxeram uma tempestade que destruiu tudo na regi região ão.. Ce Cerc rcaa de quar quarent entaa teste testemun munha hass prov provar aram am a tempes tempesta tade; de; e facil facilmen mente te se arranjariam mil, pois todos têm razões para se lembrar dela, uma vez que todos sofreram com isso. Certamente que este assunto é sério. - Tom deu algumas voltas à cabeça com esta sombria peça de malvadeza e depois perguntou: - A mulher também sofreu com a tempestade? Na assembléia algumas cabeças mais experientes agitaram-se, ao reconhecerem a sabedoria da pergunta. Contudo, o xerife não viu nenhuma conseqüência nesta questão; respondeu diretamente, com simplicidade:
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- Na verd verdad adee sofr sofreu eu,, voss vossaa maje majest stad ade, e, e muit muito o mere mereci cida dame mente nte,, como como todo todoss confirmam. A sua habitação foi destruída e ela e a criança ficaram sem abrigo. - Parece-me que o poder de fazer tanto mal a ela própria foi adquirido por alto preço. Terá sido roubada, se pagou mais de um fartbíng por ele; se então pagou com a sua alma e a da sua filha, isso prova que estava louca; se estava louca não sabia o que fazia, portanto não cometeu nenhum pecado. Os anciãos voltaram a agitar as cabeças em sinal de aprovação pela perspicácia de Tom e um deles disse: - Se é verdade que o rei está louco, então prefiro a sua loucura à sanidade de muitos outros. - Que idade tem a menina? - perguntou Tom. - Nove anos, vossa senhoria. - As leis de Inglaterra autorizam uma menina a celebrar contratos e vender-se a si própria, meu senhor? perguntou Tom, dirigindo-se a um dos juizes da assembléia. - A lei não autoriza uma criança a celebrar nenhum contrato importante importante ou a intervir nele, meu senhor, pois considera que a sua mente não tem capacidade para pensar com a maturidade e a perversidade das pessoas maiores. O Diabo poderá comprar uma criança, se lho propuser e ela concordar, mas não se ela for um súbdito inglês, porque neste . caso o contrato será nulo e sem efeito. - Parece pouco cristão e mal pensado - exclamou Tom com um entusiasmo sincero que as leis de Inglaterra neguem aos ingleses os privilégios que concedem ao Diabo. Esta nova maneira de considerar a questão provocou muitos sorrisos e ficou guardada na maio maiori riaa das das cabe cabeça ças, s, para para depo depois is ser ser repe repetid tido o pela pela cort corte, e, como como uma uma prov provaa da originalidade de Tom, assim como dos seus progressos na cura. A mulher acusada tinha parado de soluçar e estava suspensa nas palavras de Tom com um interesse nervoso e crescente esperança. Tom reparou nisso e sentiu grande simpatia por ela e pela sua perigosa e solitária situação. A seguir perguntou: - Como é que elas fizeram para provocar a tempestade? - Baixaram as meias, sire. Isto deixou Tom muito surpreendido e elevou a temperatura da sua curiosidade até ficar febril. Disse, com firmeza: - Mas é maravilhoso! Tal gesto sempre teve tão terrível efeito? - Sempre, meu senhor; pelo menos se a mulher assim o desejar e pronunciar as palavras necessárias, na sua mente ou com a língua. Tom virou-se para a mulher e disse-lhe com um zelo impetuoso. - Exercei o vosso poder; gostaria de ver uma tempestade!
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Houve um súbito empalidecer de bochechas na supersticiosa assembléia e um desejo geral, se bem que não declarado, de sair dali para fora - tudo isto sem ser percebido por Tom, que não pensava em mais nada a não ser no cataclismo que se propunha. Vendo uma expressão surpreendida e confundida no rosto da mulher, acrescentou, excitado: - Não receeis; não sereis culpada. Mais; ireis em liberdade, ninguém vos tocará. Exercei o vosso poder. - Ó meu senhor, ó rei, não o possuo; fui falsamente acusada. - O que vos impede é o vosso medo. Mostrai a vossa boa vontade que não sofrereis nenhum mal. Fazei uma tempestade, não interessa que seja pequena; na realidade, não quero que seja grande nem perigosa, antes prefiro o oposto. Fazei isto e a vossa vida será poupada; ireis em liberdade, com a vossa filha, levando o perdão do rei e segura contra mal ou malícia de quem quer que seja neste reino. A mulher prostrou-se e jurou até às lágrimas que não tinha poderes para fazer o milagre, senão fá-lo-ia da melhor vontade apenas para salvar a vida da criança, não se importando de perder a sua, se a obediência à ordem do rei pudesse proporcionar tão preciosa graça. Tom insistiu - a mulher manteve as suas declarações. Finalmente, ele disse: - Penso que a mulher disse a verdade. Se a minha mãe estivesse no seu lugar, investida com os poderes do demônio, não hesitaria um momento em chamar as tempestades do céu e deixar a Terra toda em ruínas, se esse fosse o preço da minha vida ameaçada! É um ponto, que todas as mães são feitas do mesmo molde. Estais livre, boa mulher, vós e a vossa filha, pois acredito que estais inocente. Agora que não tendes nada a temer e estais perdoada... retirai as meias e provocai uma boa tempestade, que vos farei rica. A mulher exprimiu fervorosamente a sua gratidão e dispôs-se a obedecer, enquanto Tom a contemplava com curiosidade e algum receio. Ao mesmo tempo a assembleía mostrava o seu nervosismo e desassossego. A mulher tirou as meias das suas pernas e da menina e fez todos os esforços para compensar a generosidade do rei com um terramoto, mas a tentativa não deu resultado. Tom suspirou e disse-lhe: - Boa mulher, não vos preocupeis mais, pois o vosso poder vos deixou. Segui o vosso caminho em paz e, se alguma vez nos encontrarmos, lembrai-vos de me fazer uma tempestade.
XVI O JANTAR OFICIAL A hora de jantar aproximava-se - no entanto, e estranhamente, o pensamento não trouxe a Tom mais do que um leve incómodo e quase nenhum medo. Os acontecimentos da manhã tinham dado um maravilhoso alento à sua autoconfiança; aos poucos estava a 63
habituar-se àqueles ambientes. Coisas que levariam a um adulto, pelo menos um mês, tinha ele resolvido em quatro dias. jamais se vira uma tão rápida adaptação. Usemos os nossos privilégios para nos adiantarmos até ao salão do banquete e ver o que está a acontecer por lá, enquanto Tom é preparado para a solene ocasião. Trata-se de uma grande sala de colunas e pilastras douradas, com pinturas nas paredes e no teto. À porta estão guardas gigantescos, rígidos como estátuas, ataviados com uniformes ricos e pitorescos, a segurar as alabardas. Numa galeria alta, que corre a toda a volta da sala, está uma banda de músicos e uma multidão compacta de cidadãos de ambos os sexos, ricamente vestidos. No centro da sala, em cima de uma plataforma, fica a mesa de Tom. Deixemos falar o velho cronista: - «Entra na sala um cavaleiro segurando um bastão, logo seguido de outro com uma toalha; depois de ambos fazerem uma respeitosa cortesia, colocam a toalha sobre a mesa e retiram-se, com outra vênia. Seguem-se outros dois, o primeiro também com um bastão e o outro com o saleiro, o prato e pão. Depois de terem cumprimentado a assembléia, como os outros fizeram, e terem colocado os ditos objetos sobre a mesa, retiram-se da mesma maneira, com as mesmas cerimônias que os anteriores. Finalmente, entram dois fidalgos ricamente vestidos, um deles com uma faca; depois de se terem prostrado três vezes com a maior reverência, aproximam-se da mesa e esfregam-na com o pac, e o sal, com o mesmo respeito e compostura que teriam se o rei estivesse presente.» Assim termina a solene preparação. Logo a seguir ouve-se o toque das trombetas pelos corredores, acompanhado da proclamação: «Lugar ao rei! Passagem para sua excelente majestade, o rei!» Esses sons continuam a ecoar - tornam-se mais fortes e mais próximos - e então as notas marciais e o grito estão sobre as nossas cabeças: «Passagem para o rei!» Nesse momento aparece o brilhante cortejo, que enfileira à porta com passos cadenciados. Deixemos que o cronista continue: «Primeiro, entram os fidalgos, barões, condes, cavaleiros da Jarreteira, todos ricamente vestidos e sem chapéu; a seguir, vem o chanceler entre dois senhores, um que traz o cetro real, o outro com a espada do reino numa bainha vermelha decorada com flores-de-lis douradas, com a ponta para cima; a seguir vem o próprio rei, cuja aparição é saudada com doze trombetas e muitos tambores, enquanto nas galerias todos se levantam nos seus lugares e gritam 'Deus salve o rei!'. Depois dele vêm os fidalgos que o servem, à sua esquerda e à sua direita marcha a Guarda de Honra, cinquenta cavalheiros pensionistas com achas-de-armas douradas.» Tudo era bonito e muito agradável. O pulso de Tom batia acelerado e havia um brilho de alegria nos seus olhos. Avançava corretamente e com graça, principalmente porque não estava a pensar nisso, a sua cabeça feliz e cheia com as intensas luzes e sons à sua volta e, além disso, ninguém pode ficar muito mal com maravilhosas roupas feitas por medida, sobretudo quando se começa a habituar a elas. Tom lembrou-se das suas instruções e retribuía as saudações com u ma pequena inclinação da emplumada cabeça e um cortês «Muito obrigado, meu bom povo». 64
Sentou-se à mesa com o chapéu, e fê-lo sem o mais pequeno constrangimento; pois comer com a cabeça coberta era o único hábito real em que os reis e os Carity's tinham alguma coisa em comum, nenhum deles tendo vantagem sobre o outro em termos de familiaridade com essa atitude. O cortejo desfez-se e as pessoas juntaram-se a formar um grupo pitoresco, todas com a cabeça descoberta. Ao som de uma música alegre começaram a entrar os alabardeiros do palácio, os homens mais altos e mais elegantes de Inglaterra, cuidadosamente escolhidos para esse posto. Mas deixemos que o cronista nos conte tudo: «Os Yomen da Guarda Real entraram, sem chapéu, vestidos de vermelho, com rosas douradas bordadas nas costas. Iam e vinham, trazendo de cada vez uma iguaria diferente, servida em prato. Os pratos eram recebidos por um cavalheiro pela mesma ordem em que chegavam e colocados na mesa, enquanto o provador dava a cada guarda uma colherada do prato que ele tinha trazido, para o caso de estar envenenado. Tom comeu bem, apesar de estar consciente das centenas de olhos que acompanhavam cada bocado até à sua boca e o viam comer com um interesse que não poderia ser mais intenso, mesmo se fosse um explosivo mortal. Teve o cuidado de não se apressar e foi igualmente cuidadoso em não fazer nada sozinho, antes esperando até que o oficial requerido ajoelhasse e o fizesse por ele. Terminou sem um erro - uma impecável e preciosa vitória. Quando, finalmente, a refeição terminou e ele se afastou no meio do seu belo cortejo, com os ouvidos cheios dos alegres ruídos das cornetas, tambores e calorosas aclamações, sentiu que tinha passado pelo pior no que respeitava a jantar em público. Era uma provaçao que ficaria feliz por suportar várias vezes por dia, se por esse meio pudesse comprar a sua libertação de algumas das exigencias mais pesadas do seu real oficio.
XVII FU-FU PRIMEIRO Miles Hendon corria em direção à saída da ponte em Southwark, olhando em volta pelas pessoas de que estava à procura, esperando alcançá-las a seguir. Com algumas perguntas, tinha conseguido seguir o seu rasto durante grande parte do caminho até Southwark; mas depois todos os sinais tinham desaparecido e estava sem saber como prosseguir. A noite encontrou-o semiesfomeado, com as pernas cansadas e o seu desejo mais longe de se realizar do que nunca; portanto, jantou na estalagem de Tabard e foi para a cama, resolvido a começar cedo, no dia seguinte, e fazer uma busca na cidade inteira. Enquanto estava deitado a pensar e a fazer planos, veio-lhe o seguinte raciocínio: o rapaz fugiria do rufião, seu alegado pai, assim que conseguisse; mas será que voltaria para Londres à procura dos sítios que conhecia? Não, não faria isso com certeza, para evitar ser capturado outra vez. Então, para onde é que ele iria? Sem nenhum amigo ou protetor até ter encontrado Miles Hendon, tentaria, naturalmente, encontrar esse amigo outra vez, 65
desde que o esforço não o obrigasse a voltar para Londres e para o perigo. Tentaria chegar a Hendon Hall, isso é que sim, pois sabia que Hendon estava a ir para casa e lá poderia encontrá-lo. Sim, o caso era claro para Hendon - não devia perder mais tempo em Southwark, mas, em vez disso, atravessar imediatamente o con- dado de Kent para chegar a Monk's Holm, procurando-o pelo caminho. Voltemos agora ao pequeno rei. O rufião que o criado da estalagem tinha visto «a juntar-se» ao rapaz e ao rei não se juntou exatamente a eles, mas seguiu-os de perto. Nada disse. O seu braço esquerdo estava numa tala e usava uma grande pala verde sobre o olho esquerdo; coxeava ligeiramente e apoiava-se num cajado de madeira. O jovem levou o rei por um caminho complicado através de Southwark até chegar à estrada que passava atrás. Agora, o rei estava irritado e disse-lhe que ia parar ali - era Hendon que devia de ir ter com ele, não o contrário. Não toleraria tal insolência; ficaria onde estava. O rapaz disse-lhe: - Ides ficar aqui com o vosso amigo ferido no bosque lá adiante? Que seja, então. A atitude do principe mudou imediatamente. Gritou-lhe: - Ferido? E quem se atreveu a fazê-lo? Mas que interessa isso agora; levai-me lá imediatamente! Mais depressa, senhor! Estais carregado de chumbo? Ferido, está ele? Mesmo que o autor seja filho de um duque, voulhe ensinar! O bosque era bastante longe, mas a distância foi percorrida rapidamente. O rapaz procurou à volta, descobriu um galho espetado no chão com um bocado de trapo amarrado e, depois, meteu-se pela floresta, procurando marcas semelhantes e encontrando-as de vez em quando; evidentemente que eram guias para o orientar. Ao fim de algum tempo, chegaram a uma clareira onde se viam os restos queimados de uma casa rural e perto deles um celeiro a cair em ruínas. Não havia nenhum sinal de vida e o silêncio era total. O rapaz entrou no celeiro e o rei seguiu-o decisivamente. Não estava lá ninguém! O rei deu uma olhadela surpreendida e desconfiada para o rapaz e perguntou: - Onde é que ele está? Uma gargalhada de troça foi a resposta. O rei ficou logo furioso; pegou num bocado de madeira e preparava-se para atacar o rapaz, quando outra gargalhada zombeteira lhe chegou aos ouvidos. Era do rufião coxo que os tinha seguido à distância. O rei virou-se e disse-lhe, furioso: - Quem sois vós? Que fazeis aqui? - Deixai-vos de loucuras - disse o homem - e ficai quieto. O meu disfarce não é tão bom que possais pretender que não reconheceis o vosso pai. - Vós não sois o meu pai. Não vos conheço, sou o rei. Se escondestes o meu servidor, ide buscá-lo, ou amanhã chorareis o que hoje fizestes. John Carity respondeu-lhe com voz firme e calculada: - E evidente que estais louco e não quero punir-vos; mas se me provocardes terei que o fazer. Os vossos prantos não fazem nenhuma diferença aqui, onde não há ouvidos que se 66
preocupem com as vossas loucuras, contudo será melhor que treineis a língua para falar comedidamente, o que não fará mal nenhum quando nos mudarmos. Matei uma pessoa e não posso ir para casa, nem podeis vós, sabendo que preciso dos vossos serviços. O meu nome mudou, por razões de segurança; agora é Hobbs, John Hobbs; e o vosso é Jack, metei isso na vossa memória. Agora dizei-me: onde está a vossa mãe? E as vossas irmãs? Elas não foram para o local combinado; sabeis para onde foram? O rei respondeu, amuado: - Não me perturbeis com esses enigmas. A minha mãe está morta; as minhas irmãs estão no palácio. O rapaz deu uma gargalhada de escárnio e o rei tê-lo-ia atacado, mas Carity - ou Hobbs, como agora se chamava - segurou-o e disse: - Parai Hugo, não o vexeis; a sua mente anda perdida e as vossas maneiras assustam-no. Jack, sentai-vos e tende calma; ides comer um naco daqui a pouco. Hobbs e Hugo ficaram a conversar em voz baixa e o rei afastou-se o mais possível daquela desagradável companhia. Retirou-se para a penumbra do outro lado do celeiro, onde encontrou o chão de terra, coberto com uma boa altura de palha. Deitou-se ali mesmo, puxou alguma palha para cima de si, a fazer as vezes de cobertor, e deixou-se ficar absorvido nos seus pensamentos. Tinha muitas recordações dolorosas, mas as mais pequenas foram quase esquecidas perante a dor suprema que era a morte do seu pai. Para o resto do mundo o nome de Henrique VIII dava arrepios e lembrava um ogre cujas narinas expiravam destruição e cuja mão distribuía fiagelos e morte; mas a imagem que este menino invocava tinha uma expressão de ternura e afeição. Recordou-se uma longa sucessão de momentos de amor entre o pai e ele e ficou a repassá-las, os olhos molhados a atestar como era profunda e verdadeira a dor do seu coração. À medida que a tarde chegava ao fim, o garoto, cansado com os seus problemas, caiu devagar num sono tranqüilo e regenerador. Ao fim de bastante tempo - não sabia dizer quanto - os sentidos agitaram-se numa semiconsciência e, enquanto ali jazia com os olhos fechados, a tentar saber onde é que estava e o que é que tinha acontecido, reparou no som abafado e contínuo da chuva no telhado. Estava a sentir uma sensação de conforto invadi-lo, quando foi brutalmente interrompido por um coro de sons estridentes e sonoras gargalhadas. Desagradavelmente surpreendido, destapou a cabeça para ver de onde vinha a interrupção. O que viu foi um quadro triste e pouco recomendável. Uma fogueira ardia no meio do chão, do outro lado do celeiro, iluminando com um clarão vermelho o grupo mais variado de rufiões de ambos os sexos que ele alguma vez poderia imaginar, refastelados e estendidos à volta do fogo. Eram homens enormes e fortes, queimados do Sol, com longos cabelos e vestidos com fantásticos farrapos; havia jovens adolescentes com uma atitude truculenta, vestidos da mesma maneira; viam-se pedintes cegos, com palas ou ligaduras nos olhos; aleijados com pernas de pau e muletas- um ladrão de mau cariz com o seu saco; um amolador de facas, um funileiro e um cirurgião-barbeiro, todos com os instrumentos das suas profissões; algumas das mulheres eram rapariguinhas, outras jovens, outras ainda velhas, feias e enrugadas, e todas falavam alto, agressivamente e aos palavrões, estavam sujas e 67
desmazeladas; havia também três bebés com caras zangadas e um par de cães famintos, com cordéis à volta do pescoço, cuja função era guiar os cegos. A noite tinha chegado, a quadrilha acabara agora mesmo de comer e uma orgia estava a começar, com uma lata de bebida a passar de mão em mão. Começaram todos a gritar: - Uma canção! Uma canção do Bat e do Dick, Dot-and-go-One! Um dos cegos levantou-se e removeu as palas que cobriam os seus excelentes olhos e o patético cartaz que descrevia a causa da sua desgraça. Dot-and-go-One desenvencilhou-se da perna de pau e foi para o seu lugar ao lado do outro malandro, em cima de duas fortes e saudáveis pernas; deitaram então cá para fora uma cançoneta galhofeira, acompanhados no fim de cada estrofe pelo coro do grupo todo. Quando chegaram à última estrofe, o estusiasmo semialcoólico tinha chegado a tais alturas que toda a gente se juntou e voltou a cantar desde o princípio, fazendo tanto barulho que as vigas tremiam. Eram estas as inspiradas palavras: «Bien Darkmans tben, Bouse Mort and Ken, The bíen Coves bfngs awast, On Chates to trine by Rome coves dine For bis long lib at last. Bín'd out bien Morts and toure, and toure, Bing out of tbe Rome vile bine, And toure tbe Cove tbat cloyWyour duds, Upon tbe Chates to trine.» (1) Seguiu-se uma grande conversa; mas os malandros não falavam no dialeto de ladrões da canção, que só era usado quando ouvidos hostis pudessem ouvir. No seu decurso percebia-se que «John Hobbs» não era um novo recruta, antes pelo contrário, tinha anteriormente treinado a quadrilha. Foi-lhe pedido que contasse a sua última história e quando disse que tinha morto um homem «acidentalmente» saudaram-no com grande satisfação; e quando acrescentou que o homem era um padre recebeu aplausos gerais e teve que beber com todos eles. Velhos conhecimentos davam-lhe as boas-vindas com grande alegria e os novos amigos ficavam orgulhosos de lhe apertar a mão. Perguntaramlhe porque é que tinha desaparecido durante tantos meses. Respondeu: - Londres é melhor do que o campo e também mais segura, sobretudo nestes últimos anos em que as leis andam tão duras e são tão diligentemente aplicadas. Se não tivesse tido aquele problema teria ficado por lá. Não tinha nenhuma vontade de voltar ao campo, mas o «acidente» estragou tudo. Perguntou quantas pessoas é que a quadrilha tinha agora. O ruffler, ou chefe, respondeu: - Cinco mais vinte, todos fortes, ladrões, patifes, pulhas, malandros e espertos, contando com as pegas, as queridas e os outros pilantras. Estão quase todos aqui, os que faltam foram para o Leste, na trilha do Inverno. Vamos segui-los ao alvorecer. - Não vejo o Wen entre os amigos que aqui estão. Onde andará ele? - Pobre tipo, a sua dieta é bem triste e quente demais para um paladar delicado. Foi morto numa zaragata, mais ao menos no meio do Verão. - Lamento ouvir isso; Weri era competente e corajoso. 68
- Era assim mesmo, é verdade. A Bess Preta, a sua querida, ainda anda com a gente, mas ausentou-se com o grupo a caminho do Leste; um bela mulher, com boas maneiras e ordeira, nunca ninguém a viu beber mais do que quatro dias por semana. - Ela era sempre muito controlada, lembro-me bem, uma pega boazinha, merecedora de todas as recomendações. A mãe dela era mais livre e menos exigente; tinha mau feitio e gostava de arranjar problemas, mas era de uma esperteza acima do vulgar. - Perdemo-la por causa disso. O jeito que ela tinha para ler as mãos e para todos os géneros de sinas acabou por lhe dar a fama e o título de bruxa. A lei queimou-a em fogo lento até que morresse. Comoveu-me ver com que corajem enfrentou a morte, a blasfemar e a amaldiçoar a multidão que a olhava de boca aberta, enquanto as chamas subiam até ao rosto, chamuscavam os cabelos e dançavam à volta da cabeça... Eu disse a blasfemar? Mesmo se viverdes mil anos não ouvireis nunca mais tais blasfémias. Ai de nós, a sua arte morreu com ela! As de agora são imitações baixas e servis, não verdadeiras blasfémias. O ruffler suspirou; os ouvintes suspiraram solidariamente; por momentos, uma depressão geral caiu sobre o grupo, pois, mesmo párias endurecidos como estes não são totalmente despidos de sentimentos e experimentam, de vez em quando, uma sensação passageira de tristeza, em ocasiões especialmente propícias, como neste caso em que o gênio e a arte tinham partido sem deixar herdeiros. Mas uma boa rodada depressa restaurou os espíritos dos chorões. - Mais alguns dos nossos amigos têm apanhado ultimamente? -Alguns, sim. Particularmente os recém-chegados, aqueles que eram pequenos proprietários e que ficaram perdidos no mundo sem casa e sem comida, quando lhes tiraram as terras para serem transformadas em pasto de carneiros. Puseram-se a mendigar e foram presos às rodas dos carros, despidos até à cintura e chicoteados até o sangue correr; depois, amarrados no tronco para serem apedrejados. Mendigaram outra vez e foram chicoteados outra vez e cortaram-lhes uma orelha; mendigaram uma terceira vez pobres diabos, que mais podiam fazer? - e foram marcados na cara com um ferro em brasa e depois vendidos como escravos; fugiram, foram perseguidos e enforcados. Esta é a história resumida, sem muitos pormenores. Outros entre nós têm-se saído melhor. Vinde cá Yokel, Burns e Hodge; mostrem os vossos adornos! Os convocados levantaram-se e tiraram alguns dos farrapos, mostrando as costas, riscadas pelas cicatrizes do chicote; um levantou o cabelo e mostrou o sítio onde existira uma orelha; outro apresentou uma marca no ombro - a letra V - e a orelha mutilada. O terceiro disse: - Sou Yokel, antes um próspero lavrador, com mulher e filhos encantadores; agora sou bastante diferente quanto a bens e título; e a mulher e os filhos desapareceram; pode ser que estejam no céu, talvez no... no outro sítio; mas, que o bom Deus seja louvado, não andam mais por Inglaterra! A minha velha e inocente mãe tentou ganhar o seu pão a tomar conta dos doentes; um deles morreu, os doutores não sabiam como, e foi queimada como bruxa, enquanto os meus filhos olhavam aos prantos. A lei inglesa! Vamos, peguem todos nos copos! Agora todos juntos, com um viva! Bebamos à misericordiosa lei inglesa que a libertou do inferno inglês! Obrigado amigos, a todos e a cada um. Esmolei de casa 69
em casa - eu e a mulher - levando connosco as crianças esfomeadas - mas em Inglaterra é um crime ter fome -, portanto despiram-nos e chicotearam-nos por três aldeias. Bebamos outra vez à saúde da misericordiosa lei inglesa! Pois, o chicote bebeu fundo do sangue da minha Mary e a sua abençoada libertação veio depressa. Está lá enterrada no campo, protegida de todos os males. E as crianças bem, enquanto a lei me chicoteava de vila em vila eles passavam fome. Bebam amigos, só uma gota - uma gota pelas crianças, que nunca fizeram mal a ninguém. Mendiguei outra vez - pedia uma côdea, deram-me o pelourinho e tiraram-me uma orelha; pedi ainda mais uma vez e aqui está o toco da outra, para me tirar essas idéias da cabeça. E pedi ainda mais uma vez, fui vendido como escravo - aqui, no meu rosto, debaixo desta mancha, se a lavasse podíeis ver o S encarnado que o ferro de marcar aqui deixou! Um escravo! Sabeis o que quer dizer essa palavra? Um escravo inglês! - É o que estais a ver à vossa frente. Fugi do meu dono e quando me apanharem - que a praga do céu caia sobre a lei da terra que a instituiu! - serei enforcado! Uma voz aguda atravessou o sombrio ambiente: - Vós não sereis! A partir de hoje essa lei não mais existe! Todos se viraram e viram a fantástica figura do pequeno rei que se aproximava a correr; quando chegou à luz e o viram claramente, houve urna explosão generalizada de perguntas: - Quem é ele? O que é isto? Quem sois vós, boneco? O miúdo ficou firme de pé no meio de todos aqueles olhos surpreendidos e inquiridores, e respondeu com principesca dignidade: - Sou Edward, rei de Inglaterra. Seguiu-se uma grande explosão de gargalhadas, parcialmente de troça e parcialmente de prazer pela excelência da piada. O rei sentiu-se picado. Falou com agressividade: - Vagabundos sem modos, é este o vosso reconhecimento pelo perdão real que acabo de vos prometer? E disse mais, com voz zangada e gestos excitados, mas as palavras perderam-se na tempestade de gargalhadas e comentários trocistas. john Hobbs» fez várias tentativas para se fazer ouvir acima do barulho, até conseguir dizer: - Amigos, ele é o meu filho, um sonhador, um louco, doido varrido; não se preocupem; pensa que é o rei. - Eu sou o rei - disse Edward, virando-se para ele como sabereis à vossa custa, na devida altura. Vós confessastes um crime e dançarás na corda por ele. - Vós ireis trair-me! Vós! Deixa!-me pôr as mãos... - Alto aí! - disse o gigantesco rufiler, metendo-se no meio a tempo de salvar o rei, edando ênfase à sua atitude com um murro que atirou Hobbs ao chão. - Não tendes respeito nem por reis nem por chefes? Se tornardes a ofendê-lo na minha presença estrangular-te-ei com as minhas próprias mãos. 70
Depois disse a sua majestade: - Vós não deveis ameaçar os camaradas, garoto; deveis segurar a vossa língua para que não diga mal deles fora daqui. Sede rei, se isso dá prazer ao vosso louco humor, mas não vos torneis perigoso por causa disso. Pensai na palavra que pronunciastes; isso é traição. Podemos ser maus em coisas menores, mas nenhum de nós é tão baixo a ponto de trair o seu rei; quanto a isso, somos corações leais e fiéis. Vede como falo a verdade; agora, todos juntos: «Longa vida a Edward, rei de Inglaterra!» - Longa vida a Edward, rei de Inglaterra! A resposta do bando veio com uma boa-vontade tão explosiva que fez vibrar o estranho edifico. Por um instante o rosto do pequeno rei iluminou-se de prazer e inclinou ligeiramente a cabeça para dizer com sisuda simplicidade: - Agradeço-vos, meu bom povo. Este resultado inesperado deixou o grupo em convulsões de riso. Quando voltou alguma coisa que se parecesse com silêncio, o ruffler disse, com firmeza mas não sem um toque de bondade: - Deixai-vos disso, rapaz. Não é prudente nem bonito. Estimai a vossa mania, se vos serve, mas escolhei outro título. O funileiro gritou uma sugestão: - Fu-fu Primeiro, rei dos bufões! O título «pegou» imediatamente, cada boca respondeu e um tremendo grito subiu ao ar: - Longa vida a Fu-fu Primeiro, rei dos bufões! - seguido de vivas, assobios e gargalhadas. - Tragam-no para a frente e coroem-no! - Ponham-lhe uma capa! - E um cetro! - Dêem-lhe um trono! Estes e vinte outros gritos saíram ao mesmo tempo; e antes que o pobrezinho pudesse respirar, foi coroado com uma bacia de estanho, coberto com um cobertor desfeito, entronizado num barril e agraciado com um cetro feito com o ferro de soldar do funileiro. Depois, todos se prostraram de joelhos à sua volta e cantaram um coro de saudações irônicas e pedidos de brincadeira, enquanto secavam os olhos pretensamente chorosos com as imundas mangas e com guardanapos: - Sede gracioso connosco, ó doce rei! - Não piseis nos vossos vermes rastejantes, 6 nobre majestade! - Tende misericórdia dos vossos escravos e conforta!-os com um real pontapé!
