Marcelina 4
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Revista Marcelina n4...
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© 2010 Faculdade Santa Marcelina – Unidade Perdizes Coordenação do projeto e edição Lisette Lagnado Mirtes Marins de Oliveira Conselho editorial Dawn Ades (University of Essex-UK) Ricardo Basbaum (UERJ, Fasm-SP) Maria Aparecida Bento (Fasm-SP) Sheila Geraldo Cabo (UERJ-RJ) Celso Fernando Favaretto (FE-USP) Esther Hamburger (ECA-USP) Shirley Paes Leme (Fasm-SP) Maria Angélica Melendi (EBA-UFMG) Christine Mello (Fasm-SP) Luiz Camillo Osório (Unirio/Puc-RJ) Beatriz Rauscher (UFU-MG) Sandra Rey (Instituto de Arte UFRGS) Pareceristas Suzana Avelar Eliana Asche Ana Letícia Fialho Claudia Marinho Marly de Menezes Paulo Zuben Revisão ortográfica Regina Stocklen Projeto gráfico Roberta Guedes Impressão e acabamento Expressão & Arte - Editora e Gráfica Fontes usadas: Minion e Whitney
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (FASM–Perdizes. Biblioteca ‘Ir. Sophia Marchetti’) MARCELINA. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina. - Ano 3, v. 4 (1. sem. 2010). – São Paulo: FASM, 2010. Semestral ISSN: 1983-2842 1. Artes Visuais - Periódicos. I. Faculdade Santa Marcelina. CDU-7(05)
Marcelina é uma publicação da Fasm. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização do autores. Para os critérios de publicação acesse: http://www.fasm.edu.br
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SUMÁRIO
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CADERNO DO ERNESTO NETO
Poemacor
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EDITORIAL DOSSIÊ | UM APRENDIZADO POSSÍVEL NA UNIVERSIDADE?
L’artiste doit-il aller à l’université? | Marcel Duchamp O que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? | Sandra Rey
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O ensino de artes e a formação do artista na academia | Milton Sogabe
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Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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Experiência estética, instituições e educação | Celso F. Favaretto
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Balanços e perspectivas museográficas Um Museu de Arte em São Vicente | Lina Bo Bardi
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The Field School. Treinar artistas, um projeto por vez | Ernesto Pujol
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MESTRADO EM REVISTA
O artista: vento(s) e des(dobramento)s | Andrés Hernández
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IV SEMINÁRIO DE CURADORIA
Conferência dialógica entre Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado
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CADERNO DO AUTOR
Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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meus olhos
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choro
por solidão
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na relva
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canibais levaram nossas letras cultura e ternura 100907_Marcelina_cai_coco.indd 10
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onde andas
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C A D E R N O D O E R N E S TO N E TO
Poemacor
Poemacor é uma espécie de escultura para livro-revista para o encadeamento das páginas na ausência do corpo dimensional volume este se manifesta na estrutura cor corpo frase palavra linha como criadores de atmosfera peso significado e desvio.
Recebi seu e-mail e comecei right away a responder achando que ia ser fácil, hahaha, e claro q não foi já que a pergunta não tem resposta. Curiosamente sou um cara que não estudou arte na universidade, pois achei que esta iria me atrapalhar, não acreditei na ideia de ter que passar de ano, no risco de me deparar com um professor idiota a me dar uma nota baixa por eu ter desenhado um olho torto. Assim estudei comunicação para enganar papai e mamãe, que obviamente sabiam q aquilo era um paliativo, que o vício já tinha me dominado e que sabe que por motivo de sobrevivência financeira eu poderia tomar um outro caminho. Porém fiz todos os cursos paralelos que pude encontrar e pagar, e convivi com colegas inocentes no suave curso de comunicação da Faculdade Estácio de Sá, q não passei no vestibular (tinha abandonado meses antes o curso de engenharia, onde tinha aulas maravilhosas de matemática e física, e notas baixíssimas), sendo no final, para minha surpresa, o orador da turma, hilários tempos de escola. Mas por outro lado sinto falta de uma educação formal, muito embora meu amigo Franck Leibovici me diga que esta é a minha salvação, aliás ele me falou que as escolas de arte na França são cada vez mais voltadas a ensinar ao “artista” como funciona o meio de arte, como vender o peixe, preparar projetos, construir um discurso, enfim prepará-lo para ser um profissional. Aí segue o texto que comecei a escrever, eu um cara que, apesar da minha história negar, sou a favor da educação como forma de oferecer material para o estudante artista ou não poder — e já começa a confusão qual o objetivo da escola... — poder 12
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sobreviver, pensar?, se preparar para o mercado?, se preparar para a loucura?, se preparar para a poesia?, se libertar da cultura?, penetrar ou compreender a cultura?, pra quê? ser artista pra quê? Como é difícil ser objetivo só mesmo a artificialidade ocidental para conseguir este ofício. Acho que meu lado índio me nega este mundo. Talvez a síntese seja para encontrar lá dentro o que esta lá fora, para se relacionar, familiarizar-se com o meio. Normalmente o artista jovem, no seu desejo, já está marginalizado, na escola, seja ela qual for, ele faz seu ninho com seres semelhantes. Normalmente o artista em potencial, como todo jovem está cheio de dúvidas e desejos, sonhos mesmo, vivendo o momento crucial de entrar no mundo adulto. De alguma forma na escola, será protegido e preparado para este mundo e poderá lidar e apreender com os adultos professores coordenadores (regras boas e más) e com pessoas da sua idade. Estes colegas serão extremamente importantes para dividir problemas e inventar soluções. A escola é um lugar protegido para conhecer gente, possivelmente um professor lhe será útil — cabe à intuição do aluno descobrir quem poderá ser seu “mestre”, aquele que vai além de aprender arte. Arte é troca, alguns colegas podem ser fundamentais, mas não se aprende, se é que se aprende, arte na escola nem na rua, mas na vida.
Ernesto Neto nasceu no Rio de Janeiro onde vive. Faz escultura há 27 anos. Gosta muito de ouvir o som ambiente, ruído de fundo, como se este o abraçasse no mundo. Tem mostrado seu trabalho continuamente desde 1988 no Brasil e, no planeta a partir de 1995. Nunca expôs na África nem no Polo Sul. Tem alguns livros publicados, esculturas em várias coleções e museus. Em setembro próximo, faz uma exposição chamada Dengo no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Acredita que arte é um lugar para se estar.
Re fer ên cias b ib liogr áficas BARROS, Regina Teixeira de. “Ernesto Neto”. Galeria, nº 31, São Paulo, 1992, p. 47. HASEGAWA, Yuko; NAMBA, Sachiko; NISHIKAWA, Mihoko; TAKASHIRO, Akio; NAKASHIMA, Mari; WAKABAYSHI, Kei (editores). Neo Tropicália – When Lives Become Form, Contemporary Brazilian Art: 1960s to the Present. Tóquio: Mot – Museum of Contemporary Art, 2008. HERKENHOFF, Paulo. Ernesto Neto – Cinco desejos. Galeria Camargo Vilaça, São Paulo, 1994 (fôlder de exposição). JULIN, Richard. “Three Conversations” (Siobhan Hapaska, Charles Long, Ernesto Neto). Magasin 3, Estocolmo, 2000 (fôlder de exposição). PEDROSA, Adriano. Esculturas Íntimas. Ernesto Neto. Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte Contemporânea, 2002. 13
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EDITORIAL
A ideia da edição temática de marcelina | cai coco surgiu a partir da publicação Art School (Propositions for the 21st century), organizada por Steven Madoff (MIT Press, 2009). Sem dúvida, a leitura dessa coletânea sobre diversas experiências com o ensino da arte aprofundou diferenças já conhecidas entre a formação de artistas dentro da universidade e fora dela. Com o objetivo de intensificar essas relações e assimetrias, a revista convidou Ernesto Pujol, artista e professor atuante em diversas universidades, a escrever um artigo especial onde pudesse relatar como vem reunindo performance artística e atividade docente. E o resultado não poderia ser mais polêmico. “The Field School” incomoda todos os segmentos interessados na profissionalização do “futuro artista”: denuncia a “superpopulação de diplomas de mestrados em arte” e pergunta “por que ir para escolas de arte quando um mestrado não assegura a ninguém um emprego de professor, e quando a informação está lá, disponível via Google e outras ferramentas de busca ?” Assim, o processo educacional desenvolve-se em instâncias que vão além da matriz escolar. Falar de formação é discutir currículo, ou seja percurso, entendendo que há vida tanto dentro como fora das instituições. O que nos leva a indagar quais os conteúdos necessários para que um artista seja considerado como tal. Pujol nos lembra também que “todas as escolas têm ideologia” e que “não existe tal coisa como um espaço cultural apolítico”. A preocupação com um treinamento adequado para enfrentar o mundo globalizado deve ser substituída pelos significados que a educação adquiriu a partir da modernidade: crítica, debate, mobilidade. Instituições de ensino e pesquisa buscam oferecer condições de realizar um eventual projeto de existência e isso é transmitido e sistematizado ao longo de um período previamente estipulado, levando em conta tanto as demandas da sociedade como uma atualização permanente de cada disciplina acadêmica. Essa seria uma definição (possível) do chamado currículo. O currículo é uma forma educacional histórica, mas, se não for discutido, entendido e criticado como lugar de disputa de significados, tende à reificação. Pesa sobre ele uma “mania” classificadora que alinha diferentes aspectos de uma disciplina de modo a formar uma sequência, que acaba limitando a dimensão da vida em categorias imutáveis e acabadas. Diferentes experiências históricas (inclusive as atuais) olhadas sem nostalgia mostram o quanto a capacidade criativa deve enfrentar o desafio de formar artistas em uma realidade multidimensional. O que impede que a formação de um jovem artista (assim como de outros jovens) seja esse território sem determinações fixas, onde o início e a chegada do caminho são pontos móveis, e onde a própria travessia não é predeterminada? Inesgotável, a questão da formação deve ser colocada de tempos em tempos para remover o pó que se deposita em palavras como ensino, escola, academia, biblioteca, pedagogia, museu e bienais de arte, e para que possam continuar insistindo no seu quociente experimental. *** O dossiê arte: um aprendizado possível na universidade? abre com o artigo O que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? de Sandra Rey, que traz, a partir de um texto de Duchamp, L’artiste doit-il aller a l’université?, uma contribuição firme e lúcida para pensar como “produzir obras” após o inventor do readymade. Em seguida, Milton Sogabe faz um balanço histórico das possibilidades de formação do artista na sociedade brasileira de hoje e sublinha a alteração do estatuto de artista-professor para o de artista-pesquisador.
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A formação de um novo artista para uma nova sociedade, em contexto não capitalista, é exposta por Neide Jallageas, que apresenta a experiência pedagógica dos Ateliês Superiores de Arte e Técnica na Rússia cujo fundamento buscava equilibrar-se entre atitude estética e postura política. Andrés Hernández, em O artista: vento(s) e des(dobramento)s, evidencia as relações entre a Bienal de La Habana e a inserção, constituição de visibilidade e internacionalização da produção artística em um país à margem dos centros econômicos decisórios. O artigo (resumo da dissertação de mestrado defendida no Mestrado em Artes Visuais da Fasm) evidencia a influência que eventos de grande porte podem ter sobre o percurso formativo de futuros artistas. De sua parte, Celso F. Favaretto sinaliza a imobilização da experiência educativa no museu, quando limitada ao departamento educativo e a uma terminologia fraca: o que acrescentam adjetivos como interessante, curioso e picante? Como professor de estética, defende a exigência de que se evidencie o sistema de referências ao qual a produção contemporânea se remete ou no qual se inclui. A fim de complementar essa reflexão (ou dar-lhe ressonância), marcelina | cai coco foi buscar um texto histórico de Lina Bo Bardi, Balanços e perspectivas museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente (1952) onde são ressaltados o caráter social do museu e a necessidade de formação de público. Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado, conferencistas do IV Seminário Semestral de Curadoria, dão continuidade à edição temática sob a perspectiva daquele que organiza exposições. Como eleger disciplinas para estruturar um currículo que contemple a prática curatorial e a vida cotidiana de uma instituição? Por meio de uma seleção de artistas espanhóis, Ferrán Barenblit propõe o evento expandido como estratégia para o público voltar várias vezes ao museu e encontrar uma exposição sempre em movimento e transformação. Veronica Stigger inaugura a seção caderno do autor, onde apresenta suas investigações de pós-doutoramento Flavio de Carvalho: experiências romanas, extensa pesquisa que procura uma justificativa para a espantosa ausência de escândalo quando da exposição do artista, em 1956, na Galleria L’Obelisco, em Roma. Seu traje tropical, o New Look, teria tido seu lançamento prejudicado pelo conturbado ambiente político da Europa? – esta é a hipótese que emerge da voz do noticiário. Enfim, esperamos que esta edição ainda privilegie beleza e poesia mesmo tendo abordado um tema árido. marcelina escolheu o artista Ernesto Neto, cujo percurso mostra que currículos anacrônicos e empregos globalizados são dispensáveis, para dar um depoimento de sua experiência. O objetivo agora consiste em incentivar o debate qualificado sobre os valores sociais implícitos nos processos educativos. Com a modernidade, lembra-nos Adorno, a educação só tem sentido se dirigida a uma autorreflexão crítica. Chamada de artigos para o próximo número, marcelina 5 – Até 15 de setembro de 2010 Mestre da transmissão da modernidade, Walter Benjamin (1892-1940) continua sendo o filósofo mais lido nos departamentos de história e crítica de arte. A revista marcelina 5 prepara para o segundo semestre de 2010 uma homenagem com textos que procuram desvendar as possíveis causas da posteridade inesperada de um dos pensadores mais originais da experiência estética na urbe. De onde vem a pertinência de sua reflexão sobre a fotografia, a despeito de todas as invenções tecnológicas, rupturas e radicalidades dos movimentos artísticos? Como explicar a longevidade de figuras conceituais como o flâneur, o narrador e o colecionador, entre muitos outros? Teria Benjamin deixado alguma “metodologia” para a era do virtual e do digital? 15
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L ' ar t i ste doit-il aller a l' u n iversité ?
Marchel Duchamp
Bête comme un peintre. Ce proverbe français remonte au moins au temps de la vie de Bohème de Murger, de 1880, et s'emploie toujours comme plaisanterie dans les discussions. Pourquoi l'artiste devrait-il être considéré comme moins intelligent que Monsieur tout-le-monde ? Serait-ce parce que son adresse technique est essentiellement manuelle et n'a pas de rapport immédiat avec l'intellect ? Quoi qu'il en soit, on tient généralement que le peintre n'a pas besoin d'une éducation particulière pour devenir un grand Artiste. Mais ces considérations n'ont plus cours aujourd'hui, les relations entre l'Artiste et la société ont changé depuis le jour où, à la fin du siècle dernier, l'Artiste affirma sa liberté. Au lieu d'être un artisan employé par un monarque, ou par l'Église, l'artiste d'aujourd'hui peint librement, et n'est plus au service des mécènes auxquels, bien au contraire, il impose sa propre esthétique. En d'autres termes, l'Artiste est maintenant complètement intégré dans la société. Émancipé depuis plus d'un siècle, l'Artiste d'aujourd'hui se présente comme un homme libre, doté des mêmes prérogatives que le citoyen ordinaire et parle d'égal à égal avec l'acheteur de ses oeuvres. Naturellement, cette libération de l'Artiste a comme contrepartie quelquesunes des responsabilités qu'il pouvait ignorer lorsqu'il n'était qu'un paria ou un être intellectuellement inférieur. Parmi ces responsabilités, l'une des plus importantes est l'ÉDUCATION de l'intellect, bien que, professionnellement, l'intellect ne soit pas la base de la formation du génie-artistique. 16
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Sandra Rey*
Palavras-chave arte contemporânea; artista; formação do artista; carreira artística. Key words contemporary art; artist; artist training; career.
DOSSIÊ | UM APRENDIZADO POSSíVEL...?
O que s i g n i f i c a , h o j e , s e r ar tista e o q u e s e e s p e ra d a form aç ão d o ar tista?
Resumo: Este artigo baseia-se no texto de Duchamp “Deve o artista cursar a universidade?” para propor uma reflexão acerca do papel do artista e da arte na sociedade contemporânea. Por conseguinte, busca refletir sobre o significado, hoje, de ser artista e a operacionalidade das propostas de formação do artista nos currículos dos cursos de artes visuais, em institutos e faculdades de graduação e pós-graduação, implantados nas diversas universidades do país. Abstract: This article is based on the text by Duchamp “L’artiste doit-il aller à l’université?” to propose a thought about the role of artist and art in contemporary society. We suggest a reflection about the significance of being an artist today and a speculation about the studies programs in the training of artists in the visual arts at graduate and postgraduate degrees.
* Sandra Rey é artista plástica, desenvolve uma produção artística com base na fotografia e tratamento de imagens por computador; é professora associada no Departamento de Artes Visuais da UFRGS. Docente permanente nos Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS e da UFSM. Desenvolve pesquisa com apoio do CNPq.
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Très évidemment la profession d'Artiste a pris sa place dans la société d'aujourd'hui à un niveau comparable à celui des professions ‘‘libérales’’. Ce n'est plus, comme avant, une espèce d'artisanat supérieur. Pour rester à ce niveau et pour se sentir à égalité avec les avocats, les médecins etc. l'Artiste doit recevoir la même formation universitaire. Qui plus est, l'Artiste joue dans la société moderne un rôle beaucoup plus important que celui d'un artisan ou d'un bouffon. Il se trouve face-à-face avec un monde fondé sur un matérialisme brutal où tout s'évalue en fonction du BIEN-ÊTRE MATÉRIEL et où la religion, après avoir perdu beaucoup de terrain, n'est plus la grande dispensatrice de valeurs spirituelles. Aujourd'hui l'Artiste est un curieux réservoir de valeurs paraspirituelles en opposition absolue avec le FONCTIONNALISME quotidien pour lequel la science reçoit l'hommage d'une aveugle admiration. Je dis aveugle, car je ne crois pas en l'importance suprême de ces solutions scientifiques qui ne touchent même pas aux problèmes personnels de l'être humain. Par exemple, les voyages interplanétaires semblent être l'un des tout premiers pas vers le soi- disant ‘‘progrès scientifique’’ et pourtant en dernière analyse, il ne s'agit que d'un agrandissement du territoire mis à la disposition de l'homme. Je ne puis m'empêcher de considérer cela comme une simple variante du MATÉRIALISME actuel qui emporte l'individu de plus en plus loin de la quête de son moi intérieur. Cela nous amène à l'importante préoccupation de l'Artiste d'aujourd'hui qui est, à mon sens, de s'informer et de se tenir au courant du soi-disant PROGRÈS MATÉRIEL QUOTIDIEN. Doté d'une formation universitaire comme l’est, l'Artiste n'a pas à craindre d'être assailli par des complexes dans ses relations avec ses contemporains. Grâce à cette éducation, il possédera les outils adéquats pour s'opposer à cet état de choses matérialiste par le canal du culte du moi dans un cadre de valeurs spirituelles. Pour illustrer la situation de l'Artiste dans le monde économique contemporain, on observera que tout travail ordinaire est rémunéré plus ou moins selon le nombre d'heures passées à l'accomplir, alors que dans le cas d'une peinture, le temps consacré à son exécution n'entre pas en ligne de compte lorsqu'il s'agit de fixer son prix, et que ce prix varie avec la notoriété de chaque artiste. Les valeurs spirituelles ou intérieures ci-dessus mentionnées et dont l'Artiste est pour ainsi dire le dispensateur, ne concernent que l'individu pris séparément, par contraste avec les valeurs générales qui s'appliquent à l'individu partie de la société.
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Em 1960, quando raras eram as universidades que mantinham entre seus institutos ou faculdades cursos de arte, Duchamp escreveu um artigo defendendo o fazer do artista “como profissão que havia conquistado um lugar na sociedade, comparável à dos profissionais liberais”, portanto, argumenta, “para sentir-se em situação de igualdade com os advogados ou médicos, o artista deveria receber uma formação universitária”. O artigo, pronunciado por Duchamp num colóquio organizado na Universidade de Hofstra (Nova York, 13 de maio de 1960), tem o título provocador “Deve o artista cursar a universidade?” (L’artiste doit-il aller à l’université?1) e inicia com uma provocação maior ainda, citando o provérbio francês: “bête comme un peintre” (burro como um pintor), expressão abusada que remonta aos tempos da vida de Bohème de Murger, em 1880, e que, na época de Duchamp, ainda era empregado como zombaria em rodas sociais. Duchamp contesta o fato de o artista, na sua época, não precisar de formação específica para desenvolver uma habilidade técnica essencialmente manual sem relação imediata com o intelecto. Apesar de reconhecer, textualmente, que o intelecto não está na base da formação do gênio artístico, ele defende a responsabilidade do artista em relação ao que denomina “EDUCAÇÃO do intelecto”. O argumento principal de sua tese se constrói em torno da constatação de um “materialismo brutal”, crescente na sociedade, onde tudo se avalia em função do “BEM-ESTAR MATERIAL”, escrito assim, com todas as letras maiúsculas — e onde a religião perdeu terreno e não é mais quem propaga os valores espirituais, distantes do “funcionalismo cotidiano”. Prosseguindo, lemos: “em oposição ao pragmatismo que orienta o cotidiano distanciando cada vez mais o indivíduo de uma busca de interiorização”. O artista deveria estar, então, atualizado em relação ao progresso material para exercer sua crítica e promover valores de ordem espiritual. Assim como estabelecera, um século antes, Max Stirner, em Der Einziger und Sein Eigentum (1844-5)2, uma parte da educação e formação universitária “desenvolve as faculdades mais profundas do indivíduo, a autoanálise e o contato com o conhecimento da herança espiritual” Deduz-se que Duchamp credite à formação universitária a contribuição para uma sólida formação humanista, fundamental para o artista desenvolver as ferramentas adequadas para a elaboração e o exercício de um pensamento crítico, via obra, a esse “estado de coisas de ordem materialista”: Acredito que hoje mais do que nunca o Artista tem essa missão para1 Marcel Duchamp, “L’artiste doit-il aller à l’université?” Texto pronunciado por Duchamp em colóquio organizado pela Universidade de Hofstra, Nova York, em 13 de maio de 1960. Esse texto pode ser encontrado no livro organizado por Michel Sanouillet, Marcel Duchamp: Duchamp du signe. Écrits réunis et présentées par Michel Sanouillet. Paris: Flammarion, 1994, p. 236-239. Nota da Edição: Para acompanhar o presente texto, a revista marcelina reproduz, na sequência do artigo de Sandra Rey, o original que circula livremente na internet em diversos endereços, entre eles: http://esarueil.info/ecole/pfougeroux/ TEXTESpdf/A-E/Duchamp,tradition.pdf. 2 Nota da Edição: Essa obra de Max Stirner [Johann Kaspar Schmidt] recebeu várias traduções em inglês, tais como The Ego and Its Own e The Individual and His Property [O único e sua propriedade], entre outras. A despeito do autor, suas ideias são comumente associadas ao pensamento anarquista individualista. O que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? | Sandra Rey
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Et sous l'apparence, je suis tenté de dire sous le déguisement, d'un membre de la race humaine, l'individu est en fait tout à fait seul et unique et les caractéristiques communes à tous les individus pris en masse n'ont aucun rapport avec l'explosion solitaire d'un individu livré à lui-même. Max Stirner, au siècle dernier, a très clairement établi cette distinction dans son remarquable ouvrage Der Einziger und Sein Eigentum, et si une grande partie de l'éducation s'applique au développement de ces caractéristiques générales, une autre partie, tout aussi importante, de la formation universitaire développe les facultés plus profondes de l'individu, l'auto-analyse et la connaissance de notre héritage spirituel. Telles sont les importantes qualités que l'Artiste acquiert à l'Université et qui lui permettent de maintenir vivantes les grandes traditions spirituelles avec lesquelles la religion elle-même semble avoir perdu le contact. Je crois qu'aujourd'hui plus que jamais l'Artiste a cette mission para-religieuse à remplir: maintenir allumée la flamme d'une vision intérieure dont l'oeuvre d'art semble être la traduction la plus fidèle pour le profane. Il va sans dire que pour accomplir cette mission le plus haut degré d'éducation est indispensable. Texte d'une allocution (en anglais) prononcée par M.D. lors d'un colloque organisé à Hofstra le 13 mai I960. Propos Ce qui ne va pas en art dans ce pays [U.S.A.] aujourd'hui, et apparemment en France aussi, c'est qu'il n'y a pas d'esprit de révolte - pas d'idées nouvelles naissant chez les jeunes artistes. Ils marchent dans les brisées de leurs prédécesseurs, essayant de faire mieux que ces derniers. En art, la perfection n'existe pas. Et il se produit toujours une pause artistique quand les artistes d'une période donnée se contentent de reprendre le travail d'un prédécesseur là où il l'a abandonné et de tenter de continuer ce qu'il faisait. D'autre part, quand vous choisissez quelque chose appartenant à une période antérieure et que vous l'adaptez à votre propre travail, cette démarche peut être créatrice. Le résultat n'est pas neuf: mais il est nouveau dans la mesure où il procède d'une démarche originale. L'art est produit par une suite d'individus qui s'expriment personnellement; ce n'est pas une question de progrès. Le progrès n'est qu'une exorbitante prétention de notre part. Par exemple, il n'y a pas eu de progrès marqué par Corot sur Phidias. Et ‘‘abstrait’’ ou ‘‘naturaliste’’ ne sont qu'une façon de parler à la mode - aujourd'hui. Il n'y a pas de problème: un tableau abstrait peut fort bien ne pas paraitre ‘‘abstrait’’ du tout dans cinquante ans. 20
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religiosa a cumprir: manter acesa a chama de uma visão interior, em que a obra de arte parece ser a tradução mais fiel para o profano.
Inútil acrescentar que, para cumprir essa missão, torna-se indispensável a educação no seu mais alto nível. Os argumentos enfatizam a crença de Duchamp na responsabilidade do artista quanto ao desenvolvimento de sua capacidade de reflexão e posicionamento crítico diante do que denomina “pragmatismo materialista”, identificado na sociedade na sua época. Esse texto adquire caráter exemplar entre os escritos e notas legados em função do fato de o artista ter se consagrado a banir a imagem do artista-artesão através de sua atuação e, entre as suas estratégias, ter optado por fazer publicamente, enquanto Artista, muitas outras coisas além da pintura: publicações, readymades, matemática, partidas de xadrez, viagens e temporadas na montanha, em casa de amigos, e multiplicando suas atividades enquanto agente, na arte, prestando consultorias para colecionadores na compra de obras, fazendo curadorias de exposições e marcando presença no mundo da arte, em Nova York. Enquanto isso, deu continuidade por vinte anos consecutivos (de 1946 a 1966), em segredo, à sua grande obra, Étant donnés: 1° la chute d’eau / 2° le gaz d’éclairage. Qual a atualidade, ainda hoje, desse texto provocador? Dos anos sessenta a 2010, passaram cinquenta anos, a arte transformou de maneira radical seus modos operatórios. Duchamp foi, sabemos, um dos principais responsáveis na arrancada da conversão da arte moderna naquilo que denominamos “arte contemporânea”3, em consonância, decerto, com as profundas mudanças promovidas pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e das reviravoltas sociais em razão da crescente globalização. É interessante observar a ideia de Duchamp – neste texto histórico no qual grafa o termo Artista com “A”, em caixa-alta,– sobre o papel do artista na sociedade, na defesa de valores humanistas. Donde a pertinência de trazê-lo na tentativa de responder à solicitação temática do dossiê da presente edição da marcelina, a saber: analisar as questões que permeiam a profissão de artista e o ensino da arte, face às contingências da cultura globalizada. Diante da complexidade do tema, introduzimos três perguntas para direcionar as reflexões: 1. O que significa, hoje, ser artista? 2. O que se espera, do artista de hoje? 3. Os currículos dos cursos de artes visuais respondem aos encaminhamentos da arte contemporânea? 4
3 Cf. Ver Anne Cauquelin sobre arte contemporânea. 4 Ver a esse respeito Mirtes Marins de Oliveira. ‘‘Formação do artista no século 21’’. Revista Trópico http://p.php.uol.com. br/tropico/html/textos/3174,1.shl. O que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? | Sandra Rey
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[…] Le Futurisme était un impressionnisme du monde mécanique, C'était la suite directe du mouvement impressionniste. Cela ne m'intéressait pas. Je voulais m'éloigner de l'acte physique de la peinture. Pour moi le titre était très important. Je m'attachai à mettre la peinture au service de mes objectifs, et à m'éloigner de la ‘‘physicalitè’’ de la peinture. Pour moi Courbet avait introduit l'accent mis sur le côté physique au XIXe siècle. Je m'intéressais aux idées - et pas simplement aux produits visuels. Je voulais remettre la peinture au service de l’esprit. Et ma peinture fut, bien entendu, immédiatement considérée comme ‘‘intellectuelle’’, ‘‘littéraire’’. I1 était vrai que je tâchais à me situer aussi loin que possible des tableaux physiques ‘‘agréables’’ et ‘‘attirants’’. Cette situation extrême fut considérée comme littéraire. Mon Roi et Reine représentaient un roi et une reine d'échecs. En fait jusqu'à ces cent dernières années, toute la peinture était littéraire ou religieuse: elle avait été mise au service de l'esprit. Cette caractéristique s'est peu à peu perdue au cours du siècle dernier Plus un tableau faisait appel aux sens - plus il devenait animal - plus i1 était prisé. Ce fut une bonne chose d'avoir eu le travail de Matisse pour la beauté qu'il rayonnait. Et pourtant il a créé une nouvelle vague de peinture physique en ce siècle ou du moins maintenu la tradition que nous avons héritée des maîtres du XIXe siècle. 3 Dada fut la pointe extrême de la protestation contre l'aspect physique de la peinture. C'était une attitude métaphysique. Il était intimement et consciemment mêlé à la ‘‘littérature’’. C'était une espèce de nihilisme pour lequel j'éprouve encore une grande sympathie. C’était un moyen de sortir d'un état d'esprit - d'éviter d'être influencé par son milieu immédiat, ou par le passé: de s'éloigner des clichés - de s’affranchir. La force de vacuité de Dada fut très salutaire. Dada vous dit: ‘‘N'oubliez pas que vous n'êtes pas aussi vide que vous le pensez !’’ D'habitude un peintre confesse qu'il a ses jalons. I1 va d'un jalon à l'autre. En fait, il est l'esclave de ses jalons - même s 'ils sont contemporains. Dada fut très utile comme purgatif. Et je crois en avoir été profondément conscient à l'époque et avoir éprouvé le désir de me purger moi-même. Je me rappelle certaines conversations avec Picabia sur ce sujet. Il était plus intelligent que la plupart de mes contemporains. Les autres étaient pour ou contre Cézanne. Personne ne pensait qu` il pût y avoir quelque chose au-delà de l'acte physique de la peinture. On n’enseignait aucune notion de liberté, aucune perspective philosophique. Naturellement, les Cubistes étaient fertiles en inventions à ce moment-là. Ils avaient assez de chats à fouetter pour ne pas s'inquiéter de perspective philosophique ; et le Cubisme m'a donné beaucoup d'idées 22
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Seguem algumas hipóteses para postular o curso “ideal” e desejado, com vistas a parâmetros aptos a responder aos anseios dos jovens na sua preparação para exercer uma carreira artística. É fato corriqueiro, hoje, que artistas frequentem universidades, assim como grande parte dos cursos de artes visuais esteja nelas concentradas. Além disso, a formação do artista na universidade não se restringe aos estudos em bacharelados e licenciaturas: a pós-graduação stricto sensu com suas formações em nível de mestrado e doutorado tem atraído bons artistas e adquirido importância crescente diante da necessidade de consolidar conhecimentos teóricos e adensar processos artísticos desenvolvendo metodologias de pesquisa. Não se trata, portanto, diante da realidade que se coloca, no Brasil e no mundo, de conjeturar se o artista deve ou não cursar a universidade: o jovem artista está inserido nesse contexto desde que busque um aprofundamento de seus estudos anteriores, e também se encontrará no contexto universitário caso opte por seguir uma carreira paralela, como a de professor e pesquisador. Antes, contudo, de elaborar qualquer formulação ou proposta sobre o que se espera em termos de formação do artista, cabe pensar o que significa, hoje, ser artista. Tenhamos em mente que nem sempre fora assim e também a discrepância da situação do século XIX, quando artistas se formavam em um contexto, aparentemente mais confiável, de transmissão e conservação de um ofício cuja natureza e contornos eram admitidos e reconhecidos. Enquanto a figura do artista foi claramente identificável em carreiras definidas (pintor de paisagem, retratista de monarcas ou da Igreja, escultor de encomendas públicas ou gravador, por exemplo), a pergunta o que significa ser artista não tinha muita relevância, uma vez que, desde que tivesse recebido certa legitimidade por suas habilidades técnicas e adquirido prestígio pela originalidade de sua obra, o artista tinha seu papel socialmente garantido. Hoje, no entanto, podem ser verificadas várias maneiras de desempenhar uma carreira artística — entre elas algumas ainda conservam traços mais tradicionais, outras estão em vias de formação e consolidação, outras, ainda, mantêm-se presentes. Mas surge com clareza a afirmação de uma figura artística sem precisão, sem lugar assegurado na sociedade contemporânea. A constatação dificulta a tarefa de tecer considerações a respeito do que significa ser artista, hoje. Yves Michaud5 aponta um paradoxo: “a necessidade da arte e do artista nunca é discutida, mas nem por isso é clara, na sociedade”. Podemos argumentar que não concebemos imaginar uma sociedade sem arte, e então vamos atribuir crédito quando esse autor afirma que “parece evidente que tanto a arte quanto os artistas são necessários e constituem, em certo sentido, a saúde do corpus social. Apesar disso, não há debate que discuta por que é preciso que haja arte e artistas”.
5 Yves Michaud, Enseigner l’art? Paris: Jacqueline Chambon, 1993. O que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? | Sandra Rey
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relatives à la décomposition des formes. Mais je pensais à l'art sur une autre échelle. On discutait ferme à l'époque de la quatrième dimension et de la géométrie non-euclidienne. Mais la plupart des gens considéraient ces problèmes en amateurs. Metzinger s'y intéressait particulièrement. Et, en dépit de tous nos malentendus ces idées nouvelles nous aidèrent à prendre nos distances à l'égard des banales habitudes de penser - des platitudes de café et de studio. Brisset et Roussel étaient les deux hommes que j'admirais le plus en ces années pour leur imagination délirante. Jean-Pierre Brisset avait été découvert par Jules Romain grâce à un livre qu'il avait trouvé sur les quais. L'oeuvre de Brisset était une analyse philologique du langage - analyse conduite par un incroyable réseau de calembours. C'était une manière de Douanier Rousseau de la philologie. Romains le présenta à ses amis. Et ceux-ci, comme Apollinaire et ses compagnons, organisèrent une manifestation en son honneur au pied du Penseur de Rodin devant le Panthéon, où il fut acclamé Prince des Penseurs. Mais Brisset fut un être vrai qui vécut pour être ensuite oublié. Roussel aussi suscita mon enthousiasme d'alors. Je l'admirais parce qu'il apportait quelque chose que je n'avais jamais vu. Cela seul peut tirer de mon être le plus profond un sentiment d'admiration - quelque chose qui se suffit à soi-même - rien à voir avec les grands noms ou les influences. Apollinaire fut le premier à me montrer les oeuvres de Roussel. C'était de la poésie. Roussel se croyait philologue, philosophe et métaphysicien. Mais il reste un grand poète. C'est Roussel qui, fondamentalement, fut responsable de mon Verre, La Mariée mise à nu par ses célibataires, même. Ce furent ses Impressions d'Afrique qui m'indiquèrent dans ses grandes lignes la démarche à adopter. Cette pièce que je vis en compagnie d'Apollinaire m'aida énormément dans l'un des aspects de mon expression. Je vis immédiatement que je pouvais subir l'influence de Roussel. Je pensais qu'en tant que peintre, il valait mieux que je sois influencé par un écrivain plutôt que par un autre peintre. Et Roussel me montra le chemin. Ma bibliothèque idéale aurait contenu tous les écrits de Roussel - Brisset, peutêtre Lautréamont et Mallarmé. Mallarmé était un grand personnage. Voilà la direction que doit prendre l'art: l'expression intellectuelle, plutôt que l'expression animale. J'en ai assez de l'expression ‘‘bête comme un peintre’’. Propos en anglais recueillis par J.J. Sweeney in The Bulletin of the Museum of Modern Art, vol. XIII, n°4-5, New York, 1946, pp. 19-21
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Não se pode negar que a perda de pontos de referência — uma característica de nossa época — acarreta, na formação do jovem artista, para além do domínio de questões técnicas, a necessidade de desenvolver ferramentas conceituais para exercer certa acuidade intelectual, fundada em conhecimentos da teoria da arte e da cultura. Por isso, formulamos a seguinte hipótese: hoje, espera-se do artista, minimamente, o domínio de um misto de práticas, de técnicas e de conceitos. Tal hipótese se confirma, em parte, em função de um modo de articulação da arte e da sociedade contemporâneas, em que os dados da história e da cultura funcionam como um grande reservatório à disposição dos artistas e de todos os agentes da cultura. Essas referências, porém, não são processadas de maneira explícita; aparecem de forma codificada, como pontas de icebergs que deixam aparecer na superfície a parcela menor em relação ao que fica submerso. E, uma vez que as referências não são completamente explícitas nas práticas artísticas contemporâneas, espera-se que o artista seja capaz de formular com nitidez o pensamento que dá sustentação a seu processo artístico, que saiba contextualizar um certo número de referências a que seu trabalho faz menção, e que possa, também, exercer alguma capacidade analítica perante a produção de seus pares. Constitui-se um desafio para os jovens artistas buscar um justo equilíbrio no vaivém constante entre as particularidades do trabalho e suas problemáticas artísticas, existenciais, sociais e políticas. É altamente desejável desenvolver a capacidade de relacionar questões gerais, identificadas na sociedade, e a abstração dos conceitos, com a singularidade da proposta do trabalho e, inversamente, amarrar essa singularidade com as questões que a ultrapassam. Eis o papel da reflexão e da teoria. Para que um jovem artista possa hoje “existir”, deve saber onde se situa, isto é, saber localizar sua produção em relação à de seus contemporâneos; saber circunscrever suas referências e trabalhar em nível consciente certos diálogos e tensões que seu trabalho estabelece com manifestações contemporâneas e paradigmáticas. Uma vez reconhecido que a função e a missão do artista na sociedade contemporânea não são mais claramente identificáveis, e que nem as funções sociais da arte o são, desenvolver uma carreira artística requer algo mais: ser artista, hoje, implica saber orientar-se entre inúmeras possibilidades que são oferecidas — o que reforça a necessidade de um nível mais aprofundado de reflexão. A íntima relação que a arte do nosso tempo mantém com as diversas formas de conhecimento, e a cultura em geral, conduz à terceira questão: estariam os currículos dos cursos de artes visuais, oferecidos pelas universidades, faculdades ou outras instituições, em consonância com os encaminhamentos e direções apontados pela arte contemporânea? À primeira vista, não há razões para pessimismo, uma vez que a arte brasileira não só se encontra em franca ascensão, tanto em termos de qualidade como de visibilidade no país, mas também goza de prestígio internacional. Grande parte dos artistas em atividade, desde a última década, passaram por uma graduação e pósgraduação, ou, no mínimo, a estão cursando. É, portanto, pertinente colocar em eviO que significa, hoje, ser artista e o que se espera da formação do artista? | Sandra Rey
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dência o trabalho, o que se poderia denominar “missão” nos mais diversos programas mantidos pelas universidades. Um curso de artes visuais deve cumprir certas funções visando o desenvolvimento de competências humanas: ensinar, praticar, produzir, refletir e pesquisar. Ensinar significa exercitar um domínio de procedimentos e métodos a ser colocados em prática. O curso de artes visuais ensina procedimentos e técnicas a ser colocados à prova. Essa aprendizagem está relacionada com a arte num sentido mais amplo: abrange desde o ensino do desenho, das técnicas de pintura, de gravura e fotografia, e se estende, atualmente, até as inúmeras possibilidades de tratamento digital de imagens, edição de vídeos assistida por computador, ao domínio ou escrita de programas para a concepção de instalações interativas ou propostas na web, por exemplo. É imenso o número de procedimentos e processos que um jovem artista pode aprender, se considerarmos o legado de técnicas utilizadas num momento ou outro, em diversos períodos, aqui ou lá, na história da humanidade, somadas ao crescimento exponencial de possibilidades abertas com o advento da tecnologia. Se considerarmos procedimentos híbridos, concebidos por cruzamentos de operações, apropriações e deslocamentos de técnicas e conceitos de outros campos do conhecimento ou científicos (tais como informática, robótica, medicina, antropologia, sociologia, biologia, genética), as opções se alargam ainda mais. Para o jovem artista, é muito bem-vinda toda possibilidade de investigar e testar invenções a serviço de suas ideias. Mas, para além das questões técnicas, é fundamental desenvolver a capacidade de articular um projeto pessoal com demandas, questões, contradições e tensões identificadas no mundo e na sociedade contemporânea. Nesse sentido, o currículo dos cursos de graduação deveria, além de ensinar e transmitir técnicas, criar espaços para experimentações, práticas e produção artísticas. No âmbito de uma formação de qualidade, contam muito a intensidade do fazer e o clima de entusiasmo entre os participantes. Portanto, enquanto lugar de produção, os cursos de artes visuais devem acolher e propiciar condições de trabalho para um número significativo de praticantes. Esse fator deve-se, em parte, à presença de professores-artistas no corpo docente, sem deixar de mencionar os críticos e teóricos e, em outra parte, à presença de estudantes munidos de boas pesquisas. O reconhecimento da produção leva em conta uma qualidade baseada em critérios de originalidade, relevância cultural, referencialidade dentro do campo da arte e da reflexão; revela-se na repercussão pública da produção de seu quadro docente e no caráter promissor do trabalho dos estudantes. É preciso considerar, porém, uma certa cisão entre o encadeamento das estruturas curriculares da graduação e da pós-graduação, que se averigua em inúmeras universidades brasileiras. Verifica-se que os currículos da graduação são mais orientados à aquisição de habilidades técnicas iniciais para o desenvolvimento da carreira artística, guardando resquícios acentuados da academia de Belas-Artes nos moldes do 26
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século XIX, organizada através do aprendizado de técnicas em ateliês, que correspondem às categorias tradicionais da arte. Por outro lado, constata-se, na pós-graduação, o encaminhamento de uma produção artística para metodologias de pesquisas articuladas com conhecimentos interdisciplinares estabelecidos a partir da articulação do campo de ação com estudos teóricos solidamente ancorados. A cisão entre estudos propostos pela graduação e pós-graduação poderia ser resumida assim: na graduação, pratica-se; na pós-graduação, pesquisa-se e aprofunda-se a reflexão teórica. Na qualidade de lugar por excelência de ensino de técnicas e de prática, os cursos de artes visuais deveriam considerar a possibilidade de fluência maior entre os currículos da graduação e da pós-graduação, e abrigar em ateliês e laboratórios um conjunto de meios técnicos e tecnológicos especializados, apoiados também por seminários e amplos debates acerca dos fundamentos teóricos. Nunca é demais reforçar, numa situação em que, na arte contemporânea, cruzam-se indissociavelmente práticas, técnicas, reflexões, saberes e pensamentos, a necessidade de uma boa formação teórica para desenvolver habilidades intelectuais coerentes com algum domínio técnico. Ateliês e laboratórios, base de sustentação do ensino na graduação, são imprescindíveis, mas devem ser também colocados à disposição de pequenos grupos de estudantes, sob a supervisão de formadores competentes, na pós-graduação. Inversamente, uma boa formação teórica, ministrada nos ateliês e laboratório da graduação na forma de seminários com base na leitura de textos sólidos e na visita à produção de artistas por meio de imagens e depoimentos, orais e escritos, por exemplo, prestaria serviços inestimáveis à consistência e qualidade das propostas artísticas desde a graduação. Para incentivar os jovens artistas, uma formação respaldada por bases teóricas é fundamental, mais ainda: é essencial que essa iniciação possa se dar desde os primeiros semestres, nos cursos de graduação. Se reconhecemos que as manifestações da arte contemporânea não pressupõem a existência de um estilo ou de um conjunto de regras adotadas a priori, qualquer procedimento ou operação pode ser validado, desde que respaldado por referências no campo e constatada a coerência com a trajetória do artista. Se persistimos em pensar que ser artista supõe uma maneira própria de ser; que implica ser inovador e crítico ao mesmo tempo e, portanto, presume lucidez intelectual, concordaremos em considerar a formação teórica como fundamental, de par com a formação técnica. Não seria, então, mais operacional supor que os currículos da graduação e da pósgraduação pudessem projetar o aprendizado técnico e a pesquisa, consolidados por conhecimentos teóricos, sem intermitência, nos dois níveis de aprofundamento dos estudos, graduação e pós-graduação?
