MAFFESOLI Michel. a Parte Do Diabo

April 29, 2019 | Author: jefponte | Category: Devil, Friedrich Nietzsche, Death, Sociology, God
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A

PA RÍ£

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n lA BO

Michel

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Ma f f es o l i

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Tradução de CLÓV1S MARQUES

1

E D I T O R A RIO

DE

JAN EIR O 2004

R E C O R D •

SÃ O

PAULO

CIP-Brasil. Cat3!ogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Edilores de Livros, RJ.

M 16 2p

M affesoli, Michel, 1944A parle do diabo / Michel Maffesoli; tradução de Clóvis Marques. - Rio de Janeiro: Rccord, 2004. Tradu ção de: La pari du diable ISBN 85-01-065 91-9 1. Bem e mal. 2. Pós-modernismo. 3. Civilização moderna. I. Titulo.

03-2066

CDD - 111.84 C D U - 1 11 .8 4

Títul o origina! cm francês: LA PART DU DIAEiLE

Copyright © 2002 by Flammarion

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transm issão de partes deste livro através de quaisquer meios, s em previa autorizaç ão por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal c resto da Europa.

Direitos exclus ivos de publicação cm língua portuguesa para o ürasil adquiridos pela D I S T R I B U I D O R A R E C O R D D E S ER V IÇ O S D E I M P R E N S A S.A . R u a A r g e n t i n a 1 7 1 - R i o d e J a n ei r o , R J - 2 0 9 2 1 - 3 8 0 - Te l. : 2 5 8 5 - 2 0 0 0 que se reserva a pro priedade literária desta tradução Impresso no Brasil ISBN 85-01-06591-9 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 R i o d e J a n e i ro , R J - 2 0 9 2 2 - 9 7 0

-v— E D I T O R A A F IL I A D A

Para Raphaêle, qu e sabe m u it o bem qu e o qu e n ão m ata fortalece.

Su m á r i o

Prólogo Capítulo I

P e q u e n a e p i st e m o l o g ia d o M al C a p í t u l o II

O conflit o e s t ru t u r a l C a p í t u l o III

Variações sobre a sombra C a p í t u l o IV

Inteireza do ser Capítulo V

T r a n s m u t açã o d o M al

Pr

ó l o g o

"Jc suis t om bé par terre C' est la fau te à V oltaire,  Le n ez dans le ruisseau C' est la faute à Rousseau. "*

N ã o exi s te n a d a p i o r q u e a lg u é m q u e r e n d o f az er o b e m , esp ecialmen te o b em aos ou tros. O me sm o se aplica aos que "p e n s a m b e m ", c o m su a ir re si stí ve l t e n d ê n ci a a p e n s a r p o r n o lugar dos ou tros. Encou raçad os em suas certezas, eles n ã o t ê m e s p a ç o p a r a d ú v i d a s . E é cl a r o q u e n ã o a p r e e n d e m a co m p l e xi d a d e d a v id a . A co is a e m si n ã o t e r ia t a n t a i m p ortân cia se esses d on os da verdad e, intitu lan d ose deíen. tores legítimos da palavra, não decretassem o que a sociedade ou o indivíduo "devem ser".} Este magistério moral — pois é efetivamente de m o r a l i s m o q u e s e t r a t a — é p e r ig o s o . O f a to é q u e , e s q u e ce n d o o q u e v elh a s m e m ó ri as e n s i n a r am a o s en s o co m u m

*"C a í n o c h ã o / a cu l p a é d e V o lt a ir e , / c o m o n a r i z n o r i a c h o / a cu lp a é d e Rousseau."

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  A parte do Diabo

— a saber, qu e  \ o infern o está^ cheio de b oas in ten ções"!—, esquecidos da saudável lucidez de um Heráclito ("brincadeira de criança, as opiniões humanas"), os moralistas de todas as tendências transformam em verdade absoluta os v a lo r es cu l t u r a is d e u m m u n d o cu j a p e r e n i d a d e e st á l on g e de ser urnacerteza. , .. "£) "b em 'O com efeito, é a ju stificação últ im a d o m essianismo füdáícocristão. As teorias da emancipação e o universalismo modernos, que constituem suas mais recentes m an ifestações, tam b ém se escoram n esse p rincípio básico. ; Poi em seu n om e q ue as diferentes in q u isições fizeram seu t r a b a l h o s u jo . Km se u n o m e é q u e f o r am co m e t i d o s t o d o s os etnocídios culturais e justificados os imperialismos e co n ô m i co e p o l í t i c o . mai s um a v ez , em s eu n o m e q u e se decreta o que dev e ser v i vi d o e p e n s a d o , co m o se d e ve viver e p ensar, je qu e se d eclara tabu esta m an eira de viver ou aq u ele objeto de análise. Este u n iversalism o foi a justificação de todos os colonialismos, dos etnocídios culturais q u e co n s t i t u í r am a m a r ca d a o ci d e n t a li z açã o d o m u n d o a p artir d o fim do sécu lo XIX. U m (co n f o r m i s m o ' ca n h e s t ro , p o is já fo r a d e p r o p ó s i to. Conformismo perigoso, porque ,aquiIo cuja existên cLa _S £_j ae ga — co m p l e x i d a d e g a l o p a n t e , r e l a t i v i s m o cultural, tribalismo emocional e outros sentimentos de v i n cu l a çã o , já f or a d e s i n t o n i a co m a s t e o r i a s b e m p e n  s a n t e s — p o d e t o r n a r s e D e rv cr so .'O u s e j a , t o m a r c a m i nhos desviados, per via, e por isto mesmo fugindo ao controle. As inúteis querelas intelectuais, políticas e de f  e s co l as n ã o p a ss am d a e xp r e s s ão d o e n cl a u s u r a m e n t o d a

Prólogo

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intelligentsia e m s e u m u n d o q u e s e a c a b a . E l a n ã o c o n h e c e se u p r ó p r i o te m p o . Es te se v i n g a co m t o d o s o s t i p o s d e e xce s s o s . D i sto c o n s t it u e m o s i n d í ci o s m a is m a r ca n t e s a v o l t a d o s d i fe re n t e s fa n a t is m o s e d o s m ú l ti p l o s te r r o r is m o s , as sim c o m o a r e b e l iã o , m a i s o u m e n o s v i o l e n t a , d o s jo v e n s d o s s u b ú r b i o s, p a r a n ã o m e n ci o n a r a d e s e r çã o d e n u m e r o sa s i n s t i tu i çõ e s . ,De fato, silenciosa ou ruidosa, a revolta^germina.fSilenciosa, ela se manifesta na passividade, no recuo, na i n a t i v i d a d e d o s j o v e n s . R u i d o s a , n o s  pegas a u t o m o b i lísticos, nas vaias à  Marselhesa n o E st á d i o d a Fr a n ça — e xe m p lo s n ã o f alta m . C o m o n u m a n o v a secessio plebis, ta l co m o n a r etir ad a d o p o v o r o m a n o p a ra o A ve n t in o , 1já n ã o h á a d e s ã o a os ^ p r in cí p i os d e f a ch a d â x j u e d e i x a r a m d e te r q u a l q u e r v i n c u l a çã o c o m a r e a li d a d e d a v i d a . Es ta rebelião, ao mesmo tempo sorrateira e eficaz, significa, com certeza, que está chegando ao fim um ciclo, o que foi in a u g u r ad o co m a co n s a g r a çã o d o b e m co m o v a lo r absoluto. L' Muito antes desta consagração, em outros momentos, e m o u t r o s l u g ar es d o m u n d o , o q u e s e l e v av a e m co n t a e ra u m p o l it e ís m o d o s v al or es , u m p o l icu l tu r a l is m o o u e n t ã o o q u e p o d e m o s ch a m a r d elefeito d e com pos ição', cultu ra e  p m a t é r i a  p r i m a , b e m e m a l , m o r t e _ e y i d a o P e r i o d i c a m e n t e verificase um "(re)nascimento" deste mundo composto. Nascemos novamente para um real plural. É um período de m u d a basead o n a relativização d os valores. Por sinal, é a ss im q u e d e v em o s e n t e n d e r a m u d a n ça i n a u g u r a d a p e lo I lu m i n i sm o , n o a l v or ece r d a m o d e r n i d a d e : d i a n t e d e u m

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  A parte do Diabo

m u n d o e s ta n ca d o , ele s e n f a t iz a m o d i n a m i s m o e a ci r cu l a ção d e idéias. H o je , f r e n t e a o s e s t a tu t o s s oci ai s s u p o s t a m e n t e i m u t á v e i s (cl a ss e s , ca t e g o r i a s s o c io p r o f i s s i o n a i s )^ a f i r m a s e a , exigên cia da m ob ilid ad g,]0 m esm o se dá p or m eio da circu lação d e livros e jorn ais, real e virtu al, pela p roliferação d as trocas: com ércio de bens, com ércio de idéias, com ércio am or o s o . Já m o s t re i e m o u t r a s c ir cu n s t â n ci a s 1 c o m o e st a t ro c a generalizada constituía a marca inconfundível das "revol u ç õ e s " so c ie t á r i a s . As t r ib o s u r b a n a s , cu j a i m p o r t â n c ia ninguém mais nega, e mesmo, não obstante o que se co n v e n ci o n o u ch a m a r d e "cr i se ", o h e d o n i s m o d i fu s o q u e o p e r a e m n o s sa s s o ci e d a d e s , d e l im i ta m m u i t o b e m o s c o n t o r n o s d ess a p r o f u n d a m u t a çã o . Revolução que, em seu sentido etimológico, assiste ao retorno daquilo que julgávamos ultrápassado. Como obs er v a Lé v iS tr au s s , " o h o m e m s e m p r e p e n s o u b e m a s s im ". P o d e r ía m o s a c re s ce n t a r q u e ta m b é m s e m p r e v iv e u m a l. E n o e n t a n t o , e m m e i o à t r á g ica b e le za d o m u n d o , ele v iv e . Contra o progressismo judaicocristão, empenhado em e x p l i c a r t u d o ( ex-plicare, retirar as pregas), afirmase um ^ p e n s a m e n t o "p r o g r e s s iv o ", s a b e d o r ia q u e i m p l i ca t o d a s a s maneiras de ser e pensar, a alteridade, a errância. Eis, port a n t o , a m u t a çã o p ó s m o d e m a , aq u e la q u e a ce i ta as "p r e gas" dos arcaísm os pié-m oos inos . Temos, então, algo par? o qual chamo a atenção há a lg u m a s d é ca d a s , a lg o q u e h c je se t o r n a u m a r e a l id a d e i n  c o n t o r n á v e l : j o t í l b ã I u õ n I c rf. m al so valor essen ciali É b em v e r d a d e q u e o d e s e m p r e g o r^ u i t as v ez es é e n ca r a d o c o m o

Prólogo

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u m a d e s g r aça . M a s m u i t os j ov e n s n e m p o r is to ch e g a m a d e s e ja r u m e m p r e g o e s tá v e l. Pe lo co n t r á r i o , v ã o s e a d a p t a n d o a o v a i v é m T r a b a í h o : d e se m p r e g o ,] a c o n t r a t o s p r e cários seguidos de períodos de segurodesemprego. R e s u m i n d o : t u d o , m e n o s u m a ca r re ir a d e e m p r e g a d o c o m s a l ár io m í n i m o o u f u n ci o n á r i o d o s C o r r e i o s . £> t r a b a l h o , v a le le m b r a r , e r a o i n s t r u m e n t o p r iv i le g ia d o d a a ç ã o s o  bre si mesmo e sobre o mundo,_e isto para alcançar o "b e m " , a p e r f e i çã o f u t u r a . O tr a b a l h o e r a ca u s a e e f e it o d o h o m o o e co n o m i cu s , d e u m i n d iv íd u o r ed u z id o à p ro  d u ç ã o . e q u e t in h a  o p r o d u t iv i s m Q _ co m o .i d e o l o g i a p o.r e xce lê n cia . ^ .r ^ Este prometeísmo moderrjo vem sendo sucedido pela figura mais complexa de Dioniso. Hedonismo generalizad o. Selvageria laten te. An imalidad e seren a. Tam b ém aqu i,, furiosa ou calmamente, mas sempre com obstinação, a p essoa plural se afirma.^A pessoa com p osta ("eu é um ou tro"), antagônica, contraditória. Esta inteireza dionisíaca i m p l ica o j^ m a í"  C o m o a co n t e ce f r e q ü e n t e m e n t e , a m ú s i ca, os filmes, a pintura e a coreografia evidenciam claram e n t e e s ta i m p l i ca çã o . C o m e fe it o, n a .i d p o l og ia d o h o m ç oeconomicus , o fato de o ind ivídu o ter sido analisado com o p i v ô ã ú t (> s u f i ci e n t é d a s o ci e d a d e a ca b o u f a z e n d o c o m q u e fosse eliminada ou pelo menos postulada a superação da t o p e r l e i ç ã a Em co n t ra p a r ti d a , a r e a fi rm a çã o d a p es so a p l u r al n u m m u n d o p o li cu l tu r a l te n d e a i n t e g r ar o m a l co m o u m elem en to en tre outros. Ele pod er ser vivido, tribalm en te — e, com isto, "homeopatizarse", tornarse mais ou men o s i n o f e n s i v o. C a b e su p o r q u e u m a p a r te d o s p r o b l em a s

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 A parte cio Diabo

d o s p r o f es so r es n o s c o lé g i o s co n s i d e r a d o s p r o b l e m á t i co s d e co r re d e s u a p r o p e n s ã o a v e r u m a t u r m a c o m o u m a s o m a d e ind ivídu os qu e precisam ser ap erfeiçoados, e n ão com o um grupo com suas dificuldades, mas também com suas p otencialidad es coletivas. É isto, portanto, o que está em jogo na mutação pós m o d e r n a . R e co n h e ce r "o q u e ca b e a o d i a b o ", s a b e r d a r l h e bom uso, para que não sufoque o corpo social. Uma sabedoria cujo perfil foi apontado por Marco Aurélio, entre tan tos ou tros: "Pois irritarse con tra o q ue é eqü ivale a aban d o n a r a n a t u r e z a u n i v er sa l, n u m a p a r t e d a q u a l e s tã o co n tidas as naturezas de cada um dos outros seres2". Cabe portanto, sem canonizála nem tampouco estig m a t i z á  l a a priori, r e c o n h e c e r q u e , v i v e m o s a h o r a d a anq m ia.jSeria o caso de rem em orar o lema de Rimb aud: "O poeta tornase vidente p o r m e i o d e u m l o n g o , i m e n s o e c a l c u l a d o desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de am or, de sofrim en to, de loucura; ele bu sca a si m esm o, esgota em si p róprio todos os ven en os, para gu ardar deles apenas as quintessências. Inefável tortura3..." O viden te Rimbaud tornou se um a referência acad êm ica, m as sua "dêV.assidâo" poética*contaminou muitas práticas juv e n i s , p o d e n d o o s e u e c o s e r o u v i d o n o s   Lipstick traces deixados pelos Sex Pistols e outros revoltados do rock, da housee d a techno. Aí estão o excesso, o demonismo e as variadas efer v e scê n ci a s d e d i f er en t e s or d e n s , a f ir m a n d o q u e D i on i s o é efetivamente o "rei clandestino" da época. No limiar do século XXI, a história secreta do século XX transformase

Prólogo

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em d estin o m an ifesto. Eu d iria q u e a "crian ça etern a", rui;/  d o s a , cr u e l , g e n e r o s a, n ã o  co n f o r m i s t a e q u e r e n a s ce n ã o é m a is u m a q u e st ão d e id a d e , m a s u m a a t it u d e , u m e st ad o d e e sp í r it o , u m "s i t u a c io n i s m o " q u e s e g e n e r a l iz a a o s p o u co s n o co n j u n t o d as g er a çõ e s. T e r í am o s aí u m a m í s ti ca d a v i o l ê n ci a , t a l c o m o d e s crita por G. Sorel em outro contexto? Talvez. Especialm e n t e n a m e d id a e m q u e u n e o s q u e co m p a rt il h a m seu s mistérios, os que comungam os mesmos mitos. O que é certo é a revivescência de uma erótica social, de uma o r g i á st ica d i fu s a o u — p a r a e m p r e g a r te r m o s m a i s a ca d ê m i co s — o re t o r n o d a libido sent iend i, a li b i d o d o s e n t i r , e i st o n ã o p o d e se r a p r e e n d i d o a t r a v é s d a s ca t e g o r i a s p r ó  prias à libido sciendi, p r e o c u p a d a a p e n a s c o m o s a b e r a b s t r a t o , o u à li b id o d o m i n a nd i , p a r a a j j u a l só i m p o r ta a ^ p o l í t i ca , o p o d e r , co i s a s, e n f i m , i n v e n t a d a s p e l o s "m o r t o s v i v o s " q u e tê m a p r e t e n s ã o d e p e n s a r o u g e r ir o m u n d o . Po r i st o é q u e a p r o b l e m á t i ca d a i n t e g r a ç ã o p o r m e i o d e u m a "e d u ca çã o c i d a d ã ", ou s ej a, p o r u m s ab e r so b r e as instituições e os poderes estabelecidos, é um engodo, só p o d e n d o p r o d u z i r m a is fr u s t r açã o . Impõese, assim, um redimensionamento teórico. Só ^po d e m o s e n t e n d e r b e m u m a é p o c a s e n t i n d o s eu s od o res ., j  I  Q s h u m p r e s so çi a is .e in s ü n t i v o s s ã o m a is e l o q ü e n t e s a se u í r e sp e i t o d o q u e m u i t o s t r a t a d o s er u d i t o s. N e le s e xp r i m e m  i se os afetos, as pa ixões, as cren ças q u e a pe rm eiam :.É assim q u e se m a n i f e st a m o s s o n h o s m a is d e sv ai ra d o s co m q u e ela joga ou d os qu ais vem a ser jogu ete. É assim q u e p od em os entender que a "parte destruidora", a do excesso ou da

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  A parte do Diabo

»e f er v e scê n c ia , é e xa t a m e n t e o q u e s e m p r e a n t e ci p a u m a n o v a h a rm o n i a . M a s só p o d e r em o s co m p r e en d e r b e m o i m p a ct o d essa revivescência se tivermos por ela alguma apetência. Não adesão, mas compreensão, em seu sentido sociológico. A a n á l is e n ã o p r e ci s a n e c e s s a r ia m e n t e se r cr í t ica . T a m b é m é possível "sen tirse em sin ton ia", vale dizer, cap tar, sentir, j u s t a m e n t e , a ca r g a a f ir m a t iv a q u e m o v e u m a é p o ca . H o u v e q u e m z o m b a s se d a id é i a, m a s in s i s to n a n e ce s s id a d e d e f o r m u l ar u m "p e n s a m e n t o d o v e n t r e ". A fin a l d e co n t a s , é

lá q u e es tá a v i d a , co m t u d o o u , às ve ze s, co n t r a t u d o . T e m o s d e s ab e r c o m o d e s cr e vê l a. A d i ss id ê n ci a d i ss e m i n a s e . N ã o p o d e m o s l i m i t a rn o s a   julgála pelos parâmetros políticos. Ela não se reconhece neles.xN ão é p ossível avaliar, a p artir da id eologia e con ô m i c a ,u m d e se jo .d e . "c o n s u m a ç ã o ", o d e s ej o d e d e sp e r d i çar ou q u eim ar as coisas e os afetos, q u e se gen eraliza cad a v e z m a i s / É aí q u e a a rr o g â n c i a d o s b e m p e n s a n t e s ch e g a a seu lim ite. Eles têm a seu lad o a im p ren sa oficial, aqu ela m e s m a q u e n o s p r i m e ir o s so b r e ss alto s d o s a n o s 6 0 er a q u a l if ica d a d e " ó r g ã o d e t o d o s o s p o d e r e s ". Ó rgão d e t odas as i m p o t ê n c i a s se ria m a is ap r o p r i a d o n o m o m e n t o a tu a l , d e t a l m a n e i ra o s p r o t a g o n i s ta s d e e n t ã o t o r n a r a m s e g e st or es d e u m m u n d o m o r n o e se m c ri a çã o . A i m p r en s a o ficia l é ca d a v e z m e n o s l id a p e la s g e ra çõ e s j ov e n s , q u e p r e fe r e m a h o r i z o n t a li d a d e d a I n t e r n e t , c o m se u s f o ro s d e d i s cu s s ão e outras busca? de encontros, :ajam sexuais, filosóficos ou religiosos. O sab er/p od er oficiai, aqu ele q u e se lim ita a d istrib u ir

Prólogo

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certificad os de con form id ad e, q ue cuid a da assepsia da so ciedad e e d o saber, torn ou se ab strato d em ais. A ab sten ção é a ú n ica resp osta d evolvida a tod os esses d irigen tes. Insis^ timos: a energia juvenil deixou de ter como objeto a reivin d icação, o p rojeto , a história. Ela se m an ifesta e se esgota*, no instante — festas, solidariedade na urgência — e não precisa de um a trad u ção p olítica ab strata. Daí a abs ten ção em m assa, a n ão in scrição n as listas eleitorais e ou tras form a s d e i n d i f e r e n t i sm o . Fo i o q u e c h a m e i d e   A transfigura-

ção do político. Tornase, então, uma imperiosa exigência intelectual p ensar o sensível em tod as as suas m an ifestações. Ign oran do os "cães de gu ard a"; tem os de envered ar pelos cam in h os arriscados escolhidos pela socialidade de base. Não podem o s , c o m e f e i t o , l i m i t a rn o s à via rccta, b a l i z a d a p e l o racionalismo moderno; o que é preciso, pelo contrário, é co n s t r u i r u m a r a z ã o m a i s r ica , ab e r t a a o p a r a d o x o e , p o r t a n t o , ca p a z d e p e n s a r a p o l is se m i a q u e a c ab a m o s d e ab o r  d a r. Para co m p r e en d er os f en ô m e n o s j o c i a i s e m a ç ã o n o s d i as d e h o j e , é n e c e s s á rio m u d a r d e p e r s p e ct iv a ; n ã o m a i s criticar, explicar, mas _compreender,_admitir. Sem nos de t er m o s n o v a m e n t e n o m e s m o p o n t o , a lé m d a s representa-

ções, filosóficas e políticas, cuja saturação é evidente, é preciso apresentar  f e n o m e n o l o g ica m e n t e o q u e a c o n t e ce . Sugerir a m atéria prim a* d e s t e e n i g m a q u e é o m a l . N ã o p o r m e i o d e u m e s t e ti s m o b a r a to , m a s p ar a ca p t u r a r a i n t e i r e za dos fenômenos que estão em primeiro plano na cena *E m l a t i m n o t e x t o .

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  A parte do Diabo

social. Ainda qu e seu n om e seja variável — Estad o, In d iví duo, Deus, Contrato etc. —, nunca faltarão advogado s de Deus. Opportet haereses esse, é p r e c i s o q u e h a j a a l g u n s advogados do diabo4. Co m o verem os, a questão é delicada. Talvez p or isto o p e n s a m e n t o d o m a l t e n h a s id o p o r m u i t o t em p o a fa s ta d o ou con fin ad o à arte, à poesia ou a algu ns au tores mald itos. Malditos em sua época. P ois se evocarmos Schopenhau er, Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud, Simmel ou M. Weber (to dos con testad os em sua época), qu em se hav erá d e lembrar do nome de seus detratores? Cabe supor que a arrogâ ncia dos m estres-escolas e outros escribas bem -pen san tes de h oje m ereça a mesm a sorte. N ão demorará p ara qu e se ju n te ao ossário das realidades. Este livro pretende apontar muito precisamente uma tendência de fundo da vida pós-moderna: a ligação o rgâ n ica entre o bem e o ma l, entr e o trágico e a ju bilação. Por um surpreendente paradoxo, é aceitando o mal, em suas diferentes modulações, que podemos alcançar uma certa alegria de viver. O am or fati n i e t z s c h i a n o t r a n s f o r m a n d o se em um "amor do mundo" pelo que ele é. Amor da ne, cessid ad e em p iricam en te vivido e qu e será p reciso, p or isto mesmo, tratar de pensar. A vida em p írica, qu e deve ser nossa d errad eira referên cia, "sab e" tud o isto perfeitam ente. N ada h á d e original nas p áginas qu e se seguem : estas idéias estão em tod as as m en tes. Mas é preciso ter a coragem de formulá-las. Nada de original no que vem das origens. É talvez o que Heidegger pretendia destacar ao observar a proximidade, em gr ego,

Prólogo

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e n t r e a d o r e a li n g u a g e m (A lg o, L o go s ). À m i n h a m a n e i r a /   e u d i ri a q u e a d o i d a "p a l a vr a p e r d i d a" i n c i ta a d a r a p a l a ' vra à dor reencontrada, e, desse modo, a (re)tornar a um h u m a n i s m o in t eg ra l. A q u e le q u e sa b e re c o n h e c e r o q u e é d o d i ab o .

Notas do Prólogo

1. S obre o nom adism o, Record, 2001. 2. Marco Aurélio, "Pensées" II, 16, in  Les Stoicicns, Gallimard, La Pléiade, p. 1150. 3. Rimbaud (A.),   Lettie à Demeny. Cf. Lefrcre (JJ)/   A. Rimbaud, Fayard, 2001, p. 270 e p. 263. Cf. tam b cm M arcus (G .),  Lipstick  Tiaces. Un e histoire secrète du vin gt ièm e siècle, ed. Allia, Paris, 1998. 4. Sobre a razão ab erta, cf. Maffesoli (M.), Éloge de la raison sensible, Grasset, 1996.

C

Pe q u e n a

a pít u l o

I

e pis t e m o l o g ia

d o

m a l

"N icht' raus, son dem durch." C. G. J u n g

O Es

p ír it o

a n im a l

U m a r e f le xã o p a ra to d o s e p a ra n i n g u é m ? É n o m í n i m o d e  licado, em n ossa trad ição cultural, m ostrar de que m aneiras o mal nos persegue, em suas diversas modulações: ag ressivid ade, violê n cia, sofrim en to, d isfun ção, p ecad o — a lista p od eria p rosseguir infin itam en te. E isto tan to ind ividu al q u an to coletivamen te.^ N ão há qu em n ão seja afetad o, e são poucos os que querem conhecer os efeitos de semelhante realid ad e Pois o q ue é, é. A som b ra faz p arte desta b an alidade básica. Elemento de base em numerosos mitos, onip resen te em n ossos con tos e lend as, ob sedan te nos sistemas f ilo só fi co s, ela é t am b é m u m a p e d ra n o c a m i n h o d a d o u trina religiosa, pelo menos no Ocidente. É por isto que me dirijo aos espíritos esclarecidos. Aos que não têm medo de uma lucidez revigorante para uso

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ind ividu al e social. De fato, está n a h ora d e sup erar a p ro  , xr b l e m á t ica d o h d m e m r e al iz a á o e m s u a to t a li d a d e , d a s o ci e ^  d a d é p e r fe it i.S Ü in d a q u e co m o i d eal, c o m o t e n s ã o , co m p ' p rojeto. P ois é esta a m elh or m an eira d e p rov ocar a reali d a d e q u e se t ra t o u d e n e ga r, co m o u m r e t o r n o d o .q u e foi recalcado. No fim das contas, reconhecer que a impe rfei > çã o também é u m e le m e n t o e st ru t u ra n te d o d a d o m u n d a n o , t al ve z u m â n g u l o p a r ti cu l a rm e n t e p e r t in e n t e d e a t aq u e dos fen ôm en os sociais. Especialm en te se aceitarm os a h ip ótese do "sen tim en to trágico" da vida, o qu e p arece cada vez mais evid ente. Aceitem os o desafio desta visão, aind a q u e de m an eira m etodológica. Com o alavanca op eracional, para m elho r en tender todas essas atitudes presenteístas e mesmo hedonistas, esta mística corporativista ou ainda este poderoso relativismo, tod as ten d ên cias qu e, de m an eira difusa, con t a m i n a m a v id a co r r en t e . Perspectiva metodológica — caberia talvez dizer epis tem ológica — qu e enfatiza o p aroxism o, a caricatu ra, a  for m a com o cap acidad e de pôr em palavras o q u e é vivid o. Da mesma maneira, Julien Freund, analisando o conflito, ineren te a toda sociedad e hu m an a, falava de u m a "situação excepcional”, não no que tinha de factual, mas por servir de revelad or. E ele esp ecificava, po r sinal, q u e ciclicam en te esta situ ação retorn a com tod a a força1. É possível, p or algum tem p o, m ascarar seus efeitos, apagar seus asp ectos m ais fla s: gran tes, ma s ela estará sem p re lá, en trin ch eirad a, p ron ta a ressurgir, n os ato s privados e nas ações pú blicas. Daí o in teresse m etod ológico da análise do conflito.