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- Iluminai-nos e aquecei-nos com os vossos benignos raios, ó reluzente sol da soberania! - Santificai a terra com os vossos pés, para que possamos comer o pó e enobrecermos! - Dignai-vos escutar-nos, ó senhor, para que os filhos dos nossos filhos possam falar da vossa régia bondade e sentirem-se felizes e orgulhosos através dos séculos! Mas foi o funileiro, que era o mais engraçado, que teve a melhor idéia da noite e levou as devidas honras. Ajoelhado, fingiu que beijava o pé do rei; este deu-lhe um pontapé com indignação e ele então começou a pedir aos outros um pano para cobrir o rosto no local tocado pelo pé, dizendo que o queria preservar do contato do ar plebeu e que faria fortuna expondo-o em público a cem sh illings por espetáculo. Foi tão disparatado e prolixo que provocou a inveja e a admiração de toda aquela ralé. Lágrimas de vergonha e indignação caíam dos olhos do pequeno monarca; e pensava com o seu coração: «Tivesse eu dado uma coisa má, eles não seriam mais cruéis; contudo, não lhes dei senão bondade e é assim que me agradecem!»
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XVIII O PRÍNCIPE ENTRE OS VAGABUNDOS O grupo levantou-se de madrugada cedo e seguiu o seu caminho. O céu estava pesado, o chão escorregava sob os pés e o frio do Inverno cortava o ar. Toda a alegria se tinha evaporado; alguns andavam casmurros e silenciosos, outros irritáveis e petulantes, nenhum bem disposto, todos com sede. O ruffier deixou Jack aos cuidados de Hugo, com algumas curtas instruções, e deu ordem a John Carity para se manter afastado dele e deixá-lo em paz; também avisou Hugo para não ser muito duro com o garoto. Depois de algumas horas, o tempo melhorou e as nuvens quase desapareceram. O grupo deixou de tremer e os espíritos começaram a melhorar. Tornavam-se cada vez mais alegres e, finalmente, começaram a troçar uns dos outros e a insultar os viajantes que encontravam na estrada. Depois invadiram uma pequena quinta e instalaram-se na casa enquanto o amedrontado lavrador e os seus acabavam com o presunto que tinham para lhes dar um pequeno-almoço. Acariciavam o queixo da mulher e das filhas, enquanto recebiam a comida das suas mãos, e faziam-lhes gestos obscenos. Atiravam com ossos e vegetais ao lavrador e aos filhos, obrigando-os a esquivaram-se constantemente, e aplaudiam aos gritos quando alguém fazia boa pontaria. Acabaram por passar manteiga na cabeça de uma das filhas, que se estava a queixar demais das suas familiaridades. Quando se foram embora ameaçaram que voltariam para queimar a casa sobre os corpos da família, se alguma denúncia da sua presença chegasse aos ouvidos das autoridades. Cerca do meio-dia, depois de uma caminhada longa e cansativa, a quadrilha parou atrás de uma barreira nos arredores de uma vila razoavelmente grande. Foi permitida uma hora de descanso, depois a equipa espalhou-se para entrar na vila por portas diferentes e cada um dedicar-se ao seu trabalho. Jack» foi mandado com Hugo. Vadiaram por aqui e por ali durante algum tempo. Hugo ficava à procura de uma oportunidade para dar o golpe, mas não apareceu nenhuma e, por fim, disse: - Não vejo nada para roubar; este sítio é miserável. Portanto vamos pedir. - Nós não, vós! Segui a vossa vocação, que vos fica bem. Mas eu não pedirei. - Vós não pedireis! - exclamou Hugo, a olhar para o rei, surpreendido. - Por favor, desde quando vos reformastes? - Que quereis dizer? - Dizer? Não pedistes pelas ruas de Londres toda a vossa vida? - Eu? Idiota! - Poupai os cumprimentos, assim o vosso arsenal durará mais. O vosso pai disse que pedísteis toda a vida. Talvez tenha mentido. Tereis a coragem de dizer que ele mentiu? troçou Hugo. 73
-Aquele a quem cbamais de meu pai? Sim ele mentiu. Hugo respondeu, furioso: - Tomai nota, amigo: Vós não pedis e vós não roubais; que seja. Mas vou-vos dizer o que ides fazer. Fareis de isca enquanto eu peço. Recusa! e ides ver o que vos acontece! O rei ia responder com desprezo, mas foi interrompido por Hugo, que lhe disse: - Alto! Lá vem um com uma boa cara. Vou atirar-me para o chão com um ataque. Quando o desconhecido correr para mim, colocai-vos ao lado dele e caí de joelhos, como se estivésseis a chorar; depois gritai como se todos os demônios da desgraça vos estivessem a roer e dizei: «Oh, senhor, é o meu pobre irmão doente e estamos sem ninguém que nos ajude; que o nome de Deus faça os vossos olhos misericordiosos ver este desgraçado, doente e esquecido- cedei um pequeno penny das vossas riquezas a um esquecido de Deus, prestes a morrer!» E lembrai-vos de continuar a gritar e não pareis enquanto ele não largar o seu penny, se não foge. Depois, Hugo começou logo a gemer, a uivar e a enrolar os olhos e torcer-se todo; e quando o desconhecido passou por eles, esticou-se no chão à sua frente com um grito e começou a Gontorcer-se na terra, em aparente agonia. - Oh meu Deus! - gritou o benevolente desconhecido. - Oh pobre alma, minha pobre alma, como estais sofrendo! Aqui; deixai-me ajudar-vos a levantar. - Ó nobre senhor, tende paciência e que Deus vos ame pelo principesco cavalheiro que sois; mas sinto dores cruéis se me tocam, quando estou assim. O meu irmão ali dirá a vossa senhoria como fico angustiado quando estes ataques me apanham. Um penny, senhor! Um penny para comprar alguma comida; depois, deixai-me com as minhas dores. - Um penny4 Tereis três, pobre criatura! - E começou à procura nos bolsos, com uma pressa nervosa de os encontrar. - Aqui, pobre garoto, tomai-os e não me agradeçais. Agora vinde aqui, meu rapaz, e ajudai-me a levar o vosso irmão doente para casa, onde... - Não é o meu irmão - disse o rei, interrompendo-o. - O quê? Não é o vosso irmão? - Oh, ouvi-o - resmungou Hugo, a ranger os dentes consigo próprio -, ele nega o próprio irmão, que está com os pés para a cova. - Rapaz, estais realmente mal, se não reconheceis um irmão. Que vergonha! E ainda incapaz de se mexer. Mas se não e o vosso irmão, quem e então? - Um mendigo e ladrão! Recebeu o vosso dinheiro ao mesmo tempo que roubava o vosso bolso. E se quiserdes fazer uma cura milagrosa ponde o vosso cajado sobre os ombros dele e carregai. A providência fará o resto. Mas Hugo não esperou pelo milagre. Num instante, estava de pé e a correr, com o cavalheiro atrás dele, todo vermelho e a gritar bastante. O rei, a suspirar ao céu de gratidão pela sua liberdade, correu na direção oposta e não diminuiu o passo até estar longe. Foi pela primeira estrada que apareceu e depressa tinha saído da vila. Andava o mais depressa que podia, a olhar nervosamente para trás; mas o medo acabou por abrandar e um agradável sentimento de segurança tomou o seu lugar. Percebeu que estava 74
com fome e muito cansado. Parou numa quinta; mas quando ia começar a falar foi interrompido e mandado embora com rudeza. As suas roupas não o ajudavam. Prosseguiu o seu caminho, ofendido, indignado e resolvido a não voltar a expor-se a semelhante tratamento; mas a fome é mais forte do que o orgulho. Assim, quando escureceu, tentou novamente noutra casa, mas ainda foi pior do que na primeira, pois insultaram-no e ameaçaram-no com a prisão dos vagabundos se não se fosse logo embora. Chegou a noite, fria e encoberta, e ainda o cansado monarca seguia lentamente pelos caminhos. Não podia parar, pois, sempre que se sentava para descansar, o frio chegava-lhe aos ossos. À medida que andava pela tristeza solene e pela vastidão vazia da noite, ia passando por sensações e situações que eram completamente novas para ele. Às vezes ouvia vozes a aproximarem-se, a passarem por ele e depois a afastarem-se; e como das figuras não via mais do que uma espécie de mancha sem forma, pareciam coisas fantásticas que lhe davam arrepios. Ocasionalmente via um brilho luminoso aparentemente sempre muito longe -, quase como se fosse num outro mundo; se ouvia o tinir de um sino de ovelha era de uma maneira vaga, distante, indistinta; o som abafado dos rebanhos chegava pelos ventos noturnos em cadência decrescente, como um pranto; uma vez ou outra ouvia-se o uivar magoado de algum cão perdido nos espaços invisíveis do campo e da floresta; todos os sons eram remotos a fazer o pequeno rei sentir que toda a vida e atividade estavam muito longe e que estava sozinho, sem companhia, no meio de uma solidão imensa. Lá seguiu aos tropeços, às vezes surpreendido com a leve agitação das folhas sobre a sua cabeça, de tal maneira se parecia com murmúrios humanos; e, de repente, deu com a luz cintilante de uma lanterna de lata muito próxima. Escondeu-se nas sombras e ficou à espera. A lanterna estava pendurada na porta aberta de um celeiro. O rei esperou algum tempo - não se ouvia nada e ninguém se mexia. Ficou tão frio ali parado e o convidativo celeiro parecia tão tentador, que, por fim, resolveu arriscar tudo e entrar. Começou a andar depressa, furtivamente, e quando estava quase na umbreira ouviu vozes atrás de si. Escondeu-se atrás de uma pipa, já dentro da casa, e abaixou-se. Dois trabalhadores da quinta chegaram com a lanterna e começaram a trabalhar, enquanto conversavam. Andavam às voltas com a lanterna, permitindo ao rei olhar com atenção, e assim viu o que parecia ser um estábulo de bom tamanho, ao fundo do celeiro, para onde poderia ir quando ficasse sozinho. Reparou também onde ficava uma pilha de mantas de cavalo que puderia requisitar naquela noite, para serviço da coroa inglesa. Por fim, os homens acabaram e foram-se embora com a lanterna, depois de fecharem a porta. O regelado rei foi até às mantas, o mais depressa que a escuridão lhe permitia; agarrou-as e chegou ao estábulo sem perigo. Com duas mantas fez uma cama e cobriu-se com outras duas. Agora era um monarca feliz, embora as coberturas fossem finas e frias e não dessem calor suficiente, além de terem um cheiro a cavalo tão forte que era quase sufocante. Embora o rei estivesse esfomeado e regelado, o cansaço e o sono eram tantos que adormeceu num estado de semi-inconsciência. Então, quando estava no ponto de se soltar completamente, sentiu distintamente alguma coisa a tocar-lhe! Num segundo estava completamente acordado, sem respirar. O frio terror desse toque misterioso às escuras 75
quase que lhe parou o coração. Continuou a ouvir e a esperar, durante o que pareceu ser muito tempo, mas nada se mexia nem se ouvia nada. Por fim, voltou a cair na sonolência e sentiu outra vez o toque misterioso! Era aterradora, esta leve pressão de uma presença silenciosa e invisível; fê-lo sentir-se doente com medo de fantasmas. O que é que deveria fazer? Deixar as confortáveis instalações e fugir deste horror impenetrável? Mas fugir para onde? Não podia sair do celeiro; e a idéia de correr às cegas pela escuridão, dentro da prisão de quatro paredes, com o fantasma a correr atrás dele e a tocá-lo no rosto ou no ombro, com aquela suavidade horrorosa, era intolerável. Mas ficar onde estava e suportar aquela morte em vida toda a noite - seria melhor? Não. O que é que restava então fazer? Ah, só havia um caminho e ele bem sabia; era preciso esticar o braço e tocar na coisa! Tinha sido fácil chegar a esta conclusão; mas era muito difícil tomar coragem e fazêlo. Por três vezes esticou o braço um bocadinho, cuidadosamente, na escuridão; mas encolhia-o imediatamente, engolindo em seco, não porque tivesse encontrado alguma coisa, mas porque sabia que estava quase a encontrar. Até que à quarta tentativa foi um bocadinho mais longe e a mão tocou em alguma coisa macia e quente. Isto quase que o petrificou de medo - a sua cabeça estava em tal estado que não conseguia pensar em mais nada do que num cadáver, morto â pouco tempo e ainda quente. Pensou que preferia morrer a tocá-lo outra vez; mas dentro de pouco tempo a sua mão trémula estava a tentar novamente - contra a sua vontade e sem o seu consentimento -, mas a tentar mesmo assim. Encontrou um molho de cabelos compridos; estremeceu, mas continuou pelo cabelo e encontrou o que parecia ser uma corda quente - continuou pela corda e encontrou um inocente bezerro! -, pois a corda não era nada mais do que a cauda do animal. O rei estava cordialmente envergonhado por ter sentido tanto medo por causa de uma coisa tão trivial como um bezerro adormecido; mas não precisava de se sentir tão mal por causa disso, pois não fora o bezerro que o tinha assustado mas sim uma coisa horrorosa ínexistente que o animal representara; e qualquer outro menino, nesses tempos supersticiosos, teria sofrido e agido como ele. O rei ficou muito satisfeito, não só por descobrir que a criatura era apenas um bezerro, mas também por ter a sua companhia; pois estava-se a sentir tão solitário e sem amigos que até a companhia e camaradagem deste humilde animal eram bem-vindas. Tinha sido tão maltratado e agredido pelos seus semelhantes que até era consoladora a companhia de um que, pelo menos, tinha um coração terno e sensível, mesmo que carecesse de dotes mais elevados; por tudo isto o rei resolveu deixar-se de etiquetas e fazer-se amigo do bezerro. Enquanto passava a mão no lombo quente e escorregadio - pois o bicho estava ali mesmo ao pé -, lembrou-se que o borrego poderia ser utilizado de várias maneiras. Assim refez a cama, estendendo-a até ao bezerro; depois enroscou-se encostado no lombo do bicho, pôs as cobertas sobre ele e o seu amigo e em um ou dois minutos estava tão quente e confortável como sempre estivera nas camas almofadadas do magnífico palácio de Westminster. Logo lhe vieram pensamentos agradáveis; a vida já parecia melhor. O vento noturno aumentava e assobiava por entre os cantos e as esquinas - mas ao rei parecia música, agora que estava aconchegado e confortável. Apenas se encostou mais ao seu amigo, num 76
conforto de quente felicidade e caiu logo num sono sem sonhos. Lá fora, os cães uivavam, as vacas mugiam melancolicamente e a tempestade rugia, fazendo cair bátegas no telhadomas sua majestade de Inglaterra dormia imperturbável e o mesmo fazia o bezerro, que não se assustava com tempestades nem se intimidava com a convivência real.
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XIX O PRÍNCIPE ENTRE OS CAMPONESES
De manhã cedo, ao acordar, o rei descobriu que durante * noite um rato molhado e esperto tinha subido para a cama * feito um confortável leito no seu peito. Ao ser acordado fugiu logo. O rapaz sorriu e disse: «Pobre coitado, não precisa de ter medo. Seria uma vergonha se magoasse os indefesos, estando eu mais indefeso ainda. Aliás, este encontro é auspicioso, pois se um rei desce tão baixo que até os ratos usam o seu corpo como cama, isso só pode querer dizer que a sua sorte, não podendo descer mais, está prestes a mudar.» Levantou-se e saiu do estábulo e nesse momento ouviu vozes de crianças. A porta do celeiro abriu-se e duas rapariguinhas entraram. Assim que o viram deixaram de rir e falar e pararam quietas a olhá-lo com grande curiosidade; depois começaram a segredar uma com a outra, aproximaram-se mais e pararam outra vez para olhar e sussurrar. Por fim, tomaram coragem e começaram a falar em voz alta sobre ele. Uma disse: - Tem um rosto agradável. A outra acrescentou: - E um bonito cabelo. - Mas está muito mal vestido. - E parece esfomeado. Aproximaram-se ainda mais e começaram a andar à sua volta, semienvergonhadas, examinando-o pormenorizadarnente como se fosse um animal novo e estranho. Por fim, pararam à sua frente, de mãos dadas para se protegerem, e uma delas ganhou coragem e perguntou-lhe com uma honestidade sem rodeios: - Quem sois, rapaz? - Sou o rei - foi a sua sisuda resposta. As crianças esgazearam os olhos e ficaram em silêncio durante meio minuto. Depois, a curiosidade quebrou o silêncio: - O rei? Que rei? - O rei de Inglatera. As crianças olharam uma para a outra, depois para ele, depois outra vez uma para a outra - pensativas, perplexas - e depois uma delas disse: - Estais a ouvi-lo Margery? Ele disse que é o rei. Isso pode ser verdade?