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Referências bibliográficas CAUQUELIN, Anne. L’art contemporain. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. DUCHAMP, Marcel. L’artiste doit-il aller à l’université? Texto pronunciado em colóquio. Hofstra, 13 de maio de 1960. DUCHAMP, Marchel. Duchamp du Signe. Écrits réunis et présentés par Michel Sanouillet. Paris: Flammarion, 1994. MADOFF, Steven Henry. Art School – Propositions for the 21st Century. Cambridge, MA: MIT Press, 2009. MICHAUD, Yves. Enseigner l’art? Paris: Jacqueline Chambon, 1993. OLIVEIRA, Mirtes Marins de. “Formação do artista no século 21”. Seguido de enquete realizada por GIOIA, Mario (com Alex Cerveny, Ana Tavares, Anderson Cunha, Beatriz Milhazes, Carlito Carvalhosa, Maurício Ianês, Laura Belém, Lucia Laguna, Martinho Patrício, Nazareth Pacheco, Oriana Duarte, Paulo Pasta, Regina Parra, Renata Lucas e Xiclet) e CONDE, Ana Paula. ‘‘Arte e política da educação. Entrevista com Charles Watson”. In: revista eletrônica Trópico (www.uol.com.br/tropico), seção “em obras”. TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp: uma biografia. Prefácio de Paulo Venancio Filho. São Paulo: Cosac Naify, tradução de Maria Thereza de Rezende Costa, 2004.
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O ens in o d e ar tes e a fo rm aç ão d o ar tis ta n a ac ad e m ia Milton Terumitsu Sogabe*
Palavras-chave arte/academia; artista; bacharel; formação. Key words art/ academy; artist; bacharel; training.
Resumo: O texto discute questões do ensino de arte na academia, e sua relação com a formação do artista. Apresenta transformações na figura do artista/professor para o de pesquisador/artista e insere a formação do artista num contexto mais amplo que o da academia. Discute também o perfil do egresso do bacharelado em artes visuais.
Abstract: This paper discusses some key issues in teaching art in classroom and its relation to training artist. It presents changes from the artist/teacher to researcher/artist and includes learning process in a wider context. It also deals with the profile of the bacharel degree in visual arts.
* Milton Terumitsu Sogabe, Departamento de Artes Plásticas do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, Brasil. Atua como artista desde 1975 e como docente desde 1976. Coordenador do curso de Bacharelado em Artes Plásticas do Instituto de Artes da Unesp (1996/1998-1998/2000) e membro do Conselho desde 2000. Coordenador do programa de pós-graduação em artes do Instituto de Artes da Unesp (2005-2007) e membro do Conselho desde 2007. Foi vice-diretor do Instituto de Artes da Unesp (2000-2004). Integra comissões da Capes na área de artes e é parecerista da Fapesp, CNPq e Capes.
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A discussão sobre a formação do artista ultrapassa a relação entre arte e academia. O sistema de arte é constituído por vários agentes (artistas, críticos, museus, galerias, escolas, público, mercado e mídia) que influenciam o sistema e são influenciados simultaneamente, (re)definindo conceitos e comportamentos, construindo visões de mundo e determinando o que é arte e artista. Refletir sobre esse sistema é uma tarefa complexa que só podemos fazer por partes, delimitando certos contextos, mas tendo em mente o reconhecimento dessa conexão que excede o lugar da academia. O contexto proposto aqui é o do ensino de arte e da formação do artista na academia, uma discussão constante, em virtude dos dilemas que ainda apresenta a relação desses elementos. Fazer um curso de arte numa universidade para se tornar um artista parece ser algo óbvio, porém na prática não é o que acontece, uma vez que nem todos, ou pouquíssimos, egressos tornam-se artistas. Por outro lado, conhecemos vários artistas consagrados que nunca frequentaram uma escola e não possuem nenhum diploma em artes. Os caminhos para a formação do artista não parecem ser preestabelecidos, mas também não podemos descartar que a graduação em artes não seja um dos caminhos possíveis. Antes de iniciarmos especificamente a questão da arte na academia, acentuamos novamente que a formação de um artista ultrapassa esse contexto, haja vista as biografias dos mais diversos artistas, do popular ao erudito, abrangendo as mais variadas linguagens. O que define o artista é uma produção valorizada e reconhecida pelo sistema de arte. Essa conquista não requer um único caminho, tampouco é garantida por ele. Há o caminho do autodidata, que aprende por paixão e força de vontade, buscando informações e experimentações para construir uma obra a ser inserida no sistema de arte. Geralmente esse indivíduo possui formação em outra área, mas acaba dedicando-se também, ou exclusivamente, à arte, caso obtenha subsistência financeira com esse trabalho. Os artistas populares, em sua maioria, também possuem esse tipo de formação, que se insere no contexto do artesanato, mas que pode ganhar destaque e relevância internacional, mesmo no sistema oficial da arte. A relação mestre/discípulo, que proporciona a convivência e aprendizado com um artista já constituído, ainda é uma forma tradicional de formação do jovem artista. O discípulo é uma figura frequente para propagar as ideias e influências de um artista. Há também os cursos livres, geralmente voltados para técnicas específicas. Há muitas escolas de arte, centros culturais, museus e até mesmo universidades com cursos de arte de curta duração com conteúdos específicos em desenho, pintura, gravura, escultura e história da arte. Alguns artistas oferecem cursos em seus ateliês, podendo envolver-se com os alunos na relação já mencionada mestre/discípulo, de forma mais amena, porém, a produção do aluno quase sempre adquire as características marcantes do “mestre” ou professor. Já o ensino formal, por meio de bacharelados ou licenciaturas em arte, busca sistematizar as disciplinas, assim como todas as informações teóricas e práticas sobre arte para a formação do “artista” e/ou professor de arte.
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Embora possamos encontrar artistas com formações diversificadas, estas se encontram basicamente dentro dos percursos acima mencionados. A qualificação ou desqualificação genérica de uma ou outra é relativa, dada a presença de importantes artistas em todos esses trajetos de formação. Os cursos podem oferecer informações e experimentações artísticas de forma sistematizada, e todos podem aprender as mais diversas linguagens, conhecer a história da arte, discutir conceitos e fatos contemporâneos, mas a formação do artista nunca deixará de abranger um histórico de vida, vivências pessoais que vão construir uma poética, uma visão de mundo do ponto de vista de um artista, sem o qual não se constrói um conjunto de obras e não se conclui efetivamente a formação. Conhecer arte e dominar uma linguagem plástica ou visual, assim como um diploma de bacharel em arte, não assegura a construção de uma obra que tornará o indivíduo um artista aceito e reconhecido dentro do sistema de arte. A riqueza da arte é a diversidade, como o próprio processo da vida e toda obra de arte é um autorretrato, produto da rede, das conexões mentais (Salles, 2006) que o indivíduo constrói através da sua vivência e canaliza para sua poética, e isso não parece ser possível de ensinar em nenhuma escola, que no máximo poderá proporcionar as condições de um ambiente complexo para que isso possa acontecer. O ensino de arte é essencial, uma vez que alimenta o sistema com indivíduos que vão atuar de diversas maneiras e de acordo com seus sonhos, projetos e pensamentos a respeito do que deva ser arte e que provocam mudanças constantes nesse sistema. O ensino de arte na academia Na academia, o ensino de arte acontece atualmente através dos bacharelados e das licenciaturas em arte. Muitos cursos oferecem ao licenciado praticamente a mesma formação do bacharel, diferenciando-se pelas disciplinas pedagógicas e uma ou outra disciplina específica exclusiva do bacharelado. Outra possibilidade é a formação dupla, na qual o formando pode obter dois diplomas em quatro anos, realizando todas as disciplinas, ou em cinco anos ou mais, completando na sequência seu currículo em outra modalidade. Dessa forma, tanto o bacharel quanto o licenciado possuem a mesma formação na parte do conhecimento das linguagens artísticas, o que não acontecia antes na Educação Artística polivalente. A licenciatura em arte, modalidade com maior discussão (Pimentel, 1999), é um curso com objetivos mais definidos, e tem teoricamente um profissional da educação cujo objetivo é atuar no ensino de arte, no ensino fundamental, médio e também no ensino superior, embora neste último seja suficiente ser bacharel. Este é um fato estranho, pois o docente de nível superior não necessita ter noções do processo de ensino e aprendizagem, e geralmente atua intuitivamente, como autodidata, nessas questões pedagógicas, lembrando a tradicional relação mestre/discípulo. Por outro lado, os cursos
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de pedagogia só dizem respeito ao ensino fundamental e médio, não discutindo questões da formação do professor para o ensino superior. Geralmente, quando o docente ingressa num curso de graduação, sendo licenciado ou não, com experiência ou não, vai direto para a sala de aula, sem nenhuma orientação; se é bacharel, encontra dificuldades para apresentar um programa de ensino, tendo de construir ementa, conteúdo programático, metodologia, bibliografia básica e complementar, e critérios de avaliação, uma vez que não possui essa experiência na sua formação de bacharel (Januario, 2010). Além de os cursos atuais de licenciatura permitirem uma formação praticamente igual à do bacharelado em arte, a licenciatura em si tem um papel importante na questão da formação do artista, pois forma profissionais responsáveis pelos primeiros contatos das crianças com a arte. Esse contato inicial, além de outras funções, pode apresentar a arte de uma forma interessante, incentivando, atraindo e desenvolvendo o caminho de futuros artistas. A importância da formação desse profissional é muito discutida e tem avançado graças à contribuição de especialistas (Barbosa, 2002). O mesmo não acontece com a formação do bacharel em artes, que apresenta indefinições na sua caracterização e área de atuação. Embora tenhamos observado, na última década, um esforço de atualização e busca de um direcionamento por meio de reestruturações curriculares, a maioria dos cursos, ou pelo menos a maior parte do currículo, ainda está baseada nas disciplinas das Belas-Artes, que objetivavam formar um artista dentro de uma tradição. Os conceitos de arte, de obra, de público e de artista mudaram muito neste último século e o século 21 aguarda transformações ainda mais rápidas. Inserir essas transformações no currículo, com todas as manifestações teóricas, científicas e tecnológicas que ajudam a pensar a arte, torna-se a tarefa mais complexa. Caso a reestruturação fosse apenas um acréscimo de conteúdo, todos os cursos de tempos em tempos acrescentariam mais um ano na sua formação, o que seria inviável. Quando observamos uma reestruturação de curso, percebemos que ela geralmente se adapta ao corpo docente, o que não permite de fato a construção de um novo curso. Quanto maior for a mudança, maior será a resistência interna. Por outro lado, quando se apresenta um novo curso, com os mesmos docentes, na prática acabam adequando os mesmos conteúdos antigos às novas disciplinas. A construção de um novo curso significa inserir novos conteúdos, que necessariamente vão diminuir ou eliminar a carga horária de conteúdos julgados mais tradicionais, provocando um impasse dentro do contrato dos docentes: estes não têm mais carga horária suficiente ou ficam sem disciplinas, caso agravado no contexto da instituição pública, onde o docente tem estabilidade garantida, mas deve cumprir uma carga horária mínima. Para a implantação de um novo curso, seria necessária a contratação de novos docentes, a construção de novos espaços, a aquisição de novas
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tecnologias e outros fatores que quase sempre vão encontrar resistência no próprio corpo docente, na burocracia, nas normas e no setor financeiro da instituição. A necessidade dessas transformações surge quando se percebe que o curso está ficando ultrapassado, mas nunca se dá pelo desejo de criar um curso ousado ou renovador. Desde meados do século XX, com a disseminação da tecnologia digital na vida do ser humano, todos os setores e atividades tiveram de se adaptar ao novo ambiente. Para a educação, isso teve o efeito de um tsunami, uma vez que ela prepara os profissionais para atuarem nesse ambiente. A partir desse momento, iniciou-se a corrida por transformações que não cessam por causa das frequentes ondas de inovação tecnológica. No nosso cotidiano, a ficção perde espaço para a realidade que a ciência e a tecnologia constroem a todo momento. Os processos de ensino e aprendizagem numa cultura da informação, na qual o conhecimento humano se acumula num sistema on-line e onde praticamente todos estão ou estarão conectados, precisam ser discutidos e adaptados a essa nova realidade ou, se possível, adiantar-se a ela. Hoje encontramos na sala de aula mais uma crise de gerações do que uma crise tecnológica, pois a tecnologia digital já está totalmente presente em nosso cotidiano. Mas encontramos resistências por parte dos docentes que não se adaptaram ao novo contexto, e que se defrontam com os hábitos dos alunos que já nasceram nesse ambiente digital. Para o docente inflexível, a forma certa de aprender será sempre a forma como aprendeu. Essa distância em sala de aula parece configurar uma situação eterna, pois os professores vivem e são educados em uma situação e ensinam com seus próprios referenciais, sem se adaptar aos alunos e ao novo contexto. As transformações tecnológicas acontecem cada vez mais rapidamente, ao contrário de outras tecnologias que chegavam a perpassar várias gerações. Essa velocidade exponencial chega a criar novas situações para uma mesma geração, e transmite a sensação de estarmos constantemente ultrapassados, não integrados, sem entender as possibilidades que passam a ser de uso quase natural para os alunos que nasceram dentro delas. Novas tecnologias existem apenas para aqueles que nasceram antes dessas tecnologias surgirem. A função do professor apenas como transmissor oral de informações torna-se obsoleta, pois a geração que está chegando agora na universidade nasceu com a web na década de noventa e está acostumada a pesquisar em documentos hipermidiáticos online, onde são disponibilizadas cada vez mais informações, diferentemente de uma época em que poucos conseguiam publicar, e os livros eram caros e difíceis de ser adquiridos pela grande maioria. O acesso à informação era difícil em vários sentidos, e atualmente um simples clique nos leva aos mais diversos universos, sem limitadores geográficos ou temporais. No contexto atual, o professor parece ter a função de um organizador das discussões e orientador das pesquisas. A aquisição de conhecimento acontece de diversas formas, de acordo com as mudanças nas formas de produção, armazenamento e divulgação (acessibilidade) da informação, afetando o conceito de aula, e reformulando o onde, o como e o quando uma experiência de aprendizagem pode acontecer.
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Bacharelado em artes Em geral, os cursos de graduação trabalham a partir de um projeto pedagógico, onde são descritos a filosofia e os objetivos do curso, junto com todos os detalhes da formação do “profissional” desejado, definindo competências e habilidades do egresso, e até mesmo quais as atividades que poderá desempenhar na sociedade. Em artes, encontramos uma amplitude e generalização das características e dos campos de atuação do artista que apontam para um profissional polivalente, deixando transparecer que o curso não define de fato onde os egressos atuam. O acompanhamento dos egressos poderia oferecer um material rico para a verificação dessas atividades. Talvez, como em todas as áreas, só uma pequena porcentagem de indivíduos consiga manter-se na sua área de formação, mas, em artes, nunca houve preocupação com esse tipo de estatística. Esse fator impossibilita uma reflexão acerca dos egressos dos cursos de arte. Ora, seu perfil é essencial no projeto pedagógico, pois toda a filosofia, a estrutura curricular e o funcionamento do curso serão montados em busca da melhor formação desse indivíduo. O curso de bacharelado em artes visuais teoricamente forma um artista; na prática, sabemos que o formando não será necessariamente um artista e atuará em outras áreas, como o design e a área de comunicações em geral, porém sem passar por essas formações específicas. Embora o artista seja caracterizado por um “instinto visionário e criativo”, que aponta e constrói o futuro, os cursos de arte parecem sempre correr atrás da atualização do presente. São raras as propostas ousadas e inovadoras. Mesmo assim, os cursos de graduação em artes são os mais completos para quem quiser fazer e estudar arte, pois o conhecimento existente na área é sistematizado em disciplinas teóricas, e disciplinas que se constituem no ensino e experimentação das diversas linguagens artísticas. As disciplinas ou as atividades em “sala de aula” não são a única parte do ensino de arte na academia. O fato de várias pessoas, de interesses em comum, encontrarem-se diariamente no mesmo ambiente possibilita uma “intimidade” que contribui para a rede de conexões que constitui a visão de mundo de cada um, embora isso resulte em padronizações e comportamentos, como via de regra sucede em outras áreas. Também podemos entender essas padronizações como uma construção coletiva que caracteriza a área. As discussões sobre os fatos do cotidiano nesse contexto ajudam a formação de juízos de valores que estarão presentes nas atitudes, nos trabalhos de arte e no pensamento de cada indivíduo. A convivência com os docentes também é importante, pois neles os alunos encontram referenciais e a oportunidade de colaborar em projetos, permitindo um amadurecimento. A previsão de um “espaço e tempo” para que essa situação possa acontecer não costuma fazer parte da estrutura curricular, mas é importante existir, pois o docente é um agente próximo que faz a ponte com o sistema da arte. Há também as “atividades programadas” que, de acordo com o perfil de cada aluno, possibilitam a vivência em projetos de extensão, de pesquisa ou de estágio, per-
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mitindo um aprendizado na própria atuação em campo. Para isso, são necessários convênios e parcerias com entidades culturais, museus, galerias, ateliês, empresas e toda a sociedade, de modo geral. Tal como o estudante de licenciatura que adquire experiência quando efetua estágios nos colégios ou do estudante de medicina que acompanha os pacientes no hospital durante a sua residência, o bacharel em arte precisa vivenciar diversos ambientes do sistema de arte durante a sua formação. Embora a extensão seja a parte mais fraca no tripé ensino, pesquisa e extensão da universidade, o projeto de estreitar o vínculo do ensino e da pesquisa em trabalhos de campo, com grupos da comunidade, tem proporcionado um envolvimento social maior dos alunos. Docente de arte no ensino superior No início dos anos setenta, encontramos um tipo de artista que atua no mercado de arte e enxerga no ensino uma atividade paralela, embora sua atividade principal fosse a maior parte do tempo realizada dentro de seu ateliê. Muitos desses docentes não tinham sequer uma graduação em artes plásticas, fato corrente também na área da música e do teatro. Atualmente, é difícil um docente que não tenha mestrado ingressar em instituições privadas; nas instituições públicas, é exigido o doutorado. O perfil do professor dos cursos de arte no ensino superior transformou-se logo após os anos setenta. Hoje, em vez do artista/docente, encontramos o pesquisador/artista, que vem de uma formação e carreira acadêmicas, ganhou novas responsabilidades, diminuiu seu tempo no ateliê para assumir atividades relacionadas a pesquisa, extensão e gestão, além do ensino em si. Esta nova situação aconteceu em função da transformação da arte como parte de uma área de conhecimento (linguística, letras e artes) e teve de se enquadrar no contexto da pesquisa acadêmica, para conquistar o respeito almejado. A participação da arte na formação do indivíduo passa de algo recreativo e de livre expressão para o aprendizado de uma linguagem e construção de conhecimento. Estudar e pesquisar arte passa a fazer parte do contexto da academia e da pósgraduação, que não existia no Brasil até 1974, quando surgiu o mestrado em artes na ECA/USP e depois o doutorado em 1980. Porém, o desenvolvimento dos programas de pós-graduação nessa área aconteceu só a partir dos anos noventa, e atualmente existem dezoito programas espalhados pelo Brasil, com uma demanda cada vez maior para o ingresso nesses cursos (Capes, 2010). Uma das áreas mais novas no campo da pesquisa acadêmica, a arte continua sendo vista de modo tradicional, dentro da academia, como manifestação subjetiva de pura expressão, produto de iluminação sem nenhum critério científico. A imagem de uma escola de arte, mesmo dentro da academia, pouco tem a ver com pessoas estudando história da arte, estética, psicologia, sociologia, crítica de arte, discutindo questões da sociedade contemporânea e fazendo pesquisas. Ainda predomina a ideia de pessoas jogando tinta nas paredes, cantando, dançando e correndo livremente pelos corredores e, embora isso também deva aconO ensino de artes e a formação do artista na academia | Milton Terumitsu Sogabe
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tecer, essa visão limitada não contribui para o reconhecimento da arte como uma área de conhecimento. Entretanto, na última década, a área de artes tem trabalhado muito e conseguido um outro reconhecimento por meio da organização de seus representantes em diversas instâncias, que têm discutido, reivindicado e transformado boa parte da aplicação das regras acadêmicas no campo da arte. A Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap) tem demonstrado anualmente, nos últimos 25 anos, como a produção de pesquisa da área tem aumentado e continua se especializando. Além disso, problemas da área são discutidos em assembleias, no sentido de atuar nas mais variadas instâncias governamentais, para atender diversas solicitações. O fórum dos programas de pós-graduação em artes tem se reunido todo ano e discutido as questões da área, no intuito de construir coletivamente os parâmetros e critérios da atuação desse campo, bem como se fazer entender frente a outras áreas de conhecimento na Capes1. Nesse processo, a situação do artista fica localizada no contexto da pós-graduação. Pensamos que o artista em si não precisa do título de mestre ou de doutor, para desenvolver sua produção, pois possui muitas outras formas e espaços para fazê-lo, mas para o artista que optou por ir para a academia e ser pesquisador e/ou docente, a pós-graduação apresenta-se quase como uma obrigatoriedade na carreira. O objetivo da pós-graduação é criar um espaço de pesquisa, discutindo as mais variadas questões contemporâneas da arte, ao mesmo tempo em que forma novos pesquisadores. Os indivíduos que já atuam na docência e outros que também desejam seguir carreira docente encontram na pós-graduação stricto sensu um pré-requisito, embora também os cursos lato sensu tenham muita procura e representem uma alternativa, obtendo a especialização, sem a necessidade do título de doutor que é um processo mais complexo (a especialização é suficiente). Quem recebe o título de doutor é autorizado a orientar pesquisas, seja na graduação ou na pós-graduação, e, para tal, precisa ter passado por essa experiência. O título parece encontrar mais significado nesse contexto do que em casos em que a produção de obras seja a única atividade, embora na linha de pesquisa denominada “poéticas visuais, processos artísticos etc.”, tal produção e o debate sobre sua contextualização constituam o eixo principal, criado pelos próprios artistas que sentiram essa lacuna nos programas que eram essencialmente teóricos. Porém, a forma como essa pesquisa relaciona teoria e prática ainda encontra algumas polêmicas, com duas características recorrentes: a primeira como pesquisa teórico-prática, que na sua estrutura tem uma teoria como tronco e a obra produzida como uma ramificação, referenciando-se à teoria; e a segunda, na forma de pesquisa prático-teórica, cujo tronco principal é a própria obra, e a teoria surge como ramificação, pensando a obra em seus aspectos históricos, sociais, estéticos ou outros pelos quais o artista optar. 1 Este fórum existe desde 2003 na Anpap e faz parte do fórum de Artes/Música da Capes, que surgiu em 2005, com a coordenação da Profª Martha Tupinambá Ulhôa. 36
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Mas a arte não se resume à academia, sendo esta apenas mais um espaço a ser considerado dentro do sistema. O sistema da arte é amplo e diversificado, com alguns incentivos financeiros privados e públicos para a produção dos artistas, sem a exigência de uma titulação. Há tanto artistas que saem da carreira docente para o mercado, como o inverso, pois muitos artistas que estão no mercado optam, em certos momentos da carreira, por um curso de pós-graduação que lhes possibilite ingressar como docente, sobretudo numa universidade pública, onde consegue estabilidade de emprego para fazer frente à inconstância do mercado de arte. A contratação de docentes também revela a complexidade da formação do artista: nos editais de concursos para docentes de artes, o pré-requisito para a formação do candidato tem sido o mais amplo ou genérico possível, para não perder ótimos candidatos que vêm de graduações ou pós-graduações diversas, uma vez que os artistas fazem conexões com várias áreas (como sempre fizeram), e apresentam uma produção artística representativa e pesquisa em artes. Em arte-tecnologia, esse fato torna-se quase o padrão, uma vez exigida a interdisciplinaridade na formação ou no trabalho conjunto com outros profissionais. Isso só demonstra a maior complexidade da formação do artista, mesmo dentro da academia. Com essa nova situação, exige-se cada vez mais que a arte se consolide em termos de pesquisa, buscando caminhos próprios e dialogando com outras áreas. O sistema de arte é fortemente afetado por essa situação, uma vez que se multiplica o número de egressos das graduações e pós-graduações de artes, numa proporção incrivelmente maior do que do tradicional artista autodidata ou de outro processo de formação. Agora o artista como pesquisador encontra subsídios para a sua produção dentro da academia, das agências de fomento à pesquisa e de toda uma rede que se constrói a partir da existência desse indivíduo, assim como se constroem espaços e eventos específicos para a veiculação dessa produção. Nesse sentido, o pesquisador-artista quase sempre mantém pouco contato com o mercado de arte. Na área de arte-tecnologia, presenciamos desde os anos setenta um surgimento crescente de centros de pesquisa fora e dentro das academias, inexistentes até então, que reúnem artistas e profissionais de várias áreas para produção e discussão de obras de arte. Até aquele momento, a maioria dos artistas que atuavam nessa área, principalmente no Brasil, era constituída de pesquisadores da pós-graduação, mas, com as tecnologias de comunicação móvel, as informações disponibilizadas on-line, o acesso e o barateamento de material eletrônico, começam a surgir artistas e coletivos que atuam fora da academia e dos espaços oficiais da arte. Para finalizar, podemos afirmar que o bacharelado oferece as condições necessárias para a formação do artista (entendido como produtor de obras de arte e ator no circuito artístico), mas o curso por si só não assegura essa condição. Sequer deve-se pensar nessa direção. O requisito é o de que um artista seja um profissional com uma
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formação ampla, que possua conhecimentos de linguagens (visuais e/ou sonoras e/ou corporais), desenvolva a criatividade para visualizar e pensar os fatos por um ponto de vista não convencional, como a arte tem trabalhado, construindo outras realidades e podendo atuar além do ensino e da produção de arte, inserindo-se em diversas atividades, mas mantendo a sua especificidade. Não estamos com isso vendo o artista novamente como um ser iluminado e polivalente, mas sim como um profissional especializado que, dentro de um contexto interdisciplinar de pensar o mundo, possa contribuir ao lado de outros especialistas, ampliando os olhares e as ações sobre a realidade. As áreas de atuação não são fechadas para nenhum profissional. Cada participante deve ampliá-las com criatividade e não esperar que o mercado e a sociedade formulem uma solicitação ainda não imaginada. Nossa profissão e nosso campo de atuação somos nós que construímos e, dependendo do que seja arte e artista para cada um de nós, podemos abrir vários caminhos.
Referências bibliográficas Livros, artigos: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002. HONORATO, Cayo. “A formação do artista no Brasil: uma problemática em formação?” In Anais do 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, UDESC, Florianópolis, 2008. JANUARIO, Paula Cancella. “Formação de formadores: o docente do ensino superior é um profissional da educação”. In Soletras, revista do Departamento de Letras da UERJ, n. 13. Disponível em http://www.filologia.org.br/soletras/13/05.htm. Acesso em 26/03/2010. PIMENTEL, Lúcia. Limites em expansão: licenciatura em artes visuais. Belo Horizonte: C/Arte, 1999. SALLES, C. A. Redes da criação. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006. Sites institucionais: Pós-graduação da ECA/USP. Disponível em http://poseca.incubadora.fapesp.br/portal/ visuais/organizacao/apresentacao-hist/. Acesso em 02/04/2010. CAPES – cursos recomendados, área de linguística, letras e artes. Disponível em http:// www.capes.gov.br. Acesso em 02/04/2010.
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Vkhute m as: o en sin o d as ar te s so b o s igno d a Revo l u ç ão R u ssa Neide Jallageas*
Palavras-chave vanguardas russas; ensino da arte; Revolução Russa; Vkhutemas. Key words Russian avantgarde; art teaching; Russian Revolution; Vkhutemas**.
Resumo: A fim de contribuir para a discussão em torno do ensino da arte hoje, apresenta-se a experiência pedagógica em artes da escola Vkhutemas e seu contexto histórico, na Rússia das primeiras décadas do século XX. Congregando um conjunto de ateliês com o status do que seria hoje um conjunto de faculdades, em um sistema universitário, essa escola distinguiu-se por reunir os mais destacados artistas, das diversas correntes de arte russa do início do século XX, e dispor campos múltiplos do conhecimento, articulados entre si. O resultado permitiu a quebra dos paradigmas do ensino tradicional de artes, inserindo em seu projeto pedagógico disciplinas teóricas, no sentido de oferecer subsídios ao debate e à produção artística. Abstract: In order to contribute for the discussion about art teaching in contemporary society, we present here the teaching experience in arts at the Vkhutemas School and its historical context in Russia during the first decades of the twentieth century. Grouping a number of studios with the status of what would be today a set of colleges in a university system, this school has distinguished itself by aggregating the most prominent artists from the several currents of Russian art of the early twentieth century, putting together multiple fields of knowledge. The experience resulted in a rupture of the paradigms usually settled for the traditional teaching of arts and the introduction of theoretical subjects in its pedagogical project, with the aim of supporting the debate and artistic production.
* Neide Jallageas é pesquisadora e artista visual brasileira. Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Literatura Russa (FFLCH/USP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Doutora em comunicação e semiótica (PUC/SP) com tese sobre o cinema de Andriêi Tarkóvski. Mestre em estética e comunicação do audiovisual (ECA/USP).