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T e r m o a l g o g e n é r i co m a s f o r t e m e n t e e v o c a t i v o , o_co n  f li to p o d e , p o r t a n t o , "i n d i ca r n o s o ca m i n h o " , o ri e n t a r o p e n s a m e n t o p a ra es te n ã o d i to h u m a n o , e st a co i sa te r rível cujo caráter fundador a história está sempre r e le m b r a n d o :a v id a e a m o r te e s tã o i n t n n s e ç a m e n t e li g a d a s. \ • f v ■  ' C o n s t a t a s e u m a v o l t a d o m a i co m t o d a a f o r ça . Re fi ro  m e àJf ace ^ o b scu r a d e n o ss a n a t u r e z a . A q u e la m e s m a q u e a cu l t u r a p o d e e m p a r te d o m e s ti ca r, m a s q u e co n t in u a a a n i m a r n o s s o s d e se jo s, n o s s o s m e d o s , n o s s o s s e n t i m e n t o s , em suma, todos os afetos. Esta volta com toda a força talvez seja aquilo mesmo a que nos referimos há algumas décadas,' de m an eira bastan te incerta,1 com o "ájcrisè". Fan J ... j. 4  parte do Diabo

ce r to d a s a s d o e n ç a s e t o d o s o s s o fr i m e n t o s , c o n d u z i n e v i  tavelmente às mortes causadas pelos próprios efeitos dos t r a t a m e n t o s : q u i m i o t e r a p i a p a r a o c â n c er , q u e a t a ca t a n t o o coração quanto as células doentes, infecções hospitala r es q u e a fe t a m u m q u a r t o d o s d o e n t e s i n t e r n a d o s , p a ra n ã o fa la r d as d e p e n d ê n c ia s m e d i ca m e n t o s a s . É cont ra a "violên cia totalitária" deste u niversalismo q u e vem ressurgindo o que denominei sabedoria demoníaca.; Sabedoria incorporada,^ mais vivida que pensada, que é es sen cialm en te rclativLsta. Vale dizer: qu e r elacion a tod os os elementos constitutivos da natureza, inclusive os m ais sel vagens. Sob o impulso dessas culturas consideradas bárba ras, qu e ju lgáv am os m arginalizad as, são mu itas as técnicas do corpo, os sincretismos filosóficos e religiosos que tra tam de em bar alha r os cód igos raciona listas: os da teod icéia cristã, de um a vida social p rog ram ad a e sem r iscos. E a v ol ta dos orientes míticos! Cabe mencionar, é claro, a onda crescente — paralelamente às medicinas ocidentais tradi cionais mais alternativas (homeopatia, fitoterapia) — das t é cn i ca s d e t r a t a m e n t o s o r ie n t a is — a cu p u n t u r a , shiatsu — assim com o das técn icas de m ed itação, das artes m arciais e outras maneiras de organizar a vida, o espaço. De uma forma paroxística, encontramos uma postura d e resistência com o esta na bru xaria, consistind o — de acor d o c o m u r n a a n á lis e d e j u n g — e m a l te ra r a o r d e m d as let ra s, p a r a "d e r r u b a r a o r d e m d i v in a , c o m o b je t i v o s d ia b ó l ico s , e estab elece: em seu lugar um a d esord em in fern al". Esta "d e fo r m a ç ã o m á g ica d a s p a b ^ a s ” é p a r a d i g m á t ica . Po d e ser encontrará, como indiqv-í., na gíria da bandidagem e da

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m a r g i n a l i d a d e , m a s t a m b é m e m t o d a s a s t é c n i c a s d o  New

 Age e o u t r o s d i s c u r s o s d i s s o c i a d o s d a o r d e m e c o n ô m i c a estabelecida . Da astrologia às m ed icinas p aralelas, con sta tamos a mesma preocupação popular: encontrar uma or d em intern a, qu e tem seu p rópr io rigor, mas qu e se baseia na interação permanente do material com o imaterial5. Correspondências, analogias, metáforas: são muitos os instrumentos que, utilizados neste sentido, insistem na sinergia, na com p lexid ad e dessa estrutura h olística q u e vem a ser o in d i v íd u o "l ig a d o " a o ou t r o h u m a n o , a o o u t r o a n i  mal, ao outro natural. Mas assim como o.universalismo a b s t r a t o r e p o u s a v a na'  rejeição da morte —■ como no e n cantamento de São Paulo: "Morte, onde está tua vitó ria?” —, tambémia aceitação da "parte maldita” remete a uma outra tática frente à finitu d e, a da integra ção h om eo p át ica d o m a l. O r e c o n h e c i m e n t o d a im p e r m a n ê n c ia d e to d a s as coisas é, assim, u m a form a de se estar seguro da per d u ração , a longo prazo, do todo..., Esta tática é cotidiana, e se a bruxaria, stricto sensu, é excep cion al, são m uitas as crenças que, sem se d eclararem como tal, compartilham a mesma lógica.,O psicodelismo s ó é u m a c u l tu r a m e n o r p a r a a qu e le s q u e a in d a s e ju lg a m em p osição d e dirigir a socied ad e. Na realidad e, ele está em tod a parte. Um ind icad or disto é a mú sica; que, com o "fato /. social to ta l", con stitu i um bo m resu m o desta seiyagerizj.ção. da vida. Os ídolcs dos jovens, solistas ou grupos musicais, exprimem, uns mais outros menos, um demonismo am biente. Reencenando os transes arcaicos, eles ritua lizam a morte, mostrando seu aspecto inevitável e, talvez, sua

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f e c u n d i d a d e . P o u co i m p o r t a , n e s se s f e n ô m e n o s d e e xce s so, o prometeísmo de um indivíduo e de uma sociedade "plenos", positivos. Prevalece, em contrapartida, u ma encen ação, às vezes aterrorizante, do q ue é a m or te q ue insis t e m e m m i n i m i z a r . Entend e-se melhor, nessas cond ições, p o r q u e a s raves, q u e n o f i m d a s c o n t a s c e r t a m e n t e n ã o oferecem m ais tóxicos que as boates, e, de qu alqu er m an ei ra, fazem m u ito m en os m ortos que as saídas d as festas de sábado à noite, tenham parecido tão.perigosas aos p olíticos^Nelas o transe, os "produtos", a violência são integra dos à festa e n ão d eixados n a p orta. Uma postura existencial desse tipo é, no fim das con tas, tradicional. Em todas as culturas pré-modernas, mas t a m b é m e m t o d o s os m i t o s h u m a n o s , e n c o n t r a m o s o cic lo da morte e da vida. Analisando a "morte africana", o an tro p ólogo L.-V. Tho m as chega a enxergar nela um fator de equilíbrio estrutural. Exacerbando a morte, representan do-a por mímica, o que se faz é desdramatizá-la, torná-la familiar. É certamente um processo idêntico que tes temu n h am os nas histerias mu sicais contem p orân eas.-Os ritm os . t e c h n o , a s s ín c o p e s d o r a p , a o m e s m o t e m p o q u e e m b a r a  lh am os cód igos dos discursos racionais, exigem u m a vitali d ade qu e mergu lha p rofun d am ente suas raízes n os "vácuos" .da inteireza humana. A vitalidade desta terra em que "estamos aí". Desta terra de que somos feitos e que faz de n ós o qu e somos. É isto a sabed oria d em on íaca, qu e, no fim d a s co n t a s , v a le t a n t o q u a n t o q u a l q u e r o u t r a . Co m o estamos faland o de pr ofun didad e, trata-se de uma in tu ição, ou seja, n ão de um olhar extern o e abstrato, mas

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d e u m a visão do int erior. In t u içã o q u e p o d e m o s a p r o x im a r d e s sa "g r a n d e z a n e g a t i v a " d e q u e fa l av a K a n t , e q u e n ã o é uma negação da grandeza6. Podemos encontrar diversas expressões dessa id éia: a efervescência, a a n om ia d e Durkh e i m o u G u y a u , a "p a r t e m a l d i t a " d e Ba t a i lle o u o "i n s t a n te obscuro" de Bloch são com o exemp los afirm an d o, sempr e e m a i s u m a v ez , q u e a v id a n ã o p o d e se r r e d u z i d a à u t i l id a - : d e . A p r o x im i d a d e d o e x ce s so é u m a p r á t i ca r e c o r r e n t e n a s histórias humanas. Há momentos em que este fio verme lho fica menos evidente. Em outros, pelo contrário, ele se a fir m a c o m fo r ça . Se u r e n a s c i m e n t o e m n o s s o s d ia s já n ã o d á m a r g e m a d ú v id a s, p e l o m e n o s p a r a o s q u e d ã o a t e n ç ã o aos fatos. É o sinal de uma idéia-força que não podemos mais ignorar. E i m p o r t a n t e i n si st ir n e s t e p o n t o , já q u e p a r e c e tã o d i  fícil aceitar que possa haver uma forma de grandeza na negatividade. Normalmente, a única perfeição admitida é a das alturas. O céu da divind ad e. Ora, p od e acon te cer que esta ten são para o alto n ão corre sp ond a à p rá tica social. Daí  a necessid ad e de descer às pr ofu nd ezas da vid a. De vincularse a esse abismo negro, o da_anirnalidade_que dorme em ca d a u m ,jJa ,g;u d d ad § tam bém , do p.razet &d.o,4esej.P/ coisas q u e n ã o d e ix a m d e fa s cin a r , m a s q u e c o s t u m a m ser co m p a r t i m e n t a d a s , e s ã o t o le r a d a s a p e n a s n a s o b r a s d e f icçã o . A c o n t e c e , p a ra o m e l h o r o u p a r a o p i o r , q u e e st e espíri V to animal v o l t o u a o p r i m e i r o p l a n o d a c e n a s o c i a l . N ã o , c o m o já e x p l iq u e i, n u m a s im p le s r e g r es sã o , m a s d e a c o r d o com uma atitude de "regrediência", a da implicação que in t e g r a o a r ca i co , o p r i m i t iv o , o a n i m a l n o h u m a n o , e s e m

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"superar" tudo isto. "Regresso", "ingresso", pouco impor t a o t e r m o q u e p o d e s er e m p r e g a d o ; b a st a i n s is ti r n o fa t o d e que seja p ossível penetrar, en trar (ingresso) n a inteireza d a n a t u r e z a h u m a n a s e m r e je it a r -l h e es ta o u a q u e la p a r t e . É i s t o o "e s p í r i t o d a s fe r as " q u e en c o n t r a m o s n o p e n s a m e n to fou rierista, é isto a ultima ratio dos sentid os, d o sensível que não projeta sua completa realização em hipotéticos amanhãs7. ^ O m e d o d a a n i m a l id a d e é a b a se d a p e r s p e ct iv a u n iversalista. Ele é o p on to d e partida, inta ng ível, de tod os os ' m ora listas. Basta ou vir ou ler as etern as catilin ária s dos cro nistas, jor n alistas, p olíticos e observad ores sociais de tod os os tipos para aplicar-lhes o que Marx dizia dos burgueses: "Eles n ão têm m ora l mas se servem da m or al." E o qu e aco n t e ce c o m a a n á l i s e s ob r e es ses n o v o s m o n s t r o s q u e v ê m a ser os "jov en s das cida d es". Mon stros m od elad os, na reali dade, especialmente pelos jornalistas e os políticos, aos q u a is r e s p o n d e m o q u e d e s e ja m o u vir , so b r e tu d o q u a n d o c it a m Bin L a d e n c o m o s eu h e r ó i. Se m e l h a n t e u t il iz a ç ã o d a qu eixa é lan cin an te, obsessiva. Pode ser comp arad a, tratan : d o-se da coisa sexual, à dos diretores d e con sciên cia na s escolas católicas, p rojetan d o seus fan tasm as sobre seus "d i rigidos”, perseguindo o pecado onde existem apenas ino c e n t e s p r a z e re s s ex u a is . O m e s m o t r a t a n d o - se d e u m ce r t o ^ pan -sexualism o freud iano, para o qual a cu ra an alítica co n siste em ' esvaziar a lixeira ' de tod os os resíd u os som br ios, p rópr ios d3s fantasias hui/ .anas. Caberia fazer a gen ealogia d a q u i lo a q u e M. Fo u ca u i i se r e fe r e c o m o a " v o n t a d e d e sa  b er 7 característica d a trad ição ocid ent al, para p erceber qu e

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através de d iferen tes figuras ela se lim ita a repetir u m a o b sessão constante: o medo da sombra. Esta obsessão inaugura-se no ato fundador bíblico: "Deu s sepa rou a luz das trevas8." É p recisam en te o qu e vai servir de base à dualidade estrutural que será enco ntrada, t e o r i c a m e n t e e d e p o i s p r a t i ca m e n t e , n a cu lp a b i lid a d e cr is  tã, e mais adiante, por sua vez, na "separação" hegeliana ou na cisão ( Spaltung) freudiana. Esta recusa da inteireza d o ser perm ite, na trad ição em qu estão, elim ina r o trágico da condição humana. Fuga diante da morte, negação da m o r t e c o m o f o n t e d a e xi s tê n c ia 9. Pa ra r e t o m a r a d i s t in ç ã o q u e p r o p u s e n t r e drama e trágico, esta fuga consiste em "dramatizar" a morte, ou seja, e n c o n t r a r - lh e u m a s o l u ç ã o : o p a r a ís o o u a s o cie d a d e p e r  feita. A partir daí, em suas diversas modulações (pecado, alienação, a n arq u ia), a m orte d eixa de ser essencial, já qu e é possível "superá-la". Nem por isto teria cabimento apressar-se a descarta r a ação que deve ser empreendida sobre o mal. Faz part e da c o n s c iê n c i a h u m a n a n e g o ci a r c o m ele . H á u m a d is t in ç ã o , q u e e n c o n t r a m o s n o p e n s a m e n t o gr ego , q u e n o s p o d e a ju dar n este se n tid o 10. De um lad o o  pecado, s o b r e o q u a l ( p od em os agir, qu e po d em os evitar de diversas m aneiras. Do o u t r o , a "p o l u i çã o ”, q u e é a u t o m á t ic a , t ã o im p i ed o s a q u a n to o m icró bio d esta ou d aqu ela doen ça, e, com o tal, trãgi: cam en te incon tor n áv el. Eu diria qu e "tem os de ag ü en tar". Um é pontual, a outra é "estrutural". O reconhecimento d e s se a s p e c t o es t r u t u r a l p o d e in d u z i r u m a s a b ed o r i a c o t i  d iana da necessid ad e. Esta cond u zind o a u m a p ostura exis

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tencial que integra o desamparo para alcançar um equilí b r i o m a is co m p le t o , m a i s c o m p l e xo , o d o " co n t r a d i t o r i a l ", d e u m a l óg ica q u e n ã o f u n c io n a e m r e la ç ã o à s u p e r a çã o d o mal: a síntese, a perfeição, mas repousando na tensão, ja m ais term in ad a, qu e faz da im per feição, da p arte sombria, u m elem en to essencial de toda vida ind ividu al ou coletiva.

A ENERGIA DOS SENTIMENTOS N u n ca se dirá o su ficiente a respeito de qu an to a separa ção d ivina entre trevas e luz marcou p rofun d am ente a con sciên cia ocidental. Toda a temática da emancipação moderna repousa nesta separação. O universalismo da filosofia do Iluminísmo e sua mais recente manifestação, a “leng ajenga^ moralista_cqntenipçirânea, derivam diretamente dela. A dialética matizada característica do pensamento g rego, en tre o pecado, factual e p orta n to sup erável, e a "po lu ição", estrutu ral e inelu tável, ficou esquecid a. É a partir deste corte radical que se elabora o conflito metafísico entre o bem e o mal. Para o cristianismo, reli gioso ou laico, não existe mais equilíbrio entre essas duas entidades. Na teoria agostiniana, o mal não tem rea lidade e m si, n ã o p a s sa n d o d e u m a " p r iv a çã o d o b e m " (privatio boní).É a partir d esta neg ação q u e são elaborad as as teorias fau stiana s qu e levaram à socied ad e asséptica qu e h oje tran s forma o "risco zero" em ideal absoluto., Mas se esta n ega ção é teórica (talvez fosse m elh or d izer intelectual), pouco impacto tem na sabedoria popula r, de-

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m o n í a ca , q u e, ela sim , co n t i n u a r e c o n h e c en d o c o m o e q u i  valentes essas du as entid ad es, bem e m al. Em p iricam ente, o diabo, em suas diversas manifestações cotidianas, atra vés de suas expressões no trágico corrente, tem uma exis tên cia real. Os efeitos de sua ação são inegáv eis. Em bor a eu só o ind iqu e aqui de form a alusiva, os con tos e lend as qu e n u t r e m o u a s so m b r a m a in f â n cia , e c o n t i n u a m a p e r seg u ir o inconsciente coletivo, encenam fadas e bruxas, bons e m aus, bo n zin h os e m alvad os. Assim se explica igu alm en te ^ o espetacular sucesso de Harry Potter e certos Halloween, formas modernas da antiga veneração dos espíritos. Em parte, os mitos repousam no que poderíamos cha m ar de p arad igma do Ha d es. É claro qu e em d iferen tes cu l turas este pa rad igm a se expressará sob d iferentes n om es. A realidade, sim, é intangível. Há um lugar subterrâneo, uma d e id a d e d a s p r o f u n d e z as . É u m lu g ar o u u m d e u s q u e t e m a ver com o fim da vida, mas é também um lugar ou uma entidad e qu e se man ifesta n o p róprio decu rso da existência. As desgraças e separações, os rompimentos, desamores, d o e n ç a s e a ci d e n t e s — e m s u m a , t o d o o t r á g i co c o t id i a n o — têm a ver com este tóp ico infernal.; A d escida ao infern o é, inclusive, u m m om en to essen--' • ciai de qu alqu era n iciação. Iniciações religiosas ou p rofanas stricto sensu, ou a longa iniciação que é toda existência humana. O confronto com o mundo subterrâneo é mes m o e n ca r a d o co m o u m m o m e n t o n e ce ss ár io p ar a o q u e é considerado um "ser-mais" em devir. As expressões popu la re s "H á m a l es q u e v ê m p a ra b e m ", "O m u n d o t e m lu g ar para tudo" etc. não se enganam ao estabelecerem uma

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•sinergia entre todos os componentes do dado mundano. Trata-se então, para retomar uma importante proposição de Gilbert Dur and , desse "trajeto a nt rop ológico” qu e repou sa p r e cis a m e n t e n o a co r d o t en s io n a l, n u m a h a r m o n i a co n flituosa en tre o in stin to an im al e as lim itações ob jetiv as 11, sejam na tu rais, cultu rais ou sociais. Existe neste saber incorp orad o, o da sabedoria p opu lar, uma bela lucide z revigorante. P odemos inclusive nos per guntar se, a longo prazo, não é precisamente esta l ucidez qu e g aran te a resistência, a du ração, a solid ez da vida. Ela "sa be -’' qu e, além ou a qu ém das p etições de p rin cíp io dos p r o t a g o n i s t a s d o sbitus quo, a lé m o u a q u é m d a s b o a s i n tenções reformistas ou revolucionárias, das declarações políticas ou morais determinando os princípios do bem, sempr e será n ecessário com p or, negociar, "ag ü en tar " as d u ras realidades que, de sua parte, têm uma relação apenas d istante com o bem . A lógica do "d ever ser" (M. Web er), a das "almas boas" de todas as tendências, é encarada sob m u itos aspectos c om o perigosa. Pois este m al n egad o, este m al d ialeticam en te superável nã o pod e d eixar de ressurgir de outra form a, d escontrolad o, sorrateiramente, de m aneira perversa, invertida. O "trajeto antropológico", o d os con tos e das lendas, da vida de todos os dias, é, por sua vez, mais equilibrado, sábio, humano, na medida em que dá direito de cida d an ia ao qu e é, e nã o ao qu e "d everia ser". Este equílíbrio nada tem de unanimista: ele é con flituoso, em 'tensão oer^iari -nte, um equilíbrio enraizado. Na verdade ele reconhece — para retomar uma temática - pa scaliana — ou e o ?nio e " oes^ estão in tim am en te liga

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d o s, e q u e s e u m d e ss es p ó l o s é d e m a s ia d a m e n t e a c e n t u a  do, o outro só pode ressurgir. Seja como for, não deixa de ser i m p r e s s io n a n t e q u e e sta m it o lo g ia c o n t e m p o r â n e a q u e é a p u b li cid a d e n ã o s e t e n h a e n g a n a d o e n c e n a n d o a p ele, a e p i d e r m e , o s h u m o r e s e m t o d a s as su a s d i fe r e n t es m o d u la çõ es . O m e s m o a c o n t e c e c o m a p r o d u çã o m u s ica l, c i n e  matográfica, fotográfica, que não teme ilustrar, epifanizar a parte obscura da natureza humana. É considerável a defasagcm entre o intelectualismo dos moralistas e a criação m u ltifor m e qu e se limita a tradu zir o que é vivid o por cada um . De u m lado, a abstração das boas in tenções, ga ra n tin do, como se sabe, a pavimentação dos infernos verda dei r os; d o o u t r o , o e n r a iz a m e n t o n o h ú m u s d o h u m a n o . Esta ú lt im a t e n d ê n c ia é m a i s p e r t in e n t e , m a is co n g r u e n t e c o m o espírito da época, logo, mais prospectiva. Seja como for, ela não traduz mais um ideal celeste, uraniano, apo líneo, mas u m a p reocu p ação h olística que faz d o corpo, d a sensi b il id a d e , d o s a fe t o s u m a p a r te in c o n t o r n á v e l d e ca d a u m e d o corp o social em sua totalid ad e. Talvez seja esta a verdadeira encarnação do espírit o, aquela que sabe que uma planta precisa de raízes para ele var-se em d ireção ao céu. Trata-se de um a d essas idéias de t al m o d o b a n a i s q u e v a m o s en c o n t r á -la s , co m o t o d a e s t r u tura antropológica, ao mesmo tempo nos mitos mais su blimes e nos lugares-comuns mais corriqueiros. Entre o arqu étip o e o estereótipo há apenas u m passo, qu e p od e ser dado com facilidade. São muitos os mitologemas que exprimem esta "cons tante". Ma obra negra de alquimia, é a fase de dissolução.

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N a l it er a t u r a , é a p e r e g r i n a ç ã o p r o p o s t a p o r D a n t e e m s u a obra magistral. Sem esquecer o logos spermaticos, a razão seminal de uma certa filosofia grega, ou ainda a fó rmula esotérica "vitriolum": visita interiora terrae rectificando

inv enies occultum lapidem veram m edicinam . É d epo is de p e n e t r a r n o in t e r io r d a Te rr a q u e v a m o s e n c o n t r a r a p e d r a e sco n d i d a , v er d a d e ir o m e d i ca m e n t o . N e m m e s m o a t r a d i  ção cristã ignora esta descida. Tem os, assim, a "ke n os e", ou seja, o rebaixamento de Deus na encarnação e na paixão do Cristo, que vai ele mesmo ao infe rno antes de vo ltar a subir ao céu. P o d e r í a m o s e n u m e r a r a qu i m u i t a s fo r m u l a çõ e s q u e e x  pr essam esta du pla p olarid ad e'2. Talvez fosse o caso de d i zer "multipolaridade", tão claro parece que, ao con trário d e u m m o n o t e í sm o t r a n s ce n d e n t e — o d o c h efe , d o c ér e  b r o , d o u r a n i a n o — , o s I n fe r n o s p r o p i ci a m u m p o li t eí s m o d e valores qu e se relativizam un s aos ou tros. Tem os, assim, o "sacrum", na base da coluna vertebral, em numerosas práticas orientais. Ou ainda o baixo-ventre, "Hara" entre os jap oneses, que garante a estabilidad e do corpo e p erm i te urna centração por baixo.;Para todos esses tópicos, a transcendência é difusa, "transcendência imanente". Ao contrário das religiões monoteístas, nas quais Deus está acima e além do homem (transcendente), as religiões p oliteístas, as filosofias orienta is e o qu e eu ch a m o d e cu l t u ra p ó s -m o d e r n a co n s id e r a m q u e e xi st e em n ó s u m a p a r  t e d e d e id a d e , q u e n ã o e st á a lé m d o h u m a n o , m a s fa z p a r t e da natureza humana — da mesma forma que o mal, por si n a l. i ,

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A esses arquétipos fundamentais sempre corresponde ram est ereótipos bem m ai s triviais. Pelo m en os em suas m a n i f e st a ç õ e s co t id i a n a s . A a c e n t u a ç ã o m u l t if o r m e d o co r p o e o h e d o n i s m o q u e lh e e s tá a s s o ci a d o s ão a il u s t r a çã o m a is evidente disto. O corpo que dança ou a dança do ventre são um fenômeno intemporal e extraterritorial, mais ou m e n o s a d m i ti d o . Em W a ll is e Eu t u n a p r a t i ca m -s e as "d a n ças sentadas". Considerando as danças dos indígenas por d em ais lascivas, sugestivas d em ais, os m ission ár ios os obr i gar am a praticá-las sentad os. T u d o .i n d i ca q u e , a p ó s o p a r ê n t e s e m o d e r n o , essa s d a n ças voltam com toda a força nas p ráticas contem p orân eas.. As histerias musicais ou esportivas e as das aglomerações festivas de tod os os tipos d ão tes te m u n h o d isso. Elas signi ficam u m a c e n t r a ç ã o p o r b a i x o . C o n t r a ç ã o d o c o r p o i n d i  vidu al, n at u ralm en te, m as sobretu d o do corpo social. É isto o saber incorp ora d o, o do gozo, aq u ele qu e diz "sim " à terra e a seus frutos, que se enraíza p ro fun d am en te n os.prazeres q u e es te s o fe r e ce m , a in d a q u e d e m o d o e fê m e r o . N este terren o, a histeria n ão d eve ser enten d ida d e m a neira pejorativa, e sim como a recusa dessa constan te jud ai co-cristã, bem teorizada em sua m an ifest ação freud iana; r j; r e p r e s s ã o e s u b l im a ç ã o , R e p r i m i r t u d o q u e v e m d a a n i  m al id ad e, para qu e as energias se fina lizem em d ireção ao al to, se orientem para um alvo a ser alcançado, pro jetemse num ideal a realizar. Pelo contrário, hoje uma histeria d ifu sa n o clima da época corp or ifica este espírito, resultan do num corporeísmo místico. Os transes pós-modernos

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disso: por meio de rituais específicos, e graças a práticas e produtos não menos específicos — ruídos, ritmos, efer vescências, psicotrópicos diversos —, elas corroboram a « fusão, p erm item a con fu são d os corp os e d os espíritos, in d u z e m u m a o u t r a m a n e i ra d e es ta r j u n t o. A n t e a im p e r m a n ê n c ia d e to d a s as co is a s e d e ca d a u m , existem diversas estratégias: a que projeta para o futuro e se volta para o céu, a que se contenta com o presen te e se enraíza na terra. Aquela é "uraniana" (celeste) e favorece um ideal a ser alcançado; esta é "ctoniana" (terrestre) e se interessa pelo qu e está perto, p elo vivido, p elo que está "aq u i e agora”. Se e n t e n d e r m o s e st e t e r m o e m seu s e n t i d o a m p lo , o d e u m c o n ju n t o d e en e rg ia s q u e a n i m a m d e t er m in a d o co r p o , podemos dizer que a estratégia uraniana (celeste), assim c o m o a d i a l é t i c a r e p r e s s ã o - s u b l i m a ç ã o , i n d u z u m a libido

dominandi ( e n e r g i a v i s a n d o a d o m i n a r ) b a s e a d a n u m a li bido sciendi ( e n e r g i a v i s a n d o a c o n h e c e r ) . D o m i n a r é ' s a ber. Saber é poder. A m od ern id ad e é u m bo m exem p lo disto. Em contrapartida, a estratégia terrestre é causa e efeito de u m a libido sentiendi (energia visando a sentir). Uma ani m a ç ã o p e lo s se n t i d o s , c o m o p r a z er t r ib a l q u e is t o n ã o d e i xa de p rop orcionar . Um prazer relativo, ligad o ao presen te. Prazer qu e "sab e" as coisas imp erm an en tes e por isso trata d e e xt r a ir -lh e s o m á x i m o n o m o m e n t o . Lu c id e z r e v i go r a n t e que, à maneira das artes marciais, sabe fazer da fraqueza u m a rorça m ais eficaz. Lucid ez que sabe qu e o m elh or é o i n i m i g o d o b o m , e 4 u e, p a r a a p r e cia r e st e ú l t im o , p o d e ser n e c e :; s r io d i sp e n s a r c m e lh o r .

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A übido sensível não é simplesmente libidinosa. E o

> e p i c u r i s m o , q u e v e m a se r su a e xp r e s s ã o m a i s s im p le s , r e  pousa num certo equilíbrio que alia a beleza e o amargor das coisas. A filosofia de Schopenhauer, por exemplo, é uma forma de coragem que, ao mesmo tempo em que r e c o n h e c e q u e a i n fe li ci d a d e é fu n d a m e n t a l n o u n iv e r s o , sabe apreciar o que pode sê-lo. Intuição da sombra e do mal aliando-se à vontade obstinada de viver apesar de t u d o . O q u e é r e su m id o s im b o l ic a m e n t e n o n o m e d e A d ã o:

adamah, a r g i l a v e r m e l h a , damah, o s a n g u e i g u a l m e n t e v e r m e l h o . T r a t a -s e a p e n a s d e u m a m e t á fo r a , a q u i ev o c a d a a lu s iv a m e n t e , q u e r e m e t e às d u a s fa ce s d o h u m a n o , a la m a q u e n o s t o r n a p e s ad o s e o sa n g u e f l u i do e v i v o . A g ra v i  d a d e e a g r a ça . O e n r a i z a z n e n t o , ou i m p e d i m e n t o , e o d i  namismo vital.

 Libido scntien di q u e v a m o s en c o n t ra r , co n t e m p o r a n e a m e nt e , n a v a l o r i z a ç ã o , r e a l o u f a n t a sm á t i ca , d a na t u r e z a e s eu s fr u t os : os p r o d u t o s l oca i s. É i n t e r e s s a n t e n o t a r c o m o a t e m á t i ca d o r e g i o n a l e d o l o ca l é d e cl in a d a a o in f in i t o, d as m a i s d ife r en t e s m a n e ir a s ( d e n o m i n a ç õ e s d e o r ig e m c o n t r o lada, contratos de vinculação regional e mesmo "territorialização" da ação do Estado). O fato de esta temática s e r r ec u p e r ad a p a r a f i ns c o m e rc i a i s o u p o l í t i c o s e m na d a a lt e ra o q u a d r o . A co i sa t r a n sf o r m o u -s e , n o s e nt i d o h e id e g g e ria n o d o te r m o , n u m "cu id a d o " {Sorge) p o p u la r . D e m i  n h a p a r t e, eu já e n x e r ga r i a n e la a e xp r e ss ã o , ain d a i ná b i l e b a l b u c ia n t e , d e s sa s e n s i b il id a d e d e q u e e s ta m o s fa l a n d o . A s e ns a ç ã o d e "e s t ar a í " e d e q u e s ó é p o ss ív e l e st a r b e m a í se n os harmonizarmos t a m b é m c o m e ss as o u t r as co is a s.

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É o ca s o d a b u s ca d e a l im e n t o s d e q u a l id a d e q u e n ã o s e ja m p o l u í d o s , o u m u i t o p o l u í d o s . A m o d a , a ela a s s o cia  d a , d a s r e s id ê n c ia s ru r a is , a m o r a d i a e m "s í t i o s ", o p ç õ e s q u e d ã o a t e n ç ã o a o "e s p a ç o e seu d u p lo ". É u m a o u t r a m a n e i ra d e d iz er q u e, n a d a n e m n in g u é m p o d e se r r e d u z id o à u n id i m e n s i o n a l i d a d e . Que há sempre um "mais", um valor

agregado p rop orcion ad o pelas raízes, qu e tod os tratam de b u scar, recriar e m esm o fabricar artificialm en te^ .,A literat u r a lo ca l e r e g i o n a l se g u e o m e s m o e s p ír it o . Se u d e s e n v o l  vimento surpreende os editores. É inclusive, ao lado da e s p ir it u a lid a d e , o s e g m e n t o q u e v iv e u m a p l en a e x p a n s ã o . Literatura folclórica, monografia histórica, erudição local, r o m a n c es r e g io n a is — to d a u m a t e n d ê n c ia q u e já n ã o r e  m e t e a u m u n i v e r s a lis m o i n t e le ct u a l, m a s a p a l av r a s e n r a i  z ad a s , s e n t i m e n t o s lo c a is .1 E sua conjunção que afirma a inteireza da vida. Cabe a q u i ev o ca r N ie tz s ch c : "H u m a n o , d e m a s ia d o h u m a n o ". N ie t z s ch e s u b l im e e lo u c o , a é r e o e f u l m i n a d o . Su a e x p r e s  s ã o le m b r a q u e e xi st e n o h u m a n o e s ta a t r a ç ã o t e r r en a e e st a "s e d e d e in f i n i t o ” , d ia l ét ic a e m p e r m a n e n t e r e v e r s ib il id a d e . ^ E m D u r k h e im , a s e d e d o i n f i n i t o e st á li g ad a à a n o m i a . É, p e lo m e n o s p o t e n c ia l m e n t e , v e t o r d o m al.- É e fe t iv a m e n t e e s t a d i a l é t i c a q u e e s t á e m j o g o natfibiüõsehtíènd}, l i b i d o d a s e n s ib ilid a d e , a l ia n d o o s c o n t r á r i o s — b e m e m a l — e a i s to s e a d a p t a n d o . -; P ar a fic a r m o s n a es fe ra d o e x e m p l o c in e m a t o g r á f ic o , p o d e m o s e v o ca r a e s tr a n h a fa s c i n a ç ã o q u e n u n c a d e ix a m de exercer as inúmeras versões de Zorro, llobin Hood ou Ba t m a n , p a r a s ó fa la r d e le s. Su c e s s o q u e n ã o s e d e v e p u r a

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e s im p l e s m e n t e a m o d i s m o s , m a s q u e , t a l co m o a c o n t e c e c o m a s n a r r a t iv a s m ít ica s , é r e d u n d a n t e , a p r e s e n t a n d o v a r i a d a s "l i ç õ e s " e "r é p l i ca s " . E ss e s f il m e s s ã o co n s t r u í d o s , p r e c is a m e n t e , s ob r e a a m b i v a l ê n c i a d o b e m e d o m a l, s o  bre o aspecto fundador de cada uma dessas entidades. E n t id a d e s q u e p o d e m a l t e r n a d a m e n t e c o m o v e r e p r o v o  c ar fa s c í n i o o u r e p u l s a. D e s sa f o r m a , o s s e n t i d o s é q u e sã o s o l ic it a d o s .