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- Como pode ser outra coisa, Prissy? Porque é que ele ia mentir? Porque, reparai, se não fosse verdade seria uma mentira. Certamente que seria. Agora, pensa!. Todas as coisas que não são verdade são mentiras- não podeis tirar outra conclusão. Era um bom e firme argumento, sem uma única falha, e deitou por terrra as dúvidas de Prissy. Pensou durante um momento, depois honrou o rei com um simples comentário: - Se sois verdadeiramente o rei, então acredito em vós. - Sou verdadeiramente o rei. Isto resolveu o assunto. A realeza de sua majestade foi aceite sem mais perguntas ou discussões e as duas meninas começaram imediatamente a perguntar-lhe como é que ele tinha chegado até ali, porque é que estava vestido de uma maneira tão pouco nobre e tudo o mais sobre a sua situação. Deu-lhe um grande alívio contar as suas provaçoes sem que fossem ridicularizadas ou postas em dúvida; portanto, contou a sua aventura com sentimento, esquecendo-se mesmo da fome; e foi aceite com a mais profunda e terna simpatia pelas duas gentis meninas. Mas quando lhes contou os últimos acontecimentos e souberam que estava há tanto tempo sem comida, interromperam-no e levaram-no a correr para casa para lhe dar um pequeno-almoço. Agora o rei estava feliz e animado e disse para si: «Quando voltar ao meu lugar vou privilegiar sempre as crianças, lembrando-me como elas confiaram e acreditaram em mim nos tempos difíceis. enquanto as mais velhas, que se acham mais espertas, fizeram troça de mim e acharam-me um mentiroso.» A mãe das crianças recebeu o rei com carinho e ficou cheia de pena dele; pois o seu estado miserável e aparente loucura tocaram no seu coração de mulher. Era viúva e bastante pobre; portanto tinha visto o suficiente para sentir o seu infortúnio. Calculou que o pobre doido se devia ter perdido dos seus amigos e guardiões e tentou descobrir de onde é que ele vinha, para ver como podia entregá-lo; mas todas as suas referências sobre aldeias e vilas mais próximas e todas as suas perguntas ficaram sem resposta - o rosto do rapaz e as suas respostas mostravam que não conhecia nada do que ela estava a falar. Contava sobre a vida na corte com convicção e simplicidade e chorou, mais do que uma vez, quando falava do falecido rei, «seu pai»; mas sempre que a conversa mudava para assuntos mais corriqueiros perdia o interesse e ficava calado. A mulher estava muito intrigada, mas não desistiu. Enquanto cozinhava fazia perguntas aparentemente inocentes, mas que se destinavam a fazer com que o miúdo se traísse e contasse o seu segredo. Falou de gado - ele não mostrou nenhum interesse; depois falou de carneiros - com o mesmo resultado; portanto, a hipótese que tinha posto de que ele fosse um pastor não estava certa; falou então de moinhos, de tecelões, funileiros, ferreiros, negócios e negociantes de todos os tipos; e sobre BedIam, prisões e asilos de caridade; mas, qualquer que fosse o assunto, via-se sempre frustrada na sua pesquisa. Não totalmente, contudo, pois via que tinha reduzido as hipóteses aos serviços domésticos. Sim, agora tinha a certeza de que estava no caminho certo, ele deveria ter sido um criado doméstico. Tentou nessa área e o resultado foi desencorajante. Falar em varrer parecia cansá-lo; acender o fogo não provocou nenhuma reação; esfregar e fazer a barrela não o entusiasmaram. Então, a boa mulher falou em cozinhar, sem muitas 79
esperanças e mais como pró-forma. Para sua surpresa e grande alegria o rosto do rei imediatamente se iluminou! Ah! Pensou ela que finalmente tinha descoberto e estava muito orgulhosa da esperteza persistente e do tato que tinham sido necessários para obter tal resultado. A sua língua exausta teve então oportunidade de descansar; pois o rei, inspirado por uma fome devoradora e pelos cheiros apetitosos que se soltavam dos tachos e panelas fumegantes, ficou à vontade e fez uma tão eloquente dissertação sobre certos pratos saborosos que em três minutos a mulher dizia para si mesma: «De uma coisa tenho a certeza, ele ajudou numa cozinha.,> E então o rei alargou a sua ementa e falou de certos acepipes com tal apreciação e entusiasmo, que a boa mulher disse consigo própria: «Bom Deus! Como é que ele pode conhecer tantos pratos e tão finos ainda por cima? Pois esses aí aparecem só nas mesas dos ricos e dos grandes. Ah, agora estou a perceber! Pária esfarrapado que seja, deve ter servido no palácio antes de enlouquecer- sim, ele deve ter ajudado na própria cozinha do rei! Vou experimentá-lo.» Cheia de vontade de provar a sua sagacidade, disse ao rei para tomar conta da cozinha por um instante - dando a entender que ele poderia juntar um prato ou outro, que quisesse -, depois saiu da sala e fez sinal às crianças para a seguirem. O rei murmurou: - Outro rei de Inglaterra recebeu uma encomenda assim, em tempos passados; não é nada contra a minha dignidade aceitar um posto que o grande Alfredo assumiu. Mas vou tentar cumprir melhor do que ele, pois deixou os bolos queimarem-se. A intenção era boa, mas os resultados não saíram de acordo; pois este rei, tal como o outro, depressa se deixou absorver pelos seus importantes assuntos e aconteceu a mesma calamidade - os pratos queimaram-se. A mulher voltou a tempo de salvar o pequenoalmoço da completa destruição; é imediatamente tirou o rei dos seus sonhos com palavras duras e vivas. Depois, ao ver que, preocupado que ele estava por não ter merecido a confiança, acalmou-se imediatamente e foi gentil com ele. O miúdo comeu bem e com satisfação, o que o deixou recuperado e feliz. A refeição distinguiu-se pela interessante particularidade de que o protocolo foi dispensado por ambas as partes; contudo, nenhum dos que recebiam o favor estava ciente de que tinha sido concedido. A boa mulher tinha pensado em alimentar o seu jovem vagabundo num canto, com restos, como qualquer outro pobre ou como um cão; mas estava com tantos remorsos pela descompostura que lhe tinha dado, que fez o possível para o compensar, deixando-o sentar-se à mesa e comer com os da casa; o rei, pelo seu lado, sentia-se tão culpado por ter falhado na confiança depositada, depois de a família ser tão simpática com ele, que se obrigou a descer ao nível deles, em vez de exigir que a mulher e as crianças ficassem de pé e o servissem, enquanto ele ocupava a mesa delas na situação solitária própria do seu nascimento e dignidade. Por vezes, convém a todos os intervenientes prescindir das formalidades. A boa mulher sentiu-se feliz o dia inteiro, congratulando-se pela sua magnânima condescendência com um vagabundo; e o rei sentia-se não menos complacente com a sua benigna humildade perante uma aldeã vulgar. Quando o pequeno-almoço acabou, a mulher disse ao rei para lavar os pratos. A ordem surpreendeu-o e esteve quase a rebelar-se; mas disse para si mesmo: «Se Alfredo, 80
o Grande, tomou conta dos bolos, com certeza que também lavaria os pratos, portanto vou tentar.» Fez bastante mal o trabalho, o que também o surpreendeu, pois a lavagem de facas e colheres de madeira tinha-lhe parecido coisa fácil. Era uma operação aborrecida e complicada, mas por fim lá conseguiu terminar. Agora estava a ficar impaciente para continuar a sua jornada; contudo, não ia ser com essa facilidade toda que se iria ver livre da esperta mulher. Ela começou por lhe dar alguns trabalhos pequenos, o que ele conseguiu fazer razoavelmente num tempo aceitável. Depois pô-lo a descascar maçãs juntamente com as miúdas; mas ele deu-se tão mal com este serviço que o mandou parar e lhe deu uma faca de talho para afiar. A seguir fê-lo cardar uma lã, que estava misturada com resina, e isto deu-lhe tanto trabalho que achou que já tinha ultrapassado o bom rei Alfredo em matéria de heroísmo. Mas quando, logo depois da refeição do meio-dia, a boa mulher lhe deu um cesto de gatos para afogar, é que ele resolveu desistir. Pelo menos estava quase a fazê-lo, pois sentia que tinha que pôr um limite à situação e achava que o afogamento de gatos era a altura certa - quando se deu uma interrupção. Quem apareceu foi John Carity, com um saco de mendigo às costas, e Hugo! O rei descobriu os malandros a aproximarem-se da cancela da frente antes que eles tivessem oportunidade de o ver; portanto, não disse nada sobre pôr um limite à situação, mas antes pegou no cesto com os gatinhos e saiu discretamente pela porta das traseiras, sem uma palavra. Deixou as criaturas numa casa da quinta e seguiu apressadamente por um caminho estreito que passava pelas traseiras.
XX O PRÍNCIPE E O EREMITA O aterro alto escondia-o da casa, portanto, concentrou todas as suas forças e correu para um bosque ao longe. Nem olhou para trás até ter quase chegado à proteção da floresta; nessa altura virou-se e pareceu-lhe ver duas figuras à distância. Isso foi o suficiente; nem esperou para os observar com mais atenção e foi mais depressa, sem abrandar o passo até estar bem dentro das escuras profundezas do bosque. Então parou, persuadido de que estava razoavelmente seguro. Apurou o ouvido, mas a quietude era profunda e solene, assustadora mesmo, e deprimente para o espírito. De vez em quando alguns sons chegavam aos seus ouvidos sempre atentos, mas eram tão distantes, vagos e misteriosos que não pareciam vir de coisas vivas mas sim de fantasmas de outros tempos, a gemer e a carpir. Conseguiam ser ainda mais aterradores do que o silêncio que interrompiam. Ao princípio pensou em ficar ali onde estava o resto do dia; mas depressa um arrepio passou pelo corpo suado e acabou por ter que voltar a andar para se manter quente. Cortou a direito pela floresta, à espera de encontrar uma estrada; mas ficou desapontado. Caminhou por muito tempo, mas quanto mais andava mais parecia que o bosque se 81
tornava mais denso. O tempo começou a escurecer progressivamente e o rei percebeu que a noite estava a chegar. Dava-lhe arrepios pensar em passá-la num sítio tão estranho; tentou então andar mais depressa, mas não conseguia porque tropeçava constantemente em raízes e prendia-se nos galhos e nos arbustos. Que feliz ficou quando finalmente deu.com o brilho de uma luz! Aproximou-se com cuidado, parando com frequência para ver e ouvir à volta. A claridade vinha de uma janela sem vidro numa pequena cabana. Então ouviu falar e apeteceu-lhe fugir e esconder-se; mas mudou de idéias imediatamente, pois a voz estava nitidamente a rezar. Foi até à única janela da cabana, pôs-se em bicos dos pés e deu uma olhadela lá para dentro. O quarto era pequeno com o chão em terra batida, pelo uso; num canto havia um catre feito de galhos e um cobertor ou dois, todos esfarrapados; perto havia um jarro, copo, bacia e dois ou três tachos e panelas; havia também uma banqueta baixa e um banco de três pernas; no chão arrefeciam as cinzas de um pequeno fogo; em frente de um relicário, iluminado por uma única vela, ajoelhava-se um homem de idade e, numa velha caixa de madeira, ao seu lado, estavam um livro aberto e uma caveira. O homem era grande e ossudo, com o cabelo e a barba muito longos e brancos como a neve; vestia-se com uma túnica de peles de carneiro que ia do pescoço aos tornozelos. - Um santo eremita! - disse o rei consigo próprio. - Na verdade agora estou com sorte. O eremita levantou-se; o rei bateu à porta. Uma voz profunda respondeu: - Entrai! Mas deixai o pecado para trás, pois o solo que ides pisar é sagrado! O rei entrou e parou. O eremita dirigiu-lhe um par de olhos brilhantes e inquietos e disse-lhe: - Quem sois vós? - Sou o rei - foi a resposta, dita com plácida simplicidade. - Bem-vindo, 6 rei! - gritou o eremita com entusiasmo. Pôs-se a andar pelo quarto com uma atividade febril e a dizer constantemente «Bem-vindo, bem-vindo,>; arrumou o banco, fez o rei sentar-se, atirou alguns bocados de lenha ao fogo e, finalmente, começou a andar com nervosismo de um lado para o outro. - Bem-vindo! Muitos vieram aqui à procura de um santuário, mas não eram merecedores e foram mandados embora. Mas um rei que atira fora a sua coroa, despreza os vãos esplendores do seu trono e veste o corpo com farrapos, para dedicar a sua vida à santidade e à mortificação da carne esse é merecedor e bem-vindo pode recolher-se aqui por toda a sua vida, até que a morte chegue. O rei ainda tentou interrompê-lo para lhe explicar, mas o eremita não lhe prestou atenção - aparentemente nem mesmo o ouvia e continuava a falar em voz alta, com uma crescente energia. - Aqui estareis em paz. Ninguém virá ao vosso refúgio para vos incomodar com súplicas para que volteis para essa vida vazia que Deus vos inspirou a abandonar. Ides rezar, estudar o Livro, meditar sobre as loucuras e ilusões deste mundo e sobre as coisas 82
sublimes do próximo; ides alimentar-vos das cascas e das ervas e punir o vosso corpo diariamente com chibatadas, para purificar a alma. Usareis uma camisa áspera escostada à pele; bebereis somente água: estareis em paz, sim completamente em paz; pois aquele que vos vier procurar voltará perplexo; ele não vos encontrará e não vos fará mal. O velho, ainda a andar de um lado para o outro, parou de falar em voz alta e começou a murmurar. O rei aproveitou esta oportunidade para falar do seu caso e fê-lo com uma eloquência inspirada na falta de à-vontade e na apreensão. Mas o eremita aproximou-se dele ainda a murmurar e disse-lhe, com um tom impressionante: - Shiu! Dir-vos-ei um segredo! - Abaixou-se para lhe contar, mas apercebeu-se de alguma coisa e ficou à escuta. Depois de alguns momentos dirigiu-se nas pontas dos pés até à janela, pôs a cabeça de fora e olhou a toda a volta na escuridão, depois voltou nas pontas dos pés, encostou o rosto ao do rei e disse-lhe: - Sou um arcanjo! O rei levantou-se num pulo e disse consigo mesmo: «Quisera Deus que eu encontrasse outra vez os fora-da-lei; pois agora sou prisioneiro de um louco!,, A sua apreensão aumentava e o seu rosto mostrava-o. Numa voz baixa e excitada, o eremita continuou: - Vejo que sentis o ambiente! Há medo no vosso rosto! Ninguém pode ficar neste sítio sem ser afetado; pois é o ambiente do céu. Vou lá e volto num piscar de olhos. Fui feito arcanjo aqui mesmo, há cinco anos, por anjos mandados do céu para me conferir essa fantástica dignidade. A sua presença encheu este sítio com um brilho intolerável. E eles ajoelharam perante mim, rei! Sim, ajoelharam perante mim, pois eu era maior do que eles. já andei pela corte do céu e já tive conversas com os patriarcas. Tocai na minha mão, não tenhais receio, tocai-a. Aqui, agora já tocastes numa mão que foi apertada por Abraão, Isaac e Jacob! Pois eu andei nos salões dourados e vi a Divindade frente a frente! Fez uma pausa, para dar dramaticidade ao discurso; depois, o seu rosto mudou de repente e começou a andar outra vez enquanto dizia, com uma ironia zangada: - Sim, sou um arcanjo; um simples arcanjo! Eu, que estava para ser papa! E deveria ter sido papa, pois o céu tinha-o dito, mas o rei dissolveu a minha casa religiosa e eu, pobre e obscuro monje sem amigos, fui lançado no mundo sem um lar, roubado ao meu poderoso destino! Aqui pôs-se a murmurar outra vez, enquanto batia na testa com o punho, numa raiva fútil, articulando de tempos a tempos uma praga venenosa, e noutras alturas um patético «Não sou nada mais do que um arcanjo, quando deveria ter sido papa!» Ficou a falar assim durante uma hora, enquanto o pobre reizinho ficava ali sentado a sofrer. Até que a agitação do velho parou de repente e tornou-se todo amabilidades. A voz suavizou-se e o eremita desceu das nuvens para ficar de conversa, com tanta simplicidade e naturalidade que depressa conquistou completamente o coração do rei. O velho devoto levou o rapaz para mais perto do fogo e pô-lo à vontade; medicou as suas pequenas feridas e esfoladelas com uma mão suave e eficiente; e, depois, pôs-se a preparar uma refeição sempre a conversar agradavelmente, segurando o garoto pelo queixo ou acariciando-lhe a 83
cabeça de tempos a tempos, de uma maneira tão meiga que em pouco tempo todo o medo e repulsa inspirados pelo «arcanjo» tinham mudado para reverência e afeto pelo homem. Este feliz estado de coisas continuou enquanto os dois comiam a ceia; a seguir, depois de uma oração em frente do relicário, o eremita pôs o menino na cama, num pequeno quarto contínuo, aconchegando-o, bem apertado, como uma mãe faria; e, depois, deixou-o com uma carícia de despedida, sentou-se ao pé do fogo e começou a esfregar as mãos distraidamente. Fez uma pausa; bateu algumas vezes na testa com os dedos, como se estivesse a tentar lembrar-se de alguma coisa que lhe tinha fugido da cabeça. Levantouse então, apressado, entrou no quarto do seu hóspede e disse: - Vós sois rei? - Sim - foi a resposta, com uma voz sonolenta. - Que rei? - Da Inglaterra. - Da Inglaterra. Então Henrique morreu? - Infelizmente é verdade. Sou o seu filho. Uma expressão pesada apareceu no rosto do eremita e fechou as mãos ossudas com uma energia vingativa. Ficou de pé alguns momentos a respirar depressa e a engulir repetidamente e depois disse numa voz agitada: - Sabeis que foi ele que nos largou no mundo sem casa e sem lar? Não houve resposta. O velho inclinou-se, inspeccionou o rosto descansado do menino e ficou a ouvir a sua plácida respiração. «Ele dorme - dorme profundamente»; e a careta desapareceu para dar lugar a uma expressão de satisfação demoníaca. Um sorriso passou pelo rosto do adormecido. O eremita murmurou: «Portanto, o seu coração está feliz», e foise embora. Andou às voltas pela sala, à procura de alguma coisa, parando às vezes para ouvir, outras sacudindo a cabeça, enquanto olhava para a cama; e sempre a sussurrar, sempre a murmurar consigo mesmo. Por fim, encontrou aquilo que procurava - uma faca de talho e uma pedra de amolar. Sentou-se ao pé do fogo e começou a afiar a faca na pedra, ainda a murmurar e a soltar exclamações em voz baixa. A ventania assobiava à volta daquele sítio solitário e as misteriosas vozes da noite ouviam-se à distância. Os olhos brilhantes dos atrevidos ratos espreitavam o velho das suas rachas e abrigos, mas ele continuava, arrebatado e completamente absorto, no seu trabalho. Uma vez ou outra passava o polegar pelo fio da faca e fazia que sim com a cabeça, satisfeito: «Está a ficar mais afiada - sim, mais afiada.» Continuou entretido com os seus pensamentos sem reparar no tempo que passava, interrompendo ocasionalmente o trabalho tranqüilo para falar: - O seu pai atacou-nos, destruiu-nos e fez baixar o fogo eterno. Sim, o fogo eterno. Lívrou-se de nós, mas porque essa era a vontade de Deus; não nos devemos lamentar. Mas ele, também, não se livrou do fogo. Não conseguiu fugir desse fogo abrasador, implacável, que não perdoa; esse fogo eterno, perdurável... 84
E continuava a murmurar sem parar, às vezes continha uma gargalhada malvada, depois repetia: - Foi o seu pai que fez tudo. Não sou mais do que um arcanjo - se não fosse por ele seria papa! O rei mexeu-se. O eremita correu ao pé da cama sem fazer barulho, caiu de joelhos e inclinou-se sobre o corpo adormecido, com a faca levantada. O menino mexeu-se outra vez; os seus olhos abriram-se por um momento, mas sem ver nada; logo a seguir a tranqüilidade da respiração deu a entender que tinha voltado a dormir profundamente. O eremita olhou e ouviu durante algum tempo, na mesma posição e quase sem respirar; depois baixou o braço devagar e acabou por se ir embora, enquando dizia: - Já passa muito da meia-noite; é melhor que ele não grite, não vá por acaso alguém passar perto. Foi até à sua enxerga e recolheu um farrapo aqui, uma ponta ali, uma outra mais adiante; depois voltou e, com movimentos cuidadosos e suaves, conseguiu atar os tornozelos do rei um ao outro, sem o acordar. A seguir, experimentou atar os pulsos; fez várias tentativas de os cruzar, mas o menino tirava sempre uma das mãos, mesmo quando a corda estava em posição para ser atada; mas, por fim, quando o arcanjo estava quase a desistir, cruzou as mãos sozinho e foram logo atadas. A seguir, uma ligadura foi passada por baixo do queixo e à volta da cabeça, bem apertada - com tanta suavidade, tão gradualmente e com tanto jeito onde os nós se encontravam, que o rapaz continuou a dormir em paz, sem se mexer.
XXI HENDON VEM EM SOCORRO O velho afastou-se, pé-ante-pé, curvado e secretivo, como um gato, e trouxe a banqueta baixa. Sentou-se com metade do corpo iluminado pela fraca e trémula vela, a outra metade na sombra; e então, com os olhos cravados no menino adormecido, manteve pacientemente a sua vigília, esquecido da passagem do tempo, afiando suavemente a faca enquanto murmurava consigo. O seu aspecto e a postura não se pareciam senão com uma monstruosa aranha prestes a atacar um indefeso inseto preso na sua rede. Muito tempo depois, o velho, que já estava a olhar sem ver, de tal modo a sua mente se perdera numa abstração sonolenta, reparou de repente que os olhos do miúdo estavam completamente abertos e olhavam com terror para a faca. Um sorriso de demônio satisfeito assomou ao rosto do velho, que falou sem mudar de atitude: - Filho de Henrique VIII, rezastes? O menino lutou com as suas amarras, indefeso: ao mesmo tempo saía-lhe das maxilas amarradas um som abafado, que o eremita decidiu interpretar como uma resposta afirmativa à sua pergunta. 85
- Então rezai de novo. Rezai a oração dos que vão morrer! Um arrepio fez estremecer o corpo do rapaz e o seu rosto empalideceu. Depois lutou outra vez para se libertar, dando voltas e torcendo-se para todos os lados; a puxar frenética, enérgica e desesperadamente - mas inutilmente também - para rebentar as amarras; e durante todo esse tempo o velho ogre sorria para ele, mexia a cabeça e placidamente afiava a faca, murmurando de tempos a tempos: «Os momentos são preciosos, poucos e preciosos, rezai a oração dos que vão morrer!» O menino soltou um rugido desesperado e parou de lutar, estafado. Vieram as lágrimas, a escorrer uma a uma pelo seu rosto; mas esta visão de cortar o coração não fez nenhum efeito no velho selvagem. A alvorada nascia; o eremita notou-o e falou depressa, com um toque de apreensão nervosa na voz: - Não posso continuar a permitir-me este êxtase! A noite já se foi. Parece só um momento - um momento só; pudesse durar um ano! Semente do destruidor da Igreja, fechai os vossos olhos prestes a perecer, se receais ver... O resto perdeu-se em murmúrios inarticulados. O velho caiu de joelhos, a faca na mão, e inclinou-se sobre o menino que tentava falar em vão. Ouviu-se o som de vozes perto da cabana; a faca caiu da mão do eremita. Atirou uma pele de carneiro sobre o miúdo e levantou-se a tremer. Os sons aumentaram e as vozes tornaram-se mais altas e zangadas; a seguir, ouviram-se pancadas e gritos de socorro; depois passos precipitados de fuga. Imediatamente se ouviu uma série de pancadas tempestuosas na porta da cabana, seguidas por: - Ó da casa! Abri! E despachai-vos, em nome de todos os demônios! Oh, este era o mais abençoado som que jamais tinha chegado aos ouvidos do rei; pois era a voz de Miles Hendon! O eremita, a ranger os dentes, saiu rapidamente do quarto, fechando a porta atrás de si; e imediatamente ouviu a seguinte conversa, vinda da «capela»: - Homenagens e saudações, reverendo senhor! Onde é que está o miúdo... o meu miúdo? - Que miúdo, amigo? - Que miúdo! Nada de mentiras, senhor padre, não me decepcioneis! Não estou com humor para tal. Perto daqui encontrei os patifes que eu julgava que o tinham roubado de mim e fi-los confessarem; disseram que ele andava outra vez à solta e que o tinham seguido até à vossa porta. Mostraram-me mesmo as suas pegadas. Parai de simular, senão, sagrado senhor, se não mo entregardes... Onde é que ele está? - Oh! Bom senhor, talvez vos estejais a referir ao esfarrapado vadio que passou aqui a noite. Se alguém como vós se pode interessar por alguém como ele, sabei então que o mandei fazer-me um recado. Voltará em breve.
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- Em breve? Quão breve? Vamos, não percais tempo, será que não o posso alcançar? Quanto tempo se vai demorar? - Não precisais de vos mexer; ele voltará muito depressa. - Que seja, então. Tentarei esperar. Mas esperai aí! Vós mandaste-lo fazer um recado? Verdadeiramente, isso só pode ser uma mentira - ele não iria. Puxaria a vossa velha barba se lhe fizésseis tamanha insolência. Estais a mentir, meu amigo; certamente que estais. Ele não iria, nem por vos nem por nenhum outro homem. - Por nenhum bomem não, felizmente. Mas eu não sou um homem. - O quê? Então, em nome de Deus, o que sois vós? - É segredo; prestai atenção para não o revelar. Sou um arcanjo! - Filho de Henrique VIII, rezastes? O menino lutou com as suas amarras, indefeso: ao mesmo tempo saía-lhe das maxilas amarradas um som abafado, que o eremita decidiu interpretar como uma resposta afirmativa à sua pergunta. - Então rezai de novo. Rezai a oração dos que vão morrer! Um arrepio fez estremecer o corpo do rapaz e o seu rosto empalideceu. Depois lutou outra vez para se libertar, dando voltas e torcendo-se para todos os lados- a puxar frenética, enérgica e desesperadamente - mas inutilmente também - para rebentar as amarras; e durante todo esse tempo o velho ogre sorria para ele, mexia a cabeça e placidamente afiava a faca, murmurando de tempos a tempos: «Os momentos são preciosos, poucos e preciosos, rezai a oração dos que vão morrer!» O menino soltou um rugido desesperado e parou de lutar, estafado. Vieram as lágrimas, a escorrer uma a uma pelo seu rosto; mas esta visão de cortar o coração não fez nenhum efeito no velho selvagem. A alvorada nascia; o eremita notou-o e falou depressa, com um toque de apreensão nervosa na voz: - Não posso continuar a permitir-me este êxtase! A noite já se foi. Parece só um momento - um momento só; pudesse durar um ano! Semente do destruidor da Igreja, fechai os vossos olhos prestes a perecer, se receais ver... O resto perdeu-se em murmúrios inarticulados. O velho caiu de joelhos, a faca na mão, e inclinou-se sobre o menino que tentava falar em vão. Ouviu-se o som de vozes perto da cabana; a faca caiu da mão do eremita. Atirou uma pele de carneiro sobre o miúdo e levantou-se a tremer. Os sons aumentaram e as vozes tornaram-se mais altas e zangadas; a seguir, ouviram-se pancadas e gritos de socorro; depois passos precipitados de fuga. Imediatamente se ouviu uma série de pancadas tempestuosas na porta da cabana, seguidas por: - Ó da casa! Abri! E despachai-vos, em nome de todos os demônios!
