Magazine de Ficcao Cientifica 03

July 16, 2017 | Author: arcanoide1980 | Category: Cats, Time, Jews, Experience, Science
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Magazine de Ficção Científica N0 3 JUNHO DE 1970 Editorial Contos Estrangeiros Preto + Branco = Verde - Evelyn E. Smith 6 A Metamorfose - Damon Knight 50 Hora de Partir - Douglas Angus 53 Depois do Enfer - Philip Lathan 60 Alter Ego - Hugo Correa 81 O Décimo Segundo Leito - Dean R. Koontz 85 A Estrada Real Para Lá - Robert M. Green Jr. 98 Fora de Tempo e de Lugar - George Collyn 115 Bichos - Charles Harness 131 Conto Brasileiro A Volta de Adalbeu - Walter Martins 140 Ciência O Sétimo Metal - Isaac Asimov 149 Cartas Capa de Jack Gaughan

José Bertaso Filho, DIRETOR Jeronymo Monteiro, DIRETOR DE REDAÇÃO João Freire, GERENTE Associação Brasileira de Ficção Cientifica, CONSULTOR CIENTÍFICO

Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Science Fiction”’ — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada mensalmente pela Revista do Globo S. A.

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EDITORIAL

Recebendo este terceiro número do “Magazine de Ficção Científica” o leitor brasileiro já pode verificar que tem nas mãos um pequeno tesouro e, o que é melhor, um tesouro que se oferece todos os meses à sua gulodice intelectual e literária. A FC é realmente um tesouro no campo da literatura: um gênero que, nascido não faz muito tempo, conquista terreno rapidamente, impondo-se à preferência das pessoas que, gostando de ler, se encontram subitamente ante um panorama extraordinário que só pode ser visto quando corajosamente se afastam as cortinas que impediam à imaginação o avanço no espaço e no tempo — cortinas que permanecem cerradas à literatura tradicional. Nesta época tumultuada, em que os povos se agitam, a ciência e a técnica avançam como carros de assalto, o homem de pensamento precisa de novos meios para se exprimir. Onde buscar esses novos meios? Na ciência e na técnica, no tumulto do pensamento moderno. É a ficção científica que nos dá a possibilidade dessa realização. Por isso é a literatura do momento e é, principalmente, a literatura do futuro: progride, cresce, se avoluma juntamente com a ciência e a técnica, juntamente com o pensamento, as dúvidas, as reivindicações do nosso século. É o retrato mais válido desta época de transição que estamos vivendo, momento em que os cientistas moldam, em todos os campos, o mundo futuro. Temos neste número uma noveleta de Evelyn E. Smith: “Preto + Branco = Verde”. É um estranho trabalho, cheio de humor, 4

em que se debatem o problema racial, o problema sociológico, o choque das gerações. “Metamorfose”, do grande Damon Knight é um conto curtinho, que poderíamos chamar de brincadeira literária, deliciosa e dramática fantasia de amor e ciúme com feitiçaria pelo meio. O conto nacional é de Walter Martins o qual; que nos lembremos, só não juntou o cômico à tragédia em sua estória “Tuj” (publicada na coletânea da EDART “Além, do Espaço e do Tempo”). Em outras, como “Ohmmmmmml”, “O Forte” ou “O olho”, o autor tira das situações embaraçosas em que vivem suas personagens, uma deliciosa comicidade irônica. Neste conto, “A volta de Adalbeu”, ele deixa a FC e se diverte no mundo da fantasia, fazendo o diabo com o pobre diabo Adalbeu. Queremos destacar, ainda o 2.° artigo “metálico” de Asimov, “O Sétimo Metal”, que continua o assunto começado no n.° 2 e se encerrará no n.° 4. É, como das outras vezes, uma estória rigorosamente científica, com o sabor delicioso que Asimov sabe dar ao que escreve. Os nossos leitores têm a liberdade de nos escrever sobre qualquer assunto ligado à FC, seja no que se refere aos trabalhos que estamos publicando, seja sobre coisas nacionais ou estrangeiras que ainda não apareceram em nossas páginas. Gostaremos de manter diálogo com todos, através da seção de Correspondência desta revista. As cartas deverão ser enviadas à Av. Vieira de Carvalho, 197 — ap. 9-D — São Paulo -— Z.P. 2, para J. Monteiro

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PRETO + BRANCO = VERDE Evelyn E. Smith

Trad. de Aydano Arruda

Embora, ao contrário do jovem David Copperfield, eu não afirme ter tido experiência pessoal de acontecimentos ocorridos antes que eu tivesse sido sequer concebido — as ocorrências que finalmente levaram a meu aparecimento neste plano e neste planeta foram-me contadas tantas vezes e tão minuciosamente por todos quantos tiveram qualquer relação com um acontecimento que nem mesmo minha mãe poderia descrever como venturoso — que eu me sinto muito mais habilitado a relatá-lo como foi, por assim dizer, do que os principais participantes ou seus manipuladores bem intencionados e por isso duplamente culpados. Minha história... não, não ainda minha história, mas história daqueles dois jovens que, embora não se amassem, patrocinaram meu nascimento, poderia ter um início arbitrário na tarde em que Gherkin, depois de deixar seu grupo de manifestantes e concluir seu dia colegial, entrou na Bobbery Shop, com expressão preocupada na amorfa fisionomia adolescente. Essa abstração não foi percebida por Calliope, pois ela estava cheia de notícias e ansiosa por contá-las. Por isso, embora sua primeira pergunta: — “Em que diabo de lugar você desapareceu saxta-feira à noite?” — desse superficialmente impressão de expressar bondoso interesse, era apenas retórica. Isso porque, tão logo êle abriu a boca para contar as coisas estranhas e maravilhosas que lhe haviam ocorrido na noite da sexta-feira em questão, ela se pôs a relatar borbulhantemente suas próprias e insignificantes aventuras. 6

— Fiquei cansada de esperar que você aparecesse, por isso fui sozinha à boca de Mattie e — imagine o que aconteceu! — nós fomos todos em cana. . . ou quase, pelo menos! Tínhamos acabado de acender quando a justa apareceu e arrastou-nos todos para a central . . . muito pouco violentamente — acrescentou, pesarosa, pois sabia que uma quase prisão ou mesmo uma prisão total sem confrontação dinâmica era insuficiente para qualificá-la como autêntica ativista. — Depois descobriram que a erva que haviam apreendido na boca de Mattie não era senão erva-dos-gatos e parece que ainda não existe lei proibindo fumar isso. Então mandaram que déssemos o fora. Sem dar dinheiro para condução, nem coisa nenhuma! — Franziu a testa. — Mas você acha que era com aquilo que estávamos sempre ficando baratinados na boca de Mattie, com pura, simples e antiquada Nepeta Cataria? — Bem, gatos ficam baratinados com aquele negócio — disse Gherkin, ainda muito preocupado, quase ansioso, se alguém tivesse tido a decência de reparar — por que gente não haveria de ficar? Por falar em gatos. . . — Mas os preços que Mattie estava cobrando! Por um negócio que a gente podia comprar em qualquer lugar! E ela parecia tão humana, você sabe o que quero dizer, que nunca imaginei que fosse uma traidora. O pior é que agora não tenho lugar algum para ir na próxima sexta-feira. Não é fácil atualmente encontrar uma boca agradável e respeitável. A essa altura, reconheceu Gherkin, não apenas como ouvinte semelhante ao muro das lamentações, mas como um indivíduo com suficiente identidade própria para sofrer junto com ela... e isso era bem feito para êle por ter-lhe dado o cano: — O que significa que você também não terá onde ir na próxima sexta-feira, a menos que tenha descoberto outro lugar onde eu não seja bem recebida... e nesse caso você pode falar francamente. Eu não sou de fazer cena onde não me queiram. — Se você pelo menos calasse a boca e me desse oportunidade. . . Eu descobri um lugar novo. Por isso é que não fui na boca de Mattie. Fiz uma viagem. — Estava cheio de si porque a coisa fora para valer; no fim-de-semana havia descoberto a chave que abria o universo. — Fiquei baratinado o tempo todo e foi. . . — fêz uma pausa para procurar a palavra exata — foi o fino. Disseram que eu podia voltar na próxima semana e levar um amigo comigo, por 7

isso.. . — Seu gesto de convite foi quase palaciano. Calliope estava impressionada, contente e assustada. — Você quer dizer. . . ácido? Puxa, mas pode ser perigoso: Eu sei que os conservadores estão sempre tentando abafar tudo quanto realmente tem significação, mas acontece que sei disso por boa autoridade, foi um estudante de biologia quem me disse que é verdade mesmo. O negócio pode atrapalhar os cromossomos — você entende o que quero dizer? — e quando a gente tem filhos eles nascem aleijados ou coisa semelhante... — Não era ácido! Pensa que eu sou bobo? Era outra coisa, uma coisa nova e... bem... uma coisa nova. Absolutamente inofensiva, segundo garantiu aquele gato, sem efeitos secundários inconvenientes, sem formação de hábito, sem nada. Como podia êle ser tão crédulo, como se atrevia a ser tão crédulo e exibir sua superprivilegiada inocência diante dela? — Como é que você pode ser ingênuo assim, homem? Acha que eles iam chegar e dizer que em cada viagenzinha que você fizesse deixaria um pedaço da mente no caminho? Posso garantir-lhe que essa não é a espécie de conversa capaz de atrair fregueses. A propósito, quanta gaita tomaram de você? Êle hesitou e finalmente admitiu: — Nem um centavo. Disseram que estavam fazendo isso... bem... como um serviço público... — Ai, ai, ai! — A fisionomia de Calliope estava revoltada, sua voz estava revoltada, até mesmo a maneira como enfiou a colherinha na bola de sorvete de pistache estava revoltada. — Você engoliu isso? Nunca lhe contaram a história da cobra e do passarinho? Isso está cheirando muito a operação comercial. Claro, é de graça na primeira vez, é muito barato na segunda e talvez mesmo na terceira. Depois, quando você está fisgado e chorando de joelhos, eles começam a apertar o parafuso. É o sistema, menino. — Mas esses gatos não fazem parte do sistema. Vêm de fora do sistema. — Interrompeu-se e depois dando impressão muito falsa enquanto se levantava disse: — Eles são diferentes. — Você é diferente. Eu sou diferente. Mas não pode haver alguém mais diferente do que isso? Preto, branco, macho, fêmea, não bastariam essas diferenças? — Que importância tem isso? — disse êle impacientemente. — Eram bonitos; o negócio todo era bonito. No começo, porém, a coisa não fôra bonita. De fato, começara 8

bem feia e êle pensara, até onde era ainda capaz de pensar depois de o negócio ter começado, que ia ser uma daquelas viagens horríveis de que a gente ouve falar, mas nunca espera que aconteça a uma pessoa estável e quimicamente equilibrada como a gente. Calliope perguntou-lhe exatamente, como tomara o negócio; mas êle não conseguia lembrar-se; sabia apenas que não o havia engolido nem fumado, nem lhe tinham dado unia injeção. — Talvez tenha sido uma espécie de gás. Lembro-me de ter sentido um cheiro engraçado no meio da coisa, mas me disseram que era ar fresco, que eu não reconhecia porque nunca tivera oportunidade de cheirá-lo antes. Fosse o que fosse, haviam-lhe aplicado aquilo, que o deixara enjoado, fisicamente enjoado, a principio como quando a gente se sente muito mal numa viagem por mar, depois pior e ainda pior, irradiando da boca do estômago pelas extremidades até os dedos e a cabeça ficarem completamente entorpecidos e trêmulos; depois, inexoravelmente, começara a sentir-se virando de dentro para fora, pouco a pouco e angustiantemente. Era como se estivesse em algum lugar à distância, vendo. . . não, não exatamente vendo, mas observando seu próprio reviramento. Todas as suas entranhas rastejavam sobre êle como serpentes e apertavam, cada vez mais, comprimindo o que restava dêle em uma pequena bola preta com o cérebro encolhido dentro gritando de terror até reduzir-se a nada e êle apagar-se no infinito. Quando voltou à consciência, viu que fora... montado de novo, não só em outro lugar, mas em outro onde. — Como outro mundo, sabe? — Você quer dizer como Oz, a Terra do Nunca Nunca, Atrás do Espelho, coisas dessa espécie? Êle hesitou, mas finalmente concordou : — Sim. — Como se fosse mais fácil isso do que tentar dar-lhe êle próprio um nome. Tentou decompor tudo em pormenores; pudera ver cores que não existiam no espectro que conhecia... ouvira sons que eram... bem... não tinha palavras para descrevê-los, mas a parte feia estava acabada, liquidada, dissolvida. A partir de então tudo era beleza. Como êle parecia estar em queda livre — o negócio evidentemente não era desprovido de efeitos secundários, ainda que lhe 9

tivessem afirmado o contrário — ela perguntou quem ou o que estava com êle nesse universo de sonho simplista, não porque estivesse interessada (já ouvira alucinações melhores), mas porque queria trazê-lo de volta para o que, fosse o que fosse, passava presentemente por realidade. Depois de uma pausa, êle finalmente falou que era gente... “uma espécie” de gente. E entre essa gente uma pessoa especial. Em suma, uma garota. Mas... lá vinha êle outra vez... diferente de todas as outras garotas que já conhecera, realmente diferente. Em primeiro lugar, ela era verde. — Você está realmente obcecado por esse negócio de côr, não está, menino? Preto e branco não são o bastante para você como para a maioria das pessoas; você precisa ter verde também! — Tudo lá... tudo que era de lá, que vivia lá... era verde — respondeu êle, muito defensivamente. — Não quero dizer que sua pele fosse realmente verde.. . — Bem, isso já é um alívio. Já temos suficientes problemas cromáticos... — Quero dizer que tinham pêlos verdes, por isso não sei de que côr era sua pele. — Sua garota de fora deste mundo era coberta de pêlos como um gorila? Uma gorila verde? Bem, devo admitir que isso sem dúvida é diferente! Gherkin estava aborrecido. — Ela absolutamente não era como um gorila. Seus pêlos eram macios e delicados como flocos... Calliope fêz uma careta e Gherkin sorriu relutante, corrigindo depois para “... como penugem ou veludo.” — Suponho que ela tinha cauda também. — Bem, claro, isso é que a tornava tão bonita. Quero dizer, eu não tenho a menor idéia até que ponto um rabo pode ser bárbaro quando a gente.. . — começou êle, interrompendo-se depois. — Quer dizer que você andou com essa pessoa de rabo verde? Êle não falou, mas pela expressão obscenamente rapsódica em sua fisionomia, ela pôde ver que havia andado e que fora uma boa cena. — Que diabo, Callie — explodiu êle — ela só existia em minha mente, portanto que importância tem isso? Eu já tive sonhos iguais a esse antes. 10

Pela maneira como êle falava, pela aparência que tinha, porém, nunca antes, sonhando ou acordado, andara com alguém como aquela garota verde. Não que êle tivesse muita experiência sexual; e Calliope, para seu próprio embaraço, não tinha a menor experiência. Contudo, embora virgem por circunstâncias, ela sabia que poderia ser mais bárbara do que qualquer garota verde, mais bárbara do que qualquer garota em todo o universo, tão logo aprendesse bem como era a coisa. As vezes pensava que a razão pela qual Gherkin nunca tentara uma interação física com ela era ter medo de iniciar uma principiante e às vezes imaginava que talvez êle tivesse alguma espécie de inibição sexual (já lera teorias sobre o assunto), mas na maioria das vezes achava que, por mais liberal e humanístico por dentro que êle fosse, aquele negócio da pele ainda o preocupava. Nesse caso, poder-se-ia dizer que sua alucinação de andar com uma garota de pêlos verdes significava que estava tentando vencer sua própria rejeição inconsciente de Calliope. Mas essa era maneira muito psicológica de encarar as coisas. Não, a verdade provavelmente é que êle pensava nela como em uma alma irmã. Pela maneira como Gherkin sorria consigo mesmo Calliope pôde ver que para êle a garota verde era mais do que mera projeção de fantasia com a qual tivesse passado um imaginário fim-desemana. Poderia haver uma explicação racional. — Talvez enquanto estava pensando em flocos verdes, você estivesse realmente andando com uma das garotas que faziam a viagem em sua companhia. — Isso é que é engraçado; não havia ninguém mais fazendo a viagem. Ninguém que eu tenha visto, pelo menos, exceto os gatos que organizavam o negócio, e eu tenho a idéia de que eles realmente não participavam. Eram mais do tipo frio, científico. Calliope ficou contente por ter uma razão-valor para verbalizar seu choque. — Mas isso! é errado. Fazer uma viagem sozinho. . . isso é doentio, completamente pervertido. Viajar é coisa que precisa ser feita em conjunto, senão é apenas uma fuga, você sabe o que eu quero dizer. E os verdinhos, aqueles que você têm na mente, não contam. — De fato — disse êle — depois de ter chegado a... aonde quer que fosse... tinha um nome, mas êle o perdera em algum lugar na 11

volta. . . vira outras pessoas, à distância, pessoas de sua própria espécie, sem pêlos e, sim, sim, sim, pretos tanto quanto brancos. “Na verdade, não prestara muita atenção. Quem se daria ao trabalho de olhar seres humanos com suas feias e lisas peles plásticas rosadas (ou pardas ou pretas), quando havia a gente verde de pêlos macios para ser olhada, garotas como... que diabo, perdera o nome dela também... para serem olhadas e amadas... ? Naturalmente — disse depressa antes que Calliope tivesse qualquer oportunidade — sabia que os sêres humanos não importavam mais do que a gente verde quando se tratava da realidade; deviam ter existido também só na sua mente. Mas parecia uma experiência de grupo, de modo que era uma boa cena. — Não — disse-lhe ela — fora mau, por melhor que parecesse, porque a solidão era a raiz de todos os males, levando à alienação, à perda de identidade, a toda espécie de desligamento. O instinto tribal era o único instinto sólido que o homem tinha, o único que podia ajudá-lo. Gherkin disse-lhe que parasse de fazer sermão; ela estava parecendo uma mãe e mãe êle já tinha demais. — Tentei falar com você pelo telefone durante todo o fim-desemana — disse Callie. — Havia dois concertos e uma manifestação no Central Park, à qual pensei que poderíamos ir juntos, mas ninguém atendeu em sua casa. E que teria acontecido se outra pessoa, que não Gherkin, tivesse atendido, perguntou ela a si mesma, pois nunca tivera oportunidade de telefonar-lhe em casa antes, uma vez que êle quase sempre estava no lugar onde ela também estava. Ela não conhecia os pais dele, nem êle os dela, pois hoje em dia ninguém apresenta ninguém aos pais. A gente não deixa que eles entrem em coisa alguma que seja real e decente; conserva-os em seu lugar, enquanto ainda há lugar para eles., Nem sequer lhes conta seus nomes reais e pessoais, dados pelo grupo. No entanto, teriam ambos se conformado rigorosamente com o padrão tribal se eles e seus pais fossem diferentes do que eram? A mãe de Calliope era professora primária; o pai trabalhava nos Correios. Ambos se dedicavam a todas as causas justas, sendo que sua mãe se envolvia mais por causa de seu trabalho — esperava-se que uma professora fosse militante, se soubesse o que lhe convinha — mas no íntimo nenhum deles era o que sua filha 12

teria considerado verdadeiramente engajado. Haviam trabalhado tanto para chegar à posição de classe média que não a abandonariam levianamente ao grito de “Pai Tomás” e, embora fossem bastante espertos para não se abrir e dizer isso, alguns de seus melhores amigos eram pessoas brancas, entre as quais em geral se sentiam pouco à vontade. Tanto o Sr. como a Sra. Fillmore haviam nascido no Harlem antes que a imprensa tivesse começado a chamá-lo de “gueto”. — Quando eu era menino, as pessoas usavam a palavra gueto para designar um lugar onde viviam judeus —- costumava dizer o Sr. Fillmore, perplexo. -— Falavam mesmo em um “Gueto Dourado”, onde viviam judeus ricos. Como é que de repente passou a significar um bairro de negros pobres? — Ouça o que eu digo, é tudo culpa daquele Sammy Davis Jr. — falava a velha tia Ada, tia do Sr. Fillmore, que, embora tivesse emigrado do Sul meio século antes, recusava deixar-se reconstruir. — O que eu digo é que nada tenho contra judeus, mas quando a gente nasceu com uma desvantagem, por que ir procurar outra? E quando seu sobrinho acentuava que Sammy Davis Jr. parecia estar indo muito bem apesar de ambas as desvantagens, ela dizia: — Judeus sempre ajudam judeus. Callie nascera no Harlem, mas ela e seus pais moravam então em um moderno e imponente conjunto residencial de pessoas de renda média no Upper West Side, que era integrado, no sentido de que qualquer negro capaz de pagar os exorbitantes aluguéis e apresentar as severas referências exigidas era bem recebido. Contudo, os Fillmore estavam começando a achá-lo cada vez menos atraente. As paredes eram tão finas que se podia ouvir tudo quanto se passava nos apartamentos vizinhos, desde a família-espanhola com suas bebedeiras, até os italianos com suas brigas aos gritos. — E uma vez que todo o mundo tem água corrente quase todo o tempo — observava a Sra. Fillmore — seria de esperar que as crianças andassem mais limpas. Havia outra coisa que aborrecia a Sra. Fillmore: sempre que punha o nariz para fora do apartamento, ia para o vestibulo ou entrava no elevador, todos os inquilinos brancos faziam questão de conversar com ela. 13

— Entre eles, não informam nem que horas são. Será que não percebem que nós também gostaríamos de ter um pouco de sossego? A família de Gherkin era de classe média desde muitas gerações antes. Êle nem ficava constrangido por isso e, quando o es-picaçavam, dizia com ar de tolerância : — Afinal de contas, é a burguesia que, queira ou não queira, sempre paga as despesas de revoluções. Os Rosenblum viviam em uma casa de East Side, que possuíam há séculos, de modo que não era como aquelas muito modernas e caras, mas. . . No entanto, isso também não deixava Gherkin embaraçado; a única coisa que parecia preocupá-lo era o fato de seu pai ser dentista. Parecia achar que havia algo ligeiramente vergonhoso nessa velha e nobre profissão. A mãe de Gherkin não trabalhava fora de casa. Fora modelo até ter o primeiro filho, a irmã mais velha de Gherkin — agora casada com um próspero pedicuro de Los Angeles — e nunca mais voltara a trabalhar, pois o Sr. Rosenblum não aprovava que mulheres trabalhassem fora de casa, a menos que fosse por uma razão realmente importante, como ajudar seus maridos a concluírem os estudos na escola de odontologia. — Agora que Roz e eu já estamos crescidos, mamãe participa ativamente de uma porção de comissões e coisas semelhantes — dizia Gherkin desdenhosamente, mas Calliope nada via de errado nisso — nem no fato de uma esposa não precisar trabalhar fora de casa. Gherkin pareceu não importar-se por Callie ter-lhe telefonado em casa, mas mesmo que se importasse teria o cuidado de não demonstrar. O mesmo provavelmente fariam seus pais, ainda que pudessem reconhecê-la pela voz. Liberais eram assim fingidos. — Acho que mamãe e papai devem ter ido ver, aquela casa que estão comprando nas West Seventies. — Nas West Seventies? Por que não se mudam para Long Island como todas as outras.. . hum. . . pessoas prósperas? — Dizem que deixar a cidade seria um desligamento. Êle e Callie riram gostosamente à idéia de que seus pais pudessem pensar que alguma coisa que fizessem não fosse desligamento. — Fale-me sobre a casa. É uma daquelas casas de pedra 14

e, seus pais vão transformá-la em apartamentos ou vão ocupar o prédio inteiro? — Quem pode dar-se ao luxo de ter uma casa particular em Nova Iorque hoje em dia, mesmo que seja no West Side? — disse êle, jubilosamente inconsciente de nuanças capitalísticas. — Além disso, ouvi dizer que há uma vantagem de impostos se fizerem dela dois “duplex”... com um pequeno buraco no porão para alguns infelizes trogloditas. Eles. . . — prosseguiu, imitando o que era presumivelmente a voz de sua mãe, pois não havia razão para supor que seu pai tivesse voz fina e aguda — ... estão procurando uma família realmente congenial para morar no outro duplex. Acho que não se importarão, com quem ocupe o porão, desde que seja... — enfrentou o olhar de Callie — ... gente sossegada. — Quantos aposentos são? há muito jardim e não é uma pena que o jardim fique para o apartamento do porão? Gherkin disse acreditar que eles estavam planejando construir escadas no fundo do andar térreo para o jardim, de modo que os moradores do porão ficariam privados de todas as vantagens. Afora isso, nada mais sabia sobre a casa; e ainda mais, nem se incomodava. —- Você não está nem um pouquinho curioso? Calliope era uma construtora de ninhos. Gostaria de ver a casa, discutir reformas e padrões de papel de parede, ajudar a planejar os banheiros. Desejava ter a coragem de pedir uma confrontação com a mãe dele, uma apresentação, pelo menos... — Como é que você nunca atendeu ao telefone? Também esteve fora todo o fim-de-semana? — Você não escuta nada do que lhe conto? Estive fora... — disse, dando uma risadinha — ... Verdelândia. — Quer dizer que esteve lá o fim-de-semana inteiro e não só a noite de sexta-feira? Êle olhou-a intrigado e disse que pensava ter tornado claro que a viagem durara dois dias e três noites, como realmente acontecera. Por alguma razão confusa, preocupava Callie o fato de tudo o mais ter sido tão deformado, mas não o tempo. Além disso, onde permanecera seu corpo durante todo o tempo em que estivera fora... em algum lugar em Long Island, dizia êle... em um estupor? Provavelmente sobre um piso frio. Se não tivesse cuidado, provavelmente apanharia pneumonia. 15

Quando êle lhe perguntou claramente se desejava fazer a viagem em sua companhia no fim-de-semana seguinte, ela respondeu que não, mas só como princípio, porque sabia que no fim concordaria .. . curiosa por experimentar o que êle experimentara, mas, ainda mais temerosa de que, se recusasse, êle levasse outra garôta consigo para partilhar daquela coisa, fosse o que fosse. Em seguida, depois de ter dito sim, está certo, eu irei, chega de insistir, êle mencionou casualmente, muito de passagem, que, a propósito, o gato que dirigia a operação havia dito para não levar alguém de mais de dezoito anos. Gherkin não percebia como era sinistra essa estipulação? Porque hoje em dia, embora seja do conhecimento geral que, depois dos vinte e um anos, cada ano você morre um pouco até que, quando chega aos trinta, não existe mais, é apenas uma coroa (e isso era o que havia de mais errado no mundo de hoje; os coroas é que mandavam); más, sendo as leis feitas por coroas, ninguém que lidasse com coisas reais iria fazer um esforço deliberado para pegar cadeia e aumentar suas dificuldades. — Tem certeza de que eles não são feiticeiros, ou coisa semelhante, à procura de uma jovem e liiiinda virgem para sacrificar no altar de sua inominável lascívia? Êle olhou-a com ar de dúvida, ela percebeu, apesar de sua trêmula risada, duvidando que fosse uma piada, duvidando se no fundo de sua mente ela realmente acreditava em coisas daquela espécie, sombrias tradições vodus herdadas de seus bárbaros antepassados, etc: Ocorreu-lhe então que aquilo que o mantivera afastado dela naqueles meses não era o fato de ela ser preta (na verdade, uma espécie de pardo escuro, mas descrever-se ou imaginar-se como outra coisa que não preta era desligamento nos dias de hoje, a menos que se fosse branco), mas o fato de ela não ser primitiva além da norma da mulher mediana de dezesseis anos, destruindo assim todo seu preconceito de macho branco racista sobre como eram as moças negras, mesmo tipos alfabetizados com alto Q.I. Esperava que nesse momento aquilo fosse trazido à luz, para que pudesse pisar um pouco, no ego de Gherkin, mas êle se desviou habilmente do assunto. — Não há razão para supor hoje em dia que, apenas por ter menos de dezoito anos, uma moça seja virgem. Além disso, êles não disseram para levar uma moça; disseram para levar um amigo, sem especificar o sexo. Explicaram que a potência criativa do 16

homem está.. . hum... no auge quando êle tem dezessete ou dezoito anos, depois começa a declinar. Acho que queriam dizer que o negócio não funciona tão bem em pessoas mais velhas, então por que desperdiçá-lo? O que tem sentido. Essa era uma das coisas que preocupavam Callie. Tão poucas coisas faziam sentido hoje em dia que o racional era quase automaticamente suspeito. Além disso, as vibrações que recebia do negócio todo eram muito ruins. Tentou apertá-lo. — Exatamente como você descobriu essa boca? — Não era uma boca, estritamente falando, explicou êle. — Ligara para o número constante de um anúncio que lera no Villagc Voice, e ela não encontrou muito consolo nisso, embora não houvesse tanto em que basear uma objeção positiva quanto se tivesse, sido, por exemplo, no East Village Other. — Exatamente que dizia o anuncio? — Oh! algo assim como “indivíduos jovens e empreendedores que estejam dispostos a viajar e que desejem fazer uma viagem incomum, com todas as despesas pagas”. Apresentavam o negócio muito friamente. — Claro que apresentavam — concordou ela, pensando em algum meio de fugir à sua promessa. Nos dias que se seguiram não se encontrou muitas vezes com Gherkin pois, sendo estudante com bolsa e temerosa de perder os privilégios que não conseguia considerar como seus por direito liquido, só participava de marchas nos períodos de estudo, escolhendo apenas as mais delicadas manifestações para emprestar seu timido apoio.. . enquanto Gherkin enforcava aulas e acusava a polícia de relações edipianas antinaturais, com o arrojado desprendimento do estudante cujos pais, se êle fosse reprovado nos exames finais, pagariam outro semestre e mesmo, supondo-se que a administração se erguesse em suas pernas traseiras e o expulsassem, providenciariam sua transferência para outra instituição menos antiliberal. Ela se sentia culpada por não ser capaz de entregar-se totalmente à luta ao lado dele na arena acadêmica; todavia, esse ônus pelo menos foi-lhe poupado no meio da semana quando, depois de várias e vigorosas redefinições de princípios, as manifestações no campus polarizaram-se em linhas radicais, com brancos do lado 17

dos bairros e pretos do lado da cidade, enquanto sua Sociedade de Marchas e Manifestações de Mulheres (assim chamada por seus detratores) se dissolvia diante do restaurante, uma vez que a questão de alimentação tragável no campus adquiria aspecto insignificante em relação às momentosas, embora indefinidas ou talvez por serem indefinidas, questões que motivavam os outros manifestantes. Seu coração pulou quando um estudante de jornalismo do campus do lado dos bairros deu a notícia de que a encrenca lá se transnformara em verdadeira confrontação cinemática entre estudantes e policiais, que acabou com os corruptos lacaios da estrutura de poder atacando brutalmente um grupo de jovens pacíficos, desarmados e afáveis, espancando-os com cassetetes, dando-lhes pontapés nas virilhas e executando outros atos típicos da brutalidade policial antes de arrastá-los para viaturas e levá-los para o posto policial, onde ainda estavam sendo submetidos a inomináveis torturas. Embora Calliope desejasse sinceramente que Gherkin não estivesse ferido, ficaria satisfeita se êle permanecesse em cana por um pouco de tempo, o suficiente para tornar-lhes impossível iniciar sua viagem na sexta-feira. Todavia, mesmo fazendo o devido desconto para o exagero natural que era o único método significativo de que as minorias oprimidas dispunham para transmitir sua mensagem através da barreira de parcialidade dos veículos de massa da classe média, a história toda mostrou não ter mais que ligeira relação com os fatos reais, nos quais a polícia jogara por engano o chefe do departamento de matemática por uma janela, com a impressão de que era o presidente da universidade. Depois de uma boa risada geral, a manifestação do dia terminara com demonstração de extraordinária harmonia entre estudantes e policiais. Gherkin estava livre, impaciente por atender a seu compromisso de sexta-feira à tarde; e sua impaciência, sabia Calliope, não era por causa dela, mas por causa daquela maldita garota peluda com quem êle esperava encontrarse de novo nas pastagens verdejantes de sua mente. — Mas por que temos de ficar todo o fim-de-semana? — perguntou queixosamente Calliope quando entraram no metrô. — Acho que é o tempo que leva para fazer efeito. Ou então para que a gente volte. — Tinha um ar apreensivo. — Você contou a seus pais uma história qualquer para disfarçar, não contou? Que18

ro dizer, eles não vão mandar uma turma de salvamento ou coisa parecida? — Que pensa você que eu sou? Criança? Contei a eles que ia ficar na casa de Marjorie e, como êles não conhecem Marjorie, pensam que tudo está muito bem. Só que... bem, eu quase odeio mentir-lhes. . . — sua voz ficou muito fraquinha no fim. Êle tinha um ar muito resoluto. — Bem, se eles têm mentalidade tão estreita não resta a você outro recurso senão mentir-lhes. Fundamentalmente são eles os culpados por forçá-la à desonestidade. É ponto preto contra eles, não contra você. Ponto branco, ponto rosado, ponto verde... por que precisava êle dizer preto? — Que é que você disse a seus pais? — perguntou. — Ou eles são incapazes de espionar sua vida particular ? Gherkin fêz um ruído borbulhante, um som de desprezo. — Se fossem, não seriam pais. Contei-lhes que ia passar o fim-de-semana com alguns colegas no interior do Estado, fazendo algo masculino como matar pequenos animais. Não havia outra alternativa. Até que a família como conceito seja reestruturada ou inteiramene eliminada, a única maneira de lidar com pais é mentirlhes. Mas por que dar-se ao trabalho de mentir a não ser para evitar ferir os sentimentos deles, porque os amava? Nesse caso o defeito estava na hipocrisia ou no amor? Pela rapidez com que Gherkin acusava de incesto maternal qualquer um de quem divergisse, Callie deduzira que êle tinha um complexo e já se entregara a interessantes especulações sobre as possibilidades de a moça verde representar a mãe dele, caso em que os pêlos e a cauda deviam ter alguma significação profunda que ela não conseguia entender. — Verde é a côr preferida de sua mãe? — perguntou. — Não — respondeu êle. — Mas Green* era seu nome de solteira. Pronto, se isso não provava alguma coisa, ela não sabia o que poderia provar. Foram até o fim da linha em Queens, onde o metrô se trans-

* Green, em inglês, significa verde (N. do Trad.)