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V

P ar a d iz ê-lo e m t e r m o s u m p o u c o m a is a ca d ê m i co s , a ambivalência dos sentidos, vale dizer, o reconhecimento d o b e m e d o m a l, t r a d u z ef e t iv a m e n t e o " fl u x o h e r a c li t ia n o das vivências" (Husserl). Há uma pluralidade de mundos, u m a p l u r a lid a d e d e a p r e ci a çõ e s e s e n s a çõ e s .-O m u n d o n ã o é um e não existe uma única maneira de entendê-lo; seu p r i n c íp i o n ã o se e n c o n t r a a p e n a s n o c ele s t ia l. N o s s os m u n d o s s ã o "a l t o " e "b a i x o " . Su a t r a n s c e n d ê n c i a se i m a n e n t i z a . Para retomar a distinção proposta por Gilbert Simondon e n t r e o n t o l o g ia e o n t o g ê n e s e , e n q u a n t o a p r im e ir a é u n a , e s t á v el , t r a n s c e n d e n t e , a se g u n d a é p l u r a l , lá b il , p o n t u a l e e n r a i z a d a . " D e s d o b r a m e n t o d e s er p o l i f á s i c o 14", d i z e le . U m a s ín t e s e feliz , n a m e d i d a e m q u e c h a m a a a t e n ç ã o p ar a essas fases múltiplas que, através da impermanência, da flu i d e z , d a d u p l ic a çã o d o p a r t icu l a r , g a r a n t e m a p e r d u r a çã o d o t o d o , d o Si, d o co le ti v o .

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A t e a t r a l id a d e ci n e m a t o g r á f i ca é ca u s a e e f e it o d a t e a t r a l id a d e co t i d i a n a . Já m e n c i o n e i q u e es ta r e p o u s a v a , es  t r u t u r a l m e n t e , n a duplicidade: ser d u p l o . J o g o i n f in i t o d e troca de máscaras, que não pode ser reduzido a uma sim p l es fu n ç ã o , a d o i n d i v íd u o , m a s s e e x a ce r b a n o s m ú l t ip l o s

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p a p é is q u e a p e s s o a (persona ) é c h a m a d a a d e s e m p e n h a r 15. O s p a p é i s p o d e m v a r ia r . Su ce s s iv a m e n t e , o u c o n v e r g e n t e m e n t e , ele s d i z e m o b e m e o m a l. E d e s sa f o r m a e x p r e s s a m uma duplicação que adquire sentido no vasto jogo do

t h ea t ru m m u n d i . Jo g o c o m p l e xo , p o l is s ê m ic o , q u e em d i fe r e n t e s fa se s, p o r m e i o d e a n a l o g ia s , c o r r e s p o n d ê n c ia s e s in e r gia s , p e r m i te u m e q u ilíb r i o n ã o m e c â n i c o , m a s e fe t i v a m e n t e o r g â n i co . N ã o e sq u e ça m o s : n a o r g a n i cid a d e "t u d o é b o m " (P. F ey e r a b e n d ) , t u d o se s u s t e n t a , t o d o p a p e l te m , s eu l u g a r . O q u e s er ia u m a p e ç a s e m "v i l ã o " ? O q u e se ria u m m u n d o n o q u a l s ó a s a lm a s b o a s m a n d a s se m ? U m m u n d o t o t a lit á r io , co m ce rt ez a ! O s m i t o s , o s c o n t o s e l e n d a s , o s f il m e s , o t o r r ã o lo c a l, o t r á g ico d a v id a c o m u m — t u d o i st o r e it er a a o n t o g ê n e s e d a v id a i n d i v id u a l e co l e t iv a . T u d o i s t o d iz e r ed i z q u e a o la d o do bem, ali está o mal, ele é um estilo, de arte e de vida, t o d o i n t e ir o , r es su r g i n d o r e g u la r m e n t e n a s h i st ó ria s h u m a  n a s . O b a r r o c o . Já p u d e m o s s eg u i r -lh e o s p a s s os em n u m e  rosas culturas e diferentes épocas. Ao contrário de um espírito clássico, racional e mecânico, espírito redutor e f u n c io n a l , o b a r r o c o é f e it o d e c o n j u n ç õ e s , d e sin e r g ia s , d e polissemia. Para resumir, lembro uma observação do his t o r ia d o r Je a n D e l u m e a u , q u e v ia n e l e "u m a s í n t e s e d a b e  leza, da água e da morte, e uma consciência aguda da fuga d o t e m p o [...] c o m u m a m p l o e sp a ço r e s er v a d o à ilu s ã o , ao s e s p a ç o s a r t i f i ci a l m e n t e d i la t a d o s , a o s c e n á r i o s i r r e a i s ". 16 O flu id o e a m o r t e m is t u r a d o s p a r ? d e s cr e v e r a b e le z a d a t ea jt r a ljd a d e ; T o d o s o s i n g r e d i e n t e : q u e r e s s a l ta m o a s p e c  t o ji v s ó r i o d a p o s i t i v jd a d e d a s c o i s ;;>. M a s , a o m e s m o t e m -

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p o , es ta ilu s ão , q u a n d o p l e n a m e n t e v iv id a , p o d e ser v e t o r de vitalidade ampliada. , A l e m b r a n ç a d a m o r t e , su a e n c e n a ç ã o b a r r o c a , in d i ca m q u e a l o n g o p r a z o o f r a ca s s o é i n e l u t á v e l , a fi n i t u d e es t á a í   m e s m o ] M a s is to n ã o d e ixa d e d a r u m a f or t e in t e n s id a d e a o q u e é v iv id o , p o r si m e s m o , e m d a d o m o m e n t o . S e n t i  m e n t o t r á g i co d a v id a q u e n ã o é n e c e ss a r i a m e n t e , co m o já se d i sse, t íp i co d e u m t e m p e r a m e n t o c o n s e r v a d o r , m a s a n t e s d e u m a s e n s ib i li d a d e tradicional, q u e v ê n o m a l u m e l e m e n t o d o " d a d o " m u n d a n o . Se n s ib ilid a d e q u e , p or is so mesmo, desconfia da temática do poder. Poder sobre o h o m e m , p o d e r s o b r e a n a t u r ez a . P od e r qu e d o m e s ti ca u m e o u t r a . E is to o p r o m e t e í s m o , o t it a n i s m o d a m o d e r n i d a d e . A este respeito, a efervescência barroca assinala a saturação da dicotomia política esquerda-direita. Ambas participam, d e fa t o, d e u m m e s m o "a r q u é t ip o co n s t it u t iv o ": o d o c o n t r o le , d a d o m i n a ç ã o 17. ^

A m o r t e , o d i a b o , o m a l , o a n i m a l , p a s s a m e n t ã o a s er

parte integrante de um conjunto do qual não se pode ar r a n c a r u m p e d a ç o a r b i t r a r i a m e n t e , i n t e l e c t u a l m e n t e . É e s te ' h o l i s m o f u n d a m e n t a l , a r ca ico , t r a d i ci on a l , q u e r es su r g e e m n o s s o s d i as . As p r á t i ca s co t i d i a n a s d ã o t e s t e m u n h o d i s so , a sensibilidade "ecológica" o afirma a sua maneira, fazen do do estrume a expressão natural do ciclo morte-vida. As fantasias musicais também, assim como as dramaturgias c in e m a t o g r á f i ca s d e su ce ss o . O planeta dos m acacos e Guer

ra nas estrelas s ão sa ga s q u e en c e n a m u m m a l q u e n ã o p o  d e m o s ig n o r a r, u m m a l q u e p o d e m o s (d e v e m o s) co m b a t e r , mas que é, estruturalmente, incontornável.

52

  A parte do Diabo

P o d e m o s fa la r , a e st e r e s p e it o , d e u m b a r r o c o p ó s -m o d e r n o v i v e n c i a d o e m p a r t icu l a r p e l as n o v a s g e r a çõ e s, m a s q u e a o s p o u co s v ai c o n t a m in a n d o o c o n ju n t o d a s p r á tica s sociais e revivendo a exaltação das origens, a fecundação p e l o b á r ba r o . C o m o es cr ev e A r th u r R im b a u d , d e u m a f or  ma "inatual" em sua época, mas'que encontra em nossos dias sua pertinência: "Chegou o tempo dos assassinos". U m a e s p é c ie d e a p o c a li p s e a le g r e, d o s m a i s s e r e n o s , d e r r u b a n d o o s v a lo r es e co n ô m i co s p r ó p r i os d o " b u r g u e s is m o ", o t e m p o d a m o d e r n i d a d e , s o ci a li st a o u li b er a l , q u e a p o s ta n a c o n f ia n ç a n a t r i n d a d e la i ca d o P r o g r e s s o , d a R a z ã o e d o T r a b a lh o , O s b á r ba r o s q u e r o n d a m c o t i d i a n a m e n t e n o ss a s s elv a s d e p ed r a n ã o q u e r e m s ab er d a s t e m á t i ca s d a e m a n cipação que caracteriza o judeu-cristianismo em geral e o id e al d e m o c r á t i co d a m o d e r n i d a d e e m p a r t i cu l a r . Ma s, d e d ife r e n t e s m a n e i r a s, e les e n c o n t r a m o s e n t i d o d a consola

ção que, s e g u n d o H õ ld e r li n , p e r t e n c e à "p r ó p r i a t r a g é d i a ". Poderíamos inverter os termos e dizer que a tragédia, a ce it a , é a "p r ó p r i a c o n s o l a ç ã o ” . É o q u e v a m o s e n c o n t r a r nas diversas modulações filosóficas ou religiosas do "dei xar rolar”, no relativismo ambiente e no espírito de tole r â n c ia q u e é s eu co r o lá r io . U m a e s p é ci e d e d i s t a n c ia m e n t o q u e , à m a r g e m d a s o p i n i õ e s e t e o r ia s , a c i o n a u m a s im p a t ia e m e s m o u m a e m p a tia , u m a o u t r a m a n e ir a d e d iz er a c o m p a i xã o q u e e m a n a d as e m o ç õ e s c o m p a r t i lh a d a s , d o s a fe to s co m u n a l iz a d o s . Sã o te n d ê n c ia s q u e a a t u a lid a d e e x e m p l ifica f a r t a m e n t e , e q u e n a d a m a i s t ê m a v e r c o m o id e a l d a p e r f ei çã o i n d i v id u a l o u s o ci et á r i a . E n q u a n t o o s jo v e n s d o s a n o s 6 0 e 70 co n t e s t a v a m o p o d e r d o s m a i s v e l h o s p a r a

Pequena epistemologia do mal

53

t o m a r o se u lu g a r, os jo v e n s b á r b a r o s d e n o s s a s cid a d e s n ã o votam, não se inscrevem nas listas eleitorais. Eles opõem às injunções adultas a passividade dos fumantes, desper t a n d o a p e n a s p o r a lg u n s i n s t a n t e s e m b r in c a d e ir a s v io l en  t as co m a p o l íci a . O b e m d e ix o u d e s e r a m e t a ú n i ca . Já n ão^ p a ss a d e u m e l e m e n t o e n t r e m u i t o s o u t r o s . A p a r t e d o d i a -jb o t e m a í o se u lu g a r. Su a e xp r e s sã o é o p a g a n i s m o a m j! biente/  S e m e l h a n t e r e l a t i v i s m o é, a n t e s d e t u d o , a rela tiv iz a çã o^ , d o Su je i t o a b s o lu t o . D e s t r a n s c e n d e n t a l iz a ç ã o d o e go , c o n s  titutivo do mundo, recusa, como bem indicou Heidegger, : d o c o n c e it o u n iv e rs a l d e h o m e m , q u e n ã o é o u t r o s e n ã o a "d e f i n i ç ã o c r is t ã d e s t e o l o g i z a d a " .18 D e fa t o , o D e u s ú n i c o absoluto, transcendente, criador do mundo, que serve de referência ao Homem dominador da natureza, dá lugar a u m p o l it e ís m o m u lt ifo r m e . E m e s m o a u m "h e n o t e í s m o ": tudo são deuses, os deuses estão em toda parte e se relativizam entre eles. Entre eles, os que celebram os aspectos o b s cu r o s d a n a t u r e za e m su as m o d u la ç õ es h u m a n a s , a n i  mais, cósmicas, i ^ A p o ca l ip s e n ã o si g n ifi ca n e c e s s a r i a m e n t e ca t á s t r ofe . H á u m a e x a l t a ç ã o n o a r . E q u a n d o a s t e c h n o - p a r a d e s , as efervescências musicais e outras efervescências anômicas e n c e n a m o s e lv a g e m , o b á r b a r o , o d e m o n í a c o e o u t r a s f a n  t a sia s a n i m a i s , q u a n d o a p e le , a e p i d e r m e e o s h u m o r e s se e x ib e m , t u d o é fe it o n u m a c er t a in o c ê n c ia b e n i g n a e co m u m a i n e g á v e l v it alid a d e ^ A t e a t r a l íz a ç ã o d o d a i m o n é u m a b o a m a n e i r a d e d o m e s t ic á -l o , d e p r o t e g e r - s e d e le., V e lh a s a b ed o r ia p o p u la r q u e afir m a q u e m a is v a le c o m p o r co m a

54

  A parte do Diabo

s o m b r a d o q u e n e g á - la . N ã o fu g i r d e la , m a s p a s s a r at r av é s d e l a , "nicht'raus, so n d em du rch” (C . G . Ju n g ) . P o s i çã o p o u c o c o n f o r tá v e l , é v e r d a d e , m a s a in d a a s s im s a b e d o r i a , q u e , n o d ia -a -d i a , h o m e o p a t iz a o m a l at é fa z er c o m q u e p r o p o r  c io n e o b e m d e q u e t a m b é m é p o r t ad o r .

Notas do Capítulo I

  Le Conflit, P a r i s , P U F , 1 9 8 3 , p . 9 3  9 9 . C f . t a m b é m m e u l i vr o  L'Instant êternel, le retour du Iragique dans la socictépostmoderne, P a r i s , D e n o é l , 2 0 0 0 , e u m a b o a a p r e s e n t a ç ã o a c a d ê m i c a , J a c o b ( A . ) , 1' iiom m e et le Mal, P a r i s , C e r f ,

1. Freund (J),

1998.

  Roí du monde, P a r i s , G a l l i m a r d , 1 9 5 8 , p . 2 4 . S o b r e a s f e s t a s " c o r r o b o r i " , c f . D u r k h e i m ( E . ) , L e s Formes éíémentaires dela viereligieuse, P a ri s , r e e d . L i v r e d e P o c h e , 1 9 9 1 .

2 . C f . G u é n o n (R .), Le

N o p r ef áci o e u d e s e n v o l v o a i n t e r p r e t a çã o co n t e m p o r â n e a q u e podemos ter dessa "efervescência". 3 . C f . M i c h e l Fo u c a u l t , La

Volontédesavoir, P ar is , G a l l i m a r d , 1 9 7 6 .

4 . C f . a e x ce l e n t e f e r r a m e n t a d e t r a b a l h o q u e é o l i v ro d e J.P . Goudailler.

S y n chron ocité et Paracelsia, P a ri s , A l b i n M i c h e l , 1 98 8, p . 1 7 1. S o b r e o o r i e n t a l i s m o , cf . L e Q u é a u ( P .) ,  La Tentation bouddhiste, P a r i s , D e s c l é e d e B r o u w e r , 1 9 9 8 . 6. Kant (E.), Essai pour intreduire en philosophie le concept de grandeurnégative, V r i n , P ar is , 19 4 9, p . 76 . C f. t a m b é m T h o m a s L.V.,   La M ort africaine, idéologie fu n éraire en A frique noire, 5 . C f . J u n g (C . G . ),

Paris, Payot, 1982, p. 21.

  A parte do Diabo

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7. C f. o p r e f á ci o d a n o v a e d i ç ã o d e m e u l i v r o  Le

Temps des tribus

( 1 9 8 7 ) , Pa r is , La T a b l e R o n d e , 2 0 0 0 . C f . t a m b é m T a c u s s e l ( P.),

Charles Fourier, Le Jeu des passion s, P a r i s , D e s c l é e d e B r o u w e r , 2000 .

8. Gênesis 1, 3.

V olon té de savoir, P a r i s , G a l l i m a r d , 1 9 7 6 ; cf . t a m b é m Br e s ( Y. ),   La Souífrance et le Tragique, Paris, PUF,

9 . C f . F o u c a u l t (M . ) , La 1992.

1 0 . C f . D o d d s ( E . R . ) ,  Les

Grecs et 1'hrationnel, P a r i s , G a l l i m a r d , p . 46 . So b r e o c o n t r a d i t o r i a l , cf . D u r a n d (G . ),   Les Structures an t hiop ologíqu es de 1’im aginaire ( 1 9 6 0 ) , P a r i s , B o r d a s , 1 9 6 9 , posfácio.

1 1. P a r a u m a a p l i c a ç ã o d e s s e " t r a j e t o " à i n i c i a ç ã o , cf . D u r a n d ( G .),

Un com t e sous 1'acacia, J . d e M a i s t r e , P a r i s , E d i m a f , 1 9 9 9 . S o b r e a "prívatio boni", cf . F r a n z ( M . L . v o n ) ,  La Voie de 1'lndividuation dan sles con tes defées, P ar i s, La F o n t a i n e d e P i e r r e, 1 9 7 8 , p . 1 5 4 . C f . t a m b é m C a u t a e r t s ( M . ) , Couples des dieux, couples des hom ines, D ela m y t bologieà lapsychan aly se du quotidien , L o u  vain, De Boeck, 1999, p. 108. 12. F,m meio a uma vasta literatura, podemos citar Vattimo (G.),

Espérer croire, P ar i s, S e u i l, 1 9 9 9 . C f . t a m b é m B o n n a r d e l (F.), Philosophie de 1'alchimie, P a r i s , P U F , 1 9 9 0 , o u a i n d a E v o l a ( J . ) , Orientei Occiüent, M i l ã o , A r c h é , 1 9 8 2 , p . 1 5 7 . 1 3 . C f . S t r o h l ( H . ) , i n S a n s o t ( P . ) e t alii, l/ Espace et son double, P a r is , Le C h a m p u r b a i n , 1 9 7 8 . 14. C f. C o m b e s (M . ), S i m o n d o n ,

.

lndiv idu et collectivit é, Paris, PUF,

1999, p. 12.

  La Conquête du présent  ( 1 9 7 9 ) , P a r i s , D e s c l é e d e B r o u w e r , 1 9 9 9 , e  Le Temps des tribus ( 1 9 8 8 ) , P a r i s , L a T a b l e

15. Maffesoli (M.), Ronde, 2000.

  L’Italie, de Botticelli à Bonaparte, P a r i s , 1 9 8 0 , p . 2 5 5 . C f. t a m b é m D ’O r s (E),  Du Baroque, P ar i s, G a l l i m a r d , 1 9 3 5 . 1 7. C f . a a n á l i s e d e J. d e M a i s t r e p o r S l a m a (A. G . ),   Les Chasseurs d'absolu, P a r i s , G r a s s e t , 1 9 8 0 , p . 1 9 2  2 0 0 . C f . t a m b é m C h a o y i n

1 6. D e l u m e a u G ).

S u n e D u r a n d (G . ), "D u c ô t é d e la m o n t a g n e d e l ' Es t ", i n

Pequena epistemologia do mal

57

M on t agn e im aginaiie ginaiie, s o b a d i r . d e S i g a n o s ( A . ) e V i e r n e ( S . ) , Grenoble, Ellug, 2000, p. 69. 1 8 . H e i d e g g e r (M (M . ) ,

Êtis et temps, t r a d . f r a n c e s a M a r t i n e a u H . C . ,

Authetica, 1985, p. 58; cf. também a posição crítica de Losurdo ( D . ) ,  Heidegger 81.

et 1'idéologie de Ia gueire, P a r i s , P U F , 1 9 9 8 , p .

C a pít u l o

II

O CO N F LITO ESTRU ST RUTU TURA RAL L

" Todavia, as guerras

ocorrem qua ndo são necessárias; e depois as colheitas voltam a brotar." flEGEl.

A FORÇA DO VAZIO E xi st e m d iv e r s o s tip o s d e v i o lê n c ia . O f a n t a s m a d e su a s m a  nifestações está muito disseminado, e do ponto de vista teórico é extremamente delicado privilegiar um de seus a s p e c t o s e m r e l a ç ã o a o u t r o s . S o b m u i t o s a s p e c t o s , a vio

lência totalitária p r ó p r i a d o E s t a d o , d a o n t o l o g i a , d a s i n s  tituições e de seus diversos representantes não pode ser co n s i d e r a d a p r e fe r ív e l à v i o l ê n c i a a n ô m i c a d o s "m a r g i n a i s " d e s u b ú r b i o . M a s n ã o é e st a a q u e s t ã o . O i m p o r t a n t e 6 o b s e r va r o a s p e c t o e s tr u t u r a l , a n t r o p o l ó g i c o d a v i o l ê n c ia . M a i s uma banalidade que ê importante lembrar, pois se ela é reconhecida da boca para fora, parece muito difícil aceitar su a s c o n s e q ü ê n c ia s s o cia is o u in d iv i d u a is .

  A parte do Diabo

62

C o m o e st r u t u r a a n t r o p o l ó g ica , a v i o lê n c ia é ce r t a m e n t e u m b o m e x e m p l o d o a s p e ct o in d i vis ív el d o d a d o m u n d a n o . E m t od a s as co i sa s e x is t e u m m i s t o d e a t r a çã o -r e p u ls a , a m o r -ó d i o , g e n e r o s id a d e e e g o ís m o . Ba st a o l h a r u m p o u c o m a is d e p e r t o p a r a c o n s t a t a r q u e os s e n t i m e n t o s m a i s e le  vados são permeados de seu contrário. Também aqui há lu c id e z e m r e c o n h e c e r s e m e l h a n t e r ea lid a d e , a in d a q u e a p e n a s p a r a m e l h o r c o r r i g ir se u s e fe it o s. O q u e r e d u n d a — p a ra co l o c á -l o em t e r m o s a l g o m a is a b r u p t o s — e m a ce it a r o q u e a b i o lo g i a m a i s co n t e m p o r â n e a fr isa , a s ab e r , q u e n a o r ig e m d o p r o ce ss o d e h o m i n i z a çã o e xis te u m a c o n t r a d i  çã o fu n d a m e n t a l e n t r e o c o m p o r t a m e n t o d o p r im a ta frugívoro, omnívoro, de um lado, e, do outro, o carniceiro terrestre1. Hiato fundamental que vamos encontrar ao longo de t o d a a c u l t u r a . O s m i t o s n ã o f a l a m d e ou t r a c o is a , as h i s t ó r ia s h u m a n a s r e s so a m c o m as c o n s e q ü ê n c ia s d e ss a co n t r a d i  ç ã o . E a g r a n d e i n t u i ç ã o n i e t z s c h i a n a , b a s e a n d o a c iv i l iz a ç ã o 'grega no antagonismo entre o apolíneo e o dionisíaco. À sua maneira, Lévi-Strauss mostra bem o aspecto "dilemát i c o " d e t o d o d i s cu r s o m í t ic o . Se ria p o s sív e l e n u m e r a r i n f i  n i t a m e n t e e x p r e ss õ e s n e s t e s e n t id o e n t r e n u m e r o s o s pensadores importantes, unânimes em frisar o aspecto tensional entre as polaridades diversas. Mas quem diz po la r i d a d e , n a t u r a l m e n t e , d i z c o m p l e m e n t a r i d a d e , c o i n cidência, oposição entre elas. O p r ó p r io d o t r i g i co , q u e b e m t r a d u z a p r e s e n ça d e u m m a l i n c o n t o r n á v e i , r e fe r e -s e e s s e n c i a l m e n t e à fo r ç a d a a lterid?de, ou seja, ao fato d 2 que em cada coisa, em cada

O conflito estrutural

63

situação, existe seu contrário. Contrário que não se pode negar ou denegar. Pode-se, é bem verdade, estigmatizá-lo, t r a t a r d e m a r g i n a l iz á - lo e r el a ti v iz á -l o, m a s , a i n d a q u e e m fo r m a d e s o m b r a , e le es tá p r e s en t e . A té m e s m o o D e u s d a t r a d i çã o o c i d e n t a l é o b r i g a d o a to l er á - lo , n a p e s s o a d e Sa t ã . A liá s, p o d e r i a e x i s t i r s e m e le ? O q u e p o d e m o s c h a m a r d e totalitarismo ontológico (D eu s , Ser , p e r f e iç ã o ) n u n c a p ô d e afir m a r -s e p o r m u i t o t e m p o . A i m p e r f e iç ã o é a e x p r e s s ã o d e u m m a l, m a s d e u m m a l d i n â m i co . N ã o d e v e m o s e s q u e c e r q u e Er os, es ta g r a n d e fi g u r a e m b l e m á t i ca , é , a n t e s d e t u d o , in s t i g a d o r d e i n q u i e t a  ção. E o que se lê nos contos e lendas; c o que se vive, de m ú l t ip l a s m a n e ir a s , n a v i d a c o t id i a n a . Er os é o a r q u é t ip o d a im p e r fe iç ã o , d o e q u i lí b r io c o n fl it u o s o , d e u m a s e d e d e a lt er id a d e q u e p e r s e g u e t u d o e t o d o s . Er os p e r t u r b a d o r e i n q u i e t o o u o D i a b o d e i x a n d o cla r a , p a r a se m p r e , a i m p e r f e i çã o d a c r ia ç ã o : a lg o q u e m o s t r a p e r  fe i t a m e n t e q u e u m a e n t id a d e , se ja q u a l fo r, n ã o p o d e sa t i s fa z er -s e e m si m e s m a o u c o n s i g o m e s m a . Se rá s e m p r e t r a b a l h a d a p o r se u c o n t r á r i o . Lú c ife r , n e s t e s e n t i d o , i lu s t r a o descontentamento de Deus em relação a si mesmo. Po demos considerá-lo a projeção de sua própria dúvida. Esta temática foi analisada pela tradição jungiana, que insistiu na zona das sombras, neste deus obscuro que é Satã, no p r ó p r io fa t o d e s er " a i n s t a b i li d a d e i n t e r n a d e l a v é " a p r ó  pria condição da criação2. E xis t e u m a i d é i a fo r t e , a u d a c io s a , co r a jo s a , q u e m o s t r a a lig a çã o e x is t e n t e e m D e u s en t r e a b o n d a d e s u p r e m a e a crueldade não menos real. Esta "idéia-força" pode encon

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  A parte do Diabo

t ra r m ú l ti p l a s a p l ic a çõ e s n a v id a c o t id i a n a , n a q u a l es ta a m b i v a l ê n c ia t e m u m a r ea lid a d e g r i t a n t e . Em s u m a , n ã o e x i s t e e s t a d o i d e a l . Se ja e s t e p o l í t ic o , s o c i a l o u i n d i v i d u a l , es t á s e m p r e so b a m e a ç a d e e n a n t i o d r o m i a , es ta t r a n s f o r m a ç ã o no oposto que pode explicar as sinceridades sucessivas (logo, as traições) no amor, a versatilidade das massas na o r d e m p o l í ti ca , a s m ú l t ip l a s m u t a ç õ e s , m e t a m o r f o s e s , t r a n s  fo r m a ç õ e s n u m a ca rr eir a h u m a n a , u m a s ér ie d e co is as q u e significam, em suma, que se está sempre em outra parte. P ar a d iz ê -lo e m t e r m o s r i m b a u d i a n o s , "e u é u m o u t r o ", e n ã o p o d e r ia c o n t e n t a r - se c o m u m a p r i sã o d o m icilia r . É esta a força da alteridade. É este o aspecto estrutural d a v i o l ê n c ia e d o s e n t i m e n t o t r á g ic o d a v i d a q u e lh e se rv e d e e x p r e s s ã o . O o u t r o e st á aí e é n e c e s s á r i o c o m p o r c o m e le . Es t e a c o r d o n ã o p o d e se r a priori, e l e s e r e a l i z a s e m p r e a o s p o u c o s , a posteriori. P o r i s s o é q u e t o d o s o s s i s t e m a s que pretenderam regulamentar, teoricamente, a relação c o m a a lt e r id a d e , e is to e m n o m e d e b o a s i n t e n ç õ e s , e s b a r  r a r a m n a ir r e d u t ib ilid a d e d o m a l. Em c o n t r a p a r t i d a , o re c o n h e c im e n t o d e st e , r e c o n h e c im e n t o s e m p r e e m p ír ico , permite uma postura existencial ao mesmo tempo mais completa e, no fim das contas, mais serena. A o c o n t r á r i o d a s e p a r a ç ã o e n t r e a s t r e v a s e a lu z , a coin-

cidentia oppositorum ( N . d e C u s a ) é i n t e g r a d o r a . E x i s t e n e s t a p a l a vr a e xt r e m a m e n t e sim p l e s — integração — u m a e s t r a t ég i a c o m p l e x a d e e fe it o s a i n d a i n s u s p e i t a d o s . A s e p a  r a ç ã o , o c o r t e — e m s u a s d i v er s as m o d u l a ç õ e s , i n c lu s iv e a e p i s t e m o l o g ia — é u m a c o n s t r u çã o in t e l e c t u a l , u m v i slu m b r e d o e s p í r i t o . E l a r e m e t e a u m a libido sciendi s e p a r a d a

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d a v i d a . Já a in t e g r a ç ã o é a n t e s d e t u d o e m p í r ic a . Ela p a r t i cip a d e u m a libido sentiendi, e a s p a la v r a s q u e a d i z e m t ê m s a b o r d e c a r n e . E st ã o e n r a iz a d a s . N e s t e s e n t i d o , o e m p r e g o político da palavra integração desconsidera a realidade; aceitar o estrangeiro não é transformá-lo em clone de siv m e s m o , m a s, a o co n t r á r i o , a d m it ir q u e su a d ife r e n ça t e n h a ^ um efeito sobre a sociedade, que a alteridade perdure. Re c o n h e c e r o a s p e c to e s tr u t u r a l d o m a l é p a r t icip a r , n o s e n t i  d o m í s t ic o d o t e r m o , d a fo r ça d a s co i sa s e d o p o d e r d a v id a . F o r ça e p o d e r p l u r a lis t a s e p o l is s ê m i co s p o r e s s ên c ia . I n s i st a m o s n e st a n o v a p e r s p e c tiv a s en s i t iv a . E x p e r i m e n t a n d o - a , s o m o s ca p a z e s d e in t e g r a r u m a c r é s c im o d e v id a , e i s to e m t o d o s o s s eu s a s p e c to s , i n c lu s i v e a s f o r m a s d o m a l estar que podemos qualificar de desamparo. E um lugarc o m u m a fir m a r q u e a e x p e r i ên c ia n o s e n s in a . E aí q u e o s p s icó lo g o s m a i s in s p i r ad o s fu n d a m o m e l h o r d e su a s a n á  li se s. A p s i co l o g i a a b i ss a l, n a l i n h a g e m d e C . G . Ju n g e m p a r t i cu la r , b u s c o u a í u m a f o n t e d e i n s p ir a ç ã o d a s m a is p r o  m is s or a s . E t a m b é m o s m ís t ic o s, q u e n ã o d e ix a r a m — d e fo r m a p a r o xís t ica , a ce n t u a n d o o q u e é v i v e n c ia d o i n t i m a  m e n t e p o r q u a lq u e r u m — d e fr isa r co m o o c a m in h o e s  t r e i t o p e r m i t e c h e g a r a o s u b l i m e : ad augusta p er angusta. D a "n o i t e e s c u r a " d e Sã o Jo ã o d a C r u z à s "p u r i fi ca ç õ e s p a s  s iv a s " d a Sr a . G u y o n , sã o m u i t a s as e x p e r i ê n c ia s q u e v a l o  r i z a m o f e l i z p e c a d o (felix culpa ) q u e p o d e m o s e n t e n d e r c o m o u m a e s p é cie d e e n r i q u e c im e n t o p e la p o b r e za d o es pírito, pelas vicissitudes do corpo. Numa perspectiva filosófica, temos, naturalmente, N ie t z s ch e : "O q u e n ã o m a t a f o r t a l e c e ." E, s e m d e m a s i a d o