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Ol-i, este era o mais abençoado som que jamais tinha chegado aos ouvidos do rei; pois era a voz de Miles Hendon! O eremita, a ranger os dentes, saiu rapidamente do quarto, fechando a porta atrás de si; e imediatamente ouviu a seguinte conversa, vinda da «capela»: - Homenagens e saudações, reverendo senhor! Onde é que está o miúdo... o meu miúdo? - Que miúdo, amigo? - Que miúdo! Nada de mentiras, senhor padre, não me decepcioneis! Não estou com humor para tal. Perto daqui encontrei os patifes que eu julgava que o tinham roubado de mim e fi-los confessarem; disseram que ele andava outra vez à solta e que o tinham seguido até à vossa porta. Mostraram-me mesmo as suas pegadas. Parai de simular, senão, sagrado senhor, se não mo entregardes... Onde é que ele está? - Oh! Bom senhor, talvez vos estejais a referir ao esfarrapado vadio que passou aqui a noite. Se alguém como vós se pode interessar por alguém como ele, sabei então que o mandei fazer-me um recado. Voltará em breve. - Em breve? Quão breve? Vamos, não percais tempo, será que não o posso alcançar? Quanto tempo se vai demorar? - Não precisais de vos mexer; ele voltará muito depressa. - Que seja, então. Tentarei esperar. Mas esperai aí' Vós mandaste-lo fazer um recado? Verdadeiramente, isso só pode ser uma mentira - ele não iria. Puxaria a vossa velha barba se lhe fizésseis tamanha insolência. Estais a mentir, meu amigo; certamente que estais. Ele não iria, nem por vós nem por nenhum outro homem. - Por nenhum bomem não, felizmente. Mas eu não sou um homem. - O quê? Então, em nome de Deus, o que sois vós? - É segredo; prestai atenção para não o revelar. Sou um arcanjo! Ouviu-se uma exclamação de Miles Hendon, não totalmente profana, seguida por: - Isso pode explicar a sua boa-vontade! Tenho a certeza que ele não mexeria uma mão ou um pé para fazer um trabalho menor a serviço de qualquer mortal; mas, meu Deus, mesmo um rei tem que obedecer quando um arcanjo manda! Deixai-me... Shiu! Que barulho foi esse? Tudo isto acontecia com o rei ali ao lado, a sacudir-se de medo e a tremer de esperança; e, entretanto, tinha posto toda a força que lhe era possível nos grunhidos angustiados, sempre à espera que chegasse aos ouvidos de Hendon, mas sempre a perceber amargamente que não conseguia, ou pelo menos que não provocavam nenhuma reação. Portanto, este último comentário do seu vassalo chegou-lhe como um sopro dos campos frescos para um moribundo; e esforçou-se outra vez, com toda a força, ao mesmo tempo que o eremita dizia: - Barulho? Ouvi apenas o vento.
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- Talvez fosse. Sim, sem dúvida que era. Tenho estado sempre a ouvi-lo, muito fraco... Esperai, aí está outra vez! Não é o vento! Que barulho estranho! Vinde, vamos procurá-lo! Agora a alegria do rei era quase insuportável. Os seus pulmões cansados fizeram um último e esperançoso esforço, mas infelizmente as maxilas amarradas e o abafado da pele de carneiro tornaram o esforço inútil. E então o seu pobre coração apertou-se ao ouvir o eremita dizer: - Ah! Veio lá de fora; acho que do matagal aqui ao lado. Vinde, eu levo-vos lá. O rei ouviu os dois a passar; ouviu os passos a morrerem rapidamente, depois ficou sozinho no meio de um silêncio de mau agoiro, preocupante, terrível. Pareceu séculos até que ouvisse passos e vozes a aproximarem-se e desta vez ouviu mais um ruído que pareciam galhos a ser pisados. Depois ouviu Hendon dizer: - Não vou esperar mais. Não posso esperar mais. Ele deve-se ter perdido neste bosque tão denso. Em que direção é que foi? Depressa, indicai-me. - Foi... Mas esperai, irei convosco. - Ótimo, Ótimo! Verdadeiramente sois melhor do que pareceis. Por Deus, não creio que exista outro arcanjo com tão bom coração. Quereis montar? Podeis levar o burro que é para o meu garoto, ou dobrar as pernas cansadas sobre esta mula mal ensinada, que comprei para mim. - Não, montai a vossa mula e puxai o burro; estou mais seguro nos meus próprios pés e prefiro andar. - Então, por favor, segurai o burro, enquanto arrisco a minha vida ao tentar encavalitar-me na mula. Seguiu-se uma série de pancadas, murros, barulhos e quedas, acompanhadas por uma mistura tempestuosa de maldições, tendo terminado com um insulto amargo à mula, que devia ter desistido, pois as hostilidades pareciam acabadas. Foi com indizível tristeza que o reizinho amarrado ouviu as vozes e os passos afastarem-se e morrerem. Todas as esperanças o abandonaram. «O meu único amigo foi enganado e despachado; o eremita vai voltar e ... », terminou com um soluço; e começou imediatamente a lutar freneticamente com as suas amarras com tal energia que a pele de carneiro saiu de cima dele. E então ouviu a porta a abrir-se! O ruído gelou-o até aos ossos- parecia que já estava a sentir a faca na garganta. O medo fê-lo fechar os olhos e o medo fê-lo abri-los de novo à sua frente estava John Carity e Hugo! Teria dito «Graças a Deus» se as suas maxilas se pudessem mexer. Um momento depois os seus membros estavam soltos e os captores, agarrando-o pelos braços, empurravam-no a toda a pressa através da floresta.
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XXII VÍTIMA DE TRAIÇÃO Uma vez mais o«rei Fu-fu Pilmeiro» estava metido com os vadios e os fora-da-lei, alvo das suas brutalidades e brincadeiras de mau gosto e às vezes vítima de pequenas maldades às mãos de Carity e Hugo, quando o rufflernão estava a ver. Nenhum dos membros da quadrilha, a não ser Carity e Hugo, tinha alguma coisa contra ele. Alguns até gostavam dele e outros admiravam a sua coragem e espírito. Durante dois ou três dias, Hugo, que tinha o rei à sua guarda e responsabilidade, fez o que pôde, às escondidas, para que o miúdo se sentisse incomodado. Pisou-o duas vezes como que por acidente, e o rei, como é próprio da realeza, mostrou-lhe um total desprezo e pareceu indiferente à ofensa; mas da terceira vez que Hugo resolveu divertir-se dessa maneira, o rei atirou-o ao chão com um cajado, para grande divertimento do grupo. Hugo levantou-se, apanhou outro cajado e veio com fúria contra o seu pequeno adversário. Imediatamente se formou um círculo à volta dos gladiadores, com apostas e gritaria. Mas o pobre Hugo não tinha hipóteses de espécie nenhuma contra um braço que tinha sido treinado pelos melhores mestres da Europa em luta de cajado, vara e todas as artes e técnicas da arma branca. O pequeno rei ficou direito, alerta, mas com um gracioso à-vontade, a desviar-se e a aparar a pesada chuva de cacetadas com uma facilidade e uma precisão que deixou os espectadores doidos de admiração; e uma vez por outra, quando o seu olhar treinado via uma abertura, o resultado era uma velocíssima pancada na cabeça de Hugo, enquanto uma tempestade de vivas e gargalhadas o aplaudia. Ao fim de quinze minutos, Hugo, todo magoado e esfolado, e ainda vítima de um imperdoável bombardeamento de piadas, escapuliu-se da liça; e o herói, incólume, foi agarrado e levado aos ombros da alegre canalha para um lugar de honra ao pé do ruffler e coroado «Rei dos Galos de Combate» com grande cerimônia. Todas as tentativas de tornar o rei útil para a quadrilha tinham falhado. Recusava-se teimosamente a representar; além disso, estava sempre a tentar fugir. Uma vez mandaram-no para uma cozinha desprotegida, logo no primeiro dia do seu retorno; mas não só voltou de mãos vazias como ainda tentou acordar as pessoas da casa. Foi mandado com o funileiro para o ajudar no seu trabalho; recusou-se e ameaçou-o com o seu próprio ferro de soldar; e, finalmente, tanto Hugo como o funileiro viram-se completamente ocupados com a simples tarefa de o impedir de fugir. Assim se passaram vários dias; as desgraças daquela vida de vadio e o cansaço e sordidez tornaram-se tão intoleráveis para o cativo que ele acabou por sentir que a sua libertação da faca do eremita tinha apenas sido, na melhor hipótese, apenas um atraso temporário da sua morte. Mas, à noite, nos seus sonhos, tudo isto era esquecido e estava novamente no trono, dono da situação. Evidentemente que isto intensificava os sofrimentos do acordar e as mortificações de cada dia tornavam-se mais duras e difíceis de suportar.
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Na manhã seguinte ao dia do combate, Hugo acordou com o coração cheio de intenções vingativas contra o rei. Tinha dois planos em especial. Um era infligir-lhe o que quer que fosse que parecesse ao seu orgulho e realeza «imaginária,, como uma especial humilhação; e, se o não conseguisse, o seu outro plano era envolvê-lo num crime qualquer e depois atraiçoá-lo para que caísse nas garras da lei. No prosseguimento do primeiro plano, propôs-se a fazer uma «plaga» na perna do rei, a pensar, com toda a' razão, que isso o faria sofrer até ao último e mais horrível grau; e assim que a «plaga» estivesse a funcionar, tencionava conseguir a ajuda de Carity e obrigá-lo a expor a perna na estrada e pedir esmola. «Plaga, era o termo usado pelos bandidos para uma ferida artificialmente criada. Para a produzir fazia-se uma pasta ou pomada de limão seco, sabão e ferrugem de ferro, espalhava-se num bocado de couro e depois atava-se bem apertada na perna. Isto iria fazer com que a pele se irritasse e a área ficasse em carne viva e com muito mau aspecto- esfregava-se então sangue, que depois de seco ficava escuro e com um ar repulsivo. Finalmente, aplicava-se uma ligadura de trapos sujos, de uma maneira irregular, que permitisse adivinhar a horrível chaga e assim comover os transeuntes. Hugo conseguiu a ajuda do funileiro que o rei tinha assustado com o ferro de soldar; levaram o menino para fazer um serviço de funilaria e assim que estavam fora do alcance do campo atiraram-no ao chão e o funileiro agarrou-o, enquanto Hugo atava o couro depressa e bem à volta da perna. O rei debateu-se furiosamente, prometendo que enforcaria os dois assim que tivesse outra vez o cetro na mão; mas eles mantinham-no bem preso e faziam troça das suas ameaças. Isto continuou até que a pasta começou a morder; em pouco tempo o seu trabalho estaria terminado se não acontecesse uma interrupção. Mas aconteceu, pois nesta altura apareceu o «escravo» que tinha feito o discurso contra a lei inglesa e acabou com a brincadeira, tirando logo a pasta e a ligadura. O rei queria apanhar o cajado do seu salvador e ali mesmo aquecer os costados dos dois malandros; mas o homem não o deixou porque podia chamar a atenção de alguém era melhor deixar o assunto para a noite, quando o bando estivesse todo junto e o mundo exterior não pudesse interferir ou interromper. Levou o grupo de volta para o acampamento e contou ao ruffler. Este ouviu, pensou e decidiu que o rei não deveria ser mais posto a pedir, uma vez que era óbvio que valia mais e melhor, portanto promoveu-o imediatamente do nível de mendigo para o de ladrão! Hugo não cabia em si de contente. já tinha tentado, sem conseguir, que o rei roubasse; mas agora não haveria mais problemas desses porque, evidentemente, o rei não se atreveria a desafiar um ordem expressa decidida diretamente pelo quartel-general. Portanto, planeou um ataque para aquela mesma tarde, a pensar em atirar o rei para o braço da lei, durante a operação; e em fazê-lo com uma estratégia tão engenhosa que parecesse acidental e sem intenção. Muito bem. Na devida altura, Hugo foi com a sua vítima até uma vila próxima; e ficaram os dois a andar para cima e para baixo por várias ruas, um à procura de uma oportunidade infalível de conseguir o seu diabólico intento, o outro procurando com igual 91
intensidade uma oportunidade de fugir e libertar-se para sempre do seu vergonhoso cativeiro. Ambos deitaram fora algumas oportunidades razoáveis; pois, tanto um como o outro, no segredo dos seus corações, estavam decididos a não falhar desta vez e a não deixar que a sua grande vontade os atraísse a alguma aventura que não fosse absolutamente infalível. A oportunidade de Hugo chegou primeiro. Aproximava-se uma mulher com um gordo pacote dentro de uma cesta. Os olhos de Hugo brilharam de alegria pecaminosa, enquanto dizia para si mesmo «Luz da minha vida, posso atirar com aquilo para cima deste parvalhão e bonzinho rei dos galos de combate!» Esperou e observou - paciente por fora, consumido de excitação por dentro -, até a mulher passar por eles e o momento era aquele; disse em voz baixa: «Esperai aqui até que eu volte» e desatou a correr em direção à vítima. O coração do rei estava cheio de alegria - podia fugir agora, se Hugo se afastasse o suficiente. Mas não iria ter tal sorte. Hugo aproximou-se da mulher por trás, arrancou-lhe o pacote e voltou a correr, enquanto o embrulhava num pedaço de cobertor que levava no braço. Imediatamente a mulher, ao sentir a perda pela diminuição do peso da cesta, começou a gritar e a chorar, embora não tivesse visto quem é que tinha feito o roubo. Hugo, sem se deter, atirou o pacote para as mãos do rei, dizendo-lhe: - Agora correi atrás de mim com os outros, a gritar 'agarra ladrão!', mas cuidai de os levar noutra direção!» No instante seguinte, Hugo virou a esquina e correu por uma travessa sinuosa e logo depois voltou para trás, com uma aparência inocente e indiferente, e colocou-se atrás de um poste para ver o que ia acontecer. O rei, ofendido, atirou o pacote para o chão; e o cobertor abriu-se exatamente quando a mulher ia a passar, com uma crescente turba atrás dela; segurou o pulso do rei com uma mão, agarrou o pacote com a outra e começou a insultar o garoto enquanto este lutava, sem sucesso, para se libertar do seu pulso. Hugo já tinha visto o suficiente - o seu inimigo fora capturado e a lei agora se encarregaria dele, portanto afastou-se, risonho e rejubilante, e dirigiu-se para o acampamento, ao mesmo tempo que preparava uma boa versão da história para contar à quadrilha. O rei continuou a debater-se com a mulher e gritava-lhe, vexado: - Largai-me, endoidecida criatura- não fui eu que vos privei dos vossos pobres haveres. A multidão fechava-se à volta deles, ameaçando o rei e chamando-lhe nomes; um musculoso ferreiro, com avental de couro e as mangas enroladas, agarrou-o e disse que lhe daria uma boa sova para servir de lição; mas exatamente nessa altura uma espada brilhou no ar e as costas da lâmina abateram-se com considerável força no braço do homem, ao mesmo tempo que o seu fantástico proprietário dizia, com um tom prazenteiro:
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- Meu Deus, boas almas, vamos devagar, nada de sangue e insultos. Isto é um assunto para a consideração da lei, não para ser tratado por particulares. Largai o garoto, boa senhora. O ferreiro mediu o robusto soldado com uma olhadela e depois afastou-se a resmungar, enquanto esfregava o braço; e a mulher largou o pulso do menino com relutância; a multidão olhou para o desconhecido com antipatia, mas prudentemente ninguém abriu a boca. O rei correu para junto do seu salvador, com o rosto vermelho e os olhos a brilhar, exclamando: - Atrasastes-vos demais, Sir Miles; fazei-me esta escória em farrapos!
XXIII O PRÍNCIPE PRISIONEIRO Hendon fez um sorriso forçado, inclinou-se e segredou ao ouvido do rei: - Devagar, devagar meu príncipe, segurai cuidadosamente a vossa língua. Confiai em mim; tudo acabará bem. - E acrescentou para si mesmo: «Sir Miles! Meus Deus, mas que maravilha que isto é, como a memória se mantém através das suas estranhas e loucas fantasias! Mas, por muito que o meu título seja uma louca ficção, mereço-o, pois pareceme que é mais honroso ser digno do espectro de um cavaleiro no mundo das sombras do que ser suficientemente baixo para receber um condado nos reinos verdadeiros deste mundo.» A multidão afastou-se para deixar passar um guarda, que se aproximou e preparavase para pôr a mão no ombro do rei, quando Hendon lhe disse: - Devagar, meu bom amigo, suspendei a vossa mão; ele irá pacificamente; assumo a responsabilidade por isso. Ide à frente, nós seguir-vos-emos. O guarda foi à frente, com a mulher e o seu pacote; Miles e o rei iam depois, com a multidão atrás deles. O rei queria rebelar-se; mas Hendon disse-lhe em voz baixa: - Refleti, sire; as vossas leis são o pão que alimenta o vosso reino; deverá a raiz resistir-lhes, mas exigir que os galhos a respeitem? Aparentemente uma dessas leis foi infringida; quando o rei estiver novamente no seu trono, não terá vergonha ao pensar que quando parecia um homem comum se portou como um bom súbdito, submetendo-se à autoridade das leis? - Vós estais certo; não precisais de dizer mais nada. vereis que o que quer que seja que o rei de Inglaterra exige que um vassalo sofra sob a lei, ele próprio pode sofrer, mantendo a postura de um vassalo. Quando a mulher foi chamada para testemunhar perante o juiz, jurou que o pequeno prisioneiro no banco dos réus era a pessoa que tinha cometido o roubo; não apareceu ninguém que pudesse dizer o contrário, portanto o rei era culpado. Então abriu-se o pacote 93
e quando se viu que o conteúdo era um porquinho gordo e bem temperado, o juiz pareceu preocupado e Hendon ficou pálido, enquanto o seu corpo estremecia de surpresa; mas o rei ficou impávido, protegido pela sua ignorância. O juiz pensou durante longo tempo, depois virou-se para a mulher e perguntou-lhe: - Quanto dizeis que vale a vossa propriedade? A mulher fez uma vênia e respondeu: - Três xelins e oito pence, vossa senhoria; com toda a honestidade não poderia abater nem um penny. O juiz olhou para a assistência com evidente desconforto, depois acenou para o guarda e disse-lhe: - Esvaziai o tribunal e fechai as portas. Foi feito. Não ficou ninguém além dos dois guardas, o acusado, a acusadora e Miles Hendon. Este último estava rígido, sem cor, e grandes gotas de suor frio formavam-se na sua testa e escorriam pelo rosto. O juiz virou-se outra vez para a mulher e disse, numa voz cheia de compaixão: - Este garoto é pobre e ignorante e talvez tenha sido levado pela fome, pois estes tempos são difíceis para os desafortunados; notai que ele não tem rosto de mau; mas quando a fome aperta... Boa mulher, sabeis que quando alguém rouba uma coisa cujo valor é maior do que treze pence e um penny (1) a lei diz que deve ser enforcado por isso? O pequeno rei deu um pulo, os olhos esgazeados de consternação, mas controlou-se e ficou quieto; o mesmo não aconteceu com a mulher. Caiu de joelhos, a tremer de pavor, e gritou: - Ó meu Deus, o que é que eu fiz - Deus me perdoe, não enforcaria o pobrezinho por nada neste mundo! Ai, salvai-me vossa senhoria; o que é que devo fazer, o que é que posso fazer? O juiz manteve a sua compostura jurídica e simplesmente disse: - Sem dúvida que é permitido rever o valor do roubo, uma vez que ainda não está escrito nas atas. - Então, em nome de Deus, dizei que o porco vale oito pence e Deus abençoe o dia em que a minha consciência se vir livre desta coisa terrível! Na sua felicidade, Miles Hendon esqueceu-se de todo o decoro; e surpreendeu o rei, ferindo a sua dignidade, ao abraçá-lo e apertá-lo contra si. A mulher despediu-se agradecida e foi-se embora com o porco; e o guarda, depois de lhe abrir a porta, seguiu-a até à pequena antecâmara da entrada. O juiz começou a escrever a ata. Hendon, sempre atento, pensou que gostaria de saber porque é que o guarda tinha ido atrás da mulher; saiu discretamente para a sombria sala e ficou a ouvir. A conversa foi assim: - É um porco gordo, que promete uma boa refeição; compro-vos; aqui estão os oito pence.
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- Oito pence! Não fareis tal coisa. Custou-me três xelins e oito pence, dinheiro bom do último reinado, que o velho Henrique nunca mudou ou alterou. Um figo é o que valem os vossos oito pence! - Ah, é assim que as coisas estão? Vós estáveis sob juramento e portanto jurastes falso quando dissestes que o valor não era mais do que oito pence. Vinde imediatamente comigo à presença do meritíssimo para responder pelo vosso crime; e depois o garoto será enforcado! - Pronto, pronto, não digais nada mais, estou satisfeita. Dai-me os oito pence e ficai em paz com o assunto. A mulher foi-se embora a chorar; Hendon voltou para a sala do tribunal e o guarda entrou a seguir, depois de esconder o prêmio em algum sítio conveniente. O juiz ainda escreveu durante algum tempo e depois pregou um sermão sensato e bondoso ao rei, acabando por condená-lo a uma pena curta na prisão municipal, seguida de flagelação pública. O surpreendido rei abriu a boca e ia provavelmente mandar que o bom do juiz fosse decapitado ali mesmo- mas viu que Hendon lhe fazia um sinal de aviso e conseguiu calar a boca antes que morresse por ela. Hendon pegou-lhe na mão, depois fez uma reverência ao juiz e os dois seguiram para o prédio da cadeia, acompanhados pelo guarda. No momento em que chegaram à rua, o inflamado monarca parou, tirou a mão da dele e exclamou: - Idiota, imaginais-me a entrar numa cadeia pública vivo? Hendon inclinou-se para ele e disse-lhe, com um tom duro: - Será que podeis confiar em mim? Calma! E evitai piorar a nossa sorte com palavras perigosas. Acontecerá o que Deus quiser; não podeis apressar nem alterar a vontade Dele; portanto, esperai e tende paciência até chegar à altura de chorar ou rir com o que vai seguir-se.
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XXIV A FUGA O curto dia de Inverno já tinha quase acabado. As ruas estavam desertas, exceto por alguns atrasados e mesmo esses apressavam-se, com a expressão determinada das pessoas que querem acabar os seus afazeres o mais depressa possível para ir para o conforto do lar, protegidos contra o vento crescente e a penumbra cada vez mais fechada. Edward VI ficou a pensar se o espetáculo de um rei a caminho da cadeia tinha alguma vez despertado tanta indiferença. O guarda levou-os pela deserta praça do mercado, que tinham que atravessar. Quando estavam no meio, Hendon agarrou-o pelo braço e disse-lhe em voz baixa: - Esperai um momento senhor, ninguém pode ouvir-nos e gostaria de vos dizer umas palavras. - O meu dever impede-o, senhor; por favor, não nos atraseis que a noite aproximase. - Esperai, pois o assunto é do vosso interesse. Voltai as costas por um momento e fazei de conta que não estais a ver: deixai o pobre garoto fugir. - Dizer-me isso a mim! Prendo-vos em... - Calma, não queirais ser demasiadamente cruel. Deveríeis ter cuidado para não fazer nenhum disparate - aí baixou a voz até ficar quase um murmúrio e disse-lhe ao ouvido: Homem, o porco que comprastes por oito pence pode custar-vos a cabeça! O pobre guarda, apanhado de surpresa, primeiro, ficou sem palavras, depois, encontrou a língua e começou a protestar e a ameaçar; mas Hendon manteve a calma e esperou pacientemente que ele gastasse o fôlego- depois disse-lhe: - Gosto de vós, amigo, e não quero fazer-vos mal. Reparai que ouvi tudo, todas as palavras que foram ditas. Vou provar-vos - e repetiu a conversa que o guarda e a mulher tinham tido na antecâmara, palavra por palavra, para terminar: - Aqui está; não disse tudo como deve ser? Seria ou não seria capaz de dizê-lo corretamente à frente do juiz, se fosse preciso? Por um momento o homem ficou mudo de medo e preocupação; depois compôs-se e disse com uma indiferença forçada: - Isso poderia dar uma grande história a partir de uma simples brincadeira; acossei a mulher só para me divertir. - E ficastes com o porco da mulher só para vos divertirdes? O homem respondeu abruptamente: - Nada mais, senhor; digo-vos que foi apenas uma brincadeira. 96
- Começo a acreditar-vos - disse Hendon, com uma desconcertante mistura de troça e semiconvicção -, mas esperai aqui enquanto eu corro a perguntar ao meritíssimo, pois sendo ele um homem com experiência das leis, das brincadeiras e de... Começou a afastar-se enquanto falava; o guarda hesitou, inquieto, cuspiu uma jura ou duas e depois gritou: - Esperai, esperai, bom senhor; por favor esperai... O juiz! Ele acha tanta graça a uma brincadeira como a um cadáver. Pelos vistos, estou num atoleiro, por uma impensada e inocente brincadeira. Senhor, tenho família, mulher e filhos. Escutai a razão, meu bom senhor; o que quereis que eu faça? - Só que fiqueis cego e surdo e paralítico até contar cem mil, contando devagar disse Hendon, com a expressão de uma pessoa que está a pedir uma coisa justa e sem muita importância. - É o meu fim! - disse o guarda com desespero. - Ah! Sede razoável, bom senhor; é só olhar para este assunto de outra maneira, para ver que foi apenas uma brincadeira; e, se não for, será apenas uma falta tão pequena que a pior pena não seria mais do que uma repreensão e um aviso do juiz. Hendon respondeu com uma solenidade que gelou o ar à volta dele: - Essa vossa brincadeira tem um nome na lei. sabeis qual é? - Eu não sabia! Talvez tenha sido estúpido, mas nunca pensei que tivesse um nome; oh, meu Deus, pensei que era original! - Sim, tem um nome. Na lei este crime é chamado Non compos mentis lex talionis sic transit gloria Mundí. - Ó meu Deus! - E a pena é a morte! - Deus tenha piedade de mim, um pecador! - Aproveitando-vos de uma pessoa indefesa, em grande perigo e à vossa mercê, vós vos apropriastes de bens muito acima dos treze pennies e um pence, pagando uma ninharia pelos mesmos; e isto, aos olhos da lei, é fraude construtiva, conivência numa traição, abuso de poder, ad bomínum expurgatís ín statu quo; e a pena é a morte na forca, sem resgate, comutação ou isenção clerical. - Segurai-me senhor, segurai-me que não me agüento nas pernas! Sejai misericordioso; poupai-me dessa condenação que eu viro as costas e não vejo nada! - Bem! Sois esperto e compreensivo. E ides devolver o porco? Vou, vou, com certeza; nem nunca mais tocarei em nenhum, mesmo que viesse do céu trazido por um arcanjo. Ide, que estou cego por vós; não vejo nada. Direi que assaltastes a prisão e tirastes o prisioneiro à força das minhas mãos. A porta é velha e fraca; eu mesmo a deitarei abaixo entre a meia-noite e a manhã.
