Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

April 27, 2017 | Author: rodrigomascote | Category: N/A
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Lupi Qual o alcance - e quais os limites - da incorporate da linguagem, seu papel, sens fimdamentos teoricos, suas dimensoes epistemologicas, metodologicas e politicas nas Ciencias Socials? Se. por um lado, e notorio o interesse despertado pela linguagem e suas implicacoes nas ciencias, por outro lado. falta estabelecer um consenso sobre essas questoes. A abordagem des descortina ao lei tor as perspectivas do debate e a crfticas que import a fazer a Analise do Discurso. somente conhecer os procedimenlos basicos desse t de analise, mas tamhem evitar os jargoes, as imposi ou os dogmatismos, respeitando a pluralidade de de vista, de modo que a significalivo no processo de constioigao da realidad*

www.vozes.com.br

EDITORA VOZES

DlSCURS IENCIA SOCIAIS

ISBN 85.326.3004-9

Uma vlda pelo bom livro [email protected]

9l|788532l'630049

•EDITORA

VOZES

Este livro tern a intensao de oferecer aos leitores e leitoras que se queiram familiarizar com o debate sobre o papel da linguagem nas ciencias sociais uma introdugao a Analise do Discurso como perspectiva teorico-metodologica e como ferramenta de investigacao. E interessante apontar sumanamente o contexto historico e disciplinar no qual este livro foi escrito: a interface (ou lugar de encontro) da filosofia, da psicologia social, da ciencia social critica, dos estudos do discurso e da lingiiistica, da etnologia e da analise da conversasao. Com tal enfoque, este manual representa uma relevante contribuicao para uma visao critica e discursiva da psicologia social e para uma analise aprofundada da sociedade com seus problemas fundamentals sociais, politicos e economicos, permeados, muitas vezes, pela reconstrugao ideologica da realidade cotidiana com consequentes praticas de domina9ao e exclusao.

MANUAL DE ANALISE DO DISCURSO EM CIENCIAS SOCIAIS

Lupicinio Iniguez (coord.) A800MM BBAMDW DE DfrESGS *B*OOUfKOI

MANUAL DE ANALISE DO DISCURSO EM CIENCIAS SOCIAIS Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne Manual de analise do discurso em ciencias sociais / Lupicinio Iniguez (coordenador); tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne. - Petropolis, RJ : Vozes, 2004. 2 a Edicao

ISBN 85.326.3004-9 Varios autores. Titulo original: Analises del discurso : manual para las ciencias sociales 1. Analise do discurso 2. Ciencias sociais linguagem I. Iniguez, Lupicinio. 04-1631

EDITORA VOZES

CDD-401.41

indices para catalogo sistematico: 1. Analise do discurso : Linguagem e comunicacao : Linguistica 401.41

Petropolis 2005

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© 2004, Editora Vozes Ltda. Rtia Frei Luis, 100 25689-900 Petropolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podera ser reproduzida ou transrmtida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotocopia e gravacao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissao escrita da Editora.

Sumario er

Pi

Prefdcio - O giro discursive (Teun A.^van Dijk)

7

In

Introducdo

15

1.

1. O "giro linguistico" (Tomas Ibanez Gracia)

19

2.

col

2. A linguagem nas ciencias sociais: fundamentos, conceitos e modelos (Lupicinio Iniguez)

50

3. tra

3. A analise do discurso nas ciencias sociais: variedades, tradi9oes e praticas (Lupicinio Iniguez) 105

4. so

4. A analise da conversa9ao e o estudo da interapao social (Charles Antaki e Felix Diaz) 161

5.

5. Psicologia discursiva: unindo teoria e metodo com um exemplo (Derek Edwards) 181

6. ex;

6. A fronteira interior — analise critica do discurso: um exemplo sobre "racismo" (Luiza Martin Rojo) 206

II

7. Praticas discursivas como estrategias de governamentalidade: a linguagem dos riscos em documentos de dominio publico (Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon) 258

Editoragao e org. literdria: Fernando Sergio Olivetti da Rocha

ISBN 85.326.3004-9

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 - Petropolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 Caixa Postal 90023 - Tel.: (24) 2233-9000 Fax: (24) 2231-4676

Glossdrio geral

304

Prefacio 0 giro discursive Teun A. van Dijk*

livro, apresentado por importantes psicologos soNeste ciais da Universidade Autonoma de Barcelona, ofere-

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ce-se aos estudantes uma excelente introducao ao estudo do discurso. Em muitos aspectos, o "giro linguistico", iniciado na filosofia e nas ciencias socials ha varias decadas, poderia, hoje em dia, ser chamado de "giro discursivo" dado o atual^e crescente interesse no estudo das forr mas do uso da linguagem e de conversagoes e textos, que vem substituindo o estudo do sistema abstrato ou da gramatica de um idioma.

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Enquanto o estudo da gramatica independente do texto que, em um determinado momento, era proeminente, passou a se restringir quase que totalmente a uma pequena area da linguistica, vemos que nao so as demais areas dessa disciplina como tambem a maioria das outras disci7 plinas nas humanidades e nas ciencias socials se voltaram para os problemas fascinantes do texto e da conversacao em interagao, cognigao, contexto social ou cultura. As contribuigoes para este livro apresentam um retrato tanto historico quanto sistematico desse desenvolvimen-

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* Universidade Pompeu Fabra. Barcelona, Espanha. i...

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Teun A. van Dijk to tao estimulante que comegou mais ou menos na mesma epoca, e muitas vezes de forma independente, entre 1964 e 1974, na antropologia, na sociologia, na psicologia e na linguistica. Assim, para a linguistica, o giro foi de estruturas sintaticas abstratas de frases isoladas para o uso da linguagem, texto; conversagao, atos discursivos, interagoes e cognigao. Para a filosofia e muitas das ciencias sociais, como tambem e mostrado neste livro, o giro foi ainda mais radical, ou seja, na diregao da linguagem em geral. Na decada de 1960 isso significou, primordialmente, que os cientistas sociais precisaram aprender o basico das gramaticas formais, que eram entao a unica linguistica disponivel. No entanto, vemos que essas travessias de fronteiras disciplinares em varias diregoes levaram logo a um interesse generalizado na linguagem em uso, ou seja, na linguagem usada pelos seus verdadeiros usuarios em situagoes sociais reais e em formas reais de interagao, em um discurso que "ocorria naturalmente". E esse esforgo geral e transf ~disciplinar que e agora chamado de "analise do discurso" embora o termo mais geral "estudos do discurso" talvez seja . mais apropriado, ja que ele inclui nao somente a "analise" , propriamente dita, mas tambem "teorias", aplicagoes, criticas e outras dimensoes da investigagao academica. Desde o inicio, a psicologia foi uma das disciplinasmae dos estudos do discurso. Ja no comego do seculo XX, o famoso F.C. Bartlett buscava descobrir como e que as pessoas decoram historias e, no livro que escreveu pouco mais tarde, Remembering (1932), explicou que as pessoas leem, compreendem e decoram historias em tennos da narrativa e de outros esquemas de conhecimento de sua propria cultura. Muitos anos mais tarde, e apos a derrota do behaviorismo por uma critica devastadora de Chomsky sobre a visao behaviorista da linguagem e do aprendizado da linguagem segundo Skinner, foi essa ideia basica de Bartlett

Prefacio

que viria a ser uma das pedras fundamentals da revolugao cognitiva. Assim, a partir da metade da decada de 1970, um campo muito vasto e bem-sucedido do estudo cognitivo-psicologico dos processes da produgao e compreensao de textos foi desenvolvido como uma das areas do estudo transdisciplinar do discurso.

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Um dos muitos topicos abordados nesse tipo de estudos de processamento do discurso foi o papel fundamental do conhecimento: hoje sabemos que e impossivel produzif^ ou ler um texto, ou participar de uma conversa, sem uma grande quantidade de conhecimento sobre a linguagem, sobre o discurso, sobre a comunicagao, sobre o contextQ atual e, de um modo geral, ate sobre o "mundo". Grande parte desse conhecimento e compartiihado socialmente entre comunidades sociais, profissionais ou culturais diferentes para as quais ele e denominador comum para a agao, a interagao, o discurso e as praticas sociais. \ Vemos tambem, da mesma maneira, que as frases nao podem ser isoladas de seus textos e contextos, e que tambem o processamento do discurso nas mentes dos usuarios da linguagem nao pode ser isolado nem do verdadeiro uso da linguagem em contextos sociais por usuarios da linguagem em suas comunidades sociais e culturais. A linguagem, o discurso e o conhecimento sao essencialmente sociais. E esse insight fundamental que deu origem nao so a sociolinguistica, a pragmatica e a etnografia da fala, mas tambem a psicologia social do discurso, que forma o pano de fundo da apresentagao das varias perspectivas nos estudos sobre discurso oferecidas neste livro. Existem, no entanto, muitos tipos de psicologia social e, infelizmente, a maior parte deles tern dernonstrado pouco interesse explicito no estudo do discurso. Assim, a psicologia social experimental nos Estados Unidos concen-