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  A parte do Diabo

p a r a d o x o , ca b e l e m b r a r e s ta t e m á t i ca r e c o r r e n t e e m H e g el: "A v id a d o E sp ír i to n ã o é a v id a q u e r e cu a h o r r o r i z a d a a n t e a m o r t e e m a n t é m - s e p u r a d a destruição, m a s a q u e a s u  p o r t a e se m a n t é m n a p r ó p r ia m o r t e . O Es p ír it o s ó c o n q u i s t a su a v e r d a d e e n c o n t r a n d o - s e p o r su a v e z n o dilaceramento a b s o l u t o . .. O E sp ír i to s ó é e st e p o d e r q u a n d o o l h a fr e n t e a f r e n t e o negativo e m o r a n e l e . Est a es ta d a é o p o d e r m á g i  co ( Zauberkraft ) q u e t r a n s f o r m a o nada em ser3." Os ter m o s e m p r e g a d o s , d e u m a f or m a la n c in a n t e , s ã o r e v ela d o r e s, mostrando efetivamente em que medida só pode haver v e r d a d e ir o p o d e r n e ss e co n f r o n t o c o m a s fo r ça s m i st e r io  sa s q u e co s t u m a m se r co n t r a p o s t a s à v id a . Eo rça s m is te r io s a s n a m e d id a c m q u e t a m b é m c o n s t i  tuem o ser-junto. O mistério é o que une os iniciados. E p o d e m o s d iz er q u e o t r á g ico , d e fo r m a s o r r a te ir a , é e s t r u  t u r a l m e n t e é t i co . Se a h i s t ó r ia é a t e o r ia d a s u p e r a ç ã o d o | " m a l ", o d e s t i n o se r ia a i n t e g r a ç ã o d e s s e m a l . E o q u e p e r m i t e e n t e n d e r o s u r g i m e n t o d e ss a s c o m u n i d a d e s d e d e s t i n o c o m u m (t r ib o s ) q u e h o je e m d ia se a f ir m a m ca d a v e z m a is . P o d e m o s e n t ã o e n c a r a r d e ou t r a m a n e ir a c er t a s p r á\ ft ica s a g r e ss iv a s . P e g a s, co n f r o n t o s c o m a p o l íc ia , q u e b r a - q u e b r a s e t c. c o n s t it u e m m e n o s u m a c o n t e s t a çã o q u e u m a   jiniciação, menos uma reivindicação que uma espécie de \ p r át ica r it u a l ís t ica . As p r o v a s , v i v e n c ia d a s e m c o m u m , s ã o u m e lo in t a n g í v e l e n t r e o s in d iv íd u o s . Po r q u e n ã o t e r e m m e n t e q u e , a l o n g o p r a z o , a lg u ;r -a c o is a d e ss a o r d e m c i m e n t a os c o n ju n t o s s o cia is ? A . a i u r a ç ã o d o s g r u p o s o u e t n i a s o p r i m i d a s r n i lit a n e s t e s e n t i d o . Se ria d e m o r a d o e s t a b e l e c e r u m a l is ta d o s p o v o s

g

-ie sobrevivem a diferen-

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tes formas de opressão. As carnificinas, os genocídios, a Sh o a , m o s t r a m o "p o d e r m á g i co " d e t od o e q u a lq u e r c o n fr o n t o co m o n ad a . T u d o is to co n s t it u í u m a i ig a çã o or g â n ica , u m s e n t i m e n t o d e v i n c u l a çã o , u m a e x p e r i ê n c ia co le ti v a , u m a m e m ó r i a im e m o r ia l q u e é t u d o m e n o s i n te le ct u a l, p a r t icip a n d o d e s  sa libido sentiendi q u e t e m o s a b o r d a d o . T r a t a - s e e f e t i v a  m e n t e d e u m a l ig a ç ã o o r g â n i c a , p o i s r e m e t e à t er r a q u e lh e serve de receptáculo. Esta terra na qual estamos, para reto m a r u m a t e m á t ic a h e id e g g e r ia n a , n a q u a l fo m o s "jo g a d o s ”   juntos. É este sentimento de destinos comuns que consti tui a ética primordial. A terra,'de fato, corrobora a "pleni t u d e d o n a d a a b s o l u t o " (F. P ess oa ), p r e c i sa m e n t e n a m e d i d a e m q u e n o s le m b r a o h ú m u s d e q u e está im p r e g n a d a a n a  t u r e z a h u m a n a . A t er r a s i g n i fi ca o ci cl o d a m o r t e e d a v id a . É es te, em m i n h a o p in i ã o , o fu n d a m e n t o d o in c o n s c ie n t e c o le t iv o d e q u e a m o d e r n i d a d e p o u co se t e m o c u p a d o , m a s q u e já p e r c e b e m o s n ã o s e r m a i s p o ss ív e l ig n o r a r . A t er r a é u m c o n s t a n t e l e m b r e t e d o ci cl o d a m o r t e e d a vida. Metamorfose contínua, ela favorece o crescimento o r g â n i co d e u m p o v o , e n c a r n a n d o a id é ia q u e u m a c o m u n i d a d e t e m d e s i m e s m a . E l a é o  fundo, v a l e d i z e r , o s u b s  t r a t o s o b r e o q u a l es t a p o d e cr e s ce r . É t a m b é m o se u  fundo,

o "c a p i t a l " q u e l h e p e r m i t e ser o q u e é. Já se d i s se d o s p i n t o r e s r o m â n t i co s , c o m o C a r l G u s t a v Carus e Caspar David Friedrich, que inventaram a "tragé d i a d a p a i s a g e m ”4. Be la e x p r e s s ã o , q u e in s i st e , e v i d e n t e m e n t e, n o s e n t i m e n t o t r á g ico p r o v o c a d o p e lo a m b i e n t e n a t u r a l q u e en q u a d r a o a m b i e n t e s o ci al . A p a i s a g em , q u e já e n t ã o

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  A parte do Diabo

n a d a t e m d e s u p e r f ici a l, é e s s ê n c i a d o s a g r a d o , c a u s a e e f e i t o d o m i s t é r io s o c ie t á r io . Não podemos esquecer que o mistério é inquietante:

m y s t e n u m t r e m e n d u m . O u s e ja , ele é a n a m n e s e d a m o r t e o n i p r e s e n t e . E t a m b é m d a v io l ê n c ia . O e s p e t á c u l o d a n a t u r ez a fo r n e c e m u i t o s e xe m p l o s n e s t e s e n t i d o , d a s v i o lê n c ia s climáticas — terremotos, inundações, seca e outras catás t r o fe s d o g ê n e r o — às v i o lê n c i a s d e q u e a v id a a n i m a l é t ão p r ó d i g a . É e s t a a t r a g é d i a d a v id a o r g a n i c a , d a n a t u r e z a . M a s n e m p o r is so é m e n o s v er d a d e q u e e s te v a z i o p o t e n c ia l t e m sua própria beleza. Beleza de "tirar o fôlego", de uma bela paisagem, da selvageria de determinado lugar, da brutali dade animal. O vazio é fonte de sublime, e nosso espírito a n i m a l o a p r e c ia c o m o t al. O "c é r e b r o r e p t i l ia n o " d e d e t e r  minada comunidade específica funciona segundo este su b l im e . E é es ta m e m ó r ia q u e a c o n s t it u i c o m o c o m u n i d a d e . E nos conformando a tais premissas que podemos enten d e r cm q u e a v i o lê n c ia é fu n d a d o r a . Ela é u m m o m e n t o d a dialética sem fim que une o caos ao cosmo. Tudo isto tende a frisar a ambivalência da morte como d a v id a . C a d a u m a c o n t é m o se u co n t r á r i o . M o r t e e r es su r  r e içã o , lu g a r - co m u m d o s e n t i m e n t o e, p o r t a n t o , d a s d o u  t r in a s r e l ig i os a s . M o r t e e r e s s u r r e i çã o e s t r e i t a m e n t e lig a d a s . O r d e m e d e s o r d e m , f u n c io n a m e n t o e d is fu n çã o , cu ja f e cu n  d a s in e r g i a c o m e ç a a ser a p r e ci a d a . C o m o a f ir m a J.-P . I )u p u y , "p o d e -s e a v e n t a r a h i p ó t e s e d e q u e a co n d i çã o 'n a t u r a l ' da ação é desembocar no trágico, e que é a 'cultura' que impede que seja sempre assim5". Tudo bem, exceto que a d ic o t o m i a m o d e r n a "n a t u r e z a -c u l t u r a ” já n ã o é tã o in t a n -

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g ív e l, e q u e p o r u m p r o ce s so d e cu l tu r a l iz a ç ã o d a n a t u r e z a , o u d e n a t u r a l iz a ç ã o d a c u l tu r a , o t r á g i co s e ca p i la r iz a t a m b é m n a c u l tu r a e m g er a l, e e m p a r t ic u l a r n o s d i v e r so s a to s da vida social. Disto dão testemunho os trabalhos de Ed g ar M o r i n s o b r e a c o m p le x id a d e e d e G ilb e r t D u r a n d s o b r e o trajeto antropológico. Verifica-se ambivalência, reversib i l i d a d e ,  feed-back, r e t r o a ç ã o , e x a t a m e n t e o n d e s e h a v i a e s t a b e l e c id o u m a d iv i sã o e s tr it a . É e s t e o c ic lo o r g â n i co d a ■ m o r t e e d a v id a . Toda a cultura ocidental — e sua consumação moder n a é u m e x em p lo r e m a t a d o d is to — r ep o u s a v a n a t en s ã o para a liberdade. Ou seja, na superação progressiva das li m i t a ç õ e s q u e v ê m a s er as d i ve rs a s a l i e n a ç õ e s , s e n d o a m o r t e o resumo paroxístico destas. Tratava-se, portanto, dc che g a r a u m m u n d o l i v r e d e s u a s violências naturais. O ciclo o r g â n i co d a v id a e d a m o r t e, d a o r d e m e d a d e s o r d e m , e m suma, a temática do trágico está aí para nos lembrar, no m o m e n t o o p o r t u n o , q u e a limitação 6 t a m b é m u m a m a - •t n e ir a d e e n c a r a r o a s p e c t o n a t u r a l d a c u l t u r a . P a r a d iz ê -lo c m t e r m o s ló g i co s , só e x is t e v id a s e e x i s t e d e t e r m i n a ç ã o ^ A vida não pode ser indefinida nem infinita; ela precisa de li m it e s. N e s te se n t i d o , a e t im o l o g ia l a t i n a d o t e r m o determi-

natio é i n s tr u t iv a . É o m a r c o q u e os r o m a n o s e s t a b e l e ce r a m para delimitar a terra cultivada em relação ao indefinido d a t e rr a i n c u l t a . O li m i t e , p o r t a n t o , p e r m i t e se r. P e r m i te q u e o_t_rijgo brote. É a p e n a s u m b e lo a p ó l o g o , m a s le m b r a o p a p e l fe cu n d a n t e d a li m i t a çã o . O m a r c o c o n s t it u i u m a v i o lê n c ia . V io  lê n c ia q u e é fo n t e d e v id a . É o q u e q u a l q u e r u m s a be

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  A p a r t e d o Di a b o

e m p i r ica m e n t e . É t a m b é m e st e "s a b e r i n c o r p o r a d o " q u e c o n s t it u i a s o cie d a d e . P r e cis a m o s p o r t a n t o , d a r n o m e s a os b o is : a v i o lê n c ia é u m e l e m e n t o e s s en c ia l d a c o n s t r u ç ã o s im b ó l ic a d o s o ci a l: p r e c is a m e n t e n a q u i lo e m q u e ela n o s lig a , o u n o s r elig a , à n a t u r e z a . É a lg o q u e q u i s e m o s e s q u e ccr , o u q u e n e g a m o s . Em "a n i m a l h u m a n o ” h á t a m b é m "a n im a l ". Em " n a t u r e z a h u m a n a ” h á t a m b é m "n a t u r e z a ” . E a s a b e d o r i a p o p u la r , m a i s se n t id a q u e t eo r iz a d a , n a t u r a l  m e n t e i n t e g r o u e ss e d a d o b á s ic o . É i st o o b o m s e n s o , o s e n s o c o m u m , a "s e n s o - co m u n o l o g i a ” (Sch o p e n h a u e r ) q u e é e x  t r a o r d i n a r i a m e n t e t o le r a n t e , d i g a m o q u e d i ss er e m o s d ir i gentes sociais que a manipulam, frente à insegurança da v id a . Se m ela , o t é d i o p r e v a l e ce r ia . N ã o p o d e m o s in t e r p r e  t a r d e o u t r a f o r m a o e x t r a o r d i n á r i o in t e r e s s e d a t e l e v is ã o e de seus espectadores por todas as formas de catástrofes n a t u r a i s. O m e s m o n o q u e d iz r e sp e i to ao s a c id e n t e s r o d o  v iá rio s, q u e só sã o m e n c io n a d o s q u a n d o p a r t icu la r m e n t e m o r t ífe r o s o u q u a n d o a c o n t e c e m n u m t ú n e l, co m t od a s as c o n s e q ü ê n c ia s q u e c o n h e c e m o s . N ã o fo ss e e s te fa s c ín i o p e la i n s e g u r a n ç a , c o m o e n t e n d e r o p e r m a n e n t e su ce ss o , e m t o d a s as cu l tu r a s , d o s b a n d i  d o s d e h o n r a , o s Ro b in H o o d , M a n d r in e L a m p i ã o ? C o m o a n a l is a r a s i n g u l a r ji t r a çã o p e lo s cr im e s s a n g r e n t o s , e l e m e n t o s es s en c ia i s d a i m p r e n s a p o p u l a r , ou a s p i ca n t e s fo f o ca s d e s o cie d a d e d a i m p r e n s a d a s cla ss es m é d i a s ? C o m o i n t e r p r e t a r a a u d iê n cia n u n c a d e s m e n id a d e soap o peras, s e r i a  do:- e telenovelas*, sempre construídos em torno da

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e n c e n a ç ã o d e d ife r e n t es to r p ez a s h u m a n a s ? V a m o s e n c o n t r ar a ca d a v e z o m it o l o g e m a d e u m a v i o lê n c ia i n c o n t o r nável, de um conflito antropológico, em suma, da morte o n i p r e s e n t e . E n c o n t r a m o s o s o m e a fú r ia d o P a n t e ã o g r e  g o , ou d a s m i t o l o g i a s d a s o u t r a s c u l t u r a s . Se o m i t i r m o s e s  s es co n f li t o s , s e n e g a r m o s s u a e f ic á ci a , es se s m i t o s p e r d e m t o d o o s e n t id o . O

m e s m o n o q u e d i z r e s p e it o à v id a c o t id i a n a . Ela é p e r 

meada por conflitos que lhe conferem toda a sua inten s id a d e . É m e s m o p o s s ív e l q u e a s m ú l ti p l a s v ic is s it u d e s e x p l iq u e m o i m p u l s o ce g o q u e p r o je t a e m d ir e çã o à v id a . U m q u e r e r -v i v er o b s t i n a d o , p r e fe r in d o a e x is t ê n c ia t a l c o m o ela é, a p es ar d e tu d o . T a m b é m p o d e m o s n o s p e r g u n t a r se não foi a prevalência do cognitivo, a ênfase numa inteli gência racional que impediu que a tradição judaico-cristã e n t e n d e s s e a im p o r t â n c i a d e u m t a l v it a lis m o . A c o n t e ce q u e a e n e r g i a d e ss e v i t a li s m o r e p o u s a , e s t r u t u r a l m e n t e , n a a n t in o m i a d o s v a lo r es , n o p o l it e ís m o d o P a n t e ã o , n o q u a l ca d a e n t i d a d e só p o d e ex is tir e m f u n ç ã o d e se u c o n t r á r i o . C o m o b o m t e ó r ico d a v io lê n cia , q u e e n c o n t r a m o s n a a m b i v a lê n c ia a m ig o -in i m i g o. Ju l ie n Fr eu n d d e m o n s tr o u b e m c o m o o c o n flit o é "d a o r d e m d o v i v id o " e q u e é g r a ça s a e s t e co n f li t o q u e o v i v id o v ai e n c o n t r a r , d e fo r m a m a i s o u m e n o s co n s cie n t e , "u m a a c o m o d a ç ã o e s p o n  taneamente maquinai". Pode parecer paradoxal, mas para a l é m d a t eo r ia p u r a m e n t e u n a n i m i s t a , t rib u t ár ia d e u m a m e  cânica dialética que precisa superar as contradições para ch e g a r à s ín t e se a p r e s en t a d a c o m o u m id e al, n ã o p o d e m o s c o n s t a t a r , e m p i r i ca m e n t e , q u e a v id a d e r iv a a n t e s d a t e n s ã o 6?

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P a r a d e s c r e v e r e s ta t e n s ã o , S. L u p a s c o e G . D u r a n d f a l a  r a m d o "c o n t r a d i t o r ia l ". Plu r a l, v iv o e v iv i d o , n a d a d e v e n d o a o t o t a l it a r i s m o d o U m . E x i s t e d i n a m i s m o , fo r ça , quando a imperfeição é constante, ou seja, quando uma coisa, uma pessoa, uma entidade, uma situação está em d e v ir . Se m jo g o d e p a la v r as , q u a n d o n ã o e s t á a ca b a d a . E xi s t e u m a h o m o l o g i a m u i t o fo r te e n t r e o a n t a g o n i s m o e a p r ó p r i a ló g i ca d a e n e r g i a . N a d a e s c a p a a es t a " l e i ". M e s m o a r e la ç ã o p r i m á r i a q u e é o a m o r e n t r e d o i s s er e s d e v e - lh e o essencial de sua intensidade. A ficção, a poesia, o cinema, a canção, a vida cotidiana, sobretudo, narram fartamente os problemas e vicissitudes dessa tensão. Sem ela, até a a m iz a d e d e fin h a . O m e s m o se d á , n a t u r a l m e n t e , co m a p a i  xão política ou social. Sem ela as peripécias econômicas e a s l u t a s s i n d i ca i s s ã o i n e x p l ic á v e i s . E o q u e d iz e r d a s r e v o l  t as e r e b eliõ e s d e d iv er sa s o r d e n s q u e p e r t u r b a m p o n t u a l  m e n t e a m o n o t o n i a d a v id a co e re n t e? P o d e m o s la m e n t a r o a sp e c to im p l a cá v e l d e s e m e l h a n t e "l e i". Ta m b é m é p o s sí ve l t e n t a r , n a t e o r i a o u n a p r á t ica , limitar seus estragos. É, aliás, o que faz a grandeza da te m á t ica d a e m a n c ip a ç ã o , q u e se e n c o n t r a n a b a s e d e i m p o r  tantes sistemas de pensamento ou de ações políticas não n e g l ig e n c iá v e is . M as n ã o é m e n o s l e g ít i m o , e m ce r t o s m o  m e n t o s , l e m b r a r o ca r át er im u t á v e l d o c o n fl it o e m t o d a s as manifestações da vida, naturais e sociais. Semelhante lu cid e z , q u e e n c o n t r a m o s t a n t o n a o b r a d e M a q u ia v e l co m o n a d e Sp e n g l er , p o r e x e m p l o , m a s t a m b é m n a t e o r ia d a "c ir  c u l a ç ã o d a s e li te s " d e P ar et o, p o d e r e p r e s e n t a r u m c o n t r a p e s o à u n i la t e r a lid a d e d o s b o n s s e n t i m e n t o s 7. É cla r o q u e

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se r ia m e l h o r q u e es te m u n d o c o r r e s p o n d e s se a u m id e a l d e b o n d a d e . M a s s o m o s o b r ig a d o s a r e c o n h e c e r q u e , p a r a re  t o m a r o t e r m o d e H e ge l, es te "a b a t e d o u r p ” q u e é a h is t ór ia é u m a r e a lid a d e in c o n t o r n á v e l. O p r i n c íp i o d e r e a lid a d e ! a q u i fa z s e n t id o , p o i s n o s le m b r a q u e a fo r ça d o q u e "é " r não se dobra, ou só dificilmente, às boas intenções que d e t e r m in a m a b s t r a ta m e n t e o q u e "d e v e r ia s er ". A liá s, é n e g a n d o o a s p e c t o in e l u t á v e l d o c o n f li t o , o u ju l  g a n d o p o s sív e l le v a r a su a r e s o lu ç ã o , q u e t o d a s a s r e v o l u  çõ es co n d u z e m a u m a d it ad u r a m a i s fe r o z d o q u e a q u e la sobre a qual triunfaram. Neste sentido, a história dos dois s é cu lo s q u e a c a b a m d e p a s sa r é in s t r u t iv a , m o s t r a n d o q u e é p o s s ív e l u sa r o p o v o p a r a v e n c e r e s te o b s c u r a n t i sm o o u aquela opressão, mas que infalivelmente se instaura uma o u t r a doxa, u m a o u t r a d o m i n a ç ã o q u e n a d a f i c a a d e v e r à q u e le s q u e c o m b a t e u . C o m o a c o n t e ce e m o u t r o s t e r r e n o s , ^ o i n f e r n o e s tá c h e i o d e b o a s i n t e n ç õ e s p o lít ica s . Na realidade, da vida cotidiana às revoluções, através d o s ex e m p l o s m e n c io n a d o s , a lu c id é z d e v e m u i t o s im p le s -1 m e n t e l em b r a r - n o s q u e o t íp ico d a s in s t it u i çõ e s é e scle ro s ar - ~ s e, o d e s t i n o d a s cu l tu r a s é s e b a n a l i z a r e m e m c iv i liz a ç õ es , q u e p o r su a v ez a m o l ec e m n o c o n f o r t o e n o t éd i o . O r e to r  no do conflito é, então, inelutável. As efervescências, as e xp lo s õ e s co t id ia n a s o u p o l ít ica s le m b r a m , o u t e n t a m l e m b r a r , o m i t o f u n d a d o r , o élan o r i g i n a l , o c a o s a p a r t i r d o q u a l in s t a u r o u -s e o s er -ju n t o . O r e t o r n o c íc li co d a v io lê n -/ /   cia a l i m e n t a -s e d o vazio em q u e se t r a n s f o r m o u o in s t it u í  d o . É a p a r t ir d e s se v a z io q u e e la p r e t e n d e r e fu n d a r o u t r a c o is a . É is t o o q u e r e r -v iv e r . In c o n s c i e n t e d e si m e s m o , n e m

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p or isso deixa d e ser criad or. Ele é um a "força q u e va i", cu jo aspecto con stru tivo só pod e im p orse depois de realizada a obra de sua ação destrutiva. É algo que não deixa de ser angustiante, algo meio trágico, mas é efetivamente neste ciclo q ue se con stitu i tod a criação d igna d este n om e. Deste p on to de vista, a an gú stia é u m elem en to essencial do m ecan ism o da violência. N ão p od em os ignorála. E isto porque ela é, stricto sensu, "in tu ição d o vazio". Vazio r que não é a mesma coisa que nada, mas, antes, condição l de possibilidade d o q u e está p or nascer. O vazio, n este sen  '^tido, é algo a ser vivido. E é vivendoo que podemos chegar a u m sobreviver, a u m "m ais viver". A an gú stia persegu e o criad or. Seja p rofeta, revolu cion ário, artista ou p en sad or, s; ele faz deste conhecimento a base de sua construção ou recon stru ção. Eu disse "in tu ição ": visão d o in terior . Pois só do in terior um a força p od e imp orse. Daí seu asp ecto d oloroso. Talvez seja este o "trab alh o d o n egativ o" (Hegel) ou a "noite escura" (São João da Cruz), a angústia que mina, ob ceca, m as, n o fim d as con tas, leva ao gesto criativo. É para esta conjunção que devemos estar atentos. Ela ch am a a aten ção para o fato de qu e os diversos elem en tos do d ado m u n d an o p articipam de seu equ ilíbrio final. É o que podemos ver, claro, na criação artística, que, deste jxm to de vista, é u m b om p aradigm a do processo qu e des jcrev o aq u i. Para o artista, a an gú stia, a d ú vid a, o m alestar, ' são in strum en tos privilegiados. É igualm en te com eles qu e i ele mod ela sua ob ra. Tratase, natu ralm en te, de u m lugar com u m da reflexão sobre a arte, m as n ão d eixa de ser interessante, n a m edida em qu e dem onstra que tu d o qu e limita, r 

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que entrava, era suma, o que violenta, pode levar a uma realização sublime. O barroco, com o ten h o in dicado com freqü ência, é um a boa ilustração da com p lem en tarid ad e do bem e do m al, da d oçu ra e da violên cia, da som b ra e da luz. É algo de qu e d á con ta a noção d e contrapost em italiano: o q ue se op õe se corresponde, se reforça. Ela está no coração do barroco. E tradu z m u ito claram en te o fato de que a criação n ão se satisfaz com u m a ún ica p erspectiva, um só elem en to, repou sando, ao contrário, na complementaridade. Ela expressa a nostalgia, a angústia de que falamos acima. Aquela que, m esmo p erten cen d o .à esfera dò sofrimen to, não p ode d eixar de integrar tudo qu e constitui a natureza hu m an a. Mesm o o qu e é m on stru oso. Esta m on struosid ad e, este m al, este lado sombrio está aí, onipresente. O que não deixa de redu nd ar n o asp ecto sub lim e que freqü entemen te se atribui ao barroco. Seria possível enumerar muitos exemplos neste sentido. Um único, no entanto: Michelangelo. Especialmente as figuras tumulares dos Médici. Figuras da Noite e do Dia, d o En tard ecer e da M an h ã. Percebemos q ue são perm eadas por uma inquietação e uma angústia profundas. Elas efetivamente representam o que Burckhardt denominava "mon stru osidad e ensu rdecida". Mon struosidade sem exagero nem excessos, m as aind a assim m on stru osidad e, presen te e eficaz8. Trad u zem a n ostalgia de perd erse n o in fin ito da matéria e outras ambivalências da mesma ordem. Existe nessa obra a forte con ju n ção de coisas opostas. Con ju n ção que é causa e efeito dessa Weltschmerz de difícil

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tradu ção, mas qu e exp rime o fato de sentirse doen te de um m un d o que nem por isso^ e pode deixar de amar, D oença de amor, doença da paixão, dolorosa mas incontornável. Um a espécie de sentim en to trágico da vida derivado de u m a tensão entre pólos opostos e perfeitamente comple mentares. Existe um hedonismo real no barroco, mas um hedonismo que, ao contrário do que habitualmente lhe é atribu ído, n ad a tem d e leviano. Um h ed on ism o grave. E isto, poderíamos dizer, a partir da estrutura ambivalente do h om em , m arcado ao m esm o temp o pela ind igência e pela grandeza. Estas duas qu alidad es respon d en d o um a à outra, completandose numa cadeia sem fim. Como bem o dem on stra a mística, a falta, a carên cia, a im p erfeição, frisam, na realidade, a capacidade da plenitude, de Deus, da perfeição9. É esta antítese que podemos sublinhar no que diz respeito à violência. Ao m esm o tem p o ela assinala o in com pleto, o vazio, e participa da realização, ou seja, de uma forma de perfeição que integra seu cont rário.

A FORÇA DO MAL M ergulh emos mais fun do sob este mal qu e sabemos — aceitemos ou não — ser conatural ao dado humano. Temos, para com eçar — o que está lon ge de ser desprezível — a vox  populi, qu e bem sabe, em seu saber in corp orad o, qu e, em suas diversas modulações, o conflito (ou a antinomia dos valores) capilarizase no conjunto do corpo social, ou ain-

0 co n f l it o e s t r u t u ra l

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da que é extremam en te com p lexo e, ao m esmo tem p o, ex trem am en te simp les. É p recisamen te esta d up la estrutura q u e o to m a im p erm eável aos sistem as filosóficos. Estes, para exp licar, p recisam reduzir o qu e ab ord am à sua expressão mais simples. Ora, apesar desta redução, o m al está aí m esmo, constante, irrefutável. Ele tem uma realidade maciça que não se pode negar. Primeira ambigüidade (à imagem da Carta roubada de Edgar Poe): tratase de u m a realid ade presente em forma n ebulosa, presen te sob diferentes n om es. Mas presença qu e não se qu er ver, n em , a fortiori, e n t e n der, pois vêla e entendê-la seria conferirlhe uma legitimid ad e qu e ela "n ão d everia" ter. Recorramos agora a uma leve ironia ou — o que dá no m esm o — a u m a imp lacável lógica. Apliq uem os literalm en te o adágio bem conhecido: Vox populi, vox dei. O que é con h ecido ou reconh ecido pelo p ovo tam b ém é con h ecido e reconhecido pela deidade. Tratase, de fato, de um problema com que se deparam constantemente numerosos sistemas filosóficos e doutrinas religiosas, pelo menos n o O ciden te: o Deus tod op od eroso é criador d o mal, já que é de tod as as coisas. Eis en tão o escân d alo essencial, aqu ilo q ue explica a d en egação ou o recalqu e da realidade d o mal. Reconhecendoo, estamos fragilizando ou relativizando a todopoderosa deidade tutelar. Preferimos então atribuir lhe u m papel sub alterno, algo que, n ão ten d o realidade em si, p ode ser sup erado, corrigido ou em en d ad o. A deidade tutelar pode ser Deus, naturalmente, mas também suas formas profanas: o Estado, as instituições sociais, as Igrejas, em suma, tudo que tenha um poder

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ab rangen te. N egand o ao mal um a realidade estrutu ral, as v diversas doutrinas nada mais fazem que proteger essas institu ições e sua tod op od erosa b en evolên cia.   A contra rio, r e c o n h e c e r q u e o m a l n ã o é o e v a n e s c e n t e p r o d u t o das frágeis im agin ações hu m an as, m as efetivam en te u m a forte e intangível realidade, é relativizar o poder dessas m esm as institu ições. Na verdade, a idéia e a realidade — a palavra e a coisa — de um deus criad or do m al n ão são, de m od o algum , algo ch ocante n o con texto de n um erosas culturas. Basta m en cion ar o sub strato politeísta do b ud ism o tibetano, d o hen o t e í s m o h i n d u , d a m u l t i p l i c i d a d e d o s orixás dos cultos afrobrasileiros, das diversas divindades das religiões africanas, do panteão das mitologias nórdica ou grega — e a lista p oderia prosseguir in d efinid am en te — para p erceber que as divindades ambivalentes, os espíritos perversos ou as entidades simp lesm en te m alévolas pod em expressarse e agir tão legitimamente quanto seus paredros benevolentes. Satã foragido n o In fern o, a idéia de um .d eus criad or do ^ m al foi (p raticam en te) com p letam en te n egad a. Existem , é verd ad e, as diversas form as d o catarism o. Mas sabem os com que selvageria foram reprimidas'no sul da França. Houve também certas heresias cristãs, mas também neste caso a In q u isição foi de u m a terrível eficácia. E é só p erio d icam en te, nesta tradição ocidental, que podemos ver, como no retorn o de um recalqu e, u m a m anifestação desse m al qu e provém, como diz G. Scholem, do "seio profundo da divindade".

