Magazine de Ficção Cientifica No 10
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MAGAZINE DE FICÇÃO CIENTÍFICA N0 10 - JANEIRO DE 1971
CONTOS ESTRANGEIROS A Garota com Olhos de 1000 - Ron Webb Encontro em Lankhmar - Fritz Leiber A Execução Fatal - Poul Anderson Tlön, Uqbar, Orbis Tertius - Jorge Luis Borges CONTO BRASILEIRO Alfredo - Luciano Rodrigues CIÊNCIA Preenchendo as Lacunas - Isaac Asimov
Capa de Jack Gaughan José Bertaso Filho, DIRETOR Flávio J. Cardozo, DIRETOR DE REDAÇÃO João Freire, GERENTE Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Science Fiction” — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada mensalmente pela Revista do Globo S. A.
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A GAROTA COM OLHOS DE 100° Ron Webb Trad. de Aydano Arruda Encontrei-me com Jeannie, pela primeira vez, em meu apartamento, diante de uma garrafa de fino Scotch. Antes disso, encontrei-a em um bar. Mas talvez seja melhor eu explicar. Tudo começou no Five O’Clock Club, à lh da madrugada — uma hora depois de iniciado o dia do meu aniversário. Eu estava sentado sozinho no bar, pois tivera uma briga com minha garota e “mandava, umas e outras” com Al, o empregado do bar. Mencionei que era o dia do meu aniversário e como era chato não ter gente com quem comemorar e tudo o mais, quando Al disse: — Que vergonha, Danny! — e dirigiu-se para a sala do fundo. Voltou um minuto depois com uma velha e empoeirada garrafa de Scotch que surripiara do estoque dos patrões. — Para você — disse êle — e minhas felicitações. O velho não perceberá a falta: encomenda essa marca às caixas, em uma firma estrangeira, mas só abre uma, talvez duas, por ano. Soprei a poeira para ler o rótulo, mas era uma língua que eu nunca vira antes. — Que é isto? — perguntei. — Scotch. Pelo menos, é o que o velho diz. Êle nunca abriu uma garrafa aqui. Leve-a para casa e esqueça-se da vida. Agora, preciso fechar. Assim, fui para meu apartamento. Depois de deixar cair alguns discos de blues na máquina, cortei o selo da garrafa e quebrei uns pedaços de gelo. Embora alguma coisa balançasse dentro da garrafa, a uca não saía. Estava quase a ponto de me chamar de otário quando vi minúsculos dedos aparecendo na beirada do gargalo. Depois, com uma nuvem de fumaça, a pequenina dama apareceu 5
— uma dama pequenina, boa e nua. — Sou Jeannie — disse a garota em miniatura. — Estou maluco — respondi. Ao que ela começou a crescer, à maneira de Alice no País das Maravilhas, até se transformar naquele suculento tipo à Las Vegas. Alta, de pernas esbeltas e uma parte superior bem abastecida. Seus olhos eram côr-de-âmbar, o que combinava com os cabelos. Imaginei que o truque fora feito com espelhos ou coisa semelhante. Quero dizer, quem ia esperar que uma suculenta boneca daquelas saísse de uma garrafa? Por um minuto, ela ficou parada em pé sobre a mesa de café, com aquela expressão sonolenta nos olhos. Parecia bem real. Tinha cheiro real, também... uma espécie de mistura de almíscar e sexy, com um toque de vinho fino. Poderia ser mágica de salão, mas quem estava se importando com isso? — Vou ajudá-la a descer — disse eu, estendendo as mãos em sua direção. O olhar sonolento desapareceu e seus olhos arregalaram-se. Então, ela deu um gritinho e saltou da mesa, derrubando, ao mesmo tempo, a garrafa. Correu para o banheiro. Eu também corri, antes que ela tivesse tempo para fechar a porta. Agarrou uma toalha e enrolou-se nela. — Não me toque — disse, com os olhos muito grandes, saindo depois correndo do banheiro. A toalha balançava-se, abrindo-se atrás e expondo o substancioso traseiro, que tinha uma covinha. A covinha afastou-se, oscilando torturantemente, quando ela entrou na sala de estar e sentou-se no sofá, enrolada na toalha. — Eu vou gritar — ameaçou. Decidi que discrição era a melhor atitude a tomar. Sentei-me do outro lado da sala. Afinal de contas, ainda nem sequer nos conhecíamos e Jeannie era evidentemente do tipo tímido. — Alô — comecei, em tom casual. — Alô — respondeu ela, desconfiada. Pude ver que aquilo não nos levaria a lugar algum. — Você fica sempre dentro de uma garrafa de Scotch? — Quase sempre — respondeu, começando a tranqüilizar-se um pouco. — Preciso ficar lá até que tirem a rolha. — Já haviam tirado a rolha alguma vez, antes? Seus olhos adquiriram uma expressão sonhadora. — Sim. 6
Eu também estava começando a ficar um pouco sonhador: — Que aconteceu? Ela franziu um pouco a testa e respondeu: — Não me lembro. Tive a impressão de que estava mentindo. Tentei um gambito diferente: — Já viveu dentro de uma lâmpada? Ela se ofendeu: — Eu? Dentro de uma lâmpada velha e mal-cheirosa? Nunca! Minha família é das mais finas garrafas. Naturalmente... bem, houve o tio Charles. Êle vivia numá horrível lâmpada à querosene — corou, depois acrescentou: — Mas nunca nos demos com êle. Tive uma repentina inspiração. — Então, se você é um gênio verdadeiro, uma vez que fui eu quem tirou a rolha da garrafa, é minha escrava. Tem de fazer tudo que eu ordenar. — Não é assim. — Que quer dizer quando fala que não é assim? É o que dizem todos os livros. — Bem — disse ela, pensando. — Não é exatamente assim. — Ah! — falei, exultante. — Então, estou certo! Pensei nas possibilidades e acho que deve ter aparecido um brilho em meus olhos, pois ela começou, rapidamente: — Você só pode dar três. — Três ordens? Ela confirmou com um aceno de cabeça. Com apenas três iguarias místicas com que brincar, acho que devia ter pensado melhor, mas ela parecia tão apetitosa, ali sentada com a toalha, que eu disse, sem mais aquela: — Entregue-se. — Agora? — perguntou ela e seus olhos tornaram a arregalar-se. — Agora. — Você precisa dizer as palavras mágicas. — Quais seriam? — Mogen David. — Hem? — O engarrafador tinha senso de humor. — Oh — disse eu, com um sorriso estúpido. — Um palhaço. Ela também sorriu, mas nela o sorriso não era estúpido e a toalha 7
escorregou um pouco para baixo. — Mogen David — disse eu, respirando fundo. — Entregue-se. Então, aqueles seus olhos de 100° de teor alcoólico adquiriram uma divertida e encantadora tonalidade de âmbar enfumaçado. Ela sorriu um pouco mais e quase ficou reclinada no sofá. Os cabelos espalharam-se pelos ombros e ela soltou a toalha. Estendi as mãos para ela e beijei-a. Os lábios eram quentes e macios. As coisas estavam indo muito .bem, “quando, de repente, ela começou a encolher. — Que diabo é isso? — gritei. Mas lá estava ela, toda nua no sofá, com apenas vinte ou vinte e cinco centímetros de altura. Ela sorriu de novo — era, decididamente, um sorriso maldoso — e voltou ao tamanho normal. — Onde você pretende chegar — perguntei — fazendo isso? Ela ergueu novamente a toalha. — Eu me entrego — disse, inteiramente inocente outra vez. Depois, começou à chorar. Quero dizer, ela começou a chorar. São capazes de entender uma coisa dessas? E disse, derramando lágrimas: — É uma espécie de mecanismo de defesa, sabe? Eu não sabia de nada, mas fiquei abalado vendo-a chorar. Ela enxugou os olhos com a ponta da toalha e, fungando, disse: — Não posso evitar. Quando me dão ordens, funciona para proteger-me. Fez um beicinho adorável, e continuou: — Gosto de você, Danny, gosto mesmo. Mas, simplesmente, não posso entregar-me antes que... — começou a chorar de novo. — Antes de ter vovó aqui comigo. Eu não disse nada. Quero dizer, que poderia falar? Jeannie enxugou de novo os olhos e disse: — A pobrezinha. Está sozinha. Foi despejada de sua encantadora garraifa de Draumbuie e agora está vivendo numa botija de vinho barato, na mercearia Shoermer — bateu os cílios para mim e acrescentou: — Sei que tudo correrá bem quando vovó estiver fora de lá. Você não quer ajudar? Eu não tinha muito que escolher. Por isso, fui à mercearia Shoermer e comprei a botija. Reconheci-a pela rolha azul que Jeannie dissera que ela tinha. Entreguei a botija a Jeannie e desviei o olhar, enquanto ela a abria, 8
imaginando que seria falta de respeito observar a avó sair nua e tudo o mais. Escutei a rolha saltar com um pequeno, “ploc” e o que. ouvi logo em seguida foi aquela, grossa voz masculina dizendo: — Menina! E Jeannie respondendo: — Harold, querido!. E não havia avó alguma. Apenas aquele sujeito grandalhão e nu andando pelo meu apartamento e Jeannie pendurada em seu braço, com uma expressão amorosa nos olhos. Então, ela olhou para mim e disse, com ar de simpatia: — Sinto muito, Danny, foi um golpe bajxo. Mas sei que você compreenderá. Harold e eu nos amamos. E o sujeito grandalhão, Harold, ria. Pude ver que o amor era unilateral, pois Harold transpirava lascívia e avareza. O que procurava não era puro e saudável. — Jeannie — gritei, — você se deixou cegar por essa criatura! Êle não é para você. Harold serviu-se de meu uísque e acendeu um de meus cigarros. — Não adianta — disse Jeannie, anelante. — Harold e eu somos almas gêmeas. Quase perdi as estribeiras — sabem? — vendo Jeannie tão caída por aquele paspalhão que bebia minha uca. — Mogen David — disse eu a Harold. — Suma. Harold serviu outra dose e Jeannie explicou: — Não funciona. Não foi você quem tirou a rolha da garrafa dele. Fui eu e as ordens são instransferíveis. — Dois podem jogar juntos este jogo , estúpido — disse-lhe, severamente. — Mogen David. Faça Harold entrar de novo na botija. — Oh... Oh! — gemeu ela e começou a chorar de novo. Mas fêz o que mandei e Harold ficou com uma aparência toda vaporosa e voltou a entrar na botija. Jeannie chorou mais um pouco, enquanto tapava a botija com a rôlha. — Jeannie, querida — disse, tentando consolá-la, — não chore. Ela tremeu um pouco e, ao fazê-lo, a garrafa de Harold começou a vibrar sobre a mesa. Depois, começou a sacudir-se e dançar em roda até partir-se — exatamente em dois pedaços. E ali estava aquele sujeito grandalhão e nu, andando de novo pelo apartamento e Jeannie com ar 9
de quem pede desculpas, falando sobre mecanismos de defesa e almas gêmeas. Aquilo era intolerável. Quero dizer, fiquei como que estraçalhado. Aquele paspalhão do Harold quebrara a sua garrafa e eu estava olhando lubricamente para a covinha de Jeannie. Eu olhava para Jeannie que olhava para Harold. — Quem precisa disso? —perguntei, em tom escarninho; mas não me adiantou nada, porque eu sabia que precisava, por isso usei minha última ordem, — Mogen David, ama-me. Jeannie ainda olhava para Harold, como se êle tivesse saído de baixo de uma pedra ou coisa semelhante. Depois, olhou para mim, com os olhos se tornando sonolentos, e disse: — Danny, querido. Harold precisa ir embora. — Você é quem sabe — disse eu, no tom mais casual que pude. Mas e a garrafa dele? — Êle pode usar a minha — respondeu ela. — Não vou mais precisar dela. Depois, aproximou-se de Harold e segredou-lhe alguma coisa. Êle fitou-a com ar feroz, mas, em seguida, sua carranca se desfez e êle escorregou para dentro da garrafa de Scotch. — Pobrezinho! — disse Jeannie, pondo a rolha. — Sei que êle vai ficar terrivelmente apertado aí dentro. — Não se incomode. Êle se ajustará — afirmei, pensando em como o dono do Five O’Ciock Club ficaria abalado se eu devolvesse a garrafa às escondidas, ao seu estoque particular e um dia êle desanimasse Harold em lugar de uma garota. Depois, esqueci-me da peça que pensara pregar, pois Jeannie estava me fitando adoràvelmente com aqueles olhos côr-de-âmbar e comecei a me sentir quente por dentro. Ela disse, em tom macio: — Eu o amo, Danny. E eu disse, todo sentimental: — Eu também a amo. — Meu mecanismo de defesa — falou ela, com uma risadinha. — Era preciso que você me amasse. Mas isso pouco me importava. Segurei-a com um braço e beijei-a, enquanto que com a outra mão jogava Harold no cesto de lixo. Jeannie sorriu, com o olhar todo sonolento, e deixou cair a toalha. 10
ENCONTRO EM LANKHMAR Fritz Leiber Trad. de Maria Léa Eichenberg Silenciosos como espectros, o alto e o gordo ladrões ladearam o vigia feroz estrangulado mortalmente, atravessaram a espessa porta arrombada de Jengao, o Mercador de Jóias, e dobraram a leste, na Rua da Moeda, através da fina e negra neblina noturna de Lankhmar. Teria que ser a leste na Moeda, pois a oeste, no cruzamento com a Rua da Prata, havia um posto policial onde guardas insubornáveis, impaciente e estridentemente, batiam suas lanças no chão. Mas o alto e calado Slevyas, candidato a ladrão-mestre, e o gordo Fissif de olhos dardejantes, ladrão de segunda classe, hábil em dissimulação, não tinham a menor preocupação. Tudo estava saindo de acordo com o plano. Cada um levava amarrada na sacola, uma bolsinha menor com jóias de primeira categoria, em razão do que Jengao, agora respirando com estertor e inconsciente com o golpe que sofreram, deveria ser não somente preservado, mas também fomentado e encorajado para reconstruir seus negócios e amadurecê-los para outro roubo. A primeira lei da Sociedade dos Ladrões era nunca matar a galinha de ovos de ouro. Os dois ladrões sentiam-se aliviados em saber que agora iam diretamente para suas casas, não para uma esposa, Arath proibia! — ou para pais ou filhos. Deus nos livre! — mas para a Casa dos Ladrões, quartelgeneral e casernas da toda poderosa Sociedade que era pai e mãe para ambos, pois que nunca tinha sido permitida a entrada a nenhuma mulher através de seus sempre abertos portais, na Rua das Pechinchas. Além do mais, havia o conhecimento reconfortante de que, embora cada um estivesse armado somente com o costumeiro punhal de prata dos ladrões, estavam muito bem escoltados por três bandidos letais 11
de confiança, contratados da Irmandade dos Assassinos para esta noite, um bem na frente como vanguarda, os outros dois na retaguarda, como principal força de ataque. Como se tudo isso não bastasse para fazer Slevyas e Fissif sentiremse seguros e serenos, andava silenciosamente ao seu lado, na sombra do meio-fio, uma pequena figura disforme e um tanto cabeçuda, que poderia ser um cachorro pequenino, ou algum gato de tamanho abaixo do normal, ou um rato muito grande. Em verdade, esta última guarda não era totalmente por si só uma segurança. Fissif adiantou-se para murmurar no grande lóbulo da orelha de Slevyas: — Que o diabo me carregue, se me agrada ser seguido por este demônio de Hristomilo, não importa a segurança que possa nos oferecer. O pior é que Krovas tenha contratado ou se deixado convencer a contratar um feiticeiro da mais dúbia, senão terrível reputação e aspecto, mas que... — Cale a boca! — Slevyas cochichou ainda mais baixo. Fissif obedeceu dando de ombros, preocupado em lançar olhares atentos para os lados e principalmente à frente. Um pouco além, nesta direção, de fato exatamente perto da Rua do Ouro, a da Moeda era atravessada por uma passagem fechada de dois andares, ligando os dois edifícios que constituíam os prédios dos famosos escultores Rokkermas e Slaarg. Na fachada da casa havia pórticos muito rasos, sustentados por pilares desnecessariamente largos de forma e decoração variadas, mais vistosos do que membros estruturais. Exatamente debaixo da galeria, ouviram dois baixos e breves assobios, um sinal do bandido dianteiro, avisando que inspecionara aquela área contra o perigo de emboscada, não descobrira nada suspeito e que a Rua do Ouro estava livre. Fissif não estava inteiramente satisfeito com o sinal de segurança. Para dizer a verdade, o ladrão gordo preferia ser apreensivo e mesmo medroso, ao menos até certo ponto. Perscrutou, então, mais atentamente, através da fina e escura neblina, as fachadas e as Saliências de Rokkermas e Slaarg. Deste lado, a galeria possuía quatro janelinhas, entre cada uma delas havia três nichos, nos quais se levantavam — outros ornamentos — três estátuas de gêsso de tamanho natural, um pouco corroídas pelo tempo e manchadas de variados tons de cinza escuro, por muitos anos de névoa. Quando se aproximava da casa de Jengao, antes do roubo, Fissif as tinha notado. Agora, parecia-lhe que a estátua da direita mudara in12
definivelmente. Era a de um homem de estatura média, vestindo capote e capuz, olhando fixamente para baixo com os braços cruzados e aspecto atento. Não, não completamente indefinível — a estátua era agora de um cinza-escuro mais uniforme, o capote, o capuz e o rosto, supôs; as feições pareciam um poucp mais aguçadas e quase poderia jurar que ela diminuíra um pouco. Logo abaixo dos nichos, além disso, havia um entulho cinza e branco que não se recordava de ter visto antes. Esforçou-se para se lembrar se durante a excitação do roubo, a parte vigilante de sua mente teria registrado um estrondo distante. Agora acreditava que sim. Sua rápida imaginação representou a possibilidade de haver um buraco atrás de cada estátua, através da qual fosse possível, por meio de um forte empurrão, fazê-las cair em cima dos passantes, êle e Slevyas especificamente. Imaginou também, que a estátua da direita tivesse sido quebrada, quando testavam o estratagema, e substituída por outra quase igual. Vigiaria atentamente todas as estátuas enquanto êle e Slevyas passavam por baixo. Seria fácil escapar se uma começasse a balançar. Deveria puxar Slevyas, desviando-o do perigo, quando isto acontecesse? Era algo sobre o que pensar. Sua atenção inquieta fixou-se em seguida nos pórticos e pilares. Os últimos, grossos e com quase três jardas de altura, colocados em intervalos irregulares como se fossem de formas e ranhuras desiguais, pois Rokkermas e Slaarg eram muito modernos e salientavam o aspecto inacabado, fortuito e inesperado. Entretanto, parecia a Fissif que havia uma intensificação de imprevistos, especialmente um pilar a mais sob os pórticos do que quando êle passara por ali pela última vez. Não podia ter certeza de qual era o novo pilar mas estava quase certo que havia um. A galeria estava perto, agora. Fissif olhou de relance para a estátua da direita e notou outras diferenças. Embora menor, parecia mais firmemente ereta e a carranca gravada no rosto cinza-escuro, não era propriamente de meditação filosófica mas de desprezo arrogante, consciente de sua inteligência e vaidade. Contudo, nenhuma das três estátuas tombou, enquanto êle e Slevyas passavam sob o viaduto. Entretanto algo aconteceu a Fissif naquele instante. Um dos pilares piscou o olho para êle. Gray Mouser fêz a volta no nicho da direita, saltou e segurou-se na cornija, silenciosamente pulou para o telhado baixo e cruzou-o precisa13
mente a tempo de ver os dois ladrões aparecerem em baixo. Sem hesitação, saltou, o corpo reto como um dardo, as solas de suas botas de pele de rato visando os omoplatas gordos do ladrão mais baixo embora adiantando-se um pouco, levando em conta a jarda que lhe faltava transpor enquanto Mouser impelia-se para êle. No instante em que este pulou, o ladrão alto lançou um olhar por cima dos ombros e sacou uma faca, não fazendo entretanto nenhum movimento para empurrar ou puxar Fissif para fora do caminho do projétil humano que com velocidade vinha em sua direção. Manobrou com mais rapidez do que alguém pudesse imaginar, Fissif voltou-se e gritou fracamente: — Slivikin! As botas de pele de rato apanharam-no exatamente no ventre. Era como aterrissar numa grande almofada. Desviando-se do ataque de Slevyas, Mouser virou uma cambalhota para frente e como o crânio do ladrão gordo batesse numa pedra com um pesado bong, voltou-se com a espada na mão, pronto para golpear o ladrão alto. Mas não houve necessidade. Slevyas, os olhos arregalados, estava caindo também. Um dos pilares lançara-se para a frente, arrastando um manto volumoso. Um grande capuz ao resvalar para trás descobriu um rosto jovem emoldurado por longos cabelos. Musculosos braços emergiram das compridas e largas mangas que tinham sido a parte superior do pilar. Ao mesmo tempo em que um forte punho, na extremidade de um dos braços distribuiu a Slevyas um perigoso murro no queixo, deixando-o fora de combate. Fafhrd e Gray Mouser encararam-se por sobre os dois ladrões caídos inconscientemente, prontos para atacar, embora no momento nenhum deles se movesse. Fafhrd disse: — Nossos motivos para estar aqui parecem idênticos. — Parecem? Certamente devem ser! — Mouser respondeu brusca e arrogantemente, observando seu novo adversário em potencial, que tinha uma cabeça a mais de altura que o ladrão alto. — O que disse? — Eu disse: Parecem? Certamente que devem ser! — Que educado de sua parte! — Fafhrd comentou em tom agradável.. — Educado?— Mouser perguntou com suspeitas, apertando sua 14
espada com mais força. — Sim, em preocupar-se no auge da ação, com o que dizer exatamente — Fafhrd explicou. Sem deixar Mouser fora do alcance de sua visão, olhou rapidamente para baixo. Seu olhar atento passava de uma sacola à outra dos ladrões caídos. Então olhou para Mouser com um sorriso amplo e ingênuo. — Metade? — sugeriu. Mouser hesitou, embainhou sua espada e vociferou: — Negócio fechado! Ajoelhou-se abruptamente, os dedos na correia da bolsa de Fissif. — Faça você o saque em Slivikin — indicou. Era natural supor que ao final o ladrão gordo tivesse gritado o nome de seu companheiro. Sem prestar atenção para onde se ajoelhara, Fafhrd observou: — Aquele... furão que estava Com eles, aonde foi? — Furão? — Mouser respondeu brevemente. — Era um pequeno bugio. — Um bugio — Fafhrd ponderou. — É um macaquinho tropical, não é? Bem. deve ser. Eu nunca estive no sul, mas tenho a impressão que... A silenciosa lança que naquele instante investia contra eles quase os atingindo, na verdade não os surpreendeu. Ambos inconscientemente a esperavam. Os três bandidos caíram em cima deles em ataque conjugado, todos com espadas assestadas para atacar, supondo que os dois assaltantes estivessem armados no máximo com facas e fossem tão tímidos, em combate, como em geral acontece com ladrões e contra-ladrões. Entretanto, foram os bandidos que ficaram confusos quando, com a velocidade de um relâmpago, própria da mocidade, Mouser e Fafhrd saltaram, desembainharam terríveis e grandes espadas e, de costas um para o outro, os enfrentaram. Mouser defendendo-se, desviou-se um pouco de modo que o ataque do bandido, vindo da direita, passou raspando por seu lado esquerdo. Imediatamente revidou o golpe. Seu adversário, recuando desesperadamente deu uma volta, defendendo-se do ataque. Com firmeza e vagar, a ponta da longa e fina espada de Mouser desviou-se, devido à manobra, com a delicadeza de uma princesa cortejando, então projetou-se para a frente e um pouco para cima e entrou entre duas lâminas da armadura do 15
bandido, entre duas costelas, e, atravessando o coração, saiu nas costas como se tudo fosse um bolo macio. Entrementes, Fafhrd, enfrentando os dois bandidos vindos da esquerda, varreu fora suas rasteiras investidas com mais força, impedindo seus golpes de defesa; então desembainhou a espada tão longa como a de Mouser, mas mais pesada, de maneira que ela golpeou o pescoço de seu adversário da direita, quase decapitando-o. Recuando com rapidez, preparou um golpe para o outro. Mas não foi preciso. Um estreito fio de aço ensangüentado, seguido por uma luva cinza e por um braço, brilhou trespassando de trás para a frente o ultimo bandido, com idêntico golpe que Mouser usara com o primeiro. Os dois jovens limparam as espadas. Farhrd esfregou a palma da mão direita no manto e estendeu-a. Mouser tirou a luva cinzenta da mão direita e apertou a de Fafhrd. Sem trocar palavras, ajoelharam-se e terminaram de saquear os dois ladrões inconscientes, apanhando as bolsinhas de jóias. Com uma toalha embebida em óleo e outra seca, Mouser limpou cuidadosamente o rosto da mistura de graxa e fuligem com que o tinha escurecido. Após um olhar inquisidor na direção leste da parte de Mouser e um aceno de cabeça de Fafhrd, caminharam rapidamente na mesma direção em que iam antes Slevyas, Fissif e sua escolta. Depois de um reconhecimento na Rua do Ouro, atravessaram-na e, a um gesto convidativo de Fafhrd, continuaram a leste na Rua da Moeda. — Minha mulher está na Lampreia Dourada — exclamou. —Vamos apanhá-la e levá-la à minha casa para conhecer minha pequena — sugeriu Mouser. — Casa? — Fafhrd inquiriu polidamente. —. Beco Escuro — Mouser explicou. — Enguia Prateada? — Atrás. Tomaremos algumas bebidas. — Apanharei um jarro. Nunca é demais. — É verdade. Concordo. Fafhrd parou, novamente limpou a mão direita no manto e estendeu-a. — Chamo-me Fafhrd. De novo Mouser apertou-a. — Gray Mouser — disse um tanto acintosamente, como se desafiasse qualqurer um que escarnecesse de sua alcunha. 16
— Gray Mouser, hem? — Fafhrd observou. — Bem, você matou um par de ratos esta noite*. — Isso é verdade — Mouser empertigou-se e jogou a cabeça para trás. Então, fazendo um cômico trejeito com o nariz e a boca, admitiu: — Bem, você pegaria seu segundo homem facilmente. Eu o roubei de você para demonstrar minha destreza. Além disso, estava excitado. Fafhrd deu uma risada. — É a mim que você vem dizer isso? Como pensa que me sentia? Uma vez mais Mouser fêz um trejeito com a boca. Que diabo tinha este companheiro grandalhão que o desarmava de seu habitual sarcasmo? Fafhrd perguntava-se o mesmo. Sempre desconfiava de homens baixos, sabendo que sua altura despertaria ciúme imediato. Mas este rapazinho inteligente era de algum modo uma exceção. Implorou a Kos que Vlana gostasse dele. Na esquina nordeste da Rua da Moeda e das Prostitutas, uma tocha trêmula, protegida por uma larga espiral dourada, lançava para o alto um cone de luz na espessa e negra neblina noturna e outro cone, em direção ao chão de pedras em frente à porta da taberna. Iluminada pelo segundo cone de luz, caminhava Vlana, linda, num vestido justo de veludo preto e meias vermelhas, tendo como únicos adornos um punhal com cabo e bainha de prata e uma bolsa negra trabalhada em prata, ambos num cinto preto liso. Fafhrd apresentou Gray Mouser, que comportou-se com uma cortesia quase lisonjeira. Vlana estudou-o com petulância e então esboçou um sorriso. Fafhrd abriu sob a luz da tocha, a bolsa que tirara do ladrão alto. Vlana examinou o conteúdo, estreitou-o nos seus braços e beijou-o sonoramente. Colocou então as jóias na bolsa de seu cinto. Após, disse: — Olha, vou comprar um jarro. Conte a ela o que aconteceu, Mouser. Quando saiu da Lampreia Dourada, levava quatro jarros com o braço esquerdo e limpava os lábios com as costas da mão direita. Vlana fêz uma carranca que êle respondeu com um trejeito. Mouser estalou os lábios ao ver as garrafas. Continuaram a leste na Rua da Moeda. Fafhrd percebeu que a carranca de Vlana era por algo mais do que os jarros e a perspectiva de algazarras de homens estupidamente embria*O autor faz um trocadilho com o nome do personagem: Gray Mouser significa Rato Cinzento. (N. do Trad.). 17
gados. Mouser com muito tato seguiu à frente. Quando sua figura parecia na densa neblina, um pouco mais que uma bolha, Vlana sussurrou com aspereza: — Tendo dois membros da Sociededade dos Ladrões fora de combate, você não cortou suas gargantas? — Matamos três bandidos — Fafhrd protestou, desculpando-se. Minha disputa não é com o Sindicato dos Assassinos, mas com esta abominável sociedade. Você me jurou que sempre que tivesse a oportunidade.. . — Vlana! Não poderia deixar Gray Mouser supor que sou um contra-ladrão amador, consumido pela histeria e desejo de vingança. — Bem, êle disse que teria cortado suas gargantas num piscar de olhos, se soubesse que eu assim o desejava. — Estava somente apoiando-a por cortesia. — Talvez sim, talvez não. Mas você sabia e não o fêz. — Vlana, cale-se. A carranca transformou-se num olhar irado; então, de repente, ela riu abertamente, contraiu-se num sorriso como se fosse gritar, controlouse e sorriu de maneira mais amável. — Perdoe-me, querido — disse. — Algumas vezes você deve pensar que estou ficando louca e às vezes eu mesma acredito. — Bem, não — disse-lhe rapidamente. — Pense nas jóias que conseguimos e comporte-se com nossos novos amigos. Tome um pouco de vinho e relaxe-se. Pretendo divertir-me esta noite. Eu o mereço. Ela assentiu e apertou seu braço, confortante e sensata. Apressaram-se para alcançar a fraca figura à frente. Mouser, dobrando a esquina, conduziu-os numa meia quadra ao norte, na Rua das Pechinchas, onde um caminho mais estreito ia a leste novamente. A névoa preta parecia sólida. — Beco Escuro — Mouser explicou. Vlana disse: — Escuro é fraco demais — uma palavra demasiado transparente para o beco esta noite — com um riso perturbado onde ainda havia traços de histeria e que terminou num acesso de tosse sufocante. Disse ofegante: — Maldita neblina de Lankhmar! Que inferno de cidade! — Estamos nas proximidades do grande Pântano Salgado — Fafhrd explicou. . Em verdade tinha razão na observação. Com o Rio Hlal correndo 18
entre o Pântano e o Mar Interior, os campos de trigo a sudoeste, irrigados por canais alimentados pelo Hlal, e as inumeráveis fumaças, Lankhmar tornava-se a presa fácil de nevoeiros e neblinas de fuligem. Cerca de meio caminho da Rua do Carroceiro, na parte norte do beco, uma taberna emergia da escuridão. Indicando-a, pendia do alto uma mola em espiral de metal pálido, crestado pela fuligem. Passaram por baixo dela e pela frente de uma porta com cortinas de couro enegrecido, de onde se derramava barulho, luzes trêmulas de tochas e cheiro de bebida. Logo além da Enguia Prateada, Mouser conduziu-os através de uma passagem escura a leste. Tiveram que andar em fila indiana, sentindo o caminho áspero, tijolos lodosos e enevoados. — Cuidado com o atoleiro — preveniu Mouser — êle é fundo como o Mar Exterior. A passagem alargou-se. Refletia as luzes das tochas que se infiltravam através da névoa escura, permitindo-lhes perceber à sua volta somente vagos contornos. Apertado logo atrás da Enguia Prateada, surgiu um prédio, sombrio e frágil, de madeira escura e antiga e tijolos enegrecidos. Fracas luzes amarelas brilhavam ao redor e atrás de três janelas gradeadas, no sótão do quarto andar, sob o telhado esburacado de goteiras. Mais adiante havia uma estreita travessa. — Travessa dos Ossos — indicou-lhes Mouser. Agora Vlana e Fafhrd poderiam ver uma estreita escadaria externa de madeira, sem corrimão, íngreme, embora gasta, que conduzia ao sótão iluminado. Mouser aliviou Fafhrd dos jarros e subiu carregando-os com rapidez. — Sigam-me quando eu chegar em cima — voltou-se dizendo. — Penso que suportará seu peso, Fafhrd, mas é melhor um de cada vez. Fafhrd empurrou gentilmente Vlana para diante. Ela subiu até Mouser que agora permanecia em em frente a uma porta aberta, através da qual fluía uma luz amarela perdendo-se rápida na noite brumosa. Repousava a mão suavemente num grande e inútil lampião de ferro forjado, fixo na pedra da parede externa. Curvou-se para o lado. Vlana entrou. Fafhrd seguiu-os, colocando os pés o mais perto possível da parede, as mãos prontas para apoiar-se. A escada inteira rangeu agourentamente e cada degrau cedeu um pouco, oprimido com o peso. Próximo ao topo, um degrau cedeu com o estalo surdo de madeira podre. Com o máximo cuidado dividiu seu peso, as mãos e os joelhos pelo maior número de degraus que pudesse alcançar e praguejou. 19