Teun A. van Dijk

Prefacio

trou-se, inicialmente, em atitudes, preconceitos e gerenciamento da impressao, entre muitos outros topicos, em vez de estudar as maneiras pelas quais elas sao adquiridas discursivamente, expressas, usadas e reproduzidas na sociedade. Acoinpanhando a revolugao cognitiva na psicologia "individual", essa psicologia "social" tambem tern muito pouco que ver com a maneira como a mente, ou os individuos, estao relacionados com a sociedade. Na Europa, varias tradigoes de psicologia social tinham mais interesse na dimensao social da vida cotidiana propriamente dita, em temas tais como a identidade social de grupos e as relagoes grupais, por um lado, e representacoes sociais de co~ f^munidades, por outro. No entanto, embora a identidade social, as relacoes sociais e as representacoes sociais sejam em grande parte administradas pelo discurso, a maioria •dessas abordagens da psicologia social quase nao esta envolvida na analise sistematica do discursp, nem teoricatente, nem na pratica, nem metodologicamente. Isso significa que Ihes era impossivel oferecer qualquer insight sobre as maneiras como essas identidades, relacionamentos e re~ presentapoes grupais sao realmente adquiridas, utilizadas e reproduzidas na socieda'derUmalriterface vasta e complexa - a do discurso - era excluida dessas abordagens. A partir da metade da decada de 1980, a ESJ£olQgi;a social desenvolvida na Universidade estudiosos eminentes como Michael BilligfJonathan Potter, Margaret Wetherell e Derek Edwards a quem se juntaram depois Charles Antaki e outros, ofereceram uma alternativa radical quando explicitamente se concentraram no texto e especialmente na "conversagao". Ao levar o discurso a serio, eles reagiram, assim, tanto contra os psicologos ^sociais norte-americanos como contra outros europeus. Contra o experimentalismo limitado no laboratorio, eles propuseram o estudo da linguagem real usada em situ.10

apoes sociais, isto Q, o discurso ou conversagao natural, que, a seu ver, seriam dados muito mais confiaveis para estudar a sociedade e seus membros. Contra o mentalismo da psicologia cognitiva, propuseram o estudo do uso verdadeiro de termos psicologicos nas conversas cotidianas. E contra o empirismo e o realismo da maior parte de outras tradicoes da psicologia e das ciencias sociais, ofereceram uma alternativa construtivista mais ou menos radical, insirada, por exemplo, em Rom Harre: a .

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textoe da conyersacao. £ comc^riao temos acesso direto a "suits menfesTmas somente a seus discursos, e melhor que nos concentremos nesses discursos. E nao apenas como meras "expressoes" de suas mentes, mas sim por si mesmos, isto e, como formas de interacao social, com suas proprias variaveis, objetivos, interesses, problemas e estrategias para fazer sentidcx Corno tambem vemos neste livro, e por essa razao que grande parte da psicologia discursJYaJnspiraTse no^estudo .da conversac^ao na emometodologia, ouseja, no estudo dos "metodps"lmpficitos, partilhados sociahnente, que as pessoas usam na interagao, e dai tambem na conversacao, para entender, conduzir e fazer sentido de suas vidas cotidianas. De uma maneira que nos recorda a forma como esses etnometodologistas ou microssociologos rejeitaram as estrururas abstratas e preestabelecidas da sociologia parsoniana, e se concentraram nos detalhes da acao e da conversagao, os psicologos discursivos tambem rejeitaram muitas das nogoes preestabelecidas da psicologia cognitiva e social tradicional e tambem se concentraram nos detalhes do discurso. Os tipos diferentes da^giigolggia discursiva e retoriJogo um ca desenvolvidos err|^61igEborou^IrtfT ^ encontraram wr™*™™™ nm

Prefacio

Teun A. van Dijk

E interessante esbogar sumariamente esses contextos historicps e disciplinares a fim de entender o contexto no

qual este livro foi escrito: a interface (ou lugar de encontro) da fllosofla, da psicologia social, da ciencia social critica, dos esrudos de discurso e da linguistica, da etnometodologia e da analise da conversacao. Com seu interess nos giros lingiiistico e discursive, e suas contribuicoes para uma analise detalhada do discurso, os autores neste volume foram capazes de contribuir de maneira significativa para a renovacao da psicologia social na Espanha e para uma cooperagao (mais) intensa com os analistas do discurso em outras disciplinas. Como muitos dos estudantes de doutorado do programa em Barcelona (assim como em outros lugares da Espanha) sao da America Latina, e de se esperar que essa visao critica e discursiva da psicologia social venha fortalecer ainda mais essa orienta^ao tambem na America Latina. Dados os problemas fundamentals sociais, politicos e economicos naquela regiao, uma psicologia, seja ela ou nao discursiva, que nao fosse capaz de contribuir para uma analise critica da sociedade seria no minimo irrelevant^. E, e claro, o mesmo se aplica ao resto do mundo. Isso nao sigmfica que a abordagem "discursiva" e uma ; seja na psicologia ou em qualquer outra disciplir na das humanidades ou das cie~ncias sociais. Embora muitos aspectos e problemas da sociedade sejam discursivos, ou possam ser estudados por varias formas de analise do discurso, isso nao quer dizer que a sociedade e apenas discursiva, como demonstram a pobreza, a fome, as doen, a violencia contra mulheres, o racismo e muitos outros problemas sociais cruciais. No entanto, nosso pensamento, nossa interpreta?ao e nossa comunicacao sobre esses problemas sao, na maiorparte das vezes, expresses ou reproduzidos atraves do texto ou da fala e muitas vezes constituidos discursivamente. O que a maioria de nos sabemos sobre esses problemas sociais fundamentals e o que

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eco em outras universidades e em outros paises, especialmente nos departamentos de psicologia social. Na Espanha, isso ocorreu principalmente entre os psicologos sociais da Universidade Autonoma de Barcelona, tendo a frente Tomas Ibanez e Lupicinio Iniguez, que tomaram a iniciativa para produzir este livro convidando, para unirse a eles, Charles Antaki e Derek Edwards, de Loughborough; Felix Diaz e Luisa Martin Rojo, de Madri, e Mary Jane Spink e Vera Mincoff Menegon, de Sao Paulo, produzindo.assim^mamisrurainteressantissimadeabordagens. ~ No entanto, esses estudiosos nao se limitam unicamente a uma etnometodologia ou analise de conversa9ao isolada sociopoliticamente; eles se denominam explicitamente psicologos socials e linguistas "criticos". Com isso, se colocam em uma tradicao de pesquisa critica ampla, es7 pecialmente europeia, que remonta a Escola de Frankfurt, e que tern como seu representante contemporaneo mais ilustre Habermas. Essa tradigao aparece tambem no trabaIho de pensadbres tap diferentes quanta Foucault e Bourdieu na Franga e muitos outros estudiosos em outras paries, r do mundo., Da^p^cy^eresse comum no.discursaa psicologia social critica tambemestl reiacionlu3al:om a Analise Critica do Discurso, na forma em que essa surgiu nos estudos de linguistica e de discurso no flm dos anos 1970, com o famoso livro Language and Control, de Fowler, Kress, Hodge e Trew, seguido mais tarde p'ela obra de Norman Fairclough no Reino Unido, Ruth Wodak em Viena e LuiMartin Rojo em Madri, que, portanto, tambem esta repre^sentada neste volume. Esses g s t u s criticos.de discurso eslapjnteressado^essencialmente na malieira cornpoDoder. ft»iffHSiTi^'^^^ '? BiTSi I' " I'lli* "— ' ' " " -'~~''"''~'' j M C f e ^ - " =

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Teun A, van Dijk

lemos sobre eles no jornal ou em livros ou o que veinos na televisao, e com isso esse conhecimento e muitos de seus formates sao construidos discursivamente desde o comeco; e o mesrno ocorre com muitas das maneiras que usamos para falar sobre eles e agir a seu favor ou contra eles. A psicologia social critica e sua perspectiva discursiva estao em uma situa$ao ideal para contribuir para nosso entendimento desses e de muitos outros problemas sociais. Essas contribuigoes sao eficientes e significativas so quando contribuem com aiguma coisa que outras pessoas em outras disciplinas nao podem oferecer, ou seja, com uma analise muito detalhada de textos e falas, e sua relagao, por urn lado, com a situapao social e com a sociedade em geral e, por outro, com as muitas dimensoes psicologicas de (grupos de) pessoas; dimensoes tais como a maneira como elas veem, definem e vivem sua realidade cotidiana, a maneira como elas lutam com suas identidades sociais, os problemas da intera?ao e dos conflitos cotidianos emuma sociedade multicultural, as maneiras como as pessoas se envolvem na reproducao do machismo ou do racismo e uma quantidade de outros aspectos que exigem a intervengao especializada de psicologos sociais. Tanto para estudantes como para academicos de outras areas de pesquisa, as contribui96es neste livro mostram em detalhe o historico, as perspectives, os metodos e os objetivos desse tipo de psicologia social discursiva, da analise critica do discurso e dos estudos sociais criticos em geral. Barcelona, setembro de 2003

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Intro dugao

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ste livro tern como objetivo familiarizar seus leitores e leitoras com o debate sobre o papel da linguagem nas ciencias sociais e com os fundamentos teoricos que justificam esse papel. Mais especificamente, tem tambem a intenpao de oferecer-lhes uma introdugao a Analise do Discurso como perspectiva teorico-metodologica e como fer-, ramenta de investigagao. E cada vez maior o interesse que a linguagem desperta nas ciencias sociais, um interesse que se manifesta tanto em suas dimensoes epistemologicas quanto nas metodologicas e politicas. Esse e, portanto, o motivo principal para este manual, e espera-se que ele contribua para um maior conhecimento dos antecedentes e da evolufao desse interesse pela linguagem. Nao existe, porem, nenhum consenso - nem sequer majoritario - sobre o alcance e limites da incorpora9ao da linguagem as ciencias sociais. Portanto, esperamos que nossos leitores e leitoras consigam, gra?as a leitura deste manual, formar uma opiniao bem fundamentada sobre a questao. Tentaremos fazer com que isso seja possivel, identificando as principais perspectivas que fundamentam a inclusao da linguagem nas ciencias sociais; mostrando a trajetoria que pennitiu que essa inclusao abrisse o caminho para novas perspectivas teoricas e metodologicas; descrevendo algumas das principais tendencias e modalida-