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formava em ferrovia elevada, de modo que precisaram descer escadas para sair, o que pareceu a Calliope de um sabor tão fantástico que ela se sentiu como se já tivessem começado a viagem; afinal de contas que poderia haver de mais sobrenatural do que um metrô no ar? Depois tomaram um ônibus que avançou sacolejante durante meia hora até desembarcá-los em um lugar que parecia ser o meio de nenhures. Dali para frente, disse Gherkin, iriam em bicicletas. — Bicicletas? Você está me gozando. Em primeiro lugar, onde vamos arranjar bicicletas? Em segundo . . . — Estarão atrás daquele barracão, esperando por nós. E estavam mesmo, duas Schwinn Racers, muito brilhantes e com aparência de novas. E não havia uma pessoa à vista. ‘’Deve ser uma vizinhança muito honesta”, pensou ela ressentida. Hesitou antes de arriscar-se a montar a bicicleta. . . temerosa por sua mente, por seu corpo e até mesmo por sua virgindade que se tornara repentinamente preciosa. Nunca antes havia andado de bicicleta. Nunca tivera o menor desejo de andar de bicicleta. — É uma sorte você não estar de saia, pois ambas são bicicletas de rapazes. — Você sabe que eu praticamente nunca uso saia. — Bem, que está esperando? Não havia saída. Montou. — Tem certeza de que conhece o caminho ? — perguntou, cambaleando rua abaixo mais ou menos ao lado dele; felizmente havia pouco trânsito. — A única coisa de que precisamos para estragar realmente a tarde é nos perdermos neste deserto. — Para dizer a verdade, eu não conheço o caminho. Estas são bicicletas que voltam sozinhas para casa. — Oh! deixe disso. Há coisas que passam da conta, se você entende o que quero dizer. Se não quer contar-me seus segredinhos, está muito bem, mas não escolha uma hora em que estou em perigo de vida para fazer gracinhas. O engraçado, porém, era que, embora estivesse pedalando furiosamente, ela parecia não ter pleno controle da máquina. A princípio atribuiu isso à falta de familiaridade com a bicicleta. Depois, num momento em que Gherkin começou a virar uma esquina e ela, absorta em sua própria tagarelice, continuou avançando em 20

linha relativamente reta, pareceu-lhe que a bicicleta virara de fato sozinha para segui-lo. Mas isso era apenas imaginação; provavelmente seu inconsciente estava seguindo fielmente Gherkin. Bicicletas e ciclistas pararam diante de um grande armazém, da espécie de edifício ostensivamente indefinível que gangsters de cinema usam como fachada. Havia um gato parado do lado de fora. olhando-os, um verdadeiro gato, amarelo avermelhado, com coleira dourada guarnecida de pedras verdes. Fitou-os, depois se virou e entrou trotando no edifício. Calliope teve a fantástica impressão de que êle fora na frente para anunciá-los. Quando encostaram as bicicletas cuidadosamente na parede de tijolos do armazém, um homem havia aparecido para fazê-los entrar, um indivíduo ágil, de cabelos avermelhados, rosto afilado, olhos verdes e pele tão branca que parecia ter sido deixada de molho em alvejante. Usava algo que parecia ser uma mistura entre roupa de caçador submarino e traje de astronauta, em vinil perolado muito justo, muito moderno e provavelmente muito caro. Todo o ambiente interior parecia luxuoso, esterilizado e funcional, a ponto de ostentação, e (Gherkin tinha razão) mais semelhante a um laboratório do que a uma boca. Seria ridículo demais se tivessem caído nas mãos de um cientista louco. Calliope pretendia fazer perguntas de toda espécie, mas, antes de saber como, já estava sendo levada para algo sinistramente semelhante a uma cadeira de dentista (algo saído do inconsciente de Gherkin) sem ter tido a menor oportunidade de abrir a boca. Tudo muito rápido — só que não parecia rápido; parecia mais, que o tempo fora retardado para ela enquanto o gato se movia em velocidade normal. Ainda assim seria, de pensar que haveria alguma espécie de formalidade, uma troca de nomes falsos, algo à maneira de transição, senão de convenção. — Mas que é essa coisa toda? — perguntou ela, enquanto o homem mexia em mostradores e chaves de algo que parecia um computador ou gigantesco painel de controle, terrivelmente tecnológico, fosse lá o que fosse. — Seu amigo certamente lhe contou — disse o homem, com ligeiro sotaque estrangeiro. — Contou, mas nada disse de realmente significativo sobre a experiência. Êle não. . . — Eu mesmo não compreendi muito bem — explicou Gherkin 21

de um... cubículo. . . uma espécie de cubículo vizinho. . . onde estava sendo instalado em outra cadeira de dentista por um homem de cabelos escuros que usava traje de vinil preto com sapatos de tênis brancos. Tinha também olhos verdes e a mesma pele mais branca do que o branco. Você achou mais sensato deixar que ela interpretasse sua própria experiência — disse o homem de cabelos vermelhos, dirigindo-se a Gherkin. —- Boa idéia, especialmente porque suas comunicações .. . — Eu não sou um. . . Eh! — exclamou Calliope. — Pare com isso, está me ouvindo, homem? Ninguém falou nada em ser amarrado. Positivamente, eu me recuso, a... — Creia-me, é necessário. — O homem prendeu as fivelas dos amarrilhos, fossem eles o que fossem na realidade. — Diminui o desconforto inicial da viagem. Sem isso você poderia ser esmagada. — Deixe-me sair daqui já, senão derrubarei o prédio de tanto gritar... — começou ela. Depois viu que êle não estava ali... pelo menos não estava perto dela. Pôde vê-lo em outro compartimento amarrando-se em uma cadeira, e o mesmo fazia o outro gato, o moreno de patas brancas, o que era engraçado porque, não só o compartimento estava fora de sua linha de visão, mas a parede intermediária era opaca; foi então que percebeu que em um momento qualquer — podia ver agora o que Gherkin quisera dizer ao falar que não era capaz de explicar como era administrado o negócio — havia começado a viagem pelo ínvio deserto de sua mente. Todo o edifício pareceu estremecer; houve uma sensação clara de movimento, um cheiro engraçado, uma força que se achatou sobre ela. O gato de cabelos avermelhados nada lhe falara sobre ser esmagada. — Procure relaxar-se — disse êle — que achará a decolagem mais fácil. Procure respirar naturalmente. Mas como seria possível respirar naturalmente quando nada mais era natural, quando se estava sendo achatada como um bolo de frigideira ao mesmo tempo em que alguém começava a tocar algo daquela música horrivelmente moderna que pode dar dor de cabeça nas melhores ocasiões, especialmente quando se precisa fingir que se aprecia, mas não há necessidade de polidez num momento em que se está tentando executar a ameaça de gritar até tudo vir abaixo, sabendo ao mesmo tempo que ninguém do lado de 22

fora tem probabilidade de ouvir acima das batidas, rangidos e gemidos, através das paredes de tempo, espaço e apatia. Além disso, não eram seus próprios gritos que vibravam em sua cabeça; eram os de Gherkin. Provavelmente estava se virando de dentro para fora, e se chegassem a voltar daquela maldita e miserável viagem, pensou ela, enquanto alguma coisa a cortava em pedacinhos com golpes demorados, cuidadosos e uniformes, vou virá-lo de dentro para fora de verdade. Finalmente, perdeu a consciência e, quando voltou a si, estava no que parecia ser exatamente o mesmo outro mundo de que Gherkin falara, e havia uma garota de penugem verde fitando-a com uma mistura de perplexidade e divertimento, embora Calliope não pudesse dizer como sabia disso, pois o rosto da outra garota era completamente desprovido de expressão em termos humanos, não sendo ela humana nem de longe, embora definida e invejàvelmente mamífera. De início Callie pensou que fosse a mesma garota verde de Gherkin; depois disse consigo mesma, irritada, que não poderia ser. A de Gherkin estava no sonho dele e esta estava no sonho dela. Mas por que estaria sonhando com uma garota, especialmente uma garota gorila verde de busto exuberante? Havia perguntado a si própria se Gherkin tinha problemas e ali estava ela própria sonhando. A garota verde falou: — Oh! ai, ai, ai, alguém falhou, mas foi bom! Só que seus lábios não se moviam; estava falando e seus lábios não se moviam. — Telepatia, é assim que eu entendo o que você diz, não é? — perguntou Callie vivamente. A garota pareceu sorrir, só que não sorriu realmente, e disse, ainda sem mover os lábios: — Isso está bastante perto, ou tão perto quanto você poderia chegar com sua — houve um nevoeiro mental que se resolveu em “limitada capacidade de comunicação”. — O fato é que houve um engano terrível. Menina, você absolutamente não deveria estar nesta cena. — Nem nos sonhos existe igualdade de oportunidades hoje em dia — resmungou Callie, Os olhos da garota verde arregalaram-se inconfundivelmente. 23

— Mas por que nos iríamos preocupar com a côr, entre tantas coisas estúpidas? Admito que o fato de vocês estarem completamente nus e com uma aparência assim tão pelada... — houve uma definida projeção de repugnância — ... é um pouco difícil de aceitar, mas acho que você não poderia deixar de ter a aparência que tem. — Bem, eu não estaria nua se alguém não tivesse tirado minhas roupas — observou Calliope sensatamente. — Foram tiradas de você para a quarentena. Você as receberá de volta na hora da partida. Uma precaução sanitária necessária. Sinto muito que precise mostrar-se pelada assim, mas regras são regras. — Pensativamente, acrescentou: — É difícil imaginar uma forma de vida inteligente, mesmo primitiva, sem pêlos ou, pelo menos, plumas, mas os... — um nevoeiro mental resolveu-se em algo semelhante a “escoteiros” — ... afirmam que vocês têm um potencial intelectual quase tão bom quanto o nosso. Diga-me uma coisa, houve alguma espécie de desastre em seu planeta? Uma epidemia ou um incêndio? — Que eu saiba, não. Nós nascemos assim. — É claro que normalmente vocês usam coberturas para esconder suas deficiências, de modo que não podem ser totalmente insensíveis. Para dizer a verdade foram aquelas suas coberturas que deram início a toda a confusão. Os Escoteiros disseram que os diferentes sexos de sua espécie usam tipos diferentes de roupas e que os machos têm pêlos mais curtos na cabeça. Eu disse a todo o mundo que os Escoteiros não eram tão sabidos quanto se vangloriavam de ser, mas todo o mundo dizia que tínhamos de ouvi-los; eles sabiam tudo; eles nos salvariam. — Sua mente fêz: Puf ! — Bem, os tipos quadrados realmente têm cabelos diferentes e roupas diferentes, por isso acho que se poderia dizer que essa é a regra geral. Mas não é culpa dos... — como é que você os chamou?... Escoteiros; não se pode esperar que estrangeiros estejam por dentro da coisa, quando praticameste todo o mundo de mais de vinte e um anos não sabe do que se trata, se entende o que eu quero dizer. — Precisávamos de pessoas jovens — disse a garota depois de um momento em branco. — Os Escoteiros afirmavam que seus machos estão com o máximo de sua capacidade reprodutiva aí pelos dezessete ou dezoito de seus anos; depois disso, sua fertilidade 24

começa a declinar e fertilidade é o que estamos procurando. A compreensão chegou a Calliope com o esplendor de uma lâmpada explodindo no baloom sobre a cabeça em uma tira de história em quadrinhos. — Ah! então é para isso que vocês desejavam reprodutores? Para servirem como reprodutores. Sinto muito se pertenço ao sexo errado. — É claro que não foi culpa sua — disse a garôta com igual polidez. — Os Escoteiros deveriam ter tido mais cuidado. — Deve ser bem duro para vocês, sentindo-se como se sentem a nosso respeito, precisarem. . . Vocês fazem do mesmo jeito que nós? Mas é claro que fazem, senão o projeto nunca teria sido sequer iniciado. — A idéia é ... nojenta... — Só que o conceito na mente dela correspondia a mais do que nojento; quando essa gente verde fazia alguma coisa, parecia ser realmente para valer. — Mas se é a única probabilidade que temos de manter a raça, teremos de sacrificarnos. Isso era de fato engajamento total! Callie estudou a outra garota, imaginando se ela própria seria capaz de integrar-se no bem maior se lhe pedissem para unir-se a um macaco alopécico. — Mas vocês acham que vai dar resultado, querida? Ainda que ciência não seja meu forte, posso ver que nós somos drasticamente diferentes. . . — Os Escoteiros têm agarrado quaisquer formas de vida que consigam encontrar, que tenham mesmo a mais remota semelhança conosco, e trazido para nós — disse a garota, desanimada. — Nenhum daqueles de aparência provável deu certo e agora estão realmente raspando o fundo da panela. A complicação é que nossos machos parecem ter perdido a virilidade, sabe? Não nasce uma criança há... oh!... O pensamento parecia indicar um período de tempo muito longo, mas eles viviam também por períodos de tempo muito longos, muito mais longos do que os seres humanos. Ainda assim, não eram imortais, e, até quando apareceram os Escoteiros, decididamente empenhados em assumir a responsabilidade pelas espécies superiores, parecia que a raça ia desaparecer. Os Escoteiros, como Callie já deduzira, eram os gatos que haviam promovido a viagem sua e de Gherkin. Eles eram, explicou a garota verde, uma raça de 25

abnegados, que percorriam as galáxias, levando auxílio e consolo às raças menores, tanto dentro, como fora da lei e quer elas quisessem ou não. A princípio a gente verde ficara satisfeita ao vê-los, esperançosa mesmo, mas depois muitos deles, inclusive quem falava, particularmente quem falava, começaram a achar que talvez fosse preferível a extinção da raça. — Especialmente se nos misturarmos e a prole sair como... como algumas das espécies que eles nos trouxeram. Todavia, eles disseram que nossas características seriam dominantes, de modo que parece valer a pena tentar. Ainda assim, é tudo tão horrível, que às vezes penso ser um pesadelo; vou acordar e descobrir que isso nunca aconteceu. — Mas é uma... — começou Calliope, não desejando ferir os sentimentos da ilusão. — Sei como você deve sentir-se — acrescentou. A garota pareceu ter ficado irritada. — Desculpe-me, mas você não poderia ter a menor idéia de como nos sentimos. Oh! estou certa de que tem boa intenção, mas você é tão diferente que não poderia sequer começar a compreender-nos, quanto mais a identificar-se conosco. Você parece ter uma experiência da vida completamente diferente. Algumas pessoas — algumas criaturas — pensavam ser muito especiais. Calliope, porém, não estava disposta a discutir com uma criação de sua própria mente. — Acho que eu poderia voltar para casa, pois parece que não estou representando aqui nenhum papel significativo. — Penso que isso está fora de cogitação. A espaçonave não deverá voltar, até... até à noite do domingo de vocês... parece que você vai ficar presa aqui durante o fim-de-semana. Espaçonave! Callie pensou... disse... “Espaçonave?” Mas tudo o que estava acontecendo era apenas um sonho, uma alucinação, uma viagem... e, naturalmente, a espaçonave enquadrava-se perfeitamente dentro dele. Puxa, como sou imatura; primeiro uma espaçonave, depois Papai Noel, com renas e tudo o mais. O sorriso para-dentro-para-fora da garota verde parecia mais uma expressão de escárnio. Se ela era tão esperta quanto dizia, devia saber que não era real. Mas naturalmente não o admitiria; ninguém gosta de admitir que foi feito por outrem, especialmente por alguém que êle despreza. 26

— Uma vez que é nossa hóspede você bem pode ver as paisagens... — embora a frase que ela efetivamente projetou se assemelhasse mais a “absorver o ambiente até onde permitiam suas limitadas faculdades”. Levou Callie do lugar indeterminado e quase subjetivo onde estavam tendo seu bate-papo mental para algum lugar definidamente ao ar livre, só que um ar livre semelhante ao de um parque de livro de histórias, embora isso talvez fosse apenas a maneira como as “limitadas faculdades” de Callie o percebiam. O ar tinha uma qualidade estranha, picante. Talvez estivesse onde Gherkin tivera a original idéia de “ar fresco.” Não, não era isso... era... o cheiro da droga sobrepondo-se à alucinação para lembrar-lhe mais uma vez que aquilo era real. . . que o moço de pêlos verdes que se encostava melancòlicamente a uma árvore e tocava uma espécie de instrumento de cordas, ao mesmo tempo que cantava uma canção triste sobre alguma emoção não correspondida, que decididamente não era amor, também não era, lamentavelmente, mais do que um produto de sua imaginação. — Aqui está um pitèuzinho para você, queridinho — disse a garota verde em tom de zombaria, com uma atitude de familiaridade desprovida de amizade, que para uma mente da Terra podia ser interpretada como casamento. — Parece que houve um engano no carregamento e tenho a impressão que nosso prejuízo vai ser lucro para você. Ignorando a forma de vida semelhante à sua, o rapaz olhou para Calliope. Tinha pêlos verdes, cauda, feições humanóides, mas distintamente inumanas. Era a criatura mais linda que ela já vira e por um momento sentiu esmagadora vergonha de seu estado de nudez, vendo-se como êle devia vê-la — pelada, nua, primitiva, talvez mesmo bestial. Nunca antes se humilhara simplesmente para agradar um homem, mas, quando a terna emoção a tragou — pela primeira vez, percebia ela — esqueceu o feminismo na feminilidade e procurou parecer cativante e insinuante. Depois, a primeira vaga mental partida dele alcançou-a, demorada e ardente, e ela percebeu que êle a via como mais do que uma mascote. A alucinação tornou-se o sonho de um sonho, à medida, que ela perdia toda identidade, preta, humana, feminina, e se fundia, submergia na dele. Ou, como disse mais tarde a Gherkin: “Nós ficamos gamados 27

à primeira vista”. Êle e ela estavam então no metrô, começando a sair do nebuloso estado em que os deixara a viagem, tão fora de si que mal podiam lembrar-se da chegada ao armazém ou da partida de lá. Meio em sonho, montaram em suas bicicletas e, um quarto em sonho, tomaram o ônibus. No metrô estavam voltando à plena consciência. “Nunca tive com ninguém uma relação como tive com êle.” O negócio todo fora, como na exata síntese de Gherkin sobre sua experiência de sonho anterior: “o fino”. Calliope deu uma risadinha constrangida. — Naturalmente, eu sei que foi só uma alucinação, mas foi realmente fora deste mundo, se você entende o que eu quero dizer. Aconchegou-se a êle para tornar mais claro o que queria dizer. Êle não correspondeu. E as antigas desconfianças que o sonho havia apagado voltaram a insinuar-se. — Por que está preocupado? Está com medo que alguém nos linche por sermos mistos e não iguais. — Deixe de projetar suas hostilidades — respondeu êle, com ar ausente. — O que estou achando engraçado é ambos termos visto a mesma cena visionária. — Bem, acho que é como a hipnose em massa ou o inconsciente coletivo, se é possível falar em massa ou coletivo com apenas duas pessoas. O que quero dizer é que você me falou tanto sobre sua primeira experiência que me pareceu quase real, de modo que devo ter tido uma alucinação na qual estava no mesmo lugar tendo a mesma experiência... e talvez, mesmo durante a alucinação que tivemos, nos comunicássemos de alguma maneira, de modo que nossas mentes se entrelaçavam e produziam á mesma cena, entende o que quero dizer? — Se era minha cena, como é que nada me disseram sobre extinção da raça e sobre a necessidade que tinham de rapazes daqui para dar-lhes uma injeção no braço ou coisa semelhante? Esconderam isso de mim, e você sabe por quê? Não queriam que eu soubesse que estava sendo usado como... como um reprodutor — terminou êle, achando mórbido prazer no nobre conceito de si próprio como um reprodutor árabe de garbosa crina. Ela o fitou, incrédula. Agarrou-lhe o braço e sacudiu-o. — Gherkin, menino, você está caindo de sua árvore. Todo o negócio foi uma alucinação, um S-O-N-H-O. Ninguém estava es28

condendo nada de você; essa foi a minha variação de seu tema. A gente verde, o lugar verde, tudo só existiu em nossa mente. —- E quando o rosto dele permaneceu fechado em decidida e obstinada ausência de expressão: — O.K., se você insiste em que isso teve um sentido prático sólido, como é que pudemos respirar o ar deles, beber a água deles? — Quer dizer que nós estávamos suficientemente dopados para beber a água sem fervê-la primeiro? Como poderia você ser tão descuidada, mesmo em sonho? Eu procurei ter certeza... Interrompeu-se e depois, graças a Deus, riu e ela sossegou pensando: está tudo bem; tudo vai acabar bem. — Acho que talvez alguns parafusos tenham saído do lugar — admitiu êle, enquanto seu riso desaparecia — mas já estão de novo no lugar. — Prosseguiu com ar triste: —- Penso que estou um pouco confuso porque não sonhei desta vez com a mesma garota da outra vez. Foi outra garota verde. Parecia-se com a primeira e afirmou que era a mesma, mas eu sabia que não era. Não havia comunhão; não ficamos gamados um pelo outro. Mas por que teria eu sonhado uma coisa assim? Ela foi tomada de surpresa, não percebendo que êle conheceria a diferença imediatamente ou que teria sido uma diferença tão grande e ruim. Mas que realidade poderia comparar-se a um sonho? pensou, procurando consolar-se. O Gherkin real seria por acaso capaz de aproximar-se do homem de seu sonho? Tentou imaginar feições de veludo verde cobrindo e cercando o rosto pubescente, pálido e espinhento de Gherkin. Era difícil, mas com o tempo — especialmente se Gherkin pudesse ser convencido a deixar crescer barba; todo o conceito de pêlos floresceu em nova significação (além disso, pubescente significava peludo, não significava?) — poderia tornar-se incongruente. Êle poderia, ela poderia, os dois poderiam... Callie fêz sua voz ficar suave, delicada, carinhosa. — Você pensou ter sonhado com uma garota diferente porque dessa vez havia realmente uma garota diferente. . . uma garota real, isto é, eu, se entende o que quero dizer. — Não, não sei o que você quer dizer. Ela se esforçou por não responder rispidamente. —- Escute, eu decididamente executei o ato sexual com alguém.. E quem mais poderia ser, exceto aqueles gatos, que eu não 29

acho... Êle foi obrigado a concordar: — Não, não os gatos... Eles são... como que inumanos. — Tipos definidamente quadrados. Êle sugeriu dèbiímente: — Talvez você apenas tenha imaginado que... — Quanto a essa parte não há dúvida. Eu sei, pode crer-me. E foi grande! — Olhou-o amorosamente — Só sinto não ter podido acompanhá-lo em sua primeira viagem. Êle engoliu em seco, tragando o que a razão lhe dizia ser um fato. — Se isso aconteceu foi tão embrulhado que... meus sentimentos nada tiveram a ver com você pessoalmente. Quero dizer, o que eu senti, o que você sentiu, nada teve a ver com a realidade objetiva, ainda que aquilo que aconteceu tenha alguma base de realismo. — Acrescentou violentamente: — Mas, pelo amor de Deus, se “você está certa, então com quem eu fiz na primeira vez ? Não havia garota alguma comigo lá. Por que dizer-lhe naquele momento que a garota verde original fora provavelmente uma versão simbólica do belo ex-modêlo que era sua mãe? Era melhor guardar isso para outra ocasião mais hostil. Por isso, a única, coisa que ela disse, com muito tato, foi: — Ela deve ter sido uma verdadeira ilusão; provavelmente por isso é que era boa como coisa que não é deste mundo. Quando voltaram a suas respectivas residências naquela noiti-nha, seus pais e as transmissões de televisão estavam cheios de notícias, deturpadas como sempre por terem sido filtradas pelo ponto de vista dos conservadores. Houvera uma confrontação definitiva no campus, com todas as aulas suspensas indefinidamente até a libertação do reitor, que os alunos da Escola de Teologia mantinham como refém enquanto suas preces não fossem atendidas. — Escute, Janet — disse a Sra. Fillmore — não quero que você chegue perto do campus antes que a polícia seja retirada, por que você é especialmente vulnerável. Eles baterão em você, quando não se atreveriam a tocar em uma menina branca. — Eles batem em meninas brancas também, mamãe. Eu vi as escoriações. A mãe lançou-lhe um olhar tolerante, como dizendo: “conhe30

ço essas coisas melhor do que você”. — Você não vai participar de nenhum grupo de manifestantes, ouviu? Nem vai ficar por perto fazendo papel de apoio. A participação na experiência escolar total é importante, mas isso não significa que deva haver oportunidade de minha filhinha ser ferida. É melhor você passar os próximos dias na biblioteca pública fazendo algum estudo construtivo. Todavia, uma vez que soube não haver aulas, Calliope tinha outros planos. Seus compromissos foram reorientados em direção mais clássica do que os estudos ou ativismo político. Telefonou a Marjorie, a estudante graduada com quem dissera ter passado o fim-de-semana para esconder o que realmente acontecera; Marjorie, porém, estava preocupada com seus próprios problemas e pretendia aproveitar aquela oportunidade caída do céu para ir a Porto Rico ter um aborto, pois se encontrava, no que parecia ser uma posição especialmente desagradável para estudante de Economia Doméstica. Embora sentisse o maior prazer em deixar Calliope usar seu apartamento enquanto estivesse fora — e mesmo depois de seu regresso, pois as atividades de grupo não só eram mais humanísticas, mas faziam com que a pessoa sempre tivesse alguém para lembrar-lhe que devia evitar agravar o problema da população — aconselhou-a a ter muito cuidado para não se meter na mesma complicação. Mas essa era, em toda a experiência sexual, uma coisa de que Calliope não tinha medo. Vinha tomando esperançosamente a pílula desde seu décimo quinto aniversário, sem nunca ter submetido à prova sua eficácia. Convenceu Gherkin a deixar seu grupo de manifestantes e juntos dirigiram-se para o apartamento de Marjorie a fim de experimentar pela primeira vez conjunção mutuamente consciente. Não foi bom, embora não quisessem admití-lo a princípio. Toda a excitação, todo o prazer bárbaro estava na droga, no gás ou no que quer que fosse. Aquilo era tudo; eles nada eram... ou pelo menos assim lhes parecia. — Não é de admirar que possam dar-se ao luxo de oferecêlo de graça — lamentou-se Callie. — Seria terrivelmente fácil ficar viciado. — Sim — concordou êle — seria, sem dúvida. Havia nela temor — mais do que nele, porque, apesar de seu desembaraçado palavrório sobre drogas como parte da experiência 31

humana total, êle nunca precisara viver encontrando viciados em toda esquina — de nunca mais ser capaz de readquirir o que em retrospecto reconhecia ter sido o velho sustentáculo de telenovelas... o êxtase., . sem assistência química. E essa era quase a pior de todas as cenas. Significava que a gente estava aleijada desde o começo. Por isso, quando Gherkin reassumiu suas responsabilidades acadêmicas e uniu-se às forças de ocupação que então dominavam virtualmente o campus do lado dos bairros, ela telefonou para Dave Kikipu, líder dos Militantes Africanos Juniores e, como todos os líderes de manifestações, um grande homem no campus — não existiam atletas nesse tempo — que as colegas tanto pretas como brancas diziam ser um Diplomado em Sexo tanto quanto em Ciência (sendo o diploma de Ciência que êle estudava para obter, visando a ser professor de escola secundária e ajudar a esclarecer as mentes jovens). Como Calliope era uma brasa que desde algum tempo desejava arrancar da fogueira -— namorar firme um homem branco era um pecado mortal nesses dias — êle delegou poderes a um subordinado por uma tarde a fim de ir ao apartamento entrar em contato com a alma de Calliope e qualquer outra coisa que estivesse precisando de contato: —- Alegra-me ver que você está adquirindo noção de identidade negra e recusando ter qualquer coisa a ver com aquela bastarda branca racista — disse êle. Nada tinha de pessoal contra Gherkin, naturalmente, era apenas uma questão de princípio. Depois do que entraram nas coisas práticas. Dave era mais velho que Gherkin, mais experimentado que Gherkin, mais consumado do que Gherkin talvez jamais chegasse a ser. Com êle Calliope obteve considerável grau do que, em circunstâncias diferentes, poderia ter sido prazer. Mas não era o fino; nunca sabia ela agora, seria o fino sem o auxílio dos gatos, dos Escoteiros, fosse qual fosse o nome que se desse àqueles demônios ou semideuses que permaneciam entre ela e o seio de Abrão. — Agora você sabe o que significa o Poder Negro —- disse Dave quando a deixou. Mas o que ela desejava era o Poder Verde. Não lhe importava mais se ia desperdiçar sua mente por todo o Universo e comprometer eternamente seus cromossomos; precisava ter mais daquele negócio. Todavia, encontrou dificuldade em convencer Gherkin a ir com ela a Island na tarde da sexta-feira 32

seguinte. Finalmente, êle foi forçado a admitir que, como era sua primeira experiência que desejava reviver, e não a segunda, achava que ela seria um obstáculo. Por meio de agrados, aliados a discreta pressão, conseguiu que êle a levasse até lá, mas, quando chegaram ao ponto final da linha de ônibus e procuraram atrás do barracão... não havia bicicletas. — Talvez outras pessoas as estejam usando — disse Gherkin, e ambos se lembraram apreensivamente que no final da escapada anterior nenhum convite fora feito para nova viagem... pelo menos até onde podiam recordar-se. No entanto, embora não mais convidados, tinham que fazer uma última tentativa de alcançar o Nirvana, por isso alugaram bicicletas e nos dias seguintes percorreram o distrito de Queens e o vizinho condado de Nassau, levando mesmo suas buscas até os pantanais fronteiriços de Suffolk. Long Island è um lugar grande, cheio de armazéns, mas não encontraram o que procuravam. Como última e desesperada medida, quase; ritual, chamaram o número de telefone através do qual Gherkin fizera seu contato inicial, mas não estava mais ligado, segundo lhes informou uma voz gravada. E o Village Voice respondeu altivamente que não podia fornecer informações sobre seus anunciantes pagos. Daí por diante perderam contato com o racional e teriam descambado completamente, se pudessem. Experimentaram tudo quanto puderam arranjar — narcóticos (a coisa verdadeira dessa vez), ácido, velocidade, erva e uma coisa que os rapazes do laboratório de química prepararam durante uma sessão que durou toda uma noite e que, segundo diziam, não só dobrava mentes, mas também dava laços nelas. Todas essas poções não só deixaram de ter sobre eles o desejado efeito, mas deixaram também de ter qualquer efeito. Poderiam ter pensado que estavam sendo enganados de novo, como no episódio original da erva-dos-gatos, mas seus companheiros — essas eram excursões comuns com guias, não escapadas privadas — demonstravam todos os sinais satisfatórios de terem ficado baratinados. De fato, sua própria imunidade começava a causar tantos comentários que tiveram de abandonar completamente o cenário das drogas. — É como se aquelas outras viagens nos tivessem vacinado contra qualquer coisa diferente — observou Gherkin. — Dá a impressão de um grande truque comercial, mas onde estão eles agora para colher os lucros? — disse Calliope. Ergueu os 33

olhos para o céu. — Volte, volte de onde quer que esteja, beleza — implorou ela. — Você tem fregueses. — Não... — começou Gherkin, interrompendo-se. — Sacrílego? Blasfemo? Você paga seu dinheiro e faz sua escolha. Se é que há possibilidade de escolha. — Não seja boba. Quero dizer, isso é que eu ia falar: não seja boba. Depois que a biblioteca da universidade foi destruída por uma explosão, provocada por pessoa ou pessoas desconhecidas (os estudantes falaram em deliberada provocação policial, mas todos sabiam que a abolição de livros era um item importante em várias plataformas ativistas), a administração finalmente encerrou o período letivo da primavera duas semanas antes do prazo. Tanto Gherkin como Calliope tinham empregos arrumados para o verão; uma semana antes de começar como auxiliar de escritório para uma das casas de sua mãe, Calliope acordou certa manhã e ouviu uma vozinha dizer-lhe que estava grávida. E, quando foi ao médico, ficou provado que estava mesmo! — Mas eu pensei que as moças não ficavam mais grávidas hoje em dia! — exclamou Gherkin, quando soube do fato. Ao que Collie rompeu em lágrimas, dizendo que sentia muito, que achava que era apenas uma quadrada e ia ter um bebê quadrado. Mas decididamente, um bebê. Podia mostrar-lhe o relatório do médico e tudo o mais. — Você não... tomou precauções ? Êle tinha a impressão de que as mulheres hoje em dia tomavam essas precauções naturalmente como tomavam tranqüilizantes e exatamente pela mesma razão. — Claro que tomei pílulas! Deve ter acontecido o mesmo que com a erva-dos-gatos. Venderam-me imitação. — Pobrezinha — disse êle, Repentinamente muito masculino e viril... dali a um mês ia fazer dezoito anos, tornar-se um adulto responsável — precisa de alguém que cuide de você. E, levado pelos impulsos de sua velha herança burguesa, ofereceu casamento, o que ela, descendente de escravos, aceitou imediatamente. Não se deu ao trabalho de mencionar o episódio intermediário, que não contava, assegurou a si própria, porque a coisa entre Dave e ela fora puramente mecanística, não uma relação verdadeira. Além disso, não havia a menor probabilidade de Dave 34

casar-se com ela — o casamento, declarava êle sempre, era um estratagema que as classes governantes impunham a seus oprimidos súditos — e em seu pânico só desejava uma sólida aliança aprovada pelos conservadores. Embora os dois estivessem conscientes de não haver violado nenhum código moral significativo, não se sentiam muito otimistas quanto ao que aconteceria quando contassem a seus tradicionalistas pais o que o futuro reservava — mas contaram prontamente, pois dentro do Sistema, gravidez, casamento e todas as formalidades de uma sociedade corrupta custam dinheiro e era bom que os subsídios começassem imediatamente. As coisas saíram piores do que haviam previsto. Uma porção de acrimoniosa retórica. Depois a Sra. Rosenblum chamou Callie de lado e disse que, não que ela não a desejasse como nora, mas não achava que era jovem demais para assumir o papel de esposa e mãe? Se quisesse... bem... “evitar” o bebê, a Sra. Rosenblum estava certa de que seu tio Joe... Ao que Callie, mais por medo do que por aflição moral (Marjorie fizera durante semanas um pavoroso relato de sua provação) iniciou tal lamentação que a Sra. Rosenblum disse apressadamente: — Eu estava apenas sugerindo para o seu bem, querida. Naturalmente, o Dr. Rosenblum e eu estamos encantados... Então ela também rompeu em lágrimas. Uma cena muito dolorosa. Tudo isso, naturalmente, antes que os Fillmore e Rosenblum mais velhos se tivessem conhecido e, para desgosto de seus filhos, caídos de amores uns pelos outros à primeira vista. A Sra. Rosenblum, diga-se de passagem, fora uma terrível decepção para Callie. Em lugar de uma esbelta e escultural deusa, era uma criatura pequena, petulante, não realmente bonita, que se vestia como adolescente e quase se saía bem. O pai de Callie absolutamente não ficara decepcionado, mas, naturalmente, o Sr. Fillmore não tinha expectativas com as quais compará-la. — É uma mulher de bela aparência, não é? E tão moça para ler filhos já crescidos. E a Sra. Fillmore, que tinha oito anos de vantagem sobre a Sra. Rosenblum e podia, por isso, dar-se ao luxo de ser tolerante, mostrou um sorriso sonhador e murmurou: — O Dr. Rosenblum não é parecido com Paul Newman? — Para mim, é mais parecido com Sam Levene — observou o 35

Sr. Fillmore, sem rancor. Gherkin relatou que os Rosenblum tinham dado igual impressão de apreciação. —- Sidney Poitier foi com quem mamãe comparou seu pai. E papai perguntou-me de homem para homem se era verdade que as mulheres negras tinham mais — sacudiu as mãos —- vibrações do que as brancas. — Riu gostosamente. — Se êle soubesse! Ambos os pares de pais concordaram em que, embora fosse uma pena os dois precisarem casar-se tão cedo, hoje em dia os jovens se casam mesmo cedo e tudo daria certo. Assim, Callie e Gherkin ficaram amarrados, mas só provisoriamente. Na era em que viviam, apesar de todos os inconvenientes e defeitos, ainda a um passo da era vitoriana, o casamento representava uma pena temporária, mais do que uma sentença eterna. No fim de seu perolado caminho de penitência brilhava o luminoso farol do divórcio. Suas mães assumiram o contrôle e organizaram tudo. Não era preciso ser dotado de superpercepção para ver em que sentido se encaminhavam as coisas. Era quase inevitável que os Rosenblum achassem que os Fillmore eram a família certa para o outro duplex, enquanto o pequeno apartamento no porão seria “perfeito para os meninos”. O bebê poderia tomar sol no jardim, respirando ar fresco, enquanto Janet fizesse seu trabalho escolar, porque, embora precisasse tirar um período de licença, ela devia obter depois seu diploma; nesses tempos, terminar o colégio era para uma moça coisa ainda mais importante do que para um rapaz, devido aos valores simbólicos envolvidos. — Falar em problema de côr — disse a Sra. Rosenblum — não é nada em comparação com a questão de sexo. E a Sra. Fillmore não ousava discordar, porque poderia parecer uma traição à sua identidade feminina. Era muito duro pertencer a dois grupos oprimidos. Quando Callie estivesse na escola, planejou a Sra. Rosenblum atarefadamente, ela cuidaria do bebê e suas atividades comunais teriam simplesmente de ser comprimidas nos momentos de folga, pois sempre achara que ajudar a mente jovem a desenvolver-se era uma das missões mais importantes e compensadoras do mundo. E a Sra. Fillmore, que, depois de quinze anos no sistema escolar de Nova Iorque, se sentia menos entusiasmada com o desenvolvimento da mente jovem, disse que faria sua parte nos dias de semana e 36

à noite, a fim de que o casal pudesse prosseguir em suas atividades intelectuais e sociais livre dos laços da paternidade e maternidade prematuras. — Mas você vai precisar ficar afastado de todos esses distúrbios e protestos, Sanford — disse a Sra. Rosenblum a seu filho. — Você tem uma grave responsabilidade para com seu filho que vai nascer. Não é justo que ela... ou êle, acho eu... comece a vida com a desvantagem de ter um pai na cadeia. — Não acho que seja certo um futuro pai precisar passar o verão como conselheiro de um punhado de depravados delinqüentes juvenis. — Eles não são delinqüentes juvenis,, mas apenas rapazes da cidade, desprivilegiados e perturbados. Se adquirem tendências anti-sociais é em resultado de atitudes intolerantes como a sua. Não, seu pai e eu esperamos que você não vá ao campus neste verão; naturalmente, você ficará com Janet. Pobrezinha, ela parece absolutamente aterrorizada e naturalmente ter um filho interracial aos dezessete anos de idade é coisa muito difícil para uma moça. — A mulher tem idade suficiente para ser mãe assim que chega à puberdade — declarou Gherkin. — É o prolongamento anti-natural da adolescência nesta sociedade que tem causado tantas complicações. — Se você quer deixar a escola e começar a ganhar o seu pão, Sanford — observou o Dr. Rosenblum — não sou eu que vou impedi-lo. — Psiu, Herbert, você sabe muito bem que hoje em dia ninguem consegue arranjar um emprêgo decente sem ter pelo menos o diploma de “Master”, por isso temos a obrigação de fazer com que ambos os meninos obtenham seu doutorado. Precisam ser protegidos contra o futuro. Nunca se sabe o que pode acontecer... uma revolução ou uma guerra atômica, eles devem ter o que há de melhor. Ela os protegia também contra o presente matriculando-os em um curso de Pais Melhores, diante do que Gherkin ficou quase apoplético. Callie, porém, aceitou a idéia do curso com docilidade. Desejava ser uma mãe melhor. Seus nomes intertribais, inevitavelmente revelados no decorrer dos diálogos familiares, causaram certa surpresa. Os Rosenblum acharam graça principalmente. 37