— Não se queixe, as garrafas estão salvas — disse Mouser alegremente. Fafhrd arrastou-se o resto do caminho e só levantou-se à entrada da porta. Quando aí chegou, quase sufocou de surpresa. Era como limpar o azinhavre de um anel de cobre barato, surgindo um luminoso diamante de primeira categoria. Ricas tapeçarias, algumas com bordados cintilantes de ouro e prata cobriam as paredes, exceto as janelas, cujas venezianas eram douradas. Tecidos semelhantes, porém escuros, escondiam o teto baixo, representando uma abóbada celeste e magnífica onde os salpicados de ouro e prata pareciam estrelas. Espalhadas pela sala, uma grande quantidade de almofadas e mesas baixas, onde ardiam numerosas velas. Sobre estantes, contra as paredes, havia uma grande reserva de velas enfileiradas cuidadosamente como pequenos cepos, numerosos rolos de pergaminhos, jarros, garrafas e caixas esmaltadas. Um pequeno fogão de metal preto e com um braseiro ornamentado, estava colocado em uma grande lareira. Ao lado do fogão, havia também uma bem organizada pirâmide de tochas finas e resinosas, com as pontas esfiapadas, acendedores e outras pirâmides de pequenos cepos e rutilantes e negros carvões. Num estrado baixo ao pé dai lareira havia um sofá revestido de brocado dourado. Nele, estava sentada uma linda moça magra, pálida e delicada, usando um vestido de grossa seda violeta, trabalhado em prata e acinturado com uma corrente prateada. Grampos de prata com pontas de ametistas prendiam seu cabelo negro no alto da cabeça, seus ombros envoltos por um manto de pele de serpente, branco como a neve. Ela inclinou-se para diante, com forçada graciosidade, estendendo a trêmula e pequena mão branca em direção a Vlana, que se ajoelhou à sua frente, e, então, gentilmente tomou-lhe a mão, curvando á cabeça sobre ela, seus cabelos castanhos e lisos formando um dossel, e apertou-a contra os lábios. Fafhrd estava satisfeito de ver sua mulher representando apropriadamente esta situação que, embora agradável, era absolutamente bizarra. Olhando para a longa perna de Vlana, com meias vermelhas, estendida para trás, pois ela ajoelhara-se sobre a outra, notou que o chão estava todo atapetado — duas, três e até quatro camadas com espessos, densos e bem tramados tapetes de vários matizes da mais fina qualidade, importados das terras do Leste. Sem se dar conta seu polegar apontava 20
para Gray Mouser. — Você é o Ladrão de Tapetes! — exclamou. — Você é o Recrutador de Tapêtes! — e o Corsário das Velas! — continuou, referindo-se a duas séries de roubos insolúveis que estavam na boca de toda Lahkhmar quando êle e Vlana haviam chegado, há uma lua atrás. Mouser deu de ombros, impassível, encarando Fafhrd; então repentinamente fêz um trejeito, os olhos apertados piscaram e Mouser irrompeu numa dança inesperada que o levou pela sala, gingando num turbilhão até Fafhrd. Com destreza puxou o imenso manto de capuz e longas mangas dos ombros encurvados de Fafhrd, estendendo-o, dobrando-o cuidadosamente, colocando-o sob uma almofada. A garota de violeta nervosamente bateu de leve com a mão livre no brocado de ouro ao seu lado, onde Vlana sentou-se cuidadosamente, não muito perto, e as duas mulheres conversaram em voz baixa, Vlana tomou a liderança. Mouser despiu sua capa de capus cinzenta e a colocou ao lado da de Fafhrd. Então desafivelaram as espadas e Mouser colocou-as por cima do manto e da capa que estavam dobrados. Sem aquelas armas pesadas e os volumosos mantos, pareceram repentinamente dois jovens, ambos com rostos claros e bem barbeados, esbeltos, apesar dos protuberantes músculos dos braços e das pernas de Fafhrd. Este, com longo cabelo vermelho-dourado caindo sobre os ombros de Mouser com o cabelo preto cortado em franja, o primeiro com túnica de couro marrom trabalhada em fios de cobre, e o outro vestindo uma jaqueta de seda cinza rüsticamente tecida. Sorriram-se. A sensação de sua transformação em garotos, levouos subitamente a sorrir embaraçados. Mouser limpou a garganta e, inclinando-se um pouco, mas olhando para Fafhrd, estendeu o braço com os dedos frouxamente abertos na direção do sofá dourado e disse com um balbuceio preliminar, ainda que bastante polido: — Fafhrd, meu bom amigo, permita-me apresentá-lo à minha princesa. Ivrian, minha querida, por favor receba Fafhrd afàvelmente, pois esta noite lutamos frente a frente contra três e vencemos. Fafhrd adiantou-se parando um pouco, a coroa de cabelos vermelho-dourado roçando a abôbada estrelada, e ajoelhou-se em frente de Ivrian exatamente como Vlana tinha feito. A delgada mão estendida para êle parecia firme agora, mas ainda se agitava com um tremor que descobriu logo que a tomou. Tocou-a como se ela fosse de sedosa teia branca de aranha, somente roçando-a com os lábios e ainda a sentiu nervosa 21
quando murmurou alguns cumprimentos. Não sabia se Mouser estava tão ou mais nervoso que êle, implorando com fervor que Ivrian não exagerasse em seu papel de princesa e desprezasse seus convidados, ou desfalecesse em tremores ou lágrimas, pois Fafhrd e Vlana eram literalmente os primeiros seres que Mouser trouxera para o luxuoso ninho que criara para sua bem-amada aristocrata — exceto os dois adoráveis pássaros que pulavam numa gaiola prateada, pendurada no outro lado da lareira, em frente ao trono. A despeito de sua astúcia e cinismo jamais ocorrera a Mouser que era principalmente seu encanto e não a absurda ternura de Ivrian que a estava transformando em boneca. Mas agora, como Ivrian finalmente, sorrisse, Mouser relaxou-se com alívio, trouxe duas taças e duas canecas de prata, selecionou cuidadosamente uma garrafa de vinho tinto, e então, com uma careta para Fafhrd desarrolhou-a, em vez de um dos jarros que o Nortista trouxera, encheu os quatro rutilantes recipientes e sorriu para todos. Desta vez sem hesitação, brindou: — Ao meu maior roubo em Lankhmar, que, queira ou não, devo repartir a metade com — não pôde resistir ao impulso repentino — este grande bárbaro cabeludo aqui presente! — E bebeu um quarto da sua caneca, do agradável e ardente vinho adicionado de conhaque. Fafhrd bebeu de um sorvo a metade, então retribuiu: — Ao mais presumido, polido e educado rapazinho com quem já me dignei a dividir uma pilhagem — bebeu de um trago o resto, e com um amplo sorriso, mostrando os dentes brancos, estendeu a caneca vazia. Mouser serviu-o novamente, encheu sua própria caneca, largou-a para ir até Ivrian e derramou em seu regaço as gemas da bolsinha que tinha roubado de Fissif. Elas brilharam em seu novo e invejável local como uma pequena poça refletindo as cores do arco-íris. Ivrian recuou trêmula, quase deixando-as cair, mas Vlana segurou seu braço gentilmente, firmando-o. Vlana aproximou de Ivrian uma caixa esmaltada de azul incrustada de prata, e as duas passaram as jóias do colo de Ivrian para o interior de veludo azul da caixa. Então conversaram. Fafhrd bebendo a segunda caneca em goles menores, relaxando-se e começou a perceber o ambiente de modo mais profundo. O maravilhoso deslumbramento da primeira visão desta sala majestosa, situada numa zona de cortiço, desvaneceu-se e êle começou a notar a fraqueza e a podridão sob a magnífica cobertura. Pedaços de madeira pretos e podres apareciam por toda parte en22
tre as cortinas, desprendendo antigos e nauseantes odores. Todo o chão cedia sob os tapetes chegando a um palmo no centro da sala. Filêtes de neblina noturna entravam através das venezianas, formando pretos arabescos evanescentes contra o dourado. As pedras da grande lareira tinham sido esfregadas e envernizadas, embora grande parte da argamassa tivesse caído; algumas estavam soltas, outras faltando completamente. Mouser estivera preparando um fogo no fogão. Agora empurrou, em todas as direções, o acendedor em chama amarela que acendera no braseiro, bateu a portinhola preta, fechando-a sobre as chamas que subiam e voltou para a sala. Como se tivesse lido os pensamentos de Fafhrd, apanhou diversos cones de incenso, queimou suas pontas no braseiro e espalhou-as pela sala em resplandescentes taças de bronze. Então calafetou as fendas mais largas com pedaços de seda, apanhou novamente sua caneca de prata e, por um momento, lançou a Fafhrd um olhar severo. Em seguida, sorrindo, levantou a caneca para Fafhrd, que fêz o mesmo. A necessidade de enchê-las novamente aproximou-se. Movendo os lábios com dificuldade, Mouser explicou: — O pai de Ivrian era um duque. Eu o matei. Um homem muito cruel, também para com sua filha, embora sendo um duque, de modo que Ivrian é completamente incapaz de prover-se a si mesma. Orgulho-me em mantê-la em melhor situação do que seu pai lhe proporcionava com todos os seus criados. Fafhrd assentiu e disse amigavelmente: — Com certeza você roubou também um encantador palacete. Do divã Vlana chamou, com sua voz rouca de contralto: — Gray Mouser, sua princesa gostaria de ouvir uma descrição da aventura desta noite. Poderíamos ter mais vinho? — Sim, por favor, Mouser — disse Ivrian. Mouser olhou para Fafhrd, esperando o sinal de partida, e lançouse na estória. Mas primeiro, serviu-as de vinho. Não havia o suficiente para suas taças, então abriu outro jarro e, depois de um momento de hesitação, desarroIhou todos três, colocou um junto ao sofá, outro perto de Fafhrd, agora estendido no tapete macio, e reservou um para si. Ivrian olhou apreensiva para essa evidência de pesada bebedeira à vista, Vlana cínica. Mouser contou satisfatoriamente, a estória do contra-roubo, representando-a em parte, com - as mais artísticas imagens — o macaquinho que antes de escapar subira no seu corpo e tentara arrancar-lhe os 23
olhos — e só foi interrompido duas vezes. Quando dizia: — Então, com um silvo e um golpe, desembainhei Escalpelo — Fafhrd observou: — Oh! Então você apelida sua espada como a você mesmo? Mouser levantou-se: — Sim, e chamo meu punhal de Garra de Gato. Alguma objeção? Parece-lhe infantilidade? — Não, de maneira alguma. Chamo minha própria espada de Vara Cinzenta. Por favor, continue. E quando mencionou o animal de natureza indefinida que pulava junto dos ladrões (e que atacara seus olhos). Ivrian empalideceu e disse horrorizada: — Mouser! Aquilo parece um demônio de bruxa! — De feiticeiro — corrigiu Vlana. — aqueles vilões sem entranhas da Sociedade não mantém relações com mulheres, exceto como instrumentos remunerados ou coagidos, de seus apetites. Mas Krovas, seu atual rei, salienta-se por tomar todas as precauções, e deve, certamente, ter um feiticeiro a seu serviço. — Parece-me mais nrovável; isto me deixa angustiado de pavor — Mouser concordou com um -gourento olhar de espanto e uma voz sinistra, aceitando com avidez toda e qualquer atmosfera de encantamento pela sua façanha. Depois, as moças, com olhos briIhantes e ternos, os brindaram por sua destreza e bravura. Mouser, fazendo uma reverência, os olhos cintilantes, sorriu, então estendeu-se no chão com “um-olhar fatigado limpando a fronte com um pano de seda, e sorveu um grande gole. Após pedir a permissão de Vlana, Fafhrd contou as aventuras da fuga de ambos da Esquina Fria — êle de seu clã, ela, de sua companhia teatral — e de sua jornada para Lahkhmar, onde agora habitavam uma casa de artistas perto da Praça dos Prazeres Noturnos, Ivrian abraçou-se a Vlana e, arrepiada, ficou atenta às partes de feitiçaria do conto. O único fato que êle propositalmente omitira dessa estória foi a idéia fixa de monstruosa vingança de Vlana contra a Sociedade dos Ladrões que a tinham expulsado de Lankhmar e torturado seus cúmplices até a morte quando ela tentava roubar, por livre iniciativa na cidade, antes de se conhecerem. Naturalmente, também não mencionou sua própria promessa — loucura, pensava agora — de ajudá-la nessa sangrenta aventura. Quando acabou e recebeu os aplausos, sentiu a garganta seca, 24
apesar de acostumado à bebida, mas quando procurou molhá-la descobriu que a caneca e o jarro estavam vazios, embora não sentisse a menor embriaguez — falando, expelira toda a bebida, pensou, um pouco do álcool escapara em cada palavra ardente que dissera. Mouser estava em situação semelhante, e também não estava embriagado — embora com tendência a pausas misteriosas e olhares vagos para o infinito antes de responder perguntas ou fazer comentários. Sugeriu, depois de um olhar absorto especialmente longo, que Fafhrd o acompanhasse até a Enguia enquanto adquirisse um novo suprimento. — Mas ainda resta muito vinho em nosso jarro — Ivrian protestou. — Ou ao menos um pouco — emendou. Quando Vlana o sacudiu, pareceu-lhe vazio. — Além disso, você tem aqui vinho de todas as qualidades. — Não desta espécie, querida, e a primeira regra é nunca misturálas — Mouser explicou, sacudindo um dedo. — Senão torna-se nocivo, na verdade, embriaga. — Minha querida, disse Vlana, com simpatia, batendo no pulso de Ivrian — em um dado momento, em qualquer festa que se preze, todos os homens que o são em verdade, simplesmente, têm que sair. É extremamente estúpido, mas de sua natureza e não pode ser evitado, acrediteme. — Mas Mouser, estou apavorada. O conto de Fafhrd aterrorizoume. O seu também — ouvirei este demônio arranhando as venezianas depois que vocês saírem, sei que ouvirei. — Queridíssíma — disse Mouser com um pequeno soluço — há todo o Mar Interior, todo o Reino das Oito Cidades, e ainda todas as Montanhas Tortuosas com seus picos majestosos entre você e a Esquina Fria de Fafhrd e seus tolos feiticeiros. Quanto aos demônios, ih! — nada mais tem sido no mundo que repugnantes, característicos caprichos de velhas bolorentas e velhos efeminados. Vlana disse alegremente: — Deixe esses tolos saírem, minha querida. Teremos a oportunidade de uma conversa particular, durante a qual os manteremos afastados da embriaguez. Como Ivrian deixara-se persuadir, Mouser e Fafhrd escaparam rapidamente, fechando a porta atrás deles, para impedir a entrada da neblina noturna. As moças então, ouviram seus passos leves descendo a escada. Enquanto esperavam que os quatro jarros fossem trazidos da adega da Enguia, os dois novos camaradas encomendaram uma caneca do 25
mesmo vinho forte, e abrigaram-se no canto menos barulhento do longo balcão da tumultuosa taberna. Habilmente, Mouser deu um pontapé num rato que mostrava a cabeça e os ombros pretos no buraco de sua toca. Depois de se terem cumprimentado entusiasticamente por suas garotas, Fafhrd disse com desconfiança: — Cá entre nós, você crê que sua doce Ivrian deva ter alguma razão em sua opinião de que a negra criaturinha que acompanhava Slivikin e o outro ladrão da Sociedade era um demônio de feiticeiro, ou de qualquer modo, um astuto animal de estimação de um bruxo treinado para infiltrarse e informar desgraças a seu amo ou a Krovas? Mouser riu levemente. — Você está vendo fantasmas — pequenas deformações inexplicáveis pela lógica — nada mais que isto, caro irmão bárbaro, se me permite falar assim. Como poderia apresentar um útil relatório? Não creio em animais que falam — exceto papagaios e tais pássaros, que somente... papagueiam. — Alô! Você aí atrás do balcão! Onde estão meus jarros? Será que os ratos comeram o menino que foi buscá-los há dias? Ou simplesmente morreu de fome procurando na adega? Bem, diga-lhe para andar mais ligeiro e sirva-nos novamente. — Não, Fafhrd, mesmo supondo ser o animal direta ou indiretamente uma criatura de Krovas, e que tivesse voltado correndo à Casa dos Ladrões depois de nossa briga, o que lhe poderia dizer? Somente que algo fracassara no roubo a Jengao. Fafhrd franziu as sobrancelhas e resmungou obstinadamente: — Êsse covarde peludo poderia, entretanto, transmitir de algum modo nosso aspecto aos mestres da Sociedade, que poderiam reconhecer-nos, perseguir-nos e atacar-nos em nossas casas. — Meu caro amigo — Mouser disse pesarosamente — mais uma vez imploro sua indulgência, temo que este potente vinho esteja alterando o seu juízo. Se a Sociedade soubesse quem somos ou onde moramos, teria estado sordidamente em nosso encalço, não há dias e semanas, mas há meses atrás. Ou então presume-se que você desconheça a pena da Sociedade para ladrões independentes dentro dos muros de Lankhmar, não é nada menos que a morte, depois de torturas, caso conseguir sobreviver. — Sei tudo sobre isto, e minha situação é ainda pior que a sua — Fafhrd retrucou — e depois de pedir segredo a Mouser, contou-lhe a estória da vendetta de Vlana contra a Sociedade e seus sérios sonhos mortais de uma vingança geral. 26
No decorrer da estória, os jarros chegaram da adega, entretanto, Mouser pedia que enchessem novamente suas canecas de barro: Fafhrd concluiu: — Então, em conseqüência de uma promessa feita por um rapaz enfatuado e ignorante ao sul do Deserto Frio, sou agora um homem sensato — bem, em outras ocasiões — constantemente solicitado a combater um poder tão grande como o dos domínios de Lankhmar, pois como você deve saber, a Sociedade tem filiais em todas as outras cidades e capitais deste país. Amo Vlana profundamente e ela é uma ladraiexperiente, mas com referência a este assunto, é maníaca, com um firme nó no cérebro, que nem a lógica nem a persuação conseguem afrouxar. — Por certo seria loucura assaltar diretamente a Sociedade, nisso sua sabedoria é perfeita — comentou Mouser. — Se você hão pode persuadir sua adorável garota a afastar-se dessa idéia louca, então você deve recusar firmemente até mesmo sua menor súplica nesse sentido. — Certamente que devo — Fafhrd concordou com grande ênfase e convicção — tenho sido um idiota preocupando-me com a Sociedade. Naturalmente, se eles me pegassem, de qualquer maneira me matariam como assaltante e ladrão por conta própria. Mas assaltar ia Sociedade direta e audaciosamente, matar um ladrão associado, sem necessidade — verdadeira loucura! — Você não tem sido somente um idiota bêbado e tolo, você estaria sem dúvida rescendendo no máximo há três noites, do pior dos males, a morte. A maliciosos ataques a sua pessoa, a golpes diretos à organização, a Sociedade retribui dez vezes mais severamente do que a outras quebras de regulamento e a independência inclusive. Então dê o mínimo de atenção à Vlana neste assunto. — Concordo! — disse Fafhrd em voz alta, apertando a mão musculosa de Mouser com força quase esmagadora. — Agora deveríamos voltar para a companhia das moças — disse Mouser. — Uma dose mais, enquanto acertamos a conta — Ei, rapaz! — De acordo. Vlana e Ivrian, que conversavam entretidas e animadamente, assustaram-se com o ruído das fortes pisadas subindo a escada. Uma corrida de animais antediluvianos não poderia ter feito mais barulho. Os estalos e os rangidos eram extrordinários e ouviam-se duas passadas distintas. A porta escancarou-se e seus dois homens precipitaram-se através da neblina em forma de um grande cogumelo, cuja haste negra fora nitidamente 27
arrancada com a batida violenta da porta. — Disse-lhe que voltaríamos num instante — Mouser piscou alegremente à Ivrian, enquanto Fafhrd entrava com largas passadas, não se importando com os estalos do chão, gritando: — Querida, senti muitas saudades de você — e, levantando Vlana a despeito de seus protestos e empurrões, beijou-a e abraçou-a sonoramente antes de colocá-la de volta no divã. Estranhamente, era Ivrian que parecia zangada com Fafhrd, em vez de Vlana, que sorria com ternura e deslumbramento. — Fafhrd, senhor — disse ela com atrevimento, os pequenos punhos colocados nos quadris estreitos, o queixo fino erguido, os olhos pretos flamejando — minha querida Vlana esteve me contando das inexprimíveis atrocidades que a Sociedade dos Ladrões fêz a ela e a seus mais queridos amigos. Perdoe-me a franqueza de falar com quem conheço há tão pouco, mas penso ser quase inumano de sua parte recusar-lhe a justa vingança que deseja e merece plenamente. Serve para você também, Mouser, que se gabou a Vlana sobre o que você teria feito se soubesse, mas sua intenção era de vazia bajulação. Você, que em situação semelhante não teve escrúpulos em matar meu próprio pai! Fafhrd percebeu que enquanto êle e Mouser bebiam ociosamente na Enguia, Vlana relatara a Ivrian de maneira duvidosa e colorida suas queixas contra a Sociedade, ativando impiedosamente românticas simpatias e um alto conceito de honra cavalheiresca na mente teórica da moça ingênua. Notava, também, que Ivrian estava um pouco mais do que ligeiramente embriagada. Um frasco de vinho tinto do longínquo Kiraay, quase vazio, encontrava-se na mesa baixa, perto do divã. Como se não soubesse o que fazer, estendeu suas grandes mãos desamparadamente, inclinou a cabeça mais do que o teto baixo obrigava, sob o olhar penetrante de Ivrian, agora reforçado pelo de Vlana. Afinal de contas elas tinham razão. Êle tinha prometido. Foi Mouser o primeiro que tentou refutar. — Venha cá, queridinha — exclamou suavemente, dançando pela sala, calafetando outras fendas para impedir a entrada da espessa neblina noturna, atiçando e alimentando o fogo no aquecedor — e você também, bela senhora Vlana. No último mês Fafhrd, com seus assaltos, tem atingido a Sociedade dos Ladrões ferindo-a onde ela mais sente em sua bolsa. Venham, bebamos todos. Desarrolhou um dos jarros novos com estouro e precipitou-se para encher as taças de prata e as canecas. 28
— Uma vingança de mercador — retrucou Ivrian com escárnio, nem um pouco apaziguada, mais zangada ainda. — Você e Fafhrd deveriam ao menos trazer à Vlana a cabeça de Krovas! — O que Vlana faria com ela? para que serviria senão para manchar os tapetes? — Mouser inquiria lamentosamente, enquanto Fafhrd, finalmente, recuperando sua sabedoria, ajoelhou-se e disse calmamente: — Respeitadíssima Sra. Ivrian, é verdade que prometi solenemente à minha amada Vlana que a auxiliaria em sua vingança, mas se Mouser e eu trouxéssemos à Vlana a cabeça de Krovas, ela e eu teríamos de sumir de Lankhmar no mesmo instante, pois teríamos todos os homens contra nós. Quanto a você, certamente perderia este formoso reino que Mouser criou pelo seu amor, e ambos teriam de fugir como mendigos pelo resto de suas vidas. Enquanto Fafhrd falava, Ivrian arrebatou sua taça recém-servida e bebeu um trago. Agora permanecia ereta como um soldado, o rosto pálido e ardente, e disse de maneira severa: — Você avalia as conseqüências! Você me fala de coisas — indicando o esplendor que a cercava — simples bens materiais, ainda que custosos — quando a honra está em jogo. Você deu a Vlana a sua palavra. Estará perdida toda a dignidade de cavalheiro? Fafhrd encolheu os ombros de novo, contorceu-se por dentro e bebeu, pouco à vontade, de sua caneca de prata. Com maestria, Vlana tentou habilmente conduzir Ivrian até seu assento dourado. — Calma, querida — pediu — você falou nobremente por mim e por minha causa; acredite-me, estou agradecidíssima. Suas palavras reviveram em mim sentimentos nobres e puros, mortos todos estes anos. Mas de todos nós aqui, só você é uma verdaderia aristocrata em harmonia com os mais altos padrões. Nós outros não passamos de três ladrões. Será surpreendente que algum de nós coloque a segurança acima da honra e da palavra empenhada e, mais prudentemente, evite arriscar nossas vidas? Sim, somos três ladrões e fui vencida. Por favor, não fale mais em honra e arrebatamento, em bravura destemida, mas sente-se e... — Você quer dizer que ambos estão com medo de desafiar a Sociedade dos Ladrões, não ? — disse Ivrian, os olhos abertos e o rosto crispado pelo desgosto. — Sempre pensei que meu Mouser fosse em primeiro lugar nobre e depois ladrão. Roubar não é nada. Meu pai vivia de roubos cruéis contra ricos viajantes e vizinhos menos poderosos, ainda assim era um aristocrata. Oh! vocês são covardes, ambos! Poltrões! — terminou, fi29
xando os olhos de desprezo, primeiro em Mouser, em seguida em Fafhrd. O último não pôde sustentar o olhar por muito tempo. Levantou-se de um salto, o rosto vermelho, os punhos apertados, despreocupado com o ruído de sua caneca caindo ao chão e do estalo de mau agouro que sua ação repentina produziu no soalho vergado. — Não sou um covarde! — gritou. — Desafiarei a Casa dos Ladrões e trarei a cabeça de Krovas para você e jogá-la-ei sangrando aos pés de Vlana. Juro pela minha espada Vara Cinzenta aqui ao meu lado! Levou a mão ao quadril esquerdo, mas não encontrando nada mais que sua túnica, teve que se contentar em apontar com o braço trêmulo para a espada embainhada que estava sob o manto cuidadosamente dobrado — então apanhou a caneca, encheu-a até as bordas e bebeu até o fim. Gray Mouser começou a rir em alta, divertida e estrepidosa gargalhada. Todos fitaram-no com espanto. Começou a dançar ao lado de Fafhrd e ainda sorrindo amplamente perguntou: — Por que não? Quem fala em temer a Sociedade dos Ladrões? Quem se transtorna com a perspectiva dessa façanha fácil e ridícula, quando todos sabemos que todos eles, até mesmo Krovas e sua facção regulamentada, não passam de pigmeus em argúcia e destreza, comparados a mim ou a Fafhrd? Ocorreu-me agora um esquema admiràvelmente simples e seguro para penetrar na Casa dos Ladrões em todas as suas frestas e cubículos. Fafhrd e eu levá-lo-emos a efeito imediatamente. Você está comigo, Nortista? — Naturalmente que sim — respondeu Fafhrd com grosseria, ao mesmo tempo indagando-se frenèticamente que loucura afligira seu pequeno companheiro. — Dê-me algum tempo para reunir o material necessário e sairemos — gritou Mouser. Puxou de uma estante um saco resistente, então correndo para lá e para cá, jogou para dentro um rolo de cordas e ataduras, jarros de óleo, pomada e ungüento e o outras ninharias. — Mas você não pode ir esta noite — protestou Ivrian, repentinamente pálida e com voz incerta. — Estão ambos... sem condições. — Estão ambos embriagados — disse Vlana com aspereza. — Todos embriagados, e desta maneira não conseguirão nada na Casa dos Ladrões, exceto a morte. Fafhrd! Controle-se! — Oh não — Fafhrd disse-lhe enquanto afivelava a espada. — Você queria a cabeça de Krovas lançada a seus pés numa grande possa de sangue e é o que vai receber, ou isso ou nada. 30
— Calma, Fafhrd — Mouser interveio, parando de repente, e fechou firmemente a boca do saco, puxando suas tiras. — E devagar você,também, Sra. Vlana, e minha querida princesa. Tenciono executar esta noite apenas uma expedição de patrulha. Não correremos riscos, somente obteremos a informação necessária para planejar o golpe mortal amanhã ou depois. Então nada de cabeças cortadas ou qualquer violência esta noite, Fafhrd, entendeu? O que quer que suceda, observar é a palavra. Vista o seu manto de capuz. Fafhrd deu de ombros, concordou e obedeceu. Ivrian parecia um pouco aliviada. Vlana também, contudo disse: — De qualquer modo estão ambos embriagados. — Tudo vai dar certo! — Mouser assegurou-lhe com um sorriso louco. — O álcool pode retardar a espada de um homem e abrandar um pouco seus golpes, mas deixa suas idéias ardentes, inflama a imaginação, e são estas as qualidades de que precisaremos esta noite. Vlana olhou-o indecisa. Aproveitando-se da confabulação, Fafhrd, tranqüilo, mas rapidamente, preparou-se para encher uma vez mais sua caneca e a de Mouser, mas Vlana, notando, isso, lançou-lhe um olhar tão penetrante que êle depositou as canecas e o jarro destampado, tão ligeiro que seu manto esvoaçou. Mouser colocou o saco nos ombros e abriu a porta com violência. Com um abano casual às moças, em silêncio, Fafhrd saiu para o pequeno alpendre. A neblina noturna estava tão espessa que quase não se podia avistá-lo. Mouser acenou quatro dedos a Ivrian e seguiu Fafhrd. — Que a boa sorte os acompanhe — gritou Vlana cordialmente. — Oh, tenha cuidado, Mouser — murmurou. Ivrian. Mouser, a figura delgada contra o vulto de Fafhrd, fechou a porta em silêncio. Automaticamente as moças se abraçaram, esperando os inevitáveis estalos e gemidos da escada. Demorava e demorava. A neblina noturna que entrava na sala já se dissipara e o silêncio continuava total. — O que podem eles estar fazendo? —- murmurou Ivrian. — Planejando seu rumo? Vlana, impaciente, sacudiu a cabeça, então desembaraçando-se, foi até a porta na ponta dos pés, abriu-a, desceu com cuidado alguns degraus que estalavam dolorosamente e voltou, fechando a porta atrás de si. — Foram-se — disse admirada. 31