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Intro dugao

Lupfdnio Iniguez

des da Analise do Discurso, seu alcance e seus limites; e, finalmente, introduzindo alguns procedimentos basicos desse tipo de analise. Esperamos estar oferecendo uma quantidade de recursos suficientes para uma apropriagao, avaliagao e critica dessas perspectivas e, por sua vez, para a propria aplicacao da Analise do Discurso. Atraves de uma exposi9ao ordenada de conteudos, de um esforgo para evitar umjargao demasiado especifico, e da apresentac. ao de inumeros exemplos, tentamos fazer com que seja possivel integrar essas propostas teorica e metodologicamente. Tentamos tambem evitar qualquer tipo de dogmatismo. Nesse sentido, a assertividade com que as varias posifoes sao apresentadas nao significa que damos menos importancia a manuten9ao de uma atitude critica nas praticas da produgao do conhecimento e da investigacao nas ciencias sociais, respeitando a pluralidade de perspectivas e de pontos de vista, afastando-nos das pretensoes de impor umas perspectivas sobre outras, dando elementos para que o alcance e os limites das propostas sejam continuamente avaliados e mantendo viva a reflexao sobre o papel das ciencias sociais na permanencia e na mudan?a da ordem social. O livro, portanto, foi organizado em sete capitulos: o primeiro, dedicado ao "giro lingiiistico"; o segundo, ao papel da linguagem nas ciencias sociais; o terceiro, as variedades, tradi9oes e praticas da analise do discurso nas ciencias sociais; o quarto, a Analise da Conversa9ao; o quinto, a Psicologia Discursiva; o sexto, a Analise critica do discurso; e o setimo, a Analise da Interanima9ao Dialogica. O primeiro capitulo tern a fun9ao de emoldurar, teorica e epistemologicamente, o papel da linguagem nas ciencias sociais. Examina a maneira como a reflexao sobre a linguagem foi adquirindo importancia a partir dos anos 1960 e o impacto que essas reilexoes tiveram na nossa

concep9ao do conhecimento, em nossos conceitos da realidade - tantofisicaquanto social - e nas estrategias metodologicas para sua analise. 0 segundo capitulo apresenta os fundamentos principals que sustentam e legitimam o papel da linguagem nas ciencias sociais. Seu argumento principal e que, embora no inicio a presen9a da linguagem nas disciplinas sociais tenha sido introduzida a partir da metodologia, mais tarde, no entanto, ela se converteu em um conjunto de novas perspectivas nas que a "linguisticidade" e o "linguistico" sao centrais. O capitulo examina o giro linguistico, a "Teoria dos atos da fala", a Pragmatica, a Etnometodologia e alguns aspectos da obra de Michel Foucault. O terceiro capitulo foi dedicado a Analise do Discurso como metodo e como perspectiva nas ciencias sociais. Apesar da arnpla lista de perspectivas e praticas na Analise do Discurso, aqui serao apresentadas apenas algumas delas: a sociolingiiistica interacional, a etnografia da comunica9ao, a analise conversacional, a analise critica do discurso e a psicologia discursiva. A parte final oferecera uma das modalidades da Analise do Discurso que podem ser seguidas para o esuido de processes sociais. Pondo em pratica a AD, poderemos ver o alcance e os limites que ela tem na compreensao dos processes sociais e da estrutura social. Com efeito, os cinco ultimos capitulos apresentam exemplos da Analise do Discurso na pratica. Assim, o capitulo quarto tem como moldura a tradi9ao da Analise da Conversa9ao e permite ver como se constroi a delicadeza nas redoes sociais e a importancia e consequencias que isso pode ter na vida cotidiana. Por sua vez, o capitulo quinto se enquadra em uina linha critica das ciencias sociais que se identifica com o titulo de "Psicologia Discursiva", perspectiva que mostrou a revolu9ao que e possivel fazer na conceitualiza9ao teorica de determinados proces-

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Lupicinio Iniguez sos psicologicos quando esses sao abordados de um ponto de vista discursivo. O sexto capitulo, enquadrado no marco da Analise Critica do Discurso, mostra como o discurso funciona como pratica de domina9ao e de exclusao. Finalmente, o setimo capitulo, no marco da Interanima9ao Dialogica, amplia a reflexao sobre dominacao, abordando a linguagem dos riscos como estrategia de governamentalidade.

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iro liriguistico" e uma expressao que esteve em moda nos anos 1970 e 1980 para designar uma certa mudanca que ocorreu na fllosofia e em varias ciencias humanas e socials, e que as estimulou a dar uma atencao major ao papel desempenhado pela linguagem, tanto nos proprios projetos dessas disciplinas quanto na formagao dos fenomenos que elas costumam estudar. Normalmente, nao se da a essa expressao nenhum outro significado alem desse que acabamos de mencionar. Um dos primeiros objetivos que podemos atribuir ao presente capitulo e precisamente o de contribuir para que se adquira uma consciencia clara do aumento progressivo da atencao que foi dada a linguagem no decorrer do seculo XX. No entanto, o "giro linguistico" teve efeitos e implicacoes que vao bem mais alem do simples aumento da enfase dada a importancia da linguagem. Ele contribuiu parg que fossem esbogados novos conceitos sobre a natureza do conhecimento, seja ele o do sentido,comum ou o cientifico, para permitir que surgissem novos significados para * Universidade Aberta da Catalunha.

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1. 0"giio linguistico"

Tomds Ibdnez Gratia

aquilo que se costuma entender pelo termo "realidade" tanto "social" ou "cultural" quanto "natural" ou "fisica" e a desenhar novas modalidades de investigate) proporcionando outro contexto teorico e outros enfoques meto dologicos.jPorem, mais que tudo, o "giro linguistico" modificou a propria concepcao da natureza da linguagem. Um segundo objetivo deste capirulo, portanto, seria ensinar a discernir quais sao as concepgoes da linguagem que sustentam as varias formulagoes oferecidas pelas ciencias humanas e socials. For outro lado, o presente capitulo pretende analisar em profundidade a natureza e as hnplicagoes do "giro linguistico", dando uma atencao especial a sua genealogia, ou seja, a dimensao historica de sua constituigao progressiva, as rupturas teoricas que tiveram que ocorrerpara que o giro linguistico pudesse construir e desenvolver seus projetos, e ao carater plural e as vezes contraditorio de que se revestiram as suas varias formulagoes. Se o "giro linguistico" realmente constitui, como indicamos neste capitulo, uma mudanga profunda das concepgoes do mundo, e das concepgoes sobre como interpretar as ciencias humanas e sociais, inclusive a propria filosofia, e importante que o leitor e a leitora entendam nao somente o alcance e a orientacao dessas mudangas mas tambem as razoes que o fizeram surgir. Podemos entao considerar que um terceiro objetivo que nos propomos a alcangar neste capitulo seria o de discernir e avaliar essas razoes. Para esse fim, no entanto, nao e suflciente apenas entender e armazenar a informagao proporcionada pelo texto que foi elaborado para este capitulo. Alem disso, e preciso por em pratica um esforgo extraordinario de reflexao pessoal que permita qualificar a natureza e a forga das suposigoes a que o "giro linguistico" teve que se sobrepor para conseguir se desenvolver. Nesse sentido, seria util refletir 20

sobre nossa propria concepgao da linguagem comparando-a com as concepgoes que sao inferidas pelo "giro linguistico". Um ultimo objetivo, portanto, consiste em perrnitir e facilitar essa reflexao. 1. A Linguistica e a filosofia como pontos de parti da Uma das marcas distintivas do seculo passado foi, sem duvida alguma, a enorme importancia que tanto a filosofia quanto as ciencias humanas e sociais em seu conjunto deram ao fenomeno da linguagem. A atengao crescente que se da ao estudo da linguagem durante todo o seculo XX teve seu estimulo inicial no cerne de uma dupla ruptura ocorrida no despertar do seculo. De um lado, a ruptura com a antiga tradigao centrada na comparagao das linguas e no estudo de sua evolugao historica. E, por outro, a ruptura com a total hegemoma que a filosofia da consciencia exerceu durante mais de dois seculos. — A primeira dessas rupturas, liderada por Ferdinand de Saussure (1857-1913), instituiu, na verdade, a linguistica moderna, dotando-a de um programa de alguns conceitos e de uma metodologia que viabilizavam o estudo rigoroso da lingua considerada "por si mesma e em si mesma". A segunda ruptura, iniciada por Gottlob Frege (18491925) e por Bertrand Russell (1872-1970), fez com que o olhar da filosofia, ate entao voltado para o mundo interior e privado das entidades mentals, se voltasse para o mundo passivel de ser objetivado e publico das produgSes discursivas. Assentavam-se, assim, as bases para uma nova forma de entender e de praticar a filosofia que, sob a denominagao de "filosofia analitica", dominaria o cenario da filosofia anglo-saxa durante mais de meio seculo. J Os sucessos alcangados pela linguistica moderna, tanto no marco da orientagao estruturalista iniciada com as 21

1. 0 "giro linguistico"