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- Fazei-o, boa alma, ninguém será prejudicado; o juiz foi tão caridoso com este pobre miúdo que não vai chorar nem punir nenhum guarda pela sua fuga.
XXV HENDON HALL Assim que Hendon e o príncipe estavam longe dos olhos do guarda, sua majestade foi instruída para se dirigir a um certo sítio fora dos limites da vila e esperar lá, enquanto Hendon ia à estalagem pagar e buscar as suas coisas. Meia-hora mais tarde, os dois amigos seguiam alegremente em direção ao Leste, montados nas duas tristes cavalgaduras de Hendon. Agora, o rei sentia-se quente e confortável, depois de ter deitado fora os farrapos e vestido as roupas usadas que Hendon tinha comprado na ponte de Londres. Hendon queria evitar que o menino se cansasse, pois pensava que viagens duras, refeições irregulares e pouco sono seriam maus para a sua doença; enquanto descanso, rotina e pouco exercício certamente que apressariam a cura; portanto, resolveu avançar em jornadas curtas em direção à casa de onde tinha sido banido há tanto tempo, em vez de correr noite e dia. Depois de terem andado umas dez milhas, chegaram a uma vila importante e pararam numa boa estalagem. A situação anterior repetiu-se; Hendon ficou atrás da cadeira do rei e serviu-lhe o jantar; despiu-o quando estava pronto para ir para a cama; depois ficou com o chão para si, enrolado num cobertor. No dia seguinte, e no outro a seguir a esse, lá foram devagar pelas estradas, a contar as aventuras porque tinham passado desde a separação. Hendon descreveu em pormenor os largos caminhos percorridos à procura do rei e relatou como o arcanjo o tinha levado numa louca caminhada por toda a floresta, para depois o levar de volta para a cabana, quando percebeu que não conseguia ver-se livre dele. Então, contou ele, o velho foi ao quarto e voltou trôpego, com a tristeza estampada no rosto, a dizer que esperava que o menino já tivesse voltado e estivesse ali a dormir. Hendon tinha ficado todo o dia na cabana à espera; então perdera as esperanças que o rei voltasse e retornou às suas buscas. - O velho Sanctum Sanctorum estava realmente triste por sua alteza não voltar disse Hendon -, podia vê-lo no rosto dele. - Por Deus, não tenho nenhuma dúvida disso! - respondeu o rei e, depois, contou a sua história; Hendon ficou com pena de não ter destruído o arcanjo. Durante o último dia de viajem Hendon estava cada vez mais bem disposto. Não conseguia ficar calado. Falou do seu velho pai e do irmão Arthur e contou muitas histórias que ilustravam os seus carácieres nobres e generosos; perdeu-se em expressões de amor sobre a sua Edith e ficou tão alegre que até conseguiu dizer algumas coisas simpáticas e fraternas sobre Hugh. Deteve-se bastante a imaginar o encontro tão próximo em Hendon
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Hall; que surpresa que ia ser para todos e as explosões de felicidade e agradecimento aos céus que iam ver. A região era bonita, salpicada de quintas e pomares, e a estrada atravessava grandes pastagens marcadas por leves elevações e depressões, a sugerir as ondulações do mar. Durante a tarde, o pródigo retornado fez constantes desvios para ver se do cimo de alguma colina conseguia avistar a casa. Por fim, conseguiu e gritou com excitação: - Lá está a aldeia, meu príncipe, e lá está o Hall mesmo ao pé! Podem ver-se as torres daqui; e aquele bosque é o parque do meu pai. E agora ides saber o que é a grandeza de uma boa propriedade! Uma casa com setenta divisões - pensai nisso! E com cento e vinte empregados! Um bom lar para alguém como nós, não e verdade? Vinde, despachemo-nos, a minha impaciência não agüenta mais demoras. Foram o mais depressa possível; mesmo assim já passava das 3 horas da tarde quando chegaram à vila. Atravessaram-na à desfilada, a língua de Hendon a falar sem parar: - Aqui está a igreja, coberta pela mesma hera, que não cresceu nada, mesmo nada. Ali fica a estalagem, a antiga Red Lion, e acolá a praça do mercado. Aqui fica o Maypole e lá a bomba de água; nada mudou, nada exceto as pessoas, com certeza; dez anos mudam as pessoas; alguns parece-me que conheço, mas ninguém me reconhece a mim. E assim ia a conversa. Depressa chegaram ao fim da aldeia; então meteram-se numa estrada estreita e cheia de curvas, emparedada entre aterros altos, por onde correram uma meia milha, para depois passar por um enorme jardim e entrar por uma imponente porta com grandes pilares de pedra, esculpidos com os temas do brasão. Perante eles levantavase uma nobre mansão. - Bem-vindo a Hendon Hall, meu rei! - exclamou Miles. Ah, este é um grande dia! Ao princípio, meu pai, o meu irmão e Lady Edith vão ficar tão loucos de alegria que não terão olhos nem língua para mais ninguem se não para mim e poder-vos-á parecer que estais a ser friamente recebido, mas não vos preocupeis; logo vos parecerá diferente; pois, quando lhes contar que sois o meu protegido e quanto custou o meu amor por vós, vê-los-eis abraçar-vos por minha causa e fazer da sua casa e dos seus corações o vosso lar para sempre! A seguir, Hendon saltou para o chão em frente da porta principal, ajudou o rei a descer e depois levou-o pela mão. Alguns degraus e estavam diante de uma espaçosa salaHendon entrou, fez o rei sentar-se com mais pressa do que cerimônia e, depois, correu até a um homem que estava sentado numa escrivaninha em frente de um bom fogo de lenha. - Abraçai-me Hugh - gritou - e dizei que estais feliz por eu ter voltado! Chamai o nosso pai, pois o lar não é um lar enquanto não tiver tocado na sua mão, visto o seu rosto e ouvido mais uma vez a sua voz! Mas Hugh apenas se afastou, depois de mostrar uma surpresa momentânea, e olhou com seriedade para o intruso: primeiro, com um olhar de dignidade ofendida, que mudou logo para uma expressão de curiosidade misturada com pena, real ou assumida. Depois, disse, com voz suave: 99
- A vossa mente deve estar confusa, pobre estrangeiro; sem dúvida que sofrestes privações e violências nas mãos do mundo; o vosso aspecto e vestir assim o demonstram. Quem achais que eu sou? - Acho? Por favor, quem mais poderia eu achar? Acho que sois Hugh Hendon - disse Miles, incisivo. O outro continuou no mesmo tom: - Quem imaginais que sois? - A imaginação não tem nada a ver com isso! Pretendeis não reconhecer que sou o vosso irmão Miles Hendon? Uma expressão de agradável surpresa passou pelo rosto de Hugh, que exclamou: - O quê? Não estais a brincar? Podem os mortos voltar a viver? Deus seja louvado, se isso for possível! O nosso pobre rapaz desaparecido, de volta aos nossos braços depois de tantos anos cruéis! Ah, parece bom demais para ser verdade, é bom demais para ser verdade; peço-vos, tende piedade, não brinqueis comigo! Depressa, vinde para a luz, deixai-me ver-vos bem! Agarrou Miles pelo braço, levou-o até à janela e começou a devorá-lo com os olhos dos pés à cabeça; fê-lo voltar-se para um lado e para o outro e afastou-se para o ver de todos os pontos de vista; enquanto o retornado pródigo, todo agitado com a felicidade, riase e fazia que sim com a cabeça, dizia: - Vamos lá, irmão, vamos lá e não tenhais medo; não encontrareis membro nem característica que não suporte o teste. Olhai-me e avaliai-me à vontade, meu querido e velho Hugh! Sou mesmo o vosso velho Miles, o próprio, o vosso irmão perdido, não é verdade? Ah, hoje é um grande dia - eu bem dizia que ia ser um grande dia! Dai-me a vossa mão, dai-me o vosso rosto, meu Deus, estou quase a morrer de tanta alegria! E estava quase a atirar-se nos braços do irmão; mas Hugh afastou-o com a mão e depois baixou tristemente o queixo, enquanto dizia, emocionado: - Ah, que Deus na sua misericórdia me dê forças para suportar esta terrível desilusão! Miles, surpreendido, por um momento ficou sem conseguir falar; depois encontrou a língua e gritou: - Que desilusão? Não sou o vosso irmão? Hugh sacudiu tristemente a cabeça e disse: - Rezo aos céus para que o sejais e que outros olhos encontrem as semelhanças que se escondem dos meus. Meu Deus, receio que a carta só tenha contado a verdade. - Que carta? - Uma que veio do estrangeiro, há uns seis ou sete anos. Dizia que o meu irmão tinha morrido em combate. - Era uma mentira! Chamai o pai, ele me reconhecerá.
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- Não se pode chamar os mortos. - Morto? - a voz de Miles baixou e os lábios começaram a tremer. O meu pai morto! Oh, esta é uma má notícia! Metade da minha nova felicidade está destruída. Por favor, deixai-me ver o meu irmão Arthur; ele me reconhecerá; ele me reconhecerá e me dará consolo. - Ele também morreu. - Deus tenha piedade de mim, um homem destruído! Mortos, os dois mortos... Mortos os que merecem e poupados os que não merecem! Ah! Peço a vossa piedade! Não me ides dizer que Lady Edith... - Está morta? Não, ela está viva. - Então, que Deus seja louvado, a minha alegria voltou! Apressai-vos irmão, deixai-a vir a mim! E, se ela disser que não sou eu... mas ela não vai dizer; não, não, ela me reconhecerá, seria louco se duvidasse. Trazei-a e chamai os antigos criados; eles também vão lembrar-se de mim. - Morreram todos menos cinco; Peter, Halsey, David, Bernard e Margaret. Isto dito, Hugh saiu da sala. Miles ficou por ali e começou a andar de um lado para o outro, murmurando: - Os cinco vilões maiores sobreviveram aos dois e vinte honestos e leais; isto é muito estranho. Continuou a andar e a falar num murmúrio; tinha-se esquecido completamente do rei. Até que sua majestade falou gravemente e com um tom de verdadeira compaixão, embora as palavras pudessem ser interpretadas como irônicas: - Não vos importeis com a vossa falta de sorte, b/6m homem; há outros no mundo cuja identidade é negada e cujas pretensões são ridicularizadas. Tendes companhia. - Ah, meu rei - chorou Hendon, ao mesmo tempo que corava -, não me condeneis assim; esperai e vereis. Não sou um impostor, digamos assim; ides ouvi-lo dos lábios mais doces de Inglaterra. Eu, um impostor? Conheço esta velha sala, estes quadros dos meus ancestrais e todas estas coisas à nossa volta como uma criança conhece o seu berço. Aqui nasci e fui criado, meu senhor; falo a verdade; nunca vos enganaria; e se ninguém mais acreditar, rezo para que vós não duvideis, pois não conseguiria suportá-lo. - Eu não duvido de vós - disse o rei com simplicidade e uma fé infantil. - Agradeço-vos do coração - exclamou Hendon, com um fervor que mostrou que estava sensibilizado. O rei acrescentou, com a mesma gentil simplicidade: - E vós duvidais de mim? Um confusão culpada tomou conta de Hendon e ficou muito agradecido que a porta se abrisse naquele momento para a entrada de Hugo, poupando-o da necessidade de dar uma resposta.
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Uma mulher muito bonita e bem vestida vinha atrás dele, seguida por vários criados de libré. A lady andava devagar, com a cabeça inclinada para a frente e os olhos postos no chão. O rosto mostrava uma indizível tristeza. Miles Hendon saltou para a frente, a gritar: - Oh, minha Edith, minha querida... Mas Hugh afastou-o solenemente e disse à lady: - Olhai para ele: conhecei-lo? Quando Miles gritara a dama tinha estremecido, ao mesmo tempo que corava; agora estava a tremer. Ficou quieta durante impressionantes momentos; depois levantou a cabeça lentamente e olhou para os olhos de Hendon com uma expressão parada e assustada; o sangue fugiu-lhe do rosto, gota a gota, até que só ficou a palidez cinzenta da morte; depois disse, numa voz tão morta quanto o rosto, «Não o conheço», virou-se com um suspiro e um soluço e saiu da sala. Miles Hendon caiu numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos. Depois de uma pausa, o irmão disse para os criados: - Vós observáste-lo. Conhecei-lo? Sacudiram as cabeças; depois o patrão deles disse: - Os criados não vos conhecem, senhor. Receio que haja algum engano. Vistes que a minha esposa não vos conhece. - Vossa esposa! - Num segundo Hugh estava encostado à parede com um punho de ferro a segurá-lo pela garganta. - Ó meu escravo com coração de raposa, estou a ver tudo! Vós mesmo escreveste essa carta e os bens e a minha noiva roubada são o resultado. Saí daqui, não vá eu envergonhar a minha profissão de soldado com a morte de tal mamarracho! Hugh, vermelho e quase sufocado, deixou-se cair na cadeira mais próxima e mandou os criados agarrar e amarrar o estrangeiro assassino. Hesitaram e um deles disse: - Ele tem uma espada, Sir Hugh, e nós estamos desarmados. - Uma espada? O que é que isso tem, se sois tantos? Agarrem-no, estou a dizer! Mas Miles avisou-os para terem cuidado, o que eles fizeram, e acrescentou: - Vós sempre me conhecestes, que eu não mudei; vamos lá, isso nem parece coisa vossa. Esta lembrança não entusiasmou muito os criados, que continuaram na defesa. - Então ide, cobardes, e armai-vos: guardai as portas enquanto mando um buscar a guarda - disse Hugh. Virou-se, já na ombreira da porta, e disse a Miles: - Vereis que não vos compensa tentar inutilmente escapar-vos, o que será inútil
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- Escapar? Poupai-vos a esse desconforto, se é tudo o que vos preocupa. Pois Miles Hendon é o senhor de Hendon Hall e todos os seus pertences. Ficarei, disso não tenhais dúvidas.
XXVI DESONRADO O rei sentou-se, absorto nos seus pensamentos, e depois levantou a cabeça e disse: - Isto é estranho, muito estranho. Não consigo percerber. - Não, isto não é nada estranho, meu senhor. Conheço-o e a sua conduta não é nada estranha. É um malandro desde que nasceu. - Oh, não estava a falar dele, Sir Miles. - Não era dele? Então era de quê? O que é que é estranho? - Que não sintam a falta do rei. - Como? Qual? Receio que não compreenda. - Na verdade! Não achais estranho que o país não esteja coberto de mensageiros e proclamações a descrever a minha pessoa e à minha procura? Não será assunto que impressione e preocupe o fato de o chefe do estado ter desaparecido? Que eu tenha desaparecido e esteja perdido? - É verdade meu rei, tinha-me esquecido! - Depois, Hendon suspirou e disse, murmurando para si: «Pobre mente destruída; ainda ocupada com o seu patético sonho.» - Mas tenho um plano que resolverá os nossos dois casos. Escreverei uma carta em três idiomas, latim, grego e inglês, e amanhã de manhã correreis para Londres com ela. Não a dareis senão ao meu tio, Lord Hertford; quando a ler saberá que fui eu que a escrevi. Então mandará buscar-me. - Não será melhor, meu príncipe, que esperemos até que eu prove a minha identidade e assegure os meus direitos à propriedade? Ficarei então com muito mais possibilidades de... O rei interrompeu-o imperiosamente: - Alto! O que são os vossos pobres domínios e os vossos triviais interesses, comparados com os assuntos que dizem respeito ao bem-estar de uma nação e à segurança do trono? - Depois acrescentou com uma voz suave, como se estivesse arrependido da sua severidade: - Obedecei e não tende receio; eu dar-vos-ei os vossos direitos e tudo o que vos pertence; mesmo mais do que isso. Vou-me lembrar e vou fazê-lo.
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Isto dito, pegou na caneta e sentou-se a escrever. Durante algum tempo Hendon ficou a contemplá-lo com ternura, dizendo consigo próprio: - Se estivéssemos às escuras acreditaria que foi um rei que falou. Não há como negar, quando está de mau humor solta raios e trovões como um verdadeiro rei; onde será que aprendeu isso? É só vê-lo a escrever, feliz e contente, aqueles gafanhotos sem sentido, a pensar que são em latim e grego; a não ser que a minha esperteza se lembre de um truque qualquer para o desviar do seu propósito, serei obrigado a fingir que vou sair daqui amanhã para fazer a maluquice que me inventou agora. Logo a seguir, os pensamentos de Sir Miles voltaram ao episódio mais recente. Ficou tão absorvido nos seus pensamentos que, quando finalmente o rei lhe entregou o papel que tinha estado a escrever, recebeu-o e colocou-o no bolso sem sequer dar por isso. «Ela agiu de uma maneira tão estranha», murmurou. «Acho que ela me conheceu mas ao mesmo tempo não me quis reconhecer. O assunto está neste pé: ela deveria ter reconhecido o meu rosto, a figura, a voz, pois como poderia ser de outra maneira? Contudo, ela disse que não me reconhecia e essa é uma prova perfeita, porque ela não mente. Mas espera aí: parece-me que começo a ver. Talvez ele a tenha influenciado, mandado, obrigado a mentir. Essa é a solução! O enigma está desvendado. Ela parecia morta de medo; sim, estava sob a vontade dele. Vou procurála; vou encontrá-la; fora daqui dirá a verdade. Vai lembrar-se dos velhos tempos quando éramos pequenos e brincávamos juntos, isso amolecerá o seu coração e não me trairá outra vez, mas antes irá confessar a verdade. Ali não há sangue traiçoeiro, ela sempre foi honesta e verdadeira. Gostou muito de mim nesses tempos; não se trai uma pessoa que se amou.» Levantou-se com decisão e foi até à porta; nesse momento esta abriu-se e Lady Edith entrou. Estava muito pálida, mas andava com firmeza, e o seu corpo era pleno de graça e doce dignidade. O rosto estava tão triste como anteriormente. Miles correu para ela com uma alegre confiança, mas foi recebido com um gesto apenas percetivel que o fez parar onde estava. Ela sentou-se e pediu-lhe para fazer o mesmo. Esta atitude simplesmente lhe retirou toda a velha familiaridade, transformando-o num desconhecido e num convidado. A surpresa e o inacreditável inesperado de tudo aquilo fizeram com que, por um momento, ele duvidasse se no fim de contas era realmente a pessoa que pretendia ser. Lady Edith disse-lhe: - Senhor, vim para vos avisar. Creio que este vosso sonho vos pareceu ser a honesta verdade e, portanto, não é criminoso; mas não vos atardeis aqui com ele, pois é perigoso. olhou com firmeza para o rosto de Miles e depois acrescentou, num tom impressionante: - É muito perigoso que sejais muito parecido com o que seria o nosso rapaz perdido, se ele continuasse vivo. - Pelos céus, senhora, mas sou eu! - Acredito verdadeiramente que pensais assim, senhor. A questão não é a vossa honestidade; mas aviso-vos, isso é tudo. O meu esposo é o dono desta região; o seu poder praticamente não tem limites; as pessoas progridem ou passam fome conforme a sua 104
vontade. Se não vos parecêsseis com o homem que pretendeis ser, o meu esposo poderia deixar que vos divertísseis em paz com o vosso sonho; mas acreditai-me, conheço-o muito bem e sei o que ele fará; irá dizer a todos que vós não sois mais do que um mero impostor e imediatamente todos repetirão o que ele disser. - Olhou para Miles com os mesmos olhos firmes e acrescentou: - Se fÔsseis Miles Hendon, que conhecia todos e toda a região o conhecia, considerai bem o que estou a dizer e pesai-c, cuidadosamente, estarícis a correr o mesmo perigo e o vosso castigo não seria menos inevitável; ele vos negaria e denunciaria e ninguém teria coragem de vos apoiar. - Acredito verdadeiramente nisso - disse Miles com amargura -, o poder que leva a ser obedecido, e que pode fazer com que um amigo de toda a vida traia e desonre outro, é mais provável que se exerce melhor nas situações em que o pão e a vida estão em risco e isso não tem a ver com laços de lealdade ou honra. Uma cor muito fraca apareceu por um momento nas maçãs do rosto da dama, que baixou os olhos para o chão; mas quando prosseguiu, a sua voz não mostrou qualquer emoção: - Avisei-vos e devo avisar-vos de novo para sair imediatamente, ou este homem vos destruirá. É um tirano que não conhece piedade. Eu, que sou uma escrava às suas ordens, sei-o muito bem. O pobre Miles, e Arthur, e o meu querido tutor, Sir Richard, estão livres dele, e todos os outros; melhor seria se estivésseis com eles do que aqui, nas garras da sua perversidade. Ide, sem hesitações. Se vos falta dinheiro, tomai esta bolsa, peço-vos, e pagai aos criados para que vos deixem passar. Aceitai este aviso, pobre alma, e escapai enquanto podeis. Miles recusou a bolsa com um gesto, levantou-se e ficou à frente dela. - Concedei-me uma coisa - disse-lhe. - Deixai que os vossos olhos encontrem os meus, para que possa ver se estão firmes. Assim; agora respondei-me: Sou Miles Hendon? - Não. Não vos conheço. - Jurai! A resposta foi baixa mas nítida: - juro. - Oh, isto é mais do que eu posso acreditar! - Voai! Porque gastais um tempo precioso? Voai e salva!-vos. Naquele momento, os guardas entraram na sala e começou uma luta violenta; mas Hendon depressa foi dominado e arrastado para fora. O rei também foi levado e ambos seguiram amarrados para a prisão.
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NA PRISAO As celas estavam todas cheias; portanto, os dois amigos foram acorrentados numa grande sala onde ficavam normalmente os acusados de pequenos delitos. Tinham companhia, uma vez que estavam ali uns vinte detidos, acorrentados ou amarrados, de ambos os sexos e diferentes idades - um grupo obsceno e barulhento. O rei queixou-se amargamente sobre a enorme indignidade assim infligida à sua realeza, mas Hendon estava estupefato. Tinha voltado para casa como um pródigo cheio de júbilo, à espera de encontrar toda a gente doida de alegria com o seu retorno; em vez disso, tinha recebido um duche frio e uma prisão. Sentia-se mais ou menos como um homem se pode sentir quando se põe a dançar nos campos para apreciar o arco-íris e é atingido por um raio. Gradualmente, os seus pensamentos confusos e atormentados acalmaram-se de uma maneira ou de outra e a sua mente concentrou-se então em Edith. Tinha-o reconhecido, ou não o tinha reconhecido? Era um enigma surpreendente, que o ocupou por muito tempo; mas acabou por se convencer que ela o tinha reconhecido e o repudiara por interesse. Queria amaldiçoar o nome dela; mas tinha sido uma palavra tão sagrada durante tanto tempo, que agora não conseguia obrigar a língua a profaná-la. Enrolados nos cobertores da prisão, sujos e espezinhados, Hendon e o rei passaram uma noite difícil. Por algum dinheiro, o carcereiro fornecera álcool a alguns dos prisioneiros; o resultado foi que ficaram a cantar, a lutar e a gritar. Por fim, muito depois da meia-noite, um homem atacou uma mulher e quase que a matou, batendo-lhe com as manápulas na cabeça, até o carcereiro vir salvá-la. Este restaurou a paz dando umas boas cacetadas na cabeça e nos ombros do homem - assim acabou a agitação; e assim puderam dormir todos aqueles que não se incomodavam com os gemidos e grunhidos de duas pessoas feridas. Durante a semana seguinte os dias e as noites passaram numa mesmice monotomia; homens, cujos rostos Hendon se lembrava mais ou menos, chegavam durante o dia para dar uma olhadela ao impostor, repudiá-lo e insultá-lo; e durante a noite as disputas e as discussões continuavam, com a mesma simétrica regularidade. Contudo, acabou por acontecer uma situação diferente. O carcereiro trouxe um velho e disse-lhe: - O vilão está nesta sala; dai uma olhadela à volta e vede se conseguis dizer quem é ele. Hendon olhou e teve uma agradável sensação, pela primeira vez desde que tinha chegado à cadeia. Disse consigo próprio: «Este é o Blake Andrews, um criado que passou toda a vida com a família; uma alma honesta com um coração reto no seu peito. Mas agora nada disso é verdade; são todos uns mentirosos. Este homem vai-me reconhecer; e negálo também, como todos os outros.» O velho olhou à volta da sala, reparou em cada rosto e, finalmente, disse: - Não vejo aqui ninguém além de miseráveis, bandidos, o lixo das ruas. Quem é ele? O carcereiro riu.