— Gherkin certamente não é pior do que Sanford — disse o Sr. Rosenblum, sendo Sanford um nome do lado da família da Sra. Rosenblum, que descendia de Samuel, e ao qual o Dr. Rosenblum se opusera desde o começo. Para a Sra. Fillmore, porém, o apelido de Calliope foi um insulto pessoal. — Minha mãe nunca teve oportunidade de adquirir instrução. Trabalhava como doméstcia e não soube fazer coisa melhor do que dar-me o nome de Lobelia. Mas você teve todas as vantagens, Janet, inclusive o nome de Janet, e eu lhe agradeceria se pedisse a seus amigos ... e também a seus conhecidos... que a chamassem por esse nome. Durante algum tempo sentiu forte hostilidade em relação à Sra. Rosenblum por ter rido dos nomes, mas depois a perdoou, sabendo que, embora, ela talvez fosse capaz de compreender, não poderia identificar-se. O casamento foi marcado para o mais cedo possível, antes que o estado de Calliope começasse a evidenciar-se. — Está bem, casamento — disse Gherkin, quando finalmente compreendeu o que lhe estava reservado. — Por causa do moleque, por causa de Call. .. Janet. Mas por que todo o bárbaro ritual do chamado casamento branco? Em primeiro lugar, atribuindo à cerimônia seu verdadeiro simbolismo, seria absolutamente desonesto que ela se vestisse de branco... A essa altura Calliope debulhou-se em lágrimas e acusou-o de querer que ela usasse preto sobre preto; e a Sra. Fillmore debulhou-se em lágrimas e disse temer que aquilo nunca desse certo... porque no fundo de todo homem branco, por mais bem intencionado que fosse, havia sempre um racista. Então a Sra. Rosenblum por sua vez debulhou-se em lágrimas, dizendo que Sanford não era racista, mas apenas um moleque perverso que nunca dera senão desgosto a seus pais; no final todos (com exceção de Gherkin) concordaram lacrimosamente que a complicação toda não era a cor, era a desumanidade do homem para com o homem (ou, especificamente, a desumanidade, do homem para com a mulher). O casamento foi um Acontecimento Social, a tal ponto que a própria Callie, que começara a aguardar as festividades, com certo prazer — quase morreu quando soube que o vestido de casamento ia custar trezentos dólares — aderiu ao modo de pensar de Gherkin 38

e desejou apenas uma cerimônia íntima. Tarde demais, porém, pois os convites já haviam sido remetidos. A lista de convidados era impressionante.... Compareceram pessoas de projeção nas causas a que se dedicavam ambos os lados da família, pessoas que nem teriam sonhado em comparecer se o casamento fosse todo preto ou todo branco. Um ministro não sectário fêz um belo discurso no sentido de que aquilo tudo era um passo na direção da fraternidade universal. — Se nós todos fôssemos irmãs e irmãos — ouviram Tia Ada rugir — por que toda a gente preta fica de um lado deste lugar que eu não sei como é que vocês chamam. . . não é a idéia que eu faço de igreja... e toda a gente branca do outro ? Finalmente sua voz foi abafada por um piano cantando “Oh! Prometa-me” ou “Nós venceremos”. .. pois era difícil saber qual dos dois com o contraponto de Tia Ada. Depois todos saíram e encontraram do lado de fora um grupo de manifestantes dos Militantes Africanos Juniores, chefiados por Dave Kikipu, muito bonito em seu dashiki, carregando cartazes com inscrições como “Mulheres Negras para Homens Negros”, “Um Casamento Branco é uma Afronta à Virilidade Negra” e coisas piores. Os participantes da cerimônia nupcial foram levados em Cadillacs e os manifestantes seguiram em Chevrolets e Wolkswagens para a recepção elegantemente servida, onde a Sra. Rosenblum apresentou Callie a todos os seus parentes como “Minha brilhante nora... imaginem, ainda não tem dezessete anos e já é segundanista É também estudante bolsista e vocês sabem que a Universidade não dá bolsas senão para gente realmente talentosa”. — Sim — disse Callie, ansiosa por agradar — eles ainda não têm uma quota mínima para negros. Essa é uma das coisas pelas quais se fazem manifestações, penso eu. Uma senhora idosa de cabelos azuis disse, muito depressa, que Sanford devia sentir-se feliz por ter uma esposa tão bonita e perguntou se Janet não parecia mesmo uma Lena Horne moça. —- Por que Lena Horne não está aqui? — perguntou Tia Ada. —- Parece que todos os outros estão. Como é que a deixaram de fora? E onde está Sammy Davis Jr.? Onde está George Wallace? Ao que o tio-avô de Gherkin, Milton, um dos esqueletos da familia do noivo, com mais de oitenta anos e cabelo tingido, ainda se imaginando um galã, replicou: — Escute, a idéia de ver meu 39

sobrinho casando-se com uma negra não me agrada mais do que lhe agrada a idéia de vê-la se amarrando a um judeu, mas é assim que está o mundo de hoje e a gente tem de acompanhar os tempos, menina. Em seguida êle e Tia Ada se afastaram, enxugaram juntos um litro de champanha. — “Isto é o que eu chamo de verdadeiro alimento para a alma”, concordou ela — e posteriormente foram descobertos pela Sra. Rosenblum em uma despensa, comportando-se de maneira que ela só conseguiu descrever como “muito desagradável”. Todos os outros ficaram mais admirados do que escandalizados com essa vitória da sexualidade sobre a senilidade e tiveram vontade de pedir mais pormenores. Mais tarde, quando Tia Ada baqueou, o tio-avô Milton disse a Gherkin: — Não me importa de que côr nasça a criança... se fôr menino e eu esticar as canelas antes de ela nascer, dê-lhe o meu nome. Gherkin explicou a Callie que, de acordo com a crença judaica, não se deve dar a uma criança o nome de alguém vivo, senão um ou o outro morre. — Mas essa é uma superstição primitiva! — exclamou ela. — Bem, de qualquer maneira, não existe ninguém vivo cujo nome eu deseje dar ao bebê. O arroz que foi jogado sobre eles quando partiram era colorido; nada de pessoal, assegurou Gherkin à sua irritada esposa, arroz pintado em tons pastel estava na moda nesse tempo. Entre os que jogavam arroz encontravam-se os manifestantes dos Militantes Africanos Juniores, entrando gostosamente no espírito da ocasião. Sentiam-se ansiosos por jogar alguma coisa, mas pedras e garrafas não pareciam ficar bem em um casamento. Ainda assim, Gherkin ficou satisfeito quando a limusine se pôs fora do alcance deles. Suas famílias reservaram para eles aposentos durante três semanas em uma estância nos Catskills e não havia jeito de fugir a isso, pois o apartamento ainda não estava pronto. Callie caiu de um cavalo e Gherkin quase morreu afogado no lago. Nesse ponto pareciam estar se divertindo tanto quanto todos os outros. Quando voltaram, o apartamento estava mais ou menos terminado, mas Callie não teve oportunidade de escolher seu papel de parede; sua mãe e sua sogra já haviam decidido que tinta seria mais prática. Quanto aos móveis, os Rosenblum estavam adqui40

rindo antigüidades inteiramente novas, de modo que jogaram por cima dos jovens todas as suas peças velhas, mas ainda boas, que podiam ser amontoadas no minúsculo porão. — Você devia ficar agradecida — disse a Sra. Fillmore severamente. — Eles têm algumas coisas muito bonitas. — Por que você não fica com algumas, delas, mamãe? — Edythe pensaria que você não aprecia tudo quanto ela está fazendo por você, se desse a alguém as bonitas coisas dela. Além disso, ela tem um primo que trabalha com móveis e com o qual podemos fazer, um negócio muito bom. Callie e Gherkin diplomaram-se com distinção no Curso de Pais Melhores e aprenderam muito. Pessoas começaram a dar-lhes tantas coisas para o bebê, que precisaram ser guardadas em um dos aposentos vazios dos andares de cima, que ainda estavam sendo sujeitos a uma reforma de irritar os nervos. — Mas tenham o cuidado de conservar a porta fechada — recomendou a Sra. Rosenblum. — Vocês sabem como são esses operários. — Sim — concordou Gherkin — quando vêem uma pilha de sapatinhos de bebê e de paletòzinhos de tricô, alguma coisa estala em seu interior e eles roubam! Apesar da fechadura, dois vestidinhos e um cobertor estampado com alegres desenhos do Pato Donald desapareceram. Quando as aulas foram reiniciadas no outono, depois de violentos choques entre estudantes, professores, policiais e numerosas pessoas cuja identidade nunca ficou muito clara, Gherkin recomeçou seus estudos, enquanto Callie passou um período maçante e miserável, ficando cada vez maior e sentindo-se cada vez menos confortável, sem estar realmente doente bastante para justificar os constantes cuidados que lhe dispensavam. Tanto sua mãe como sua sogra cuidavam de seu bem-estar físico e tudo o mais. Faziamlhe sopa de galinha, acompanhavam-na ao consultório do médico e diziam-lhe para ter pensamentos positivos, mas no que realmente estavam mais interessadas era a casa. O que ficou habitável primeiro foi o duplex dos Rosenblum, os quais insistiram em que os Fillmore se mudassem com eles até ficarem concluídas as modificações nos andares de cima. Quanto à escada para o jardim, parecia desnecessária, uma vez que todos constituíam “uma grande e feliz família” (a frase fêz Gherkin ranger os dentes, ao que seu pai 41

lhe disse para ter cuidado, pois estava estragando a dentadura; mas êle não podia evitar... estavam tomando o nobre conceito de grupo, de tribo, e transformando-o em algo sórdido). Além disso, disse a Sra. Rosenblum, o jardim devia realmente ficar para o apartamento do porão. — Mas, vocês não se incomodam se nós, os velhos, o usarmos de vez em quando? — perguntou ela, muito corada do rouge. Gherkin fêz uma careta, mas Callie esperava ansiosamente que eles usassem o jardim com freqüência. Queria o maior número possível de pessoas a seu redor. Gostaria até mesmo que Tia Ada estivesse por perto, mas aquela infatigável octogenária fugira para a Flórida e outros lugares do sul com o tio Milton. De vez em quando, chegava um impudente cartão-postal. No primeiro ano ninguém usou o jardim ou, como o descreviam os Fillmore com mais precisão, o “quintal”. Realmente era uma dor de cabeça — apenas ervas daninhas e um ailanto morto. — E é preciso muita coisa para matar uma árvore dessas — disse Callie. — Pergunto a mim mesmo se este é realmente um lugar salubre. Gherkin encolheu os ombros, dizendo: — Esta é uma sociedade insalubre. A essa altura os dois já estavam mergulhados em profundo mal-estar. Haviam começado a compreender que quando o bebê nascesse iam tornar-se pais. A Sra. Rosenblum temia que pessoas olhando para o jardim, pelas janelas dos fundos das casas de trás, pudessem ter uma idéia errônea sobre sua posição, pensar que eles estavam vivendo de pensão assistêncial ou coisa semelhante. — Insisto com Sanford para que trabalhe um pouco no jardim, mas êle está tão ocupado com seu trabalho escolar... e Janet disse que não se sente capaz, embora Tio Joe diga que um pouco de exercício lhe faria bem. Esse era o Tio Joe obstetra, que não devia ser confundido com o Tio Joe analista. Era um dos melhores obstetras da cidade e estava cobrando de Callie honorários muito especiais. — Você devia ficar agradecida —, disse mais uma vez a Sra. Fillmore. Os seis jantavam juntos todas as noites no andar de cima, 42

quando os mais velhos não saíam, mas depois Gherkin e Calliope se tornavam incômodamente conscientes de que seis eram uma multidão, e, embora delicadamente convidados a ficar, desciam para o porão. Sentados lá em seus aposentos de teto baixo e cheirando a mofo, ouviam as pisadas e os gritos de seus pais divertindo-se em cima e sentiam o abismo entre as gerações. O álcool não tinha sobre eles mais efeito do que as drogas e ambos se sentiam intolerantes em relação àqueles sobre os quais tinha efeito. Uma sórdida maneira de passar o tempo, sem arrebatamentos transcendentais para fazer dela uma experiência enriquecedora. — Você acha que eles fazem orgias coletivas ou apenas trocam de pares? —- perguntou Gherkin. — Ora, Sanford, não seja mau. Callie recusou acreditar quando êle lhe falou sobre a noite em que subira para tomar emprestado um pouco de Sucaryl e vira o Dr. Rosenblum perseguindo a Sra. Fillmore pelo hall, ambos nus e um tanto gordos, enquanto do andar fora do alcance da vista vinham risadinhas e suspiros dos esposos mais esbeltos. Não era, supunha êle, a espécie de coisa que uma moça, por mais liberalmente orientada que fosse, gostaria de saber a respeito de seus pais. A única coisa de que Calliope e Gherkin podiam tirar qualquer espécie de prazer, mórbido, naturalmente, era reviver o que pensavam ser sua experiência com droga. E quanto mais trocavam idéias, mais semelhantes se tornavam tais idéias, até quase parecer que haviam realmente visitado outro espaço, outra dimensão, outro mundo. Repetiam “Você se lembra... ?”. Como velhos revivendo um passado e não moços cujo futuro mal havia começado. Era por isso que não sentiam vontade de fazer coisa alguma no jardim. Mesmo que tirassem as ervas daninhas e plantassem todos os arbustos recomendados pelo culto editor de jardinagem do Times, os verdes, as cores, estariam sempre errados. O bebê deveria nascer no Natal, mas Natal, Ano Novo e depois Epifania vieram e se foram sem que êle aparecesse.. . para alívio de todos, pois teria sido simbólico a ponto de vulgaridade se chegasse nessa época. — Não há motivo para preocupações — dizia Tio Joe. — Às vezes a primeira gravidez é um pouco demorada. Com freqüência, 43

o jovem par está muito... hummm... preocupado para anotar com precisão quando... hummm... ocorreu realmente o feliz momento. Deixem-me ver, exatamente quando vocês dois se uniram? — Você sabe que foi antes de nos casarmos — disse francamente Calhe. O olhar de Tio Joe permaneceu fixo, enquanto acrescentava: — Ou vocês estão enganados ou você teve um aborto tão no início da gravidez que nem ficou sabendo; depois, concebeu de novo. Houve um caso assim com um cavalo, se me lembro bem. Como iria dizer-lhe que não poderia ter sido assim, porque ela e Gherkin não haviam tido relação sexual depois do casamento? Mesmo que Tio Joe não fosse parente, isso fazia o negócio todo parecer muito estranho., Por isso ficou quieta, deixando que o cavalo assumisse a culpa. Passou o Dia dos Namorados, assim como o Aniversário de Washington, o Dia de São Patrício e a Páscoa. Mais ou menos no Dia das Mães, Tio Joe finalmente admitiu que estava preocupado. — É um tanto incrível — disse êle à família, que convocara para uma reunião. — Nunca ouvi falar em gravidez tão prolongada durante toda minha vida. No entanto, a mãe parece em excelente estado de saúde. Calliope já se tornara “a mãe”, nome com o qual, iria figurar em todas as publicações médicas; estratagema fútil porque depois os abutres da imprensa que espalhava lama iam rasgar seu nome verdadeiro em todos os jornais; alguns com fotografias. E o bebê, perguntavam os ansiosos futuros avós. Estava também com excelente saúde? Depois de uma pausa, Tio Joe disse que sim. Mas isso era o máximo que se arriscava a dizer. Já tinha ouvido coisas estranhas em seu estetoscópio e finalmente, embora não fosse moda então expor futuras mães à radiação, tirou radiografias dela. Olhou uma das chapas e chamou Tio Joe, o analista, para uma consulta imediata. Tio Joe, o analista, fêz seu serviço, mas o único consolo que o estupefato obstetra obteve foi dos schnapps servidos em seguida (não todos os pacientes, mas apenas aos parentes). Não, disse à família Tio Joe, o obstetra, êle não achava aconselhável uma cesariana. O bebê parecia — êle estremeceu ao dizer isso — estar se desenvolvendo, normalmente. À sua própria maneira. É minha opinião que êle vira — sentira — o suficiente para 44

não estar ansioso por encontrar-se com o pacotinho mandado do céu mais cedo do que precisava; e embora eu — o leitor já deve ter adivinhado que o mencionado pacotinho era eu — ainda não tivesse adquirido percepção mesmo no tosco sentido terrestre, meus instintos de sobrevivência já deviam estar funcionando, pois uma cesariana naquela época ter-me-ia matado inteiramente ou me deixado tão defeituoso, que tanto valeria ter sido humano. No Quatro de Julho, quase quinze meses depois de sua fecundação, Calliope deu à luz uma robusta coisinha... que depois os jornais chamariam de “Monstro Yankee Doodle”. Do sexo masculino, sim, sem a menor dúvida, mas menino só se admitindo que um menino podia ser coberto de penugem verde e ter uma cauda e presas (primeira dentição que mais tarde cairia). Qualquer um acima do nível primitivo teria visto que eu era tão bonito como um cometóide, mas não se poderia esperar que meu encanto impressionasse aqueles palermas. Os Rosenblum e os Fillmore reuniram-se do lado de fora do quarto de Calliope no hospital (particular, graças a Deus, ainda que Êle os tivesse decepcionado em tudo o mais) e choraram, enquanto dentro do quarto Calliope e Gherkin se fitavam cheios de admiração e contentamento. — Puxa vida, foi real — sussurrou ela. — Tudo foi real. Êle era real. — Ela era real — murmurou Gherkin. — Elas duas eram reais — disse Calliope maldosamente antes de encerrarem o pedacinho de opereta. Depois ela acrescentou (por que não devia êle também sentir-se feliz?) : — Aposto como a primeira garota queria ficar com você na segunda vez mas era contra as regras. Porque todas as garotas precisavam ter uma oportunidade. O que é muito justo, realmente. Sorriu para o bebê, que lhe haviam permitido, exigido que conservasse com ela o tempo todo porque nenhuma das enfermeiras queria tocá-lo, e vendo o rosto do pai murmurou: — Acho que êle é lindo. Gherkin, baixando os olhos e vendo a semelhança da garota que havia amado e que nessa mesma ocasião, em algum lugar qualquer, poderia estar tendo o filho dele (e esquecendo-se convenientemente de igual semelhança com a garota que não amara, mas que poderia estar também dando à luz), declarou: — É o bebê 45

mais bárbaro que já houve e tenho orgulho em ser seu pai adotivo. Êle e Callie se entreolharam com um amor cuja origem não estava no sexo, mas na partilha de uma experiência verdadeiramente iluminadora, que os unia mais significativamente do que qualquer interação física... que os elevava na escala evolucionária, pelo menos quanto à percepção, séculos antes de um tempo que talvez nunca chegasse para sua autodestrutiva raça. Foi assim que fiz minha entrada no mundo, embora, como eu não entrei na existência com faculdades mentais plenamente desenvolvidas (mas milênios além de uma malcheirosa criança terrena), o resto desta história continua sendo baseado em coisas que ouvi dizer. Calliope e Gherkin tentaram contar a verdade sobre a maneira como tudo acontecera, sabendo que não seriam acreditados, mas achando que seria registrado o que dissessem. Seus pais simplesmente não compreendiam, mas Tio Joe, o obstetra, ficou furioso, mas também aliviado porque essa era uma coisa que êle compreendia. Ou pensava compreender. — Temos advertido nossos jovens vezes e vêzes contra os perigos do LSD e seus congêneres, mas eles não nos acreditavam. Riam de nós quando lhes falávamos do mal que esses horrores alucinogênicos podiam causar. As pessoas mais velhas com seus cérebros embrutecidos não sabiam coisa alguma, diziam eles. Bem, agora que todo o horror foi exposto, eles não cairão mais nesse erro, mas por que... — sua voz transformou-se em um gemido — ... por que esse horror tinha de nascer na minha família? Quando os Rosenblum e os Fillmore venceram sua mágoa inicial, choque, consternação e tudo o mais que se pudesse esperar, ficaram lívidos. — Se vocês não pensaram em nós, pelo menos deveriam ter tido mais consideração por Bill e Lobelia. Eles já precisam viver com seu problema de côr durante toda a existência e agora. . . um neto peludo e verde.. . ! — disse a Sra. Rosenblum, sufocada pela raiva e autopiedade. Isso porque, não só os jornais haviam usado muito a fórmula “Preto + Branco = Verde”, mas alguns segregacionistas militantes de ambas as tendências, tentavam demonsrar que era isso que muitas vezes acontecia como resultado de cruzamento inter-racial. — Simplesmente não sei como vamos viver depois dessa des46

graça — queixou-se a Sra. Fillmore. — De que adianta dar-lhes uma instrução colegial se vocês a usam para tomar drogas e fazer nascer monstros ? — É exatamente como me sinto! — lamentava-se a Sra. Rosenblum. — Como puderam vocês fazer uma coisa dessas conosco? E, ainda por cima, falar aos veículos de informação! — Mas nós não fizemos — insistiu Gherkin. — Quero dizer, tomar drogas. Pelo menos, não tomamos antes. Isso aconteceu em uma verdadeira viagem. Fomos a outro. . . planeta, penso eu. Quero dizer, sabe-se agora que existem outros mundos; cientistas estão sempre captando sinais, pulsars e coisas semelhantes... — O National Inquirer pode acreditar numa estória dessas — disse friamente a Sra. Rosenblum — ou fingir que acredita, porque dá boa matéria. . . Nem por um momento penso que no íntimo engulam isso. . . mas vocês não podem esperar que nós aceitemos essas suas malucas e psicodélicas estorinhas de fadas. Não, o melhor é enfrentar a verdade e, como vocês parecem tão ansiosos por publicidade, pelo menos procurem-na com algum propósito idealístico, como advertir outros jovens para que não sigam seu trágico exemplo. — Poderíamos fundar uma associação — sugeriu a Sra. Fillmore — com selos e tudo o mais. Ninguém mais tem o Quatro de Julho. Dispomos de um terreno limpo. A Sra. Rosenblum hesitou, tentada, mas depois sacudiu negativamente a cabeça. — Não parece certo. Em primeiro lugar, que nome lhe dariamos? — Fundação Teratológica — propôs Gherkin. — Incorporada. Sua mãe atravessou-o com o olhar. — Quanto a seu filho, seja qual fôr o nome que você pretenda dar-lhe... — — Dê-lhe o nome de Ismael — sugeriu o Dr. Rosenblum, que também foi ignorado. — Nós proveremos seu sustento até que Sanford obtenha seu diploma e possa assumir suas responsabilidades de marido e pai, mas — a voz da Sra. Rosenblum elevou-se — peço-lhe que o tire do meu caminho. Recuso considerá-lo meu neto. Com toda a razão, pensou Callie, com um pouco de remorso. 47

E ela e Gherkin deram ao bebê o nome de Milton, tirado do falecido tio-avô de Gherkin, que expirara em Acapulco nos braços de Tia Ada, porque parecia um nome tão bom quanto qualquer outro. Além disso, pensavam que Tio Milton gostaria do bebê. Foi mais chocante do que surpreendente quando transpirou que tanto a Sra. Rosenblum como a Sra. Fillmore por uma coincidência, não muito estranha, estavam grávidas também, embora isso fôsse cercado da maior discrição porque seria embaraçoso em tais circunstâncias. — Graças a vocês, Tio Joe recusa-se a cuidar de mim — disse a Sra. Rosenblum rancorosamente. — Precisarei procurar alguém fora da família. A Sra. Rosenblum corou. Embora tivesse sido freqüentes vezes infiel ao Dr. Rosenblum (dentistas trabalham em horários tão longos), nunca usara um obstetra estranho. Isso lhe parecia indecente. — Imagine, Milton, querido — disse-me Calliope, quando me deitava no berço, ainda estonteado pelo choque de ter nascido neste mundo — vai ter dois tios ou tias mais novos que você. — Fêz cócegas nos meus pés. — Escute que maravilhoso gorgolejar — disse ela, enquanto êu emitia incoerentes sons de protesto. — Será possível alguém deixar de ver como êle é absolutamente adorável? Realmente, seria possível? Mas Gherkin me olhava apreensivo. Entre êle e eu já se haviam desenvolvido áreas de forte desarmonia. — Os novos bebês farão com que não pensem em nós quando formos embora —- continuou ela. — Não que eu ache que sentirão muito nossa falta, provavelmente ficarão contentes em ver-se livres de nós, especialmente de Milton, se entende o que eu quero dizer. — Nós nunca fizemos realmente parte deste mundo miserável — concordou Gherkin. — Alienados desde o começo. — Alienação! Eles nem começavam a compreender a significação da palavra. — Mas — acrescentou hesitante — você tem certeza de que eles... os Escoteiros... virão buscar-nos? — Virão buscar Milton, porque não podem ter levado muitos de nós até lá em viagens de fertilidade; ainda mais, o provável é que não tenha pegado todas as vezes. Assim, este bebê tem de ser importante para eles. 48

Se ela percebesse exatamente como eu era importante, haveria mais confiança em sua voz, mais apreensão em seu coração. — Mas como saberão que êle existe? — Lendo os jornais. Foi por isso que eu lhe falei para deixarme dar todas aquelas entrevistas. Aqueles Escoteiros estão por dentro das coisas. Mais cedo ou mais tarde terão a notícia. Além disso, embora não o dissesse a Gherkin, ela rezava toda noite para que eles voltassem, de modo que estava anunciando em dois veículos diferentes. Certamente, a força das relações públicas não poderia limitar-se a um miserável planeta. — Mas eles pareciam... a segunda garota pelo menos... pareciam tipos tão orgulhosos! Talvez não nos queiram. Talvez queiram apenas o bebê. — Não poderão levar o bebê sem me levar — disse ela, confiante em que sua visão simplista do Universo prevalecia universalmente. — Eu sou a mãe dele. E você é meu marido. Eu insistirei para que o levem. E, pensava ela, lá poderemos divorciar-nos, casarmo-nos com pessoas verdes e viver felizes para sempre, porque, apesar de tudo, no fundo de seu coração ela acreditava no velho e bom sonho americano. — Tudo vai ser bárbaro — disse ela a Gherkin.

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A METAMORFOSE Damon Knight

Trad. de Renato J. Ribeiro

Na Cote d’Azur, a luz do sol, filtrando-se através das persianas, dava uma obscuridade dourada ao ambiente. Na poltrona de brocado verde, estendia-se a loira esguia em trajes de tênis, sacudindo a raqueta na mão. Cada vez que a sacudia, a raqueta batia no chão. — Eu gostaria que você parasse com isso — disse irritado o jovem barbudo. — Já estraguei esta droga de cartão duas vezes. — Jogou um cartão colorido no cesto e pegou outro, no lado oposto da escrivaninha. — E eu desejaria que nos bares, você não lançasse olhares de peixe morto para cima de morenas envelhecidas! — exclamou a garota. Havia um lampejo de raiva em seus grandes olhos azuis. — Envelhecidas?! — disse automaticamente o jovem, parando seu trabalho. — Ela deve ter no mínimo trinta anos, se é que ainda se lembra de quando os teve — falou a garota. A raqueta continuava a bater no chão. — Uhm — fêz o jovem levantando o olhar. — Uhm coisa nenhuma — respondeu a moça com a expressão definitivamente desagradável. — Pensando bem. . . — O que foi? — perguntou o rapaz, apreensivo. — Oh! nada. — Após um momento: falou: — Mamãe que era feiticeira, saberia o que fazer com você. O rapaz fêz um muxoxo desaprovador, sem olhar para cima. 50

— Não devia falar de sua mãe dessa maneira! — Ela era feiticeira, sim. Podia transformar-se em lobo, tigre, uma pilha de tijolos ou em qualquer outra coisa que lhe desse na telha. — É óbvio que ela podia! — disse o jovem, assinando o postal. — Ufa! — e pondo o postal de lado acendeu um cigarro e olhou apreensivo o relógio. — Deixando de lado a brincadeira,bem que tivemos um tempinho bem divertido, não? — Só que tudo tem um fim, não é? — indagou a jovem com voz ameaçadora. — Somos ambos adultos e devemos ser realistas. É isso? — Levantando-se, dirigiu-se para o armário. — Bem. . . — resmungou o jovem desconfortavelmente. Sua expressão iluminou-se. — O que você está fazendo? A garota segurava uma mala de couro de porco, que abriu com espalhafato desnecessário. Pesquisou em dois dos compartimentos e tirou uma sacola de camurça. — Procurando algo! — respondeu. — Ah! — fêz o jovem, desapontado. Ficou observando enquanto a garota abria as correias, pegava um pequeno objeto embrulhado num sujo pano vermelho, amarrado com um cordão. Lançou novamente o olhar para o relógio. Quando tornou a olhar para cima, a moça tinha um pequeno e estranho frasco na mão. — O que é isso? — Algo que minha mãe me deixou. — Suas unhas faziam um ruído desagradável ao raspar o vidro, removendo a cera e a rolha. Estreitando o olhar. . — Então, você não vai mudar de idéia? — Um momento, Yana. . . — À felicidade! — Colocou o frasco nos lábios, jogou a cabeça para trás e tornou. — Agora veremos! — disse, baixando o vidro vazio. — Experimentou mexer com a mão, olhou as unhas. . . O rapaz observava o relógio. — Quase três horas —- murmurou. — Yana, você não havia dito que ia ao cabelereiro esta tarde? — Mudei de idéia. — Olhou-o pensativamente. — Por quê? Você espera alguém? — Oh! não — disse o rapaz apressadamente, levantando-se 51

com energia. — Quer saber de uma coisa, Yana, nada de ressentimentos, Vamos nadar. — Entendo — disse a garota. — Diga-me, e para hoje à noite, nenhum plano? Ninguém virá aqui? — Não, ninguém. — Então estaremos sós, apenas os dois. — Sorriu mostrando os dentes. — Isso vai me dar bastante tempo para decidir. O que você quer que eu seja? Seu grande gato rajado. . . seu roupão. . . ou seu fiel cachorro faminto? O rapaz que estava tirando a camisa pela cabeça, não ouviu. Sua voz chegava indistintamente. — Bem, se vamos nadar, vamos ligeiro. — Ótimo — disse a garota. — Espere um instante que eu já vou me mudar! Que tal um biquíni? Emergindo da camisa, o jovem exclamou: — Que bom você ter resolvido não ficar. . . Yana, Yana! Engraçado! . . . cruzou a sala, olhou no quarto e a seguir no banheiro. Estavam vazios. Quando voltava, ouviu uma leve batida na porta. Esta abriu-se e uma linda jovem morena introduziu a cabeça: — Robert? Estou sendo demais? — Giselle! — gritou o rapaz sorrindo de prazer. — Não, entre... chegou em tempo. Eu estava saindo para nadar. A jovem avançou com um sorriso encantador; seu corpo, num decotado vestido azul de verão, também era encantador. — Lamento, mas não tenho maiô. — Aqui tem um — replicou o jovem, alegremente, pegando dois pequenos pedaços de pano listrado que estavam sobre a cadeira. — Experimente este. — Mas não pertence à sua amiguinha? Ela não se importará? — Não, não. . . nem pense nela. Enquanto saíam, o jovem lançou um olhar intrigado ao biquíni listrado, que servia admiravelmente na jovem morena. — O que é, algo errado? — Estava apenas pensando no que Yana disse antes, de desaparecer . . . Mas, não, não poderia ser! Vamos indo. De braços dados, rindo, saíram ao sol.

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HORA DE PARTIR Douglas Angus

Trad. de Talma de Alencar

Dois homens vinham descendo a rua larga e deserta, pisando com seus sapatos pesados os inumeráveis cacos de vidro. Conversavam, mas em certos momentos não pareciam dialogar. — Pensei que fosse mais fácil, mas não vejo placa alguma — disse o mais alto dos dois. — As placas ficavam nas janelas do segundo andar — respondeu o mais baixo, que era ruivo. — Você não se lembra? Agora, como não há mais janelas, não pode haver placas. — A barba do ruivo era cerrada, mas quando êle falava notava-se que a boca entortava para o lado. Andaram em silêncio por algum tempo. O alto pegou um pedaço, de tijolo para jogar em três corvos que estavam empoleirados numa cornija meio desmoronada, mas antes que o fizesse os pássaros de cor suja voaram gritando rua abaixo, por entre os altos edifícios. O som parecia vir de dentro de uma barrica. — Como são convencidos — resmungou. Pararam numa esquina. O vento que vinha do mar soprava frio e salgado. Uma placa enferrujada rangia melancolicamente lá no alto, enquanto era batida pelo vento. — Isto me lembra á velha fazenda da meu avô — disse o mais alto. — Ficava perto do mar. Que lugar solitário! Tinha uma coisa que rangia desse jeito o tempo todo. O engraçado é que eu nunca descobri o que era. Alguma coisa solta lá em cima, entre as traves do celeiro... parecia o céu gemendo. Esse barulho é que tornava o 53

lugar solitário. — Eles costumavam ter consultórios em esquinas como esta, disse o ruivo, por sua vez. — Acontecia o seguinte: a placa podia ser vista pelas pessoas que andavam nas duas ruas, como também pelas que esperavam a mudança dos sinais de trânsito, pelas que desciam dos ônibus... — Além da Bíblia havia um enorme livro com figuras na sala de visitas. Era o que eu lia todos os verões quando chovia de tarde, porque não podia fazer mais nada. Chamava-se “A Guerra Santa”, escrita por um tal de Bunyan. Imagine que nome: Bunyan. — “A guerra Santa”, hem? O ruivo olhava firmemente as janelas do segundo andar, tentando ver através da escuridão das salas. — Essa é boa. Todas as guerras eram santas. — Nenhuma era santa, você quer dizer. — Santas ou não, que importa isso agora? Olhando rapidamente o ruivo, o outro perguntou: — Dói? — Dói como o diabo. Como se alguém estivesse batendo nele com ferro em brasa. — Você quer que eu procure lá em cima?. — perguntou o alto, apontando as janelas acima de suas cabeças. — Sim — você não se importa, não é? Eu vou procurar do outro lado da rua. Separaram-se e o alto atravessou uma porta que anteriormente fora de vidro. Estava escuro lá dentro, na escada, e pior ainda no corredor, em cima. Êle começou a andar com cuidado. Nunca se sabia com o que se poderia topar no escuro. Andando rente à parede, êle ia procurando as maçanetas. Quando as encontrava, abria as portas, deixando entrar um pouco de luz cinza e o vento forte. Os papéis e a poeira rodopiavam no ar atrás dele. Finalmente encontrou o que procurava: uma porta com um nome: Dr. Eugene Sprague, tendo abaixo do nome a palavra dentista. Passando rapidamente pela sala de espera com seus móveis de vime e exemplares mofados do The Saturday Evening Post e de Life, entrou no consultório. Lá estava a cadeira típica; a luz regulável — apagada; as pequenas bandejas e a bacia com o tubo curvo e prateado — seco; e no ar, pendente do cabo, com suas rodinhas e fios, aquele instrumento de tortura. E de repente voltou à sua mente o velho dentista de sua infância, segurando a broca delicadamente como um lápis e 54

dizendo: “Queria pegar Hitler com isso por cinco minutos”. O ódio externo invadir seu mundo de menino, muito mais chocante porque aquela expressão era alheia ao rosto do velho, que se dedicava a amenizar a dor dos outros. Dirigindo-se ao armário começou a puxar as gavetinhas até encontrar o que desejava: o boticão — achatado, pontudo e brilhante. Segurou-o por algum tempo até sentir o pulso doer, e percebeu então que estava apertando aquele objeto com toda a sua força. Caminhou até a janela sem vidros e debruçou-se. Quando seu companheiro apareceu na calçada gritou para chamá-lo: — Encontrei. O ruivo levantou por um momento o rosto avermelhado e disse com relutância: — O. K., já vou subir. Em cima, no consultório, o homem começou a se movimentar. Tirou as teias de aranha que pendiam dos braços da cadeira, que virou para a janela. Abriu o boticão, prendeu-o no indicador da mão esquerda e apertou até doer. O instrumento ficou pendurado como um pássaro predador. Estremecendo, êle levantou os olhos, e viu então o outro encostado na porta, com a atenção fixa no fórceps. — Você ainda quer fazer isso? — Preciso. Não tenho escolha. Das duas uma: ou tiro o dente ou corto a cabeça. — Encostou-se na cadeira. — Não tenho a menor idéia de como se faz, e você sabe disso. — Não deve ser difícil. Basta segurar bem e puxar. Deixe ver essa coisa. Pegou no boticão e examinou-o, fascinado. Eles costumavam escondê-lo. Vinham andando meio de lado com a mão para trás e diziam distraidamente: “Abra”, com voz bem, suave. Logo em seguida a gente sentia o queixo estalando, sem doer, apenas estalando e um pedaço da gente saindo. — Olhou rapidamente para cima. — Naquele tempo eu achava tudo ótimo, isto é, sem ver o que estava acontecendo. — Examinou melhor o instrumento que tinha na mão. — Está vendo estes entalhes? — apontou com os dedos grossos e curtos. — São virados para dentro como dentes de tubarão. — Fechou o boticão e colocou o dedo no espaço entre os recortes. — Curvo, para abarcar o dente. Deve haver modelos diferentes, um para cada tipo de dente. Achou só este? — Só. 55

— Bem — o ruivo alisou a barba e passou o boticão ao outro. Por alguns segundos pareceu enraizado ali, de pé naquele chão, olhando o assento da cadeira. Finalmente lançou-se para a frente à maneira de uma marionete. Ao mesmo tempo pegou a garrafa de uísque no bolso do paletó. — Não sei se vai ajudar. Li sobre isso em algum lugar, Eu engulo o que puder de uma vez só, e enquanto estiver de boca aberta procurando ar, você arranca o dente. — Ora, assim não adianta. Não era assim que eles faziam. Você bebe bastante até ficar inconsciente. Um gole só não vai adiantar nada. O ruivo olhou como quem pede socorro. — Jesus, acho que eu não agüento. Estou morto de medo. — Mesmo assim fêz um esforço e afundou na cadeira. — Fique mole. Todos nós ficamos. Fomos estragados pelas drogas — aspirina, éter... Costumavam contar que minha tia-avó mandou arrancar todos os dentes de baixo por um veterinário, de uma só vez e sem piscar. — Bem, não quero desencorajá-lo. Um gole grande pode ajudar. Pode deixá-lo tonto. — Inclinou-se: — Deixe-me vê-lo outra vez. Não gostaria de tirar um dente bom. — E sorriu meio sem jeito. O ruivo abriu a boca e apontou com o indicador. O outro assentiu com a cabeça. — Deixe-me colocar o boticão nele para experimentar. — Limpou com a mão o suor dá testa, inclinou-se e colocou desajeitadamente o aparelho entre os lábios do companheiro. — Não pode abrir mais do que isso? A resposta foi uma violenta sacudidela da barba ruiva e um gemido que vinha do fundo da garganta. O homem alto passou o boticão para a mão esquerda e depois começou a puxar usando as duas mãos. Sente alguma coisa? — perguntou. O ruivo balançou a cabeça negativamente. Então o outro firmou um pé contra a cadeira e começou a se mover lentamente para trás, olhando o ruivo bem nos olhos. O rosto deste começou a ficar vermelho, e a mão foi tirada imediatamente. — O dente estava bem seguro: Eu poderia tê-lo arrancado — disse o homem alto, endireitando o corpo. — Mas não antes que eu tome o uísque. — A mão do ruivo tremia. Levantou a garrafa e bebeu de olhos fechados. Enquanto o líquido descia queimando pela garganta, sua face ia ficando ainda 56

mais vermelha, e as veias do pescoço pularam. Subitamente tirou a garrafa da boca, arfando, dentes descobertos. O outro se curvou mais uma vez até encostar a testa na barba ruiva. Quando abarcou o dente com o aparelho, os músculos de seus braços saltaram com o esforço. Seus lábios também se abriram num gesto de mimetismo. Com os pés firmados na cadeira deu um violento impulso no boticão, o que fêz o “homem sentado erguer-se nos braços dando um grito ensurdecedor, para cair em seguida. — Consegui — ia dizendo, mas parou a olhar o boticão. Murmurou: — Devo tê-lo quebrado. A figura encolhida na cadeira mirou o aparelho com os olhos tristes e em seguida levantou-se dizendo: — Não adianta. Eu não agüento passar por isso outra vez. O homem alto depositou cuidadosamente o pedaço de dente na bandeja. — O uísque não ajudou? — Não. O ruivo agora estava pálido. Seus olhos percorreram o consultório como os de um pássaro faminto. De repente viu numa prateleira um pequeno objeto meio escondido. Ficou a olhá-lo por, algum tempo. Depois suspirou aliviado. Relaxou o corpo e seus olhos voltaram a ter brilho, como os de uma pessoa abandonada pela febre. — Não pensamos nisso! — Falou com tanta alegria que o outro olhou espantado. — Tudo o que você tem a fazer é me dar uma injeção de novocaína. Aqui deve haver, em algum lugar. Começou a procurar entre os vidrinhos que enchiam as prateleiras, enxugando a testa e o pescoço com o lenço. — Não encontro. Onde o desgraçado escondeu a droga? — Não tem importância. Se não encontrarmos aqui procuraremos em outro consultório. — Ah! — Subitamente o ruivo levantou uma garrafinha verde. Leu o rótulo com os olhos brilhantes. Olhou-a contra a luz como se fosse o elixir da vida. Com a mão livre procurou a agulha. — Isto precisa ser esterilizado — advertiu o outro. — Poderemos fervê-la. O outro fêz que não com a cabeça. — Poderíamos quebrá-la, 57

e como faríamos, então? O ruivo olhou em torno mais uma vez e encontrou uma garrafa de álcool. — Aqui está. Isto resolve. Voltando à cadeira esperou tranqüilamente. Segurando a seringa cautelosamente o homem alto introduziu-a na boca do ruivo que nesse momento voltou-se dizendo: — Faça o que quiser, mas não a deixe cair. Movendo lentamente a agulha, o outro disse: — Acho que está bom aqui. — Faça um círculo de picadas em torno do dente — disse o ruivo agarrando os braços da cadeira outra vez. O homem alto segurava a seringa como se ela fosse uma cobra coral capaz de virar-se e mordê-lo no dedo. — Está pronto? — perguntou. O ruivo afirmou que sim. Quando a agulha entrou, êle tremeu. Seus olhos estavam muito abertos, fixos no teto. Ao terminar, o outro deu um passo atrás, respirando profundamente. — Até agora tudo bem. — Acho que vai funcionar. — Não sejamos precipitados. O homem alto fêz mais quatro aplicações, usando toda a novocaína do vidro. Dirigiu-se ao batente da janela, onde sentou-se e acendeu um cigarro. Suas mãos tremiam. — Que tal? —perguntou. O outro experimentou a gengiva com os dedos. — Ótimo, não sinto nada. Parece um pedaço de cimento. — Muito bem, vamos então. — Jogando o cigarro na rua, o homem alto apanhou o boticão. Trabalhou na boca do outro por algum tempo, depois parou, respirando fundo. — Acho que você está começando a gostar disso — comentou o ruivo. — Já perdi dois quilos, isso sim. Vamos, abra essa porcaria. — O homem alto recomeçou a puxar o dente mas o boticão escorregou e êle praguejou em voz baixa. Tentou outra vez, puxando gentilmente no início, e depois com toda força. O ruivo ficou rígido na cadeira. De súbito o aparelho saiu e ante seus olhos estava a causa do mal — o dente marrom-amarelado, áspero cariado, um canto quebrado. Examinaram-no com curiosidade. Na raiz havia uma pústula branca. O ruivo inclinou-se na cadeira e cuspiu na bacia. Sua face 58

estava radiante. Desceu da cadeira, declarando: — Sou um homem novo. — Se você permite eu vou tomar um gole disso aí. — Claro. Tudo o que eu tenho é seu. Você salvou a minha vida — disse o ruivo, passando a garrafa. — Foi a novocaína. Agradeça ao homem que inventou a novocaína — disse o outro, bebendo. — Agradeço mesmo. De todo o meu coração. Foi o mais. . . — Saíram do consultório e desceram a escada escura. — Aposto que você sofreu mais do que eu — disse o ruivo. — Suei muito. Espero que você faça o mesmo por mim, algum dia. —- Deveríamos comer mais nozes e raízes em vez de enlatados. Deveríamos viver mais como animais. — Acho que eu poderia manejar aquela broca... Chegando à rua, pararam na esquina por um momento. — Que rua é essa? Pode ser bom saber. — Duvido que passemos por aqui outra vez. — O homem alto olhou a placa. Broadway e Rua 125. — Está mais frio e escuro — O ruivo levantou a gola. — Ficamos aqui tempo demais. Vamos para o sul. Está na hora de partir.