— Estou assustada — murmurou Ivrian. Atravessou rapidamente a sala e abraçou a moça mais alta. Vlana estreitou-a, e logo desvencilhou um braço para correr os três pesados ferrolhos da porta. Na Travessa dos Ossos, Mouser recolocou em sua bolsa a linha que amarrara ao gancho da lâmpada e pela qual eles tinham descido. Sugeriu: — Que tal pararmos na Enguia Prateada? — Você está falando sério? Pararmos na Enguia Prateada e depois dizer às garotas que estivemos na Casa dos Ladrões? — perguntou Fafhrd. — Oh! não — Mouser protestou — mas você não conseguiu seu trago de despedida e eu também não. Com um sorriso velhaco, Fafhrd tirou de baixo do manto dois jarros cheios. — Passei a mão neles, como estavam, quando depositei as canecas. Vlana viu muito, mas não tudo. — Você é prevenido, camarada perspicaz — disse Mouser com admiração. — Orgulho-me em chamá-lo de camarada. Cada um abriu um jarro e bebeu um gole sequiosamente. Sob a indicação de Mouser, dirigiram-se para oeste, mudando de rumo e tropeçando um pouco, então entraram a norte numa travessa ainda mais estreita e fétida. — Beco da Peste — disse Mouser. Depois de diversas olhadelas e espreitadas preliminares, cruzaram rápidos e cambaleantes a ampla e vazia Rua da Astúcia e entraram novamente no Beco da Peste. Inesperadamente, o beco tornava-se um pouco mais claro. Olhando para cima viram estrelas. No entanto, nenhum vento soprava do norte. O ar estava mortalmente parado. Embriagados e preocupados com seu plano e a simples locomoção, não olharam para trás. Lá, a neblina noturna estava espessa como nunca. Um vôo circular de corvos noturnos veria as partículas convergindo de todas as partes de Lankhmar e em rápidos e escuros regatos e rios, acumulando-se, redemoinhando, correndo em espirais, a escura e enfumaçada essência de Lankhmar oriunda dos ferretes, braseiros, fogueiras e fogos de cozinha e de aquecedores, fornos, fornalhas, cervejarias, destilarias, incineradores de lixo, vapores de alquimistas e dos antros de feiticeiros, crematórios, montes de carvões em brasa, todos estes e muito mais... convergindo determinadamente sobre o Beco Escuro, e particularmente sobre a Enguia Prateada e a frágil casa atrás dela. Quanto mais se aproximavam deste ponto, mais compacta tornava-se a neblina, fiapos em 32
turbilhão e trapos em espirais prendiam-se como teias pretas nos cantos ásperos das pedras e na irregular superfície dos tijolos. Mas Mouser e Fafhrd só tinham exclamações de branda e muda admiração para as estrelas e, ziguezagueando cautelosamente, atravessaram a Rua dos Pensadores, chamada Avenida dos Ateístas pelos moralistas, continuando pelo Beco da Peste até a bifurcação. Mouser escolheu o caminho da esquerda que se dirigia para noroeste. — Travessa da Morte. Depois de duas curvas, a Rua das Pechinchas surgiu cerca de trinta passos à frente. Mouser parou imediatamente e segurou Fafhrd. Via-se claramente, no outro lado da Rua das Pechinchas, a entrada ampla, baixa e aberta da Casa dos Ladrões, construída de sujos blocos de pedra. Dois degraus esburacados por séculos de uso levavam até ela. De dentro suportes com tochas derramavam luzes amarelo-alaranjado. Não havia porteiro ou guarda à vista, nem mesmo um cão de vigia numa corrente. O efeito era agourento. — Agora, como conseguiremos entrar neste maldito lugar? — perguntou Fafhrd num sussurro louco. — Esta entrada cheira a armadilha. Por fim, Mouser respondeu com desdém: — Por quê? — Entraremos direto por esta entrada que você teme. — Franziu as sobrancelhas. — Apronte-se, mexa-se. Venha, vamos nos preparar. Enquanto voltava, arrastando o cético e carrancudo Fafhrd pela Travessa da Morte até que toda a Rua das Pechinchas desaparecesse de vista, explicava: — Passaremos por mendigos, membros da sua Sociedade, que nada mais é do que um ramo da Sociedade dos Ladrões e que informa ao Chefe dos Mendigos, na Casa dos Ladrões. Seremos membros novos, que saíram durante o dia, de modo que não é provável que o Chefe dos Mendigos Noturnos nos reconheça. — Mas não temos aparência de mendigos — protestou Fafhrd. — Os mendigos têm chagas horríveis e são aleijados. — É isso exatamente o que vou providenciar agora — riu-se Mouser puxando Escalpelo. Ignorando a hesitação e o olhar receoso de Fafhrd, Mouser olhou atento e confuso para a longa e fina barra de aço que desembainhara; então, com um alegre assentamento, desprendeu do cinto a bainha de pele de rato do Escalpelo, embainhou a espada rapidamente e enrolou-a toda em espirais, incluindo o cabo, com a larga faixa do rolo de ataduras 33
tirado do saco. — Eis — disse, amarrando as pontas da faixa. — Agora tenho uma bengala contudente. — O que é isto? — Fafhrd. — E por quê? Mouser colocou um trapo preto e fino por sobre os olhos e amarrou-o firmemente atrás da cabeça. — Porque serei cego, eis a razão. Deu alguns passos cambaleantes, batendo nos seixos à frente com a espada enrolada — segurando-a pelo guarda-mão, de tal modo que a alça e o punho ficaram escondidos pelas mangas — e tateando à frente com a outra mão. — Que tal lhe parece, bem? — perguntou a Fafhrd enquanto se virava. — Parece-me, perfeito. Morcego cego! — Oh! Não se aborreça, Fafhrd — o pano é de gaze, posso enxergar através dele perfeitamente bem. Além disso, não preciso convencer ninguém na Casa dos Ladrões de que sou realmente cego. Muitos mendigos da Sociedade fingem ser cegos, como você deve saber. Agora, o que fazer com você? Não poderá ser cego também — óbvio demais — poderia provocar suspeitas. — Desarrolhou o jarro e sugou inspiração. Fafhrd imitou o seu gesto, em princípio. — Encontrei! Fafhrd, firme-se em sua perna direita e dobre a esquerda para trás. Segure-se! — não caia em cima de mim! Avante! Segurese em meu ombro. Assim está bem. Agora, mantenha o pé esquerdo mais alto. Disfarçaremos sua espada como a minha, como uma muleta — é mais grossa e ficará bem. Você também pode se firmar com a outra mão em meu ombro, enquanto pula — o coxo conduzindo o cego. Mas, mais alto com este pé esquerdo! Não, êle não deve escorregar — terei que amarrá-lo. Mas, primeiro, desprenda a bainha. Em seguida, Mouser transformava Vara Cinzenta com a bainha, como fizera com Escalpelo e amarrava o tornozelo esquerdo de Fafhrd à coxa, puxando a corda brutalmente, ainda que os nervos de Fafhrd, vermelhos o entorpecidos, mal o registrassem. Equilibrando-se com a muleta de aço enquanto Mouser trabalhava, bebeu com grandes goles e deliberou profundamente. Por mais brilhante que fosse o plano de Mouser, parecia que se prejudicariam com êle. — Mouser — disse — não sei se estou satisfeito com as espadas amarradas, assim não poderemos puxá-las numa emergência. 34
— Podemos ainda usá-las como cacetes — retrucou Mouser, a respiração sibilando entre os dentes enquanto esticava firme o último nó. — Além disso, teremos nossas facas. Aliás, vire seu cinto para que a faca fique nas costas, então o manto a esconderá, seguramente. Farei o mesmo com Garra de Gato. Mendigos não usam punhais, ao menos à mostra. Pare de beber agora, você já bebeu demais. Preciso de dois tragos mais para alcançar minha melhor forma. — Não sei se gostarei de entrar maneando neste antro de assassinos. Posso pular espantosamente ligeiro, é verdade, mas não tão depressa quanto posso correr. É realmente compreensível, não acha? — Você pode se livrar num instante — falou Mouser sibilando, com um toque de impaciência e irritação. — Você não está querendo fazer o menor sacrifício, por amor à arte? — Oh! Muito bem — disse Fafhrd, esvaziando seu jarro e jogandoo para o lado. — Sim, naturalmente que quero. — Sua compleição é vigorosa demais — disse Mouser, inspecionando-o criticamente. Retocou o rosto e as mãos de Fafhrd com graxa cinza-pálido; então salientou as rugas com cinza-escuro. — E seus trajes estão limpos demais. Escavou poeira de entre os seixos e sujou o manto de Fafhrd, depois tentou rasgá-lo, mas o pano resistiu. Deu de ombros e meteu o saco vazio no cinto. — Agora é sua vez — observou Fafhrd, e agachou-se em sua perna direita, pegou uma boa quantidade de sujeira. Levantou-se com esforço, e limpou a mão na capa de Mouser e na jaqueta de seda cinza. O homenzinho blasfemou, mas — conformidade dramática — Fafhrd lembrou-o. — Agora venha, enquanto nossos ânimos e nossa irritação ainda estão no auge. — Agarrando-se nos ombros de Mouser, impeliuse rapidamente pela Rua das Pechinchas, apoiando sua espada enrolada bem à frente, entre os seixos, dando saltos vigorosos. — Devagar, idiota — Mouser gritou, não muito alto, deslizando quase tão veloz quanto um patinador equilibrando-se, enquanto batia sua bengala (espada) furiosamente: — Presume-se que um aleijado seja fraco, isto é que atrai a simpatia. Fafhrd concordou sabiamente e andou um pouco mais devagar. A entrada vazia e agourenta aparecia aos poucos, de novo. Mouser inclinou seu jarro para beber todo o vinho, sorveu-o demoradamente e apoiouse estonteado. Fafhrd apanhou o jarro e, esgotando-o, jogou-o para trás, 35
despedaçando-o ruidosamente . Arrastaram-se, aos pulos, para o outro lado da Rua das Pechinchas, subiram os degraus gastos e, através da entrada, passaram pelo muro excepcionalmente espesso. À frente, havia um corredor longo e reto, de teto alto, terminando em escadas, iluminado pela claridade que se infiltrava através das portas e pelas chamadas tochas nas paredes, porém vazio em toda a sua extensão. Tinham acabado de passar pela entrada quando o fio do aço arrepiou-lhe o pescoço e picou-lhes o ombro. Do alto, duas vozes ordenaram em uníssono: — Parem! Embora excitados — e estontea-dos — pelo vinho forte, ambos tiveram a suficiente lucidez de se imobilizarem, e então, muito cautelosamente, olharam para cima. Dois rostos esqueléticos, cheios de cicatrizes, excepcionalmente feios, emoldurados por cabelos pretos presos por uma faixa de pano espalhafatosa, olhavam para eles de um grande e profundo nicho bem em cima da entrada. Dois braços musculosos e curvos empurraram as espadas que ainda os espetavam. — Saíram com o grupo dos mendigos do meio-dia, hem? — observou um deles. — Bem, será melhor que tenham uma boa coleta para justificar a volta tardia. O Chefe dos Mendigos Noturnos está de licença na Rua das Prostitutas. Apresentem-se a Krovas. Meu Deus, vocês cheiram mal! É melhor limparem-se primeiro ou Krovas os jogará num banho de vapor fervendo. Andem! Fafhrd e Mouser arrastaram-se mancando para frente, da maneira mais autêntica possível. Um guarda sentinela gritou atrás deles: — Relaxem-se, meninos! Aqui não precisam fingir. — A prática faz o mestre — respondeu Mouser com voz trêmula. As pontas dos dedos de Fafhrd cutucaram o ombro de Mouser, advertindo-o. Caminharam um pouco mais naturalmente, tanto quanto a perna atada de Fafhrd o permitisse. De fato, pensou Fafhrd, Kos dos Destinos parecia estar conduzindo-o diretamente a Krovas e talvez cabeças cortadas fossem a ordem da noite. Agora começaram a ouvir vozes, na maioria ásperas e entrecortadas, e outros ruídos. Passaram por outras entradas nas quais desejaram deter-se, embora o máximo que ousaram foi diminuir um pouco mais a marcha. Muito interessantes eram algumas daquelas atividades. Numa sala, jovens rapazes estavam sendo treinados para bater carteiras e abrir bolsas. Abordavam um instrutor pelas costas e, se êle ouvisse o ruído de 36
pés descalços ou sentisse o toque da mão batendo a carteira — ou, pior, ouvisse o tinido das falsas moedas de chumbo ao caírem — aquele rapaz seria espancado. Em uma segunda sala, ladrões estudantes mais velhos faziam experiências de como arrombar fechaduras. Um grupo assistia às aulas de um velho respeitável e de mãos encardidas que desmontava uma fechadura mais complexa, peça por peça. Numa terceira sala, os ladrões comiam em mesas compridas. Os odores eram tentadores, mesmo para os homens embriagados. A Sociedade tratava bem seus membros. Numa quarta, o piso era parcialmente acolchoado; ali eram treinados a fugir, trapacear, saltar, dar cambalhotas e, desta maneira, despistar as perseguições. Uma voz como a de um primeiro sargento rosnou: — Não, não, não! Vocês não poderiam escapar nem de uma avó aleijada. Eu disse abaixar-se, não ajoelhar-se em adoração a Arth. Agora desta vez... Nesse meio tempo, Mouser e Fafhrd estavam a meio caminho do topo da escada, Fafhrd pulando com esforço, agarrando-se no corrimão e na espada enfaixada. O segundo andar assemelhava-se ao primeiro, embora tão suntuoso quanto o outro era simples. Pelo longo corredor alternavam-se lâmpadas e potes de incenso ornamentados com filigrana, pendentes do teto, difundindo uma luz suave e um odor picante. As paredes eram ricamente cobertas, o chão espêssamente atapetado. Contudo, estava vazio também e, além disso, completamente silencioso. Após trocarem-se um olhar, seguiram adiante corajosamente. A primeira porta, escancarada, mostrava uma sala desabitada, cheia de cabides com trajes ricos e simples, impecáveis e imundos, também suportes com perucas, estantes com barbas e coisas deste gênero. Uma sala de disfarces, evidentemente. Mouser entrou e saiu rapidamente a fim de apanhar um grande frasco verde sobre a mesa mais próxima. Destampou-o e cheirou-o. Um odor forte de gardência, podre e adocicado, opôs-se aos vapores do vinho que impregnavam seu nariz. Mouser salpicou seu rosto e o de Fafhrd com este duvidoso perfume. — Antídoto contra sujeira — explicou com a empáfia de um médico, tampando o frasco. — Não quero ser ludibriado por Krovas. Não, não. não. Dois vultos apareceram no fim do corredor e dirigiram-se a eles. 37
Mouser escondeu o frasco sob seu manto, apertando-o contra o corpo com o braço, e seguiram corajosamente em frente. As próximas três entradas, pelas quais passaram, estavam fechadas por pesadas portas. Perto da quinta entrada, os dois vultos que se aproximavam de braços dados, tornaram-se nítidos. Suas roupas eram de nobres, mas seus rostos de ladrões. Olhavam com desagrado, indignação e suspeita para Mouser e Fafhrd. Neste exato momento, de algum lugar entre os dois pares, uma voz começou a falar numa língua estranha, usando o tom rápido e monótono que os padres empregam nos sermões de rotina, ou alguns feiticeiros nas suas magias. Os dois ladrões ricamente vestidos detiveram-se no sétimo vão e olharam para dentro. Interromperam sua caminhada. Os pescoços esticados, os olhos arregalados. Empalideceram. Então, de repente, avançaram rapidamente quase correndo, e passaram por Fafhrd e Mouser como se estes fossem apenas peças de mobiliário. A voz encantada retumbava continuamente. A quinta entrada estava fechada, mas a sexta aberta. Mouser olhou de esguelha para dentro, o nariz esbarrando de leve no umbral. Deu um passo adiante e olhou atentamente o interior com expressão fascinada, empurrando para a testa o trapo preto para poder enxergar melhor. Fafhrd juntou-se a êle. Era uma sala grande, vazia do que possa ser chamado de vida humana e animal, mas abarrotada dos mais interessantes objetos. De certa altura para cima, toda a parede oposta era um mapa da cidade de Lankhmar. Todos os prédios e ruas estavam ali representados, até a mais insignificante choupana e a mais estreita viela. Havia sinais de rasuras, recentes e novos desenhos em muitos pontos, e aqui e ali, pequenos hieróglifos coloridos de misteriosa significação. O soalho era de mármore, o teto azul como lápis-lazúli. As paredes lateriais eram abundantemente carregadas, uma delas com todas as espécies de ferramentas de ladrões, desde uma imensa, espessa alavanca que parecia ser capaz de deslocar o universo, até uma haste tão delgada que podia ser uma vara de condão aparentemente planejada para projetar-se e pescar de uma certa distância preciosos adornos de um toucador de dama, com tampa de marfim e pernas alongadas. Todas as espécies de estranhos objetos, brilhantes e cintilantes, estavam presos a cadeado na outra parede, evidentemente mementos escolhidos por suas excentricidades, nas pilhagens de memoráveis assaltos, desde uma máscara feminina 38
de ouro delgado, empolgantemente bonita em suas feições e contornos, mas espêssamente incrustada de rubis, simulando as marcas da varíola no estágio febril, até uma faca cujas lâminas eram diamantes cuneiformes colocados lado a lado e a borda cortante como uma navalha afiada. No centro da sala estava uma mesa redonda, vazia, de ébano e quadrados de marfim. Cercavam-na sete cadeiras de encosto reto mas bem estofadas; uma delas, em frente ao mapa e afastada de Mouser e Fafhrd, tinha o encosto mais alto e braços mais largos que as outras — a cadeira do chefe, provavelmente a de Krovas. Mouser adiantou-se na ponta dos pés, irresisíivelmente atraído, mas a mão esquerda de Fafhrd apertou seu ombro. Franzindo o sobrolho com desaprovação, o Nortista puxou a venda preta sobre os olhos de Mouser novamente, apontou para a frente e partiu naquela direção em pulos cuidadosos, calculados e silenciosos. Encolhendo os ombros, desapontado, Mouser seguiu-o. Logo que se afastaram da entrada, uma cabeça, de barbas pretas e cabelos curtos, apareceu como uma serpente ao lado da cadeira mais alta, fixou-os atentamente com olhos encovados e brilhantes. Em seguida, um dedo de ofídio da mão comprida e flexível, aproximou-se dos lábios como uma serpente em sinal de silêncio, acenando com os dedos para os dois pares de homens vestidos com túnicas parados de cada lado da entrada, de costas para o corredor, segurando em uma das mãos um punhal e na outra um pesado cacete de couro escuro. Quando Fafhrd estava a meio caminho da sétima entrada, de onde vinha a monótona mas sinistra recitação, surgiu um jovem esguio e de faces pálidas, os olhos arregalados de terror, as mãos estreitas colocadas sobre a boca, como se abafando gritos ou vômitos, e com uma vassoura embaixo do braço, parecendo-se um pouco com um jovem feiticeiro pronto para voar. Passou impetuosamente por Fafhrd e Mouser, continuou, as pisadas rápidas e abafadas pelos tapetes e com sons agudos nas escadas, até extinguir-se. Fafhrd olhou atentamente para Mouser com uma careta e um encolher de ombros, e ajoelhou-se, avançou a metade de seu rosto pelo umbral da porta. Depois de um instante, sem entretanto mudar de posição, acenou para que Mouser se aproximasse. Este último espiou, colocando vagarosamente a cabeça por cima da de Fafhrd. O que eles viam era uma sala menor do que a do mapa, iluminada por luminárias centrais que davam uma claridade branco-azulada, ao invés da costumeira luz amarelada. O chão era de mármore escuro e 39
com desenhos em espirais. Das paredes pendiam quadros astrológicos e antropomânticos, instrumentos de magia e estantes com jarros de porcelana criptieamente rotulados, frascos vítreos e tubos de vidro das mais estranhas formas, alguns cheios de fluídos coloridos, outros rutilantemente vazios. Ao pé das paredes, onde as sombras eram mais espessas, trastes quebrados e rejeitados amontoavam-se irregularmente, como se arrastados do caminho e esquecidos, ao mesmo tempo em que grandes tocas de ratos apareciam aqui e ali. No centro da sala, com um brilho contrastante, havia uma mesa comprida de tampo espesso e, inúmeras pernas sólidas. Lembrou a Mouser uma centopéia e o bar da Enguia, pois o tampo da mesa estava intensamente sujo e marcado por sucessivas manchas de elixires e queimaduras escuras causadas por fogo e ácido. No meio da mesa um alambique funcionava. A chama da lamparina, azul-escura, conservava fervendo na cucúrbita grande de cristal, um líquido escuro e viscoso com cintilações luminosas. Da matéria espessa e espumante subiam espirais de vapor mais escuro para aglomerarem-se através do gargalo da cucúrbita e tingir — estranhamente, de escarlate brilhante — a parte superior transparente. Então, agora de um preto intenso, dali fluía por um cano estreito para um recipiente esférico de cristal, ainda maior que a cucúrbita, e aí ondulava-se e entrelaçava-se como rolos vivos de corda preta — uma serpente de ébano — sinuosa e sem fim. Atrás da extremidade esquerda da mesa encontrava-se um homem alto e encurvado, de manto preto com capuz, que sombreava mais do que escondia um rosto cujas feições eram muito proeminentes, o nariz grosso, longo e pontudo, a boca saliente e quase sem queixo. Sua côr era cinzapálida, como barro arenoso. Uma barba aparada, eriçada e cinza crescia no alto da face. Abaixo da testa recuada e das cinzentas sobrancelhas cerradas, os olhos separados olhavam intensamente para o pergaminho amarelecido que suas pequenas mãos repugnantes, de juntas grandes e pêlos cinzentos, desenrolavam sem cessar. O único movimento que seus olhos faziam, além de um curto vai-e-vem ao ler as linhas que ràpidamente entoava, era uma ocasional olhadela para o alambique. Do outro lado da mesa, havia um pequeno animal preto encolhido, cujos olhos grandes e redondos moviam-se rapidamente do feiticeiro para o alambique e vice-versa. Fafhrd, percebendo-o de relance, fincou os dedos dolorosamente no ombro de Mouser que quase sufocou, mas não de dor. Parecia-se mais com um rato, embora tivesse uma testa mais alta 40
e olhos mais juntos, enquanto suas patas dianteiras que constantemente esfregava impaciente, parecendo divertir-se, assemelhavam-se a minúsculas cópias das mãos disformes do feiticeiro. Simultânea, mas independentemente, Fafhrd e Mouser certificaram-se de que era o animal que escoltara Slivikin e seu companheiro e escapara. Recordaram-se do que Ivrian dissera a respeito do demônio de bruxa e Vlana acêrca da probabilidade de Krovas ter um empregado feiticeiro. O ritmo do encantamento acelerou-se; as chamas branco-azuladas, brilharam e chiaram audivelmente; o fluido da cucúrbita tornou-se espesso como lava; grandes bolhas se formaram e estouraram ruidosamente; a corda preta no recipiente enroscou-se como um ninho de serpentes; havia uma crescente impressão de presenças invisíveis; a tensão sobrenatural tornou-se quase insuportável, e Fafhrd e Mouser tiveram dificuldade em ficar silenciosos, e embasbacados, de boca aberta, pela qual agora respiravam, temiam que as batidas do coração pudessem ser ouvidas ao longe. Abruptamente a feitiçaria atingiu o máximo e cessou como um tambor rufando que fosse instantaneamente silenciado pela palma da mão e pelos dedos estendidos contra o couro. Com um brilhante clarão e uma surda explosão, inumeráveis rachas apareceram na cucúrbita; seu cristal tornou-se branco e opaco; no entanto, não se despedaçou e nem vazou. A parte superior do alambique subiu um pouco, vacilou e recuou. Duas laçadas pretas apareceram entre as espirais no recipiente e repentinamente reduziram-se a dois grandes nós pretos. O feiticeiro sorriu maliciosamente, deixou o fim do pergaminho a enrolar-se com um estalo, mudou o olhar atento do recipiente para o seu demônio que saltava e guinohava extasiado. — Silêncio, Slivikin! Agora vem a sua vez de correr, esforçar-se e suar — gritou o bruxo, falando em jargão Lankhmaresco, agora, mas tão rapidamente e com voz tão aguda que Fafhrd e Mouser mal podiam acompanhá-lo. Entretanto, ambos perceberam que estavam enganados quanto à identidade de Slivikin. No momento do infortúnio, o ladrão gordo preferira pedir ajuda ao animal bruxo que ao seu companheiro humano. — Sim, mestre — Slivikin respondeu confusamente, modificando, num instante, as opiniões de Mouser sobre animais falantes, continuou no mesmo tom agudo e bajulador: — Ouço-lhe obedientemente, Hristomilo. Hristomilo ordenou em sons sibilantes: 41
— Vá fazer a sua tarefa! Convoque um número suficiente de convivas! Quero os corpos estripados até os ossos, de maneira que os efeitos da névoa mágica e todas as evidências de morte por sufocação fiquem totalmente apagados. Mas não esqueça a pilhagem! A missão, agora —. parta! Slivikin, que a cada ordem sacudia levemente a cabeça, demonstrando sua vivacidade, agora, guinchava: — Providenciarei para que assim seja! — e, como um relâmpago cinzento, saltou ao chão e entrou numa escura toca de rato. Hristomilo, esfregando suas mãos à maneira de Slivikin, gritou às gargalhadas: — O que Slevyas perdeu, minha mágica reconquistou! Fafhrd e Mouser retiraram-se, em parte por medo de serem vistos, em parte por repulsa do que tinham visto e ouvido, nuna pungente, mas inútil piedade por Slevyas, fosse êle quem fosse, e pelas outras vítimas desconhecidas das palavras mágicas mortais do feiticeiro referentes a ratos, pobres estranhos, que mortos, teriam suas carnes devoradas. Fafhrd arrebatou a garrafa verde de Mouser e, quase vomitando do cheiro fétido, tomou um grande e forte gole, Mouser não se animou a fazer o mesmo, conformando-se em aspirar os vapores do áleool. Então, viu, além de Fafhrd, de pé antes da entrada da sala do mapa, um homem ricamente vestido com uma faca de cabo de ouro e bainha incrustada de jóias. A face de olhos fundos era prematuramente enrugada nela responsabilidade, excesso de trabalho è autoridade, emoldurada por cabelos e barba pretos, cuidadosamente cortados. Sorrindo, acenou-lhes silenciosamente com um gesto sinuoso. Mouser e Fafhrd obedeceram, o último devolvendo a garrafa verde ao primeiro, que a escondeu embaixo da capa segurando-a com o braço, com dissimulada irritação. Suspeitaram que aquele que os convocara era Krovas, o Grão-Mestre da Sociedade. Mais uma vez, novamente, Fafhrd admirava-se, enquanto mancava de modo impetuoso e vacilante, como Kos ou os Destinos guiavam-no a seu alvo esta noite. Mouser, mais alerta e também mais apreensivo, lembrava-se que eles tinham sido encaminhados pelas sentinelas para apresentarem-se a Krovas, de modo que a situação, se bem que não se desenvolvesse totalmente de acôrdo com seus próprios planos vagos, deles não se desviava desastrosamente. Entretanto, nem mesmo sua vigilância, nem os instintos primitivos de Fafhrd preveniram-nos, quando seguiam Krovas, para a sala dos 42
mapas. Logo que entraram, foram agarrados rapidamente pelo ombro e ameaçados com cacetes por um par de valentões armados com facas nos cintos. — Estão sob controle, Grão-Mestre — um dos rufiões vociferou. Krovas girou a cadeira mais alta e sentou-se, olhando-os friamente. — O que traz dois bêbados e malcheirosos mendigos associados até os aposentos mais reservados dos mestres? — perguntou calmamente. Mouser sentiu um suor de alívio formar gotas na testa. Os disfarces que imaginara brilhantemente ainda funcionavam, logrando até mesmo o chefe, embora este tivesse percebido a embriaguez de Fafhrd. Reassumindo os ares de cego, disse trêmulo: — Fomos encaminhados pelo guarda à porta da Rua das Pechinchas para apresentarmo-nos a vós em pessoa, grande Krovas, pois o Senhor dos Mendigos Noturnos estava de licença, por razões de higiene sexual. Hoje à noite conseguimos uma boa bolada! — E, remexendo na sua bolsa, ignorando tanto quanto possível o forte aperto nos seus ombros, êle retirou uma moeda de ouro e exibiu-a com as mãos trêmulas. — Poupem-me de sua inexperiente atuação — disse Krovas bruscamente. — Não sou uma das suas vítimas. E tire esta venda dos olhos. Mouser obedeceu, endireitou-se novamente tanto quanto sua manietação permitisse, e sorriu, procurando parecer o mais despreocupado possível, apesar das novas incertezas despertadas. Compreensivelmente, sua representação não era tão brilhante quanto pensara. Krovas inclinou-se para a frente e disse plácida mas penetrantemente : — Admitindo que vocês estivessem tão atarefados, por que estavam espiando para a sala ao lado desta quando os encontrei? — Vimos bravos ladrões fugindo desta sala — Mouser respondeu, convenientemente. — Temendo que algum perigo ameaçasse a Sociedade, meu camarada e eu investigamos, prontos a Impedi-lo. — Mas o que vimos e ouvimos apenas nos tornou perplexos, grande Senhor — disse Fafhrd polidamente. — Não perguntei a você, beberrão. Só fale quando lhe fôr dirigida a palavra — vociferou Krovas. Então, dirigindo-se a Mouser: — Você é um velhaco vaidoso, presunçoso demais para seu nível. Os mendigos alegam proteger os ladrões — realmente! Pretendo mandar açoitá-los por sua curiosidade, outra vez por sua embriaguez, sim, e uma vez mais por suas 43
mentiras. Num lampejo Mouser decidiu que a situação exigia mais insolência e mentiras do que bajulação. — Eu sou um malandro muitíssimo presunçoso, na verdade, senhor — disse de modo convencido. E, com um ar solene: — Mas agora vejo que chegou a hora de dizer toda a mais negra verdade. O Mestre dos Mendigos Diurnos suspeita de um complô contra sua própria vida, senhor, por um de seus mais altos e mais próximos tenentes — um em quem você confia tanto que não acreditaria, senhor. Êle nos contou! Por esta razão designou-nos a mim e a meu companheiro para protegê-lo e pegar este miserável canalha. — Mais mentiras desajeitadas — disse Krovas rispidamente, mas Mouser viu sua face tornar-se pálida. O Grão-Mestre ergueu-se um pouco da sua cadeira. — Qual tenente? Mouser sorriu malicioso e relaxou. Seus dois cantores fixaram-no de lado curiosamente, afrouxando as mãos um pouco. O par de Fafhrd parecia igualmente intrigado. — Você está me interrogando como um fiel espião ou um mentiroso amarrado? Caso seja o último, não o insultarei com nenhuma palavra a mais. O rosto de Krovas tornou-se mais sombrio. — Rapaz! — chamou. Através das cortinas de uma entrada secreta, surgiu um jovem com a pele escura de um Keeshita e vestindo apenas uma tanga preta; ajoelhou-se diante de Krovas, que ordenou: — Convoque primeiro meu feiticeiro, em seguida os ladrões Slevyas e Fissif — após o que, o jovem moreno correu para o corredor. Krovas hesitou um momento, pensando, e logo estendeu a mão em direção a Fafhrd: — O que você sabe a este respeito, beberrão? Você sustenta a estória maluca de seu companheiro? Fafhrd apenas escarneceu e cruzou os braços, pois os captores os agarravam frouxamente. Sua mão segurava levemente a muleta-espada, que pendia contra seu corpo. Então franziu a testa, sentindo uma súbita e aguda dor na perna esquerda amarrada e dormente, que já esquecera. Krovas ergueu-se com um punho cerrado em prelúdio a alguma ordem terrível — provavelmente que Fafhrd e Mouser fossem torturados, mas neste instante Hristomilo entrou na sala, os pés presumivelmente rá44