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- Aqui - disse inspeccionai este grande animal dai-me uma opinião. O velho aproximou-se e durante bastante tempo olhou intensamente para Hendon, para depois sacudir a cabeça e dizer: - Por Deus, isto não é o Hendon, nem nunca foi! Se eu tivesse este ao meu cuidado fá-lo-ia assar, ou não seja um verdadeiro homem! O carcereiro deu uma gargalhada satisfeita, como uma hiena, e disse-lhe: - Dizei-lhe o que pensais dele, velho- todos o fazem. Ides achar que é um bom divertimento. Depois foi para a sua antecâmera e desapareceu. O velho caiu de joelhos e sussurrou: - Deus seja louvado que vós estejais de volta, meu senhor! julgava que estáveis morto há sete anos e, senao quando, aqui estais vós vivo! Reconheci-vos no momento em que vos vi; e o meu maior trabalho foi manter uma fisionomia impassível e fingir que não via mais nada do que ladrões baratos e a escumalha das ruas. Estou velho e sou pobre, Sir Miles; mas mandai-me e irei proclamar a verdade, mesmo sendo enforcado por isso. - Não - disse Hendon -, não fareis tal coisa. Iria destruir-vos sem ajudar em nada a minha causa. Mas agradeço-vos; pois, de certa maneira, vós devolvestes a minha perdida fé nos meus. O velho servidor tornou-se muito últil para Hendon e para o rei, pois passou a aparecer várias vezes por dia para «agredir» o primeiro e escondia sempre algumas delícias para melhorar o menu da prisão; fornecia também as últimas notícias. Hendon reservava os acepipes para o rei; sem eles, sua majestade talvez não tivesse sobrevivido, pois não conseguia comer a comida mal feita e estragada servida pelo carcereiro. Andrews era obrigado a ficar-se por visitas curtas, para evitar suspeitas; mas conseguia dar urna boa quantidade de informações de cada vez - informações passadas em voz baixa para Hendon, intercaladas com insultos gritados em voz alta, para os outros ouvintes. Assim, aos poucos Hendon ficou a saber a história da família. Arthur tinha morrido há seis anos. Esta perda, somada à ausência de notícias de Miles, minara a saúde do pai; achava que ia morrer e queria ver Hugh e Edith casados antes de ir-se: mas Edith pedia muito para esperar, à espera que Miles voltasse; veio então a carta que trazia as novas da morte dele; o choque deixou Sir Richard prostrado; acreditava que o fim estava perto, e ele e Hugh insistiam no casamento; Edith pediu e obteve um mês de espera; depois outro e finalmente um terceiro; o casamento acabou por ser celebrado junto ao leito de morte de Sir Arthur. Não provou ser uma ligação feliz. Falava-se à boca pequena na região que, depois das núpcias, a noiva tinha encontrado, entre os papéis do marido, vários rascunhos incompletos da carta fatal, e que o acusava de ter precipitado o casamento e a morte de Sir Richard com uma falsificação malvada. Histórias de crueldade para com a Lady Edith e os empregados podiam ser ouvidos em toda a parte; e desde a morte do pai Sir Hugh tinha deixado de fingir e tornara-se um patrão sem piedade para todos os que, de algum modo, dependessem dele e dos seus domínios para comer. Houve uma parte das histórias de Andrews que o rei ouviu com um vivo interesse:
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- Corre o rumor de que o rei está louco. Mas, por caridade esquecei-vos que disse tal coisa, pois dá direito a morrer, segundo se diz. o falecido rei vai ser enterrado em Windsor dentro de um ou dois dias, a 16 deste mês, o o novo rei será coroado em Westminster no dia 20. Hertford. O rei perguntou, agressivo: - E desde quando é que ele é duque? - Desde o último dia de janeiro. - E, por favor, quem lhe deu tal títuloP - Ele próprio e o Grande Conselho- com a ajuda do rei Sua majestade teve um ímpeto violento: - O rei! - gritou. - Que rei, bom senhor? - Que rei, na verdade! Por amor de Deus, onde tem andado este garoto? Não temos outro senão esse, não e difícil de vos responder: sua muito sagrada majestade o rei Edward VI, que Deus mantenha! Sim, e que é um querido e gracioso menininho, também; seja ou não louco, e dizem que melhora dia a dia, os elogios estão em todas as bocas; e todos igualmente o abençoam e oram para que seja poupado e reine por longo tempo; pois começou muito humanitariamente por poupar a vida do velho duque de NorfoIk e agora está decidido a destruir as leis mais cruéis que agridem e oprimem o povo. Estas notícias deixaram sua majestade mudo de surpresa e mergulharam-no numa letargia tão profunda que nem ouviu mais histórias do velho. Ficou a pensar se o «menininho» seria o pedinte que tinha deixado no palácio, vestido com as suas roupas. Não - Acho que precisam de o encontrar primeiro - murmurou sua majestade, acrescentando depois, em tom de confidência -, mas eles vão tratar disso e eu também. - Em nome de... Mas o velho não acabou de falar - um sinal de Hendon evitou mais comentários. Continuou com o fio da história: - Sir Hugh vai à coroação, com grandes esperanças. Tratou de ver confidencialmente se podia voltar como par do reino, pois está nas graças do lorde protetor. - Que lorde protetor? - perguntou sua majestade. - Sua graça o duque de Somerset. - Que duque de Somerset? - Por Deus, não há senão um: Seyniour, conde de parecia possível que tal coisa pudesse acontecer, pois certamente que os seus modos e fala o trairiam, se pretendesse ser o Príncipe de Gales - seria preso e começaria uma busca à procura do verdadeiro principe. Seria possível que a corte tivesse colocado algum nobre no seu lugar? Não, porque o seu tio não deixaria; era omnipotente e tinha forças para derrotar tal movimento. Os pensamentos do garoto não serviram para nada; quanto mais tentava desvendar o mistério mais perplexo ficava, mais lhe doía a cabeça, pior dormia. A sua impaciência para chegar a Londres crescia de hora para hora e o seu cativeiro tornou-se quase insustentável. Todos os truques de Hendon falharam - não se deixava acalmar e duas mulheres que estavam agrilhoadas perto dele conseguiram melhores resultados. Com as suas palavras reconfortantes conseguiram que ele encontrasse a paz e aprendesse um certo grau de paciência. Ficou-lhes bastante agradecido e acabou por gostar muito delas e a deleitar-se 108
com a influência benéfica da sua presença. Perguntou-lhes porque é que estavam na prisão e, quando lhe responderam que eram batistas, quis saber mais: - Mas isso é crime para ser preso? Agora fico triste, pois vou perder-vos; não vos manterão aqui muito tempo por uma coisa tão pequena. Não lhe responderam e houve qualquer coisa no rosto delas que o fez sentir-se mal. Disse-lhes com decisão: - Vão-vos açoitar? Não, não seriam tão cruéis! Dizei-me que não vos vão fazer tal coisa. As mulheres mostraram-se confusas e preocupadas, mas não podiam evitar a resposta, portanto, uma delas disse, numa voz engasgada pela emoção: - Oh! Partis os nossos corações, espírito gentil! Deus nos ajude a suportar a nossa... - E uma confissão - interrompeu o rei -, depois dar-vos-ão umas chicotadas, os bandidos sem coração! Mas não deveis chorar, que eu não suporto ver-vos assim. Conservai a vossa coragem; voltarei ao meu lugar a tempo de vos salvar dessa coisa horrível e é o que vou fazer! Quando o príncipe acordou de manhã as mulheres tinham sido levadas. - Salvaram-se' - disse alegremente; depois acrescentou, desesperado: - Mas o mal é meu, pois eram elas que me consolavam. As duas tinham deixado uma bocado de fita preso à sua roupa, como lembrança. Disse que guardaria sempre aquelas coisas; e que em breve procuraria as boas amigas para as pôr sob a sua proteção. Nessa altura, o carcereiro veio com os ajudantes e disse que os prisioneiros deveriam ser conduzidos ao pátio da prisão. O rei ficou muito feliz - seria uma bênção ver o céu azul e respirar ar fresco outra vez. Irritou-se com a lentidão dos guardas, mas, finalmente, chegou a sua vez e soltaram-no das argolas, com a ordem de ir com Hendon atrás dos outros prisioneiros. O pátio era quadrangular, pavimentado de pedra e aberto para o céu. Os prisioneiros entravam através de um grande portal de pedra e eram enfileirados em pé com as costas para a parede. Esticou-se uma corda à sua frente e ainda eram vigiados pelos guardas. Estava uma manhã fria e escura e uma ligeira neve, que tinha caído durante * noite, deixara branco o grande espaço aberto, a reforçar * seu aspecto triste. No centro do pátio estavam duas mulheres, amarradas a postes. Um olhar mostrou ao rei que eram as suas duas boas amigas. Estremeceu e disse para si: «Meu Deus, não as soltaram como eu julguei.» Pensar que pessoas como elas vão saber o que é um chicote. Em Inglaterra! Vão ser açoitadas; e eu, a quem elas deram conforto e distraíram, tenho que ficar a olhar e ver uma coisa errada ser feita; é estranho - tão estranho! que eu, a única fonte de poder neste grande reino, esteja impedido de as ajudar! Abriu-se o grande portão e entrou uma multidão. juntaram-se à volta das mulheres e esconderam-nas dos olhos do rei. Um clérigo entrou e passou por entre as pessoas, até 109
ficar oculto. O rei ouviu então falar entre várias pessoas, como se perguntas fossem feitas e respondidas, mas não conseguia ouvir o que era dito. Depois alguma coisa se estava a preparar e os guardas passavam e voltavam a passar pela parte da multidão que estava mais perto das mulheres; enquanto isto acontecia, uma grande agitação crescia entre as pessoas. Depois, a uma ordem, as massas afastaram-se para o lado e o rei viu um espetáculo que lhe gelou os ossos. Feixes de lenha tinham sido empilhados à volta das mulheres e um guarda, ajoelhado, estava a acendê-los! As mulheres inclinavam as cabeças e cobriam o rosto com as mãos; as chamas amarelas começavam a subir no meio do estalar da madeira e nuvens de fumo azul subiam levadas pelo vento; o clérigo levantou as mãos e começou a rezar - exatamente quando duas meninas vieram a correr pelo portão, dando gritos ensurdecedores, e se atiraram sobre as mulheres. Foram imediatamente retiradas pelos guardas; uma estava bem segura, mas a outra conseguiu soltar-se, a dizer que queria morrer com a sua mãe; e antes que a conseguissem deter abraçou-a pelo pescoço. Foi outra vez retirada, com o vestido a arder. Dois ou três homens agarraram-na e a parte do vestido que estava em fogo foi arrancada e atirada para longe, ainda a arder, enquanto ela lutava para se libertar, dizendo que agora ia ficar sozinha no mundo e que, portanto, queria morrer com a mãe. As duas meninas não paravam de gritar e de lutar para se soltarem; mas, de repente, este tumulto afogou-se, sob uma saraivada de gritos de agonia ensurdecedores. O rei olhou para as meninas em transe e para o cadafalso, depois voltouse e encostou o rosto pálido contra a parede e não viu mais nada. Disse: - Aquilo que acabei de ver, neste curto instante, nunca se apagará da minha memória, mas lá permanecerá; e vê-lo-ei todos os dias e sonharei todas as noites, até morrer. Quisesse Deus que eu fosse cego! Hendon observava o rei. Disse consigo próprio, satisfeito: «A sua doença está a curarse; ele mudou e tornou-se mais calmo. Se fosse como dantes já estaria a fazer barulho com estes malandros, a dizer que é o rei e a mandar as mulheres serem soltas incólumes. Cedo esta ilusão passará e será esquecida e a sua pobre mente ficará sã de novo. Que Deus apresse esse momento!>, Nesse mesmo dia vieram passar a noite no cárcere vários presos que estavam a ser transportados sob escolta para diversos sítios do reino, onde seriam punidos pelos seus crimes. O rei conversou com eles - tinha decidido, desde o princípio, instruir-se para o posto real com perguntas aos prisioneiros, sempre que tivesse oportunidade - e a história das suas desgraças cortava-lhe o coração. Um deles era uma pobre mulher semilouca, que tinha roubado de um tecelão um metro ou dois de pano ia ser enforcada por isso. Outro era um homem acusado de roubar um cavalo; disse que não tinham conseguido prová-lo e que imaginara que estava livre do cadafalso; mas não, mal fora libertado acusaram-no de ter morto um veado na tapada real; isto provou-se e agora estava a caminho do patíbulo. Havia um aprendiz de negociante, cujo caso impressionou particularmente o rei: este jovem disse que uma noite tinha encontrado um falcão que escapara ao dono e que o tinha levado para casa, a pensar que podia ficar com ele; mas o tribunal culpara-o de roubo e sentenciara-o à morte.
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O rei ficou furioso com estes atos desumanos e queria que Hendon fugisse da cadeia e fosse com ele para Westminster, para poder subir ao trono, empunhar o cetro a favor desses desgraçados e salvar-lhes a vida. «Pobre criança», suspirava Hendon, «estas terríveis histórias exacerbaram outra vez a sua doença, se não fosse por este azar estaria bom em pouco tempo.» Entre os presos encontrava-se um velho advogado, com um rosto severo e intrépido. Três anos antes escrevera um libelo contra o Lord Chanceler, acusando-o de vários erros e, por isso, fora castigado com a perda de parte das duas orelhas, diminuição do foro e uma multa de três mil libras. Voltou a repetir o mesmo delito e agora tinha sido condenado a perder o que lhe restava das orelhas, pagar uma multa de cinco mil libras, ser marcado em ambos os lados do rosto e a permanecer preso por tempo indeterminado. - Sinto-me honrado por estas marcas - disse, afastando o cabelo para mostrar os restos mutilados do que tinham sido as suas orelhas. O rei deitava chispas pelos olhos, furioso: - Ninguém acredita em mim - disse-lhe - e vós também não, mas não me importa. Dentro de um mês estareis em liberdade. As leis que vos desonraram e que desonram o nome da Inglaterra vão desaparecer do livro. O mundo está mal organizado. Os reis deveriam frequentar a escola das suas próprias leis e aprender alguma caridade.
XXVIII O SACRIFÍCIO Entretanto, Miles estava a ficar exausto com o confinamento e a inatividade. Para sua grande alegria chegou finalmente a hora do julgamento e pensou que qualquer sentença seria bem-vinda desde que não incluísse mais tempo na prisão. Mas estava enganado. Ficou furioso quando se viu descrito como um «vagabundo contumaz,> e sentenciado a duas horas de pelourinho por ser como tal e por ter atacado o dono de Hendon Hail. As suas pretensões a ser irmão do seu perseguidor e à herança das honras e propriedades de Hendon foram deixadas completamente de fora, não merecendo sequer consideração. Miles foi para o castigo furioso e ameaçador, mas isso não lhe serviu de nada; pelo caminho recebeu uns encontrões dos guardas e ainda levou um ou outro murro pela sua conduta irreverente. O rei não conseguia furar a multidão que seguia atrás; portanto foi obrigado a seguir na cauda do cortejo, longe do seu bom amigo e vassalo. Ele mesmo quase tinha sido condenado à mesma sorte, por andar com uma tão má companhia, mas fora solto com um sermão e um aviso, em consideração pela sua idade. Quando a turba, por fim, se deteve, saltou febrilmente de sítio em sítio à procura de um buraco por onde pudesse passar; por fim, depois de muitas dificuldades e atrasos, conseguiu. Ali estava o seu pobre apaniguado no degradante pelourinho, a servir de brinquedo e troça de uma malta suja - ele, o servidor 111
pessoal do rei de Inglaterra! Edward ouvira pronunciar a sentença, mas não tinha realizado realmente o que ela significava. A sua fúria começou a aumentar quando percebeu esta nova indignidade que lhe estava a ser infligida; e ferveu no momento seguinte, quando viu um ovo voar pelo ar e desfazer-se no rosto de Hendon, ao mesmo tempo que a multidão gritava alegremente. Saltou para o círculo aberto e confrontou o oficial responsável, a gritar: - Que vergonha! Este é o meu servidor; soltai-o! Eu sou o... - Alto! - exclamou Hendon, em pânico, - ides destruir-vos. Não lhe presteis atenção, oficial, que ele é louco. - Nao vos preocupeis quanto ao assunto de lhe prestar atenção, bom homem, pois não tenho tempo para isso; mas quanto a ensinar-lhe alguma coisa, isso apetece-me bastante. - Virou-se para um subordinado e disse-lhe: - Fazei o pequeno louco provar uma ou duas chibatadas, para lhe ensinar as boas maneiras. - Meia-dúzia vão-lhe melhor - sugeriu Sir Hugh, que algum tempo antes tinha chegado a galope para dar uma olhadela aos acontecimentos. Agarraram o rei. Nem mesmo se debateu, tão paralisado ficou com o mero pensamento do monstruoso insulto que se propunham infligir à sua sagrada pessoa. A história de Inglatera já tinha sido manchada com um fato semelhante e era terrível pensar que esta seria a segunda vez que um rei ia ser chicoteado. Estava preso e não tinha quem o defendesse; não lhe restava senão aceitar o castigo ou pedir clemência. Terrível dilema! Mas preferiu os açoites, pois um rei pode sofrê-los, mas não pode suplicar. Mas, entretanto, Miles Hendon já estava a resolver esta dificuldade. - Soltem a criança cães sem coração - disse-lhes -, não vêem como é frágil? Deixemno ir, que eu apanho as chicotadas. - Aí está uma boa idéia; obrigado por vos terdes lembrado - disse Sir Hugh, o rosto iluminado com uma sardônica felicidade. - Soltai o pequeno pedinte e dai a este aqui uma dúzia no seu lugar; uma boa dúzia, bem aplicadas. O rei ia começar a protestar com firmeza, mas Sir Hugh calou-o com palavras convincentes: - Sim, falai, dizei-o, soltai o que vos vai na cabeça; só que, tomai nota, por cada palavra que pronunciardes ele levará mais seis chicotadas. Hendon foi removido do tronco e as suas costas postas a descoberto; e enquanto o chicoteavam, o pobre reizinho virou o rosto e permitiu que lágrimas pouco nobres escorressem à vontade pelas faces. «Ah, bom e corajoso coração», disse para consigo, «este leal feito jamais se apagará da minha memória; nunca me esquecerei, nem eles se irão esquecer!» À medida que pensava, a magnânima atitude de Hendon adquiria dimensões cada vez maiores, assim como crescia o seu agradecimento. Pensou: «Aquele que salva um príncipe de injúrias físicas e de uma provável morte - que é o que ele acaba 112
de fazer por mim - realiza um grande serviço; mas isso não tem nenhum significado, pois é menos que nada comparado com o ato de salvar o seu príncipe da vergonha.» Hendon não gritou com o castigo e agüentou as fortes chibatadas com a resistência de um soldado. Esta atitude, somada com o fato de ele estar a apanhar em vez da criança, impôs o respeito mesmo a uma turba tão desesperada e pobre como a que ali estava; as chacotas e gritos acabaram e o único barulho que se ouvia era o som das vergastadas. O silêncio que envolvia o ambiente quando Hendon voltou para o tronco era completamente diferente do clamor de insultos que se ouvira antes. O rei veio de mansinho até ao lado de Hendon e segredou-lhe ao ouvido: - Os reis não podem enobrecer a vossa grande e boa alma porque Aquele que é mais alto do que os reis fê-lo por vós; mas um rei pode confirmar a vossa nobreza perante os homens. Pegou no chicote que tinha sido deixado no chão, tocou de leve os ombros ensanguentados de Hendon e segredou: - Edward de Inglaterra vos faz conde! Hendon ficou emocionado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, mas ao mesmo tempo o humor macabro da situação de tal maneira destruía a sua gravidade que era tudo o que ele precisava para esconder a sua dor. Disse para consigo: «Agora estou bem ungido, na verdade! O cavaleiro fantasma do reino dos sonhos e das sombras tranformou-se num conde fantasmagórico! - um voo tonto para umas asas implumes! Se isto continua assim vou acabar engalanado como um maypole com fantásticos adornos e honras de brincadeira. Mas vou dar-lhes o seu valor, sem valor que sejam, pelo amor com que foram dados.» O temido Sir Hugh picou o cavalo, deu meia volta e foi-se embora, enquanto a parede viva se abria silenciosamente para o deixar passar e silenciosamente se voltava a fechar. E assim permaneceu; ninguém se atrevia a fazer comentários a favor do prisioneiro ou a homenageá-lo; mas não interessa, a ausência de insultos era, em si mesma, uma homenagem suficiente. Um recém-chegado que mandou um insulto ao «impostor» e se preparava para o secundar com um gato morto foi imediatamente agredido e mandado embora, sem quaisquer palavras, e voltou o mais profundo silêncio.
XXIX PARA LONDRES Quando o tempo de Hendon no pelourinho terminou, soltaram-no e recebeu voz para deixar a região e não voltar nunca mais. Devolveram-lhe a espada, o burro e a mula. Montou e foi-se embora, seguido pelo rei, e a multidão abriu-se para eles passarem com um silencioso respeito, dispersando depois de terem desaparecido.
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Hendon seguia absorvido nos seus pensamentos. Havia perguntas importantes que precisavam de uma resposta. O que é que poderia fazer? Para onde deveria ir? Era preciso encontrar ajudas poderosas em algum sítio, ou então desistir da herança e além disso ficar na situação de impostor. Onde é que poderia esperar tal ajuda poderosa? Onde, na verdade! Era uma pergunta espinhosa. Lentamente, veio-lhe uma idéia que apontava para uma possibilidade. Lembrou-se do que o velho Andrews tinha dito sobre a bondade do rei e da sua campanha a favor dos injustiçados e desafortunados. Porque não procurá-lo e tentar falar-lhe a pedir justiça? Ah! Sim, mas como poderia um pobre tão estranho ser admitido na augusta presença do monarca? Tanto faz - o melhor seria deixar que o assunto se resolvesse por si; com certeza que seria capaz de encontrar uma maneira. Sim, ia fazer-se à capital. Talvez o velho amigo do seu pai, Sir Humphrey Marlow, o ajudasse - o bom do velho Sir Humphrey, secretário-mor da cozinha do falecido rei, ou dos estábulos, ou de qualquer coisa parecida - Miles não se conseguia lembrar de qual. Agora que tinha alguma coisa para dirigir as suas energias, a névoa de humilhação e depressão que se tinha adensado no seu humor subiu e desapareceu, olhou à volta já com a cabeça levantada. Ficou surpreendido de ver o que já tinham andado; a aldeia ficara bastante para trás. O rei seguia atrás dele, com a cabeça baixa, pois também ele ia longe nos seus planos e pensamentos. Uma triste apreensão nublou a recente alegria de Hendon; quereria o rapaz voltar para a cidade onde, durante a sua curta vida, não tinha conhecido mais nada que não fosse violência e miséria? Mas a pergunta tinha que ser feita; portanto, Hendon puxou as rédeas e chamou-o: - Esqueci-me de vos perguntar para onde nos dirigimos. Quais são as vossas ordens, meu senhor? - Para Londres! Hendon adiantou-se outra vez, muito satisfeito com a resposta, mas também bastante surpreendido. A viagem foi toda feita sem acontecimentos de monta, mas acabou com um acidente. Cerca das 10 horas da noite de 19 de Fevereiro chegaram à ponte de Londres, no meio de um amontoado confuso e agitado de pessoas a hurrar * a gritar, cujos rostos inchados de cerveja brilhavam sob * luz de muitas tochas e foi nessa altura que uma das cabeças apodrecidas de algum falecido duque ou poderoso senhor caiu no meio deles, atingiu Hendon no cotovelo e depois perdeu-se no meio da confusão de pés. Como são temporários e eférneros os feitos dos homens neste mundo! O bom rei morto há três semanas e enterrado há três dias e já estavam a cair as decorações que ele tinha tido tanto trabalho a escolher entre os nobres para o seu povo da ponte! Um cidadão tropeçou na cabeça e bateu com a sua própria nas costas de alguém que estava a passar à frente dele, que se voltou e atirou ao chão a primeira pessoa que encontrou à frente, sendo imediatamente derrubado por um amigo dessa pessoa. O tempo estava bom para cenas destas, pois as festas do dia seguinte - o da coroação - já tinham começado; toda a gente estava cheia de bebidas fortes e patriotismo; dentro de cinco minutos, a pancadaria já ocupava uma boa área; em dez ou doze cobria um acre ou mais e estava a transformar-se num tumulto.
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Nesta confusão, Hendon e o rei ficaram separados um do outro sem qualquer possibilidade de se encontrarem, perdidos na correria das massas ululantes. E assim os deixamos.
