[Margaret Way] a Flor Da Pele
June 23, 2016 | Author: Juliana Mendes | Category: N/A
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A beira do lago daquela maravilhosa fazenda, Catherine ficava longo tempo sozinha, pensando que nada no mundo poderia am...
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À FLOR DA PELE Julia nº57 / Ed. de Colecionador nº 31 Copyright: Margaret Way Título original: "Storm Flower" Publicado originalmente em 1975 Digitalização/ Revisão: m_nolasco73
Contra capa: A beira do lago daquela maravilhosa fazenda, Catherine ficava longo tempo sozinha, pensando que nada no mundo poderia amenizar sua tristeza. Primeiro, tinha sido rejeitada pela mãe, que a mandou para um colégio caríssimo, mas não aparecia para vê-la nem nas férias. Depois Catherine foi para aquela fazenda de parentes distantes, na Austrália, e se apaixonou por Coyne, o primo mais velho. Mas, mesmo agora, quando pela primeira vez o amor aquecia sua alma solitária, Catherine não podia alimentar nenhuma esperança: para Coyne, homem feito, a paixão da prima não passava de um entusiasmo romântico da adolescência...
CAPÍTULO I Ellenor olhou em direção à mesa onde seu sobrinho estava curvado sobre alguns papéis, que ele examinava com ar sério e atarefado. Não era o momento indicado para se abordar o problema, mas o que fazer? Ela não tinha escolha. O ano letivo terminaria na semana seguinte e a garota não tinha para onde ir. Mesmo que tivesse, Ellenor sentia uma necessidade premente de tomar sob seus cuidados aquela pobre órfã. Por breves instantes fechou os olhos. Era uma senhora de cabelos prateados, pele clara e constituição delicada, que encarava a vida com extrema complacência. Era abnegada e sempre dedicara sua vida aos outros, uma espécie de anjo protetor. Coyne, seu sobrinho, continuava atento aos papéis. Ele agora estava um homem feito. Um rapagão bonito, forte e viril, envolto numa aura de poder e autoridade. Não obstante, era um rapaz sensível e bem-humorado, embora ultimamente mal tivesse tempo para outras coisas que não fosse a fazenda. Isso porque, devido à morte de Justin, Coyne herdara a magnífica propriedade, tendo que arcar com o peso de todas as responsabilidades. Mandala... o vasto império de criação de gado da família Macmillan, no coração da Austrália, no limiar do deserto. Mandala! Ellenor repetiu o nome mentalmente e suspirou fundo, sem fazer barulho para não atrair a atenção do sobrinho. Olhou para a reluzente mesa de mogno, onde ele estava, e relembrou o passado. Ela havia dedicado vinte anos, de sua vida a Mandala, envelhecera ali, dirigindo aquela casa, e, contudo ainda se sentia uma estrangeira numa terra desconhecida. Seu pai costumava dizer que aquele era o lugar mais inóspito, porém, o mais belo da face da terra. Naquela terra estavam os corpos de seu pai e de sua irmã, Sara. Com a morte dela, Ellenor se tornou tutora dos sobrinhos.
Ellenor não podia deixar de concordar que ali, naquela região do mundo, tudo era tremendamente vasto, grandioso, forte e exuberante, as cores, as secas, o calor e as enchentes que transformavam tudo de repente num cenário de dilúvio. Para ela a civilização se limitava à fazenda e às construções das redondezas naquela região agreste e sem fim de Mandala, que Coyne conhecia como a palma de sua mão. Tanto poder e riqueza num lugar daqueles! Uma terra atordoante, cheia de miragens, que exercia estranha sedução, como se possuísse o poder de hipnotizar. Uma vez, há muitos anos, ela se perdeu naquela imensidão e, em apenas algumas horas, chegou às portas da loucura. A sorte foi que dois rapazes da fazenda a encontraram logo. Ela nunca se esqueceria daquele dia, das dimensões assustadoras daquela terra, onde a cor predominante era o vermelho. Enormes rochedos avermelhados, formando gargantas estreitas e aterradoras por onde corriam rios caudalosos; as dunas de areia vermelha do deserto e a incrível cor do céu ao pôr-do-sol. O deserto Peã, que depois das chuvas se tornava impressionantemente belo... Realmente era uma estranha paisagem, aquela! Ela nunca conseguira se acostumar, embora tivesse conseguido sobreviver naquela terra hostil a mulheres... Era uma terra para homens, onde a força física e a resistência eram as coisas mais importantes. Sara não tinha suportado... Não era de se admirar que Coyne, aos trinta e dois anos, fosse firme, rude e inflexível como as rochas do deserto povoado de lendas. O próprio Coyne tinha uma certa aparência lendária... era um Macmillan puro, com sangue celta. Aquela região do deserto estava cheia de nomes escoceses, irlandeses e galeses... homens que tinham sido atraídos pelo desafio do perigo, da aventura, e pela possibilidade de fazer fortuna. Havia muitos nomes históricos e famosos entre eles. Sob a luz suave do lustre colonial, Ellenor analisava Coyne. A pele bronzeada, os cabelos castanhos claros e lisos, as sobrancelhas escuras e espessas que se encontravam, o nariz arrogante, os olhos negros, brilhantes e de olhar profundo, sombreados por longos cílios, a boca bem-feita, de lábios cheios e sensuais, apesar do ar sério e compenetrado. Não se cansava de olhar para ele e não era apenas porque se parecia com o pai... ele era realmente fascinante! Coyne era um homem cativante. Tudo o que fazia era com convicção e de um jeito decidido; mesmo num simples gesto de virar uma página podia-se notar isso. Determinação e exatidão era isso! Ellenor sorriu e seus olhos azuis se enterneceram. Coyne era perfeito! Ele sempre fora assim, desde menino; às vezes nem parecia criança, tal a seriedade com que agia. Agora, lá estava ele, atento ao relatório da fazenda, uma ruga vertical na testa, os olhos negros impacientes percorrendo as linhas da página. Aquele tinha sido um dia trabalhoso para ele e ainda tinha que conferir o relatório. Nem era preciso dizer... pela cara dele, Ellenor sabia que Lacey tinha errado outra vez. Ao lado do irmão, Lacey sempre se tornava inseguro, instável e teimoso. Ellenor sabia que essa era uma reação natural ao fato dele viver à sombra majestosa do irmão mais velho. Ela o compreendia, embora reconhecesse que às vezes fazia travessuras que davam trabalho a Coyne. Aos vinte e seis anos, Lacey ainda continuava sem juízo e rebelde como um adolescente. Já estava na época dele assentar um pouco e ajudar o irmão, tão sobrecarregado de serviço cuidando daquela vasta propriedade sozinho. Coyne andava tão ocupado ultimamente que nem mesmo tinha tempo para praticar seu esporte favorito, o pólo. Aliás, os dois irmão jogavam muito bem. Ellenor lastimava que Lacey fosse tão cabeça-oca e irresponsável, mas de certa forma o compreendia. Não era fácil para Lacey ter tido um pai como Justin e depois um irmão como Coyne. Isso parecia roubar dele um certo senso de identidade, fazendo com que se rebelasse quase todos os dias contra o irmão mais velho para se auto-afirmar. Sem dúvida, ele devia sofrer com algum tipo de complexo ao qual Ellenor não queria dar um nome exato. Apenas rezava para que Lacey superasse isso tudo e se tornasse o homem maduro que deveria ser. Se isso não acontecesse, ela iria sentir que falhara. Afinal, ela o criara desde os seis anos de idade. Ellenor amava igualmente os dois sobrinhos, mas apreciava e respeitava muito Coyne, embora não demonstrasse isso diante de Lacey. Toda vez que havia uma pequena discussão sobre algo sem muita importância, ela tomava o partido de Lacey. Mas, quando a coisa era mais séria, desaparecia de cena habilmente para não ter que concordar com Coyne. Lacey, sempre revoltado, arranjava encrencas memoráveis, algumas até bastante graves. Coyne não era um homem de natureza paciente, mas esforçava-se para tratar o irmão com bondade e compreensão. Queria ser para ele pai, mãe e irmão, tudo ao mesmo tempo. Mas era evidente,
agora, que sua paciência estava por se esgotar. Ele abafou uma exclamação e ergueu os olhos para a tia, percebendo que ela estava apreensiva. - Vamos lá, tia! Você anda muito agitada já há algum tempo, eu percebi... o que há, afinal? Ellenor tirou os óculos e limpou as lentes para ganhar tempo. - Ah... você sempre me desconcerta quando fala assim... - Tia - insistiu o sobrinho -, vamos lá, o que é? É alguma coisa com Lacey outra vez? Você sempre fica com essa cara quando quer interferir a favor dele... Pode ser que desta vez não funcione, mas em todo caso não custa tentar. - Não, não é com Lacey - disse Ellenor, esboçando um sorriso. Coyne olhou de novo para as páginas do relatório que tinha diante de si, impaciente pelos erros que encontrara. - Olhe, tiazinha, eu nunca fui de fazer isso, mas acontece que agora estou com pressa, tenho que revisar tudo isso aqui, ainda... A essa altura você já deve saber que eu não mordo, não é? - É, mas não duvido nada que algum dia morda! - respondeu a tia e ouviu a risada sonora dele. - Você se lembra de Moya? Moya Fitzgerald? - E quem não se lembra dela! - respondeu ele, sem o menor interesse. - Mas o que é que essa mulherzinha boba tem a ver com o caso? Não vá me dizer que teve notícias dela? Coyne olhou os papéis; irritado, imaginando de que se tratava, afinal. A tia não iria aborrecê-lo, principalmente quando estava tão ocupado, para contar as aventuras de Moya, que nascera na família Macmillan, mas já se casara duas vezes. - É, eu recebi uma carta... uma longa carta. - Não me diga que ela vem vindo para cá! - disse Coyne, como se depois de tudo o que enfrentara naquele árduo dia isso fosse a gota d'água. - Moya, não... quem vem é Catherine, a filha dela. - Ah... aquela pobre menina abandonada! Sempre jogada de cá para lá. Saindo de um colégio interno para outro! Eu tenho pena dela. - Eu sabia que você sentiria pena... Coyne imediatamente ficou sério e semicerrou os olhos. - Ei, espere aí, não me comprometa. Eu disse apenas que tenho pena dela, mas parece que há algo por trás disso... o que é? Ela quer passar as férias aqui? Assim tão longe da civilização? Ou pelo menos do que a mãe dela chama de civilização! - As últimas frases foram carregadas de sarcasmo. Moya fazia parte da alta sociedade e levava uma vida baste excêntrica. O primeiro marido dela fora um conde italiano, o segundo, Ashley Fitzgerald, um milionário criador de gado, que sumira sem deixar traços num desastre com seu avião particular, que se espatifara contra as montanhas de Nova Guiné. Alguns disseram que tinha sido proposital, para fugir de Moya, uma mulher linda e indomável. - Afinal ela é parente sua... prima distante... - disse Ellenor como se estivesse fazendo rodeios antes de pedir alguma coisa. - Não precisa me lembrar disso. - Ele largou a pasta em cima da mesa e virou-se para a tia - está bem, tiazinha, diga logo de uma vez. Moya está querendo largar a menina aqui, é isso? - Exatamente. - Por quanto tempo? Se ela for tão fútil e efervescente quanto a mãe dela, ninguém vai conseguir segurá-la aqui! - Ora, Catherine ainda é uma colegial, não se esqueça! - disse a tia, um tanto abalada. - Ainda bem, porque se fosse a outra eu não toleraria. Não posso entender como é que a mãe dela pode viver eternamente embonecada daquele jeito, cheia de jóias, feito uma árvore de Natal... jogando a menina de um lado para o outro como um brinquedo. Desde que me conheço por gente que ouço falar nisso. Com que idade está a menina afinal? - Catherine deve estar com uns dezoito anos agora. Todo ano eu mando a ela um presente de aniversário... estou com o nome do colégio de freiras aqui. - Ela se virou e pegou em cima do móvel da sala, atrás de uma bandeja de prata, a carta de Moya. Nesse momento, surpreendeu-se com a gargalhada sarcástica de Coyne. - A filha de Moya num colégio de freiras? Ah, essa é boa! Como é que conseguiram convencer as freiras a aceitá-la? Elas devem mesmo gostar de fazer penitência! - Mas, qual é a novidade? Moya também estudou num colégio de freiras! E até agora ela costuma procurar as freiras para se aconselhar. Parece incrível, mas é verdade. A vida é assim cheia de surpresas, meu filho, e uma delas é essa: o ano letivo termina na semana que vem e a menina não tem para onde ir.
- Meu Deus, tia, já? - O rosto de Coyne ficou sério bruscamente. - E quem é que vai buscar a menina? Eu estou ocupadíssimo! - E Lacey? Ele não poderia ir? - perguntou ela, cheia de esperança. O sobrinho olhou para ela com ar de ironia. Pela cabeça dele desfilaram centenas de motivos para dizer que Lacey era um irresponsável, indigno de confiança para executar tal tarefa. - O que você acha, tia? Se essa garota for bonita, e deve ser, com a mãe que tem, os dois são capazes de fugir juntos. Lacey é um desmiolado, louco por uma garota bonita... e essa menina, sendo filha de Moya, não deve ser nenhuma santinha! - Ah, meu Deus do céu! - suspirou Ellenor, desolada. - Eu sabia que hoje ia ser um dia daqueles logo que me levantei! - disse Coyne, cruzando os braços atrás da cabeça. - Não podemos mandar Lacey e ficar sossegados, você sabe disso. Vou ter que ir eu mesmo! - Você vai?! Ah, você é maravilhoso, meu filho... - Não precisa jogar confete, tia, você sabe por que estou fazendo isso... não é por ser, maravilhoso. - Não é confete, não! - disse Ellenor, com veemência. - Conheço muito bem suas qualidades e sei que tem um coração de ouro. A pobre menina jamais teve o afeto da família. Esteve sempre afastada de todos. Eu até acho que ela deve sofrer de um tremendo complexo de rejeição. - Meu Deus, tia, pare de ficar fantasiando as coisas! Ela deve ser uma garota absolutamente sadia e feliz... com a idade que tem! - Não, meu filho, ela não deve ser... Minha intuição nunca falha. - Isso é verdade! - Coyne sorriu. - E também os truques que você tem escondidos e que funcionam muito bem! Pode ficar sossegada, tia. Vou buscar sua pequena órfã, vou salvá-la da vida triste e angustiante que ela leva num dos colégios mais caros! Queria só ver o que papai falaria disso se fosse vivo. Eu me lembro de ouvi-lo sempre criticar as extravagâncias de Moya. - É, quanto a isso você tem razão - concordou Ellenor. - Não se pode negar que ela atormentou um bocado o pobre Ashley com seus caprichos... e ele era um homem maravilhoso, muito culto e inteligente! Nunca pude entender o que ele viu em Moya! - Ora, tia... - insinuou ele, com ar irônico. - Ah, meu filho, beleza não é tudo nessa vida, não é a única coisa importante! Sabe, por falar em Moya, esqueci de contar uma coisa: ela vai se casar de novo. Contou-me na carta... desta vez é com um argentino criador de gado, imagine! Coyne ergueu-se bruscamente, num movimento ágil e rápido. - Bem, tia, chega de conversa fiada. Não fique zangada comigo, mas estou ocupado. Vou fazer minha boa ação, indo buscar a garota conforme prometi, embora ache que isso ainda pode nos trazer encrencas. Ela já é uma moça... e posso até prever certas confusões que teremos pela frente. Mas, enfim, você me pediu e eu não recuso nada a você... - Ele olhou para a tia e esboçou um sorriso. - Também é besteira ficar me preocupando antes da hora; de repente a garota é magricela e desengonçada, tímida e retraída, e Lacey não vai nem reparar nela! - Meu Deus do céu! Não tinha pensado nisso! Mas, mesmo que ela seja bonita, não deve ser provocante nem muito atirada. Afinal, não podemos esquecer que ela viveu fechada em colégios internos até agora. Moya nunca a deixou ficar em casa com ela. - Uma atitude um tanto egoísta de Moya, não acha? Condenar a pobre menina ao exílio, assim sem mais nem menos... - Um certo brilho de compaixão passou pelo olhar dele. Ellenor percebeu, mas não disse nada. Ele se virou bruscamente com certa impaciência. - Bem, vou trazê-la para cá, mas depois lavo minhas mãos! Não quero saber de mais nada. Para mim mulher é sinônimo de problema, e se tratando da filha de Moya, então, acho que o problema será duplo! E eu já tenho problemas suficientes por aqui para me preocupar. Ellenor sorriu, sentindo uma enorme ternura pelo sobrinho. - Obrigada, meu filho, agora vou dormir tranqüila. Isso estava me preocupando, você nem imagina! Pobre garota... ela precisa de muito amor e a segurança de um lar... tenho certeza de que Catherine vai adorar este lugar! Coyne fitou-a com ar preocupado. - Será que não vamos nos dar mal com essa boa ação? A garota pode ser problemática, pode nos dar trabalho... - Ah, isso não! Tenho certeza de que tudo dará certo, nós estamos agindo bem. Eu rezei muito antes de tomar em decisão...
- Você não tem jeito, tia. - Catherine deve ser uma garota meiga e boa! - disse Ellenor, com convicção. - O pai dela era um homem excelente! - Não sei se era tão excelente assim... saiu desta vida e deixou a filha sozinha. Cheia de dinheiro, é claro, mas também cheia de problemas. Ele devia ter pensado um pouco mais nela. Olhe, realmente nunca entendi Ashley... - É... quem sabe o que se passa na cabeça de uma pessoa? Às vezes acontece... Moya o tratava tão mal! - É, mas ninguém pode ficar curtindo infelicidade, tia, você sabe disso também. Ficar curtindo sofrimento e auto-piedade não é uma atitude saudável. A pessoa precisa ter um objetivo, uma ocupação. O trabalho é o melhor remédio! Eu sempre achei o suicídio uma solução melodramática. - Ah, meu filho, ninguém tem certeza disso... - Mas foi o que todos pensaram na época. - É... pode ter sido... não se sabe. - Bem, deixe para lá. Nem sei por que puxei esse assunto. Não adianta nada ficarmos discutindo isso agora. Cada um tem um modo de reagir ao sofrimento e às asperezas da vida. Com isso encerraram a conversa. Ellenor ficou sozinha com seus pensamentos. Só Deus sabia se a chegada de Catherine seria para melhor ou para pior. Só lhe restava rezar para que tudo corresse bem. Agora viveria em suspense até que a garota chegasse a Mandala.
CAP ÍTULO II O calor era quase que insuportável naquela sala. Madre Dominic fazia o possível para esquecer o mal-estar que o calor lhe causava, apesar de estar usando o hábito de verão. Irritação e raiva não eram sentimentos elevados. Tirou os óculos e começou a limpar as lentes. Estava preocupada e mil pensamentos a invadiam. Catherine Fitzgerald era a aluna mais rebelde e mais excêntrica que já passara pelo Colégio de St. Mary, incluindo Moya Macmillan, de cuja rebeldia madre Dominic se lembrava muito bem. Ela fora levadíssima, um diabinho com cara de anjo, uma menina linda. Mas a filha era diferente. Em certo aspecto era pior do que a mãe, mas em muitos era bem melhor. A garota tinha uma inteligência brilhante, algo que Moya nunca tivera, mas recusava-se terminantemente a ganhar prêmios, da destacar-se. Madre Dominic, além de ser a superiora, lecionava Matemática e Ciências e conhecia bem seus alunos. Catherine era também muito bem-dotada para os esportes, mas não queria participar de campeonatos entre escolas. Uma vez, na véspera de um jogo decisivo, ela torceu o tornozelo e nunca ninguém soube dizer se aquilo tinha sido um acidente de verdade ou se fora um subterfúgio para não participar da competição. Assim era Catherine. Não queria saber de compromissos nem responsabilidades. Era sempre esquiva. Detestava que alguém dependesse dela. Era uma líder inata que recusava qualquer tipo de liderança. Tinha uma capacidade natural de exercer influência sobre as outras garotas e uma incrível energia, que madre Dominic tentava canalizar da maneira que julgava ser correta, sem obter sucesso. Várias vezes ela fora ameaçada de expulsão, mas madre Dominic conseguia contornar a situação. Ela sabia que os tempos haviam mudado e procurava se adaptar. Já não era mais possível incutir o temor a Deus nas meninas nem impressioná-las com isso, controlando assim o comportamento delas, coisa que era fácil antigamente. Naquele tempo bastavam algumas palavras severas, uma ameaça velada e as garotas baixavam o olhar, submissas. Agora era muito diferente. Eram todas tão indisciplinadas, falavam as coisas tão cruamente, sem rodeios, tratavam de todos os assuntos tão sem constrangimento! Catherine então nem se fala! Era a mais independente de todas. O apelido dela na escola era "furacão", porque por onde passava abalava tudo com sua vivacidade. Nisso era diferente da mãe. Quanto à beleza, se ela se cuidasse um pouco mais, se penteasse o cabelo, poderia tranqüilamente ofuscar o brilho da mãe. Mas isso seria uma catástrofe para Moya, que fora criada como uma princesa para ser servida e bajulada. Era uma pessoa egocêntrica e vazia, apenas muito bonita e até amável. Madre Dominic gostava de Catherine, e estava triste com a partida dela, embora a garota tivesse lhe dado muito trabalho. Sentia algo de positivo no caráter da menina, uma coragem sem limite uma personalidade marcante e segura, apesar de ter vivido sempre em colégios sem jamais ter conhecido o aconchego de um lar, coisa tão importante na infância. Uma
criança rejeitada dificilmente supera o sentimento de rejeição. É uma marca que fica para sempre e se manifesta de várias maneiras na vida adulta; é a base de toda instabilidade emocional. Madre Dominic sabia que no íntimo, Catherine era um garota magoada, solitária e atormentada. Era uma pena que o pai dela tivesse morrido tão cedo. Catherine precisava muito dele. Era a garota mais rica da escola em termos de dinheiro e a mais pobre em termos afetivos. E o triste é que ela tinha consciência disso. Agora, parece que alguém a queria... uns parentes. Catherine ia passar as férias na enorme fazenda dos Macmillan, Mandala. E ela bem que estava precisando disso. Madre Dominic já ouvira falar da fazenda. Assistira junto com as alunas a um documentário, na televisão sobre aquele vasto país, o reino dos criadores de gado. E, apesar de Catherine disfarçar o entusiasmo, a madre sabia que no íntimo ela estava animada com a idéia. Com quinze minutos de atraso, Catherine bateu na porta da sala da madre superiora o entrou quando ouviu a voz calma dizer que entrasse. Em todos esses anos que passara no St. Mary, Catherine jamais ouvira aquela voz se elevar para chamar a atenção de alguém, mesmo nas piores situações, em que teria sido normal perder a paciência. Por alguns instantes madre Dominic continuou de olhos baixos, lendo um carta que estava em suas mãos. Catherine ficou imóvel, esperando. Ah, mas como estava quente! Estava um forno! Devia te prendido o cabelo. Assim que saísse dali faria isso. Ergueu a mão e afastou o cabelo do rosto. Ela era magra, esguia, tinha, o rosto fino e os olhos eram enormes e brilhantes. Olhos cheios de dúvidas e questões. Ficou olhando a madre. Gostava muito dela e, acima de tudo, respeitava-a muito. - E então, Catherine? - A madre ergueu a cabeça e fitou-a, como se esperasse uma explicação. - Desculpe, madre Dominic... é que irmã Bernard fez questão que eu terminasse meu experimento. Acho que ela não acreditou que eu tinha hora marcada com a senhora... - Isso é o de menos. - Madre Dominic examinou a garota de alto abaixo. - Mas, minha filha, será que nem hoje você poderia ter se arrumado um pouquinho melhor? Olhe só esse cabelo, parece uma juba de leão! Por que não se penteia? - Ah, é a moda, madre! - O seu cabelo é tão bonito! Se o penteasse, ficaria muito melhor. Além disso, esse seu uniforme está muito desleixado, a saia está comprida demais... seja boazinha e arrume-se direito. O sr. Macmillan vem hoje à tarde. Pode usar as suas roupas em vez do uniforme, se quiser. As que a sua mãe comprou são lindas, aliás, ela tem muito bom gosto. - Prefiro ficar de uniforme mesmo - disse Catherine, decida, encerrando a questão. - Como sempre, mamãe não estará presente, por isso não precisamos nos preocupar em agradá-la. Catherine falava com pouco caso, mas o olhar expressivo revelava um enorme desconsolo, uma infinita solidão e a dor de uma frustração. E Moya era a culpada. A rejeição da filha era evidente. De que adiantavam roupas caras e elegantes quando o que a menina mais necessitava era de atenção e carinho, de se sentir amada? A superiora olhava-a, compadecida. Pobre menina carente! As únicas coisas que a mãe dava a ela eram dinheiro, roupas e presentes. De resto, só se preocupava com suas festas e seus ricos maridos. - Lembra como foi na Páscoa, madre? - disse Catherine com sua voz límpida. - Os poucos dias que passei na casa dela foram um desastre total! Eu não via a hora de voltar para cá! A vida que mamãe leva não tem nada a ver comigo. Nosso relacionamento não tem mais jeito mesmo, agora é tarde demais! - Então seja corajosa e aceite a realidade. E trate de cuidar da sua vida da melhor maneira possível. Eu sei que a atitude de sua mãe magoa você, ela não fez o menor esforço para tentar estabelecer uma comunicação com você... mas talvez ela não consiga, talvez tenha dificuldade em relação a isso. Já pensou no caso sob esse aspecto? Talvez ela não seja do tipo maternal... Madre Dominic não pôde deixar de se sentir culpada pelo fracasso da Páscoa. Fora ela que insistira com Moya para que levasse a menina para casa. Era difícil acreditar que uma mãe dedicasse tão pouco tempo a uma filha. Por isso insistira, achara que poderia ser bom para as duas, mas tinha sido um erro. Catherine voltara mais magoada ainda. Fora pior sentir-se rejeitada, estando tão perto da mãe. - A vida é uma viagem, às vezes longa, às vezes curta, em que não se pode voltar atrás, a não ser através de recordações. Por isso não deve se atormentar com o que passou nem com lembranças tristes. Você pode não ter tido uma infância feliz com o amor dos pais, mas terá muitas compensações! Até que tem mais sorte do que muita gente. Você é jovem, é inteligente e saudável, não tem problemas de dinheiro, o que já é uma grande vantagem, Catherine. Você
pode cursar um faculdade. Planeje sua vida do melhor modo. Pense em seu futuro. Imagine que ele é um rio... não deixe que os ressentimentos e mágoas se acumulem no fundo e bloqueiem as águas. Deixe esse rio fluir livremente e ganhar força, realizando-se plenamente. - Do jeito que a senhora fala, parece que essa viagem é cheia de perigos pelo caminho... - E é mesmo, minha filha, por isso é preciso traçar um plano, estabelecer um objetivo. Eu sei que você não é pessoa de se deixar arrastar pelos acontecimentos, Catherine. É preciso encarar os fatos de frente. - Eu já encarei, madre. Eu sei que sou sozinha, não tenho ninguém que me ampare. Há muito tempo que estou sozinha, desde pequena. Minha mãe nunca cuidou de mim, nunca me pegou no colo... às vezes eu me pergunto como é possível eu ter nascido dela! Será que eu nasci mesmo? Ou minha identidade não passa de uma ilusão? Houve um momento de silêncio e a superiora olhou para ela com paciência e ternura. - Você sabe muito bem quem você é, Catherine. Já tive alunas em pior situação do que a sua, que realmente nem sabiam quem eram os pais. Ouça meu conselho, filha: esqueça as coisas ruins e quando tiver os seus filhos trate-os de maneira diferente. - Eu tratarei, madre. Pode ter certeza disso. - Eu sei, Catherine. Tenho muita fé em você e no seu bom caráter, embora você fizesse questão de demonstrar o contrário para mim. Sempre acreditei em você e quero que você também acredite. Tenha confiança em si. Essas férias em Mandala serão uma experiência maravilhosa para você. - Talvez eles estejam apenas fazendo um favor de me convidar, e essa idéia não me agrada nem um pouco, madre! - Catherine! - Madre Dominic exclamou desgostosa com a antipatia que a menina tinha por tudo que se referia à família Macmillan. - Você sabe muito bem que a carta não podia ter sido mais calorosa e cheia de carinho, demonstrando uma vontade sincera de receber você! Não é preciso conhecer pessoalmente a srta. Ellenor para se saber que ela é uma mulher de bom coração, meiga e corajosa ao mesmo tempo. Tenho certeza de que se sentirá feliz lá, se relaxar um pouco essa tensão exagerada. Você é muito jovem para isso. - Só que ela tem sobrenome Kennedy e não é a dona de Mandala. Os donos são os Macmillan. Ela é apenas a tia. - E o que isso tem a ver com a história? Não vai querer me dizer agora que ela não é ninguém lá! Ela é uma pessoa muito importante na fazenda e tem seus direitos também. - Pode ser que eles não me queiram lá - insistiu Catherine. - Estou falando dos outros. Pode ser que ela os tenha convencido a aceitar... uma senhora idosa fazendo caridade. Talvez tenha até usado chantagem para convencê-los. Todo mundo sabe como minha mãe é... ela é famosa, pelas loucuras que faz. As colunas sociais estão cheias das aventuras da efervescente Moya! Agora é aquele argentino! Ele nem sabe falar inglês direito... se bem que mamãe está pouco ligando para isso! Ela quer é casar com ele, a conversa dele não interessa. Ah, eu odeio ele! Tenho vontade de pôr veneno na comida dele. Odeio todos os homens! Nenhum deles vale nada! Tenho certeza de que vou detestar esses Macmillan... principalmente o chefão, o rei do gado! A senhora sabe, madre, que eu não suporto autoridade! Já imaginou como vai ser com esse cara autoritário? A senhora viu o documentário na tevê... aqueles latifundiários são verdadeiros ditadores! - Sinto muito interromper seu discurso... - disse madre Dominic calmamente - suas acusações são generalizadas, Catherine. Nem todos são assim. Eu falei com o sr. Macmillan por telefone e ele me pareceu um homem cortês, muito educado e nem um pouco arrogante. Sem dúvida ele é um homem importante e cheio de responsabilidades, mas sabe muito bem moderar tudo isso e ser amável. Madre Dominic alimentava muitas esperanças com relação às férias de Catherine. Ela precisava encontrar uma estabilidade, superar o sofrimento da infância e talvez lá em Mandala encontrasse o apoio e a solidariedade de que tanto necessitava. Ela era bonita e inteligente, não era de passar despercebida em lugar nenhum e poderia muito bem cativar aquela família, fazer-se querida. A superiora tivera poucos contactos por correspondência com Mandala, mas ficara bem impressionada. A srta. Ellenor tinha escrito de um jeito carinhoso e espontâneo que a tranqüilizara. Tinha certeza de que havia sinceridade naquelas palavras. Aquele ambiente só poderia exercer boa influência em Catherine. Agora as duas esperavam a chegada de Coyne Macmillan. Madre Dominic sentia que a hostilidade de Catherine era artificial, no fundo ela estava ansiosa para ir. Para acalmá-la um pouco, fez com que se sentasse e mudou de assunto, começou a falar sobre cursos de