Tomds Ibdnez Gratia

outorgava a linguagem um papel especial na elabora9ao de nossa visao do mundo, mas ainda seria necessario esperar varios seculos para que essas intui9oes dessem lugar a um auteiitico "giro linguistico".

contribui?oes de Ferdinand de Saussure, quanto no marco da orientacao generativa elaborada fundamentalmente por Noam Chomsky (1928-) no final dos anos 1950, tiveram amplarepercussao em vastos setores das ciencias socials e humanas que viram na linguistica um modelo exemplar ao que podiam recorrer diretamente quando abordavam os objetos de suas proprias disciplinas. No entanto, mais alem de esse efeito mimetico extraordihario, e a filosofia analitica, em suas varias orienta9oes e devido tanto a seus fracassos como a seus exitos, que devemos atribuir a expansao do interesse pela linguagem nas varias ciencias socials e humanas. Dificilmente poderemos compreender a aten9ao dada a linguagem pelo pensamento contemporaneo se nao analisarmos o "giro linguistico" empreendido pelo pensamento posterior ao seculo XIX, observando tanto sua gestacao como a historia de seu desenvolvimento. Mas antes de abordar essa questao no proximo capitulo, talvez seja util recordar que ja no medievo encontramos alguns ingredieBles^ue_teriam podido propiciar um "giro linguistico^/favanr/a/eSre>Trata-se da famosa disputa entre os escolasticos a respeito dos "universais". Como bem se sabe, os "nominalistas" sustentam a tese da inexistencia fatica dos universais, argumentando que tudo aquilo que existe o faz de uma forma peculiar e que de nada adianta buscar referencias existenciais por tras de categorias gerais. Nao existe nem "o" campones, nem "a" arvore, nem "a" mulher, mas sim e apenas, camponeses, arvores e mulheres particulares. Um universal nada mais e do que uma abstragao cuja existencia so se materializa no amago de nossa linguagem e cuja realidade e resultado exclusivamente dos usos que fazemos da linguagem. A partir de considera9oes desse tipo, os nominalistas esbo9avam uma linha de pensamento que 22

2. Das ideias as palavras ou do "animal pensante" ao "animal falante"

Q ser humano e um "animal racional". Essa foi uma das formulas mais antigas utilizadas para expressar a distinguibilidade de nossa especie. No entanto, embora a capacidade que o ser humano tem para exercitar o pensamento, o raciocinio, a elaboracao e o manejo de ideias tenha fascinado os filosofos desde os tempos da Grecia Classica, foi, sem duvida, Rene Descartes (1596-1650) que contribuiu com maior sucesso para que o olhar filosofico focalizasse o interior de nosso mundo mental (a famosaffS exortando-nos a esquadrinhar nossas ideias para ficarmos unicamente com aquelas que fossem "claras e distintas". Dessaperspectiva, a linguagem e ceitamen--3 te importante, mas constitui apenas um instrumento para manifestar nossas ideias, uma simples roupagem com a qual essas se apresentam ao exterior e se tornam visiveis para os demais. Quando nosso discurso parece ser confuso e porque nossas ideias nao sao suficientemente claras e, inclusive, algumas vezes acontece de a linguagem dificultar a exterioriza9ao de nossas ideias em vez de ajudar-nos a comunica-las aos demais. A partir de Descartes e durante dois seculos e meio, a filosofia europeia seria uma "filosofia da consciencia" centrada no estudo da interioridade do sujeito e convencida de que, para conhecer o mundo exterior, e preciso inspecionar minuciosamente as ideias que habitam os espa905 interiores da subjetividade. No entanto, a partir do mor mento em que se aceita a dicotomia entre res cogitans e 23 —«*

Tomds Ibdnez Gracia

1. 0 "giro lingiiistico'

res extensa, e precisamente porque foi tracada essa linha divisoria, surge imediatamente a pergunta de como se relacionam entre si o "interior" e o "exterior" e p misterio da adequagao entre nossas ideias e a realidade. Durante dois seculos e meio as grandes divergencias filosoficas vao se articular ao redor dessas questoes. i Serios antagonismos se desenvolvem entre aqueles que consideram que nossas ideias se formam com base em nossas experiencias sensoriais (nada esta em nossa mente que nao tenha anteriormente passado por nossos sentidos, di.. jj

Lupicinio Iniguez

2. A linguagem nas ciencias sociais...

ESCANDELL VIDA, M.V. (1996). Introduction a la pragmatica. Barcelona: Ariel.

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ste capitulo esta dedicado a Analise do Disturso corho Emetodo e como perspectiva nas ciencias sociais. Ao longo de suas paginas apresentaremos a Analise do Discurso como um meio de colocar em pratica o papel da linguagem como eixo de compreensao e estudo dos processos sociais. Atraves das varias sessoes que o configuram, mostraremos e justificaremos por que a Analise do Discurso constitui uma das areas que melhor representa a inclusao da linguagem na compreensao desses processos. No entanto, e precise, ja neste preambulo, advertir que Discurso e Analise do Discurso nao sao termos univocos, e sim que ambos tem inumeros sentidos diferentes em cada uma de suas variedades, tradi9oes e praticas. O capitulo foi estruturado em cinco partes. Na primeira, apresentamos as varias orientacoes e tradiQoes da Analise do Discurso, com o objetivo de mostrar a variedade de posi?6es que compartilham esse cenario e para que se possa chegar a identificar varias modalidades da Analise do Discurso e as caracteristicas basicas de cada uma delas. A * Universidade Autonoma de Barcelona.

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vidade e a produgao de efeitos, a materializa9ao do corpus, e um detalhe de ferrarnentas especificas de analise como a identifica9ao de "atos de fala", implicaturas, estruturas retoricas, repertorios interpretativos e polaridades. A intencao nessa parte e proporcionar uma introdu9ao documentada e fundamentada a pratica da analise do discurso.

selecao foi feita considerando-se apenas as modalidades que estabeleceram umdialogo interdisciplinar (a sociolinguistica interacional, a etnografia da comunicacao, a analise conversational, a analise critica do discurso e a psicologia discursiva). Com isso, a inten9ao era deixar claro, identificar e mostrar como a interdisciplinaridade da sentido e identidade a Analise do Discurso. Na segunda parte, apresentamos e examinamos varias concep9oes de discurso, reafirmando, assim, a caracteristica plural presente nas varias praticas. Como o reconhecimento da diversidade nao deve excluir uma escolha, oferecemos uma defini9ao aproximada de "discurso" e de "analise do discurso" que, alem de adotar as premissas principals que sao utilizadas nessa disciplina, sustenta os fundamentos descritos no capitulo anterior. A premissa que serve de base a essa defmi9ao aproximada e a importancia de delimitar os componentes basicos que uma defmicao deve incorporar, nao com o fim de identificar uma essencia ou estabelecer uma distin9ao entre o discursive e o nao discursivo e sim como uma forma de deixar claro, discursivamente, que um discurso constroi aquilo sobre o qual fala. Da mesma forma e em conformidade com o que foi dito antes, trata-se tambem de poder optar e defender, com a necessaria argumenta9ao, uma concepgao de discurso especifica, extraida de um ample repertorio. Com esse mesmo interesse em manter aberta e tornar visivel a maior quantidade possivel de concep9oes, mas explicitando claramente nossas preferencias, detalhamos, na terceira parte, a praxis da Analise do Discurso, seguindo duas tradi9oes particulars: a anglo-saxa e a francesa. Da mesma forma, abordamos a explica9ao sobre o que se pode fazer com um texto na pratica: a definicao do processo social que vamos analisar, a selecao do material relevante para a analise seguindo os criterios de representati-

Essa diversidade de contribuigoes gerou atribui9oes e filia9oes disciplinares heterogeneas, que se traduziram em praticas muito variadas. Essas, por sua vez, tiveram como resultado concep9oes tambem diferentes - muito diferentes umas das outras - embora provavelmente com um denominador comum: a consideragao da analise do idioma em seu uso, seja esse falado ou escrito.

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Na quarta e ultima parte, debateremos a viabilidade da Analise do Discurso como uma perspectiva nova e frutifera das ciencias socials. Nesse sentido, oferecemos uma reflexao sobre as implicates da pratica analitica discursiva, sobre a importancia da consideragao do contexto social em que se constroi o discurso e, finalmente, sobre o papel do discurso na constru9ao, manuten9ao e mudan9a da estrurura social. Todos esses aspectos deverao ter como resultado o conhecimento e a identificacao do alcance e dos limites da Analise do Discurso como pratica.

Consideracoes preliminares Originalmente a expressao "analise do discurso" designava uma area da linguistica. No entanto, apesar de sua origem, a AD nao e um patrimonio exclusive da linguistica eja contou com as contribui9oes de outras disciplinas academicas. Com efeito, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a comunicagao, a filosofia, etc. todas fizeram suas contribui9oes e desenvolveram metodos especificos de analise (Van Dijk, 1985).