** Tradução: Gilda Morassutti. Agradecimentos a Alvaro Machado pela leitura atenta e sugestões. Este texto é dedicado a Francine Jallageas, pelo mês de abril de 2010, marco em seu jovem caminho intelectual. 39
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A arte é ilimitada e indefinida, é impossível ser aprendida: a única coisa possível é oferecer a quem precisa e quer estudar as artes, ateliês do Estado, livres e gratuitos. [...] Não se deve privilegiar uma corrente ou uma tendência particular na arte. Só se pode comparar duas diferentes correntes, deixando a cada uma delas a possibilidade de se desenvolver livremente. Steremberg, Moscou, 1919
Este texto objetiva contribuir com o tema editorial da quarta edição da revista marcelina: o ensino da arte na contemporaneidade. Para tanto, coloca-se em pauta uma experiência pedagógica singular e praticamente invisível no ocidente: os Ateliês Superiores de Arte e Técnica, Vkhutemas1, escola de artes criada em Moscou, durante o processo de reestruturação do sistema artístico sob as diretrizes iniciais da Revolução Russa e extinta tão logo e na mesma medida em que o espírito revolucionário foi cedendo seu espaço para o espírito totalitário, entre os anos 1920 e 1930. Objetiva-se2, ainda, responder à questão, também formulada pelos editores da marcelina: “Seria a arte uma profissão que se ensina e se aprende em escolas, uma vez superados os mitos do ‘gênio criador’ e da ‘inspiração?’” Introduzir no debate contemporâneo os Vkhutemas, uma experiência pouco discutida, que dista quase cem anos de nossa realidade, requer que se ofereça ao leitor algumas notas preliminares. A primeira é que essa escola (já) propunha que se pensasse, praticasse e se ensinasse procedimentos distintos das “Belas-Artes”, distantes da crença em “gênio criador” e ‘inspiração’?’’’. A segunda nota é que não se perca de vista que, quando o assunto é a produção artística das assim denominadas vanguardas russas3, o mercado de arte não fazia parte do vocabulário desses artistas. E, por fim, 1 Vkhutemas é o acrônimo russo de Visshiie Khudojiéstveno-Tekhnítcheskiie Masterskiie (Ateliês Superiores de Arte e Técnica). 2 Embora vários textos, de diversas procedências e pontos de vista, possam ser encontrados, a maioria em língua estrangeira, discutindo esparsamente e citando os Vkhutemas, o estudo mais denso e respeitado sobre essa escola russa continua sendo o do pesquisador russo Selim Khan-Magomedov, publicado pela primeira vez em russo e traduzido depois para o francês com o título de Vhtemas. Moscou 1920-1930 (2 vols., trad. Joëlle Aubert-Yong, Nikita Krivocheine e Jean-Claude Marcadé. Paris: Editions du Regard, 1990). No Brasil, um esforço louvável foi realizado pelo historiador Jair Diniz Miguel, que resultou na dissertação de mestrado pelo Departamento de História/FFLCH/USP, em 2006: Arte, ensino, utopia e revolução. Os ateliês artísticos Vkhutemas/Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). 3 Autores contemporâneos vêm chamando a atenção para a categoria “vanguarda” aplicada a esse conjunto de artistas russos do início do século XX. Jean-Claude Marcadé, por exemplo, afirma que essa nomenclatura raramente foi utilizada no período em que os artistas viveram e trabalharam, sendo que na Rússia os mesmos eram conhecidos como “artistas de esquerda”, ainda que essa posição não implicasse obrigatoriamente uma conotação política, mas sim para marcar sua diferença para com os artistas tradicionais (Marcadé, 1995, pp. 5-6). Susan Buck-Morss, por outro lado, esclarece que o termo “vanguardas russas” (Russian avant-garde) passou a ser aplicado sistematicamente após ter sido utilizado no Ocidente apenas no início da década de 1960, quando a primeira obra sobre o trabalho desses artistas, The Great Experiment: Russian Art 1863-1922, foi publicada por Camila Gray, na Inglaterra, sendo que a autora buscara — ao incluir também os russos sob a categoria vanguardas — uma forma de aproximar o conceito “vanguarda” dos artistas do modernismo europeu aos russos da mesma época (Buck-Morss, 2000, p. 303). John Bowlt, por sua vez, enfatiza a singularidade e a diversidade do fenômeno russo, tanto no que respeita à multiplicidade de correntes artísticas quanto das distintas formas de arte, preferindo conceituar as vanguardas russas como “o mosaico de personalidades e eventos que transformaram a face da arte, literatura e música russa nos anos de 1910 e 1920” (Bowlt, 1993). Devo o aprofundamento de minha pesquisa sobre essa distinção a Lisette Lagnado. 40
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ao mesmo tempo em que a produção artística não objetivava a comercialização, o governo instalado na Rússia por ocasião da Revolução de Outubro (1917) via na arte um instrumento de caráter educativo. A pedagogia dos Vkhutemas foi concebida por artistas, teóricos, técnicos e arquitetos, sob a tutela do Estado. As bases dessa pedagogia assentavam-se na crença de que era necessário buscar novas relações entre a arte e a sociedade emergente da Revolução. Ensino, portanto, era ação e ação para mudar, pois uma nova sociedade estava se formando. As fundações dessa pedagogia buscavam se equilibrar entre atitude estética e postura política. Breve genealogia – 1907-1919 Os Ateliês de Arte Vkhutemas foram criados para que se distinguissem como um novo tipo de escola de arte. Se, por um lado, a comercialização da arte não estava em relevo na pauta da sociedade russa no período de sua criação, a vontade política com expectativa na educação social, não apenas esteve a eles intimamente ligada, mas foi a causa de sua concepção, manutenção e extinção. Conhecer a genealogia dessa escola, a partir desse paradigma, é vital para a compreensão de sua proposta pedagógica. Antes de mais nada, visitemos a Rússia do início do século XX, período no qual a Revolução de 1917 foi a culminância de um longo processo revolucionário, iniciado ainda no século XIX, quando um de seus mais ilustres participantes, Dostoiévski4, tendo sido acusado de conspirar contra o regime imperial (tzarista), foi condenado à morte. Dela escapou quando já estava com a venda nos olhos, diante do pelotão de fuzilamento. Não morreu fuzilado, mas o tzar o exilou bem longe dos centros de influência: na Sibéria. Dostoiévski deixaria o planeta muitos anos depois, na mesma década em que nascia a fina flor da arte e do pensamento russo do início do século XX: Maliévitch, Tatlin, Maiakóvski, Ródtchenko, Popova, Stepánova, Gontcharova, Chklóvisk, Floriênski, Eisenstein e tantos outros5. Ao ler o que boa parte dos historiadores da arte do Ocidente escrevem sobre esse singular (e amplo) conjunto de artistas, tem-se a impressão de que todos estavam em uma mesma sintonia: a de proclamar o novo, escandalizar os burgueses e produzir formas geométricas, quando não abstratas (isso citando aqui apenas os artistas visuais)6. Embora parte dessas ações 4 Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, romancista russo (1821-1881). 5 Entre esses, nasceu também nessa década o líder bolchevique da Revolução Russa, Vladímir Ilítch Lênin (1870-1934). 6 Entre os autores que contestam essa postura equivocada dos historiadores do Ocidente, destaca-se aqui, além dos mencionados, a pesquisadora italiana Nicoletta Misler, que enfatiza: “Quando examinamos o papel de Floriênski no Vkhutemas, tido genericamente como o bastião da vanguarda e do construtivismo, percebemos que a cultura soviética dos anos 1920 não pode, e não deveria, ser reduzida esquematicamente a uma simples hegemonia do suprematismo e construtivismo. Por outro lado, a cultura soviética não pode ser vista como mera confrontação entre as várias vanguardas e […] o Realismo Socialista. A despeito da ditadura ideológica, a vida artística no início dos anos 1920 foi muito mais complexa que esta oposição poderia nos fazer acreditar, para ser reduzida às categorias simplistas que os historiadores têm Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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possa ser constatada em seus legados biográficos e artísticos, suas ações estavam longe de ser reduzidas a meras escandalizações, geometrizações ou abstrações. Suas aspirações, atitudes e realizações — quando as estudamos, consultando documentos advindos dos arquivos russos — demonstram uma diversidade dificilmente conciliável, e resta uma indagação que é a de querer saber como a história da arte conseguiu colocar todos esses artistas dentro de um discurso normalizador, a saber: o rótulo de “construtivistas”, quando não de “formalistas”. E mais, se esses artistas revolucionaram e imprimiram uma marca indelével na história da arte, paradoxalmente, pouco vem à tona sobre suas ações nos territórios da produção teórica e do ensino da arte. Estas foram ações fundamentais para o legado artístico por eles deixado, que se relacionavam intrinsecamente com a produção de seus trabalhos artísticos. Ou seja, produção teórica, ensino da arte e produção artística eram ações indissociáveis e interdependentes, tanto quanto o posicionamento ético e político desses artistas em relação ao novo regime que se instalava. Observe-se que esse regime modelava-se através dos paradigmas da ala vitoriosa, em 1917 (que era a bolchevique), uma, entre as várias outras alas — de posições políticas e ideológicas distintas —, que, ainda assim, haviam se aliado aos bolcheviques, nesse período, por um objetivo comum: implantar o socialismo na Rússia. A imposição de uma ideologia dominante sobre a diversidade de pontos de vista explica, em parte, tantas prisões, mortes, exílios e dissidências dos artistas e intelectuais russos desse período7. Tais penalidades extremas não podem ser justificadas, afinal, pelo uso das formas geométricas, das abstrações ou pelo “formalismo”. Parte dessas lacunas talvez encontre uma explicação no fato de a União Soviética8 ter barrado, por dezenas de anos, o acesso dos pesquisadores à produção — e aos documentos descritivos dos processos que geraram as mesmas — dos artistas e teóricos russos do início do século XX9. Entre o final do século XIX e o início do XX, alguns jovens artistas russos almejavam fazer um outro tipo de arte, diferente do que então imperava e era denominado realismo e naturalismo nas artes e, ainda, diferente do que era ensinado nas academias (escolas) de arte tradicionais. Com esse propósito, iniciaram suas experimentações artísticas e se autodenominavam “artistas de esquerda”, em confronto com aqueles que faziam o que era nomeado “pintura de cavalete”. Os artistas russos viviam um contexto de grande ebulição política. E nem estabelecido em suas análises desta cultura” (Misler, 1999, p. 120). 7 Remete-se à consulta de Roman Jakobson, linguista russo, amigo e contemporâneo de boa parte dos artistas em questão que, em seu livro A geração que esbanjou os seus poetas, aborda a morte “prematura” dos poetas, intelectuais e artistas russos, a partir do suicídio do poeta Vladímir Maiakóvski. 8 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conhecida pelo acrônimo URSS (CCCP, Soiuz Soviétsk Sotsialistitcheskikh Respúblik) congregava um conjunto de países junto à Rússia, cujo centro de poder era Moscou. Embora a Revolução Russa tenha ocorrido em 1917, a URSS passou a existir oficialmente apenas a partir de 1922 e foi extinta em 1991. 9 Sobre o impacto da abertura dos arquivos soviéticos na década de 1990, consulte-se Os escombros e o mito. A cultura e o fim da União Soviética, do pesquisador brasileiro, nascido na Ucrânia, Boris Schnaiderman. 42
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todos posicionavam-se segundo a linha bolchevique. Até essa data, a esquerda política russa caracterizava-se por ser, também ela, extremamente diversificada, onde se destacavam os anarquistas, ideologia abraçada por vários artistas jovens. A esquerda artística, que começara a atuar antes da revolução política propriamente dita — enquanto movimento organizado —, tem um marco histórico que é o ano de 1907, quando David Burliuk10 organizou uma mostra que apresentava obras que hoje são categorizadas como neoprimitivistas. Tentando romper os ditames da arte realista, o grupo de artistas em torno de Burliuk mostrava pinturas resultantes de pesquisas de materiais, formas e conteúdos. Reportavam-se à cultura popular russa, à pintura religiosa, introduziam textos escritos nas telas, rompiam com a perspectiva linear e colavam materiais diversos sobre a superfície do quadro. Nesse período também inicia-se um grande deslocamento geográfico e um trânsito cultural entre os artistas da Europa Ocidental e da Rússia entre seus respectivos países. Corresponde também à aquisição, por parte de colecionadores russos11, de grande volume de obras de arte do Ocidente, formando coleções de artistas modernos com destaque para Matisse, Picasso e Cézanne. Mas Burliuk não estava sozinho em sua empreitada inaugural. Os artistas movimentavam-se em linhas diversas, dando origem a diretrizes artísticas hoje conhecidas como cubo-futurismo, raionismo, cézannismo, realismo transmental, abstração, suprematismo, construtivismo, produtivismo e outras. Os dois polos urbanos russos que concentravam essa arte emergente eram a então capital imperial São Petersburgo12 e Moscou, que também sediavam as duas maiores escolas de artes então existentes: a Academia de Belas-Artes e a Escola de Arte Industrial do Barão Stieglitz, em São Petersburgo, e a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura e a Escola de Arte Industrial Strogánov, em Moscou. Tais centros de ensino artístico e industrial modelavam-se por uma estrutura tradicional, hierárquica, artesanal e, já no final do século XIX, não conseguiam mais atender às demandas da jovem arte emergente, nem mesmo habilitar as demandas pela produção industrial. Porque aspirava a constituir-se em revolução permanente institucionalizada, a Revolução política propriamente dita buscará reorganizar todos os sistemas e instituições existentes de forma adequada aos seus objetivos. A partir de 1918, o sistema artístico também sofrerá reconfigurações, em vários estágios, no que diz respeito tanto à produção artística quanto ao ensino da arte. Essa reorganização fará parte de um processo, 10 David Burliuk, pintor de origem ucraniana (1882-1967). 11 Esses colecionadores foram principalmente Ivan Morozov (1871-1921) e Serguei Chtchúkine (1854-1936), cujas coleções, com a estatização da propriedade privada, logo após a Revolução, foram apropriadas pelo Estado, a partir de 1917, e passaram a integrar museus estatais, principalmente a Galeria Nacional Tretiákov, em Moscou, e o Museu Estatal Russo de São Petersburgo. 12 Logo após a Revolução, São Petersburgo passou a se chamar Leningrado (em homenagem ao líder da revolução bolchevique, Vladímir Ilítch Lênin), para retomar o nome de São Petersburgo depois da Pierestróika, em 1991. Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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pois, de início, as diretrizes político-organizacionais deveriam se adequar progressivamente à formação de um Estado estruturado, em tese, segundo os princípios marxistas que norteavam os líderes revolucionários. Além disso, a Rússia viu-se envolvida tanto pelos rescaldos da Primeira Grande Guerra quanto pelos quatro anos de Guerra Civil13, que culminou com a vitória final dos bolcheviques. É diante dessa vitória que os artistas de esquerda (todos eles)14 terão de se posicionar, e não apenas os artistas realistas. Uma nova arte para um novo mundo/ Educação e Arte Sabe-se que os líderes da Revolução Russa não almejavam apenas remodelar o seu próprio território. Sua ambição era o mundo. Um mundo que, utopicamente, seria muito diferente do que fora até então. Tendo sido os bolcheviques os vencedores e tendo tido o cuidado preventivo de eliminar aqueles que discordavam de seus pontos de vista (ainda que estes tenham sido seus aliados, como foi o caso dos anarquistas), os artistas, de todas as correntes, depararam-se, de uma hora para a outra, com a necessidade imperiosa de alinharem os seus próprios objetivos — até então individuais — aos de um partido político (e único, cabe ressaltar novamente). Uma das formas encontradas pelos líderes vitoriosos para organizar e controlar os cidadãos russos foram os “Comissariados”, estruturados por áreas de atuação. Tais estruturas organizacionais equivaleriam ao que conhecemos hoje como Ministérios (da Saúde, da Educação etc.). Para reger as atividades de ensino e arte, foi criado o Comissariado do Povo para a Educação, Narkompros15, fruto da junção de vários outros órgãos governamentais do Império que geriam tanto a Educação quanto a pasta das Artes. A nova instituição tinha a atribuição de organizar e controlar novos sistemas educacionais e artísticos que atendessem às demandas de uma nova sociedade. A concepção de todo um funcionamento que demandava mudanças radicais no tecido social exigia, potencialmente, uma mudança brutal no cotidiano de cada indivíduo, ou seja, carecia de uma mudança de hábitos à qual ele deveria aderir. Essa mudança implicava em uma sistemática e efetiva educação da sociedade em transformação para que, de fato, mudasse, e mudasse radicalmente, segundo os princípios da ideologia bolchevique. Lênin, o líder máximo, vislumbrava na ação dos artistas uma contribuição sem precedentes para educar — por meio de textos, imagens, sons e performances — a classe proletária e os camponeses, em nome dos quais (e com os quais), afinal, a revo13 A Guerra Civil, decorrente das ações de 1917, colocava em campos opostos tanto os partidários do império quanto aqueles que contra eles lutavam, ressalvando-se que, entre estes últimos, havia várias facções (de esquerda), com ideologias diferentes, que passaram, de aliadas, a serem consideradas inimigas, pelo único partido, o dos bolcheviques. 14 François Albera defende que houve um “engajamento quase unânime dos artistas de vanguarda na Revolução”, segundo ele, “animados por um projeto social” (Albera, 2002, p. 169). Susan Buck-Morss (2000), por outro lado, argumenta que os artistas não tinham outra alternativa, a não ser, é claro, deixar o país; como mais tarde efetivamente o fizeram Kandinski, Gabo e outros. 15 Narkompros é o acrônimo russo de Naródni Comissariat Prosvietchenia (Comissariado do Povo para a Educação). 44
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lução havia sido feita. Lênin cuidou, pessoalmente, de pensar na estrutura do Narkompros de forma que essa instituição abarcasse, além das atividades de ensino, as de todas as artes. A direção desse comissariado coube a Anatoli Lunatchárski, um intelectual marxista e influente que fora companheiro de exílio de Lênin. O Narkompros contou com as mais diversas (e divergentes) linhas de pensamento sobre arte, cultura e educação. Inicialmente, os anseios de liberdade para as artes, reivindicada pelos “artistas de esquerda”, seriam respeitados e mesmo estimulados pelo novo poder16 instituído que, com essa diretriz, cria também os Ateliês Livres, Svomas17, em substituição às Academias tradicionais de Belas-Artes e às Escolas de Arte Industrial. Dentro desse espírito, reporte-se à epígrafe deste texto, declarada em 1919, pelo pintor e artista gráfico David Steremberg18, então diretor da Seção de Artes Visuais do Narkompros: “A arte é ilimitada e indefinida, é impossível ser aprendida: a única coisa possível é oferecer a quem precisa e quer estudar as artes, ateliês do Estado, livres e gratuitos”. E sobre o papel do professor, acrescentava que este não deveria obrigar os seus alunos a seguir suas tendências, afirmando que: “Não se deve privilegiar uma corrente ou uma tendência particular na arte. Só se pode comparar duas diferentes correntes, deixando a cada uma delas a possibilidade de se desenvolver livremente” (Steremberg apud Marcadé, 1995, pp. 197-198). Dessa maneira, um dos diretores do Narkompros imprimia o espírito de liberalidade e tolerância de Lunatchárski: não apenas admitindo a divergência entre as correntes artísticas, mas acreditando que a divergência devesse ser integrada ao sistema de ensino. Tal diretriz de Lunatchárski não era gratuita, pois a intolerância de muitos para com a diversidade, em meio à Guerra Civil que sucedeu a Revolução, era uma constante. Além dos inimigos ideológicos de carne e osso, também eram alvo de violência, os monumentos históricos, templos e obras de arte. O respeito à diversidade constituía-se em um posicionamento político determinante na esfera decisória para preservar, ou não, a arte dita burguesa, e mesmo a pintura religiosa ortodoxa. O sistema pedagógico libertário dos Svomas seria levado a vários outros centros urbanos russos, entre eles as cidades de Pskov, Vitébski, Nijni Novgorod e Minsk. Os artistas, por sua vez, ao mesmo tempo em que discutiam e realizavam suas obras, organizavam escolas e museus. Em 1919 são criados os dois primeiros museus de arte moderna do mundo: o Museu de Cultura, em Moscou e, a seguir, o de São Petersburgo. Kandinski19 e Maliévitch20 desempenham papéis preponderantes na concepção e organização desses 16 Em 1918, as primeiras deliberações da Seção de Artes Plásticas, IZO, então recém-criada pelo Narkompros estabelecem que “a relação da arte com o Estado obedece a dois fatores: o Estado e o povo de um lado, os artistas e as exigências do século de outro. As condições de uma grande arte é sua liberdade. Toda centralização do poder é inimiga da arte” (Marcadé, 1995, p. 197). 17 Svomas é o acrônimo russo de Svabódniie Masterskiie (Ateliês Livres). 18 David Steremberg, gravador e pintor de origem ucraniana (1881-1948). 19 Vassíli Kandinski, pintor e teórico da arte russo (1866-1944). 20 Kazímir Maliévitch, pintor, gravador, escultor e teórico da arte de origem ucraniana (1879-1935). Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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Nícolas Aleksandróvitch Ladóvski: projeto de casa comunal, fachada. Lápis e lápis de cor sobre papel, 1920.
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museus. Maliévitch, inclusive, em seus artigos de 1919, defende novas formas de apresentação de obras de arte que se distingam das tradicionais (Marcadé, 1995, p. 202). Nesse mesmo período, Marc Chagall organiza em Vitébski uma escola de artes para a qual convida Maliévitch que, lá chegando, criará em 1919 o primeiro Instituto de Arte Moderna, a escola suprematista Afirmadores da Nova Arte, Unovis21, que se manterá até 1922. O programa pedagógico de Maliévitch compreendia o estudo de “culturas picturais”, entre as quais se destacavam o impressionismo, o cubismo, o cézannismo, entre outras. Ao partir de Vitébski, Maliévitch irá para São Petersburgo onde, em 1924, fundará e dirigirá o Instituto Nacional de Cultura Artística, Ghinkhuk22, que funcionará até 1926. Em Moscou, Kandinski liderará a criação do Instituto de Cultura Artística, Inkhuk 23, em 1920, concebendo uma ciência que abrangerá todos os aspectos das diversas artes — não apenas as plásticas, mas também música, dança, teatro e circo —, através de análises formais objetivas, em contraposição aos discursos subjetivos. A intuição seria o elemento determinante para compreender as ligações entre as diferentes artes e os efeitos das mesmas sobre o psiquismo humano. O alvo de suas investigações é a compreensão de realidades sinestésicas, através das quais os cinco sentidos participariam da percepção da obra. É nesse período que Kandinski pesquisa e escreve as bases de seus futuros ensinamentos na Bauhaus (Marcadé, 1995, p. 207). Vkhutemas 1920-1927 Evidencia-se, com o pequeno histórico acima que, a partir da Revolução, as iniciativas e o financiamento para a organização de atividades artísticas e educacionais (como todas as outras atividades) passam a ser coordenadas e determinadas pelo Estado. Conforme visto, para organizar e controlar as atividades artísticas (mas também todas as outras) foram criados, além dos Comissariados, Comitês e Associações (dos pintores, dos músicos, dos escritores, e assim por diante) que tinham funções normativas e controladoras, decidindo, inclusive, sobre admissões ou exclusões de profissionais. A partir dessas instituições governamentais, que se tornarão cada vez mais inflexíveis e policialescas, um artista liberal tornar-se-á também, cada vez mais, impensável. Em outras palavras, o indivíduo, enquanto força produtiva, devia responder às demandas dos Comitês e Associações dos quais fazia parte, e o seu campo de autonomia, conforme o Estado se reestruturava e endurecia, passou a ser cada vez mais restrito, o que, concomitantemente, restringiria cada vez mais sua liberdade de ação individual.
21 Unovis é o acrônimo russo de Utverdítieli Nóvoga Iskússtiva (afirmadores da Nova Arte). 22 Ghinkhuk é o acrônimo russo de Gossudarstvieni Institut Khudojestvienoi Kulturi (Instituto Nacional de Cultura Artística). 23 Inkhuk é o acrônimo russo de Institut Khudojestvienoi Kulturi (Instituto de Cultura Artística). Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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Até a data da Revolução, os artistas russos vinham promovendo intensas experimentações no campo estético, sendo eles mesmos sujeitos de uma revolução artística. Buck-Morss pondera que “houve desconforto considerável entre os artistas radicais, incluindo Maliévitch, Tatlin e Maiakóvski, sobre os custos para a liberdade criativa, em colaborar de maneira muito próxima com quaisquer organizações do Estado, incluindo as novas”. E, acrescenta: “É aqui que a política de conflito de temporalidades24 torna-se importante” (Buck-Morss, 2000, p. 61). Ou seja, os artistas já promoviam uma revolução cultural que não se alinhava propriamente com a ideologia dos vitoriosos — e muito menos com a temporalidade política —, porém (ainda seguindo o pensamento de Buck-Morss), os líderes do partido assumiram que ambas, revolução política (partidária, no caso) e revolução cultural, eram faces da mesma moeda. Por outro lado, o Estado demandava ações concretas para a mudança e estruturação de uma nova sociedade, e conclamava os artistas a participar dessas ações. Caso não quisessem, por algum motivo, ficariam sem espaço para trabalhar, pois, desde a instituição dos Comissariados e dos Comitês, os artistas só teriam direito de exercer suas profissões se estivessem vinculados aos órgãos oficiais. Essa adequação, contudo, demonstrar-se-á problemática, principalmente porque o estatuto da liberdade, plataforma dos dirigentes iniciais, não conseguirá manter-se por muito tempo, mas, enquanto durou, foi uma experiência sem igual, conforme pontua Adaskina: “A experiência dos Svomas, pela primeira vez na história da educação na Rússia, baseou-se nos princípios da liberdade e da democracia” (Adaskina, 1992, p. 284). Durou pouco. Os Svomas darão lugar a um complexo de ensino mais estruturado, tanto em relação à proposta pedagógica quanto em dimensões organizacionais. Em dezembro de 1920, Lênin assina um decreto instituindo em Moscou os Vkhutemas. Os mestres desse complexo educacional não eram outros senão a maioria dos artistas das vanguardas russas, que já faziam parte dos projetos pedagógicos dos Svomas e que levaram para os Vkhutemas as contradições já existentes, originárias das divergentes e múltiplas correntes artísticas que floresceram nos primeiros anos do século XX. As contradições das vanguardas, mantidas na formação dos Vkhutemas, deram inicialmente corpo ao projeto pedagógico que, conforme Adaskina, caracterizava-se pelos paradoxos já existentes antes da Revolução, tais como: a orientação para a experimentação artística; a exploração da forma; o máximo da individualidade e a criação subjetiva, dificilmente conciliáveis com a busca pelo coletivo, pelo conhecimento objetivo nos produtos de experimentação artística; a solução do dilema de análise e síntese na prática artística e na teorização da arte contemporânea; a variação entre a orientação programática da vanguarda em relação à inovação absoluta e o historicismo que foi característico das lideranças artísticas de vanguarda; e a busca por maneiras de resolver o conflito entre uma orientação para o personalismo, para a criação única de um gênio, e um interesse na produção industrial, de reprodução 24 Buck-Morss (2000) distingue, com veemência, a temporalidade dos artistas (da arte) e a temporalidade das figuras políticas (política). (Buck Morss , 2000). 48
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mecânica, e a organização da vida das massas (Adaskina, 1992, p. 283). Experiência inédita e ambiciosa, essa nova tipologia de escola de arte congregava as Faculdades de pintura e de escultura com a Faculdade de produção voltada para os ensinos da arquitetura, poligráfica, trabalho em metal e madeira, têxtil e cerâmica. Os Vkhutemas pertencem ao segundo estágio de reformas da educação e da arte, na linha instaurada depois da Revolução. É fundamental considerar que, embora criado por Lênin, este, logo após, é afastado de suas funções de líder supremo, vitimado por problemas cardíacos, o que dá lugar à ascensão do stalinismo e, portanto, a mudanças na concepção estética e comunicacional do universo russo. Considere-se também que a Rússia ingressara tardiamente no processo industrial, e que a Revolução faria todos os esforços (com sucesso) para acelerar e compensar o atraso industrial russo em relação aos outros países “desenvolvidos”. A industrialização russa terá forte peso nos destinos pedagógicos dos Vkhutemas. As rápidas e dinâmicas alterações no cenário tecnológico e social russo refletiam mudanças no ensino da arte. Os anseios individuais eram constantemente chamados a se remodelar segundo novas estruturas e demandas sociais. A flexão entre particular e universal facultava um exercício de adaptação constante dos mestres à frente das propostas de educação e criação artística. A atuação dos artistas de vanguarda e, notadamente, esta atuação formal no interior dos Vkhutemas, distinguiu-se para além dos paradoxos instaurados, principalmente por Kandinski, para quem a “análise objetiva das formas” poderia ser conjugada com a autorreflexão. O Inkhuk, concebido por Kandinski e por ele dirigido, teve um papel decisivo para influenciar os cursos propedêuticos desse método pedagógico da nova escola. Mas, uma vez afastado do cenário artístico e educacional de seu país (em 1921 o artista deixa a Rússia definitivamente), caberá a seus alunos, principalmente a Popova25, conceber um sistema de disciplinas sob as diretrizes do método kandinskiano de Análise Objetiva, o que se constituirá na base propedêutica da Divisão Básica de Ensino do Vkhutemas. Outra característica inédita, inerente à postura antitética dos artistas, foi o apreço (gerado por uma necessidade intrínseca de um claro posicionamento por parte dos artistas sobre suas linhas de pesquisa) pelo debate das ideias e pelo desenvolvimento teórico das mesmas, em uma ação que, ao mesmo tempo em que buscava o embasamento para os conceitos lançados, primava por desenvolvê-los através da escritura de textos críticos. Como expõe Adaskina: “O trabalho deixado pelo Vkhutemas testemunha, acima de tudo, o amor das vanguardas pela teorização” e, ainda conforme a pesquisadora russa, o que, em outras fases anteriores da arte, em outras condições sociais e culturais, “havia encontrado uma saída através dos manifestos e panfletos dos anos 1920, foi [no Vkhutemas] encami25 Liubov Popova, pintora e designer russa (1889-1924). Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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Lídia Komarova: projeto de final de curso para imóvel do Komintern, perspectiva. Ateliê A. Vesnine, 1929.
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nhado para a elaboração de trabalhos científicos” (Adaskina, 1992, p. 287). Tanto o desenvolvimento pleno do construtivismo quanto o produtivismo resultarão dos intensos debates que vincularam as atividades intelectuais e artísticas à práxis do ensino que caracterizou a atuação dos Vkhutemas. Longe de ser apenas uma ideia instrumental, o construtivismo embasava uma concepção espacial advinda da distinção que faziam os artistas entre composição e construção. No âmbito dessas discussões, não havia a clara distinção entre teoria e arte. No lugar de simplesmente adotar uma pedagogia fundada em meras determinações burocráticas, os artistas discutiam em fóruns suas ideias e elaboravam textos teóricos a partir desses acalorados debates e tornavam suas posições públicas por meio de periódicos de arte que proliferaram nesse período. Grande foi o número de revistas onde eram publicados textos de artistas e que, inclusive, tinham nos poetas, arquitetos, escritores, compositores, teóricos e artistas os seus fundadores e editores, como é o caso da Lef, acrônimo russo de Levy Front Iskusstv (Frente esquerda da arte), editada por Maiakóvski26, de 1923 a 1925, e, depois, a Novi Lef (Nova Lef), editada por Ródtchenko27, de 1927 a 1929. Embora entre historiadores a Lef seja a mais popular das publicações desse período, existiram outras. A Makoviets, editada pelo grupo da Faculdade Poligráfica, integrada por Pável Floriênski28, contra o qual Ródtchenko e seu grupo contrapor-se-iam, distinguiu-se não apenas pelo apuro gráfico, mas, principalmente, por dissonâncias ao produtivismo que, então, lutava para impor-se em meio à diversidade de ideias sobre as possibilidades da arte. O poder político, no entanto, preocupado com o fato de que essas experimentações escapavam às metas da ideologia bolchevique no que diz respeito à educação, lança medidas para cercear a liberdade de atuação dos Vkhutemas e muda parte de suas estratégias, alterando inclusive o seu nome, para Vkhutein29, que logo se tornará (em 1927) uma escola de design propriamente dita, o que, de uma certa maneira, atendia à parte dos objetivos da corrente produtivista. Entretanto, mesmo essa escola de design terá vida curta, sendo fechada em 1930. Embora temporalmente encerradas, as experiências obtidas ao longo de mais de dez anos de ensino da arte, sob propostas pedagógicas dinâmicas e inovadoras, deixaram um legado incalculável. Imagine-se que muitos dos alunos que estudaram nesses ateliês russos, deles hauriram não só o crivo analítico, mas também a metodologia para a análise e o exercício crítico; não apenas a dinâmica da discussão teórica, mas a práxis de elaborar textos conceituais sobre as criações artísticas e técnicas. Parte desses artistas e alunos sairiam da Rússia e compartilhariam essas experiências em outras escolas, tais como 26 Vladímir Maiakóvski, mais conhecido como poeta russo, também escreveu significativas peças teatrais, fez ilustrações e desenhou figurinos (1893-1930). 27 Aleksandr Ródtchenko, mais conhecido pelos seus trabalhos fotográficos, tem uma produção vasta nos campos do desenho, pintura, moda, cenografia, figurino e design (1891-1956). 28 Pável Aleksandróvitch Floriênski, filósofo, ensaísta, padre, matemático, físico e historiador da arte (1882-1937). 29 Vkhutein, acrônimo russo de Visshiie Khudojiéstveno-Tekhnítcheskiie Institut (Instituto Superior de Arte e Técnica).
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Gueorgui Kurtikov. Projeto de final de curso para uma cidade nova, A cidade voadora. Casa voadora, perspectiva. Ateliê Ladóvski, 1928.
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Kandinski, Pevsner30 e Gabo31. Por outro lado, a própria estrutura multidisciplinar serviria de modelo não apenas para escolas, mas para a concepção de museus, como foi o caso do MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York. Em biografia de um dos mais notáveis diretores do MoMA, Alfred Barr32, Sybil Gordon Kantor demonstra como as experiências do Vkhutemas, com os materiais e técnicas envolvidos em sua criação e a metodologia baseada na análise formal, em um ambiente multidisciplinar fascinaram Barr, que viajara por toda a Europa, incluindo a Rússia, na década de 1920. A interdependência de disciplinas no Vkhutemas compeli-lo-á a conceber e implementar a estrutura organizacional do MoMA 30 Antoine Pevsner, artista russo (1886-1962). 31 Naum Gabo, artista russo (1890-1977). 32 Alfred H. Barr, Jr., historiador da arte, fundador e primeiro diretor do MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York (1902-1981).
Re fer ên cias b ib liogr áficas ADASKINA, Natalia. “The Place of Vkhutemas”. In The Great Utopia. The Russian and Soviet Avant-Garde (1915-1932). Nova York: Guggenheim Museum, 1992. ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo – A dramaturgia da forma em “Stuttgart”. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2002. Original francês: Eisenstein et le constructivisme russe – Stuttgart, dramaturgie de la forme. Paris: L’Age d’Homme, 1990. BOWLT, John E. “Utopia Revisited”. Art in America, v. 81, nº 5 (maio 1993): 98-105. Nova York, 1993. BOWLT, John E.; MATICH, Olga. Laboratory of Dreams: The Russian Avant-Garde and Cultural Experiment. Stanford: Stanford University Press, 1999. BUCK-MORSS, Susan. Dreamworld and Catastrophe: The Passing of Mass Utopia in East and West. Cambridge, MA: MIT Press, 2000. JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou os seus poetas. Trad. Sonia Regina Martins Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Original russo: O pokolenii, rastrativchem svoikh poetov. Berlim, 1931. KANTOR, Sybil Gordon. Alfred H. Barr, Jr. and the Intellectual Origins of the Museum of Modern Art. Cambridge, MA: MIT Press, 2003. MARCADÉ, Jean-Claude. L’avant-garde russe 1907-1927. Paris: Flammarion, 1995. MISLER, Nicoleta. “Toward an Exact Aesthetics: Pavel Florensky and the Russian Academy of Artistic Sciences”. In BOWLT, John E.; MATICH, Olga. Laboratory of Dreams: The Russian Avant-Garde and Cultural Experiment. Stanford: Stanford University Press, 1999. SCHNAIDERMAN, Boris. Os escombros e o mito. A cultura e o fim da União Soviética. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Imagens: KHAN-MAGOMEDOV, Selin Omarovich. Vhutemas. Moscou 1920-1930. Trad. Joëlle Aubert-Yong; Nikita Krivocheine; Jean-Claude Marcadé. Paris: Editions du Regard, 1990. Original russo. Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa | Neide Jallageas
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Experiência e s t é t i c a , i n s t i t u i ç õ e s e educação Celso F. Favaretto*
Palavras-chave educativo; instituições culturais; educação artística; experiência estética; lazer. Key words education; cultural institutions; artistic training; aesthetic experience; leisure.
Resumo: O artigo é uma reflexão sobre a experiência da obra e de outras manifestações artísticas nos diversos espaços educativos, particularmente aqueles das instituições culturais, nos quais a atuação facilmente se transforma de uma facilitação comunicativa em um abandono ao interessante, curioso, picante. A proposta é a de que a educação artística naquelas instituições evidencie o sistema de referências ao qual a produção contemporânea se remete ou no qual se inclui. Abstract: This article is a reflection upon the experience of the artwork and other artistic actions in several educative spaces, especially cultural institutions, in which mediation can easily go from a communicative aid to a surrender to the interesting, curious, spicy. The proposal is that art education in such institutions focus on the system of references to which contemporary art refers or belongs.