universidades. A madre era a favor de um curso universitário, mas Catherine tinha várias críticas ao sistema educacional e estava em dúvida quanto à validade de seguir o magistério. Uma hora mais tarde, Coyne estava na sala e madre Dominic conversava com ele, enquanto Catherine o analisava rigorosamente. Então era esse o homem de Mandala! O rei do gado. Era sem dúvida uma presença marcante, com uma voz firme e cálida. Era visível o fato de ser um homem resoluto e bem-sucedido. Ele irradiava força e poder. Uma coisa era certa: seria uma pessoa difícil de ceder a provocações. Era uma pessoa segura de si, que só lutaria de igual para igual com alguém que tivesse a mesma força. Uma simples colegial não era páreo para ele. Imagine só se ele se preocuparia com ela! Aliás, até agora, quase nem prestara atenção nela, mas não de maneira agressiva. Era estranho o que ele lhe transmitia... não sentia que era um fardo incômodo para ele... Com todos os outros membros da família Macmillan, Catherine sempre se sentira uma intrusa. Ou então sentia que estavam com ela por piedade, só para não dizerem que não praticavam boas ações. Mas com esse homem era muito diferente! De certa forma ele era como ela havia imaginado. Ali, naquele ambiente suave, totalmente feminino, ele era uma figura de destaque; um enorme contraste com os móveis antigos e os velhos quadros pendurados nas paredes com fotografias das ex-alunas, do papa e de bispos. Millicent, sua melhor amiga, teria gostado dele, sem dúvida. Millicent só pensava em casar. Tudo o que queria era um marido fazendeiro... não precisava ser uma grande fazenda. Bastavam alguns poucos acres e uns cavalos. Será que o casamento afinal era tão bom? A maioria das garotas vivia pensando nisso! Sua mãe, mesmo, vivia se casando, não ficava sem marido! Esse tal de Coyne que estava ali, não era casado... Catherine podia perceber isso só de olhar para ele. Ele tinha um ar de independência, de pessoa livre, sem compromissos afetivos... Era bonito, sem dúvida! A pele era morena, bronzeada de sol, e os olhos tinham um brilho especial... Ele era bem alto, de ombros largos, o corpo esguio de músculos exatos, e movia-se com agilidade e elegância que não pareciam próprias de um vaqueiro. Catherine conteve as lágrimas que lhe subiam aos olhos. Não queria chorar. Se chorasse poderia constranger e afastar aquele homem, e ela não queria que isso acontecesse. Pela primeira vez em sua vida, ela não queria causar má impressão. Era como se estivesse desesperada para uma nova vida, não queria mais causar problemas, estava decidida a não dificultar as coisas. Depois, era preciso reconhecer que o homem estava sendo muito gentil, não demonstrara o menor sinal de impaciência por ter feito uma longa viagem especialmente para ir buscá-la. É certo que também não demonstrara grande entusiasmo, mas era natural, afinal nem a conhecia. Entretanto ela sentia ter havido uma aceitação. Catherine não percebeu que relaxara a tensão, que mudara visivelmente sua atitude inicial de agressividade, que, aliás, assumia com todos por ser o único meio de se defender que conhecia. Diante daquela presença calma, que irradiava uma certa autoridade natural e incontestável, não teve por que se rebelar. Quem não a conhecesse poderia até supor que ela era uma aluna comportada e obediente. Madre Dominic estava encantada com aquela docilidade, embora desconfiasse que fosse apenas pose. Em todo caso, era melhor assim. Apesar de não ter havido nada que demonstrasse isso, a superiora tinha uma intuição de que aquele homem se enternecera com Catherine. Por isso resolveu ir providenciar o chá pessoalmente, embora pudesse ter apenas pedido para trazerem, só para deixá-los um pouco a sós, para que ficassem mais à vontade um com o outro. Assim que madre Dominic saiu, Catherine achou que devia fazer algo, falar alguma coisa. Mas o que poderia dizer para aquele homem? Não conseguia pensar em nada que pudesse interessá-lo. Logo ela que era tão desembaraçada, que falava sobre qualquer coisa sem o menor constrangimento! Ela, o "furacão", estava muda e sem jeito diante dele, sem saber o que fazer. A presença dele a perturbava de maneira estranha. Ele era muito bonito mesmo. Lamentava-se intimamente por não ter se arrumado um pouco melhor. Mas também não imaginara que ele fosse impressioná-la daquela maneira! Com essa não contava e por isso estava tão desconcertada diante dele. Sentia-se apagada, boboca e infantil. Ainda não tinha consciência disso, e levaria muito tempo para perceber, mas pela primeira vez em sua vida ela sentia um profundo respeito por alguém. Virou-se para ele com brandura e ia falar algo sobre as eleições locais, só para puxar assunto, quando percebeu um brilho no olhar dele que imediatamente interpretou como
expressão de triunfo. Ficou tão decepcionada e furiosa que voltou ao seu jeito agressivo de sempre. -Olhe, não sei nem como devo chamar você... nunca vi um latifundiário em pessoa. - Ora, sou apenas um vaqueiro em uma roupa um pouco mais apresentável, Catherine! disse ele, ignorando a agressividade dela. - Ah, essa não... você é o rei do gado! E não adianta fingir modéstia. Que tal se eu escrevesse a história da família? Daria um livro interessante, você não acha? - Acho sim, Catherine... só que já foi escrita - retrucou ele secamente. - Está na Biblioteca Nacional. - Puxa vida! Eu não sabia. Nunca ouvi falar nisso! - É, você é muito jovem ainda. Ele a fez se sentir tão tola que ela desviou o olhar sem jeito, e ficou olhando o retrato do bispo pendurado na parede. O coração batia descompassado e a garganta estava seca. Ela apertava a mãos, nervosa. Estava acostumada a ser a personalidade central e ser a que comanda, e agora que encontrara alguém mais forte do que ela estava atrapalhada, sem saber o que fazer. Ele percebia tudo o que se passava com ela, sem perder um detalhe. Era sempre muito observador. Pobre menina, ainda era uma criança! Parecia, muito com a mãe, mas tinha mais vivacidade e inteligência. Apesar daquele cabelo loiro estar escondendo bastante o rosto dela, dava para se ver que era bonita. Os olhos eram enormes e expressivos, azuis como dois mares que às vezes estavam calmos e de repente se enchiam de ondas bravias. Mas era magra demais... parecia tão frágil. Alguém que precisava ser tocada com muita delicadeza, embora fosse hostil e agressiva na atitude. Parecia um pobre animal ferido, desesperado para se defender, desconfiado de quem se aproximasse! Depois de algum instantes de silêncio, ele achou que já era tempo de tentar reiniciar a conversa. - Você parece uma jovem séria e bastante madura, Catherine, e também não é de muito falar, não é? Eu gosto disso! Ela o olhou desconfiada, mas ele estava sério, não havia o menor traço de ironia naquele rosto másculo. Quando ela falou, sua voz soou branda e nervosa ao mesmo tempo. Ela própria mal se reconheceu. - É muita bondade sua receber-me em Mandala. - É um prazer para todos nós, Catherine. Minha tia está ansiosa esperando por você. Ela não tem companhia, lá. Eu sei que ela deve se sentir só embora nunca reclame ou se queixe. Ele a analisava objetivamente, agora, perscrutando-a com aqueles olhos negros, de modo enervante, quase como se ela fosse um cavalo que ele fosse treinar para pular obstáculos. Foi a impressão que Catherine teve. Ela sacudiu a cabeça, num gesto de impaciência, e os cabelos se agitaram sobre os ombros como se aquilo fosse uma atitude de auto-afirmação. Pela primeira vez sentia-se insegura, confusa, sentia que não sabia na- da sobre as coisas. Um raio de sol criou reflexos dourados no cabelo dela. Mas que cabeleira! Sim, senhor! Será que ninguém podia dizer àqueIa garota que se penteasse, que prendesse aqueles cabelos com uma fita? Seria bem melhor para ela. Assim, quase escondia o rosto todo dela. Na boca bem-feita um ricto de rebeldia. Ah, essa menina precisava de umas boas palmadas! Ao mesmo tempo parecia tão desamparada e assustada que inspirava sentimento de proteção. Estava tensa e trêmula. Aquela atitude de descaso estava em contradição com o olhar dela. Era evidente que tudo aquilo era para agredi-lo: a roupa desleixada, o cabelo extravagante... Ele entendeu de imediato. Pronto, mais uma rebeldezinha para a fazenda, para fazer companhia a Lacey! Assim que chegara ali na escola ficara sabendo que o apelido da menina era "furacão". Que belo presságio! Lacey iria adorá-la e que belo par os dois iriam fazer! Um incentivando o outro... Ah! Só de pensar nisso seu rosto ficou sombrio e uma ruga de preocupação formou-se em sua testa. Catherine mordiscava o lábio, nervosa, sentindo-se exposta demais àquele olhar penetrante e crítico. Era como se ele a estivesse vendo por dentro. Subitamente começou a sentir medo dele. - Sabe que você já me conhece? - disse ela provocando, tentando esconder o que sentia. Eu sou "furacão", não lembra? - Para mim você é Catherine - ele disse ríspido, mas depois sorriu. Quando viu aquele, sorriso, o coração dela quase parou. Como ele ficava bonito assim sorrindo! Seria difícil negar qualquer coisa que ele pedisse sorrindo daquele jeito! Realmente ele era imprevisível. Aqueles olhos escuros eram inescrutáveis. Mas, afinal, o que ele estaria querendo fazer com ela? Ele parecia agir como se quisesse domá-la! Acontece que ela ia só
para as férias em Mandala, não ia para um reformatório para ser reabilitada! O que será que a madre Dominic tinha dito a ele? Impulsivamente, falou com infantilidade: - O que é que madre Dominic andou lhe falando a meu respeito, hein? - Ora, e o que ela poderia ter me dito, Catherine? - perguntou ele, surpreso. - Eu mal tive tempo de conversar com ela. A única coisa que ela me disse é que você é muito inteligente. O resto posso julgar por mim mesmo, basta olhar para você. - Ah, sei... Sabe de uma coisa? Não sei se devo mesmo ir com você para Mandala... afinal eu nem o conheço! - Mas vai ficar conhecendo. Ah, madre Dominic! - disse ele. Depois ergueu-se e pegou a bandeja de prata das mãos dela. As xícaras eram de porcelana finíssima e havia pratos de sanduíches e bolos. Catherine recebeu com certo alívio a chegada dela. Será que tia Ellenor era tão enervante quanto Coyne? Precisava rezar para que não fosse! Madre Dominic estendeu a ela uma xícara de chá, que Catherine tomou em silêncio, fazendo um ar de mártir, expressão que não era nem um pouco convincente. Lá no fundo dos olhos dela, estava o brilho de entusiasmo e animação, dizendo que ela não via a hora de chegar a Mandala.
CAPÍTULO III Catherine olhou pela janela do pequeno avião Piper e viu pela primeira vez a imensidão da Austrália Ocidental. Parecia um lugar rude, seco, castigado pelo sol que incendiava tudo com cores fortes. Ficou assustada, mas esforçava-se para não deixar transparecer o medo. Era muito importante manter as aparências... Aprendera isso muito cedo em sua vida, desde que fora afastada de casa. Além disso, não podia demonstrar fraqueza diante de Coyne; ele acharia ridículo e não se comoveria nem um pouco. Enquanto isso ele pilotava o avião, descontraído e muito à vontade, como se estivesse dirigindo um carro através de campinas verdejantes! A Austrália é uma grande nação, entre os oceanos Pacífico e Índico, rica em recursos naturais. Uma nação do futuro. Estavam sobrevoando já há algum tempo aquela terra e Catherine sentia-se como uma formiguinha diante das proporções desmedidas que ela jamais imaginara. Realmente, para quem está acostumado com os países europeus, que não são muito grandes, aquilo era de assustar! Na Europa as distâncias são pequenas, não há regiões desabitadas, em poucas horas muda-se de um país para outro... mas ali, não! Não havia o menor sinal de vida em toda a extensão que tinham sobrevoado. Absolutamente nada. Só uma planície sem fim, deserta e ensolarada. O que será que havia por ali? Será que existiam lagartos daqueles enormes? Devia haver... e devia haver camelos também. Será que na fazenda tinha camelo? Ela que não se atreveria a chegar perto de um... já imaginou um coice ou uma mordida daquele bicho? Em todo caso, bem que gostaria de ver um e de fotografá-lo. Queria tirar milhares de fotografias com a máquina sofisticada que a mãe lhe dera de presente. E os cães selvagens que havia naquela região... Como era mesmo o nome deles? Ah, dingo, era isso! Pois queria fotografá-los também. Diziam que era um animal muito bonito, de pêlo castanho-dourado que podia cruzar com cães domesticados. Eram amigos dos nativos e não lhes faziam mal algum, mas para os homens brancos eram uma terrível ameaça. Ela ouvira falar... até hoje era preciso construírem cercas e tomarem muito cuidado para que os dingos não entrassem nas propriedades. Eles eram animais muito inteligentes e perigosos, jamais se deixavam domesticar. Havia vários casos de dingos que tinham atacado e estraçalhado pessoas. O caso mais horripilante era o de uma criança que fora atacada. Todos tremiam quando ouviam o uivo lancinante de um dingo. Mas, sem dúvida, em Mandala não devia haver esse perigo. Coyne devia ser muito precavido e era capaz de apostar como ele nunca deixara um dingo sair vivo de suas terras! Pena... assim não ia poder fotografar o animal. Resolveu que não faria nenhuma pergunta sobre o assunto, não queria parecer infantil. Será que ela seria capaz de atirar num dingo? Ele parecia um cachorro... É, estava pensando assim porque nunca vira um deles faminto e feroz atacar um bezerro ou um carneiro. Imagine então se visse um atacando uma criança! Ficou arrepiada só de imaginar. Era melhor pensar em outras coisas! Que diferença de paisagens! Ela, que estava acostumada com o cenário suave de Adelaide, que fica na Austrália Meridional! Agora estavam sobrevoando a região dos imensos lagos salgados. Se ela não estivesse tão assustada poderia se dizer que estava fascinada. Era uma terra misteriosa, quase sobrenatural, de onde parecia emanar a própria morte. Lá embaixo
estavam os lagos Eyre e Sturt, que tinham o nome dos primeiros exploradores da região, homens intrépidos e destemidos que gastaram as suas vidas explorando aquela região e acabaram morrendo sem nunca terem saído dali. Catherine começou a lembrar das histórias que lera sobre a Austrália e sentiu um frio na barriga. O que faria se o avião apresentasse alguma falha mecânica e precisassem pousar ali naquela região desolada? Ah, meu Deus! Ela, que nunca fora medrosa, sentiu um calafrio e achou melhor parar de olhar para baixo e distrairse um pouco. Mexeu-se na cadeira e soltou o cinto se segurança. Estava um calor terrível! Ela parecia ter uma fogueira dentro do corpo. A tarde findava e o céu, que estava avermelhado, começou a ficar num tom dourado vivo. Parecia que eles estavam voando para dentro do sol. Catherine começou a sentir as pálpebras pesadas e pestanejou para afastar o langor. Nesse momento Coyne olhou para ela. - Ânimo, Catherine! Isso não é o fim do mundo, você não está correndo nenhum perigo. Vamos lá, diga alguma coisa, há uns vinte minutos que você não fala uma só palavra! - Estava pensando - disse ela com voz cansada e um brilho de deslumbramento no olhar. - Em quê? - Ora, nisso! - disse ela, abrangendo com um gesto toda aquela amplidão, como se não conseguisse achar uma palavra para defini-Ia. - Isso que está aí embaixo de nós! Estava pensando em quantos exploradores morreram aí... Eu estudei História, sei que muitos nunca voltaram de suas viagens de reconhecimento... Olhe, só sei que nunca vi nada igual em toda a minha vida. - É, realmente, posso acreditar. - Parece outro mundo! Quase não dá para acreditar que eu estou no mesmo país, que você atravessou apenas uma região para ir me buscar... - Pois é, e tudo num dia só, Catherine. - Eu lhe agradeço por isso, pode estar certo. É que estou simplesmente desarmada com a grandiosidade do país. Quando penso em nossa velha casa de verão ao pé das colinas, em Adelaide, toda rodeada de verde... parece estranho que haja diferenças tão grandes dentro de um mesmo país, você não acha? - É - respondeu ele, tentando se lembrar de quando ele também não conhecia essas diferenças. Era evidente que a garota já sucumbira ao feitiço do território do interior. Ela não queria olhar para baixo, mas seu olhar era irresistivelmente atraído pela paisagem que parecia ter estranhos poderes. Coyne ficou em silêncio, analisando-a. O patinho feio tinha se transformado num belo cisne! Não sabia bem dizer se isso o deixava contente ou aborrecido. Lacey ia ficar maluco por ela, sem dúvida. Apesar de toda sua ingenuidade e inocência, havia no rosto dela uma certa sensualidade. Era realmente muito bonita! Ele começou a falar para distraí-Ia um pouco. Era fácil perceber que ela era uma garota muito sensível e estava bastante impressionada. - Pois é, Catherine, este país é paradoxal. Um enorme continente com as extremidades onde impera o verde, e no centro, como se fosse o coração, uma terra vermelha e árida. Mas não é sempre assim. Nos anos em que há boas chuvas, isso fica uma beleza de fazer perder a fala! E, depois, existe também a Grande Bacia Artesiana, que é um imenso reservatório subterrâneo, cerca de meio milhão de quilômetros quadrados... estou certo de que você estudou isso também. Sem isso teria sido impossível povoar o oeste e torná-lo produtivo, pois leva anos para chover nesta região! Aliás, temos um pouco do mundo todo aqui num só país. Temos selvas tropicais impenetráveis no extremo norte e montanhas com neve no sul, os Alpes Austral, onde se pode esquiar melhor do que na Suíça! Temos as plantações de cana-deaçúcar, que se equiparam às de Cuba; plantações de trigo, as vinhas no seu estado, a Austrália Meridional; as terras de criação de gado e de carneiros no meu estado, Queensland. E as ilhas de jade da Barreira dos Recifes. Então, você pode imaginar coisa mais linda do que isso? Ah, você precisa ver a cor do mar de Coral! No extremo norte de Queensland e Top End há a exuberância tropical, com toda sua fauna e flora. Rios cheios de crocodilos, pântanos... tem de tudo, lá no Top End: pérolas, camarões, búfalos, milhões de aves, jibóias... elas são impressionantes! Eu mesmo já matei algumas, quando era mais jovem. Agora não faço mais isso, é preciso preservá-las. Aliás, temos uma imensa em Mandala... foi meu pai que a matou... é melhor avisar você para que não se assuste. Muitas pessoas se assustam mesmo. Mas é totalmente inofensiva... a pobre virou tapete na sala de armas. - Ainda bem que você me avisou! Que bela perspectiva encontrar um monstro na sua casa! - disse ela, rindo.
- Pode ficar tranqüila que não deixarei que nada lhe aconteça. - Ele riu. Olhou para Catherine e, vendo que ela estava vermelha de calor, tentou consolá-la. - Daqui a pouco vai melhorar. Aqui os contrastes são muito violentos... o deserto esfria de repente. Esse calor já vai passar. Mas no íntimo ficou pensando que aquele não era o melhor lugar para uma garota frágil. Para ela seria melhor a Tasmânia, que era uma ilha muito bonita e tinha paisagens suaves e delicadas, parecidas com as da Inglaterra, não aquele lugar onde estavam. Talvez fosse melhor ela não ter vindo. - Eu pretendo viajar! - ela anunciou com grande pose. - E você, já viajou? - Já dei a volta ao mundo duas vezes, depois viajei por meu país e acho que já é mais do que suficiente. Quando você viajar, Catherine, vai descobrir que esta é a melhor terra do mundo. Temos coisas aqui que não existem em nenhum outro lugar. Eu, por exemplo, não trocaria Mandala por nada. Você vai ver depois que conhecer um pouco melhor a região central. Muitos viajantes acham que é uma experiência devastadora, porque ali está a parte mais antiga da crosta terrestre. Você precisa ver a cadeia de rochas, é uma visão alucinante quando se passa de avião. Fica um brilho azul que parece uma aura. É que as rochas são revestidas de mica e isso produz reflexos incríveis! Dependendo da posição do sol e da incidência dos raios, os reflexos formam arco-íris! Tem muita coisa bonita para você ver. Ellenor vai levar você a vários lugares. - Você não vai junto? - Eu sou um homem ocupado, Catherine. - E não gosta de sair de Mandala... - Isso é uma pergunta ou uma afirmação? Mas, essa é a verdade mesmo. Meu lugar é aqui, em casa, onde me sinto à vontade. Não gosto de ficar muito tempo nas cidades... aquelas multidões andando nas ruas, aquela sensação de estar aprisionado. Ah, para mim não existe lugar melhor do que Mandala, mesmo com as enchentes e tudo. Nossa você deve ter ouvido falar na grande enchente de 74 em Queensland... acho que ninguém esqueceu ainda, foi um desastre nacional. E um pouco mais a oeste a seca era total. - Parece que não há meio-termo por aqui, não é? Ou é seca ou é enchente. - Mas depois que passa a chuva, a transformação é total. Fica tudo verde e com muitas flores... - Coyne se virou e sorriu para ela e, tal como da primeira vez, Catherine quase perdeu a fala. Os olhos negros dele brilhavam intensamente. Ele irradiava uma incrível vitalidade. Ela nunca vira um homem assim! Não conseguia desviar o olhar daquela figura atraente. - Essa é a primeira vez que você me olha realmente - comentou ele com brandura. - Ah, não é, não. É que você fica tão diferente quando sorri! Devia sorrir com mais freqüência. É como o deserto depois das chuvas... Mas, você estava falando das flores, como é o nome delas? São conhecidas? - Isso você vai ter que perguntar a tia Ellenor. Tem uma variedade infinita. Eu só conheço algumas, mas não sei os nomes... sei que tem uma que a gente chama de "flor da tempestade", que nasce nas regiões mais inóspitas. Apesar de ser linda e frágil ela cresce até onde nem mesmo os cactos crescem. - Como eu, teimosa e obstinada - disse com ar petulante. Ele a olhou de soslaio, sem sorrir, e Catherine insistiu: - Não vai fazer nenhum comentário? Você não acha que sou teimosa e obstinada? - Acho que você ainda é jovem demais para ser alguma coisa. - Puxa, mas que declaração! Então o que eu pareço para você? - Uma menininha que está se sentindo um tanto deslocada. Mas, felizmente para você, eu gosto muito de crianças! Ela enrubesceu, furiosa. - Não sabia que você estava fazendo uma análise tão profunda de minha personalidade! - Mas não estou! - disse ele com suavidade. - Vou ter bastante tempo para fazer isso com calma. A única coisa que notei por enquanto é que você está quase subnutrida. Por acaso não alimentam direito vocês lá naquele colégio? Ela achou que ele tinha sido muito mordaz, mas resolveu fingir que não percebera, por isso disse em tom de brincadeira, imitando a voz de madre Dominic: - Bem, o senhor sabe, já passamos por épocas bastante difíceis em que quase não havia o que comer, mas desde o século passado que não temos mais esse problema. As alunas comem muito bem e a alimentação aqui é boa... algumas voltam para casa bem mais gordas. Millicent, por exemplo, sempre repete as refeições e já engordou mais de dois quilos! - Depois riu.
- É, mas pelo jeito você não seguiu o exemplo dela! - Não, é verdade, mas se pensa que vai ter uma hóspede que não dá despesa, Coyne, você vai cair do cavalo. Eu como muito bem. Gosto de um bom jantar, acompanhado de vinho... é que ainda não tive oportunidade de demonstrar isso. Sinto muito! - É, mas Lacey não vai sentir. Tenho certeza de que ele vai ter uma bela surpresa. Ninguém imagina que uma colegial possa ser tão impetuosa. - Quem é Lacey? É parente seu? - É meu irmão. - Puxa, então são dois?! Meu Deus, para mim um só já era o bastante! - Está querendo insinuar algo?! Esse tipo de malícia é bem característico da adolescência. Mas pode ficar tranqüila, você vai gostar muito mais de Lacey do que de mim. Tenho certeza de que ele é mais do seu gosto. - Puxa, que alívio! Quase morri de susto pensando que ele fosse igual a você. - Ainda bem que não morreu. Lacey vai ficar contente. Agora vocês poderão se unir, não precisarão mais continuar suas revoluções separadamente. Unam as forças e façam uma revolução só! Só quero que uma coisa fique bem entendida: nada de revoltas ou agressões com tia Ellenor. Eu gosto muito dela e a respeito bastante. - Já entendi, Coyne. Mensagem recebida. - Ótimo. - Só que eu não tinha a menor intenção de me rebelar contra ninguém - disse ela com sinceridade. - É só o meu jeito de falar... às vezes sou meio impulsiva. - O que pode ser perigoso para você. Guarde bem isso! - Calma aí, Coyne - disse ela de um jeito travesso -, eu não sou maluca de querer brigar com você. Seria a última coisa que eu faria! - Ah, quanto a isso pode ter certeza. - Bem, então vamos esclarecer uma coisa: o que você quer que eu faça? Quer dizer, como espera que eu ocupe meu tempo? Você sabe, as garotas da minha geração não são de ficar cozinhando ou costurando. - É nisso que dá essa educação moderna, colégios caros e todas essas coisas. Eu, pessoalmente, não tenho nada contra mulheres que fazem isso, bem pelo contrário, até gosto. - Ah, já imaginava isso mesmo. - Acontece, Catherine, que comemos muito bem e temos excelentes cozinheiras e vários empregados domésticos para todos os tipos de trabalho. Como vê, não vai precisar fazer nada dessas coisas em casa. - Ah, meu Deus, só falo besteira! Vou tentar ficar de boca fechada de agora em diante. - Não vai ser fácil, aposto. Olhe, não estou querendo amordaçar você... não é preciso dizer que é uma garota bastante corajosa, e imprudente também. Só peço que tome cuidado com o que fala e evite participar de discussões, principalmente sobre problemas raciais. Meus empregados são muito bem tratados. - E será que vai ter alguma? - Se tiver não vai ser em Mandala, pode estar certa. - Ah, estou indo de mal a pior. Peço que me desculpe se eu o ofendi, Coyne. Não gostaria de perder sua aprovação assim tão cedo. Ainda nem chegamos... - É, mas tome cuidado, pode chegar um dia em que só pedir desculpas não vai adiantar nada. - Ele riu baixo e a expressão do seu rosto se distendeu. - Sabe, de certa forma, é pena que você seja tão inteligente. Garotas muito inteligentes acabam perdendo a feminilidade, às vezes. - Já vi que vou ter que bancar a boba, dando risadinhas à toa... - Ora, na sua idade não seria nada extraordinário. Aliás, por falar em risada, até agora não vi você rir nenhuma vez. Ela ficou pálida de repente. - Há muito tempo que não sei o que é rir. Desde a Páscoa... - O que aconteceu na Páscoa? - perguntou ele quase com desinteresse, sem olhar para ela. - Fui para a casa de mamãe. - E isso foi tão horrível assim? - Por que está dizendo isso? - A voz dela estava trêmula e nervosa e ele virou-se para fitála. - Estou vendo em seu rosto, Catherine. Ele é muito expressivo. - Ninguém nunca adivinhou meus pensamentos! - disse ela com hostilidade.