O co n flit o est rut ura l

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Neste sentido, as formas paroxísticas dos místicos exprimemse regularmente. O mesmo se dá com as possessões, os estigm as, as mortificações sob reh u m an as, tu d o qu e representa situaçõeslimite amb ivalentes que p od em a q u alquer momento inverterse num sentido ou em outro. Entre esses exem p los, pod em os evocar — de um a form a q u e n ão é sim p lesmen te an ed ótica — a apostasia d o messias n o m ovim en to sabaísta jud aico. Escând alo dos escând alos este judeu qu e se preten d e o m essias e se con verte ao islamism o! Apostasia que, para os discípulos de Sabbatai Tsevi, é vivid a c o mo um m is t é ri o , e u m a c o n te c i me n t o p o si t i vo n a medida em que exprime as tensões entre a "realidade intern a e a realidad e e xter n a". 10‘É esta ten são o fu n d am en to trágico do mal. Tensão que também encontramos na "Ken ose" d o Deus sofredor, do Deus qu e morre n a cruz. Te n s ã o qu e t a mb é m p o de m o s en c o n tr a r e m mú l t i pl a s s it u a ções da vida cotidiana. Coisas, enfim, que fazem do Mal e de seu trágico entidades integrantes da natureza humana. É possível que asd iferen tes form as do d em on ism o con temporâneo não passem da volta de uma força recalcada. E estaríam os dessa form a p agan d o, com juros bem altos, a ação das inqu isições qu e m en cionam os. D emon ismo cuja expressão mais flagrante encontrase na música, sob suas formas mais violentas, mas que também podemos observar nos happenings artísticos, ou ain da em tan tas criações teatrais. Em cad a u m desses casos, a barbárie, o p aga n ism o e a animalidade recalcados recobram força e vigor. Cabe lemb rar, assim, q ue o excesso, m esm o em seus asp ectos m ais obscuros, é também um elemento estruturante da nossa

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n atureza. A tem ática d o deus criador d o m al, ou d o mal que p rovém do p róprio seio de Deus, é, n a realidad e, u m a ma \ neira de legitimar este excesso — "p arte m ald ita" (G. Ba taille), "so m b ra " (C. G. Ju n g), "in st an te o b scu ro " (E. Bloch) — e de recon h ecer sua imp ortân cia. Analisar socioan trop ologicam en te este excesso é sem pre algo delicado, e n ão raro m alvisto. Em p en h eime neste sen tid o11 a prop ósito da orgia ;'p len am en te con scien te dos riscos qu e corria. Mas m an ten h o tu d o qu e disseNPois o que ^é esta orgia senão o aspecto fundador de uma paixão comum, de emoções tornadas comuns, de sentimentos que á saem p ara a praça pú blica, em su m a, de afetos q ue nã o se p reocup am com o "vertruísm o" (V. Pareto) das almas boas? 'N u n ca será demais repetir com o os ajun tam en tos techno, as múltiplas oportunidades de fazer festa, o sucesso das boates, d os lugares de trocas sexuais, tu d o isto relem br a qu e, ao con trá rio de um a simples "econ om ia " de si, existem culturas qu e repousam essencialmen te na despesa, no con su m o, na d estruição. Coisas perseguid as pela im p erfeição, o mal, a sede do infinito. Em m u itas civilizações, essas despesas su n tu árias eram feitas, en tre outras oportu n idad es, em festins funerários nos qu ais consid eráveis ren d im en tos eram "con su m id os ",12 ao mesmo tempo para os pobres e para compensar os que ficavam n a vida. Tud o pod e ser pago. Até m esm o, e sob retu do, a vida. E o excesso, o consumo, lembram este tipo de com p en sação. Mais um a vez, aqu i, vida e morte estão ligadas n u m a profund a sinergia. O que desp erdiçam os em fun  \ ção da m orte de um ente querido é u m a m aneira de dizer t " ’ 

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Iqu e a vida perdu ra. O m esm o se dá com as despesas sun tuárias nos casamentos no sul da Europa, por exemplo. Neles, é celebrada a morte num estado particular, mas o ren ascim en to, em u m ou tro: símb olo de que a vida con tin u a sem pre. M orrend o para o estado de virgind ade, a m u lher casada anuncia a progênie vindoura, ou seja, o ciclo vital. Os excessos juvenis contemporâneos são do mesmo teor. A "Sombra de Dioniso", para retomar esta metáfora, assinala bem a sub stituição do sim ples con su m o por um a con su m ação m ais "rad ical", con su m ação q ue vai à raiz das coisas, quer dizer, que insiste no aspecto chtoniano, som, brio, enraizado, do homem e do mundo. O mal é resumi1 d o da segu inte m an eira: exp erim en tar os fru tos da terra. A maçã, sua metáfora, resume sua ambivalência estrutural. Prazer e d or m istu rados, excesso an trop oló gico em sua p rópria ambivalência. Pod ese dizer isto com as m ais d iversas exp ressões, m as todas rem etem ao aspecto somb rio dos sentim entos hu m an os. Eis on d e estam os: a p artir d o m om en to em qu e se trata de afetos, de sensibilidade, a p artir do m om en to em q ue o jogo das p aixões retorna à cen a p úb lica, retorn o da libi do sentiendi, então vemos afirmarse a "parte das trevas" (F. Pessoa) de que está impregnada esta libido. Já indiquei em LTnstant éternel com o o espírito do tem p o é p erm ead o d o trágico. Clim a geral, n ão n ecessariam en te con scien te de si m esmo, m as obn u b ilad o pela busca das raízes, a p reocu p ação com a n atu reza, a ate n ção ao cabelo, aos odores, à pele. Sensibilidade ecológica apro

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  A p a r t e d o D i ab o

^ v e i t a n d o o s f ru t o s d a te r ra e n i s to tr ib u t ár ia d e D i o n i so , d i vi n d a d e t e rr e s tr e , v i o le n t a , n ã o d o m e s ti ca d a . Em t u d o isto encontramos, como um fio vermelho, a temática do vazio, da obscuridade, do primitivo, do primordial. O ■ " Urgrund”, tod os esses lados inexplorad os ou n egligenciados de nossa n atu reza. É n esta p rofun d idad e qu e se abriga o m al. Para resum ir, recon h ecêlo é falar do in t erio r de si m e s m o e d o i n t e ri o r d o m u n d o , e d es s e m o d o reco n c iliar-se com a alt er i dade. Tu d o isto n ão d eixa d e ser an gu stiante. É o qu e ressalta do asp ecto somb rio de tantos m itos, de ficções ou p oem as qu e celebram este "sol ne gro", qu e evocam a amb ivalên cia existen te en tre o am or e a d evoração. Mas, idéia obsed an te da minha reflexão: o que se exprime é menos perigoso, a parte da som bra aceita é um a terapia h om eop ática. ' É a an im a lid a d e q u e é an g u stia n te n o ser h u m a n o , e isto, justam en te, p or ser ele am b ivalente. Entre mil ou tros exem plos: o urso inq u ietan te e p redad or e o "ob jeto tran sicion al" que é a pelúcia; ou ainda o lobo devorador e a expressão " m o n p e t i t l o u p ”* d o s m o m e n t o s d e lib e r a çã o e m o ci o n a l . Em p áginas esclareced oras, G. D uran d insiste com freq ü ên cia n esta am b ivalência. Mas m ostra qu e isto rem ete efetivamente ao aspecto de fervilhar, de formigar própri o da animalidade. Inquietante mas necessário. Aqui, mais uma vez, é o "Urgrund", a profundidade, a parte obscura. Mas são exatam en te estas coisas qu e estão n a origem da an im ação vital13. *"M e u l o b i n h o " .

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O fervilhar, em lugares escuros, remete justamente ao ca o s q u e é fu n d a m e n t o d o co s m o . Ta m b é m a q u i, cicl o co n s  t a n t e d a m o r t e e d a v i d a . N o ca s o, s in e r g ia d a b e s ti a li d a d e e da humanidade. A "crueldade" devoradora das figuras t e r io m ó r fic a s d o s c o n t o s e le n d a s , as q u e e n c o n t r a m o s n a . ficçã o ci en t í fi ca c o n t e m p o r â n e a e t a m b é m a s q u e se e x p r e s  s a m n a t e a t r a l i d a d e c o t i d i a n a (piercings , t a t u a g e n s ) e n a s efervescências festivas, tudo isto relembra a dupla face de nossa natureza, a duplicidade estrutural que constitui o a n i m a l h u m a n o . A e st e r es p e it o , m u it a s t a tu a g e n s s ã o fi g u r a s d e a n i m a i s , à s v e z e s m o n s t r u o s a s , d r a g õ e s, fe r as . C a b e pensar igualmente na. inflação de documentários sobre a n i m a i s e n o a u m e n t o d a co m p r a d e an i m a i s d o m é s t ico s e exóticos. Feiticeiras ou sereias mesmerizantes, ogros, obsessão p e l o t em a d o P e q u e n o J^ r ín c ip e , lo b i s o m e n s e m su a s d i v e r  sas formas e onipresença dos animais domésticos — são m u i t a s as fo r m a s d o " fe r v i lh a r ", d a q u i lo q u e , d e u m a m a  n e i r a s e lv a g e m , d á v id a , a n i m a a e x i s t ê n c i a so ci a l. N o s a p o  ca li p s e s p ó s - m o d e r n o s , é i n t e r e s s a n t e ob s e r v a r q u e a l ó g ic a d o "a n jo d o a b is m o ", d a a n i m a l id a d e h u m a n a , n ã o é u m a simples forma poética ou uma figura literária. Ela conta m in o u a v id a c o t id ia n a . Podemos considerar que a violência associada a esta a n im a l id a d e é u m a c o n s t a n t e a n t r o p o l ó g ic a , Ela é e s tr u t u ^ r a l, c o m o já d i s se . A t á t i ca e m p r e g a d a a s eu r e s p e i t o , c o m o fortalecimento do cristianismo, consistiu em expurgá-la. P e la co n f is s ã o , a o r i e n t a ç ã o e s p i r it u a l o u o e x o r c is m o , p a r a c o m e ç a r . M a i s a d ia n t e , p e l as d i fe r e n t e s fo r m a s d a p s ic a n á -

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lise, especialmente de vertente freudiana. Em todos esses c a so s , t r a t a -s e d e " e s v a z ia r a l i x e i r a " . M a s o p r i n c ip a l n ã o é isto. Na verdade, e é isto que precisamos ter em mente, o t r a t a m e n t o a p l ic a d o é e s t r it a m e n t e i n d i v id u a l. É p r e ci so q u e o h o m e m d o t a d o d e ra zã o e st eja e m c o n d iç õ e s d e r e co n h e  ce r se u p e c a d o , o m a l q u e o p e r s e g u e . El e d e v e c o n s c ie n t i z a r s eu i n c o n s c ie n t e . A t á t i ca d a s s o ci ed a d e s t r a d i ci o n a i s p a r e c e s er b e m d i  f er e n t e . E, n o m e s m o e s p ír i to , d i fe r e n t e é a t á t ic a p ó s - m o derna. Para começar, ela se baseia na aceitação do que é. Uma forma de acomodação em alguma coisa. Além disso, dirige-se a cada indivíduo, mas na qualidade de membro d e u m a c o m u n i d a d e . Já n ã o s e t r a ta d e c o n fe s s a r o u d i z er s u a p r ó p r i a p a r t e d e s o m b r a e, as s im , e x t i r p á - l a , e s i m , g r a  ças a ela, de compartilhar, de tomar parte nos males do c o n ju n t o n o q u a l ca d a u m s e sit u a . C o m p a i x ã o q u e é, p r e c is a m e n t e , ca u s a e e fe it o d o d e s  t i n o co m u n i t á r i o . Est a c o m p a i x ã o fo i fo r ja d a , a l o n g o p r a  zo, pelas vicissitudes, guerras, fomes, desgraças diversas p r o v e n i en t e s d o e xt er io r , m a s t a m b é m p e l os g o lp e s d o d e s  t i n o , o s ó d i o s, a s m á s a çõ e s o c u l t a s , o s h o m i cí d i o s q u e surgem no próprio seio da comunidade. Compaixão "loc a l is t a ", p a r t i cu l a r , en r a i z a d a . Já s e o b s e r v o u q u e a r e s i s t ê n c i a d a a lm a é co n s t ru í d a n a d e p r e ss ão , n o d e s a m p a r o e n a ; p r o v a ç ã o . O m e s m o a c o n t e c e c o m a "a l m a c o le t i v a ". É p o r - m e i o d e m e c a n i s m o s co m p r o v a d o s — i n i ci a çõ e s , rit u a is , lei ' d o s e g r e d o — q u e s e r a t i fi ca a r e s i s t ê n c ia s o c i a l. N e s t a p e r s  pectiva, não se trata de chegar à erradicação da violência e s tr u t u r a l o u d o p e c a d o o r ig in a l , m a s d e t o r n á - lo s c o m u n s ,

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ritualizálos e assim canalizálos, tornálos suportáveis de algum m od o.14 Persp ectiva trágica qu e reitera a força d o m al, m u ito precisamen te na m edid a em q ue fortalece a com u n id ad e, con stituindoa como tal. O mal é um limite, é verdade, mas\  d evemos lemb rar que o lim ite perm it e ser. Em seu sentido!; lógico, ele determ in a algum a coisa ou alguém . Para fun dar uma cidade, como bem mostrou F. Braudel, traçase uma lin h a q ue d em arca e, p ortan to, fu n d a. Força da lim itação. A m etáfora da "p on te e da p orta" prop osta p or G. Simm el tam b ém é instru tiva: para que a po n te p ossa u n ir, é preciso q u e haja um a p orta, símb olo do fe ch am en to 15. Talvez seja esta determinação lógica que funda a determinação p sicológica d os hab itantes da cid ad e. Eles são capazes d e 1 resistir na exata m edida em qu e são p rotegidos p elo limite. E n ão p od em os n os imped ir de observar qu e a m aioria dos con flitos en tre b and os de jovens tem com o ob jeto a defesa do território. Tática específica q ue n ão p retend e d om in ar as coisas e as pessoas, mas se situa na dependência das coisas e na in terd ep en d ên cia das pessoas. Efeito trágico basead o n o conhecimento dessa "força do mal" (C. G. Jung) que trazem os em n ós 16, q ue cada gru p o tem d en tro d e si. Trágico qu e consiste em não perder de vista esta "sombr a" que s ob m u itos aspectos pod e ser tutelar, a p artir do m om en to em que sabemos conviver com ela.

Notas do Capítulo II

1. C f . D u r a n d (G . ), Figures m y t hi qu es et v isages de 1'oeuvre (1979), P ar i s, A l b i n M i c h e l , 1 9 9 2 , p . 3 0  3 4 . C f . t a m b é m M a f f e s o l i ( M . ),

  L'Ombre de Dionysos, contribution à une sociologie de 1'orgie ( 1 9 8 2 ) , Le L i v r e d e P o c h e , 1 9 9 1 . 2. C f. n a t u r a l m e n t e J u n g ( C. G .),  Réponse á  Job, P a r i s , B u c h e t  C h a s t e l , 1 9 9 6 , p . 1 5 1 . Cf . t a m b é m F r a n z (M . L. v o n ) , C . G.Jung, P a ri s , B u c h e t  C h a s t e l , 1 9 9 4 , p . 1 8 6 e A d l e r ( G . ), Étude d e psycbologie jungienn e, G e n e b r a , G e o r g , 1 9 9 2 , p . 2 1 9 . Í 3 ) H e g e l , Phénomônologie de 1'esprit, P ar is , A u b i e r M o n t a i g n e , 1936, T. I, p. 29. Os itálicos são do autor. 4 . C a r u s ( C . G . ) , F r i e d r i c h ( C . D . ) , De la pein t ui e depay sa ge dans 1'AUemagne rom ant ique, P a r i s , K l i n c k s i e c k , 1 9 8 3 , p . 1 6  1 7 . 5. D u p u y GP)< O rdres et désordres, P a r i s , L e S e u i l , 1 9 8 2 , p . 7 6 . 6 . C f . F r e u n d 0 0 .   Le Conílit, P a r i s . S o b r e o c o n t r a d i t o r i a l , c f . L u p a s c o ( S . ) ,   Le Príncipe de 1'antagonisme et la logique de

1'énergie, P ar is , H e r m a n n , 1 9 5 1 , e D u r a n d ( G .),  Les Structures ant hropo logiques de 1’im aginaire ( 1 9 6 0 ) , 1 1 a e d i ç ã o , P a ri s , D u n o d , 1 9 9 2 , p . 5 0 3 . S o b r e o co n f l i t o n o v i v i d o , cf . P e n n a  c h i o n n i ( I . ) ,  De la guerre conjugale, P a r i s , M a z a r i n e , 1 9 8 6 . 7. C f. p o r e xe m p l o A d o r n o (T .), Prísmes, P a r i s , P a y o t , 1 9 8 6 , p . 4 6 . S o b r e P a r e t o , cf . V a l a d e ( B. ), Pareto, naiss ance d 'u n e autre socio logie, P a r i s , P U F , 1 9 9 0 .

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8 . C f . a b o a a n á l i s e d e W õ l f f l i n (H . ), R ennaissa nce et baroque, M o n f o r t , 1 9 8 5 , p . 1 01 e s e g u i n t e s . 9 . C f . p o r e x e m p l o L u b a c (H . d e), Pic de la M irandole, P a r i s, A u b i e r  M o n t a i g n e , 1 9 74 , p . 3 8 . C f. t a m b é m K r u m e n n a c k e r ( Y.), 1’École

 française de spiritualité, P a r i s , C e r f , 1 9 9 8 . 1 0 . C f . S c h o l e m ( G . ) , Sabbatai Tsevj, P a r i s , V e r d i e r , 1 9 8 3 , p . 5 9 e 7 7 0 . S o b r e D e u s c r i a d o r d o m a l , c f . P e s s o a ( F . ) ,   L’Éducation du stoicien, P ar is , C h r i s t i a n Bo u r g e o i s , 2 0 0 0 , p . 4 0 . S o b r e a " k e n o s e " , cf . V a t t i m o (G . ), Esp érer croire, Paris, Le Seuil, 1999. 11.  L'Ombre de Dionysos, 1 9 8 2 . 1 2. C f. o e x e m p l o d o s a l to s v al es a l p i n o s , n u m a S u í ça co n h e c i d a p o r s e u s e n s o d a e c o n o m i a , in B e r t h o u d (G . ),

Plaidoy erpou r 1'autre,

G e n e b r a , D r oz , 1 9 90 , p . 2 1 1. R e m e t o t a m b é m a o s e x e m p l o s q u e dou em

 L' Ombre de D ionysos ( 1 9 8 2 ) , L e L i v r e d e P o c h e , 1 9 9 1 .

Cf. as pesquisas de Hugon (S.) sobre os bares noturnos, CFAQ, P a r i s V a r t a n , 1 9 99 . Cf . t a m b é m H o u d a y e r ( H .),  LcD éfi

toxique,

Paris, L'Harmattan, 2000. 1 3. C f . D u r a n d (G . ),  Les Structures an thropologiqu es de 1'imaginaire ( 1 9 6 9 ) , P a r is , D u n o d , 1 9 9 2 , p . 7 6 e s e g u i n t e s , e 9 6 . S o b r e a " d u p l i c i d a d e " , cf . M a f f e s o l i (M . ),  La

Conquêteduprésent ( 1 9 7 9 ) ,

Paris, Desclée de Brouwcr, reed. 1999. 14

S o b r e a u t i l i d a d e d a d e p r e s s ã o , cf . H i l m a n

(].),_La Beauté de

 psyché, M o n t r e a l , Le J o u r , 1 9 9 3 , p . 2 0 0 0 . S ob r e a c o m p a i x ã o , c f . L e Q u é a u ( P . ) ,   La Tentation bouddhiste, P a r i s , D e s c l é e d e Brouwer, 1998. 15. Cf. Braudel (F.),  La M édit erranée, P a r i s, 1 9 8 5 , p . 1 4 1 . C f . t a m b é m W a t i e r ( P . ) , G. Simmel et les sciences humaines, Paris, Klincksieck, 1992. 1 6. C f . J u n g ( C . G . ),  Aspect 1990, p. 166 e p. 169.

du dram e con tem porain, G e n e b r a , G e or g ,

C a pít u l o

V

a r ia ç õ e s

s o br e

III a

s o m b r a

"Q uand après un e jou rnée d ’at t ent e et de soif, v ient  ; 1'heuie saint e d e Jacob, la lu t t e a v ec l ’Id éal. ”* M

a jl l a r m ê

O recon h ecim en to desse lim ite que é o vazio pode, p ortanto, ser um bom método para adquirir uma espécie de serenidad e. Sabed oria dem on íaca, a m esma qu e é prop osta a cad a um p or seu p róprio d a i m o n , este dup lo qu e nos faz o qu e som os. O d ivino, ou tra m an eira de dizer o vazio fu n dador, é, em sua essência, sempre duplo, e com isto frisa sua infinitud e. Mesm o os mon oteístas m ais intransigentes s ã o p e r m e ad o s po r e s t a p l u r a li d a d e, d a q ua l é u m b o m exemp lo a Trind ad e do Deus cristão. No seio d esta Trin d ad e, a figura do Cristo, "in teiram en te h o m e m e i n t e ir a m e n t e D e u s ", é ela m esm a clivada. Mas o *" Q u a n d o a p ó s u m d i a d e e sp e r a e se d e v e m a h o r a s a n t a d e Ja c ó , a lu t a c o m o I d e a l ."

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fato de ser du p lo é u m a form a de d u p licid ad e. Feliz p ecad o que permite a salvação. Assumindo o pecado, o Salvador exalta a h u m an id ad e. Bela h istória, n este sen tido, é o "escândalo da cruz", bem delineado num sermão de Santo Agostinh o, m ostrand o com o a m orte do Cristo é um a m aneira de ven cer o diab o. Este pod e exu ltar, m as esta m orte é comparada a uma ratoeira em que é apanhada a presa. De fato, n u m a com p aração au d aciosa, ele faz da cruz u m a armadilha na qual ele é apanhado em seu próprio jog o: muscipula diaboli, cruz doniini, a cruz do Cristo foi a ratoeira do d iab o1. A m or te do Salvador é u m a au tên tica isca. Exp ressão sub lime d o aspecto du p lo de Deus! "On d e cresce o perigo, cresce o qu e salva ", escreveu R. M. {, Rilke. Esta temática da perda como meio de salvação en '' contra múltiplas modulações, literárias, poéticas, mitológicas e, naturalmente, cotidianas. Numa certa tradi ção jud aica, a transgressão da lei é um a form a de cam in h ar para a salvação. A ap ostasia de Sabb atai Tsevi con ver ten d ose ao islamismo em 1666, a restrição mental face ao catolicismo dos marranos hispânicos ou a conversão aparente do judeu Jacob Franck ao protestantismo em 1759 bem traduzem esta descida ao Inferno em busca das centelhas da salvação: "Para subir é n ecessário d escer". Cair no abism o, beber até a última gota o cálice am argo da desolação é um a form a de perda que p ermite o reen con tro consigo m esmo. „.Como indica M. A. Ouaknin comentando esses episódios, "a violação da Torá é agora seu verdad eiro cu m p rim en to".2 A transgressão pela duplicidade é assim uma forma de força mística que permite resistir a longo prazo. Eu diria

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inclusive q ue existe um con stan te vaivém en tre a du plicidad e ind ivid ual, "avan çar m ascarad o" (D escartes), e a resistência coletiva. O "ven tre m ole d o social" (Baud rillard), a ab sten ção, as secessões p op u lares, são com o resistências^ às m orais im p lacáveis, às im p osições bu rocráticas, aos p rin • cípios de realidad e política e outras leis de ferro da econo m ia '' empenhadas em unificar, uniformizar, globalizar as disparidades, as políssemias, os ardis que constituem o poli teísmo do fervilhar existencial. O escân d alo e a arm ad ilha q u e vem a ser a cruz, a ap ostasia e a transgressão não passam, no fim das contas, das formas paroxí sticas do que eu denominaria duplicida de an tropológica, ou seja, um m od o op eratório de sobrevivência. Vamos dar a esta última palavra um sentido pleno, o de uma vida explorando suas múltiplas  possibilidades. De u m a vida que não se con ten te em ser un idim ensional, p ositiva, econ ôm ica, m oral, feliz, sadia etc. De u m a vida, tan to individual quanto social, encarando seu contrário e enriquecendose daquil o mesmo que parece negála. Como nesta observação de Jiinger: "Integrar a morte em sua estratégia: adquirir algo de invulnerável". Um aforismo forte, dizendo em poucas palavras o saber incorporado que constitui toda a sabedoria popular. ^Pois, empiricamente, é bem sabido que o imaterial, a fan 1 tasia e o fantasm a, o am or e a am izade, em sum a, tod os os ^afetos sociais são cimentados por uma ética imoral. Vale dizer, pelo fato de q ue o p luralismo, o relativism o, a h arm onização com a alteridade é uma lei vital muito mais forte qu e aqu ela qu e os racionalismos ab stratos tentaram imp or

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às massas, em fu n ção d o q ue su p ostamen te seria o seu b em estar. N ão faltam exemp los h istóricos ilustran d o q ue a redução ao Uno — religioso, ideológico, moral — condu z infalivelmente aos piores totalitarismos. Existe na duplicidade estrutural, na falta,jia diferença, uma espécie de abertura, uma disposição para o outro. O p refixo "d is", trad u zin d o o asp ecto clivad o, duplo de tod o ser e de tod a situação, é o in d ício de um a ab ertura, de u m receptáculo, sinal de que a vida é apenas interação. "Acima da realidade permanece a possibilidade": ao afirmálo, jj Heidegger acentu a efetivam en te a in com p letu d e3. In com  p letu d e qu e, n a realid ad e, ind u z à p artilh a, à criação con tínua. Ser permeado pela falta só pode favorecer a procura, ' em m im m esmo, n o social, na n atureza, na deidade, d o Outro que, por um m om en to e de m od o imperfeito, m e com pleta. Até qu e um outro imp ulso de incomp letud e m e leve n ova m e n t e p a ra o u t ro s h o r i z on t es d a m e sm a o rd e m . Possibilidade. Esta é, de fato, a palavrachave da vitalid ade em p írica e do vitalism o filosófico qu e a exp rim e. Em seu sentido mais estrito, existe animação social quando estam os d ispostos ao O u tro. Talvez seja assim q u e devam os pensar as "viscosidades" que não faltam em nossa atualidade. Aquilo que, nos fenômenos esportivos, musicais, religiosos, turísticos, leva a grudar no outro, a imitálo, a procurar sua presença, inclusive naquilo que em dado m o m e n t o t e n d e a n e g a r o i n d i v íd u o . Este r e e n co n t ra n e s ses aju n tam en tos um a parte de si m esmo, u m a ou ou tra de Su í S próprias possibilidades que não podem ser expressas

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se m od o, o daimon socrático está p resente n o q ue é con siderad o sem sen tido . O ind ivídu o perde, se perde, m as, comungando com o préindividual, ou o supraindividua l, ganh a ou tra coisa: aqu ilo a qu e me refiro com o u m a espécie de "sob revida ". Em todos os tempos, os êxtases, as saídas de si próprio, têm sido uma forma de relembrar a força dessa sobrevida. O mesmo ocorre atualmente. É sempre o outro de si mesm o qu e se exprim e nos ruid osos transes de todos os tip os. Demoremonos um pouco nesse desdobramento fundamental. Só compreendendo sua estrutura poderemos entender os fenômenos extáticos (religiosos, esportivos, mu sicais) de qu e tratam os. Existe aí um p on to n odal ab solutamente essencial e raramente analisado. C om o n u m leitmotiv, tenh o insistido freq ü entem ente na saturação do ind ivíd uo e do ind ividu alism o m od ernos. Em p iricam en te, a coisa é eviden te. Cada u m de nós d esfruta menos de uma identidade estável do que de uma série d ejd en tificações por m eio das quais expressa as diferentes possibilidades q ue o caracterizam . Entretan to, obn u bilad os pela lógica da identidade, do sujeito racional ou do cidadão respon sável, confo rm am onos em p ensar a pluralidade n o seio de u m m esm o in d ivídu o. Aliás, talvez por isso seja conven iente retom ar a d istinção entre indivíduo e pessoa. O ind ivídu o é cau sa e efeito da lógica da iden tidad e. Senh or de sua história, capaz, com outros ind ivíd uos au tônomos, de fazer a história do mundo, ele é educado para exercer uma função nas instituições programadas pela sociedade. A pessoa, em contrapartida, tem identificações

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múltiplas, suas máscaras (personà). Estruturalmente dependente dos outros (heteronomia), ela se limita a desempenhar papéis nesses conjuntos de afetos que são as tribos4.   Assim se resume, em algumas palavras, o resvalar que podemos observar de diversas maneiras na vida corrente. A  moda, as modas, me lhor dizendo, os mime tis mos diversos, fazendo com que usemos os adereços de nossos heróis (esportivos, musicais, políticos), as múltiplas contaminações ideológicas , religiosas, publicitárias , tor nam empirica mente caduco o antigo princípio de individualização, pedra de toque do pensamento ocidental. Para retomar uma expres são de Gilbert Simondon, é o "mais que um" que caracteriza cada pessoa. Precisamente porque cie age de maneira paroxística nas múltiplas histerias coletivas, ou mais moderadamente nos rituais cotidianos, é que se torna importante pensar teoricamente esse "mais que um" que caracteriza cada pessoa. O que ultrapassa nossa identidade, sexual, ideológica, profissional. O que — para recorrermos a uma expressão trivial — leva cada um a "se e x plodir", fazendo o viver — fantástica uou realmente, pouco importa — os papéis mais diversos, os i sonhos mais loucos. As conversas pela Internet, os chats, são um exemplo disso, cada qual falando através de seu pseudo. e

O que, sob muitos aspectos, o faz comungar com essas entidades imemoriais que a psicologia abissal denomina arquétipos. Ex iste, c om efeito — é impor ta nte frisá lo — , um vaivém constante entre os estereótipos da vida de todos os dias e os arquétipos, enraizados na memória coletiva, e muito bem ilustrados pelos mitos, contos e lendas.

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  A este respeito, caberia perguntar se o sucesso da publicidade, dos Game Boys, dos jogos de papéis não repous a pre cis ame nte nessa dialética ar quétipo es tere ótipo. Pr ojetamo nos em s ituações ex traordinárias , participamos mag ica me nte desse herói, daque la figura e mblemátic a, re conhec emo nos neste ou naque le a nima l, re alime ntamo nos nos elementos primordiais da natureza: água, céu, terra, fogo, judiciosamente apresentados em forma de espetáculo. O mesmo acontece com as grandes teatralidades coletivas. Roupas extravagantes, adereços postiços, tatuagens, cores, odores, favorecem um travestimento generalizado que, no mome nto de rituais específicos, permite a cada um encenar se, logo, viver ao sabor de sua fantasia. Todas as culturas conhecem esses rituais de inversão. Mas em determinadas épocas eles adquirem maior importância. É o que acontece na pós modernidade, em que as bacanais contaminam o conjunto do corpo social. Ainda que seja banal e um tanto cansativo, cabe reiterar: vale tudo para "fazer a festa". Estamos pensando na dis seminação do Halloween, no sucesso cada vez maior das refeições noturnas durante o Ramadã, no sucesso crescente das festas de bairro, do bistrô, sem esquecer as festas musicais, científicas, do patrimônio etc. Ora, nesses fenômenos festivos, por um lado o ajuntamento (enlouquecimento) é obrigatório, e por outro cada um é plural. O imaginário está na t ' ordem do dia, e com ele a multiplicidade de s entidos que cada pessoa confere à sua existência. São raros os pensadores que s ouberam estar atentos a esta polissemia. Como disse, Gilbert Simondon está entre eles5.