XXX OS PROGRESSOS DE TOM Enquanto o verdadeiro rei vagueava pelo reino, mal vestido, mal alimentado, umas vezes algemado e achincalhado por vadios, outras misturado na prisão com ladrões e assassinos e era chamado de idiota e impostor por todos eles, o falso rei Tom Carity divertia-se com uma experiência diferente. Quando o vimos pela última vez, a realeza estava a começar a mostrar-lhe um lado agradável. Esse lado tornava-se mais satisfatório ainda de dia para dia; em muito pouco tempo tinha-se tornado uma delícia tão boa como o brilho do Sol. Perdeu o medo; as vergonhas foram esquecidas e deram lugar a uma postura fácil e cheia de autoconfiança. Tirava tudo o que podia do apanhador de chibatadas, com resultados cada vez melhores. Mandava vir Lady Elizabeth e Lady Jane Grey à sua presença, sempre que queria brincar ou conversar, e dispensava-as quando estava farto delas, com o ar de alguém familiarizado com tais situações. Não o atrapalhava mais que à saída essas importantes personagens lhe beijassem a mão. Acabou por gostar de ser levado para a cama à noite com toda a cerimônia e de ser vestido de manhã com toda a complicação e solenidade. Dava-lhe um orgulhoso prazer ir para o jantar acompanhado por uma brilhante procissão de funcionários e cavalheiros pensionistas; de tal maneira, na verdade, que duplicou a quantidade destes últimos, passando-os a cem. Gostava de ouvir as trompas soarem pelos corredores e as vozes distantes responderem «Passagem para o rei!,>. Até aprendeu mesmo a gostar de se sentar no trono da sala do conselho e a parecer alguma coisa mais do que o porta-voz do lorde protetor. Gostava de receber os grandes embaixadores com as suas maravilhosas comitivas e de ouvir as mensagens de afeto vindas de ilustres monarcas, que lhe chamavam «irmão». Oh, feliz Tom Carity, vindo de Offal Court! Gostava das suas esplêndidas roupagens e mandou fazer mais; achou que os seus quatrocentos criados eram muito poucos para a grandeza que lhe era devida e triplicou o seu número. A adulação e os salamaleques dos cortesãos entravam como música nas suas orelhas. Continuava bom e gentil, era um enérgico e determinado campeão da causa de todos os oprimidos e mantinha uma guerra sem tréguas contra as leis injustas; contudo, em certas ocasiões, ao sentir-se ofendido, podia-se virar contra um conde, ou mesmo um duque, e olhá-lo de tal maneira que o fazia tremer. Uma vez, quando sua real «Írma», a aborrecida e beata Lady Mary, decidiu discutir com ele a sabedoria da sua política de perdoar a tanta gente, que de outro modo estaria na prisão, ou seria enforcada, ou queimada, e lhe lembrou que as prisões do seu augusto e falecido pai tinham às vezes uma 115
população de sessenta mil condenados, e que durante o seu magnífico reinado tinha mandado setenta e dois mil ladrões e gatunos para a forca, o menino encheu-se de generosa indignação, mandou-a meter-se no seu quarto e pedir a Deus que lhe retirasse a pedra que tinha no peito e a colocasse um coração. Será que Tom Canty nunca se sentiu preocupado com o verdadeiro príncipe que o tinha tratado tão bem e saído da sala com um tão forte zelo para castigar a sentinela insolente nos portões do palácio? Sim; os seus primeiros dias e noites reais foram salpicados de dolorosos pensamentos sobre o principe perdido e de uma sincera vontade que acontecesse uma feliz restauração dos seus esplendores e direitos de nascença. Mas, à medida que o tempo passava, a mente de Tom ficava cada vez mais ocupada com as suas novas e encantadoras experiências e, aos poucos, o monarca desaparecido saiu dos seus pensamentos; e, finalmente, quando ele se intrometia nesses pensamentos, a largos intervalos, era como um espectro mal-vindo, pois fazia Tom sentir-se culpado e envergonhado. A pobre mãe e as irmãs percorreram o mesmo caminho na mente de Tom. Ao princípio, pensava onde elas estariam, sentia pena e tinha vontade de as ver; mas mais tarde fazia-o estremecer a idéia de que elas um dia podiam aparecer, sujas e esfarrapadas, denunciá-lo com os seus beijos e tirá-lo do seu luxuoso lugar para o fazer voltar para a penúria e degradação do bairro da lata. Por fim, deixaram quase completamente de perturbar os seus pensamentos. E isso deixou-o satisfeito, mesmo feliz; pois, sempre que os seus tristes rostos acusadores lhe apareciam à fente, faziam-no sentir-se mais desprezível do que um verme. À meia-noite de 19 de Fevereiro Tom Carity era um menino feliz, a adormecer na sua rica cama no palácio, guardado pelos seus leais vassalos e rodeado pelas pompas da realeza; pois, o dia seguinte tinha sido escolhido para a sua coroação solene como rei de Inglaterra. À mesma hora, Edward, o verdadeiro rei, esfomeado e com sede, cansado de viajar, vestido de trapos e andrajos, estava metido no meio da multidão que observava com vivo interesse algumas equipas de trabalhadores que entravam e saíam a toda a pressa da abadia de Westminster, ocupados como formigas nos últimos preparativos para a coroação real.
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XXXI A PROCISSÃO DO RECONHECIMENTO Quando Tom Canty acordou no dia seguinte, o ar estava cheio com o ribombar de distantes explosões, que vinham de todas as direções. Para ele, era como se fosse música, pois queria dizer que o mundo inglês estava na rua com toda a força para dar as boasvindas reais ao grande dia. Depois, Tom viu-se outra vez como a figura principal de uma maravilhosa parada flutuante que descia pelo Tamisa; pois era hábito antigo que a «procissão de reconhecimento» através de Londres começassena Torre e era para lá que ele se dirigia. Quando chegou, as paredes da venerável fortaleza pareciam repentinamente abertas em mil sítios e de cada um saía uma língua vermelha de fogo e uma nuvem branca de fumo; seguiu-se uma explosão ensurdecedora que afogou a gritaria da multidão e fez tremer o chão; os jatos de fogo, o fumo e as explosoes repetiram-se muitas vezes a uma incrível velocidade, de tal modo que ao fim de pouco tempo a velha torre desaparecia num imenso nevoeiro do seu próprio fumo - toda ela menos a parte mais alta, chamada de Torre Branca; esta e os seus pendões elevavam-se acima do denso banco de vapor como uma montanha se projeta sobre um anel de nuvens. Tom Carity, explendorosamente ataviado, montou num emproado cavalo de combate, cujas ricas coberturas quase que chegavam ao chão; o seu «tio,, Lorde Protetor Somerset, numa montada idêntica, colocou-se atrás dele; a guarda real, coberta de metal polido, formou em fila dos dois lados; depois do protetor, seguia-se uma procissão aparentemente interminável de nobres resplandecentes, acompanhados dos seus vassalos; depois destes, vinha o alcaide e o corpo municipal com túnicas de veludo escarlate e correntes de ouro ao peito; e, depois deles, os oficiais e membros de todas as associações profissionais de Londres, muito bem vestidos e levando os exuberantes pendões das diferentes corporações. Também participava da procissão, como uma guarda de honra especial através da cidade, a Muito Antiga e Honrada Companhia de Artilharia - uma organização que nessa época já tinha trezentos anos de idade e o especial privilégio (mantido até hoje) de ser independente das ordens do Parlamento. Era um brilhante espetáculo, que passava com toda a solenidade entre as multidões compactas de cidadãos, saudado com aclamações durante todo o percurso. O cronista conta: «O rei, ao entrar na cidade, foi recebido pelo povo com orações, boas-vindas, gritos, palavras de ternura e todos os sinais que mostram um grande amor dos súbditos para com os seus soberanos; e o rei, ao mostrar a sua alegre postura perante todos até perder de vista, e ao falar com as mais suaves palavras àqueles que estavam próximos de sua Graça, mostrava-se não menos agradecido em receber a boa vontade do povo do que eles em lha darem. A todos que lhe desejavam boa sorte respondia com agradecimentos. Àqueles que o saudavam com »Deus salve sua Graça» respondia «Deus vos salve a todos!» e acrescentava que lhes agradecia de todo o coração. As pessoas ficavam maravilhosamente impressionadas com as bonitas respostas e gestos do seu rei.»
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Na Rua Fenchurch uma «bonita criança, com roupas caras», ficou num palco para dar a sua majestade as boas-vindas à cidade. Nos últimos versos da sua saudação dizia: Bem-vindo õ rei! tanto quanto os corações podem cantar; Bem-vindo de novo, tanto quanto uma língua pode dizer. Bem-vindo às alegres palavras e aos corações que não se retraem; Deus vos preserve, assim rezamos e desejamos que estejais sempre bem. O povo comprimia-se a gritar alegremente e a repetir a uma voz o que a criança tinha dito. Tom Carity olhou por cima daquele mar de rostos entusiasmados e o seu coração inchou de satisfação; sentiu que uma coisa que fazia valer a pena viver neste mundo era ser rei e ídolo de uma nação. Depois reparou, à distância, num par dos seus camaradas esfarrapados de Offal Court - um deles o lorde grande-almirante da sua corte de brincadeira, o outro o primeiro-lorde do quarto de dormir; e o seu orgulho cresceu mais do que nunca. Oh, se o pudessem reconhecer agora! Que indizível glória que seria se vissem que era ele e percebessem que o ridicularizado rei de brincadeira dos bairros da lata e becos escusos tinha-se tornado um verdadeiro rei, com ilustres duques e príncipes como seus humildes servidores, e os ingleses aos seus pés! Mas teve de se conter e abafar o seu desejo, pois tal reconhecimento podia custar mais do que valia; portanto, virou a cabeça e deixou os dois pobres camaradas continuar a gritar e a adular alegremente, sem suspeitar de quem era aquele que tanto honravam. De vez em quando ouvia-se o grito:«Uma dádiva! Uma dádiva!» e Tom respondia atirando uma mão-cheia de moedas a brilhar de novas para que a multidão se debatesse por elas. O cronista continua: «Na parte de cima da Rua de Cracechurch, à frente do brasão da águia, a cidade tinha mandado levantar um belísimo arco, sob o qual estava um palco que ia de um lado ao outro da rua. Aqui exibia-se um quadro histórico a representar os progenitores do rei. Elizabeth de York sentava-se no meio de uma enorme rosa branca, cujas pétalas formavam elaborados laços à sua volta; ao lado dela estava Henrique VIII, a sair de uma imensa rosa vermelha disposta da mesma maneira; as mãos do real par estavam juntas com o anel de casamento ostensivamente exposto. Das duas rosas saía um pé, que subia até a um segundo nível ocupado por Henrique VIII, este a sair de uma rosa branca e vermelha, que tinha ao lado a efigie da mãe do novo rei, Jane Seymour. Um ramo saía dos seus cabelos e subia para o terceiro nível, onde estava a efigie do próprio Edward VI, sentado no trono com uma majestade real, e todo este desfile era emoldurado por ramos de rosas, vermelhas e brancas.» Este belo e alegre espetáculo impressionava tanto o povo em festa que as suas aclamaçaos apagavam completamente a vozinha da criança cuja função era explicar tudo aquilo em versos panegíricos. Mas Tom Canty não teve pena, pois o ruído da multidão era para ele uma música mais doce do que qualquer poema, fose qual fosse a sua qualidade. Para onde quer que Tom voltasse o seu rosto jovem e feliz as pessoas reconheciam a exatidão da sua efigie em relação a ele, a sua contrapartida em carne e osso; e novas hipérboles de aplauso explodiam na sua direção.
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O grande cortejo continuou a passar por um arco triunfal a seguir ao outro e no meio de uma inacreditável sucessão de quadros simbólicos e espetaculares, cada uma a tipificar alguma exaltada virtude, talento ou mérito do reizinho. Em Cheapside, de todas as varandas e janelas pendiam bandeiras, galhardetes e tapetes dos mais ricos, enquanto telas e brocados cobriam as ruas, para mostrar a grande opulência das suas lojas. Todos os bairros tentavam ultrapassar os outros com as suas riquezas. «E todas estas fantasias e maravilhas são para dar as boas-vindas a mim - a mim!», murmurava Tom Carity. As bochechas do falso rei estavam vermelhas de emoção, os olhos brilhavam-lhe e os sentidos mergulhavam num delírio de prazer. Nesse momento, quando estava a levantar o braço para atirar outra mão-cheia de generosidade, reparou num rosto pálido e surpreendido que se destacava da segunda fila do povo, os olhos intensos fixos nele. Uma consternação doentia atingiu-o; tinha reconhecido a sua mãe! E levantou a mão, palma para fora, à frente dos olhos - o antigo gesto involuntário nascido num episódio esquecido e perpetuado pelo hábito. No momento seguinte, ela tinha-se libertado da multidão, passado os guardas e estava ao seu lado. Abraçou a sua perna, cobriu-a de beijos e gritou: «ó meu filho, meu querido!>,, levantando para ele um rosto transfigurado de alegria e amor. No mesmo instante, um dos guardas reais arrancou-a dali com um insulto e atirou-a com a violência de um braço forte para o sítio de onde tinha saído. As palavras «Não vos conheço, mulher!» iam a sair dos lábios de Tom quando isto aconteceu; mas doeu-lhe o coração vêIa ser tratada desta maneira; e, quando ela se virou para vê-lo pela última vez, enquanto desaparecia na multidão, pareceu-lhe tão magoada e triste, que uma vergonha o tomou e consumiu o seu orgulho até às cinzas, apagando a sua realeza roubada. As suas grandezas pareciam sem valor; era como se caíssem para longe dele como farrapos desfeitos. A procissão continuou através de explendores sempre maiores e crescentes tempestades da aclamações; mas para Tom Carity era como se não existissem. Não as via nem ouvia. A realeza tinha perdido a sua graça e doçura. Os remorsos roíam-lhe o coração. Dizia «Quisera Deus que eu me libertasse deste cativeiro!» Estava a cair, inconscientemente, nos termos que usava nos primeiros dias da sua grandeza compulsória. O brilhante cortejo ainda serpenteava pelas ruas sinuosas da bela cidade velha, passando por multidões barulhetas; mas o rei continuava a cavalgar com a cabeça baixa e os olhos vazios, a ver apenas o rosto da sua mãe com aquela expressão magoada. «Uma dádiva, uma dádiva!» Os gritos caíam em ouvidos desatentos. «Longa vida a Edward de Inglaterra!» Parecia que a terra estremecia com a gritariamas não havia resposta da parte do rei. Ouvia como se ouve o estrondo da arrebentação das ondas quando chega aos ouvidos vinda de uma grande distância, pois o som ficava abafado por outro mais próximo, no seu próprio peito e na sua consciência acusadora, uma voz que repetia as vergonhosas palavras: «Não vos conheço, mulher!» Novas glórias se desdobravam a cada curva; novas coisas maravilhosas e magníficas apareciam; soltavam-se os clamores fechados das baterias que estavam à espera desse 119
momento; novos elogios saíam das gargantas das multidões espectantes; mas o rei não reagia e a voz acusadora que murmurava no seu peito incomodado era tudo o que ouvia. Aos poucos, a alegria nos rostos da populaça começou a mudar e a mostrar alguma coisa entre a solicitude e a ansiedade; também era audível uma diminuição no volume dos aplausos. O lorde protetor reparou imediatamente nestes pormenores; e foi igualmente rápido a detectar a causa. Colocou-se ao lado do rei, inclinou-se na sela, tirou o chapéu e disse: - Meu senhor, não é uma boa altura para sonhar. O povo vê a vossa cabeça inclinada e expressão anuviada e toma-o por um presságio. Segui o meu conselho: abri o sol da realeza e deixai-o brilhar sobre as nuvens que vos envolvem, para que se dispersem. Levantai o rosto e sorri para o povo. Dizendo isto, o duque atirou uma mão-cheia de moedas à esquerda e à direita e voltou para o seu lugar. O falso rei fez mecanicamente aquilo que lhe era dito para fazer. O seu sorriso não vinha do coração, mas poucos olhos estavam suficientemente próximos para detectá-lo. Os acenos da sua emplumada cabeça, ao saudar os seus vassalos, eram cheios de graça e graciosidade; a largueza com que as moedas lhe saíam das mãos era de uma liberalidade real; portanto, a ansiedade do povo desapareceu e as aclamações voltaram a fazer-se ouvir com uma força ainda maior. Mesmo assim, um pouco antes de chegarem ao fim, o duque foi mais uma vez obrigado a vir à frente e chamar-lhe a atenção. Segredou: - Ó temido soberano! Sacudi esses humores fatais; os olhos do mundo estão postos em vós! - Depois acrescentou com um evidente aborrecimento: - A perdição veio com aquela doida pobre! Foi ela que perturbou vossa alteza. A magnífica figura virou os olhos sem brilho para o duque e disse com uma voz mortal: - Era a minha mãe! «Meu Deus!», grunhiu o protetor enquanto segurava as rédeas do cavalo para voltar ao seu posto, «o presságio era verdadeiro; ele está outra vez louco!»
XXXII O DIA DA COROAÇAO Voltemos atrás algumas horas e instalemo-nos na abadia de Westminster, às 4 da manhã deste memorável dia da coroação. Não estamos sem companhia; pois, embora ainda esteja escuro, encontrámos as galerias iluminadas por tochas já a encherem-se de pessoas, muito felizes por se poderem sentar sete ou oito horas à espera da altura em que vão ver aquilo que não esperam poder ver duas vezes na vida - a coroação de um rei. Londres e Westminster estão agitadas desde que se ouviram os tiros de aviso dados às 3 120
da manhã e não têm parado de chegar às entradas da catedral multidões dos ricos sem títulos de nobreza que compraram o privilégio de poder procurar um lugar sentado nas galerias reservadas à sua classe. As horas arrastam-se, aborrecidas. Toda a agitação parou durante algum tempo, pois todas as galerias já estão cheias há muito tempo. Podemos sentar-nos agora, para olhar e pensar à nossa vontade. Conseguimos entrever, aqui, ali e acolá, através da fraca luz da madrugada, partes de muitas galerias e varandas, pejadas de pessoas, as outras partes fora do nosso alcance pela interferência das colunas e saliências arquitetônicas. Podemos ver a maior parte do grande transepto norte vazio, à espera dos grandes privilegiados de Inglaterra. Também vemos uma boa área da plataforma ricamente atapetada onde está o trono. Este ocupa o centro daquela e está levantado a uma altura de quatro degraus. Dentro da cadeira do trono está metida uma pedra lisa e pesada - a pedra de Scone -, onde durante muitas gerações se sentavam os reis da Escócia para serem coroados, que com o tempo se tornou suficientemente sagrada para servir o mesmo propósito para os monarcas ingleses. Tanto o trono como a sua elevação estavam cobertos de pano bordado a ouro. Reina a paz, as tochas tremulam quase apagadas, o tempo arrasta-se lentamente. Por fim, a luz do dia começa a afirmar-se, as tochas apagam-se e uma radiância fraca difundese pelos grandes espaços. Todas as características do nobre edifício são agora nítidas, mas ainda esbatidas e sonolentas, pois o Sol está ligeiramente encoberto. Às 7 horas ocorre a primeira interrupção na monotonia sonolenta; ao bater do sino a primeira fidalga entra pelo transepto, vestida com o esplendor de Salomão, e é levada para o seu lugar marcado por um funcionário ataviado de cetins e veludos, enquanto um duplo dele segura a longa capa da lady, segue-a e, depois dela se sentar, dobra-a e deposita-a no seu colo. Depois, coloca o banquinho dos pés de acordo com a vontade dela e, a seguir, poe a sua coroa onde ela acha mais conveniente que esteja quando chegar a altura da coroação simultânea de todos os nobres. Nesta altura, as fidalgas já estão a chegar como uma maré brilhante, os funcionários de cetim esvoaçam e cintilam por toda a parte, a sentá-las e a tomar conta do seu conforto. Agora, a cena já é bastante animada. Há movimento, agitação de cores e movimento por todos os lados. Depois de algum tempo a calma reina de novo, pois as fidalgas já chegaram todas e estão nos seus lugares - uma área compacta de um acre com tais criaturas, como flores humanas, resplandecentes nas suas inúmeras cores e brilhantes como uma via-láctea de diamantes. Vêem-se de todas as idades: viúvas escuras e enrugadas, com o cabelo branco, que podem recuar, e recuar ainda mais pela corrente acima, até se lembrarem da coroação de Richard III e dos dias difíceis de uma época antiga e esquecida; há as belas damas de meia-idade; as lindas e graciosas jovens matronas; e as gentis e maravilhosas meninas, com olhos a brilhar e a pele fresca. Vimos que esta massa compacta de fidalgas está densamente costurada de diamantes e vemos também como é magnífico o espetáculo, mas estamos prestes a chegar à admiração máxima, Por volta das 9 horas, as nuvens desaparecem de repente e uma faixa de Sol corta a doce atmosfera para percorrer lentamente as filas de damas; em cada uma 121
delas reflete as chamas de fantástico esplendor de fogos multicolores e arrepiámo-nos até às pontas dos dedos com o estremecimento elétrico provocado pela surpresa e pela beleza do espetáculo! O tempo passou devagar - uma hora, duas horas, duas horas e meia; foi então que o pesado explodir da artilharia anunciou que o rei e a sua grande procissão tinham finalmente chegado; portanto, alegrou-se a multidão que esperava. Todos sabiam que devia seguir-se mais uma espera, pois o rei tinha que ser preparado e vestido para a cerimonia; mas este atraso seria agradavelmente ocupado pela reunião dos pares do reino, todos com os seus trajos de cerimônia. Eram levados com todas as honras até aos seus lugares e as coroas colocadas convenientemente à mão; entretanto, a multidão das galerias estava acesa de curiosidade, pois para a maioria deles era a primeira vez que via os duques, condes e barões, cujos nomes estavam na história há quinhentos anos. Quando, por fim, todos se sentaram, estava completo o espetáculo visto das galerias e de outros pontos privilegiados; algo de maravilhoso a ser sempre lembrado. Agora chegavam à plataforma as grandes figuras da igreja, com as suas casulas e mitras e os seus assistentes, e tomavam também os seus lugares; eram seguidas pelo lorde protetor e outros altos funcionários e esses, por sua vez, por um destacamento de guardas ataviados de metal. Houve um compasso de espera; então, a um sinal, explodiu um triunfante acorde de música e Tom Carity apareceu à porta, vestido com uma grande toga bordada a ouro, e subiu para a plataforma. A multidão em peso levantou-se e começou a cerimônia do Reconhecimento. Um hino nobre inundou a abadia com as suas ricas notas; e, assim louvado e recebido, Tom Carity foi levado até ao trono. As cerimônias ancestrais prosseguiam com impressionante solenidade, enquanto a audiência olhava de boca aberta; e à medida que se aproximavam do fim, Tom Carity ia ficando mais e mais pálido, e uma profunda e persistente tristeza e um desespero instalaram-se no seu espírito e no seu coração cheio de remorsos. Ia seguir-se o ato final. O arcebispo de Canterbury levantou a coroa de Inglaterra da sua almofada e segurou-a sobre a trêmula cabeça do falso rei. No mesmo instante, um brilho de arco-íris inundou o espaçoso transepto; pois, num impulso simultâneo, todas as pessoas na área dos fidalgos levantaram as suas coroas sobre as suas cabeças - detendose nessa posição. Estabeleceu-se um profundo silêncio na abadia. Neste momento impressionante uma inacreditável aparição intrometeu-se na cena - uma aparição que a multidão concentrada na plataforma não tinha visto antes de começar a aproximar-se deste pela coxia central. Era um menino, de cabeça descoberta, mal arranjado e vestido com umas roupas rudes e plebéias a cair aos bocados. Levantou a mão com uma solenidade que não ficava bem ao seu aspecto pobre e triste e fez esta declaração de aviso: - Proíbo-vos de colocar a coroa sobre essa cabeça falsa. Sou eu o rei!