pidos e os passos muito curtos — de qualquer modo, seu manto preto tocava sereno o piso de mármore apesar de sua velocidade. Houve um choque à sua entrada. Todos os olhos na sala dos mapas seguiam-no, a respiração suspensa, e Mouser e Fafhrd sentiram as mãos calosas que os seguravam tremer um pouco. Até mesmo a expressão tensa de Krovas tornou-se também defensivamente apreensiva. Aparentemente absorto da reação provocada por seu aparecimento, Hristomilo, com um sorriso nos lábios finos, parou ao lado da cadeira de Krovas e inclinou sua face roedora num arremedo de reverência. Krovas perguntou ríspida mas nervosamente, gesticulando em direção a Mouser e Fafhrd: — Você conhece estes dois? Hristomilo acenou positivamente: — Agora mesmo ambos me espiavam com um olhar estonteante — disse — enquanto eu fazia aquele negócio de que falamos. Eu os teria enxotado e denunciado, não fosse tal ação quebrar meu encanto mágico, desajustar minhas palavras com o trabalho do alambique. Um deles é um nortista, as feições do outro têm uma aparência de sulista — o mais provável, de Tovilinis ou proximidades. Ambos mais jovens do que aparentam agora. Bandidos independentes, eu os julgaria, da espécie que a Irmandade contrata como extras quando estão sobrecarregados, com serviços de vigia e escolta. Claro, agora, grosseiramente disfarçados de mendigos. Fafhrd bocejando, Mouser sacudindo a cabeça penalizado, tentavam convencer de que tudo isso não passava de pobres conjeturas. Mouser ainda acrescentou um penetrante olhar de advertência, breve como um relâmpago, sugerindo a Krovas que o tenente poderia ser o próprio feiticeiro do Grão-Mestre. — Eis tudo que posso lhe dizer sem ler suas mentes — Hristomilo concluiu. — Devo mandar vir minhas luzes e espelhos? — Ainda não. — Krovas encarou Mouser e disse: — Agora, fale a verdade ou a obterei por meio de mágicas, e então serão açoitados até a morte. Qual dos meus tenentes foi indicado para vocês o espionarem, pelo Chefe dos Mendigos Diurnos? Mas estão mentindo sobre este encargo, creio? — Oh! Não — Mouser negou-o fingindo sinceridade. — Informamos todas nossas atividades ao Chefe dos Mendigos Diurnos e êle aprovou-as, dizendo-nos para espionar o melhor que pudéssemos e reunir o maior número possível de fragmentos, fatos e rumores sobre a conspiração. 45
— E êle nada me falou sobre isto! — Krovas vociferou. — Se fôr verdade, mandarei cortar a cabeça de Bannat por isto! Mas vocês estão mentindo, não? Quando Mouser fixava Krovas com olhar ofendido, um homem imponente passou mancando pela entrada, com o apoio de uma bengala dourada. Movia-se em silêncio, e serenamente. Mas Krovas o viu. — Chefe dos Mendigos Noturnos! — chamou categoricamente. O homem coxo parou, voltou-se e entrou majestosamente. Krovas apontou um dedo para Mouser, depois para Fafhrd: — Você conhece estes dois, Flim? O Chefe dos Mendigos Noturnos estudou sem pressa cada um, por algum tempo, e sacudiu a cabeça com um turbante dourado. — Nunca vi nenhum deles antes. Quem são? Mendigos delatores? — Mas Flim não nos conheceria — Mouser explicou desesperado, sentindo que tudo iria desmoronar para êle e Fafhrd. — Todos os nossos contatos eram apenas com Bannat. Flim disse calmamente: — Bannat tem estado acamado com febre nestes últimos dez dias. Enquanto isso tenho sido o Chefe dos Mendigos Noturnos e Diurnos. Neste momento Slevyas e Fissif entraram correndo por trás de Flim. O ladrão alto ostentava uma mancha roxa no queixo. A cabeça do ladrão gordo estava enfaixada, acima dos olhos dardejantes. Êle apontou rápido para Fafhrd e Mouser e gritou: — Eis os dois que nos atacaram, tomaram nosso roubo de Jengao e mataram nossa escolta. Mouser levantou seu cotovelo e a garrafa verde espatifou-se em cacos a seus pés, no piso de mármore. O cheiro forte de gardênia espalhou-se rapidamente pelo ar. Mas mais rápido ainda, Mouser desvencilhou-se do negligente domínio dos guardas surpreendidos, saltou em direção a Krovas, golpeando com sua espada enfaixada. Com velocidade espantosa, Flim lançou a bengala dourada, derrubando Mouser, que ficou de pernas para o ar, procurando, a meio caminho, transformar em voluntária, sua involuntária pirueta. Entrementes, Fafhrd deu uma guinada brusca contra o captor à sua esquerda, ao mesmo tempo balançando a enfaixada Vara Cinzenta fortemente para diante para atingir seu captor da direita sob o queixo. Recuperando o equilíbrio, apoiado numa perna só e com uma poderosa 46
contorção, saltou para a parede dos roubos atrás dele. Slevyas dirigiu-se para a parede dos instrumentos de ladrões, e cem um esforço que fêz os músculos estalarem, arrancou a grande alavanca do cadeado. Levantando-se, depois de uma infeliz aterrissagem em frente à cadeira de Krovas, Mouser encontrou-a vazia e o Rei dos Ladrões curvado atrás dela, o punhal de ouro desembainhado, os olhos encovados frios e enfurecidos para a luta. Virando-se, viu os guardas de Fafhrd no chão, um deles caído inconsciente, o outro, começando a levantar-se enquanto o grande nortista, de costas contra a fantástica parede de jóias, ameaçava toda a sala com a Vara Cinzenta enfaixada e com a sua longa faca, arrancada da bainha, às suas costas. Desembainhando igualmente a Garra de Gato, gritou com voz de comando: — Afastem-se todos! Êle está ficando louco! Cortarei o tendão de sua perna sã para vocês! E correndo através da confusão e entre seus dois guardas que ainda pareciam segurá-lo admirados, lançou-se com, a espada rutilante para Fafhrd, implorando que o nortista, embriagado agora não só pela batalha, mas também pelo vinho e o perfume venenoso, o compreendesse e adivinhasse seu estratagema. Vara Cinzenta golpeava bem acima de sua cabeça desviada. Seu novo amigo não somente adivinhara, mas o apoiara e não errava o alvo somente por acidente, Mouser assim o esperava. Abaixando-se junto à parede, cortou os cordões da perna esquerda de Fafhrd. Vara Cinzenta e a comprida faca de Fafhrd continuaram a poupá-lo. Levantando-se num salto, para o corredor, gritando por trás do ombro de Fafhrd: — Venha! Hristomilo permanecia fora do caminho, observando serenamente. Fissif fugiu à procura de segurança. Krovas ficou atrás de sua cadeira gritando: — Detenham-nos! Segurem-nos! Os três remanescentes guardas rufiões, finalmente recobrando sua capacidade de luta, reuniram-se em posição a Mouser. Mas este, ameaçando-os com rápidas fintas de sua espada, deteve-os e lançou-se entre eles — então, naquele exato momento, com um golpe rasteiro do Escalpelo enfaixado, derrubou para o lado a bengala dourada de Flim, que o atacara novamente tentando derrubá-lo. Tudo isto deu tempo a Slevyas de retornar da parede de ferramentas e tentar atingir Mouser, balançando a pesada alavanca. Ao iniciar o golpe, uma espada embainhada e enfaixada, na ponta de um longo braço, 47
lançou-se por cima do ombro de Mouser e, solida e pesadamente, empurrou Slevyas para trás, atingido-o na parte superior do peito, de maneira que o balanço da alavanca foi demasiado curto e passou zunindo inofensivamente. Então Mouser encontrou-se no corredor com Fafhrd a seu lado; o companheiro por alguma razão, ainda mancava. Mouser apontou em direção às escadas. Fafhrd assentiu, mas deteve-se para arrancar da parede mais próxima uma dúzia de jardas e de pesados panos que espalhou pelo corredor para confundir seus perseguidores. Alcançando as escadas começaram a subir o lance seguinte, Mouser na frente. Havia gritos atrás deles, alguns abafados. — Pare de mancar, Fafhrd! — Mouser ordenou, lamentando-se. Você tem duas pernas de novo. — Sim, e a outra está dormente — queixou-se Fafhrd. — Ah! Agora a sensibilidade está voltando. Uma faca passou sibilando entre eles e retiniu, quando a ponta atingiu a parede, levantando poeira da pedra. Estavam agora dobrando a esquina. Mais dois corredores vazios, mais dois lances curvos, e avistaram acima deles, sobre o último patamar, uma escada sólida que levava a um buraco quadrado a escuro no telhado. Um ladrão com os cabelos presos atrás, por um colorido lenço — que parecia ser a identificação das sentinelas — ameaçou Mouser com a espada desembainhada, mas ao ver que eram dois, ambos atacando determinantemente com facas reluzentes e estranhas clavas, voltou-se e correu pelo último corredor vazio. Mouser, seguido de perto por Fafhrd, subiu rapidamente à escada e pulou, através do alçapão, para a noite estrelada. Encontrou-se próximo à borda, sem parapeito, de um telhado de ardósia com tal inclinação que parecia alarmante a um inexperiente caminhador de telhados, mas seguro como chão para um veterano. Voltando-se ao som de um baque, viu Fafhrd prudentemente içando a escada. Logo que conseguiu, uma faca vinda do alçapão passou zunindo perto deles. Caiu com estrépito a seu lado e escorregou para fora do telhado. Mouser marchou para o sul através das ardósias e, a meio caminho entre o alçapão e aquela extremidade do telhado, ouviu o fraco tinido da faca chocando-se nas pedras arredondadas da Travessa dos Assassinos. Fafhrd seguia mais devagar, fosse talvez devido a uma menor experiência em telhados, fosse porque ainda coxeava um pouco para proteger 48
sua perna esquerda, e também, porque carregava a pesada escada que oscilava sobre seu ombro esquerdo. — Não precisaremos dela — exclamou Mouser. Sem vacilar, Fafhrd jogou-a alegremente por cima da borda. Enquanto ela se espatifava com estrépido na Travessa dos Assassinos, Mouser pulava duas jardas abaixo e transpunha uma brecha de uma jarda para o telhado seguinte, de inclinação menor e oposta. Fafhrd aterrissou a seu lado. Mouser o precedia, numa quase corrida através de uma floresta de chaminés cobertas de fuligem, canos de chaminés, cataventos cujas caudas faziam-nos ficar de frente para o vento, cisternas escurecidas, tampas de alçapão, casas de pássaros e armadilhas de pombas; passaram sobre cinco telhados, até alcançarem a Rua dos Pensadores, no ponto onde esta se cruzava com uma passagem coberta muito semelhante à de Rokermas e Slaarg. Enquanto a atravessavam curvados, algo passou por eles sibilando e caiu com estrépido logo adiante. Ao saltarem do telhado da ponte, três coisas mais assobiaram sobre as suas cabeças, para cair mais além. Uma delas ricoeheteou de uma chaminé quadrada, quase aos pés de Mouser. Apanhou-a, imaginando uma pedra, e surpreendeu-se com o grande peso de uma bola de chumbo do tamanho de dois dedos. — Eles — disse, apontando com o polegar por sobre o ombro — não perderam tempo em colocar atiradores de estilingues no telhado. Quando provocados ficam bons. A sudeste então, através de outra floresta de negras chaminés, em direção a um ponto na Rua das Pechinchas, onde havia tantos pavimentes mais altos projetando-se sobre os dois lados da rua que seria fácil transpor as brechas. Durante a travessia do telhado, uma frente de neblina noturna, suficientemente densa para fazê-los tossir e engasgar, envolveu-os e, talvez pelo tempo de sessenta batidas do coração, Mouser teve de andar mais devagar, arrastando os pés e tateando o caminho, a mão de Fafhrd em seu ombro. Bem próximo da Rua das Pechinchas, saíram abrupta e completamente do nevoeiro e enxergaram as estrelas de novo, enquanto a nuvem preta rolava em direção ao norte. — Bem, que diabo era aquilo? — indagou Fafhrd e Mouser deu de ombros. Um corvo noturno teria notado um vasto círculo de neblina escura, espalhando-se em todas as direções de um ponto perto da Enguia Prateada. 49
A leste da Rua das Pechinchas, os dois camaradas logo saltaram para o solo, aterrando no Beco da Peste. Por fim, olharam um para o outro e para suas espadas, as faces e roupas imundas tornadas ainda mais sujas pela fuligem do telhado, e riram, riram e riram; Fafhrd ainda numa gargalhada, ao inclinar-se para massagear sua perna esquerda ao redor do joelho. Continuaram a zombar de mesmos, enquanto desenfaixavam as espadas — Mouser, como se a sua fosse um pacote de surpresa — e prenderam mais uma vez as bainhas nos cintos. Seus esforços dissiparam a última molécula e átomo de vinho forte e do ainda mais forte perfume fétido, mas não sentiram mais vontade de beber, apenas a pressa de chegar em casa, comer imensamente e empanturrar-se de gahveh quente e amargo, e finalmente, contar às suas adoráveis pequenas sua louca aventura. Andavam lado a lado. Livres da neblina noturna e salpicados com as luzes das estrelas, Os limitados arredores pareciam muito menos miseráveis e opressivos do que quando tinham partido. Mesmo na Travessa dos Ossos havia uma aragem. Subiram apressadamente a longa e crepitante escada de degraus quebrados, sem a menor cautela e, quando atingiram o alpendre, Mouser empurrou a porta para abri-la com surpreendente rapidez. Mas esta não se moveu. — Trancada — disse a Fafhrd secamente. Notou, agora, que nenhuma luz se infiltrava através das frestas da porta, nem tampouco das venezianas — somente um débil brilho vermelho-alaranjado. Então, com um trejeito sentimental e numa voz afetuosa que revelava apenas uma sombra de preocupação, disse: — Estão dormindo, as despreocupadas raparigas! Bateu três vezes ruidosamente e, apertando os lábios, chamou suavemente pela fresta da porta: — Olá, Ivrian! Estou a salvo em casa. Ei, Vlana! Seu marido satisfez seu orgulho, derrubando, um grande número de ladrões da Sociedade, com um pé amarrado nas costas! Não se ouvia nenhum som do interior — isto é, não contando um sussurro, tão fraco que quase não se podia percebê-lo. Fafhrd franziu as narinas: — Sinto cheiro de bichos. Mouser bateu na porta novamente. Nenhuma resposta. Fafhrd afastou-o do caminho e forçou o portal com seu grande ombro. 50
Mouser sacudiu a cabeça e com um hábil golpe e um puxão, removeu um tijolo que há pouco parecia firmemente fixo na parede ao lado da porta. Estendeu para dentro todo seu braço. Ouviu-se o ruído de um ferrôlho sendo retirado, então mais outro e um terceiro. Rapidamente retirou seu braço e, a um toque, a porta abriu-se inteira para dentro. Mas nem êle nem Fafhrd precipitaram-se em seguida, como haviam tencionado, pois o indefinível cheiro de perigo e do desconhecido soprou com um crescente odor de animal e um leve aroma enjoativo que, embora doce, não era um perfume propriamente feminino. Mal podiam ver a sala através da luz alaranjada, saída do pequeno retângulo da porta aberta do pequeno e negro fogão. No entanto, o retângulo não estava devidamente aprumado, mas estranhamente inclinado — sinal evidente que o fogão havia sido derrubado e agora apoiava-se contra a parede lateral da lareira, com a portinhola aberta naquela direção. Esta posição anormal, por si só, transmitia todo o impacto de um universo revirado. Através do brilho alaranjado, percebia-se que os tapetes haviam sido estranhamente amarrotados, apresentando aqui e ali, círculos pretos esburacados de um palmo de largura; as velas, antes cuidadosamente empilhadas, esparramavam-se por baixo das estantes com alguns jarros e caixas esmaltadas, e — acima de tudo — dois aglomerados pretos, baixos, irregulares e um tanto longos, um junto à lareira, o outro, metade sobre o divã, metade a seus pés. De cada aglomerado, inúmeros pares de olhos minúsculos, bastante separados e avermelhados, fitavam Mouser e Fafhrd. Sobre o chão espêssamente atapetado, do outro lado da lareira, havia uma fina trama prateada — uma gaiola de prata caída, mas dela não se ouviam cantos de adoráveis pássaros. Houve um fraco tinido de metal, quando Fafhrd certificou-se de que Vara Cinzenta estava solta em sua bainha. Como se este minúsculo som tivesse sido escolhido de antemão como o sinal de ataque, sacaram instantaneamente as espadas e avançaram lado a lado para dentro da sala, vigilantes a princípio, testando o chão a cada passo. Com o retinir das espadas, os pequeninos olhos avermelhados piscaram e mexeram-se agitados e agora, com a aproximação dos dois homens, espalharam-se rápida e ruidosamente de par em par, os olhos na extremidade de um corpo preto, pequeno, delgado, com o rabo liso, e dirigiram-se para um dos círculos negros nos tapetes, por onde desapa51
receram. Sem dúvida, os círculos negros eram buracos que os ratos haviam recentemente roído através do soalho e dos tapetes, e as criaturas de olhos vermelhos eram ratos pretos. Fafhrd e Mouser saltaram para a frente, açoitando-os e retalhando-os num frenesi, blasfemando palavras ásperas. Atingiram alguns. Os ratos fugiram com rapidez sobrenatural, a maioria deles desaparecendo pelos buracos das paredes e da lareira. A primeira investida desvairada de Fafhrd atravessou o chão e ao seu terceiro passo... com agourento estalo, sua perna afundou através do soalho até o quadril. Mouser passou por êle sem ligar para ulteriores estalos. Fafhrd ergueu sua perna, sem mesmo notar os arranhões e tão despreocupado como Mouser quanto aos contínuos estalos. Os ratos sumiram. Pulou até seu camarada, que atirava uma pilha de acendedores dentro do fogão, para fazer mais luz. O horror era que, embora os ratos tivessem ido embora, os dois aglomerados permaneciam, ainda que consideravelmente menores e, agora, visíveis claramente à luz das chamas amarelas lançadas pela porta aberta, transformados num matiz de cores — não mais eram vultos com pontos vermelhos, mas uma mistura de um vago preto e marrom-escuro, um nauseante azul-purpúreo, violeta, prêto-aveludado e branco, do vermelho das meias e do sangue de carnes e ossos ensangüentados. Embora as mãos e os pés tivessem sido roídos até os ossos, e os corpos escavados, os dois rostos tinham sido poupados. Mas estavam arroxeados, revelando morte por estrangulamento, os lábios retraídos, os olhos salientes, as feições contorcidas em agonia. Apenas os cabelos pretos e castanho-escuros rutilavam imutáveis — estes e os dentes, brancos, brancos. Ao olharem atentamente para suas amadas, incapazes de desviar o olhar apesar das ondas de horror e tristeza que os envolviam cada vez mais, viram um minúsculo fio preto soltar-se da depressão negra que envolvia cada garganta e flutuar, dissipando-se, em direção à porta aberta — dois fios de neblina noturna. Com um crescendo de estalos, o chão cedeu em mais três partes ao centro, antes de chegar a uma nova e temporária estabilidade. Os limiares das mentes torturadas notavam detalhes: que o punhal de cabo prateado de Vlana espetara no chão um rato, que provavelmente, demasiado esfomeado, aproximara-se demais antes que a neblina notur52
na provocasse seu mágico efeito. Que seu cinto e bolsa haviam desaparecido. Que a caixa esmaltada de azul e incrustada de prata onde Ivrian colocara a parte de Mouser no assalto das jóias também desaparecera. Mouser e Fafhrd fitaram-se, as faces lívidas e contraídas, e bastante transtornadas, ainda que inteiramente unidos em compreensão e propósito. Não foi necessário a Fafhrd explicar por que despiu o manto e capuz, ou por que arrancou o punhal de Vlana com uma torção do pulso, colocando-o em seu cinto. Nem foi necessário a Mouser dizer por que procurou meia dúzia de jarros de óleo e, após atirar três deles contra a parede do fogão flamejante, parou, pensou e jogou os outros três dentro da sacola na sua cinta, juntando a eles os acendedores e o braseiro repleto de carvão em brasa e amarrou-o firmemente. Então, ainda sem trocar palavras, Mouser penetrou na lareira e sem recuar ao contato do metal ardente, com deliberação derrubou o fogão em chamas sobre os tapetes ensopados de óleo. Chamas amarelas espalharam-se à sua volta. Viraram-se e correram para a porta. Com estalos ainda mais altos o chão desmoronou. Lutaram desesperadamente para transpor uma pilha de tapetes e alcançaram a porta e o alpendre momentos antes que tudo cedesse. E tudo estava incandescente, os tapetes, o fogão, todas as lenhas e velas, o divã dourado, as mesinhas, as caixas, as jarras e os corpos inconcebivelmente mutilados de suas amadas — rolaram para a sala abaixo, atulhada de teias, seca e empoeirada; e as grandes chamas de uma purificante e arrasadora cremacão começaram a arder em direção ao alto. Precipitaram-se pela escada que, assim que alcançaram o solo, desmoronou na escuridão. Tiveram que forçar seu caminho sobre os escombros para chegar à Travessa dos Ossos. A esta altura as chamas lançavam brilhantes e compridas línguas pelas venezianas do sótão e pelos tapumes do andar inferior. Ao alcançarem a Viela da Peste, correndo lado a lado o mais que podiam, o alarma de fogo da Enguia Prateada ressoou dissonante atrás deles. Corriam ainda quando alcançaram a bifurcação na Travessa da Morte. Então, Mouser agarrou Fafhrd e forçou-o a parar. O enorme homem debateu-se, blasfemando loucamente e só desistiu — a face branca ainda de um lunático — quando Mouser gritou ofegante: — Apenas dez batidas de coração, será o tempo suficiente para nos prepararmos. Puxou a sacola do cinto e, segurando-a com firmeza, atirou-a com violência contra os seixos — quebrando não só as garrafas de óleo, mas 53
também o braseiro, a sacola incendiando-se em seguida. Desembainharam o rutilante Escalpelo e a Vara Cinzenta de Fafhrd, continuaram a correr, Mouser balançando a sacola em grandes círculos para atiçar as chamas. Era uma verdadeira bola de fogo queimando sua mão esquerda quando se lançava pela Rua das Pechinchas; entraram na Casa dos Ladrões e Mouser, com um enorme salto, jogou-a em direção ao grande nicho que encimava a entrada. As sentinelas gritaram de surpresa e pânico ante o incendiário invasor de seus abrigos. Ouvindo as pisadas e os gritos, ladrões estudantes saíram pelas portas e, então, recuaram ante as labaredas e as duas caras endemoninhadas dos inesperados invasores que brandiam suas longas e rutilantes espadas. Um magro e pequeno aprendiz — que podia ter no máximo dez anos de idade — demorou-se demais. Vara Cinzenta trespassou-o sem piedade, os grandes olhos arregalaram-se e a pequena boca contorceu-se de horror, implorando misericórdia a Fafhrd. Agora chegava até eles um fantástico clamor de lamentação, irreal e horripilante, e portas se fechavam com estrondo ao invés de despejarem os guardas armados que Fafhrd e Mouser ansiavam por que aparecessem para espetá-los com suas espadas. Apesar das longas tochas pendentes das paredes, parecendo recém-renovadas, o corredor estava escuro. A razão disso tornou-se clara quando se lançaram escada acima. Fios de neblina noturna surgiam na escadaria, materializando-se do nada, ou do ar. Os fios tornaram-se mais longos e mais palpáveis. Eram desagradavelmente aderentes e pegajosos. No corredor acima, de parede a parede e do teto ao chão, formavam uma gigantesca teia que tornou-se mais real quando Mouser e Fafhrd tiveram de cortá-la para abrir caminho, ou assim acreditavam suas obcessivas mentes. A teia preta amorteceu um pouco a repetição do sinistro e lamentoso clamor que provinha da sétima porta adiante e que agora terminava em uma sonora e macabra gargalhada, tão insana como as emoções dos dois atacantes. Aqui, também portas eram violentamente fechadas. Num efêmero lampejo de razão, ocorreu a Mouser que não era a eles que os ladrões temiam, pois ainda não tinham sido vistos, mas a Hristomilo e sua mágica, ainda que este estivesse agindo em defesa da Casa dos Ladrões. Mesmo a sala do mapa, o lugar mais provável de onde eclodiria o contra-ataque, estava bloqueada por uma imensa porta de carvalho e 54
pinos de ferro. À medida que avançavam, desferiam golpes na preta e pegajosa teia de aranha, espessa como corda. Entre a sala do mapa e a das mágicas, sob a teia escura, formava-se, vaga a princípio, mas rapidamente tornando-se mais real, uma aranha grande como um lobo. Mouser retalhou a densa teia, recuou dois passos e então arremessou-se num grande salto. Escalpelo trespassou-a, golpeando-a no meio dos oito olhos negros recém-formados, A aranha desmoronou como um balão esvaziado, desprendendo um repulsivo mau cheiro. Depois, êle e Fafhrd inspecionaram a sala das mágicas, o aposento do alquimista. Estava tal qual como antes, com exceção de algumas coisas que haviam duplicado e até multiplicado. Sobre a mesa comprida, duas cucúrbitas ferviam em chamas azuis, borbulhando e turvando-se. De seus topos projetava-se uma sólida corda que se enroscava mais rápido do que se move a preta cobra do pântano, capaz de destruir um homem. — não para dentro dos dois idênticos recipientes, mas para o ar livre da sala (caso se pudesse chamar de livre o ar da Casa dos Ladrões). Tecia assim uma barreira entre suas espadas e Hristomilo, que uma vez mais permanecia alto e curvado sobre o pardo pergaminho mágico, porém desta vez, seu exultante olhar fixava-se sobretudo em Mouser e Fafhrd, com apenas um ocasional olhar para o texto das palavras mágicas que entoava de modo retumbante. Do lado oposto da mesa, no espaço livre de teias, exultava Slivikin e um imenso rato que se equiparava a êle em tamanho e membros, exceto na cabeça. Dos buracos de ratos ao pé das paredes, olhos vermelhos brilhavam e faiscavam. Com um urro de raiva, Fafhrd começou a golpear a barreira preta. As cordas que saíam das cucúrbitas eram substituídas rapidamente tão logo êle as cortava, e as extremidades cortadas, ao invés de penderem, começaram agora a contorcer-se esfomeadamente em direção a êle como cobras ou vinhas estrangulantes. Repentinamente, mudou Vara Cinzenta para a mão esquerda, puxou sua longa faca e atirou-a contra o feiticeiro. Faiscando em direção ao seu alvo, a faca cortou três fios, sendo desviada por um quarto e quinta fios, quase detida por um sexto e terminou pendurada inutilmnete na alça enroscada de um sétimo fio. Hristomilo riu às gargalhadas, exibindo seus imensos incisivos superiores, enquanto Slivikin chilreava extasiado e saltava. 55
Mouser arremessou Garra de Gato sem melhor resultado. — Na verdade, pior, pois este até deu tempo para que dois dardejantes fios de neblina se enrolassem em volta de sua mão e se enrascassem envolvendo seu pescoço. Ratos pretos saíram correndo dos grandes buracos ao pé das paredes. Entrementes, outros fios serpenteavam em volta dos quadris, dos joelhos e do braço esquerdo de Fafhrd, e quase derrubando-o. Mas, mesmo lutando para equilibrar-se, arrancou o punhal de Vlana de seu cinto e ergueu-o sobre o ombro, o cabo de prata reluzindo, a lâmina marrom, com sangue seco de rato. Ao enxergá-lo, Hristomilo modificou seu semblante. O feiticeiro gritou estranha e inoportunamente, afastou-se do pergaminho e da mesa, e ergueu suas mãos tortas: e armadas de garras para desviar o golpe mortal: O punhal de Vlana voou desimpedido através da teia negra — seus fios pareciam romper-se — e continuou por entre as defensivas mãos do feiticeiro para enterrar-se até o cabo em seu olho direito. Hristomilo deu um fino grito de agonia e arranhou sua face. A teia preta contorceu-se num espasmo mortal. As cucúrbitas despedaçaram-se, derramando sua lava sobre a mesa manchada, extinguindo as chamas azuis, a espessa madeira da mesa começou a fumegar ao ser atingida pela lava que começou a pingar sobre o piso escuro de mármore. Com um fraco e derradeiro grito, Hristomilo inclinou-se para frente, as mãos tapando os olhos acima do nariz saliente, o punhal de cabo de prata projetando-se entre os dedos. A teia tornou-se descorada como tinta preta inundada por um jato d’água. Mouser correu para diante e trespassou Slivikin e o imenso rato com um único golpe do Escalpelo, antes dos animais perceberem o que acontecia, eles também morreram rapidamente com gritos agudos, enquanto todos os outros ratos retornavam para suas tocas, velozes como um relâmpago preto. Então, o último vestígio de neblina noturna ou névoa encantada desapareceu, e Fafhrd e Mouser encontraram-se a sós com três corpos mortos em meio a um profundo silêncio, que parecia invadir não só esta sala, mas toda a Casa dos Ladrões. Mesmo a lava da cucúrbita cessara de mover-se, solidificava-se e a madeira da mesa não fumegava mais. Sua fúria desaparecera e também toda a raiva — desafogada até a 56
última partícula vermelha, saciada até a saturação. Para eles, agora, matar Krovas ou quaisquer outros ladrões, era tão desejável como esmagar moscas. Horrorizado, Fafhrd olhou para a face deplorável do ladrâo-criança que espetara em sua fúria lunática. Apenas a tristeza permanecia, nem um pouca atenuada, mas antes tornando-se maior — e ainda mais rápida e crescente repulsa de tudo que os rodeava: os mortos, a desordenada sala mágica, toda a Casa dos Ladrões, toda a cidade de Lankhmar, até sua última viela miserável. Com um murmúrio de desgosto, Mouser arrancou o Escalpelo dos cadáveres roídos, enxugou-o na roupa mais próxima, e devolveu-o à sua bainha. Fafhrd, também negligentemente, limpou e embainhou Vara Cinzenta. Então apanharam do chão suas facas e punhais, que tinham caído quando a teia se desmaterializara. Nenhum deles sequer olhou para onde estava enterrado o punhal de Vlana. Mas, sobre a mesa do feiticeiro, notaram a bolsa e o cinto de veludo preto e trabalhados em prata de Vlana, e a caixa de esmalte azul, incrustada de prata, de Ivrian. Estas, eles pegaram. Sem trocar palavra, como antes no incêndio do ninho de Mouser, atrás da Enguia, mas em uma contínua sensação de sua unidade de propósito, sua identidade de intenção e sua camaradagem, seguiram de ombros caídos e em passos vagarosos e fatigados que aos poucos iam acelerando. Saíram da sala das mágicas e andando pelo corredor atapetado, passaram pela sala do mapa, cuja porta estava agora, trancada com barras de ferro e madeira maciça, por todas as outras silenciosas portas fechadas e pelas escadas que repercutiam o som de suas pisadas, agora um pouco mais rápidas; ao longo do gasto assoalho do corredor inferior, passaram por outras portas fechadas e imóveis, as passadas ressoando ruidosamente, não obstante suas leves pisadas; passaram sob o nicho dos guardas, desertos e chamuscados, em direção à Rua das Pechinchas, dobrando à esquerda e ao norte, porque este era o caminho mais curto para a Rua dos Deuses, e aí, dobrando à direita e a leste nenhuma alma desperta na extensa rua, exceto um jovem aprendiz magro e encurvado, tristemente esfregando as lajes, em frente a uma loja de vinhos na fraca luz rósea que começava a infiltrar-se do leste, embora houvesse muitos vultos adormecidos que roncavam nas sarjetas e sob os pórticos escuros — sim, dobrando à direita e a leste, pela Rua dos Deuses, pois este era o caminho do Portão dos Pântanos, que conduzia à Estrada Elevada através do Grande Pântano Salgado; e a Portão do Pântano era o caminho mais próximo para sair da grande e glamurosa cidade, agora repugnante para eles, uma cidade de adoráveis e irresistíveis fantasmas — na verdade, não 57
podiam mais suportar nenhuma pesada e amargurada batida de coração, além do necessário.