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Lupicinio Iniguez Assim, por exemplo, Stubbs (1983: 11), um dos mais importantes especialistas linguisticos em AD, afirma que: A Analise do Discurso e um termo muito ambiguo. Vou utiliza-lo neste livro para referir-me principalmente a analise linguistica do discurso, falado ou escrito, que se produz de modo natural e e coerente. Em linhas gerais, refere-se a intengao de estudar a organizacao da linguagem alem da oracao ou da frase e, por conseguinte, de estudar unidades linguisticas maiores, como a conversa930 ou o texto escrito. Disso se deduz que a Analise do Discurso tambem se relaciona com o uso da linguagem em contextos socials e, concretamente, com a interagao ou dialogo entre os falantes. Brown & Yule (1983: 12), outros dois pioneiros da AD no interior da linguistica, afirmam nesse mesmo sentido: [...] nosso interesse primordial e o objetivo tradicional da linguistica descritiva: oferecer uma explicagao de como as formas linguisticas sao usadas na comunicacao. Ao que acrescentam (1983: 19): A analise do discurso e, por necessidade, a analise do idioma em seu uso. Como tal, nao se pode limitar a descri?ao de formas linguisticas independentemente dos propositos e das funsoes as quais essas formas estao destinadas. Na primeira parte deste capitulo apresentaremos algumas abordagens a AD e as diferentes definicoes de "discurso" que sao utilizadas nas varias orientagoes e tradigoes. Mais a frente apresentaremos uma modalidade especifica da AD com o objetivo de incorporar aspectos de varias dessas tradigoes e concepgoes a fim de proporcionar uma forma de aproximagao a realidade social, tal como pretendem as ciencias sociais.

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1. As varias orientates e tradigoes da Analise do Discurso Existem muitas razoes diferentes para que o discurso tenha se convertido em um objeto de analise, de estudo e de debate nas ciencias sociais. Entre elas, podemos destacar tres que, por sua vez, respondem a razoes de ordem diferente. Primeiramente, existem razoes de tipo teorico e epistemologico. Como ja foi arnplamente discutido no capitulo "O giro lingiiistico", nao ha duvida de que os debates no interior do giro linguistico exerceram uma enorme influencia sobre o conjunto das ciencias sociais e humanas. Em segundo lugar, a transformagao da linguistica desde sua enfase inicial no estudo da linguagem como propriedade dos seres humanos ate sua orientagao para a analise do uso da linguagem nos varios contextos relacionais e de comunicacao tambem influiu enormemente sobre as outras ciencias humanas e sociais que enfrentam os mesmos processes a partir de oticas distintas. Por ultimo, a relevancia que os meios de comunicacao adquiriram em nosso tempo e, em particular, as novas tecnologias de comunicacao, colocam em evidencia a centralidade desses processes na constituicao, manutencao e desenvolvimento de nossas sociedades. Historicamente, as origens desse processo podem remontar a decada de sessenta do seculo XX. Na Franca, por exemplo, na segunda metade dos anos sessenta, cornega-se a esbocar uma tradicao sob esse rotulo, fortemente influenciada pelo estruturalismo, pelo marxismo e pela psicanalise (Pecheu, 1969; Maingueneau, 1987). Damesma forma, no ambito anglo-saxao, inicia-se nessa epoca a "Etnografia da comunicacao" (Gumperz & Hymes, 1972; Hymes, 1974).

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Como vimos nos capitulos anteriores, apartir dos anos 1970, as concepcoes pragmaticas e interacionistas vao adquirindo uma importancia maior, que acabara por estabelecer a ideia de que a palavra e uma forma de acao, acentuando assim a dimensao interativa da comunicacao verbal. No entanto, e durante a decada de 1980, quando proliferam defmitivamente os trabalhos que se autodenominam de "analise do discurso", que, em sua diversidade, esses trabalhos representam formas de AD dificeis de definir, ja que se inserem em varias disciplines, desde a lingiiistica ate a psicologia, a sociologia, a antropologia, a historia, etc. (Schiffrin, 1994). Schiffrin afirma que existem varias tradicoes basicas na AD: a Teoria dos Atos da Fala, a Sociolinguistica Interacional, a Etnografia da Comunicacao, a Pragmatica, a Analise Conversacional e a Analise da Variacao. Obviamente, essas tradicoes nao sao as unicas, e e possivel que a lista pudesse ser ampliada com a inclusao de duas outras que tern, hoje, uma projecao incontestavel: a Analise Critica do Discurso e a Psicologia Discursiva. Nesta apresentagao vamos deixar de lado a "Teoria dos atos da fala" e a Pragmatica por ja terem sido examinadas no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais" como parte da base teorica e metodologica da AD. Por isso, neste exame das tradigoes da AD nao as mencionaremos, embora sem esquecer de sua importancia. Faremos o mesmo com a Analise da Varia?ao que, embora tendo como tema central o aspecto interessante da variacao e da mudanpa linguistica, de todas as tradifoes e a unica que se desenvolveu unicamente no interior da linguistica, quase sem nenhum contato com outras areas das ciencias sociais, exceto, talvez, com alguma modalidade da Sociolinguistica. 110

As tradic-oes'que iremos descrever brevemente sao: a) a Sociolinguistica Interacional; b) a Etnografia da Cpmunicagao; c) a Analise Conversacional; d) a Analise Critica do Discurso (daqui em diante, ACD); f) a Psicologia Discursiva. 1.1. A sociolingliistica interacional Essa tradi9ao de AD se origina da antropologia, da sociologia e da linguistica. O motive para essa triplice "maternidade" esta em seu interesse pela cultura, pela sociedade e pela linguagem. A microssociologia de Goffman teve uma grande influencia nessa perspectiva por ter situado a linguagem nas circunstancias concretas da vida cotidiana. No entanto, Gumperz (1982) talvez seja seu representante mais proeminente. Examinando detalhadamente as contribuic.6es dos dois autores acima e possivel identificar, como faz Schiffrin (1994) com grande perspicacia, a simbiose entre a perspectiva microssociologica de Goffinan e as propostas da Sociolinguistica de Gumperz. Especialmente relevante e a enfase que ambos autores dao a linguagem e ao contexto em toda sua obra. Tanto para Goffinan como para Gumperz, a linguagem desempenha um papel central, nao so como mero meio de comunicayao, mas tambem pela influencia que exerce na construcao de significados, em relagao ao contexto em que e utilizada, e pelas aberturas e fechamentos que sua utilizapao possibilita. Com efeito, ambos autores partem do principio que o contexto e a dimensao determinante na constru9ao de significados e reconhecem a natureza dependente (indexada) da linguagem. Assim, Gumperz sublinha como o ato de compreender as intenfoes de um falante ou a "simples" interpreta9ao de uma informa9ao ou de uma comunica9ao sao inseparaveis do contexto ern que foram produzidas. De outra perspec111

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tiva, mas insistindo na mesma consideracao contextual, Goffman observa como as interasoes e as institui^oes descrevem uma moldura contextual que propicia interpreta9oes e gera significados. A obra de Gumperz tern como foco a maneira como as interpreta?6es do contexto sao cruciais para a comunica9ao da informafao e para que a outra pessoa possa compreender a intencao e/ou a estrategia discursiva do falante; a obra de Goffman tern como foco a maneira como a organiza?ao da vida social (em instituipoes, intera96es, e assim por diante) fornece contextos atraves dos quais tanto o sentido da conduta do self quanta da comunicacao com o outro torna-se compreensivel (tanto para os co-presentes na inter^ao como para analistas externos). O trabalho de ambos estudiosos tambem da uma visao da.linguagem como sendo indexada a urn mundo social: para Gumperz, a linguagem e" um indice para os entendimentos do pano de fundo cultural que fornecem um conhecimento oculto - mas ainda assim essencial; para Gof&nan, a linguagem e apenas um de um numero de recursos simbolicos que fornecem um indice para as identidades e relacionamentos sociais que estao sendo construidos continuamente durante a interacao. Finalmente, ambos estudiosos permitem que a linguagem tenha urn papel mais ativo na criacao de um mundo do que talvez aquele que e sugerido pelo termo "indice"; a ideia que "dicas" da contextualizacao podem alterar nao so o significado de uma mensagem mas a propria moldura de participacao da conversa — de tal maneira que tanto intencoes diferentes como selves e "outros" diferentes podem ser exibidos atraves de mudan9as sutis na maneira em que essa moldura fornece um caminho para a comunica^ao self-outro - e basicamente semelhante nos dois estudiosos (Schiffrin, 1994: 105-106). O tema preferido nessa tradicao foi a analise de situa9oes de intera?ao marcadas por uma situacao assimetrica dos/as participantes. Ou seja, situagoes nas quais os/as agentes sociais narelagao sao membros de culturas distin-

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tas, de grupos socioculturais diferentes, de status diferente, etc. e dos quais pode-se esperar sistemas de valores e crencas opostas ou distantes que compreendem fonnas de a?ao e de interagao tarnbem diferentes. 1.2. A etnografia da comunicagao

A etnografia da comunica9ao e uma abordagem ao discurso que se baseia na antropologia e na linguistica. A inten9ao da etnografia da comunica9ao e tao ampla quanto a da propria antropologia, mas seu principal foco de interesse e a competencia comunicativa. O que esse tipo de etnografia busca e compreender como o conhecimento social, psicologico, cultural e linguistico governa o uso apropriado da linguagem (Schiffrin 1994). A etnografia da comunica9ao entende que a competencia linguistica e apenas mais uma parte dos recursos que e necessario mobilizar para a comunicagao, e a chamam de "competencia comunicativa". Hymes (1974) foi quem deu maior estimulo aessacorrente e quem introduziu o conceito de "competencia comunicativa". Com efeito, esse conceito origina-se do conceito formulado por Chomsky em sua gramatica generativa para designar a aptidao que os falantes de um idioma tern para produzir e compreender um numero ilimitado de frases que ate entao eram ineditas para eles/as. A essa ideia, Hymes acrescentou um aspecto pragmatico; ou seja, a aptidao para administrar, em um contexto particular, as regras que permitem que uma pessoa interprete o significado do enunciado. Mais recentemente, tornou-se comum a denomina9ao "antropologia linguistica" (Duranti, 1997) que se define como o estudo da linguagem como recurso da cultura e da fala como pratica cultural. Mais concretamente, a "antro-

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pologia linguistica" pode ser caracterizada como uma area fundamentalmente interdisciplinar que: baseia-se e se desenvolve sobre metodos que pertencem a outras disciplinas, especialmente a antropologia e a linguistica, com o fun geral de proporcionar uma compreensao dos varies aspectos da linguagem em seu papel de moldura de praticas culturais, isto e, como um sistema de comunica9ao que permite as representa9oes interpsicologicas (entre individuos) e intrapsicologicas (no mesmo individuo) da ordem social, e que contribui para que as pessoas utilizem essas representacoes para realizar atos sociais constituintes. [...] Os/as antropologos/as linguisticos/as trabalham, sobre uma base etnografica, na producao de relates das estruturas linguisticas tal*como aparecem na intimidade de grupos humanos em um tempo e espaco determinados (Duranti, 1997:21).