* Celso F. Favaretto é filósofo e livre-docente pela Universidade de São Paulo, da qual também é professor. Especializado no debate da estética no regime cultural, é autor de contribuições voltadas para os anos sessenta e setenta no Brasil, notadamente: Tropicália: alegoria alegria. (1979). 4a ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, e A invenção de Hélio Oiticica. (1992). 2a ed. São Paulo: Edusp, 2000. 54
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Dado o pressuposto de que ações educativas em diversas instituições — escolas, museus, institutos, centros culturais, oficinas e fundações — pretendem, através da evidenciação das artes, atender a requisitos individuais e sociais incontornáveis, que são formativos e políticos, como compatibilizar a especificidade da experiência estética, particularmente da arte contemporânea, com a utilidade das ações educativas? Isto é, como facultar o acesso a uma experiência que acontece, através de várias mediações, entre o trabalho do artista, a produção e comunicação de objetos culturais e os percalços da recepção? Faz bastante tempo, pelo menos desde Duchamp, que “a arte é um exercício contínuo de desorientação”. A partir daí, dos primórdios da emergência dos dispositivos modernos, as convenções e expectativas que envolviam desde séculos a atividade artística e, assim, a experiência estética que disparava, nunca mais foram as mesmas. Instalou-se “uma tensão entre o fenômeno artístico e a experiência estética”, embora sabendo-se que essa tensão “não implica necessariamente uma dissociação — por mais que essa separação tenha sido recorrente nos textos de vanguarda —, mas uma ampliação, levada a cabo por exigência das obras, da própria experiência estética”1. Esta ampliação do campo, que é especialmente relevante para o redirecionamento da ação cultural a partir da experiência artística, veio se desenvolvendo prioritariamente em duas direções: uma estetização generalizada — em parte difusa, típica da sociedade de consumo, em parte comprometida com a reinvenção da vida, com a transformação das estruturas perceptivas, vulto da desestetização e aplicação das categorias da obra de arte a aspectos da vida cotidiana — e uma outra, de reproposição da arte e da experiência estética através das novas tecnologias. Estas direções frequentemente estão imbricadas, e ambas são relevantes para se pensar hoje a experiência das obras e de outras manifestações artísticas nos diversos espaços considerados educativos. A estetização generalizada, difusa, típica da cultura das megalópoles e da cultura de consumo, ressalta nas atividades artísticas, não o valor das obras, mas a “maneira da apresentação”. Nesta situação, diz Lyotard, “tudo é arte ou artifício […] vive-se esteticamente”. Esta estetização generalizada torna os objetos e os conteúdos indiferentes: “quando o objeto perde o seu valor de objeto, o que conserva valor é a maneira como se apresenta. O estilo torna-se o valor”2. Não é preciso muito esforço para se concluir que o que está elidido nesta generalização do estético é aquela experiência que a arte propicia: a transmutação do real em imaginário e vice-versa, a concentração da sensibilidade, a elaboração de um modo específico de pensamento, em que o conceito está inscrito no sensível. E, também, não é difícil perceber o quanto o educativo que aparece nas várias instituições, frequentemente disfarçado de facilitação de informações úteis, de valor comunicativo e conhecimento, nada mais é que um simples abandono ao fácil, ao simplesmente interessante, curioso, picante, nada marcante. 1 L. C. Osorio, “Uma leitura contemporânea da estética de Kant”. In: Ileana P. Cerón & Paulo Reis (org.). Kant – crítica e estética na modernidade. São Paulo: Ed. Senac, 1999, p. 230. 2 J.-F. Lyotard, Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996, pp. 27-31. 55
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É certo que tais instituições estão se tornando, nas últimas décadas, espaços vivos exatamente pela sua abertura à comunicação com um público pronto a entrar em situações educativas. Ora, as expectativas desse público, em parte contaminadas pelas atividades artísticas veiculadas pelas comunicações de massa, talvez sejam encontrar nesses espaços institucionais algo interessante, aquilo a que Ronaldo Brito caracterizou ironicamente como “uma modalidade de lazer, um exercício superior da fantasia”3. Mas, de qualquer maneira, esta atitude do público passa como sendo a de uma experiência verdadeira das artes. Então, coloca-se um problema: como podem as instituições culturais garantir ao mesmo tempo tais expectativas — pois elas têm a virtude de aglutinar um público, de torná-lo cativo — e forçar as atividades a fornecerem a oportunidade de uma experiência que vá além do lazer; da experiência do sentido da arte que ocorre pela atenção ao pensamento efetuado pelas obras de arte, qualquer que seja a compreensão que se tenha disso, arte, obra de arte? O enfrentamento desta questão se faz em grande parte com a mediação das tecnologias de comunicação, além do uso dessas novas tecnologias como elemento constitutivo das poéticas da imagem. Como é sabido, hoje, fotografia, televisão, vídeo, programas informatizados etc. “contribuem para instaurar uma espécie de curiosidade perceptiva média, uma contemplação flutuante generalizada”. Propõem, para este estado de generalização estética, uma “categoria que se situa tanto longe do maravilhoso quanto do indiferente: a categoria do interessante”4. Refletindo sobre as mudanças no estatuto da imagem na cultura contemporânea, provocada pelas novas tecnologias, e, assim, as repercussões na experiência estética, Alain Renaud afirma que a noção de visibilidade cultural substitui atualmente o conceito de imagem. As novas tecnologias estão redefinindo a experiência estética — que frequentemente não mais se refere ao vivido, em favor da experiência virtual — e, com isso, ocorre uma transformação radical no conceito de representação, devido à passagem do ótico ao digital5. Toda a questão é a seguinte: se as experimentações abertas pelas novas tecnologias atingem a sensibilidade a ponto de relegar as imagens óticas ao passado ou se ainda não estaríamos, na produção artística, na fruição e na crítica, imersos numa visão acrítica das intersecções de arte e tecnologia. A nova ordem visual que estaria aniquilando os modos consolidados de ver na arte desde a antiguidade não seria um acontecimento do olhar, supondo outras regras de interação como experiência estética, um processo que tem como mediação o jogo. Como diz com argúcia Annateresa Fabris, “os ensaios das novas tecnologias redefinem a relação do fruidor com a obra, obrigando-o a ter uma atenção concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em sua totalidade, a introjetar a temporalidade proposta pelo artista, 3 R. Brito, “Pós, pré, quase ou anti?” Folha de S.Paulo, Folhetim, 2/10/1983, p. 6. 4 J. Galard, “Repères pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, 119, 1982, pp. 93-94. 5 A. Renaud, “Nouvelles images, nouvelle culture: vers un ‘Imaginaire numérique’ (ou ‘Il faut imaginer un Démiurgue heureux’)”. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. LXXXII, pp. 125 e ss. Paris: PUF, 1987. Ler também comentários de Annateresa Fabris às ideias de Renaud em “Redefinindo o conceito de imagem”. Revista Brasileira de História, v. 18 , nº 35, 1998, pp. 217-224. 56
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enquanto não é raro um olhar transeunte sobre os produtos tradicionais, que nada mais fazem do que exibir estruturas e relações perceptivas conhecidas a sobejo”6. Face à situação estimulante provocada pela emergência dos trabalhos que incidem sobre as estruturas visuais, é significativa a proposição de A. Renaud: que as novas tecnologias da imagem são “laboratórios experimentais da sensibilidade e do pensamento visual”. Nelas estaria ocorrendo um alargamento da experiência estética de dimensões nunca vistas, pelo menos desde o Renascimento, originando uma discussão renovada sobre as categorias estéticas. As dificuldades apresentadas pela arte contemporânea ao espectador são imensas, pois as categorias que identificavam as obras e outras propostas artísticas, até mesmo nas vanguardas, são hoje aleatórias e ainda não definindo um regime básico de absorção e fruição. Afinal, qual é a fruição esperada dessas novas produções visuais? Para quem nelas busca algo semelhante à experiência do belo, são decepcionantes. A experiência estética, diz Renaud, pertence agora a um novo regime: “em direção a uma estética de procedimentos na qual o processo se impõe sobre o objeto: […] vivemos o fim da hegemonia do espetáculo fechado e estável […] em direção a relações inéditas entre o Corpo, a Materialidade e o Artificial, em direção ao deslocamento tecnoestético da ordem representativa analógica” 7. Se o específico do trabalho artístico contemporâneo em grande parte se determina em cada artista pela relação que estabelece entre sua atividade produtora e a história da arte, e se daí, e só daí, derivam as regras que caracterizam seu trabalho e, inclusive, a possibilidade de juízos de valor sobre os seus produtos, é aí que se situa o crivo das atividades educativas que pretendem mediar o acesso à experiência artística e propiciar o desenvolvimento de competências para avaliação das obras. A redefinição da relação do participador ou fruidor com as obras, qualquer que seja a modalidade artística abrigada nesta denominação, propõe desafios renovados aos espaços institucionais dedicados ao conhecimento das artes, assim como à elaboração de propostas de exercícios voltados para a ampliação do acesso à experiência especificamente estética. Os protagonistas destes espaços, tomados agora como interlocutores de um trabalho de significação prática, porque social, precisam ser, assim, articulados ativamente a ações culturais que desatem processos de subjetivação, advindos da disseminação da atitude artística, transformadores do gosto e das antigas expectativas formativas das artes, caudatárias da estética do belo, em que vigoravam as promessas de felicidade, de que fala Stendhal, e a crença no poder da arte de produzir a passagem da dispersão e fragmentação da vida cotidiana à unidade da experiência –– promessas e poderes que não mais operam. 6 Cf. A. Fabris, art. cit. 7 Cf. A. Renaud, art. cit., p. 126. Experiência estética, instituições e educação | Celso F. Favaretto
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*** Entre os diversos espaços institucionais de evidenciação das artes, é significativo o destaque atribuído aos espaços expositivos das artes visuais, que podem ser lugares específicos de educação. Distintos do espaço escolar, os espaços expositivos das instituições que, além dos museus, incluem oficinas culturais, casas de cultura, bibliotecas públicas, fundações e institutos culturais, precisam ser caracterizados para cada situação e evento. A questão fundamental que se coloca é a seguinte: qual a modalidade de ação educativa apropriada para cada espaço, contexto e projeto cultural dessas instituições, tendo-se em vista as demandas culturais da sociedade e, muito especialmente, as demandas particulares do sistema público de ensino, com a sua estrutural penúria e impotência no que se refere à formação da base cultural requerida pelo processo educativo? Parte-se do princípio de que estes lugares, estas instituições têm a oferecer algo que é culturalmente relevante, necessário e requerido por um público que busca alguma coisa que supostamente lhe é prometida pelo domínio da arte, independentemente dos mitos e místicas que o recobrem. Conhecimentos? Experiências? Que tipo de conhecimento e de experiência? As expectativas desse público, na verdade públicos, visam, certamente, a participação em experiências e a aquisição de conhecimentos tacitamente valorizados socialmente; ou seja, legitimados pelos discursos que sustentam os valores, os comportamentos e os ideais da, assim chamada, cultura ocidental ou, particularmente, que legitimam as necessidades de uma sociedade, como a brasileira, comprometida com os imperativos da modernização. Não se pode, entretanto, deixar de levar em conta que a busca genérica de um contato com a arte ou de uma experiência especificamente estética, vistas como um ideal de cultura, de humanização e modo de vida modernos, podem ser objetivos primordiais dessa busca, ainda que não claramente percebidos ou evidenciados pelos frequentadores, ou usuários, dessas instituições. Sob este ponto de vista, pode-se arriscar dizer que as expectativas que mobilizam a busca de cultura por essas pessoas referem-se a uma suposta potencialidade da arte em propiciar a elas a passagem da dispersão das experiências cotidianas, da fragmentação, para uma espécie de unidade da experiência prometida pela arte — talvez aquela promessa de felicidade de que fala Stendhal8. A função educativa destas instituições culturais não pode ser pensada como supletiva, como preenchendo lacunas das instituições escolares, do sistema regular de educação, pública e privada, que supõem, por princípio, a continuidade dos conhecimentos e da formação, sistematizadas conforme ideais, princípios, objetivos e valores articulados por uma concepção pedagógica psicossocial, além de filosófica-existencial. Já as instituições de que estamos tratando, museus, institutos, fundações etc., voltadas especificamente para a produção artística, particularmente para a arte contemporânea, devem dar conta do desnível entre a experiência propiciada pela arte contempo8 Cf. Stendhal em Do amor [tradução Roberto Leal Ferreira]. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 58
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rânea — que é pontual, implicando continuidade, mas de outra espécie, por blocos, módulos — e o horizonte de expectativas do público9. As expectativas do público são fortemente marcadas pelas modalidades artísticas difundidas pelo sistema midiático, com tudo o que isto implica, não só em termos de relação consumista, modista e de generalização estética, que atinge e torna artísticos objetos de proveniência diversa —, mas também com tudo o que isto implica de abertura do campo artístico e de possibilidades amplas de informação e de comunicação. Coloca-se aqui a contribuição potencial das novas tecnologias para o desenvolvimento de atividades de participação dos visitantes, com sua grande diversidade, o que impõe requisitos para a produção das atividades. É muito importante considerar também os limites destas novas tecnologias na formulação e realização das funções educativas, pois não se pode considerar o valor dos media em si mesmos. Daí a necessidade de se definir a colaboração necessária entre os especialistas da comunicação e da multimídia, e os produtores culturais das instituições em pauta. Pois se, de um lado, pode-se dizer que as novas tecnologias constituem uma ocasião excepcional de “relançar a ação cultural e educativa dos museus do terceiro milênio”10, de outro, “seria ilusório, ingênuo e perigoso sacralizar as novas tecnologias”11. Assim, atualmente um dos esforços das instituições culturais dedicadas à arte contemporânea consiste em estabelecer processos de acompanhamento ou de mediação que facultem a possibilidade de os espectadores acederem sensivelmente e reflexivamente a uma experiência estética específica. Isto requer, antes de tudo, uma contextualização dos trabalhos — obras, objetos, instalações, proposições, ambientações. Trata-se de um esforço de “situar a obra nas condições de sua gênese singular e, por consequência, aproximar-se do horizonte de expectativas” do público e, assim, “contribuir para apoiar a obra na história de uma dada sociedade”12. A constituição de um sistema de referências — por exemplo, pela justaposição de obras contemporâneas e obras anteriores, antigas e modernas — permite muitas vezes que o espectador faça uma espécie de viagem pelo interior de uma vertente produtora de obras para localizar aquela obra contemporânea que está sendo apresentada. Em resumo: como os espectadores de arte contemporânea poderão apossar-se das elaborações dos artistas, considerando que estes estabelecem, nos seus trabalhos, uma relação entre as próprias operações e o processo de criação de alguns de seus antecessores? Como acessar as regras que presidem os trabalhos contemporâneos, em sua singularidade, senão evidenciando o sistema de referências a que se remetem ou em que se incluem? Esta, talvez, seja a tarefa mais importante a ser realizada pelas instituições dedicadas às artes visuais. Se as obras, sob certos aspectos, são autônomas 9 R. Recht, “Le musée et l’initiation à l’art contemporain”. In: J. Galard (org.), Le regard instruit. Action éducative et action culturelle dans les musées. Paris: La Documentation française, Musée du Louvre, 2000, p. 180. 10 P. Galluzzi, “Les nouvelles technologies et l’éducation hors les murs”. Id. ib., p. 140. 11 A. Bourdon, “L’usage éducatif d’un service en ligne: le cas de [Louvre.edu]”. Id. ib., p. 152. 12 Cf. R. Recht, loc. cit., p. 181. Experiência estética, instituições e educação | Celso F. Favaretto
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na criação, não o são na recepção. Dessa maneira, pode-se dizer que a educação artística propiciada pelas instituições de que falamos não pode reduzir-se ao domínio das técnicas, procedimentos, estilos ou ao gosto. Tampouco pode fornecer princípios estéticos que formulem juízos de valor. A entrada na própria experiência artística é a meta. Isto se dá através de mediações. A mediação, enquanto processo de entrada no sistema de relações que preside o trabalho dos artistas, exige métodos próximos daqueles que se efetuam nas escolas — embora em outra chave, pois, nestas, a “aula” é atividade indispensável —, aliados a outros que devem responder diretamente à configuração dos espaços culturais das instituições. Lugares de evidenciação da arte, especificamente dedicados a mostrar, exibir, eventuar a arte contemporânea, já determinam uma qualidade de experiência artística diferenciada. Se, na escola, a arte comparece pelo seu possível valor educativo, como uma articulação de signos aptos a mediar o processo de ensino e a aprendizagem, nas instituições culturais ela afirma-se imediatamente pelo seu valor cultural. Nelas, “a ação educativa não é um fim em si — ela deve colocar-se a serviço do museu [ou outro lugar específico], cujo sentido a ultrapassa amplamente, mas que também a orienta”13. Se a ação educativa não é um fim em si, e porque ela é um dos elos do sistema de produção cultural que se estabelece nestas instituições, ela situa-se não apenas no horizonte da distribuição ou democratização de ideias, produtos, obras, porém, mais incisivamente, no uso da cultura, promovendo “o pleno desfrute de uma determinada obra, o que envolve o entendimento de seus aspectos formais e também de conteúdo, sociais e outros; para tanto, recorre à elaboração de catálogos, programas de apresentação de um espetáculo ou filme, palestras, cursos, seminários, debates etc.”14. Portanto, é como ação cultural, definida por uma atuação, voltada para efetivar uma determinada política cultural, que a arte está estrategicamente situada no núcleo central do trabalho dessas instituições. É preciso, contudo, ressaltar que a ação cultural através da arte não pode restringir-se, e muito menos submeter-se, a fins objetivamente programados, ou seja, não pode ser simplesmente instrumentalizada. Ela propõe, organiza e articula ações que materializam pensamentos e atitudes que visam a orientar os destinatários na discriminação de valores, na definição de uma posição face à dispersão cultural contemporânea, particularmente, face à diversificação do trabalho artístico. Sabe-se, além disso, que as experiências que as artes proporcionam não mais satisfazem às expectativas e desejos de transcender a tal dispersão, ou seja, não satisfazem o anelo de reunificação da experiência fragmentária. De qualquer maneira, entretanto, a arte permanece sendo um foco de estetização, um lugar de concentração e comoção, do pensamento e da sensibilidade, que, se não tem o poder de modelar a experiência15, se não tem o poder de mudar a vida, é, sem dúvida, uma de suas faces mais intensas: ela é o lugar onde o sentido ainda insiste em presentificar-se. 13 Id. ib., p. 178. 14 T. Coelho. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997, pp. 32-33. 15 Cf. J. Galard, “Beauté involontaire et beauté préméditée”. Temps Libre, 12, Paris, 1984. 60
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Assim, uma educação pelos museus, pelas exposições, pelas retrospectivas, pelas obras, eventos, instalações etc., em que se joga a experiência da conjunção do sensível e do inteligível, pode não fornecer imediatamente resultados como os esperados segundo os cálculos administrativos e econômicos que hoje invadem a cena da cultura sob a rubrica de política cultural. A cultura cotidiana do ambiente das metrópoles, marcada pela indiferenciação do consumo, visada pelos objetivos das políticas culturais com a finalidade de oferecer oportunidades de diferenciação, é de qualquer maneira o objetivo das ações educativas mencionadas, pois é aí, mais do que em qualquer outra circunstância social, que se põe crucialmente hoje o valor da arte; a capacidade e a possibilidade de essas ações produzirem diferenciação cultural, através da experiência do valor dos objetos, das obras, num tempo em que perdem o valor e afirmam-se apenas através de suas maneiras, estilos de se apresentarem16. A ação educativa não pode, assim, reduzir-se a oferecer maneiras e estilos ou mesmo o simples ludismo das formas e dos procedimentos. Nas instituições culturais de que falamos, as vias de iniciação à arte contemporânea efetuam-se em duas direções, que se excluem ou que se combinam, semelhante ao que ocorre nas instituições escolares, especialmente nos cursos de artes plásticas: a que “elabora uma análise plástica das obras — desconstrução dos componentes composicionais ou cromáticos etc. — e considera a obra como um edifício formal que será o resultado de um saber-fazer, e raramente de um saber-pensar, e que aparece como uma espécie de molde operatório. Ora, uma tal análise da obra não dá conta nem de sua historicidade nem de seu contexto. A história é o que possibilita resgatar os dados diacrônicos, permitindo ligar as obras recentes às obras do passado […]. Os museus que podem e sabem justapor as obras contemporâneas e as obras de suas coleções antigas favorecem sensivelmente a aproximação da obra contemporânea”17. A outra via é a que contempla o “estudo do contexto” da obra: o que está na origem de uma obra como uma necessidade ou resposta a um pedido, a uma encomenda? Qual foi a sua destinação primeira? Em que condições trabalhou o artista? Estas são questões, entre outras, que “permitem situar a obra nas condições de sua gênese singular e, por consequência, aproximar-se do horizonte de expectativas de seus contemporâneos”, contribuindo, assim, “para apoiar a obra na história de uma dada sociedade”18. Atualmente, participar das experimentações implica entrar na reflexão sobre a constituição do campo contemporâneo da arte. Só assim, a ausência da experiência do belo, do maravilhoso e do sublime não decairá no domínio do simplesmente “interessante”, ou seja, no domínio da indiferenciação. A ação educativa é uma ação ético-estética, não um simples exercício da sensibilidade e um treinamento da percepção; muito menos uma simples “modalidade de lazer”19.
16 Cf. J.-F. Lyotard, Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, 1996, p. 31. 17 Cf. R. Recht, loc. cit., pp. 180-181. 18 Id. ib., p. 181. 19 Cf. R. Brito, loc. cit., p. 6. Experiência estética, instituições e educação | Celso F. Favaretto
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Re fe r ê n c i as b ib liográficas BRITO, Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?” Folha de S.Paulo. Folhetim, 02/10/1983. Reproduzido em LIMA, Sueli de (org.), Experiência crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CAHIERS Internationaux de Sociologie. Paris: PUF, v. LXXXII, 1987. CERÓN, I. P. & REIS, P. (org.). Kant – crítica e estética na modernidade. São Paulo: Ed. Senac, 1999. FABRIS, Annateresa. “Redefinindo o conceito de imagem”. Revista Brasileira de História. Anpuh/ Humanitas, v. 18, nº 35, São Paulo, 1998. GALARD, Jean. “Repères pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, nº 119, Paris, 1982. _____________. “Beauté involontaire et beauté préméditée”. Temps Libre, nº 12, Paris, 1984. _____________. (org.). Le regard instruit. Action éducative et action culturelle dans les musées. Paris: La Documentation française / Musée du Louvre, 2000. LYOTARD, Jean-François. Moralidades pós-modernas. Campinas: Papirus, tradução de Marina Appenzeller, 1996. TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997.
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B alanç o s e p ersp e c tivas m us eo gráf ic as – U m M u se u d e Ar te em São Vice n te Lina Bo Bardi*
Palavras-chave educação; museu; formação de público; contexto. Key words education; museum; educating audiences; context.
Resumo: A partir da experiência de constituição do Museu de Arte de São Paulo, Lina Bo Bardi elabora suas considerações sobre o papel do museu, não como uma caixa para guardas joias, mas como um recurso social e cultural para a metrópole. A mudança na forma, ritmo e distribuição de imagens a que o público tem acesso através da propaganda, exige do museu um posicionamento e uma nova didática para a aproximação e formação de público. Uma didática viva orgânica e em relação com o ambiente. Abstract: From the experience of setting up the Art Museum of São Paulo, Lina Bo Bardi indicates that the role of the museum is not to be a jewelry box, but a resource for the social and cultural metropolis. The change in production and distribution of images to which the public has access through the propaganda relating a positioning and a new approach to educate and attract new audiences. An alive and organic teaching, relating with the environment.
* Texto originalmente publicado na Revista Habitat, nº 8, 1952. A revista marcelina agradece o Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi pela cessão de direitos de reprodução.
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Há quatro anos passados, com um primeiro e modesto grupo de obras de arte, e num local simplesmente adaptado com as mais racionais intenções, inaugurava-se o Museu de Arte de São Paulo. Seu destino caracterizava-se por uma inexcedível vontade de elevá-lo a um nível de natureza moderna, viva, coerente, prática, ativa. Elevá-lo a tal ponto que a sua existência e funcionamento pudessem fazer com que começasse a ser considerado como um recurso social e cultural para a metrópole, e não apenas um escrínio, um cofre das pequenas joias do passado, mas uma decoração histórica. A concepção era inédita, parecia fantasiosa ou impossível, como se se tratasse, simplesmente, de uma ideia extravagante. Após quatro anos, parece ter chegado o momento de proceder a uma espécie de balanço. Sobretudo em se pensando que nesse ínterim ocorreram certos fatos não previstos, como o caso da solicitação procedente das autoridades de populações menores, no sentido de se instituir outro museu semelhante, em escala evidentemente mais reduzida, mas com intenções e escopo pelo menos afins. Sucede, pois, que o balanço se transforma em grandes perspectivas que ora se abrem para o museu. Ao construir um museu devemos propor-nos determinado número de perguntas, como as categorias aristotélicas: Que coisa, exatamente, cumpre ensinar hoje, aqui? A quem, hoje, dever-se-á ensinar? Por que será preciso ensinar? De que modo é preciso ensinar? E onde será preciso ensinar? Todas essas perguntas parecem mais um elenco rígido de distinções de exclusiva competência de disciplinas científicas, no caso, da pedagogia e da didática. Mas ensina a história que a pedagogia e a didática jamais contribuíram para formar um único homem, quando não animadas por um conteúdo humano mais cálido, mais afável, mais profundo, o que o simples conhecimento dos métodos e sistemas jamais permitiria. Existem leis fundamentais, ou melhor, uma disciplina fundamental, na órbita genérica do que costumamos chamar “didática”. Mas semelhantes leis têm um valor, uma significação e uma eficácia, isto é, um rendimento moral e social exclusivamente quando se movem e se adaptam às condições ambientes, à complexa estrutura de determinada sociedade, com determinado grau de desenvolvimento mental e com suas exigências típicas. Não mais se pode conceber a didática como um manual de normas amorfas, válidas em toda a parte e aplicáveis de qualquer maneira. Qualquer didática somente será viva quando se apoiar num longo esforço de adaptação aos indivíduos, aos quais se aplica, com amor e com o agudo espírito de observação, que permite ao mesmo tempo compreender-se o grau das exigências e estudarem-se os mais oportunos e adequados meios de comunicação.
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Tornada oficial e estática, no seio do complexo nacional e político, com programas fechados, aplicados com indiferença e um mínimo de esforço, a didática é um aspecto da vida cultural moderna. Os próprios organismos políticos, quando e onde são abertos à influência dos ditames da inteligência, não apenas não obstam, mas secundam mesmo, às vezes requisitam a iniciativa, por assim dizer, privada, a iniciativa espontânea, a intervenção direta do povo, para plasmar uma cultura e para suprir as gravíssimas lacunas que nenhum programa abstrato, nenhuma previsão esquemática consegue jamais preencher. Assim, julgamos ser possível afirmar: somente uma didática em movimento, compreendida como work in progress, concebida como especificamente adequada a certas condições locais, somente uma didática orgânica e viva pode responder com presteza a certas urgências populares, circunscritas e delimitadas por um certo número de condições políticas. Digamos: somente uma didática “orgânica” pode responder às perguntas elementares de toda missão formativa que se empreende. Que ensinar? Que é ensinar hoje, aqui, neste lugar, neste clima, nesta zona, onde o povo pratica tais e quais ações, possui tal estrutura social, tal sensibilidade, tal formação histórica, tais condições econômicas, tal grau de desenvolvimento moral? Antes de tudo, será necessário examinar e perguntar o que se deseja saber, e, em segundo lugar, o que é preciso que se saiba. São essas as coisas que, num programa didático centralizado num ministério de uma grande capital, elaborado num gabinete, ou segundo exigências políticas ou parlamentares, em geral não são vistas e compreendidas em sua essência, em sua totalidade e em seus pormenores. Já se verificou que na época atual, em que a palavra parece ter perdido em valor intensivo, e em que certamente perdeu toda a sua força de penetração e de persuasão, de ênfase e de sentimento, requisitos que por milênios guardara, a palavra representa, entre os múltiplos instrumentos de comunicação, um nobre, mas decadente instrumento. Um instrumento menos eficaz. É lugar-comum o que vamos expor, mas nem por isso é menos verdadeiro: a maior força comunicativa é hoje dada por instrumentos mecânicos que reproduzem a realidade e a própria palavra. A mente do homem, hoje, aprende visualmente. A gravura e a reprodução mecânica proporcionam presentemente aos olhos humanos uma vasta visão dos fatos da humanidade e uma anárquica e fragmentária concepção das esferas culturais. A verdadeira cultura deve, em geral, empregar os mesmos meios mecânicos, o mesmo sistema de visualização, para proporcionar uma ordem mais inteligente, mais disciplinada, mais humana e mais coerente do que qualquer outra derivada da improvisação violenta e desordenada da imagem figurada. Existe um mundo da propaganda, das várias propagandas, políticas e comerciais, que violentamente se orientam contra o cérebro humano, com um bombardeio de milhares e milhares de figurações, psicologicamente estudadas, com o fim de atrair, para a órbita dos seus próprios interesses, todos os grupos humanos. Pois bem, a cultura deve seguir os mesmos métodos, a fim de atrair todos os agrupamentos humanos para a órbita dos superiores interesses que ela representa, isto é, para o âmbito da ciBalanços e perspectivas museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente | Lina Bo Bardi
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vilização, da moralidade, da beleza, da utilidade. Por isso a típica didática escolástica, comumente imposta, ainda, com base na palavra, não mais está, de modo algum, apta, como sistema, a construir, sozinha, o repertório de conhecimentos belos e úteis, pelos quais o homem tem frequentemente demonstrado um desejo fundamental e insuperável. Tais necessidades é que procuramos suprir. Conta hoje o mundo com maior número de meios para difundir a pornografia necessária para a sedução do homem em relação a determinado produto (exemplifiquemos: certos refrigerantes baseiam a sua propaganda de preferência na pornografia, sem dúvida simplesmente sugerida, mas nem por isso menos mórbida), que de atraí-lo para os autênticos valores da beleza. Para cada ilustração que reproduz a beleza de um quadro de Rafael ou de Rembrandt, correm pelo mundo milhares de reproduções de um nu que celebra um cosmético pouco útil e geralmente prejudicial à epiderme. Por outro lado, é igualmente vastíssima a área de difusão de tais ilustrações: atinge todos os lugares, as mais altas montanhas, os mais desconhecidos países. Enquanto isso, a cultura, constrangida a trabalhar sem a disponibilidade de meios que a indústria e a publicidade habilmente sabem subtrair aos consumidores, deve, pelo menos, trabalhar em profundidade, vencendo obstáculos, resistências, penúrias, confiando frequentemente no acaso ou na boa vontade de pessoas esclarecidas e amantes do próximo. Por isso, então, qualquer Museu que seja moderno, que corresponda às necessidades e aos desejos populares, não pode deixar de levar em conta semelhante realidade. Eram exatamente esses os nossos propósitos quando demos início à vida do Museu de Arte de São Paulo. Acolhendo uma série de obras-primas do passado (que hoje representam uma série digna de figurar nos museus da Europa e da América do Norte, e a única de valor, atualmente, em toda a América do Sul), preocupávamo-nos em fazer penetrar a luz educativa, histórica e cívica, no maior número possível de pessoas. Mas não nos limitamos a atender o visitante, o tipo melancólico atarefado, o melancólico estudioso, o apressado e cansado turista, o isolado e dispersivo, que vê pela primeira vez uma obra célebre e não compreende por que é ela assim importante. Não nos limitamos a atender, chamando a ver, ilustrando, esclarecendo, explicando, respondendo às inúmeras perguntas feitas; ao contrário, imediatamente planejamos e realizamos uma iniciativa que, sob muitos aspectos, era a primeira em todo o mundo, ou seja, exposições elementares, orgânicas, resumidas, com materiais ilustrativos oportunamente montados e dispostos em salas, de toda a história da arte, das artes, da cultura, do pensamento. Primeiro em geral, depois período por período, aperfeiçoando e ampliando pouco a pouco o raio de interesse e de notícias, e atingindo progressivamente o tom. Tais exposições em parte ainda permanecem acessíveis ao público e são objetos de contínuo exame, como pontos de referência. E aos poucos as obras originais que a Pinacoteca exibia tomavam corpo, como uma referência à história e à vida do homem, e emitiam um verdadeiro fluxo de notícias e de noções, de que consistem a história do homem e a sua própria consciência: seu modo de ser, de proceder, de trabalhar, de viver, de habitar.
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Logo após os contatos iniciais com as primeiras camadas sociais, o Museu de Arte sofreu as suas primeiras desilusões, que, sob muitos aspectos, constituíram o material básico sobre o qual se efetuariam as suas primeiras experiências concretas, válidas para o futuro. O que então sucedia era de fato a confirmação de convicções já anteriormente amadurecidas, isto é, de que as camadas sociais mais desejosas de se aproximarem de grande patrimônio de cultura passada e em formação, são constituídas de gente viva, humilde, sincera, respeitosa. E de fato foi o que se verificou. O Museu considerava de seu dever chamar a si, antes de todos, os artistas brasileiros, aqueles que deveriam fazer da arte não só uma prática ambiciosa ou uma profissão mundana, mas, em primeiro lugar, uma verdadeira missão. Por isso o Museu de Arte proporcionou ilimitado acolhimento a todos os artistas. O resultado foi contrário a qualquer previsão. Os chamados artistas da velha guarda, os acadêmicos, os bombeiros1, nem sequer apareceram; e, no entanto, aquilo que o Museu oferecia era mais destinado à atenção deles que à dos outros. Trancafiaram-se cada vez mais nas suas furnas, a escavar no escuro, como tatus ou como toupeiras. Talvez a sua cegueira não mereça sequer ser tomada em consideração. Os modernos, os chamados modernos, chegaram com ares de triunfo. Naturalmente, o Museu, destinado aos verdadeiros valores, não poderia ocupar-se de todos. Os principiantes, os diletantes, e todos aqueles que copiam as últimas reproduções dos quadros europeus, foram, pelo menos por algum tempo, julgados fora do círculo de consideração. Todos eles, então, também se encerraram na sua grandeza, no seu romântico sonho de domínio; e lá continuam encerrados. Foram chamados outros artistas a colaborar num trabalho que verdadeiramente requeria a contribuição apaixonada de todos. Consideraram estes a tarefa muito humilde e, um por um, desapareceram, motivo pelo qual o Museu de Arte se encontrou, por sua vez, isolado, no centro de todas as responsabilidades, e com a obrigação de sozinho levar a cabo a tarefa, mesmo trabalhando exaustivamente. Somente nos animava o fato de haver-se feito uma seleção espontânea: os melhores, os autênticos expoentes da arte brasileira continuavam conosco, dando-nos a sua colaboração, seu trabalho, seus conselhos, o prestígio de sua presença: eram, por exemplo, os Portinari, os Di Cavalcanti, os Segall, os Burle Marx, e os artistas populares. Foi então que o Museu pôde encarar claramente a situação. Compreendeu suas tarefas. Elaborou seus instrumentos. Delimitou as zonas que mereciam maior atenção, dedicação completa. Milhares de pessoas chegaram até nós, com o fito de buscar diretrizes, conhecimento, prática. Eram gente viva, isenta daquela vaidade e suficiência que distingue as personagens do mundo artístico em cena, geralmente destinadas a desempenhar papel de comparsa, em geral de segunda ordem, as quais nunca devem proferir uma palavra e nem mesmo uma simples réplica. Eis agora as pessoas a quem deveríamos dizer alguma coisa: o povo, os jovens. Que haveremos de dizer? Tudo o que a vida e a escola não estavam em condições de di1 Nota da Edição: tradução literal de “art pompier”: expressão utilizada para designar a arte oficial da segunda metade do século XIX ; sinônimo de “acadêmico” com ressonância pejorativa. Balanços e perspectivas museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente | Lina Bo Bardi
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zer. Tudo aquilo que, na vida, os encontrava desprovidos de conhecimentos racionais, de princípios racionais e de consciência prática. Os desejos e as necessidades eram múltiplos: um desejava conhecer o “desenho moderno”, que pudesse ser útil à vida, outro pretendia completar a própria personalidade, ou apenas aperfeiçoar com ritmo o próprio corpo. Assim surgiu uma primeira escola, profundamente racionalizada, e baseada numa larga experiência de trinta anos (o “Bauhaus”, europeu e norte-americano; os recentes institutos de “desenho industrial” da América do Norte) de desenho aplicado. Assim se formam artistas, ou, pelo menos, desenhistas, de cultura moderna e de vitalidade. As tradicionais matérias de ensino em vigor nas academias do governo são inteiramente antiquadas, lentas, inadequadas à vida; pelo menos podem ser agora completadas com outras, capazes de formar cientificamente o artista de nossos dias. Mereceram especial consideração os conselhos e sugestões a seu tempo formulados pela Unesco. Por sua vez, as crianças, com técnica pedagógica coerente com os movimentos modernos no campo da arte e da educação artística, foram iniciadas na música, na dança, no desenho, na pintura, na modelagem, na plástica. O problema das crianças, a princípio, parecia o mais difícil, e uma das razões estava em que, a aplicação de uma normativa pedagógica, mesmo avançadíssima e inteligente, mas abstrata, não pode dar os resultados que poderíamos esperar. Era apenas um defeito de estrutura e de educadores ainda não perfeitamente compenetrados da nova realidade didática. Como potencializar o instinto da vitalidade artística, para entrar no campo da educação artística das crianças? Como conseguir equilibrar as tendências da criança sem estancar, mas antes, ao contrário, provocando o sentimento da liberdade intelectual e poética? Nascia então aquela afetuosa e sistemática tolerância, destinada a ajudá-la a descobrir por si mesma os meios que lhe permitiam dizer e representar cada vez mais claramente aquilo tudo quanto pretende dizer e representar. Depois, insistindo, batendo novas estradas e tentando novos instrumentos, chegamos afinal à conclusão de que, com tempo e paciência, estávamos progressivamente obtendo resultados mais convincentes. Além disso, estamos estudando a possibilidade de organizar, juntamente com os ensinamentos artísticos proporcionados aos meninos, e, em contato direto com eles, uma escola de psicologia infantil, que traga uma contribuição direta a esse importante setor, no qual muitos cientistas, em outras partes do mundo, continuam trabalhando. No campo, digamos, coletivo, um dos mais vistosos resultados, se bem que, para nós, não o mais importante, foi a fundação de uma orquestra infantil e de uma orquestra juvenil as quais, nos últimos tempos, alcançaram tamanho êxito, de crítica e de público, que receberam convites de muitas salas de concerto, não somente do Brasil, mas inclusive do exterior. À direção do Museu, porém, mais interessavam as consequências sociais dos acontecimentos, porque a formação e instrução de uma orquestra de mais de
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Museu à beira do oceano. São Vicente, São Paulo, 1951. Montagem fotográfica. Maquete. Col.: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi/Hans Flieg
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setenta figuras representa um conjunto de esforços individuais realizados por meninos muito jovens, que testemunham a possibilidade absoluta de estabelecer importantes e contínuos contatos culturais com o povo, fora das esferas da educação oficial, superando todas as dificuldades da vida prática. O que tentamos no setor orquestral, também o conseguimos, na mesma medida, no setor vocal-coral. O cinema — e aqui entramos em outro campo — é a atividade cultural (não dizemos “arte” para não insistir numa velha polêmica, e porque, provavelmente, não é mesmo arte) que mais fortemente envolve o povo na sua extenuante magia. É o legítimo e democratíssimo sucessor do teatro antigo, do século passado, do teatro burguês. Muitos — a maior parte — atraídos pela auréola do cinema, abandonam-se às suas sugestões e com isso se contentam. Outros, porém, especialmente os jovens, querem ir além, ver por detrás da tela e dos bastidores, saber como é feito esse surpreendente brinquedo que é o cinema, potente instrumento e veículo de vida, de poesia, de moralidade e de imoralidade, de paixões e melancolia, de conhecimentos e de erros. Ora, a primeira coisa que nos propusemos, na fundação de um centro de estudos cinematográficos, foi exatamente esta: sem a preocupação de formar elementos para uma cinematografia brasileira, pretendíamos difundir a consciência de uma problemática artística, científica, técnica e comercial, que é inerente àquele instrumento da vida moderna. Os mais competentes elementos da cinematografia desempenham no “Seminário de Cinema” do Museu de Arte esta preciosa função. Não podemos afirmar que obtivemos, até o momento, neste campo, extraordinários resultados. No entanto, e em compensação, são já tangíveis os resultados conseguidos de algum tempo a esta parte, no que respeita ao Instituto de Arte Contemporânea. Uma grande metrópole como São Paulo de fato se ressente do gosto e da precisão de que esta escola, levada a todos os campos por elementos de primeiríssima ordem, se fez campeã e modelo indispensável, a ponto de grandes organizações comerciais chegarem a pedir a sua intervenção para renovação de suas vitrines. Segundo nossa experiência, nunca é cedo demais para colocar as crianças em contato com as obras de arte. No entanto, é sempre muito tarde para pôr os adultos em contato com as disciplinas da arte, mesmo nos campos em que a vida moderna parece excluí-la. Por isso, o Museu se preocupou, também, em estabelecer contato com algumas práticas da vida, nas quais a arte pode entrar como elemento de regularidade, de precisão, de beleza: ocupou-se com a moda, organizando memoráveis exposições (e alheio a qualquer interesse comercial), ocupou-se da publicidade, preparando igualmente exposições de importância primária, não só para o Brasil, mas para o mundo inteiro; ocupou-se, afinal, em abrir cursos de tecelagem à mão, de estilística para manequins, de jardinagem, de arte fotográfica, de técnica radiofônica, além de proporcionar conferências sobre a história da música e sobre determinadas formas de música. Possivelmente em algum campo de toda a nossa atividade tenhamos alcançado resultados ou compensações escassas, ou talvez mesmo escassíssimas; e, às vezes, até desmentidos às nossas afirmações. Nossa constituição mental, subordinada à determinação de 70
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exigências europeias (a que, na Europa, se dá a genérica denominação de “historicismo”), levou o Museu de Arte a instituir um ciclo de conferências, isoladas, ou constituindo um curso como base de um trabalho destinado a formar em cada zona um clima cultural histórico, favorável à vida de todo o organismo didático. Grande parte de semelhante trabalho nos levou à convicção de que, em geral, tudo era obscuro, supérfluo ou imaturo. Cumpria ter presente que a educação europeia, fundada em dois séculos de idealismo, idealismo histórico, historicismo, não encontra bom campo na jovem mentalidade da América do Sul, ou, pelo menos, não parece destinada a representar muito amplo estímulo. Melhor será, talvez, procurar desenvolver esta original e genial mentalidade e a curiosidade a respeito do evento e do fato histórico, de preferência a explicar longos mecanismos intelectualmente reconstruídos como base de uma análise cujo sentido escapa à compreensão imediata e normal. Decidimos ter sempre presente que não existe uma cultura rígida à qual as mentes devam adaptar-se, mas tão somente uma cultura maleável, em face da índole mental espontânea dos indivíduos, aos quais proporciona estímulo para deduções e conclusões. Semelhante trabalho de organizar cursos (de história da arte, de história da música) deixa sulcos e traços apenas perceptíveis, não incisivos. Foi, portanto, um erro, mas, como todos os erros, foi útil à nossa experiência. Depois de quatro anos de existência, o Museu de Arte de São Paulo, cujas vicissitudes, cujo trabalho, cujos resultados representam já um breve, mas intenso, capítulo na vida cultural do Brasil de após guerra, tornou-se exemplar, inclusive pela riqueza de material artístico, que muitos museus da América do Norte e da Europa poderiam invejar. Exemplar e admirado a ponto de constituir impulso e modelo a outras iniciativas espontâneas do mesmo gênero ou inteiramente semelhantes. De fato, alguns centros de menor vulto já se aproximaram do Museu, a fim de pedir seja um deles organizado também numa dessas localidades. São localidades periféricas, onde mais fortemente se ausculta o simples desejo de possuir uma instituição que contribua para a elevação do nível cultural das suas respectivas populações. O fato de que pequenos centros pensem em fundar museus locais pode ser considerado como excepcional. Pode ser indício de alto nível cívico e mental o fato de autoridades locais, certamente preocupadas com problemas econômicos ou de outra qualquer natureza, ocuparem-se de museus. É sinal de que, depois de nosso exemplo, compreenderam uma verdade à La Palice2, mas que em geral não goza de muito crédito: que as despesas com que arca uma população para conquistar a própria cultura não são despesas negativas, não constituem esbanjamento. E mais: que um museu atual não pode ser um local em ruínas, onde se amontoem antiqualhas e onde domina a poeira, como nas catacumbas. Desde o início de nossas atividades, estabelecêramos que o Museu, surgindo sob o peso de sua autoridade de guarda de preciosos patrimônios artísticos, não pretendia defender ou propagar um puro “amor à arte”, cuja psicologia representa simples manifestação do “decadentismo” europeu. Eis o que escrevia há tempos o nosso diretor: “Todos os meios 2 Nota da Edição: proposição óbvia; verdade evidente. Balanços e perspectivas museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente | Lina Bo Bardi
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normais e excepcionais conhecidos e outros que serão descobertos pela experiência serão, pois, empregados, no sentido de transformar o Museu no cérebro funcional de um convênio prático e ideal de todos quantos energicamente se dedicam a uma causa responsável de educadores através de museus. Desse modo, e quase de súbito, o Museu muda de perspectivas, de intenções e orientações, realizando uma espécie de revolução pacífica, que lhe muda as características, ou a própria natureza. É evidente que uma parte das condições ambientes em que os museus se encontram, ainda obrigados a manobrar, se mostram insuficientes para as novas missões a que são imperiosamente tangidos.” O Museu não é um conjunto de antiqualhas, não é um espetáculo turístico, aristocrático, mundano ou maníaco (pois que existem os maníacos das coleções). Era o que pretendíamos demonstrar e, então, prefeitos e governadores, que antes disso nem longinquamente teriam pensado em fazer despesas de luxo, vieram até nós, porque estávamos em condições de pôr a nossa experiência à sua disposição. Muito satisfeitos ficamos com isso, principalmente porque tudo correspondia igualmente a um dos escopos que sempre guiaram a nossa atividade no Museu. Nada nos resta senão agradecer àqueles convites, que, emanados em prol das populações que representam, eles nos dirigiam. E ficamos sobretudo satisfeitos com um resultado, com o fato de que tais pessoas sempre se declarassem dispostas a ceder lugar à competência, à especialização, à experiência específica no campo da organização dos museus. De nossa parte tínhamo-nos decidido a esperar, ainda que por cem anos, ou a desistir de tudo, se não lográssemos conquistar, com os resultados alcançados, uma completa e ilimitada confiança, até que nossos projetos fossem reconhecidos e aprovados integralmente, sem compromissos, sem transições, sem tergiversações e hibridismos entre velhos e novos métodos. Num centro como São Paulo, teríamos que sofrer pressões, e, frequentemente conformarmo-nos com certos compromissos. Mas agora, quem quiser trabalhar conosco, sob nossas diretrizes e com as mesmas finalidades de bem e de cultura, deve fazê-lo conosco. Os diletantes, os amadores, que se promovem a diretores, sem saber exatamente o que significa, dentro de uma ordem social, um organismo delicado como é o de um museu de arte, não devem ter voz suficientemente ativa para desviar-nos do rumo certo. A São Vicente, onde, exatamente graças a esta condição, decidimos instituir novo museu, devemos, antes de mais nada, responder a uma pergunta, até agora sem resposta: onde, ou melhor, como será o edifício específico no qual o museu moderno poderá proporcionar a sua estável e contínua lição? É lógico que, como todas as funções típicas, a atividade humana igualmente terminará por encontrar, pouco a pouco, seu aspecto arquitetônico, sua forma adequada, que coincida perfeitamente com o ambiente no qual surge e com as finalidades a que se destina: as finalidades serão as anunciadas por toda a verdadeira museografia moderna, o ambiente será o das condições naturais, paisagísticas, climáticas, econômicas e sociais em que deverá desenvolver-se. Assim, a própria arquitetura, por si só, poderá adquirir sentido educativo, sentido expressivo. O edifício do museu de São Vicente tanto mais se imporá ao interesse da população quanto mais atraente for. 72
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Nasce um, voltado para o Atlântico, ao longo de uma praia, edificado sobre a areia. Um edifício bloqueado de três lados, dois menores e um maior, enquanto que o quarto ficará inteiramente aberto para o mar, e protegido por noventa metros de uma única parede de cristal. Com sua estrutura de cimento armado, erguida sobre quatro traves em pórtico, as paredes revestidas de mármore “neve Brasil”, suportes polidos e laqueados, o edifício será constituído: de uma pinacoteca para exposições temporárias e permanentes, ladeada de uma área aberta e cultivada, para exposições de esculturas ao ar livre; de um auditório de cerca de trezentos lugares, provido de paredes ampliáveis e removíveis a fim de proporcionar vista para o mar, inclusive durante as reuniões e entretenimentos que não exijam espaços completamente fechados. O setor das escolas compor-se-á do imprescindível número de salas, cujas paredes serão móveis, de forma a que se possa ampliar o espaço segundo o número de alunos. Conhecemos todas as dificuldades e todo o conjunto de problemas que se erguem contra a instituição de um museu de tipo absolutamente novo, em ambiente que em absoluto não se encontra preparado para a concessão, a si próprio, de um museu, por parte de uma população que pela primeira vez entra em contato com um organismo de cultura diferente da cultura oficial do país e da cidade. Por outro lado, porém, as dificuldades nos parecem menores do que enfrentadas quando da criação de um museu numa metrópole relativamente bem provida de meios, mas de um modo geral menos desejosa de possuir um organismo desinteressado e superior aos interesses, às vaidades, às ambições da média cultura e da cultura mal digerida. Um museu como o de São Vicente terá um corpo mais leve, mais ágil, que lhe proporcionará mais segura liberdade de movimentos, ou melhor, não será propriamente uma verdadeira pinacoteca, no sentido tradicional, que, de resto, seria inútil numa localidade que não dispõe de riquezas supérfluas, como é o caso das metrópoles. Mas encerrará material artístico selecionado e ordenado pelo conteúdo, segundo uma temática apropriada, e pedido por empréstimo aos museus sobrecarregados ou, de qualquer maneira, simpatizantes com a iniciativa. Apresentará exposições organizadas segundo um critério metódico e uma finalidade adequada às possibilidades mentais e culturais do local. Alternará exposições de arte pura, do passado e do presente, com exposições das assim chamadas “artes menores” e, sobretudo, de “artes industriais”. E, além disso, conta poder, ao fim de algum tempo, incluir na atividade artística e artesanal das exposições, expondo-as também, as atividades típicas, os resultados de algum valor, do trabalho artesanal, industrial e artístico da própria população, de forma a suscitar a emulação, a criar valores, coisas belas, úteis, precisas, benfeitas. Traremos o mundo para a cidade, e depois incluiremos o povo da cidade no mundo. Pensamos que nisso consiste difundir a civilização, a civilização nos seus melhores motivos plásticos, perfeitos e inteligentes, não abandonados à anarquia das improvisações dos diletantes ou à monótona corrente da psicologia etnográfica. De fato, além da atividade expositiva e didática da pinacoteca, que passará em revista as mais diversas atividades e as aplicações correntes das artes plásticas figurativas e técnicas, o auditorium terá função informativa a respeito de outras atiBalanços e perspectivas museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente | Lina Bo Bardi
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vidades: ver-se-ão ali os melhores filmes, os que normalmente não se veem na localidade e que frequentemente não se projetam nem mesmo nas salas da metrópole; dar-se-ão concertos informativos e explicativos, manter-se-ão cursos e, principalmente, haverá um lugar de reunião e contato dos elementos locais que mais de perto participarão da vida comum do museu; ali se poderá ir buscar e ouvir o que interessar, o que se desejar. Num terceiro setor, as mesmas matérias de ensino que constituem o objetivo da atividade do Museu de Arte de São Paulo serão, em escala menor, porém mais acurada e científica, ensinadas aos alunos, que serão as crianças e também os adultos, os pescadores, os operários, os artesãos. Se conhecemos as dificuldades inerentes às realizações de um museu orgânico, conhecemos igualmente os seus princípios ditados por uma longa experiência, a qual deve ditar as normas de ação que levam a construir, através do museu, uma organização social eficiente. Entrando diretamente na vida espiritual e cultural de uma localidade, em que os indivíduos ainda são accessíveis aos fluxos de cultura, que ama e respeita, as normas de ação poderão ser assim resumidas: 1ª – Pôr a região em contato com o mundo da cultura, da civilização, do conforto, com as exigências do estilo e da forma como fatores de educação pública e pessoal; 2ª – Não separar, por isso, a vida do indivíduo da vida da natureza, da paisagem que lhe é íntima e semelhante, congenial, mas, ao contrário, situá-la continuamente em confronto com a natureza, mesmo quando o trabalho ou o estudo o constrangem a entrar na atmosfera de outras paisagens, de culturas diferentes, dos tempos modernos ou passados; 3ª – Ensinar os métodos racionais, uniformes e estandardizados, que em geral a cultura propõe, sem desviar o indivíduo, o espectador, o aluno local, das qualidades essenciais inerentes à sua própria natureza (valores étnicos e etnográficos, influxos das origens, tradições locais, artes e profissões); pelo contrário, levar os indivíduos a descobrir naqueles mesmos elementos os fundamentos de toda a racionalização, a simplicidade, a aderência às condições locais do ambiente (base de todos os princípios da racionalização) e, enfim, o aperfeiçoamento da própria sensibilidade artística; 4ª – Descobrir e cultivar os talentos que se apresentam ricos de conteúdo relativamente excepcional e de capacidade expressiva acima do comum. Levar a arte ao seio do povo não mais significa divulgar noções de estética, as mais das vezes obscuras, frequentemente insignificantes, e sempre distantes dos interesses específicos e da formação mental do povo em questão. Significa, ao contrário, levar progressivamente o povo, a criança, a mulher, o trabalhador, a um exame dos recursos materiais da localidade, a trabalhar os materiais, a retocar os produtos, a agir racionalmente, no sentido social e econômico. Significa demonstrar e fazer compreen74
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der os modernos instrumentos de observação (óticos ou matemáticos), a clareza, a estrutura, a utilidade das formas que estão na natureza, a habituar a produção e a técnica, a realizar a mesma clareza, estrutura e utilidade nas obras que deve produzir. Assim como não é um homem socialmente completo aquele que não sabe falar, também não se pode considerar um homem socialmente moderno o que não conhece a expressão gráfica, os meios de descrever os objetos em duas ou três dimensões (projeção ortográfica, isométrica e em perspectiva), os métodos do desenho, as possibilidades práticas da arte e da técnica figurativa e dos materiais. As exposições, as aulas, as experiências, as conversações, os exercícios, as reuniões, as leituras, as representações, os recitais, os concertos, a vida cultural, em suma, tudo estará incluído nesse escopo. E, ao mesmo tempo, o edifício constituirá repouso, recreação, vida social. Se o museu de São Vicente lograr êxito nos seus desígnios, isto é, se se tornar um organismo através do qual o homem da cidade possa tornar-se, aos poucos, contemporâneo de todo o mundo moderno, cada vez mais conscientemente, teremos criado um meio, que reputamos exemplar, de tornar a cultura um fato verdadeiramente vital e popular.