Ele teve vontade de rir, mas disfarçou. - Ora, vamos, Catherine, não se enfureça tanto. Eu não sou uma de suas coleguinhas. - É, eu sei... - Então - Ele olhou para ela, que estava cabisbaixa. - Você estava me falando sobre sua mãe. Continue. - Não é tanto mamãe... disse ela meio constrangida. - Sabe, são os amigos dela. Ela vai se casar de novo, você sabia? - Sabia. - Eu não fui convidada. - E você queria? - Não. - Pois então, qual é o problema? - Você ia querer ir ao casamento de sua mãe? - disse ela, fitando-o com olhar súplice. - Está certo, eu sei que não é um acontecimento muito comum, mas é preciso enfrentar a realidade, Catherine. Eu não sei como me sentiria. Minha mãe morreu quando eu tinha doze anos. - Sinto muito. - Está bem, mas não precisa ficar me olhando com essa cara, como se eu tivesse dito uma coisa espantosa. Ela morreu, mas eu fiquei com meu pai e tia Ellenor. - Você teve mais sorte do que eu. Mas, voltando ao que eu estava falando... foi uma loucura, foi de alucinar! - Não dramatize. Conte a história. - Olhe bem para mim. Eu pareço tanto assim uma colegial? - Ah, sem dúvida! - disse ele, rindo. - Ora, mas é claro, assim como estou... com esse uniforme! Só por isso não vou considerar um insulto. Mas quando eu trocar de roupa você não vai nem me reconhecer! - Ah, não faça isso. Eu gosto dessa roupa. - Ele olhou para ela, sorrindo. - Ah, deixe pra lá! Quer ou não quer ouvir minha história? Como eu estava dizendo, um amigo de mamãe, magricela e horroroso, se apaixonou por mim. Ele é guru. - Apaixonou-se por você? Será que ouvi mal ou foi isso mesmo o que você disse? - É, apaixonou-se por mim, sim, senhor! - explicou ela, enrubescendo. - Puxa, será que é assim tão difícil de se acreditar? - Bem, eu nunca me apaixonei por você. Não sou maluco, tenho os pés no chão. Por isso é difícil imaginar. E que idade tinha ele? - Era um pouco mais velho do que você. Ele até esteve na guerra, muito antes de eu nascer, imagine! - Mas que malandro! E é amigo de sua mãe? - é um dos melhores amigos dela. Mas foi horrível, ele não me deu sossego. Sabe o que ele disse? Que eu era excitante... - O guru disse isso? - É, e um dia ele quis me agarrar no terraço. - Epa, está ficando interessante. - É, mas para mim não foi. - Ainda bem, senão eu ia ficar preocupado. Como é que você conseguiu escapar? Apareceu alguém para salvá-la? - Não, eu mesma me salvei... era a única saída. - Eu percebi logo que você é do tipo que sabe se defender sozinha. Estou vendo que a educação no colégio interno não foi de tudo inútil, você aprendeu boas coisas. - Para mim são todos iguais... gurus, músicos, políticos... só pensam numa coisa! Eu não gostei daqueles caras! - Ela abaixou a cabeça e os cabelos caíram sobre o rosto. Coyne já entendera a situação, apesar do pouco que a menina falou. Essa gente de sociedade que vive em festas e leva uma vida devassa... Os amigos de Moya! Ele bem podia imaginar o que acontecera! A menina não estava fantasiando, ela era sincera. - E o que mais esse tal de guru fez? - No dia seguinte estava tão fraco que não podia fazer nada, nem que quisesse. - O que foi que você fez com ele? - Não sei por que está rindo! - disse ela, brava. - Eu bati nele com um jarro de bronze. - Você poderia tê-lo matado, Catherine! - exclamou ele, parando de rir . - É, eu sei. Mas na hora foi o único jeito de me livrar dele. O que ele fez também não foi direito. - Ela virou o rosto de lado. - Eu sei que você está do meu lado, Coyne.
- É... mas quero que se lembre de uma coisa: em Mandala é diferente... lá mando eu. - E eu obedeço. Tenho que entrar na linha! Ele deu uma breve risada e ela olhou para as mãos. - Está bem, eu vou tentar! - Espero que sim. Basta não querer fazer jus a seu apelido. - Certo! Não precisa se preocupar com isso. É verdade, não estou mentindo, eu nunca minto. Pode acreditar no que estou dizendo: eu não vou fazer nada. Aterrorizar as freiras é uma coisa, mas você já é outra. Ele estendeu a mão subitamente e afastou os cabelos que escondiam o rosto dela. - Agora, sim! Madre Dominic deve ter suspirado de alívio depois de ter abdicado da responsabilidade sobre você... posso imaginar. - Ela gosta de mim! - afirmou, categórica, como se fosse importante provar que alguém gostava dela. Ele sorriu, mostrando dentes alvos e perfeitos em contraste com a pele morena. - Eu também gosto de você, Catherine. Todos nós vamos gostar muito, tenho certeza, você é cheia de vivacidade e muito simpática. Só peço que esqueça por algum tempo os motivos que tem para ser rebelde. Enquanto estiver em Mandala, deve fazer o que eu disser. Como você mesma já observou, isso aqui é bem diferente de Adelaide. Nunca saia sozinha para lugar nenhum. Não se deixe enganar pela idéia de que pode ser interessante fazer explorações pela região. Você estará sempre acompanhada. Há muitos perigos que você não conhece. Além do mais, estamos no auge do verão. A temperatura é muito elevada e a atmosfera excessivamente seca. Se você se perder ou sofrer um acidente, e estiver sozinha, pode criar uma situação perigosa. É certo que não há beleza igual à do deserto, mas também não há crueldade igual. Em quarenta e oito horas uma pessoa pode morrer de desidratação. Sei que você vai querer ver muitas coisas, mas nada de sair por aí, sozinha, com máquina fotográfica a tiracolo, atrás de paisagens interessantes... você pode estar vendo uma miragem e se afastar demais. Isso acontece às vezes. A pessoa jura que está vendo árvores e lagos, mas não há nada, apenas areia. - E como é que vou saber quando é miragem e quando não é? - Não precisa saber. Basta não ir sozinha. Ele olhou para ela sério e o sorriso de Catherine morreu nos lábios. Ele parecia um príncipe do deserto. Era tão difícil sustentar aquele olhar! - Eu li um livro sobre o deserto daqui... - É? E o que dizia? - Ah, uma coisa terrível, nem camelo agüenta passar por lá. Cheio de dunas altíssimas, como ondas gigantes. Os nativos têm pavor desse lugar. Durante o dia é um forno e à noite é frio como uma geladeira. Posso lhe emprestar o livro, se quiser. - Obrigado, mas não é necessário. - Ele sorriu de novo, com certa ironia, achando muita graça nela. Catherine começou a pensar: o que Coyne era mesmo de sua mãe? Primo em segundo grau? Agora que o conhecia, estranhou o fato da mãe nunca ter ligado para ele. Ela apenas escrevia de vez em quando para tia Ellenor. É verdade que Mandala estava bem longe do mundo social que ela freqüentava. Aquela gente toda com as conversas fúteis e as vidas sem sentido eram bem diferentes de Coyne. A vida dele tinha um sentido bem definido, um objetivo, tinha consistência. Ele cuidava de toda aquela terra. Imagine se ele seria capaz de tentar agarrar uma colegial. Era a cena mais absurda que podia imaginar! Coyne no terraço querendo agarrá-la, tal como o guru. Catherine afastou os cabelos num gesto de desagrado. Normalmente o cabelo solto não a incomodava, ao contrário, servia de proteção, era como um escudo atrás do qual se escondia... engraçado, nunca pensara nisso sob esse aspecto. Talvez fosse influência de Coyne... Ficou sentada imóvel e demorou um pouco para perceber que ia presenciar um espetáculo inédito: o pôr-do-sol ali naquela região. - Olhe só o sol se pondo! Que coisa incrível! - disse ela com exagerada euforia, como quem quer esconder outra emoção. - Acalme-se, Catherine. Eu sei que você está nervosa, mas não precisa ficar assim... Você está numa idade difícil entre criança e mulher, mas não tenha pressa de mudar, deixe que venha naturalmente. Não posso dizer que sua beleza não me impressione, mas ainda não está completa. Lacey vai achar você linda e vai dizer logo... mas em Mandala você estará mais segura do que no seu colégio. Ellenor vai adorar você, nem precisa se preocupar com isso. Pode olhar o pôr-do-sol sossegada. Daqui a meia hora estaremos chegando.
Catherine respirou fundo. As palavras dele surtiram um efeito extraordinário. Ela olhou furtivamente para o perfil de Coyne. Nariz reto, boca de lábios cheios, queixo firme. No mesmo instante sentiu que aquele homem iria fazê-la sofrer. Sem intenção, é claro, mas ele a faria sofrer e ela não teria como se defender. - Ah, estou completamente maluca! - disse ela em voz alta. Ele riu. - Assim que vi você eu percebi isso. O céu estava incrível, as cores se sucediam... do rosa pálido passando ao laranja, vermelho, até o dourado. Era como se estivesse presenciando o próprio dia da Criação. No horizonte ao lado oeste o sol se escondia com todo esplendor, afundando em uma nuvem que de repente pareceu ter se incendiado. Era uma beleza comovente. - Viva o sol! Viva Mandala! Viva tudo! - bradou com veemência, num tom apaixonado de quem ama a natureza. - Amém! - respondeu ele, deixando-a à vontade.
CAPÍTULO IV Catherine estava diante do espelho escovando os cabelos com gestos bruscos e furiosos. Por que era assim? Será que nunca mudaria? O que estava acontecendo com ela? Não conseguia entender... Aproximou-se do espelho e olhou o próprio reflexo, minuciosamente. Espantou-se com o brilho felino em seu olhar... parecia uma gata. Mas, afinal, o que era ela? Uma adolescente, boboca e egocêntrica, que exigia ser o centro das atenções? Parecia estar à beira de uma crise emocional. Sentia uma agonia imensa. Seus olhos pareciam ainda maiores. Ela não era mais criança, uma colegial... sabia disso! Mas também não podia dizer que era uma mulher. E, então, o que era, afinal? Largou a escova, desolada, concluindo que ela não era ninguém, era absolutamente inexpressiva e insignificante! Há apenas algumas horas estava confiante e achava-se perfeita, só pelo que Coyne lhe dissera. Ela não era assim tão infantil e ingênua que não pudesse perceber que sua segurança dependia muito da atitude dele. Aquela personalidade forte e enérgica exercia enorme influência sobre ela. A aprovação dele tinha significado muito e perto dele sentia-se protegida, segura e confiante. Tinha sido assim como entrar num círculo mágico do qual até então não pudera fazer. Naquele momento acreditou pela primeira vez que estaria realmente entre amigos. Se Coyne a aceitara, porque não o irmão dele? Era evidente que Lacey não gostava de garotinhas que vinham de colégio interno como ela! Senão, por que estaria fugindo? Está certo que ele não deveria estar esperando a chegada dela com ansiedade, afinal nem a conhecia, mas fora indelicado desaparecendo sem nem ao menos querer conhecê-la. Como será que ele a estava imaginando? Uma magricela, sardenta, com aparelho nos dentes e um terço pendurado no pescoço? Puxa vida, se era isso, não era de se estranhar que tivesse sumido. Mas também, quem mandara vir com aquele uniforme desleixado? Por que não trocara de roupa como madre Dominic tinha sugerido? Podia ter colocado um traje um pouco melhor! Por alguns instantes se arrependeu de ter sido teimosa e não ter seguido o conselho da madre. Coyne quisera apresentar o irmão a ela, mas o "ilustre senhor" Lacey não tinha se dignado a aparecer. Sem querer, Catherine tinha ouvido trechos da conversa entre ele, Coyne e tia Ellenor. Ouviu nitidamente a voz petulante de Lacey falando mal de Moya e citando coisas pouco lisonjeiras. Ah, mas ele ia pagar por isso! Quem ele estava pensando que era? Bancando o tal, desprezando-a, só porque ela era filha de Moya? Então era isso! Mas ela não podia ser culpada pelo comportamento da mãe! Com certeza Lacey era um boboca que não tinha a menor profundidade para entender isso. Pronto, ele conseguira estragar tudo, com uma simples atitude! Catherine caminhou até a porta de veneziana que dava para a sacada. Mandala lhe transmitia uma estranha emoção, tão forte que era quase insuportável, mas ela gostava. Apenas uma casa no meio de um deserto, e uma amplidão sem fim, mas era aconchegante. A brisa perfumada da noite roçou seu rosto trazendo o aroma das flores da trepadeira que subia pelas colunas do terraço até as sacadas. Ela ergueu o rosto para olhar a lua enorme e alaranjada. Depois olhou o horizonte. Dali de onde estava a planície de areia, com suas dunas, parecia um campo de neve ao luar.
Subitamente sentiu que aquele era um momento de plenitude, de extrema felicidade, como jamais experimentara. Chegava até a ser um pouco triste. Mandala parecia ter um significado especial. Foi amor à primeira vista... o apelo da terra. Coyne devia ser mesmo um homem de visão e determinação, isso para não falar em coragem! Manter aquela propriedade, que era um império, não era tarefa fácil. Ele era um pioneiro nato. Tão diferente dos homens que conhecera na casa de sua mãe! Aquele bando de parasitas inúteis que ela chamava de amigos! Aquele lugar parecia povoado dos fantasmas do passado, dos primeiros pioneiros que lutaram para se estabelecer na região. É, realmente, mais tarde, veio a saber que havia uma história trágica. A primeira esposa que fora morar em Mandala, Emina Macmillan, perdera o seu primogênito e, inconsolável, em profunda depressão, afogara-se no lago que ficava a uns quinhentos metros da casa. Até Coyne, ela descobriu depois, respeitava a história e a lenda que se criara em torno dela. Várias pessoas tinham até medo de se aproximar do lago. Absorta em seus pensamentos, ela voltou para o quarto. Tia Ellenor dera a ela os melhores aposentos de hóspedes. A cama era enorme e a mobília toda de pau-rosa. O carpete parecia novo, dourado-pálido, e o sofá e as duas poltronas estavam forrados de gobelino. Era tudo muito espaçoso e havia uma grande lareira. A decoração era toda antiga, a não ser pelos quadros de pintura abstrata que enfeitavam as paredes. Logo começou a se sentir envolvida pela beleza e aconchego do ambiente e a tensão foi relaxando. Depois estava mesmo na idade de mudanças bruscas de estado de espírito. A sensação de derrota foi desaparecendo. Não ia se deixar abater assim logo na chegada! Lacey ia ver só uma coisa, ele não teria sossego enquanto ela estivesse ali! Quem mandou dizer aquilo? Iria castigá-lo e sabia que poderia conseguir. Com Coyne suas artimanhas não funcionavam, mas com o irmão seria diferente. Ele Ia pagar caro! De tia Ellenor ela gostou muito. Era uma mulher bastante sensível, de rosto delicado e meigo, de voz e sorriso suaves. Catherine logo soube que teria nela uma amiga. Esse pensamento alegrou seu coração, e com grande entusiasmo ela começou a se arrumar para o jantar. Estava decidida a conquistar Lacey, a deixá-lo se arrastando a seus pés, e por isso caprichou na arrumação. Depois de uma hora olhou os resultados, satisfeita e bem-humorada de novo. Penteou o cabelo com capricho, prendendo-o para cima no alto da cabeça, deixando apenas alguns fios dourados enfeitando o rosto e a nuca. Assim, com o rosto à mostra, ficava mesmo bem diferente. Nem tinha percebido como seu pescoço era comprido e elegante. O vestido de voal em tons de verde era um modelo da moda, com decote bem fundo. Por achar que era decotado demais, ela colocou uma camélia de pano cobrindo um pouco mais a curva dos seios, o que, aliás, deu um toque de elegância irresistível. Pelo menos para Lacey, disso ela tinha certeza. Passou sombra verde-escuro nos olhos, rímel nos cílios e um batom vermelho vivo. Estava perfeita, cuidara dos mínimos detalhes. Olhou-se no espelho mais uma vez e concluiu que estava realmente sedutora. O fato de se sentir mulher encantava-a. Uma onda de feminilidade a arrebatara. Pela primeira vez estava se preparando, como num ritual, para uma conquista. Com intuição e um talento inato, talvez herança da mãe, ela assumia o papel. Um longo corredor conduzia até a escada que dava no centro do saguão. As paredes eram ricamente adornadas com quadros, alguns dos quais eram retratos de antepassados da família. No teto havia várias clarabóias por onde entrava a luz do sol durante o dia. Tinha vontade de parar para examinar melhor as coisas, mas não podia, senão chegaria atrasada para o jantar e isso seria indelicado. A escada era soberba. Ela iria se sentir uma grande dama ao descer com elegância, pisando na rica passadeira, que realmente proporcionava uma entrada triunfal. Ouviu o murmúrio de vozes no saguão de entrada quando chegou ao topo da escada. Com muita pose, segurou o corrimão e olhou para baixo. O lustre de cristal cintilava. Embora tivessem feito várias reformas e adaptações, tinham conservado aquela peça de rara beleza. Catherine sentiu-se um pouco nervosa. Apesar de todo aquele esforço para parecer sofisticada, será que não estaria parecendo infantil? É que Lacey estava olhando para ela. Mesmo não sendo parecido com o irmão, ela soube imediatamente que era Lacey. Ele era bem diferente do que ela imaginara. Estava pensando que ele tivesse cabelos castanhos claros como Coyne, de olhos escuros, mas era o oposto. Cabelos pretos e olhos azuis, bastante expressivos, aliás. Os dois irmãos eram completamente diferentes de rosto, só se pareciam no físico, o que tornava ambos muito atraentes. Lacey tinha um olhar inquieto e malicioso que lhe dava um certo ar travesso de menino. Ele se aproximou da escada com expressão de surpresa e admiração.
- Ora... Olá, "furacão"! Seja bem-vinda a Mandala! - Olá, bicho-do-mato! - disse ela, sorrindo com ironia e estendendo a mão para ele. - Sua recepção inicial foi tão calorosa que peguei um resfriado! - Ah, prima, eu lhe peço desculpas - disse ele. - Como é que eu ia saber que você era um anjo desses? Catherine notou um certo tom estranho na voz dele que não soube identificar, mas percebeu a admiração em seu olhar. Mal ouviu quando tia Ellenor anunciou que o jantar estava na mesa. Lacey também mal ouviu, empenhado que estava em beijar a mão da prima e tecer elogios à sua aparência. - Estou deslumbrado! - exclamou ele, completando uma frase galante. - Boa-noite, tia Ellenor - cumprimentou Catherine, com a voz doce de uma menina meiga, bem distante da imagem que estavam fazendo dela. Todos estavam esperando que a menina fosse realmente um furacão, levada e rebelde, e lá estava a encantadora criatura, tratando tia Ellenor com bons modos, impecável. Depois olhou de novo para Lacey e, quando tentava retirar a mão que ele continuava a segurar, Coyne entrou na sala vindo da biblioteca e surpreendeu aquela cena: Catherine esplendorosa e Lacey com um olhar de adoração. Imediatamente as preocupações voltaram a assaltá-lo. Por um instante sentiu-se tentado a ridicularizar a cena, mas depois pensou melhor e se conteve. Para lidar com jovens era preciso muita sutileza. Até os mais experientes e maduros cometiam erros fatais. Era preciso considerar o seguinte: seria necessário haver um controle, mas não ostensivo, senão poderia se tornar até um incentivo. Tanto Lacey quanto Catherine eram ousados e corajosos, e isso era bom, mas por outro lado qualquer tipo de repressão seria encarado como desafio. Coyne não pôde deixar de achar Catherine parecida com Moya, ali naquela pose sofisticada, tratando Lacey com sarcasmo. Ela estava sorrindo para ele e por um instante Coyne percebeu o potencial da garota. Realmente estava linda, deslumbrante, os cabelos, sob a luz, tinham reflexos indescritíveis e até a extravagância daquela maquilagem exagerada conferia a ela uma expressão de dramática inocência. Ela estava se deleitando com aquilo tudo. Ah era tão jovem! Quanto a Lacey, estava visivelmente impressionado e sensibilizado, e as conseqüências não eram difíceis de prever. Ellenor, parada na outra porta, também estava impressionada com a semelhança entre a garota e Moya. Era como se a família estivesse se repetindo... Coyne era Justin de novo, Catherine parecia muito com a mãe, é verdade, mas tinha uma beleza com muito mais personalidade. Nesse momento a voz de Coyne interrompeu a cena, enquanto ele se aproximava. - Boa-noite, Catherine. Estou vendo que você e Lacey já travaram conhecimento. Ela sentiu um tumulto interior apenas ao som daquela voz e fitou-o com expressão de agonia. Não estava à altura de homens como Coyne; com ele não estava preparada para lidar. O olhar dele era inescrutável. Ali não havia a admiração que captara nos olhos de Lacey, mesmo assim aquele olhar a atraía de uma maneira estranha, fazendo tudo o mais desaparecer. Será que ele a hipnotizara? Era só o que faltava! Mordiscou o lábio, contendo um impulso de se esconder atrás de tia Ellenor. - Boa-noite, Coyne! - Ela o olhava com um misto de temor, respeito e provocação, que ela própria não conseguia entender. Lacey não gostou, sentiu-se diminuído e reagiu logo. Virou-se rapidamente e pegou o braço da prima. - Que tal irmos para a mesa? É uma exceção honrosa podermos contar com a companhia de meu irmão Coyne para o jantar. Ellenor fez um pequeno gesto de desalento com as mãos. Lacey já estava representando e essa reação a preocupava e deprimia, embora soubesse que era um mecanismo de defesa que ele usava cada vez que se sentia ameaçado diante da presença marcante do irmão. Entretanto Coyne era assim naturalmente, não era por afetação. Ellenor percebeu no olhar de Catherine que ela havia compreendido a situação. Agora Lacey iria fazer de tudo para atrair a atenção da prima e poderia criar problemas. Ele não se conformava em ser o irmão mais novo. Não que quisesse assumir toda a responsabilidade que Coyne tinha. Ele não toleraria isso, não era de seu feitio. Apenas não amadurecera ainda e esse era seu jeito de dizer que era tão bom quanto o irmão. Catherine olhava em redor, todos os sentidos em alerta. Queria registrar tudo o que se passava: as pessoas, as impressões, os choques de temperamentos. A calma de tia Ellenor era
apenas aparente; Catherine sentia que ela estava preocupada e imaginava a causa. O jeito com que Lacey segurara seu braço também dizia muito. Entendeu que ele tinha ciúme do irmão e até um pouco de inveja, e teve pena dele. Não devia ser fácil viver com alguém que era sempre o centro das atenções, que empanava o brilho dos outros. Por solidariedade olhou Lacey nos olhos, sorriu para ele e puxou conversa. Os dois ficaram conversando com animação, entre sorrisos e olhares. Ellenor seguia o rumo que as coisas estavam tomando com certa preocupação. Catherine era tão jovem! Será que tinha consciência de que estava provocando Lacey? Havia qualquer coisa de sensual nela, embora ela parecesse bastante sensível e incapaz de magoar alguém deliberadamente. Enquanto isso, Coyne observava a situação com certo senso de humor. Catherine sem dúvida era uma personalidade forte, cheia de imaginação e muito feminina, reagindo naturalmente à admiração que Lacey demonstrava por ela. A atitude dela o divertia. Mas também ele sabia que poderia lhe causar problemas. Dois rebeldes juntos só poderia mesmo resultar em dificuldades. Tinha certeza de que os dois não perderiam oportunidade de arranjar encrencas para ele nas próximas semanas. Como se adivinhasse o pensamento dele, Catherine lançou-lhe um olhar insinuante, onde Coyne pôde ler claramente: "estou do lado de Lacey". Justo como ele tinha imaginado! Sorriu para ela com indulgência, mas o olhar era firme e demonstrava uma força latente que abalou a frágil resistência dela. Depois de alguns instantes Catherine baixou as pálpebras. Iria demorar muito tempo ainda até que ela conseguisse enfrentar um olhar de Coyne.