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A EXECUÇÃO FATAL Poul Anderson Trad. de Eosaura Eichenberg PRÓLOGO — A mão esquerda, — disse o homem magro automaticamente. — Descubra o pulso. Douglas Bailey arregaçou o punho da camisa; o homem magro colocou algo frio em seu pulso e acenou em direção à porta mais próxima. — Por ali, primeira laje à direita, — disse. — Um minuto, — sobressaítou-se Bailey. — Eu queria... — Vamos andando, amigo, — disse o homem magro. — Essa droga é rápida. Bailey sentiu uma punhalada sob o coração. — Você quer dizer que já... é só isso? — Foi por isso que você veio, não foi? Primeira laje, amigo. Vamos. — Mas... estou aqui há somente dois minutos... — O que você esperava? Música de órgão ? Olhe, amigo, — o homem magro deu uma olhada no relógio da parede. — Está na hora da minha folga, compreende? — Pensei que, pelo menos, tivesse tempo para... para... — Coragem, camarada. Vá por si mesmo. Que eu não tenha de arrastá-lo, compreende ? — O homem magro empurrou a porta, enquanto coagia Bailey a entrar num quarto que cheirava a produtos químicos e a cadáveres. Num vão estreito e acortinado, indicou uma maca acolchoada. — Deite-se de costas, os braços e as pernas esticados. Bailey assumiu a posição e retesou-se, quando o homem magro começou a prender-lhe os tornozelos com correias. 59
— Acalme-se. É apenas que às vezes nos atrasamos e não voltamos a ver um cliente talvez por algumas horas e, como ficam rígidos.., bem, os caixões são todos do mesmo tamanho, compreende o que quero dizer? Uma onda de doçura e tepidez percorreu-lhe o corpo, enquanto permanecia deitado de costas. — Ei, você não comeu nada nas últimas doze horas? — A face do homem magro era um borrão côr-de-rosa indistinto. — Eu orrr mmmm, — Bailey ouviu sua própria voz murmurar. — O. K., durma bem, amigo... — A voz do homem magro retumbou e enfraqueceu-se. O último pensamento de Bailey, enquanto a escuridão infinita se fechava, foi a respeito das palavras gravadas no granito sobre o portal do Centro de Eutanásia: “... mandem-me os cansados, os pobres, os desesperados, os que anseiam pela libertação. A eles, ergo a luz ao lado da porta de bronze...”. O veneno imobilizou sua hemoglobina, e êle estava morto. A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos e os trovões faziam seus dentes bater. Olhos? um espanto chispou-lhe a mente. Dentes ? Mas estou morto. Naquele formulário que tive ae preencher em três vias, colocarão o selo CONCLUÍDO, e um assistente entediado me levará, a mim e ao meu caixão, para a rampa crematório, e adeus Bailey. Serei transfigurado; não serei mais Douglas Bailey, mas uma estatística. Procurou aferrar-se à realidade, qualquer realidade, mas só apreendia o caos. Uma vertigem sugava-o por uma espiral infinita. Em algum lugar e por toda a parte, Deus estava contando, “Zero, um, dez, onze, cem, cento e um, cento e dez, cento e onze, mil, mil e um, mil dez,” numa voz seca e baixa. Bailey achou que seu estômago inexistente havia-se transformado num polvo com tripas no lugar dos tentáculos. Iria comê-lo e depois comeria a si mesmo; o que estava certo, pois o universo dentro de Douglas Bailey era topologicamente idêntico a Douglas Bailey dentro do universo. Assim, quando o universo tragasse a si próprio, êle talvez ficasse livre de sua loucura. Deve ser privação dos sentidos, pensou no meio do redemoinho. Estando morto, não tenho corpo; conseqüentemente, não tenho sentidos, 60
nem energia sensorial; conseqüentemente, são alucinações, e já devo ter sido reduzido a cinzas. Como não tenho meios para medir o tempo, — se este tem algum significado após a morte, — talvez séculos já se tenham passado, desde que me tornei uma estatística. Pobre e pequena estatística, jogada para sempre na tempestade e na contagem. Não deveria ter tido tanta pressa para morrer. Por que me apressei? Não posso me lembrar. Não consigo me lembrar. Havia os edifícios, sim, e os jardins arranjados com gosto. Entrei — ou será que não? — ; sim, acho que entrei para procurar, oh, conselho. Talvez alguém para me dizer que eu ainda não estava tão ruim assim, que eu deveria ir para casa e pensar novamente, com mais calma. Mas, a partir do momento em que cruzei aquêle limiar, não era mais um homem; era uma categoria que seria lançada de escrivaninha a escrivaninha, gentilmente, cortêsmente, — mas com tanta rapidez que não tive nenhuma chance de pensar —, até chegar inexoravelmente àquele quarto no final do corredor. O que se passou durante minha última hora de vida ? Não sei. “Cem mil cento e dez”, contou Deus, “cem mil cento e onze, cento e um mil.” “Não sei!” a estatística gritou. “Não consigo me lembrar!” “Cento e um mil e um, cento e um mil e dez.” “Por que fizeram isto comigo?” gritaram os fragmentos. “Por que me deixaram fazer? Sabiam que eu estava demasiado doente para pensar.” “Cento e um mil e onze.” Mais que isso. O número de pessoas doentes era muito maior. Mas dar-nos a liberdade de escolher a morte não era liberdade. Assassinavamnos. “Cento e um mil e cem.” Cale-se, maldito! Onde estava Você, quando me assassinaram? Por que Você deixou que fizessem isso ? Não eram mais sãos que o enxame patético de psicóticos, neuróticos e psiconeuróticos que convidavam a morrer. Poderiam ter-nos curado... poderiam ter tentado, pelo menos... não deveriam ter... “Clique”, disse Deus. E houve o silêncio, e fêz-se a escuridão sobre a face das profundezas. ... não deveriam ter-nos dado essa “escolha” que os livra de qualquer obrigação. Deveriam ter assumido sua responsabilidade para conosco; deveriam ter-nos confiado à guarda de alguém e nos obrigado a ficar 61
bons. Que se faça Douglas Bailey. E Douglas Bailey foi feito. SEGUNDO DESTINO Pegaram-no praticando o vício da solidão em seu apartamento de solteiro. A porta foi aberta de sopetão. Dois homens possantes entraram. “Fique onde está,” disse um, numa arranhada voz de baixo. “Mãos ao alto. Um passo atrás. Isto é uma batida.” O fato foi como um pontapé no estômago. Bailey cambaleou, quase caiu e ficou sem ar. A luz do sol e os murmúrios do tráfego através de uma janela aberta, as formas familiares das cadeiras, mesas, cortinas, o cheiro limpo de terebintina, tudo parecia repentinamente irreal à sua consciência. Por outro lado, sentia as pulsações de seu pulso, o suor sobre a pele, os joelhos sem força. — O. K. — disse o outro detetive ao superintendente do edifício. O homenzinho estava encolhido no saguão. — Dê o fora. — Sim, senhor. Imediatamente. — Mas não se afaste de seu posto. Alguém irá falar com você mais tarde. — Certamente, — respondeu o superintendente, com os dentes a bater. — Qualquer coisa que possa fazer para ajudar. — Saiu correndo. Êle deve ter fornecido uma chave-mestra, pensou Bailey no malestar que o sufocava. Assim todas as precauções haviam sido inúteis. — Bem, bem, bem. — O primeiro detetive colocou-se na frente do cavalete. — Que pensa disto, Joe? — Parece um caso, realmente. — Era difícil diferenciar aqueles dois, com a mente a rebentar de terror. Estavam vestidos da mesma maneira, com roupas civis corretamente discretas; tinham ambos o cabelo cortado à escovinha, uma face de pedra, e eram excessivamente possantes; consideravam o trabalho de Bailey com o mesmo desagrado um pouco enojado, como se fossem os restos de uma chacina. — Mas isso é apenas um passatempo que tenho! — Bailey ouviu sua própria voz dizer lugubremente. — Nunca... nunca... nunca foi um segredo.. .todo mundo sabe que pinto quadros... ora, o Presidente recomenda os passatempos... — Esta espécie de pintura? — bufou Joe. — Você não anda mostrando coisas assim por aí, não é? — acres62
centou o companheiro de Joe. “Não”, pensou Bailey. “Fui cuidadoso.” Item 1: As paisagens e retratos convencionais que produzia, eram para êle um passatempo semelhante à tapeçaria de Penélope. Entediavam-no, mas deveriam ter evitado qualquer curiosidade sobre o material artístico em sua casa. Item 2: Sua porta ficava fechada à chave sempre que pintava para valer. Um armário de fundo falso ficava aberto, pronto a receber e esconder a tela, e uma pintura convencional, quase terminada, ficava à mão, pronta para substituir a outra (um total de quinze segundos de movimentos bem ensaiados)... se alguém batesse. Como o apartamento era no terceiro andar e havia um armazém no outro lado da rua, não precisava fechar as persianas, o que provocaria suspeitas. Item 3: O local não era muito conveniente para seu trabalho, mas ficava bem no centro do bairro de Haight-Ashbury. Antes do Ato de Saúde Mental, esse bairro fora um tradicional antro de excêntricos. Conseqüentemente, fora tratado e limpo de forma tão completa — os próprios edifícios haviam sido destruídos, reconstruídos em estilo higiênico e recondicionados para fins saudáveis — que tornara-se o bairro mais respeitável de São Francisco. A vigilância era mais severa ao redor da zona portuária e de Mob Hill. Mas a burguesia de Haight-Ashbury? Ora, eles tinham o índice de estabilidade normal mais elevado da cidade. Item 4: Todo o caráter secreto que tinha sua vida. Será que fora isso o que o atraiçoara afinal? Êle próprio? Alegria demais ou de menos, ambição insuficiente, negligência nas organizações sociais, pouca ou demasiada castidade — será que algo assim levara alguém a pensar que seria melhor denunciar Douglas Bailey como üm possível doente mental? Talvez, talvez, talvez. Mas como se comporta um homem são? — Bem, — disse Joe, — vejamos seus papéis. — Mas é apenas uma pintura... à Van Gogh... — Que orelha você pensa cortar? — perguntou Joe surpreendentemente. Ou talvez não tão surpreendentemente. Diziam que o esquadrão encarregado da saúde mental da cidade tinha uma coleção de trabalhos patológicos, pornográficos e ainda outros proibidos, que se comparava favoravelmente com a do FBI. O outro homem continuava a olhar fixamente os violentos azuis e amarelos do campo de ranúnculos que Bailey estivera pintando. — As flores não crescem tanto assim, — disse. — E você não tem perspectiva. 63
— Sacudiu a cabeça e estalou com a língua. — Rapaz, você está doente. — Isto a Clínica, é que vai decidir, — disse Joe. — Mas vejamos os papéis, Mac. Bailey apresentou-lhe a carteira de modo mecânico. Joe passou por cima da carteira de motorista, da licença pata trabalhar, do cartão de recrutamento, do atestado de vacina, da licença para consumir bebidas alcoólicas, do cartão da segurança social, do cartão da biblioteca... — Ei, o que você está fazendo com um cartão da classe B? — Sou um sociólogo, — murmurou Bailey. — Pesquisa. Necessito consultar livros especializados, algumas vezes... periódicos. — Sim? Depois você pedirá um cartão de classe A, para retirar talvez uma cópia de Krafft-Ebbing? — Joe riu, mas continuou a busca até encontrar o cartão de controle psíquico. — Vê ? — Bailey conseguiu engolir em seco. — Apropriadamente perfurado. Todos os anos nos, nos... últimos seis anos ?... exatamente como a lei exige. A última vez foi... há quatro meses atrás ? — Olhe, amigo, —disse Joe com um cansaço forçado, — deixemonos de brincadeiras. Você sabe quanto um EEG anual à toa pode revelar, quando deve ser dado a três milhões de pessoas neste país. Se isto pudesse indicar todos os giras, eu agora estaria sem emprego, não é mesmo? — Enfiou a carteira no casaco. — Pode-se sentar, Bailey. Naquele, canto, fora do caminho. Venha, Sam, vamos dar uma busca rápida neste lugar. O outro homem fêz que sim com a cabeça e dirigiu-se à estante de livros. Tirou de seu bolso uma lista de títulos que comparou com os dos volumes. Era um processo lento, principalmente porque todos os livros encapados tinham, de ser abertos, como também outros ao acaso, para terem certeza de que nenhum fora reencadernado. Seus lábios moviamse. Joe era mais organizado; revistava as gavetas como um cão de caça perseguindo ratos. Bailey sentou-se numa cadeira, como haviam ordenado. Um entorpecimento invadiu-lhe o corpo. Por que preocupar-se? Que diferença fazia? Se ao menos pudesse dormir. Talvez sonhar, dormir, morrer. Não espere, você está começando de novo. Retraimento. Fuga. Desejo de isolamento. Os elementos esquisóides básicos contra os quais você lutou, aos quais procurou se adaptar (?) e que escondeu desde que o tratamento das doenças mentais se tornou compulsório... porque não sou demente, não, não, não. Mas estou tão cansado. Se ao menos o mundo desaparecesse e me deixasse em paz. 64
Depois de uma hora, Joe e Sam compararam as notas. Não haviam descoberto o compartimento secreto, mas parecia haver elementos significativos em vários outros itens. Bailey não sabia o que ou quais, Estava seguro de que não havia deixado nada proibido a descoberto. Mas, sem dúvida, a lei permitia uma série de coisas, simplesmente porque a posse das mesmas era esclarecedora a um observador treinado. Bailey não sabia o que pudes se ser, — informações psiquiátricas acima do nível mais elementar só eram acessíveis aos que possuíam o cartão A —, e os detetives murmuravam baixo demais para que pudesse ouvir alguma coisa. Não fazia mal. Sua apatia atingira o ponto culminante. — O. K., levá-lo-emos e providenciaremos para que uma divisão venha e desmanche esta espelunca — disse Joe. — Quer dizer que você e eu não conseguimos ? — Sam devia ser novo no emprego, provavelmente transferido de outra divisão. — Merda, não! Por que você acha que as ordens são de colocar tudo de volta no lugar, exatamente como você encontrou? Um verdadeiro perito pode dizer, a partir do modo como sua roupa de baixo está dobrada, se o gira quer assassinar o pai ou deformar a mãe. — Ou ambas as coisas? — Sam arreganhou os dentes. — Neste caso, acho que seria bem possível. Lembre-se que temos um mandado de prisão urgente contra êle. Outra razão para que o levemos o mais rápido possível. — Joe dirigiu-se com passos largos até a cadeira — o assoalho tremia um pouco sob seu peso — e agarrou o braço de Bailey. — De pé, cabeça de porongo. Há um doutor amável à sua espera. Bailey deixou-se arrastar. Pararam para fechar a porta à chave e rotulá-la. O boato devia ter percorrido o edifício, pois os corredores e as escadas estavam vazios. Os passos ecoavam. Lá fora, a luz do sol estava cruelmente brilhante; jorrava de um céu de verão onde algumas gaivotas rodavam com o movimento elegante de suas asas. Um dia assim chegava à alegrar até as formais e graves fachadas que se alinhavam ao longo da rua, e as formais e graves vestimentas dos pedestres que se ocupavam sobriamente de seus afazeres. Os carros passavam por ali quase sem fazer ruído, devido a seus silenciadores elétricos; ainda tinham um certo espalhafato, pensou Bailey. O veículo da polícia podia passar despercebido; era um Chevrolet 1989 e tinha, portanto, a parte superior da carroceria transparente. Num rompante de rebeldia, Bailey exclamou: — Por quê ? Joe lançou-lhe um olhar severo. — Por que o quê? 65
— Carros civis. Obrigados a ter o interior totalmente visível. Isso não é levar o fetiche do não-isolamento a extremos ridículos ? Sam puxou uma caderneta e começou a escrever. — Como se escreve “ridículo”? — perguntou. — Oh, deixe estar, — disse Joe. Bailey voltou ao seu silêncio. Joe abriu o carro e tomou a direção. Os outros dois sentaram-se na parte de trás. Como Bailey não tinha vontade de olhar para nenhum de seus captores, fixou os olhos na paisagem. Passaram pelo gigantesco aparelho de televisão local. Pela primeira vez, desde que se mudara para o bairro e aprendera a ignorar a tela, Bailey prestou atenção. Estava colocado numa parede perto de uma parada de ônibus. Como sempre, quando não havia nenhuma participação especial a fazer, incitava o público à higiene. “Não deste modo!” gritava, e, por um momento, aparecia a imagem de uma pessoa esquálida, toda curva, que tagarelava, enquanto tirava puigas imaginárias de si mesma. O momento era curto, para que não provocasse o desenvolvimento de uma possível hipocondria latente em algum espectador. “Mas assim!” Seguia-se uma família bem americana: o pai robusto, a mãe bonita, mas digna e sem muito busto, e quatro crianças saudáveis marchando para o futuro com sorrisos de dentifrício. Entre as crianças, havia, por ordem, uma nórdica, uma negra, uma oriental e uma cujo nariz judaico estava tão exagerado, que não podia haver dúvidas a seu respeito. Evitar os ressentimentos das tensões provocadas pela minoria era, afinal, mais importante que uma genética rigorosa. “Sim, assim!” (Toque de trombetas) “Para ser limpo, certo, feliz...” (Rufar de tambores) “PENSE DE MODO LIMPO! PENSE DE MODO CERTO! PENSE DE MODO FELIZ!” Um pouco mais adiante havia um cartaz que, recordou Bailey, oferecia uma recompensa de dez mil dólares ($10,000) por qualquer informação que acarretasse a prisão e tratamento de qualquer pessoa que padecesse de desordem psíquica incomunicada. Na calçada ali por perto, um policial uniformizado entregou uma convocação a uma mulher de meia idade. Talvez ela lhe tivesse respondido de maneira insolente, talvez fosse uma fiscalização acidental; de qualquer maneira, Bailey reconheceu o pedaço de papel côr-de-rosa. “Pelo presente, você está intimado a se apresentar no centro em que está registrado... antes da data de... exame e nova certificação da estabilidade nervosa... deixar de comparecer, sem poder provar a impossibilidade, acarretará em...” A mulher parecia mais incomodada que assustada. Uma 66
medida tão drástica como o Ato não teria sido aprovada, se a maioria da população não tivesse sentido que algo deveria ser feito a respeito da incidência crescente de doenças mentais. E a lei não teria se tornado vigente sem a cooperação dessa mesma maioria. O carro da polícia dobrou na esquina do Parque Golden Gate e passou pelo Estádio Kezar. Os alunos de uma aula de higiene de uma escola primária estavam sentados na grama, com uniformes asseadamente brancos. A professora mantinha-se de pé à sua frente. Era jovem e atraente, e já não se viam mais com tanta freqüência encantos femininos assim tão à mostra. (Que acrobacia ela tinha de fazer para não provocar nem a vergonha em relação a funções naturais, nem o interesse erótico!) No passado, Bailey apreciara tais espetáculos. Desviava a atenção do que ela dizia pausadamente: “Agora, crianças, é a hora de pensar em coisas boas. Vamos, primeiro, pensar sobre a bela luz do sol. Um, dois, três e quatro...”. Mas hoje êle estava fechado em sua noite particular. E o carro passou muito rapidamente. Subiram uma ladeira íngreme, até que, no seu topo, os edifícios da Clínica apareceram como penhascos escarpados. Bailey lembrava-se do tempo em que haviam sido o Centro Médico da Universidade. Mas isso fora antes que um único tipo de doenças tivesse prioridade absoluta. O carro parou no portão principal para a identificação. Além de dois guardas corpulentos, podia-se ver a fila usual no dispensário: pacientes de ambulatório, casos beirrando a gravidade, que eram obrigados a se apresentar todos os dias para receber os tranqüilizantes prescritos. Apesar de toda a propaganda afirmar que os problemas emocionais não eram mais desonrosos que qualquer outro tipo de doença, os pacientes entravam furtivamente, com as cabeças inclinadas, e se esgueiravam na saída, sozinhos. O assistente que fazia com que a fila se movesse estava entediado e quase não era cortês. Contudo... talvez eu pudesse ter-me livrado desta maneira, pensou Bailey. Se tivesse confessado meu tumulto bem no começo, talvez êle pudesse ter sido detido, talvez eu pudesse ter-me adaptado... Mas não. Desanimou-se. Não queria me adaptar. Queria seguir meu próprio modo de ser. E agora é tarde demais. Em seu desespero, mal notou quando o carro começou a andar de novo, ou quando parou e conduziram-no à maior de todas as casas. Todavia, o elevador que o levou aos andares superiores, era tão semelhante a um caixão para três, que teve de se esforçar para não gritar. Depois viu surgir um longo saguão branco e sem características, 67
cheirando um pouco a antisséptico e percorrido por alguns sussurros. No final, havia um escritório com um balcão. Atrás deste, estava sentado um servente. Atrás do servente, por sua vez, trabalhava um grupo de secretárias e máquinas. Não deram atenção aos recém-chegados. — Aqui está êle, — disse Joe. — Bailey. — Então vamos fazer um ID, — disse, o servente. Pegou um formulário de uma pilha e o entregou com uma caneta a Bailey. Estava grampeado com várias folhas de papel carbono. — Preencha isto.