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Pretendo voltar mais adiante a esta obra. Apenas uma palavra, aqui, para frisar a fundamental mudança de paradigma /que é provocada pelo resvalar da ontologia para a onto ■ i gênes e. T ermos talv ez algo pedantes, mas que de s ignam be m a primazia, no primeiro caso, de um Ser intangível: seja ele Deus ou o Indivíduo, aos quais poderíamos acrescentar a nação Es tado, as instituições v alorizadas pela mode rnidade , em s uma, toda e ntidade que te nha uma ide ntidade estável e bem definida. É no contexto dessa lógica da identidade que o indivíduo, racional, senhor de si e possuidor da natureza veio a ser hipostasiado. O sujeito pensante e atuante, pivô de uma "lógica da dominação" que, do jardim do Éden, compartilhado c om o home m, ao produtivismo c onte mporâne o, orientou todo o pensamento ocidental.   A ontogênese, por sua vez, é mais flexível, mais fluida. Ela insiste em estados sucessivos — eu diria, em identificações múltiplas. Cada uma delas sendo real em um tempo T, mas tornando s e mais porosa e mes mo ev anes ce nte em um te mpo T l, T 2. C om o se vê, a ênfase no devir, na dinâ ^ mica do Ser, dá conta da impermanência das situações, das ! entidades pessoais,'e, ao mesmo tempo, da perduração da vida como tal. Neste sentido, a dinâmica ontogênica é um instrumento analítico dos mais pertinentes para descrever as sinceridades sucessivas em ação nas paixões individuais e sociais, e compreender os processos de fortes adesões aos quais sucedem desafeições não menos intensas, indiferen tismos e outras formas de sincretismos religiosos, filosófi \^i cos ou políticos cujas c onse qüências a inda não pode m ser plenamente avaliadas.

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Em suma, a pers pectiva ontog e nética pode ser uma f or ma de c ompre ender o relativismo da "pes s oa" pós moder na. Qualquer um é pessoa: ator de uma teatralidade global. Nela, desempenha papéis diversos que só têm valor por sua multiplicidade e sua inter ação. A o mes mo tempo, qua lquer um não é ninguém: só vale em referência à comunidade em que se inser e, em f unção do contex to no qual está inscrito. A palavra "inteireza", que propus ao debate teórico, traduz bem esta dupla perspectiva. O ser em devir é a_resultante de todas as possibilidades (ou potencialidades). Ele participa, stricto sensu, ou seja, magicamente, das situações, das outras pessoas, da natureza, da animalidade que o permeiam, que o fazem ser o que ele se torna no contexto desses "instantes eternos" que vive intensamente. A evolução dos sentimentos amorosos e familiares deve ser analisada neste sentido: sucessão rápida de casamentos, diversificação dos agrupamentos familiares, o que certos especialistas chamam, com algum atraso, de família tribal. O princípio de individuação jungiano, que é muito diferente da individualização ocidental, exprime bem essa dinâmica do devir, desse processo de gasto no qual nos perdemos num conjunto mais amplo, natural e social, para nos reencontrarmos de maneira mais inteira, logo, mais harmoniosa.  As aplicações sociais e sociológicas dessa pers pectiva s ão evidentes e promissoras. As "danças do ventre” musicais, nas diversas formas da techno, as histerias esportivas que ocupam lugar privilegiado na atualidade, as religiosidades

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invasivas e mesmo as múltiplas revoltas juvenis, marcadas pelo radicalismo, seriam então como sinais precursores da mudança de paradigma de que falei. Exatamente como ocor re u nas sociedades tradicionais, pré modernas, a pós modernidade fratura a individualização identitária e repousa no "mais que um" comunitário, numa ecologia do es pírito feita de analog ias, cor re s pondências e inter ação. O corpo se espiritualiza e a alma se corporifica. É a isto que se mostra atenta uma sociologia da alma, a da anima mundi. Num saboroso livro que assina com o antropólogo Kerenyi, Jung insistia na figura do "divino patife". A integração da sombra que resulta em reconhecer a sombra em si mes ma permite ao mes mo tempo re conhecê la no c on  junto social. Os exemplos que ele fornece e analisa sem preocupação judicativa ou normativa mostram em que medida a pluralidade pessoa se enraíza profundamente numa estrutura arquetípica de todo conjunto social. Não se trata aqui de estabelecer uma lista, entre os mitos que nos s ão próx imos e dis tantes , de to dos esses desrespei tadorcs da ordem, mas a palavra "patife" enfatiza bem um aspecto que poderíamos qualificar de familiar, logo, necessário. Com efeito, esta figura da alteridade é uma espécie de compensação. f  Sem ela, o poder político ra pidame nte tornar se ia tota , litário; o saber, dogmático; a doutrina religiosa, inquisito ^ rial; a arte, acadêmica; os co s tumes , intoler antes ; as ^instituições, esclerosadas. É isto o arquétipo do "patife": ele favorece a rebelião pontual, suscita a heresia libertadora, dinamiza a criação artística, permite a marginalidade fun

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dadora. Em suma, sacode o instituído, reanima o peso mortífero das instituições. O "patife" cristaliza a força da anomia, sem esquecer que este anômico ou alguns de seus e lementos lementos torn rnar ar se ão "cânone " das das s ociedad ociedades es e m gesta ção. Poi Pois é s abido abido que o marg in inal, al, o poe poe ta ma ldito, o teó teóri ri j co re jeitado e o reb re belde de de todos os tipos te nde m a to torn rnar ar se  j a referência incontornável. A s s im, im, no que que diz re s peito às às s ociedades ociedades pós  moder oder nas em gestação, bem se vê como a "sombra de Dioniso" diss emi emina se r apidame nte s obre obre todas as for mas de pe nsar e viver. O relativismo moral, o sincretismo religioso ou filosófico, o cuidado com o corpo, o hedonismo tribal, a iin ndifere nça polític a, e m s uma, a sa tura tura ção dos v alores alores universais, tudo isto pode ser entendido como a afirmação de uma alteridade fecundante que o racionalismo moder no julgara julgara poder poder e limin liminar ar de finiti finitivv ame nte nte . É em função função do relativismo moral que a heterossexualidade e a homossexualidade, a monogamia e a sucessão de casamentos constituem referências aceitas; o sincretismo religioso, por sua vez, não reflete uma exacerbação do individualismo, cada qual criando sua religião, mas a vivacidade dos gru pinhos de vinculação. A reafirmação do selvagem, a exacerbação da animalidade e da crueldade, a volta do étnico, refletem, com força e serenidade, a vivacidade da sombra ne g ada pela pela c ultu ultura ra oc ide ide ntal. A v olta do arcaico, arcaico, no se n tido do que é primordial, fundamental, nativo, expressa se prioritariamente e com força, como se sabe, na criação teatral, musical ou ainda na moda, mas há uma contaminação no ar, e são muitos os indícios de que em pouco

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tempo o conjunto da vida cotidiana estará envolvido neste processo. O vaivém estabelecido por Jung entre a personalidade particular particular e a mitolo g ia s ocial ocial é particularmente sugestivo. sugestivo. De minha parte, eu diria que se trata de uma verdadeira reversibilidade6. A sombra que cada um tem em si, os aspectos que podemos classificar de "inferiores", a fraqueza necessária à força, a noite que compensa o dia, tudo isto inscreve screve se nu m ciclo civilizatório. civilizatório. B em e mal func ionam em perfeita sinergia. É o que a criança, toda entregue a suas ocupações lúdicas, sabe sabe perf e itam itamente, ente, qualifica ndo os companhe companhe iros de brincadeira, segundo o momento, de malvados ou bonzi nhos, sem maiores conseqüências para suas relações com eles. Extrapolando, podemos lembrar que esta prática infa ntil tor torn na se uma característica da da v ida s ocial e m sua sua integridade. A "criança eterna” que se transforma em figura emblemática do momento. O mito de Dioniso, adolesce nte pe pe rpétuo, rpétuo, re rep pous ous a na ac eitação eitação da da s ombra ombra inter ior que progressivamente tende a se exteriorizar.   Assim também os conflitos de todos os tipos, as múlti \ pias rebeli rebeliões, as agres agres sividad sividades es amigáv amigáv e is, amorosas e profissionais não passam da expressão social de um conflito inte in te rior in inco co ns cie nte nte . Reconh Reconhec endo endo o c omo tal, tal, moder amos seus seus efeitos efeitos . O inimig o ex terior terior relat relatiiviza viza se a partir partir do momento em que cada um está consciente de ter seu próprio inimigo interno, com o qual é preciso conviver. O aspecto lúdico que os conflitos sociais às vezes assumem poderia ser aproximado das brincadeiras infantis. Músicas,

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cantos, travestimentos, achados lingüísticos e diversas formas de ir onia ac omp anha m o mais mais das vez vezes es as as manife manife s tações políticas e sindicais. Os refrãos substituíram os slogans, a dança, a marcha em passo cadenciado. Vejo nisto uma expressão da parte de sombra individual que, comunali zan za ndo se, mode ra , re lativ lativ iza a a ntino mia dos dos v alores alores que essas manifestações pretendem combater. Não nos levamds a sério demais, pois sabemos que o mal político ou econômico que estigmatizamos também permeia cada um de nós. Insisto nessa reversibilidade, pois se aceitávamos ou pelo menos reconhecíamos anteriormente a lei de ação da violência, a antinomia dos valores, já tínhamos mais dificuldade em reconhecer sua inclusão na ontogênese individual. Na medida em que só o bem estava no princípio de todas as coisas. Só o bem era imposto e exigido para corroborar a moral pública e privada. Só o bem era colocado como absoluto. A sombra, o sol negro, só era tolerada na marginalidade artís artís tica, tica, no se gredo do do parox ism is mo mís mís tico tico e esotérico esotérico ou na iluminação poética. Era o caso em A. Rimbaud, o sonho levando à "quebra da graça avivada da violência nova”. E conhecemos o papel desempenhado pela alteridade, o outro no eu, na criação rimbaudiana! É esta duplica ç ão que a obra obra de J ung acentu ac entua. a. Ele a vive, antes de mais nada, em si mesmo, e tenta continuamente estabelecer sua cartografia e avaliar seus efeitos. É o que denomina sua "personalidade nQ2". Graças a ela, ele participa da "obscuridade do mundo7". Não seria possível expressar me lhor a rev er s ibil ibilid idad ade, e, a corre s pon pondência dência mágica mágica entre a sombra individual e coletiva. Existe de fato uma

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opacidade maciça, objetiva, da qual o indivíduo e a comunidade participam. Opacidade que devemos viver de uma forma destinai. O que não quer dize r que de v amos s imple s me nte agüentá la, mas que conv ém compor com ela. Tomemos esta palavra em seus sentidos etimológico e musical. Juntamos coisas que já estão aí ( Dasein); colocamos, num ritmo que precisa ser encontrado, notas musicais de modo a elaborar uma partitura, a de toda existência harmoniosa. É isto a aceitação do destino individual ou a comunidade de destino no contexto coletivo. É isto a força pagã do destino. O pe ns amento ocide ntal privileg iara a história, pois esta pode ser controlada. É possível escamotear, real ou idealmente, seu aspecto obscuro. É o objetivo do cristianismo, repousando no postulado de um pecado original que devemos tratar de superar, participando da economia do resgate inaugurada pelo Salvador. É também o da teoria da emancipação, própria da filosofia do Iluminismo no sécu lo XV III. É igualme nte o obje tiv o do freudis mo, que pretende trazer de volta à consciência o resíduo inconsciente que devemos superar. Todas perspectivas progressistas que conduzem ao moralismo das instituições sociais. A história individual ou a história do mundo podem ser dirigidas no bom sentido. A História é teleológica. Ela só pode ser sensata. Be m difere nte é a "compos ição” que me ncionamos . Não se trata de "esvaziar a lixeira" do inconsciente, da mesma forma como não se pode evacuar o aspecto sombrio do inconsciente coletivo. Eis portanto a força objetiva da psi

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que, tal como é abordada por Jung. É preciso engalfinhar se com ela. Luta sem fim nem finalidade. Combate perpétuo de Jacó com o anjo, mas um anjo negro simbolizando a dualidade, a duplicidade, a duplicação de todo ser em dev ir. T ambém aqui, não mais uma ontolog ia plena e se gura de si, mas uma ontogêne s e a confirmar s e e m suas incertezas, extraindo sua força de suas arcaicas e simples possibilidades. A História é uma completude a rematar ou a recuperar; numa palavra, é o jardim do Éden a cultivar. O destino é este "vácuo" no qual somos atirados, o mundo como mundus: buraco de lixo no qual temos de nos virar. O monote ís mo da His tória é eficaz e mec ânico. A "ma ' quinação" dos tempos modernos testemunha isto. Esta eficácia é dev ida ao processo de mediaç ão que, ao cabo de uma lógica dialética, levará à perfeição sintética. Os mediadores podem ter diferentes nomes, a essência de sua ação é idêntica: uma instrumentalização do mal em vista de sua suposta superação. O que tem como conseqüência (acessória?) a impos ição de seus podere s. O Cristo S alvador, natur almente, mediador por excelência, mas também a Razão, o Proletariado e outras entidades hipostasiadas, sem esquecer essas outras manifestações da mediação que podem ser o confessor, o psicanalista ou o intelectual útil em sua forma mais recente: o especialista. Sua função? Saber tudo sobre tudo, retalhar a realidade em pedaços, esclarecer o obs curo, e x plicar o ine x plicáv e l. E x plicar, palavra chave do monote ís mo, retirar as dobras ou pregas ( ex- plicare) da opacidade humana . Des encantar o mun do . Dizer o porquê das coisas. De uma forma sentenciosa, educar. Donde a maré

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de livros de edificação que se apresentam como obras de pensamento. Ébem diferente a implicação do politeísmo. As "dobras" são preservadas pelo que são, nichos nos quais a parte da sombra, individual ou coletiva, pode encontrar refúgio. Reencantamento do mundo. O politeísmo dos valores é então o meio mais seguro de se proteger do totalitarismo do pensamento totalizante. Relativismo sob todas as suas formas, ao mesmo tempo relativizando e pondo em relação. Relativiza o que poderia ambicionar o absoluto, põe em relação as diversas facetas da inteireza pessoal e social. É exatamente o que, indo de encontro à mediação dialética baseada no absoluto do bem, (re)instaura a polissemia, a sinergia do bem e do mal, da luz e da sombra. Não mais o . poder implac áv e l do me diador, mas uma c ompaix ão fraterna, a horizonta lidade do des amparo. T ambém aqui o tesouro mitológico é instrutivo, frisando a complementaridade dos paredros. Aquiles e Heitor, Perceval e Gauvain, Gilgamesh e Enkidu. A epopéia babilônica e a lenda do Graal mos tra m bem e m que a s ombra fraterna pode ser uma forma de dizer e viver a face oculta das coisas e pessoas. "A  busca unilateral do bem expõe [...] ao risco de um orgulho arrogante."8O que M. L. von Franz diz do indivíduo pode ser extrapolado para sua projeção social. O prometeísmo ocidental repousa num mecanismo como este. Já a aceitação da parte obscura, o que aparece em nossos contos e lendas, no interior de si mesmo ou na duplicação fraterna, torna o her ói huma no , quer dizer, capaz de dúv idas , m ina do pela ince rteza, num a palavra, impre g nado de "húmus ".

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Personalidades múltiplas, daimon socrático, gênios do bem e do mal, anjos guardiões, espíritos diversos — seria infindável a lista desses duplos indícios da complicação humana. A nimis mo renascente, deep ecology, intromissão dos "orientes míticos" (G. Durand) põem novamente em ce na as es truturas arcaicas do dado mund a no. T udo isto, por sinal, é mais vivido que pensado. Suas conseqüências sociais ainda são imprevisíveis. Mas o que esta tendência deixa claro é a fragmentação de um indivíduo unificado,' tal c omo v inha prev alec e ndo na tradição judaico cristã, e em sua consumação moderna: Indivíduo senhor de si, se i

nhor e possuidor da natureza.   À imagem do henoteísmo.(miríade de deuses) característico, por ex e mplo, da tradição hindu, a frag mentação do indivíduo induz o reconhecimento e logo, em conseqüência, a aceitação do instante obscuro constitutivo de cada um e do conjunto social. Reconhecimento, aceitação, prelúdios da integração. Sinais precursores desta integração, a selvageria da música techno, a crueldade encenada pelo teatro e o cinema contemporâneos, a ambigüidade sexual que a moda e as posturas corporais exacerbam, as sinceri dades sucessivas típicas de tantos fenômenos sociais. Até mesmo no mundo político, no qual já não têm conta as reviravoltas de alianças, as mudanças de etiquetas, as traições e conversões. Para pensar um tal processo, talvez seja necessário retornar ao que Jung denominava "princípio polidemonís tico ",9 e x pr imindo a re lig ios idade de cada g rupo s ocial. Princípio tribal, longe do universalismo ocidental, repou

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sando ao mesmo tempo na multiplicidade do mundo societal e na pluralidade individual. Confrontamo nos aí  c om uma outra força de coe rê ncia'antropológ ica, não mais a da Unidade ex cludente e s intética, de um a lóg ica do "ter ceiro excluído", mas a da unicidade, do "terceiro dado", o

tertium datum, repousando na tensão de elementos heterogêneos. Unicidade na qual a sombra e o mal ocupam, de mane ira ins uperáve l, um lugar priv ileg iado. Unicidade que privilegia a dinâmica e a força de todas as possibilidades da inteireza humana.

Notas do Capítulo III

1. Sermão CCLXIII. 2. O ua k nin (M. A .), T s ints oun, Introduction à hi móditation hébraique, Paris, Albin Michel, 1992, p. 56. Sobre o aspecto social dessa duplicidade, remeto ao capítulo dedicado ao tema em Maffesoli (M.), La Conquête du prcsent, pour une sociologia da la vie quotidienne (1979), Desclée de Brouwer, reed. 1999. 3. Heidegg er (M.), L'Êtrc et íeTemps, Paris, Gallimard, 1964, p. 37. Cf. também Junger (E.), Prcmier journal parisien, Paris, LGF, 1984, p. 55. 4. Cf. meu livro Le Teinps des tribus, le déclin de I'individualisme dans les sodétós de masse (1988), reed. ampliada com um prefácio, Paris, LaTable Ronde, 2000, e Combes (M.), Simondon (G.), Individu et collectivité, Paris, PUF, 1990. 5. Simondon (G.), L'Individualisation psychique, Paris, Aubier, 1989. 6. Cf.Jung (C. G.) e Kerenyi (C.), LeFripon divin, Genebra, Georg, 1958. Cf. também Jung (C. G.), La Psychologie des transíerts, Paris, A lbin Mic hel, 1980, p. 78, e Synchronidté et Paracelsia, Paris, A lbin Michel, 1988 , p. 169 . S obre a anom ia, cf. Duv ig naud G), L’Anomie, Paris, Anthropos, 1970.

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7. Franz (M. L. von), Rêve d'hier et d'aujourd'hui, Paris, Paris, A lbin Michel, col. "Espaces libres'', 1992, p. 12. 8. Jung (E.) e Franz (M. L. von), La Légende du Graal, Pari Paris, A lbin Michel, 1988, p. p. 170 170 172. 9. Jung (C. G.), Types psychologiques, Genebra, Georg, 1993, p. 214. Cf. também Durand (G.), Introduction à la mythodologie, Pari Paris, s, A lbin lbin Miche l, 1998.

C a pít u l o

In

t e ir e z a

IV

d o

"Para ser grande, sê inteiro: nada em ti exagere ou ex clua. ” F. P e s s o a

D u p l ic id a d e

O que é considerado indivisível, o indivíduo, é antes de tudo fr ag me ntado. T ambém aqui, a ex per iência é boa conse lheira, mostrando constantemente que a fragmentação é coisa cotidiana. A dupla vida, a vida do êxtase místico, do transe techno ou a do donjuanis mo pe que no burg uês é um lugar comum da literatura de alto coturno ou do teatro de bulevar. Os poetas a celebram, os romances populares encontram nela o essencial de sua inspiração.   Aliás, não teria sentido fazer a separação. A dimensão cotidiana da duplicidade é, de fato, o indício flagrante de seu aspecto antropológico. Existe uma intranqüilidade do ser que merece atenção. É sobre ela que repousa o jogo das

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paixões, individuais ou coletivas. Santo Agostinho dizia inquietum est cor nos tium. Nosso coração é inquieto. Disto dá testemunho sua própria vida, atormentada, dilacerada, jamais satisfeita. Esta inquietude é o fundamento do estado de guerra permanente próprio desta perpétua tensão entre o que cada um é e o que gostaria ou sonharia ser. Talvez devamos enxergar nisto a fonte desse conflito estrutural de que está impregnada a vida social. Conflito no interior de si mesmo, conflito contra si mesmo. Crisol da luta que, no fim das contas, nos une ao outro. Philia e neikos. Amizades e inimizades, intimamente ligadas, são forjadas numa forma comum. É um estado natural da hu .• ■imanidade, este bcllum omnium contra omnes, a guerra de todos contra todos. Não tem sentido negar sua importância. São muitas as análises que o constatam. Raras são as que, lucida me nte , mostram s e capazes de estabelecer sua genealogia, e de afirmar suas conseqüências. Nietzsche, naturalmente, que, comentando Hobbes a este respeito, mostra como esta tensão é indispensável para a cultura, quer dizer, em seu sentido forte, para a formação do eu. Lento processo iniciático, que faz com que este conflito que nasce e renasce no interior do indiv íduo seja capaz /* de fazer "brotar as flores luminos as do g ê nio1". Pe rs pectiva dionis íaco heraclitiana que, c ons ciente ou não, tr abalha em profundidade qualquer conjunto social. Existe aí uma a mbiv alê nc i' muito dis tante do "fantas ma x lour n" próprio da tradição ocidental. A razão dogmática pode, quer piomulgar, impor a unidade. Os sentimentos, 1os afetos, de s ua parte, conduze m nos à turbulênc ia, ao

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des conforto da multiplic idade . E também à sua riqueza. Ou,] pelo menos, à sua realidade. É esta multiplicidade, no interior de si, que opera nas teatralidades cotidianas. É ela que permite entender as duplicidades vividas contra todos os poderes, os ardis de todos os dias contra as imposições pedagógicas, os subterfúgios em relação às certezas ideológicas, a abstenção nas grandes celebrações democráticas, a recusa de todo mora lismo constrangedor. Em suma, as trapaças que o povo opõe aos que pretendem determinar o que o mundo deve ser. A ge nealog ia do e s pírito rebelde remete nos, antes cie mais nada, a uma revolta contra uma concepção estática do indivíduo. É por ser múltiplo em si mesmo que o indivíduo não se reconhece na rigidez social. A dificuldade em captar esta tensão está no fato de que ela não se diz, mas se vive. É no ato que a versatilidade se coloca. Com insolência e desenvoltura, como toda rebelião, ela acredita nos fantasmas e com isto toma os dirigentes sociais pelo que são: simulacros. Para além de nossas certezas excessivamente racionais, devemos reconhecer nessas pregnâncias de imagens o tema recorrente da "so mbra" que ac ompanha todo indiv íduo. A  título de ilustração, podemos evocar aqui a narrativa de Er em Platão2, indicando que cada homem é tributário de seu demônio familiar. É ele que harmoniza, stricto sensu, os "humores" que nos afetam. É ele que predispõe para o gênio e engendra a alegria ou a melancolia sem causa. O daimon platônico é instrutivo na medida em que frisa a importância do "laivo de loucura" que readquire impor

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tância na publicidade, no cinema ou na canção. Encontramos esse "efeito impulso" próprio das paixões fulminantes, dos apegos repentinos, das compras sem motivo e outras aventuras imotivadas. Esta faculdade de atração nada tem de anedótica ou marginal. Pelo contrário, ela permite entender, de um ponto de vista sociológico, as adesões e os desamores, políticos, musicais, indumentários ou ideológicos tão fortes quanto imprevistos, e, sobretudo, muito efêmeros. Nessas versatilidades, é o "duplo" de mim que entra em  jogo. As loucuras coletivas, que não fa ltam nos dias de hoje, remetem nos s imples mente aos "laiv os de . loucur a" dos demônios pessoais que entram em conexão numa espécie de interatividade generalizada. Este tipo de loucura coletiva pode levar a suicídios coletivos, de determinadas seitas, por exemplo, mas também às conflagrações de violência em certas cidades , tão imprevis íveis quanto efêmeras. P odemos encontrar esta interatividade, entretanto, sob forma menos violenta. Podemos pensar o que quisermos a respeito, mas a "rede", o "ciberespaço" que ela promove são certamente uma boa ilustração, em todos os terrenos, de um simbolismo generalizado no qual a fantasia, ou seja, a partilha das imagens, desempenha um papel que não pode ser subestimado. No entanto, o daimon continua inquietante. Pelo menos na perspectiva do ideal racional ocidental. Mas se o pusermos numa perspectiva mitológica, ele traduz o ex travasamento do eu por outra coisa que não o eu. Desejo de infinitude tentando encontrar, viver outra coisa além

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do simples enquadramento identitário. As manifestações contemporâneas a que nos referimos podem fazer eco à visão poética transmitida por F. Pessoa: Quem tem em mim demasiado daquilo que é maior que eu, Demasiado do que não posso chamar Eu... O paroxismo poético diz, belamente e em tom maior, o que constitui cada vez mais os aspectos mais comuns da vida cotidiana. Este "extravasamento" é com certeza o aspecto mais importante com que se defronta o observador social, e podemos supor que estamos no início de um processo des tinado a desenvolver se e x pone ncialme nte . Ser extravasado por outra coisa que não o eu é, portanto, algo absolutamente atual. O que chamamos de reality  show  ou "telerrealidade" — Loft Story  na França foi disso uma boa ilustração — encena a "perda" do indivíduo racional nu ma entidade que o ultrapass a. Espécie de familialis mo exacerbado, no qual se liberam as diversas facetas do que podemos considerar estranho ou estranho em si. A crueldade, excessos afetivos não se e nco ntram mais c onfinados e protegidos pela solidez do muro da vida privada, mas teatralizados, jogados no "pote comum". O interesse despertado por essa par tilha dos afetos e a obsce nidade que isto induz são instrutivos. Lembram muito simplesmente que o "plural" na natureza humana é uma realidade empírica de antiga memória.

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Trata se, co m e feito de uma teatralidade que v amos e ncontrar em muitos mitos. Para citar apenas alguns exemplos, na lenda do Graal, Gauvain é a sombra fraterna de Percival. Quando este luta contra Gauvain, reconhece que lutou consigo mesmo. Combate no interior de si mesmo que v amos e ncontrar igualmente na epopéia babilônic a de Gilgamesh, na qual o herói está em luta constante contra seu irmão, o obscuro Enkidu. Esta dualidade é um elemento básico de muitos contos, que reconhecem e encenam a parte obscura do humano e não se limitam ao unilatera lismo do ideal solar (o racional). Este últim o — e isto começa a ser be m analis ado — pôde levar a mode rnidade oc idental ao or g ulho arrogante do c ontrole, de si e do mundo, com as conseqüências que conhecemos: as explorações sociais e naturais. Ao passo que o reconhecimento do obscuro, em si e no mundo, é uma espécie de humildade que se baseia na aceitação da sensação, ou seja, c omo obse rvav a J ung , no "s enso do re al".3 Encena ndo este real, proteg emo nos, domes ticamo lo. Catarse cuja necessidade é evocada pelo teatro ao longo dos tempos. Purgação cuja pertinência social é frisada pelo sucesso dos programas de TV contemporâneos. Os casais antitéticos das rpitologias, as ge melidades mís ticas, o familialismo ambíguo da telerrealidade — está aí  toda uma série de indícios que e nfatizam o aspecto es trutu ral e es truturante da ambiva lência. Pode mos tentar mascará ■la, erradicá la, que ela não de ix a de afir mar s ua irrefrag ável ^.co ntinuidade . Para dizê lo e m termos meta fís icos , Deus _precisa sempre de seu pared~o: Satã.