Em um nivel teorico, a principal contribui9ao da antropologia linguistica foi ter considerado a linguagem como um conjunto de estrategias simbolicas que sao constitutivas da sociedade e que possibilitam a representacao de mundos possiveis e reais a seus membros. No piano metodologico, sua contribui9ao foi a etnografia, ja que, como forma de observapao participante, permite dar atencao aos elementos contextuais, historicos e culturais que sustentam as intera9oes sociais significativas._,. As vantagens que esse enfoque traz sao obvias, nao so pelos tratamentos que possibilita como tambem pela pluralidade tematica e a perspectiva inovadora que abre para os antropologos e antropologas linguisticos. Com efeito, como indica Duranti (1997), o enfoque da etnografia da comunica9ao permite estudar temas como as politicas da representa9ao, a conforma9ao da autoridade, a legitima9ao do poder, a mudan9a social, as bases culturais do racismo e do conflito etnico, o processo de socializapao, a 114

constni9ao social do sujeito, as emocoes, a rela9ao entre a a9ao ritual e as formas de controle social, o dominio especifico do conhecimento e da cogni9ao, as politicas de consumo estetico, o contato cultural etc. 1.3. A analise da conversagao A origem da analise da conversa9ao (a partir daqui, AC) esta nos enfoques da Sociologia da Situa9ao (Diaz, 2001) e mais especificamente na etnometodologia (Garfinkel, 1967). Como vimos no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais", a etnometodologia se interessa pelos metodos que os/as participantes em uma situa9ao social de intera930 utilizam para interpretar e atuar no interior dos mundos sociais que eles/as mesmos/as constroem em suas praticas. A caracteristica distintiva dessa perspectiva, com rela930 as outras modalidades da AD, e que as categorias da analise devem ser, na medida do possivel, as mesmas que os participantes utilizam no momento de compreender a intera9ao. Nesse sentido, o importante para a AC e descobrir como a sociedade esta organizada e como funciona a partir das proprias a$oes das pessoas que nela interagem. A AC aborda a linguagem de uma maneira radicalmente diferente de outras perspectivas. Assim, por exemplo, em outras abordagens linguisticas e sociologicas a linguagem e considerada como portadora de significados e ideias no sentido de que os/as falantes a codificam ou empacotam no interior das palavras, sem levar em considera9ao outros aspectos da expressao tais como a entona930, etc. Nesse sentido a AC oferece a vantagem de lidar com os relates das pessoas em seu contexto, aceitando pienainente a importancia da mdexa9ao, tal como foi explicada no capitulo anterior (Antaki, 1994). A forma drastica do projeto de analise conversacional e muito clara. E unicamente atraves dos proprios meios

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dos participantes se organizarem - argumenta a analise conversational - que encontraremos bases solidas para nossas afirmagoes analiticas. Aprimeira vista, isso parece eliminar inumeras coisas com as quais os cientistas socials se sentem confortaveis. A mudanga de orientacao dos/as analistas para os/as participantes parece questionar a habilidade dos/as cientistas sociais como habeis leitores da mente comum e como experimentadores/as profissionais de suas proprias teorias sobre ela (Antaki, 1994: 187).

A AC estuda a ordem, a desordem e a organizagao da agao social cotidiana, captando o que dizem, contain ou fazem as pessoas e, definitivamente, tudo aquilo tal e qual e produzido pelos/as participantes em conversagoes. Nesse sentido, a tarefa do analista da conversacao e identificar, descrever e estudar a ordem que se produz nas conversagoes. No entanto, e importante assinalar que a AC examina a linguagem em uso e nao as pre-concepgoes ou esquemas previos definidos pelos/as analistas. De forma sintetica, as principals premissas da AC podem ser assim resumidas: 1) A ordem e uma organizagao produzida. 2) A ordem e produzida pelas partes interessadas in situ. 3) As partes se orientam para aquela ordem elas proprias; isto 6, essa ordem nao 6 a concepgao de urn analista, nem o resultado do uso de algumas concepgoes teoricas pre-formadas ou pre-formuladas a respeito daquilo que a agao deve/tem que/deveria ser, ou baseada em afirmagoes que generalizam ou resumem sobre aquilo que a agao geralrnente/frequentemente/muitas vezes e. 4) A ordem e repetivel e recorrente. 5) A descoberta, descrigao e analise daquela ordem produzida e a tarefa do analista. 6) Questoes sobre a frequencia, a amplitude ou o numero de vezes em que fenomenos especificos ocorrem devem ser abandonados se a intengao e descobrir, descrever e analisar as estruturas, a maquinaria, as praticas or116

ganizadas, os procedimentos formais, as maneiras pelas quais a ordem e produzida. 7) Estruturas de acao social, uma vez reconhecidas como tal, podem ser descritas e analisadas em termos formais, ou seja, estruturais, organizacionais, logicos, sem conteudo ou tema, consistentes e abstratos (Psathas 1995: 2-3).

Ao estudar a linguagem na pratica observam-se certas regularidades. A mais conhecida e a chamada turn-taking (tomara vez): emsituagoes diferentes, extraordinariamente cotidianas, os/as interlocutores/as facilmente manipulam sua conversa para que cada pessoa tenha sua "vez" de intervengao bem definida, cedendo o lugar a outra que se destaca no momento apropriado e continua a conversa. For exemplo: A: "Oi, tudo bem?" B: "Tudo otimo, e contigo?" A: "Foi bom te ver". A analise minuciosa desse tipo de regularidades permite conhecer a interagao social e como ela e organizada, mantida e administrada. O que as pessoas dizem e considerado nao como uma manifestagao direta de um conceito simples ou nao ambiguo, e sim como um instmmento que pode movimentar a conversa e realizar certas tarefas sociais tanto ocultas como obvias. For exemplo, a frase "a porta esta aberta?" pode ser uma pergunta ingenua, mas tambem pode ser uma indireta para que o/a interpelado/a feche a porta. Essas caracteristicas, alem de outros aspectos complementares como o alcance da AC na analise social, podem ser vistas claramente no exemplo que Charles Antaki e Felix Diaz apresentam no proximo capitulo. 117

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1.4, A Analise Critica do Discurso Para sermos justos, seria preciso dizer que a Analise Critica do Discurso (daqui por diante, ACD) nao e exatamente uma modalidade da AD e sim uma perspectiva diferente. Essa diferenga da-se sobretudo na maneira em que as duas confrontam a teoria e a analise. Com efeito, como afirmam Rojo & Whitaker (1998), a ACD constitui uma estrategia para abordar os discursos segundo a qual a teoria nao pre-configura nem determina a maneira de enfocar as analises, nem delimita o campo da indagafao e da exploracao. Ao contrario, a teoria e utilizada como uma caixa de ferramentas que permite formar e abrir novas visoes e novos enfoques e onde o/a analista se converte em artifice gra9as a seu envolvimento com aquilo que estuda. Obviamente, essas novas visoes, essas novas formas de indagar, essas novas formas de focalizar os objetos de estudo pressupoem uma mudan9a de perspectiva na interrogasao, e pressupoem tambem prescindir da ideia de que tudo e dado, e, defmitivamente, a adocao de umapostura que problematize as questoes, permitindo assim abrir novas perspectivas de estudo e fazendo surgir novos objetos de investiga?ao. A ACD deu enfase ao estudo daquelas acoes sociais que pomos em pratica atraves do discurso, como o abuso do poder, o controle social, a dominagao, as desigualdades sociais ou a marginalizagao e exclusao sociais. Aqueles que adotam uma perspectiva critica tern a inten9ao de deixar bem claro o papel-chave desempenhado pelo discurso nos processes atraves dos quais sao exercidas a exclusao e a dominacao, assim tambem como a resistencia que os sujeitos oferecem contra ambas. E mais, os investigadores na ACD nao so consideram o discurso como uma pratica social, mas tambem acham que sua propria tarefa - revelar como atua o discurso nesses processes - constitui uma forma de oposicao e de 118

social com a qual tenta-se despertar uma atitude critica nos falantes, especialmente naqueles que se deparam, mais frequentemente, com essas formas discursivas de domina?ao. Trata-se, portanto, de incrementar a "consciencia critica" dos sujeitos com relatjao ao uso linguistico e, alem disso, de Ihes proporcionar um metodo do tipo "faca-o voce mesmo", com o qual enfrentar a produ9ao e a interpreta9ao dos discursos (Martin Rojo & Whittaker, 1998: 10).