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The Field Sc h o o l * Treinar ar tistas, um projeto por vez Ernesto Pujol**
Palavras-chave formação de artistas; globalização; arte e sociedade. Key words training artists; globalization; art and society.
Resumo: O artigo expõe as posições do autor sobre seu projeto The Field School, no qual explora o potencial pedagógico do trabalho em performance site-specific, e traz, intrinsecamente, uma crítica feroz às práticas de formação de artistas nas escolas norte-americanas. O autor aponta a defasagem dos currículos, de graduações ou pós-graduações, no fornecimento de ferramentas para lidar de forma crítica com o mundo globalizado. Abstract: The article presents the views of the artist Ernesto Pujol about his project The Field School, which explores the educational potential of site-specific performance, and presents, intrinsically, a fierce critic of the practice in teaching artists in American schools. The author points out the discrepancy of graduate or post graduate courses in providing tools to deal critically with the globalized world. Texto traduzido por Maria Helena Primon.
* The Field School é uma proposta artística que Ernesto Pujol desenvolve desde 1995 a partir de sua experiência como professor e artista. Seu pensamento sobre a formação de artistas pode ser encontrado no dossiê da revista Trópico “Ensina-se arte?” Disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3174,1.shl. Imagens do trabalho disponíveis em http://ernestopujol.org/index.php. Acesso em 28 de junho de 2010. ** Ernesto Pujol é artista, educador e curador. Estudou na Universidade de Puerto Rico, na Universidad Complutence, Espanha, e no Seminário São João Maria Vianney, na Flórida. Foi professor em Cooper Union, Nova York; La Escuela de Artes Plásticas de Puerto Rico, San Juan; Rhode Island School of Design, Providence; Art Institute of Chicago, Pratt Institute; e Parsons The New School for Design, Nova York e Bezalel Academy of Art & Design, em Jerusalém, entre outras. Com uma obra de teor conceitual, Pujol aborda questões relativas a ecologia, guerra e luto, em trabalhos efêmeros, sempre voltados para a especificidade do lugar em que são implantados.
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The Field School começou a se desenvolver, dentro de minha prática, com um projeto de cada vez, iniciando com as instalações The Children of Peter Pan (1995) na Casa de las Américas em Havana. Por último, manifestou-se claramente, embora ainda sem nome, durante Memorial Gestures (2006), performance do grupo temporário no Chicago Cultural Center. Esse evento marcou o casamento público de minha prática site-specific com meu trabalho como educador durante um workshop de três dias, culminando com uma performance de doze horas, encenada com alunos da pós-graduação da The School of the Art Institute. O treinamento personalizado e o intenso trabalho de campo criaram uma experiência educacional de transformação íntima. Após o encerramento, a maioria dos participantes queria que o processo mágico continuasse, alguns me pedindo para formar uma escola de arte independente, pronta para continuar. E, apesar de sentir-me profundamente comovido com seus desejos, compromissos assumidos anteriormente me fizeram prosseguir. No entanto, para o meu projeto de performance posterior, Tzofia (2007), em Tel Aviv, acabei criando uma pequena “escola efêmera” novamente, embora, pedagogicamente falando, um pouco mais assertiva que uma companhia de performance temporária. Eu estava lentamente começando a compreender o potencial pedagógico da evolução de meus próprios gestos de arte pública. Durante os anos anteriores, eu havia me tornado cada vez mais frustrado com a forma pela qual a maioria das escolas de arte tinha desenvolvido pesadas burocracias autocomplacentes que não permitiam a permeabilidade das estrutuThe Field School | Ernesto Pujol
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The Field School began developing within my practice, one project at a time, starting with The Children of Peter Pan (1995) installations at the Casa de las Américas in Havana. It finally manifested itself clearly, though yet without a name, during Memorial Gestures (2006), a durational group performance at the Chicago Cultural Center. That event marked the public marriage of my site-specific practice with my work as an educator during a three-day workshop leading to a 12hour performance, staged with graduate students from The School of The Art Institute. Intense personalized training and fieldwork created an intimate transformative educational experience. After closure, most of the participants wanted the magical process to continue, some asking me to form an independent art school, ready to follow. And while I was truly deeply moved by their desires, prior commitments made me walk on. Nevertheless, for my next performance project, TZOFIA (2007) in Tel Aviv, I found myself creating a small “ephemeral school” again, although a bit more assertively pedagogically speaking, rather than a just temporary performance company. I was slowly beginning to understand the evolving pedagogical potential of my own public art gestures. During the years preceding this, I had become increasingly frustrated with how most art schools had developed selfcomplacent thick bureaucracies that did not allow for institutional structural permeability. In addition, dated curriculums were in the hands of old-guard faculties, which treated them like private territories, immutable and impenetrable. They were threatened and afraid of the new, 77
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ras institucionais. Além disso, os currículos datados ficaram em mãos de docentes da velha guarda, que os trataram como territórios particulares, imutáveis e impenetráveis. Foram ameaçados e amedrontados pelo novo, desencorajando-o. Houve também uma chocante falta de diversidade étnica e racial, apesar de nossos muitos estudantes estrangeiros. Finalmente, os procedimentos de avaliação, com excesso de notas nestas escolas centradas em mensalidades, formavam alunos que não sabiam ler ou escrever visualmente. Essa formação Mickey Mouse não permitia uma prática alternativa. Senti-me como se as escolas abrigassem e somente recompensassem, e gerassem, mais mediocridade. Fui contratado justamente por causa de minha prática multimídia e cada vez mais interdisciplinar, mas era esperado que eu deixasse isso do lado de fora da porta e me adaptasse a uma dinâmica genérica de fábrica de mestrados em arte, integrando estruturalmente seus professores. Ao longo dos anos, cansei de me adaptar a essa dinâmica de achatamento, que era pedagogicamente simples, seja em termos de educação ou como prática de orientação curatorial, e moralmente irresponsável, uma vez que ninguém consegue a formação necessária para enfrentar a globalização — ainda que os estudantes paguem altas mensalidades para isso. Os programas desencorajavam o efêmero e o performativo, ignorando o trabalho sitespecific com comunidades, muitas vezes por mera negligência passiva-agressiva, não oferecendo cursos ou orientações para essas áreas. Mensagens são transmitidas através de ausências. No momento, enfrentamos uma 78
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discouraging it. There was also a shocking lack of ethnic and racial diversity, in spite of our many international students. Finally, grade-inflated evaluation procedures in these tuition-driven schools graduated students who did not know how to read nor write visually. This Mickey Mouse training did not allow for an alternative practice. I felt as if the schools harbored and only rewarded mediocrity, generating more. They had recruited me precisely because of my multimedia and increasingly interdisciplinary practice, but I was expected to leave it outside the door and adapt to a generic MFA factory dynamic, structurally mainstreaming its teachers. Over the years, I grew tired of adapting to these flattening dynamics, which were pedagogically light, in terms of education as a mentoring curatorial practice, and morally irresponsible, as no one was getting the education necessary to face globalism even though the students were paying through their teeth. The programs discouraged the ephemeral and performative, ignoring site-specific work with communities, sometimes by mere passive-aggressive neglect, not offering courses or guidance in those areas. Messages are conveyed through absence. We are currently facing a crisis in American art education. The carbon footprint of American art schools is ecologically unsustainable as polluters, materially and ideologically. Most of them are in bed with the art market, as part of old economies of abundance, storage, and waste; providing makers of expensive trophy collectibles for old and new elites, completely outside of any relevancy to m ar celin a | cai co co
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crise no ensino de arte norte-americano. A emissão de carbono das escolas de arte americanas é ecologicamente insustentável, já que poluidora, material e ideologicamente. A maioria dorme com o mercado de arte, como parte de velhas economias de opulência, armazenamento e desperdício; fornecendo produtores de troféus caros e colecionáveis para antigas e novas elites, completamente sem qualquer relevância para sustentar o processo democrático americano em uma sociedade cada vez mais diversificada, sob fogo global, que precisa de profunda e complexa reflexão cultural. Uma superpopulação de diplomas de mestrados em arte indica que eles não são mais a medida do talento, mas uma perversão dos direitos do consumidor: você pode comprá-los, se puder pagálos; um direito de expressão de crédito básico. As escolas de arte norte-americanas, como aconteceu com o recente colapso do setor imobiliário, são constantemente socorridas por empréstimos bancários a seus alunos, às custas do próprio futuro deles. Porque, enquanto esses empréstimos lhes permitem pagar sua educação, esses jovens artistas inocentes já amargam chocantes montantes de dívidas logo no início de suas carreiras, e assim são impedidos de sair e viajar pelo país e pelo mundo afora para experimentar e conhecer. O que os faz imediatamente dependentes do capital e, portanto, menos propensos a correr riscos reais, ou seja, mais propensos à autocensura, à aceitação do status quo, e a tornarem-se conservadores ao longo do tempo. São imediatamente forçados a procurar, logo após a graduação, um trabalho em período integral como professores, ainda que tenham pouca ou nenhuma experiência de atuação, The Field School | Ernesto Pujol
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sustaining the American democratic process in an increasingly diverse society under global fire that needs deep and complex cultural reflections. An overpopulation of MFA degrees conveys the fact that they are no longer the measure of talent, but of a perversion of consumer rights, you can buy it if you can pay for it; an entitled expression of basic credit. American art schools, like the recent melt-down in the American housing industry, are constantly bailed out by bank loans to their students at the expense of the students’ future. Because, while these loans allow them to afford an education, these innocent young artists, already enduring shocking amounts of debt at the very outset of their careers, are sabotaged from going out to travel the nation and the world to experiment and experience. It makes them immediately dependent upon capital, and thus, less likely to take real risks, i.e., more likely to self-censor, accept the status quo, and become conservative over time. They are immediately forced to seek full-time teaching jobs upon graduation, even though they have little or no field experience, and thus, have little or nothing to teach, in addition to the fact that they have never studied education theory or developmental psychology. It is teaching without wisdom. Of course, some may ask, why go to art school at all, why spend $80,000 or more, when an MFA does not assure anyone of a teaching job anymore, and when the information is out there, available through Google and other search engines? In addition, individuals can rent and share art studio space, gaining 79
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portanto com pouco ou nada a ensinar. Sem contar o fato de que nunca estudaram teorias da educação ou psicologia do desenvolvimento. É ensinamento sem sabedoria. Claro, alguns podem perguntar, por que ir para escolas de arte? Por que gastar US$ 80 mil ou mais, quando um mestrado não assegura a ninguém um emprego de professor, e quando a informação está lá, disponível via Google e outras ferramentas de busca? Além disso, as pessoas podem alugar e dividir um ateliê, alcançando uma comunidade com diálogo e suporte mútuo. E centenas de galerias e museus oferecem inúmeros eventos nos quais circula mais informação e há maiores possibilidades de encontrar mais gente. Portanto, será que concordamos em andar fora desse estado perverso de coisas, como uma geração vigilante? Queimamo-lo, como Troia, e espalhamos sal entre suas ruínas e fundações, esperando que nada cresça lá novamente? Migramos e seguimos em frente? Mas para onde? Durante os últimos 25 anos, institucionalizamos a arte norte-americana e seus artistas, produzindo inevitavelmente arte protocolar: autoindulgente (já que não comporta responsabilidade social), decorativa (já que é cópia do modernismo), literal (já que lhe falta sutileza), somente engajada em feminismo e outros discursos radicais passados como meros estilos. Como todos os impérios culturais em seu ocaso, as escolas de arte norte-americanas estão reciclando a arte de nosso passado recente. Isso se complica pelo fato de que muitas de nossas escolas de arte são os arquivos do modernismo, assim como foram os arquivos do conceitualismo, antes de o mercado The 80 Field School | Ernesto Pujol
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a community and its intimate conversations and mutual support. And hundreds of galleries and museums offer innumerable events through which to gather more information and meet more people. Therefore, do we all agree to walk away from this perverse state of things, as a generation awakened? Do we burn them down, like Troy, and scatter salt among their ruins and foundations, hoping that nothing grows there again. Do we migrate and move on? But where to? During the past 25 years, we have institutionalized our American art and artists, inevitably producing textbook art: self-indulgent (as it bears no social responsibility), decorative (as it is a copy of Modernism), literal (as it lacks subtlety), only engaging in feminism and other past radical discourses as mere styles. Like all tired cultural empires at the end of their run, American art schools are recycling the art of our recent past. In addition, this is complicated by the fact that many of our art schools are the archives of Modernism, as they once were the archives of conceptualism, before the art market embraced conceptual products as collectibles. So, the old-guard faculties in such schools are defending not only their jobs, but a hierarchical notion of art, the subtly encoded ideology of white supremacy as good taste, as an international standard of excellence. While I truly believe that there is a place for everyone at the table, and that one of America’s greatest problems in all fields is the lack of historical memory, we have finally arrived at a crossroads when m ar celin a | cai co co
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de arte abraçar produtos conceituais como colecionáveis. Então, as faculdades da velha guarda em tais escolas estão defendendo não apenas seus empregos, mas também uma noção de arte hierarquizada, a ideologia sutilmente codificada da supremacia branca como bom gosto, como um padrão internacional de excelência.
the waters will be parted between art schools as commercial crafts institutes, and sustainable art schools that embrace a postcapitalist greener future. All schools have ideologies. The teaching of formalism at the exclusion of the social is an ideology. There is no such thing as a nonpolitical cultural space.
Mesmo tendo a crença de que há lugar para todos, e que um dos maiores problemas da América em todos os campos é a falta de memória histórica, chegamos a uma encruzilhada onde as águas se dividirão entre escolas de arte como institutos de manufatura comercial e escolas de arte sustentáveis que adotam um futuro verde pós-capitalista. Todas as escolas têm ideologias. O ensino do formalismo na exclusão do social é uma ideologia. Não existe tal coisa como um espaço cultural apolítico.
Nevertheless, the fact is that in spite of this negative academic landscape, there is a great population of young talented American artists thirsting for meaning and direction. It is time that we discourage cynicism and developed visionary options. Being cynical is not a sign of intelligence. On the contrary, humility is a sign of intelligence and cynicism a sign of insecurity and ignorance, a barrier to the acquisition of knowledge.
Não obstante, o fato é que, apesar dessa paisagem acadêmica negativa, há um grande contingente de jovens artistas norte-americanos talentosos sedentos de sentido e de direção. É hora de desencorajar o cinismo e opções visionárias desenvolvidas. Ser cínico não é sinal de inteligência. Pelo contrário, humildade é um sinal de inteligência, e cinismo, um sinal de insegurança e ignorância, uma barreira para aquisição de conhecimento. Tenho muitas vezes denominado minha prática com os pés descalços não de finalidade, mas apenas de local orgânico, uma ponte migratória através da qual também quero ser um viajante com meus alunos e público para tantos destinos de consciência quanto possível. Por isso, abri The Field School no centro-oeste, durante The Field School | Ernesto Pujol
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What I have often called my barefoot practice is not a destination but only an organic venue, a migratory bridge through which I too want to be a traveler with my students and my audiences to as many destinations to consciousness as possible. Therefore, I launched The Field School in the Midwest during spring 2010. But, unlike the small experimental urban and rural schools currently being launched by other artists as a new phenomenon, my school is like a migratory tent that appears and disappears as needed. In addition, no matter the formal gestures and beautiful images I may still produce as documents to archive, or art to fundraise for the next project, the true product of my school is the manifestation of pure process; of the artist back in society. Indeed, we are witnessing the return of the artist as citizen, the citizen81
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a primavera de 2010. Mas, ao contrário das pequenas escolas experimentais urbanas e rurais atualmente abertas por outros artistas como novo fenômeno, minha escola é como uma tenda migratória que aparece e desaparece quando necessário. Além disso, não importam gestos formais e belas imagens que ainda posso produzir como documentos para ser arquivados, ou arte para captação de recursos para o projeto seguinte; o verdadeiro produto da minha escola é manifestação de um processo puro, do artista de volta à sociedade. Estamos certamente testemunhando o retorno do artista como cidadão, a cidadania da arte, o retorno do conteúdo social da arte pertinente para todos e, portanto, relevante para o processo democrático. Isto é o que escolas de arte deveriam estar ensinando, e o que fundações de arte deveriam financiar. É claro, este é um processo confuso que rebaixará muitas instituições, e deveria, porque o meio artístico e a sociedade deveriam se envergonhar dessas escolas de arte. Este também será um processo interdisciplinar que nem sempre produzirá arte, ou arte que parece com arte tal qual a conhecemos, mas que acabará por alcançar aquilo de que a América mais precisa: ferramentas criativas de pensamento crítico do artista na sociedade. E enquanto tudo o que podemos produzir, em termos de respostas, são soluções temporárias que terão de ser revistas nos anos seguintes, por que deveríamos pensar que estamos acima da natureza? Todos os agentes se fossilizam, cedo ou tarde.
ship of art, the return of social content to art, relevant to all people, and thus, relevant to the democratic process. This is what art schools should be training, and what art foundations should be funding. Of course, this is a messy process that will humble many institutions, and it should, because the environment and society should shame these art schools. This will also be an interdisciplinary process that will not always produce art, or art that looks like art as we once knew it, but that will ultimately achieve what America needs the most: the creative critical thinking tools of the artist in society. And while all we may come up with, in terms of answers, are temporary solutions that will have to be revised years from now, why should we think that we are above nature? All agents fossilize sooner or later. So, education is a flow that must constantly be revised selflessly. The mistake is to set it in stone.
Então, a educação é um fluxo que deve constantemente ser revisado desprendidamente. O erro está em considerá-la imutável.
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Andrés I. M. Hernández *
Palavras-chave Bienal de La Habana; Bienal de São Paulo; arte contemporânea; América Latina; Tania Bruguera. Key words Bienal de La Habana; Bienal de São Paulo; contemporary art, Latin America; Tania Bruguera.
M E S T R A D O E M R E V I S TA
O ART I STA : V E N TO (S) E DES(DO B R A M E NTO) S
Resumo: Eventos culturais de grande porte, que acontecem sistematicamente, como as bienais, contribuem para a inserção de artistas locais na cena global, incentivam a concretização de novas ações (decorrentes destes ou com discussões à margem das propostas institucionais). As bienais de La Habana e de São Paulo criam condições de visibilidade e projeção em Cuba e no Brasil, bem como em outros países da América Latina, e são exemplares no processo de internacionalização examinado neste texto.
Abstract: The biennials of La Habana and São Paulo have deemed possible the projection of artists and events in Cuba and Brazil, as well as in other Latin American countries, and are exemplary of the internationalization process discussed in this text
* Andrés I. M. Hernández é curador, coordenador executivo da curadoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo e mestrando em artes visuais na Faculdade Santa Marcelina. 83
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A mente e a terra encontram-se em um processo de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, ideias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão. Robert Smithson**
Qualquer que seja o perfil de um grande evento e qualquer que seja o país em que é realizado, um acontecimento cultural acaba gerando grandes transformações no meio. Sediar um evento cultural de grande porte possibilita um acesso mais completo à produção local e exige que a formação profissional na área se aperfeiçoe. Enquanto a participação de artistas em exposições internacionais, fora de seu país, permite que ele apresente uma parte pequena de sua produção, quando o evento acontece no país em que trabalha, sua pesquisa ganha uma dimensão pública com maior profundidade. Outra consequência de sediar um evento importante é um maior aproveitamento dos equipamentos culturais, materiais ou não materiais. Esses recursos vão desde espaços expositivos, ateliês de artistas e a própria textura da cidade, até o desenvolvimento de know-how em áreas que requerem especialização como a montagem, a produção e o serviço educativo. Durante a organização e realização desses eventos, ocorre um intenso processo de circulação de conhecimento e de experiências. Ao concentrar profissionais da arte em uma única cidade, trabalhando de forma coletiva, cria-se uma rede de reciprocidades que se alimenta e ultrapassa o período circunscrito ao evento. São regras (próprias à competição, mas da troca também) que reproduzem o espírito e o esquema dos jogos olímpicos e campeonatos regionais. Para ficarmos na área do esporte, Cuba organizou os Jogos Pan-Americanos em 1991, quando conseguiu romper, pela primeira vez, a hegemonia dos Estados Unidos: terminou com 140 medalhas de ouro, contra as 130 conquistadas pelos norte-americanos. No universo da arte não é muito diferente. Um exemplo bastante próximo de nós tem sido as Bienais de São Paulo. A mais antiga entre as bienais da América Latina, a Bienal de São Paulo foi criada em 1951, seguindo os fundamentos do mais tradicional desses eventos, a Bienal de Veneza, cuja primeira edição data de 1895. Yolanda Penteado e Francisco Matarazzo Sobrinho foram os mentores dessa empreitada, lançada com o nome de Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. O objetivo inicial era pôr ** Cf. R. Smithson. In: Uma sedimentação da mente: projetos de terra. Escritos de artistas. Anos 60/70. Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 84
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em vigor um confronto entre a arte brasileira e as correntes internacionais então vigentes. A primeira Bienal serviu de plataforma internacional ao movimento de arte concreta, em ascensão no Brasil desde finais da década de 1940, promovendo a apresentação de suas propostas artísticas e conceituais, bem como sua introdução em contexto mundial. Na imprensa paulista, entretanto, o concretismo geraria polêmica raivosa. Um destrutivo jogo de poder e vaidade fica evidente quando, em 1963, Matarazzo — então presidente do museu que havia fundado em 1948 — decide extinguir o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Uma assembleia termina com a sociedade que sustentava o Museu de Arte Moderna e determina a doação de todo seu patrimônio, incluindo o acervo, à Universidade de São Paulo: […] seu acervo [do Museu de Arte Moderna] sem precedentes no Brasil seria transferido para a Universidade de São Paulo, com a finalidade de erguer um Museu de Arte Contemporânea (MAC/USP). O gesto de Francisco Matarazzo Sobrinho — Ciccillo —, interpretado como “traição” e “generosidade” por uns e outros, resultou em dois museus, unidos umbilicalmente, irmãos ligados por uma saúde frágil1.
A decisão de Matarazzo certamente levou em conta o fato de que a Bienal lhe proporcionava maior visibilidade e projeção no cenário internacional. A despeito das dificuldades que enfrentaria sobretudo no regime militar, a Bienal de São Paulo levou o Brasil a uma posição privilegiada em relação aos países do (então) Terceiro Mundo, permitindo intensa avaliação dos trabalhos criados aqui. Trata-se, portanto, de um caso excepcional, comparativamente com a inserção do resto da América Latina, já que no Brasil havia notícias e esclarecimentos “sobre o fenômeno artístico contemporâneo”2 mediante a apresentação de retrospectivas do cubismo, futurismo e expressionismo, das obras de Alexander Calder e Piet Mondrian (na II Bienal), do informalismo, dos espanhóis na V Bienal, de Alberto Burri pela Itália, sem contar Donald Judd, Barnett Newman e Frank Stella em 1965. Cabe registrar a opinião da crítica de arte Aracy Amaral, uma das figuras que mais se dedicaram a pensar a arte latino-americana a partir do Brasil: […] nós, os latino-americanos, ficávamos meio “de pingentes”, por assim dizer, […] não nos olhando muito e vendo-nos sempre como um reflexo nativo em versão subdesenvolvida das correntes europeias ou norte-americanas. Sempre foi assim. Observávamos sempre o que passava na Europa, e depois nos Estados Unidos, e nunca a nós mesmos, como possíveis pontos de partida ou de revisão criativa das metrópoles3. 1 Lisette Lagnado, “Is this all so… so… so… contemporary?” In: A. Fabris, F. Chaimovich, L. Lagnado, L. C. Osorio (org.). Colóquio Internacional História e(m) movimento. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 7 e 8 de novembro de 2008, São Paulo, p. 87. 2 Cf. A. Amaral, “A Bienal Latino-Americana ou o desvirtuamento de uma iniciativa”. In: Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (1961-1981). São Paulo: Nobel, 1983, p. 296. 3 A. Amaral, op. cit., p. 297. O Artista: vento(s) e des(dobramento)s | Andrés I. M. Hernández
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Sem diminuir o impacto das participações internacionais sobre a cena brasileira, Amaral destaca também uma mudança no olhar apreciativo dos artistas brasileiros que “tinham estado um tanto desatentos a artistas norte-americanos presentes nas primeiras Bienais [de São Paulo], inclusive a [Jackson] Pollock, alvo de retrospectiva na IV Bienal de 1957, e [Robert] Rauschenberg, presente em 1959, [e que] começam a olhar com mais cuidado a produção dos Estados Unidos a partir dos inícios dos anos 60 (produção de que foi grande arauto entre nós, por sua extrema permeabilidade, o pintor Wesley Duke Lee)”4. Bienal de La Habana Trinta e três anos depois do surgimento da Bienal de São Paulo, é criada a Bienal de La Habana, em Cuba, ou seja, 25 anos depois do triunfo da Revolução sob o comando de Fidel Castro, cujo programa o professor de filosofia e ensaísta cubano Fernando Martínez assim descreve: Mediante uma grande revolução, Cuba se liberou a partir de janeiro de 1959 das dominações que a aprisionavam, promoveu mudanças muito profundas na vida das pessoas, nas relações sociais e nas instituições, e criou ou reorganizou de maneira incessante seu próprio mundo revolucionário. A sociedade fazia então esforços extraordinários para pensar-se a si mesma, compreender suas mudanças e suas permanências, seus conflitos e seus projetos, seus modos de transformar-se, por meio de ações coletivas, lutas violentas, enfrentamentos ideológicos, mudanças nas crenças, conflitos dilacerantes e tensões muito abrangentes. O próprio tempo se transformou. O presente se preencheu com acontecimentos, e as relações interpessoais e o cotidiano ficaram repletos de revolução; o futuro se fez muito mais dilatado no tempo pensável e foi convertido em projeto; e o passado foi reapropriado, descoberto ou reformulado, e posto em relação com o grande evento em curso5.