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V aiv ém entre os fatores angélicos e s atânicos , c uja fe c undidade é re latada por todas as histórias humanas . O ho mem médio, moderno, que só "funciona" numa dessas polaridades, é um ideal recente. E, aliás, parece que este ideal   já está em vias de saturação, e que está voltando à ordem do dia o dialógico, que a sabedoria popular nunca esque^, ceu, entre o "cheiro de santidade" e o de "enxofre". Esta bipolar idade manteve se na memór ia coletiva na pess oa dos heróis, grandes chefes guerreiros, conquistadores diversos e outros personagens de romance. Mas estes só puderam ser assim porque se enraizavam num substrato coletivo, verdadeiro conservatório de uma sabedoria concreta, na qual a homologia entre "o que está embaixo" e "o que está no alto" era uma realidade vivida. T raç ando o retrato de um desses her óis , C ris tóvão Colombo, o historiador das idéias Eugênio d'Ors frisa o traço marcante do que chama de sua insinceridade. Transcendendo a simples estigmatização moral que poderia ser pespegada a esta característica, ele vê nela essa espécie de oscilação "entre o que é verdadeiro e o que é fingido", sombra de ironia "tão específica do pensamento mediterrâneo, de seus exercícios de equilíbrio baseados no princípio de contradição".4 Se o herói é reconhecido como tal, é porque está sintonizado com as características comuns. Ele participa do húmus coletivo. Mais que produtor, ele é o "produto" de sua época, em relação de amor com ela. É próprio de uma relação como esta ser ambígua. Disto o princípio de contradição, que devemos entender em sua acepção lógica, vem

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a ser uma expressão privilegiada. A oscilação entre o bem e o mal, o escuro e o claro, o céu e a terra, acentua, em sua dinâmica própria, aquilo que caracteriza o que é vivo. As ; qualidades morais do santo, do herói, do gênio são, claro, importantes, mas seus defeitos não o são menos. E com as duas coisas que o homem sem qualidades comungará. É nesta "oscilação" que repousa o mecanismo de participação mágica nos pequenos deuses cele brados pelos faits divers, as revistas do tipo people e outras máquinas de sonhos coletivos. O jogador de futebol de origem argelina com salário faraônico, a princesa inglesa e sua morte trágica, o cantor americano dado a provocações escandalosas, o político e suas pequenas corrupções , o guru re ligioso com suas travessuras sexuais — não faltam figuras cotidianas da ambivalência vivençiada.. E se essas figuras continuam a ser emblemáticas, verdadeiros ícones, não é apesar, mas por causa de seus defeitos, que só serão considerados "taras" de um ponto de vista moral, o da separação radical entre o branco e o preto. É preciso, pelo contrário, reconhecer empiricamente que isto lhes "confere peso". A tara não pesa, ela torna leve. Podemos compreender assim como certos políticos que foram julgados e condenados por fraudes chegam a ser reeleitos, sem problemas, para escândalo de muitos de seus antigos comparsas. Em suma, a "coincidência dos opostos" é a expressão de uma simbiose misteriosa. Aquela na qual bem e mal misturam se intima me nte para o cre s cime nto de qua lquer planta. Por que a planta humana seria uma exceção na ordem natural das coisas? O estrume também

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serve para fazê la crescer. A ex pre ss ão popula r que reco nhec e em alguém "o inve rs o de s uas qualidades " está apenas e x primindo, e poder íamos me s mo dizer que está apenas teorizando uma tal realidade. "Cenestesia" antropológica que, em seu sentido etimológico, evoca a sens ação de um todo ( koinos ) elabor ado a par tir de e lementos diversos, disparatados, contraditórios. E também sensação de um todo que alia a dinâmica (cinética) dos fluidos e a estática dos sólidos. Esta "cenestesia" observada pela medicina no corpo físico e identificada pela psicologia abissal na alma individual ta mbém atua no corpo social. O re co nhec ime nto desta ambiv alê ncia limita se a frisar que, c ontra riando uma m o ral pre nhe de boas inte nções mas algo abstrata, e x iste uma "ética" mais real, baseada nos costumes ( ethos ), logo, mais \próxima da realidade. Realidade entendida em seu sentido pleno, ou seja, integrando os fantasmas e as fantasias, os sonhos e os pesadelos, as alegrias e as desgraças. Ética da vida de todos os dias, que sabe, com base num saber incorporado, que esta não pode ser partilhada, tendo sempre necessidade de seu contrário para alcançar a plenitude. A  morte co naturalmente lig ada à v ida, o defe ito à qualida de, a ordem à desordem. M uito antes de formalizá lo, de u m po nto de vista epis temológico, Edgar Morin observara, a propósito do cinema, o aspecto "complexo" dessa ética. Numa formulação condensada, ele identificava no homem imaginário "oy  universo arcaico de duplos e fantasmas" e "seu aspecto envolvente que vive em nós".5 O que era dito a propósito

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da produção cine matog ráfica — o re nas cime nto do arcaísmo — é ainda mais v erdadeiro no que diz res peito a m uitos elementos do imag inário pós  moder no. Os jogos de papéis e outros video games, as love parades e diversas re u niões techno, e inclusive a multiplicação dos festivais folclóricos e re constituições históricas, tudo is to deix a clara a revivescência do estranho envolvimento que o arcaico universo fantasmático continua a exercer. Como os mistérios teatrais da Idade Média, eles favorecem a comunhão comunitária. E isto sem deixar de lembrar, em particular, que para além da positividade racional existe este fundamento antropológico que persegue cada um e o corpo social em sua integridade. Rememorando o aspecto duplo, complexo, de toda existência humanai Envolvimento que foi possível mascarar, apagar ou marginalizar na arte, mas que tende novamente a se capilarizar no conjunto dos fenômenos sociais. O cinema do homem imaginário contemporâneo não está mais confinado às salas escuras. A "escuridão" disse minou s e, e qualquer um é capaz de "fazer seu cine ma" na vida cotidiana. Sonho acordado que ratifica um inconsciente e me s mo um c ons ciente c oletivo, faze ndo co m que, com a ajuda de figuras arquetípicas, criemos uma verdadeira "sobrevida" no próprio seio do prosaísmo cotidiano. Se insistimos no aspecto coletivo desse arcaísmo que vem a ser a duplicidade é para evacuar a conotação moral que ela não deixa de ter no contexto de uma psicologia individual. Ao ser as s umida pe la co munidade , esta c ontra dição torna se de certa maneira "deglutív^l". ; la é, stricto sensu, relativi

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zada por outras características do conjunto social. É a cenestesia de que falei acima. No contex to de uma personalidade coletiva, cada um pode desempenhar seu papel, inclusive aquele que, de um ponto de vista es tritamente indiv idual, pode parecer condenáve l.   Assim, o fanfarrão, o "cascateiro", ou, para retomar uma figura romanes ca célebre, o "T artarin deT ara s co n" local, é aquele que é inc umb ido de dizer ou viver, e m tom maior, a preg nância do fantas ma ou da fantasia. Pouco importa que acreditemos ou não. Diante da simples clareza da verdade, ele assume a parte de sombra cuja necessidade é inegável. Um tecido, para ser o que é, é constituído do entrecru zarnento de inúmeros fios. O mesmo se dá com o tecido social, que, para não ser multicolorido, integra cada coisa e seu contrário. Parece uma banalidade, mas convém aceitar todas as suas conseqüências, inclusive as que poderiam ser moralmente reprovadas. F alando da tex tura do tapete oriental, L ouis Massignon observa que ela se caracteriza pela "justaposição de luz e trevas, de claro e escuro", ou ainda que os animais específicos do tapete persa parecem "torturados”.6   A alusão é das mais instigantes, pois chama a atenção para a organicidade do corpo social, causa e efeito deste tecido. A a mbiva lênc ia e strutural precisa teatralizar se. E do "cascateiro" ao tapete persa existe efetivamente um fio de ligação, o da complexidade da vida feita de uma multiplicidade de elementos, mas na qual "todo conjunto está integ rado". E m s uma, a es curidão é um mo me nto do holis mo tribal. Ela frisa seu aspecto simbólico, ou seja, permite a "religação", favorece o vínculo.

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Para ficar nessa ambivalência do espírito mediterrâneo, cujas oscilações e cujo princípio fundamental de contradição indiquei, podemos lembrar que mesmo o espírito de v in inga ga nça — co mo a "vendetta”, no caso ca so ex trem tr emoo — pode ser ser e nte ndido como uma e x periência periência dessa "re "re ligação", ligação", uma forma de solidariedade, de participação na comunidade. Alguma coisa foi perturbada na ordem social, é preciso ciso conse conserta rtar. r. A v in ingg ança c omo "ato re parador parador e salv ador7" ador7" é algo que pode parecer parecer paradox al, mas , s em jus jus tificar tificar s eus eus aspectos criminais, é preciso reconhecer sua dimensão ética. Ela cimentou um corpo social. E de uma forma mais sorrateira, e se escorando em justificações ou legitimações de todos os tipos, não estaria operando igualmente nos "acertos de contas", estigmatização, marginalização, que vamos encontrar em nossas sociedades policiadas em todos os níveis, e em todos os setores da vida social? Assim é que a palavra vingança foi empregada no primeiro discurso do presidente dos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001.  A caricatura é um bom método analítico. No caso, ela é capaz de nos fazer entender que se o indivíduo pode ser reduzido à unidade, a pessoa não o pode. Da mesma forma, a pessoa coletiva que vem a ser o grupo social não pode ser unidimensional. A assepsia que é o ideal das grandes teorias ocidentais, a emancipação do mal ou da desordem que é o das teorias modernas não resistem ao retorno obstinado dos arcaísmos que nos lembram, queiramos ou não, o aspecto plural dessas "coisas" opostas e complementares que constituem qualquer realidade mundana.

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  A redução à unidade, monoteísmo, indivíduo, Estado, redução que conduz ao surgimento de um homem médio moderno e à sua contabilidade estatística, é o resultado de um pensamento do "não" e da crítica teórica que lhe serve de legitimação. Em nome,de um valor tornado absoluto, recusam recusam se ou outros, não menos preg nante ante s , que v êm a ser negados ou estigmatizados. Bem diferentes são a duplicidade, a ambivalência, a ambigüidade, que podem ser entendidas tendidas c omo formas formas de di dizer o polite ís mo ou a poli poliss s e mia da pessoa plural e do conjunto comunitário. Neste último caso, é o "sim” que prevalece. O r e e ncantame cantame nto do do mundo , o apelo apelo do fa ntas mático, ático, os envolvimentos coletivos que são sua expressão, tudo isto traduz o ressurgimento do "sentimento do sim”. O maravilhoso, o "surrealismo” já não constituem mais, então, s impl implee s div div e rtimentos literári literários, os, en e nraizando raizando s e nas nas e moções oções afirmativas. Emoções compartilhadas que já não se reconhecem nas diversas formas de ressentimento em relação ao que que é, mas mas o ace itam, itam, teatralizan te atralizando do o. A e moção poética poética da s urre alidad alidadee torn tornaa se uma re alidade alidade c om um, um s agrado c otidiano. otidiano. Qualitativ Qualitativ o da da v ida ida que in integ teg ra o tremendum, o excesso e o risco aos atos e fenômenos da banalidade.   Assim, de uma forma inconsciente, a transcendência se imane ntiza, o div ino enca encarn rna a se no cor po social, social, jus tame nte por por is to ace itan itando, do, de uma f or ma o u de outra, a finitude finitude como componente essencial da vida. T alve alve z fo fosse conve ni niee nte, te , na e steira steira desse desse "surr ea lismo", lismo", elaborar uma poética da existência social que dê lugar ao fascinante, ao tremor, à sedução. É próprio do duplo, da

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sombra, reconhecer como evidente a íntima ligação entre a morte e a vida. Viver sua morte de todos os dias. Em La \ T ragédiedela ragédiedela cul culture, GeorgSimmel observa que "a morte pode habitar a vida, assim de repente, sem que por isto ela se torne imediata me nte c on ontabil tabilizá izávv e l, ela abre abre uma minús cula partícula dela, enquanto realidade8". A morte está presente, pronta para o bote, como tensão. Ela não se di.z, verbalmente, mas impregna todos os atos da vida cotidiana. E quando o senso comum, num lapso esclarecedor, exprime isto — "a vida é tão curta" ou outras sentenças do tipo — é para lembrar que convém desfrutar da melhor maneira possível o que se vive, com intensidade, já que a impermanência está aí e que somos "permeados" por ela. O que quer dizer isto, senão o reconhecimento da org anicidade anicidade do ho lis mo natura natura l e s ocial ocial?? A matér ia e o espírito são ao mesmo tempo reais e irreais. A maior verdade de alguma coisa é e não é, ao mesmo tempo. A essência do unive unive r s o é a contradição. A matéria é es piri iritu tual, al, as s im c omo o espírito é material. É o "trajeto antropológico" do qual G. Durand traçou uma espantosa cartografia, é também o "transcendentalismo panteísta" caro a F. Pessoa. Coisas que reconhecem ao mesmo tempo a necessidade dos limites obje tivos tiv os e a não me nos imper imper iosa neces s idade dade de de vivê vivê lo los. s. Finitude, dor, presentes, como sombras inelutáveis. Mas sombras que, ao mesmo tempo, dão sentido à vida, fazem s ua qualidade es pecífica, ecífica, c on onfe fe re m lhe lhe seu sabor do doce ce amargo. É curioso observar que as anes plásticas, a produção ci

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co nte mporânea — S. Buirge, por e x emplo — te atralizam os elementos naturais, chtonianos, próximos da terra, da pri mitividade , das raízes. T ambém J an Fabre, num registro ex cessivo, recorre ao sangue e ao animal pronto para o bote em cada um de nós . Este não rac ional es petacularizado não passa de uma cristalização de outros excessos ou eferves cências que caracterizam o espírito do tempo.   A arte, aqui, reitera a "loucura dos selvagens" que impregnava constantemente os contos medievais e suas metáforas tomadas de empréstimo aos bestiários9. Selvagens, sangue, terra, animais, conotam um saber mítico: o do duplo. Saber do corpo ao mesmo tempo vitalista e fortemente marcado pela morte necessária e inelutável. Saber iniciático que, longe da unidade, lembra que as provações, a dor, a impermanência, são "momentos" do surreal dos quais a comunidade em seu conjunto participa e que é a verdadeira eternidade.

 A  M O R T E C O M O D U P L O Parece certo que, sob nomes diversos, as práticas dionis íacas e o saber dionisíaco que lhes serve de legitimação estão próximos do elemento natural. Sua selvageria, desde Nietzsche, tem sido enfatizada muitas vezes. Por isso mesmo elas chamam a atenção para o aspecto torrencial e impetuos o da v ida. Ora, a v ida dionisíaca també m é um flerte com a morte. Ambivalência que assinala a organicidade de todas as coisas. Em certos momentos, semelhante ambi-

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v alência se ostenta. É o caso desse labo ra tório da pós mo dernidade que foi  Vienne fin de siècle, a peça de S chnitzler : L'Appcl á la vie ressoa, igualmente, como um chamado à morte. O mesmo sentimento é encontrado na obra de Klimt, e mais ainda na de Egon Schiele10. Este reconhecimento do "duplo" que é a morte não deixa de impulsionar uma criatividade real. UAppel à la vie (1905) e o quadro de Klimt La Vie et la Mort (1916) encenam de forma pungente a mistura de instinto e crueldade, espírito e sangue, sofrimento e ódio que age na expressão do desejo. Mas, ao mesmo tempo, e com uma lucidez estimulante, mostram que não existe um muro intangível entre a arte e'a vida, ambas impregnadas da mesma matéria e do mesmo espírito. A expressão aparentemente paradoxal " Gefiihlkultur” (cultura dos sentimentos) reflete bem isso. A cultura não é apenas um horizonte rac ional, ela env olve afetos, é e ncar nada e, por tanto, in tegra todos os elementos dessa encarnação. Inclusive o aspecto perecível da carne! Entende se melhor, assim, a es pantosa ligação entre "o apelo da vida" e "o apelo da morte", na medida em que constituem, a longo prazo, um equilíbrio dos mais sólidos. Quando uma sociedade não consegue encontrar este equilíbrio, sucumbe rapidamente à violência desenfreada ou ao tédio generalizado. A modernidade é um exemplo flagrante de c ivilizações que, te ndo pre te ndido es quivar se à dor, expulsaram a sombra e por isso mesmo viram proliferar carnificinas e genocídios, enquanto eram ao mesmo tempo tomadas por uma falta de intensidade existencial. Des

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se modo, o tédio pode ser entendido, segundo a expressão de E. J ünge r, c omo a "diss olução da dor no te mpo ". Ele fala, a este respeito, à imagem de uma formulação célebre, de um "ar dil da dor " que assim cons eg ue se e x primir11. É contra este tédio deletério que a criatividade, em sua^ ambiv alê ncia e sua cr ueldade, pre te nde re agir. E la le mbra j que ao lado da lei de ferro da economiazinha moderna^ existe uma lei não menos impositiva da "economia.geral", que integra, como bem viu G. Bataille, o gasto, a perda e a f^ morte . A inte nsidade erótica, que não se deix a e nganar, te m' esta condição, na medida em que liga eros e thanatos. Pe quena morte do gozo, que, no auge do desejo, lembrase. de tudo que o une à morte. É difícil pensar esta união no contex to de um pens amento ocidental para o qual a morte não deve existir, pois o importante, o "real" é a vida eterna, após esta "vida aqui" provisória. Foi esta tensão voltada para o futuro que efetiv ame nte c ons tituiu toda a cultura judaico cristã. A laiciza ção desse desejo de vida eterná, no século XIX, em nada altera o proble ma, e s truturalme nte. Qua ndo Marx declara, e m  A questão judaica, que "a política é a forma profana da religião", pretende fundamentar teoricamente a busca de uma eternidade terrestre no contexto da sociedade perfeita "por vir". Em ambos os casos, a morte, em suas diversas formas — mal, pecado, desordem, anarquia — é desprovida de realidade lógica. Deve, portanto, ser superada. É a partir dessa perspectiva que podemos entender a temática moderna da emancipação de essência evangélica: "Morte, onde está tua vitória?"

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Semelhante negação da morte gera um clima mortífero. A morte recusada vinga se impre g nando o c onjunto da vida. Como demonstram tantos etnólogos e antropólogos contemporâneos — algo que encontramos em numerosas culturas em todo o m undo — , bem difere nte é o "s e ntime nto trágico" da vida no qual a morte é o verdadeiro preço a  pagar para des frutar a v ida. L ouis  V ince ntT homas cheg a a falar inclusive do mito da "morte comprada12”. Neste sentido, os exemplos que dá frisam que existe sempre reversi bilidade, vaivém constante entre a morte e a vida. Uma certa osmose, que fundamenta uma eternidade essencialmente comunitária. Em outras palavras, a morte cotidiana, que devemos compreender stricto sensu: morte vivida e presente no dia a dia e que nada te m de te míve l, pois é um e le mento da v ida. A ceitando a, pagamos à v ida s eu tributo. Daí a inte ns idade que ela adquire . T ambém aqui, trata se ef e tiva mente de uma "economia geral" que permite viver o excesso, o mal, a des ordem, e, por tanto, home opatizá los . T ática de inte g raç ão que leva a um mais ser, a um surre al dos mais banais. O tédio já não tem razão de ser. O qualitativo existencial se satisfaz. O gozo do instante presente leva a um gozo puro e simples. A morte como preço a pagar já não gera nada de mortífero, e o equiKbrio natural é restabelecido a todo momento. Não me interpretem mal: tratase de um "sentimento trágico" da vida. O que não significa que esteja isento de asperezas e dores. Mas as expressões da dor, vivida em

131 simbiose c om o ambiente natural e social, tornam se "deglu tíveis". Não sendo paroxística, ela contribui para o fluxo v ital e chega a corroborá lo. É o fruto de um longo processo iniciático, sempre renovado. Algo que pertence à ordem do onírico coletivo. Sabemos novamente que temos de estar atentos aos sonhos. T ambém a v ida social é habitada por seus fantas mas familiares. É ass im que as pes quisas s obre os fantas mas transge ' ' racionais, os segre dos de família, mas també m a ence nação das carnificinas e crimes passados (genocídio armênio, prisão em massa de judeus franceses no Vélodrome d'Hiver) participam dessa exploração das criptas oníricas. Explorar as criptas torna se, mais do que nunca , neces sário. E não se pode fazer uma ^arqueologia da s ocialidade sem apegar se a esses sonhos que rondam o corpo social. É esta ligação entre a ar queolog ia e os sonhos que pode levar nos à que ex iste entre o bem e o mal, entre a vida e a morte . T ambém aqui a pintura, Carav aggio ou Delacroix , esclarece nos sobre essa estranha iniciação na medida em que mostra, "monstro”, a força do mal. Sua utilidade também. Ela permite pensar que podemos encontrar na infelicidade oportunidades de prazer. T alvez seja este o s egredo da criatividade de que es tamos tratando. Não o simples trabalho, terrivelmente monótono e redutor, mas a criação de uma obra, da vida, que invariavelmente une os contrários numa sólida organicidade. Para dizê lo e m outros termos, e m seu s entido ple no a vida se nutre da morte . Difíc il dizê lo em nossas s ociedades algo beatas. Tão cheias de suscetibilidades, por outro lado, que

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só se contentam com as opiniões adequadas e moralmente aceitas. No entanto, a lucidez nos obriga a enfatizar esta banalidade tão evidente na experiência cotidiana. Elias Canetti observa, justamente, como a morte de um ente querido pode dar o "sentimento de ter crescido". Para ele, isto está no próprio centro da sobrevivência, "situação ce ntral da for ça ".13T alvez dev amos e nte nde ra sobrevivên cia como esse "mais ser", este surreal que te ndemos a es quecer, mas que serve de ossatura ao ser individual e coletivo. t Só podemos "estar aí" se enraizados nesse substrato constituído pela morte. Húmus fecundante do qual dão testemunho os ritos fúnebres, as necrópoles e os diferentes lugares de memória. A morte dos ascendentes é exatamente o que introduz na plenitude da vida. Esta observ ação corrente e propr iamente trágica e ncontrase de forma paroxística nas tribos polinésias, nas quais o "mana" de um guerreiro ou de suas armas era acrescido do do inimigo abatido. Tratase de uma temática bem conhecida, da qual nos falam, sob nomes diversos, muitos trabalhos etnológicos. Fixemos sua idéia central: a da força vital que só pode sêlo em função da morte que a corrobora e a faz crescer. É aceitando e defrontando a morte que nos tornamos mais vivos. A mplia ndo a discussão, podemos nos per g untar se a força societária també m não proce de dessa forma. Falou se do "mana cotidiano", o dos faits divers, os favoritos dos boatos, das convers as de es quina e da impre nsa popular.14   Acontece que o sangue e a morte, as desgraças e as dores, em suma, o desamparo é efetivamente o essencial neste

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terreno. Para retomar a conhecida canção, "não é só em Paris que o crime campeia, nós do interior também temos belos assassinatos" (G. Brassens). Caberia perguntar se esses "belos assassinatos" não têm uma real função ética: eles cimentam o estar junto. Durkheim insistiu na importância dos "ritos piaculares"; chorar coletivamente também é um modo de formar o vínculo social. Ambivalência da 5 morte. Ambivalência fundadora! Os faits divers seriam, assim, a maneira contemporânea de integrar os fantasmas na socialidade. O "mana cotidiano " seria a expressão mais evidente da mitolo g ia pós moder na. Vale notar, por sinal, que o "ciberespaço", especialmente a Internet, dá a esta tendência uma força ampliada, permitindo lhe pote ncializar seus efeitos. O de monis mo, s ob to das as suas formas, a magia, a astrologia, a vidência, ocupam nele um e spaço privileg iado. A não rac ionalidade de todos esses fe nômenos confere lhes uma es pécie de "hiper í^ racionalidade", no sentido que Ch. Fourier e A. Breton atr ibuíam a este termo. A hiper racionalidade de uma participação mágica e misteriosa em entidades ao mesmo tempo estranhas e estrangeiras, e ainda surpreendentemente próximas, pois sustentam a vida cotidiana.   Além ou aquém do político, da economia e das diversas instituições, a "Sombra", em seu sentido mais forte, plana sobre as situações e os espaços sociais. Realidade in frangível do nebuloso/do "irreal", que volta a ocupar um lugar privilegiado na análise dos fatos sociais, a temática do imag inário está aí para prová lo, da ndo ao "v irtua l" um lugar central na estruturação social.

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O que nos e ns inam as hordas de fantasmas que anima m o "mana c otidiano", s enão a impor tânc ia do v ácuo e de seu necessário aprisionamento? Reconhecimento da brevidade da vida. Como indicam tantos desses quadrantes solares nas cidades de montanha: omnes vulnerant, ultima necat, ^ todas as horas ferem, a última mata. Mas esta imper manência é uma forma de celebrar a vida "apesar de tudo". Nunca será demais repetir: organicidade da felicidade e da infelicidade. Gozo em pleno horror indizível: "Cheguei à saciedade do vazio, à plehitude do nada absoluto" (F. Pessoa). Plenitude, saciedade. O poeta sabe pôr em palavras o "conhecimento ordinário" do desamparo, Ele lembra como a infe licidade pode v alorizar a qualidade dos bons mo me ntos. As errâncias oníricas noturnas, as errâncias existenciais diurnas, com seu corte jo de vicissitudes , le mbram que existe um repouso. Comentando os segundos que antecedem a felicidade do sono num poema de Goethe, Th. Adorno frisa seu aspecto me taf órico : a coisa ass emelha se ao te mpo trágico que separa e une a vida breve e a morte15. Ironia sublime que não deixa de lembrar a lucidez popular que enxerga no repouso essencial o objetivo de toda vida. É claro que, como todo sublime, o sorriso da morte é enigmático, enigma de que a arte e o cotidiano estão permeados, mas ainda assim sorriso, na medida em que aceita, com uma indiferença estóica, um inelutável que não pode mos evitar. Neste s entido, os fantasmas v ividos no dia a dia, os da literatura, da ficção cie ntífica, dos boatos e dos faits divers, são como pontuações de uma vida que sabe

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mos dupla, de uma vida vivida, coletivamente, como comunidade de de s tino com aqueles — e aquilo — que cons tituem seu húmus. Se parece cada ve z mais unanimeme nte aceito o impac to do emocional na vida social, freqüentemente esquecemos que o emocional é o próprio da comunidade. Max Weber, precisamente, analisou muito bem esta característica. É, de certa forma, uma matriz, na qual, para além do aspecto individual, estamos em comunhão com a alteridade. O muito dife re nte ex primindo s e na numinos idade do div ino, ou no outro da linhagem, ou simplesmente nos "outros". É tudo isto que faz de cada um aquilo que é, num contexto coletivo. Mas este emocional, através das paixões e afetos de todos os tipos, é também a partilha da dor. Partilha da dor quer dizer participação na dor universal. Talvez seja assim que devemos entender as referências contemporâneas à1 ordem do "compassional". Alusões às filosofias orientais que não negam ojispeçto noturno e inquietante da vida, mas, ao c ontrár io, integ ram no à e s truturação coletiv a. Talvez seja assim também que devemos entender õ que Max  Scheler chamava de “ethos da simpatia". Simpatia não aplicável somente ao homem, no que tem de individual e, portanto, s e melhante a mim, mas s impatia e s tendida à rea lidade como um todo: social, fauna, flora. Em suma, é porque há fus ão, c onfus ão c om a nature za, que a s impatia te m uma função ética. Esta simpatia re pous a no r e conhec ime nto do s ofr ime nto, dor universal que temos de compartilhar. Mas ao mes-

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mo tempo, este reconhecimento é uma espécie de "pan v italis mo". J u d o que vive sofre por v ive r. Trata se de uma ética cós mica, poder se ia dizer holís tica, que nã o separa nem distingue, nem tampouco hierarquiza, mas incita a uma fusão afetiva com a vida e a morte universal16. A partir de então, a simpatia — e indo um pouco mais longe poderíamos dizer a empatia — não permite a dominação, logo, o poder, sobre o que seria inferior — o animal, o vegetal —, instaurando, ao contrário, uma relação fraterna para toda forma de vida. Cabe aqui estar atento às conseqüências de semelhante atitude.   A temática da dominação resulta da negação da morte. Esta morte que não integramos é remetida aos bodes expiatórios que vêm a ser as criaturas "de baixo". E a história ocidental mostrou fartamente como era fácil qualificar de "inferiores” raças, sexos, grupos diversos. Nessa perspectiva, a estigmatização pode ser variável, mas não deixa de ser constante. É muito diferente quando o mal, a sombra, a morte, em suma, a dor ligada intrinsecamente à vida, são reconhecidas como características essenciais. As criaturas, quaisquer que sejam, são manifestações da vida e por isso mesmo merecem uma atitude "compassional", fraterna, pois juntas constituem o fluxo vital. É assim que devemos entender a utilidade social dos diversos "mu ndo s inte rme diários " que vêm a ser as crenças, religiosas ou filosóficas, no "duplo”, espíritos, daimon e outras figuras tutelares ou assustadoras. Elas a judam a vive r o s of rime nto no dia a dia, comunalizando o.

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  A psicologia abissal, em particular toda a corrente jun giana, chamou a atençãc para algo que poderíamos chamar de aspecto "funcional" do sofrimento. Verdadeiro "olho da alma" que permite ver por meio das aflições. Temática bem conhecida da provação iniciática que gera um saber mais verdadeiro. Mais concreto também, na medida e m que per mite crescer c om as coisas que nos cer cam.  Assim, a depressão não teria de ser superada ou tratada, mas v ivida. N o "v ácuo" que ela cria pode v ir aninhar s e a lição da experiência. Verdadeira "lição de coisas" para a qual o limite, a limitação, o desamparo e a morte fazem parte da vida em sua ambivalência. Podemos extrapolar essa perspectiva de um ponto de ‘ vista social e frisar que, para além do projeto "higienista" própr io da mode rnidade ocidental, o "risco zer o”, a assepsia generalizada da vida, o desejo do mal está sempre recobrando força e vigor. T errorismos, c ons umo de produtos tóx icos, alucinógenos, álcool, psicotrópicos diversos, a estranha hecatombe induzida pela maneira de dirigir automóveis, desordem festiva, incêndio desse objeto venerado por todos, o carro: são muitos os indícios de transgressão, de ul trapassagem dos limites17. Não quero aqui fazer uma lista exaustiva das formas de risco no ato de dirigir. Mas sem voltar para elas um olhar normativo, e em nome da "neutralidade axiológica" que devemos preservar, temos de reconhecer que cada uma dessas formas é objeto de uma estranha ambivalência18. De atração e repulsa. Temos medo e vontade ao mesmo tempo. Para convencer se, basta ver a c uriosidade (doentia? )

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> des pertada por acide ntes , mortes e fe rime ntos no trâns ito. Olh o da alma, eu disse acima. Não have ria no "v oy e uris mo" i

contemporâneo algo como o olho da "alma social"? O desejo de ver a desgraça pode ser considerado, assim, a sua ca nonização. Os ac ontec ime ntos de 11 de se tembro de 200 1 ilustraram este ponto de vista através da fascinãção provoc ada pela imag e m da que da das T orres Gême as , e logo a psicose do antraz. A riqueza e o poderio da América atacados em seu ponto central, a bioguerra é de certa forma a guerra do animal, pior, do bicho imundo, a bactéria, contra o progresso da higiene. N ão é então s imple s provoc ação gratuita ver nas ex pressões ambiv alentes do s ofr ime nto uma espécie de des pertar da sociedade para si mesma. Este "procedimento do despertar" era a função capital atribuída por Jung ao sofrimento e m Resposta a J ó)9. As guerras, os atos terroristas, as catástrofes naturais, os acidentes espetaculares e outras expressões do trágico humano induzem também um "despertar" s ocietário. T udo is to serve pe riodica mente de anamne s e da impermanência estrutural das coisas e das pessoas. Lembrança de que a realidade inclui o negativo, de que sua natureza é contraditória. Numa tal démarche, a comple tude, a do homem para o psicólogo, do social para o observador, induz sempre uma coisa e seu contrário. É a rev ives cência d o pueraetemus... albusetater, a criança eterna... branca e ne g ia, que dorme e m cada um e que não deixa de ressurgir no corpo social em seu todo.  A c riança que brinca e des tróí talve z seja a figura paradig t ú ítica de nossas sociedades. Figura que, à margem de qual

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quer moralismo, frisa que não podemos expulsar, mas, no máx imo, jogar co m o mal. É prec isamente isto que nos le mbram os comportamentos de risco ao volante, as eferves cências techno, os excessos festivos. A verdade do homem está na contradição. Suas práticas são sempre ambivalentes.   A duplicidade é a estrutura antropológica mais constante. A "função" do s ofr imento é lembrar que ex iste uma "pre ga" em cada um, c omo ex istem múltiplas "dobras " no corpo social como um todo. Estas nunca conseguiremos "aplainar", livrar mo nos dessas "pre gas ", ex plicar ( explicare ) tudo. Basta vivê lo. O es petáculo da infelicidade, os "ritos piaculares", esses choros coletivos que julgávamos superados e que voltam com força na mídia, podem assim ser entendidos como o retorno do recalque de um mal irrefreável, de uma v iolência fundadora , de fantas mas s empre pre sentes. É preciso chorar junto: por Lady Di ou por este ou aquele acidente (C oncor de, túnel de Mont Blanc...). P a r a ií  agradar, também é preciso saber fazer chorar. É assim que podemos entender o sucesso dos programas da telerrea lidade!   Vaivém entre o anjo e o demônio, partilha entre céu e terra, são muitas as expressões que frisam no terreno artístico a ambigüidade da criança que brinca.   You walk, criação do coreógrafo nov a iorquino Bill Jones , tr aduz be m esta divisão. O mesmo acontece com Rituales en Haiti, da fotógrafa espanhola Cristina Garcia Rodero, que mostra corpos chafurdando na lama em peregrinações vodus em homenag em ao e s pírito guerreiro Ogu- SaintJacques. Corpos em êxtase, corpos que copulam, corpos de materialidade

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es piritualizada, mos trando e fe tivamente o que pode have r de sublime na comunhão com essa quintessência do espírito terreno que é a lama. O que ressalta desta participação no oculto chtoniano é uma grande fraternidade20. A participação neste símbolo obscuro do sofrimento humano tem uma função ética. Religação societária! Convém estar atento às numerosas manifestações dos "arcaísmos" (no sentido etimológico da palavra, fundamental, primeiro) que insistem na força do mal, do sombrio, do animal. Em suma, a força do diabo como fator agregador. Mergulhar ritualisticamente na lama para um culto vo du ou remexer o lodo numa festa techno são os sintomas reveladores de uma espécie de intensidade existencial que repousa numa fundamental "harmonização" com as coisas, como elas são, e com os outros, como eles são. Além de uma concepção moral do mundo, a própria "exceção" ocidental, a aceitação da sombra, vale dizer, da vida em sua duplicidade estrutural, é uma maneira de ressaltar o aspecto insubstituível da vida, seu aspecto diamantino. Assim como as pedras preciosas derivam da cristalização de uma matéria vulgar, cada fenômeno individual e social provém da "essencificação" de atos, representações ou sonhos, nos quais o claro e o escuro misturam se ine x tricav e lmente.  A ênfase no vitalismo bem demonstra que a vida é uma c c ontínua "transubs tanciação" na qual, e graças à qual, vida e morte não são fundame ntalme nte heter ogêneas , mas participam de uma mesma realidade. A inteireza do ser inscrevese nesse dinamismo. Toda transformação — talvez

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dev êss emos dizer toda transfig uração — ex ige s angue, lama, sofrimento; é o sentido do sacrifício em sua dimensão antropológica: o "fazer sagrado" que funda o divino social. Diante do tédio que é uma morte recusada ou negada, tédio que foi a marca da modemidade em seu apogeu, tédio conseqüência da ideologia do "risco zero", e cujas fontes serão encontradas nas teorias da emancipação, diante dessa tendência própria da sus.cetibilidade do mundo burguês, o v italismo pré moderno que parece ser uma c aracterística da pós  modernidade vive o eq uilíbrio c onflituoso dos elementos opostos. Temática algo mística da "vida indissolúvel" (Zoe Akatalytos21), ou a coincidência dos contrários que encontramos em tantos pensadores. Nicolau de Cusa, naturalmente, mas também Schelling, e mais recentemente Corbin, Durand ou Morin. Mas pers pectiva que também opera no holis mo do New   Age contemporâneo e em muitas práticas juvenis que instintiva mente , se m fraseados, v ive m um mater ialis mo espiritual, uma espécie de Geistleiblichkeit (carne espiritualizada) serena que pouco se importa com as dicotomias próprias do pensamento ocidental em geral, da modernidade em particular. Podemos citar, assim, todas as práticas que visam espiritualizar o corpo: piercing, tatuag em. Mas também o sucesso dos óleos de essências, das essências de plantas ou ainda a moda das técnicas corporais orientais: artes marciais, ioga etc. É este polite ís mo dos valores, dos deuses , dos fantas mas , dos múltiplos ícones, que curiosamente se encontra na base da "surrealidade” cotidiana. Daí a intensificação da vida,

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com a busca do qualitativo que a acompanha. Só o dina mismo ê estável. Eis efetivamente o que parece animar o inconsciente coletivo. Ora, o que é o dinamismo senão a força da impermanência na perduração do ser? Em sua inteireza, também. Não será assim que devemos entender estes versos de Oscar W ilde? :

For he who lives more life than one More death than one must die. L| v V ive r mais de uma v ida leva a morre r mais de uma mo r te. Éeste, certamente, o trágico da intensa condição humana. Mas é também o que lhe confere toda a sua qualidade.