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DEPOIS DO ENFER Philip Latham

Trad. de Aydano Arruda

Sábado e domingo eram naturalmente os dias mais movimentados do Museu Colfax, mas como para Samuel Baxter um dia era igual ao outro, o fato de sua folga geralmente ocorrer durante a semana asolutamente não o aborrecia. Na realidade, gostava de levantar-se tarde e vadiar pelo apartamento, enquanto outros homens precisavam estar em pé e trabalhando duro no velho emprego. No entanto, aborrecia tremendamente a Sra. Baxter. Nada aborrece tanto uma mulher como estar curvada sobre a pia da cozinha enquanto seu marido descansa diante do televisor, tendo ao lado uma cerveja. É duvidoso que ela se incomodasse se Sam vadiasse ao mesmo tempo em que os outros homens estivessem vadiando. Mas ficar sentado sem fazer coisa alguma em uma segunda ou sexta-feira. . . Não! Por isso, provavelmente era mais do que mera coincidência o fato de Emily Baxter precisar invariavelmente passar o aspirador de pó na sala de estar exatamente quando se realizava um jogo de basebol ou quando o gongo estava soando para o início de uma luta livre. Em favor de Emily deve-se dizer que Sam não era o homem mais fácil de agüentar do mundo. Assim, certa manhã de terçafeira, quando Emily insistiu em que êle a ajudasse a virar o colchão da cama, o choque resultante foi inevitável. — Aquele colchão parece-me perfeitamente confortável. Deixe como está — disse-lhe Sam. — Não, não vou deixar como está — replicou ela. 60

— É coisa que fica além da minha compreensão porque um apartamento pequeno como o nosso precisa tão infernalmente de limpeza. — Se você tem tanta raiva de ajudar na casa, por que não vai fazer alguma coisa na rua? — O que, por exemplo? — Procurar um emprego melhor, por exemplo. Já faz dezesseis anos que você está enterrado naquela Casa da Morte. Esse era o ponto da discórdia entre os dois. Sam descansou com força no pires a xícara de café. — Emily, eu não tenho talento, em treinamento especial. Você sabia disso quando se casou comigo. — Você não teve um único aumento desde quando o promoveram para Dinossauro e Outros répteis, há cinco anos. — Bem, você acha que eu gosto disso? — gritou êle. — Acha que eu gosto de montar guarda o dia inteiro a um punhado de crocodilos empalhados? De responder às mesmas perguntas estúpidas? De trabalhar ano após ano pelo mesmo miserável salário? — Então arranje um emprego decente. — Mas, Emily, aos cinqüenta anos isso é impossível. — Como é que você sabe? Já tentou? Sam não respondeu. Levantou-se, apanhou o jornal matutino e começou a vestir o paletó. Sua esposa olhou-o com desconfiança. — Que vai fazer agora? — perguntou ela. — Vou sair para procurar outro emprego. — É melhor levar o guarda-chuva. Está começando a chover. — A chuva que vá para o inferno. Ela observou seus preparativos com divertida tolerância. — Enquanto estiver andando por aí à procura de outro emprego — observou ela casualmente — poderia bem procurar outro apartamento. — Procurar outro apart. . . Se sua esposa tivesse pedido a entrega imediata da luz de sinalização que existia no alto do prédio da Prefeitura, êle não poderia ter ficado mais espantado. Fechou a porta violentamente e afastou-se, batendo os pés. Os Baxter ocupavam quarto cozinha e banheiro no vigésimo 61

andar de um prédio de apartamentos a poucas quadras do Museu Colfax. Dezesseis anos antes haviam-se considerado extremamente afortunados por terem um lugar para morar de onde Sam podia ir para o emprego a pé. Naturalmente, não pretendiam viver em alojamentos tão apertados durante muito tempo; só até terem “assentado a vida”. O insidioso perigo desse processo é que depois de assentar a vida pode ser muito difícil desassentá-la. Assim, depois de dezesseis anos ainda estavam vivendo no mesmo minúsculo apartamento. Antigamente tinham de suas janelas uma vista clara das montanhas ao norte. Depois, ficaram tão cercados de edifícios mais altos que se tornava necessário deixar as luzes acesas o dia inteiro. Sam entrou em um café vizinho onde poderia examinar as colunas de Empregos de Interesse — Homens. (Muito tempo antes todos os parques haviam sido requisitados para a construção de prédios comerciais.) Não havia falta de tais empregos. Infelizmente, não havia um único que tivesse o menor interesse para um homem chamado Samuel Baxter. Não lhe despertou o mais ligeiro interesse o fato de a Fábrica de Ferramentas Foyle precisar de um operador experimentado de máquinas de afiação. Nem se impressionou com a possibilidade de ganhar 50 000 dólares por ano como vendedor de uma companhia de Piscinas Desmontáveis para Ambiente Fechado. Numerosos empregos com enorme potencial de renda estavam à disposição de jovens dinâmicos, interessados em colocar artigos que praticamente se vendiam assim que eram vistos. Mas, à medida que seu café esfriava e o nevoeiro do lado de fora engrossava, êle podia sentir o entusiasmo fugir-lhe minuto a minuto. Estava a ponto de pagar a despesa e sair sem destino, quando seus olhos foram atraídos para a pequena seção intitulada Empregos — Homens e Mulheres. “Procura-se para trabalho de natureza especializada. Não é necessária experiência anterior. Sem limite de idade. Não é para vender. Exigido exame médico. Bom salário. Apresentar-se pessoalmente. Dr. Sherwood. Sala 515, Hartford, 3855 E. Willow Wocd, Glendora. 3855 E. Willow Wood... 3855 E. Willow Wood... Tinha certeza de que conhecia esse endereço. Claro! Era da Universidade do Es62

tado. “Hartford” devia, ser o nome do edifício do hospital no campus. Quantas vezes vira esse endereço em um envelope quando separava as cartas! O museu mantinha ativa correspondência com os professores da Universidade. Mas por que diabo a Universidade do Estado estaria publicando um anúncio como aquele? Bem. . . era fácil descobrir. Bastava tomar o ônibus e ir lá perguntar. A Universidade do Estado, em Glendora, cobria uma área mais ou menos do mesmo tamanho que o Principado de Mônaco.. Os reitores haviam escolhido um local encantador, no meio de colinas ondulantes, com uma residência da melhor classe. No campus os edifícios foram construídos bem separados, deixando entre eles amplo espaço para bancos e balaustradas, onde se podia estudar ou entregar-se a ociosos bate-papos entre as aulas. Êsses acessórios inúteis à aquisição de conhecimento não existiam mais sequer na memória da atual geração de estudantes. O Estado aproveitara todo milímetro quadrado de espaço para edifícios educacionais de toda espécie, deixando entre êles meras vielas. Mesmo essas estavam sendo rapidamente substituídas por, passagens subterrâneas que ligavam o complexo de laboratórios e salas de aulas muito abaixo do nível da rua. Uma das boas características do desenho estrutural condensado era ter obrigado a Universidade a substituir os antigos números das salas por um novo sistema coordenado inventado pelo Departamento de Matemática. Por isso Sam foi capaz de localizar a sala 515 no Edifício do Hospital Hartford em apenas vinte minutos. No decorrer de suas andanças, atravessou salões tão estreitos que era muitas vezes difícil encontrar espaço para andar entre as fileiras de pacientes amontoados nos bancos ao longo das paredes. Achou claramente estimulante a vista dessas pessoas doentes, de fisionomia ansiosa e aflita. Pelo menos nele nada havia de fisicamente errado, até onde podia saber. A sala 515 era na parte menos congestionada, aparentemente destinada àqueles estados difíceis de classificar que afligem a raça humana. Não havia placas de “Departamento de Alguma Coisa”, com setas apontando para o espaço. Não havia aglomeração de pacientes no corredor. Só uma porta tendo a inscrição MEDICINA EXPERIMENTAL, com o convite em baixo em letras pequenas: “Entre”. Sam entrou. Um hábil arquiteto, dando a sala o formato de estreito pedaço 63

cortado de um queijo, conseguira introduzir o escritório, em um espaço onde nunca se poderia supor que coubesse um escritório. Uma moça negra estava na parte mais larga, examinando alguns cartões no fichário. Ao contrário de todos os outros funcionários que encontrara, ela não parecia ter desesperada pressa de executar seu trabalho. — Vim por causa do anuncio no Times de hoje de manhã — disse Sam. Ela sorriu amàvelmente. — Sente-se, por favor. O Dr. Sherwood o atenderá dentro de um momento. Sam correu os olhos pela pequena sala esperando descobrir algum indício da natureza do escritório. Na parede oposta havia uma carta com a Tabela Periódica dos Elementos ao lado de uma fotografia descorada da Praia de Waikiki com o Diamond Head ao fundo. Atrás dele havia um painel formado de retratos ovais dos Poetas da Escola Americana de Waterfall Whisker: Bryant, Longfellow, Lowell e outros. Longfellow parecia estar olhando na direção da esbelta garota da folhinha da Lavanderia Superba. A porta fechada atrás do fichário presumivelmente dava para o escritório do doutor. A amarga experiência de Sam era que aquele “momento” realmente significaria mais de trinta minutos. No entanto, mal haviam transcorrido cinco quando a porta se abriu e um jovem corpulento saiu, seguido por um homem de meia-idade, de aparência jovial, de paletó branco, evidentemente o médico. — Bem, seja como fôr, muito obrigado por ter vindo — disse o médico, enquanto trocavam um aperto de mão. O jovem concordou com um aceno de cabeça e retirou-se apressadamente. Por um segundo, médico e secretária entreolharam-se, com fisionomias inexpressivas. — Um cavalheiro deseja vê-lo — disse finalmente a secretária, apontando para Sam Baxter. O doutor olhou-o taciturnamente. — Entre — disse, suspirando. Depois de se terem apresentado e trocado apertos de mão, o doutor recostou-se na cadeira giratória com as mãos cruzadas atrás da nuca, fitando o teto. Sam procurou parecer à vontade sem se mostrar muito indiferente. Sabia que se esse emprêgo tivesse algo de bom, pretendia ficar com êle. Sabia também que a pior ocasião para se procurar emprego é 64

quando se precisa muito dele. Não devia parecer excessivamente ansioso, nem abjetamente humilde. — Suponho que veio atendendo ao nosso anúncio — disse finalmente o Dr. Sherwood. — Isso mesmo — respondeu Sam. O doutor sorriu e disse reminiscentemente: — Lembro-me que, quando eu era menino à procura de meu primeiro emprego, meu pai me disse: “Nunca responda a um anúncio indefinido”. — Parece um bom conselho. — Poderia dizer-me por que respondeu ao nosso? Sam mudou um pouco de posição. — Bem, francamente, era o único que parecia oferecer-me alguma esperança. Além disso reconheci o endereço como sendo da Universidade do Estado. Sabia que a Universidade não me ofereceria uma coisa maluca. — Não se sinta tão certo disso resmungou o Dr. Sherwood. — Eles são capazes de fazer as coisas mais infernais... — Sacudiu a cabeça. — Qual é sua atual situação, Sr. Baxter? Sam esboçou brevemente sua posição no Museu Golfax, sua insatisfação com o serviço de lá e a dificuldade de encontrar coisa melhor em sua idade. O doutor ouviu-o sem fazer comentários. — Bem, Sr. Baxter, acho que a sua é uma história muito comum — disse, não sem bondade. — Não sei se podemos ajudálo ou não. Provavelmente não. Como vê, não estamos oferecendo um emprego regular. Nosso propósito é encontrar um homem... ou mulher. . . que se mostre apropriado para o que, por falta de termo melhor, chamamos de “processo”. Não tenho a menor idéia se o senhor se mostrará apropriado ou não. — Qual é a natureza desse. . . “processo”? — Sinto muito, mas não lhe posso dizer — respondeu o Dr. Sherwood. — Não posso. — Diabo! Como odeio todo esse negócio de segredo e coisas altamente sigilosas. Mas, que diabo, que posso fazer? A menos que concorde com tudo, não posso fazer coisa alguma. Por isso, se quiser ir em frente, Sr. Baxter, temo que tenha de andar muito no escuro. — Caso eu me mostre apropriado. . . qual seria o pagamento? Sam já se preparara para pedir pelo menos dez por cento a 65

mais do que ganhava no Museu Colfax. “Por isso foi apanhado de surpresa quando o doutor mencionou uma cifra duas vezes maior que seu salário no museu. — Tabela fixada pelo governo — explicou o Dr. Sherwood. — Em minha opinião, o serviço vale muito mais. — Eu diria que o pagamento é extremamente generoso para alguém sem experiência anterior. — Talvez não pense assim quando eu lhe falar mais sobre o assunto. Se quiser continuar, aqui está o esquema: — Em primeiro lugar, o senhor preencherá os longos formulários de costume. “Tem filhos?” “Já foi casado?” “Qual é o nome de solteira de sua avó?” Não que realmente isso nos interesse, mas começamos fazendo essas perguntas e agora temos medo de parar. Depois, o senhor será submetido a exame médico preliminar, apenas para nos certificarmos de que seu coração está batendo, seus intestinos estão funcionando, seus reflexos ainda são bons. Fazemos também uma pequena espionagem em sua vida privada. Se o senhor fôr aprovado nessa rotina preliminar, será depois submetido ao verdadeiro exame físico. — Mas isso não levará tempo considerável? — Eu ia chegar lá — disse o Dr. Sherwood. — Nós lhe pagaremos três dólares por hora que passar em nossa clínica. O exame, naturalmente, é inteiramente por nossa conta. Penso poder dizer com segurança que, pelo atual e modesto preço da assistência médica, a espécie de exame a que será submetido provavelmente lhe custaria uns mil dólares. Se puder dispor de tempo, Sr. Baxter, é uma proposta que realmente não deve ser desperdiçada. Pense nisso. Sam pensou durante uns dez segundos. — Aceito -— declarou. — Ótimo. — O Dr. Sherwood levahtou-se. — Quando quer começar? — Hoje. Já. O doutor consultou o seu relógio. — Ainda não é meio-dia. Mandarei a Srta. Christie ver se pode marcar uma hora para o senhor no começo da tarde. O senhor poderá almoçar em nosso restaurante e procurá-la mais tarde. — Muito bem. Sam virou-se para sair, mas o doutor ainda tinha uma per66

gunta. — Sr. Baxter, o senhor não é acrófobo, é? — Acrófobo? — Sujeito que tem medo anormal de lugares altos. — Não, acho que não. — Já esteve isolado em algum lugar alto? Sam procurou lembrar-se. — Estive em um balão cativo na Feira Pomona uma vez. — Como se sentiu? — Bastante enjoado. — Não o culpo por isso. — O Dr. Sherwood abriu a porta, dando a entender que a entrevista estava terminada. — Procure a Srta. Christie depois do almoço, sim? Sam não teve dificuldade em atender aos numerosos compromissos no hospital. Os empregados do museu estavam acostumados a fazer trocas dentro do horário semanal e Sam, como o mais diligente membro do pessoal, tinha dívidas de tempo a receber de praticamente todos os outros. Aproveitou plenamente esse fato. Com efeito, tirou mais dias de folga espalhados pelos dois meses seguintes do que havia tirado nos dez anos anteriores. Gradualmente, se tornou uma figura conhecida no Hospital Hartford, circulando pelo edifício, desde a Radiologia até o fundo. da Ventilação Pulmonar, com paradas intermediárias na Cardiologia, Urologia, Neuropatologia e Otologia, sendo a última um freqüente lugar de repouso (Por alguma razão, interessavam-se especialmente por seu aparelho auditivo.) Tudo quanto lhe diziam para fazer, por mais indigno ou embaraçoso que pudesse ser, êle fazia da melhor maneira possível, sem protesto ou comentário. Se uma enfermeira o felicitava por ser um bom paciente, agradecia, tornava a vestir a calça e seguia para o exame seguinte. E nunca se queixava de ter de esperar. Chegou o dia em que ficaram concluídos todos os seus exames e testes: todos os resultados estavam devidamente processados e tabulados. A Srta. Cristie telefonara-lhe para casa a fim de saber se seria conveniente para o Sr. Baxter procurar o Dr. Sherwood na manhã seguinte, às dez horas. O Sr. Baxter assegurou-lhe que seria. Foi sorte de Emily ter atendido ao telefone. Isso representou 67

uma fonte de intensa satisfação para ela, pois era o primeiro indício seguro das misteriosas atividades de Sam desde aquela manhã chuvosa, dois meses antes. A princípio ela considerara suas ausências de casa e do emprego como mero exibicionismo inofensivo, mais uma de suas fúteis tentativas de despertar simpatia. Dessa vez, porém, êle parecia ter programado um plano diferente. Outras esposas teriam suspeitado que seu marido andava com alguma mulher, mas tal hipótese era evidentemente ridícula no caso de Sam. Diante de todas as perguntas da esposa, Sam mantinha impassível silêncio. Em um ponto qualquer daqueles dois meses êle descobrira a força peculiar que existe em Não Dizer. “A resposta virá no devido tempo”, era a única coisa que dizia. Com o tempo, isso lhe granjeou certo respeito relutante. Sam chegou ao escritório do. Dr. Sherwood alguns minutos antes das dez e foi introduzido imediatamente. O doutor deu-lhe um caloroso aperto de mão. — Sr. Baxter, permita-me primeiro cumprimentá-lo por ser um espécime físico tão bom. O senhor é um homem em mil. — Obrigado — murmurou Sam. “Como isso era diferente de sua primeira entrevista!” — pensou. — Eu próprio passei por isso — continuou o Dr. Sherwood. — Depois de todas aquelas sondagens e testes com todos aqueles instrumentos de tortura, você deve achar que certamente eles encontrarão algo de errado em algum lugar de seu corpo. Geralmente encontram. Em seu caso, tenho a satisfação de dizer que nosso corpo médico se esforçou em vão. Sam agradeceu esse tributo ao estado impecável de seu interior com modesta inclinação de cabeça. — Naturalmente o senhor está perguntando a si próprio qual o propósito de todo esse minucioso exame físico. — Devo confessar que me sinto um pouco curioso — admitiu Sam. —- Agora pode ser, contado — disse o Dr. Sherwood — mas para tornar tudo claro preciso voltar um pouco atrás. Hesitou rapidamente, como se estivesse reunindo os pensamentos. — Quem vive hoje em uma grande cidade sabe como estamos 68

lutando com falta de espaço. Pagamos aluguéis exorbitantes por um buraquinho que nossos avós teriam usado como casinha de cachorro. Todo centímetro quadrado de espaço no solo está ocupado. Para obter mais espaço fomos obrigados a ir para o alto. Erguemos edifícios de cem. . . cento e cinqüenta . . . duzentos andares. Recentemente, começamos a ir para baixo. Mas há um limite em qualquer direção. E agora, temo eu, acabamos de atingir esse limite. O Dr. Sherwood tomou a caneta e começou a rabiscar no bloco de memorandos. — Digamos que existe razão urgente para a construção de um prédio contendo três milhões de metros cúbicos de espaço. Dispomos de uma área de cinco mil metros quadrados. O código de construção limita nossa dimensão vertical em trezentos metros. Em tal área um edifício de trezentos metros nos daria um milhão e meio de metros cúbicos, que representa apenas metade do espaço de que precisamos. Nesse caso, Sr. Baxter, que vamos fazer? — Requisitar mais terra — sugeriu Sam. — Sinto muito, mas aquela, é toda a terra que existe. — Afrouxar o código de construção. —- Não. Não é possível fazer isso. — Nesse caso não sei como poderão construir seu edifício — declarou Sam. — Podemos construir nosso edifício se o estendermos cinqüenta centímetros em alguma outra dimensão. — Quer dizer estendê-lo alguns decímetros na quarta dimensão? — Dê-lhe o- nome de quarta. . . quinta. . . qualquer dimensão que quiser. O olhar de Sam desviou-se um pouco. — Dispondo de dimensões suficientes acho que poderiam construir edifícios do tamanho que quisessem. — Em teoria, sim — concordou o Dr. Sherwood. -— Na prática. . . não é tão fácil. Há uns cinco anos, alguns dos rapazes da Física começaram a fazer pressão em favor de um sensacional programa dimensional. Parecia loucura e eu me opus a êle. Naturalmente, ninguém prestou a mínima atenção. Eles continuaram a insistir, pediram uma carrada de dinheiro e quero que me enforquem se não o conseguiram. Assim, puseram-se a aliviar a escassez de espaço. 69

— Não demorou muito e quase todo seu dinheiro foi gasto sem coisa alguma a exibir em troca dele. . . exatamente como eu havia predito — acrescentou o Dr. Sherwood, com considerável satisfação. — Como tantas vezes acontece na ciência, o primeiro indício real veio de fonte inteiramente inesperada. Não de um monte de aparelhos no laboratório de física, mas de desvios nas órbitas de Mercúrio e Ícaro, resultantes do momento quádruplo do sol. Depois de termos o indício essencial, o resto foi bastante fácil. Há mais de um ano sabemos não só como transferir um homem para outra dimensão, mas também como trazê-lo de volta. O Dr. Sherwood tirou duas grandes chapas de filme de um envelope e colocou-as na tela do visor sobre sua mesa. — Olhe isto — disse êle, ligando a luz atrás. — São negativos, naturalmente, mas não faz muita diferença. Os positivos parecem ruins. Neste da esquerda, o senhor reconhecerá a esquina onde toma seu ônibus. É uma fotografia comum, tirada da maneira normal. A outra é do mesmo lugar, mas tirada em multidimensão. Teria sido capaz de adivinhar? — Nunca. — Tentar interpretar esse material multidimensional não seria tão difícil se pudéssemos ter certeza de estarmos obtendo apenas uma dimensão adicional. Foi isso que nos atrapalhou durante tanto tempo. Estamos obtendo principalmente a quarta. Mas está vendo esta mancha de pontos e linhas aqui no canto? Isso é da quinta. Observe essas massas de sombra aqui e ali. São intrusões da sexta. Recentemente afirmaram estar obtendo traços da sétima. Uma confusão tremenda. — Sem dúvida — concordou Sam. — A transferência para esta selva dimensional e a recuperação tornaram-se tão difíceis como levar um homem à lua e trazê-lo de volta. Mas esses problemas puramente de transferência agora já foram resolvidos. Poderíamos começar a construir a qualquer momento. Só uma coisa nos detém. — Oh? — Medo. Um medo paralisante. — Acho que não estou entendendo — disse Sam. — Não, Sr. Baxter, eu não esperaria isso do senhor. Certamente também não era coisa que pudéssemos prever. O Dr. Sherwood passou uns momentos estudando as fotos 70

antes de prosseguir. — Nós nos imaginamos como criaturas cujo habitat natural é o de três dimensões. Nisso só há oitenta e cinco por cento de verdade. Na realidade, somos criaturas cujo habitat natural é o espaço de duas dimensões... a terra plana. Ninguém hesitaria em atravessar esta sala sobre uma tábua de trinta centímetros de largura colocada trinta centímetros acima do piso. Mas se essa tábua estivesse entre dois edifícios a trezentos metros de altura, quantos ousariam atravessar por ela? Nem com um forcado aquecido ao rubro seria possível obrigar alguém a atravessá-la. — Mas algumas pessoas. . . — Algumas pessoas atravessariam — concordou o Dr. Sherwood, acenando enfaticamente com a cabeça — Para umas poucas pessoas a terceira dimensão não encerra terrores. Andar sobre uma prancha entre dois altos edifícios seria quase fácil demais. — Quando descobrimos o truque, todo o mundo ficou doido para ver como eram as coisas em multidimensão. Faziam-me lembrar um grupo de moleques tentando espiar dentro de um circo. Bem... uns doze fizeram a viagem. — Sorriu sombriamente. — Nenhum deles permaneceu muito tempo, embora houvesse considerável variação. A parada variou de uns dois a vinte segundos. Nunca antes eu vira homens tão petrificados. Houve um professor de Humanidades ao qual precisaram manter depois sob sedativos durante uma semana. — Durante algum tempo pareceu que o programa estava completamente prejudicado. Depois alguém teve esta idéia brilhante: talvez pessoas sem medo de grandes alturas, como trabalhadores em estruturas de aço e pára-quedistas, também não tivessem medo de enfer. . . — Enfer? — Desculpe. É nosso termo de gíria para designar “N-fear”* — explicou o Dr. Sherwood. — Quando descobrimos que nossas fotografias mostravam várias dimensões, começamos a falar em espaço de quatro dimensões, cinco, seis e assim por diante. Depois, amontoamos todos eles em “N-espaço”. Da mesma maneira, come-

* Corresponde a “N-medo” em português. (N. do Trad.)

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çamos a chamar esse medo terrível do espaço de “N-fear”. O Dr. Sherwood deu uma risadinha. — Chamamos um grande matemático da Bélgica como consultor. Êle não falava inglês muito bem. Quando nos ouviu falar em “N-fear”, pensou que quiséssemos dizer enfer... inferno em francês. Depois de termos esclarecido isso, decidimos que “N-fear” é inferno. Por isso, desde então tem sido enfer. O doutor tirou o lenço e começou a limpar os óculos. Sem os óculos seus olhos pareciam velhos e cansados. — Bem, posso dizer isso em favor deles. Aqueles diabos malucos que fazem uma dúzia ou mais de saltos de pára-quedas por semana representaram sem dúvida uma melhora. Alguns deles suportaram o enfer até por doze minutos. Nenhum precisou ser hospitalizado em seguida. Mas não houve um único que demonstrasse entusiasmo em fazer do enfer uma carreira. Por isso, finalmente, desistimos deles também. — Como já disse, descobrimos que as pessoas diferiam consideravelmente em sua reação ao enfer. Por isso começamos a publicar aquele anúncio esperando encontrar um bom candidato. Até agora não; tivemos muita sorte. Tornou a colocar os óculos e fitou Sam com ar interrogativo. — Bem, Sr. Baxter, isso é quase tudo. Alguma pergunta? — Nenhuma me ocorre. — Posso concluir que o senhor ainda deseja continuar? — Muito. — Não quer ir para casa e dormir primeiro antes de decidir? — Não. . . não. — Deixe-me acentuar a seriedade da decisão que tomou. No enfer o senhor ficará exposto, não só a graves danos físicos, mas também a severo trauma psíquico. Compreende isso? — Compreendo perfeitamente. — Precisa acreditar-me, Sr. Baxter, quando lhe digo que entrevistei homens e mulheres muito melhor preparados para o enfer do que o senhor, por treinamento e experiência anteriores. Eu os vi antes do enfer impacientes e confiantes. Eu os vi também depois do enfer com os nervos completamente abalados. — Hesitou antes, de acrescentar: — Há mais uma coisa que desejo dizer-lhe. — Sim? — Depois do enfer. . . em um caso... o candidato não voltou. 72

Durante vários segundos a pequena sala ficou muito silenciosa, exceto pelo fraco zumbido do aparelho de ar condicionado. — O senhor ainda está tão absolutamente decidido quanto antes? — perguntou o Dr. Sherwood. — Sem dúvida. As maneiras da Dr. Sherwood mudaram subitamente, de consultor médico para administrador comercial. — Ainda há algumas coisinhas a acertar. Assine uma autorização. Depois fale com o Dr. Cameron no fundo do saguão. Êle deseja fazer-lhe algumas perguntas. Entreabriu a porta. —- Srta. Christie, pergunte ao Dr. Cameron se pode atender ao Sr. Baxter agora. — Reclinou-se na poltrona, olhando Sam com expressão irônica. — O senhor está muito certo de que será bem sucedido, não está, Sr. Baxter? — Nada pode impedir-me. A Srta. Christie bateu na porta. — O Dr. Cameron disse que pode descer. — É melhor ir ver esse sujeito agora — disse o Dr. Sherwood. — Liquide com isso. O Dr. Cameron era magro e curvado, um homenzinho cujas roupas lhe caíam como se tivessem sido feitas para alguém dez quilos mais pesado. Seus pálidos olhas azuis quase não tinham expressão. O Dr. Sherwood fêz a apresentação o mais depressa possível, depois se virou para sair. — Posso vê-lo dentro de meia hora? — perguntou. O Dr. Cameron acenou com ar ausente sem erguer os olhos dos cartões que estava separando. Só depois que todos eles estavam nos lugares certos pareceu tomar conhecimento da existência de Sam. — Então o senhor é Samuel Baxter, o novo candidato para o enfer? — disse, consultando um dos cartões. — Isso mesmo — respondeu Sam, recostando-se em sua cadeira. Sentia-se como um menino travesso chamado à sala do diretor por causa de alguma má ação. — Suponho que Sherwood já lhe falou sobre os perigos do enfer? — Falou. 73

— E o senhor não está com medo? — Absolutamente não. O Dr. Cameron retirou o cartão de cima do maço que tinha na mão e colocou-o voltado para baixo sobre a mesa, coma se estivesse praticando alguma espécie de jogo. — Agora, Sr. Baxter, eu tenho algumas perguntas a fazer. Não precisa respondê-las se não quiser. Isto não é um tribunal de justiça e o senhor não está sob juramento. — Pode falar — disse Sam. —Pergunte o que quiser. Terei muito prazer em responder. — Obrigado — disse o Dr. Cameron, pondo outra carta voltada para baixo sobre a mesa. — Sua cooperação nesta difícil questão é muito apreciada. O pequeno doutor parecia não saber ao certo como prosseguir. Sam começou a sentir um pouco de pena dele. — Sr. Baxter, já esteve alguma vez em uma situação que considerasse particularmente perigosa? Sam pensou um momento. — Bem.... fui perseguido por um urso no Yellowstone Park. A fisionomia do Dr. Cameron conservou sua habitual expressão impassível. — Que aconteceu? — Escapei. Naquele tempo eu era moço. — Essa situação não lhe parece mais humorística do que perigosa? — Parece engraçada agora, quando se fala sobre ela — concordou Sam. — Mas não parecia engraçada quando me aconteceu. — Acredito que sim — murmurou o Dr. Cameron, fazendo uma marca em um dos cartões. — Não consegue lembrar-se de alguma outra situação em que estivesse envolvido e que lhe tivesse parecido particularmente perigosa, além desse incidente? — Sinto muito. Acho que foi só essa. — Quando estava na escola, o senhor obteve reconhecimento extraordinário em algum setor ou conquistou algum prêmio especial? — Não. Nunca conquistei belas taças, nem me pregaram medalhas no peito. — Houve ocasiões em que outros receberam tais reconheci74

mentos ou prêmios, quando o senhor se sentia igualmente merecedor? — Não.... realmente não. — Sr. Baxter, de acordo com uma cópia de suas declarações, que tenho aqui comigo, o senhor é funcionário do Museu Colfax há dezesseis anos, como atendente. . . — Sim. — Durante esses dezesseis anos serviu ao museu bem e fielmente? — Servi, até o máximo de minha capacidade... Sim. — Sr. Baxter, quando teve seu último aumento de salário? Sam hesitou. — Não consigo lembrar-me exatamente. — Aproximadamente, então. — Acho que posso. . . — Foi nos últimos seis meses? — Não. — No ano passado? — Não. — Nos últimos dois anos? Três anos? — Foi no dia primeiro de julho, cinco anos atrás. O Dr. Cameron anotou. — Qual foi a importância desse aumento, Sr. Baxter? — Foi há tanto tempo que não consigo mais lembrar-me. . . — Vamos, vamos, Sr. Baxter — disse o Dr, Cameron, um pouco impaciente. — Se há coisa que um homem é sempre capaz de lembrar-se é a importância de seu salário. — Pelo que posso lembrar, foram uns cinqüenta dólares por mês. O Dr. Cameron consultou seus cartões. — De acordo com o contador do Colfax foram precisamente quarenta e cinco dólares por mês. Considerando o aumento do custo de vida e os salários pagos a outros em cargos semelhantes, o senhor achou na ocasião que esse aumento era justo? — Bem. . . considerando... — Achou? — Não. — Queixou-se a alguém dos salários inadequados que o museu paga a seus funcionários? 75

não...

— Talvez tenha mencionado isso uma ou duas vezes. — Mencionou-o a sua esposa? — Acho que teria sido difícil

— Qual foi a reação da Sra. Baxter? — Mostrou-se satisfeita por eu ter recebido um aumento. — Mais alguma coisa? — Bem, achou que devia ter sido consideravelmente mais. — Sr. Baxter, não é verdade que sua esposa ficou furiosa quando lhe revelou a importância de seu aumento? — Realmente, ela ficou louca da vida. — Não é verdade que ameaçou deixá-lo se o senhor não procurasse o chefe de seu departamento no dia seguinte e exigisse mais? — Creio que ela fêz uma observação nesse sentido. — Bem. . . o senhor procurou? Sam não respondeu. Afundou-se na cadeira com os olhos voltados para o outro lado. — Bem, Sr. Baxter? Os olhos de Sam voltaram-se novamente para o Dr. Cameron. — Desculpe-me, doutor. Qual era a pergunta? — No dia seguinte — disse o Dr. Cameron, falando vagarosamente, mas sem erguer a voz — no dia seguinte, o senhor procurou o chefe de seu departamento e exigiu mais dinheiro? — Não, não procurei. — Por que não? — Eu.. . não poderia fazê-lo. Êle estava de férias. — E quando êle voltou? — Não! O Dr. Cameron esperou um momento. Era como um pugilista que marca um ponto e depois segura seu adversário antes que êle possa revidar o golpe. Em seguida voltou ao ataque: — Em alguma ocasião nos últimos cinco anos o senhor discutiu a questão de salário com o chefe de seu departamento? — Não, nunca discuti. — Creio que êle estava sempre terrivelmente ocupado com coisas importantes, de modo que nunca houve oportunidade. . . — disse o Dr. Cameron em tom de simpatia. — Não, nem sempre êle estava muito ocupado. 76

— Então por que não lhe pediu? Sam não respondeu. — Por que, Sr. Baxter? Por quê? — Porque eu tinha medo! — gritou Sam com voz rouca. — Durante toda minha vida eu tive medo. Tanto medo que deixava os outros pisarem em mim. . . levarem vantagem sobre mim. .. me dizerem o que quisessem. Nunca ergui a cabeça. É por isso que nunca consegui nada. Enterrou o rosto nas mãos e prosseguiu: — Esta era minha última oportunidade. Estava decidido a aproveitá-la. Se falhar, vou matar-me. O Dr Cameron permaneceu sentado imóvel, sem um traço de expressão em seus olhos pálidos. Houve uma batida na porta. — Entre — disse êle. O rosto do Dr. Sherwood apareceu na porta. — Bem. . . está tudo em ordem? — perguntou sorrindo. O Dr. Cameron apontou a figura trêmula do outro lado da mesa. O Dr. Sherwood olhou-a genuinamente consternado. — Não parece um candidato muito bom para o enfer. O Dr. Cameron sorriu debilmente. — Eu diria que é um excelente candidato paria o enfer. Um dos melhores que já tivemos. O pequeno hospital de medicina experimental em Silurian Lake era um dos estabelecimentos dos Estados Unidos dotados de pessoal especializado e provavelmente do melhor equipamento. Na opinião dos médicos de lá, um candidato ao enfer devia ser preparado para o tubo de transferência exatamente como se fosse ser submetida a grande cirurgia. Isso explica porque uma atraente enfermeira entrou rapidamente no quarto de Sam, enfiou-lhe uma agulha hipodérmica na nádega esquerda e lhe sugeriu que se relaxasse. Sam desejava fervorosamente poder fazê-lo. Todavia, a animação que dominara seu espírito depois da entrevista com o Dr. Cameron era então substituída por uma sensação que chegava à beira do pânico. Se dispusesse de um meio de fuga certamente não hesitaria em aproveitá-lo. “Por que não poderia simplesmente vestir suas roupas e sair andando?” perguntou a si mesmo. Não era como se estivesse doente de cama. Estava perfeitamente sadio e forte. Uma vez fora do 77

hospital haveria a questão de andar uns cento e cinqüenta quilômetros através do deserto de Mohave. Mas não seria difícil arranjar uma carona. Afundou-se nos travesseiros aliviado por ter resolvido tão facilmente o problema. Um médico e dois jovens estavam ao lado de sua cama, sorrindo-lhe. De onde haviam saído? O médico estava depois injetando alguma coisa em uma das veias de seu braço. Observou o embolo descendo . . . quase um centímetro e meio. Ainda não sentira coisa alguma. Talvez tivesse havido algum engano... Samuel Baxter esteve no enfer durante três horas e vinte minutos, fora o tempo que passou no tubo de transferência e na câmara de recuperação, o que ultrapassava de muito o recorde estabelecido por um stunt man* de Hollywood. Foi recolhido por uma patrulha a uns três quilômetros do ponto de transferência, andando por seus próprios meios. Apesar de seus protestos, foi levado de volta às pressas para o hospital e mantido em rigoroso isolamento durante trinta e seis horas, enquanto era submetido a testes e interrogatório. Transpiraram rumores sobre a grande novidade de Lake Silurian, e o resultado foi que a população daquela minúscula comunidade do deserto dobrou da noite para o dia. Anteriormente, o Projeto Enfer fora um doloroso fracasso. Em lugar de quarta dimensão poder-se-ia pensar que estavam tentando assaltar o Fort Knox. Dessa vez, porém, haviam conseguido! Não só levar um homem à quarta dimensão, mas trazê-lo de volta, vivo e falando. — Sr. Baxter, quer vir até aqui onde o público da televisão poderá vê-lo melhor? Ótimo. Agora, diga-nos, gostou de sua viagem nessa quarta dimensão? — Gostei tremendamente. — Não ficou com medo em alguma ocasião? — Nem um pouco. Pelo contrário, foi uma aventura maravilhosa e excitante. — Poderia descrever a aparência do mundo quando visto do espaço quártico? —- Não, senhor, acho que não sou capaz. É como tentar des* Acróbata profissional que, no cinema, substitui o autor nas cenas perigosas. (N. do Trad.)

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crever as cores do arco-íris para um homem que foi cego durante toda vida. Só posso dizer que é bonito. . . simplesmente bonito. Eu gostaria de ser poeta. Talvez então fosse capaz de encontrar palavras para descrevê-lo. — Em sua opinião, Sr. Baxter, esse avanço na quarta dimensão permitirá atenuar a escassez de espaço para construção? — Evidentemente. — Que diria de uma viagenzinha à quinta dimensão? — Quinta . . . sexta . . . sétima. . . pode escolher. — Bem, muito obrigado, Sr. Baxter, temo que nosso tempo esteja esgotado. Amigos, este foi... Samuel Baxter recebeu, segundo notícias dignas de crédito, uma oferta fabulosa por seu livro descrevendo fielmente suas experiências pessoais no enfer, que êle infelizmente insistiu em escrever sozinho. Todavia, como nunca havia escrito coisa alguma, logo descobriu que pôr palavras no papel era um trabalho muito mais difícil do que supusera. Mal havia terminado as primeiras trinta mil palavras quando veio a notícia de que o Projeto Enfer seria suspenso por falta de verbas. O Congresso não estava disposto a conceder o dinheiro solicitado, pois parecia haver pouca esperança para um projeto no qual só um homem em mil poderia ser tratado com êxito. Sam nunca terminou seu livro e o negócio todo falhou. Os leitores talvez se interessem em conhecer o texto integral do relatório oficial publicado recentemente nos Anais de Medicina Experimentals vol. 37, p. 313. O Sr. Baxter oportunamente voltou a seu antigo emprego no Museu Colfax, onde é agora chefe da seção de Cartões Postais e Informações do Departamento de Macacos Antropóides e Homem Primitivo. Seus amigos declaram que o enfer fêz alguma coisa em seu benefício. Pensam que seu temperamento provavelmente sofreu uma reviravolta enquanto estava na quarta dimensão. Isso porque o velho Sam Baxter é hoje um homem feliz. Êle e Emily dão-se muito bem. Agora ela o respeita. Pois seu marido não se distinguiu de todos os outros homens do mundo como detentor oficial do grande recorde do enfer de todos os tempos? Sam lhe dirá que, por pior que o mundo pareça para o resto de nós, é na realidade um lugar maravilhoso e belo. Suas maravilhas e belezas estão em nosso redor. E poderíamos tê-las. Se não 79

fosse nossa maldita estupidez... Passem um dia pelo Museu Colfax e perguntem a êle.