Um decreto oficial do governo revolucionário da República de Cuba cria o Centro Wifredo Lam, que teria como atribuições e funções, além de obviamente promover o estudo e difusão da obra de Wifredo Lam6, “promover internacionalmente as obras dos artistas plásticos dos povos da Ásia, África e América Latina; assim como dos criadores que lutam pela 4 Id. ib. 5 Heredia Fernando Martínez, “Pensamiento social y político de la Revolución”. In: La política cultural del período revolucionário: memória y reflexión (Ciclo de conferencias organizado por el Centro Teórico-Cultural). Havana: Palcograf, 2007. 6 Wifredo Lam (1902-1982), artista cubano, filho de pai chinês e mãe mestiça (índio e espanhol). A sua infância será marcada pela madrinha, ligada ao vodu e ao folclore africano. Um de seus trabalhos mais importantes, conhecido como Manifesto do Terceiro Mundo, La Jungla, pertence à coleção do MoMA. Segundo a curadora cubana e ex-diretora do Centro Wifredo Lam, Hilda María Rodríguez Enríquez, Lam ¨revolucionou os pressupostos do modernismo ao assumir uma autêntica posição de vanguarda, diluindo a disputa entre tradição e contemporaneidade, entre o local e o universal, e incorporando, como poucos, as essências das expressões culturais e religiosas que se mantêm vivas nos contextos caribenhos. Rapidamente, conquistou reconhecimento de artistas como Picasso e Breton, e outros surrealistas e intelectuais¨. Ver: Departamento de Artes Plásticas del Círculo de Bellas Artes, ¨Wifredo Lam. Cartografía Ìntima¨. Madri: ABADA Editores, 2003. 86
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sua identidade cultural e cujas raízes se vinculam às desses povos”7. Surge, assim, a instituição destinada a abrigar, além de outros eventos periódicos, a Bienal de La Habana, e que também teria a missão de “auspiciar o desenvolvimento das artes plásticas em nosso país; e promover as manifestações e artistas contemporâneos cubanos de maior significância”8. O evento teve uma influência decisiva para sustentar a ideia de uma arte latinoamericana. Esse é um dado tão admitido publicamente quanto a importância que teve, para o Brasil, o advento de uma Bienal (Internacional) de São Paulo e, décadas depois, em 1997, a Bienal do Mercosul9, em Porto Alegre, pois colocou os cubanos em diapasão com a produção internacional da atualidade. Graças à Bienal de La Habana, a cena cubana tornou-se mais cosmopolita e aumentou o contato com o mercado internacional. Até hoje, a Bienal funciona como veículo de promoção de bolsas para projetos: artistas cubanos são convidados com mais frequência para participar de projetos fora de seu país. Muitos dos visitantes das bienais fazem parte do jet set internacional, viajando para conhecer o trabalho de artistas cubanos a fim de inseri-los em projetos futuros. Interessante observar as organizações paralelas ao período da Bienal, tomando todos os espaços expositivos da cidade não ocupados pelo projeto central do evento. Os artistas locais abrem seus ateliês aos visitantes e alguns organizam nesses locais, ou até mesmo em sua própria residência, exposições para mostrar o que têm produzido. Luis Camnitzer já observara na primeira edição de 1984, que artistas como José Bedia, Flavio Garciandía, Ricardo Rodriguez Brey, Juan Francisco Elso Padilla, Leandro Soto, Arturo Cuenca, Gustavo Acosta, Tomás Sánchez, Rubén Torres Llorca, Gory (Rogelio López Marin) e Tonel (Antonio Eligio), todos internacionalmente conhecidos hoje em dia, deixaram sua marca nos visitantes estrangeiros10. Tirando partido da presença de artistas estrangeiros, a Bienal de La Habana aposta na estratégia da convivência entre estes e os artistas locais, configurando-se como um laboratório de práticas artísticas. Essa meta tinha a mesma importância da exposição em si, quiçá maior, ao menos nas cinco primeiras edições, de 1984 a 1997. O Instituto Superior de Arte (ISA) foi, durante esse período, um dos espaços de discussão e exibição de obras que contribuíram para a concretização desse objetivo, além de ser a vitrine para o mais novo talento cubano personificado em seu corpo estudantil. Ali podia-se ver antecipadamente o que os artistas exibiriam na Bienal seguinte, e a exposição no ISA era sempre uma ampliação e contraponto refrescante da representação cubana da Bienal11. Em função de seu caráter prospectivo, a Bienal possibilitou a projeção de artistas novos, como os mencionados acima, até então praticamente desconhecidos no contexto inter7 Gaceta Oficial de la República de Cuba, ano LXXXI, nº 24. La Habana, 30/03/1983, pp. 323-24. 8 Id. ib. 9 A Bienal do Mercosul deve seu nome ao bloco econômico constituído no início da década de 1990 e inicialmente composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. 10 Cf. L. Camnitzer, “La Bienal de las utopías”. In: Bienal de La Habana para leer. Valencia: Universitat de València, 2009, p. 493. 11 Id. ib., p. 500. O Artista: vento(s) e des(dobramento)s | Andrés I. M. Hernández
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nacional. José Bedia foi convidado para a exposição Magiciens de la terre, realizada em Paris, no Centre Georges Pompidou e Grande Halle no Parc de la Villette, entre 18 de maio e 14 de agosto de 1989, com curadoria de Jean-Hubert Martin. Bedia, a partir de sua participação em Havana, adquirira visibilidade desde a primeira edição do evento, em 1984, e também com a 19ª Bienal de São Paulo, em 1987. Uma quantidade representativa de artistas cubanos que hoje goza de reconhecimento nacional e internacional participou de edições da Bienal de La Habana ainda como estudantes do ISA, ou recémformados pela instituição, como por exemplo Carlos Garaicoa (estudou no ISA de 1989 a 1994). Durante a IV Bienal de La Habana, em 1991, ainda estudante, Garaicoa expôs na galeria do ISA. Em 1994, já participou como artista convidado da V Bienal de La Habana e, em 1995, foi convidado para a 1ª edição da Johannesburg Biennale. Em 1997, participou novamente da VI Bienal de La Habana e, em 1998, da XXIV Bienal de São Paulo; em 2009, esteve na prestigiosa Biennale di Venezia, em sua 53ª edição. Vale destacar que, desde a década de 1960, através da Casa de las Américas, Havana converteu-se em receptora da mais importante intelectualidade latino-americana e num espaço de experimentação artística para figuras como o argentino Julio Le Parc e o chileno Roberto Matta. A Bienal de La Habana deu continuidade à tradição de fomentar encontros de criadores e fazer circular suas ideias. Foi “latino-americana” desde a sua primeira edição como opção política, tendo o privilégio de contar com o suporte das informações da Casa de las Américas sobre a arte produzida na América Latina, e com notáveis programas educativos desenvolvidos em Cuba. O país mantinha, há várias décadas, cursos que incluíam e sistematizavam o estudo da história da arte latino-americana, na Faculdade de História da Arte da Universidade de Havana e no ISA. A obra crítica e ensaística de personalidades como Frederico Morais (Brasil), Jorge Romero Brest (Argentina), Juan Acha (Peru/México), Nestor García Canclini (México) e Shifra Goldman (Estados Unidos) constituiu as bases desses programas de estudo, permitindo o acesso à história da arte aos diferentes países latino-americanos e a observação da América Latina como um todo, sem descartar sua diversidade A criação, em 1983, do Centro Wifredo Lam, organizador da Bienal de La Habana, vem suprir uma defasagem na difusão e discussão das artes visuais. A criação da Casa de las Américas, em 1959, por Haydee Santamaría (guerrilheira e política cubana, uma das fundadoras do Partido Comunista de Cuba) também teve o mesmo propósito, mas as artes visuais eram abordadas em conjunto com outras expressões, como a literatura e o teatro. A Bienal assume o objetivo, também, de difundir a obra de Wifredo Lam como o maior expoente das artes visuais em Cuba, tendo como referência sua produção e suas origens (chinês, negro e branco), assim como inserir a arte cubana no contexto internacional. De suma importância foi o papel desempenhado pela Bienal de La Habana no que diz respeito à disseminação, projeção e discussão das produções artísticas dos países do chamado Terceiro Mundo. A meu ver, esse objetivo concretizou-se na quinta edição do evento, e hoje a discussão da Bienal gira em torno de outros temas. Os benefícios para a cena artística cubana são evidentes. Não só para os artistas em atividade, mas também para os jovens 88
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estudantes e para a concretização de eventos paralelos aos oferecidos pela Bienal. Até 1984, foi dada ênfase principalmente ao universo de relações entre os processos e contextos artísticos dos diversos países da América Latina. A partir de 1986, com a II Bienal de La Habana e a inclusão de outros países do Terceiro Mundo, surgiu a possibilidade, para os programas de ensino de história da arte em Cuba, de ver a América Latina inserida em um universo mais complexo de relações e contar com referências antes de difícil acesso. Os cursos se enriqueceram com perspectivas e experiências até então pouco conhecidas. Nas palavras de Mosquera, os jovens artistas desenvolveram uma aproximação com a arte que era crítica, pós-moderna e aberta internacionalmente, criando um novo clima liberal que foi crucial para dar forma à Bienal e proporcionar um entorno favorável. Reciprocamente, o evento funcionou como uma plataforma de lançamento para os novos artistas cubanos 12.
Bienais como plataformas pedagógicas Esse patamar recém-alcançado teve impacto positivo também para o ISA, pois a habitual ortodoxia dos programas de formação profissional no Instituto foi modificada, mediante o contato direto com obras e artistas participantes das bienais, sem contar os inúmeros ateliês e palestras previstos em cada edição. Todo esse novo conhecimento converteu-se em referência de primeira mão para os estudantes do Instituto e influenciou profundamente os critérios pedagógicos desenvolvidos pelos professores. Artistas como Lázaro Saavedra, Tania Bruguera (estudou no ISA de 1987 a 1992), René Francisco Rodriguez e Eduardo Ponjuan, que durante muitos anos trabalharam como professores no ISA, reconhecem a importância da Bienal de La Habana para que pudessem propor determinados programas. Em entrevista realizada em 2006 pelo crítico e curador Eugenio Valdés Figueroa, Eduardo Ponjuan comenta que historicamente, a Bienal de La Habana ajudou a desmistificar as referências habituais encontradas pelos estudantes em publicações como Art News ou Art in America, permitindo aos artistas cubanos confrontar-se com as magníficas propostas artísticas procedentes do chamado “Terceiro Mundo”, bem como dos artistas dele provenientes e com residência no “Primeiro”. A Bienal sempre foi uma vívida referência da arte contemporânea produzida em contextos mais próximos da nossa realidade, e desse privilégio também se beneficiaram os estudantes do ISA13.
Referindo-se às oficinas e à relação com os curadores da Bienal, declara Ponjuan: 12 Cf. G. Mosquera, “Havana utopia” (mimeografia). Texto a ser publicado este ano pela Bergen Kunsthalle em The Biennial Reader, e gentilmente cedido pelo autor. 13 E. Valdés Figueroa, “Interactions horizontales: Pédagogie et art contemporain à Cuba”. Parachute, nº 125. Montreal, março de 2007, pp. 56-61. O Artista: vento(s) e des(dobramento)s | Andrés I. M. Hernández
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Nas oficinas, nos encontros institucionalmente planejados e também nos contatos espontâneos nas casas dos artistas, realizados durante as Bienais, nasceram influências muito importantes para os alunos. Por exemplo, a oficina ministrada por Capelán no ISA teve importância transcendente na obra de Ibrahim Miranda. Recordo também os contatos com Luis Camnitzer, Miguel Ángel Rios e Julio Le Parc, entre tantos outros14.
Finalmente, como comentado acima, Ponjuan confirma a importância do contato com figuras do meio artístico nacional e internacional: Também houve oficinas sobre técnicas da tradição popular: maché, tecidos, batik, bogolán africano e até pipas chinesas. Importantes teóricos compareceram nesses eventos: Ticio Escobar, Geeta Kapur, Shrifra Goldman, Nelly Richards, Frederico Morais, Néstor García Canclini, Juan Acha, Pierre Restany, Jürgen Harten; críticos, teóricos e curadores cubanos como Tonel, Iván de la Nuez, Gerardo Mosquera, Dannys Montes de Oca, Eugenio Valdés Figueroa, Osvaldo Sánchez, Lupe Álvarez, Magalys Espinosa, entre tantos outros. Houve inclusive a participação de outros cujas preocupações locais permitiam estabelecer relações até então inusitadas com a cena internacional. É inestimável, nesse sentido, a contribuição dos próprios curadores: José M. Noceda, Margarita Sánchez, Juan A. Molina, Hilda M. Rodríguez, Íbis Hernández Abascal, Magda I. González Mora e, claro, Lillian Llanes, ex-presidente da Bienal, que estimulou nos curadores um tipo de reflexão muito mais cosmopolita a partir de suas investigações sobre arte contemporânea, que divulgava nacional e internacionalmente no Centro Wifredo Lam. Todas essas conferências e controvérsias sobre temas culturais e artísticos muito atuais serviam como material de discussão de primeira mão, a que podíamos às vezes retornar15.
É possível, ademais, estabelecer paralelos entre essas experiências propostas pela Bienal de La Habana na cidade e os workshops pedagógicos, como os de La Casa Nacional, de René Francisco, desenvolvido num solar em Havana; ENEMA, feito por Lázaro Saavedra ou o projeto Arte de conduta, de Tania Bruguera, criado em 1999. No caso específico de Arte de conduta, a artista diz: “Eu gosto de definir obras em que trabalhei com comportamento, responsabilidade social, preconceito, rumor e memória coletiva como principais fontes/ ferramentas. As séries incluem o corpo de trabalho Homenaje a Ana Mendieta (1985-1996) e a obra Memoria de la Postguerra (1993/1994/2003)”16. Bruguera dá a seguinte definição para sua disciplina: Como a arte, a educação é um processo voyeurístico-analítico-narrativo, criação de histórias simbólicas e icônicas que vão dar sentido a nossos medos ou permitir algum espaço de liberdade. A educação, como a arte, é um sistema de associações que geram sentido. Mas, enquanto a arte opera 14 Id. ib. 15 Id. ib. 16 Tania Bruguera em entrevista a Eugenio Valdés Figueroa, gentilmente cedida por Figueroa. 90
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com imagens, sons e situações, a educação trabalha com comportamentos e condutas sociais. O comportamento é usado na sociedade não apenas como ferramenta comunicativa, mas também como fonte de interpretação e julgamento. É por meio do comportamento que as pessoas vêm sendo definidas e categorizadas na sociedade17.
Ao explicitar as características da sua cadeira de professora, Bruguera deixa clara sua relação com o ISA: A cátedra Arte de conduta é uma ideia que, como todas as ideias que eu tenho, começou como um desejo, um desejo de ter algo de que eu estava sentindo falta. Nesse caso, quando eu estudei no ISA, nós não tínhamos performance como um departamento, nem sequer como disciplina; então, quando me formei em 1992, decidi que ia dar aula de performance, para abrir um departamento. É claro que eu estava alerta às minhas próprias possibilidades, mas sou uma pessoa tão obstinada que, apesar de ter péssima memória, eu não esqueço ideias de projetos com facilidade e, além do mais, adoro provar que estou errada com qualquer coisa relacionada à utopia18.
Como escreve Juan Antonio Molina, no folder para a XXIII Bienal de São Paulo (de que Bruguera participou), as ações da artista “estão marcadas pela experiência do outro”. São experiências que se misturam, dada a multiplicidade de áreas curriculares dos alunos que escolhem cursar sua disciplina, vindos da arquitetura, do teatro, da literatura, do design, da música, da sociologia, do cinema, além das artes visuais. Outro aspecto importante a ser mencionado é o convite a artistas de outros países para ministrar workshops, formato que possibilita discutir sobre arte, vida e sociedade — até onde é possível combinar esses elementos para um percurso artístico. Bruguera afirma seu interesse em criar caminhos que reflitam os usos da arte na sociedade e questionem a responsabilidade social do artista: Não estou ensinando arte, gostaria de criar, em vez disso, uma atividade intelectual como uma atividade artística. Arte de conduta é um trabalho de arte na forma de uma escola de arte, da mesma maneira que Memoria de la Postguerra era um trabalho de arte na forma de jornal. Como Memoria de la Postguerra, uma obra de arte coletiva transmitida através do rumor, a cátedra Arte de conduta é também um rumor. Rumor é o modo com que essa obra é documentada e a maneira pela qual deve sobreviver. O rumor, já foi provado, é um efetivo mecanismo de defesa contra a amnésia existente em relação à tão frequentemente reeditada história de Cuba19.
A título de exemplo de workshop de crítica de arte, o curador Eugenio Valdés Figueroa propôs o seguinte exercício: Em cada aula, o aluno faz uma apresentação do dossiê de suas obras re17 Cf. E. Valdés Figueroa, op. cit. 18 Id. ib. 19 Id. ib. 92
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centes e coloca “a opinião do grupo de alunos”. É um treinamento para o exercício final, no qual cada aluno fará um statement sobre a obra do outro. Isso significa assumir a obra do outro como própria e argumentar sua verdade. Ao mesmo tempo, deverá aplicar o mesmo procedimento para sustentar a antítese da própria obra, argumentando sua verdade desde o ponto de vista completamente contrário. Esse será um modo de colocar a obra à prova e descobrir suas falhas; segundo O. Wilde, “uma verdade, na arte, é aquela cuja antítese também está certa”20.
Portanto Bruguera constrói um variado, versátil e multifacetado espectro de atuações, que englobam seus trabalhos plásticos, apresentações pessoais (nunca individuais), sua atuação como professora e seu trabalho na cátedra Arte de conduta. As ferramentas que ela propõe constituem a fonte e a raiz para miscigenar o emaranhado de vivências coletivas transportadas à discussão, criando com responsabilidade social e a partir da memória individual e coletiva “rumores” sobre diversos aspectos do indivíduo e da sociedade. O trabalho interdisciplinar sempre faz parte da poética da artista que parte de pontos de vista tão diferentes quanto o da geometria, arquitetura, psicologia, pedagogia, filosofia e ética. Os encontros articulam aspectos materiais e subjetivos como forma, consciência ou espiritualidade, espaço, imagem, luz, sons, fonética, linguagem, comportamento, desejos, aspirações e tempo. As ações e atividades programadas nos encontros visam formular sistemas que, concatenados, levem à definição e categorização individual e coletiva de processos de pensamento e atuação. As ações de Bruguera constituem um testemunho de sua época e seu meio. Ao mesmo tempo, integram e modificam o homem e seu mundo, tanto no social quanto no cultural, sendo um consequência do outro. Na última edição da Bienal de La Habana, a décima, em 2009, ocorreram eventos denominados por Gerardo Mosquera de “ghost bienal” (ou programas paralelos) que, segundo o crítico, são “normalmente mais interessantes, intensos e energéticos que os oficiais”. Eles foram, nas palavras do curador, registrados e divulgados desse modo para terem um certo alcance controlado pelos organizadores da bienal, como uma forma de cooptação, de gerenciamento, para fazer parte desses limites, mesmo que para tal tivessem que perder sua espontaneidade. Um bom exemplo foi Tania Bruguera e seu trabalho Estado de excepción: um programa de performance de nove dias de exibições e eventos de jovens artistas cubanos que participaram de Cátedra de conducta, seu seminário independente de quatro anos de duração em Havana. Sem dúvida, foi o mais vibrante e provocativo evento na décima bienal21.
Vale mencionar ainda o Espacio aglutinador, que vem apresentando exposições com o objetivo de fazer presentes períodos significativos da arte em Cuba, contestando a intenção oficial de apagar a história e a memória, que chegou a ser predo20 Conteúdo de aula gentilmente cedido por Eugenio Valdés Figueroa. 21 E. Valdés Figueroa, op. cit. O Artista: vento(s) e des(dobramento)s | Andrés I. M. Hernández
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minante num período determinado. Para Camnitzer, é o único espaço verdadeiramente independente que funciona em Havana, absolutamente sem nenhum apoio de quaisquer estruturas oficiais e, consequentemente, de suma importância num momento em que as afirmações sobre trabalhar de modo independente são tão amplas e carregadas com um desejo geral de escapar do verniz contaminador que resulta da associação com o Ministério da Cultura22.
E continua Camnitzer: “Mesmo que o foco de atenção de [Sandra] Ceballos seja nacional, seu reconhecimento é cada vez mais internacional e o Espacio aglutinador é considerado agora, de modo muito merecido, parte da rede internacional de espaços alternativos”23. Nesses ciclos de “erosão entre terra, mente, ideias e pensamento”, para retomarmos a epígrafe de Smithson, aparecem e desaparecem, atualizam-se e configuram-se os dispositivos em que ações artísticas (como as de Bruguera e Ramos) são reformuladas a partir do contexto cultural e introduzem novas fontes de criação e discussão, validando tais processos, independentemente da produção individual (ou talvez tendo-a como suporte) e 22 Cf. L. Camnitzer, “Un análisis sobre tres décadas de arte en Cuba en una introducción, dos post scriptum y un epílogo”. In: New Art of Cuba. Austin: University of Texas Press, 2003. 23 Cf. E. Valdés Figueroa, op. cit.
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Ferrán Barenblit* e Lisette Lagnado**
IV Seminário de Curadoria
Co n ferê nci a d i a l ógi ca e nt re
* Ferrán Barenblit (Buenos Aires) estudou história da arte na Universidade de Barcelona, antes de cursar museologia na Universidade de Nova York. Entre 2002 e 2008 dirigiu o Centro de Arte de Santa Mònica, em Barcelona. É hoje diretor do Centro de Arte Dos de Mayo da Comunidade de Madrid e professor convidado do Royal College of Art de Londres. ** Os Seminários Semestrais de Curadoria são eventos abertos, promovidos pela Fasm desde março de 2008, com o objetivo de adensar a bibliografia local, escassa no ambiente acadêmico. São organizados a partir de uma troca por escrito com o participante, resultando num roteiro construído para um encontro dialógico. O IV Seminário aconteceu no dia 24 de setembro de 2009, e contou com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo. Agradecemos também a Marcio Harum.
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Palavras-chave crítica; curadoria; instituição; exposições universais; Walter Benjamin.
Key words criticism; curatorship; institution; universal exhibitions; Walter Benjamin.
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Resumo: A “profissionalização” crescente do artista e do curador no mundo neoliberal tem direcionado sua formação para uma adequação às demandas do mercado. Então, como esperar uma crítica séria da economia do sistema? O que pode ser ensinado, em escolas livres ou vinculadas a museus, da prática curatorial e da vida cotidiana de uma instituição? Aprende-se mais com a história das exposições do que com uma elaboração teórica da prática? Por meio de uma seleção de artistas espanhóis, Ferrán Barenblit propõe a noção de evento expandido como estratégia para o público voltar várias vezes ao museu e encontrar uma exposição sempre em movimento e transformação. Neste caso, todos deparam com a produção de um tipo de obra impossível de colecionar. Abstract: The growing “professionalization” of artists and curators in the neoliberal world has focused their education to adapt to market demands. How can we expect a serious critic of the economy of system? What can be taught, in informal schools or linked to museums, about the curatorial practice and everyday life of an institution? Through a selection of Spanish artists, Ferrán Barenblit proposes the notion of expanded event as a strategy to bringing back the audience repeatedly to the museum, always finding an exhibition in motion and transformation. In this case, all facing the production of a kind of work impossible to collect.
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Lisette Lagnado: Anos atrás, por ocasião de uma vinda de Jacques Derrida a São Paulo, que incluiu uma visita a uma exposição, o filósofo assinou no caderno do público seu nome e, na coluna referente à profissão, colocou: “professor”. Até hoje, esse pequeno gesto me persegue: como um filósofo desse gabarito não se assume enquanto tal? É uma demonstração de enorme modéstia, alguém como ele colocar-se no papel daquele que ensina, ou seja, alguém que não funda nem inventa conceitos próprios, mas transmite o pensamento de um outro. Desde então, fico pensando que há certos percursos acadêmicos que nunca se concluem e, no caso, ser formado em filosofia não torna o sujeito necessariamente “filósofo”. Com Nietzsche, o exemplo muda de figura: tendo sido professor de filologia, a obrigação de conseguir dizer algo todo dia, além de se submeter a um programa universitário, ia contra a natureza da investigação. Eu gosto do que diz no Prólogo de seu livro Aurora: “Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor de lenta leitura: afinal, também escrevemos lentamente. Agora não faz parte apenas dos meus hábitos, é também de meu gosto – um gosto maldoso talvez? – nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de gente que “tem pressa”. Pois filologia é a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento […]”. Vou dar um salto para formular minha pergunta: você considera a curadoria uma profissão? Se nem os textos críticos são devidamente lidos, o que podemos esperar? Afinal, é possível, ou não, uma elaboração teórica da prática curatorial? Ferrán Barenblit: Num momento em que a exposição, muito mais que um meio, é a obra (e que muitos confundem – ou fundem – ambos os conceitos), o papel do curador converteu-se numa peça-chave para entender muitos dos processos que dominam a produção, mediação e recepção da arte contemporânea. Harald Szeemann, quem provavelmente inventou não só a prática curatorial, mas, também, a própria ideia de exposição tal como a entendemos atualmente, autodefinia-se como Ausstellungsmacher, termo em alemão que combina duas ideias: “exposição” (Ausstellung) e “homem de ação” (Macher). Szeemann acertou plenamente ao reclamar para o ato curatorial o fato da ação: o curador dificilmente pode explicar-se a si mesmo como produto de um título acadêmico. O curador é o que é, só mesmo através do seu exercício: pelo fato de pôr para funcionar uma exposição. No momento que deixa de existir exposição, deixa de existir curador. Muitas das normalidades aceitas que giram em torno da prática curatorial contemporânea levam anos sendo questionadas. Para existir, um curador necessita de uma instituição na qual trabalhe (ou lhe faça uma encomenda) e um veículo, isto é, a própria exposição, com datas de início e término, título, discurso, obras de arte, textos. Por sua vez, o resultado de seu trabalho – ou seja, a exposição – precisa de um público, uma resposta crítica; em síntese: de um processo de feedback. Tudo isso simplesmente para voltar a começar. Em nome da crítica institucional, o próprio processo curatorial, junto com o próprio mercado e as estruturas de poder que costumam acompanhar a IV Seminário Semestral de Curadoria | Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado
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arte, é dissecado para determinar a anatomia dessas normalidades aceitas. Em última instância, pretende-se tornar visíveis os conflitos, fase imprescindível no processo (ou na tentativa) de resolvê-los. Em todo caso, tampouco considero muito relevante saber se a prática curatorial é, ou não, uma profissão. Acredito que possui muitos dos elementos requeridos nela. Permite a alguns dos seus praticantes ocuparem-se nela full time, existe uma formação específica (que pode ser seguida ou não), existem associações profissionais (existe a International Association of Curators of Contemporary Art), existe um código deontológico (na falta dele, pode-se pedir emprestado o do International Council of Museums). É possivelmente uma contradição falar de teoria da prática curatorial. Acredito que sim, que é possível essa elaboração teórica, mas apoiada numa prática, como sua própria pergunta indica. Isso a torna um pouco especial. LL: Você trabalhou no New Museum de Nova York, entre 1994 e 1996. Mas o que me chama a atenção é que seu currículo menciona que foi assistente de Marcia Tucker. Qual foi o papel de Marcia Tucker na sua formação? O que destacaria no perfil dessa diretora e curadora? FB: É verdade que não é habitual citar o nome da pessoa com a qual alguém trabalhou. Neste caso, acredito que isso aconteceu por vários motivos: The New Museum ainda era, ao menos na época em que estive ali, a imagem mais fiel de sua fundadora e diretora. Seu papel em minha formação foi muito importante. Suponho que foi uma questão circunstancial: foi meu primeiro emprego num museu, em um momento em que desejava aprender. E ela sempre estava disposta a ensinar. Dela aprendi muitas coisas. Acredito que só uma delas foi prática. “Se só tivesse que aprender uma coisa de mim, que fosse esta: nunca pendure duas coisas parecidas juntas.” As demais tiveram a ver com o sentido de trabalhar em arte, a necessidade de deixar o artista falar, as implicações políticas da arte, o risco, principalmente, além da importância de uma instituição como um museu. Acho que foi por isso que decidi trabalhar num deles. No caso do The New Museum, o conjunto da atividade dela era muito mais importante do que qualquer das suas ações de forma isolada. Não me canso de recomendar a leitura de sua autobiografia A Short Life of Trouble. São poucos os curadores que escreveram sobre si mesmos e não conheço nenhuma biografia que tenha sido publicada postumamente. Além disso, é um livro escrito com uma imensa sinceridade pessoal. Destacaria um monte de coisas do seu perfil de diretora e curadora. A ampla importância que dava a todo o pessoal do museu — todos sentíamo-nos imprescindíveis. Seu lema “atua primeiro e pensa depois; assim, tens algo em que pensar”. E sua biografia profissional, que dizia que estava “apoiada em críticas negativas”. Os contínuos ataques do ultraconservador Hilton Kramer eram, para ela, um incentivo para seguir trabalhando. Este personagem escreveu a respeito da primeira exposição de Bruce Nauman, da qual Marcia foi curadora, em
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1973: “Everything in the exhibition is a kind of visual rubbish designed with the express purpose of referring us to ‘ideas’ about art”. LL: Madri é uma cidade cuja visitação de museus está entre outras cidades como Paris, Londres e Nova York, todas inseridas na rota do turismo cultural. Como esse compromisso com o público se refletiu no seu projeto à frente do Centro de Arte Santa Mònica (Barcelona) e agora no novo Centro de Arte Dos de Mayo? O conceito de evento expandido teria o sentido de deslocar as propostas culturais do centro histórico, geralmente mais favorecido do que as margens da cidade? FB: Sua pergunta não poderia ser mais estimulante. Em minha própria experiência nos últimos anos, tive a oportunidade de trabalhar em dois contextos urbanos muito diferentes. Em Barcelona, o Centre d’Art Santa Mònica (CASM) estava em La Rambla, a alameda mais turística da cidade. Em Madri, o Centro de Arte Dos de Mayo (CA2M) está situado na periferia urbana, numa cidade-dormitório da grande metrópole que é Madri. O turismo é um dos fatores que mais influenciaram a Espanha contemporânea. Destruiu toda a costa (não sobra um quilômetro sequer no Mediterrâneo espanhol ainda livre para a indústria da construção), mas, ao mesmo tempo, armou o palco para o primeiro sinal de abertura durante os anos de chumbo do franquismo: as suecas, com os seus biquínis expostos ao sol, fizeram mais pela abertura que a famosa visita de Eisenhower.1 O “modelo Barcelona” é um dos casos de estudos urbanos mais interessantes, tendo sido estudado a partir de muitos pontos de vista. Estamos falando de uma cidade que criou uma imagem de si mesma muito poderosa e que caminhou de mãos dadas com o seu próprio sucesso como cidade de destino turístico. A cidade triunfou graças a esse modelo: aproveitando o ponto de partida dos Jogos Olímpicos de 1992, converteu-se, em vinte anos, num destino ideal de fim de semana, com um aeroporto ligado a toda a Europa, com voos low cost, que permitem visitá-la com menos de cem euros no bolso, a partir de qualquer ponto do continente. Mas a cidade também foi vítima desse modelo: uma parte significativa dos cidadãos pode querer encontrar no turismo a fonte de seus problemas (o que não seria bem assim). Além disso, criou um padrão particular nas propostas culturais. De um lado, porque criaram produtos únicos (festivais de todo tipo) que ajudaram a criar essa marca de cidade. Por outro lado, os museus da cidade estão, como em qualquer outra cidade europeia, abarrotados de turistas. Em alguns, como os dedicados a Picasso ou Miró, 85% de seus visitantes são turistas ou, dito ao contrário, menos de 15% são visitantes locais. O CASM, apesar de estar situado num dos pontos mais movimentados da cidade, ficava bem à margem 1 Nota do tradutor.: O presidente norte-americano visitou a Espanha em 1959, quando então foram assinados os pactos que permitiram aos Estados Unidos instalarem algumas bases militares na Espanha. Isso levou ao deslocamento de milhares de militares desse país e suas famílias, gerando o primeiro choque de modernidade num país que estava, até então, fechado ao mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Já as “suecas” (as de fato e as assim apelidadas, de outros países do norte da Europa em geral), com seus biquínis nunca vistos na Espanha, começaram a invadir as praias espanholas do Mediterrâneo nos últimos anos da década de sessenta em busca do sol e de romances rápidos de verão. IV Seminário Semestral de Curadoria | Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado
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desses visitantes, ainda que fossem em número respeitável. Como isso afeta a relação com o público? Manuel Borja Villel, que sem dúvida teve ocasião de refletir sobre este fato no MNCARS [Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri] e no MACBA [Museu D’Art Contemporani de Barcelona], disse recentemente numa entrevista que os turistas são os verdadeiros proletários contemporâneos: levantam-se ao raiar do dia, vagam sem descanso de museu em museu, fazendo longas filas para tudo. Temos que nos acostumar a que esse seja o perfil dos visitantes dos museus europeus? O caso do CA2M nos subúrbios de Madri é o oposto. Não poderia imaginar uma melhor localização para um centro de arte contemporânea nesta cidade. É um modelo de centro que foi experimentado em outras cidades europeias, principalmente em Paris, mas não na Espanha: estamos falando de um museu de arte contemporânea situado numa cidade-dormitório. Madri é uma cidade que, nas últimas décadas, converteu-se numa imensa metrópole, pelo menos em escala europeia. Obviamente, nada comparável ao caso de São Paulo ou outras cidades americanas. Apesar dessa dimensão, a oferta cultural em Madri concentra-se num pequeno espaço em volta do seu centro histórico. Sua imensa periferia, muito bem servida com uma rede viária e ferroviária (metrô), está desprovida de qualquer construção que não seja uma grosseira e inexata divisão por classes sociais (o sul e o leste, de operários; o norte e o oeste, de burgueses). Assim, Madri é uma cidade em que existe uma tensão entre a cidade real (imensa) e a cidade simbólica (reduzida a um espaço de algo mais de um quilômetro de raio). O CA2M deve desafiar algumas das normalidades assumidas com as quais trabalhamos habitualmente. Entre elas, que uma instituição será tão poderosa quanto mais caro for o preço do metro quadrado do edifício que ocupa. Isso obriganos a estabelecer novos canais de relação com o nosso público, como, por exemplo, demonstrar àquele milhão e meio de pessoas que, tendo aos seus pés a linha do metrô que os leva ao CA2M, podem ter uma oferta cultural do seu interesse sem ter que ir ao centro da cidade. Estamos atualmente focando nisso tudo… Quanto ao evento expandido… acho que posso desenvolvê-lo na próxima pergunta; refiro-me mais a uma atitude dos artistas que propriamente do museu. LL: O evento expandido seria então responsabilidade do artista. Como conduzir essa experiência dentro do cotidiano da instituição? No Brasil, a mediação entre a obra de arte e o público é um outro trabalho, que atende por diversos nomes (“arte-educação” é apenas um deles), com orçamento distinto. Em mostras temporárias, são preparados grupos de monitores (guias), que passam por uma formação específica, com historiadores, artistas, curadores. São os guias que acolhem os alunos; mais difícil é conseguir fazer uma capacitação dos professores da rede pública. FB: O “evento expandido” é o nome genérico que demos a uma série de práticas artísticas que constatamos no Centre d’Art Santa Mònica em Barcelona. Não foi uma proposta. Foi uma descoberta, ao ver a resposta dos artistas que convidávamos. O
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centro costumava encomendar novos trabalhos a artistas, nacionais e estrangeiros, que se apresentavam na forma de exposição individual. Após vários anos, constatamos que um número considerável de artistas locais incluía a variável tempo em seus projetos. Assim, por conta desses artistas, definimos os eventos expandidos como exposições/ projetos que não eram os mesmos no dia da abertura e no dia do encerramento. Martí Anson passou os 55 dias úteis que durava a exposição construindo um barco, um veleiro, que destruiu depois do encerramento da mostra. Tere Recarens fechou dois contêineres marítimos de vinte pés [seis metros aproximadamente] durante dez anos: serão abertos em 19 de março de 2014. A única dica que soltou é que o conteúdo de um terá melhorado, enquanto que o do outro terá piorado. Oscar Abril Ascaso converteu sua exposição num espaço de ensaio e concertos para músicos. Antoni Abad idealizou uma plataforma para que deficientes físicos emitam imagens de sua vida cotidiana (um projeto similar ao que desenvolveu em São Paulo com motoboys). Luis Bisbe propôs uma fonte muito bonita, dentro de uma bolha de material plástico de aproximadamente cinco metros de diâmetro. Depois, o visitante descobria que a fonte era alimentada com as águas fecais de um dos banheiros. No primeiro dia, a água estava limpa; no último, suja (ainda que, naquela ambientação, não estivesse nem um pouco repugnante). Joan Morey criou um espaço no qual levou a efeito sete performances. Dora García propôs uma performance: a projeção comentada do filme de Beckett a cada semana e durante os três meses que durou a exposição. A performance tinha que acontecer, com ou sem público, todas as terças-feiras, às dezenove horas. Tudo isto não foi o resultado de um plano desenhado pela equipe curatorial do centro, mas sim uma resposta dos artistas a determinadas condições. Em última instância, o que os eventos expandidos fazem é discutir o valor da exposição como única forma de relação entre arte e seu público. É uma tentativa a mais na busca de um modelo de trabalho que proponha mudar a tradicional relação entre arte e obra de arte. Acho que é uma contribuição a mais dos artistas ao amplo campo da crítica institucional. A história da arte do século XX bem que poderia ser definida como a tentativa de criar a obra de arte impossível de ser exibida e colecionada. Uma obra que jamais possa ser mostrada ao público de uma forma mais ou menos razoável, nem entrar num museu ou numa coleção. A história da museologia, ou da curadoria, bem que poderia ter sido a oposta: a tentativa de, a qualquer preço, expor e colecionar a obra de arte feita para não poder ser jamais exposta e colecionável. Esta tensão definiu boa parte do modus operandi das práticas curatoriais das últimas décadas, sinônimo oferecido ao conjunto de sua história. Os eventos expandidos, tal como foram apresentados no CASM, são uma resposta a esta tensão: não renunciam a assumir parcialmente o formato expositivo (um projeto, aberto ao público tantas horas ao dia, uma obra etc.). Mas aludem indiretamente a certo desconforto com a rigidez desse formato, ao apresentar propostas que problematizam as expectativas de curadores e público. IV Seminário Semestral de Curadoria | Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado
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Martí Anson (Mataró, 1967). Seus projetos recentes incluem ‘dels Preu El cores, Galeria Toni Tàpies, Barcelona, 2009; Martí et la chocolaterie para “Rendez-Vous 09”, 10ª Bienal de Lyon; Martí ea farinha fábrica para “Lucky Number 7”, SITE Santa Fe, Novo México, 2008; Fitzcarraldo, 55 dias trabalhando na construção de um iate Stella 34 no Centre d’Art Santa Mònica, Centre d’Art Santa Mònica, Barcelona, 2005 102
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LL: Muito radical essa noção de “obra de arte feita para não poder ser jamais exposta e colecionada”! Poderia falar sobre sua percepção hoje da perda da aura proposta por Benjamin? 1) Ouvindo-o, não nos dá a impressão de que haveria um retorno dessa presença mágica da obra? 2) Está vislumbrando uma mudança teórica? 3) Até que ponto, afinal de contas, a reprodutibilidade técnica foi, ou não foi, um fator que aumentou a carga de exponibilidade de uma obra? FB: Penso que uma forma um pouco provocadora de definir a história da arte do ponto de vista das vanguardas é esta: a tentativa de criar a obra de arte que não possa ser nunca exposta nem possuída. É uma tentativa quimérica, suponho que é algo que se deseja e se odeia, cheio de contradições. Imagino que muitos artistas a partir de Duchamp não suspeitavam que suas obras seriam colecionadas e expostas da forma que são atualmente. Essa certa tensão a que me refiro entre a prática artística e a curatorial, entre a produção e a exibição da obra, pode aparecer em sua definição material, conceitual ou política. Ou seja, peças que por sua essência desafiam a capacidade que tem a instituição de arte de incorporá-las aos seus roteiros expositivos ou comerciais habituais. É exatamente disso que fala a crítica institucional. Em todo caso, o evento expandido é para mim uma resposta natural de muitos artistas à insistência em um modelo de obra + exposição hegemônica na maioria de museus. Uma forma de debater os canais de contato entre arte e público, de levar a efeito um trabalho que seja, de certa maneira, impossível de colecionar e impossível de exibir. Seleciono agora um dos exemplos aos quais me referi antes. Martí Anson trabalhou ao longo dos 55 dias úteis que durou a exposição na construção de um barco, um veleiro. Fez isso só, quase sem ajuda. O CASM adquiriu os materiais e ele, dia após dia, enfiado em sua roupa de trabalho, ia dando forma ao navio. Fez um trabalho extraordinário: o que ele fez em quase dois meses muitos entusiastas que constroem seus próprios barcos não fazem nem em um ano. Não posso imaginar um objeto melhor para ser construído do que um veleiro. De um lado, por questões casuais ou circunstanciais. O CASM estava situado junto ao mar e junto aos antigos estaleiros de Barcelona. O próprio Anson é oriundo de um povoado, Mataró, colado em Barcelona e famoso porque no século XIX construíram desastradamente um barco dentro de uma casa e depois não puderam tirá-lo de lá, porque a porta era menor que o barco. Obviamente, ele também fazia uma referência ao filme de Werner Herzog: a consecução de um sonho que implica um trabalho sobre-humano. Mas, principalmente, acertou na mosca, pois se tratava do maior objeto que alguém pode construir e depois transportar. Com isso, acentuava o nonsense dos seus 55 dias de trabalho: era óbvio que o barco jamais poderia sair do próprio centro. Tinha sua lógica enquanto durasse a exposição, mas não depois. Não acho que isto tivesse alguma coisa que ver com a geração de uma aura em função da experiência, porque o certo é que o artista não estava nem aí para a reação do público. Acho que, acima de tudo, colocava em dúvida o sentido de utilidade IV Seminário Semestral de Curadoria | Ferrán Barenblit e Lisette Lagnado
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da arte (insistindo em que a arte realmente não é uma prática que tenha um uso) e reclamava o valor do trabalho do artista como uma ação meio a meio sobre o produto e sobre os meios de produção. Imagino que a noção da perda da aura tal como a expôs Benjamin ainda é plenamente válida, principalmente pela característica que tem de deslocar para uma dimensão política a leitura e o sentido do trabalho em arte. Às vezes penso que, nas últimas décadas, essa aura foi transferida para os grandes museus e bienais. Agora já não se trata de contemplar uma obra única, mas sim ter uma experiência única, que só pode ser gerada pela visita. Ou seja, a contemplação cedeu espaço à presença. Benjamin disse que a reprodução mecânica emancipava a obra de arte de sua dependência parasitária do ritual. Pensou isso aplicando-o à burguesia moderna e a sua insistência em assenhorear-se da arte como meio para homologar outras acumulações de riqueza. Que maior ritual existe agora que a visita ao museu? A inauguração de uma grande bienal, por exemplo, é um protocolo do qual devem participar, de forma ordenada, curadores, artistas, público seleto, patrocinadores e, obviamente, autoridades. Pensando bem, museus e bienais herdaram essa aura: certo temor reverencial diante da experiência única, que sustenta, por sua vez, os valores ostentados pelas estruturas de poder. No caso dos museus europeus da atualidade, essa estrutura de poder é a noção do estado de bem-estar, sabiamente dosada pelas convenções político-administrativas e burocráticas praticadas pelo museu. O museu, a cultura, é um direito do cidadão, que acaba se voltando contra ele quando é usado como um ato de generosidade do Estado. Para sustentar essa ideia, os museus sustentam os vapores da liturgia a envolver as visitas. Acho que esta leitura remete a sua primeira pergunta: o impacto do turismo nos museus atuais e a ideia de que os turistas, esses seres que vagam pelas cidades em busca de cultura, são os verdadeiros proletários contemporâneos. Sua pergunta não ia tanto nessa direção, mas sim na da obra propriamente dita. E tem razão: penso que o espectador da obra recupera certa noção de aura nas peças que exigem participação ou uma mera presença. Entretanto, acho que estamos diante de outro tipo de aura, mais relacionada com a economia pós-industrial, com a sociedade do lazer, do evento, do espetáculo, do que propriamente com a discussão do papel da obra de arte e sua capacidade de sustentar as bases do pensamento burguês. Agora, trata-se de estar presente, de ser testemunha, mais do que de capturar algo da suposta essência associada a uma peça. Acho que essa presença mágica a que você se refere hoje em dia é compartilhada entre o continente (o museu) e o conteúdo (a obra), se é que às vezes essas duas partes não sejam a mesma coisa. LL: Não estaríamos muito longe dos espetáculos do século XIX, como as Exposições Universais. 1) Não lhe parece que há uma nostalgia das multidões por concepções
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marcadas pelo excesso? Não estariam em busca de uma nova ficção científica ou de outro homo ludens? 2) O exemplo de Turbine Hall não lhe parece um espaço que se assemelha a um Pavilhão de Exposições? Qual seria seu artista para esse lugar e qual é a sua expectativa em relação a um espaço que tem tais características? FB: O sistema arte nutre-se de todo tipo de experiências, das grandes convocações de multidões às propostas mais discretas. De fato, deveria funcionar como uma grande pirâmide. Na base, incontáveis espaços de contato arte-público; no vértice, os grandes eventos internacionais. Na prática, pelo menos na Espanha, parece mais uma pirâmide invertida: existe uma dúzia de escolas de belas-artes no país, mas quase trinta museus de arte contemporânea. As exigências também se invertem. Exige-se do espaço menor que tenha o impacto e os resultados de outro maior. Ao mesmo tempo, exigese do grande acontecimento internacional que apresente sempre (magníficos) artistas desconhecidos. A exposição é um dos modelos mais claros de manifestações culturais e intelectuais contemporâneas. Quanto ao meio em si, vale lembrar que é a principal forma de contato entre a arte e seu público, pelo menos desde que foram fincadas as bases do Estado e da sociedade modernos, algo mais de dois séculos atrás. Como produto em si mesmo, é comparável a um filme ou a determinados empreendimentos editoriais ou via internet. Mostra perfeitamente muitas das características comuns à sociedade pósindustrial, como, por exemplo: a necessidade de gerar um evento que esteja por cima de tudo (capaz de gerar uma cobrança do tipo: “visite, senão vai perder”); a criação de experiência (“podem até lhe contar, mas o fato é que você não viu”); a ideia de um uso ativo, em oposição à do visitante passivo (por isso, são muitos os que consideram que mais que visitantes, as exposições têm usuários, que, por sua vez, desenvolvem seus próprios requerimentos); o diálogo com dinâmicas relacionadas, em maior ou menor escala, a processos econômicos da sociedade de consumo, como o lazer, o turismo cultural, o comércio de produtos relacionados, as leis de proteção de direitos autorais; e muitas outras. Ao mesmo tempo, participa das dinâmicas de intercâmbio na política econômica da arte, através dos mecanismos de geração de valor simbólico e econômico. Por outro lado, as exposições posicionam-se como lugares nos quais são definidos –ou, melhor dizendo, são redefinidos – os significados culturais da arte. São lugares de construção do sentido; nos quais começam, culminam ou (chegando a casos de notáveis e sonoros fracassos) desmoronam as estruturas conceituais que sustentam a produção artística atual. Qualquer vontade de servir para dar uma visão completa e global da arte é uma ficção. As bienais (e manifestações similares) continuam alimentando-se dessa falsidade: não existe forma alguma de gerar uma chave universal para “entender” ou racionalizar a criação artística contemporânea. No geral, respondendo a sua primeira pergunta: sim, existe uma nostalgia
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das multidões por concepções marcadas pelo excesso. No fundo, é a ingênua busca da manifestação de arte global, aquela que sirva para compreender o conjunto da criação contemporânea, com seus acertos, conflitos, contradições. Tudo isso numa única visita que dure umas quantas horas e que seja o resultado do equilíbrio perfeito entre as necessidades do visitante (práticas, lúdicas), do curador, da instituição, de seus patrocinadores. Será por isso que os grandes eventos já quase não contentam ninguém? Fui a poucas grandes bienais nas quais encontrasse alguém que me dissesse que a exposição era boa. Veneza, Documenta etc. são the shows you love to hate [as exposições que você ama odiar]. Estão a ponto de se converterem em lugares nos quais entra em curto-circuito o sistema arte, nos quais fica visível todo esse jogo, mais que em lugares aos quais vai-se para procurar arte. Nunca tinha pensado no Turbine Hall como um Pavilhão de Exposições. É verdade: a grande nova produção de um artista que já gozava de uma grande visibilidade. Um único espaço, um grande artista… uma versão maior de um pavilhão de exposições. Ao olhar a sua evolução em uma década (o programa começou em 2000), também se parece com uma bienal. Um cuidadoso equilíbrio de artistas: seis homens a cada quatro mulheres; predomínio de europeus (surpreende-me a percentagem de norte-americanos); alguns nomes mais arriscados, embora não muito; outros mais consagrados; alguns projetos sóbrios e solenes, outros mais lúdicos e divertidos. A ficção de propor um artista para o Turbine Hall é muito atraente. Serei consequente comigo mesmo e proporei um artista capaz de gerar um evento expandido para esse local. Ninguém fez isso até agora: todas as propostas foram projetos acabados, perfeitos, sólidos, sem nenhuma alteração ao longo do seu tempo expositivo. Os projetos apresentados da série Unilever (o nome formal do projeto) têm duas coordenadas fundamentais: um grande espaço e um tempo dilatado. O espaço é impressionante. Os oito meses que dura cada exposição geram uma referência temporal perfeita. Um evento expandido perante uma quantidade de público tão grande poderia gerar uma resposta muito interessante – as reações imediatas e midiáticas seriam multiplicadas. Lembra a definição de evento expandido: obras nas quais acontece uma mudança (de uma pequena mutação a uma grande metamorfose) durante o tempo que dura sua exposição ao público. Imagino um projeto que vai avançando lentamente, talvez por si mesmo e não pela interação com o público, e que, de alguma forma, atinja o píncaro no último dia de sua exposição. LL: Muito se fala hoje de arte conceitual, a despeito de uma circunscrição histórica característica do final dos anos sessenta. Parece-me que há uma confusão entre a potência crítica e filosófica da obra (o sistema da arte, os horrores dos regimes políticos, as relações de poder e dominação etc.), absolutamente necessária, qualquer que seja o estilo adotado pelo artista, e o que entendemos como “arte conceitual”. Qual é seu ponto de vista diante de uma escalada de conceitualismos?