CAPÍTULO V Milhares de pássaros coloridos passaram em revoada sobre a cabeça de Catherine. Ela protegeu os olhos da claridade, com as mãos, e olhou para cima. Era maravilhoso, extasiante! Uma visão tão bela que chegava a parecer miragem. Mandala a fascinava... essa região antiga, com toda aquela amplidão, exercia sobre ela uma intensa atração. Já se passara um mês e ela continuava a se maravilhar com a enorme variedade de pássaros. Principalmente com os periquitos, que eram tão engraçadinhos e tinham plumagens com incríveis gradações de cores. Só não gostava muito era da enorme águia de olhar cruel e garras possantes, capazes de matar até um canguru. Ela mesma presenciara uma cena dessas e ficara tão horrorizada que à noite teve pesadelos. É que tinha havido boas chuvas e em Mandala todos os lagos estavam cheios e em todos os leitos de rios havia água. Isso atraía as aves nômades, inclusive patos selvagens, cisnes brancos e negros. Catherine ficava alucinada, de cá para lá com sua máquina fotográfica, registrando tudo. Estava louca para fotografar os pelicanos, mas eles ficavam na região do pantanal e lá Coyne a proibira de ir. Precisaria esperar um dia em que ele não estivesse muito ocupado e pudesse acompanhá-la. Lacey não se interessava por essas coisas. Não demonstrava o menor interesse em descobrir ninhos de aves, não se encantava como ela, nem se emocionava com a beleza e imensidão da paisagem que conhecia desde que nascera. Para ela, não. Mandala era uma novidade e a abalara profundamente. Ela queria nunca mais ter que ir embora, ficar para sempre. Era como se tivesse renascido. Nunca sentira tanta paz. Até mesmo aquela idéia inicial de se unir a Lacey para provocar Coyne já esmorecera. Cada vez mais isso lhe parecia uma coisa insensata, sem nexo, e até rancorosa, embora não houvesse nenhum rancor nela. Era um desgaste de energia à toa e, além do mais, não tinha motivos para rebeldia. Estava contente, sentindo-se integrada. Sabia que não iria durar, é claro, mas estava se sentindo querida e estimada por tia Ellenor. Por isso não queria fazer mais nada que pudesse magoá-la ou preocupá-la. Estava aborrecida porque ela e Lacey já haviam dado muito trabalho para tia Ellenor. Até Coyne parecia estar perdendo a paciência com ela e isso era terrível. Era como se o chão afundasse sob seus pés. Sem dúvida deveria se desculpar por seu comportamento infantil nos últimos dias, principalmente pelo dia anterior. Todos pensaram que ela estivesse perdida, mas não era isso que tinha acontecido. Apenas tirara um cochilo onde estava, devido à moleza que o calor lhe dava. Só que ninguém acreditara nela, nem mesmo Lacey. Coyne, então, nem se fala! Ele ficara furioso e nem aparecera para jantar. Afinal ela já estava com quase dezenove anos, devia saber se portar melhor, que droga! Tinha horror só de pensar no olhar com que Coyne a
fitou quando ela chegou tarde. Aquilo a atingira profundamente. Mas também não podia se desculpar colocando a culpa em Lacey, dizendo que ele vivia instigando-a. Por outro lado, Catherine não podia deixar de admitir que ficava muito satisfeita quando Coyne achava graça nela. Ela parecia ser a única pessoa capaz de conseguir fazê-lo rir. A própria tia Ellenor já havia dito isso e ela se sentiu muito bem ao ouvir o comentário. Por vários dias esse pensamento não lhe saiu da cabeça e lhe deu alegria. Coyne não tinha muitas distrações. Não deveria trabalhar tanto daquele jeito! Ele quase não descansava, estava sempre ocupado! Se Lacey não ajudava não era por culpa dela, como Coyne insinuara sutilmente na véspera. Aliás, ela ficava confusa pelo modo como Coyne ignorava sua existência durante dias seguidos, depois de repente aparecia todo sorridente e atencioso e sentava-se no terraço à noitinha tomando um refresco. Ela adorava esses momentos e esperava por eles ansiosamente, mas eles eram bastante raros. Não era à toa que ficava provocando Lacey. Era o único modo de obter atenção. Mas, por outro lado, será que um adulto sensato exigiria atenção? A única coisa que sabia agora era que, se Lacey queria continuar sua luta contra o irmão, teria que fazê-lo sozinho, ela não queria mais saber disso! Catherine não percebia, mas aquela temporada em Mandala, o contato com a natureza, acalma e a segurança, estavam fazendo com que ela amadurecesse. Ali, isolada do mundo, ela dispunha de bastante tempo para refletir e pensar em seus próprios conflitos e problemas, e procurar as causas. Além disso, pensava também nos outros. E os efeitos disso refletiam-se em seu rosto e seu corpo. Mas realmente era difícil sentir-se revoltada ali, cavalgando pela campina, entre flores silvestres, sob a luz do sol e o céu azul. Só podia mesmo estar de bem com o mundo. Não se cansava de observar as flores e a enorme variedade de tipos. Só não encontrara ainda a tal da flor da tempestade, porque essa nascia entre as pedras, num lugar em que ela estava proibida de ir e nem se atreveria, pois tinha pavor de cobras. O sol estava ficando forte. Era hora de voltar para casa. Tia Ellenor gostava que ela chegasse bem antes do almoço, para ficarem conversando um pouco. Tia Ellenor lia muito e era inteligente, conhecia tudo sobre antiguidades e adorava fazer descobertas. Coyne demonstrava muito interesse pela atividade da tia e não fazia a menor objeção a que gastasse dinheiro adquirindo peças raras que colocava na casa para decorar. Catherine adorava aquela casa pitoresca, no meio do deserto, de onde à noite se ouvia o uivo longínquo dos dingos. Estava caminhando à sombra de umas árvores, calmamente, o cabelo cheio de florzinhas que caíam dos galhos, quando de repente deparou com algo que a fez empalidecer. No meio de tanta calma, subitamente o perigo. Ficou gelada de medo. Até que era engraçado, mas ela não achava nem um pouco: é que diante dela estava um touro enorme e assustador, com a cabeça abaixada, os olhos semicerrados, os chifres ameaçadores e pontudos brilhando ao sol. Será que ele iria atacá-la? Era provável. Ele não fazia o menor ruído. Nem ela, que estava imóvel, embora os joelhos tremessem. Ficaram os dois parados, ela e o animal, olhando um para o outro. Felizmente ela não estava com nada vermelho. E agora, como iria sair dali? Como atravessar o riacho? Estava logo ali perto... apenas a alguns metros. O coração batia com força, como se fosse sair pela boca. Se corresse seria pior, só provocaria o animal... deu um pequeno passo hesitante e o touro bateu a pata no chão. Catherine quase gritou, apavorada. Já se via morta, estraçalhada por aqueles chifres. Não queria essa morte horrível... era muito cedo para morrer! Sem saber mais o que fazer, ela se abaixou num gesto rápido, pegou uma pedra no chão e ergueu o braço para jogá-la no touro, sempre olhando fixo para ele. Vacilou uns instantes e, quando sentiu a pedra ser arrancada de sua mão com um gesto brusco, quase morreu de susto. - Meu Deus do céu! O que está pretendendo fazer? A voz deixou-a gelada. O tom era glacial e havia uma certa violência contida. Era Coyne e sem dúvida estava furioso. Era incrível, mas só agora percebia que morria de medo dele. - Ahn... o... touro... - gaguejou ela - ora, até parece que é preciso explicar! Não está vendo? - Mas o que é que você ia fazer com ele? - perguntou Coyne. - Ia apedrejá-lo? Sua tonta! Ficou maluca? Enfezado, ele jogou a pedra de novo no chão e o simples ruído que provocou foi suficiente para fazer com que o touro subisse o barranco do riacho com extrema rapidez e agilidade, apesar de seu tamanho descomunal, e desaparecesse, assustado. Catherine enrubesceu. Por um longo instante ficaram ali, cara a cara, sem dizer nada. Ela tímida e frágil, ele bravo e carrancudo, até que impulsivamente ela quebrou o silêncio:
- Estou vendo que por aqui deve ser crime não se ter quatro pernas! Puxa vida, um simples touro merece mais atenção! - Quanto a isso não posso negar, considerando-se o enorme valor que cada um deles tem... mas, sinceramente, Catherine, acho que não vou poder mais deixar você ficar andando por aí sozinha! Hoje, você ia atacar um animal inofensivo; ontem, tive que tirar seis homens do trabalho para que saíssem à sua procura... e amanhã, o que será que vai aprontar? Quem sabe? - Por que não foi você mesmo me procurar? - disse ela, em tom de escárnio. - Afinal, nem parece que você é o patrão... você trabalha feito um escravo! - Pra você ver, Catherine! Olhe aqui, mocinha, eu não sou nenhum carrasco, mas você parece que está provocando. Fique sabendo que eu sou o patrão aqui! Está querendo levar umas palmadas, ou o quê?! - Você que se atreva! - disse ela com petulância, um brilho de desafio no olhar. - Não me provoque, que minha paciência já se esgotou. Coyne deu um passo em direção a ela e Catherine tentou correr, mas ele a segurou pelo pulso num gesto rápido. - O que é? Por acaso vai bater em mim, hein?! Você vai ter coragem de bater numa mulher? - Mulher... ahn! - exclamou ele, com desprezo. - Você é uma menininha endiabrada, isso sim. E está precisando que alguém lhe faça isso há muito tempo. Aqui tem que ser do meu jeito! Está entendendo? Ele a sacudiu com violência, o olhar implacável. No rosto estava estampada a enorme vontade de dar uma surra para valer em Catherine. - Você parece que faz de propósito - continuou ele enquanto a sacudia, segurando-a pelos ombros, como se ela fosse uma menina de dez anos. - O que eu digo entra por um ouvido e sai por outro! Quem sabe desta vez você me entende! - Seu monstro! Estúpido! Filho... - Olhe essa língua, mocinha! É só o que falta agora, vai dizer palavrões também? Deixe de exageros, eu não lhe fiz nada! Os olhos dela se encheram de lágrimas. Uma enorme frustração a invadiu. Que situação mais absurda! Era inacreditável. Logo agora que tinha se iniciado nela um processo de amadurecimento, de transformação! E lá vinha ele com aquela brutalidade toda distorcer de novo sua personalidade. Era a única coisa que ele sabia fazer: usar a força, demonstrar poder! Ela estava chocada com a explosão dele. Olhou para ele, furiosa, os olhos faiscando de ódio, o rosto corado, o cabelo em desalinho. Então Coyne estendeu a mão, segurou o queixo dela, e olhou-a nos olhos com um brilho estranho no olhar. Catherine não fez nada para se desvencilhar, apenas entreabriu os lábios, perplexa, como se fosse dizer algo. Depois baixou as pálpebras... O contato dos lábios dele sobre os seus foi tão inesperado que ela se assustou, mas logo em seguida, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela correspondeu, beijando-o também. Lacey já a beijara antes, algumas vezes, mas tinha sido bem diferente. Aliás, nada se igualava àquele beijo. Seu coração parecia que ia parar... um calor doce e suave a invadiu e suas pernas ficaram bambas. Sentia-se como uma folha flutuando no ar ao sabor do vento. Iria se lembrar da forte emoção daquele momento. Demorou para reabrir os olhos e, quando os abriu de novo, deparou com o olhar dele que a analisava de um modo estranho. Imediatamente ela assumiu uma atitude defensiva. - Por que fez isso? Por acaso foi um beijo de amor - perguntou ela com sarcasmo -, ou foi apenas mais uma demonstração de sadismo? - Exatamente isso. Foi para castigá-la. E, afinal, um beijo não faz mal a ninguém... não tira pedaço. Para mim, pelo menos, fez muito bem! Bom, mas agora chega de conversa, vamos esquecer este episódio. - Não sei se vou conseguir! Eu sei que você tinha algo em mente quando me beijou desse jeito... só preciso descobrir o que é! - Ela fez uma pausa, depois bruscamente perguntou: - Por que ainda não se casou, Coyne? - Vou providenciar isso muito em breve. Pode estar certa de que vou convidá-la para o casamento! - disse Coyne, novamente muito controlado, embora ela sentisse uma ligeira tensão por parte dele. - Pode convidar quanto quiser! Eu não irei! - retrucou ela, com ar triunfante. - Vamos embora, Catherine. Ahn... eu devia ter lhe dado a surra!
Só então ela reparou que o cavalo dele estava parado logo adiante. Um belo garanhão, de pêlo negro e reluzente. Coyne olhou para o rosto jovem e de suave beleza, que estampava tudo o que ia no íntimo de Catherine. Estendeu a mão e ajeitou o cabelo dela, afastando-o do rosto. - Se você não gosta de meu cabelo, eu posso cortar! É só mandar que eu obedeço - disse ela, com amarga ironia. - Quem disse que eu não gosto? Gosto muito até! - Você vai ficar em casa, hoje? - perguntou ela, nervosa. - Ah, isso eu nunca sei. E tem mais uma coisa, Catherine: hoje você vai ter que se distrair por ali mesmo. Eu mandei Lacey ir a Belibird Camp. - Grande coisa. Até parece que eu me importo com isso! - Se você quer que eu a trate como uma mulher, porte-se de acordo! - disse ele, estreitando os lábios. - Volte para casa e aproveite para escrever, convidando amigos para sua festa. - Mas a festa não é minha! - exclamou ela, incrédula. - Não? Bem... nós não costumamos convidar pessoas para passarem o Natal conosco... - Bom... - ela estava com vontade de chorar - é que nunca ninguém fez uma festa para mim! Parece um sonho... - Tia Ellenor não lhe contou nada? - Não. Nunca disse uma palavra sobre isso. - Acho que ela estava esperando até que você se comportasse um pouquinho melhor. Ela olhou para ele, contendo as palavras, indignada. - Desculpe - disse ele, enérgico. - Eu não quis magoar você. De jeito nenhum. Agora, vá para casa, Catherine. - Sem dizer mais nada, ele se virou, foi até onde estava o cavalo e montou na sela. Um bando de pássaros passou em revoada e a brisa soprou cálida e perfumada, livre como Coyne. Algumas pessoas, apesar de terem obrigações e responsabilidades impostas pela posição que ocupam, conseguiam se manter absolutamente livres! Ele já se afastava montado em seu cavalo, completamente esquecido dela, disso não havia a menor dúvida. Bem, era melhor voltar depressa, senão tia Ellenor iria ficar esperando por ela! Aproximou-se do riacho, abaixou-se e lavou o rosto afogueado com a água fresca e límpida. Entretanto o coração não se acalmava, continuava a bater descompassado. Por que ele a beijara? Não tinha sido um mero capricho! Ele não era como Lacey, não agia como ele. Estava difícil de entender... ele não dissera que ela ainda não era mulher? Que não passava de uma menininha endiabrada? Pois, então, por que a beijara daquele jeito? Com ardor e sensualidade, como um homem beija uma mulher! Colocou a mão sobre os lábios, um pouco assustada com a reação que aquele beijo provocara nela. Agora cada vez que pensasse nele já seria diferente... Por que Coyne fizera isso com ela? Por que fazer surgir esse novo elemento na relação deles, que já era difícil sem isso? O que ele estava querendo provar? Que existem várias maneiras de se comunicar? Não... não conseguia entender! Muito menos conseguia compreender aquele estranho desejo e a força da sensualidade que despertaram dentro dela de repente. Não que fosse errado sentir aquilo, mas estava confusa... tinha a impressão de que estava escondendo algo de si própria. Assim que chegasse em casa iria perguntar a tia Ellenor quem era a mulher da vida de Coyne. Quem seria essa mulher com quem ele estava pretendendo se casar? Devia ser alguém como ele, uma fazendeira que entendia de gado... acostumada com aquela região e com aquele modo de vida. Uma mulher que compreendia o fato de um touro ser mais importante do que ela! Ora, era melhor parar de pensar nele e nessas coisas todas. Era bom não começar a fantasiar demais! Tinha sido apenas uma experiência agradável e nada mais. Ela jamais estaria à altura de Coyne! Ele estava tão distante dela quanto as estrelas no céu. Por isso era inútil ficar pensando, querendo analisar o que houvera! O problema era que não estava pensando, estava sentindo... e isso era bem mais difícil de controlar. Os sentimentos são involuntários e muito mais fortes do que a razão. Quantas pessoas não se deixavam levar por eles, por mais inteligentes que fossem, e até arruinavam suas vidas? Pronto! Um simples beijo e ela perdera o sossego! Não... não podia acontecer! Seria muito doloroso apaixonar-se pelo homem errado. Iria sofrer muito porque ele jamais olharia para ela! Não tinha a menor chance... Quem era ela para ganhar o amor daquele homem forte e poderoso, senhor daquele vasto império?!
Assim ela foi caminhando, remoendo pensamentos, receios e dúvidas, até que se aproximou do enorme gramado cheio de árvores que circundava a casa. Lá Catherine viu a figura miúda de Jinty. Ela era casada com Thomas, o capataz, e trabalhava na casa, ocupando um cargo de responsabilidade logo abaixo da governanta, a sra. Beckett. O pequeno Taddo era a criança mais engraçadinha que ela já vira. Um garotinho de pele escura como chocolate, muito vivo e esperto. Tinha uns olhos grandes e meigos e naquela manhã o cabelo dele estava enfeitado com margaridas. Devia ser a flor do espírito protetor dele. As crianças nativas aprendiam desde pequenas que tinham espíritos protetores a quem deviam obrigações. As mulheres da tribo se encarregavam de ensiná-las. Todos os nativos que trabalhavam em Mandala viviam em uma atmosfera de plena harmonia. Realmente era verdade o que Coyne lhe dissera no dia em que a trouxera para ali. Ela já constatara que ele se preocupava mesmo com o bem-estar de todos eles e inclusive tinha um interesse sincero pela cultura deles. Taddo tinha uns dois anos e já cantava alguns cânticos da tribo e sabia uns passos de dança. Os adultos treinavam suas crianças para serem independentes. Ele era tão pequeno e já andava sozinho por ali, observando com interesse o trabalho dos homens e sabia se cuidar muito bem, andando no meio do gado, muito a vontade. Era de espantar. Ele ainda não tinha visto Catherine, que correu para ele e ergueu-o, segurando-o acima de sua cabeça e rodando com ele. Taddo adorava isso e ela gostava de vê-lo rir. - Onde é que você estava, hein?! Ah... já voltou da escolinha, é? Ele fez que sim com a cabeça e continuou a rir. - Vou levar você comigo... vamos tomar chá juntos? Ele respondeu misturando inglês com a língua nativa e a única palavra que Catherine entendeu foi "bolo". Ah, as crianças eram todas iguais em qualquer lugar do mundo! Como se entregavam fácil ao afeto e respondiam de imediato a uma atenção carinhosa! Ela olhou para o garotinho, sorrindo, e concluiu que quando se casasse queria ter muitos filhos. Seria maravilhoso amá-los, escutá-los, ensiná-los quando fosse necessário! Dedicar-se-ia de corpo e alma à educação deles e nunca, nunca os deixaria sozinhos ou longe dela. Isso era um juramento que fazia e para ela era sagrado. Ellenor, observando a aproximação dos dois, a garota e o menino, sentiu o quanto gostava de Catherine. Em tão pouco tempo ela conquistara a estima de todos. Era alegre, cheia de vivacidade, com muito senso de humor, e não tinha a menor malícia. Estava amadurecendo a olhos vistos e sua personalidade se afirmava mais a cada dia que passava, a tal ponto que Ellenor quase não reconhecia nela a garota da primeira semana. Só não entendia por que Coyne era tão severo com ela... Catherine não merecia todas aquelas broncas e carrancas! Era tão respeitosa e delicada com a tia! Estava mesmo muito contente com os progressos que Catherine fizera ali e, por um lado, sentia pena que não houvesse nada de sério entre ela e Lacey. Gostaria que Catherine continuasse na fazenda lhe fazendo companhia! Iria sentir tanta falta dela! Se pudesse prolongar sua estada em Mandala seria tão bom! Seria bom para as duas. Para Ellenor, porque teria companhia, para Catherine, porque ela ali parecia tão feliz... perdera aquele ar tenso, aquela expressão rebelde, estava se tornando suave e descontraída. Lacey até já perdera a aliada que encontrara nela nos primeiros dias. Coyne concordava com a tia, achando que Catherine devia ficar mais algum tempo em Mandala. - Acho que será bom para ela. Ela precisa se descontrair! - comentou ele sucintamente, depois acrescentou: - Mas é melhor você pedir para Debra vir para cá. Ela era uma das duas filhas do vizinho mais próximo, Josh Armstrong, de Amaroo Downs. Josh tinha perdido a esposa, Mary, há quatro anos, e quase morrera de desgosto. Até agora ainda não se recuperara totalmente. Debra era uma garota maravilhosa, forte como a mãe, e o pai se apoiava muito nela. Uma fazendeira nata, incansável trabalhadora. Ellenor achava até que ela não aproveitava muito da vida. A irmã mais velha, Helena, que já era uma mulher, vivia viajando, ia às praias praticar surfe, ou às montanhas esquiar, além de ir pelo menos três vezes por ano para a Europa. Debra entretanto sempre preferira ficar com o pai. Gostava da fazenda, amava o pai e amava Lacey desde criança. Ellenor nunca conseguira gostar muito de Helena, desde que ela era pequena... o que não era comum em Ellenor, sempre disposta a achar qualidades em todo mundo. É claro que Helena agora era uma mulher charmosa, com hábitos de cidade grande, e tinha uma queda por Coyne, fato que desagradava Ellenor terrivelmente. As duas irmãs eram o oposto uma da outra.
Helena só se interessava por ela própria, a quem se dedicava inteiramente; Debra se interessava pelos outros à sua volta e se dedicava aos que amava. Os três Armstrong estavam convidados para a festa de Natal em homenagem a Catherine, que Ellenor estava planejando em segredo há varias semanas. Só esperava que Josh estivesse bom e pudesse comparecer também. Quando falou com Debra, notou que ela estava preocupada com o estado do pai. Josh não estava muito bem há um ano... emagrecera quase dez quilos, Coyne o levara de avião até Longreach para que fizesse um check-up completo. Quando voltou ele disse a todos que estava bem, que estava tudo em ordem com ele, porém Ellenor ficou desconfiada e teve vontade de falar diretamente com o médico, mas não podia fazer isso. Ellenor tinha sido muito amiga de Mary e, depois que ela morreu, transferiu essa amizade para a família dela. Tinha certeza de que Josh não estava dizendo a verdade. Nada ia bem por lá. A fazenda, que era tão próspera, estava quase que abandonada. O homem estava minguando desde a morte da esposa. Era pena que Lacey não sentisse por Debra a mesma atração física que demonstrava por Catherine! Contudo Ellenor tinha certeza de que ele gostava muito da garota e a admirava bastante. É que Lacey já se acostumara com a devoção que via nos olhos castanhos de Debra e já não dava mais valor. Não havia o desafio da conquista e Lacey não gostava das coisas fáceis. Quanto a Catherine, era difícil saber o que ela realmente queria. Ela era tão independente, não parecia estar disposta a se prender a ninguém! Mudara muito desde que chegara a Mandala. E depois era difícil saber-se hoje em dia o que os jovens esperam da vida. As coisas tinham mudado tanto e tão rapidamente que Ellenor se sentia um pouco confusa. Os valores eram outros, as idéias eram novas, já não havia mais a tradição. Talvez fosse mais difícil para os jovens orientarem suas vidas sem as linhas mestras que determinavam o certo e o errado antigamente. Quando ela era jovem, era bem mais fácil. Havia um código rígido que era seguido à risca, sem discussões. Aceitava-se e pronto. Lá vinha vindo Catherine com o garotinho no colo. As sandálias e as barras da calça comprida estavam molhadas e o cabelo solto ao vento, brilhante e revolto. O riso cristalino dela misturava-se aos gritinhos de entusiasmo de Taddo. Apesar da aparência desalinhada, a beleza de Catherine era incontestável e sedutora. Era uma bênção dos céus ser assim tão jovem, inteligente e bonita! Ser saudável, ter espírito alegre, imaginação viva... ter o futuro todo pela frente para expandir e desenvolver os dons naturais. Catherine parecia ter chegado ao auge do esplendor ali em Mandala. Será que havia algo por trás daquela transformação? Será que havia uma causa? Ellenor teve uma espécie de pressentimento, mas achou melhor nem pensar no assunto.
CAPÍTULO VI Na manhã em que os Armstrong deveriam chegar, Lacey foi com Catherine até a pista de pouso com seu jipe aberto e barulhento, assustando os pássaros que se afastavam apressados com um farfalhar de asas. Ele estava meio esquisito. Ela não sabia dizer se estava satisfeito ou hostil. - Debra era minha namorada... a melhor garota que conheci, antes de você aparecer por aqui! Sabia? - disse ele de supetão, lançando-lhe um olhar ávido. - Olhe aqui, vamos deixar as coisas bem claras! - retrucou ela imediatamente, jogando os cabelos para trás. - Eu não sou sua namorada! Não tenho nada com você! - Como eu estava lhe dizendo, amorzinho, se você não tivesse entrado em cena, eu teria ficado com Debra. Não é nenhuma paixão ardente... mas ela é bacana! É uma garota corajosa, delicada, morena e bonita. É a queridinha do pai dela. Aliás, ela adora aquele pai! - A última frase foi dita em tom de censura. - Ora, e o que tem demais gostar do pai? Acho muito normal! Além disso, tia Ellenor contou que ele é um homem doente - disse ela, tomando partido contra Lacey. - Ah, também não é assim... tia Ellenor exagera! Ele está apenas envelhecendo e perdendo um pouco a vitalidade. Afinal, já está com mais de cinqüenta anos... acho que é normal. Como é que Helena não se preocupa tanto com ele? Você sabe quem é Helena, não sabe? É irmã de Debra... ela e Coyne... - Ah, é? Tem alguma coisa entre eles? Eles têm um caso?
- Ora se têm! Aliás, não duvido nada que eles resolvam logo essa situação, ainda antes do ano novo. Já está mais do que na hora de Coyne tomar a decisão e fazer essa mulher sossegar aqui! - Você gosta dela... dessa Helena? - Você nem pode imaginar! É como se fosse uma irmã mais velha para mim. Ela é meio coquete... mas qual mulher não é? E também é muito esperta, enfrenta e vence qualquer rival. Eu gosto de mulher assim... Apesar de toda sua inconstância, ela não desiste de Coyne; só nisso é constante! Ela é o oposto da irmã. Debra é sossegada, simples e boazinha... boazinha demais na minha opinião. Prefiro temperamentos mais fortes. Apesar disso gosto muito dela, mas não é amor. - Duvido que você seja capaz de amar a não ser você próprio! - Ah, é?! E o que acha que sinto por esta garota que está do meu lado e que é uma festa pra meus olhos? - Sei que vai ser difícil, mas será que dá pra parar de olhar pra mim e olhar para aquilo lá ao longe? Não é o Cessna? - disse em tom jocoso. - Exatamente. Está se preparando para pousar. Até a noite você vai ver como isso aqui vai ficar coalhado de aviões, como se fossem um bando de pássaros. Alguns convidados virão de carro... vai ser um festão! Tanta gente... você vai gostar de Josh. Ele é meio calado, mas quando toma alguma coisa até que fica legal. Ele adora meu irmão, é capaz de beijar o chão em que Coyne pisa. - E por que isso? - Ora, por que, então você não conhece Coyne? Ele ajuda todo mundo. Meu irmão é um grande homem! - Quanto a isso estou de acordo. - É claro... todo mundo adora ele! Ele é maravilhoso, ele isso, ele aquilo! - Ora, não comece com isso! - disse Catherine num tom severo e Lacey olhou para ela. Não sei por que esses comentários sarcásticos... você está sempre atormentando seu irmão, não acha que já é tempo de parar com essa infantilidade?Já é hora de amadurecer! - Pronto, ponto pra Coyne. Ele venceu! Muito me admira ouvir você dizer isso, amorzinho, porque sei que ele também pega no seu pé e vive dando bronca em você. - De vez em quando é verdade, mas isso não é sempre, ora! - Não precisa gritar, amorzinho - disse Lacey em tom azedo. - Não fique nervosa. Pelo menos você não se porta como todas as mulheres diante dele. - E como é que elas se portam? - Ora, não banque a boba! Você sabe tão bem quanto eu que não posso competir com ele. É claro que Coyne é o preferido das mulheres. Você foi a única que não ligou para ele. - Mas Coyne não tem culpa disso, ele não faz de propósito. E, depois, você não é como ele, mas também é muito atraente, Lacey. Cada um tem seu tipo... tenho certeza de que Debra prefere o seu. - É... ela nunca disse nada porque não é de falar de seus sentimentos, mas tenho certeza de que é apaixonada por mim. - Humm... que convencido! Não tenha tanta certeza assim. Lacey enrubesceu. - O que foi que deu em você? - Nada, ora essa! Estou como sempre fui. - Não parece. Está agressiva comigo. Mas não adianta, porque você não vai conseguir me fazer mudar! - Não tenho a menor dúvida! - retrucou ela secamente. - E nem quero mudar ninguém. Acontece que as pessoas mudam normalmente, amadurecem... ninguém fica igual para sempre. Já pensou nisso? - Por que esse sermão logo agora, no pior momento? - perguntou Lacey, sinceramente magoado. - Sei que não sou perfeito, mas faço o melhor que posso. Pelo menos às vezes... Ele deu de ombros. - Bom, acho melhor mudarmos de assunto antes que a discussão fique feia. Não sei o que deu em você hoje... será que está com ciúme? - Ah, essa não! Pode tirar o cavalinho da chuva. Imagine, eu com ciúme de você! - O que é que tem? Todo mundo sente ciúme. Não tem importância, deixa pra lá... agora vem aqui, amorzinho, que vou dar um beijo em você e acabar com essa discussão boba. Não quero brigar com você! Talvez esteja certa, mesmo. Talvez eu exagere quanto a essa história da diferença entre Coyne e eu... mas é que vivi muito tempo à sombra dele. Ponha-se no meu lugar e veja se me entende. Não é fácil conviver com uma pessoa de personalidade tão
marcante... a gente começa a sentir que perde a identidade. Ah... agora quero beijar essa boquinha linda, vermelha como uma rosa... - Por que não vai beijar Debra? Aposto como vai ser muito melhor. - Não tem perigo. Ninguém supera você, amorzinho, isso eu garanto! - Ele a fitava de olhos semicerrados e estava incrivelmente parecido com Coyne, apesar de as feições serem diferentes. Talvez fosse o jeito de olhar... o formato do rosto... Catherine se inclinou e bateu de leve na mão dele. - Não se preocupe, eu sou sua amiga. Agora é melhor estacionar o jipe e irmos buscar os convidados. O manda-chuva espera que a gente se comporte. Vamos! - Espere aí! - disse Lacey, saltando do jipe e detendo-a. - Vai ficar uma poeira danada no ar e vai levar uns dois minutos para que assente! - O rosto dele estava tenso. Catherine se deixou ficar nos braços dele, olhando para a pista de pouso e o pequeno grupo de recepção: Coyne destacando-se entre todos, o mais alto; tia Ellenor, magra e delicada, parecendo uma estatueta de porcelana, Tim Beckett, o capataz de Coyne, e alguns outros que trabalhavam na fazenda, todos conhecidos de Josh e das filhas. Nesse momento o Cessna tocava a cabeceira da pista que percorreu até o fim, erguendo uma poeira vermelha. Assim que a porta se abriu, uma moça alta desceu com a rapidez e a elegância de uma corça, e gritou: - Coyne! - Olhe só aquilo! Agora você vai ver o beijo do século! - comentou Lacey, apontando para onde estava o irmão. E era verdade. A garota se atirou nos braços de Coyne e o beijou prolongadamente. Ele não parecia ter relutado, bem ao contrário, também abraçava a moça e correspondia com o mesmo ardor. Catherine sentiu uma coisa esquisita, assim como se estivessem invadindo sua propriedade... como se estivessem usando um direito que era seu. Por que estaria sentindo aquilo? Não podia estar com ciúme de Coyne! Não, isso era absurdo, loucura! Devia ser porque detestava demonstrações públicas de afeto. Lacey estava rindo. - Puxa! Olhe só a roupa dela! Caprichou em tudo. Acho que está mesmo a fim de amarrar meu irmão. E desta vez parece que vai conseguir... Eu não devia dizer isso, mas Helena é bem capaz de qualquer coisa para conseguir Coyne. Só não vai poder dar o golpe da gravidez! - E por que não vai poder? - perguntou Catherine, irritada. - Porque Coyne não é de perder a cabeça e fazer loucuras. - Ora, Lacey, você só fala besteira! - Catherine quase gritou a frase. - Ei, por que isso agora? Não estou entendendo você, amorzinho! - Lacey segurou-a pelo braço com força e puxou-a para si. - Não banque a santinha comigo! Qual é? - Olhe aqui, ou você me larga imediatamente ou vai levar um chute na canela que vai fazer você ver estrelas! - preveniu ela, os olhos arregalados, faiscando, o rosto corado e os lábios um pouco trêmulos. - Ah, você não tem coragem. Você já não é o "furacão" que chegou aqui. Você talvez não tenha percebido, mas aqui em Mandala você se transformou numa moça delicada e suave. Por isso não vai me chutar coisa nenhuma. Engraçado, mas sempre acontece justamente o contrário. As pessoas aqui tendem a se embrutecer, a ficarem rudes e agressivas. Mas você, não! Está longe de parecer o terror que era quando chegou. Aliás, eu acho que é uma pena... está ficando muito boazinha. Só que você é tão bonita e atraente que eu esqueço todo o resto! - Pare com isso, estão olhando! - protestou ela, percebendo que ele ia beijá-la ali, diante de todos, e isso era a última coisa que queria que acontecesse. - Qual é o problema? O que eles têm com isso? Não devemos satisfações a ninguém. - Por favor, Lacey! - Ela se desvencilhou dele. - Pode ser que eu esteja mesmo me suavizando como você diz, porque detesto brutalidade e grosseria. Agora, pare com isso e vamos lá! Venha me apresentar sua Debra. - Quero que Debra vá pro inferno! - disse Lacey, num tom cruel. - Quem eu quero que você conheça é Helena. Aquilo sim é que é mulher charmosa! Coyne vai ficar vidrado! Só que o cabelo dela não era dessa cor, era castanho e sem graça que nem o de Debra. Agora, olhe só! Ruivo! Parece Rita Hayworth! Que mulher! - Ele a pegou pelo braço e conduziu-a pela alameda de acácias que saía em frente ao hangar, onde estava reunido o grupo sorridente. Josh, que fora um homem forte como um leão, mais parecia a sombra de um homem. Quando Catherine o cumprimentou, olhando para aquele rosto esquelético e marcado pelo sofrimento, entendeu logo que ele estava no fim. Será que Lacey não percebia isso? Na
verdade, chegou à conclusão de que Lacey era uma pessoa muito egocêntrica. Debra tinha um rostinho adorável e sorriu com simpatia para Catherine, sem o menor sinal de ressentimento pela cena que sem dúvida tinha visto há pouco. Realmente era muito boazinha... Lacey não a merecia. Helena era alta e esbelta, de olhos escuros e cabelos ruivos. Catherine não gostou nem um pouco dela. Achou que ela era antipática, mal-educada e muito sofisticada. Quando foram apresentadas, Helena limitou-se a olhá-la de alto a baixo com expressão de superioridade, e nem sequer sorriu. Entretanto Catherine não podia deixar de admitir que a moça era bastante atraente e bonita e, pela expressão no olhar de Coyne, Catherine não teve dúvidas de que ele a admirava. Ah, que mulher mais detestável! Como é que ele podia gostar de um assim? Logo percebeu que, embora a festa fosse em sua homenagem, quem iria ser o centro das atenções era Helena. Ah, mas isso não ia ficar assim! Pela primeira vez em sua vida Catherine bendisse à mãe por ter lhe comprado aqueles vestidos chiques e elegantes. Iria caprichar na arrumação. Helena que esperasse para ver! Até poderia emprestar um dos vestidos para Debra, é claro! Simpatizara tanto com aquela garota meiga e cordial. Sendo uma pessoa caseira, ela era muito simples e não cuidava muito da aparência, mas Catherine tinha certeza de que, com um pouco de trato, ela brilharia e Lacey iria reparar melhor nela. Jurou que faria a garota ficar linda na festa. Catherine era muito sensível e percebeu a ansiedade da outra, mas não queria que sofresse por sua causa. Iria ajudá-la a conquistar Lacey. Quando todos estavam se acomodando nos carros para irem para casa, Coyne aproximouse dela. - Espere um pouco, Catherine. Eu nunca tenho tempo de falar com você. - Que verdade! - disse ela em tom de ligeira censura, com um sorriso estranho nos lábios. Aliás, você não tem tempo nem para conversar consigo próprio. Ele perscrutou o rosto dela por um longo instante, em silêncio, os olhos negros intensos e profundos. - Por que deixa Lacey confundir e intimidar você? - Ele não faz isso - disse ela, tentando falar em tom normal. Teve vontade de gritar que quem a confundia e intimidava era ele, mas não disse nada. - Quer dizer que essa é a mulher de sua vida, é? - disse ela com certo sarcasmo, erguendo a sobrancelha, os enormes olhos azuis bem abertos e brilhantes. - Cuidado, mocinha, não comece com implicâncias... ela é hóspede da família, lembre-se disso - disse ele, em tom displicente. - E daí? Não gostei nem um pouco dela. Ele se empertigou diante dela, fazendo-a sentir-se menor ainda. - Às vezes eu também não gosto dela - disse ele em tom contido, olhando para ela com arrogância. - Mas não é sobre isso que quero conversar com você, Catherine. - Está bem, o que é, então? - disse ela, olhando para baixo e riscando o chão com o pé. Pode falar, estou escutando. Mas ande logo, senão a bela Helena vai ter um ataque. Ela parece ser bem possessiva e ciumenta, você não acha? - Agora eu não quero achar coisa nenhuma. Estou aqui para falar de Debra. - Ah, nem precisa se dar ao trabalho, então - disse ela com veemência. - Eu sou boa pra entender essas coisas. Já sei que ela ama Lacey desde que era criança. - É justamente o que eu ia lhe dizer. Acho que isso explica tudo, não é? A festa é em sua homenagem e ninguém mais do que eu quer que você brilhe, mas só lhe peço que dê uma chance a Debra. Ela é muito modesta e tem tendência a se apagar e se retrair, apesar de todas as qualidades que tem. - Por que á irmã dela não dá umas aulinhas a ela? - perguntou em tom de desafio e provocação. - Ela sabe como aparecer e não parece nem um pouco modesta ou retraída. Bem que poderia ajudar a irmã... - Catherine, não fuja do assunto! - E eu lá sei qual é o assunto? Ele lançou um olhar de ligeira irritação. - Depois daquele episódio ali no jipe, agora há pouco, a pobre Debra deve estar pensando que você é uma rival invencível. E você não é! - Quem disse? - Eu! - retrucou ele, com infinita paciência. - Sei que está acostumada a dizer e a fazer o que pensa, Catherine, mas tenha cuidado. Você e Lacey andaram aí de namorico, mas não passa de brincadeira inconseqüente. É melhor não insistir mais nisso!