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ALTER EGO Hugo Corrêa

Trad. de Renato J. Ribeiro

— Este è o seu Alter Ego, senhor. Tenha a bondade de assinar o recibo. Antônio abriu a caixa e recuou, espantado. Lá estava êle, os braços junto ao corpo, completamente nu e sem movimento. Se a posição ereta não fosse anormal numa pessoa que dorme, êle teria tentado acordar o andróide, tão fiéis à vida pareciam a côr da pele, as pequenas rugas começando a aparecer perto dos olhos, os lábios finos, a testa alta. O cabelo liso estava penteado com cuidado, como o do seu semelhante humano. Pegou a caixa de controle e, seguindo as instruções, colocou o andróide em movimento. Andava devagar e naturalmente, sem nenhum dos movimentos grotescos tão típicos dos autômatos do passado. Era justamente como se possuísse realmente ossos, músculos, nervos e os órgãos de um ser vivo. Antônio dirigiu-o nas ações elementares — sentar-se, vestir-se, acender um cigarro, coçar o ouvido. “Se os proprietários de andróides desejam tirar deles a máxima satisfação” — dizia o manual de instruções — ‘’ devem, primeiro estudar muito cuidadosamente a si mesmos, pelo menos em sua mímica, gestos, modo de andar, etc”. Antônio, já perito em manejar a sua cópia, colocou a cabeça dentro do capacete de introjeção. Durante um momento, seus olhos piscaram na escuridão. Mas, assim que ligou a avalanca ocular, recobrou o uso dos olhos. A sala de estar parecia como se êle a estivesse vendo de outro ângulo. O que estava acontecendo? Sim81

plesmente, êle estava começando a ver pelos olhos do andróide. Alter Ego estava de pé no meio da sala, voltado para a porta, piscando naturalmente. Os instrumentos movimentavain as pálpebras sintéticas simultaneamente com as de Antônio. O homem apertou um botão e a cópia voltou-se. Podia ver-se a si mesmo, sentado na cadeira, a cabeça escondida no capacete, os controles no joelho. Como o canal auditivo estava funcionando, não havia dúvida de que estava agora no meio da sala; podia ouvir os ruídos da rua e os que ele mesmo fazia quando mudava de posição na cadeira de braços. E cheiro. Como se respirasse através de Alter Ego. Os odorofones lhe davam a sensação de ar respirado em todos os lugares simultaneamente. Experimentou a voz da sua duplicata; assim que Alter Ego abriu a boca, Antônio ouviu-se falando do meio da sala. — Como vai, Antônio? Você renasceu. Não se sente como um peixe num tanque cuja água acaba de ser trocada? Antônio ouviu a sua própria voz com satisfação. Fêz Alter Ego caminhar pela sala, andar até a janela e, inclinando-se para fora, olhou a cidade que brilhava sob o céu ardente, coberto de helicópteros. Tudo parecia mais bonito do que quando êle usava os próprios olhos; o céu estava mais azul e mais luminoso, os arranhacéus mostravam cores mais alegres e brilhantes. Sim, Alter Ego estava-lhe mostrando a face verdadeira das coisas. As sensações que recebia através da sua cópia faziam-no sentir-se, subitamente, em paz com a humanidade. Na sua imaginação, renasceram as emoções da juventude, as memórias que o tempo tinha lentamente apagado, deixando apenas imagens desbotadas, voluntária ou involuntariamente esquecidas. Mas agora sentia-se dominado por uma coragem estranha e um desejo de relembrar-se. Podia contemplar soberanamente a sua vida passada, fazer voltar pensamentos, aspirações juvenis, e a maneira pela qual êle tinha, pouco a pouco abandonado aquilo que mais amava para conquistar uma posição. — Lembra-se de quando queria ser ator e representar O Imperador Jones? Como você passava semanas inteiras, com a cabeça nos monólogos dele? Como namorou Valentina, a moça, que estudava com você na escola dramática e que o encorajou, porque ela tinha fé em você? Alter Ego falava com voz clara, ressonante, com gestos de um homem habituado ao palco. Acendeu um cigarro, tragou fundo, 82

depois soltou um filête de fumaça. Parou na frente de um retrato de Antônio, em cima da escrivaninha, sorriso satisfeito no rosto, rodeado de fotografias, pequenas notas, quadros de avisos. — Não há nada de mal em vender pasta de dentes, especialmente quando é um produto bom e fabricado corretamente. Afinal de contas, isso tem até uma função social; garante dentes brancos e hálito agradável. Você pensou, alguma vez, em aplicar a suas próprias atividades as palavras de Jones a Smithers. “Não é falar grande que faz um homem ser grande — enquanto êle faz os outros acreditarem nisso?” Você o conseguiu como vendedor. O problema foi que você nunca acreditou nas grandes coisas que o grande vendedor Antônio dizia. Alter Ego tragou fundo, e através da nuvem azulada examinou o homem na cadeira, cujo rosto estava escondido pelo capacete. Maravilhas da eletrônica! Os papilofones lhe trouxeram o sabor e o leve calor do fumo. — Fumar por controle remoto — que coisa fantástica para os homens práticos de hoje, que estão ansiosos para fazer todas as coisas, sem se arriscarem demais! Consegue o mesmo prazer que o fumante, sem correr nenhum dos riscos. É a satisfação do princípio hedonístico. Alter Ego abriu um pequeno armário, muito antigo e voltouse para Antônio com um sorriso indefinível. — Uma peça de museu, como tantos homens. Muitos homens de hoje não são apenas peça de museu, afinal de contas? Para começar, são incapazes de satisfazer suas próprias aspirações, eles param todos na metade do caminho. Você não é exceção: queria ser ator, e acabou vendendo pasta de dentes porque isso dava mais dinheiro. Você abandonou Valentina, porque ela era simples, não tinha ambições. Você tinha amigos, amigos de verdade, pessoas com quem podia conversar sobre qualquer número de coisas inúteis. Inúteis? Seus novos conhecidos somente entendem a linguagem da finança. “Isso dá dinheiro?” perguntam eles quando você inocentemente tenta tirá-los de suas poltronas, mostrando-lhes o seu mundo interior onde as aspirações estão começando a enferrujar, fatalmente, resignadamente, como metal corroído pelo óxido. Você aprendeu a falar como eles, porém. Não melhor do que eles! Não há níveis naquele mundo. Alter Ego terminou de fumar, atirou o cigarro com um gesto 83

teatral e enfrentou Antônio, apontando acusadoramente. — E agora, a sua cópia mecânica irá fazer o que você não teve coragem de fazer com as próprias mãos. O andróide parou, sem se mexer, olhando o capacete silencioso. Um silêncio denso inundou a sala. Os olhos de vidro cintilaram. Lentamente, Alter Ego se voltou para o armário aberto. Seu rosto endureceu. Tomou uma pistola, examinou-a criticamente e avançou para o homem com estranha solenidade, como se atravessasse um templo durante uma cerimônia. — O homem é o supremo inventor. Êle fêz estas armas para matar homens, e fêz cópias para executar a sentença em si mesmo. Depois de uma pausa curtíssima, acrescentou, secamente: — O círculo está fechado — e cuidadosamente mirou a pessoa sentada na cadeira.

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O DÉCIMO SEGUNDO LEITO Dean R. Koontz

Trad. de Nilson D. Martello

Agora, no escuro e no silêncio, com as enfermeiras metálicas rodopiando e sorrindo em tomo de mim, agora que todos se foram e tudo está só, agora que a Morte adeja perto de mim, agora que tenho de encará-la sozinho, decidi-me a escrever a estória inteira daquele caso maravilhoso. Tenho creions, pastéis e papel de desenho que nos dão aqui. Talvez os outros encontrem o papel de desenho, como se fora minha voz ecoando do passado e sussurrando lendas para eles. Talvez. Terei de esconder o documento quando acabado; o armário de armazenamento será ótimo depósito, pois ainda há por lá boa quantidade de papel, e meu documento será tomado por folhas ainda sem uso. As enfermeiras metálicas não podem ler, mas sempre queimam todos os papéis com a morte do paciente. Não estaria seguro, portanto, em minha própria escrivaninha. Isso é parte do que faz daqui um inferno irrespirável — não estar apto a se comunicar com o mundo exterior. Dever-se-ia deixar um homem chegar lá fora e ver o progresso, as mulheres bonitas, as crianças, os cães e... oh, tantas coisas! Não se deveria engarrafar um homem como um espécime e jogá-lo esquecido em alguma prateleira. Batendo minhas frágeis asas contra a garrafa de minha prisão, escrevo. No início éramos onze. A Divisão pode abrigar doze. Nós sabíamos que muitos de nós estávamos bem próximos da Morte e que logo mais teríamos vagas. Era bom saber que chegariam novas faces. Quatro de nós já vivíamos havia oito anos, ou mais, neste 85

lugar e valorizávamos as novas caras, pois eram o que fazia a vida interessante (desde que os creions, o pastel e o tabuleiro de xadrez perdiam sua atração após inúmeros meses longos e vazios). Certa feita chegou à Divisão um inglês de verdade, pleno de boas maneiras. Estivera na África por duas vezes, e tinha boa experiência em safaris para nos contar. Passamos boas horas escutando as estórias sobre gatarrões, esguios, musculosos, gatos que se esquivavam por entre o matagal, as garras brilhantes e os dentes amarelados, prontos a golpear, rasgar, despedaçar o descuidado. Havia estórias sobre estranhos pássaros. Estórias sobre templos peculiares, rituais exóticos, narrativas sobre mulheres nativas, escuras e esguias como os gatos selvagens. Mas um dia o inglês morreu, soltando sangue pela boca e pelo nariz. Dessa maneira é que as novas faces significavam novas idéias, fazendo-nos sentir que possuíamos alguma coisa em nossas carcaças ressequidas, alguma coisa que fazia a gente querer viver. E como eu disse, sempre havia novos semblantes. Libby (seu nome real era Bertrand Libberhad), Mike, Kyu e eu, éramos os únicos regulares. Veteranos da primeira fileira. Libby ganhava de mim por ser um paciente há onze anos; eu estou aqui há nove anos. Kyu e Mike eram mais jovens, com apenas oito anos cada um. E os demais na Divisão eram temporários, ficavam por uma semana, um mês, dois meses, e então puf, eram levados pelo carrinho para serem jogados nas chamas raivosas da Chaminé, e queimados até à cinza final. Era bom para nós, veteranos, que tantos morressem; novos semblantes, você compreende. E no entanto é por causa de uma dessas novas caras que estou agora sozinho, sentado aqui na penumbra, ouvindo as asas pesadas aa escuridão... só. A nova face era de Gabe Detrick. Isso não era estranho, pois cada novo rosto tinha um nome, tal como Libby, Kyu e Mike. Mas êle era tão jovem! Não parecia ter mais de trinta anos. Nós tínhamos ido dormir com o décimo segundo leito vazio e quando acordamos, ali estava Gabe, um homem grande, nu, não há muito ainda um garoto. Algum momento cego da noite vira-o ser trazido no carrinho e jogado na cama como se fora um monte de carne fresca. Minhas especulações sobrevieram ao perguntar por que tão jovem rapaz fora trazido ao Lar dos Velhinhos Sem Assistência Fi86

lial. A gente tinha de ter cinqüenta e cinco antes que chegassem no escuro da noite, aqueles andróides, aqueles trastes de olhos vermelhos, sem boca e com telas sensíveis de fio brilhante em lugar de orelhas, a atirar em você com pistolas medicamentosas, levando-o embora no carrinho. Mas esse homem na cama era jovem... quase um garoto! Quando finalmente se livrou das drogas e acordou, o silêncio caiu sobre o quarto como depois de uma árvore gigantesca cair sobre a terra, jazendo quêda, solene e morta. Todos os olhares se voltaram para êle, mesmo os olhos cegos de Kyu. — Aonde... Ninguém o deixou terminar; todos se embaralharam para explicar-lhe seu dilema presente. Quando êle finalmente forçou os sentidos embotados até à compreensão, expressou-se em linguagem explosiva, tal como um louco empregaria. — Tenho só vinte e sete anos! Que diabos está acontecendo aqui ? Pulou da cama, oscilou um pouco sobre as pernas e começou a andar pela Divisão, buscando uma saída. Nós o seguimos — aqueles de nós que ainda andavam — tal como cordeiros preparando-se para testemunhar a morte do lobo pelo pastor. Afinal notou as discretas linhas da porta de correr e jogou-se sobre ela, balbuciando todas as coisas baixas e vis de que tinha conhecimento. Bateu com os punhos no painel azul mesmo depois que o avisaram que de nada serviria. Bateu e bateu e praguejou e bateu até que os decibéis de seu tumulto alcançaram nível suficiente para estimular os “ouvidos” dos robôs que passavam por perto. O autômato rolou porta a dentro e perguntou se alguma coisa estava errada. — Você está estúpidamente certo de que há algo errado! — berrou Gabe. O robô olhou-o velhacamente. Na verdade os robôs não têm expressão facial comparável à de seres humanos, mas essas expressões foram-lhes emprestadas pelos pacientes. Este — a que chamávamos Dr. Domo — sempre parecia olhar de soslaio. Talvez fosse porque seu olho esquerdo brilhasse com um vermelho mais fraco do que o direito. 87

— Meu nome é Gabe Detrick. Sou contabilista. Endereço ... 23234545, Nível Baixo, Rua Mordecai, Ambridge. Houve o familiar estalido que sempre precedia tudo o que o Dr. Domo dizia e, então: — Você quer um urinol? Nós pensamos que Gabe fosse esmagar o punho direito na face metálica e velhaca do diabo. Kyu gritou como se o fato já tivesse ocorrido, e seu terror pareceu dissuadir Gabe do ato impensado. — O jantar será servido em. . . clic-clac... duas horas — grunhiu Domo. — É esse o problema ? — Quero sair! — Você está morrendo? — voltou a grünhir o homem metálico. — Tenho só vinte e sete anos! — e êle o disse como se qualquer pessoa mais velha não passasse de um antigo papiro, pronto a se tornar poeira. Creio que todos nós desgostamos dêle pelo seu tom de voz. — Você quer um urinol? — perguntou o robô, de novo, obviamente pasmo. Êle estava programado para responder setecentas perguntas diferentes: “Dê-me um urinol, quero mais papel, que vamos ter na janta, sinto dores”. Mas nada em seu depósito de gravações estava preparado para enfrentar este problema em particular. Então Gabe o fez. Levantou um possante punho e liberou-o com toda energia. Claro está que o murro jamais chegou a seu destino. Uma coisa para a qual o enfermeiro metálico estava preparado, era desviar-se de pacientes furiosos ou insanos. Com um balanço de suas duplas e rápidas extensões, a máquina atirou-o desacordado, ao piso, mais frio que panquecas amanhecidas. E creia-me, aqui, as panquecas amanhecidas já eram bastante frias mesmo ontem! Levamo-lo até a cama, Libby e eu, e aplicamos compressas frias de velhas camisetas em sua testa. — Aonde... Kyu começou a explicar tudo de novo, mas foi calado. — Nunca discuta com um enfermeiro robô. Você não poderá vencer — afirmou Libby. Êle sabia por experiência própria, desde 88

seus primeiros anos na Divisão. Gabe fêz um esforço para sentar-se. Seu queixo estava esfolado da queda e sua face estava começando a azular como uma barba densa. Certamente não estava bonito. — Você tá bem? — perguntou Kyu. Conservei-me calado, pois nunca fui de muito falar sobre coisa alguma. O que me lembra de algo que Libby sempre costumava comentar quando eu escrevia contos (que os robôs queimavam me-tòdicamente). Êle amarrotaria seus lábios cheios de cicatrizes, abriria muito-muito sua enrugada boca, e diria: — Rapazes, o velho Sam não fala muito, mas fará muito melhor com nossas biografias coletivas. Bem, talvez Libby estivesse certo. Talvez eu faça uma crônica de tudo. Talvez eu ainda tenha tempo para chegar ao comêço, escrever os capítulos que antecedem a este último. É tudo o que me resta, agora que todos se foram e a Divisão está gélida. Apenas o silêncio prevalece e eu não consigo suportar o silêncio. De qualquer forma, por semanas a fio após o acontecido, Gabe parecia ser o mais velho de nós, quase um dos mortos-vivos. Êle nos explicou tudo sobre o velho que vivia na casa ao lado da sua e que deveria ser pego naquela noite, e como os robôs se teriam enganado de endereço. Nós explicamos que não existia nenhuma corte humana para julgar as injustiças, que não tínhamos jamais visto outro ser humano, salvo os pacientes desde que nos tinham metido na Divisão. Êle bateu na porta com os punhos, tentou esmurrar mais robôs, aprendeu pelo caminho mais difícil. Com a verdade causando-lhe arrepios, cristalizando-se na evidência de que jamais seria um ser livre de novo, constantemente em seu cérebro, seu espírito definhou. Ficou mais deprimido do que nós mesmos. Entretanto tentou não demonstrá-lo, escondeu sua desgraça e dirigiu sua energia para nós, tentando alegrar-nos e entusiasmar-nos. Êle sempre se mostrou solidário, tanto mais quanto mais tempo viveu conosco. Lembro-me de uma: — Desgraçado, você os pegou! Eu sei que você os pegou! Seu porcaria! Ladrão! Hanlin, um cara novo, ficou tão vermelho que seu nariz parecia um potente vulcão preparando-se para entrar em erupção, os lábios já lançando uma lava branca. — Brookman, você é um mentiroso! Que é que você quer? O 89

que eu faria com eles, ahn! Pra que é que eu desejaria seus estúpidos brinquedinhos ? — Vou ver a côr de teus intestinos quando trouxerem os talheres! Minhas pecinhas adoráveis. Deixo o sangue escorrendo nesta tua cara sórdida! Todo mundo tinha se virado na cama para ver o drama se desenrolar. Mas o fato de Brookman e Hanlin serem amigos evitou que todo o peso da cena caísse de imediato sobre nós. Gabe foi rápido. Passou por sobre uma cama — realmente pulou sobre ela —o que nos provocou grande prazer, principalmente naqueles que não podiam abandonar o leito, cambaleantes velhos confinados que já haviam esquecido o que era agilidade e juventude. Saltou por sobre a maldita cama e levantou Hanlin e Brookman completamente do piso, um franzino esqueleto em ca-, da mão. — Calem a boca, os dois. Querem que um robô entre aqui e os sufoque até morrerem? — Esse porco me chamou de ladrão! — berrou Hanlin. Lutou para livrar-se de Gabe, mas não conseguia espremer energia suficiente daquela casca de limão seco que era seu corpo. — Que está havendo? — perguntou Gabe, tentando trazer a calma ao caso. — Êle roubou meus canudos. Esse porco desgraçado roubou... — Quieto, Brookie! Que canudos? Brookman ficou com ar estranho na face, qualquer coisa como o jeito de uma criança pega fazendo coisas feias. Não era mais o lutador, o briguento; tornara-se, a cada centímetro, apenas um velho. — Um homem tem de ter alguma coisa. Alguma coisa própria, por Deus! — Que canudo? — perguntou Gabe, de novo, sem compreender. — Estive guardando os canudos de tomar leite. Você pode fazer toda espécie de coisas com eles. Fiz uma boneca. Tal como a que Adele e eu demos à nossa pequena Sara, quando era criança. Havia gotíeulas cristalinas nos cantos de seus olhos escuros. Diversos de nós desviaram o olhar para não ver; mas as palavras ainda vinham. 90

— Tal como a que a pequena Sara tinha. Movimenta as pernas e o resto, salta e pode nadar e mais ainda. E se você fizer de conta, por Deus, se fizer de conta, esses pedacinhos de papel serão qualquer coisa. Podem ser pessoas com quem a gente conversa e passeia; pode ser dinheiro, cada canudinho uma nota de cinco, de dez, mesmo uma nota de mil dólares! Podem ser qualquer coisa. Mais do que tudo, podem ser Adele e Sara e... Tive de encará-lo de novo, porque o que estava dizendo faziame sentir engraçado por dentro. Suas velhas mãos pintalgadas de marrom, estavam cerradas em frente à face, as veias protuberando como em baixo-relêvo. Êle estava tremendo. — Você tirou os canudinhos dele? — perguntou Gabe a Hanlin. —-Eu... — Você tirou! — aquilo foi dito num grito. A face de Gabe estava contorcida de uma maneira horrível, seus lábios repuxados, seus dentes aparecendo, nus. Êle parecia um animal frenético, selvagem, faminto. — Êle os colecionava! — ladrou Hanlin. — Você os tirou! — Esse desgraçado só colecionava e colecionava... Gabe soltou-o no chão, mas não com delicadeza, como fizera com Brookman. Então pegou-o de novo e de nôvo largou-o no chão. — Você devolva tudo, entendeu? — Êle devia dividir... — Você devolva tudo ou eu o esfolo vivo e ainda dou seus ossos para êle! Hanlin devolveu. Gabe passou a maior parte da semana com Brookman. Guardou seus próprios canudinhos para o velho e brincou com êle. Hanlin morreu naquela semana; Gabe nem mesmo se juntou a nós nas preces, enquanto o carrinho levava o cadáver. Não foram muitos os que rezaram de coração, suspeito. Mas para que não pense que tudo era tristeza com o Gabe aqui, deixe-me contar logo outra lembrança. Eu disse que êle estava infeliz. Estava. Mas êle tinha aquele jeito especial, aquele talento especial para fazer os outros rirem. Sempre planejava algum estratagema contra os robôs. Quando os enfermeiros chegavam, reunindo e zunindo, para 91

servir o desjejum, Gabe sempre estaria de pé e a postos. Êle seguia as amas-sêca metálicas, e quando se apresentava a ocasião, estenderia a perna para fazê-los tropeçar ao se voltarem. Eles eram desses modelos de perna única e facilmente perdiam o equilíbrio, ele derrubava um e saltava para longe, tão rápido que nem mesmo um raio o alcançaria. Então os outros robôs entravam com ademanes humanos para auxiliar seu companheiro caído, levantá-loiam e caçarejariam (toda santa vez, lembre-se!) o que tinham sido programados para dizer em tais casos: “Que tombinho mau, mau! Pobre Bruce, pobre Bruce’’. Aí então todos gargalhariam. Gabe tinha-o feito de novo!’ Nós nunca soubemos por que os robôs eram chamados de Bruce — todos eles. Mas poderia ter sido por astúcia de algum engenheiro egoísta, do mesmo nome. De qualquer forma, a gente quase estourava de rir. — Boa, Gabe! — Você é o maior, rapaz! — Isso mostrará a eles, Gabe! E êle sorria aquele sorriso simplório, e tudo estaria bem, e a Divisão deixaria de ser Divisão por algum tempo. Porém, para êle, a Divisão sempre era a Divisão! Nunca estava feliz, nem mesmo quando fazia palhaçadas, para nós. Nós fizemos o possível para alegrá-lo, convidando-o para jogar nossas palavras Cruzadas; nada funcionou. Gabe não era velho, não pertencia ao nosso grupo. Pior que tudo, parecia não haver saída para êle. Então, incidentalmente, como produto colateral de uma longa, terrível e pavorosa noite, pareceu que uma saída se apresentara para lutar contra os robôs. Foi assim: No meio da noite, escura como asas de morcego, a maioria de nós estava a dormir. Nós também estaríamos dormindo se o travesseiro de Libby não tivesse caído no chão. Êle estivera abafando seus soluços nele e, quando caiu, não teve força ou equilíbrio suficiente para pegá-lo por cima da borda da cama. Nós trememos em nossos leitos e em nosso sono com o ruído de seu soluçar. Imagino que nunca ouvi nada parecido. A gente hão podia imaginar que Libby chorasse. Estava aqui há muito tempo; 92

era o mais veterano de todos; a frustração já deveria ter-se esmaecido em si. Por outro lado, sua vida fora dura, dura o suficiente para banir o choro de suas regras. Êle viera do Harlem. Pais brancos no Harlem são uma coisa que lhe podem assegurar: pobreza. Êle crescera em todas as partes degeneradas de Nova Iorque. Cedo aprendeu aonde chutar o estranho homem que tentava seduzi-lo ou arrastá-lo para as vielas. Conheceu pessoalmente o sexo aos treze anos — debaixo de uma escada de uma casa de cômodos, com uma mulher de trinta e cinco. Mais tarde voltou-se para o mar, trabalhou como estivador, navegou nas duas esteiras, e parece que sempre perdeu seu dinheiro em lutas ou com mulheres. Já havia visto, sentido e vivido demais para chorar. Mas naquela noite foi Libby, vomitando as vísceras na cama. Eu também devo ter chorado um pouco... por Libby. Foi Gabe quem primeiro colocou a mão em seu ombro. Nós podíamos entrevê-lo na penumbra da Divisão, sentado na cama de Libby, a mão no ombro do velho. Êle escorregou a mão até encontrar seus cabelos. — Que foi, Libby? Libby apenas chorava. Como pássaros presos na escuridão e nas sombras, nós pensamos que êle fosse sangrar a garganta se não parasse logo. Gabe apenas ficou sentado, cruzando os cabelos grisalhos por entre seus dedos, massageando os ombros de Libby, dizendo coisas para acalmá-lo. — Gabe, oh Deus, Gabe! — dizia Libby por entre golfadas de ar. — Que houve, Libby ? — conte-me. — Estou morrendo, Gabe. Isso não devia acontecer para mim. Eu me arrepiei. Quando Libby se fosse, quanto tempo me restaria ? Eu quereria esperar ? Nós éramos inseparáveis. Parecia que se êle morresse, eu deveria morrer também — jogado nas fornalhas onde nos cremavam — lado a lado. Deus, por favor não leve Lib sozinho. Por favor, por favor, não ! — Você está tão saudável quanto uma ratazana! Vai viver pelo menos até os cento e cinqüenta anos! — Não, não vou... — êle se engasgou tentando suster as lágrimas que continuavam caindo de seus olhos. 93

mo...

— — — —

Que houve, dor? Não, não ainda. Então por que pensa que vai morrer, Lib? Não consigo urinar. Desgraça, Gabe, não posso nem mes-

Então pudemos vê-lo levantar o fino e enrugado corpo a que chamávamos de Libby, Bertrand Libberhad, apertá-lo contra o peito e segurá-lo. Ficou calado no escuro por um momento, e depois disse: — Há quanto tempo? -— Dois dias. Oh Deus, estou estourando. Tentei não beber nada, mas... Êle parecia esmagar Libby contra si, como se o velho homem pudesse ganhar alguma energia da flor de sua juventude. Então começou a niná-lo como uma mãe com o bebê nos braços. Libby chorava suavemente de encontro a seu peito. — Você teve alguma garota especial, Libby? — perguntou por fim. Nós podíamos ver a cabeça se afastando do peito jovem — apenas alguns centímetros. — O quê? — Uma garota. Uma garota especial. Uma que andasse daquele jeito, e falasse como uma brisa recendendo a morangos, transbordando tepidez. Uma garota com braços finos e pernas esguias. — Claro! — disse Libby com menos lágrimas na voz. — Claro que tive uma garota assim. Boston, Ela era italiana. Cabelo negro de verdade e olhos como luzentes carvões em brasa. Ela ia se casar comigo, de uma feita. — Ela o amava? — Simmm. Que estúpido eu era! Eu também a amava, mas era muito estulto para perceber. Que engano, hem? — Nós todos os cometemos. Eu também tinha uma garota. Bernadete. Soa como um nome adotado, mas era dela mesmo. Olhos verdes. — Ela era bonita, Gabe? — Linda como um primeiro dia de primavera, quando você sabe que a neve se foi de vez, e que talvez em pouco tempo um pintarroxo venha fazer o ninho debaixo de sua janela. Realmente 94

linda.

— Que pena, Gabe. — E você nunca “amarrou um fogo” daqueles, Libby? — Já... — de novo as lágrimas transpareceram em sua voz. — Já, diversos... Uma vez passei três dias bêbado em Nova Iorque, alto como um papagaio, sem saber nem onde estava. — Também eu, — disse Gabe — também em Nova Iorque. Podiam me pegar e colocar bem na frente de um estouro de boiada e eu nem tomaria conhecimento. Creio que Libby chegou a rir então. Uma risadinha engraçada que ameaçava lágrimas iminentes e não anunciava alegria autêntica. — E Libby... você viu muita coisa do mundo? Foi um homem do mar, não é ? — Tóquio, Londres, Austrália por duas semanas. Visitei cada um dos cinqüenta e seis Estados. — Mais do que eu mesmo vi. Então, nas asas da escuridão protetora, você podia ouvir como catarro em sua velha garganta. — Mas Gabe, eu não posso urinar! — Você amou e foi amado, Libby. Isso é mais do que muita gente poderia afirmar. Você viveu em quase todos os cantos do mundo, em alguns lugares dele você bebeu como uma vaca. Não se esqueça de tudo isso. Então eu percebi que êle não estivera tentando enganar o velho e fazê-lo esquecer sua doença. Ao invés, estava tentando demonstrar que existia dignidade na Morte, que êle poderia levantar sua cabeça encanecida e dizer que a vida não fora uma taça vazia, um leito seco de um rio. Êle disse: — Mas Gabe, eu não quero morrer. — Ninguém quer, Libby. Eu não quero; Sara não quer. — Dói mesmo, Gabe. — Você havia dito que não. — Eu nunca admitiria isso. — Você se esforçou para aliviar-se ? — Acho que a última vez saiu sangue. Oh, Gabe, sangue. Sou um velho, e me corroí aqui dentro por anos e anos, não vi mais as garotas, o céu, jornais, e agora minhas entranhas estão sangrando, e eu me sinto como se tosse explodir com a pressão! 95

Gabe puxou o urinòl debaixo da cama. — Tente uma vez mais, Libby. — Não, não quero. Eu poderia ter uma hemorragia. —- Faça-o por mim, Libby. Vamos. Talvez você consiga. Êle auxiliou-o, sentou-o na posição degradante, ajoelhou-se ao seu lado. — Tente, Libby. — Oh, Mãe do Céu, Gabe, como dói! — Tente. Com calma. Devagar e com calma. A escuridão era horrorosa. — Gabe, estou... Não posso! — Libby estava chorando e sufocando. Nós ouvimos o urinol correr pelo assoalho. Depois ouvimos Gabe cantarolar, segurando o velho contra si, sentado no chão duro. — Lib, Lib, Lib. E Libby apenas gemia. — Você vai sarar. — Eu vou dormir. Será apenas como dormir. — Certo. Isso mesmo — apenas como dormir, um cochilo. Libby tremeu, seus velhos pulmões amarrotando-se como papel, resfolegantes. — Os robôs dormem durante a noite, Gabe. Apenas eles acordam sempre. Houve uma súbita mudança no tom de voz de Gabe. — Que quer dizer, Libby ? — Eles dormem. Eles se carregam, ligam-se às tomadas. Não é um inferno, Gabe? Eles também dormem. Gabe recolocou o velho na cama e abaixou-se acompanhando o rodapé, em busca de uma tomada. — Libby, desgraçado, você não vai morrer! Eu lhe prometo! Existe uma saída. Se nós pudermos estourar os fusíveis, pegar o povinho metálico preso às inúteis tomadas ... Diversas inspirações se fizeram em uníssono. — Libby, você está me ouvindo — Gabe já estava chorando. — Lib? Libby não poderia ter respondido. Estava morto, seu corpo sem vida em cima do velame cinzento dos lençóis que cobriam o tombadilho de sua cama, Mas aquilo pareceu dar a Gabe mais determinação do que nunca. 96

— Alguém tem algum pedaço de metal? Qualquer metal. Nós éramos ratazanas guardadeiras por hábito. Kyu tinha um garfo que guardara quando lhe deram dois, por engano, muito tempo atrás. Eu tinha uma certa quantidade de fio de cobre que economizara durante anos. Servira para fixar a etiqueta do fabricante das camas. Um dia, nevoentos anos atrás, eu o encontrara ae entrar em baixo da cama, tentando corrigir uma depressão do colchão. Êle quase se eletrocutou ao tentar fazê-lo, mas conseguiu estourar com os fusíveis quando toda a corrente foi dissipada por uma velha cama que ninguém estava usando — ninguém vivo, de qualquer modo — a cama ligada ao garfo que foi enfiado na tomada. As lâmpadas noturnas se apagaram quando os fusíveis se queimaram. Todos nós trabalhamos juntos para derrubar a porta. Os mais saudáveis forçaram com as costas, os inválidos apenas animando com gritos. Nós não contáramos com os robôs de reposição que operavam as funções essenciais enquanto a equipe convencional recarregava suas baterias. Talvez na porção mais profunda de nossas mentes, nós o soubéssemos. Mas Libby jazia numa cama, e tínhamos o vigoroso Gabe para ser seguido. Facilmente colocamos de lado tais pensamentos. Gabe morreu depressa, creio eu. Ao menos é o que gosto de pensar. Caiu sob as chamas de um robô-armado, esturricado, soltando fumaça. Os demais lutaram como doidos. Eu quebrei a perna logo de saída e fiquei fora de toda ação. Agora existem onze leitos vazios e eu estou no décimo segundo. A escuridão se aproxima, nada há para dizer, e ninguém para ouvir. Eu agora só penso para escrever. Penso em Gabe provocando cambalhotas nos robôs; penso em Libby, em Gabe segurando-o na cama como uma mãe faria com seu filhinho. E escrevo. Gabe certa vez me disse que os velhos esquecem com mais facilidade os eventos recentes. Eu não devo esquecer. As camas vazias voltarão a ser ocupadas, e minha estória é boa melhor ainda do que aquelas que o inglês contava.