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FB: Suponho que, ao escrever a respeito da obra impossível de ser exibida e colecionada, não faço mais do que me referir a uma nova elaboração do conceitual. Penso que é difícil falar da arte conceitual como um movimento que nasce na década de sessenta, a não ser como uma forma de ver o conjunto da prática artística contemporânea. Assim, ter-se-ia que falar mais de prática conceitual do que de arte conceitual. Dessa forma, deve discutir-se primeiramente a vontade de apropriação do conceitual por certas esferas hegemônicas, para evitar que isso fique restringido à arte que se fez na cidade de Nova York quarenta anos atrás. Nesse sentido, penso que a década de 1980 significou um passo atrás, que fez com que, quando dez anos depois o olhar recaiu na década de 1960, isso acontecesse a partir de um interesse de mercado. Por isso, é imprescindível agora olhar a história a partir de posições mais amplas, atendendo às múltiplas elaborações do conceitual. É daí que pode vir essa ideia a que você se refere, que parece que agora “toda obra com potência crítica é conceitual”, embora acredite mais que o caso é que a vontade de alguns de fazer uma arte conceitual acrítica não eclipse os demais.
Re fer ên cias Bib liográficas GREENBERG, Reesa; FERGUSON, Bruce W.; NAIRNE, Sandy (org.). Thinking about Exhibitions. Nova York: Routledge, 1996. HUTCHEON, Linda. Irony’s Edge. The Theory And Politics of Irony. Londres: Routledge, 1994. TUCKER, Marcia. A Short Life of Trouble: Forty Years in the New York Art World. Berkeley e Los Angeles, Califórnia: University of California Press, 2008.
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Joan Morey (Mallorca, 1972). Vive e trabalha em Barcelona. Possui licenciatura e D.E.A. em belas-artes pela Universidad de Barcelona. Participou de exposições coletivas como Bad Boys, na 50ª Bienal de Veneza, The Black Album (Antonio Colombo Arte Contemporanea), em Milão, Gli altri (Gás Art Gallery), em Turim, Antirrealismos: Spanish Photomedia Now (Australian Centre for Photography), em Sydney. Integrou diversas feiras e programas de vídeo, e teve exposições individuais em galerias de arte como a Luis Adelantado, em Valência, e a Paul Greenaway, na Austrália.
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Veronica Stigger*
Palavras-chave Flavio de Carvalho; New Look; experiência; moda; Roma. Key words Flavio de Carvalho; New Look; experiments; fashion; Rome.
C A D E R N O D O A U TO R
Flavio d e C arval h o : experiê n c ias ro m an as
Resumo: Em novembro de 1956, Flavio de Carvalho realizou uma exposição de suas obras na Galleria L’Obelisco, em Roma. O artista aproveitou a ocasião do vernissage para fazer a primeira apresentação internacional do seu traje tropical, o New Look. No entanto, ao contrário do que aconteceu em São Paulo quando da primeira exibição do traje (e igualmente contrariando a expectativa revelada por Flavio de Carvalho em entrevistas anteriores à viagem), em Roma não causou comoção. Em alguma medida, esta ausência de escândalo diante de uma proposta tão provocativa se explica pelo ambiente romano à época, dominado pelas reações e manifestações contra a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas. Abstract: In November 1956, Flavio de Carvalho held an exhibition of his works at the Galleria L’Obelisco, Rome. The artist used the occasion of the vernissage to make the first international presentation of his tropical attire, the New Look. However, unlike what happened in São Paulo when the costume was presented for the first time (and also contrary to the expectations expressed by Flavio de Carvalho in interviews prior to travel), in Rome it did not cause any commotion. To some extent, this lack of scandal before a proposal so provocative is explained by what was happening in Rome at that time: above all the reactions against the invasion of Hungary by Soviet troops.
* Veronica Stigger é pesquisadora, crítica de arte e escritora. É doutora em teoria e crítica da arte pela ECA/USP e professora junto à pós-graduação em história da arte da Faap. O presente texto é resultado parcial de suas pesquisas de pós-doutorado, realizadas junto à Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, com bolsa concedida pela Fapesp.
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De São Paulo a Roma Em 18 de outubro de 1956, às 15 horas de uma quinta-feira, Flavio de Carvalho desceu de seu escritório na rua Barão de Itapetininga para lançar, com um passeio pelas ruas do centro de São Paulo, o traje que havia concebido para os homens dos trópicos. Batizado New Look1, compunha-se de saiote, blusão armado de mangas bufantes, meia arrastão, chapéu branco e sandália de couro. O tecido de base era o que havia de mais moderno na época: nylon. O conjunto, segundo o próprio Flavio de Carvalho, além de libertar o homem dos ternos e das gravatas, avessos tanto ao clima tropical brasileiro quanto à vida contemporânea, possibilitaria uma diferença de temperatura de cinco graus centígrados entre a roupa e o ambiente: “A nova moda para o verão leva principalmente em consideração a ventilação do corpo e esta impede o empastamento do suor sobre a pele promovendo a evaporação rápida do mesmo e diminuindo a sensação de calor”. (Carvalho, 1992, p. 6). Uma horda de repórteres, fotógrafos e curiosos seguiu o artista em seu desfile pelas ruas da cidade. Para Flavio de Carvalho, era imprescindível aproximar suas criações da população: “Não sou um homem de gabinete, acho que para melhor compreender o homem e o seu comportamento é necessário contato emotivo com as multidões. Há necessidade de obter reações vivas e diretas e inesperadas para melhor compreender o comportamento do homem”. (Carvalho apud Dantas, 1957, p. 10.) No dia seguinte à apresentação do traje com a caminhada pelas ruas de São Paulo, Flavio de Carvalho proferiu uma palestra no Clube dos Artistas e Amigos da Arte, o Clubinho, para expor as vantagens da nova vestimenta masculina. No dia 24 daquele mesmo mês e ano, promoveu ainda o Baile do Traje do Futuro, que se realizou no mesmo local. Um dia depois, embarcou para Roma para abrir sua primeira exposição individual na Europa, a qual teria lugar na Galleria L’Obelisco entre 1° e 15 de novembro. Levava na bagagem o seu tão controverso New Look. No Brasil, o lançamento de seu costume masculino de verão fora recebido com estardalhaço, provocando escândalo, mas também aplauso. Personalidades como Assis Chateaubriand, Manuel Bandeira, Francisco Matarazzo Sobrinho, Eleazar de Carvalho, entre outros, apoiaram a ideia, mas não chegaram a vestir a roupa criada pelo artista. No baile de lançamento do New Look, no Clubinho, o engenheiro Silioma Selter e outras celebridades da época, como José Vergueiro, Ciro Alves Cardoso e Ary Torelli, envergaram suas próprias versões para o traje de verão, todas elas com o indefectível saiote (OD, 1956 [28 out.], p. 11). A repercussão do evento no Exterior (J. Toledo, biógrafo do artista, conta que havia três correspondentes de jornais estrangeiros na cobertura do lançamento do New Look em São Paulo: um dos Estados Unidos, outro da Argentina e o terceiro da Itália) fez com que os escritores italianos Giuseppe 1 O nome do traje fazia uma inequívoca referência ao famoso modelo criado por Christian Dior, quase dez anos antes, em 1947: com cintura marcada e ampla saia évasée, o New Look de Dior produziu uma revolução no guarda-roupa feminino, o qual, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, tendia para as formas retas e masculinas. 110
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Ungaretti e Alberto Moravia convidassem, por carta, Flavio de Carvalho a apresentar sua roupa em Roma, onde, garantiam, desfilariam a seu lado (Toledo, 1994, p. 514). E as reportagens que acompanharam o desfile do New Look pelo centro de São Paulo já anunciavam o iminente lançamento do traje em Roma (cf. DP, 1956 [19 out.], p. 3; FM, 1956 [19 out.], p. 1; FT, 1956 [25 out.], p. 1), bem como os planos grandiosos que Flavio de Carvalho tinha para o seu retorno: organizar um “desfile monstro” em São Paulo, com duzentos modelos e repetir a experiência no Rio de Janeiro (cf. FM, 1956 [19 out.], p. 1). Flavio de Carvalho partiu do Brasil acreditando que sua roupa teria uma semelhante recepção estrepitosa em terras italianas. Em declaração à Folha da Manhã (1956 [19 out.], p. 1), afirmou: “Os italianos vão adorar. E os demais europeus também não demorarão em tocar fora esses incômodos aparelhos de tortura que vocês estão usando”. Sua convicção do sucesso que faria no exterior estava respaldada na quantidade de espaço que os jornais e as revistas brasileiras lhe dedicaram. Afinal, como bem observou O Dia (1956 [28 out.], p. 11), em matéria sobre o Baile do Traje do Futuro, “a moda foi definitivamente lançada, a cortina do preconceito rasgada e o fabuloso Flavio de Carvalho voltou a ser manchete de jornais e revistas, apesar de Suez, Hungria, Polônia, Adhemar, Janio e Arrelia…”. Por que Roma? Mas, entre todas as possíveis cidades estrangeiras, por que Flavio de Carvalho escolheu Roma para o lançamento de seu novo traje? Por um lado, há razões contingentes para essa escolha: Flavio de Carvalho já tinha agendada a abertura de sua exposição na Galleria L’Obelisco e, segundo o próprio artista (Toledo, 1994, p. 514), Ungaretti e Moravia haviam-no convidado a realizar o lançamento de seu traje na capital italiana. Afora isso, talvez não houvesse lugar mais apropriado na Europa para a apresentação de sua roupa: além de ter sido confeccionada por uma costureira italiana, Maria Ferrara, conhecida modista dos balés do IV Centenário, a própria concepção do traje parecia indicar uma especial ligação com a Itália. Em várias das entrevistas que concedeu na ocasião do lançamento em São Paulo, Flavio de Carvalho enfatizou que seu New Look havia sido inspirado em “costumes egípcios, romanos e medievais” (CP, 1956 [19 out.], p. 1)2. Não por acaso, diante da primeira aparição pública envergando sua nova roupa, os jornais disseram que Flavio de Carvalho estava “lembrando as estátuas dos senadores romanos” (FM, 1956 [19 out.], p. 1) e não titubearam em descrevê-lo desta forma: “O porte, com traje e tudo, parecia de um patrício romano ou de um imperador, conforme a opinião de quem o observava após o impacto emocional dos instantes iniciais.” (CP, 1956 [19 out.], p. 2). Para completar, não seria numa galeria qualquer de Roma que Flavio de Carvalho montaria sua exposição, mas na galeria de uma das personalidades romanas mais interessantes na época, Irene Brin, figura fundamental na divulgação da moda italiana no exterior, contribuindo — e muito — para a sua 2 O mesmo jornal observou: “Na redação do referido jornal pôs-se à disposição dos repórteres, da televisão e das companhias cinematográficas. A todos, fleugmaticamente, respondia. Baseava suas afirmativas na história da Roma, do Egito e da Grécia, entre outros países da antiguidade”. (CP, 1956 [19 out.], p. 2).
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valorização no âmbito internacional. Em função dos trabalhos de Irene Brin como jornalista, produtora e crítica, a Galleria L’Obelisco sempre teve um vínculo estreito com a moda: desde a sua inauguração em 1946 emprestou suas instalações para editoriais de moda, promovidos pela própria Irene Brin. Não seria lá, pois, o lugar perfeito para exibir o New Look à Europa e ao mundo? Se, por um lado, havia razões contingentes, por outro, podemos supor que a decisão do artista de apresentar seu traje em Roma tem razões de outra ordem. Flavio de Carvalho havia esboçado toda uma concepção arqueológica da cultura em seu segundo livro publicado, Os ossos do mundo, de 1936 — concepção esta que desenvolveu também no tocante aos aspectos sociológicos, históricos e antropológicos da moda em sua série A moda e o novo homem, composta de 39 artigos veiculados entre 4 de março e 21 de outubro de 1956 (da qual, aliás, resultou a criação de seu traje). Em Os ossos do mundo, motivado por suas viagens por diversas cidades europeias em 1934, percebe-se como, na elaboração de uma singular teoria do que poderíamos chamar de arqueologia filosófica da cultura, Flavio de Carvalho toma como principal ponto de referência a arte e a cultura italianas, afinal, para ele, “a cultura e o pensamento do continente europeu se desenvolveram através de um ponto fraco na península itálica; a decadência do Império Romano.” (Carvalho, 2005, p. 106). Não por acaso o mais extenso ensaio de Os ossos do mundo traz uma longa meditação sobre o caráter anímico da arte a partir de uma desconstrução dos aspectos artísticos, sociais e psicológicos envolvidos nas tradicionais representações da Madona e bambino. Ademais, quando de seu retorno da viagem a Roma, em 1956, Flavio de Carvalho iniciou outra longa série, de 24 artigos, intitulada Os gatos de Roma, em que se aplicou a um estudo de cunho antropológico e psicológico dos hábitos e costumes italianos, desde os etruscos até os tempos modernos, pretendendo esboçar o que chamava de “gráficos da cultura” (cf. DSP, 1957). É possível pensar ainda que há diferenças exemplares entre as duas cidades em que programou exibir o New Look: São Paulo e Roma. São Paulo, em meados dos anos cinquenta, era uma cidade que buscava se modernizar e que crescia em ritmo tão acelerado que deu a impressão a Palma Bucarelli, superintendente da Galleria Nazionale d’Arte Moderna de Roma naquela época, de que nascia “quase ex novo” (Bucarelli, 1954, p. 8). No campo das artes, no ano de 1956, São Paulo dispunha, havia menos de dez anos, de um Museu de Arte Moderna e já realizara três bienais internacionais de arte. Naquele mesmo ano de 1956, acontecia a I Exposição Nacional de Arte Concreta, que, em termos gerais, não deixava de refletir na arte a modernização do país; e, um ano depois, o Edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer em 1954, começaria a ser construído. Ao desfilar o seu novo traje contra este pano de fundo, de certa forma Flavio de Carvalho caminhava, mesmo em meio a polêmicas e escândalos, no sentido da modernização. A apresentação de seu traje em Roma já adquiria uma outra significação. Em Roma, o pano de fundo não era mais o de uma cidade em desenvolvimento, cuja própria tradição estava sendo construída, mas o de uma cidade que, em si mesma, agregava várias camadas de história, como bem observa Giulio Carlo Argan: 112
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Em Roma, é mais uma questão de tempos do que de espaços. As marés das épocas passaram e se retiraram, deixando na areia os restos de distantes naufrágios; como todos os salvados, têm ao redor um espaço próximo e ilimitado, o mar e a praia. É uma cidade que viveu de despojos, depois de ruínas, hoje de refugos. Também os romanos, de Eneias em diante, vieram de remotos desastres: criaturas do tempo, vivem de tempo e não receiam desperdiçá-lo (Argan, 1992, p. 205).
De maneira sintética, podemos dizer que o cenário que Roma oferecia era aquele da história da arte. Era a esse cenário, a essa longa tradição artística e cultural, que Flavio de Carvalho escolheu contrapor seu traje do futuro, a roupa, segundo ele, mais adequada ao homem atual. Ao fazer isso, seu traje e seu gesto assumiam um sentido renovado e diferenciado daquele que teve na exibição em São Paulo. Enquanto São Paulo se apresentava como a cidade que, embora ainda com traços provincianos (veja-se a reação exacerbada ao New Look), dirigia-se rumo à modernidade, Roma era a cidade que representava um fundo anacrônico, do tempo acumulado em monumentos e ruínas. Roma, novembro de 1956 No dia em que Flavio de Carvalho chegou a Roma, os estudantes locais promoviam a primeira de uma longa série de manifestações pelas ruas do centro da capital italiana, em repúdio à ação soviética na Hungria e em apoio aos revoltosos. Desde 24 de outubro, as manchetes dos jornais romanos noticiavam as passeatas estudantis que ganhavam as principais vias de Budapeste em protesto contra a opressão do regime comunista imposto pela antiga União Soviética e a favor de um comunismo próprio, mais democrático e livre. Em pouco tempo, aos estudantes se somaram os trabalhadores e os membros dos comitês nacionais revolucionários. Naquele mesmo 24 de outubro, cumprindo uma das exigências dos estudantes rebeldes, Imre Nagy retornava ao poder, para o cargo de primeiro-ministro, depois de ter sido afastado pelas autoridades soviéticas no ano anterior (cf. Judt, 2006, pp. 314-318). Nagy queria negociar com os revoltosos, prometendo-lhes reformas democráticas, independência e a imediata retirada das tropas soviéticas do território húngaro (Av, 1956 [26 out.], p. 1; Av, 1956 [27 out.], p. 1). Com a sua subida ao poder, acirrou-se a repressão soviética, e os confrontos entre soviéticos e povo magiar tornaram-se cada vez mais sangrentos. Não demorou muito para que uma reação antissoviética se alastrasse pelo mundo. Na Itália, depois de Roma, que, em 27 de outubro, fizera sua primeira manifestação em solidariedade aos húngaros, outras cidades viram seus estudantes tomarem as ruas em protesto. Em 29 de outubro, as manifestações já se espalhavam por toda a península (Av, 1956 [30 out.], p. 2; SI, 1956 [30 out.], p. 5). Quanto mais se aproximava o dia de abertura da exposição de Flavio de Carvalho na Galleria L’Obelisco, mais violentas se tornavam as manifestações nas ruas de Roma. Alguns jornais da véspera e do dia de seu vernissage (31 de outubro e 1° de novembro respectivamente) relatavam que houvera presos e feridos nos confrontos entre jovens e polícia (cf. Av, 1956 [31 out.], p. 4; Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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SI, 1956 [31 out.], p. 2 e p. 4; Un, 1956 [31 out.], p. 5; NGP, 1956 [1° nov.], p. 7; Pa, 1956 [1° nov.], p. 4; PI, 1956 [1° nov.], p. 1 e p. 4; SI, 1956 [1° nov.], p. 5). Na Via delle Botteghe Oscure, onde ficava a sede central do Partido Comunista Italiano (PCI), e nas ruas adjacentes à Via Gaeta, onde se encontrava a sede da Embaixada da União Soviética, centenas de policiais, munidos de escudos, formavam grandes cordões de isolamento para conter a passagem dos manifestantes. As barreiras, no entanto, não impediam os jovens de arremessar pedras contra os prédios, alvos de seus protestos3. Em 31 de outubro, defronte à sede do PCI, a polícia chegou a usar hidrantes para tentar afastar com jatos d’água a multidão revoltosa (Pa, 1956 [1° nov.], p. 4). Em suas passeatas pelas ruas centrais de Roma – que partiam da Piazza Venezia, seguiam pela Via del Corso até a Via Tritone, de onde subiam até a Piazza Barberini para, depois, pegar a Via Barberini até a Via XX Setembre em direção à Via Gaeta, ou seja, pelas ruas adjacentes à da galeria (Via Sistina) onde expunha Flavio de Carvalho –, os estudantes empunhavam cartazes anticomunistas e bandeiras da Hungria e, vez ou outra, queimavam bandeiras soviéticas e exemplares do L’Unità, histórico jornal de esquerda fundado por Antonio Gramsci (SI, 1956 [31 out.], p. 4). Il Secolo d’Italia, jornal de direita, ligado à Alleanza Nazionale, exaltava, em sua edição de 31 de outubro (p. 4), que, na Piazza Venezia, “a juventude expôs numa janela do Palazzo Venezia uma grande bandeira tricolor entre o entusiasmo e a ovação prolongada da multidão presente e de todos os manifestantes”. No mesmo dia, o socialista Avanti! (1956 [31 out.], p. 4) dava seu testemunho: Guiados por chefes fascistas, os estudantes tentaram forçar o bloco, mas eram repelidos a golpes de cassetetes. Na [Praça] Esedra, os manifestantes arrancavam as barreiras de contenção e com estas lutavam contra os agentes. Eram lançadas também pedras, e o salva-vidas colocado diante do monumento ao Militar Desconhecido foi destacado para impedir a evolução das caminhonetes. Era justamente sobre as escadas do monumento que se davam os encontros mais violentos e foi ali que os agentes conseguiram se apossar dos cartazes em louvor ao fascismo.
Tão logo começaram as manifestações, por toda a Itália iniciaram-se também as doações voluntárias de sangue4. Com o acirramento da violência nos combates na 3 Nos textos “Agenti e studenti feriti nelle manifestazioni organizzate dai dirigenti fascisti” (Av, 1956 [31 out.], p. 4) e “Cariche della polizia in piazza Venezia mentre la gioventù missina inneggia all’Ungheria” (SI, 1956 [31 out.], p. 4), falava-se de trezentos agentes policiais protegendo a sede do PCI. Em “Tutta la gioventù romana nelle piazze per manifestare solidarietà agli eroi magiari”, contava-se que “numerosas pedras foram lançadas contra o edifício que hospeda a Embaixada da URSS” (SI, 1956 [30 out.], p. 5). Cf. também “Centocinquanta studenti fermati. Giulio Caradonna è stato arrestato” (PI, 1956 [1° nov.], p. 1). 4 Interessante notar que a doação voluntária de sangue, em caso de eventos em que se tenham incontáveis feridos, é um hábito bastante italiano. Quando estive realizando esta pesquisa em Roma, uma série de terremotos destruiu a cidade de Áquila em abril de 2009. Não tardou para que os italianos acorressem aos postos de saúde para doar seus sangues aos atingidos pela catástrofe. Na época dos acontecimentos na Hungria, Emilio Servadio tentou explicar por que os italianos doam seu próprio sangue em ocasiões como a dos conflitos em terras húngaras: “A ‘doação do sangue’ — da qual tanto se fala atualmente em relação aos dramáticos acontecimentos húngaros — parece não poder ser comparável às mais costumeiras (e portanto louváveis e úteis) ofertas de dinheiro, de pães ou de víveres. Para a pessoa mais simples como para a mais culta, doar o próprio sangue se carrega de significados emocionais e simbólicos, cuja origem está, em boa 114
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Hungria, o afluxo de romanos aos postos de saúde para doar sangue aos revoltosos feridos aumentou consideravelmente. Nos dias 31 de outubro e 1° de novembro, os jornais Il Popolo, Il Giornale d’Italia e Il Secolo d’Italia informavam sobre a partida, por avião, do sangue oferecido pelos romanos (Po, 1956 [31 out.], p. 4; GI, 1956 [1° nov.], p. 4; SI, 1956 [1° nov.], p. 5). A enorme quantidade de pessoas que procuraram os locais de doação – Il Paese (1956 [2 nov.], p. 4) e Il Popolo Italiano (1956 [2 nov.], p. 4) contabilizaram 250 doações, totalizando oitenta litros de sangue, apenas no dia 1° de novembro, mesmo dia da abertura da exposição de Flavio de Carvalho – fez com que a Cruz Vermelha italiana providenciasse uma unidade móvel, a ser colocada na Piazza Esedra, no centro de Roma5. Com o sangue, eram doados também dinheiro, alimentos e medicamentos (Pa, 1956 [2 nov.], p. 4). Mas não era apenas a crise na Hungria que tomava o espaço dos jornais e das revistas do período – jornais que, diga-se de passagem, costumavam não ter mais do que oito páginas. Por aqueles mesmos dias, havia estourado o conflito no Canal de Suez, entre Egito, de um lado, e França, Grã-Bretanha e Israel, de outro. Em 29 de outubro, as forças armadas de Israel cruzaram a fronteira do Sinai em direção ao Canal de Suez. No dia seguinte, tropas britânicas e francesas começaram a se preparar para desembarcar em Suez e tomar de volta o Canal, o qual, em julho de 1956, havia sido nacionalizado pelo então chefe de governo egípcio Gamal Abdul Nasser (cf. Judt, 2006, pp. 291-297). Em 31 de outubro, Grã-Bretanha e França principiaram um violento ataque aéreo sobre a região de Suez, que se prolongou pelos próximos dias. Na data da abertura da exposição de Flavio de Carvalho, 1° de novembro, as manchetes dos jornais não poderiam ser outra: o bombardeio sobre o Egito6. No dia seguinte, as capas se parte, inconsciente. Não saberia definir esse ato mediante genéricas considerações humanitárias, e menos ainda poderia descrevê-lo em puros termos fisiológicos e bioquímicos. Quem doa o sangue sente uma particular emoção, descritível somente por imagens. Uma senhora napolitana, que tinha em sua conta mais de trinta transfusões, disse há alguns anos, falando daqueles a que tinha dado seu próprio sangue: ‘Parecem-me todos meus filhos!’”. Mais adiante, no mesmo texto, Servadio observa que “o ato de juntar e misturar, mesmo que em doses mínimas, o sangue de uma pessoa com o de outra, está na base de ritos e cerimônias facilmente encontráveis junto aos povos mais diversos. […] Em qualquer lugar, o dar ou receber sangue assumiu claramente o significado de transmissão de amizade, de afirmação de lealdade recíproca, de união e fidelidade perenes. E tal significado está completamente vivo, mesmo para quem conhece aquele significado realístico e concreto de uma transfusão!” (“Chi dona il proprio sangue sente una profonda emozione”, Te, 1956 [4 nov.], p. 3). 5 L’Unità, de 3 de novembro 1956, publicou na seção La foto del giorno, uma fotolegenda da unidade móvel da Cruz Vermelha na Piazza Esedra. Dizia a legenda: “Sangue para os húngaros – Nesses dias, a CRI [Croce Rossa Italiana / Cruz Vermelha Italiana] colocou uma hemeroteca na Piazza Esedra para receber as ofertas de sangue dos cidadãos destinadas aos feridos húngaros” (p. 4). Momento Sera, de 4 de novembro de 1956, publicou uma fotografia mostrando a longa fila de romanos junto aos postos de doação (“Prossegue l’afflusso dei donatori di sangue”, p. 5). E Il Messaggero, também de 4 de novembro, registrou que permanecia grande o número de pessoas que procuravam os postos de doação (“Continuata l’offerta di sangue per i feriti nei moti d’Ungheria”, p. 5). 6 As manchetes diziam: “Violento bombardamento sul Cairo dell’aviazione anglo-francese” (Av, 1956 [1° nov.], p. 1); “Gli alleati hanno iniziato alle 17,40 l’offensiva bombardando basi militari del canale di Suez” (CDN, 1956 [1° nov.], p. 1); “In corso l’occupazione del canale di Suez. L’Egitto ha respinto l’intimazione mentre Israele ha accettato – Gli scontri fra truppe corazzate nel Sinai sono continuati tutta la notte” (GI, 1956 [1° nov.], p. 1); “Gli aeroporti egizinai bombardati ieri da apparecchi britannici a reazioni” (Me, 1956 [1° nov.], p. 1); “400 aerei anglo-francesi appoggiano lo sbarco in Egitto” (MS, 1956 [31 out.-1° nov.], p. 1); “Aerei inglesi e francesi bombardano le zone strategiche del Canale di Suez” (NGP, 1956 [1° nov.], p. 1); “Iniziato alle 18,30 di ieri l’attacco della Francia e dell’Inghilterra all’Egitto. L’aviazione francoinglese bombarda le principali città egiziane. L’Assemblea generale dell’O.N.U. convocata in sessione straordinaria” (Pa, Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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dividiam entre as notícias de Suez e da Hungria7. Conforme os conflitos na Hungria e no Egito iam se intensificando, culminando no massacre soviético sobre os húngaros, em 4 de novembro, e no desembarque das tropas anglo-francesas no Egito, em 5 de novembro, os espaços dos jornais e das revistas iam sendo cada vez mais preenchidos por reportagens, artigos e inúmeras fotografias sobre esses acontecimentos. Jornais como Il Paese, Il Popolo e La Voce Repubblicana passaram a deixar de dar notas sobre mostras de arte durante esses dias de conflitos mais intensos – dias esses, ressalve-se, que eram os mesmos em que a mostra de Flavio de Carvalho esteve em cartaz, entre 1° e 15 de novembro –, voltando a noticiá-las somente a partir da segunda semana de novembro. Il Secolo d’Italia, por exemplo, começou, a partir de 26 de outubro, a dedicar toda a sua página 3 – página tradicionalmente reservada a artigos que discutiam fatos políticos, artísticos e culturais – aos acontecimentos da Hungria. As revistas semanais de variedades Epoca, Tempo e Settimana INCOM Illustrata, que habitualmente estampavam em suas capas a imagem de alguma mulher em destaque, geralmente atrizes do cinema e do teatro, passaram, a partir de seus números de 4 de novembro, a dedicar esse espaço aos conflitos na Hungria e no Egito, voltando a ilustrar suas capas com mulheres célebres somente nos primeiros números de dezembro. A agitação era tamanha que o articulista Mercurio, do Momento Sera (1956 [3-4 nov.], p. 3), comentou, em sua coluna de 4 de novembro, que “muitos parlamentares” tiveram que “interromper as ‘pequenas férias’ de Todos os Santos e de Finados” para retornar a Roma e acompanhar, “em contínuo contato com os jornalistas, o curso dos acontecimentos”. Os primeiros dias da exposição de Flavio de Carvalho em Roma coincidiram também com o período das eleições americanas, que se realizaram em 6 de novembro, mas que vinham sendo noticiadas desde o final de outubro. Eisenhower concorria à 1956 [1° nov.], p. 1); “Sospeso all’ultimo momento lo sbarco anglo-francese in Egitto?” (PS, 1956 [31 out.-1° nov.], p. 1); “Nel vicino oriente si aggrava la situazione. Bombardamenti anglo-francesi in Egitto. Eisenhower definisce l’attacco un errore. La DC condanna ogni indebito intervento” (Po, 1956 [1° nov.], p. 1); “Come l’imperialismo sovietico quello anglofrancese sparge il sangue dei popoli. Bombe dei “liberatori” sull’Egitto. Il governo Segni ha deluso le speranze arabe” (PI, 1956 [1° nov.], p. 1); “Navi ed aerei inglesi e francesi in azione nella zona del Canale” (Q, 1956 [1° nov.], p. 1); “Bombe sul Cairo. Il drammatico annuncio della Radio egiziana mentre l’azione dei ‘liberatori’ era in corso” (SI, 1956 [1° nov.], p. 1); “Gli anglo-francesi bombardano il Cairo Alessandria Porto Said” (Un, 1956 [1° nov.], p. 1); “Il governo egiziano ignora l’esistenza di sbarchi” (VR, 1956 [1° nov.], p. 1). 7 “Imminente lo sbarco anglo-francese. Nagy denuncia il trattato di Varsavia” (Av, 1956 [2 nov.], p. 1); “Sferrato l’attacco al canale dal Mediterraneo e dal Mar Rosso” (CDN, 1956 [2 nov.], p. 1); “Blocato il Canale di Suez durante le azioni di bombardamento” (GI, 1956 [2 nov.], p. 1); “Da nord e da sud forze navali anglo-francesi si avvicinano alla zona del Canale di Suez” (Me, 1956 [2 nov.], p. 2); “Aerei e navi martellano tutte le basi egiziane” (MS, 1956 [1°-2 nov.], p. 1); “I russi marciano di nuovo su Budapest. La flotta alleata naviga verso l’Egitto” (NGP, 1956 [2 nov.], p. 1); “Israele occupa il Sinai e gli inglesi bombardano e bloccano il Canale. Nagy chiede il ritiro di nuove truppe sovietiche affluite in Ungheria” (Pa, 1956 [2 nov.], p. 1); “Il Cairo nuovamente bombardato” (PS, 1956 [1°-2 nov.], p. 1); “L’Ungheria denuncia il patto di Varsavia e nuove truppe sovietiche affluiscono nel paese” (Po, 1956 [2 nov.], p. 1); “Ventiquattro ore di violenti bombardamenti – Bloccato il Canale di Suez. Ungheria: nuova invasione sovietica” (PI, 1956 [2 nov.], p. 1); “Nuove truppe corazzate sovietiche invadono il territorio ungherese” (Q, 1956 [2 nov.], p. 1); “Truppe sovietiche affluiscono in forze – Occupati tutti gli aeroporti e le regioni orientali – L’Ungheria denuncia il Patto di Varsovia e chiede la protezione dell’ONU. Paracadutisti in azione a Suez” (SI, 1956 [2 nov.], p. 1); “L’Ungheria chiede protezione all’ONU mentre i russi marciano verso Budapest” (Te, 1956 [2 nov.], p. 1); “Morti e feriti fra la popolazione civile per le bombe dei franco-inglesi sul Cairo” (Un, 1956 [2 nov.], p. 1); “L’Assemblea dell’ONU convocata d’urgenza per discutere la grave situazione nel M.O.” (VR, 1956 [2 nov.], p. 1). 116