- E por que não? Por acaso acha que só você tem o direito de beijar só por beijar e depois fugir? Ele chegou mais perto e ela imediatamente se arrependeu de sua hostilidade. - Desculpe, Coyne. Eu não queria dizer isso. - A proximidade dele provocou um tumulto em seu interior. Era inevitável, isso tinha que acontecer... afinal, estava com quase dezenove anos e era sua primeira paixão. Talvez fosse apenas coisa própria da adolescência e ela conseguisse superar. Quando falou de novo foi com certa tristeza velada! - Está bem, eu vou ajudá-lo, pode ficar sossegado. Aliás, acho que lhe devo muito mesmo. - Você não me deve nada e não quero que fale assim. - Mas quanta nobreza de sentimento. Muito obrigada. - Ah, Catherine, você é impossível! Tenho vontade de fazer nem sei o que com você! - Por que não me beija? - disse ela, num impulso incontrolável. Os olhos dele brilharam e os lábios se moveram num discreto sorriso. - É muito arriscado provar de novo esses lábios macios! Vamos, Catherine, não fica bem tentar me seduzir debaixo desse sol escaldante. Guarde para hoje à noite - disse ele em tom jocoso, que não deixava de conter uma certa aprovação. Ela ficou surpresa, olhou-o de soslaio, e andou depressa para alcançar o passo dele. - Você está representando - acusou ela de repente. - O que quer dizer com isso? - perguntou ele em tom de desafio, parando tão bruscamente que ela deu de encontro com ele. Coyne a segurou pelo braço. - Bem... ahn... - ela gaguejou. Ele a olhava fixo e ela quase se sentia tragada por aqueles olhos negros em cujas profundezas se sentia náufraga. Começou a se apavorar enquanto ele, em silêncio e imóvel, esperava que ela falasse. - E então, Catherine? Você disse que estou representando... agora continue! - O que estou tentando dizer é que você está agindo de modo muito... ahn, digamos... frívolo. E eu sempre pensei que você estivesse acima desse tipo de coisa. - Pois pensou errado! - respondeu ele com firmeza, lançando-lhe um olhar severo. Ela não pôde deixar de pensar que às vezes ele parecia bastante arrogante. O perfil daquele rosto moreno recortado contra o céu azul era impressionante. Sentiu que enrubescia. Ele a fizera se sentir ridícula, diminuída, e sem dúvida tinha sido essa a intenção dele. Olhou para ele, revoltada, os olhos faiscando, mas num gesto rápido e inesperado ele a pegou pelo pulso. - Está bem, eu obedeço... - sibilou ela, contendo a hostilidade. - Não sei por que está assim, Catherine - disse ele, em tom divertido. Tudo parecia tranqüilo na paisagem: as abelhas em busca das flores, os pássaros se chamando com trinados; mas entre Catherine e Coyne parecia arder uma fogueira. Era uma coisa forte, com toda a pujança das coisas primitivas, e então ela percebeu que homem e mulher, como macho e fêmea, eram primitivos com suas emoções, paixão e ciúme. A civilização que impunha um comportamento contido, era apenas uma casca fina. O coração de Catherine batia apressado, era como se seu corpo todo latejasse. Sentia-se viva e cheia de vitalidade, incapaz de não sucumbir à grandiosidade do que a circundava, uma emoção avassaladora que a invadia. Algo desconhecido acontecera dentro dela... e era lindo! Ela estava amando! Respirou fundo, um pouco assustada com a constatação. Tinha certeza de que era inútil o que sentia, só iria sofrer. Mas não podia fazer nada para impedir que esse amor vicejasse com todo o fulgor da primeira vez. Não se manda no coração. E ainda tinha que se dar por satisfeita, as coisas poderiam ser muito piores se Coyne já fosse casado! Não havia festa em lugar nenhum do mundo capaz de superar em alegria, calor humano e hospitalidade uma festa naquela região da Austrália. Catherine estava eufórica. Havia algo muito especial envolvendo o ambiente, uma espécie de ternura, ou qualquer coisa assim, pairando no ar que fazia seus olhos brilharem. Aquelas pessoas ali reunidas realmente gostavam umas das outras. Era muito diferente do ambiente sofisticado em que vivia sua mãe, onde só havia bajuladores e puxa-sacos. As pessoas iam aos jantares que ela oferecia, comiam e bebiam na casa dela e depois, pelas costas, falavam mal dela, caçoavam, faziam piadas maliciosas, invejando secretamente a posição social e a beleza dela. Ali não, as pessoas eram gente simples que vivia no campo, em contato direto com a natureza, apesar de serem ricos fazendeiros. Tudo era muito diferente... os rostos, as vozes, o senso de humor, a solidariedade... havia entre eles um interesse sincero pelo bem-estar de
cada um. Quando se reuniam numa ocasião festiva era realmente para se divertirem, para expandirem alegria. Talvez fosse a vida calma, ao ar livre, que desse a eles aquela autenticidade que os tornava mais humanos do que as pessoas que vivem nas grandes cidades, onde a competição e o egoísmo são leis de sobrevivência. Naquela noite, véspera de Natal, Mandala adquirira outra dimensão. Estava em festa. Todos os aposentos abertos, cheios de gente, o jardim iluminado discretamente com lanternas de papel, para não apagar o brilho das estrelas que se refletiam no lago. As flores ornamentavam os canteiros bem cuidados e exalavam agradáveis perfumes. Era quase impossível naquele momento imaginar que Mandala, uma vasta extensão de terra, era isolada do resto do mundo, entre pântanos e deserto pedregoso. Olhando do terraço, Catherine se encantava com tudo... o frescor da noite, o perfume das flores, a beleza do jardim, a vasta escuridão além. Passou o braço por uma das colunas, cobertas por trepadeiras, como se a estivesse abraçando com carinho. Sentia-se tão bem, num mundo tão maravilhoso, que era como se estivesse sonhando. A luz que vinha do saguão iluminava seu vestido de chiffon amarelo. O modelo acinturado e de alças realçava seu corpo e deixava à mostra os ombros bem-feitos e o colo suave. Como único adorno uma correntinha de ouro, fina, com um pingente de opala, uma pedra linda e valiosa, embora ela não soubesse desse último detalhe. A única coisa que sabia era que adorava aquele enfeite e por isso o guardaria com muito carinho para sempre. Tinha sido um presente de Natal, adiantado, que Coyne fizera questão de lhe dar. A pedra era proveniente de uma mina em Coober Pedy... uma relíquia que ele escolhera pessoalmente! Tinha reflexos azuis e turquesa como os do mar, um certo brilho de esmeralda, salpicada de dourado, e uma certa luminosidade escarlate. Sem dúvida era maravilhosa e rara. Coyne gostara dessa pedra desde que a vira pela primeira vez, e há muito que a guardava consigo, na verdade há anos - ele lhe contou isso quando deu o presente, o que, na opinião de Catherine, a tornava ainda mais valiosa. Ela ficou tão emocionada que não sabia se ria ou se chorava, e disfarçou escondendo a emoção numa ironia qualquer, mas ele percebeu e sorriu do jeito dela. O cabelo de Catherine estava repartido no meio e puxado para trás das orelhas, preso por duas magnólias que emolduravam seu rosto. Estava linda e as pessoas não paravam de olhar para ela, embora nem percebesse, tão inebriada que estava. Era a primeira vez que tinha uma festa em sua homenagem, e estava amando loucamente. O amor era tanto que começava a transbordar de seu coração, a cada minuto ficava mais difícil contê-lo e dissimulá-lo. Não tinha coragem de olhar para Coyne, pois tinha medo de que ele lesse em seu rosto o que não conseguia mais esconder. Por isso contentava-se com a imagem dele, que era nítida e precisa nos mínimos detalhes: o sorriso dele, o perfil, o jeito dele virar a cabeça, o nariz arrogante, o jeito de usar as mãos quando falava para enfatizar as coisas... eram mãos lindas, morenas, fortes e bem-feitas, com dedos longos e finos, tinha sido uma das primeiras coisas que ela reparou nele. Ele estava terrivelmente atraente e por várias vezes a olhara de longe e sorrira para ela, só que Catherine não se atrevia a encará-lo. Por isso ficava reparando em tudo que a cercava... as mulheres com seus vestidos chiques, todos longos, os homens de terno muito elegantes, a música, os risos, o zunzum das conversas, tudo a envolvia com uma estranha magia. Todos a mimavam muito, mas era uma demonstração espontânea de afeto e cordialidade, que acalentava seu coração e se refletia em seu rosto. Não havia a menor dúvida de que a festa de Catherine era um grande sucesso. Tia Ellenor a apresentara a todos os convidados e só ela notara a jóia que enfeitava o pescoço da garota. Olhara longamente, mas não dissera nada. Ninguém sabia que tinha sido presente de Coyne, nem mesmo Lacey. Só Helena não fazia parte dos convidados que dispensavam atenções e delicadezas a Catherine. Ela estava dançando no terraço, completamente alheia à convidada, e estava magnífica num vestido elegantíssimo e ousado que valorizava seu corpo. Sobre os ombros nus corriam feito cascatas os cabelos ruivos que balançavam com maciez e brilho conforme ela se movimentava. Ao lado dela a irmã, Debra, mal aparecia. Ela não aceitara a oferta do vestido e ficara com as roupas simples que havia trazido. Era bonita, mas tímida e sem exuberância, além disso estava cansada e preocupada com o estado de saúde do pai. Lacey, pela primeira vez, estava demonstrando um pouco de atenção, ficando ao lado dela em vez de correr atrás de Catherine, como queria. Apenas observava de longe toda a beleza dela, e chegou até a comentar com Coyne que ela parecia a própria imagem da primavera, o que provocou um sorriso irônico no
irmão. Ao mesmo tempo estava preocupado por ver Debra tão deprimida, mas ela, como sempre, entendia e desculpava os olhares que Lacey lançava para Catherine. Debra na verdade era séria demais para a idade que tinha. Naquele momento sua única preocupação era a saúde do pai. A coisa que mais queria no mundo era vê-lo bem-disposto de novo, e por isso não estava mesmo ligando muito para Lacey. Lacey, que estava distraído na contemplação de Catherine, virou-se de repente para Debra e percebeu a preocupação nos olhos dela. Ficou comovido e beijou-a com carinho e de leve no rosto. Não era muito, mas os olhos castanhos de Debra olharam-no com tanto amor e ternura que emocionaram Lacey. Ao lado de Catherine ele sentia desejo e vontade de fazer amor, mas Debra provocava nele um instinto de proteção, de apoio. - Debra, você é uma garota bacana, boazinha demais - disse ele num tom de voz tal que era difícil saber se era elogio ou não. - É, mas isso não atrai ninguém. Olhe só para Catherine! Ela é linda, não é? Todos se sentem atraídos por ela... - Bem, isso não posso negar... ela parece um sol iluminando tudo! É a garota mais bonita que já vi e talvez jamais veja outra mais bonita do que ela. É um sonho! Mas você não deve se subestimar, Debra, você tem muitas qualidades e, o que é principal, você me entende! - É... eu entendo você - disse Debra, desejando intimamente ser um sol, um sonho... Naquele momento Lacey não estava irrequieto como de costume, nem agressivo. Estava gentil e atencioso e o comportamento dele surtiu em Debra o efeito das chuvas no deserto. Dentro dela como que brotaram flores. Ela sabia que talvez fosse apenas uma atitude momentânea, que podia não durar, mas nessa noite necessitava da mais ínfima migalha que ele pudesse lhe dar. Sabia que isso não era do feitio dele e só de saber que Lacey estava tentando confortá-la enchia-a de alegria. Aceitava o que ele estava lhe dando sem queixas nem exigências. Do outro lado da sala veio o som da risada desinibida e gutural de Helena. - Meu Deus, como é escandalosa aquela lá, não acha? - comentou Lacey com Debra. Olhe só o jeito dela com Coyne. Helena estava diante de Coyne com a cabeça erguida, os cabelos jogados para trás, olhando para ele de modo ousado, como se houvesse entre eles uma comunicação secreta, algo muito pessoal e íntimo, que só eles entendiam. Os lábios rubros estavam entreabertos, de modo provocante. - Parece que ela vai engoli-lo! - comentou Lacey, que continuava a observá-los. - Sabe, é engraçado, Debra, mas acho que você é a única mulher que eu conheço que fica indiferente diante de Coyne. Quero dizer, fisicamente indiferente. Acho que é por isso que eu amo você. Eu sei que você e seu pai gostam muito dele e o consideram bastante, mas é a mim que você ama de verdade, não é? - É - respondeu Debra, respirando fundo, emocionada e trêmula, mas Lacey já mudara de atitude e mal reparava nela. Estava pensativo e um tanto taciturno e a conversa tomou outro rumo. - É incrível! - continuou ele. - Eu vivo tentando me convencer de que ele e eu somos iguais, mas puxa vida! Olhe só para ele! Ninguém pode ignorar que Coyne ofusca todo mundo... e o mais fantástico de tudo é que é natural, ele nem tem consciência disso. Não é à toa que exerce tal fascínio sobre as mulheres, mas nunca se envolve com nenhuma. Olhe só o jeito de Helena! Não sei como é que vocês podem ser irmãs. Puxa, ela não é uma mulher que possa ser ignorada, mas há anos que ela dá em cima de Coyne, e no entanto ele não se compromete... ninguém sabe o que ele pensa dela, se é que pensa nela quando Helena não está aqui. Ele só se preocupa com Mandala, é sua única preocupação. Eu não sou assim! Deus me livre, relegar tudo a um segundo plano por causa da fazenda! - E por que não? - Debra perguntou. - Eu sempre me revoltei contra o fato de ser o segundo filho, o mais moço, sempre querendo competir, ser igual a ele... mas, pensando bem, eu não quero nada disso, estou bem assim como sou. Eu jamais conseguiria me dedicar assim de corpo e alma à fazenda! Ah, é engraçado como agente cria problemas que não existem! Eu gosto muito de meu irmão, sabia? - Ele disse a última frase com veemência, virando-se impetuosamente e fitando Debra com ardor, como se ela tivesse dito o contrário. - Eu sei que você gosta! - disse ela com suavidade, acostumada ao jeito de Lacey. - E Coyne também gosta de você, aliás todos gostam muito de você. Agora, acho que Coyne é muito complacente com você!
- O quê? Você, Debra! - Ele olhou para ela, perplexo, admirado por ela ter feito tal comentário. Ele podia se autocriticar e criticar o irmão, mas ela não tinha esse direito! - É, não sou tão boazinha quanto você diz... sempre concordando com tudo - disse ela, mantendo-se firme em sua opinião. - Eu sou uma mulher com idéias próprias e às vezes posso ter opiniões diferentes. Agora, se você fosse um homem realmente amadurecido, como está querendo dizer, seria capaz de aceitar uma crítica leal e enfrentar a verdade! - E será que alguém consegue aceitar? - Lacey ergueu-se sentindo-se mais magoado do que nunca. Imagine só, ouvir aquilo logo de Debra, que o adorava há anos! - Vou buscar uma bebida para você, volto já - disse ele, como se fosse fazer uma concessão, embora ela não merecesse. Continuou parado diante dela por um instante. Debra olhou a expressão no rosto dele e sentiu um aperto no coração. Pronto, agora o ofendera mortalmente! Ele jamais a perdoaria por isso! - Não tem pressa. Eu não vou sair daqui - respondeu ela apenas, como sempre escondendo seus sentimentos mais profundos. Mas o que fazer? Ela fora educada assim. Pelo menos em público, jamais demonstrava suas emoções. Mais tarde, na hora da ceia, Lacey quis acompanhar Catherine e Debra até a mesa, mas para seu espanto e tristeza nem conseguiu chegar perto da prima. Ela estava rodeada de rapazes da turma de Coyne. Lacey suspirou resignado e desistiu da idéia, voltando para Debra, que continuava no mesmo lugar, sentada no sofá. Por alguma estranha razão essa noite ela o fazia sentir-se um tremendo mal-educado e grosseiro, o que evidentemente não era a intenção dele. O que havia de errado com Debra, afinal? Ela costumava ser bem mais alegre e animada. Quem sabe ela se animava um pouco com a ceia. A mesa estava suntuosa. Muitas iguarias tinham vindo de avião de Adelaide. Havia de tudo ali: frango assado com amêndoas, casquinhas de siri, camarões e ostras de Sydney - os melhores do mundo -, croquetes de salmão com molho de cogumelos, carne de vaca da própria fazenda, preparada de várias maneiras -, lagosta e queijos diversos. Tanta coisa que era difícil escolher o que comer de uma vez só. Seria preciso voltar à mesa várias vezes e servir-se aos poucos. Lacey olhou para Catherine e teve vontade de esmurrar o cara que falava com ela sem parar, bem pertinho dela. Nesse momento Debra terminou de fazer o prato dele e entregou-o a Lacey. - Pra começar, está bom... - comentou ele, pegando o prato. Ainda continuava com vontade de esmurrar Jon, que conversava com a prima. Sabia que podia confiar em Catherine, ela sabia se cuidar muito bem. Fez um gesto para chamar Joseph, que servia as bebidas, e pediu uma cerveja gelada. Em silêncio, começou a comer. Era a única saída. Debra continuava calada, como estivera a noite toda. Por volta da meia-noite, Jon estava no terraço quando sentiu que alguém lhe tocava o ombro. - Com licença - disse uma voz. Jon se virou com má vontade, mas quando viu quem era seu rosto se abriu num sorriso. - Ora, é claro, Coyne. Fique à vontade. A festa está ótima e Catherine é sensacional. Que prima você tem, hein?! - Depois virou-se para ela. - Não se esqueça que prometeu dançar comigo, gatinha... eu volto pra cobrar, não vou esquecer, viu? - disse, e se afastou, sumindo entre os convidados. - O quê? Que intimidades são essas? Gatinha... Ela passara a noite toda fugindo dele, evitando aquele encontro, mas agora só lhe restava enfrentar a situação. Balançou a cabeça e sorriu, olhando para ele. - Ah, é só um jeito de falar... eu não me incomodo. - Mas eu me incomodo, e muito. - Você não quer dançar? - disse ela, mudando de assunto, tentando evitar outro sermão. - É justamente o que pretendo fazer. Sem mais rodeios ele a enlaçou pela cintura e começaram a dançar. O rosto dele assim tão perto era perturbador. Ela estava em êxtase. O calor do corpo de Coyne provocava uma sensação gostosa e ao mesmo tempo tão violenta que a fez tremer. Ele sentiu o tremor e olhou para ela, que estava com o rosto corado de emoção e os olhos brilhantes, o que a fazia ainda mais bonita. - O que é isso? Aliás, você esteve me evitando a noite toda, gostaria de saber por quê. Será que pode me falar?
- Acho que sim... tomei tantas taças de champanhe... - E recebeu atenção em alta dose. Espero que isso não tenha lhe subido à cabeça também. Foi por isso que me evitou? - Ah, de jeito nenhum, não é isso. Espere aí, que eu vou explicar. - Então explique! Ela teve vontade de acariciar o rosto dele... aquela pele morena e quente. - Há alguns anos - disse ela com ar sonhador -, nenhuma mulher de respeito faria isso, mas eu não pertenço a essa geração, por isso posso dizer que estou terrivelmente apaixonada por você. - Catherine! - disse ele num tom de adulto que repreende uma criança. - Ora, você me perguntou! Ele a apertou de leve e ela se sentiu derreter. - As mulheres são propensas ao romantismo - comentou ele. - Você quer dizer que gostam de sonhar e fantasiar, é isso? - Principalmente as garotinhas, as colegiais. - Ele sorriu. - Eu não sou mais uma colegial, nem uma garotinha - respondeu ela, sentindo a força de uma emoção adulta. - Não, você não é, mas já me disse que tem um problema emocional, talvez carência afetiva... - Ah, como é terrível não ser levada a sério! - Você quer que eu a leve a sério? Ela ergueu o rosto e olhou para ele com olhos súplices, enormes e brilhantes. - Não faça isso comigo, Coyne. Estar apaixonada é como ter tido um colapso nervoso... - Eu acho que é um tipo de colapso mesmo. Ele a olhava com langor, examinando-a detidamente, os olhos negros luminosos. O rosto dela estava tenso, todo seu corpo latejava de amor e desejo, mas sentia um aperto no coração, como se soubesse que era inútil ter confessado seu amor. Ele era um sonho impossível que jamais se tornaria realidade e isso a fazia sofrer. - Mas acho que vou superar... É preciso racionalizar. Imagino que você vai dizer que é assim mesmo que acontece. Será que você me entende? - disse ela, desesperada, tentando parecer fria. - Não muito bem - respondeu ele, rodopiando com ela até o centro do terraço. - Você me deixou preocupado com essa confissão. - É mesmo? - Estava terrivelmente nervosa e perturbada pela penumbra, o perfume de jasmim, e o olhar dele que ela não conseguia entender nem definir. - Nunca pensei que pudesse preocupar você com alguma coisa. Você ficou chateado? - Não é isso... Foi o jeito como você falou. Disse que estava apaixonada, depois disse que isso passa... - Você acha que eu estou meio confusa? - Acho que sim. Todos aqueles rapazes disputando sua atenção, Lacey tão calado e introspectivo que nem parece o mesmo... - Bem, acho que você não pensa em me manter mais tempo aqui em Mandala, pelo visto, não é? - disse ela, tentando parecer displicente, mas no íntimo estava desesperada. Parecia estar sonhando. Não podia estar ali nos braços de Coyne falando aquelas coisas, dançando, sentindo a quentura e o perfume dele. Coyne, tão contido e disciplinado, o rosto bonito e frio, aquele sorriso nos lábios... - Não seja boba. Vamos nos divertir, agora. Eu não tenho muitas oportunidades para me distrair e descansar, você mesma vive me dizendo isso. Sabe como é, muito trabalho todos os dias, você sempre se queixa... agora vou ter de quebrar a cabeça para dar um jeito nessa sua paixão. - Ah, por favor, me ajude. Eu sei que posso contar com você para me fazer entender que é tudo uma bobagem. Senão vou acabar dando trabalho a você. Ela sentiu um misto de frustração e desejo. A mão dele deslizou sob seu cabelo e seguroulhe a nuca. Aquele contato parecia queimar sua pele. - Por favor, não faça isso! - murmurou ela, em desespero. - Sabe, acho que aprendi muito mais nesse pouco tempo que estive aqui na fazenda do que durante toda minha vida. - É, eu noto bem a mudança que houve em você - disse ele, movendo a mão de leve como se a acariciasse. - Há quanto tempo dura essa paixão? - Há uma semana. Desde que você me beijou... e não pense que eu não lutei contra isso! Mas não adiantou nada...