Para a ACD, o discurso e sobretudo uma pratica social, ja que nao e contemplado como uma 'representa9ao' ou reflexo dos processos sociais; ao contrario, seu carater constitutive e que e ressaltado. De acordo com isso, a ACD e considerada uma "pratica tridimensional" (Martin Rojo & Whittaker, 1998), no sentido de que a pratica analitica opera, simultaneamente, emtres dimensoes: a) o discurso enquanto texto (o resultado oral ou escrito de uma produ9ao discursiva); b) o discurso como pratica discursiva engastada em uma situa9ao social concreta; c) o discurso como um exemplo de pratica social que nao so expressa ou reflete identidades, praticas e redoes, como tambem as constitui e configura. A ACD presume, tambem, que o discurso nao so esta detenninado pelas instituigoes e estrutura sociais, mas que e parte constitutiva delas. Ou seja, que o discurso constroi o social (Fairclough & Wodak, 1997). Ja que, no capitulo 6, Luisa Martin Rojo nos da um exemplo da ACD segundo as caracteristicas descritas acima, nao daremos aqui mais detalhes de outros aspectos desse tipo de analise. 1.5. A psicologia discursiva Embora tenha o nome de "psicologia" essa tradi9ao pode ser justificadamente considerada um movimento in-

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terdisciplinar. Ja que, no capitulo 5, Derek Edwards apresenta as caracteristicas principals dessa perspectiva e ilustra, com um exemplo, seu alcance no estudo de processes psicossociais, nao a apresentaremos detalhadamente neste capitulo. Do ponto de vista da psicologia discursiva, a fala e construida por atores e atrizes socials, razao pela qual a 3930 que se desenvolve na fala (e obviamente, tambem na escritura) passa a ser considerada a medula que^articula essa perspectiva. Com efeito, e na atencao a construgao do conhecimento no discurso que a psicologia discursiva focaliza seu interesse. Por isso, os psicologos e as psicologas discursivos/as tentam procurar explicar como se produz o conhecimento, como a realidade e o proprio processo de conhecer torna-se "legivel" e, finalmente, como se constr6i a interpreta9ao da "realidade". Nesse sentido, o que e curioso, tanto para os/as analistas como para os/as participantes em uma relacao nao e a configuragao e articulacao das redoes e sim a maneira como as intera9oes discursivas que instauram as relacoes criam e adquirem sentido. E o fazem, nao por ser expressao de estados subjerivos dos/ as falantes, e sim por sua construcao de uma situa9ao (e em uma situagao) que e onde se constroi o significado, o sentido e sua interpreta9ao, na medida em que o que se compoe e uma acao social. Adotando a tradigao etnometodologica e os principios da AC, a posifao metodoI6gica da psicologia discursiva enfatiza o exame das redoes e das crengas na fala, tal e qual essa e usada pelos participantes em uma interagao social qualquer. O foco da psicologia discursiva £ a orientafao a acao da fala e da escrita. Tanto para os participantes como para os analistas, a questao primordial sao as acoes sociais, ou o trabalho interacional, que esta sendo realizado no discurso. Mas, ao inve"s de concentrar-se nas preocupa9oes norrnais da analise social interacional, tais como re-

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lacionamentos sociais e intergrupais sao administrados (atraves da maneira como as pessoas se dirigem umas as outras, acomoda^ao da maneira de falar, etc.) ou como "os atos da fala" podem ser identificados, o interesse principal (neste livro) e epistemologico. Estamos preocupados com a natureza do conhecimento, da cognicao e da realidade: com a maneira como os eventos sao descritos ou explicados, como relatorios faetuais sao construidos, como estados cognitivos sao atribuidos. Esses sao defmidos como topicos discursivos, coisas que as pessoas selecionam como topicos ou para os quais se orientam, ou sugerem em seu discurso. E em vez de ver essas constni9oes discursivas como expressoes dos estados cognitivos subjacentes dos falantes, elas sao examinadas no contexto de sua ocorrencia como constni9oes situadas e ocasionais, cuja natureza exata faz sentido, tanto para os participantes como para os analistas, em termos das a?oes sociais que aquelas descrigoes realizam (Edwards & Potter, 1992: 2-3).

Uma das principals contribui9oes da psicologia discursiva foi o desenvolvimento de investiga9oes sobre os aspectos construtivos da linguagem na interagao social. Segundo Potter & Wetherell (1987), a AD nao consiste unicamente na analise das fm^oes da linguagem, mas sim em revela-las atraves da analise de sua variabilidade. Ou seja, das perspectivas cambiantes e variadas de seu mundo que os proprios participantes em uma rela9ao nos proporcionam em sua intera9ao e intercambios linguisticos. A orienta9ao do discurso para fun9oes especiflcas e um indicador de seu carater construtivo. O termo constru?ao e apropriado por tres razoes. Em primeiro lugar, ele guia o analista para o lugar.onde o discurso se fabrica a partir de recursos linguisticos preexistentes com caracteristicas proprias. Em segundo lugar, nos lembra que entre os muitos recursos linguisticos disponiveis, alguns foram utilizados e outros nao. Em terceiro lugar, a nocao de construcao enfatiza, uma vez

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Lupicinio Iniguez mais, que o discurso esta orientado para a acao: ele tern consequencias praticas. Em um sentido profiindo, portanto, pode-se dizer que o discurso "constroi" nossa realidade vivida (Wheterell & Potter, 1996: 66). 2. A no^ao de discurso

O breve exame que fizemos acima de algumas tradi9oes da AD demonstra, sem qualquer duvida, que "discurso" e urn conceito extraordinariamente polissemico. Como esperamos tenha ficado claro, existem tantas defini9oes de discurso quantos sao seus autores, autoras e tradicoes de analise. Por isso, aqui nos limitaremos a examinar algumas das nocoes de discurso que sao mais comumente utilizadas nas ciencias sociais, sem deixar de levar em considera9ao as tradi^oes teoricas ou disciplinares que Ihes sao caracteristicas. Nao abordaremos nocoes que ultrapassem esses limites e, em particular, nos referiremos as no9oes de discurso que se apoiam, primordialmente, em tres1 tradipoes: 1) A tradi^ao lingiiistica e, mais geralmente, a tradifao da filosofia linguistica associada a Escola de Oxford; 2) A tradicao que tem sua origem na obra de Michel Foucault; 3) A tradi9ao da pragmatica franeesa e da analise de discurso francesa (Maingueneau, 1987; 1991). 1 Poderiamos fazer referenda tambem a "Escola Espanhola de AD". Se nao a incorporamos a triade que apresentamos nao e porque ela nao seja suficientemente interessante, e sim porque esta distante das tradicoes expostas no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais". Essa distancia se explica pela enfase que a escola da as orientacoes psicanaliticas e marxistas, como tambem por possuir urn carater decididamente semantico, distante das conceppoes pragmaticas que defendemos aqui.

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Essa simplifica9ao obedece unicamente ao interesse que temos de fornecer uma interpreta9ao equivalente aos termos na discussao. Mesmo nesses casos, nao apresentaremos uma revisao exaustiva e apenas examinaremos rapidamente as no9oes mais comuns. Dependendo da no9ao de discurso que se utilize, a concep9ao de AD adquirira significados bastante diferentes. Por isso, pretender estabelecer uma no9ao com uma certa precisao e uma tarefa muito pertinente, a nao ser que queiramos adotaruma defini^ao pronta, de conveniencia ou auto-referente, como por exemplo definir o discurso como aquilo que estudam seus analistas, ou conceitos semelhantes. Sem pretender uma classifica9ao completa, a tipologia sintetica que oferecemos a seguir resume algumas das concep9oes mais comuns de discurso, pelo menos como se expressam nas ciencias humanas e sociais: a) Discurso como enunciado ou conjunto de enunciados efetivamente falados por um/a falante. b) Discurso como conjunto de enunciados que constroem um objeto. c) Discurso como conjuntos de enunciados falados em um contexto de intera9ao - nesta concep9ao ressalta-se o poder de 3930 do discurso sobre outra ou outras pessoas, o tipo de contexto (sujeito que fala, momento e espa9o, historia, etc.). d) Discurso como conjunto de enunciados em um contexto conversacional (e, portanto, normative). e) Discurso como conjunto de restates que explicam a produ9ao de um conjunto de enunciados a partir de uma posi9ao social ou ideologica especifica. f) Discurso como conjunto de enunciados em que e possivel definir as condi9oes de sua produ9ao. 123

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A ultima concepgao surgiu na escola francesa de Analise do Discurso (Maingueneau, 1991)e deve muito a obra de Foucault. Ao referir-se as condigoes de produgao dos enunciados, essa nogao permite a distinc. ao entre enunciado e discurso de uma maneira mais nitida que as demais. Assim, a definicao de "enunciado" e conceitualizada como a sucessao de frases emitidas entre dois brancos semanticos; e a defmigao de "discurso" se concebe como o enunciado considerado do ponto de vista do mecanismo discursivo que o condiciona. Com efeito, nessa nogao, o enunciado e concebido como resultado, ou seja, como algo que possui memoria, pois leva consigo a marca de suas proprias condigoes de produgao. Essa possibilidade de distingao faz com que essa ultima concepgao de discurso seja a mais apropriada, pelo menos temporariamente. Contudo, as diferentes nocoes da classificacao exposta nao sao, verdadeiramente, a manifestacao de concepgoes incompativeis. Mais do que incompatibilidade, o resultado de sua analise mostra que unias nogoes podem ser superpostas a outras. Uma possivel diregao de superposigao e a dos diversos niveis de analise, que iriam desde o mais puramente interindividual ate o mais claramente estrutural. Na verdade, reproduzem a sequencia que vai desde a defmigao simples em termos de fala, ate as conseqiiencias da teoria dos atos da fala, passando pela tradigao etnometodologica, a mais apropriada da Analise Conversational, ou as mais comuns em uma tradigao pos-estruturalista. Da rnesma forma, devemos considerar que essas varias nogoes tampouco sao exclusivas, ja que freqiientemente achamos elementos de varias delas em conceitualizagoes ou em praticas de AD. Na verdade, elas reunem em sua totalidade, ou em parte, aspectos presentes em algu124

mas delas, como, por exemplo, as posigoes apresentadas no capitulo anterior. • 2.1. Tentativa de defim'gao de AnaLise do Discurso