Bailey levantou os olhos. — Mas isto é um requerimento, — disse fracamente. — Não sou obrigado a preenchê-lo, não é? — Acho que não, — disse o servente. — Mas, se não o fizer, isso provará que é incapaz, e você será automaticamente internado. Bailey escreveu. Depois, examinaram-lhe os dedos e o alcance da visão. — Sim, é êle, — disse o servente. — Vocês podem ir agora, rapazes. 68
— Rabiscou num pedaço de papel. — O recibo de vocês. — Obrigado, — disse Joe. — Até logo, Mac. Vejo-o no boliche. Venha, Sam. — Os detetives saíram. O servente ligou o sistema de intercomunicação do hospital. — Você está de sorte, Bailey — informou. — O Dr. Vogelsang pode vê-lo imediatamente. Tenho visto pessoas esperarem três dias antes de serem atendidas. É um pouco aborrecido. Bailey seguiu-o pelo saguão, caminhando tão desamparadamente como num sonho. Mas o escritório a que chegou, despertou-lhe novamente a vivacidade. Era bem diferente de tudo o que encontrara até então. Revestimento de carvalho, tapetes altos, duas pinturas chinesas de bom-gôsto, música — sim, por Deus, embora sussurrante, era certamente a “Sonata ao Luar” de Beethoven; e, atrás da escrivaninha, encontrava-se um homem pequeno, de cabelos brancos e feições bondosas, com trajes quase temeràriamente coloridos. Levantou-se para apertar a mão de Bailey. — Bem-vindo a bordo, Mr. Bailey, — sorriu. — Muito prazer em conhecê-lo. Não preciso de mais nada, Roger. — O senhor não acha que êle deveria ser... contido? — perguntou o servente. — Oh, não, — disse o Dr. Vogelsang. — Claro que não. — Quando a porta se fechou e eles ficaram sozinhos: — O senhor deve desculpá-lo, Mr. Bailey. Na verdade, êle não é muito inteligente. Mas temos tanto trabalho, tanto o que fazer, que temos de nos arrumar com o pessoal disponível. Sente-se, por favor. Cigarro? Ou, se prefere, tenho charutos. Bailey reclinou-se numa cadeira extraordinariamente confortável. — Eu... eu não fumo — disse. — Mas se... uma bebida, talvez ....? Vogelsang surpreendeu-o com um riso. — Mas claro! Excelente idéia. Não ligue, se eu também tomar. O mais antigo tranquilizante e ainda um dos mais eficazes, hem? Que tal um Scotchl?— Usou o sistema de intercomunicação. Bailey não conseguia encontrar os olhos que se moviam rapidamente, mas perguntou: — O que me trouxe aqui? — Oh, várias informações. Pessoas que se preocupam muito pelo seu bem-estar. Sugeriram que investigássemos, a seu respeito. E, francamente, há elementos um pouco perturbadores nas suas fichas. Elementos que deveriam ter sido estudados com mais atenção há muito tempo — teriam sido eventualmente estudados; mas, como disse, temos carência de pessoal. Ainda temos de confiar, em grande parte, no próprio paciente, 69
em sua capacidade educada para reconhecer os primeiros sintomas, em sua vontade educada para vir logo em busca de ajuda. — O Dr. Vogelsang sorriu. — Mas, por favor, não imagine que estamos zangados porque o senhor não o fêz. Compreendemos que o senhor não é totalmente senhor de si mesmo no presente. Nosso único desejo é curá-lo. Intrinsecamente, o senhor tem uma mente ótima, Mr. Bailey. Seu QI coloca-o entre os 5% superiores. A sociedade necessita de mentes como a sua — mentes libertas de culpas, terrores, desequilíbrios metabólicos, qualquer coisa que as faça operar com menos da metade de sua eficiência e torne a pessoa tão infeliz. Ah, aqui está. Entrou uma enfermeira com uma bandeja. Sobre esta, encontravam-se a garrafa, o balde de gelo, copos, soda. Ela sorriu para Bailey, tão afetuosamente quanto o médico. — À sua saúde, — brindou Vogelsang. — O que... o senhor vai fazer? — Bailey animou-se a perguntar. — Ora, pouca coisa. Desejamos fazer uma série de testes de diagnóstico, antes de decidirmos a respeito de um curso de ação. Não se preocupe. Estou convencido de que sairá daqui antes do Natal. O Scotch era bom. A conversa era agradável. Bailey perguntou a si mesmo se os boatos não teriam exagerado o que se passava na Clínica. E, na verdade, os primeiros dias consistiram apenas em entrevistas, questionários polifásicos, testes de Rorschach, narco-síntese, estudos de laboratório; eram cansativos, quase sempre embaraçosos, mas, de maneira alguma, insuportáveis. Entretanto, decidiram que êle pertencia à Ala 7. Essa era destinada aos casos de distúrbios sérios. Na Ala 7, tentaram choques, tanto de insulina como elétricos. Isto reduziu o notável QI numa percentagem perceptível. Quando não deram resultado, consideraram a cirurgia, lobotomia pré-frontal ou leucotomia transorbital. Como Bailey já encontrara um grande número de seres vegetativos, produtos de tal tratamento, gritou e tentou lutar. Chorou de gratidão quando o Dr. Vogelsang indeferiu a sugestão e ordenou a nova terapia de excitação, ainda em fase de experiência. Para tal, Bailey foi preso por correias, enquanto uma corrente de baixa tensão passava por seus nervos. A dor era incrível. O Dr. Vogelsang observava cada minuto do processo. — Tsk, tsk, — disse, depois de uma ou duas semanas, e sacudiu a cabeça branca. — Nenhum resultado, hem? Bem, receio que não possamos continuar assim. Mas temos de dissolver esses maus padrões de 70
pensamento de alguma maneira, não é? Seu problema não parece residir em sua química glandular. Não é assim tão simples. Usaremos algumas técnicas pavloviarias e veremos o que acontece. Privação de sonhos. Privação do sono. Frio. Calor. Fome. Sede. Campainhas soando. Recompensas, quando os pensamentos apropriados eram recitados. Castigo, quando não o eram. Mas os resultados permaneceram desalentadores. Pelo menos, segundo uma análise em profundidade; Bailey já não sabia mais no que acreditava. — Meu Deus, meu Deus, — disse o Dr. Vogelsang — receio que tenhamos de ir um pouco além. Os métodos pavlovianos quase sempre conseguem resultados decisivos com a castração. Bailey pulou para atacá-lo, mas a correia do pescoço impediu-lhe o movimento. — O senhor não pode fazer isto comigo! — gemeu. — Tenho meus direitos! — Vamos, vamos. Seja razoável. O senhor sabe, tão bem quanto eu, que a Suprema Corte declarou o Ato de Saúde Mental constitucional, de acordo com a cláusula interestadual. Por favor, não se preocupe. A operação não doerá nem um pouco. Eu próprio a executarei. E é claro que primeiro congelaremos alguns espermatozóides. O senhor quererá ter filhos depois de ficar curado. Todo homem normal deseja isto. Mas isto também não adiantou. — Não creio que devêssemos continuar com este gênero de tratamento, — disse o amável Dr. Vogelsang. — Tem seus aspectos penosos, não é mesmo? E, no seu caso, por alguma razão, parecem apenas aumentar sua hostilidade básica. Penso que o melhor será recriá-lo. — Recriar? — A mente de Bailey procurou compreender através do atordoamento em que fora recentemente mergulhada. — O quê? Matarme? O senhor vai me matar? — Oh, não! Não, não, não! Os boatos são tão deturpados, por mais que tentemos esclarecer o público. É certo que este processo substitui a pena capital. Mas isto não quer dizer que o senhor seja um criminoso. Antes, significa que o criminoso também é um homem doente assim como o senhor. Não pensaríamos em regredir ao desperdício bárbaro do assassinato legalizado, — O Dr. Vogelsang ficou indignado. — Especialmente no seu caso. O senhor tem potencialidades maravilhosas. Estão apenas oprimidas por atitudes más que, infelizmente, se tornaram uma parte integral de sua personalidade. Assim, — animou-se, — começamos tudo de novo, hem? Uma técnica recente, mas perfeitamente segura, perfeitamente digna de confiança. Um tratamento eletroquímico altera completamente 71
a formação do RNA, que é a base física da memória. Toda a memória, todos os hábitos, todos os últimos maus e velhos engramas desaparecem. O senhor começa de novo, limpo, forte, novo em folha. Uma tabula rasa, onde os peritos gravarão uma personalidade diferente, sã, sociável, extrovertida, ajustada, eficiente! Não será ótimo? — Hum, — disse Bailey. Queria que fossem embora e o deixassem dormir. Mas quando, por fim, colocaram-lhe o capacete na cabeça, amarraram-no numa cama, pingaram-lhe drogas nas veias e, enquanto seu gemido se tornava cada vez mais alto, sentiu afastarem-se... ...o pôr do sol púrpura nas colinas de Eastbay; a primeira e única garota que beijara; uma curiosa taberna antiga, num certo verão quando era jovem e estava fazendo uma excursão a pé pela Inglaterra; uma corrida branca morro abaixo nas rampas de esqui da High Sierra; Shakespeare, Beethoven, Van Gogh, o trabalho, os amigos, o pai, a mãe, a mãe... ... os instintos animais reviveram, e êle gritou com a angústia do terror: “Se isto não é a morte, o que é a morte então?” Foi apagado o último traço do que fizera com seus dotes genéticos e do que lhes havia sido feito, e êle estava morto. A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos e os trovões faziam seus dentes bater. Olhos? um espanto crispou-lhe a mente. Dentes? Mas estou morto. Usarão meu corpo para criar outra pessoa. Não, espere, não está certo. Cremarão meu corpo. Aceitei voluntariamente a eutanásia, quando já não podia mais suportar minha desgraça. Não, também não foi isso. Apagaram-me a mente, depois de me terem tornado tão miserável, que já não importava mais nada. “Zero,” contou Deus, “um, dez, onze, cem, cento e dez.” Bailey procurou agarrar-se à realidade, qualquer realidade, nas torrentes da noite. Uma vertigem o sugava por uma espiral infinita. Mas a única realidade era êle próprio. Agarrava-se a isto. Sou Douglas Bailey, pensou contra o polvo voraz. Sou... sou... um sociólogo. Um louco. Que mais ? Morri duas vezes, depois de duas vidas diferentes e horríveis. Que havia sido mais? Não consigo me lembrar. O vento sopra forte demais. 72
Espere. Um lampejo. Não, passou. “Mil e onze,” contou Deus o Simulador, “mil e cem, mil cento e um, mil cento e dez.” Por que Você faz isso comigo ? gritou Bailey. Você é tão ruim quanto eles. Mataram-me duas vezes. Uma vez, com a indiferença. Chamavamna liberdade — liberdade de escolher a morte, mas não se preocupavam conosco; sua única preocupação era reduzir o número de pessoas. Afastaram-se de nós, estabeleceram uma máquina social automática para nos processar, fizeram o possível para nos esquecer. E, depois, mataram-me com o ódio. Devia ser ódio, crueldade, desejo de matar, por mais que falassem de cura. Que mais poderia ser? Como é possível tomar um ser humano e fazer dele um objeto (objetivo), a menos que a verdadeira meta seja subtrair-lhe a humanidade, torná-lo algo rastejante, porque se odeia sua humanidade ? “Dez mil, dez mil e um, dez mil e dez, dez mil e onze.” O espaço girou sobre si mesmo, e o tempo dividiu-se como o delta do Estige. O vento soprou e soprou. Meu problema era real. Estava sofrendo. Necessitava ajuda e amor. Clique. O vento parou. A escuridão esperava-o. Por favor, pediu Douglas Bailey, chorando. Ajudem-me. Preocupem-se comigo. Dêem-me seu amor. Assim foi feito. TERCEIRO DESTINO Tendo acabado de se lavar, separou repentinamente as pernas e olhou entre elas. Mas por que deveria fazer isso? perguntou a si mesmo. Está tudo em ordem. É claro. Mas ainda não estou bem, lembrou a si mesmo. Colapso nervoso agudo, uma possível esquizofrenia incipiente. Andava fazendo coisas ainda menos racionais, antes de me persuadirem a vir aqui. Enquanto puxava novamente as calças, olhou-se no espelho acima da pia. Era alto e de ombros largos. Não julgava que Birdie Carol lhe mentia, pelo menos quando elogiava seu corpo. Contudo, estava se deteriorando: pouco exercício, remédios demais. Não gostava disso, mas nunca conseguia reunir a energia necessária para tomar alguma providência. E o rosto era chocante : pálidas maçãs do rosto, olhos cercados de olheiras fundas, o cabelo escuro despenteado. 73
Não tinha como medir exatamente sua piora. Poucas pessoas o conseguiam. Tudo acontecera tão gradativamente. Mas sabia que, após a breve euforia que se seguira à sua admissão ao hospital, estava piorando rapidamente. Tanto mental como fisicamente — os problemas físicos eram consequência dos mentais, estava bem pior que quando entrara. O que não deveria ser. Segundo todas as teorias, não deveria ser. Um tique numa pálpebra. Afastou-se do espelho. Isto fêz com que se defrontasse com as paredes. Eram cor-de-rosa, com pinturas de ursinhos e cavalinhos de pau. Detestava o rosa. “E também podia passar sem desenhos infantis no quarto,” resmungara certa vez. Birdie dera-lhe uma palmadinha no joelho. Estavam sentados lado a lado no sofá da sala. — Sei, querido, — dissera, — mas o Dr. Breed acha “que isso ajudará, a longo prazo. E, francamente, acho que êle tem razão. — Como assim? — Bem, a idéia é recriar sua infância. Isto é, o amor, a confiança e a inocência que você tinha então. Sei que parece tolo, mas um motivo infantil deve recordar seu pobre subconsciente de tudo que foi perdido, e lembrá-lo de que há uma maneira de voltar atrás. — Que amor, confiança e inocência? — dissera Bailey. — Lembrome muito bem de minha infância que foi cem por cento típica. Foi arrastado para a escola e odiado a cada minuto. O valentão do bairro costumava esperar por mim, na volta da escola, para me bater. Mas, por alguma razão, nunca pude contar a meus pais. Uma ou duas vezes, li uma estória de fantasmas e passei várias noites acordado, tremendo de medo. Atropelaram meu cachorrinho. Pegaram-me fazendo... — Chega, querido. — Colocara uma mão grande e macia contra seus lábios e chegara-se mais para perto dele. A colônia que sempre usava, tinha um perfume excessivamente doce. — Sei. Queremos dizer uma infância ideal. Você tem de aprender... bem lá no fundo... você tem de aprender a amar. E a ser amado. Então ficará bom. — Olhe, — dissera, enquanto sua exasperação crescia em progressão geométrica, — suponhamos que meu problema não seja uma neurose autista ou qualquer outro rótulo que vocês lhe tenham dado. Suponhamos que seja uma esquizofrenia orgânica. Que relação pode ter com este amor de que você vive falando ? Birdie sorrira com rima paciência infinita. — O amor é uma exigência básica da forma de vida mamífera, — dissera. — Nós somos mamíferos. — Sua constituição física não deixava dúvidas a este respeito. — Os bebêzinhos, nos orfanatos, costumavam morrer, porque não recebiam ca74
rinho. Se alguém recebe um pouco de amor, mas não o suficiente, morre por falta de amor, quando maduro. A deficiência o deforma e enfraquece, como se fosse um raquitismo. O que estamos fazendo é dar-lhe o amor que necessita para tornar-se certo e forte. Levantara-se de um pulo. — Já ouvi isso mais de vinte vezes, até ficar a ponto de vomitar! —gritara. — E que dizer da verdadeira psicose? — Bem, sim, suponho que seja um distúrbio de metabolismo, — respondera Birdie. — Ou assim os cientistas pensam. Embora eu ache que essas doenças também são provocadas por falta de amor. Você não acha? — Eu... eu... — De qualquer maneira, — dissera ela, — a esquizofrenia acarreta uma perda de comunicação com o mundo exterior. Não se pode esperar uma cura sem restabelecer a comunicação, não é mesmo? Pense, querido, e verá que tenho razão. Mas o amor é a ponte que une todos os abismos. Bailey quisera replicar com um nome feio, de preferência obsceno. Mas os que conseguira recordar eram muito fracos, Birdie levantara-se, jogara para trás o cabelo loiro e desabotoara o vestido. — Penso que deveríamos fazer amor de novo, — dissera animadamente. Não tinha muita vontade, mas ela o coagira... e que mais havia para fazer? Assim acabaram no quarto de dormir. Só que, desta vez, não fora capaz de fazer amor. Ela fora muito compreensiva; embalara-o em seus braços e cantara para que dormisse. Contudo, precisara primeiro de um barbitúrico. Talvez essa lembrança fosse o que o levara a se preocupar agora com... Malucos! Não há nada errado comigo a este respeito, exceto que estou tão cheio disso... Deixou o banheiro. Seu apartamento não era grande, mas era confortável e agradavelmente mobiliado. Dirigiu-se até a janela da sala e olhou para fora. Havia grades na mesma, mas apenas contra algum possível ataque de sonambulismo, conforme haviam assegurado. Tinha franquia aos jardins. Assim que ficasse melhor, poderia tirar licença para passar fora os fins-de-semana. Entrementes, todos os amigos que desejasse ver, podiam visita-lo. A vista do vigésimo andar do maior edifício do Centro Médico era magnífica pelo que abrangia à distância. O parque de Golden Gate estendia seu manto verde em direção ao oceano que resplandecia com a luz do sol. Vislumbrou a ponte que se elevava na desembocadura da baía, a água que corria cintilante para as colinas; da margem leste, gaivotas, barcos, navios, aviões. Uma brisa fresca, com cheiro de mar, entrou no quarto e 75
trouxe consigo um remoto som de tráfego. Era, entretanto, demasiado remoto, demasiado abafado; e, afora a magnificência do conjunto de edifícios no topo da colina, São Francisco demonstrava decadência: aqui uma vitrina vazia, lá um prédio de apartamentos arruinado. A economia da grande cidade estava tão deteriorada quanto Douglas Bailey. Como sociólogo, observara os dados. Não havia dúvida. Nem podia haver dúvida sobre a causa deste estado de coisas. Se a doença mental, em todos os seus graus — desde a excentricidade amena até a total insanidade, estava adquirindo proporções epidêmicas e se os Estados Unidos haviam assumido a obrigação moral de cuidar das vítimas tão prodigamente quanto fosse necessário, alguém tinha de pagar por isso. Os impostos e as inflações coletavam o dinheiro, causando seus usuais efeitos colaterais. Argumentara contra este plano de ação. Ainda argumentaria contra êle, supôs, apesar de se ter tornado um de seus beneficiários. Mas os avisos dessa pequena minoria, da qual fazia parte, eram um desperdício de tempo. Ou as pessoas se recusavam a aceitar os fatos da vida econômica, ou arregalavam os olhos e perguntavam: “Você quer dizer que alguma coisa pode ser mais importante que o bem-estar das pessoas que amamos?” Talvez, pensou abrupta e desanimadamente, a futilidade de seus esforços tivesse ajudado a causar o colapso que o colocara no hospital. Então a sensação de estar preso e de ter sido logrado tomou conta de todo o seu ser, até não poder pensar em outra coisa. Golpeou o punho contra o peitoril da janela, uma vez, duas vezes, três vezes. “Mal-ditos. Mal-di-tos. Mal-di-tos.” A cantilena tornou-se mais rápida. “Malditos, malditos, malditos-malditos-malditosmalditosmalditosm alditos, Uúuuu, Uúuuu, ch-ch-ch-ch-ch-ch...” — Duggie! O que está fazendo? Bailey parou. Virou-se bem devagar. A figura gorducha de Birdie Carol ocupava a passagem da porta do saguão. Carregava um buquê de ranúnculos. Como sempre, seu vestido era comum, um pouco vistoso; apenas um broche indicava que era uma técnica psiquiatra. Engoliu um pouco de sua raiva, embora ela quase o estrangulasse, e retorquiu: — Poderia perguntar o mesmo a você. — Ora, vim vê-lo. — Fechou a porta e correu para êle. — Veja, trouxe flores para você. Certa vez você me disse que gostava de ranúnculos. Eu também os adoro. — Intrometendo-se na minha vida como uma... como uma... uma 76
intrusa... — Mas, querido, não podia deixá-lo sozinho. Este é o seu problema, você sabe, isolamento. Pense um pouco e verá que tenho razão. Você deveria sair mais. — Chegando-se a êle, parou e deu-lhe uma palmadinha no ombro. — Você deveria, realmente. Vá reunir-se com os outros pacientes nos quartos de recreação. São pessoas maravilhosas quando se chega a conhecê-los; eles o são realmente. E as recepcionistas sociais também são tão queridas. Querem ajudá-lo... ajudá-lo a se divertir, ajudá-lo a ficar forte de novo. Como é aquela bela e antiga expressão alemã? Você a conhece; significa... — Kraft durch Freud, — sugeriu Bailey. — Isto significa “força através da alegria”? Porque é a essa que eu me referia. Mas, oh, querido, tenho de colocar essas pobres e sequiosas flores num vaso com água, não é mesmo ? — Birdie começou a mover-se de novo. Suas madeixas loiras saracoteavam-se, mas as cadeiras balançavam-se como massas sólidas. Havia, de fato, uma solidez em todos os seus aspectos, uma espécie de total controle físico — mesmo numa tarde quente em que estivera com êle na cama, ela não suara; isto havia sido confortador nos primeiros tempos: a imagem da Mãe Terra. Mas por que a Mãe Terra tinha de tagarelar? — Essa expressão foi um lema nazista, — disse Bailey. — Oh, realmente? Que interessante! Você sabe tantas coisas, Duggie querido. Assim que ficar bom de novo, será capaz de encontrar tantas maneiras maravilhosas de ajudar os outros. Não é mesmo? — Tomou um vaso de plástico inquebrável de cima de uma mesa e sacudiu a cabeça tristemente para as rosas sem espinhos que estavam lá dentro. — Pobres rosas. Receio que já tiveram seu pequeno dia de vida. Mas se ajudaram a alegrá-lo, tiveram sua utilidade, não é mesmo? Bailey cerrou os punhos. — Por exemplo, —disse, — sei que os nazistas mandavam para as câmaras de gás todas as pessoas que não se enquadravam no seu esquema. Mas, pelo menos, não pregavam pensamento positivo a elas. — Não, suponho que não. — Birdie jogou reverentemente as rosas no conduto do lixo e levou o vaso, os ranúnculos e sua enorme bolsa para o banheiro. — Esse pobre homem... Era Hitler seu nome? Como deve ter tido carência de amor! Deixou a porta aberta. Bailey podia ter evitado a visão das paredes côr-de-rosa com ursinhos e cavalinhos de pau, olhando para fora. Mas, por alguma razão mórbida, tinha de olhar bem naquela direção. Talvez, 77
pensou, isto fizesse com que os odiasse mais. — Sem dúvida, foi uma grande crueldade dos outros países declarar guerra contra os nazistas, — disse entre dentes. Birdie colocou sua bolsa em cima da caixa da descarga e revistoua. — Certamente, — replicou. — Não digo que não devessem ter libertado os prisioneiros; se realmente houve prisioneiros. Você sabe como é a propaganda em tempo de guerra. Agora que já se passaram — quantos? — cinqüenta anos, você acredita realmente, verdadeiramente, que seres humanos pudessem ter agido daquela maneira? Honestamente, não consigo. — Eu consigo. Sei o que é uma evidência histórica. Também sei como os seres humanos estão agindo hoje em dia. Cometendo crimes violentos, dizem. — Sim, sim, querido; mas será não você não compreende? Suponhamos que essas coisas terríveis fossem verdadeiras. Ou sejamos realistas e pensemos a respeito de atos de hoje que — sim, eu sei — são cometidos por pobres e desnorteadas vítimas de uma sociedade insensível. Agora suponhamos que as pessoas que estivessem sendo atacadas ou mesmo conduzidas às câmaras de gás e aos fornos, se isto realmente aconteceu, suponhamos que se virassem e dissessem com os olhos brilhando de amor: “Vocês também são vítimas. Vocês são nossos irmãos. Venham, vamos nos abraçar”. — Birdie inclinou-se para fora da porta e colocou seu intenso olhar de um azul diluído diretamente sobre êle. — Você não compreende o que isso ocasionaria? Não consegue sentir que mudança ocorreria ? — O método não parece me ter melhorado muito, — disse Bailey com um convulsivo movimento de ombros. — Bem, leva tempo. — Birdie retornou à sua ocupação. Tirou da bolsa um canivete e começou a cortar as hastes dos ranúnculos. — Mas o verdadeiro amor é infinito, — disse. — O verdadeiro amor não sabe o que é impaciência, cólera, desespero e fim. Não pôde conter-se; teve de dar um passo em sua direção, depois outro, enquanto um fragor subia-lhe à cabeça. — Você me ama? — disse, numa voz que lhe soou remota e ôca. — Ou sou apenas parte de seu trabalho? — Amo todos, — falou amorosamente. — Na cama também? — Oh, Duggie. o amor não é ciumento. Amar é partilhar. Uso meu corpo apenas como uma maneira de amá-lo. 78
Êle estava na entrada do banheiro, balançando-se sobre os pés. — Mas você se interessa por mim? — gritou. — Por mim, exclusivamente, especialmente; não porque sou um bípede sem penas, mas porque sou eu! Ela não se ruborizou. Nunca havia visto uma mudança desta espécie em sua pele cremosa. Mas suas pestanas tremeram, e ela baixou os olhos — Bem, — murmurou, — tenho pensado, algumas vezes, que, se isto o fizesse feliz, poderíamos nos casar quando você ficasse bom. Um nome tão doce, não acha? Birdie Bailey. Êle gritou em seu tormento, arrebatou-lhe a faca e cortou, cortou, cortou. — Por favor, não faça isto, — disse ela. — Isso não é um ato de amor. Abriu-lhe o ventre de um golpe. Por um momento, através da escuridão que crescia a seu redor, viu os fios, os transistores, os chumbos termogênieos supercondutores,. o acumulador de serviço pesado. Teria parado de atacar, mas seu braço já estava em movimento. A faca cortou a fita isolante ao redor de um cabo. A força provocou um curto-circuito através de seu corpo. A sensação era de ódio; um belo ódio limpo e claro que penetrava em seu ser, apoderava-se dele e o fazia participar da onda destrutiva. Mas, quando seu coração teve uma fibrilação, isso doeu. Numa nuvem de fumaça, Douglas Bailey caiu sobre Birdie Carol. É claro que ela era uma máquina, pensou seu último fragmento de consciência. Nenhum ser humano poderia- ter mantido tal representação. Seu pulso parou, e êle estava morto. A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo lançado num redemoinho, jogado para cima, para baixo e para cima de novo, ao som de um uivo, de um silvo e de um barulho de galopes de seres monstruosos. Não sabia se o vento o estava queimando com o frio ou com o calor. Nem se preocupava em saber, pois os raios cegavam-lhe os olhos e os trovões faziam seus dentes bater. Olhos? um espanto chispou-lhe a mente. Dentes? Mas estou morto... Espere um minuto. Espere só um momento. Quantas mortes já morrera ? “Zero,” Deus contou, “um, dez, onze, cem.” Por que Você não me dá uma chance de pensar? Gritou, frustrado. Concentrando-se, conseguia manter um certo equilíbrio no caos. Êle era Douglas Bailey. Sociólogo Psiconeurótico. Finalizando sua vida 79
numa instituição — três vidas diferentes e três instituições diferentes, cada uma pior do que a outra. Por que o Simulador estava fazendo isso com êle? Bem, o problema era bem real. A psicopatologia crescia cada vez mais. A sociedade tinha de resolver esse problema de alguma maneira. Mas nenhuma das três tentativas fora bem sucedida. Nenhuma, realmente. Indiferença assassina, maldade assassina, amor assassino. Na verdade, este último não era nem amor — ou, pelo menos, não era uma espécie sadia de amor. Não passava de outro modo de tentar compelir as pessoas a aceitarem a estrutura que as deformara. O amor era aceitar o ser amado, quer este estivesse certo ou errado; era adaptar-se, dentro de limites razoáveis, ao comportamento do companheiro, e não forçá-lo a adaptar-se ao seu; era dar-lhe a liberdade e, ao mesmo tempo, permanecer a seu lado para ajudá-lo, se houvesse algum problema. “Cento e onze, mil, mil e um.” Se as condições sociais fossem responsáveis pela epidemia, a cura residia numa reforma básica. Mudar as condições sociais. Remover as pressões insuportáveis. Clique. O caos repousou. Chega de pressões, ordenou Douglas Bailey. Que eu viva na primeira civilização genuinamente livre do mundo. Isto lhe foi concedido. QUARTO DESTINO — Sim, estou deprimido, — disse o homem que estava sentado à esquerda de Bailey. Tinha seus trinta anos, era de estatura mediana, tinha o cabelo ruivo e estava muito bêbado. “Quem não estaria?” Terminou seu uísque com gelo e colocou-o barulhentamente sobre o balcão do bar. — Outro, — pediu. E para seu companheiro: — Quer outro? — Não, obrigado, — disse Bailey. — Oh, vamos lá. Eu pago. É o mínimo que posso fazer, depois de ter abusado assim de sua paciência. É bondade sua me escutar, eu, um estranho e tudo o mais. Mas se Jim Wyman — esse é o meu nome — se Jim Wyman chora no ombro de alguém, Jim Wyman espera pagar pelo privilégio. — Não há problema, — disse Bailey. — Estou interessado pelo que você está me contando. Estive fora durante alguns anos, compreende? 80
Acabo de chegar. As coisas mudaram. — Certamente que sim, Sr.... Sr...., certamente que mudaram. O lugar nunca mais será o mesmo de novo, isto é certo. Garçon! — berrou Wyman. — Onde está a outra dose? Bailey cerrou os maxilares, temendo uma cena embaraçosa. Não queria ser expulso do bar. Queria permanecer na escuridão refrescante, no ambiente elegante dos antigos móveis de mogno e tapetes grossos; queria beber devagarzinho o único Scotch com água que ousava tomar e passar uma hora em paz, procurando reaver sua coragem. Haviam-no avisado de que São Francisco, como todas as outras cidades americanas, havia mudado; mas não lhe haviam dito que a mudança seria assim tão chocante. O garçon considerou Wyman por um momento, deu de ombros e serviu a dose. Um outro sintoma, Bailey pensou. A Taberna de Drake outrora nunca teria servido bebida alcoólica a um homem evidentemente bêbado. Mas, quando se olhava com mais atenção, via-se como a decoração elizabetana tornara-se poeirenta e surrado. — Você estava me dizendo que faz R e D em computadores, — disse, com a esperança de acalmar Wyman. Funcionou. A voz do homem até tornou-se mais clara. — Sim. No Centro Médico. Ou melhor, fazia. Até ontem. Agora não faço mais. Cancelado o projeto. E teria sido o maior golpe desde... desde... Não, maior ainda. Fun-da-men-tal! — Qual era o projeto? Veio a ser algo de que Bailey já ouvira falar em teoria, antes de ficar doente. Ligações diretas entre o homem e a máquina eram uma velha idéia; e já eram familiares os membros protéticos, dotados de energia, ligados diretamente ao sistema nervoso de amputados, que haviam sido desenvolvidos por volta de 1980. Mas a integração do cérebro humano com um computador apresentava dificuldades numa outra ordem de grandeza. O problema não era a conexão. Não eram necessários fios no crânio ou outra tolice qualquer. Por amplificação e indução, os impulsos podiam fluir em ambas as direções, dos neurônios aos transistores e viceversa, simplesmente através de canais eletromagnéticos. Mas o problema era como estabelecer uma linguagem comum. Nunca fora demonstrado que uma estrutura encefalográfica particular correspondesse a um pensamento particular, e, na verdade, as provas eram em contrário. O pensamento parecia ser um funcionamento incrivelmente complexo de toda a rede cortical. 81
— Mas já temos algo básico, — disse Wyman. — Descobrimos como proceder. A idéia é que não são necessários códigos especiais. Precisamos apenas de uma correspondência para cada unidade. Mais ou menos como as línguas afins. Você pode dizer a mesma coisa em inglês e alemão, na medida em que palavras diferentes significam a mesma coisa. Provaram, na seção de neurofisiologia, que o cérebro pode incorporar qualquer código digital em seus próprios processos, desde que haja uma correspondência única. Depois os rapazes da matemática elaboraram uma porção de teoremas. Você compreende, os novos dados transformaram todo o problema numa questão de demarcação dos elementos. Um problema topológico. Compreende? Quando tivermos a solução desses teoremas em nossas mãos, ora, aí poderemos ir adiante. R e D. Desenvolver a “espécie correta de computador e a espécie correta de programação. Não vai ser fácil; vai ser necessário esforço pessoal, alguns anos de trabalho, mas sabemos que podemos fazê-lo. E você calcula o que significaria o sucesso? Bailey fèz um sinal com a cabeça, animadamente. Estava se sentindo melhor a cada minuto. Por mais bêbado que Wyman estivesse, falava a linguagem da ciência. E ouvi-la, depois dos últimos anos perdidos, era como um retorno ao lar. A disciplina de Bailey havia sido a sociologia, mas ela também estava impregnada de matemática agora, e.... E o sistema homem-computador tinha potencialidades fantásticas. Com efeito, o imenso armazenamento de dados da máquina, a velocidade com que consultava sua memória, sua capacidade de realizar operações lógicas em microssegundos seriam acrescentados, ou melhor integrados com a criatividade e conotação humanas. Durante a ligação, os dois seriam uma coisa só, um computador que estaria continuamente se programando, uma mente tão poderosa que o QI não teria mais significado algum. Eles/êle/a coisa considerariam, pela primeira vez na história intelectual, a totalidade de um problema. Deveriam se precaver contra certos perigos óbvios, e, sem dúvida, outros problemas menos evidentes manifestar-se-iam à medida que o trabalho fosse progredindo. Mas as recompensas finais pareciam dignas de qualquer risco. — Bem, não vamos fazê-lo. — Wyman curvou-se sobre o copo. — Não há verba disponível. Recebi a resposta ontem. Por isso, agora estou tratando de me embebedar.. — Como, não há verbas? — perguntou Bailey. — Pensei que o NSF despejasse um caminhão carregado de dólares sobre uma proposta dessa espécie. 82
— O quê? Onde você esteve, amigo ? Já se passou o tempo em que o NSF tinha dinheiro para distribuir. O NIH também não tem. Requeremos a ambos. A todos os que talvez pudessem ajudar. Nada. A saúde mental é cara demais. Por outro lado, o governo mal pode manter em funcionamento os poucos programas existentes. A Defesa, por exemplo; seria natural que tivessem interesse pela defesa, não é mesmo? Pois bem, com os diabos, êles certamente têm interesse, mas você sabe em que condições estão os órgãos da segurança nacional. A Força Aérea aceitando passageiros comerciais, o USS Puerto Rico no alto mar como um cassino flutuante...apenas para que os serviços possam financiar uma quantia mínima para a defesa. Foi por essa razão que recusamos no caso da Guiana, no ano passado. Oh, o Presidente tentou salvar as aparências e falou sobre “acordo honroso sem pressão militar”... mas, com os diabos, todo o mundo sabe que houve pressão militar — sobre nós — da Venezuela, pelo amor de Deus! Uma lágrima caiu no copo de Wyman. — Maldito seja aquele homem, — resmungou. — Que vá para o inferno. Maldito seja por toda a eternidade. Foi quem nos arruinou. Aposto como o governo francês instigou-o a fazer o que fêz. Aposto o que você quiser, como êle escreveu seus livros e fêz seus discursos de propósito. — De quem você está falando? — perguntou Bailey. — Você sabe. O professor. O francês. Não consigo pronunciar seu maldito nome. Aquele das idéias de proteção aos doidos. — Espere um minuto. — Bailey empertigou-se na cadeira. Sua pele começou a formigar. — Você não quer dizer Michel Chanson d’Oiseau ? — É esse o homem. É esse. Shansong Dwahso. Aposto como era realmente um agente chinês; só podia ser, com um nome assim. Sabia que este grande país piegas, sentimental e estúpido gostaria de suas idéias, que faria tudo por êle, que se destruiria por suas idéias. Foi quem nos arruinou. Arruinou meu projeto. Arruinou meu país. Agora não se pode fazer mais nada a não ser sustentar um bando de vagabundos inúteis e birutas. — Wyman levantou o copo. — Abaixo Shansong Dwahso! — Não. — Bailey levantou-se. Sua cadeira caiu estrondosamente no chão. — O quê? — Wyman olhou-o com os olhos semicerrados. Não deveria me zangar, Bailey sabia. Ainda não estou bem. Disseram-me para ter cuidado, para não ficar emocionado, para conservar as emoções sempre sob controle até que meus nervos se tornem mais estáveis. Mas, não obstante, a cólera crescia, indispondo-o, repugnando-o, 83