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Num instante, algumas mãos indignadas agarravam o miúdo; mas, no mesmo instante, Tom Carity, com as suas roupas reais, deu um rápido passo em frente e gritou com voz sonora: - Deixai-o e afastai-vos! Ele é o rei! Uma espécie de pânico surpreendido passou pela assembléia, que se levantou em peso, enquanto as pessoas olhavam perplexas umas para as outras e para os principais personagens desta cena, como se não percebessem se estavam acordadas ou a sonhar. O lorde protetor ficou tão surpreendido como os outros, mas recuperou-se rapidamente e exclamou, com a voz da autoridade: - Não se preocupem com sua majestade, a sua doença tomou-o de novo; agarrem o vagabundo! Teria sido obedecido, mas o falso rei bateu com o pé e gritou: - O risco é vosso! Não lhe toqueis, que ele é o rei! As mãos afastaram-se; uma paralisia apoderou-se da casa; ninguém se mexia, ninguém falava; verdadeiramente, ninguém sabia o que fazer ou dizer, numa emergência tão estranha como inesperada. Enquanto todas as mentes lutavam para perceber alguma coisa, o menino continuava a avançar firmemente, com uma atitude altiva e uma expressão confiante; ainda não tinha parado desde o princípio; e enquanto as cabeças confusas ainda estavam à deriva, subiu para a plataforma e o falso rei correu com uma cara feliz para o encontrar; e caiu de joelhos à sua frente para lhe dizer: - Ó meu senhor, ó rei, deixai que o pobre Tom Carity seja o primeiro a vos jurar lealdade e a dizer-vos «Colocai a vossa coroa e tornai o que é vosso novamente!» O lorde protetor olhou com dureza para o recém-chegado; mas imediatamente essa expressão desapareceu para dar lugar a outra, de surpresa e dúvida. A mesma coisa aconteceu com todos os grandes fidalgos. Olharam uns para os outros e recuaram um passo, num impulso uníssono e inconsciente. O pensamento em todas as cabeças era o mesmo: «Mas que estranha semelhança!» O lorde protetor refletiu por uns momentos, perplexo, e depois disse, com uma solenidade respeitosa: - Por favor, sire, gostaria de fazer algumas perguntas que... - Responder-lhes-ei, meu senhor. O duque fez-lhe muitas perguntas sobre a corte, o falecido rei, o príncipe e as princesas. O menino respondeu corretamente e sem hesitações. Descreveu as salas nobres do palácio, as que pertenciam ao falecido rei e as do Príncipe de Gales. Era estranho, era maravilhoso; sim, era inenarrável - assim disseram todos os que ouviram. A maré começava a mudar e Tom Canty ficou cheio de esperança, quando o lorde protetor sacudiu a cabeça e disse: - De fato, as respostas estão certas e é tudo muito bonito; mas não é mais do que o nosso senhor e rei pode dizer. - Este comentário e a referência à sua pessoa como ainda 123
sendo o rei entristeceram Tom Carity, que sentiu as suas esperanças desmoronarem debaixo dos pés. - Isso não são provas - acrescentou o lorde protetor. - A maré estava a mudar, muito depressa até, mas na direção errada; ameaçava deixar o pobre Tom Carity prisioneiro no trono e mandar o outro para o fundo do esquecimento. O lorde protetor recolheu-se a pensar, sacudiu a cabeça e veio-lhe um pensamento: «É perigoso para o Estado e para todos nós manter por muito tempo um enigma como este; poderia dividir a nação e minar o trono.» Virou-se e disse: - Sir Thomas, prendei este... Não, esperai! - O seu rosto iluminou-se e confrontou o esfarrapado candidato com esta pergunta: - Onde é que está o grande selo? Respondei-me a isto com verdade e o enigma está desvendado; pois só aquele que é o Príncipe de Gales pode responder. De uma coisa tão trivial dependem um trono e uma dinastia! Tinha sido uma feliz idéia e os grandes dignatários manifestaram o seu aplauso silencioso pela maneira como se olharam entre si, com uma atitude de aprovação. Sim, ninguém mais, além do verdadeiro príncipe, poderia resolver o persistente mistério do grande selo desaparecido - este miserável pequeno impostor tinha aprendido bem a sua lição, mas aqui as aulas iriam falhar, pois o seu próprio professor não conseguia responder a essa pergunta. Fizeram que sim com a cabeça e sorriram interiormente de satisfação, ao mesmo tempo que olhavam para ver o doido do garoto atingido por um estremecimento de confusão culposa. Que surpreendidos ficaram, pois, quando o ouviram responder com prontidão, numa voz cheia de confiança e segurança: - Não há nada neste enigma que tenha alguma dificuldade - então, sem pedir licença a ninguém, virou-se e deu seguinte ordem, com a atitude de quem está habituado tais coisas: - Meu senhor Saint John, ireis à minha sala privada no palácio - pois ninguém conhece o sítio melhor do que vós - e ao pé do chão, no canto esquerdo mais longe da porta que abre para a antecâmara, encontrareis na parede uma cabeça de prego cor-defogo; apertai-a e abrir-se-á um pequeno cofre de jóias - uma coisa que mesmo vós não tendes conhecimento - nem vós nem ninguém mais no mundo além de mim e do artesão de confiança que a preparou para mim. O primeiro objeto que vós vereis será o grande selo; trazei-o aqui. Toda a assembléia ficou a pensar neste discurso e a pensar mais ainda como é que o pequeno mendigo tinha escolhido este fidalgo sem hesitação nem medo de errar e o tinha chamado pelo nome de uma maneira tão placidamente convincente, como se sempre o tivesse conhecido toda a vida. O fidalgo foi quase levado a obedecer-lhe. Fez mesmo um movimento para ir, mas rapidamente recobrou a sua atitude tranqüila e confessou a sua falta, corando. Tom Carity virou-se bruscamente para ele e disse, agressivo: - Porque hesitais? Não ouvistes a ordem do rei? Ide! O Lord Saint John fez uma profunda vênia - e reparou-se que foi suficientemente cauteloso e neutro para a fazer não a um dos reis em particular, mas na direção do espaço vazio entre os dois - e depois partiu.
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Começou então um movimento das maravilhosas partículas do grupo oficial que mal se podia perceber, lento, contínuo e persistente - um movimento igual ao que se observa num caleidoscópio que gira devagar, onde os componentes de um esplêndido agrupamento se dissolvem para se juntar noutro, um movimento que aos poucos, no caso presente, dissolveu a brilhante coroa que estava à volta de Tom Canty para se agrupar outra vez na proximidade no recém-chegado. Tom Carity ficou quase sozinho. Seguiu-se um breve período de espera e profundo suspense, durante o qual os poucos corações hesitantes que ainda estavam ao pé de Tom Canty gradualmente ganharam coragem suficiente para se passar, um a um, para a maioria. Assim Tom Carity, com o manto real e as jóias, ficou completamente sozinho e isolado do mundo, uma figura notória a ocupar uma vaga evidente. Agora via-se voltar o Lord Saint John. À medida que avançava pela coxia central o interesse era tão intenso que os murmúrios da grande assembléia morreram, para darem lugar a um profundo silêncio, uma imobilidade sem respiração, através da qual os seus passos pulsavam com um ressoar distante e apagado. Todos os olhos estavam fixos nele, enquanto se aproximava, Chegou à plataforma, parou por um momento, depois foi até Tom Carity e, com uma profunda vênia, disse-lhe: - Sire, o selo não está lá! Uma turba não se afasta da presença de um leproso mais depressa do que o grupo de pálidos e aterrados cortesãos se afastou do esfarrapado pretendentezinho à coroa. Num instante ficou completamente sozinho, sem amigos nem apolantes, um alvo onde se concentrava o fogo amargo dos olhares de troça e desprezo. O lorde protetor deu as ordens com dureza: - Levai o pedinte para a rua e açoitai-o pela cidade - o pobre malandro não merece mais consideração! Os oficiais da guarda avançaram para obedecer à ordem, mas Tom Carity fez-lhes sinal para que se afastassem e disse: - Para trás! Quem lhe tocar arrisca a vida! O lorde protetor estava completamente perplexo. Disse para o Lord Saint John: - Procurastes bem? Mas não faz sentido perguntar tal coisa. Realmente é estranho; coisas pequenas, nadas, desaparecem e não se acha que seja surpreendente; mas como é que uma coisa tão grande como o selo de Inglaterra pode desaparecer sem que ninguém o consiga encontrar - um disco grande e maciço... Tom Carity, com os olhos a brilhar, deu um pulo para a frente e gritou: - Esperai, é o que basta! É redondo? E espesso? E tem letras e sinais gravados? Sim? Oh, agora sei o que é esse grande selo de que tanto se tem falado! Se mo tivésseis descrito poderíeis tê-lo há três semanas. Sei onde é que está agora; mas não fui eu que o coloquei lá. Primeiro... - Mas quem, então, meu senhor? - perguntou o lorde protetor.
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- Este que aqui está - o verdadeiro rei de Inglaterra. E ele mesmo vos dirá onde é que está e então vós acreditareis que o disse pelo seu próprio conhecimento. Pensai, meu rei puxai pela memória -, foi a última, a última das últimas coisas que fizestes naquele dia antes de correres para fora do palácio, vestido com os meus farrapos, para punir o soldado que me tinha insultado. Seguiu-se o maior silêncio, sem um movimento ou um suspiro que o perturbassem, e todos os olhos se fixaram no recém-chegado, que, com a cabeça inclinada e a testa franzida, ficou à procura na sua memória, entre uma multidão de lembranças sem valor, do pequeno e alusivo fato que, se encontrado, o sentaria no trono - e, se perdido, o deixaria como estava, para sempre pobre e escorraçado. Os momentos passaram, acumularam-se em minutos - e o menino ainda a lutar silenciosamente, sem se mexer. Por fim deu sinal de vida - sacudiu lentamente a cabeça e disse, numa voz trémula e desesperada: , - Lembro-me da situação - toda ela -, mas não há lugar para o selo. - Fez uma pausa, depois levantou a cabeça e disse, com gentil dignidade: - Senhores e cavalheiros, se roubais ao vosso verdadeiro soberano aquilo que lhe pertence pela falta desta prova que ele não vos consegue dar, nada posso fazer, pois não tenho poderes. Mas... - Ó loucura, ó insanidade, meu rei! - gritou Tom Carity em pânico. - Esperai! Pensai, não desistais... a causa não está perdida! Não vai estar! Ouvi o que digo, segui cada palavra. Vou fazer voltar aquela manhã, cada acontecimento como aconteceu. Nós conversámos, contei-vos sobre as minhas irmãs, Nan e Bet; ah, sim, vós lembrai-vos disso; e sobre a minha velha avó e os jogos violentos dos garotos em Offal Court; sim, vós lembrai-vos também disso; muito bem, continuai a seguir-me, ide-vos lembrar de tudo. Destes-me de comer e beber, e com uma cortesia principesca mandastes embora os criados, para que a minha baixa estração não me envergonhasse à frente deles, ah sim, isto também vos lembrais. Enquanto Tom percorria os pormenores da história e o outro miúdo fazia que sim com a cabeça ao reconhecê-los, o grande auditório e os altos funcionários observavam-nos com uma perplexidade maravilhada- a história parecia verdadeira, mas mesmo assim como poderia ter sido possível esta conjunção entre um príncipe e um mendigo? jamais um grupo de pessoas tinha ficado tão perplexo, tão interessado e tão estupefato. - Por brincadeira, meu príncipe, trocamos as roupas. Depois ficamos em frente do espelho; e éramos tão parecidos que ambos dissemos que parecia que não tinha sido feita nenhuma troca... sim, vós lembrai-vos disso. Depois reparastes que o soldado tinha magoado a minha mão, vede!, aqui está, ainda agora não consigo escrever com ela, os dedos estão tão duros. Quando isto aconteceu, vossa alteza deu um pulo, jurou vingança contra o soldado e correu para a porta, passou pela mesa, aquela coisa a que chamam o selo estava na mesa, vós agarráste-lo e olhastes à volta, como que à procura de um sítio para o esconder, os vossos olhos deram com... - Aí, é suficiente! E que o bom Deus seja louvado! - exclamou o esfarrapado pretendente, numa enorme excitação.
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- Ide, meu bom Saint John, na peça do braço da armadura milanesa que está pendurada na parede, vós encontrareis o selo! - Certo, meu rei! Certo! - gritava Tom Carity. -Agora o cetro de Inglaterra é vosso; e seria melhor que quem o tentasse disputar tivesse nascido mudo! Ide, Lord Saint John, dai asas aos vossos pés! Agora toda a assembléia estava de pé, completamente fora de si com o desconforto, a apreensão e a excitação desgastante. Imediatamente explodiu na abadia um ensurdecedor ruído de frenéticas conversas e durante algum tempo ninguém sabia nada, nem ouvia nada, nem estava interessada em nada a não ser sobre o que o seu vizinho lhe gritava nos ouvidos, ou sobre o que gritava nos ouvidos do vizinho. O tempo - ninguém sabe quanto passava sem que ninguém o notasse. Por fim, um súbito silêncio baixou na nave, ao mesmo tempo que Saint John aparecia no palco com o grande selo na mão. Um enorme grito subiu ao céu: - Longa vida ao verdadeiro rei! Durante cinco minutos o ar estremeceu com a gritaria e o barulho de instrumentos musicais e a assembléia ficou branca com uma tempestade de lenços que se agitavam; e no meio de tudo isso um menino em farrapos, ,a mais apagada figura de todo o reino, ficou de pé, vermelho, feliz e orgulhoso, no centro do grande palco, com os grandes vassalos do reino ajoelhados à sua volta. Então, levantaram-se todos e Tom Carity gritou: - Agora, ó meu rei, pegai nestes belos atavios e dai ao pobre Tom, vosso servo, os seus farrapos e restos. O lorde protetor deu uma ordem: - Deixai que o pequeno malandro seja despido e atirai-o na Torre! Mas o novo rei, o verdadeiro rei, disse: - Não quero que seja assim. Se não fosse por ele não teria de novo a minha coroa: ninguém o tocará ou magoará. E quanto a vós, meu bom tio, meu lorde protetor, a vossa conduta não é nada agradecida para com este pobre rapaz, pois ouvi dizer que fez de vós um duque - o protetor enrubesceu -, contudo não era o rei; portanto, de que vale o vosso título agora? Amanhã vós me pedireis, através dele, pela sua confirmação, senão não sereis mais duque, mas apenas um conde. Com este comentário, sua graça o duque de Somerset retirou-se temporariamente da primeira linha. O rei virou-se para Tom e disse-lhe, com doçura: - Meu pobre garoto, como é que vos pudestes lembrar onde é que eu tinha escondido o selo, se eu mesmo não me lembrava? - Ah, meu rei, foi fácil, uma vez que o usei nestes dias. - Usásteis e, contudo, não podícis explicar onde é que estava? - Não sabia que era aquilo que eles queriam. Nunca mo descreveram, vossa majestade. 127
- Então foi usado em quê? O sangue começou a subir ao rosto de Tom, baixou os olhos e ficou calado. - Falai, meu bom menino, e não tenhais receio - disse o rei. - Como é que usásteis o grande selo de Inglaterra? Tom engasgou-se por um momento, numa confusão patética, depois pô-lo cá para fora: - Para partir nozes! Pobre criança, a avalanche de gargalhadas com que este comentário foi recebido quase que o atirou ao chão. Mas se alguma dúvida havia quanto a Tom Carity ser o rei de Inglaterra e estar familiarizado com os augustos acessórios da realeza, a resposta foi suficientemente esclarecedora. Entretanto, o suntuoso manto de cerimônia tinha sido retirado dos ombros de Tom para os do rei, cujos andrajos ficaram completamente escondidos. Depois, as cerimônias da coroação continuaram; o verdadeiro rei foi ungido e a coroa colocada na sua cabeça, enquanto os canhões davam a notícia à cidade e toda a Londres parecia tremer com os aplausos.
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XXXIII EDWARD, REI Miles Hendon já estava com um aspecto suficientemente pitoresco antes de se enredar no tumulto da ponte de Londres - ficou ainda mais quando conseguiu livrar-se dele. Tinha pouco dinheiro quando entrou e nenhum quando saiu. Os ladrões aliviaram-no do seu último farthing. Mas, fosse como fosse, tinha que encontrar o miúdo. Sendo um soldado, não se meteu ao trabalho de um modo aleatório, mas começou por preparar a sua campanha. O que é que seria natural que o menino fizesse? Para onde é que seria natural que ele fosse? Bem - argumentava Miles -, seria natural que ele fosse para os sítios que freqüentava anteriormente, pois esse é o instinto das mentes pouco seguras quando desamparadas e sem lar, tal como o das mentes sãs. Mas onde é que seriam esses sítios? Os seus farrapos, somados ao torpe vilão que o conhecia e reivindicava mesmo ser o pai, indicavam que o seu lar era num dos bairros mais pobres e perigosos de Londres. A busca iria ser longa e difícil? Não, o mais provável é que fosse curta e fácil. Não procuraria o miúdo, mas sim uma multidão; no centro de uma grande turba ou de uma mais pequena, mais cedo ou mais tarde, com certeza que encontraria o seu pobre amiguinho; e a multidão escanzelada estaria a divertir-se acossando e insultando o miúdo, que estaria a declarar-se rei, como sempre. Então Miles Hendon feriria algumas dessas pessoas e levaria às costas o seu pequeno protegido para o confortar e alegrar com palavras de ternura, e os dois nunca mais se separariam. Então Miles começou a sua busca. Horas a fio vagabundeou por becos escusos e ruas esquálidas à procura de grupos e multidões; estes nunca mais acabavam, mas não se via nenhum sinal do rapaz. Isto surpreendia-o, mas não o desencorajava. Não via nada de errado no seu plano de campanha; o único imprevisto é que estava a prolongar-se muito mais do que ele tinha pensado. Quando, finalmente, amanheceu tinha percorrido muitas milhas e investigado muitos grupos de pessoas, mas o único resultado era estar toleravelmente cansado, bastante esfomeado e cheio de sono. Queria um pequeno almoço, mas não tinha como consegui-lo. Pedir não lhe ocorreu; quando a empenhar a espada, seria mais fácil perder a sua honrapodia dispensar algumas das suas roupas - sim, podia, mas era mais fácil encontrar um comprador para uma doença do que para tais roupas. Ao meio-dia ainda andava ao acaso - agora misturado com a escumalha que seguia no fim do cortejo real, pois tinha pensado que esta exibição atrairia fortemente o seu pequeno lunático. Seguiu o cortejo por todas as suas convulsas voltas através de Londres, até chegar a Westminster e à abadia. Durante algum tempo vagueou por aqui e por ali entre as multidões que se juntavam nas proximidades, admirado e perplexo, e, finalmente, ficou a andar à toa e a pensar, tentando descobrir alguma maneira para melhorar a sua campanha. Aos poucos, quando voltou a si depois de muito divagar, descobriu que a cidade estava muito para trás e o dia começava a escurecer. Estava próximo do rio, no meio do campo; era uma região com boas casas - não o tipo de bairro que desse as boas-vindas a 129
uma pessoa assim vestida. Não se sentia com frio, portanto esticou-se no chão no encosto de um aterro, para descansar e pensar. Logo uma sonolência baixou nos seus sentidos; o fraco e distante ribombar dos canhões chegou-lhe aos ouvidos e disse consigo mesmo: «O novo rei foi coroado.» Adormeceu imediatamente. já não dormia ou descansava há mais de trinta horas. Não voltou a acordar até ao meio da manhã seguinte. Levantou-se coxo, anquilosado e semiesfomeado, lavou-se no rio, encheu a barriga com um litro ou dois de água e arrastou-se até Westminster, a resmungar consigo mesmo por ter perdido tanto tempo. A fome ajudou-o a inventar um novo plano; tentaria falar com o velho Sir Humphrey Marlow e pedir-lhe alguns marcos - de momento este plano era suficiente, haveria tempo para o aumentar quando a primeira parte fosse realizada. Por volta das 11 horas da manhã aproximou-se do palácio; e, embora uma certa quantidade de pessoas bem-postas passasse por ele, indo numa certa direção, não deixou de ser notado - o seu aspecto encarregou-se disso. Ficou a olhar para a cara dessas pessoas, à espera de encontrar uma expressão caridosa cujo dono não se importasse de levar o seu nome ao velho lugar-tenente - pois quanto a entrar no palácio ele mesmo, isso estava fora de questão. Nessa altura passou por ele o nosso apanhador de chibatadas, que resolveu dar uma volta e observar bem a sua figura, dizendo consigo próprio: «Ah! Se este não é mesmo o vagabundo por quem sua majestade está tão preocupado, então eu sou um jumento embora já o tenha sido antes. Corresponde à descrição até nos andrajos - se Deus fizesse dois iguais, isso seria o mesmo que embaratecer os milagres com uma repetição desnecessária. Gostaria de ter uma desculpa para falar com ele.» Miles Hendon poupou-lhe o trabalho, pois nessa altura virou-se, como uma pessoa geralmente faz quando alguém a atrai olhando-a fixamente pelas costas; e vendo um forte interesse nos olhos do rapaz, avançou para ele e disse-lhe: - Estais a sair do palácio; sois de lá? - Sim, vossa senhoria. - Conheceis Sir Humphrey Marlow? O rapaz sobressaltou-se e disse para si: «Meu Deus! O meu falecido pai!» Depois respondeu, em voz alta: - Muito bem, vossa senhoria. - Bom; ele está lá dentro? - Sim - disse o rapaz; e acrescentou para si: «dentro do seu túmulo. - Posso pedir-vos o favor de lhe levar o meu nome e dizer que peço para lhe falar em particular? - Tratarei desse assunto imediatamente, caro senhor. - Então dizei-lhe que Miles Hendon, filho de Sir Richard, está cá fora - ficar-vos-ei muito agradecido, meu bom rapaz!
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O rapaz parecia desiludido; «O rei não o chamou assim», disse para si, mas não tem importância, este deve ser irmão gêmeo e pode dar a sua majestade notícias do outro Sir Isto-e-Aquilo, tenho a certeza.» Disse então a Miles: - Vinde até aqui por um momento, meu senhor, e esperai até que vos traga notícias. Hendon foi para o sítio indicado - era um recanto construído na parede no palácio, com um banco de pedra -, um abrigo para as sentinelas no mau tempo. Tinha apenas acabado de se sentar quando alguns alabardeiros, comandados por um oficial, passaram por ali. Este viu Hendon, mandou os homens parar e mandou-o aproximar-se. Obedeceu e foi imediatamente detido por ser uma figura suspeita a passear dentro do recinto do palácio. As coisas começavam a ficar feias. O pobre Miles ia tentar explicar, mas o oficial mandou-o calar e mandou os homens desarmá-lo e revistá-lo. - Queira Deus na sua misericórdia que encontrem alguma coisa - disse o pobre Miles -, já procurei bastante e não encontrei nada e, no entanto, a minha necessidade é maior do que a deles. Não encontraram nada a não ser um documento. O oficial abriu e Hendon sorriu quando reconheceu os gatafunhos feitos pelo seu amiguinho perdido naquele dia negro em Hendon Hall. O rosto do oficial ficou vermelho, quando leu o parágrafo em inglês, e o de Miles, branco, quando o ouviu ler. - Outro pretendente à coroa! - gritou o oficial. Verdadeiramente nascem como coelhos, hoje em dia. Apanhem o malandro e esperem enquanto eu levo este precioso papel lá dentro para ser apreciado pelo rei. Foi-se com pressa, deixando o prisioneiro nas mãos dos alabardeiros. - Até que enfim que acabou a minha má sorte - murmurou Hendon -, pois em breve estarei pendurado na ponta de uma corda, por causa daquelas palavras escritas. E o que acontecerá ao meu pobre menino! Só Deus é que saberá... Logo a seguir viu o oficial voltar a grande velocidade; portanto reuniu a sua coragem, disposto a enfrentar o destino como um homem. O oficial mandou os homens soltar o prisioneiro e devolver-lhe a espada, depois fez uma respeitosa vênia e disse-lhe: - Por favor, senhor, segui-me. Hendon seguiu-o, a dizer consigo próprio: «Se não estivesse a caminho do julgamento e da morte, precisando portanto de economizar nos pecados, estrangulava este malandro pela sua cortesia de brincadeira.» Os dois atravessaram um pátio cheio de pessoas e chegaram à grande entrada do palácio onde o oficial, com outra vênia, entregou Hendon nas mãos de um magnífico servidor, que o recebeu com profundo respeito e o levou através de uma grande sala, adornada de ambos os lados com fileiras de lacaios esplêndidos (que faziam obedientes reverências quando os dois passavam, mas contorciam-se em silenciosas gargalhadas com o nosso espantalho de cerimônia, quando ele já estava de costas) e depois subiram uma larga escadaria entre grupos de gentis-homens. Finalmente, o servidor entrou com Hendon numa vasta sala, abriu caminho para ele por entre a nobreza de Inglaterra, fez uma 131
reverência, lembrou-lhe que tinha que tirar o chapéu e deixou-o no meio da sala, alvo de todos os olhares, muitos esgares indignados e bastantes sorrisos de divertimento e troça. Miles Hendon estava totalmente estupefato. A cinco passos de distância sentava-se o jovem rei, debaixo de um docel de cerimônia, com a cabeça inclinada e' virada para o outro lado, a falar com uma espécie de ave-do-paraíso humana - um duque, talvez; Hendon pensou que já era bastante mau ser condenado à morte no vigor da vida, sem precisar de receber esta humilhação pública. Desejou que o rei andasse depressa com aquilo - alguns dos elegantes ali perto estavam a tornar-se bastante ofensivos. Nesse momento, o rei levantou ligeiramente a cabeça e Hendon viu muito bem o seu rosto. A visão deixou-o sem respirar! Ficou a olhar pasmado, para o belo e jovem rosto, como se estivesse transfigurado; depois murmurou: «Olhem, o senhor do reino dos sonhos e sombras no seu trono!» Continuou a dizer coisas. desencontradas, ainda pasmado e maravilhado; depois, deu uma volta à sala com os olhos, reparando na elegante assistência e nas esplêndidas decorações, e murmurou: «Mas isto é real - verdadeiramente real com certeza que não é um sonho.» Olhou outra vez para o rei e pensou: «Será um sonho? Ou ele é o verdadeiro soberano de Inglaterra e não o solitário e pobre Zé Ninguém que eu pensava - quem resolverá para mim este enigma?» Uma idéia súbita brilhou-lhe nos olhos: foi até à parede, agarrou numa cadeira, trouxe-a, plantou-a no chão e sentou-se! Levantou-se um sussurro de indignação, uma mão pesada abateu-se no seu ombro e uma voz exclamou: - De pé, palhaço sem maneiras - como vos atreveis a sentar na presença do rei? A perturbação atraiu a atenção de sua majestade, que levantou a mão e gritou: - Não lhe toqueis, é um direito seu! A assistência recuou, estupefata. O rei continuou: - Sabei todos vós, damas, lordes e cavalheiros, que este é o meu fiel e bem-amado servidor, Miles Hendon, que interpôs a sua boa espada e salvou este príncipe de injúrias físicas e morte provável - e por tal coisa é um cavaleiro, por ordem do rei. Sabe! também que, por um maior serviço, no qual salvou o seu soberano de vergastadas e vergonha, levando-as ele, é um par de Inglaterra, conde de Kent, e terá o ouro e as terras próprios dessa dignidade. Mais - o privilégio que acabou de exercer é seu por doação real; pois decidimos que os chefes da sua casa terão e manterão o direito de se sentar na presença de sua majestade de Inglaterra a partir de agora, geração após geração, enquanto durar a coroa. Não o molesteis. Duas pessoas que, por se terem atrasado, tinham chegado do campo somente nessa manhã e estavam na sala há apenas cinco minutos, ouviram estas palavras, olharam para o rei, depois para o espantalho, e novamente para o rei, com uma espécie de surpresa inerte. Eram Sir Hugh e Lady Edith. Mas o novo conde não os viu. Estava ainda a olhar para o monarca, aparvalhado, a murmurar:
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