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reeleição, disputando o cargo com Stevenson. Como ocorre até hoje, o mundo todo estava interessado no resultado desse pleito. Com os conflitos no Egito e, principalmente, na Hungria — de uma forma ou de outra, indireta ou diretamente, ambos os conflitos envolviam a União Soviética —, queria-se saber que posição tomaria o vencedor em relação a essas crises. No dia da eleição, mais de um jornal estampava em sua capa a informação de que Washington opor-se-ia a uma possível intervenção soviética no Egito8. Eisenhower saiu vitorioso e, mesmo tendo as eleições americanas ocorrido no exato dia em que França e Grã-Bretanha retomaram o Canal de Suez, em que os húngaros resistiam lutando bravamente no centro de Budapeste e em que os estudantes oriundos do Vêneto, da Lombardia, do Piemonte, da Ligúria, da Sicília e da Toscana se encontraram com os estudantes romanos no centro da capital italiana para fazer a maior de todas as manifestações contra a barbárie soviética na Hungria, houve jornal que reservou um pedacinho de sua capa, por menor que fosse, para dar a notícia da reeleição do presidente dos Estados Unidos (Cf. IS, 1956 [7 nov.], p. 1; Me, 1956 [7 nov.], p. 1; NGP, 1956 [7 nov.], p. 1; Pa, 1956 [7 nov. e 8 nov.], p. 1; Po, 1956 [7 nov. e 8 nov.], p. 1; Av, 1956 [8 nov.], p. 1; MS, 1956 [7-8 nov.], p. 1; PS, 1956 [7-8 nov.], p. 1; SI, 1956 [8 nov.], p. 1; Te, 1956 [8 nov.], p. 1, VR, 1956 [8 nov.], p. 1). Somados aos acontecimentos mundiais que repercutiam muito vivamente em Roma, ainda ocupavam o espaço dos periódicos os eventos locais. A abertura da mostra de Flavio de Carvalho se deu numa quinta-feira, no início de um longo feriado escolar, que se estenderia até a segunda-feira seguinte. A data 1° de novembro é Dia de Todos os Santos, quando os romanos afluíam em peso às igrejas. O dia seguinte, 2 de novembro, Finados: um dos feriados mais tradicionais da Itália, em que os jornais dedicavam páginas inteiras, com muita ilustração, para mostrar a visitação aos cemitérios. Em Roma, naquele ano, Il Secolo d’Italia (1956 [3 nov.], p. 4) e Momento Sera (1956 [3-4 nov.], p. 4) diziam que meio milhão de pessoas haviam ido ao cemitério de Verano. No domingo, dia 4, outro feriado: comemora-se, na Itália, a vitória das forças armadas italianas em 1918. Em novembro de 1956, a comemoração oficial se realizou defronte do monumento ao Militar Desconhecido, na Piazza Venezia – palco das violentas manifestações estudantis. Naquele ano, foi permitida a entrada da população nos quartéis e promoveu-se uma série de espetáculos artísticos em várias partes de Roma. Naquele mesmo dia, no qual os jornais não registraram manifestações de estudantes na capital italiana, as ruas da cidade foram tomadas por ciclistas: era o dia em que se concluía a “estação ciclista lazial”, quando quatro equipes terminariam seus trajetos com um encontro no mesmo local, no Lungotevere Flaminio. Fora do campo político, diversos eventos culturais movimentavam a cidade. 8 “Washington annuncia che si opporrà con le armi ad un intervento russo nel Medio Oriente” (PI, 1956 [6 nov.], p. 1); “Mosca minaccia l’intervento in Egitto. Washington dichiara che vi si opporrà” (NGP, 1956 [6 nov.], p. 1). Já L’Unità afirmava: “L’URSS propone agli S.U. un’azione comune per porre fine all’aggressione contro l’Egitto” (1956 [6 nov.], p. 1). Italia Sera (1956 [6-7 nov.], p. 1), por sua vez, registrava em sua capa: “Settanta milioni di americani oggi alle urne”. No início de novembro, Momento Sera (1956 [1°-2 nov.]) noticiava na capa: “Eisenhower ha parlato: ‘Errore attaccare l’Egitto’”. Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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No dia anterior à abertura da exposição de Flavio de Carvalho, estreava, no Teatro Quirino, a versão de Vittorio Gassman para o Otelo, de Shakespeare — uma estreia que já vinha sendo anunciada há meses (cf. Sarazini, 1956 [11 ago.], pp. 30-32). A novidade desta montagem estava em que, a cada semana, Vittorio Gassman, que estreou como o personagem-título, trocaria de papel com Salvo Randone, que começou atuando como Iago. Assim, eles desempenhariam alternadamente, numa mesma temporada, os dois papéis masculinos principais. Isso fez com que a peça fosse um dos eventos mais comentados nos jornais e nas revistas. “É uma versão”, dizia Avanti! em sua coluna Domenica in città (1956 [4 nov.], p. 5), “de que todos falam nos últimos dias”. Na estreia, os atores foram ovacionados, “com mais de vinte chamadas” de volta ao palco e, no primeiro dia da troca de papéis, tiveram “muitos aplausos em cena aberta”, como atestou Raul Radice em seus comentários para Il Giornale d’Italia (1956 [2 nov.], p. 5 e 1956 [11 nov.], p. 3, respectivamente)9. Dias antes da estreia do Otelo, na data em que Flavio de Carvalho chegou a Roma, houve a première de gala do filme Guerra e paz, dirigido por King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda e, de novo, Vittorio Gassman. O evento foi exaltado, com muitas fotos, principalmente pelas revistas semanais. A L’Espresso (1956 [4 nov.], p. 13) registrou a presença na sessão do presidente da República Giovanni Gronchi, do primeiro-ministro Antonio Segni, do diretor e dos atores do filme, além de Gina Lollobrigida, Elsa Martinelli, Rossana Podestà, Federico Fellini, entre outros. Outra atração que recebeu destaque na imprensa, apesar dos tumultos mundiais, foi o concerto de Arthur Rubinstein no Teatro Argentina, no dia 4 de novembro, com um programa clássico que ia de Beethoven a Chopin (MS, 1956 [30-31 out.], p. 6; Po, 1956 [1° nov.], p. 5; Po, 1956 [2 nov.], p. 4; Po, 1956 [3 nov.], p. 5; CDN, 1956 [3 nov.], p. 4; Un, 1956 [4 nov.], p. 5; Me, 1956 [5 nov.], p. 3; Pa, 1956 [5 nov.], p. 7; Un, 1956 [5 nov.], p. 2; PS, 1956 [5-6 nov.], p. 6; CON, 1956 [10 nov.], p. 6). Nas semanas em que Flavio de Carvalho esteve em Roma, uma série de celebridades circulou pela cidade, tomando, também elas, os poucos espaços que ainda restavam nos jornais e nas revistas. As cinco primeiras classificadas no concurso de beleza Miss Mundo ganhavam como prêmio uma viagem à Itália. Naquele final de outubro e início de novembro de 1956, em que a grande vencedora foi a Miss Alemanha Petra Schurman, brilharam em fotos-legendas nos jornais e nas revistas a Miss Japão Midoriko Tokura, que desfilou pela Via Appia Antica com um quimono vermelho de flores brancas (EUR, 1956 [4 nov.], p. 61; TI, 1956 [4 nov.], p. 4; Pa, 1956 [26 out.], p. 4), e a Miss Estados Unidos Betty Lane Cherry, que foi assediada por fotógrafos diante da Fontava di Trevi (EUR, 1956 [11 nov.], p. 61; GI, 1956 [4 nov.], p. 9). Em suas edições de 31 de outubro e 1° de novembro, justamente nos dias de maior acirramento dos conflitos húngaro e egípcio, alguns jornais ainda abriram espaço para fotos-legendas anunciando o retorno à Itália de atores e diretores – entre os quais, 9 Testemunho similar deu Aggeo Savioli, para L’Unità, em sua edição de 1° de novembro 1956, p. 3: “O sucesso foi extraordinário, com alguns aplausos em cena aberta, muitas chamadas ao palco no final”. 118
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Nicola De Pirro, Silvana Pampanini, Luigi Zampa, Clelia Matania, Valentina Cortese, Gino Cervi – que haviam participado da Semana do Cinema Italiano em Moscou (PS, 1956 [31 out.-1° nov.], p. 3; Av, 1956 [1° nov.], p. 2). Já nas publicações de 1° e 2 de novembro, as novidades eram a chegada a Roma do ator Steve Cochran, que iria rodar o filme O grito, de Michelangelo Antonioni, e a partida de Ava Gardner, que estivera na cidade para umas férias e que já anunciava seu retorno para breve – o que, de fato, ocorreu apenas alguns dias depois (NGP, 1956 [1° nov.], p. 8; Po, 1956 [1° nov.], p. 5; Te, 1956 [1° nov.], p. 4; PS, 1956 [2-3 nov.], p. 3; Pa, 1956 [9 nov.], p. 4; MS, 1956 [9-10 nov.], p. 3; Pa, 1956 [14 nov.], p. 2). Do meio aristocrático, andavam por Roma o rei e a rainha da Dinamarca, Frederico IX e Ingrid, que assistiram na Catedral de São Pedro a uma missa em homenagem aos mortos na Hungria (cf. EUR, 1956 [11 nov.], p. 60), além do rei da Suécia, Gustavo Adolfo VI e da princesa Margrethe da Dinamarca, que buscavam um pouco de sossego (cf. SII, 1956 [27 out.], p. 55; TI, 1956 [28 out.], p. 12). Uma certa tranquilidade também era perseguida pela rainha Juliana, da Holanda, que estivera em Roma e em outras partes da Itália para refletir se abdicaria ou não do trono em função dos escândalos decorrentes de sua ligação com a curandeira Greet Hofmans (a rainha acreditava que Greet poderia erradicar a cegueira de sua filha Christina), uma indecisão que foi amplamente divulgada pelos periódicos italianos (Te, 1956 [22 out.], p. 9; MS, 1956 [31 out.-1° nov.], p. 2; MS, 1956 [1°-2 nov.], p. 3; Q, 1956 [2 nov.], p. 5; SII, 1956 [3 nov.], p. 2; CDN, 1956 [2 nov.], p. 2; Q, 1956 [8 nov.], p. 5; IS, 1956 [9-10 nov.], p. 2; MS, 1956 [9-10 nov.], p. 2; PS, 1956 [9-10 nov.], p. 2; CDN, 1956 [10 nov.], p. 4; TI, 1956 [4 nov.], p. 12; MS, 1956 [12-13 nov.], p. 9). Era com tudo isso que a exposição de Flavio de Carvalho competia e com mais oitenta mostras individuais e catorze coletivas, espalhadas em 39 galerias e instituições de arte romanas. Em 1° de novembro, o jornal Il Messaggero (1956, p. 3) observava, em sua coluna Mostre d’arte, que, “atualmente em Roma, foram abertas 21 mostras individuais” e, portanto, em função disso, seria “impossível falar dos méritos e tendências de cada um dos expostos”. Na própria Galleria L’Obelisco, a concorrência era grande. A mostra de Flavio de Carvalho aconteceu depois de uma exposição de obras de Alexei von Jawlenski, Vassíli Kandinski, Paul Klee, Franz Marc e Marianne von Werefkin, e antes da individual de um jovem artista italiano que era muito prestigiado na época, Renzo Vespignani, cujas paisagens das periferias de Roma eram elogiadas na apresentação assinada por Pier Paolo Pasolini (Pasolini, 2008, pp. 651-653)10. Entre as coletivas em cartaz, estava a célebre A família do homem, com curadoria de Edward Steichen, reunindo 503 fotografias de 68 países, que já haviam sido exibidas nos Estados Unidos, na Guatemala, no México, na Índia, na Alemanha, na Birmânia, na 10 Nas três matérias que o jornal Avanti! dedicou às mostras de arte entre o período de 21 de outubro a 18 de novembro de 1956, as duas maiores delas foram sobre as exposições da Obelisco que aconteceram antes e depois da individual de Flavio de Carvalho. A de 21 de outubro (p. 5) destacava as obras de Jawlenski, Kandinski, Klee, Marc e Werefkin, e caracterizava o evento como “uma mostra de exceção”; a de 18 de novembro falava das paisagens de Vespignani e não deixava de citar que o texto de apresentação era de Pasolini. A outra matéria era, na verdade, uma nota registrando a realização em Roma das exposições da holandesa Karin van Leyden, do colombiano Enrique Grau e do italiano Aldo Natili ([11 nov.], p. 5). Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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França, nos Países Baixos, no Japão, na Bélgica e na Grã-Bretanha. Entre as exposições individuais, havia aquelas de artistas estrangeiros, como os badalados na Roma daquele período Veikko Aaltona (finlandês), Karin van Leyden (holandesa), Enrique Grau (colombiano), Muxart e Pastor (ambos espanhóis), Zarko Simat (argentino de origem croata) e Gerard Wagner (alemão que fazia sua primeira mostra individual na Itália). Também havia as dos italianos, entre os quais se destacavam, em meio a inúmeros outros, Mirko e Carlo Quaglia, sobre quem Giuseppe Ungaretti já escrevera, Franco Gentilini, sobre quem Alberto Moravia já produzira um texto para um catálogo da própria Obelisco, Fausto Pirandello, que tinha catálogo com crítica assinada por Lionello Venturi e cujo vernissage foi transmitido pela televisão (PS, 1956 [9-10 nov.], p. 5), e Renato Mariani, cuja exposição, aberta no mesmo dia da de Flavio de Carvalho, foi prorrogada devido à grande afluência de público (Pa, 1956 [10 nov.], p. 5). Mesmo com esse excesso de acontecimentos e atrações em Roma, encontrei, em minhas pesquisas na Itália, treze menções à exposição de Flavio de Carvalho nos jornais e nas revistas daquele período, desde críticas até notas e registros em colunas sociais e roteiros de artes plásticas. O maior texto publicado foi o de Luciano Budigna, crítico milanês de certo prestígio na época, que, depois de exaltar o caráter multifacetado de Flavio de Carvalho11, se pôs a examinar elogiosamente as obras: A pintura de Carvalho pode, na verdade, parecer a todos, à primeira vista, “fácil”, um precioso jogo de invenções cromáticas e compositivas, a desenvolta expressão de um estro criativo entregue a impulsos indiscriminados; mas, pelo contrário, olhando bem, quanto empenho artístico e, mais, moral (a moral liberta do poeta, melhor dizendo), quanto rigor e vontade de síntese e tensão para o inexprimível encerram em si quadros que, já no título, alertam, a quem quer e pode compreender, para seus pesos de inteligência, de humanidade, de poesia: Presença perpétua do tempo, Velame do destino, Paisagem mental, Paisagem interior, para citar apenas os mais explícitos (Budigna, 1956, p. 73).
Lorenza Trucchi, em sua crítica para a Fiera Letteraria, mostra-se encantada com os desenhos de Flavio: “Mais interessantes, pelo ritmo e pela destreza compositiva, alguns grandes desenhos que lembram a agilidade barroca de Eugène Berman e revelam a profunda preparação cultural do pintor brasileiro” (Truchi, 1956, p. 7). Mesmo quando a exposição é comentada em pequenas notas, o que se leem são breves elogios ao trabalho de Flavio de Carvalho. Na Eco di Roma (1956 [nov.-dez.], p. 22), dizia-se: “Carvalho suscita admiração pelas suas estranhas expressões cromáticas, de um ritmo inusitado, navegando mesmo num surrealismo que parece brotar de visões 11 Escreve Budigna: “jornalista político, historiógrafo (o seu volume Ossos do mundo oferece, à luz de uma nova teoria histórica, desconcertantes soluções), homem de teatro (diria-se por alguns anos o maior Teatro Experimental do Brasil), arquiteto, engenheiro, além de pintor, escultor, cenógrafo (os seus cenários para o balé A cangaceira de Aurel Millos, realizados há mais ou menos dois anos, tiveram ressonância internacional). (Budigna, 1956, p. 73.) 120
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de sonho”. Em Il Popolo Italiano, Giuseppe Pensabene (1956, p. 4) ponderou: “Tudo é ajustado e composto na sua pintura. Planos de cor justapostos em composições que a mente pode seguir com clareza. Os contrastes vivos do colorismo moderno vistos com um destaque intelectual”. Além das críticas e das notas, os jornais também divulgaram, em suas colunas sociais, a lista das personalidades que estiveram presentes no vernissage de Flavio de Carvalho. Passaram pela Galleria L’Obelisco, entre outros, a atriz hindu Kamala Devi, as atrizes Leda Roffi e Mitzi Roman, os escritores Ignazio Silone e Anna Garofalo, os artistas plásticos Paolo Weiss, que também estava com mostra em cartaz à época, Lorenzo Indrimi, Renzo Vespignani e Franco Minei, os críticos de arte Lorenza Trucchi e Michele Biancale, e também Aurel Miloss, que coreografou, em 1954, em São Paulo, o bailado A cangaceira, para o qual Flavio de Carvalho desenhou os cenários e os figurinos. Só não aparecem na lista Ungaretti e Moravia, os quais, lembremos, haviam convidado Flavio de Carvalho — segundo o próprio, frise-se — a desfilar com o New Look pelas ruas de Roma. É certo que tanto Ungaretti quanto Moravia estavam envolvidos com outros assuntos mais prementes: seus nomes figuravam no manifesto redigido pelos intelectuais de esquerda condenando “a injustificada agressão” da União Soviética contra o povo húngaro, que circulou nos jornais romanos entre os dias 8 e 13 de novembro (Av, 1956 [8 nov.], p. 2; Me, 1956 [8 nov.], p. 3; NGP, 1956 [8 nov.], p. 7; Po, 1956 [8 de nov.], p. 2; VR, 1956 [9 nov.], p. 3; ES, 1956 [11 nov. 1956], p. 2; IS, 1956 [12-13 nov.], p. 3). Nos arquivos históricos destes escritores, tampouco há referências à estada de Flavio de Carvalho em Roma em 195612. Nem mesmo num texto de Ungaretti, encontrado entre seus datiloscritos, sobre pintores brasileiros, em que diz que destacará apenas os artistas plásticos que “conheceu pessoalmente”, há menção a Flavio de Carvalho, somente a Livio Abramo, Portinari, Segall, Volpi e Di Cavalcanti (Ungaretti, s/d.). Sobre o New Look, especificamente, nada foi dito, pelo menos no âmbito público da imprensa local, embora Flavio de Carvalho o tenha, de fato, usado em Roma pelo menos em uma ocasião: durante a abertura de sua exposição, como comprova a fotografia publicada na capa da Folha da Tarde de 17 de novembro de 1956 (p. 1), que mostra o artista, vestindo a roupa, ao lado de Kamala Devi nas dependências da Galleria L’Obelisco13. Quicá faça alusão ao traje extravagante a maldadezinha publicada na coluna social do Momento Sera (1956 [16-17 nov.], p. 5), jornal cujo crítico de arte, Michele Biancale, esteve no vernissage da exposição, mas não lhe deu sequer uma nota: Ainda por poucos dias, na Galleria L’Obelisco, os quadros do pintor 12 No Fondo Alberto Moravia, fui informada de que o escritor não tinha o hábito de guardar cartas e documentos. Por essa razão, seu arquivo não dispõe de muitas informações desse tipo. Mas não acontece o mesmo com o Fondo Giuseppe Ungaretti, que se compõe de um rico acervo de documentos, datiloscritos, recortes de jornais e outros documentos pessoais do poeta. Lá, encontra-se um recorte do jornal O Estado de S. Paulo, de 21 de agosto de 1966, em que Ungaretti aparece, numa fotografia, ao lado de Flavio de Carvalho num jantar oferecido por este último em sua casa. 13 Quando estive desenvolvendo a pesquisa na Itália, mostrei essa fotografia para Jaja Indrimi, diretora da sede de La Centrale dell’Arte em Roma e responsável pela aquisição dos arquivos da Galleria L’Obelisco e de Irene Brin para aquela instituição. Jaja frequentava a L’Obelisco e imediatamente reconheceu a galeria na fotografia citada. Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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sul-americano Flavio de Carvalho. Entretanto, enquanto circula o dito segundo o qual “A Carvalho dado não se olha os dentes…” [A Carvalho donato, non si guarda in bocca…], vem anunciada a individual de Renzo Vespignani que terá, nesta mesma noite, o seu vernissage.
O silêncio dos jornais e das revistas italianas em relação ao New Look de Flavio de Carvalho pode, por um lado, muito provavelmente, ter vinculação com o sobrepujamento de eventos políticos, sociais e culturais que consumiram os espaços dos periódicos. Por outro, esse silêncio pode estar relacionado com o próprio modo como os romanos recebiam as novidades. O editorial da Settimana INCOM Illustrata de 3 de novembro de 1956 (p. 2), ao comentar a chegada “no mesmo dia” de três “personagens” que vinham sendo anunciados com certo estardalhaço — o rock and roll, a rainha Juliana e o pianista Liberace —, observou que os três tiveram “uma sorte comum”: “os romanos não se deram conta deles”. “Não que não tenhamos lotado os cinemas onde se projetava o filme”, explica o texto em alusão a Rock Around the Clock (filme que divulgou o ritmo ao redor do globo, em tumultuadas sessões), “mas o ritmo endiabrado do rock and roll os deixou [aos romanos] completamente indiferentes”. E presume: “Consequência do ceticismo imperturbável com o qual os romanos costumam, desde tempos muito remotos, ver homens e coisas?” Quanto à rainha Juliana e ao pianista Liberace, reforçava a revista, “a indiferença do público foi completa”, embora, no caso da primeira, que havia procurado a Itália para descansar, não saiu de lá totalmente satisfeita — lembremos que os jornais a perturbaram com o tema da sua possível abdicação. Liberace, “também ele vindo, dito por ele mesmo, ao nosso país em busca de repouso e tranquilidade, para fugir dos gritos e dos abraços dos londrinos, mas todavia, no seu íntimo, desejoso de ser pelo menos reconhecido se não festejado”, também não partiu de todo contente: A desilusão para o sorridente Liberace foi violenta. Não encontrou, em torno de si, em Ciampino e no hotel, mais que alguns fotógrafos e, na Fontana di Trevi, os vendedores de souvenirs de Rome. Mas a minha celebridade? era a pergunta que se lia em seus olhos perdidos. A sua celebridade era dissolvida ao sol do outubro romano, não valeu para reavivá-la um paletó xadrez amarelo e verde e nem mesmo um vistoso foulard no pescoço14.
O texto terminava afirmando que, ao acolher o rock and roll, a rainha Juliana e Liberace dessa maneira, “o nosso público deu prova de uma exemplar sabedoria”: 14 O jornal Avanti! de 28 de outubro de 1956 (p. 3) publicou também um texto, assinado por Franco Morigi, falando da pouca atenção que Liberace recebeu da população em Roma: “Contudo, apesar do dinheiro, apesar das milhares de admiradoras que desmaiam por ele e beijam a carroceria de seu carro, Valentino Liberace teve uma preocupação. É aquela da absoluta, total indiferença com a qual foi recebido na Itália. Nenhuma garota que tenha lhe pedido um autógrafo, nenhum gritinho de admiração. Nada. Circulou por Roma como um turista qualquer, em companhia da senhora Frances transformada, finalmente, numa mãe qualquer. Parece que no seu ingresso no nosso país, em tantas coisas tão desprovido e provinciano, Liberace se voltou a um dos tantos fotoreporters que estacionam no aeroporto, dizendo-lhe: ‘Estou em busca de um lugar onde ninguém me conheça’. ‘Encontrou-o’, foi a resposta.” 122
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quanto à rainha da Holanda, respeitou “o drama silencioso de uma rainha e de uma mãe”; quanto ao rock and roll, “revelou que não basta um ritmo frenético para obrigar os espectadores a saltar da poltrona e a lançar-se pelas ruas a repetir os movimentos vistos pouco antes na tela”; quanto, por fim, a Liberace,
mostrou, no caso do artista famoso, para além de seus méritos, que as modas de além-Mancha não encontram automaticamente cidadania na península e que, se um pianista quer ser aplaudido, deve primeiro colocar-se diante do teclado, e depois se verá.
Roma era, portanto, ainda uma cidade conservadora. Lembremos que, no início da década de 1950, segundo relata Miriam Mafai (2002, p. 10), um jovem deputado democrata-cristão, num restaurante romano, à vista de uma senhora vistosamente decotada, convidou-a, com modos bruscos, a se cobrir (a senhora era francesa, o homem que a acompanhava reagiu, o deputado democrata-cristão era Oscar Luigi Scalfaro, futuro presidente da República).
Era também a cidade que, em 1950, censurara uma mostra de Picasso sob a alegação de obscenidade (Mafai, 2002, p. 10) e que, em termos artísticos, ainda se detinha na velha questão da figuração versus abstração – uma discussão que, no Brasil, ocorrera quase dez anos antes. Não espanta que, nessa Roma de novembro de 1956, o New Look de Flavio de Carvalho não tivesse conquistado a dimensão pública que conquistou no Brasil, onde, não esqueçamos, “o fabuloso Flavio de Carvalho”, uma figura amplamente conhecida, voltava sempre “a ser manchete de jornais e revistas, apesar de Suez, Hungria, Polônia, Adhemar, Janio e Arrelia…” (OD, 1956 [28 out.], p. 11). Retorno ao Brasil Amparados apenas no relato fornecido pelo próprio Flavio de Carvalho, os jornais brasileiros ajudaram a formar uma versão absolutamente exitosa da apresentação do New Look em Roma. Tão logo Flavio de Carvalho desembarcou em São Paulo, a Folha da Tarde publicou a foto-legenda do artista, ostentando o seu traje, ao lado de Kamala Devi na Galleria L’Obelisco. O texto afirmava que Flavio de Carvalho estava “despertando grande curiosidade, principalmente nos meios intelectuais, pelo traje que idealizou com o objetivo de revolucionar a moda masculina”. Acrescentava ainda que, segundo o próprio Flavio, “o jurista Tullio Ascarelli, o embaixador do Brasil, sr. Alencastro Guimarães, o poeta Giuseppe Ungaretti e o romancista Alberto Moravia aprovaram entusiasticamente o New Look” (FT, 1956 [17 nov.], p. 1). Passado algum tempo, em entrevista concedida em fevereiro de 1957, Flavio de Carvalho contou ao Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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repórter Audálio Dantas (1957, p. 10), da Folha da Noite, que o New Look, apresentado em “exibições íntimas”, entusiasmou muitos intelectuais e que “até se falou numa passeata pelas ruas”. No entanto, explicou Flavio, essa passeata não foi possível em função do frio. Dantas, ao insistir sobre como seria a recepção do traje se desfilado pelas ruas, ouviu de Flavio de Carvalho quase que uma confissão daquilo que, de fato, se passou: “Talvez não despertasse interesse, pois a opinião pública estava inteiramente voltada para os acontecimentos de Suez e da Hungria”. No fim das contas, porém, depois que Flavio de Carvalho retornou ao Brasil, não realizou o proclamado “desfile monstro” com duzentos modelos em São Paulo, nem desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro e de Paris com seu New Look. E, ao ser indagado por Dantas (1957, p. 10) se iria usar o traje naqueles dias de calor, em pleno verão (era início de fevereiro), Flavio respondeu-lhe que não, porque estava “sozinho, por enquanto” e não queria “ser alvo de curiosidade”.
Re fe r ê n c i as b ib liográficas Abreviaturas utilizadas: Av: Avanti! CDN: Corriere della Nazione CON: Il Contemporaneo CP: Correio Popular DP: Diário Popular DSP: Diário de S. Paulo ES: L’Espresso EUR: L’Europeo FM: Folha da Manhã FT: Folha da Tarde GI: Il Giornale d’Italia IS: Italia Sera Me: Il Messaggero MS: Momento Sera NGP: Nuova Gazzetta del Popolo OD: O Dia Pa: Il Paese PI: Il Popolo Italiano Po: Il Popolo PS: Paese Sera Q: Il Quotidiano SI: Il Secolo d’Italia SII: Setimana INCOM Illustrata Te: Il Tempo TI: Tribuna Illustrata Un: L’Unità VR: La Voce Repubblicana 400 aerei anglo-francesi appoggiano lo sbarco in Egitto. In: Momento Sera, Roma, 31 out.-1° nov. 1956, p. 1. L’abdicazione di Giuliana d’Olanda sarebbe stata decisa a Taormina. In: Momento Sera, Roma, 9-10 nov. 1956, p. 2. Aerei e navi martellano tutte le basi egiziane. In: Momento Sera, Roma, 1º-2 nov. 1956, p. 1. 124
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Aerei inglesi e francesi bombardano le zone strategiche del Canale di Suez. In: Nuova Gazzetta del Popolo, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Gli aeroporti egizinai bombardati ieri da apparecchi britannici a reazioni. In: Il Messaggero, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Agenti e studenti feriti nelle manifestazioni organizzate dai dirigenti fascisti. In: Avanti!, Roma, 31 out. 1956, p. 4. Gli alleati hanno iniziato alle 17,40 l’offensiva bombardando basi militari del canale di Suez. In: Corriere della Nazione, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Altri incidenti a Roma in manifestazioni di piazza. In: Nuova Gazzetta del Popolo, Turim, 1° nov. 1956, p. 7. Anche ieri gli studenti nelle piazze per protestare contro il marxismo assassino. In: Il Secolo d’Italia, Roma, 1° nov. 1956, p. 5. Gli anglo-francesi bombardano il Cairo Alessandria Porto Said. In: L’Unità, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. ARGAN, Giulio Carlo. Roma interrompida. In: História da arte como história da cidade, trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Arrivi a Roma. In: Settimana INCOM Illustrata, Roma, 3 nov. 1956, p. 2. [Arthur Rubinstein]. In: Il Contemporaneo, Roma, 10 nov. 1956, p. 6. [Arthur Rubinstein]. In: Il Messaggero, Roma, 5 nov. 1956, p. 3. [Arthur Rubinstein]. In: Momento Sera, Roma, 30-31 out. 1956, p. 6. [Arthur Rubinstein]. In: Il Paese, Roma, 5 nov. 1956, p. 7. [Arthur Rubinstein]. In: Paese Sera, Roma, 5-6 nov. 1956, p. 6. [Arthur Rubinstein]. In: Il Popolo, Roma, 1° nov. 1956, p. 5. [Arthur Rubinstein]. In: Il Popolo, Roma, 2 nov. 1956, p. 4. [Arthur Rubinstein]. In: Il Popolo, Roma, 3 nov. 1956, p. 5. L’Assemblea dell’ONU convocata d’urgenza per discutere la grave situazione nel M.O. In: La Voce Repubblicana, Roma, 2 nov. 1956, p. 1. Assicurata la rielezione Eisenhower. In: Nuova Gazzetta del Popolo, Turim, 7 nov. 1956, p. 1. Gli autori e i libri. In: Italia Sera, Roma, 12-13 nov. 1956, p. 3. Ava a Roma. In: Momento Sera, Roma, 9-10 nov. 1956, p. 3. Blocato il Canale di Suez durante le azioni di bombardamento. In: Il Giornale d’Italia, Roma, 2 nov. 1956, p. 1. Bombe sul Cairo. Il drammatico annuncio della Radio egiziana mentre l’azione dei “liberatori” era in corso. In: Il Secolo d’Italia, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. BUCARELLI, Palma. Presentazione. In: Mostra di Pittura Brasiliana Contemporanea. Novembre-Dicembre 1954. Roma: Soprintendenza alla Galleria Nacionale d’Arte Moderna, 1954, pp. 7-10. BUDIGNA, Luciano. I luminosi paesaggi del pittore Quaglia. In: Settimana INCOM Illustrata, Roma, 20 out. 1956, p. 67. ______. Pittura e disegni di Flavio de Carvalho. In: Settimana INCOM Illustrata, Roma, 17 nov. 1956, p. 73. ______. Le testimonianze di Franco Gentilini. In: Settimana INCOM Illustrata, Roma, 27 out. 1956, p. 67. Il Cairo nuovamente bombardato. In: Paese Sera, Roma, 1º-2 nov. 1956, p. 1. Cariche della polizia in piazza Venezia mentre la gioventù missina inneggia all’Ungheria. In: Il Secolo d’Italia, Roma, 31 out. 1956, p. 4. CARVALHO, Flavio de. A moda e o novo homem. São Paulo: SESC/SENAC, 1992. ______. Os ossos do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005. CELANT, Germano (org.). The Italian Metamorphosis, 1943-1968. Nova York: The Solomon R. Guggenheim Foundation, 1994. Centocinquanta studenti fermati. Giulio Caradonna è stato arrestato. In: Il Popolo Italiano, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Che fanno. In: L’Europeo, Milão, a. XII, n. 45, 4 nov. 1956, pp. 60-61. Che fanno. In: L’Europeo, Milão, a. XII, n. 46, 11 nov. 1956, pp. 60-61. Cinema di 7 giorni. In: Il Popolo, Roma, 1° nov. 1956, p. 5. Come l’imperialismo sovietico quello anglo-francese sparge il sangue dei popoli. Bombe dei “liberatori” sull’Egitto. Il governo Segni ha deluso le speranze arabe. In: Il Popolo Italiano, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Continua a provocar aplausos e vaias a roupa do futuro… In: O Dia, São Paulo, 28 out. 1956, p. 11. Continuata l’offerta di sangue per i feriti nei moti d’Ungheria. In: Il Messaggero, Roma, 4 nov. 1956, p. 5. Contro il marxismo assassino tutta la gioventù sulle piazze. In: Il Secolo d’Italia, Roma, 31 out. 1956, p. 2. Cronaca di Roma [Arthur Rubinstein]. In: Corriere della Nazione, Roma, 3 nov. 1956, p. 4. Cronaca di Roma [Ava Gardner]. In: Il Paese, Roma, 9 nov. 1956, p. 4. Cronaca di Roma [Giorno dei Morti]. In: Momento Sera, Roma, 3-4 nov. 1956, p. 4. Cronaca di Roma [Giorno dei Morti]. In: Il Secolo d’Italia, Roma, 3 nov. 1956, p. 4.
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Cronaca di Roma [Miss Giapone]. In: Il Paese, Roma, 26 out. 1956, p. 4. DAHER, Luiz Carlos. Flavio de Carvalho: Arquitetura e Expressionismo. São Paulo: Projeto, 1982. ______. Flavio de Carvalho e a volúpia da forma. São Paulo: M.W.M. Motores Diesel, 1984. Da nord e da sud forze navali anglo-francesi si avvicinano alla zona del Canale di Suez. In: Il Messaggero, Roma, 2 nov. 1956, p. 2. DANTAS, Audálio. Flavio de Carvalho exibiu o “New Look” para os intelectuais de Roma e de Paris. In: Folha da Noite, São Paulo, 4 fev. 1957, p. 10. De calção e blusa Flavio de Carvalho surpreendeu a cidade com o seu “New Look”. In: Correio Popular, São Paulo, 19 out. 1956, p. 1 Domenica in città. In: Avanti!, Roma, 4 nov. 1956, p. 5. Drammatico appello agli ungheresi di Nagy che promette riforme democrazia e indipendenza. In: Avanti!, Roma, 26 out. 1956, p. 1. Eisenhower è rieletto. In: Il Paese, Roma, 8 nov. 1956, p. 1. Eisenhower ha parlato: “Errore attaccare l’Egitto”. In: Momento Sera, Roma, 1°-2 nov. 1956, p. 1. Eisenhower presidente degli Stati Uniti. In: Paese Sera, Roma, 7-8 nov., p. 1. Eisenhower rieletto con grande maggioranza. In: Momento Sera, Roma, 7-8 nov. 1956, p. 1. Eisenhower rieletto presidente degli Stati Uniti. In: Il Popolo, Roma, 7 nov. 1956, p. 1. Eisenhower vince. In Il Paese, 7 nov. 1956, p. 1. Exposição Flavio de Carvalho: 17a Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. Fatti della settimana. In: Tribuna Illustrata, Roma, 4 nov. 1956, p. 4. [Fausto Pirandello]. In: Paese Sera, Roma, 9-10 nov.1956, p. 5. Flavio de Carvalho. Roma: L’Obelisco, 1956. Flavio de Carvalho lança a moda na Itália. In: Folha da Tarde, São Paulo, 17 nov. 1956, p. 1. Flavio de Carvalho lançou ontem o revolucionário “traje do futuro”. In: Folha da Manhã, São Paulo, 19 out. 1956, p. 1. Flavio de Carvalho segue para a Europa onde apresentará o “traje do futuro”. In: Folha da Tarde, São Paulo, 25 out. 1956, p. 1. La foto del giorno. In: L’Unità, Roma, 3 nov. 1956, p. 4. Funzionari di P.S. malmenati a Piazza Venezia. Dodici facinorosi denunciati a piede libero. In: L’Unità, Roma, 31 out. 1956, p. 5. Galleria L’Obelisco. In: Eco di Roma, Roma, nov.-dez. 1956, p. 22. Le gallerie. In: Avanti!, Roma, 11 nov. 1956, p. 5. Os gatos de Roma (I a XXIV). In: Diário de S. Paulo, São Paulo, 6 jan.-30 jun. 1957. Giuliana d’Olanda. In: Il Quotidiano, Roma, 2 nov. 1956, p. 5. Giuliana d’Olanda abdicherà? In: Paese Sera, Roma, 9-10 nov. 1956, p. 2. Giuliana d’Olanda a Sicilia. In: Corriere della Nazione, Roma, 2 nov. 1956, p. 2. Giuliana d’Olanda a Taormina. In: Momento Sera, Roma, 1°-2 nov. 1956, p. 3. Giuliana d’Olanda a Taormina. In: Il Quotidiano, Roma, 8 nov. 1956, p. 5. Giuliana d’Olanda con la figlia a Taormina per un periodo di riposo. In: Il Tempo, Roma, 22 out. 1956, p. 9. Giuliana d’Olanda è tornata a casa. In: Momento Sera, Roma, 12-13 nov. 1956, p. 9. Giuliana d’Olanda non abdicherà. In: Corriere della Nazione, Roma, 10 nov. 1956, p. 4. Giuliana d’Olanda non abdicherà. In: Italia Sera, Roma, 9-10 nov. 1956, p. 2. Giuliana d’Olanda visita tutta la Sicilia. In: Momento Sera, Roma, 31 out.-1° nov. 1956, p. 2. Giulio Caradonna ed altri 4 fascisti arrestati durante gli incidenti di ieri. In: Il Paese, Roma, 1° nov. 1956, p. 4. Il governo egiziano ignora l’esistenza di sbarchi. In: La Voce Repubblicana, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Guerra às calças compridas. In: Diário Popular, São Paulo, 19 out. 1956, p. 3. Guerra e Pace. In: L’Espresso, Roma, a. II, n. 45, 4 nov. 1956, p. 13. Immediati passi per ristabilire la pace di Eisenhower rieletto presidente. In: Il Popolo, 8 nov. 1956, p. 1. Imminente lo sbarco anglo-francese. Nagy denuncia il trattato di Varsavia. In: Avanti!, Roma, 2 nov. 1956, p. 1. In corso l’occupazione del canale di Suez. L’Egitto ha respinto l’intimazione mentre Israele ha accettato – Gli scontri fra truppe corazzate nel Sinai sono continuati tutta la notte. In: Il Giornale d’Italia, Roma, 1° nov. 1956, p. 1. Indiscriminati arresti e cariche della “Celere” contro i giovani manifestanti per l’Ungheria. In: Il Popolo Italiano, Roma, 1° nov. 1956, p. 4. Iniziato alle 18,30 di ieri l’attacco della Francia e dell’Inghilterra all’Egitto. L’aviazione franco-inglese bombarda le principali città egiziane. L’Assemblea generale dell’O.N.U. convocata in sessione straordinaria. In: Il Paese,
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Flavio de Carvalho: experiências romanas | Veronica Stigger
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