abalando-o. Disse asperamente: — Para seu governo, sou um desses vagabundos inúteis e birutas. — O quê? Você? — Não acredita em mim? — Bailey tirou a carteira do bolso das calças. (Dissera-lhes que não precisavam lhe dar um terno tão bom, mas responderam-lhe que manter uma certa moral era importante para sua recuperação.) Folheou-a até encontrar o cartão que atestava sua condição de doente mental. — Fui liberado hoje de manhã, depois de passar cinco anos no Hospital Estadual NAPA, — disse. — Antes de ficar doente, era um membro útil da sociedade. Mas, depois, passei por um pesadelo que você, com sua presunção, não pode nem começar a imaginar. Salvaram-me no NAPA. Não poderiam ter sido mais bondosos. De acordo com o que lhes permitia a capacidade de seus conhecimentos, procuraram dar uma nova unidade à minha mente. Estou agora numa fase de recuperação. Quando ficar completamente curado, o que espero que eventualmente aconteça, voltarei a trabalhar, E então pagarei de bom grado o imposto para ajudar os que não estão bem., — Mas... mas... — Wyman tentou falar. Bailey interrompeu-o brutalmente: — O que você queria que o país fizesse? Nos últimos vinte anos, a percentagem das doenças mentais cresceu quase exponencialmente. Alguma coisa tinha de ser feita. Que se podia fazer? Matar-nos? Submeter-nos a uma lavagem cerebral? Exilar-nos? Deixar-nos morrer de fome ? Todas estas eram medidas possíveis. Mas eu, junto com alguns milhares de outros seres humanos, dou graças a Deus que Chanson d’Oiseau nos mostrou a maneira decente de solucionar o problema... e que você vá para o inferno! Jogou o conteúdo de seu copo no rosto de Wyman. — Garçon! — gritou Wyman. — Viu o que êle fêz ? Viu o que este psicótico sugador da riqueza pública fêz comigo? — Tome cuidado com o modo de falar, — replicou o garçon. — Êle tem seu certificado, não é mesmo? Portanto, a lei diz que temos de fazer concessões. — Ela diz isso? — exclamou Bailey. Maravilhado, derramou o copo de Wyman na cabeça deste. — Ei, — disse o garçon. —Tenha dó, companheiro. Tenho de limpar depois. Bailey virou-lhes as costas e saiu a passos largos. A luz do sol caía brilhantemente de um céu sem nuvens e cheio de 84
vento e gaivotas. Bailey procurou ignorar o fato dela iluminar o estado miserável de edifícios outrora magníficos, as calçadas sujas, as vitrinas sem brilho, os pedestres mal vestidos. O custo era certamente grande, mas a obrigação tinha de ser cumprida. Como Chanson d’Oiseau escrevera: — (Bailey deliciou-se mentalmente com a nobre passagem tantas vezes lida e traduziu-a para o inglês, enquanto caminhava.) “Tendo demonstrado, nos capítulos precedentes, que a loucura epidêmica surge de uma situação que o homem criou coletivamente (devido à superpopulação, à supermecanização, à organização, à despersonalizacão, contra o que os instintos mais profundos do animal humano se revoltam), considero agora o que deve ser feito a respeito destes animais humanos revoltados. Seu número está, na verdade, criando um tal ônus e perigo, que a compaixão para com eles tende a desaparecer. Todavia, sua condição não é devida a uma falha própria, mas a um fracasso maciço da sociedade. Portanto, deve-se procurar uma cura social para esta doença social. “A solução que proporei e apresentarei detalhadamente é das mais radicais. Mas o que significa radical’? A palavra vem do latim radix, que significa raiz; e assim as propostas radicais são aquelas que vão à raiz do problema, “É óbvio que os serviços clínicos devem ser fornecidos gratuitamente durante todo o tempo necessário para cada caso individual. Mas a psiquiatria é imperfeita. Se acaso existirem, as curas totais são muito poucas. O paciente que tende à instabilidade ou que recuperou uma certa estabilidade depois de passar um período internado no hospital, não deveria nunca mais ser exposto às pressões intoleráveis que causaram sua doença. Ou melhor, deve ficar livre delas. Todo seu esforço deve ser dirigido à recuperação ou, pelo menos, a procurar evitar qualquer piora. Portanto, êle deveria receber um estipêndio do Estado, o suficiente para sustentá-lo e a seus dependentes num padrão decente de vida. E, enquanto seu comportamento não se constituir numa verdadeira ameaça para os outros, deveria ser liberado de restrições legais e ter liberdade para dar vazão a seus impulsos conforme suas necessidades ...”, Bailey gritou. Um carro parou derrapando. Branco, o motorista inclinou-se para forae gritou; — Por que não olha por onde anda, biruta? — Oh. — Bailey voltou a si com o choque e viu que estava no meio da Rua Post e que a luz da sinaleira estava contra êle. — Eu... Os carros paravam forçosamente ao redor da cena e buzinavam. Uma multidão aglomerou-se. Um possante policial de uniforme azul a85
briu caminho por entre as pessoas. — Está bem, está bem, — dizia, — que está acontecendo? -— Compreendeu a situação. — Um pedestre imprudente, hem? Quer se matar, Mac ? —Eu... eu... — Um medo irracional, mas terrivelmente real apertava a garganta de Bailey. — Aplique-lhe uma multa, seu polícia, — pediu o motorista. —Tireo já daí. É uma ameaça às grades dos radiadores. Tut! Tut! Tut! — Por Judas, — gemeu o policial, — teremos um engarrafamento de tráfego daqui até a cidade de Daly por sua causa. Venha para cá! Saia da rua! Deixe-me ver seus... — Mas Bailey já lhe dera a carteira. O queixo do policial caiu. — Com os diabos, por que não me disse logo? — exclamou. O carro já estava arrancando. O policial correu e apitou para que parasse. — Você aí! Estacione! Não sabe que quase matou um infeliz ? O motorista ficou branco de novo. — Sim, — disse uma voz na multidão, e insultou-o também. Chamou-o de biruta. — Tem certeza ? — perguntou o policial. — Tenho, sim. — O falante deu um passo à frente. — Eu próprio o ouvi, seu polícia. Só Deus sabe que danos psíquicos este bruto inflingiu. Várias testemunhas confirmaram. O policial disse: — Desculpe, Sr. Bailey, não posso multá-lo por crime de insulto, a não ser que o senhor venha ao posto e faça a queixa, pedindo um mandado de prisão. O senhor deseja fazer isto ? Bailey engoliu em seco e sacudiu a cabeça. — Bem, de qualquer maneira, posso intimá-lo por um 666, — disse o polícia severamente, — E êle comparecerá ante o juiz Jeffreys. Cuidarei disto pessoalmente. Ninguém consegue insultar impunemente na minha zona. Bailey sentiu que deveria dizer alguma coisa, mas estava demasiado abalado. Desejando apenas fugir, desapareceu entre a multidão que lhe abriu caminho, e passou à praça Union. A grama estava muito irregular e necessitava um corte, mas as bandeiras ainda flutuavam em seus mastros... Espere. Essas deveriam ser as bandeiras americana e da Califórnia, não é? E não uma bandeira de piratas, outra do SPQR, outras de Campbell e dos Amigos em Intima União... O homem que fora sua primeira testemunha tocou-o no braço. — 86
Posso ajudá-lo, caro rapaz ? — murmurou. — É evidente que você recém chegou à nossa bela cidade. —Bem, eu... eu estive no NAPA, — disse Bailey. — E agora está sozinho. Que horror! Você poderia ter levado dias até encontrar seus verdadeiros companheiros. — O homem era pequeno, asseado, limpo e falava com educação; de fato, por mais pormenorizadamente que Bailey observas-se, seu único traço singular era roupão de veludo azul sem cinto. Apertou-lhe a mão lentamente e disse: — Chameme Jules. — Bailey. Douglas Bailey. Eu... ahn... você também... um infeliz? — Mas é claro, rapaz encantador, mas é claro. Você tem muita sorte de eu estar aqui por acaso. Poucos de nós descem a esta área. Sem um guia, você poderia ter ficado desamparado entre verdadeiros láteros. Um homem de uniforme preto surgiu da multidão, subiu num banco e anunciou: — Amigos! Meus queridos amigos sub-humanos! Escutemme! Esta é uma mensagem muito vital. Vocês notarão que sou da raça caucasiana. Bem, amigos, tenho uma surpresa para vocês. Sou bastante singular. Sou um racista — um racista dedicado e fanático — que mantém e pode cientificamente provar que sua própria raça é inferior. Os únicos humanos verdadeiros sobre a Terra, meus amigos, a principal linhagem da evolução, os senhores do futuro, são os nobres melanesianos. Bailey e Jules circularam por ali. — Mas parece haver tipos individualistas aqui, — disse Bailey. — Oh, meu pobre inocente replicou Jules. — Como pode distinguilos? Não seja tão ingênuo. Fica encantador em você, mas é ainda assim uma ingenuidade. A metade dos oradores da praça Union é sadia. Apenas cedem a seus impulsos interiores, sabendo que uma força policial, sobrecarregada de trabalhos, dificilmente lhes pedirá os certificados. E a outra metade... ora realmente, querido você não concorda que são tão desagradáveis como os láteros? — Láteros ? Jules deu-lhe uma palmada nas costas. — Vejo que terei de me encarregar de você. Realmente terei de fazê-lo. Não, não, não. Não precisa ficar agradecido. O prazer é meu. É, por assim dizer, minha arte espiritual. Apresentá-lo-ei às pessoas que têm importância. Dar-lhe-ei as informações necessárias. Remodelarei sua personalidade. Em resuma, criá-lo-ei. — O quê ? Hem, espere um momento, eu... Jules tomou o cotovelo de Bailey e levou-o adiante. — Láteros, — disse — vem de quadriláteros. Quadrados nas quatro dimensões. Os 87
insensível e inflexívelmente sãos. Mas insisto que estes pseudodoentes mentais aqui do centro, mesmo os que têm certificado, são também láteros. Têm as mesmas preocupações — sociedade, sucesso, ostentação — e não têm o menor conceito de espaço interior. Ora, certa vez ouvi um falar sobre Deus e perguntei-lhes se já apreendera o infinito pela simples contemplação de uma caixa de aveia, e êle simplesmente cuspiu! — Cruzaram a rua. — Levá-lo-ei diretamente à casa de Genghiz. Tenho certeza de que devem estar começando uma festa lá. É nessa hora que sempre começam. E êle tem amigos mais encantadores... Ah, chegamos. — Jules parou junto a um Volkswagen. O prazo de estacionamento já estava esgotado, mas evidentemente o rótulo no pára-brisa ou talvez os folhos ao redor do chassi tomavam conta disso. — Você tem carteira de motorista? — perguntou Bailey admirado. Jules fêz que sim com a cabeça. — Faz com que eu seja muito necessário em meu pequeno círculo de amigos. São poucos os que têm permissão para dirigir, compreende. Alguns ficam verdadeiramente furiosos com isso. Mas devo concordar, apenas cá entre nós, querido, que a sociedade tem alguns direitos em relação aos infelizes. Não muitos, mas alguns. Entretanto, consegue encontrar alguma razão que impeça um homossexual de dirigir? — O quê? Mas... mas... seu caso... Jules fêz um trinado alegre com a língua. — Oh, meu bem, como foi que trataram você no NAPA ? Nunca lhe permitiram ler jornais? Nem ouviu noticiários? Ora, foi o grande acontecimento da última eleição. Estávamos até divididos entre nós mesmos. A Sociedade Mattachine dizia que havia trabalhado tanto para conseguir que nos aceitassem como cidadãos normais, apesar de singulares. Pobres queridos! Faltava-lhes apenas um pouco de realismo. As recompensas da condição de “infeliz” compensam: o rótulo. E, de qualquer modo, não deve mais ser considerado como um estigma, não é? Todos os candidatos — quero dizer simplesmente todos os candidatos através de toda a nação — que apoiavam a mudança da lei para que fôssemos declarados casos mentais, foram eleitos por uma maioria esmagadora. Não tinha pensado que houvesse tantos de nós. Agora, upa upa para dentro do carro, e comecemos nosso alegre passeio. Bailey subiu automaticamente, reconhecendo sua própria fraqueza, mas incapaz de fazer qualquer coisa a respeito. Além do mais, pensou, não tinha o que fazer. Poderia ser divertido. Sempre posso sair, se não o fôr. Espero. Dirigiram-se para o oeste, pelas colinas, em direção a Haight-Ash88
bury. Jules indicava-lhe os lugares por onde passavam. O Templo de Ishtar: — Bem, talvez eu também tenha certos preconceitos, mas acho que esses que padecem de satiríase e ninfomania são um pouco vulgares. Onde já se viu fazer de sua doença uma religião incorporada às leis do Estado da Califórnia? Tão sem sentido. — A neblina de marijuana no pátio de recreação infantil de Hamilton: — Esse litígio foi à Suprema Corte. O que os pais doentes podiam ou não podiam fazer a respeito da educação de seus filhos? A Corte achou que, segundo a emenda 14, era arbitrário exercer controle oficial sobre tais famílias, quando nenhum dano físico estivesse sendo infligido. — A vista distante das ruínas de Oakland: — Tão trágicas. Mas suponho que, com os encargos que têm, sem falar dos pedidos de admissão que excedem, em muito, o espaço disponível, as instituições deviam ser perdoadas por terem acreditado na Cura de um incendiário. Um grupo barulhento de homens e mulheres, vestidos apenas com desenhos artísticos, estavam posando para as câmaras de um casal de aspecto estrangeiro: — Acho que esses turistas são russos. Ultimamente, temos tido muitos russos aqui. Riem e riem. Por que será? Quando o carro parou, Bailey engoliu em seco e esteve a ponto de sair correndo. Ao longo da rua, havia casas velhas que tinham as vidraças quebradas, as portas descaídas, as telhas frouxas e as estruturas sem pintura e cambaleantes. As calçadas estavam cobertas de uma camada de lixo que chegava até ao tornozelo. Não se podia passar para o próximo, quarteirão, porque dois automóveis haviam colidido e nunca haviam sido removidos; eram agora dois cascos enferrujados, e um rato saiu correndo de um deles. Na rua, havia somente um viciado numa varanda apodrecida, alegremente injetando a droga em si mesmo. Uma brisa fria espalhava o forte cheiro do lixo, e havia sombras impenetráveis entre as paredes pendentes. Em algum lugar, alguém estava gritando, alto e com uma regularidade horrível. Jules sentiu a apreensão de Bailey e bateu-lhe levemente na mão. — Não se preocupe, — disse o homenzinho. — Sei que isto talvez lhe dê uma impressão um pouco... sinistra, não é mesmo ? Mas, realmente, essa sua bela cabeça está em segurança aqui. É simplesmente que:. ... bem, os láteros têm suas próprias áreas, mas não podem monopolizar toda a cidade, não é? Este bairro foi entregue aos infelizes para que fizessem o que bem entendessem. Porque uma das causas das doenças não foi uma conformidade excessiva à sociedade? Bailey tomou coragem e acompanhou Jules a uma mansão eduardi-ana de três andares, com torreões e incrustações, que fora subdividida 89
em apartamentos. — Não deveríamos levar alguma coisa? — disse. — Se estamos invadindo uma festa... quem sabe uma garrafa ou um baralho? Jules bateu com o pé. — Você deve livrar-se dessas preocupações! — gritou. — O que poderia ser mais aborrecido que uma “festa”? — Êle quase pronunciou as aspas. — Como é possível organizar o divertimento?! E quanto às bebidas, se você não tem realmente os recursos interiores para ficar alto, ora, haverá bebidas em profusão. Genghiz Khan conhece Joe o Calvo, compreende ? — Êle conhece ? Jules acalmou-se e explicou: — Temos um infeliz que pensa que é Joe o Calvo. Você certamente se lembra de seus clássicos. Joe o Calvo fazia bebidas alcoólicas. Portanto, aquele que se julga Joe o Calvo, deve ter permissão para fazer bebidas alcoólicas. E conceder-lhe uma licença ou fazê-lo pagar o imposto feriria sua psique. Assim o custo é mínimo. — Piscou e enterrou o polegar entre as costelas de Bailey. — Não foi fácil conseguir este certificado. Joe o Calvo é o homem mais sutil que conheço. Num saguão de entrada sombrio e cheio de teias de aranha, havia uma escada que conduzia ao som das vozes e do que Bailey supôs ser música. — Ei, quem você disse que é o nosso anfitrião? — perguntou. —Oh! — Jules bateu no peito. — Que bom você ter-me lembrado! Poderia ter acontecido algo terrível, se você não soubesse que deve admitir sua ilusão. Cuide para chamá-lo de Genghiz Kahn. Seu nome é... era realmente Ole Swenson, mas não se deve falar nisto. Enquanto, você o obsequiar de modo razoável — você sabe, ajoelhar-se e tocar o chão com a cabeça quando da apresentação, tremer de medo e perguntar sobre sua conquista da China —, êle se revela um amor de pessoa. Mas, caso contrário, bem, devo admitir que pode-se tomar terrivelmente, terrivelmente mau. — Violento? — Oh, não! Céus, não! — Jules lançou as mãos para cima. — De onde você tem estas idéias deturpadas ? Admito que alguns dos meus amigos são um pouco estranhos, mas a culpa não é sua; é da sociedade. Tenho certeza de que, no fundo, são todos pessoas muito boas. — Baixou a voz. — Entretanto, quanto a Genghiz, tome cuidado. Se você não tratá-lo como o Imperador de todos os homens, êle... êle o processará. Por dano psíquico. E ele freqüentemente ganha as causas. Bailey molhou os lábios que haviam-se tornado secos e subiu, após Jules, a escada que rangia. Mas, assim que entrou no ritmo da festa, esta revelou-se inofen90
siva. Na verdade, lembrou-lhe seu tempo de estudante em Berkeley. As roupas estranhas, os corpos um pouco sujos, as conversas honestas e um pouco pomposas, os agarramentos nos cantos das salas que tinham as paredes pintadas de preto, cobertas com panos de pára-quedas ou decoradas segundo a última moda não-conformista, tudo isso lhe era muito familiar. Lembrou-se de que aquelas pessoas tinham o certificado de serem dignas de confiança; eram capazes de enfrentar o mundo, desde que este lhes desse o necessário para viver. Como êle. A festa tornou-se maior e mais barulhenta, quando o dia passou lentamente à noite. Alguns voluntários fizeram uma arrecadação — ao contrário de outras festas boêmias, não faltava dinheiro a esta — e trouxeram o necessário para fazerem sanduíches. Bailey ficou no apartamento, circulando, travando conhecimento com as pessoas, conversando; admitiu que Jules lhe fizera provavelmente um favor. Era uma festa interessante. Teve algumas decepções ocasionais. Por exemplo, sua discussão com um antigo professor de Economia foi interrompida por um jovem de túnica, cabelo pela cintura: — Ei Phíl, já sabe o que aconteceu a Tommy? — Não, o quê? — replicou o professor. Era um homem grisalho, gentil e de fala macia, que parecia mais conformado que alegre com seu desalinho. — Foi espancado, — disse o jovem. — Os policiais pegaram-no com a esposa. — Bem, bem. — O professor sacudiu a cabeça. — Não posso dizer que sinto muito. Você sabe que nunca aprovei. — Ora, deixe-se deste seu lance de látero, — disse o jovem. — Não podemos deixar que os quadrados façam esta espécie de coisa. Temos que fazer algo. — Qual é o problema? — perguntou Bailey. Agora, com um copo de vinho na mão e outro já em seu corpo, sentia-se quase audaz. — Companheiro novo? — disse o jovem. — É o seguinte: Tommy conseguiu o certificado no ano passado. Caso incurável de impotência conjugal. — Você quer dizer que não era? — Claro que não. Tommy é o maior garanhão da Costa Oeste. Forte como um cavalo. Mas acho que a informação chegou até os quadrados. Imaginem! Espionar a vida particular de um homem. Que espécie de polícia temos, afinal? 91
— Mas uma pessoa que se finge de doente... — Bailey viu que estava se dirigindo às costas da túnica. O professor sorriu: — Receio que isto se tornou tão comum, que é verdadeiramente respeitável em alguns grupos, — disse. — Este jovem não esconde de seus amigos que sua monomania religiosa nada mais é que uma maneira que descobriu, de viver sem trabalhar. — E você não o delata? — Não, lamento dizer que não tenho coragem de ser um delator. — O professor suspirou. — Meu colapso foi bem genuíno. Tente explicar a moderna política econômica americana. Uma ou duas horas mais tarde, Bailey estava de pé, junto a um grupo que escutava um negro loquaz: — Rapaz, vou lhe contar, nós podemos fazê-lo. Tudo o que necessitamos é organização. Se os homossexuais conseguirem, por que não os de côr? Já no caso de Brown contra o Departamento de Educação, a Suprema Corte demonstrou como a discriminação afeta a psique. Certo? Certo. E, com ou sem lei, ainda temos discriminação neste país. Assim, por que não deveríamos fazer com que fosse aprovado um projeto de lei declarando que todas as pessoas de côr são casos mentais? Será que os brancos não nos devem isto? — Bem, — respondeu Genghiz Khan, — se o mesmo pensamento pudesse ser aplicado aos mongóis e suecos... — Certamente, — disse o negro. — Por que não? Estava pensando que deveríamos nos unir com os judeus. Mas a maior parte dos judeus colocou-se ao lado dos quadrados. Assim, por que não vocês, ao invés deles? Auxílio mútuo, como dizem. Uma garota ruiva puxou a manga de Bailey, fêz um sinal em direção ao negro e sussurrou: — É ironia maravilhosa. Ferd deseja tanto um certificado, que já pode senti-lo. Você deveria ouvi-lo falar arrebatadamente sobre como o homem negro deveria se rebelar e matar todos os brancos sujos deste mundo. Mas nunca conseguiu passar em nenhuma junta examinadora. Os bastardos dizem sempre que êle não é paranóico, que está apenas expressando uma opinião política. Você compreende, bem lá no fundo, êle gosta dos brancos. Não pode deixar de gostar. Assim, êle agora está planejando este esquema para conseguir o certificado individual. Só que aposto como não consegue. Mas também aposto como, dentro de dez anos, será a lei da nação. Por volta da meia-noite, começaram a dançar. A esta altura, todos os apartamentos da casa estavam apinhados de gente, provavelmente 92
metade da população do bairro; no andar térreo, as pessoas transbordavam para a rua. Mas descobriram que podiam saltar ao som de uma gravação de bongôs, se o fizessem em uníssono. A cabeça de Bailey doía. Sentia-se um pouco tonto. Demasiada quantidade de álcool, fumaça, calor, ar viciado e excitação para seu estado ainda enfraquecido. Mas não queria sair. Suas perturbações interiores não existiam neste brilho rosado. Sua solidão desaparecera. Este mundodentro-do-mundo aceitava-o. A garota ruiva falava sobre sua análise; falara e falara e falara. Mas era bonita e revelou-se muito ativa, quando começaram a pular com os ventres unidos; pensou que poderia levá-la para a cama mais tarde. Dançava. O grupo dançava. O chão estrondava. Os lustres oscilavam. O reboco caía. As vidraças despedaçavam-se. Rat-a-plan, rat-a-plan, para-timbum, fían, flan! Olê, olá! Até que todo o edifício, carunchado e infestado de cupins, veio abaixo. Bailey teve somente um instante para compreender que êle e o telhado estavam caindo. O entulho o enterrou, e êle estava morto. A morte era um vento tempestuoso. Era como se estivesse sendo lançado num redemoinho, jogado para cima e para baixo, e já começa tudo de novo. Mas, concentrando sua vontade, ignorando resolutamente coisas como trovões, raios e polvos, conseguia permanecer, de certo modo, num plano menos perturbado. “Zero,” Deus contou, “um, dez, onze...” “Oh, cale-se,” rosnou. O que estava lhe acontecendo? Esta seqüência de finais úmidos continuaria para sempre? Será que morrera realmente e fora destinado ao inferno? Não. Pois qual seria a razão do inferno, se ás pessoas não pudessem se lembrar por que estavam ali? Concentrou-se num único enigma. Quem era êle? Por que existia? Como não estava mais tão confuso e apavorado, descobriu que podia recordar todo o seu passado em cada uma de suas vidas. E, até certo ponto, eram iguais. Infância comum, estudos, viagens, livros, música, amigos, casamento, divórcio, outras mulheres, outros passatempos, uma carreira promissora como jovem sociólogo pesquisador ligado ao Centro Médico da Universidade em São Francisco. Escrevera sua tese sobre o problema proposto pela incidência crescente de doenças mentais e agora estava tentando encontrar a causa e a cura em termos sociológicos. As vidas pas93
savam-se muitos anos atrás; 1984 foi o ano mais próximo que pode situar. “Mil, mil e um, mil e dez.” Mas qual das quatro foi a sua existência real? Ou todas elas o foram? Não. Não podia ser. Nada, no passado comum a todas elas, sugeria que sua psique foss se desintegrar algum dia. E, no entanto, havia se desintegrado. Quatro vezes. Assim, não eram esses episódios a ilusão, o passeio-não-tão-fe-liz de que tinha de fugir? Fugir como? Bem, em primeiro lugar, como entrara nisso ? Não sabia! As “encarnações” camuflavam este último segmento de sua vida. Ó deuses e bruxas, estava por acaso condenado a repetir a morte em mundos lunáticos, um após outro, até que, por fim, ficasse realmente louco? Pense, êle ordenou num desespero crescente. Pense muito. O que você fêz para ser lançado numa pseudo-existência ? “Mil cento e onze.” Você considera onde esteve por último. Compreende o que estava errado na maneira de tratar a situação. Acredita que percebe uma maneira melhor. Então Deus diz clique, e você se vê numa nova situação para descobrir que também esta não vale nada. Por exemplo, tome este último mundo. Tinham realmente o embrião de uma idéia. Remover as pressões que fazem com que as personalidades mais fracas fiquem deformadas. O problema é que a sociedade não consegue funcionar sem algum grau de intolerância e pressão. Pelo menos, esta não funcionaria. Uma sociedade tecnológica, dominada pelas cidades, orientada para o racionalismo, exerce inevitavelmente pressões sobre as pessoas, e talvez essas pressões sempre sejam demasiado brutais para alguns. Mas que dizer de uma cultura totalmente diferente? Não Selvagens Nobres, é claro; mas... bem, um homem póstecnológico que usa a máquina apenas para as tarefas mais difíceis e aborrecidas. Um homem que, sob outros aspectos, liberou seu mundo da feiúra e complexidade excessiva, que voltou a uma natureza agora cheia de segurança e perfeição, de modo que, ao mesmo tempo em que satisfaz seus instintos animais, também cultiva suas capacidades intelectuais, espirituais e singularmente humanas... Clique. O ventre do tempo estava prenhe. Não! gritou Douglas Bailey com horror. Não quis dizer isto. Mas já era tarde. 94
QUINTO DESTINO O robô que cuidava da manutenção da área, sofrera uma avaria que estava fora do alcance de sua capacidade da auto-restauração. Bailey pediu que o Engenheiro viesse repará-lo. O homem não pôde vir por vários dias. Bailey não ficou incomodado por ter de tomar conta da casa neste meio tempo. De fato, era êle próprio quem usualmente cuidava do jardim. Cortar e rachar lenha, cozinhar, fazer consertos secundários no encanamento e na unidade de energia solar, tudo manualmente, constituía uma mudança agradável em seu ritmo de vida. Era uma alegria trabalhar ao ar livre. Estas colinas sobre a baía, onde êle e o robô haviam erguido a cabana, nunca haviam sido mais belas. Mas nenhum homem podia patrulhar sozinho toda uma região. E Bailey não tinha vizinhos. (Não era um eremita, de modo algum; apenas retirara-se de sua comunidade por uns tempos, para poder desenvolver certos aspectos de ursa idéia filosófica.) Mesmo que não houvesse nenhum outro problema, o fogo constituía uma ameaça onipresente na estação da seca. Não podia correr este risco logo agora que a floresta estava reflorescendo tão promissoramente. Além disso, odiaria ver Sausalito arruinada, quer por incêndio ou negligência. A cidade deserta tinha para êle um encanto curioso e melancólico. Assim, pôs em funcionamento o radiotelefone e chamou Fairfax. Por acaso foi Avis Carmen, que dirigia as atividades cooperativas este ano, quem recebeu pessoalmente a mensagem. —Ora, certamente, Doug, — disse. — Você deveria nos ter notificado mais cedo. Vou lhe conseguir um grupo de pessoas. Bem, muitos rapazes foram andar de barco no Delta, de modo que talvez não possamos dispensar os que aqui estão. Mas posso pedir voluntários de outros lugares. Quantos você acha que serão necessários ? Vinte? Certo, chegaremos aí depois de amanhã o mais tardar. — Muito obrigado, Avis, — disse. — Ora, para que agradecer? É nosso dever para com a terra. Além disso, uma tarefa em conjunto como esta é sempre divertida. — Conservei o hábito de agradecer às pessoas sua generosidade. Acho que sou antiquado. — Você o é realmente, querido. — Sua voz tornou-se mais rouca. — Sabe do que mais ? Vou delegar a organização a Jim Wyman e irei sozinha hoje mesmo. — Oh, não é necessário. Ainda não estou em apuros. — Eu sei. Mas não gostaria de alguém que o ajudasse? E que tal um 95
pouco de companhia e sexo? Você está sozinho há semanas. Bailey hesitou. -— Para falar a verdade, sim, — disse. — Estou bastante preocupado por não poder manter uma serenidade profunda. O que significa que não estou realizando nada em profundidade ainda. Mas você pode sair assim tã de repente? Avis riu. — Calma! Você deve tentar superar esses empecilhos que inventa. Juro que, se a Mudança não tivesse ocorrido, você teria eventualmente tido um colapso nervoso. Ninguém vai morrer se eu deixar de dirigir as danças folclóricas, os cantos da comunidade e as aulas de artesanato por algum tempo. Minha única obrigação vital é o treinamento em delicadeza, mas tenho certeza de que Roger Breed se encarregará de meus pequeninos de seis anos, enquanto eu estiver fora. Se você ainda insistir em ser escrupuloso e farisaico, posso lhe dizer que minha tarefa mais urgente é você. Parece-me que a solidão estimulou sua agressividade. — Faça amor, e não a guerra,— citou êle com um riso. — Não é esse o princípio básico do mundo moderno? — replicou ela seriamente. — Não que você fosse ferir outra pessoa, querido. Mas isso significa que as tensões não liberadas voltam para o interior da pessoa. Bailey interrompeu a ligação assim que foi cortêsmente possivel: o que não foi logo depois, dadas as regras da sociabilidade e de agir descansadamente. Avis Carmen falava demais e era um pouco afobadamente sincera demais para seu gosto. Não obstante, esperou ansiosamente a sua chegada. Foi no final da tarde que ela chegou. Estando com pressa, ela não caminhou, nem percorreu de bicicleta ou a cavalo as quinze ou vinte milhas. Depois de se assegurar de que ninguém mais a necessitaria, tomou um dos carros-pairadores da vila. O veículo deteve-se com um zumbido tênue ao lado da cabana. Bailey correu ao seu encontro. Avis içou-se para fora. Era uma jovem grande, e seu cabelo loiro tinha um brilho desmaiado espantoso contra a pele nua bronzeada. Quando se abraçaram, ela estava quente, macia e cheirava a verão. — Ei, garotão, — disse, — seu problema é assim tão urgente? Bailey aconchegou o rosto na concavidade entre seu pescoço e ombro. — Já que você traz à baila o assunto, — disse, — sim. — Bem... está bem. Eu também senti saudades de você, Doug. Mais tarde, voltaram para fora para buscar a mala. Mas ela parou e sussurrou com uma reverência sincera e verdadeira: — Meu Deus, que vista você,tem aqui! — E eles abriram suas consciências e ficaram em ín96
tima união com o mundo. O sol estava se pondo atrás dos carvalhos e eucaliptos que cíngiam o cume onde se encontravam. De seu grande escudo dourado, jorravam lanças que abrasavam tudo o que tocavam. As paredes da cabana, as árvores circundantes, o próprio ar, tudo estava saturado de luz. Na frente deles, o solo caía escarpadamente até as florestas, e além a baía difundia um brilho azul, estendendo suas milhas calmas até as colinas castanhoamareladas do leste. O céu estava transbordante de silêncio. Bailey foi o primeiro a retornar a seu eu pessoal. Viu lágrimas na face de Avis e disse: — Mas o que foi? Ela voltou, lentamente e com alguma relutância, de sua união com o mundo. — Nada, — respondeu-lhe. — A beleza. E a compaixão. — Compaixão? — Por todos os que viveram antes da Mudança. Que nunca chegaram a conhecer isto. — Ora, convenhamos que não éramos assim tão miseráveis, querida. E por que fazer com que me sinta antigo? Você também nasceu na civilização anterior. — Não me recordo muito, entretanto, — disse ela gravemente. — Suponho que... a época do julgamento me impressionou tanto que esqueci grande parte da minha infância. O mesmo aconteceu com quase todos os sobreviventes. Você parece recordar esse tempo passado melhor que a maioria de nós. Nós ... bem, poder-se-ia dizer que o julgamento nos purificou. Conjeturou que ela queria expelir uma tristeza que a tocara, pois continuou quase ardentemente: — Tinha de ser. Tínhamos de ficar livres dos hábitos de nossos antepassados. Só então pudemos ver o que a desnaturalidade, as pressões, as pequenas inibições sórdidas haviam feito à Terra e à humanidade. Fomos libertados do passado e pudemos realmente começar de novo. — Não sei se estamos assim tão libertos do passado, — disse Bailey. — Oh, conservamos o que era bom. — Avis lançou um olhar para São Francisco. — Veja a cidade, por exemplo. Dá realmente um toque mágico à cena. Fico feliz dela estar ali, feliz que as máquinas a conservaram, feliz que as crianças são levadas a visitá-la por ser algo necessário à suaeducação. Mas viver ali? — Fêz uma careta. — Eu gostava da cidade, — disse Bailey. — Você ainda não compreendia muito bem as coisas, não é? 97
— N-n-não. — Suas lembranças estavam reprimidas. — Mas eu tinha amigos. Morreram. Todos os que eu conhecia morreram. Qual é a estimativa? A praga matou 95%, não foi? Da população de todo o mundo em meses! Até você tem de chorar por eles de vez em quando. — Por suas pobres vidas desperdiçadas, — disse Avis. — Não por suas mortes. A morte foi uma libertação, tenho certeza. E que outra maneira havia para se sair da armadilha que o homem construíra ao redor de si mesmo? Agora temos espaço para respirar, riquezas, recursos e conhecimentos para fazermos o que quisermos; e estamos tornando nosso planeta num paraíso, — Estamos? — perguntou Bailey. — Conhecemos a área da baía. Estabelecemos contatos radiofônicos ocasionais com alguns outros agrupamentos, aqui e ali ao redor do mundo. Mas, do contrário,... bem, suponhamos que você me diga o que está acontecendo num lugar tão perto como o Rio Russian. — Provavelmente nada, — disse Avis. — Não há pessoas lá. Nós nos propagaremos e ocuparemos as terras vazias. Mas sem pressa. — Seu punho fechado golpeou o solo. — E nunca procriaremos, construiremos, abriremos minas, derrubaremos árvores, poluiremos e destruiremos conforme a antiga maneira obscena. Nunca! Aprendemos nossa lição! Bailey decidiu que a conversa se tornara deprimente e devia ser mudada. Colocou um braço ao redor da cintura de Avis. — Você é uma garota muito querida, — disse, tanto para acalmá-la, como porque assim pensava realmente. — Se o ciúme fosse permitido, teria ciúme de seus outros amantes. Acha que gostaria dé ter um filho comigo? Sua tensão diminuiu; ela beijou-lhe a face e se aconchegou a êle. — Ainda sou jovem, — disse. — Ainda não estou preparada para assumir uma responsabilidade assim tão, grande. Mas algum dia... sim, Doug, se você ainda quiser, penso que também quererei. Você deve ter cromossomos muito bons e faria muito bem o papel de pai... e, oh, gosto de você. A conversa perdeu-se em tolices amáveis até que o crepúsculo e a fome os levaram para dentro. Depois do jantar, sobre um tapete de pele de urso sintética (embora os ursos estivessem surgindo de novo, a espécie ainda era protegida), ante as flamas que dançavam numa genuína lareira de pedra, fizeram novamente amor ao som do Bolero de Ravel, tocado num rústico aparelho estereofônico de alta fidelidade. Isso foi tão divertido que repetiram com a Sagração da Primavera de Stravinsky, com a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach, com a Nona Sinfonia de Beethoven e, finalmente, com uma peça de Delius. A vida moderna fizera maravilhas 98