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A ESTRADA REAL PARA LÁ Robert M. Green Jr. Trad. de Aydano Arruda

“A pé e despreocupado, eu tomei a estrada aberta.” John Jackson repetiu para si mesmo essas animadoras palavras quatro ou cinco vezes. Não ajudaram muito. Em primeiro lugar, êle não estava a pé, nem qualquer outra pessoa que pudesse ver. O parque arborizado que acompanha a super-rodovia de ambos os lados, ocultando toda vista possível do verdadeiro mundo, parecia fazer um convite a andarilhos bucólicos; o mesmo se poderia, dizer da faixa de verdura impecavelmente ajardinada e manicurada que separava as pistas para Oeste e para Leste. Contudo, andarilhos não tinham permissão de entrar na propriedade sujeita a pedágio e motoristas não tinham permissão de andar suficientemente devagar para olhar, mesmo de relance, a paisagem; de modo que mal se poderia dizer que existia e seria o mesmo se consistisse em cemitérios de automóveis e tabuletas de anúncio. Um pedacinho de belo parque, pensou John, que ia muito longe. A perspectiva de oitocentos quilômetros de paisagem exatamente igual não contribuía para animar um coração que tinha na frente, à esquerda, um medidor de temperatura que indicava o radiador fervente, mesmo quando o carro estava parado na manhã de inverno, depois de longa noite de repouso; atrás, à esquerda, a filha de 13 anos que em certa época se queixava de enjôo depois de andar dois minutos em bicicleta; atrás, no centro, dois cães que nunca haviam sido informados e ainda recusavam acreditar que 98

seu lugar não era no banco da frente, lutando por excelentes posições no colo do motorista; atrás, à direita, a filha de 12 anos que acreditava: (A) que sua irmã mais velha era uma ameaça à paz do mundo e (B) que um quilômetro era na realidade dez quilômetros; então, porque ainda não estamos “lá”?; e à direita, um briguento menino de oito meses que já estava cheirando a leite azedo e fraldas completamente aproveitadas, sentado no colo da amada esposa, convencida de que os freios devem ser inteiramente aplicados à primeira vista da lanterna trazeira de um carro, quatrocentos metros à frente, e que ia acabar afundando seu pé direito no soalho antes de percorridos mais quinhentos quilômetros. — Não é justo — resmungou a de 13 anos. — Quase não há sinais do meu lado. — Eu vi um Q — disse a de 12. — Ora, você não viu — respondeu a de 13. — Vi, sim — insistiu a de 12, que era a única pessoa viva que John Jackson conhecia capaz de escrever Washington de cinco maneiras diferentes em um único parágrafo. — Dizia: “’Próximo Posto de Serviço a Q quilômetros”. — Era dois — corrigiu a de 13 anos. — É a mesma coisa — disse a de 12 anos. — Eu escrevo Q desse jeito. — Você está roubando — disse a de 13 anos. — Não brinco mais. Não tem graça. — Nunca imaginei que iria sentir falta de tabuletas de anúncio — disse John. — Daria muito dinheiro por um jingle de creme de barbear. — Escute, filho, — falou a esposa — e se chegarmos a Jackson City e tudo não passar de uma brincadeira...? — Não sei. Jackson City é um belo lugar. Eu me divertia muito lá. As crianças podem ir nadar no lago e aposto como ainda há concertos de banda no parque, à noite. — Santo Deus. Oitocentos quilômetros disto para ouvir um concerto de banda no parque. — Bem, havia barris e barris de verdadeira cerveja. Não dessa água choca pasteurizada. — Como é que você sabe? Você não voltou lá desde quando tinha 10 anos. — Eu ouvia os velhos falarem. Seja como fôr, seria bom para 99

as meninas. — O quê? Cerveja de barril ou água choca pasteurizada? Exatamente nesse momento, o cão Labrador, cujo nome era Labrador, saltou ao colo da menina de 13 anos. — Mamãe, faça Labrador descer do meu colo. Êle esta cheirando mal. — Você sabe que Labrador não faz nada do que eu mando. — Empurre-o para o meio do banco — sugeriu John Jackson. — Não consigo — disse a de 13 anos. — Está cheio de malas. — Então empurre-o para o chão. — Êle não quer ir. — Sente-se você no chão. — Não posso. Eu vomito. — Vocês sabiam? — perguntou John Jackson. — Toda esta grande rodovia é uma lápide funerária para Tio Charley. Conversa para matar o tempo. — Oh! não — queixou-se a de 13 anos. — Empurrei Labrador para fora e Toycollie subiu. — Graças a Deus não trouxemos o Pato e a Tartaruga — disse John Jackson. — Como poderíamos ter trazido a Tartaruga? — perguntou a de 12 anos. — Você a pôs na bacia e deu descarga. — Eu não fiz isso — desmentiu John Jackson. — Bem, se você não fêz, onde está ela? — Por acaso sou eu o guarda de sua Tartaruga? — Você tem certeza de que verificou a água do radiador naquele último posto? — perguntou a espôsa. — Claro que tenho certeza. Deixe as preocupações para mim. — Toycollie está lambendo meu rosto — disse a de 13 anos, — Eu vou vomitar. — É muito bom deixar as preocupações para você — insistiu a esposa. — Mas como é possível saber com que você se está preocupando, se a agulha indica sempre que o motor está fervendo? — Saem nuvens de vapor quando ferve de verdade — explicou John Jackson. — Não se preocupe. Eu sempre sei. 100

— Isso foi o que você disse na última vez — lembrou a esposa. — Aquela vez que estávamos voltando de Michigan. Lembra-se? — Ninguém quer saber porque estamos rodando sobre a lápide funerária de Tio Charley? — perguntou John Jackson. — Eu sei — respondeu a de 13 anos. — Vovô Jackson me contou. Ele fazia carruagens. Pensava que todo mundo ia enjoar nos automóveis e voltar às carruagens com cavalos. Não queria deixar ninguém construir rodovias neste condado, nem mesmo pôr piche nas estradas. — Isso me parece exagero — comentou a esposa. — A pessoa não pode impedir que haja rodovias mesmo que seja dona da terra. Eles simplesmente vêm e desapropriam... — Acho que ninguém está ligando para isso — disse a de 12 anos. — Mas nós já passamos Jackson City. Não há mais sinais. — Ora, vamos — disse John Jackson. — Há um sinal de dez em dez quilômetros. Temos ainda mais de seiscentos e cinqüenta quilômetros a percorrer. — Faz uns cem quilômetros que não há um sinal — insistiu a de 12 — Acabamos de passar um, cerca de oito quilômetros atrás — afirmou John Jackson. — Dizia “Jackson City, seiscentos e sessenta quilômetros”. — Isso não foi há oito quilômetros. — O que eu sei — continuou a de 13 anos — é o que Vovô Jackson me contou e êle devia saber. Disse que teriam construído esta rodovia dez anos antes se não fosse Tio Charley. — Ora, isso é bobagem — disse a esposa. — Tio Charley está morto há milhões de anos. John! Você está correndo muito. Aquele carro lá na frente está reduzindo a velocidade para fazer uma curva. — Que carro? Eu não trouxe binóculos. — Será que ninguém é capaz de tirar Toycollie do meu colo? — perguntou a de 13 anos. — Eh! Vem vindo um sinal — disse John Jackson. — “Jackson City, seiscentos e oitenta quilômetros” — cantou a de 12 anos, que era a Cantora Oficial de Sinais. — Engraçado — disse John Jackson. — Eu seria capaz de jurar que o último sinal dizia seiscentos e sessenta quilômetros. — Bem, evidentemente não dizia — observou a esposa. — Oh! 101

monstrinho. John, precisamos parar em algum lugar para trocar a fralda deste moleque. — Estou procurando um lugar. — Quando morreu seu Tio Charley? — perguntou a esposa. — Ninguém, sabe — respondeu John Jackson. — A última vez em que o vi foi em 1925 ou 1926. Eu tinha uns oito anos e diziam então que ele tinha quase cem. — Quer dizer que êle desapareceu? Seja como fôr, não entendo como êle poderia ter impedido o trabalho nesta rodovia. Ela só foi planejada há uns dez anos. — Esse é o grande mistério da família. Sabe? Êle sempre pensou que estava fazendo uma grande coisa por Jackson City, por manter em funcionamento a velha fábrica de carruagens, desafiando a indústria automobilística. Simplesmente sabia que na realidade, o povo secretamente desejava cavalos e carruagens, com estradas de terra à sombra de árvores, cobertas de sujeiras de pardais e de cavalos. Maçãs de estrada. Oh! êle produziu uma linha de carros elétricos para senhoras delicadas; uma de minhas tias guiava um deles, mas sua verdadeira paixão era por cavalos, carruagens e cocheiras de aluguel. Pouco lhe importava quanto dinheiro perdia, em primeiro lugar porque podia dar-se a esse luxo e, depois, porque tinha tranqüilo conhecimento de que seria o único fabricante de carruagens em grande escala nos Estados Unidos, quando o povo enjoasse dessas geringonças modernas movidas a gasolina. Foi lá pelos fins da década de 1920 que êle começou a perceber que não era estimado em Jackson City. As pessoas que não riam dele pelas costas, assinavam petições para que as estradas fossem pavimentadas e alargadas. Por isso, mudou sua fábrica inteira, com tudo quanto tinha dentro, para uns milharais que possuía, trezentos ou quatrocentos quilômetros a leste de Jackson City. Construiu uma cidadezinha regular, com sinuosas veredas ladeadas por plátanos. Automóveis não eram permitidos. Nunca a vi, mas papai foi lá uma vez. Disse que era um lugar realmente bonito. — Então êle não desapareceu, propriamente. — Nenhum de nós tornou a vê-lo. Êle fazia todos os seus negócios por intermédio de alguns advogados com procurações. Papai tentou vê-lo e o mesmo fizeram alguns de meus tios, tias e primos. Mas êle parecia estar sempre’”viajando a negócios”. Nunca 102

conseguiram ir além dos advogados. De vez em quando, um grupo de políticos tentava declarar de utilidade pública as terras de Tio Charley, a fim de desapropriá-las para nelas construir alguma espécie de estrada de automóvel, mas toda vez acontecia que outro grupo de políticos, incluídos na folha de pagamentos de Tio Charley, interferia e acabava com a coisa. Depois, de repente, há cinco anos, esses advogados encerraram a conta bancária de Tio Charley e doaram todas as suas propriedades ao Estado. Não houve explicações. Engenheiros rodoviários vieram dar uma olhada na propriedade de que há tantos anos vinham tentando apossar-se e nada restava da fábrica de carruagens, das veredas ou dos plátanos. Nada, além de terra nua. Os velhos de Jackson City dizem que quando Tio Charley morreu deve ter mandado enterrar tudo junto com êle. Alguns deles chamam isto de Rodovia-Túmulo de Charley Jackson. —- “Jackson City, seiscentos e noventa quilômetros” — cantou a de 12 anos. — Eh! espere um minuto — exclamou John Jackson. — Isso é loucura. Começou a pisar no freio. — Cuidado! — gritou a esposa. — Há um carro bem atrás de nós. — Quatrocentos metros bem atrás de mim — disse John Jackson, parando completamente o carro no acostamento gramado ao lado da pista. — Desçam e estiquem as pernas se quiserem — disse John Jackson. — Eu vou andar um pouco para trás e dar uma olhada naquele sinal. Nuvens de vapor escapavam sibilando, de baixo da tampa do motor. John Jackson voltou correndo. — Diz seiscentos e noventa quilômetros. Vamos, entremos todos no carro e comecemos a rodar antes que sejamos arrastados para o fundo da terra na esteira rolante. — Do que está falando? — Já reparou na paisagem? Estamos passando pela mesma paisagem desde quando entramos nesta maldita estrada. Eu já percebi tudo. Estamos numa esteira rolante. A rodovia e a paisagem estão correndo para trás à velocidade de cem quilômetros por 103

hora em uma gigantesca esteira rolante. Enquanto estivermos correndo para frente no carro a cem quilômetros por hora, pelo menos ficaremos no mesmo lugar. — Mas nós não queremos ficar no mesmo lugar — queixou-se a de 12 anos. — Queremos ir a Jackson City. — O mesmo lugar é melhor do que alguns lugares. Ergueu a tampa do motor e começou a desparafusaç a tampa do radiador, usando uma fralda molhada. De repente, a tampa voou para cima, sobre uma nuvem em forma de cogumelo. — Bem — disse êle — há uma caixa de cocas frescas no portamalas. Não vejo porque não poderemos usá-las como água. Talvez deixem o radiador um pouco grudento, mas que diabo! — Isso é muito egoísmo, se quer saber minha opinião — disse a de 13 anos. -— Aquela coca era para nós. Por que não põe no carro sua porcaria de cerveja velha? — Poderia experimentar também — disse John Jackson. — Mas ia ficar com um cheiro horrível. Que diriam os guardas de um carro com hálito cheirando a cerveja? Talvez haja esta infração: “Dirigir Automóvel Embriagado”. Assim que diminuiu o barulho sibilante do radiador, John derramou dentro dele toda uma caixa de seis garrafas de coca tamanho família. — Isso chega — disse êle. — Vamos. Acho realmente que devemos ir tocando. O cara que me escreveu aquela carta sobre o testamento insistia tremendamente em ver-me hoje à noite. — Arthur Jackson, advogado. É um de seus parentes? — Nunca ouvi falar nele. Não entendo porque está com tanta pressa depois de todos esses anos, mas é melhor eu fazer o que pede. — O que não entendo é como seu Tio Charley pode ter ficado ainda com alguma coisa para fazer testamento, depois de haver desperdiçado todo aquele dinheiro em carruagens e no sustento de políticos. — Êle foi um grande inventor em sua época. Papai dizia que êle tinha tantas patentes de suas invenções quanto Edison e que não parava de receber royalties. Não me perguntem o que êle inventou. Coisas mecânicas para a indústria. Válvulas especiais, coisas dessa espécie. Papai tentou explicar-me, mas não era da minha especialidade. 104

— Êle ainda está recebendo aqueles foyalties? Êle não está oficialmente morto, está? — Acho que não. Não sei. Muita gente desconfia que êle já estava morto em 1929, mas ninguém conseguiu provar coisa alguma. Aquelas procurações eram absolutamente legítimas, é o que dizia papai. Talvez Arthur Jackson, advogado, possa contar-nos a história. — Que barulho engraçado é esse que o motor está fazendo? — É um barulho que motores fazem. É possível que você ache engraçado. Eu gostaria de ter o seu senso de humor. — “Jackson City, oitocentos quilômetros”— cantou a de 12 anos. — Malditos piadistas — exclamou John Jackson. — Gostaria que não nos cercassem com todos esses arbustos. Talvez então eu pudesse reconhecer alguma coisa no campo. — Por que você não vira na primeira estrada à direita? Poderia perguntar ao homem no posto de pedágio a que distância estamos realmente. — Brilhante — concordou John Jackson. A primeira estrada virava para a direita fazendo um semicírculo completo, depois entrava em um túnel que passava por baixo da rodovia. John Jackson esperava encontrar um posto de pedágio quando saísse do lado sul da rodovia, mas a estrada virou novamente para a direita fazendo outro semicírculo completo e colocou-o na pista da rodovia que seguia para leste. Parou fora da estrada, ergueu a tampa do motor e esperou por um guarda. — Algum problema, cavalheiro? — perguntou o guarda. — Quero ir a Jackson City. — Está indo na direção errada, cavalheiro. — Não estou indo em direção nenhuma. Só quero saber a que distância fica Jackson City. — Como posso saber, cavalheiro? Quatrocentos, seiscentos, oitocentos quilômetros. Mas o senhor está indo na direção errada. Entre no próximo trevo e passe para a pista que leva a oeste. — Obrigado. O trevo seguinte repetiu o mesmo padrão, virando para a direita, mergulhando por baixo da rodovia, depois virando de novo para a direita, até levar o carro à pista que seguia para oeste. Ne105

nhum posto de pedágio, nenhuma casa, nem homem, nem mulher, nem cão, nem vaca amarela. — Diabo! — exclamou John Jackson. — Esta rodovia nos mantém presos. Estamos condenados, — Oh! calma — disse a esposa. — Provavelmente apenas entramos em alguma espécie de atalho que os guardas usam para passar de uma pista para outra. Entre no próximo posto de serviço. Alguém nos dirá onde estamos. — Será que alguém nos arranjará algumas cocas? — perguntou a de 13 anos. — E um cheeseburger? — perguntou a de 12 anos. — Isso seria bom — disse a esposa. — E um pouco de leite fresco para este pequeno Vesúvio. — E um pouco de gim bem gelado para este velho e querido papai. — Você devia ser grato por não venderem bebidas na rodovia — disse a esposa. — Isto seria um pesadelo com motoristas embriagados. — Eu gosto de motoristas embriagados — disse John Jackson. — Gosto de anúncios luminosos e de tabuletas de propaganda. Gosto até mesmo de faróis e ruas calçadas com trilhos de bonde no meio. O pesadelo é isto aqui. — Há um sinal — disse a de 12 anos. — “Próximo Posto de Serviço a Q quilômetros”. — Isso não foi muito engraçado na primeira vez — observou a de 13 anos. Finalmente houve uma interrupção na paisagem uniforme. Um sinal dizia “Serviço — Restaurante — Primeira à Direita”. Não se via ninguém na área das bombas de gasolina. Uma faixa suspensa entre duas fileiras de bombas dizia: “Obrigado por sua paciência. O serviço será reiniciado dentro de uma semana”. — Não precisamos de gasolina — disse John Jackson. — Vamos pegar alguma coisa no restaurante para comer. Um sinal na entrada principal do restaurante dizia “Absolutamente proibida a entrada de animais!!! Os infratores serão perseguidos”! A de 13 anos disse: — Labrador e Toycollie não são animais. 106

São pragas. — Além disso— completou John Jackson — depois de certo período de perseguição, a gente fica insensível e não tem mais importância. Assim, com os dois babosos quadrúpedes abrindo caminho, John Jackson, esposa, bebê e duas filhas entraram no restaurante que estava desabitado. Nada havia nas prateleiras. Nenhuma comida ou bebida de qualquer espécie era visível por trás dos balcões. — Esperem aqui — disse John. — Vou dar uma olhada na cozinha. Deve haver alguém lá. Se não houver, eu mesmo pegarei alguma coisa. Na cozinha, um velho sujo e barbudo, vestindo um macacão engordurado, estava derramando alguma coísa na pia — uma espécie de lama cinza-verde iridesçente. — Poderia arranjar alguma coisa para se comer? — perguntou John Jackson. — Claro que não — respondeu o velho. — Esta semana, não. — Por que não esta semana? Que há de tão especial nesta semana? — Que é que você é? Alguma espécie de comunista? — Eu apenas fiz uma pergunta delicada. — Desça de seu cavalo, menino. Eu não sou o patrão. — Onde está o patrão? — Não está aqui. Talvez você o encontre na semana que vem. Talvez não. — Escute, você não tem coisa alguma aqui? Eu mesmo me arrumo e pago a você. Apenas um copo de leite, talvez? Estou com duas filhas e uma criança de colo aí fora. Não é para mim. — Temos um pouco de pasta contra baratas. — Oh, pêlo amor de Deus! Você não tem barata? Baratas frescas? — Você mesmo terá que pegá-las — respondeu o homem. — Eu preciso trabalhar. John Jackson voltou a juntar-se à sua família. Levou o carro de volta à pista que seguia para oeste, atacado do banco de trás pelos gemidos de uma menina de 13 anos com dor de barriga e pelos vitupérios de uma menina de 12 anos que sabia 107

reconhecer uma conspiração de bandidos, e do banco da frente pelos gritos pontilhados de vômitos de um menino de oito meses coberto até as orelhas de farelos de biscoitos. — Há outro miserável sinal de bandidos — disse a de 12 anos. — “Jackson City, vinte quilômetros”. John Jackson, bufando, pisou no freio. O mesmo guarda que haviam encontrado na pista que seguia para leste parou ao lado do carro. — O senhor de novo? — disse êle, — Qual é o problema agora? — Olhe aquele sinal — disse John Jackson. — “Jackson City, vinte quilômetros” — leu o guarda. — E daí? — O senhor sabe muito bem que Jackson City fica a pelo menos quinhentos e cinqüenta quilômetros daqui. — Como posso saber, cavalheiro? Eu nunca vou a lugar algum fora da rodovia. — Onde que o senhor vai quando vai para casa? — Temos alojamentos a beira da estrada, logo ali atrás. Na pista que vai para leste. Alguns dos rapazes vão a vários lugares, mas eu nunca vi vantagem nisso. Esta é uma estrada muito boa. É quase como um lar. — A cada um o que é seu — disse John Jackson. — Como podemos sair dela? Suponhamos que queremos alguma coisa para comer ou algum lugar para dormir. — Bem, eu vejo diferentes pessoas saírem em diferentes lugares. Nunca ouvi queixas. Cabe ao senhor escolher. John Jackson tocou o carro. — Há outro sinal — disse a de 12 anos. Depois cantou: “Cansaram”? Virem a primeira à direita”. — O. K. — disse John Jackson. — Todo mundo sai ganhando. Vamos encontrar um motel. Jackson City que vá para o inferno. A estrada virava para a direita, descia para um túnel por baixo da rodovia e continuava descendo. O túnel era brilhantemente iluminado por fortes lâmpadas no alto. — Cheira mal — disse a de 13 anos, enquanto andavam ao longo da trilha coberta de escória de hulha sob os plátanos, ven108

do cavalos e carruagens avançarem elegantemente pela estrada da terra. — Você vai acostumar-se — respondeu o imponente cavalheiro de cabelos prateados e óculos de aros de tartaruga. — De fato, depois de algum tempo você vai acabar gostando. Quando eu era menino todas as cidades tinham esse aroma. — Maçãs de estrada — disse John Jackson, com os olhos nublados de saudade. — Que vão fazer com nossos cães? — perguntou a esposa. — Oh, eles ficarão muito bem — disse o imponente cavalheiro. — Serão bem tratados. A senhora compreende, naturalmente, aqui não soltamos cães na rua antes que eles se acostumem com os cavalos. Mesmo presos por uma correia, um cão que late pode causar muita complicação. Os senhores verão muitos cães correndo livres por aqui, mas naturalmente estão aqui há muito tempo e não estranham os cavalos. — Oh, veja — disse a de 12 anos. — Um carro com pônei. Será que eu podia ter um? — Vamos ver — disse o imponente cavalheiro. John Jackson ergueu os olhos para a abóbada de “céu” brilhantemente azul e recamada de estrelas prateadas. — É sempre dia aqui? — perguntou. — Oh, não — respondeu o imponente cavalheiro. — Temos noites esplêndidas. Com constelações que se movem e uma lua que cresce e míngua. Tio Charley é um homem engenhoso. — Tio Charley? É? Quer dizer que Tio Charley ainda está vivo? — Fazemos de conta que está. Ninguém realmente sabe, exceto, possivelmente o Conselho Administrativo. Francamente, eu sempre tive uma secreta desconfiança de que realmente nunca houve um Tio Charley... que é só um genial mito inventado pelo Conselho. — Bem, nisso o senhor está enganado — disse John Jackson. — Tio Charley é ou era irmão de meu avô. Eu costumava montar a cavalo em seus joelhos. — Oh! é mesmo. Eu tinha esquecido. O senhor é um dos Jacksons. Os parentes. Há alguns outros aqui, mas nunca conversei com um deles. Sempre perguntei a mim mesmo se isso não era parte do mito, mas agora vejo que estava errado. 109

—- O senhor não é parente? — Oh, muito longe, talvez. Talvez não. Jackson não é um nome incomum. De qualquer maneira, como o senhor é um parente diretamente identificável, eu vou ter de estudar os estatutos e a constituição. Segundo me lembro, há um negócio especial para parentes mais próximos do que primo segundo. Nunca tinha olhado isso antes. — Negócio? — Bem, não falemos de negócios agora. Sua família está cansada e sem dúvida irritável. Estamos quase chegando à minha casa. Eu arrumarei alguma coisa fresca para todos beberem e depois trataremos do que importa. Todos entraram em um caminho de lajes que atravessava um gramado em suave aclive, à sombra de bordos e abetos, até uma grande e velha casa de campo construída de pedras e madeira pintada de branco, com abrigo para carruagens e terraço mobiliado com poltronas de vime de encosto largo e sofá de balanço. — Aqui estamos — disse o imponente cavalheiro. — Sentemse, por favor, e eu farei as honras da casa. Uísque com soda? — Por favor — concordou John Jackson. — E cerveja de gengibre para as crianças. Aqui, minha senhora. Dê-me essa mamadeira. Eu a lavarei e encherei de leite morno para o bebê. — Oh! obrigada, muito obrigada — disse a esposa, suspirando. — Nunca pensei que um seqüestro pudesse ser tão agradável. — Penso que a senhora retirará a palavra “seqüestro” quando ouvir minha proposta — disse o imponente cavalheiro. Deu uma risadinha e encaminhou-se para o interior da casa. Quando o imponente cavalheiro voltou, vinha empurrando um chiqueirinho de bebê sobre rodas, completamente equipado com chocalho, ursinho de pelúcia e fileiras de contas. No piso almofadado do chiqueirinho havia uma bandeja de prata com bebidas contendo gelo e um volume encadernado em couro, intitulado “Constituição e Estatutos da Companhia de Carruagens Jackson”. — Não sei porque conservo este chiqueirinho em casa — disse o imponente cavalheiro. O “bebê” está agora no colégio. Acho que sou sentimentalista reacionário. Penso que ficará mais à vontade, minha senhora, se puser o bebê aqui. O bebê também ficará mais contente, tenho certeza. 110

— O senhor é um anjo — disse a esposa. Ao fim de cinco minutos, o bebê, de mamadeira na boca, estava felizmente adormecido no chiqueirinho, e John Jackson no meio de sua segunda dose, brincava ociosamente com a noção de que Deus estava em seu céu e tudo corria bem no mundo. — Agora — disse o imponente cavalheiro, dividindo sua atenção entre John e o livro encadernado em couro que tinha no colo — acho que o senhor tem muitas perguntas a fazer. Pode dizer. — Bem, antes de mais nada — disse John Jackson — eu realmente não tenho a menor razão de queixa... ainda. Mas o senhor escreveu que queria que eu viesse a Jackson City para conversarmos sobre o testamento de Tio Charley. Isso não cheira a fraude? O imponente cavalheiro sorriu. — Tecnicamente, não. Nós insistimos em chamar este lugar de “Jackson City” por muitas e boas razões. E usei a palavra “testamento” em um sentido bastante arcaico. “Desejos”. Na realidade convidei-o para vir até aqui conversar sobre os “desejos” de Tio Charley. Um sofisma, reconheço. Eu sabia que o senhor seria enganado e, francamente, essa era minha intenção, embora, se isso fôr levado a um tribunal de justiça, eu esteja disposto a dizer, coisa completamente diferente. — Não chegarei a isso — disse John Jackson. — Na realidade, estou muito agradecido por não precisarmos mais andar de automóvel hoje. Mas há uma coisa que me intriga. Existiam numerosos outros motoristas na rodovia hoje. Eles devem ter visto os mesmos sinais e devem ter chegado ao limite de sua resistência mais ou menos no mesmo tempo que eu. Mas quando me dirigia para cá, o único carro que vi foi o meu. Onde estão todos os outros carros? — Seguindo em segurança para seus destinos, creio eu. Ninguém viu aqueles sinais a não ser os senhores, Jacksons. — E um guarda rodoviário? — O guarda não conta. Pelo que sei, seu nome pode ser Jackson, mas duvido que o atraiamos para cá. — Mas por que nós e ninguém mais? — Não havia outros Jacksons lá fora hoje. Nós só recolhemos Jacksons. — Como é que vocês fazem isso? Aquele negócio dos sinais? — Francamente, não sei. Já lhe disse que Tio Charley é um homem engenhoso. 111

— Pretende conservar-nos aqui? Não que este não seja um lugar adorável, mas. . . — Oh! não — disse o imponente cavalheiro. — Os senhores não podem ficar aqui. Não há empregos vagos na fábrica. Naturalmente, se quiserem fazer um pedido, poderemos incluí-los em nossa lista de espera e... — Não se preocupe com isso — disse John Jackson. — Eu tenho muitos compromissos onde vivo atualmente. Perguntei só por perguntar. Agora, e meu carro? Vou recebê-lo de volta? — Isso depende inteiramente do senhor — disse o imponente cavalheiro. — Nós lhe fazemos uma proposta e o senhor tem a liberdade de aceitá-la ou rejeitá-la. Alguns Jacksons rejeitaram nossa proposta e saíram daqui, sem serem molestados, em seus próprios automóveis. A maioria dos Jacksons preferiu aceitar. Ah! Aqui está! Para todos os descendentes diretos de Charles Jackson, seus irmãos John e Jeremy Jackson e sua irmã Mary Jackson Spoor. Temos alguns Spoors aqui. Não muitos. Bela família. Eu não sabia que eram parentes. Seja como fôr, aqui está a proposta. Em primeiro lugar, 5.000 dólares* pelo seu carro. Além disso, daremos ao senhor e a cada membro de sua família um cavalo e um veículo puxado por cavalo ou uma carruagem elétrica com a garantia de que não corre mais de vinte e cinco quilômetros por hora. Instalaremos e financiaremos uma cocheira de aluguel em sua comunidade. Em troca, o senhor prometerá — e nós temos meios de obrigá-lo a cumprir a promessa — nunca possuir, dirigir ou viajar como passageiro em automóvel particular. Poderá, porém, andar em veículos motorizados públicos, como táxis, ônibus, ambulâncias e outros. Naturalmente, poderá viajar em trem. — Eu quero um pônei! Eu quero um pônei! — gritou a de 12 anos. — E um belo carrinho vermelho. — Eu quero um cavalo árabe como o da televisão — disse a de 13 anos. — Nós não temos lugar onde um pônei ou outro cavalo possa pastar — disse John Jackson. — Estamos dispostos também a comprar-lhe cinco acres de

* Bem mais do que o preço de um carro comum, zero quilômetro, nos E.U.A. (N. do Trad.)

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pastagem perto de sua casa — disse o imponente cavalheiro. —- Santo Deus! — exclamou John Jackson. — Quem poderia recusar uma proposta dessas? Mas deve haver milhões de Jacksons nos Estados Unidos. A General Motors não aceitará isto sem reagir. — Infelizmente há milhares de Jacksons que simplesmente não podemos atrair a esta parte do país. No próximo ano estamos planejando ampliar nossa lista de modo a incluir Smiths. Depois Spositos. Depois Meyers. — Meu Deus! — disse John Jackson. — Uma gigantesca pílula tranqüilizadora. Mas os senhores arruinarão a economia. Ford sairá atrás dos senhores com seus tanques. — De que economia está falando? Não arruinará a economia de Tio Charley. — Oh! diabo — disse John Jackson. — Não vai dizer-me que a fábrica está obtendo lucro com isto. — Ainda não. Ainda não. O tempo dirá. Como disse, estamos com certa escassez de Jacksons, mas no próximo ano iremos atrás de Smiths. Isso nos manterá ocupados. — Eu quero uma carruagem elétrica — disse a esposa. — Terá uma, minha senhora. Agora, se não se importam, vou mostrar-lhes seus aposentos e os senhores poderão lavar-se para o jantar. Amanhã eu os acompanharei em visita às oficinas e os senhores poderão escolher os cavalos e carruagens que desejam sejam embarcados para sua casa. Depois atrelarei a velha Nelli e daremos um passeio até a estação ferroviária. Tenho certeza de que estão ansiosos por voltar para casa. — Bem — disse John Jackson a seu vizinho, Anderson — eu preciso lévantar-me uma hora mais cedo para pegar o trem, mas é uma bela parte do dia. Pegaremos o das 8,10 sem dificuldade. — Puxa! — Sisse Anderson. — Escute o ronco desse motor elétrico. É como um gatinho feliz. Ultrapassaram um estranho que dirigia uma carruagem com franja no alto. — Alô, Jackson — gritou John. — Alô, Jackson — gritou o estranho. — Se êle tiver sorte, pegará o das 8,40 — disse Anderson. — É um bom trem. 113

Um colérico Cadillac preto buzinou atrás deles. John virou-se e esfregou o polegar no nariz. — Espere até o ano que vem, Smith — gritou êle.

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FORA DE TEMPO E DE LUGAR George Collyn Trad. de Therê M. Deutsch

Se eu tivesse ficado junto com os outros, se tivéssemos formado um grupo, provavelmente isso jamais teria acontecido — poderíamos ter formado defesa mútua com as nossas inseguranças individuais. Nossos nervos, assim, talvez conseguissem suportar a tensão, uma vez que estaríamos perto uns dos outros. Dos cinqüenta anos que passamos juntos, dez foram de perfeito entendimento. É verdade. Mas dez anos num ambiente fechado é tempo suficiente para que um homem se torne intolerante e precavido contra a menor falta de seus companheiros. Maneirismos, inteiramente inócuos por si mesmos, tornam-se dinamite emocional quando se vive em condições que excluem qualquer forma de intimidade e as mínimas funções da vida têm que ser realizadas à vista dos companheiros, assim como as deles diante de nós. Para começar, fomos obrigados a nos manter como um grupo, a fim de justificar os banquetes oficiais com que seria celebrada a volta da primeira nave que saíra do Sistema Solar. Assim que as festividades terminassem, estaríamos livres dos laços de coletividade e cada qual seguiria seu caminho, tratando de se ajustar ao mundo, que envelhecera cinqüenta anos para os nossos dez. As reações variam de indivíduo para indivíduo. Peter, nosso capitão, gostava de nos representar, indo em nosso nome a banquetes, recepções, reuniões. Assim, prolongava seu quinhão de popularidade — o que o fazia sentir-se feliz. Sem o arrimo da união, o restante de nós entrou para três 115

escolas diferentes. Houve os que nada censuravam, que mergulharam em suas novas vidas com a impassibilidade de um bêbedo num vagaroso mergulho. Houve outros que se dispuseram a explorar esse novo e estranho mundo com o mesmo interesse que os exploradores demonstram pelo desconhecido. A maioria — e eu fazia parte dela — não conseguiu alcançar o ajustamento psicológico ao mundo que era ainda mais estranho por ter sido familiar um dia. O nosso grupo era de vinte e oito homens. Quatro cometeram suicídio no ano de nossa volta. Quanto aos demais, muitos voltaram-se para dentro de si mesmos e se isolaram do mundo. Quando se tem vinte e três anos — ao se considerar os problemas inerentes ao regresso, quando se terá trinta e três — pensar que o mundo terá progredido cinqüenta anos, com as conseqüentes mudanças tecnológicas e sociais, parece sem importância. Para os jovens, o progresso permanece abstrato porque não possuem uma retrospectiva de visão o bastante ampla para perceber como o acúmulo de pequenas mudanças pode, através dos anos, revolucionar a maneira de viver. É claro que eu fora advertido por uma velha geração, que criticava o mundo que seus filhos estavam criando. Mas meus antepassados haviam moldado o mundo, sofreram “mudanças”, sim, no entanto estavam vivendo dentro delas, enquanto elas se processavam, e não tinham sido obrigados a assimilá-las de uma só vez. Estavam prevenidos, vendo as “mudanças” se verificarem. Nada, muito menos meus vinte e três anos, podia imaginar o impacto emocional de nossa volta do Espaço para um mundo que se modificara para além de qualquer possibilidade de reconhecimento. Era como se a gente tivesse nascido de novo, mas com idéias e preconceitos já formados e uma variante com a norma social. Certas coisas podem levar uma pessoa a lutar — nem que seja apenas para ver suas idéias alteradas pelo inesperado. Já me convencera de que meu pai estaria morto quando eu voltasse; que minha madrasta — sua segunda mulher — e uma filha da minha idade, deveriam estar velhas; que minha irmã, nenê quando eu partira, teria cinqüenta anos e provavelmente estaria com netos do tamanho que tinha quando eu a vira pela última vez. Estava preparado para isto, sim, mas não para receber o avanço dos medicamentos e tratamentos geriátricos. Encontrei meu centenário pai 116

no espaço-pôrto. Não somente estava vivo, como também parecia tão jovem como quando eu saíra de viagem, no início da década de meus vinte e três anos. O encontro provocou-me confrações no estômago, como quando eu via alguma perversão obscena. O que mais me revoltou — além da sensação causada por esses verdadeiros transtornos pessoais — foi o monótono tom cinzento de vida. Não só o cinzento em côr, propriamente — apesar das maciças construções cinza, em concreto, que passavam por arquitetura, e o monótono tom castanho das roupas, que eram iguais para homens e mulheres — mas a falta de calor do ambiente de vida, em geral, era o que mais deprimia. A monotonia da vida em si chocou-me de modo obsecante. Aquela gente eliminara a velhice, mas no processo, destruíra a alegria da juventude. As pessoas andavam em ruas horríveis, com roupas horríveis e seus rostos espelhavam toda aquela feiúra. Tudo cinzento, vazio, fosco. Pareciam ver, mas não sentir. Acrescente-se a isso o desenvolvimento tecnológico de meio século e imagine-se minha perplexidade. Havia um veículo, sem motorista, a que chamavam “robô-car”, algumas diversões medíocres a que chamavam “altrigo” e outras, misteriosas, cujos nomes nunca consegui entender. Na verdade, eu não conhecia o funcionamento, nem as finalidades das novas invenções, se bem que todos se demonstrassem bastante pacientes e dados, querendo me explicar tudo. Mas eu cerrava os ouvidos e, assim que tinha uma oportunidade, fugia para o apartamento que a Agência Espacial me dera para morar. O apartamento tinha cinco cômodos empoleirados, em glorioso isolamento, no cimo de uma daquelas montanhas de concreto feitas pelo homem. Contava apenas com uma invenção moderna: a máquina automática de refeições. Aliás, fiquei bem satisfeito com isso, porque me evitava maiores contatos com o mundo lá de fora. Quanto ao resto, tinha livros e discos para passar o tempo. A princípio, insisti em ligar a TV, na esperança de que me ajudasse a conhecer e aceitar aquele mundo. Mas, por alguma razão que eu desconhecia, a TV perdera a popularidade e tudo que consegui sintonizar foram duas estações em cadeia, corri um programa musical e de humor. Como a maior parte do que diziam era incompreensível para mim, passei definitivamente a preferir a palavra escrita e a música de Bartok e Schoenberg. E passei a maior parte de 117

meu tempo meio adormecido, numa espécie de deprimente meiosonho. Mas, apesar de tentar esquecer o mundo, o mundo se recusava a me esquecer. Entravam avalanches de cartas pela minha porta e o videofone não parava de soar, a ponto de eu chegar a queimar as primeiras e desligar o segundo. Como resultado de tal atitude, quase tive que enfrentar uma corte marcial por faltar a uma recepção presidencial — convite que queimei ou não recebi. Afinal, acabei contratando um homem para atender ao videofone e abrir as cartas, separando as que merecessem ser passadas para mim. O mesmo homem agia como meu intermediário em transações externas. Não sei dizer qual o mérito que Bárbara Fellin tinha aos olhos dos homens. Ela proclamava ser minha cunhada, uma vez que se casara com um irmão que nascera depois de minha partida e falecera num acidente, antes do meu regresso. Nosso parentesco parece que não lhe dava o direito automático de falar comigo: minhas amizades não existiam. Então, para meu eterno desgosto, meu censor-secretário fê-la chegar até mim. Ela queria me convidar para uma festa. Imaginei que seria um daqueles “venha-e-babe-se” diante dos maiores nomes do mundo dos negócios... e que eu seria uma das celebridades a serem admiradas na ocasião. Ir a essa festa era algo que estava inteiramente fora de cogitação para mim. Mas, enquanto ela subia para meu apartamento, senti que a estava esperando com certa satisfação; de qualquer modo, seria impossível escapar-lhe àquela altura. Os acontecimentos que se seguiram foram suficientes para me convencer da inevitabilidade do destino. Aconteceu o que não deveria ter acontecido. Bárbara Fellin fêz-me aceitar o convite para a tal festa. Dificilmente poderia dizer que acabei convencido por seus argumentos. A causa principal deve ter sido que sofri uma revolução de sentimentos tão completa quanto a que sofrera quando me decidira pela reclusão. Essa festa devolveu-me o mundo que eu pensara que tivesse deixado de existir. Se o mundo lá fora era sombrio e uniformemente cinzento, essa festa era uma avalanche de cores. Relutei muito em aceitar, mas se não tivesse ido, não ficaria sabendo que existiam pessoas alegres e vivazes. Quando a alegria e as cores caíram em cima de mim, senti a tensão escoar-se e, pela primeira vez em um 118

ano, comecei a achar que valia a pena continuar a viver. Minha anfitriã agitava-se por todos os lados, com as atitudes próprias da falsa juventude, que aparentava. Não sei quantos anos tinha, na verdade; sentia-me desgostoso demais ao pensar na preservação artificial para ter coragem de indagar. Mas não aparentava mais de dezenove anos: vestia-se e agia de acordo, puxando-me pelo braço, mergulhando seu olhar no meu com o fervor de uma adolescente diante de um herói. Bárbara notou que eu coxeava e imediatamente referiu-se ao fato — para meu embaraço. Tentei não falar sobre o acidente que causara o defeito, mas ela exclamava em voz muito alta que eu não precisava explicar, pois ela sabia perfeitamente o quanto os astronautas eram românticos e corajosos. O grupo todo deve tê-la escutado e todos os olhos se voltaram para mim, que continuei obedientemente atrás dela, sentindo-me como um personagem byroniano numa tragédia de salão do século XIX. Dali a pouco fiquei sossegado. Andei por entre os convidados, bebendo, comendo e trocando palavras convencionais a respeito de asssuntos convencionais, pois, em cinqüenta anos, as pessoas não haviam mudado nada quanto à capacidade de conversar durante horas, evitando envolver-se em temas sérios. A moça estava de pé, sozinha, num canto da sala. Vi-a diante de mim e sorri, involuntariamente. Não se podia deixar de sorrir para ela; irradiava calma, calor e amizade. Participava da festa sem ser parte dela, formava uma espécie de centro de tempestade, onde as mais frenéticas energias morriam, deixando-a intocada. Estava só, mas não distante; sorria para os demais convidados com uma espécie de gentil bênção no olhar. Eu lamentava a falta de côr do mundo, mas essa moça, em preto e branco, era mais evidente do que o mais exagerado escarlate. A pele de seu rosto e ombros era do puro e macio branco da pérola, enquanto seus exuberantes cabelos eram de um negro tão profundo que emitiam reflexos azulados. O vestido, de um preto acetinado, era austera e clàssicamente drapeado, moldando-lhe o corpo com atraente simplicidade. Agiu sobre mim como um imã, parecendo-me que os demais convidados se apartavam momentaneamente, formando um corredor entre nós, como se dois pólos de atração repelissem matéria estranha. — Boa noite — lembrei-me de dizer. — Meu nome é David 119