Ele riu impensadamente e ela, que já se sentia ferida, sentiu-se insultada e empurrou o braço dele. - Não vá pensar que foi a primeira vez, porque não foi! - disse ela, ofendida. - Nem para mim, apesar de viver aqui neste deserto. - Você devia se casar, Coyne. - Todos nós acabamos casando um dia. Ela julgou ver um brilho zombeteiro no olhar dele e desviou o rosto com rapidez. - Por que não casa com Helena? Diga-me uma coisa, qual é o papel dela em toda essa história? - Você tem umas idéias infundadas sobre Helena. - Não acho. Mas, enfim, você não me leva a sério mesmo, não é? - Se levasse, você faria desabar o meu mundo. Acima de tudo, Catherine, eu preciso manter acalma. - Ele sorriu. - Você está rindo de mim. - Isso nunca! - exclamou ele, passando a mão de leve no rosto dela. Ela percebeu que o tom era de indulgência e sentiu-se uma completa tola. Não representava absolutamente nada para ele. - De qualquer modo não tem importância - disse ela em tom patético. - Eu gosto do seu sorriso e você não costuma sorrir muito, pelo menos para mim. - E você acha que devo? Lembre-se de que não fez nem dezenove anos. Ela se afastou um pouco e olhou-o nos olhos com ternura. Ah, como queria ser mais velha... ser sofisticada como Helena, saber dar as respostas certas, ser provocante... uma mulher fatal e não a boboca que era. Uma garota que acabara de sair do colégio interno e estava ainda num mundo de fantasias. - Para que se preocupar com a questão de idade? É uma coisa, tão insignificante! - disse ela, colocando os braços em torno do pescoço dele. - Existe um modo de ajustarmos nossos planos, Catherine. - E quais são seus planos? - A música tinha parado, mas ela continuava a abraçá-lo com força. - Eu só sei que uma pessoa pode se apaixonar muito rapidamente. - E esse amor também pode acabar muito rapidamente. Já pensou nisso? - Se me beijasse outra vez talvez quebrasse o encanto - disse ela ansiosa. A música recomeçara e talvez ela o perdesse para sempre, talvez Helena o roubasse dela. Mas ele a enlaçou de novo, apertando-a de leve. Era estranho e maravilhoso. - Eu escolheria um lugar mais tranqüilo e discreto do que este, longe de olhares alheios e de intrigas. Não vai querer que eu provoque uma briga por sua causa, vai? - Que tipo de resposta é essa? - perguntou ela, num misto de apelo e provocação. - Só Deus sabe! - ele murmurou em tom zombeteiro. - Eu bem que gostaria, Catherine, mas você está sob minha responsabilidade. Quando trouxe você para cá prometi tomar conta de você, e essa ainda é minha intenção. - Outro homem não recusaria assim... - ela provocou, imitando o jeito da mãe. - Acontece que eu não sou outro homem! - Coyne retrucou com rispidez. Ela se agarrou a ele como se fosse cair. - Não fique tão bravo! - Mas já estou e não é pra menos! - Ah, por favor, não estrague minha festa, Coyne. Desculpe se eu amolei você. De repente ela começou a tremer. Não era páreo para ele. Por que fora começar aquela história? Agora, como se sairia? Sua cabeça girava. Sentia que ia perder o controle e chorar. Tinha sido emoção demais, champanha demais, Coyne demais. Ela tentara seduzi-lo e não conseguira! Que vergonha! Como se atrevera a isso? Não tinha a menor competência para uma coisa dessas com um homem como Coyne. Entretanto ardia de desejo por ele. O que acontecera com ela? Estava tão indefesa, à mercê de sensações tão fortes. Ela o amava e sabia que não era coisa passageira, entusiasmo juvenil ou qualquer coisa assim. Era para sempre. Mas era preciso se controlar e dominar o enorme desejo de ficar ali nos braços de Coyne, trazer o rosto dele para perto do seu e pousar seus lábios naquela boca sensual e macia. Fechou os olhos e suspirou fundo como se estivesse dizendo adeus e fosse partir para muito longe. Ele jamais iria beijá-la de novo e ela jamais sentiria aquele êxtase novamente. - Abra os olhos, Catherine.
- Não. Estou no escuro... aqui é meu lugar. Além disso, de olhos fechados eu quase posso esquecer você. Eu sei que está chateado e desejando que essa situação jamais tivesse surgido. Ele riu baixo, examinando a melancólica beleza daquele rosto sonhador. - Você está brincando comigo, Catherine. Está se divertindo em bancar alguma heroína de romance, Catherine! - ele repetiu o nome dela com certa exasperação e ela abriu os olhos depressa. - Por favor, desculpe-me... eu perdi a cabeça - disse ela educadamente, olhando-o com desolação. - Eu bem que queria não sentir isso por você. - Não diga mais nada - retrucou ele com suavidade. Por um instante o coração dela se encheu de esperança. Estava com a cabeça inclinada para trás, olhando para ele, o coração quase parando, em expectativa. - Você não sente a mesma coisa, é óbvio. - Eu ainda tenho um pouco de juízo - disse ele, semicerrando os olhos. - A resposta esmagadora que faltava! - disse ela, chocada, com voz trêmula. - Os jovens se recuperam rapidamente. - Você não vai se livrar de mim para sempre! Bruscamente se soltou dele e afastou-se correndo pelo jardim. Ela se sentia uma flor frágil e tensa, mas ainda o ouviu dizer: - Eu sei!
CAPÍTULO VII Mas a noite não estava terminada. Quando voltou para dentro, ainda atordoada e perplexa com o que acontecera, encontrou Lacey e, sem nem saber como, ele começou a lhe contar a história de Emma, a primeira esposa Macmillan que morara na fazenda e tivera um fim trágico. - É sim, você se parece com ela! Desde que você chegou aqui estou tentando lembrar com quem se parece. Agora descobri! - O quê?! - disse Catherine, distraída, vendo de longe Coyne conversando com Helena, que ria alto. - Estou falando de Emma Macmillan, amorzinho. Nosso fantasma. - Ora, deixe de brincadeira! - Não estou brincando! - respondeu Lacey, contente de ver que agora ela estava prestando atenção. - Tem um quadro dela lá em cima na galeria. - Qual deles é o quadro dela? Eu vi todos. - Ela é a mais jovem e a mais loira. Emma tinha apenas dezenove anos quando se afogou. A mesma idade que você, ou quase a mesma. - E por que nunca me falou nisso antes? Sempre pensei que o fantasma que havia por aqui fosse o de um vaqueiro. - Esse é outro. Ele violentou uma mulher nativa e os homens da tribo o assassinaram no terrível Kadaitcha, um ritual de morte. - Você é um grande mentiroso, Lacey. - Estou falando sério, pergunte pra quem quiser. O homem sumiu sem deixar vestígios... e não brinque com essa história de Kadaitcha. Ainda há muitas crendices e superstições entre as tribos, o terror dos espíritos... magia negra, rituais secretos, cântico para chamar espíritos da morte e acabar com uma pessoa... essas coisas ainda existem e não se brinca com elas. Não houve como salvar Gordon, o vaqueiro. Pergunte a Coyne. - Vou perguntar. Pelo menos ele não inventa de me contar histórias de fantasma no meio de uma festa! - Quer ouvir ou não quer? - Como se eu pudesse evitar! - disse ela em tom zombeteiro, mas sorriu. - Não me diga que nunca sentiu algo estranho perto daquele baú que está no seu quarto? Era de Emma, sabia? Foi onde ela trouxe o enxoval do casamento, que durou tão pouco. - Ora, por que eu havia de sentir algo? - Dizem que garotas que têm olhos azuis, assim grandes e brilhantes, geralmente são sensitivas e mediúnicas. - E você acha mesmo que o baú é assombrado? - De dia, não! - disse Lacey com certo sarcasmo. - Se eu fosse você, o tiraria do quarto... uma vez um empregado aqui da fazenda, Paddy, caiu do cavalo e quebrou a perna perto do
pantanal. Nós só o encontramos no dia seguinte e ele estava apavorado. Dizia ter visto a pobre Emma andando entre as árvores à noite. Ele estava com tanto medo que se agarrava em Coyne. O próprio Coyne, que é uma fortaleza, acredita em Emma. Fantasmas existem há muitos anos, amorzinho. Pergunte a tia Ellenor. Ela acredita, por isso nunca fala nela. Vamos subir para olhar os quadros. Você vai ver só como é parecida mesmo. - Não vi ninguém parecido comigo lá! - disse Catherine, meio brava. - Pois eu acho parecidíssima! - Lacey semicerrou as pálpebras. - Vocês duas são loiras e frágeis. De longe até poderia confundir você com um fantasma. - Acho que fantasmas não existem - disse ela sem muita convicção. - Você já a viu? - Não. Mas já senti umas coisas estranhas lá perto do lago. Vamos lá em cima olhar, enquanto os outros se divertem. Catherine não pôde recusar o convite. Na galeria, Lacey acendeu a luz e mostrou o quadro. - Ela me parece totalmente inofensiva - Catherine disse num sussurro. - Por que está falando assim baixinho? - perguntou Lacey, espantado. - Ah, sei lá. Humm... estou me sentindo gelada, aqui; lá embaixo estava morrendo de calor! - Puxa! Que engraçado, eu também estou! - Subitamente enlaçou Catherine pela cintura e puxou-a para si. - Vamos nos esquentar, então. Ah, amorzinho, se você não me beijar eu vou enlouquecer... eu quero você! . - Ora, não seja bobo! - disse Catherine, num tom de superioridade, olhando ainda para o quadro, impressionada com a história. Era um rosto angelical. Devia ter sido horrível ter perdido o filho! Coitada, tão jovem e bonita... - Ah, Lacey, pare com isso! - disse ela com frieza, tentando impedir as carícias dele. - Não, não posso parar... esperei por este momento a noite toda. Ah, como você é linda, amorzinho... não vai acreditar naquela história maluca, eu só queria trazer você para cá. - Mas o baú era mesmo do enxoval de Emma? - perguntou ela, empurrando-o delicadamente. - Acho que sim. Ahh... por que você não sente o que estou sentindo? Ela abanou as mãos, perplexa. - Ora, não me diga que eu caí na conversa mais antiga do mundo! Vamos subir para ver os quadros?! Ele sorriu ante o espanto dela. - Você é muito crédula, esse é que é o problema, confia demais... Foi acreditar na história do fantasma, viu só? - Ah, eu estou apavorada... Ele a fitou com um brilho intenso no olhar. - Quer se casar comigo? - Com você? - disse ela, atônita. - É. Eu tenho dinheiro e podemos morar sozinhos em um lugar só nosso. - Não, Lacey, não é comigo que você deve casar... Fico muito honrada com o pedido, mas não aceito. Agora, com licença, eu vou descer. - Perdoe-me o comentário - disse uma voz firme por trás deles - mas acho que nem deveria ter subido. Por falar nisso, o que estavam fazendo aqui? - Olhando esse retrato de Emma - disse Lacey, chateado. - Mas que falta de originalidade! - retrucou o irmão. - E por acaso significou algo para você, Catherine? - Não entendo o que quer dizer com isso - disse ela, meio atordoada. Às vezes Coyne parecia um estranho. - Dê uma olhadinha no espelho. Olhe só como está! Pálida e de olhos arregalados. Você andou enchendo a cabeça dela com besteira, não foi, Lacey? - Eu não, imagine! - Bem, então vamos descer. Catherine continuava a olhar fixo para Coyne. Ele estendeu a mão e segurou o braço dela. - Olhe, esqueça todas as besteiras e não se preocupe. Aqui em Mandala você está mais segura do que em qualquer outro lugar do mundo. Lacey, mal-humorado, seguiu na frente, pisando duro, e no topo da escada virou-se para olhar para os dois. Catherine parecia estar grudada no chão, os olhos enormes no rosto pálido. Coyne, bem perto, olhava-a de olhos semicerrados e por um breve instante algo passou pela cabeça de Lacey. Desceu correndo e foi procurar Debra.
Quando bem mais tarde a festa acabou e os convidados se recolheram aos seus aposentos, já era madrugada. Catherine sentia a cabeça rodar como se fosse um caleidoscópio de sentimentos e impressões, mas apesar disso adormeceu logo que caiu na cama, um sono profundo e sem sonhos. Era impossível dizer o que a fizera acordar. Um ruído no baú, um suspiro? A única coisa que sabia era que sentira um frio percorrer-lhe à espinha e estava com a mãos geladas e um medo nervoso a invadiu. Era irracional, não conseguia controlar. Queria que amanhecesse logo, pois só assim se sentiria de novo segura e calma. O luar entrava quarto adentro pelas frestas da janela, tornado-o lúgubre. Ela ainda estava atordoada de sono e sentiu um pânico que lhe arrepiou os cabelos. Não conseguia ver direito no escuro, mas de repente teve a impressão de ver algo se movendo no quarto. Estremeceu da cabeça aos pés, o coração batia descompassadamente e, sem conseguir se conter mais, ela, pulou fora da cama agarrada no lençol com que estava se cobrindo. Na sua aflição enroscouse na coberta e caiu. - Coyne! - berrou com terror. Não conseguia pensar em nada mais naquele momento, só que estava morrendo de medo e precisava de alguém. O nome dele saíra instintivamente. - Coyne! - gritou de novo, compulsivamente. Nesse momento a luz se acendeu e a voz dele soou como uma chicotada, arrancando-a do estado de choque. Ele se aproximou e com mãos firmes e gestos bruscos desembaraçou-a das cobertas, ergueu-a do chão e quase a jogou sobre a cama. - Meu Deus do céu, Catherine! O que é isso? Era evidente que Coyne perdera a paciência. Apesar disso, ele a acalmava. - Coyne! - murmurou ela, alvoroçada e trêmula, e afinal relaxou. - Espere um pouco, vou buscar um leite quente com um pouco de conhaque, ou qualquer coisa assim! - disse tia Ellenor com voz preocupada e ansiosa, surgindo na porta. - Puxa vida, tia Ellenor. Eu vi Emma aqui. Fiquei tão apavorada, pensei que fosse morrer. Ellenor estalou a língua, numa atitude incompreensível, e desapareceu, imaginando a cena. Fora Catherine quem escolhera aquele quarto e ficara muito bem ali até então. Mas tia Ellenor... não havia quem a fizesse entrar lá à noite. Ela ajeitou o roupão de seda e desceu. Ainda bem que todos os hóspedes estavam na outra ala da casa e não deviam ter ouvido nada. Ela própria mal ouvira. É verdade que estava ficando um pouco surda, além disso era Coyne que a garota chamara, desesperada, como se só ele pudesse salvá-la. No quarto, Coyne parecia irritado e impaciente. O músculo da face estava contraído, e os lábios apertados. - Eu vi Emma aqui... eu ia morrer - repetia Catherine, tentando se defender. - Não me diga. Olhe aqui, Catherine, são quatro horas da madrugada, está quase amanhecendo... Isso não é hora de fantasma aparecer. - Ah, sei lá a que horas eles costumam se reunir... o fato é que eu vi e estou contente por você estar aqui agora. Você é um anjo, Coyne. Ela falava baixo e rápido, assustada como uma garotinha, os cabelos em desalinho espalhados pelo rosto. - Precisava pular da cama daquele jeito? - Ah, eu estava aterrorizada... Será que você nunca sentiu medo, Coyne? Não, não precisa responder! É claro que eu já sei a resposta. - Você devia estar delirando. - Pode ser que você tenha razão. Por favor, desculpe-me. Foi bondade sua ter vindo. Não sou nenhuma débil mental. Não sei o que aconteceu, se foi um pesadelo ou sei lá... mas pareceu tão real naquele momento. Por que está me olhando desse jeito carrancudo? Eu não fiz nada de mal. - Não é nada, Catherine! - Ele cerrou o punho e socou de leve a palma da outra mão. Logo vai amanhecer. - Ótimo, então vou me levantar! - Não seja boba, fique aí mesmo. - Ele estendeu as mãos e segurou-a pelos ombros, forçando-a a deitar-se de novo. Mas assim que tocou nela, Catherine suspirou. Já não conseguia esconder a força do que sentia por ele. Mesmo numa situação como aquela, em que não havia nenhum envolvimento romântico - pelo contrário, ele estava de mau humor e com uma expressão ameaçadora -, a proximidade dele provocava uma reação violenta em seu íntimo.
- Você não está pensando que eu fiz isso de propósito só para atrair sua atenção, está? perguntou ela, sentindo a iminência de mais um desastre. - O que você me diz? - Eu já disse... eu vi Emma. Ela estava bem ali! - disse ela, com voz nervosa. - Catherine! - Você sabe muito bem que há um mistério sobre ela! - O que sei é que Lacey andou enchendo seus ouvidos com histórias bobas. - Aquele baú lá não foi de Emma? - insistiu ela, como se ele estivesse tentando esconder um segredo dela. - Olhe, mocinha, já está indo longe demais! - Ele desviou o olhar. - Foi ou não foi? - Foi, sim, e daí? Se você não gosta dele, posso tirá-lo daqui. - E levá-lo para onde? - disse ela, sentando-se na cama, chegando o rosto bem perto do dele. - Para seu quarto? Para o de Lacey? Aposto como tia Ellenor não vai querer no quarto dela. - Mas quanta besteira está falando! - Entretanto havia uma certa tensão nele, que ela sentia. - Não é besteira, não. - Ela arregalou os olhos. - Se você sabia da história, por que não me contou? - Era só o que faltava, eu ficar contando histórias de fantasma para você! Pode tirar o cavalinho da chuva que não vou ficar alimentando sua fantasia. - Ah, não é possível! - Ela balançou a cabeça com violência e os cabelos lhe bateram nas faces, cobrindo seu rosto e a mão dele que a segurava pelo ombro. - Como se eu já não soubesse! Coyne, será que você nunca perde o controle? Tem que ser sempre tão sóbrio? - Pare com isso! - Não posso. É algo mais forte do que eu que me impele! - Ela se deixou cair sobre a cama, em desalento. Ele a puxou para seu lado, num gesto meio brusco, o rosto severo, um brilho de alerta no olhar, a boca num esgar indefinível. - Fique quietinha e comporte-se! Diante da força do desejo que a proximidade dele provocava, o pavor que Catherine sentira do fantasma ficou insignificante. Suspirou fundo e encostou o rosto no peito dele. O roupão sobre o corpo nu estava entreaberto e ela sentiu na face a pele quente dele. Era um deleite tão grande que a deixava trêmula. - Coyne! - murmurou ela, roçando os lábios no peito dele. - Não faça isso - protestou ele num sussurro. - Até onde você acha que posso agüentar? Ele puxou de leve o cabelo dela. - Catherine, sente-se direito! - Havia uma certa frieza na voz dele que chegava a ser brutal. - Você ouviu o que eu disse? - Não - respondeu ela baixinho, depois de instantes em silêncio. - Pelo amor de Deus! - Ele a segurou pelos ombros e obrigou-a a endireitar-se, mantendo-a afastada dele. - Saia dessa, Catherine! Você está tornando as coisas difíceis para nós dois, Catherine! - Ele contemplou o rosto bonito e corado dela e a sacudiu de leve, para que recobrasse a razão. - Eu sei, eu sei! - replicou ela convulsivamente, jogando a cabeça para trás, os olhos cheios de lágrimas. - Mas não me importo, o que posso fazer? Pode me machucar quanto quiser, até me deixar roxa... não me importo. Só então ele percebeu que a estava segurando com muita força e afrouxou os dedos. - Desculpe... e não vá chorar, por favor! Ela enxugou as lágrimas com as costas da mão. - Puxa vida! Que coisa! - Suspirou fundo, tentando se controlar. Ela não podia com Coyne, era melhor se resignar e manter a dignidade. - Mil perdões, Coyne. Parece que estou em transe, não sei o que houve comigo. - A culpa é do fantasma que a deixou assustada - disse ele com um meio sorriso e acariciou-a na nuca. - Ah, Catherine, o que vou fazer com você! E onde é que se meteu tia Ellenor? Que diabo! - Não precisa fazer nada - disse ela, com ar trágico. - Eu vou embora. Vou renunciar a você. - Droga! - A voz dele soou ríspida e tensa. A mão dele continuava sobre a nuca de Catherine e os dedos se moviam numa carícia contida. Aquele contato era hipnótico e aos poucos apagava todo o resto.
- Ah... Coyne... não pare. - Sua feiticeirinha, não diga mais nada! - Ele se ergueu num movimento brusco e afastouse dela com certa irritação. Era seu último recurso. - Levante-se e vista-se - ordenou ele com severidade. - Você não disse que queria se levantar? Pois então. Vamos tomar um café e sair a cavalo por aí. Estou com claustrofobia, não consigo ficar mais um minuto aqui dentro! Catherine olhou para ele parado, ali em seu quarto, os olhos negros cintilando com um ardor que ela jamais vira. - Ah, sua bandida! Acho que você está se divertindo comigo - disse ele, olhando-a fundo nos olhos. - Não estou não! Eu amo você! Juro que é verdade. - Sua bobinha! - Ele estendeu a mão e afagou o rosto dela com brandura. - O que sabe você do amor? - Sei que amo você e isso basta! A expressão do rosto dele se suavizou. - Você imagina que me quer, mas, se eu fizesse amor com você pra valer, você iria gritar de novo. Só que desta vez chamando tia Ellenor para pedir socorro! Por falar nela, onde é que se meteu? - Por que não experimenta para ver o que acontece? - disse ela, com ar provocante e sem reservas, atendendo ao apelo de seu corpo. - Se eu gritar ninguém vai ligar. Ele a contemplou com os olhos brilhantes. - Você sabe muito bem que eu gostaria muito, mas tenho a cabeça no lugar! Agora eu vou indo! Chega, Catherine. Ele virou-se e dirigiu-se para a porta com andar firme e decidido. Ela ficou olhando as costas dele como se quisesse gravar cada detalhe e um sorriso misterioso lhe aflorou aos lábios. - Aonde iremos? - perguntou ela. - Até as colinas... sei lá, qualquer lugar! - respondeu ele, com voz tensa. Depois saiu e encontrou Ellenor que vinha vindo. - Puxa, por que demorou tanto? Agora não importa... Olhe, Catherine e eu vamos tomar um café rápido e vamos sair a cavalo. - Mas você não acha melhor ficar aqui, minha filha? - perguntou Ellenor, entrando de mansinho no quarto e fitando a garota com os olhos apertados de míope. - Quero dizer, você não descansou quase nada. Ainda pode dormir outra vez antes que amanheça. - De jeito nenhum! - disse Catherine com veemência. - Eu vou com Coyne. - E eu não posso entender por quê! - disse ele em tom jocoso, olhando para Catherine que ainda estava na cama. Num gesto ágil e elegante ela se levantou depressa. Não havia um minuto a perder. Ele continuava a contemplá-la com o olhar estranho, onde parecia haver uma certa perturbação que ela não entendia bem. Ele nunca a olhara daquele jeito. - Ah, não seja assim, Coyne! - disse ela, puxando os cabelos para trás. - Assim como? - Ele a olhava como se a estivesse acusando de algo. - Bancando o genioso, o perverso. - Eu é que sou perverso, é?! Sei. Olhe, Catherine, se quer sair mesmo é melhor andar logo, antes que eu mude de idéia. - Só se você prometer que vai ser bonzinho comigo. Inesperadamente, ele sorriu. - E por que não haveria de ser? Afinal, meu principal papel é tomar conta de você. - Não vai começar com essa chateação de novo. Você me entendeu muito bem. Ele se virou para a tia. - Viu só o que foi aprontar, tia? A idéia de trazer Catherine para Mandala foi sua. - É, mas você bem que gostou - disse ela e lançou um sorriso conspirador para Catherine. Coyne olhou para as duas, suspirou e saiu do quarto. O dia raiou com uma luminosidade mágica. Uma brisa suave soprava espalhando as pequenas nuvens douradas e cor de púrpura enquanto o sol surgia no horizonte com uma rapidez impressionante, até que tomou conta do céu, com incrível pujança e beleza, brilhando esplendoroso sobre os homens e a terra. Quebrou-se o profundo silêncio da madrugada. E os pássaros todos acordaram, voando em bandos, misturando cantos e trinados dos mais variados tipos.
Inexplicavelmente os olhos de Catherine se encheram de lágrimas. Sentia-se invadida por uma onda de euforia que às vezes vem após um período de grande tensão. Estava como que enfeitiçada por aquela região, obcecada, tanto quanto Coyne. A descoberta encheu-a de emoção, era como um segredo só seu, um elo indestrutível que a ligava a ele. Os dois cavalgavam lado a lado em silêncio, mas não um silêncio pesado, constrangedor, e sim um silêncio profundo de quem se comunica sem palavras. Bastava aquele maravilhoso amanhecer, o incrível balé dos pássaros e o brilho do lago. A brisa suave... o perfume das flores... era uma felicidade imensa. Os cavalos trotavam sobre a relva macia, entre as flores campestres. Àquela hora da manhã o ar era límpido e a paisagem nítida, ainda não assolada pelas miragens que surgiam no horizonte vermelho entre as dunas de areia, distorcendo a realidade. O cenário era idílico e era maravilhoso estar ali, na companhia de Coyne, sentindo a brisa fresca e perfumada. Uma enorme borboleta azul, de asas aveludadas, passou voando e desapareceu na distância. Ela não sentia o menor cansaço; os olhos estavam brilhantes e claros como se tivesse dormido normalmente a noite toda. Ao contrário, sentia-se cheia de energia e disposta a passar o dia todo cavalgando e ainda continuar noite adentro. À esquerda havia um enorme pasto onde o gado ruminava preguiçosamente, mais adiante uma avestruz passou correndo, desajeitada. Catherine contemplou Coyne furtivamente e sentiu que o entendia a fundo. Ele se dedicava com paixão àquela terra que era sua. E por que não? Era uma terra cheia de força e vitalidade, de uma beleza rude que agora era suavizada pelo tapete de flores do deserto que cobria a terra vermelha, das quais a mais conhecida era a margarida. Mas havia muitas outras de várias cores e de perfumes suaves. As chuvas da primavera tinham sido boas e o solo agradecia, ofertando aquela beleza sem par. Através da alameda de acácias Catherine via os corpos nus, morenos e brilhantes, dos nativos que se banhavam nos lagos, rindo e espirrando água como se fossem crianças brincando. As árvores floridas projetavam sombras mágicas no chão. Ela arrancou uma flor cor-derosa de um galho mais baixo e prendeu-a na blusa. Parecia uma azaléia, só que não era tão fina. Agora estavam saindo da região das árvores, atravessando o velho pasto, em direção às colinas. Ali começava o deserto e terminava a suavidade; era a morada dos grandes lagartos, besouros e cangurus. Os cavalos subiam a trilha, devagar e cautelosos, fazendo rolar encosta abaixo os pedregulhos soltos. Catherine jogou para trás o chapéu, que ficou pendurado nas costas. Era delicioso sentir o vento no rosto e nos cabelos e por enquanto ainda não precisava da proteção do chapéu. Chegaram a uma região plana que não era ainda muito alta, mas já proporcionava uma vista surpreendente de Mandala, cortada por rios e cercada pelo deserto, um outro mundo ainda mais diferente de tudo o que ela já conhecera. Coyne fez seu garanhão negro se aproximar da potranca que Catherine montava, e inclinou-se para a frente. - Que tal, está cansada? - Nem um pouco Ele a olhou nos olhos. - Isto é surpreendente! Quantas horas você dormiu esta noite? - E você? Também dormiu pouco... - Ela sorriu para ele. - Ah, mas é diferente! - Bem diferente! - Ela suspirou fundo, um som suave e sensual. Ele olhou por cima da cabeça dela, para uma acácia que crescia solitária entre as pedras, proporcionando sombra. - Vamos deixar os cavalos aqui. Quero lhe mostrar uma coisa... isto é, se tivermos sorte! Ele sorriu descontraído, um sorriso lindo, e ela se iluminou de felicidade. Sentiu de repente que o seguiria cegamente até o fim do mundo. Coyne estendeu a mão e segurou-a pelo pulso para conduzi-la pela encosta. Ela puxou de leve o braço e deu a mão para ele. Os dedos se entrelaçaram e Catherine sentiu uma leve pressão que a deixou com as pernas moles. Diminuiu o passo, e ele parou e a contemplou com um olhar estranho, difícil de definir. Em seguida continuaram a andar. O vento fazia tremular os cabelos loiros dela, afastando-os do rosto. Depois da beleza suave das planícies, as colinas eram aterradoras. Não havia vegetação, nada crescia ali, e era a morada das águias que às vezes passavam voando perto deles. Continuaram escalando até que ele parou de novo e encostou-a numa pedra grande e firme. - Espere aqui. Não tem perigo. Feche os olhos um instante!