Como mostramos, existem varias defmicoes da Analise do Discurso. Por isso, nenhuma delas deveria ter a pretensao de se estabelecer como a deflnitiva ou concludente. Cada uma delas satisfaz as proprias preocupagoes dos/as distintos/as autores/as e enfatiza aspectos diferentes. Enquanto que na orientagao linguistica sao citadas definigoes orientadas linguisticamente, como por exemplo as estabelecidas por Levinson (1983) ou Stubbs (1983), nas ciencias sociais sao citadas definigoes orientadas para o psicossocial (Potter & Wetherell, 1987). O que vamos propor aqui e seguir um caminho que se situe entre os interesses e as demandas das varias orientagoes. Seguindo Iniguez e Antaki, optaremos pela seguinte definigao: Um discurso e um conjunto de praticas linguisticas que mantem e promovem certas relagoes sociais. A analise consiste em estudar como essas praticas atuam no presente, mantendo e promovendo essas relacoes: e trazera luz o poder da linguagem como uma pratica constituinte e reguladora (Iniguez & Antaki, 1994: 63). 3. A pratica da AnaLise do Discurso

Os fundamentos expostos no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais" servem de base para as praticas de AD que vamos desenvolver neste capitulo. Esses.fundamentos podem ser agrupados em duas categorias diferentes das quais surgem tradigoes de trabalho tambem distintas que} talvez corn uma certa ousadia, vamos tentar conectar aqui. 125

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A primeira categoria agrupa, por urn lado, o giro lingiiistico, a "Teoria dos atos da fala" e a Pragmatica, que podem serrelacionados com a filosofia linguistica associada a Escola de Oxford na Gra-Bretanha e ao pragmatismo norte-americano; e, por outro lado, a ETN, que tradicionalmente e vinculada a fenomenologia e ao interacionismo simbolico. A segunda categoria relaciona-se com o trabalho desenvolvido na Europa Continental, vinculado a uma tradigao com maior orienta9ao politica e sociologica e, particularmente, a obra de Michel Foucault.

3.1. A tradigao angLo-saxa da Analise do Discurso A concepcao2 de que a linguagem pode afetar a realidade social - nas palavras de Austin, a ideia de que se pode "fazer coisas com palavras" - e o antecedente que mais influenciou a primeira tradicao. A influencia sobre a AD se exerceu principalmente atraves da maneira como a Pragmatica e a ETN adotaram essa concepfao. O que ha de mais importante nessa influencia e o fato de que essas concepgoes pressupoem o fortalecirnento de uma visao da linguagem e da pratica linguistica como capacidade de fazer alguma coisa. Alem disso, elas defendem a ideia de que o/a analista pode observar a intera9ao e fazer interpretafoes justamente sobre aquilo que a linguagem esta fazendo. Essas perspectivas significam abandonar duas imagens comuns, ou seja, a visao da linguagem como uma serie estatica de descri9oes e do/a analista como mero/a coletor/a de dados neutros. Da mesma maneira, essa concep9ao da linguagem afirma que a atividade investigadora iguala-se a qualquer ou2 O leitor pode encontrar uma exposi9ao mais detalhada dessa questao no capitulo 2, "A linguagem nas ciencias sociais". 126

tro tipo de atividade'social, seja ela realizada na mais cotidiana das situa9oes, ou dentro da formalidade da ciencia. Tudo isso representa uma nova forma de entender a atividade cientifica e o papel do investigador, o que constitui um novo ponto de partida para as ciencias sociais. No entanto, como podemos facilmente deduzir, o processo de interpreta9ao nao consiste em uma mera compreensao hermeneutica ou em uma pura captagao do sentido. Para entender em que consiste a interpreta9ao e precise, antes de qualquer outra coisa, analisar o papel da linguagem. Michael Billig abordou essa questao especificamente em uma das obras de maior influencia dos ultimos anos, o seu Arguing and Thinking (Billig, 1987). Nela ele afirma, entre outras questoes, que a argumenta9ao e a retorica sao a pr6pria essencia da linguagem. Da perspectiva de Billig, qualquer mensagem e ambigua, e todas exigem um esforgo interpretative do/a investigador/a. Nesse sentido, o papel do investigador nao consiste em seguir diregoes de analise que conduzam a um objetivo predeterminado e sim interagir com os argumentos inerentes aquilo que dizem as pessoas e, usando toda a gama de ferramentas analiticas a seu dispor, trazer a luz tudo aquilo que nao esta explicitado. O investigador e, em um certo sentido, um professional cetico, encarregado de escrutar a realidade social atraves da interroga9ao da linguagem que as pessoas usam. No entanto, a obra que mais fielmente sintetiza as premissas que apresentaremos a seguir e o livro Discourse and Social Psychology: Beyond attitudes and behaviour escrito em 1987 por Jonathan Potter e Margaret Wetherell. A influencia que esse trabalho exerceu e continua a exercer nas concep9oes e praticas atuais da AD nas ciencias sociais e extraordinaria. 127

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O autor e a autora adotam a tradigao da linguistica, mas insistem em considerar a palavra como uma forma de agao, captando os ensinamentos da Etnometodologia e da Analise Conversacional. O principle basico em que se baseia sua proposta e que a linguagem pode ser compreendida por seu uso: nao e bom tratar as palavras ou frases como manifestacoes em branco de algum significado semantico neutro; ao contrario, deveriamos ver como a linguagem e usada por falantes em conversas cotidianas e tambem olhar mais acima do nivel da palavra ou da frase. 3.2. A tradigao francesa da AnaLise do Discurso

Na segunda tradigao, desenvolvida fundamentalmente na Franca (Maingueneau, 1987; 1991), estao mais presentes as contribuicoes de Foucault (que ja vimos no capirulo "A linguagem nas ciencias sociais"), os trabalhos da escola russa (Bakhtin, 1982) e a "teoria da enunciagao", uma forma de pragmatica desenvolvida sobretudo na Franga. A mudanga de uma concepcao que considera a linguagem como uma janela dos significados para uma outra que a ve como conjunto de instrumentos que podem regulamentar as relagoes sociais implica, obviamente, um desenvolvimento complexo que apenas esbogamos aqui. No entanto, ele nos serve como base para comegar a descrever como devemos proceder para realizar uma AD. Para qualquer pratica de AD sao necessarias tres operagoes: a diferenciacao texto-discurso, a distingao locutor/aenunciador/a e a operacionalizagao do corpus. 3.2.1. Texto Tendo defmido o que e o discurso, o primeiro problema com que nos deparamos e saber que tipo de textos o 128

configuram. A diferenga fundamental reside na consideracao do texto como conjunto de enunciados transcritos, seja qual for sua origem, ou em uma especificagao maior daquilo que sao autenticamente textos. Ou, formulado como uma pergunta, "qualquer texto constitui um discurso?" Evidentemente, nem todos os textos podem ser considerados discursos. Para que um texto seja efetivamente um discurso e necessario que cumpra certas condigoes. Assim, constituirao um texto aqueles enunciados que tiverem sido produzidos no marco de instituigoes que restrinjam fortemente apropria enunciagao. Ou seja, enunciados a partir de posigoes determinadas, inscritos em um contexto interdiscursivo especifico e reveladores de condigoes historicas, sociais, intelectuais, etc. Nao sao todos os conjuntos de enunciados que cumprem essas condigoes: so o fazem aqueles que possuem valor para uma coletividade, que envolvem crengas e convicgoes compartilhadas. Ou seja, os textos que claramente incluem um posicionamento em uma estrutura discursiva. Nas palavras de Foucault (1969: 198), o texto nao e considerado em si mesmo, e sini como parte de uma instituigao reconhecida que "define para uma area social, economica, geografica ou linguistica dadas as condigoes de exercicio da fungao enunciativa". A relagao com um lugar de enunciagao permite identificar aquilo que esse mesmo autor definiu como formagao discursiva: um feixe complexo de relagoes que funcionam como regras: prescreve o que deveria ter sido relacionado, em uma pratica discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que ponha em jogo tal ou qual enunciado, para que utilize tal ou qual conjunto, para que organize tal ou qual estrategia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formagao e, portanto, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma pratica (Foucault, 1969: 122-123). 129

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3.2.2. Sujeito (enunciador) Outra das conseqiiencias que se origina do ponto de vista que estamos mostrando e aquela relacionada com o tipo de sujeito que constroi. Efetivamente, a origem do emmciado, quem enuncia, nao e considerada necessariamente como uma forma de subjetividade e sim como um lugar. Nesse lugar de enuncia9ao, os/as enunciadores/as sao substituiveis e intercambiaveis. Uma vez mais, nas palavras de Michel Foucault (1969), descrever uma formulae enquanto enunciado nao consiste em analisar as relates entre o autor e aquilo que diz (ou quis dizer, ou disse sem querer); e sim em determinar qual e a posi
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