Fellin. — Eu sei. Tenho muito prazer em conhecê-lo — respondeu ela, simplesmente. Sentia-me inteiramente perdido, sem ter o que dizer. Achei que devia dizer alguma coisa, para não parecer monstruosamente idiota. Mas tudo que me ocorria parecia-me banal ou petulante demais para a impressão que eu gostaria de causar a ela. Nesse dilema, fui socorrido pela dona da casa. — Oh, vocês se encontraram! — gritou Bárbara. — Estou contente. Esta é Marion Watkins, sabe? E pôs-se a discorrer ao meu ouvido, em tom de voz que deveria ser um sussurro, mas que metade da sala deveria estar ouvindo. Fiquei confuso, principalmente por não conhecer aquele nome que, pelo jeito, deveria ser importante, e também por não conseguir resistir ao evidente divertimento de Marion diante das exclamações apavoradas de Bárbara. Sinto ter que confessar que soltei uma boa gargalhada, mortificando a dona da casa. Bárbara se afastou, com sua mente borboleteante pousando aqui e ali, esquecendo-se logo de minha gafe e tratando de se deliciar com as atenções de tanta gente. Marion e eu ficamos em agradável silêncio. — Quando posso vê-la outra vez? — perguntei, enfim. — Mas acabamos de nos conhecer! — disse ela, os olhos brilhando, o narizinho franzindo-se e os lábios curvando-se; todo seu expressivo rosto demonstrando o quanto se divertia. — Por que pede para me ver uma segunda vez, quando está me vendo pela primeira? — Quero dizer, sem esta gente toda. Quero saber se podemos nos encontrar sozinhos, para conversarmos. — Eu sei. — É a segunda vez que você diz “eu sei”. Como pode saber tanto a meu respeito, quando nada sei de você? — Acontece que você é o homem-mistério da nação, neste momento. Não sabia? David Fellin, o astronauta recluso, o eremita da Torre Bloco C; o homem que esteve entre as estrelas, mas não quer nem atravessar a rua. Como será êle? Não desconfia de que Bárbara só conseguiu reunir esta gente toda aqui porque todos vieram com a esperança de ver você? Senti-me de novo perdido, sem saber mesmo o que dizer, 120

quando Bárbara avançou, com o ar de um cão persistente que não quer perder seu osso. — David, estou aborrecidissima com você! As pessoas que não vieram aqui para vê-lo, vieram para ver Marion. Não posso permitir que minhas duas atrações monopolizem uma à outra. Vamos, vá conversar com outras pessoas! Fui arrastado, contra a vontade, para perto de outra pessoa, com o ar de quem vai para um purgatório. Perdi Marion de vista e logo a tortura se tornou tão aguda que saí, rápida e discretamente, da casa, sem tornar a vê-la. No entanto, eu iria encontrá-la ainda. Simplesmente porque, tendo pedido o número de seu vídeo-fone à Bárbara, bombardeei-a com chamadas, até que ela concordou em se encontrar comigo. Como ultrapassaria a aversão que sentia pelo mundo lá de fora — se Marion me pedisse que o fizesse — não sei; no entanto, creio que teria feito esse esforço por ela. Aliás, Marion, como eu e algumas outras pessoas, gostava do tipo de vida que desaparecera no século anterior. Levou-me a um verdadeiro sub-mundo, que existia para satisfazer os que não se adaptavam à monotonia geral. Fomos a lugares onde se comia carne que fora viva e vegetais que haviam crescido na terra, não num tanque químico: lugares onde a comida era feita por cozinheiros humanos; lugares onde a gente se divertia vendo dançarinos e ouvindo cantores. Naturalmente, esse tipo de vida era caro. A comida, as roupas que Marion usava, tudo isso — hábitos e coisas que eram comuns em minha juventude — só estavam ao alcance de poucos e ricos. Felizmente, minha pensão estatal era suficientemente alta para cobrir algumas despesas e Marion parecia ganhar bastante bem. — Que é que você faz? — perguntei-lhe, uma vez. — Parece ser muito bem paga. É atriz? — Sim — respondeu ela. — Acho que posso dizer que sou atriz. — Mas onde você representa? Não há teatros, cinema, televisão ... — Represento, na vida — respondeu. — Vivo inteiramente para pessoas que vivem apenas pela metade. Não entendi e achei que ela estava falando por metáforas. Como se percebesse que um entendimento completo poderia me causar desgosto, deixei o assunto de lado e comecei a falar de ou121

tras coisas. Não creio que alguma vez tenha pedido a Marion, que se casasse comigo. Numa ocasião, em algum ponto de nossas relações, ficou simples e tàcitamente entendido que íamos nos casar. A cerimônia foi resultado de um acordo. Marion, como é natural em uma mulher, queria que fosse o mais alegre e maravilhosa possível. Anti-social, eu queria que fosse o mais rápida e secreta possível. No fim, casamo-nos em uma das antigas igrejas da cidade, com toda pompa e circunstância que o acontecimento requeria. Mas estavam presentes apenas alguns dos mais íntimos amigos de Marion. Quanto a mim, não tinha convidados, nem mesmo os parentes. Comprara um avião particular. Custara uma pequena fortuna, porque tais máquinas eram antigas e raras. Logo que a cerimônia terminou encontrei-me no ar com Marion, sozinhos. Então, achei que o gasto exagerado valera a pena. Ao sentir o gosto da liberdade, lá em cima, larguei minhas preocupações na terra. A felicidade que sentia ao estar voando, com minha mulher ao lado, segurando os controles do aparelho, foi brevemente empanado pela visão — lá de cima— da massa cinzenta e amorfa dos edifícios, que se estendia de horizonte a horizonte. Mas a Natureza é muito velha, muito forte para ser totalmente dominada pelo Homem. Afinal a cidade terminou e o antigo verde da grama e das árvores substituiu o cinzento do concreto. Ao anoitecer, descemos no lugarzinho escondido que a Agência Espacial descobrira para nós — um bangalô de pedra oculto pela vegetação, de onde saía uma alameda, ladeada de árvores, que ia dar na praia de areia prateada, com a paisagem, o cheiro e o canto do mar. Estávamos inteiramente sós. Não havia estradas para aquele local, que nunca fora habitado. Durante uma semana, ficaríamos completamente entregues um ao outro e nada mais. Não tenho palavras para descrever minhas sensações durante esse período. Talvez algumas pessoas apaixonadas possam sentir o mesmo, mas os sentimentos são algo tão pessoal que não podem ser comparados com os dos outros. Nessa semana fizemos coisas que poderiam parecer engraçadas ou vergonhosas, se escritas ou contadas — no entanto, devido à nossa confiança mútua, eram lindas e naturais. 122

Todo temor, desgosto, mal-estar que eu sentira por aquele estranho mundo desapareceram na alegria do nosso casamento e união. Quando de meu primeiro contato com aquele mundo, eu me tornara amargo e ia ficando cada vez pior. Mas, ao viver junto de Marion, a barreira de gelo que erguera ao meu redor começava a se dissolver lentamente. Marion não pediu que mudasse meu modo de vida. Tudo que pediu, foi que eu não o tentasse impor a ela. Saía e voltava, como sempre fizera, mas eu fui, aos poucos, acostumando-me a acompanhá-la a restaurantes e a compras. E à medida que Marion quebrava minhas reservas, essas saídas iam-se tornando mais freqüentes. Tornei-me mais tolerante aos costumes estranhos do mundo; a não ser para com a curiosidade verdadeiramente histérica que meu aparecimento provocava em determinadas pessoas. Atribuía isso à minha fugaz fama de astronauta. Por algum tempo, fui tolerante e feliz. Então, começou o pesadelo. Era uma linda manhã de primavera e eu estava só no apartamento. Marion fora comprar uns vestidos. O vídeofone chamou. Recomendara ao meu secretário que atendesse a todos os chamados sem importância ou inúteis. Por isso, atendi tranqüilamente. — Chamo-me Sheldon Walker — disse o homem de rosto simpático e sadio. — Sou vice-presidente da Companhia Altrigo. — Minha mulher não está — respondi, achando que êle queria falar com Marion. Sabia, então, que Marion trabalhava, sendo muitíssimo bem paga, para a Companhia Altrigo, como atriz, numa modalidade original de divertimento organizado pela com-panhia. Como faziam isso, não sabia. — Não é com Marion que quero falar, senhor Fellin — disse êle. — É com o senhor mesmo. Acha que poderá estar aqui em nosso escritório dentro de uma hora? Tenho uma proposta a fazerlhe. E eu concordei. Que Deus me ajudasse! Os escritórios da Companhia Altrigo eram, devido à adição de 123

um letreiro colorido e uma porta de aço brilhante, um pouco menos sombrios do que os escritórios vizinhos do bairro comercial. O prédio também sobressaía dos demais por causa dos magotes de gente que paravam na rua para olhá-lo, como se fosse um santuário ou um importante monumento nacional. Quando saltei do táxi-robô que me trouxera, senti os olhares de todos se voltarem para mim e vacilei, como faz um animal noturno ao sair para a luz do sol. Fui recebido como visita real. Portas abriam-se à minha aproximação e um exército de recepcionistas inclinou-se, perfilou-se guiou-me através de corredores, até a porta de Walker. Sheldon Walker, pessoalmente, era a saudável, radiante e insinuante imagem que a tela do meu vídeofone mostrara. Como Marion, eu e nossos amigos, usava um terno cujo tecido tinha matiz brilhante, que o diferenciava do cinzento ou castanho de uso geral. Seu escritório era luxuosamente decorado e, obviamente, êle pertencia à anacrônica elite daquele mundo. Providenciou para que me acomodassem, mandou que me oferecessem bebida e salgadinhos. Parecia um tantinho relutante em começar a me expor sua proposta. Quando o fêz, dispensou rodeios. — Queremos que trabalhe para nós. De fato, necessitamos do senhor como emitente, porque já está, de certa forma, trabalhando para nós há algum tempo. Marion sempre foi muito popular, mas desde o casamento, sua classificação subiu a ponto de estourar nossos gráficos. Agora, estamos sendo pressionados pelos homens que, por não querermos aceitá-los como clientes da nossa seçãode-sexo, acham que estão sendo expoliados, privados de algo muito importante. — Creio que não sei de que está falando, senhor Walker. — Estou lhe pedindo para se tornar emitente da Altrigo, senhor Fellin. O centro da rede de transmissão Altrigo, única no mundo, em funcionamento 24/24 horas, sem interrupção. Como a sua mulher. — Mas que quer dizer isso ? Que significa? — perguntei. — Não sei o que é. — Bem... Há uma pequena operação, claro. Mas é muito simples e inteiramente indolor, garanto. Se o senhor quiser, se aprofundar, nossos técnicos... — Não me entendeu, senhor Walker. Não quero saber como 124

funciona o sistema, mas sim o que êle ê, o que fas. Olhou-me com o maior espanto, como se eu tivesse revelado a mais completa ignorância pelos mais simples fatos da vida. — Mas, acho que Marion... — Ela quis me explicar. Mas, entenda, sou um homem que ressucitou. O mundo que conheci, e no qual cresci, era o de 50 anos atrás. Talvez possa tentar entender o mundo de vocês, mas há muita coisa nele que para mim é repugnante ou incompreensível. Essas coisas, não quero entender. E a Altrigo, pelo pouco que sei, é uma boa parte desse mundo que tenho a impressão de não querer conhecer. — Senhor Fellin... David, você não pode querer conhecer nosso mundo se não souber o que é o Sistema da Altrigo. Começou como divertimento, mas transformou-se na base principal da nossa civilização. Vou mostrar-lhe. Apertou um botão no aparelho de intercomunicação e, quando a secretária atendeu, disse: — Senhorita Matthews, queira ligar meu escritório com a rede de Marion Fellin, por favor. Pegou numa espécie de coroa de fios escuros e deu-a a mim, dizendo que a enfiasse na cabeça. Era como uma rede de fios, com nódulos de metal brilhando por entre o emaranhado. Quando a enfiei na cabeça, grudou-se como um molusco. Quis reclamar do desconforto que senti — estava apertada e o metal magoava-me o couro cabeludo. Mas, quando abri a boca já não estava mais com essa sensação. Na verdade, não sentia mais a mim mesmo, nem estava mais na sala de Walker. Pareceu-me estar de pé num gabinete de provas, ajustando ao corpo um vestido que uma moça acabara de me enfiar na cabeça. A moça disse: — Acho que vai ficar satisfeita quando se olhar no espelho... A sensação de ser aquela outra pessoa era angustiante. Não só podia ver e ouvir o que seus olhos viam e seus ouvidos escutavam, mas também sentia o contato da seda macia em meu corpo, o toque dos dedos da moça ao fazer os ajustes; sentia o delicado odor do perfume que eu — essa outra pessoa — estava usando. Até os pensamentos e a consciência dessa pessoa. estavam lutando para ocupar o lugar dos meus, que ficaram paralizados durante um momento em meu cérebro, quando o tumulto aumentou dentro dele. 125

Quando a pessoa se olhou ao espelho pude me ver — e vi. — Eu era minha mulher. Admiro-me ao espelho. O vestido está perfeito. Fica bem, cai bem, está ótimo. Passo as mãos pelo corpo, sentindo a maciez do tecido. Faço um movimento para ver como ele o acompanha. — Gostou, senhora? — Oh! sim — respondo. — É lindo. Vou levá-lo. É um pouco caro, mas acho que vale. Creio que o senhor Fellin vai gostar dele. Estou certa de que vai gostar e fico ruborizada a tal pensamento. Ruborizada e um tanto perturbada por minha fraqueza. Um ano de casada e sinto, ainda ajo como uma noivinha inocente ao pensar em David. Houve uma violenta. explosão muda, de cores, dentro de minha cabeça e ouvi uma voz dizer: — “Esta é a rede número 15 da Companhia Altrigo. Seu outro eu é Marion Fellin. Segundo o estatuto n.° 28 da autoridade que constitui a Companhia, vamos agora dar-lhe sessenta segundos para orientar-se e poder desligar seu receptor, se assim o quiser. Estas interrupções são efetuadas a intervalos de um quarto de hora e este aviso é emitido de hora em hora”. Senti-me de volta ao escritório de Walker. Olhei-o e êle estendeu a mão para o botão na peça ao qual o aparelho que eu tinha na cabeça estava ligado por um fio. Aborrecido, mas querendo saber mais, fiz que não com a cabeça. Estou andando na rua, deliciada com a brisa da Primavera e o olhar admirado das pessoas que passam por mim. Podia voltar para casa, acho. Não, decido. Vou tomar café com o povo, no bar de Magrit. Há umas doze pessoas aqui, no salão em penumbra, diante de xícaras de café, de chocolate, doces, nata. Meu vestido novo é o centro das atenções, atraindo olhares de inveja das mulheres e de admiração dos homens. Desta vez, Walker desligou sem me perguntar nada. — Acho que chega — disse. — Desrespeitei as regras permitindo-lhe que visse isso; as redes femininas são apenas para mulheres. Mas achei que sua mulher seria a melhor introdução para. . . — Há quanto tempo isso. está acontecendo? — interrompi-o. 126

— Com Marion? Acho que foi logo depois que ela fêz doze anos. Seu pai assinou um contrato conosco assim que ela atingiu a idade legal para ser emitente. Isso quer dizer que ela trabalha conosco há quase 20 anos. Sua mulher é muito popular; metade da nossa audiência acompanhou-a em sua vida de menina a mulher. — Mas como... ? — Eu explico. Não sou técnico, mas, basicamente, há um minúsculo, emissor incrustrado no cérebro de nossos emitentes. Esse aparelhinho capta e emite todas as sensações, pensamentos e reações dos emitentes. Recebemos os sinais, amplificâmo-los e tornamos a transmiti-los aos clientes inscritos. Temos vinte e oito redes. Quatorze para homens, quatorze para mulheres; dezoito delas em rede nacional e... — E quando vocês transmitem? Quero dizer quantas horas e a que horas do dia essas pessoas podem ... quando vocês as sintonizam com minha mulher ? — Oh, ininterruptamente! Não podemos desligar os emitentes, sabe? Eles transmitem durante vinte e quatro horas por dia... Claro que um cliente não fica o tempo todo ligado ao emitente; há redes concorrentes. Além disso, o cliente precisa comer, dormir, trabalhar. É por isso que de vez em quando interrompemos a transmissão com um aviso: é comum um cliente ficar tão absorvido pela vida do emitente que se esquece da sua própria vida. — E quantas pessoas há espiando a vida de minha mulher? — Não deve empregar a palavra “espiar” — ironizou êle, tentando rir da minha escolha de palavras. — É muito raro que uma cliente fique ligada a Marion o tempo todo, mas desde que recrudesceu o interesse por ela, devido ao casamento, creio, acho que cerca de um milhão de mulheres se mantém sintonizado com ela durante quinze horas por dia. Pude ouvir a voz de Marion dizendo: “Represento na vida. Vivo inteiramente para pessoas que vivem apenas pela metade”. Agora, estava tudo explicado. Principalmente a opressiva falta de vitalidade do povo em geral. Para que viver você mesmo, quando alguém podia fazê-lo por você, muito melhor, mais ricamente, mais vividamente? — Vocês me dão nojo! — disse eu, de repente. — Que? Que quer dizer? — berrou Walker, com a irritação de um homem que defende o que é podre, indefensável. — Não vê 127

os benefícios que isso faz? Sempre houve ricos e pobres, os abonados e os não abonados. Isso é ainda mais verdadeiro hoje em dia, quando a população mundial aumenta sem limites. Quem pode pretender viver acima do nível da subsistência, a não ser muito poucos? Mas, graças à Altrigo, há pessoas que podem viver bem e essas pessoas podem dividir as coisas boas da vida com o povo, sem deixar de aproveitá-las inteiramente. Na verdade, o povo come mal, veste trapos, vive em buracos. Mas, através de Marion e de outras pessoas como ela, pode comer em restaurantes de luxo, vestir sedas e lãs, dormir entre lençóis de linho. . . Sua argumentação parecia moral e justa. Mas eu estava me lembrando de uma passagem de nossa lua-de-mel. Era noite e as ondas se movimentavam, franjando de branco a superfície negra e brilhante do mar. Marion e eu havíamos tomado banho à luz da lua cheia e estávamos deitados, nus e molhados, na areia da praia, envoltos pela morna brisa noturna. Não fizemos amor, mas ali ficamos, em paz e contentes. Nossos corpos não estavam unidos, mas se achavam o bastante próximos para que sentíssemos um a presença do outro e nossas mãos estavam entrelaçadas. Não dizíamos nada, mas gozávamos a paz e o silêncio do momento. Naquele momento eu pensara, então, que se alguém nos visse iria achar-nos ridículos ou loucos. De um modo estranho, aquele fora um dos mais perfeitos momentos da minha vida -— simplesmente porque estávamos juntos, sozinhos, gozando nosso prazer. Agora, caía sobre mim a possibilidade de que poderíamos ter partilhado aqueles e outros momentos com mais de um milhão de mulheres invisíveis. Senti-me inteiramente arrasado. Senti-me sujo por dentro. Senti-me totalmente dominado pelo ódio ao sistema parasitário personificado por Walker e por minha mulher. Sem dizer nenhuma palavra, saí correndo da sala. Fui perseguido pelos gritos de Walker e de seus subalternos pelo edifício e pela rua, mas não lhes dei atenção, creio que nem os ouvi, pois estava sendo perseguido também pelos fantasmas que eu mesmo criara. Cada mulher com quem cruzava na rua podia ter sido receptora das palavras e ações que eu só teria dito ou feito com a mulher que amava. Cada esquina parecia-me cheia de olhos escondidos e o ar parecia vibrar de cochichos escandalizados. Bati a porta do apartamento para eles, mas, desta vez, sabia 128

que não estava deixando o mundo lá fora. Ela saiu do quarto, tão linda e desejável como sempre, usando o vestido que eu já conhecia bem. Talvez, se tivesse ouvido aquelas explicações dos lábios dela, quando ainda era seu namorado, pudesse ter entendido e aceitado as coisas tais como eram. Não teria podido, não podia, aliás, odiar Marion, mas por trás de seus olhos viviam milhões de coisas crepitantes — parasitas que se alimentavam de suas emoções. — Vou ensiná-las a me espiar! — berrei para elas. — Então, vocês queriam saber como se vive? Muito bem, agora vão aprender como se morre! E agarrei o pescoço de Marion. Disseram-me que matei Marion. O que é difícil de acreditar é que o emissor não parou de funcionar enquanto ela morria e, assim, matei quase mais de dois milhões de mulheres. Isso não passara, disseram-me, de pura coincidência: o momento da interrupção obrigatória terminara exatamente alguns momentos antes da vida de Marion se apagar. Seus rostos nada significavam para mim. O terrível foi compreender o simples fato de que matara Marion! Eu não queria, não tivera a intenção de fazer nada a não ser dar um susto nela e nas outras. Já disse isso a eles. Tudo está envolto num espesso nevoeiro, que persiste enquanto ando de cá para lá em minha cela, na prisão. De tudo que aconteceu, só sei o que me disseram sobre o julgamento e do profundo sentimento de cólera que despertei no mundo inteiro. . . Ouço o tumulto e os gritos que vêm da rua pedindo linchamento: clamam pelo meu sangue. Bem, não pelo mesmo motivo que eles, acho que quero mesmo morrer. Sinto muito — não pelos dois milhões de mulheres, pois nada sei delas, não as conhecia — mas por ter matado minha querida Marion. Como poderia ser culpada, se estava fazendo uma coisa natural e comum em seu mundo? Meu verdadeiro crime não foi matá-la, mas sim casar-me com ela. Por mais que eu pensasse que a conhecia, não podia, na verdade, saber nada do seu mundo, assim como ela não podia imaginar, nem compreender, o meu. Não se tratava de uma distância geográfica ou de algo mais importante, como diferença de idades. Era mais profundo ainda: uma diferença de eras. Minha era morrera há cinqüenta anos e eu devia ter morrido com ela. Não posso sentir 129

nenhuma simpatia pelo presente. Repito a mim mesmo que privei dois milhões de seres humanos de suas vidas. E, sempre minha resposta íntima é que essas pessoas privaram a raça humana de sua dignidade.

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BICHOS Charles Harness Trad. de Noé Gertel

O furgão controlador tinha seguido a limusine preta através do desolado interior da Anatólia, durante uma meia hora. A fim de não alarmar sua caça, o furgão tentava ficar bastante atrás, quase fora de vista. Uma vez que o crepúsculo ia rapidamente se convertendo em noite, isto não constituía problema. Por outro lado, desde que era incapaz de usar suas próprias luzes, ficava crescentemente difícil para o homem do KGB (sigla do Comitê para a Segurança do Estado da União Soviética) seguir a estrada e êle ficou aliviado quando os faróis do carro à frente se apagaram. Imediatamente abandonou o volante, abriu caminho, através de um labirinto de equipamento eletrônico e de microtelas de TV, para a retaguarda do furgão e acionou a manivela do periscópio infravermelho. — O carro parou — disse. — Abra as gaiolas, doutor. — Ora, ainda é muito cedo — respondeu o Dr. Skarav. — Mas as portas do carro estão se abrindo. Que é que espera? — Não, ainda não — disse o Dr. Skarav brandamente. — Suponha que eu solte os insetos agora e, então, esta gente decida que não é o lugar para conversar em particular. Suponha que voltem para o carro e andem. Então, o negócio todo se arruinará. Não, primeiro deixaremos que eles se afastem bastante do carro. — Mas eles talvez já estejam conversando. — Não diriam nada de importante tão perto do carro. Presumirão — e com razão — que está infestado de bichos. Por isto é que 131

vieram dar aqui. Conversarão seriamente só quando estiverem bem dentro do campo. O doutor continuou a ajustar as prateleiras do multiplex da TV. — Ah, pararam de andar. Vejo a luz de um farolete. Doutor... — Sei. Está em tempo. Exatamente agora, soltei os insetos. Deverão alcançar os americanos dentro de poucos minutos. Esta espécie é muito rápida. Vôa cerca de quarenta quilômetros por hora. — Bom. Está usando cavalinho-de-judeu esta noite? — Não. Ah, o cavalinho-de-judeu é rápido e forte e é usado para carregar peso... Agarra sua presa no vôo. Mas recusa-se a voar de noite. Não, esta noite usamos mariposas. — Essas mariposas têm bons olhos? — Bastante bons. Naturalmente, nenhum olho de inseto é tão eficiente como o olho dos vertebrados. Não possui lentes e não é capaz de focalizar. É simplesmente um feixe de milhares de tubos ocos, uma versão altamente desenvolvida do medidor de luz em nossa câmara. Na base de cada minúsculo tubo se encontra um nervo óptico, ativo ou inativo, dependendo da quantidade de luz que receba. Dessa maneira, a imagem agregada recebida pelo inseto e retransmitida para nós constitui uma coleção de vários milhares de pontinhos, como as fotografias televisadas dos jornais. Precisamos colocá-los perto, está claro, porque a visão do inseto, no melhor dos casos, não é aguda além de sessenta ou noventa centímetros. — Mas cada mariposa tem sua pequena tela de TV aqui? — O homem do KGB estirou o polegar para as fileiras de microtelas. — Sim. Cada um dos vários milhares de sinais dos olhos compostos de cada mariposa é fielmente reproduzido na tela individual de TV correspondente a esta determinada mariposa. E tudo é gravado, de modo que possamos reproduzir todos os sinais ou alguma parte deles, mais adiante. Uma vez que cada olho possui um ângulo de visão de cento e oitenta graus, obtemos uma visão aproximadamente panorâmica e isto é realinhado num plano do receptor de cada mariposa. — Serão as mariposas bastante fortes para carregar — a esta altura, sorriu pudicamente — os bichos? 132

— Ora, isto deixou de ser problema — respondeu o Dr. Skarav. — Admito que, antigamente, nossos transmissores-receptores de TV fossem pouco eficientes e pesados. Toda a unidade, incluindo a bateria, era quase tão grande como um botão de colarinho e os únicos insetos alados bastante fortes para carregá-los eram as mariposas Atlas e Hércules, as quais só eram úteis à noite. A unidade era amarrada ao tórax e, naturalmente, acabava prontamente detectada, especialmente porque a própria mariposa tinha uns dez ou quinze centímetros de asas abertas, o que inevitavelmente atraía a atenção. Mais tarde, miniaturizamos de verdade a unidade e, finalmente, aprendemos como embuti-la cirurgicamente na crisálida. — O bicho está dentro da mariposa? — Naturalmente. Agora que sabemos como a coisa é realmente simples. Pouco depois da fase de ninfa, os tecidos larvares começam a se liqüefazer. Nesta ocasião, os microtransmissoresreceptores são instalados. Fazemos uma minúscula incisão na carapaça da ninfa e introduzimos a unidade. Tudo muito rápido, indolor e esterilizado. O inseto quase não se dá conta disso e a metamorfose prossegue sem obstáculos. Os tecidos finais portadores das asas ganham forma em volta do equipamento. Os nervos ópticos se integram prontamente com os colóides eletrocondutores do receptor e a ação transmissora leva para teias de antenas, que se convertem em parte das veias sustentadoras das asas. Quando os lepidópteros emergem, o “bicho” fica completamente invisível. — Mas, se não está mais usando as mariposas grandes, serão suas pequenas mariposas capazes de carregar todo esse peso? — Facilmente. Nos dias atuais, nossas unidades pesam apenas miligramas. O grande avanço na redução do peso veio quando eliminamos a bateria. Agora, extraímos nosso potencial elétrico diretamente do sistema nervoso do inseto — uns poucos microwatts, potencial pequeno, porém suficiente. A parte mais pesada da unidade é, agora, a rede metálica coloidal necessária para acompanhar todas as sinapses sensoriais que necessitamos cobrir — ópticas, auditivas, táteis, etc. — Como são suas mariposas para a captação de vozes? — Excelentes — respondeu o Dr. Skarav. — Para transmissões sonoras, estamos naturalmente limitados a espécies capazes de ouvir e, não apenas isto, mas de ouvir uma gama de vibrações. 133

O mosquito macho pode ouvir, mas, ainda que fosse bastante grande, seria inútil, porque só é capaz de detectar uma freqüência — a do zunido das asas da fêmea. De maneira que pegamos uma das espécies com “ouvidos” no abdome e nas patas. Nossa mariposa possui nas patas excelentes ouvidos do tipo tímpano. Normalmente, usa-os para detectar os chiados do seu inimigo, o morcego. Esta noite, usa-los-á para detectar as vozes de um inimigo diferente. — Que espécie usarão esta noite? — perguntou o mensageiro a-mericano. — Maripôsa-falcão beija-flor — respondeu o agente. — É esquisito. Eu colecionava lepidópteros quando era jovem. Essa eu conseguia no nosso tomateiro, lá em Maryland. Não pensei que fossem encontradas por aqui. — Completamente verdadeiro. Elas não são autóctones. Eles não podem empregar uma espécie local. O cheiro da fêmea atrairia numerosos insetos machos espontaneamente, de uma distância de dois ou três quilômetros. Em condições naturais, uma senhora mariposa pode esperar várias dúzias de visitantes machos no lapso de poucas horas. O caminho é muito bruto aqui. Use sua lanterna. Vamos parar por aqui, na clareira, e aguardá-las. — Por que está tão certo de que será a maripôsa-falcão? — indagou o americano curiosamente. — Meu criado é um agente do KGB. Êle não sabe que eu sei, está claro. Êle pôs o cheiro da fêmea em meu paletó, esta manhã. Tivemos o resultado da análise do laboratório ao meio-dia. Cromatografia de gás, você sabe. Opera magnificamente com indícios de materiais altamente voláteis, como o ferômono da maripôsa-falcão fêmea. Apenas um milionésimo de uma micrograma é necessário para atrair o macho e eu creio que eles me botaram pelo menos dez vezes isto. — Mas por que fazer a análise? Que diferença faz, se você conhece a espécie antes do tempo? — Precisamos conhecer a espécie antes do tempo para programar, apropriadamente nosso desinfetante. (Êle riu.) Além disso, depois de nos meternos em toda esta trapalhada, não queremos que nossos pequenos visitantes se percam. (Tirou de seu bolso um minúsculo vaporizador de perfume.) Um pouco no vento, um pouco no seu rosto e mãos. Um pouco em mim mesmo. E economizare134

mos um pouco para o “embrulho”. Enquanto isto, montemos nosso próprio controlador de transmissões. Quero começar nossas gravações no instante em que aparecerem as primeiras mariposas. Pôs a caixa em baixo, desdobrou as pernas e puxou para cima a antena. — Crê que já soltaram as mariposas? — perguntou o americano. — Vamos dar uma olhada. O agente ligou o pequeno receptor de TV no controlador. A imagem veio instantaneamente. Mostrou uma visão mutável e oscilante do interior do furgão do Dr. Skarav. O agente comentou: — Ai está você, conforme é visto por uma das suas próprias mariposas. Nós obtemos um efeito listrado porque a mariposa está olhando por detrás de uma tela em malha de arame. As gaiolas junto parecem vazias. Creio que o velho Skarav acabou de soltar um par de enxames. — E estão chegando! — sussurrou o americano. — Que maravilhosas, adoráveis criaturas! — Elas são rápidas — disse o homem do KGB, curvado com admiração para as telas de TV. — Foi por isto que escolheu a maripôsa-falcão ? — Esta é uma razão — respondeu o Dr. Skarav. — Mas a principal razão consiste em que é capaz de planar, sem movimento, no ar, como um beija-flor. Isto ajuda, a ler os documentos e dar uma boa olhada nos objetos que esta gente manejará e discutirá. Mas, está claro, esta não é a única razão pela qual usamos a maripôsa-falcão. Ela sente com os pés. Quando pousa num objeto, retransmite uma mensagem. Se o objeto fôr de metal, a mariposa é capaz até de nos dizer qual o metal. — Suponha, porém, que não seja de metal? — indagou o outro. O Dr. Skarav voltou-se e sorriu com desalentado divertimento. — Você não continua tentando pegar aquele processo de fabricação de diamantes? Afirmo-lhe que não existe uma coisa assim! 135

— Não é da qualidade de gema — disse o agente, cuidadosamente nivelando o reluzente montículo com as pinças de joalheria. — Não obstante, é carbonato de boa qualidade. Diamante de categoria industrial. E absolutamente essencial para a tecnologia ocidental. Esta substância é utilizada para retificar os instrumentos abrasivos que fazem nossa maquinaria. Também para trefilação, perfuração de poços petrolíferos, coisas de todo gênero. Estaríamos perdidos sem isto. A fonte principal é a África do Sul e você conhece os problemas que dá. E agora chegou-nos às mãos um processo, de fazer carbonatos sintèticamente, a partir da grafita. É barato, simples e você terá de levá-lo para fora do país. O americano fitou o cintilante montículo e disse: —- Está seguro de que nenhuma dessas pedrinhas irá para eles? O agente sacudiu um bando de mariposas de seu rosto. Deu um riso curto e apontou para o controlador de transmissões, afirmando: — Eles estão recebendo exatamente o que queremos que recebam. Os bichos deles transmitem só o que sentem e sentem somente o que nossos bichos lhes mandam sentir. Mas eu verifico que você não está completamente atualizado. Eles usam o sistema do bicho-dentro-do-bicho. Nós usamos o bicho-dentro-do-bichodentro-do-bicho. O que significa que infectamos suas larvas com certos protozoários altamente sensíveis à radiação eletromagnética. O americano abafou um assobio : — Um belo truque. — Em certo sentido, sim. Por outro lado, muitos insetos convencionalmente abrigam protozoários: o esporozoário portador da malária vive no mosquito; a doença do sono na mosca tse-tse; o tifo no piolho e assim por diante. Alguns são benéficos, a exemplo do protozoário transformador da celulose no estômago do cupim. E os protozoários sensíveis à luz são naturalmente bem conhecidos: a pintinha ocular vermelha no paramécio ajuda-o a encontrar a luz e o mesmo “órgão” no Stentor envia-o à sombra. A luz, está claro, constitui simples radiação eletromagnética na faixa de 3500-7000 Angstrom. Usamos protozoários receptivos na faixa das micro ondas. — Como, porém, conseguimos introduzir um transmissor136

receptor num animal unicelular? — Não foi fácil. Na realidade, nossas primeiras tentativas implicaram a colocação de um cristal submicroscópico de arsenieto de gálio diretamente no corpo do protozoário. Mas isto não funcionou porque o paramécio simplesmente o expeliu como matéria estranha. Além disso, vários minutos são necessários para cada inserção — um delicado processo microcirúrgico, enquanto carecemos de milhões de protozoários “bichados”. Assim, finalmente descobrimos como alterar certos genes nos cromossomos do protozoário para incluir unidades de monoméres de arsenieto de gálio, em conseqüência do que a estrutura cirúrgicamente inserida se converte numa característica mendeliana herdada pelos descendentes: um mutante artificial, se quiser. Depois de infectarmos as larvas dos insetos de Skarav, nossos protozoários formam uma carapaça em torno dos semicondutores nas lascas micro-eletrônicas, durante a metamorfose. — Deste modo, então, emperramos suas transmissões? — indagou o americano. — Nada de tão grosseiro. Nós simplesmente sobrepomos nossas transmissões destas gravações no que os seus insetos normalmente captariam e reenviariam ao furgão deles. Desta maneira, Skarav obtém uma boa transcrição, mas ela só lhe diz o que desejamos que êle receba. Se passarmos a emperrar, eles pararão com este tipo de infestação e desenvolverão algum outro tipo, que poderia dar-nos verdadeira dor de cabeça. O americano sorriu à socapa e disse: — Sei que isto representa um progresso. Mas me agrada recordar os velhos tempos quando um bicho era algo previsível e em que se podia confiar, como um palito numa azeitona de martini. — As mariposas informam uma condutividade específica muito alta — falou o Dr. Skarav. — Vários milhões de vezes demasiado alta para o diamante. É mais parecido com ouro, talvez em liga com um pouco de prata ou cobre. — Ouro? — grunhiu o homem do KGB. — Estamos obtendo bons sinais de diversos diferentes bichos. (Apontou para a fileira superior das telas de TV.) O americano está contando alguma coisa num saco. Ouça os tinidos metálicos. Devem ser moedas de ouro. Umas vinte moedas. (Pareceu pensativo.) Pagam bem. 137

— Vinte e duas pedras — disse o gerente. Entregou o saquinho ao americano e continuou: — Vamos agora aos detalhes do processo. (Puxou um pedaço de papel.) Terá de memorizar umas poucas coisas agora e aqui e, depois, queimaremos isto. Creio que isto significará algo para o nosso pessoal lá em Fort Meade. (Começou a ler.) A primeira palavra de código é George. Isto se desdobra em G para grafita... E para evaporar O mensageiro ouvia atentamente. — Ouviu? — sussurrou o Dr. Skarav. — Palavra de código: “N-P-K”. Os sinais auditivos são soberbos. — Ssh... — advertiu seu companheiro. — Olhe para os visores. Há um documento. Que coisa é? Um diagrama do processo! Pode decifrar algumas palavras? O Dr. Skarav franziu a testa fitando a fileira superior de microtelas. Depois falou: — Nitrato amônico? — Isto é um explosivo! Tirou Leuna do mapa logo depois da Primeira Guerra Mundial! Espere... há algo mais. Cainita... — É um mineral, cloreto de potássio... — E também há super... super ... — Superfosfato — disse o Dr. Skarav. — É um processo para a fabricação de fertilizantes mistos. N para nitrogênio, P para fósforo, K para cálio ou potássio. — Neste caso, são idiotas. Ou talvez sejamos nós os idiotas. Eles descobriram que os estivemos seguindo. Fazem-no para zombar de nós. — Não penso assim — objetou o Dr. Skarav. — Algumas vezes, eles incluem muita informação inútil para encobrir a mensagem verdadeira. Espere um pouco. Algo em código pode vir antes que isto termine. — Creio que o tenho agora em todos os detalhes — disse o americano. — Então, acabamos. Ou quase — o agente brilhou com um dos seus raros sorrisos. — Desejo mandar-lhes mais uma mensagem. Será uma em linguagem franca. Bateu com sua mão em concha numa mariposa em cima da 138

manga do seu paletó, pegou-a e a manteve a uns trinta centímetros de seu rosto. Depois, pediu: — Por favor, quer desligar o controlador? — Aha! Viu? — os grandes olhos do Dr. Skarav resplandeceram. — Finalmente uma mensagem codificada. Exatamente como havia dito, este negócio de fertilizante era apenas camuflage. Seu parceiro estava igualmente satisfeito: — Indiscutivelmente correto, doutor. O quartel-general passará esse código pelos computadores criptográficos e logo teremos o segredo. Vou levá-lo a Moscou esta noite. Como vai a coisa agora? O Dr. Skarav girou de volta a fita de gravação e começou a ler lenta e cuidadosamente na tela integradora geral: “Grandes bichos têm pequenos bichos Sobre suas costas para mordê-los E pequenos bichos têm bichos ainda menores E assim por diante, ad infinitum...”