Catherine obedeceu sem discutir, virou-se de costas e apoiou-se na pedra, escondendo o rosto. Nem queria olhar para baixo, tinha vertigens de altura. Ficou ali esperando e em pouco tempo ele voltou e parou atrás dela. Catherine se virou e estendeu a mão para ele, que a segurou e a puxou para si, amparando-a com o braço na cintura dela. - Não precisa tremer. Você está segura, não tem perigo! - disse ele, perto de seu ouvido. - Não é com a minha segurança que estou preocupada! - disse ela e se afastou para que ele não lesse a emoção em seu rosto, e então deparou com a flor mais delicada e bonita que já vira, brotando inexplicavelmente naquela região árida, entre rochas. Tinha quatro pétalas rajadas de branco e amarelo-esverdeado. Foi ele quem quebrou o silêncio: - Os botânicos a chamam de Cleome oxalidea, mas eu a chamo de "flor da tempestade". Não posso entender como ela nasce nessa rocha dura... é inexplicável, mas ela se adapta perfeitamente a essa região árida. Que nem você! - acrescentou ele, olhando-a de um jeito perturbador. - É linda! - disse ela, corando. Catherine chegou mais perto e ajoelhou-se diante da flor, para admirá-la melhor. Era delicada e fresca, em tons pastel, sob aquele sol abrasador. Era tão inverossímil quanto um floco de neve naquela região. Com muita delicadeza ela encostou o dedo em uma das pétalas, como se quisesse sentir que era real, ao mesmo tempo em que temia feri-Ia. - Nunca me senti tão feliz em toda minha vida! - disse ela, e era a mais pura verdade. Ele se aproximou com um movimento brando, olhando para ela de um jeito enigmático. - Levante-se, Catherine! - disse, estendendo a mão para ela, que se ergueu e ficou diante dele, os cabelos dourados brilhando ao sol, os olhos cintilando. - Você é uma menina muito bonita. Quando for uma mulher vai ser linda! - Eu já sou uma mulher, você é que não quer admitir isso! - Ela o contemplou com ar sonhador. - Eu sei de cor cada pedacinho de seu rosto... os olhos negros, os cílios, sobrancelhas espessas que deixam você com um ar feroz quando está carrancudo, a maçã do rosto saliente, o queixo quadrado, o nariz arrogante, os dentes branquinhos e a curva de seus lábios! - E o que mais você vê aí? - Coyne sorriu, quase com escárnio. - Meu mundo! - respondeu ela, séria. - Palavras, Catherine... elas são fáceis de dizer. O que você pode saber do mundo com apenas dezoito anos? - Isso é uma pergunta ou uma queixa? Por acaso você se preocupa com o fato de que eu o perturbo, Coyne? - Me preocupo, sim. Você dá licença? - Mas em agosto vou fazer dezenove anos - disse ela com paciência. - Você tem algo mais contra mim, além da minha idade? Isso eu não poderia suportar! - O rosto dela começava a refletir angústia e ansiedade. - Eu sei que uma garota assim tão jovem muda depressa. Os sentimentos não são duradouros nessa idade! - disse ele com certo cinismo. - Não acredita que eu ame você, não é? - Não, não acredito. - De repente ele mudou de atitude. - Como é que posso ter certeza disso, Catherine? - Se tivesse certeza seria diferente para você? - Estamos girando em círculo - disse ele, ligeiramente irritado. Ela tentava achar palavras adequadas. - Pode dizer e fazer o que quiser que não vai conseguir me mudar. E vou fazer com que você me ame também! Nem que tenha que pedir para uma das mulheres nativas me preparar essa poção mágica do amor... o Mulkaree! - Essa é a magia da morte, Catherine! - disse ele, com um sorriso irônico. - Então é o Mingari - corrigiu ela. - Vou pedir para fazerem para mim. - E por que acha que precisa recorrer a isso? - Pronto, já ficou bravo. Mas que coisa, eu não posso falar nada. Por que você é tão hostil comigo? É só por que tenho dezoito anos? - Não é com você que eu sou hostil, é com a situação! Eu não pretendia que surgisse tal situação. - Apesar de você não querer, a situação aconteceu e está aí! E eu já tenho idade suficiente para saber o que quero. Sei me cuidar muito bem. - Tudo besteira.
- Ah, não fale assim! Até parece um desses machões, um porco chauvinista, e você não é isso! Eu já tenho idade para atrair sua atenção. E até para ter um filho, se quiser. - Meu Deus! - disse ele com ironia. - O que há de errado com você, Coyne? - Catherine quase gritou,sentindo-se terrivelmente frustrada. Estar assim tão distante dele, magoava-a muito. - O que é? - É você! - disse ele bruscamente, puxando-a para si e abraçando-a. Não pensava mais na inocência ou na fragilidade dela. - É você, Catherine. Isso é o que há de errado comigo... você! Ela ouviu a respiração ofegante dele e um instante depois Coyne se apossou de seus lábios. Foi um momento mágico, mas, apesar de todo seu desejo e de tudo o que imaginava, não estava preparada para a fúria avassaladora e a paixão adulta daquele beijo. Era um beijo sensual e exigente que parecia sugar sua alma. Aos poucos o susto inicial foi passando e ela foi se deixando levar. Entreabriu os lábios e entregou-se às carícias, correspondendo instintivamente. Sua respiração ficou ofegante também e o resto do mundo se apagou. Dentro dela era como se um vulcão tivesse entrado em erupção. Coyne a tratava com ardor e delicadeza ao mesmo tempo. Entregou-se nas mãos dele, confiando cegamente. Ele era seu dono, podia fazer dela o que quisesse. Estava em êxtase. Abandonou-se num langor total. De repente, de seus olhos fechados, começaram a escorrer lágrimas que desceram até sua boca e salgaram os beijos. Coyne afastou o rosto abruptamente e a contemplou. Ela continuava abraçando-o. - Meu Deus! - murmurou ele num tom cheio de emoção, que ela interpretou como ardor, mas ele a afastou de si, depois começou a enxugar as lágrimas do rosto dela. - A culpa é minha, não é? Eu não faço nada direito, mesmo! - Não, Catherine, não é nada com você, é comigo. Eu estou com medo! - disse ele meio rindo, mas muito sério. Passou os dedos de leve sobre os lábios dela, que estavam trêmulos. Eu estava agindo sem pensar, perdi o controle... mas agora estou lúcido. Você é jovem demais para mim. Não posso fazer isso com você. Há um mundo todo para você explorar, coisas para fazer. Você não viu nada além das paredes do colégio de onde acaba de sair, não fez nada, não experimentou outras coisas! Eu estou com trinta e dois anos e já fiz tudo o que queria. Já viajei bastante. Agora minha vida é Mandala. Como posso pedir a uma criatura frágil como você para dividir comigo essa responsabilidade? Você é pouco mais que uma criança, ainda nem se conhece direito... - Ora, não precisa ficar inventando desculpas ridículas - disse ela, frustrada. - A verdade é que simplesmente você não me quer. - É claro que eu quero você! Eu desejo você! - Pois então?! - Ela lhe lançou um olhar cálido e lânguido. Não era possível que ele fosse rejeitá-la depois de havê-la beijado e acariciado daquele jeito! Mas foi o que Coyne fez. O rosto dele voltou a assumir a expressão habitual, séria e controlada. - Se você não pode ou não quer considerar as conseqüências de nossos atos, eu devo fazer isso! Você é uma garota bonita e inteligente, Catherine. Talvez a mais linda que eu já vi. Podia ter o que quisesse, conquistar quem quisesse, mas você precisa se conscientizar de seu potencial e descobrir o que o mundo tem para lhe oferecer. Há vários tipos de amor, várias fases... é como um aprendizado e você ainda está no primeiro amor. - Pena que tenha sido logo você! - disse ela com raiva, mas logo se arrependeu. Desculpe, Coyne, não é verdade. Eu não poderia amar outra pessoa que não fosse você. Eu o amo tanto que até me sinto sufocada, às vezes. - Chega de falar, tagarela - disse ele em tom brincalhão e abraçou-a de novo, com certa compaixão. Ela encostou o rosto no peito dele e o abraçou também. - Quando estou com você não tenho medo de nada. - Nem de fantasmas? - ele brincou, passando o queixo no cabelo dela. - Nem de fantasmas. - Ah, minha querida... - Você falou sério? - perguntou ela, erguendo a cabeça. - O quê? - Querida! Ele sorriu. - É claro que sim. Eu gosto de você, Catherine, é um sentimento muito especial...
- Mas não amor. Você nem está comigo, nem contra mim, em suma é isso, não é? Quer ficar de fora! - É isso mesmo - disse ele secamente. - Você é muito racional e não quer se comprometer, isso sim! - Ela encostou de novo o rosto no peito dele. - Mas já está comprometido, porque eu não posso viver sem você! - Catherine - ele disse e puxou de leve o cabelo dela, fazendo-a encará-lo. - Acho que é melhor irmos embora. - Posso pegar uma "flor da tempestade" para mim? - Se você arrancá-la do pé ela morre em menos de um minuto. - Isso não lhe diz nada, Coyne? - provocou ela. - Eu também posso morrer se você arrancar minhas raízes. Ele a segurou pelos pulsos. - Você vai acabar ganhando essa discussão. Vamos embora! O tom era decisivo e não admitia contestações, por isso ela o seguiu, apreensiva. Como é que ele podia mudar tanto assim? Ela precisava se mostrar mais adulta diante dele. Não podia agir como uma criança abandonada, em desespero. Precisava provar a ele que era madura... mas como? Durante o caminho de volta, enquanto desciam até a planície, ela foi atormentada por dúvidas e preocupações. Agora Coyne a veria como um problema incômodo. Pela expressão séria e distante do rosto dele ela podia ver isso... Estragara tudo. Quando ele afinal falou de novo ela o olhou, ansiosa. - Você faz uma coisa por mim? - perguntou ele. - É claro, o que você quiser! Qualquer coisa, você sabe. - Espero que sim! - Os olhos dele refletiam dúvidas. Ele estendeu a mão e segurou as rédeas da potranca, fazendo-a parar. Os dois cavalos ficaram bem perto e começaram a comer a relva. - Você é jovem, mas tem muita compreensão e compaixão, Catherine - começou ele em tom grave. - Josh Armstrong está condenado, ele tem câncer. Quando ele morrer, Debra vai ficar desolada. Já conversei com ele sobre isso e prometi ajudá-lo. Por isso, quando chegar a hora, quero que você e tia Ellenor levem Debra para fazer uma viagem de navio pelo mundo. Parece estranho e triste falar sobre isso agora, mas é inevitável e vai acontecer logo. Josh tem pouco tempo de vida. Ele é meu amigo e Debra o adora. Todos nós sabemos que ela vai precisar de ajuda quando ele morrer. - Sinto muito - disse ela -, eu percebi que ele parecia muito mal, mas não sabia que ia morrer tão logo. As filhas sabem? - Josh não contou a ninguém. Além do médico e do pessoal do hospital, só você e eu sabemos. Não contei nem a tia Ellenor, embora ela deva desconfiar. Debra vai precisar de nosso apoio total e vai ser bom para ela sair daqui. Tia Ellenor sempre quis fazer essa viagem, mas ela é muito tímida para ir sozinha, você sabe. Ela vai ficar feliz por ter a sua companhia e para Debra você vai ser muito útil. - E com isso você me afasta de seu caminho, não é? - disse ela, sentindo um nó na garganta. - Só por algum tempo. Você fará isso? - É claro que sim - respondeu ela, desolada com sua infelicidade, embora sentisse também pena de Debra. - Ora, não fique assim. Parece que está sendo abandonada! Não é nenhum castigo, Catherine. Vai ser uma grande aventura... uma ampliação de sua personalidade, vai adquirir novos conhecimentos, fazer amizades. Temos parentes em toda parte... na Inglaterra, na Escócia, na Suíça, na Alemanha. Você vai gostar, vai ver só. Viajar de navio é maravilhoso! Talvez se apaixone uma dezena de vezes antes mesmo de cruzar o Equador. Ela se sentiu mortalmente ferida. A dor era insuportável. Perdê-lo logo agora, que acabara de encontrá-lo! - Pode ser que nunca acredite em mim, que diga que não temos nada em comum, mas eu amo você! Posso ir para qualquer lugar do mundo, conhecer todos os homens da face da Terra, que não vou esquecê-lo! Pode ser até que eu me apaixone, mas nunca vou amar ninguém assim com essa força! Nunca mais! - Primeiro descubra, Catherine, e tenha certeza. - Está bem. Não precisava me mandar para o outro lado do mundo para se livrar de mim! Catherine olhou para ele. Amava-o tanto! Precisaria se acostumar a ficar longe dele... talvez fosse para sempre. Talvez ele estivesse rezando para que nunca mais se vissem de novo. E Helena? O que poderia acontecer enquanto estivesse viajando? Ele ficaria sozinho e a
outra estaria livre para conquistá-lo! Seus olhos se encheram de lágrimas, que ela se esforçava para conter. Não queria chorar na frente dele. - Posso ver outros céus, mas nunca vão ser tão bonitos quanto este. Posso conhecer outros homens, mas nunca vou desejar ninguém como desejo você, e você sabe disso muito bem, Coyne! Ela se inclinou, arrancou as rédeas da mão dele e, raivosa, instigou a potranca para que andasse. Ela se assustou, empinou um pouco, mas Catherine se segurou, depois disparou a galope. Queria sumir dali, estava com ódio de Coyne. A primeira dor de amor era lancinante, dilacerava. - Catherine! - Ora, vá pro inferno! - gritou ela, furiosa e magoada, enxugando as lágrimas, com uma terrível sensação de derrota e fim de mundo.
CAPÍTULO VIII De repente, no fim de fevereiro, tudo mudou, Josh foi levado para o hospital, já no último estágio de sua doença. Estava sofrendo tanto que a morte para ele seria uma bênção, o que aliás não estava muito longe. Ele já estava em estado de semi-inconsciência. A família sofria e estava desolada ante a iminência de perdê-lo, mas todos precisavam entender que ele afinal descansaria de tanto sofrer. Ficou decidido que Debra e Helena ficariam em Mandala, comunicando-se constantemente com o hospital. Coyne colocou um avião da fazenda à disposição delas para que fossem para lá assim que fossem chamadas. As duas sabiam pilotar e tinham brevê, mas no momento não estavam em condições de fazer nada sozinhas. Coyne cuidaria de tudo. O sofrimento de Josh despertara grande solidariedade entre eles, um enorme companheirismo e espírito de camaradagem que eram alentadores. Lacey estava em Amaroo, ajudando, e mostrava um tal altruísmo e capacidade de trabalho que todos reconheceram que ele afinal já era um homem maduro e responsável. Estava animado e cheio de coragem, como nunca estivera em Mandala, e demonstrava grande capacidade para administrar e tato para lidar com os empregados nativos, que ainda viviam em regime tribal. Era necessário e muito importante que se respeitasse a cultura deles. E em tudo isso Lacey estava se saindo maravilhosamente bem. A situação fizera aparecer a melhor parte de seu caráter. Já com Helena, dera-se o oposto. A crise fizera aflorar os piores aspectos de sua personalidade, um deles o extremo egoísmo. Estava impaciente por ter que ficar tanto tempo em Mandala, naquele fim de mundo, privada dos prazeres que encontrava em suas constantes viagens. Enquanto a irmã estava triste e resignada, ela estava tensa e mal-humorada. Era intolerável ficar ali, esperando a morte do pai. Afinal não podia mesmo fazer nada por ele... ele iria morrer, de qualquer jeito. Por que ficar ali perdendo seus melhores dias? Ela que estava no auge de sua vida, bonita e saudável, ter que se privar da atenção de seus admiradores... Estava parecendo um animal enjaulado tentando escapar por alguma brecha. Ellenor não sabia mais o que fazer com ela. Catherine e Debra não estavam lhe dando o menor trabalho, ao contrário, estava até orgulhosa delas. O pior para Helena era que não havia mais divertimento, ninguém tinha mais motivo para rir. Não havia mais festas nem comemorações, nem oportunidades para ela brilhar. Ela quase nem via Coyne. Mais do que nunca ele estava atarefado e isolado em suas preocupações. Mantinha-se distante. Debra também. Helena nunca entendera a irmã, nunca houve comunicação entre elas e agora era muito tarde para tentar. Debra era tão estranha. Por que se contentava com tão pouco? Por que trabalhava tanto? Por que era tão sisuda e compenetrada? E, o que era ainda pior, por que mostrava tanto afeto e gratidão a Ellenor e àquela garota, Catherine, e com ela que era irmã não se entendia? No íntimo, Helena estava furiosa e enciumada. Era evidente que Catherine estava desesperadamente apaixonada por Coyne. Os dois mal se falavam e na verdade até parecia que se evitavam mutuamente, mas Helena sentia que havia algo entre eles. Será que Coyne estava dando bola para aquela garotinha boba de colégio de freiras? Será que ele correspondia? Tal pensamento a enchia de inquietação. Várias vezes, flagrara Coyne contemplando Catherine à distância, pensando que não estava sendo observado. Talvez estivesse entusiasmado. Todo homem gosta da beleza e não havia como negar que a garota era muito bonita. Isso deixava Helena quase doente de raiva, inveja e
ciúme. Era insuportável ver, dia após dia, aquela jovem cheia de vitalidade, irradiando beleza, circulando pela casa com suas roupas simples mas elegantes... coisa fina e cara. Por isso era inevitável que Helena quisesse atingi-Ia, dando vazão a toda sua agressividade contida. Mas é claro que não podia ser diante de ninguém. Helena pretendia encurralar Catherine bem longe de todos e dar a ela uma lição! Imagine se ela ia se render assim tão fácil! Ceder terreno à outra... essa não. Mandala seria dela! Ela é que reinaria naquele império. Imagine se ia desistir de Coyne, então! Ela o amara durante toda a vida. Os outros nunca significaram nada para ela. É verdade que tivera outros homens, mas e daí? A mulher tem tanto direito quanto o homem de ter seus casos, suas aventuras! Não era nada vergonhoso. Tivera atração por muitos deles e uma relação afetiva, é claro, mas amor mesmo só sentira por Coyne. E agora estavam querendo passá-la para trás. Não podia ficar parada, esperando que as coisas se resolvessem sozinhas! Precisava ter uma conversinha com aquela menina e dizer-lhe umas poucas e boas. Ela ia ver só... depois que ouvisse o que tinha para lhe dizer, ela não atrapalharia mais seus planos! Helena apenas esperava a ocasião certa, precisava ser escolhida com muito cuidado. Estava cercada de preocupações por todos os lados! Pela primeira vez em sua vida sentia-se prisioneira. Não podia fugir do problema. É claro que amava o pai, mas aquilo tudo era um peso muito grande para ela. Aquele mundo sombrio de tristeza e preocupações em que estava sendo obrigada a viver lhe era totalmente estranho. O que ela mais desejava lhe estava sendo negado. Coyne estava muito distante, sem a menor disposição para flertes e namoricos. E ela precisava aceitar aquilo sem forçar nada, pois sabia que ele estava assim por preocupação. Ele gostava muito de Josh e o respeitava como se fosse seu pai. O jeito era esperar. Mas quanto a Catherine, não precisava perder tempo esperando. Aquela loirinha frágil tinha que ouvir a dura realidade o quanto antes! Coyne era seu! E para conservá-lo ela lançaria mão de qualquer estratagema. Helena encheu-se de coragem. Não iria ser passada para trás, principalmente por uma garotinha que ela desprezava! Pela manhã Helena decidiu pôr seu plano em ação. Catherine estava lá perto do lago, tentando fotografar aves aquáticas. Ainda não conseguira captar nenhuma, elas eram ariscas e fugiam ao menor movimento, mas pelo menos podia observar o movimento e a variedade delas. Não se cansava de admirar. Ela adorava pássaros. Lembrou-se dos passarinhos que irmã Ângela tinha na gaiola, lá no colégio. Eram lindos, mas era triste vê-los engaiolados. Ali sim é que era bonito vê-los, livres e integrados na natureza, como era certo, enfeitando o céu e as árvores com suas plumagens coloridas. Todos iam beber água ou banhar-se no lago, sempre alertas para não serem apanhados pelos falcões que sobrevoavam em busca de caça. Havia papagaios, araras e cacatuas, com sua magnífica plumagem branca. Catherine protegeu os olhos com as mãos e olhou para o céu de novo. Lá estava o ameaçador falcão voando em círculos e preparando-se para atacar. Ela correu, batendo palmas para afugentar as pequenas aves que se banhavam no lago. Imediatamente todas voaram e foram se esconder nas árvores mais próximas. Ah, eram tão lindas e delicadas, como poderiam acabar servindo de alimento aos falcões?! Pobres bichinhos inocentes! Pelo menos adiara o destino delas por algum tempo. O falcão continuava à espreita. Estava ocupada nessa atividade de protegê-los quando viu Helena caminhando decidida em sua direção, os longos cabelos brilhando ao sol. Helena emagrecera um pouco e estava ligeiramente abatida, com olheiras. - Acho que você sabe que é inútil o que está fazendo, não é? Além de ser uma besteira! ela foi dizendo sem preâmbulos, aproximando-se de Catherine, de cenho franzido. - A natureza é sábia e mantém um equilíbrio ecológico. Os falcões só caçam os mais velhos e os mais fracos do bando, se não fizessem isso o céu ficaria coalhado de pássaros. - Eu sei, mas prefiro que isso aconteça longe de meus olhos - disse Catherine, tentando parecer gentil. Olhou para o lago e explicou o que estava fazendo ali, mais por não ter o que falar para quebrar o pesado silêncio. - Estava tentando fotografar algumas aves, mas não tive sorte! Helena jogou os cabelos para trás, num gesto irritado de quem não está com paciência para conversas amáveis e superficiais. - Vamos até a beira do lago. Lá é mais fresco. Quero conversar com você. - Está bem, vamos - respondeu Catherine gentilmente, sem saber que estava caindo numa armadilha. Não tinha a menor idéia do que iria acontecer, embora tivesse percebido que Helena estava esquisita e de mau humor. Mas atribuiu essa atitude à situação criada com a doença do
pai e julgou que ela estivesse procurando companhia. Talvez necessitasse desabafar com alguém, conversar um pouco, se distrair. Sabia que Helena não gostava dela, mas não imaginava que a outra a odiasse e nem lhe passava pela cabeça que pudesse querer lhe causar algum mal. Pensava apenas que havia uma antipatia superficial entre elas, que talvez até pudesse ser desfeita se elas se aproximassem e procurassem se conhecer melhor. Caminharam em silêncio para perto da água, abrigadas pela sombra das acácias. Era uma manhã quente, sem brisa, e o único lugar mais fresco era sob as árvores. Catherine olhou para o lago, a vegetação em volta, as flores, as árvores, as aves, e respirou fundo, enlevada. - Ah, que maravilha! - disse, como se pensasse alto. - Eu amo este lugar! Essa amplidão, esse silêncio. Esses pássaros maravilhosos, o nascer e o pôr-do-sol, as cores do céu, esses jardins do deserto... quilômetros e quilômetros de flores silvestres, e esses cânticos suaves das mulheres nativas que agente ouve ao longe. - E não se esqueça da casa! - aconselhou Helena, num tom de voz ríspido e seco. - É claro, a casa também! - retrucou Catherine num sobressalto, sem entender a insinuação da outra. - Ela é muito bonita, mas eu gosto mais deste lado de fora. Ah, a liberdade que há aqui! Não há nada que se compare a isso! - A não ser Coyne, é claro! - disse Helena, com um riso amargo e insinuante e um olhar fulminante. - O que é isso, Helena?! - disse Catherine, só então começando a entender o que estava acontecendo. Ah, então era isso! Helena estava pensando que ela estava de olho em tudo aquilo, querendo se apossar. Não fora atrás dela à procura de companhia, fora mais é à procura de briga. Helena a odiava em silêncio. Aquele olhar não deixava dúvidas. Todo aquele tempo estivera alimentando o ressentimento sem que ela percebesse. Meu Deus, mas como podia ser tão mesquinha? O pai no hospital, para morrer, e Helena se preocupando com ela mesma! Entretanto a cara dela era de poucos amigos, parecia a ponto de explodir o ódio contido por tanto tempo. Catherine achou que seria prudente não provocá-la. Helena, por sua vez, estava esperando o menor pretexto, aliás ela própria estava provocando, querendo que houvesse uma reação. - Alguém tinha que lhe dar uns conselhos, garotinha! - disse ela em tom de insulto. - Essa sua paixão por Coyne é digna de nota. Eu não sou assim tão mais velha do que você, por isso ainda me lembro bem como é que a gente se sente nessa idade. Parece que o mundo vai acabar, que agente vai morrer de amor, mas depois passa e você até acha graça. Por outro lado, Coyne não acha graça nenhuma em ter em sua própria casa uma garota recém-saída de um colégio de freiras, morrendo de amores por ele, suspirando pelos cantos. Que coisa chata! Se eu fosse ele, mandava você de mala e cuia para o outro lado do mundo! Será que ela estava sabendo?, pensou Catherine, furiosa. Será que Coyne contara a ela? Ninguém sabia, nem tia Ellenor. Ele disse que não ia contar para ninguém. Tudo aconteceria naturalmente, quando chegasse a hora. Será que ele andara comentando algo com Helena? Se queixara dela? - Será que você não percebe que ele não pode levar a sério essa paixão de adolescente? disse Helena com ardor. - É claro que já era de se esperar que você se portasse assim... também, com a mãe que tem! Catherine ergueu as sobrancelhas com ar de superioridade. Era incrível, mas estava em seu perfeito domínio. Estava calma e fria. - Você não conhece aquele ditado, parece que é chinês... - disse ela, sarcástica. - "Peixes e hóspedes depois de três dias apodrecem?" - Não pense que vai me atingir fazendo comentários pouco elogiosos sobre minha mãe. Ela nunca foi muito ligada a mim. Eu a conheço tanto quanto você. Mas de uma coisa eu tenho certeza: você daria a vida para ser convidada para ao menos uma das festas que ela costuma dar, como acontece com a maioria dos que falam mal dela... que aliás são sempre mulheres e devem ter inveja dela. Mamãe é uma mulher bonita e elegante como poucas! - Pode ter sido, mas já está meio passada! Há outras mais jovens... - retrucou Helena, com ar de insinuação. - Ah, você, por exemplo, não chega nem aos pés dela! - disse Catherine com calma. Quando eu era pequena, meu maior sonho era crescer e ficar igual a ela! - Numa coisa pelo menos eu tenho certeza de que é igual: é um elemento indesejável aqui em Mandala, embora você se porte como se estivesse em sua casa.