para essa capacidade particular. Na tarde seguinte, um grupo de amigos chegou de Fairfax com um veículo carregado de ferramentas. No final da tarde, um contingente do outro lado da baía ancorou seu iole e subiu a colina a pé. Recebeu uma boa acolhida, o que era sempre dado às pessoas estranhas. O total do grupo era bem maior que o necessário ou esperado, porque várias garotas haviam vindo junto para ajudar a cozinhar. Mas todos trouxeram comida — carne de veado, carne de porco selvagem, peixe defumado, frutas secas, nozes, uvas, mel e pão moído à pedra — que foi guardada no rancho comum. Um homem havia sabiamente trazido uma caixa de vinho Livermore. Houve uma grande festa naquela noite. Ninguém ficou bêbado — nunca ninguém ficava bêbado nesta cultura —, mas tornaram-se mais alegres, cantaram canções, dançaram, trocaram de pares, realizaram competições atléticas e trocaram convites para futuras visitas. Seguiram-se dois dias de trabalho sério. Os homens percorriam a pé grande extensão do terreno, verificando os lugares com possíveis problemas, retirando os galhos e as folhas secos das clareiras destinadas a evitar a propagação do fogo, arrancando arbustos venenosos, medicando plantas doentes, conservando trilhos e estradas, tudo o que o robô fizera até então. À noite, chegavam tão cansados que só podiam pensar em comer e dormir. Mas a sensação de camaradagem e de trabalho realizado era preciosa. Finalmente, o Engenheiro chegou. A unidade de energia solar estava outra vez com problema, por isso Bailey encontrava-se com as mulheres na cabana, quando o caminhão-pairador desceu do céu. Todos curvaram respeitosamente as cabeças, quando a figura alta e vestida com uma túnica amarelada emergiu do caminhão, seguida de seus acólitos que tocavam campainhas. O Engenheiro levantou sua régua de cálculo. — Que a Paz esteja convosco, meus filhos, — entoou. — Peço-vos, conduzi-me ao sofredor. — O senhor não quer tomar, nada primeiro, Doutor? — perguntou Avis. O gorro de penas oscilou e vacilou com o movimento da cabeça. — Minha filha e bondosa. Mais tarde aceitaremos sua hospitalidade com o mesmo espírito com que é oferecida. Mas primeiro devemos, antes de mais nada, examinar o robô. Na medida em que qualquer coisa — sim, até mesmo uma máquina — não está em harmonia consigo mesma, nessa mesma medida estão em desarmonia o mundo e o universo estrelado. Todo o funcionamento imperfeito é mau, todo o mal é funcionamento 99
imperfeito. — O Doutor instruiu sua discípula, — disse Avis humildemente. Bailey conduziu o Engenheiro e os acólitos ao galpão onde o robô era guardado. Tiraram suas túnicas, retiraram as ferramentas das caixas e começaram, muito prosaicamente, a trabalhar. Bailey observava. Seus préstimos já não eram mais necessários. Logo que estivesse arrumado, o robô repararia tudo com muito mais eficácia e rapidez. — Deveis perdoar minha demora, meu filho, — disse o Engenheiro, enquanto desparafusava, uma tampa. — Tenho tantos chamados a atender numa área tão ampla. Oxalá mais pessoas entrassem para a Profissão. — Bem, é uma profissão difícil, — disse Bailey.- — Não acho que a geração mais jovem esteja incentivada a passar por anos de treinamento intensivo. — Tendes provavelmente razão. Esperemos que tenhamos sucesso em instilar o verdadeiro espírito cooperativo. — Oh, o senhor não acha que poderíamos tornar a Profissão menos difícil ? Antes de mais nada, não poderiam ser omitidos os rituais? Aposto como o senhor passou meses aprendendo a Missa da Matéria, por exemplo. Novamente o Engenheiro sacudiu a cabeça grisalha. — O espírito da época o exige, — afirmou. — Suspeito que vos recordais muito bem das condições de antes da Mudança. Também recordo. Podemos ambos observar nosso presente meio-ambiente com alguma objetividade. Não concordais que uma de suas melhores características é este rito, este cerimonial, este desejo de dar um significado religioso a todos os nossos atos? Acho que a carência espiritual do mundo antigo foi uma das razões por que o julgamento o destruiu tão completamente. Que sentido tinha a vida para a maioria das pessoas ? Não tendo vontade de viver, não puderam resistir à praga. — Retornou à sua tarefa. — É claro, — disse, — isso foi vantajoso. — O quê ? — Ora, certamente. Sem uma verdadeira limpeza, como teria sido possível o nosso desenvolvimento? O problema do robô não era nada sério: um circuito queimado que foi logo substituído. O Engenheiro ficou apenas o tempo necessário para tomar uma xícara de café e escutar uma curta canção de ação de graças. Estava sendo esperado em muitos outros lugares. Quando os homens voltaram ao cair da noite, todos sentiram que ainda havia algo a ser feito. Deviam celebrar não apenas o final do traba100
lho, mas também o fato da terra não ter sofrido danos. Combinaram que, no dia seguinte, iriam a pé até as florestas Muir. Foi uma caminhada magnífica. Seguiram, por vezes, a estrada destruída e, por vezes, cortaram caminho através das imensas colinas ventosas e cobertas de papoulas vermelhas. Cantaram, conversaram, brincaram, riram ou simplesmente alegraram-se com a luz do sol e o ar que os envolviam. Durante a maior parte do tempo, Bailey viu-se caminhando ao lado de Cynara. Ela fazia parte do grupo do leste; era uma pequena garota ruiva, de constituição delgada, com os maiores e mais belos olhos que já vira. E também gostou de sua conversa; ela tinha um humor travesso que faltava a Avis. No final do passeio, já caminhavam de mãos dadas. Como haviam saído cedo e estavam em ótimas condições físicas, chegaram ao destino pouco depois do meio-dia. Pretendiam entrar no pequeno bosque de sequóias e comungar com sua atmosfera intimidadora. Mais tarde, fariam um piquenique, passariam juntos algumas horas alegres como as daquela primeira noite, estenderiam seus sacos de dormir e descansariam à luz das estrelas. Na manhã seguinte, separar-se-iam, e cada um tomaria o caminho de casa. — Mas a primeira coisa a fazer é almoçar, — declarou Cynara. Vários outros concordaram. Avis franziu as sobrancelhas. — Não sei, meus amigos, — disse, — Viemos aqui para uma santificação. — Mas não com um estômago vazio, por favor, — respondeu Cynara. Avis descontraiu-se. — Muito bem, suponho que a santidade seja um pouco difícil nessas circunstâncias. — Fêz uma genuflexão para as árvores que se elevavam verticalmente atrás da casa do Guardião. O sol deu sua bênção. A terra exalou incenso. Uma cotovia cantou. Abriram os pacotes e fizeram milhares de sanduíches. Bailey e Cynara estavam sentados juntos contra um carvalho solitário, quando por acaso Avis passou por ali. — Bem, bem, — sorriu ela. — Um relacionamento em franco progresso, hem? — Você se importa? — perguntou Bailey. Ela despenteou-lhes os cabelos — É claro que não, tolinhos. Depois de comer, colocaram mantos de oração sobre as roupas que por acaso estavam ou não estavam usando, e aproximaram-se do bosque. O Guardião saiu de sua casa. Ajoelharam-se. O velho os abençoou, e eles penetraram nas sombras silenciosas e salpicadas de raios de sol. 101
Os olhos de Bailey desviavam-se freqüentemente das arcadas da catedral, que se estendiam à sua frente, para Cynara a seu lado. Bem, pensou, que há de errado nisto? Mesmo na religião de hoje. Especialmente na religião de hoje. Que objetivo mais elevado pode ter o homem que dar e receber a felicidade, cuidar da terra e aceitar suas dádivas, e saber que êle e o cosmo são urm coisa só? Unicidade, sim, também com nossos companheiros. Quando estou com esta garota, também estou de certo moda com Avis; e, quando estou com Avis ou outra qualquer, estou também de algum modo com Cynara; assim nunca pudemos -ser cruéis ou infiéis. Uma melodia insinuou-se pela mente de Bailey, algo dos velhos tempos. Ou seria um poema? Ou ambas as coisas? Não conseguia lembrar. “Mas sempre serei fiel a você, Cynara, a meu modo. Sim, sempre serei fiel a você, Cynara, à minha maneira...” Uma mulher gritou. Foi como se o barulho de uma serra circular tivesse irrompido no silêncio. Bailey deu um pulo para trás. Cynara sufocou-se com seu próprio grito. Os companheíros que os haviam precedido, recuaram, pararam, sem poder acreditar no que seus olhos arregalados viam. Todos menos um homem. Este jazia estatelado no meio do caminho, com o rosto para baixo, numa poça de sangue incrivelmente vermelha e brilhante. O sangue jorrava, jorrava, jorrava incessantemente. Acima dele, o assassino arreganhava os dentes. A criatura era enorme, corpulenta, e estava vestida com peles malcheirosas. Através de um tufo gorduroso de cabelos e barba, podiam-se ver as cicatrizes da varíola. Escorria sangue do facão grosseiro que tinha na mão. Bailey reagiu com um instinto que não pensara ter conservado. Agarrou Cynara e lançou-se com ela no buraco que um incêndio fizera num enorme tronco de árvore. Colocou-se na frente dela, com os punhos preparados para a luta. Surgiram outros, tão imundos quanto os primeiros. Uivavam e ganiam numa língua que talvez tivesse sido inglês outrora. Dois homens da área da baía procuraram fugir. Um caiu, com o crânio rachado por um golpe de machado. Seu companheiro foi atravessado por uma lança e ficou prostrado no chão, ganindo de dor. O assassino ria. — Joe, — sussurrou Bailey — Sam. Mas são meus amigos. A cólera eliminou o terror. Nunca enxergara com tanta nitidez, nun102
ca sentira de tão perto o cheiro de sangue e suor, nunca sentira contra a pele o frio de cada microscópica viração do ar. Seus pensamentos passavam em lampejos relâmpagos: São selvagens. Devem ter vindo do norte. Havia sobreviventes nesses lugares afinal. Pessoas que realmente voltaram ao estado primitivo. Os membros da romaria permaneciam entorpecidos. Os invasores os cercaram. Os dois grupos eram quase iguais em número; não, os civilizados contavam com mais quatro ou cinco homens, e as garotas também estavam em boa forma física... Por que não lutavam? Um atleta podia se esquivar de uma daquelas espadas, lanças e maças tão inàbilmente manejadas... tirá-las do inimigo... ou, pelo menos, retribuir-lhe os golpes! Bailey quase pulara de seu tronco para começar o combate, quando Avis, recobrando a presença de espírito, levantou ambas as mãos e gritou: — Que é isso? Meus companheiros, meus irmãos, o que estão fazendo ? Um nortista vociferou uma ordem. O grupo começou a trabalhar. Uma ou duas vítimas tentaram fugir, mas não foram muito longe. A matança dos homens foi questão de segundos, embora fosse óbvio que alguns ainda custaram muito a morrer. Depois o bando agarrou as mulheres. —Não! — gemeu Avis. — Não com animais! Ela lutou até que, impaciente, o atacante pôs fim à sua resistência com um soco. Partiu-lhe o maxilar. As outras garotas deram menos trabalho. Enquanto esperavam sua vez, dois nortistas cortaram pedaços de um dos cadáveres e comeram-nos crus. Cynara desmaiara. Tenho de levá-la embora, Bailey pensou em seu pesadelo. Para longe... de toda esta área? Esquecemos como lutar. Não temos armas, não estamos treinados, não temos nem mesmo vontade de nos defender. E agora os selvagens nos descobriram. Virão em enxames e matarão, violentarão, escravizarão, depredarão, queimarão. Foi um erro acreditar que havíamos conseguido fazer com que a história parasse. Mas não. Não posso abandonar meu povo. Talvez, talvez êle e ela não fossem vistos no buraco, até que os invasores fossem embora com as mulheres cativas — isto se não assassinassem simplesmente as garotas. Talvez os dois pudessem atravessar o país, levando o aviso. Talvez fosse possível reorganizar o povo dócil, antes que fosse tarde demais. Talvez pudessem ter feito isso. Talvez tivessem se tornado os líderes de uma civilização que, aplicando o método científico à perfeição da guerra, exterminaria o inimigo e, com o ímpeto guerreiro despertado, 103
chegaria a conquistar um grande império. Mas Cynara acordou e gemeu, precisamente quando alguns salteadores passavam por ali a caminho da casa do Guardião. Chamaram o resto. Se estivesse armado, Bailey poderia ter defendido a entrada da seu refúgio por algum tempo. Mas a primeira lança que atingiu seu ombro, convenceu-o de que precisava de espaço para operar, se não quisesse ser impiedosamente massacrado. Investiu para fora e conseguiu pegar um machado. Com muita satisfação, matou o dono do machado e dirigiu-se de volta para a árvore. Mas os nortistas já estavam atrás dele. Uma maça fêz com que seu cérebro fosse respingado no chão, e êle estava morto. A morte era um vento tempestuoso. Não, espere; isto não era a morte, não era o caos. Era simplesmente a insensibilidade provocada por uma total privação dos sentidos. “Zero,” contou Deus, “um, dez, onze,..” “Oh, deixe-se disto,” resmungou Bailey. “Você acha que não reconheço dígitos binários?” Este foi o pior mundo até agora, seus pensamentos continuaram. E não foi por causa dos canibais, tampouco. Eram apenas pobres e ignorantes. Mas as pessoas civilizadas que nunca se preocupavam em saber o que estava acontecendo fora de seu pequeno distrito, que serenamente aceitavam as mortes de não sei quantas criaturas” humanas como um preço razoável por sua cultura superior... arrgh! Ei, espere. O que quero dizer com “até agora” ? Quero sair, e não me envolver ainda mais. Deveria ser capaz de encontrar uma saída. Tinha de ser capaz. Do contrário, adeus saúde mental. “.... cem, cento e um, cento e dez...” Ou, em números arábicos, quatro, cinco, seis, etcétera. Isso é um computador. Meus nervos detectam seus impulsos, enquanto está em suspensão. Isto indica que, de algum modo, estou acoplado a êle. Quando a coisa começa a funcionar ... sim, o Simulador. O sistema homem-máquina. Eu, o homem; ela, a máquina. Juntos consideramos um problema na sua totalidade. Que problema? Bem, sou um sociólogo que busca descobrir a causa e a cura das doenças mentais. Muitas espécies de soluções têm sido propostas... lembro-me de ouvir falar em eutanásia voluntária... Mas, freqüentemente no passado, as emendas revelaram-se piores que os sonetos. Basta conside104
rar o efeito de longe alcance do pão e circo sobre o proletariado romano; ou a maioria das revoluções e tentativas de utopia. Precisamos de uma maneira menos cega e experimental de aperfeiçoar a sociedade. E não basta planejar um sistema teoricamente exeqüível. Temos de saber, de antemão, como será sentido, na prática, por aqueles que sofrem sua ação. Por exemplo, uma pensão governamental poderia ser uma medida economicamente acertada, mas poderia desmoralizar os beneficiários. Como é possível testar antecipadamente os mecanismos internos de uma reforma social? Ora, certamente. A ligação homem-máquina. O componente humano fornece mais que uma diretiva geral. Fornece sua total compreensão consciente, inconsciente, visceral e genética do que é ser humano. Isto passa aos depósitos de dados, junto com todas as outras informações que a máquina já possui. Depois, como uma unidade, o cérebro e o computador imaginam uma mudança social e deduzem as conseqüências. Desde que o objetivo é explorar essas conseqüências de um ponto de vista imediato e emocional, o resultado da lógica é apresentado como um “sonho”. Talvez a máquina seja um pouco prosaica demais. Seja como fôr... claramente, se um mundo imaginário revela-se indesejável, não há razão para explorá-lo mais. O sistema deve permitir que eu ordene a cessação da seqüência. Semelhante ao mundo como uma pessoa pode ordenar a si própria que desperte de um sonho mau. Somente que, neste caso, por alguma maldita razão psicológica, o sinal para desligar tomou a forma de minha própria morte realisticamente simulada. E o choque provocou em mim uma amnésia parcial. Em conseqüência disto, não pude emitir uma ordem inequívoca para terminar a prova. Conseqüentemente, a máquina esperava em suspensão, até que minha corrente de semi-inconsciência lançasse algo que pudesse ser interpretado como uma ordem. A mente sobressaitou-se. Céus! Podia ter continuado assim até... até... O. K., Simulador. Leve-me para casa e pare a operação. Clique? “Você me ouviu”, disse Douglas Bailey. A criação começou. Ó VÓS DE POUCA FÉ. Abriu os olhos. A escuridão cobria-os. Gritou e debateu-se. --Ei, que há? Espere um instante. Estou aqui. 105
Douglas Bailey fêz força: para ficar deitado sem se mexer. Seu tórax arfava e seu pulso estava em disparada. Tiraram-lhe o capacete de indução da cabeça. Olhou para a face abençoada, familiar e britânica de Michael Birdsong, seu superior imediato, e para a maravilha que era seu próprio laboratório. O conhecimento de sua libertação percorreu-lhe todo o ser. — Você está bem? — perguntou Birdsong, — Aconteceu algo errado ? — Não... não sei, — Bailey sentou-se no divã, deixando que as pernas ficassem penduradas. Ainda tremia. — Quanto tempo durou a experiência? — Não o cronometrei. Mas vou lhe dizer num minuto. — Birdsong perfurou um código. O painel crivado de instrumentos emitiu um clique e expeliu um cartão impresso. Birdsong arrancou o pedaço de papel e leu. — Cerca de cinco segundos. — O quê ? Oh, sim. — Com uma suspeita repentina, Bailey disse: — Este é o mundo real, não é verdade? — O quê? O quê? Sim, Que outro poderia ser ? A não ser que você queira seguir o caminho do Bispo de Berkeley. Mas diga-me... — Não, espere. — Bailey sacudiu a mão. — Isto é muito importante. Recuperei toda a minha memória, mas poderia ser falsa. Deixe-me conferir com a sua. Isso talvez nos dê uma pista. Qual é o estado da epidemia mental?. Birdsong considerou-o detidamente antes de dizer: — Bem, como quiser. Seu crescimento está obedecendo à lei usual da fermentação. Começando a ficar uniforme, sabe. Assim deveríamos poder iniciar eventualmente um tratamento e cura em grande escala. Por enquanto, estamos tratando as vítimas como melhor podemos improvisar. Este nosso programa é destinado a encontrar uma resposta mais rápida e básica. — Não conteve a ânsia. — Você a encontrou? — Não sei. — Bailey deixou as pernas escorregarem até ficar de pé; foi até a janela e olhou para a cidade e a baía. — Teremos de avaliar meus dados e provavelmente coletar outros, depois de termos instalado um mecanismo de segurança que descobri ser necessário. Mas mais tarde, mais tarde, mais tarde. — Riu, com um leve e prolongado toque de histeria. — Agora estou feliz por saber que não há respostas básicas; que continuamos nosso confuso caminho à nossa maneira lenta, desajeitada, perdulária, carente de totalidade e imaginação, mas humana; que, por Deus, estou de volta ao mundo real! 106
TLON, UQBAR, ORBIS TERTIUS Jorge Luis Borges Trad. de Carlos Nejar I Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa quinta da Rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo-American Cyclopaedia (New York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 1902. O acontecimento ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e demorou-nos uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores — a muito poucos leitores — a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na noite alta esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopaedia a consignava, em seu artigo sobre Uqbar. A quinta (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI achamos um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Uqbar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão tôdas as lições imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ooqbar, Oukbahr... Antes de sair, explicou-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. 107
Confesso que assenti com certo mal-estar. Conjeturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida. No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disse-me que tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não constava o nome do heresiarca, mas sim a notícia de sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por êle, ainda que — talvez — literàriamente inferiores. Êle recordara: Copulation and mirrors are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: Para um desses gnósticos, o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are abominable) porque o multiplicam e o divulgam. Eu lhe disse, sem faltar à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias êle o trouxe. O que me surpreendeu porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar. O volume que Bioy trouxe, era efetivamente o XLVI da Anglo-American Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor - Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas, constava de 921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar; não previsto (como terá o leitor observado) pela indicação alfabética. Depois comprovamos que não havia outra diferença entre os volumes. Os dois (conforme creio haver apontado) eram reimpressões da décima Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos leilões. Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verossímil, muito ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante. Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa forma uma fundamental vagüidade. Dos quatorze nomes que figuravam na parte geográfica, apenas reconhecemos três — Jorasã, Armênia, Erzerum — interpolados no texto de um modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cadeias dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de Tsai Jaldún e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na seção histórica (página 920) soubemos que, por causa das perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos buscaram amparo nas ilhas, onde 108
ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorável: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön. A bibliografia enumerava quatro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro — Silas Haslam: History of the land called Uqbar, 1874 — figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch*. O primeiro, Lesbare und lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in Klem-Asien, data de 1641 e é obra de Johannes Valentinus Andréa. O fato é significativo; um par de anos depois, deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writings, volume décimo terceiro) e soube que era o de um teólogo alemão que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade da Rosa-Cruz — que outros fundaram, à imitação do prefigurado por êle. Aquela noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão molestamos atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajantes e historiadores: ninguém estivera jamais em Uqbar. O índice geral da enciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte, Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-American Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XLVI. Naturalmente, não encontrou o menor indício de Uqbar. II Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no Hotel de Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e enfastiado, e sua cansada barba retangular fora ruiva. Acho que era viúvo, sem filhos. De tempos em tempos ia à Inglaterra: visitar (julgo por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. Meu pai estreitara com êle (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidencia e que muito depressa omitem o diálogo. Costumavam manter intercâmbio de livros e de jornais; costumavam medir-se ao xadrez, taciturnamente ... Recordo-o no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, contemplan*Haslam publicou também A general history of labyrinths. 109
do, às vezes, as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde falamos do sistema duodecimal de numeração (no qual doze se escreve 10). Ashe disse que precisamente estava trasladando não sei que tabelas duodecimais a sexagesimais (nas quais sessenta se escreve 10). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecíamos e nunca referira sua estada naquela região... Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse — Deus me perdoe — de funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel), Herbert Ashe morreu da ruptura de um aneurisma. Dias antes recebera do Brasil um pacote lacrado e registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde — meses depois — o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira vertigem de assombro que não descreverei, porque esta não é a história de minhas emoções, mas de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islã, que se chama a “Noite das Noites”, abrem-se de par em par as secretas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que senti naquela tarde. O livro estava redigido em inglês e o compunham 1001 páginas. Na amarela lombada de couro li estas curiosas palavras que o ante-rosto repetia: A first Encyclopaedia of Tlön. Vol XI. Hlaer to Jangr. Não havia indicação de data nem de lugar. Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das lâminas coloridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição: Orbis Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num volume de certa enciclopédia pirática uma sumária descrição de um falso país; agora o acaso me mostrava algo de mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus debates, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico. No “décimo primeiro volume” de que falo, há alusões a volumes ulteriores e precedentes. Nestor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.F., negou a existência de tais volumes; Ezequiel Martínez Estrada e Drieu La Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até agora as pesquisas mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desarrumamos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreen110
damos a obra de reconstruir os muitos e maciços volumes que faltam: ex ungue leonem. Calcula, entre jocoso e sério, que uma geração de tlönistas pode bastar. Esse arriscado cômputo nos retrai ao problema fundamental: quais os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um só inventor — de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia — fora descartada unanimemente. Conjetura-se que este brave new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subordinar a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. No começo pensou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições aparentes do Décimo Primeiro Volume são a pedra fundamental da prova de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zoologia e a topografia de Tlön; penso que seus tigres transparentes e suas torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo. Hume notou em definitivo que os argumentos de Berkeley não admitiam a menor réplica e não causavam a menor convicção. Esse ditame é totalmente verídico em sua aplicação à Terra; totalmente falso em Tlön. As nações desse planeta são — congênitamente — idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem — a religião, as letras, a metafísica — pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Ursprache de Tlön, da qual procedem os idiomas “atuais” e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. Surgiu a lua sobre o rio diz-se hlör u fang axatcaxas mlö, ou seja, em sua ordem: para cima (upward) atrás dura-douro-fluir lualuziu. (Xui Solar traduz sintèticamente: upa tras perfluyue lunó. Upward, behind the onstreaming it mooned.) O que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral. 111
Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no Décimo Primeiro Volume) a célula primordial não é o verbo, mas o adjetivo monossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos. Não se diz lua: diz-se aéreo-claro sobre escuro-redondo ou alaranjadotênue-do-céu ou qualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito. Na literatura deste hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong), são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento, conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera simultaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual e outro auditivo: a côr do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau podem combinar-se com outros; o processo, mediante certas abreviaturas, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma só enorme palavra. Esta palavra integra um objeto poético criado pelo autor. O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, paradoxalmente, que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias — e muitos outros mais. Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön abrange uma única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Mencionei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. Spinoza confere à sua inesgotável divindade os atributos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlön a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do segundo — que é um sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada um exemplo de associação de idéias. Este monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior. Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo — id est, de classificá-lo — importa em falseio. Disso caberia deduzir que não há ciências em Tlön — nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é 112
que existem, em quase incontável número. Com as filosofias acontece o que sucede com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob, contribuiu para multiplicá-las. Sobram os sistemas incríveis, mas de construção agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade nem sequer a verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. Até a frase “todos os aspectos” é inaceitável porque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéritos. Também é lícito o plural “os pretéritos”, porque supõe outra operação impossível ... Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lembrança presente*. Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história do universo — e nela nossas vidas e o pormenor mais tênue de nossas vidas — é a escritura que produz um deus subalterno para entender-se com um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que sucede cada trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim cada homem é dois homens. Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem expõe um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do século décimo primeiro** ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Desse “raciocínio especioso” há muitas versões, nas quais o número de moedas e o número de achados variam; eis aqui a mais comum: Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três *Russel (The analysis of mind, 1921, página 159) supõe que o planeta foi criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que “recorda” um passado ilusório. **Século, de acordo com o sistema duodecimal, significa um período de cento e quarenta e quatro anos. 113
moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor de sua casa. O heresiarca queria deduzir dessa história a realidade — id est a continuidade — nas nove moedas recuperadas. É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, duas entre terça-feira e a madrugada de sexta-feira, É lógico pensar que existiram, ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens — em todos os momentos desses três prazos. A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal embasada no emprego temerário de duas vozes neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que comportavam uma petição de princípio, porque pressupunham a identidade das nove moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva) somente tem um valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância um pouco enferrujadas pela chuva de quarta feira, que pressupõe o que se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas, entre quinta e terça-feira. Explicaram, que uma coisa é igualdade e outra identidade, e formularam uma espécie de reductio and absurdum, ou seja, o caso hipotético de nove homens que em nove noites sucessivas padecem uma dor viva. Não seria ridículo — perguntaram — pretender que essa dor fosse a mesma*? Disseram que ao heresiarca movia-o apenas o blasfematório propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e que, às vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo modo, que as nove moedas eram uma só. Incrivelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Ao fim de cem anos de proposição do problema, um pensador não menos brilhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, suscitou uma hipótese muito audaz. Essa conjetura feliz afirmava que há um só sujeito, que esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z descobre três moedas, *Hoje em dia, uma das igrejas de Tlön sustenta platonicamente, que tal dor, que tal matiz verdoso do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem. Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são Willian Shakespeare. 114
porque se lembra que X as perdeu; X encontra duas no corredor porque se lembra que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro volume deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a possibilidade de conservar o culto dos deuses. Schopenhauer (o apaixonado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no primeiro volume de Parerga und Paralipomena. A geometria de Tlön compreende duas disciplinas um pouco distintas: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Esta geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam. O fundamento de sua aritmética é a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por > e por
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