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A VOLTA DE ADALBEU Walter Martins

Sala de Comunicações — Depto. de Exorcismos Seção Terra Estágios 3, 6, 8, 16, 279. Adalbeu parou por um instante em frente à sala cuja porta continha os letreiros acima e sorriu para si mesmo, como quem dissesse um “Vá lá!” Um momento depois, no interior da sala, achavase frente a Jean Saint-Petit, chefe do departamento. — Que é que há, Jean? O chefe disse que você andou procurando por mim lá na seção. Alguma coisa funcionando mal por aqui? Sentou-se numa poltrona e tirou um cigarro da incômoda ci-garreira de pele de carneiro. À sua volta, a sala parecia um laboratório de física. Ao lado esquerdo da porta, a estante com medidores, osciloscópios e transformadores; logo a seguir, presas à parede, três prateleiras com peças de reposição, rolos de fios, caixas com válvulas, etc, no outro canto, junto à mesa de Saint-Petit, algo como um grande aparelho de raios-X. Com os pés sobre a mesa, Jean recostava-se numa cadeira que parecia ser incrivelmente confortável. — O problema é simples — disse êle — e preciso mesmo de sua ajuda. Vou ser breve: estamos sem gente no momento e temos um chamado da Terra. Adalbeu não disse nada; calmamente soltou uma pequena língua de fogo da boca e acendeu o cigarro. Seus chifres eram bem 140

mais curvos que os de Jean e sua pele mais escura. Tragou profundamente e ficou encarando o amigo. Por fim respondeu: — Você sabe que eu não posso mais ir à Terra... Não fiz curso algum sobre as novas religiões; creio que o meu tempo de exorcismos já passou. Por que não vai você mesmo? Nesse momento uma pequena lâmpada vermelha piscou ao lado do grande painel branco, colocado acima do aparelho de raios-X. Com a ponta do rabo, que chicoteava a esmo por entre os papéis e relatórios, Jean apertou um botão na mesa. Na tela surgiu o vulto de um homem numa encruzilhada. Logo a seguir o técnico comprimiu novamente o botão e a figura sumiu da tela, que voltou à brancura inicial. — Estou, sem gente — disse novamente, num tom entre lamúria e zanga —- e essa já é a terceira vez que esse camarada vem à encruzilhada e não obtém nada. NADA, entendeu? O próprio contínuo, o varredor da seção, já foi mandado noutra missão. Se um pobre coitado, quase analfabeto, pode ir à Terra, por que você, o importante Adalbeu da Seção de Aquecimento Central, não pode ir também? Será que já não mais existe camaradagem entre nós? — Ouça — pediu Adalbeu — por quanto tempo é isso? — Quinze minutos, meia hora no máximo... Aceita? O cigarro de Adalbeu foi ao chão e êle apagou-o com o pé. Levantou-se e começou a passear pela sala. — Quinze minutos — repetiu — isso é fantástico! Lembro-me que no meu tempo a viagem demorava várias semanas... Tínhamos que sair lá pelas profundezas do território, entregar cartões visados ao canzarrão... Com mil bondades! Bem que era divertido! Virou-se para o amigo, pensou um instante e em tom bem mais sério falou: — Tenho outra idéia: eu fico por quinze minutos no seu lugar e você vai. Prefiro. Jean sorria e fazia-lhe que “não” com a ponta do rabo. Levantou-se também e veio para junto de Adalbeu. — Entenda, meu velho, que eu sou o chefe do departamento e não posso largar isso aqui durante o meu turno. Se acontece alguma coisa e eu não estou no posto, dão-me uma suspensão, rebaixam-me, sei lá! Não ando muito bem visto pelo chefão ultimamente, sabe, e se encrenca alguma coisa e eu não estou... Entenda, diabo! 141

— Há outro problema, Jean. Eu não trabalho em exorcismos há muito, muito tempo. Sou da época dos gênios em garrafa, três pedidos, etc. Não sei nada das crendices atuais, da forma a tomar, daquilo que posso dar ou não. É arriscado para você e para mim. Sentindo que já não seria muito difícil convencer o amigo, Jean voltou à carga. — Quanto aos detalhes, eu o ajudo; a coisa é simplíssima. Veja, vou dar-lhe uma idéia: o país donde vem o chamado chamase Brasil. — Nunca ouvi falar nele — confessou Adalbeu. — Espero que usem garrafa, é como sei trabalhar ... Saint-Petit procurava fazer um sorriso compreensivo. — Sim, usam garrafa, mas não para que você saia pelo gargalo, como nos seus tempos. Há um líquido na garrafa, que é uma oferenda para você percebe? Lá acreditam que somos, assim, como criançolas ou imbecilóides; dão-nos comidas, bebidas, charutos (horríveis, aqui entre nós) e fitas coloridas. — Entendo — disse Adalbeu. — Parece-me grotesco voltarem a esse período; na Idade da Pedra já era mais ou menos assim. E quanto aos pedidos, que querem? O mesmo de sempre? Dinheiro, mulheres, poder? Jeau Saint-Petit sentia-se um tanto humilhado com as explicações. A Terra não havia progredido muito, e em relação aos departamentos de outros planetas o seu era um dos mais fracos. — Isso não vem muito ao caso, mas... ahn... digamos que atravessem um período em que não nos aceitam como sendo muito poderosos. Resumindo: em geral pedem ninharias. Não dá nem para explicar; querem sarar de alguma doençazinha, um aumento no salário, o encontro com a pequena domingo à tarde, etc. A boca de Adalbeu se abriu. — Pela pureza dos Bórgias! Não estamos assim humilhados? E os seus diabos não fazem nada para voltarmos à glória antiga? — Pois lhe digo que os meus diabos fazem tudo o que é diabòlicamente possível fazer; mas não tem adiantado muito. A Terra está um tanto materialista demais, e esse país, esse tal Brasil, ainda é um dos poucos que nos dá um certo valor. Oitenta por cento da população terrestre nos tem em completo descrédito. Adalbeu ainda ficou pensativo por algum tempo, mas finalmente concordou em ir; já que a coisa ficava assim posta, em ter142

mos de amizade, mostraria que podiam contar com a sua. Momentos antes de partir, já dentro da câmara de transporte, ainda ouviu as últimas considerações de Saint-Petit. — E lembre-se, nada de exageros. Satisfaça o pedido de maneira simples e volte. É tarefa das mais fáceis. Boa sorte! A primeira coisa a chamar a atenção de Adalbeu, ao chegar, foi a estranha emanação espiritual que emitia o seu Senhor (bolas! os duzentos anos que servira como gênio de garrafa ainda o levavam a chamar de “Senhor” àquele a quem deveria satisfazer o pedido). Adalbeu permaneceu invisível ao lado do poste. Não haveria tanta pressa assim, e dessa forma poderia compreender melhor como a coisa era feita atualmente. A encruzilhada estava deserta; numa das ruas as casas lhe pareceram simplesmente miseráveis, enquanto na outra as moradias eram bem maiores e mais vistosas, conquanto nessa outra a maior parte do espaço fosse ocupado por terrenos baldios. A iluminação era bem fraca. Voltou a atenção para as oferendas e sentiu vontade de rirse: era mesmo como lhe dissera Jean: charutos, um pòzinho amarelo, um monte de fitas e — lá estava ela! — a garrafa. Sentado em frente a tudo, com as pernas cruzadas, estava um homem ainda jovem. Tinha uma folha de papel na mão e rezava em voz baixa. Adalbeu simpatizou com o tipo. Concentrou-se então na análise da emanação espiritual de seu Sen... do pedinte. Não fazia muito sentido: nela não distinguiu nem fé, nem ardor religioso, nem desespero, nem medo. Não conseguiu classificar que sentimento poderia ser aquele. Antes de materiálizar-se, ainda teve um estranho pressentimento: sempre havia a possibilidade de o pedido feito ser de execução impossível; nesse caso, pela Lei do Mal, não poderia desmaterializar-se de novo, e portanto voltar para casa, enquanto não executasse a ordem. “Há uma chance em um milhão de êle pedir-me o impossível; e, mesmo assim, ainda posso dar-lhe a chance de fazer-me um outro pedido.” Materializou-se. Preferiu usar uma forma o menos aterroriza143

dora possível; fêz-se semelhante ao seu S. . . invocante, e meteu-se num terno preto. O jovem ergueu o olhar lentamente, sem demonstrar medo ou surpresa alguma. — Enfim! De forma que existes mesmo, hem? — Aqui estou para servir-vos, meu. Senhor! (Ah! paciência, jamais conseguiria agir de outra forma, diferente daquela dos áureos tempos em que saía esfumaçante de uma garrafa.) Fazei-me um pedido, e eu vos satisfarei!!! Meu Senhor levantou-se, amassou o papel com as orações, jogando-o em cima das oferendas (mau gosto ou simples má educação? — pensou, o diabo, e bateu com as mãos várias vezes na calça, para limpá-las. Abaixou-se de novo, pegou a garrafa de cachaça (minha oferenda!), meteu-a debaixo do braço, deu-lhe as costas e afastou-se. — Um momento... ! O homem parou e voltou-lhe meio corpo. Tinha a expressão serena, como se aquela situação não o estivesse preocupando muito. — O pedido, Senhor... Que quereis de mim? Basta uma palavra, um pensamento, se quiserdes, e eu vos satisfarei! Pedi! Seu Senhor olhou-o de alto a baixo; mediu-o longamente e com duas passadas despreocupadas, chegou bem próximo de Adalbeu. — Que quero? Talvez queira tudo e ao mesmo tempo nada. Mas, não se preocupe, amigo, que não desejo gastar uma fração que seja do seu poder. Talvez devesse desculpar-me, mas o caso é que fiz isso apenas como uma experiência; não ne interessam os pedidos. Acredite ou não, sou ainda daquelas raras criaturas que sabem o que querem, e mais do que isso, como consegui-lo. Amor... Fortuna... Glória... Poder... tenho um pouco de tudo isso, na dose certa. E com um olhar de desafio: — E o que ainda não tenho, conseguirei por mim mesmo, não tenha a mínima dúvida! Ávido por encontrar um ponto fraco naquele homem, Adalbeu esmiuçava-lhe a mente: apenas calma e serenidade. Não que ali houvesse conformismo e desânimo, pelo contrário: havia desejo, insatisfação, sonhos, ideais, curiosidade... 144

— Desculpe-me, amigo, mas tenho mais que fazer... vá com Deus... — Não! Fazei outro pedido! — Mas não estou lhe pedindo nada. Já lhe disse: não quero nada! Mesmo! — Ouça, digo ouvi... eu poderia tomar esse “vá com Deus” como um pedido, e ir-me mas. . . compreendei!... esse é de impossível execução. — É, mas não posso perder meu tempo aqui em discussões. Se quer ficar, fique, se quer ir, vá-se, mas não me aborreça. Boa noite. Meio horrorizado, Adalbeu viu o homem dar-lhe novamente as costas e dessa vez afastar-se rapidamente. — Pelo amor do Demo! Que faço? Como arrancar um pedido desse demente ? Maçada !... Bem dizia eu a Jean que isso ainda nos arranjaria encrenca. No fim da rua o vulto do meu Senhor já quase sumia na fraca neblina. Impedido de desmaterializar-se pela Lei do Mal, Adalbeu não teve outra escolha senão a de desatar na corrida para não perder de vista o homem. Como esse não estivesse andando muito rápido, logo o alcançou e pôde reduzir a correria a um simples caminhar. Não se aproximou, porém; apenas seguia-o a uma certa distância a fim de não o perder de vista. Depois de dobrar a esquina, o homem seguiu mais um quarteirão e parou a alguns metros da outra esquina. Pouco depois chegava um ônibus; o homem subiu e Adalbeu meteu-se no veículo atrás dele. — Você por aqui? Se resolveu tentar alguma coisa, perde o seu tempo. — Ei! Vai querer viajar sem pagar a passagem? — Como ? Ahn... — rapidamente Adalbeu imaginou o que se passava: aquele transportador era público, mas era preciso pagar. Ah! mas com o quê ? Não materializara dinheiro algum nos bolsos, e além disso não o poderia mesmo ter feito sem saber que moeda usavam no Brasil. — Olhe, eu... — humilhado, lançou um olhar suplicante para o seu “Senhor”, que desatou a rir. — Como é, paga ou não? A mão negra do cobrador segurou o diabo pela gola do paletó. Adalbeu ainda esboçou uma reação, mas recebeu terrível tranco145

que o mandou de encontro a um dos assentos. A velha que viajava acompanhada de um menino, mais à frente, deu um grito; a mulatinha do último banco gritou “polícia!” e o cobrador, depois do sopapo, exclamou algumas palavras que Adalbeu sabia não serem boa coisa. Seu “Senhor” levantou-se e veio em seu auxílio. — Calma, êle é meu amigo; eu pago a dele. Sentados lado a lado, os dois permaneceram em silêncio alguns bons minutos. A seguir Adalbeu tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos; sua materialização havia sido das boas, pois ainda sentia dores nas costas pelo tranco que levara do cobrador e sentia o suor escorrer-lhe pelo corpo. — Que faz você atrás de mim, afinal ? — O pedido! Não entendeis ? Não posso voltar sem um pedido satisfeito. Qualquer coisa serve. Simplesmente sugira. — É realmente fantástico. Juro-lhe que por, essa eu não esperava. Acontece, amigo, que, como eu lhe disse, estou decidido a não lhe pedir nada. Trate pois de arranjar um emprego e aprender a andar no bom caminho daqui por diante. — O QUÊ!!?? A voz de Adalbeu elevara-se bem acima do que seria normal numa conversa em um ônibus quase vazio às três horas da madrugada; novamente a velha e o menino o olharam com cara feia, a mulatinha chegou a levantar-se, assustada, e o cobrador simplesmente deu um murro no suporte metálico, como a indicar que logo, logo, alguém seria posto para fora. — Vovó! Aquele homem tem rabo! O “Senhor”, o cobrador, a velha, a mulatinha (e dessa vez o próprio motorista, que havia parado num ponto) olharam para Adalbeu: chicoteando molemente ao lado de sua perna esquerda, lá estava o rabo. Fora sempre tão cômoda a posse de uma cauda, que êle sempre se fazia presente com ela, já que isso não importava em grande coisa. Não dessa vez. O motorista levantou-se e veio até mais perto para ver melhor; trocou um olhar sinistro com o cobrador e disse aos dois: — Vamos, desçam antes que eu chame um guarda. — Moço! — gritou a velha — há uma viatura parada ali na esquina. 146

Adalbeu e seu “Senhor” ficaram na expectativa, enquanto o garoto descia do ônibus e ia buscar a polícia. Os policiais que pouco depois entraram e dirigiram-se a eles pareciam dispostos a resolver a situação de maneira pouco cortês (afinal não é impunemente que se aborrece três pacíficos policiais que tiveram de interromper sua audição de música suave pela Rádio Bandeirantes...). — Vocês dois, nos acompanhem, e não tentem oferecer resistência... VAMOS! Adalbeu viu que seu “Senhor” já começava a perder a paciência. — Olhem aqui, seus imbecis... Jean Saint-Petit sentiu um cheiro horrível vindo do seu lado direito, junto à máquina transportadora; virou-se e seu queixo quase se deslocou quando abriu a boca. — Diabo do inferno! que faz você aqui nesse estado? A face de Adalbeu estampava ao mesmo tempo furor e alívio; a passos lentos saiu da máquina e chegou-se até a mesa de Jean. — Não deixa de ter sido uma boa lição para mim. Ajudar os amigos... Que fêz você com todo o seu progresso, que não conseguiu arranjar um meio de auxiliar-me? Caio nas mãos de um cretino amalucado — se é assim que se pode chamar a um camarada daqueles! — e por pouco, meu caro Jean, que o seu amigo Adalbeu não fica para sempre naquele céu. — Pelo menos você está aqui de volta. Mas que estado é esse, meu velho? E cuidado para não sujar meu laboratório! Onde se meteu,você? dentro duma privada ou andou brincando de esconde-esconde pelos encanamentos de esgoto? — Oh! nada disso..... — a voz de Adalbeu era pura e sofrida ironia — o que se deu foi algo muito mais simples. Imagine que o sujeito do chamado não queria nada, percebe ? Chamou-me só por curiosidade, para fazer uma experiência ou algo semelhante. Tentei por todos os jeitos fazê-lo entender que devia fazer-me um pedido, mas quanto mais eu insistia, mais êle teimava em não querer fazê-lo. Por fim, como eu o estivesse seguindo por toda parte, acabamos arranjando encrenca e indo parar na polícia. Quando o delegado nos disse que pela confusão criada iríamos ficar os dois por uma semana na prisão... bem, nesse ponto êle achou que isso era demais, perdeu de todo a paciência e disse uma meia dúzia de palavrões. É essa a história. 147

— Essa a história!? E o pedido, e esse seu estado? — Bem, digo... êle na verdade não fêz nenhum pedido claramente, mas quando êle mandou os policiais mais a mim a um certo lugar, eu tomei a frase como um pedido. — Mas você está aqui agora. — Oh! — Adalbeu fêz um muxoxo com o rabo — êle não especificou o tempo que deveríamos permanecer por lá. E rindo: — De minha parte fiquei aliviado por sair da Terra, mas você precisava ver era a cara dos guardas !...

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O SÉTIMO METAL Isaac Asimov Trad. de Walter Martins

Como já disse outras vezes, é difícil para um químico como eu — isolado em minha torre de marfim — demonstrar competência nos aspectos práticos dessa ciência. Assim sendo, é sempre com o coração nas mãos que vejo alguém aproximar-se de mim com um problema terra-a-terra em química. O resultado é sempre uma humilhação pessoal. Bem, nem sempre. Certa vez, nos dias em que eu ainda estudava para o meu doutoramento, minha mulher chegou até mim, alarmada. — Aconteceu alguma coisa com minha aliança — disse ela. Encolhi-me todo, pois embora ainda estivesse no início de minha carreira como químico já tivera oportunidade de demonstrar em várias ocasiões a minha incompetência. Não me agradou portanto a perspectiva de tê-la de fazer novamente. — O que aconteceu? — perguntei. -— Ela virou prata — respondeu, não sem antes lançar-me um olhar de censura. Encarei-a estupefato. — Mas isso é impossível! Ela passou-me o anel e esse, na verdade, possuía a aparência de prata, embora fosse sua aliança de casamento, com gravação e tudo. Ela ali esperava minha resposta e eu, pouco à vontade, sentia sua suspeita de que eu lhe tivesse comprado um anel de ouro ordinário. Contudo eu não podia pensar em nada! — Simplesmente não posso explicar isso — disse eu. — Com 149

exceção do mercúrio, não existe nada no mundo... — Mercúrio? — disse ela, subindo o tom de voz. — Como soube você a respeito do mercúrio? Eu dissera, aparentemente, a palavra mágica. Vi imediatamente o que havia acontecido. Estufando o peito e fazendo um ar de alta condescendência, disse-lhe: — Para os olhos de um químico, minha cara, é óbvio que o que temos aqui é amálgama de ouro, e que você esteve manuseando mercúrio sem, primeiro, remover sua aliança. Foi isso mesmo, claro. Eu tinha acesso ao mercúrio do laboratório, ficara fascinado com éle, e trouxera um pouco num frasco para casa, a fim de entreter-me de vez em quando. (Êle rola livremente, de maneira fascinante, e não olha coisa alguma.) Minha esposa achou-o no frasco e não pôde resistir a jogar uma gota em sua mão, para também brincar com êle. Acontece que ela não retirou a aliança, e mercúrio rapidamente mistura-se com o ouro para formar um amálgama prateado. Assim, a despeito desse caso, seriamente dramático e altamente pessoal, relacionado com a fascinação do mercúrio, já tive oportunidade de discutir, no mês passado (“O Primeiro Metal”), os sete metais conhecidos pelo Homem na antigüidade — sem uma palavra sequer para o mais inusitado: o mercúrio. Isso contudo não foi negligência; eu o estava reservando para um artigo só dele. O mercúrio é dotado de características excepcionais. Estou certo, por exemplo, que era o menos familiar dos sete metais e firmemente suspeito que foi o sétimo (e último) metal a ser descoberto pelos antigos. Quanto a ser o menos familiar, basta ver o que a Bíblia tem a dizer sobre êle, ela que é um longo e complexo livro, escrito por pessoas com pouco ou nenhum interesse por ciência. Podemos considerá-la como a voz do antigo não-cientista. O ouro, evidentemente, é o padrão de excelência e perfeição para todos, mesmo para os escritores bíblicos. Dizer que algo é mais valioso do que ouro, é dar-lhe a mais alta consideração de valor. Assim: Salmo 118,127: Amo portanto seus mandamentos mais que o ouro: sim, acima do fino ouro. E, na qualidade de não-cientistas, que dizem os escritores bíblicos a respeito dos outros metais? Por questão de economia, 150

procurei por um versículo que mencionasse tantos metais quanto possível, e eis aqui um de Ezequiel em citação de Deus ameaçando os pecadores entre os Judeus: Ezequiel, 22,20. Assim como eles juntam prata, latão, ferro, chumbo, e estanho para o meio da fornalha para soprar o fogo por cima, para derretê-los: assim também eu os juntarei em minha fúria e minha cólera e os deixarei derreter*. Os pecadores são comparados aos vários metais, notadamente excluindo o ouro, para mostrar como eles são imperfeitos. Aqui, por sinal, devemos nos lembrar que as palavras em inglês da versão do Rei Jaime** são da tradução do original hebreu, e podem ser incorretas. A palavra hebraica “nehosheth” era usada indiscriminadamente para o cobre puro ou o bronze, uma liga de cobre e estanho. Nessa versão ela é invariavelmente traduzida por latão, que é uma liga de cobre e zinco, e não é o que os escritores da Bíblia tinham em mente. A edição-padrão revisada substitui todos os “latão” na versão do Rei Jaime por “bronze” ou “cobre”. Se substituirmos latão por cobre no versículo de Ezequiel, vocês verão que consegui, usando apenas dois versículos bíblicos, mencionar seis dos antigos metais: ouro, prata, cobre, ferro, estanho e chumbo. Isso deixa de lado apenas o mercúrio. Que tem a Bíblia a dizer sobre êle? A resposta é: nada! Nem uma palavra! Nem no Velho Testamento, ou no Novo, ou mesmo no Apócrifo. Parece claro que dos sete metais, o mercúrio era o mais exótico, o menos usado nas necessidades diárias, o mais próximo daquilo que hoje em dia chamaríamos “uma curiosidade de laboratório”. Os não-cientistas que escreveram a Bíblia estavam tão pouco familiarizados com êle, que jamais tiveram razão para mencioná-lo, mesmo em linguagem figurada. * Tradução livre da citação; em português, no texto da Vulgata Sixto-Clementina» se lê: na primeira citação, «Salmo 118,127: Por isso amo os teus mandamentos, mais do que o ouro, do que o ouro finíssimo»; na segunda, «Ezequiel, 22,20: Como quando se juntam a prata, e o cobre, e o estanho, e o ferro, e o chumbo, no meio da fornalha, e se acende nela o fogo para os fundir. Assim é que eu vos juntarei no meu furor e na minha ira; e eu me satisfarei, e vos fundirei». (N. do Trad.). ** Assim conhecida por ter sido autorizada pelo Rei Jaime, em 1611, na Inglaterra. (N. do Trad.).

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Quanto a ser o último que foi descoberto: isso parece-me não ser mistério. Êle é comparativamente raro, já que dos sete, somente a prata e o ouro são menos comuns. Nem tampouco temos contato com barras de mercúrio, já que êle é líquido. O que levou à sua descoberta foi a casualidade de que um de seus minérios importantes é brilhantemente colorido.” Esse minério é o “cinábrio”, que quimicamente falando é sulfeto de mercúrio, um composto de mercúrio e enxofre. Tem côr vermelho brilhante e pode ser usado como pigmento e quando assim empregado tem o nome de vermelhão. O cinábrio deve ter tido demanda considerável e, indubitavelmente, deve ter havido ocasiões em que foi aquecido acidentalmente até o ponto em que se decompôs e libertou gotas de mercúrio metálico. Há evidências nos túmulos egípcios de que o mercúrio era conhecido naquela terra tão longe quanto 1500 a.C.; isso soa. incrivelmente antigo, mas compare-se com o cobre, a prata e o ouro, que já eram conhecidos 4000 anos a.C. Mesmo depois de ter sido isolado parece que houve dificuldade em reconhecê-lo como um novo metal. O fato de ser líquido deve tê-lo feito parecer demasiado diferente dos outros metais, para se tomá-lo como tal. Talvez fosse apenas um dos outros metais em forma líquida. Havia o prateado de sua aparência. Poderia ser, então, prata líquida. A prata, em sua forma sólida comum, podia ser derretida, se aquecida até uma temperatura bem elevada; mas o mercúrio já era líquido a temperaturas comuns. Para os antigos, que com ela trabalhavam, tal diferença não seria por certo tão significante como o é para nós. Se podia haver prata líquida a quente, por que não a frio? Em todo o caso, qualquer que fosse o processo de pensamento dos primeiros descobridores do mercúrio, fica o fato de êle ter sido o único dos sete metais a não receber seu próprio nome. Aristóteles chamou-o de “prata líquida” (em grego) e, nos tempos de Roma, o médico grego Dioscórides chamou-o de “prata aquosa”, que é essencialmente a mesma coisa. O último nome foi “hydrargyros” em grego e tornou-se “hydrargyrium” em latim. E de fato, o símbolo químico para o mercúrio permanece Hg, até hoje, em memória do nome latino. O escritor romano Plínio, chamou-o de “argentum vivum”, 152

isto é, “prata viva”. A razão para isso é que a prata comum era sólida e inerte (ou seja, “morta”) enquanto que o mercúrio agitava-se e movia-se sob o menor impulso. Uma gota, ao cair, estilhaçava-se e as gotículas partiam em todas as direções: era “viva”. Mesmo em inglês, um dos nomes usados foi quicksilver (silver = prata). O termo hoje em dia parece estranho, pois quick tem agora o significado de rápido; no entanto o sentido antigo era outro, era sinônimo de “vivo”. Aos poucos passou a ser aplicado às características mais evidentes de vida, uma das quais é o movimento rápido. Na verdade existem formas de vida tais como as esponjas, ostras e musgos que não apresentam movimentos perceptíveis, mas o liguajar cotidiano não se importa com esses pormenores isolados. Foi sempre evidente a distinção entre um cavalo de corridas e um de passeio. Desse modo, o significado de quick passou de “vivo” para “rápido”, que é o sentido atual. Se até no inglês antigo, portanto, havia referência a uma “prata viva” — de onde veio, afinal, o nome “mercúrio”? Os alquimistas da Idade Média dedicavam-se ao seu trabalho de maneira mística. Desde que a maioria deles (nem todos!) eram incompetentes, a melhor maneira de dissimularem suas deficiências era recorrer a mistérios nebulosos. O que o público não pudesse entender, também não poderia explicar. Era natural, portanto, que os alquimistas preferissem uma linguagem metafórica. Havia sete metais diferentes, como havia também sete diferentes planetas, e isso certamente não poderia ser coincidência, poderia? Por que não falar, então, de planetas, quando se quisesse dizer metais? Assim, os quatro planetas mais brilhantes na ordem decrescente de brilho eram o Sol, a Lua, Vênus e Júpiter. Por que não correlacioná-los com o ouro, a prata, o cobre e o estanho, respectivamente, já que eram os quatro metais mais valiosos em sua ordem decrescente de valor? Quanto aos demais... Marte, o planeta vermelho do deus da guerra, é naturalmente o ferro, metal fornecedor das armas de guerra. (Na verdade, o vermelho de Marte pode ser devido à ferrugem que cobre seu solo. É esse tipo de coincidência que leva os místicos modernos a imaginar se “não haveria algo mais na alquimia”. Em oposição a isso, basta dizer apenas que qualquer sucessão aleatória de sílabas está sujeita a formar palavras aqui e ali, 153

e se separarmos cuidadosamente as palavras, sem tocar no resto, poderemos até nos convencer de que o absurdo faz sentido.) O moroso Saturno, o mais lento entre os planetas, fica naturalmente associado ao chumbo, o padrão proverbial de peso e estabilidade.. Mercúrio, por outro lado, a mover-se de um lado a outro do Sol, lembra as gotículas fugidias do metal líquido. Algumas dessas comparações ainda perduram na forma de expressões antigas para certos compostos. Nitrato de prata, por exemplo, surge em alguns textos antigos como “cáustico lunar”, pela suposta relação entre a Lua e a prata. Da mesma maneira, alguns, compostos de ferro usados como pigmentos são por vezes chamados de nomes como “vermelho de Marte” e “amarelo de Marte”; o envenenamento por chumbo traz ainda o nome de saturnismo, e assim por diante. O único planeta a entrar no domínio da química moderna de maneira respeitável foi Mercúrio, tornando-se o nome do metal e superando as antigas associações com a prata (como hidrargirio). Talvez o fato se explique por terem os químicos reconhecido que seus demais nomes não eram independentes e que o mercúrio não tinha nada com prata, viva ou líquida. Por estranho que pareça, outros metais foram designados por planetas também em tempos modernos, e esses novos nomes se firmaram também. Em 1781, o planeta Urano foi descoberto e em 1789, quando o químico alemão Martin Heinrich Klaproth descobriu um novo metal, batizou-o com o nome do novo planeta, daí surgindo o urânio. Depois, em 1940, ao serem descobertos dois novos metais além do urânio, foram eles designados segundo Netuno e Plutão; eram eles o netúnio e o plutônio. Até mesmo os asteróides tiveram sua vez. Os dois primeiros asteróides, Ceres e Palas, foram descobertos em 1801 e 1802, respectivamente. Klaproth, em 1803, descobriu um novo metal e prontamente designou-o como “cério”; mais tarde, no mesmo ano, um químico inglês, William Hyde Wollaston descobria ainda um novo metal, chamando-o de “paládio”. O mercúrio teve méritos fora do comum durante a Idade Média. Desde a antigüidade até os tempos medievais, a principal fonte de mercúrio foi a Espanha, e os seus reis mouros usaram-no espetacularmente. Abd ar-Rhamam III, o maior deles, construiu um palácio perto de Córdoba lá por 950, no pátio do qual uma fonte de 154

mercúrio jorrava continuamente. Um outro rei teria dormido num colchão que boiava numa banheira de mercúrio. Outra distinção ganhou ainda o mercúrio nos tempos medievais, já essa de natureza mais abstrata. Parece que um dos propósitos principais dos alquimistas da Idade Média era a conversão de um metal barato, como o chumbo, em outro valioso, como o ouro. Que isso pudesse ser feito, parecia certo, partindo da antiga noção dos gregos de que toda a matéria era montada pela combinação de quatro substâncias básicas, ou “elementos”, assim chamados: “terra”, “água”, “ar” e “fogo”. Não eram esses “elementos” aquilo que chamamos ordinariamente por esses nomes, mas abstrações que melhor seriam traduzidas por “sólido”, “líquido”, “gás” e “energia”. Para aqueles tempos, até que era um bom palpite. Esses alquimistas, contudo, foram além das noções dos gregos. Pareceu-lhes que os metais eram tão afastados das substâncias “térreas” (como as rochas), que deveria haver em especial um princípio metálico envolvido na coisa. Esse princípio metálico, mais “terra”, daria um metal. Se fosse possível localizar tal princípio metálico, seria possível acrescentar-lhe “terra” em diferentes proporções e ter-se um metal qualquer, incluindo o ouro. E, naturalmente, adicionando “terra” a um princípio metálico, adicionava-se solidez a êle e produzia-se um metal sólido. Em que pé ficaria o mercúrio então? Sendo líquido, seria por causa de ter muito pouca “terra” em si mesmo? Talvez esse pouco que tivesse, poderia ser removido de alguma forma, deixando apenas o próprio princípio metálico. Muitos alquimistas puseram-se a trabalhar infatigàvelmente com mercúrio, e desde que os vapores mercuriosos causam envenenamento cumulativo (ou seja, o metal não é eliminado pelo organismo), fico a imaginar quantos desses investigadores não morreram prematuramente. (Os vapores afetam a mente, mas suponho que seja difícil saber-se quando um alquimista fala sua algaravia pra valer). Por isso, chego a preocupar-me com aquele rei mouro que dormia na banheira de mercúrio. E esse, como se sentiu com o passar dos meses? Alguns alquimistas devem ter pensado a seguir que o ouro na verdade colocava-se singularmente entre os metais por sua côr amarela; logo, aquilo que deveria ser adicionado ao mercúrio (prateado por si mesmo) deveria ser uma “terra” amarela. O candidato 155

óbvio para amarelo seria o enxofre, por si mesmo extraordinário, pois diferentemente das demais “terras” podia ser queimado, produzindo misteriosa chama azul e odor sufocante, ainda mais misterioso. Parecia fácil, pois, agarrarem-se à idéia de que mercúrio e enxofre representariam os princípios da metalicidade e da inflamabilidade, respectivamente. A combinação dos dois juntaria, portanto, fogo e solidez ao mercúrio, trazendo-o de líquido prateado a sólido dourado. Efetivamente, mercúrio e enxofre combinavam-se formando cinábrio. Esta era uma “terra” vermelha comum, sem nada de ouro, mas o glorioso sonho dos alquimistas raras vezes se deixava perturbar pelo comezinho da realidade. Essas teorias medievais lentamente sucumbiram no curso do século XVIII, durante o qual a verdadeira química atravessou sua infância vigorosa. Nesse século o papel do mercúrio, como princípio metálico, recebeu um acachapante contra golpe. Na qualidade de “princípio”, êle deveria permanecer sempre líquido, mas assim era? O ano de 1759 foi extremamente frio em São Petersburgo, na Rússia, e uma tempestade no dia de Natal fêz o mercúrio baixar incrivelmente nos termômetros. O químico russo Mikhail Vassilievich Lomonosov, tentou fazer a marca da temperatura baixar ainda mais, envolvendo o termômetro numa mistura de ácido nítrico e neve. A coluna desceu até - 39 °C e aí parou. Ficara congelada! O mundo, pela primeira vez, via mercúrio sólido — um metal como outro qualquer. Já nessa época o mercúrio apresentava um valor que de longe superava seu falso papel de princípio metálico. De certa forma, esse novo valor baseava-se em sua densidade, que é de 13,6 vezes a da água. Um litro de água pesa 1 kg; um litro de mercúrio pesa 13,6 kg. Essa é uma densidade assombrosamente alta; não apenas o aço bóia no mercúrio, mas igualmente o chumbo. De certa forma não se espera isso de um líquido, já que quase toda nossa experiência com líquidos refere-se à água. Assim, qualquer jovem estudante, ao enfrentar pela primeira vez um jarro contendo uma quantidade razoável de mercúrio, sente-se espetacularmente maravilhado. Se lhe pedirmos, casualmente, para pegar o jarro e car156

regá-lo para outro lugar, êle automaticamente agarrá-lo-á com a mão e dar-lhe-á um impulso correspondente ao que daria para um jarro com água, do mesmo tamanho. E, evidentemente, o mercúrio age como se o jarro estivesse pregado à mesa. Em 1643, o físico italiano Evangelista Torricelli fêz uso da densidade do mercúrio. Preocupava-se êle com o problema de que uma bomba hidráulica podia elevar uma coluna de água somente à altura de cerca de 10 m acima do nível inicial. Supôs que o trabalho de elevar aquela coluna de água era feito pela pressão atmosférica; uma coluna de 10 m de altura, de água, exercia na sua base uma pressão igual à pressão do ar, e desse modo a coluna não podia ser elevada acima desse limite. Para testar sua idéia mais convenientemente (uma coluna de 10 m de altura é algo incômodo de se manejar), Torricelli usou mercúrio, o mais denso líquido conhecido. Uma coluna de mercúrio (13,6 vezes mais denso do que a água) produziria tanta pressão em sua base, como uma coluna de água 13,6 vezes mais alta. Se 10 m de água equilibravam a pressão total do ar, então cerca de 760 mm de mercúrio também o fariam. Torricelli então encheu um tubo de um metro de comprimento com mercúrio e emborcou-o numa vasilha também contendo mercúrio. O tubo começou a esvaziar-se e logo parou: a altura da coluna alcançou os 760 mm e aí ficou estacionaria, equilibrada pelo ar. Torricelli havia demonstrado seu ponto de vista e ainda inventado o barômetro. Para o mercúrio iniciava-se uma nova carreira, como substância ímpar (um líquido altamente denso e condutor de eletricidade), adaptada a inúmeros usos em instrumentos científicos. Apenas de passagem: se o ar fosse igualmente denso lá para cima, como o é aqui na superfície da Terra, poder-se-ia calcular facilmente qual a altura da atmosfera. O mercúrio é 10 560 vezes mais denso que o ar ao nível do mar; assim, pois, uma coluna de mercúrio equilibraria outra de ar 10 560 vezes o seu comprimento. Isso dá 760 mm x 10 560, cerca de 8 km de ar. O ar contudo, não é igualmente denso aqui em baixo e nas alturas; torna-se menos denso conforme subimos e estende-se, portanto, a maiores alturas. De todos os metais conhecidos dos antigos, o mercúrio tinha o menor ponto de fusão. Era o único metal a permanecer líquido a 157

temperaturas ordinárias. Desde esses tempos antigos, os químicos descobriram dezenas de outros novos metais, mas nenhum deles consegue abalar o recorde do ponto de fusão do mercúrio. Era e ainda é o campeão. Contudo, um bom número de metais descobertos em tempos modernos, funde-se à temperatura do chumbofundido e menos ainda. Eis a lista: Metal

Ponto de fusão (0C)

Mercúrio

-39

Césio

28

Gálio

30

Rubídio

38

Potássio

62

Sódio

97

Índio

156

Lítio

186

Estanho

232

Bismuto

271

Tálio

302

Cádmio

321

Térbio

327

Chumbo

327

E aí temos os quatorze metais de menor ponto de fusão. Cinco dos oito mais baixos são os “metais alcalinos”, que na ordem crescente de pesos atômicos são o lítio, o potássio, o sódio, o rubídio e o césio. Note-se que os pontos de fusão são 186, 97, 62, 38 e 28, respectivamente. Os pontos de fusão descem conforme os pesos atômicos sobem. O ponto de fusão do césio é segundo apenas para o mercúrio (para metais estáveis, digamos). Uma temperatura de 28 °C indica que êle ficaria líquido por muito tempo num dia quente de verão, e o césio é duplamente mais comum do que o mercúrio. Poderíamos brincar com o césio, num dia suficientemente quente, da mesma forma como brincamos com o mercúrio? Por certo que não. Todos os metais alcalinos são extrema158

mente ativos e reagem violentamente, entre outras coisas, com a água. Deixe os metais alcalinos entrarem em contato com a camada de suor de sua mão e você terá um bom motivo para arrependerse. Desde que os metais alcalinos tornam-se mais ativos com o aumento de seu peso atômico, o césio é, portanto, o pior do grupo que citei. Nada de brincar com o césio! Há ainda um sexto metal alcalino, o frâncio, com peso atômico ainda maior que o do césio. É radioativo e só foi preparado em quantidades mínimas; suas propriedades químicas não são conhecidas. Pode-se, contudo, vaticinar que seu ponto de fusão seria ao redor dos 23° C e êle ficaria certamente líquido durante (quase) todo um verão nos trópicos. No entanto, junte sua atividade química, sua radioatividade, e ainda o fato de que apenas alguns átomos de cada vez podem ser obtidos, e o melhor é esquecer o frâncio. Os metais podem ser misturados para formarem ligas, e essa mistura de metais geralmente possui um ponto de fusão menor do que qualquer um dos componentes puros que formam a liga. Suponha, por exemplo, que derretamos juntamente 4 partes de bismuto, 2 partes de chumbo, 1 parte de estanho e 1 parte de cádmio, e deixemos a mistura solidificar. O resultado é conhecido como “metal de Wood”. Conquanto nenhum dos seus componentes metálicos derreta a uma temperatura inferior a 232 °C, a liga funde a 71 °C. É uma das chamadas “ligas fundentes”; a descrita acima fundindo à temperatura inferior ao ponto de ebulição da água. A liga de Lipowitz, na qual a proporção de chumbo e estanbo são aumentadas ligeiramente, fundirá a temperaturas mais baixas, da ordem de 60 °C. Os usos principais para as ligas fundentes encontram-se nos pinos de segurança em panelas de pressão ou chuveiros automáticos de segurança. A receita pode ser ajustada para dar-lhes um ponto de fusão pouco acima do ponto de ebulição da água. Uma elevação demasiada na temperatura os derrete e permite, num caso, o escape do vapor da panela, aliviando o perigo da pressão; no outro, a passagem da água pelo chuveiro. Servem também para fazer gozação com os amigos. Uma colherzinha feita com a liga de Wood, é entregue a alguém que, inocentemente, agita seu café com ela enquanto conversa animada159

mente. Para os entendidos em tais brincadeiras, é uma delícia ver a expressão na cara da vítima quando percebe que está segurando apenas parte do cabo da colher. Pode-se também fazer ligas com os metais alcalinos, as quais derreterão a temperaturas mais baixas do que qualquer desses metais independentemente e que poderão em alguns casos, fundir a temperaturas mais baixas do que o mercúrio. Mas suponha que nos restrinjamos apenas aos metais que podemos manipular impunemente.. Os metais alcalinos e suas ligas não podem ser tocados. Nem tampouco o mercúrio sólido, que é por demais frio para se ter graça em tocá-lo. Dos metais que fundem mais facilmente, quais os que podem ser tocados? Existem as ligas fundentes, como as que acabei de mencionar, mas fundindo abaixo de todas elas encontra-se o gálio —- um metal puro, que pode ser tocado, e funde a apenas 30 °C. E agora, que cheguei até êle, pretendo continuar com sua história no próximo número. 128

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CARTAS

Magazine de Ficção Científica manterá uma seção de conversa com seus leitores, por motivos óbvios. Tratando-se, como se trata, da única revista no gênero no Brasil, reunirá, certamente, em torno de suas páginas, leitores que até o momento não dispunham de meios para diálogo aberto sobre esse gênero literário que empolga todos os que o descobrem. Nesta seção, amparada pela Associação Brasileira de Ficção Científica, responderemos a todas as perguntas, consultas e curiosidades dos leitores, seja sobre ficção científica (autores, obras, detalhes biográficos, etc), seja sobre ciência, neste caso até onde o pudermos fazer com a ajuda de consultores especializados. Por razões técnicas, esta seção, será efetivamente aberta apenas a partir do quinto número do MFC. As cartas recebidas até lá serão respondidas diretamente aos interessados. Os escritores que desejem submeter seus trabalhos à nossa apreciação para publicação na revista, têm toda a liberdade para nos consultar ou mandar diretamente seus contos. Tanto para consultas como para colaboração, queiram dirigir-se a Jeronymo Monteiro — Avenida Vieira de Carvalho, 179 Ap. 9-D — São Paulo.

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