- E tenho razão de me sentir em casa em Mandala! - protestou Catherine, um tanto abalada e consternada com o olhar maligno de Helena. - Afinal eu sou da família. Os Macmillan são meus parentes. - E você não está se aproveitando disso, é claro! - Não estou preocupada com isso, no momento. Aliás, acho de muito mau gosto você preocupar-se com a vida alheia e com coisas insignificantes, agora que seu pai está tão mal! Helena enrubesceu, ficou muito perturbada, quase a ponto de perder o controle. - Não se atreva a falar em meu pai! Não quero ouvir essas detestáveis opiniões... suas e de Debra. A maravilhosa Debra... tão boazinha, sempre tão comportada! Ainda por cima agora é sua amiga. Ah, como eu queria que isso tudo acabasse de uma vez! - Sinto muito, Helena! - disse Catherine e fez menção de se afastar. Era evidente que Helena a odiava, odiava todos eles! Como é que em uma mesma família podia haver uma pessoa tão adorável quanto Debra e outra como Helena, tão diferente de todos, maldosa e egoísta! Catherine mal tinha dado uns passos, afastando-se dela, quando Helena correu, pegou-a pelo ombro com força para machucar e a fez virar-se para encará-la. - Está pensando que vai fugir de mim? Sua atrevida, descarada... ordinária! Eu poderia lhe dar uma surra de a deixar estirada no chão! - Se eu fosse você nem tentaria! - disse Catherine com frieza, embora seus olhos azuis estivessem expelindo fogo. - E pode ir tirando essa mão do meu ombro com essas unhas que parecem garras! Acho essa situação extremamente desagradável e grotesca, para não falar que é de baixo nível... será que não percebe que estou saindo para evitar uma discussão? Parece que é o que está querendo, não é? Agora, se me dá licença, vou voltar para casa. Não estou a fim de bate-boca. Helena encolheu os ombros e deu um meio sorriso. - Puxa vida! - disse ela entre os dentes, em voz mais baixa e controlada. - Você não entende mesmo meias palavras, portanto sou obrigada a lhe dizer claramente, sua nojentinha, que Coyne e eu estamos comprometidos! Há vários interesses em jogo, inclusive o financeiro. É a vontade de meu pai e já está tudo acertado há anos. Nós fazemos um bom par! É isso aí! Sinto muito se nossos planos se chocam com essa sua paixãozinha idiota! - Se as coisas já estão acertadas e tão garantidas assim - disse Catherine calmamente -, então por que diabo está tão preocupada comigo? Aliás, parece que Coyne não está interessado em nenhuma de nós duas no momento. Na verdade, diria que ele está totalmente indiferente. Talvez você tenha esperado demais para convencê-lo a se casar... não que eu esteja insinuando que você está passando da idade! Ainda tem bastante tempo pela frente... - Sem dúvida! - Helena afastou a hipótese e nem tomou conhecimento da insinuação. - É... mas os tempos mudam! Houve um pesado silêncio por alguns instantes. Helena ficou parada, muito empertigada, contemplando-a, os olhos escuros fuzilando de ódio. - Sua desgraçada! Como se atreve? - disse ela afinal, com violência. - Ora, não seja ridícula! Quem diz o que quer ouve o que não quer. Foi você quem começou isso tudo. Eu jamais teria essa idéia! Detesto brigar e acho de um mau gosto terrível disputar um homem assim! É grosseiro demais. - Olhe, menininha, você está se arriscando muito comigo! - sibilou Helena entre os dentes, com a mão erguida. Catherine ficou gelada, tão atônita que se sentiu paralisada. Ficou imóvel por um breve instante, depois passou a mão pelo cabelo, afastando-o do rosto. - Chega! Não quero ouvir mais nada - disse ela em tom natural, sentindo-se incapaz de suportar tanto veneno. Era como tropeçar em um ninho de cobras. - Estou enojada demais para sentir raiva... na verdade, chego a sentir pena de você! - Pena de mim? - disse Helena, furiosa, incapaz de aceitar uma coisa daquelas. - Isso é uma grande mentira e você sabe disso! Helena já nem sabia mais o que dizer. Há muito tempo que estava confiante no fato de ser a única mulher na vida de Coyne. Desde que o pai dele morrera e ele assumira a responsabilidade da fazenda, vivia sempre ocupado, não saía mais, não tinha tempo para namoros e não havia concorrente para ela ali nas redondezas. Por isso viajava e o deixava sozinho por longo tempo, sem se preocupar, sabendo que cada vez que voltava ele ficava com ela de novo. Mas agora era diferente! Sentia que era de vital importância livrar-se daquela garota intrometida que se enfiara lá em Mandala. Olhou para Catherine e não pôde deixar de sentir inveja. Tão jovem! Uma pele linda, cabelos lindos, olhos maravilhosos e expressivos. Ah, era
revoltante! Helena cerrou o punho. Não podia desistir de Coyne agora. Por nada deste mundo desistiria dele. Ele era seu! Forte, másculo e sensual. Um homem de verdade, feito para ela que era uma mulher adulta e sabia como satisfazê-lo, e não para aquela garota boboca e inexperiente! Além disso, ele era o proprietário de Mandala, o magnífico império. Nenhuma mulher em seu perfeito juízo hesitaria em lutar por ele. Com o coração batendo descompassadamente, Helena avançou para a garota, que a observava de olhos arregalados. Catherine sentiu-se desolada. Desde o início sempre achara que Helena era meio desequilibrada, um tanto esquisita, pensou que fosse antipatia por ela, mas agora estava vendo que era ódio. Um ódio doentio que a corroía por dentro como a doença do pai. Nada aplacaria a raiva, o ciúme e a inveja que Helena nutria. Seria um golpe terrível para ela perder Coyne agora. - Eu esperei muitos anos. Seria jogar fora os melhores anos de minha vida se eu desistisse agora! - disse ela com certa amargura e frustração. - Portanto não pense que vou parar e me conformar. Catherine sentiu um arrepio de medo. Seu coração bateu mais rápido por alguns instantes, depois a coragem voltou e ela se sentiu mais calma. Assim que Helena investiu contra ela, se esquivou instintivamente para o lado, mas pisou em falso perdendo o equilíbrio. Helena aproveitou para avançar, atacando-a com suas enormes unhas vermelhas. Queria cravá-las no rosto de Catherine, mas felizmente ela se desviou a tempo e o arranhão pegou apenas o pescoço dela, de lado, marcando a pele fina e delicada. - Como você é baixa e vulgar! - murmurou Catherine, sem medo daquela criatura selvagem. Colocou a mão no pescoço dolorido de onde saíam gotinhas de sangue manchando a gola da blusa. - Você não tem vergonha de fazer uma coisa dessas? Nem parece uma mulher civilizada! Helena ficou contemplando-a, sentindo-se um pouco atordoada. Seu rosto estava pálido, os olhos brilhantes e as pupilas dilatadas. - Bem feito! - disse ela calmamente, recuperando o controle. - Uma liçãozinha como essa talvez ajude você a amadurecer! - Helena, você está maluca! - disse Catherine, como quem faz uma constatação e não uma acusação. Virou a gola da blusa para dentro para limpar o sangue. - Sinceramente, acho que você está muito doente. - E não vai dizer a ninguém como é que conseguiu essas marcas! - disse Helena enraivecida e de repente desatou num choro violento, soluçando convulsivamente. Depois que ela se afastou, Catherine sentiu-se fraca e indefesa. Já nem conseguia ver a beleza do lago e as aves que tanto amava. Seus olhos pareciam anuviados. Caminhou até o lago, ainda meio cambaleante e muito chocada. Ah, Coyne! Como era perigoso gostar dele. Ela estava correndo um sério perigo. Helena demonstrara com bastante nitidez que estava louca de ciúme, cega de paixão... capaz de fazer qualquer coisa. Pegou o lenço no bolso, abaixou-se e molhou-o na água. Depois torceu-o um pouco e colocou-o sobre o pescoço arranhado. Primeiro ardeu, depois deu uma sensação de alívio e frescor. Não conseguia esquecer aquele rosto distorcido pelo ódio, nem as mãos feito garras que passaram rentes a seus olhos, com as unhas brilhantes de esmalte vermelho. Que coisa horrível! Era chocante! Como é que num momento daqueles, com o pai à morte, uma pessoa podia ter tanto ódio no coração? Sem dúvida, a agonia de Josh era algo que exigia um certo respeito! Ainda mais da filha! Catherine chegava a sentir náuseas. Inclinou-se para a frente e molhou o rosto todo com aquela água fresca e límpida. Estava com medo de olhar no espelho e ver aquelas horríveis marcas, aqueles arranhões. Parecia ter sido atacada por uma tigresa. Ainda bem que tomara vacina antitetânica. Sentiu de repente um aperto no coração ao pensar que Coyne pudesse achar Helena atraente. Aquela cobra venenosa! Sentiu que estava pálida... olhou seu reflexo na água. Teria sido naquele lago que Emma se afogara? Havia vários lagos fundos por ali. Jogou a cabeça para trás e gotinhas d'água escorreram do rosto para o cabelo, brilhando como uma tiara de diamantes. O que fazer agora? Uma manhã tão bonita e lírica terminar assim de modo tão grotesco! Não podia correr para casa e dizer: "Olhe o que a maluca da Helena fez!" Helena ficara estudando a presa, à espreita, tal como o falcão fizera há pouco. Todos já estavam tão tensos e preocupados, seria terrível aparecer com mais um problema! Não, não podia fazer isso! Sabia que se contasse a Debra ela ficaria estarrecida e acreditaria imediatamente. Mas esse não era o momento para desmascarar Helena. Riu sozinha, no fim das contas. Talvez um pouco por nervosismo, mas isso lhe deu forças. Tudo o que tinha a fazer era fingir que tivera um acidente e pronto. O resto agüentaria sozinha.
Deitou-se de costas na relva e ficou olhando para as árvores... todas floridas. Tantas flores diferentes e bonitas... a tensão foi relaxando, sentiu um cansaço invadir-lhe o corpo. Fechou os olhos. Ficaria assim uns dez minutos até se recuperar e depois voltaria para casa. Tudo o que queria era ter paz. Helena não devia ter paz nunca... Acontece que estava muito mais fatigada do que imaginara e acabou adormecendo. Alguns passarinhos chegavam perto dela, curiosos com aquela Eva adormecida em seu paraíso, mas Catherine não percebia nada, dormia profundamente. Coyne estava irritadiço e com uma estranha ansiedade. Resolveu cavalgar um pouco e acabou indo parar no lago para relaxar. Estava sob a tensão de vários problemas, mas, afinal, onde é que se metera Catherine? Ela não aparecera para almoçar; não que isso fosse algo extraordinário, pois ela nunca chegava na hora certa. Catherine não era pontual nessas coisas, mas o que o estava preocupando era o fato de não saber onde ela estava. Aliás, ele queria saber onde ela estava e o que fazia a cada minuto do dia. Até Ellenor caçoara dele, dizendo que ele parecia uma galinha com seus pintinhos. Mas ela também estava preocupada. Não era só ele, ela também estava sentindo algo estranho no ar. Algo acontecera a Catherine, mas o quê? Lacey não estava lá, por isso não podia dizer que estivessem juntos aprontando alguma travessura como às vezes faziam. Não, nem era justo pensar isso. Lacey agora era um homem sério e trabalhador e Catherine nunca fora distraída. Entretanto, quando a encontrou, em vez de sentir alívio sentiu raiva. Mas que maluca, dormindo na beira do lago! Parecia uma criança deitada ali, vista de longe. Num gesto ágil e rápido desmontou, deixou o cavalo ali pastando e andou depressa, sem fazer ruído, até onde ela estava. Ele a contemplou da cabeça aos pés e sobressaltou-se. - Catherine! Ele se abaixou e inclinou mais a cabeça para examinar melhor a palidez do rosto dela. Ajoelhou-se ao seu lado, imensamente preocupado, os músculos do rosto contraídos. Desdobrou a gola da blusa e afastou-a para ver melhor o que acontecera no pescoço dela. - Catherine, acorde! - ele falou em voz baixa, mas o tom era incisivo e ela ouviu a ordem. Abriu os olhos, pestanejou, meio atordoada, sem conseguir entender direito onde estava e quem era aquela figura curvada sobre ela. - Ah, Coyne! - disse ela, em tom patético, quando afinal conseguiu se orientar. Depois suspirou. Seus olhos brilhavam como nunca, tão azuis quanto o céu sobre ela. Ele se inclinou e contemplou-a em silêncio, o rosto indecifrável. Depois, com uma exclamação abafada, trouxe-a para seus braços, aninhando-a contra o peito enquanto lhe acariciava o rosto. Em seguida virou de leve a cabeça dela para ver melhor o arranhão. - O que aconteceu? - murmurou ele. Ela evitou olhá-lo. - Ah, eu caí de uma árvore... estava procurando um bom ângulo para tirar uma foto. Você me conhece... sabe como eu sou quando quero fotografar algo. - Eu conheço você, sim - disse ele com voz calma. - Onde é que está a máquina fotográfica? - Está ali! - disse ela, apontando para qualquer lugar sem saber exatamente onde é que estava. Podia ser até que Helena a tivesse destruído. - Ótimo! - disse ele e Catherine não sabia se ele estava ou não acreditando nela. - Então por que você está aqui, deitada no chão, dormindo? Por que não voltou para casa? É preciso desinfetar esse machucado. O arranhão foi fundo. - Fiquei com medo! - respondeu ela como se isso explicasse tudo. E era verdade, só que ela não disse de quê. O olhar dele como que a dissecava e ela se sentiu descoberta. - Fiquei com medo, sim - repetiu ela, desafiando-o. - Ah, Coyne! - Como uma criança amedrontada que se vê numa situação sem saída, ela escondeu o rosto no peito dele, sentindo-se dilacerada. - Está bem, está bem! - disse ele, acalmando-a. - Vamos esperar aqui até que você recupere as forças. Depois, qualquer hora você me conta realmente o que foi que aconteceu. Não sou nenhum bobo, você sabe, mas não quero incomodá-la agora. Fique deitada um pouco mais e relaxe. - Está querendo dizer que não acredita em mim? - perguntou ela como se estivesse magoada. Não era isso, mas de repente começou a tremer, como se fosse chorar. - Vamos, chore mesmo, se está com vontade. Não há necessidade de ficar se reprimindo. Ele colocou a mão em suas costas, depois acariciou seus cabelos e apertou de leve o rosto dela contra seu peito. Era como se estivesse sonhando. Uma enorme sensação de conforto a invadiu e ela chorou livremente, soluçando com vontade. Ah, como era bom amá-lo, ao mesmo
tempo que era um tormento. Havia algo de mágico em Coyne que a atingia. E ele também a amava de uma certa maneira. Mesmo que fosse apenas como prima. Catherine abriu a boca pensando em dizer a ele quanto o amava... mas se conteve. Talvez fosse uma atitude infantil confessar o amor assim tão sem reservas... só crianças fazem isso. Os adultos costumam ser sempre reticentes. Mas acontece que ela o amava e muito. Por que não poderia dizer a ele? Era tão bom poder falar, ser sincera, abrir o coração. Será que só jovens fazem isso e entendem essa atitude? Ah, a alegria de poder dizer "eu amo você" e não ser rejeitada! Ergueu a cabeça repentinamente e deparou com o olhar dele, que a contemplava. - Catherine! - disse ele com uma voz estranha. - É por isso que não posso perder você de vista... - E precisa? - Eu dou um jeito de conseguir. - Ah, quando virá a cura milagrosa? - Catherine suspirou desolada. Ele inclinou a cabeça e beijou-a de leve nos lábios. Um beijo que continha uma estranha beleza e que ela guardaria para sempre na memória. De onde estavam ouviram o galope de um cavalo. Coyne ergueu-se com Catherine, num movimento combinado, ainda abraçando-a. Ela sentiu que ele ficara tenso e acabou ficando também. Joseph, um dos garotos que trabalhava na casa, aproximou-se num cavalo baio, grande demais para ele, e veio gritando assim que os viu: - Seu Coyne! Venha depressa! Catherine virou-se e ela e Coyne se entreolharam. Nem era preciso dizer que Josh acabara de morrer.
CAPÍTULO IX Em todos os lugares, mesmo nas cidades mais lindas do mundo, ela só tinha um sentimento, que era mais forte do que os outros: saudade de casa. Esforçava-se bastante para se divertir e procurava aproveitar bem a viagem, o que acabava conseguindo por algum tempo, afinal não era tão difícil. Uma viagem é sempre uma coisa interessante e agradável. Tantas coisas novas, bonitas e diferentes! É difícil não se deixar envolver, não ficar curiosa, não admirar, não se interessar! Tanta coisa bela e grandiosa em termos de arte e arquitetura... Era a história viva. Tudo o que aprendera nos livros e em monótonas aulas no colégio interno, e que pareciam coisas irreais e de sonho, surgiam diante dela nítidas, palpáveis, reais, adquirindo vida: o período antigo, o clássico, o medieval, o renascentista... e ao mesmo tempo a vida moderna, o progresso, convivendo lado a lado na mesma cidade. Realmente era algo maravilhoso e ela não podia deixar de admitir que estava ganhando muito em termos de vivência e cultura. Claro, seria uma perda muito grande se não tivesse ido, mas bastava pensar numa única pessoa e o mundo todo se apagava para ela: Coyne Parecia vê-lo em toda parte, era como se estivesse esperando que ele chegasse. Um dia estava na Suíça, numa pista de esqui, e viu mais ou menos de longe um homem alto e moreno, de ombros largos... seu coração quase parou e ela sentiu um calafrio na boca do estômago. Era ele! Esquiou para perto dele feito louca, mas quando se aproximou o rapaz a cumprimentou em francês, dizendo qualquer coisa que ela nem ouviu. Coyne tinha sido uma miragem, tal como aquelas do deserto! Pobre Catherine, ainda não sabia que uma mulher apaixonada está sujeita a pequenas alucinações, na ânsia de reencontrar o homem amado. Em Roma também acontecera a mesma coisa... ela vivia com o olhar ausente, como se buscasse entre tantos rostos estranhos aquele rosto querido. Tia Ellenor vivia pigarreando ou cutucando-lhe o braço para chamar sua atenção e trazê-la de volta do mundo de sonhos. Já estavam longe de Mandala há seis meses e Catherine não agüentava mais de saudade. Já era quase uma doença. Não achava mais graça nas coisas. Estavam em Paris e tia Ellenor foi com Debra e Catherine às casas de alta costura, viram vários desfiles das coleções de Chanel, Saint Laurent e muitos outros, mas nada daquilo tinha significado para Catherine, nada lhe devolvia a alegria interior, nem mesmo a promessa de tia Ellenor de lhe comprar um dos vestidos de gala que ela elogiara apenas para não parecer ausente. Será que Coyne gostaria de vê-la naquele traje? Será que se impressionaria?
Era só nele que ela pensava o tempo todo. Estava com medo de que tia Ellenor e Debra inventassem de ir a mais algum outro lugar. Estava ansiosa para voltar para Londres. Pelo menos ali, não sabia por que, sentia-se melhor... a cidade parecia mais reconfortante. E, depois, não restava mais nada para ver. Já haviam percorrido todos os lugares do mundo. Estava cansada e tudo o que queria era voltar à fazenda. Durante todos aqueles meses, que para ela pareciam ter durado uma eternidade, Catherine tentara esconder de suas duas companheiras de viagem seu precioso segredo. Entretanto a lembrança de Coyne se entranhara nela como se fosse um perfume, não a abandonava um segundo sequer. No começo, ela mandara milhões de cartões-postais para ele, de todos os lugares que visitavam, fotografias, então, nem se fala! Mandara uma foto engraçada... ela sentada num camelo diante de uma esfinge no Egito! Mas, evidentemente, ele nem ligara para nada daquilo, talvez mal tivesse olhado, pois nunca lhe mandara uma única linha em resposta. Certa vez chegou a comentar o assunto com tia Ellenor, escondendo a frustração e tentando parecer casual, mas ela encerrara o assunto com uma breve resposta: - Ah, minha filha, quem está de férias somos nós, não Coyne! Não se esqueça de que ele é muito ocupado. Olhando os lindos e suaves bosques de pinheiros, em vários lugares da Europa, ela sentia uma súbita paixão pelas paisagens exuberantes e coloridas de seu país. Ah, que vontade de ver aquela vegetação que conhecia tão bem... erguer os olhos e deparar com as flores vermelhas da cavalinha, as douradas acácias, os perfumados eucaliptos... Ah, que saudade doída! Estava mais do que na hora de voltar para casa. Ela cumprira direitinho o que prometera... Tia Ellenor parecia outra pessoa, estava viçosa, como se tivesse desabrochado. Debra estava recuperando a serenidade e as três tinham mudado bastante de aparência, tinham ido aos melhores cabeleireiros, aparado os cabelos e mudado de penteado. Catherine estava indecisa quanto ao seu novo visual. O cabelo mais curto deixava seu rosto à mostra, já não podia mais se esconder atrás dos fios dourados e brilhantes da farta cabeleira que tinha antes! Às vezes ela se achava bonita e atraente, e de repente, sem mais nem menos, sentia-se insegura, incapaz de atrair alguém, de provocar desejo ou despertar amor. Era bem provável que quando voltassem para casa Coyne já estivesse casado. Será que isso era possível? Mas se ele tivesse casado, naturalmente teria comunicado à tia, pelo menos! Morria de vontade de perguntar a ela, mas não tinha coragem e tia Ellenor nunca falava de Coyne. Mas uma notícia dessas ela teria comentado, sem dúvida! Chegara uma carta endereçada a tia Ellenor... Catherine precisou se conter para não pedir para ler. O que haveria naquela carta? Tia Ellenor abrira o envelope e lera com displicência, sem o menor alvoroço... não podia haver alguma notícia importante ali, talvez não tivesse acontecido o que ela mais temia! Será que tia Ellenor conseguia ver o íntimo de Catherine, o que se passava em seu coração?! Era estranho, mas ela não parecia preocupada com isso, aliás não parecia preocupada com coisa alguma. Todas as manhãs levantava-se, cheia de vitalidade, fazendo planos para o dia, demonstrando um vigor que até então não tinha. Ela, com seus sessenta anos, parecia muito mais animada do que suas duas jovens companheiras. Estava decidida a aproveitar ao máximo aquela viagem, tirando proveito de todos os minutos, sem desperdiçar um segundo sequer. Estava se revelando uma infatigável passeadora, como nunca ninguém imaginara que ela pudesse ser, tão calma e sossegada que era em casa! É que depois de ter vivido tantos anos num só lugar, quase como se tivesse raízes, Ellenor estava descobrindo como era maravilhoso viajar, quanta coisa havia para se conhecer, para se explorar... Estava realmente extasiada e eufórica, querendo recuperar o tempo perdido! As meninas até brincavam com ela, dizendo que estava apaixonada e que ia acabar se casando. Viviam fazendo piadinhas referentes a ela e ao distinto senhor com quem fizera amizade, e que estava hospedado no mesmo hotel que elas, em Londres. Ele procurava a companhia de tia Ellenor constantemente e gostava muito do jeito dela, ouvia encantado os comentários interessantes que fazia, as observações exatas... gostava do espírito humanitário que sentia nela. Cada vez que as três voltavam para Londres depois de uma viagem a algum outro país, os dois ficavam juntos. Mas, assim que saíam de novo para um outro lugar, tia Ellenor parecia esquecer do amigo. Entretanto, era visível no brilho de seu olhar que ela não era insensível ou indiferente à admiração masculina. Apenas prezava muito sua liberdade. E assim se passou o tempo até que, afinal, chegou a ocasião de voltarem para casa. No hemisfério norte do globo terrestre já estava nevando bastante há algum tempo, mas quando o avião pousou na Austrália, no aeroporto em Darwin, o trópico ardia em brasa com o
sol causticante. Estavam na época das cheias, os rios com o nível da água altíssimo e cheios de crocodilos, as lagoas povoadas de gansos e patos selvagens. Em Darwin, capital do Território do Norte, o calor era sufocante. O sol castigava as ruas e os jardins da cidade, que fulguravam com a exuberância incomparável da flora tropical. Todas as árvores estavam em flor. Lacey foi esperá-las no aeroporto. Estava muito bonito e charmoso e recebeu-as com uma alegria esfuziante. Estava feliz por elas terem voltado e não escondia isso. Abraçou as três, uma por uma, e beijou-as várias vezes com alegria. Debra não cabia em si de contente. Os olhos brilhavam, o coração estava em festa. Não via a hora de dar a ele o presente que lhe trouxera. Lacey estava um pouco diferente, tão senhor de si! Os olhos azuis límpidos e luminosos, estava bonito e elegante, crescera e parecia mais maduro, com cara de homem feito. Todos pareciam querer falar ao mesmo tempo. Ele querendo saber notícias e as três também... Amaroo estava em ótimas condições, sim, prosperando bastante... É, tinham visto Helena algumas vezes, mas já fazia mais de um mês que não a viam... parece que ela estava pensando em vender sua parte na fazenda, mas quem sabia disso era Coyne... ele explicaria tudo. Descansariam um pouco antes de embarcarem no avião para Mandala. Estavam de volta. De novo em casa, e para Catherine era como se estivesse voltando ao paraíso. Ficou em êxtase quando viu Coyne, embora tivesse disfarçado, querendo parecer displicente e casual. Recebeu sem estardalhaço o beijo leve que ele deu em sua face ao abraçá-la. Mas, por dentro, estava em ebulição. Sentia-se feliz por estar diante dele e, ao mesmo tempo, terrivelmente ansiosa para saber se ele mudara de idéia a seu respeito. E havia todo aquele alvoroço da chegada: perguntas, histórias, as malas abertas, os presentes distribuídos, exclamações de admiração, passagens engraçadas relembradas. Coyne ouvia com interesse e achava graça enquanto as olhava com complacência. Ele estava um pouco mais magro... Catherine estava linda, a doçura em pessoa, reservada e bem vestida. Nem parecia a Catherine efervescente que chegara do colégio interno da outra vez. Agora quem brilhava era Debra, falando cheia de animação e trejeitos. Catherine estava calada, a luz do abajur iluminava-lhe os cabelos dourados, a pele clara perdera o bronzeado do verão passado. Olhava furtivamente para Coyne. Sentia-se embriagada só de contemplá-lo assim, por isso se mantinha ausente da conversa, dando apenas um palpite ou outro ocasionalmente, mergulhada em seu mundo de sonhos. Não parecia ter ficado longe dele tanto tempo. Ele estava do mesmo jeito, apenas um pouco mais magro, aquele ar de auto-suficiência e liberdade, a pose arrogante da cabeça, aquele jeito de olhar... como naquele momento. Quando Catherine começou a contar algo ele lhe lançou um olhar tão penetrante que ela gaguejou e deixou a frase pelo meio, esquecendo o que ia dizer. Foi tia Ellenor quem terminou a história, fazendo Lacey rir. Ah, como Coyne era atraente, como a deixava maluca! E como a enfeitiçava com aqueles olhos negros cravados nela com uma expressão indecifrável. Não sabia se estava zombando dela, ou o quê. O olhar, às vezes, parecia dizer "como é, agora está amadurecida ou não?" Durante todo o jantar tentou descobrir o que Coyne estava sentindo com sua volta. Se estava feliz, se a queria ou não... não sabia dizer. Tudo o que sabia é que cada vez que ele punha os olhos nela, sentia um calafrio e ficava tão perturbada que se atrapalhava toda. Chegou quase a derrubar a taça de vinho numa das vezes. Ele a contemplava e aquele olhar era uma carícia em seu rosto, seus ombros, seu corpo... que a deixava arrepiada. De resto, Coyne estava contido e conversava naturalmente. O que será que queria dizer com aquela atitude? Tia Ellenor sugeriu que deviam ir dormir cedo aquela noite, afinal tinham viajado horas e horas, uma distância incrível, e era bom estar em casa! Era melhor irem descansar. Haveria tempo de sobra para contarem as peripécias nos outros dias. Catherine foi para o quarto, mas não conseguia sossegar. Continuava inquieta e ansiosa. Começou a andar de um lado para o outro, acariciando a opala que pendia da correntinha em seu pescoço. Não tinha vontade de trocar de roupa, pois não sentia sono e sabia que não ia dormir. Ah, meu Deus, por que estava assim tão agitada? O que fazer para se acalmar? Não podia continuar daquele jeito. Era melhor descer outra vez e tomar um pouco de ar fresco no jardim... é, era isso que precisava fazer . Virou-se para sair do quarto e deparou com sua imagem no espelho. Mas por que estava se enganando assim? Por que não admitir a verdade? O fato era que não conseguiria dormir se
não trocasse ao menos uma palavra com Coyne, em particular. Era melhor ir procurá-lo de uma vez, era isso que queria fazer. Mas será que seria prudente? Seria certo? Será que não aprendera nada? Será que ia continuar se atirando nos braços dele para sempre? O que ele acharia dessa atitude? E se a rejeitasse? Ah... mas era melhor uma certeza, nem que fosse triste, do que aquela dúvida cruel a torturá-la e a deixá-la naquele estado. Abriu a porta do quarto e saiu correndo pelo corredor. Ficou desarmada ao ver que a luz do saguão já estava apagada. Ah, por que demorara tanto a se decidir? E se ele já tivesse ido dormir? Talvez fosse tarde demais... Como iria agüentar o dia seguinte inteiro sem poder falar com ele? Sem dúvida Coyne se levantaria de madrugada como sempre e passaria o dia todo trabalhando... teria de esperar até a noite para arranjar uma oportunidade de falar com ele. Ah, droga! E agora, como faria? Para o quarto não ia voltar, não adiantaria nada mesmo! Desceu no escuro, apalpando a parede, os olhos arregalados tentando enxergar na semiescuridão. De repente uma voz a fez parar num sobressalto e ela levou a mão ao coração, como se ele lhe fosse saltar do peito. - Catherine! Sabe que já é quase meia-noite? Não está cansada? - Ela ficou sem fala, não conseguia responder. Agora que estava a sós com ele sentia-se insegura, perdia a confiança em si. O medo antigo de se sentir rejeitada voltou a assaltá-la. Ah... não suportaria ser rejeitada por Coyne! Seria melhor morrer, então. Olhava fixo para ele, nos enormes olhos azuis uma expressão de desamparo. Ah, como o amava! Deus do céu, amava-o com todas as suas forças, mais do que qualquer coisa nesse mundo! - Catherine? - disse, apenas, com voz suave em tom de interrogação, e no simples pronunciar desse nome estava contida uma importante pergunta que ela bem sabia qual era. Era como se suas mentes estivessem em sintonia e ele tivesse captado seus pensamentos. A ansiedade dos dois era a mesma. - Eu não mudei nada! - respondeu ela quase sem fala. - É melhor eu dizer de uma vez, assim você pode tomar as providências que quiser. Não suporto mais essa tensão! - Nem eu - retrucou ele, com voz acariciante. - Eu amo você, Catherine, e nem imagina quanto! Não via a hora de poder lhe dizer isso... e pode estar certa de uma coisa: foi a última vez que ficou longe de mim, você nunca mais vai me deixar sozinho! De hoje em diante, aonde quer que formos, iremos juntos! Seis meses é tempo demais para um homem apaixonado esperar... Meus nobres sentimentos paternalistas se esgotaram por completo! Agora sou apenas um homem de carne e osso que ama pra valer uma mulher jovem e linda! Vem cá, Catherine, deixe-me abraçá-la e beijá-la... Vou lhe mostrar o quanto estive fingindo e me contendo desde que você chegou de viagem. Catherine não hesitou nem um segundo. Seu rosto se iluminou de felicidade. E dali, do último degrau da escada, se atirou nos braços dele. Coyne a envolveu num abraço caloroso e terno, erguendo-a do chão e rodopiando com ela, como se estivesse dançando. Depois colocou-a de novo no chão, ainda com os braços em torno dela. Catherine ergueu o rosto para ele, com os olhos cintilando como se ali estivessem todas as estrelas do céu. Uma onda quente de sensualidade envolveu os dois. Catherine entreabriu os lábios para lhe dizer o quanto o amava, mas ele a silenciou com um beijo prolongado e profundo. Não tinham necessidade de palavras naquele momento. Não era preciso... Coyne sabia o que ela ia dizer. Estava de volta para ele, inteira e definitivamente, e só agora começava a viver de verdade.
FIM
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