Notas do Capítulo IV

ÍJL Nietzsche (F.), Fraginents posthumes, Paris, Gallimard, vol. 1, p. 418. 2. República, X, 614. 3. Cf. J ung (C. G.), S yncronicité et Paracelsica, Paris, A lbin Mic hel, 1988, p. 52. Cf. também Franz (M. L. von) ejung (E.), La Légcnde du Graal, Paris, A lbin Mic he l, 195 8, p. 127 e se guintes . 4. Ors(E. d’), La Vie de Ferdinand et Isabelle, Paris, Gallimard, 1932, p. 232. Cf. também p. 14 e seguintes. 5. Morin (E.), Le Cinéma ou 1'homme imaginaire, Paris, Minuit, 1956, p. 11 12. 6. Massignon (L.), Les Allusions instigatrices, Paris, Fata Morgana, 2000, p. 41. 7. Cf. sobre este tema Franz (M. L. v on) e ju ng (E.), La Légende du Graal, op. cit., p. 195. Cf. também Jeffrey (D.). 8. Simmel (G.), Tragédie de la culture, Paris, 1900, p. 167. Cf. também Sansot (P.), Poêtique de la ville, Paris, Klincsieck, 1972, ou Baudrillard CJ). De la Séduction, Paris, Galilée, 1979. 9. Cf. a este respeito Walter (P.), Merlin ou le savoir du monde, Imago, 2000, p. 27. 10. Cf. os ex emplos citados por Schorske (C.),  Vienne fin de siède, Paris, Le S eui!, 19 83 , p‘. 28 32. Re meto també m a me u liv ro

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U O m b r e d e D i on y s o s, c o n t ri b u t i o n à u n e s o d o l o g i e d e l' o rgi e (1982), Paris, Le Livre de Poche, 1991. 1 1 . J u n g ( E . ) , Su r la dou leur, N a n t e s , 1 9 9 4 , p . 3 1 . 1 2 . C f . T h o m a s (L. V .),  La Mort africaine, P a r i s , 1 9 0 0 , p . 2 6 . C f . a c i t a ç ã o q u e e l e fa z d e H é r i ti e r I z a rd (F.): "U n i v e r s f é m i n i n s e t d e s t i n i n d i v i d u e l ch e z les s a m o " , i n La n o t i o n d e p e r s o n n e en

 Afrique, Paris, CNRS, 1973. 1 3 . C a n e t t i ( E.), La Con scien ce des m ot s, P a ri s , A l b i n M i c h e l , 1 9 8 4 , p. 3334. 14. Cf. Au clair (G .),_Le Mana quot idien, P a r i s , A n t h r o p o s , 1 9 7 2 . C f . também Renard (J.B.). 1 5. A d o r n o (T .),   Notes sur Ia littérature, P a r i s , F l a m m a r i o n , 1 9 8 4 , p. 50. 1 6 . C f . S c h e l c r ( M . ) , N ature et form es de la sy m pat hie, P a r i s , P a y o t , 1928, p. 123126. 1 7 . C f . s o b r e a d r o g á X i b e r r a s ( M . ) ,   La Société intoxiquée, Paris, K l i n c s i e c k , 1 9 8 4 , e H o u d a y e r ( I I . ) ,   LeDéíi toxique, Paris, LTlar mattan, 2000. 1 8 . C f. s o b r e u m a t e m á t i ca p r ó x i m a , M o n n e r o t (].),   La Poésie

m o d erne et le sacré, P ar i s, G a l l i m a r d , 1 9 4 1 , p . 1 5 7 . N o t a s e m n ú m e r o n o m a n u s cr i to , C a d e r n o 4, e n t r e a s n o t a s 6 4 e 6 5. 1 9. C f. A u r i g e m m a ( L.), Perspectives ju ngien nes , P a r i s , A l b i n M i c h e l , 1 9 9 2 , p . 1 3 8 e 1 4 6 1 4 8 . Cf . t a m b é m F r a n z (M . L. v o n ) , L ' 0 m b r e

et le mal dans les contes de íêes, P a r i s , L a F o n t a i n e d e P i e r r e , 1 9 8 0 , e H i l m a n ()• ),   La beautédepsyché, M o n t r e a l , L e j o u r , 19 9 3, p. 193 e 197. 2 0 . C f . o c a t á l o g o   Rituales en Haiti, d e C . G a r c i a R o d e r o , T F E d i t o r e s , e a c o r e o g r a f i a d e Bi ll T . J o n e s You walk, m o n t a d a e m B o l o nha, 2000, e Avignon, 2001. 2 1 . C f . p o r e x e m p l o , s o b r e S ch e l l i n g , B e n z ( E .) , Les Sou rces m y st iques

d e la p h i l o s o p h i e r o m a n t i q u e a l l em a n d e , P a r i s , V r i n , 1 9 8 7 , p . 6 0  6 4 . C f. t a m b é m D u r a n d (G .), Int roduction à la m yt hologie, P a r is , A l b i n M i c h e l , 1 9 9 8 , e M o r i n (E .) ,   L ' H u m a n i t é d e r t l u m a n i t é , Paris, Le Seuil, 2001.

C a pít u l o

Tr a n s m u t a ç ã o

V

d o

m a l

"Temporada balsâmica c acolhedora, um oásis de tepidez. Onde?" H i j y sm a n s

ÊXTASE EUSIONAL Viver mais de uma vida, integrando os desafios do r isco, d o m a l e m e s m o d a m o r t e a s su m i d a — é o q u e p o d e e st a r e m jo g o n u m a v id a a r d e n t e, q u e é b e m m e n o s e x ce p ci o n a l d o q u e s e p o d e p e n s a r . É b e m v e r d a d e q u e p o d e m o s v e r aí   a essência "d ion isíaco-h er aclitian a” da vida. Essência cru el, perigosa, monstruosa, mas essência também vitalista . Mas além ou aquém desta qualificação filosófico-poética , esta energia vital é das mais comuns. O cotidiano está impregnado dos fenômenos de "du pla vida", cheio de práticas de transgressões, fund ando-se e s s e n c ia l m e n t e e m t á t ic as d e ar d il q u e l h e a s se g u r a m u m a e s p é ci e d e e t e r n i d a d e . C oi sa s q u e s ã o u m a fo r m a d e "m o e r

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bem fin o" o excesso, tor n an d o-o vivível ao conferir-lhe sua função fecundante. "Sede de infinito", diz Durkheim, de uma forma um tanto depreciativa, ao evocar o donjuanismo, propensão o u sa d a n a ó t ica d e Si m m e l , e m s u m a , sa b ed o r ia d e m o n í a  ca imp ossível de estrangular, e qu e ten d e a expr imir-se, com um novo vigor, com a saturação dos valores modernos. Aqu ilo qu e estes, de essência ra cionalista e ascética, em p e nhavam-se em apagar, ou, na melhor das hipóteses, em marginalizar, afirma-se agora com força: a animalidade, a naturalidade. Os excessos d as práticas juve nis, suas eferv escências fes tivas, sua desenvoltura em relação à seriedade da política são os sinais paroxísticos dessa sabedoria. A própria eco n o m ia e st á c o n t a m i n a d a p o r u m l u d i s m o g a l o p a n t e . Is to é d e m o n s t r a d o p e l o f e n ô m e n o d a s start-up, cuja essência consiste em "arriscar muito", funcionando na esfera do virtual. Esta nova economia gasta e consome o que n ão se possui de um a form a tangível e ver d ad eiram en te racional. A aceleração dos ciclos econ ôm icos, d epr essão e crescim en to sucedendo-se em intervalos de dois ou três anos, os fa mosos índices de otimismo ou pessimismo do mercado tendo, por sinal, um efeito acelerador das tendênci as ma teriais, participam dessa mesma tendência. "Juventudismo", "epifenômenos" passageiros, exclamam em coro observad ores sociais de todas as ten d ên cias, já incapaz es de dialogar com esses "pequenos trapaceiros" que já ne m se ' dão ao tra balho d e contestar as gran d es categorias filosófi cas dos mais velhos, limitando-se a ignorá-las.

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Sem elh an te viço, específico d os per íod os de criatividad e cu ltural, supera e m u ito, u m a faixa etária esp ecífica. O m ito d a "c r ia n ç a e t e r n a " c o n t a m i n a d e m u i ta s fo r m a s to d a s as maneiras de ser e pensar. O culto do corpo, os cuidados dietéticos, a deificação da natureza, o sincretismo filosófi co ou religioso e a ecologia do espírito expressam-se em t o d a s a s id a d e s e cla s se s s o ci ai s. O p e r a n d o n a b a s e d a q u il o a q u e m e r e fe ri c o m o u m a "r a z ã o s e n s í v e l ", e sse s f e n ô m e  n o s , a o n ã o a b d ic a r e m e m n a d a d o es p í r it o , p r i v ile g ia m a e x p e r i ê n c ia , a in t e r a t iv i d a d e , o s s e n t id o s h u m a n o s , e n fi m , as coisas const itu tivas da "socialid ad e". A "socialid ad e" n ão p o d e m a i s ser re d u z id a a o "s o c ia l " m o d e r n o , d o m i n a d o p e l a razão, a utilidade e o trabalho. Muito pelo contrário, ela in t e g r a o s p a r â m e t r o s es se n cia is (e n o r m a l m e n t e d e s p r e z a  d o s) q u e s ã o o lú d i co , o o n í r i c o e o i m a g i n á r i o . É esta a "sabedoria dionisíaca". Trata-se de uma outra s a b e d o r i a , v a le d iz er , u m a s a b e d o r i a i n t e g r a d o r a d a a lt er i dade, qualquer que seja ela. Mesmo a do excesso, da vio lência, d o "gast o" e da vertigem. N ão d evem os esqu ecer que o "f il h o d o m u n d o " d e H e r á clit o "a m o n t o a o s m u n d o s p ar a b r i n c a r e d e s t r u í -lo s ". A cr u e ld a d e , p o r t a n t o , t e m s eu l u ga r n a s o c ia l id a d e p ó s -m o d e r n a . Es ta s e n s i b i lid a d e e m r e la çã o a o outro (em si, na natureza, na vida social) leva a uma concepção ampliada da realidade. Realidade plural, polissêmica. Realidade absoluta. A da experiência e dó vivido coletivo. E xp e r i ê n c ia e v i v id o q u e n ã o s e li m i t a m a u m id e a l d is  tante, à realização de uma sociedade perfeita por vir, mas q u e t e ce m , p e lo co n t r á r io , n u m e n t r e c r u z a m e n t o se m fim ,

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tod os os afetos, as em oções , as p aixões constitu tivas d a vida de todos os dias, para formar o "tecido" social e natural ^compartilhado. Nietzsche via no dionisíaco o "um origi nal", a quintessência do real1. De fato, é possível que esta r e a li d a d e co m p l e x a , q u e a lia o s co n t r á r i o s , s eja u m a e s p é  c ie d e "c e n t r o d a u n i ã o " , n o q u a l a s id e o lo g ia s m a i s d iv e r  sas, os modos de vida heterogêneos, os costumes mais e s tr a n h o s , a c o m o d a m - se u n s c o m o s o u t r os , a d i cio n a m -s e u n s a o s o u t r o s n u m a o r g a n í cid a d e d a s m a i s só li d a s. Eis co m efeito o relativismo dos valores, caro a G. Simmel, repou s a n d o n a a c ei ta ç ã o d e t u d o e d e t od o s , e n o e s t a b e l e ci m e n  to de relações recíprocas. Semelhante relativismo está muito distante do indivi dualismo característico da tradição ocidental e do univer salismo abstrato que é sua expressão teórica. Não nos c a n s a r e m o s d e le m b r a r : o t í p i co d a v id a a r d e n t e , a d o d i o  nisíaco, é seu a sp ecto coletivo. Este p od e ser d e várias ord ens. As "t r i b o s " p ó s -m o d e r n a s s ã o le giõ es . Se u d e n o m i n a d o r c o  mum é a participação mágica num "gosto" específico. De culto: seitas, sincretismos religiosos, agrupamentos filosófi cos. Cultural: arte, música, diferentes hobbies. Esportivo: o número de associações registradas dá o que pensar. Sexual: r e a f ir m a ç ã o e m e s m o in s t it u c io n a l iz a ç ã o d a s p r e fe r ê n cia s e perversões sexuais. Tribalism o n ão éco m u n itarism o .D e fato, a a d e s ã o a e st a o u à q u e la t r i b o n ã o é e xclu s i v a , p o d e n d o a mesma pessoa pertencer a várias delas. Sua caracter ística é u m fo r t ís s im o "s e n t i m e n t o d e v i n ç u l a çã o " q u e fa z co m q u e , n u m d a d o m o m e n t o , qu a lq u er u m co m u n g u e co m u m "fu n c.o" coletivo. Será talvez n essa

rspecí iva qu e d eva m os en-

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tend er a ação terror ista qu e escap a à lógica p olítica e rem ete a u m a e m o çã o co m p a r t ilh a d a . Trata-se, strict o sensu , d e u m "c a p i t a l " q u e t e m o s d e g e  r ir co n ju n t a m e n t e . E s ta m o s lo n g e d a r e iv i n d ic a çã o d e id e n tidade fechada, do indivíduo indivisível, de um espírito is ola d o . Id e n t i d a d e p r i m á r ia d o id e al m o d e r n o , d a a u t o n o  m i a . A g e st ã o d e u m "f u n d o " c o m u m d e s e n ca d e ia u m m e c a  n ism o de "id en tificação" primord ial. A de um a p articipação n o  pré-individual. É este o p edestal da n ov a relação com a alterid ad e, exa t a m e n t e is to q u e fu n d a u m a s u r p r e e n d e n t e "h a r m o  nização" com o mundo e os outros, que encontramos t a m b é m n a s e n s ib il id a d e e co ló g ica . O m e io a m b i e n t e m u n dano: social e natural, aceito pelo que é. Canoniza ção do q u e é . D o n d e u m a e s p é c i e d e  pathos d a r e s s o n â n c i a , q u e n ã o d e v e m o s e n c a r a r d e u m p o n t o d e v ist a p e jo r a t iv o , hsj^ p e sso a s v i b r a m , t ê m u m  feeling, "s e e n t r e g a m " c o m o u t r o s , e is to em f u n ç ã o d o s " g o s t o s " d e q u e f a la m o s . Eis então a temática do orgiástico, da partilha das pai xões, que pode ser considerada, para retomar uma intui ção nietzschian a, a escu ta da voz "qu e surge d o abismo m ais , profundo das coisas". Fusão, confusão que é uma espécie de eco do "mais que um" (G. Simondon) que a psicologia m a i s l ú c id a é o b r i g a d a a r e c o n h e c e r e m su a p r á t i ca c lín i c a . Este "m a i s q u e u m " é ig u a lm e n t e m o e d a c o r r e n t e n o m u n do social. E se a sociologia ou a filosofia dominante têm d i ficu ld a d e p a r a a n a l i sá - lo e a t é m e s m o s i m p l e s m e n t e p a r a observá-lo, é porque estão enclausuradas nesse postulado m o d e r n o q u e é a ló g i ca d a id e n t id a d e .

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Na realidade, as iden tificações mú ltip las, as com u n h õe s musicais, esportivas, religiosas, de "fundo" primordial re põem — sem ter necessariamente consciência disso — as p l u r a l id a d e s d e ser , m a r c a s d o "f i lh o d o m u n d o " e m d e v ir . Há um a bela form u lação de F. Pessoa qu e resum e bem esta idéia: k in g o f gaps, o rei das falhas. Aquele que chama a ate n ção p ara os interstícios, os interv alos, nu m a palavra, o vazio. "Ele não passa, inteirinho, de um abismo em seu ser".2 Entã o n ão é mais a liberdad e, u n ívo ca e abstrata, qu e é buscada, mas a prática das liberdades intersticiais. O mes m o o c o r r e co m a U t o p i a, q u e d á lu g a r à s p e q u e n a s u t o p i a s vivida s. É o caso d os "squ at s", das m an ifesta ções d e solid a riedade, dos repentinos agrupamentos contra uma ação p o l icia l , p r á t ica s m u i t o d is t a n t es d o e n g a ja m e n t o p o l ít ic o . E logo se vê o que este plural in d u z em m atéria d e perigo, ambíguo como é em sua própria essência. Nada é certo, estabelecido, sem riscos. Tud o está em devir. Do n d e as ex pr essões mú ltip las, as tenta tivas e os erros iner en tes a toda aventura existencial. O bem e o mal tornam-se vagos , ou m e l h o r , se i n t e r p e n e t r a m . N o vazio d o s er e m d e v ir t u d o é po ssível, a partir do m om en to em qu e ju stifica u m a vivência coletiva. Além d a fortaleza, do espírito, do indivíduo a u t ô n o m o , .-a falha,permite à  pessoa h e t e r o n ô m i c a e x p r i m i r a s m ú l t i  plas facetas d o seu desejo. Mesm o as ma is sombrias, as ma is imorais, as menos de acordo com sua identidade. É c oisa de en lou qu ecer as análises sociológicas estabelecidas. Mas se chegarmos, de forma não judicativa, a identifica r esses

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d e s d o b r a m e n t o s p e lo q u e s ão — o i n d ício d e u m p o d e ro so v i t a l is m o i n c o n s c ie n t e — , p o d e r e m o s v e r n e l es a e xp r e s  s ã o d e u m a cr i at iv i d a d e cu lt u r a l q u e n a d a p o d e d e t e r . D e s  se modo, o "vazio" da comunicação verbal, a abstenção p olítica, a v iolência tran sgressora, o ato terrorista, a recu sa d a ação ci dad ã, em su m a, a fu ri osa in d i feren ça p el o social, p o d e m ser co n s id e r a d o s u m a e s p é cie d e so b e r a n i a q u e e x t rai sua força da p erda, d o fat o de n ad a ser e, p or t an t o, d a ce r te z a d e es ta r e m c o m u n h ã o c o m o t o d o , d o s o u t r o s e d o mundo. Exp eri ência m íst ica en t re t od as, e qu e d evem os levar a séri o. Cab e lem brar a frase d e Char l es Péguy: "Tu d o com e- ; ça n o m í st ico e acaba n o p ol í t i co." Se leva rm os at é o fi m a lógica desse pensamento, quando o próprio político está saturado, podemos esperar que o místico volte a mostrar v a cara. E em bora n ão seja est a a ú n i ca p ist a para en t en d er a p ó s -m o d e r n i d a d e , n ã o d e ix a d e ser u m a , e c o n s e q ü e n t e . Mística entendida como metáfora para compreender, p or u m lado, a fuga das i nst i tu i ções, a i nd i feren ça qu e sus citam , e ap reend er, por outro, as características da fusão em q u e t o d o s se p e r d e m n a a lt er i d a d e . E m b o r a n ã o s e ja o o b jet o cent r al d e m i n h a arg u m en t ação, é p reciso l em bra r que") a s p r á t ica s m ís t ica s e s eu s p r o t a g o n is t a s s e m p r e e s t i v e r a n y s o b s u s p e it a d a q u e le s q u e t in h a m a s eu ca r g o a g e st ã o "l e  g í t i m a " d o s ag r a d o . P r eci sa m e n t e p o r q u e o p o n t o d e v ist a^ ' m í st ico n ão se preocup a com a p art i lha en t re o bem e o mal . O u a n t es , p o r q u e o m a l é co n s i d e r a d o u m e l e m e n t o e st ru t u r a l d o d a d o m u n d a n o . D e ce r ta f o r m a e le é "n e u t r o ". O

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fe it o . P o d e m o s a s s im e n t e n d e r a ca ça à s s eit a s e m p r e e n d i  das pelos políticos mais sectários, racionalistas intoleran tes, comunistas não arrependidos, que identificam em qualquer agrupamento não-institucional a manipulação m e n t a l a q u e e le s p r ó p r i os se h a b i t u a r a m . Sã o m u i t o s o s e x e m p l o s p o é t ic o s, r o m a n e s co s o u t e ó r i  co s q u e in s i st e m n o q u e M a r g u e r it e Yo u r ce n a r d e n o m i h o u " A o b r a e m n e g r o " . I r m ã o s d o e s p í r i t o l i v r e ,  fraticelli d a o n d a fr a n ci sca n a , m í s t ic o s r e n a n o s , "b e g u i n a r i a " — é l o n ga a lista das heresias, ou assim consideradas, que volta e meia geram manchetes da instituição eclesiástica3. Seria in s t r u t iv o c o m p a r a r as r e v o lt a s e r e b eli õe s c o n t e m p o r â n e a s com esta recusa dos especialistas, com a desconfiança em relação a seus saberes a bstra tos e imp lacáveis. E isto, qu ero l e m b r a r , a p a r t i r d e u m a p e r s p e c t i v a h o l í s t i c a : everything

goes, "vale tudo" (P. Feyerabend), cada coisa tem sua utili d a d e n u m a o r g a n icid a d e g lo ba l. A p e r s p e ct iv a q u e m e in t e r e s s a a q u i é a d a "p e r d a " d o s u je it o q u e p e n s a , d i z e a g e n u m c o n ju n t o m a i s a m p l o . Es te sujeito é com efeito o pivô da tradição ocidental. Ele en co n t r a s eu a p o g eu n o i n d iv i d u a l is m o m o d e r n o . E é e fe t i vamente este sujeito "pleno", seguro de si, que tende a s at u r a r-s e. D o n d e a im p o r t â n c ia d o v a zio , d a v a c u i d a d e n o s a ju n t a m e n t o s p ó s - m o d e r n o s . É n o v á cu o q u e e xis t e c o m u nhão, mergulho, anulação. Categorias que não poderiam ser m ais m ísticas! A t e n d ê n c ia , n o r u í d o techno, na s fusões espor tivas, nas mitologias publicitárias, nas irruações próprias da moda, co n s i s t e, e s s e n c ia l m e n t e , e m deísn raiz ar o egor.em p r o v a r

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e m p i r ic a m e n t e s u a in a n i d a d e . Exis te a p e n a s, e m ce r t o s m o m en tos p aroxísticos, o d esejo d o "gru p o em fu são". Fazer, pensar, sentir com o o outro . Sem qu erer jogar sim p lesmen te c o m o p a r a d o x o , m a s p a r a n o s a ju d a r a p e n s a r ess as o b s e r  vações correntes, podemos aproximar esta pulsão para o o u t r o d o q u e já fo i d e n o m i n a d o o p r i n cí p i o d a "k e n o s e ' 1" característica do monasticismo nas diversas tradiçõ es reli giosas: criar o vazio total, encaixar-se nesse vazio para al can çar, além d o p eq u en o si ind ividu al, u m Si m ais global, o d a c o m u n i d a d e , d a u n i ã o c ó sm i ca c o m o To d o n a t u r a l. O vazio da comunicação verbal, a comunicação da ra z ão d o m in a n t e , p e r m it e u m a o u t r a co m u n i ca çã o , h o r i z o n tal e silenciosa ou, o qu e dá n o m esm o, m ais ruidosa, p orém m a i s glo b a l, n a m e d id a e m q u e o s s en t i d o s t ê m s u a p a r t e a d e s e m p e n h a r , o u s e ja , t o d o s os e l em e n t o s c o n s t i t u t i v o s d o dado humano e natural. As grandes experiências místicas in t e r v é m , d e fa t o , n o s i l ê n c io a b s o l u t o o u n o fr a g o r d o t r o  vão. Mas todas, dos diversos budismos ao hassidismo ju daico, passando pelo cristianismo, insistem no vazio do m e n t a l e n a s t é cn i c a s d o co r p o q u e o p e r m it e m . Se m e x ag e r a r n a e xp l o r a çã o d a m e t á fo r a , p o d e m o s c o m preender este "vazio" e suas técnicas como um apelo à inte]reza_dp_se_r. Uma espécie de união cósmica unindo ao "t o d o " . Ex is t e "s u b i d a ", a s c en s ã o a p a r t ir d e st e m u n d o , e desses elem en tos qu e são, desse m od o, d eificad os. A p ro p ó sito da Carta a oha ssid iano d o rab ino Dov Baer, G. Sch olem m ostra o qu e o êxtase d eve a este vácu o do m en tal. Êxtase que, embora seja vivenciado por indivíduos, tem essen c ia l m e n t e u m a d i m e n s ã o c o le t iv a . Ex p e r iê n cia d o s er in t e 

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grando ou ultrapassando os limites do corpo próprio para ch e g a r à e p i fa n i z a ç ã o d o co r p o c o m u n i t á r i o . Esta subjetividade de massa volta a ser encontrada na prática dos peregrinos do absoluto que, no gozo propor c io n a d o p e lo e xe r cí ci o d o co r p o , a l ca n ç a m — co m o o b s e r  va o historiad or A. Du p ron t — os "con fins m isteriosos ond e transcendência e imanência se encontram5". Há aí uma in i ci a çã o , u m a p a s sa g em q u e o s p r o t a g o n is t a s c o n t e m p o  râneos do caminho de Santiago de Compostella ilustram p e r f ei t a m e n t e . E, p o r s in a l, o m e s m o o c o r r e c o m t o d o s q u e participam da revivescência das múltiplas peregrina ções. A ss im c o m o o s q u e se e n c o n t r a m n a s g r a n d e s a s se m b l éi as religiosas. Em cada um desses casos, pouco importa o pre texto doutrinário. Às vezes, inclusive, ele está totalmente au sente. Em contr ap artida, a ativid ad e corp oral, o gozo da partilha, é essencial. Em suma, a beleza do mundo s usci tan d o u m clima erótico que p erm ite esta saída d e si qu e é o êxtase. T e n h o i n s i s t i d o c o m f r e q ü ê n c i a n e s s a transcendência i m a n c n t e específica da religiosidad e p ós-mod ern a. P od emos lembr ar aqu i qu e ela ema na desses "con fin s m isteriosos", ou seja, das situações-limite pr ovocadas pela u niã o d os corp os e das almas. Isto gera u ma exaltação específica, qu e n ão d istin gue o b em d o m al e se mostra inclu sive ind iferente a seme lh an te divisão, exaltação qu e a partir desse m om en to enfatiza o surreal n o próprio interior da vida d e cad a u m. Entend e-se m elho r, assim, com o o êxtase místico, em suas diversas m o d u lações, semp re p reocup ou os pod eres estabelecidos, as teo rias racionalistas e os gestores de car teirin ha d o sagrado.

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É e st e ê xt a s e i n q u i e t a n t e q u e v a m o s e n c o n t r a r n o s d i  fe r e n t e s t r a n s es co le t iv o s q u e n ã o f a lt a m e m n o s s a é p õ c a . Em particular, naturalmente, nos ajuntamentos musicais q u e e n v o l v e m o d e s v a r io . H á m u i t o a d i z er s ob r e e ss es f e  nômenos. Para começar, que são tudo, menos insignifi cantes. A tendência tampouco é efêmera, indicando um m o v i m e n t o d e fu n d o . C a be n o t a r ig u a lm e n t e q u e a d e s co n  fi a n ça q u e p r o v o ca m é d a s m a is in s t ru t iv a s , b e m d e m o n s  t r a n d o , a contrario, q u e n ã o p o d e m m a i s se r co n s id e r a d o s i r r e l e v a n t e s o u m a r g i n a i s . D e m i n h a p a r t e , eu v e r ia n e le s , à m a n e i r a d e M . M a u s s , u m "f a t o s o cia l t o t a l " q u e p e r m i t e l er a s o ci e d a d e e m s u a in t e g r i d a d e , à m a n e i r a d e u m c o r t e histológico. M u i to p r e cis a m e n t e , n a m e d id a e m q u e p o d e m s er co n s id e r a d o s l a b o r a t ó r io s o n d e s ã o e l a b o r a d o s v a lo r e s a l t e r n a  t iv o s a o s q u e co n s t it u í r a m o id e a l m o d e r n o d o c o n t r o l e d e si e do mundo a partir de um sujeito racional. E verdade q u e o e s t r i d o r d a m ú s i c a t echno c i n q u i e t a n t e . M a s o s lu  g a r es o n d e s e e x p r i m e s ã o s ig n i f ic a t iv o s . Sã o e f e t i v a m e n t e "c o n f i n s " : t e r r en o s b a ld io s in d u s t r ia i s, p r é d i o s a b a n d o n a  d o s, cla r e ir a s n u m b o sq u e , c a m p o s d is t a n t e s d e t o d a v id a ci v il iz a d a . Ra z õ es o b je t i v a s p e r f e i t a m e n t e r e a is p o d e m s er encontradas para isto. Mas não menos real é a errância i n i c iá t i c a p a r a a lc a n ç á -l o s, o d e s e jo d e c o m u n h ã o c ó s m i c a ou m esm o a reap rop riação, d esviad a, de espaços edificados"; n a ó t i c a p r o m e t é i ca d a v a l o r i z a ç ã o d o t r ab alh o®. C o n f in s d e v a cu i d a d e . Cr is ol n o q u a l o m i st é r i o d a co n   junção com a alteridade pode operar-se alquimicamente. N e s s e s " v á c u o s " , a ratio cognoscendi, i d e a l d a t r a d i ç ã o

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cu lt u r a l o ci d e n t a l , d á lu g a r a u m a ratio exis t endi q u e ta m b é m t e m su a le g it im i d a d e , e q u e , p o r m u it o t e m p o r e ca l ca d a, t o rn a - se p o r is t o m e s m o m a i s i n t e n s a . Tr a t a -s e d e u m a "e x p e r i ê n c i a im e d i a t a " q u e le m b r a a i m p o r t â n c ia d o es t a  d o se lv a g e m d o h u m a n o . O ê xt a s e p r o v o c a d o p e la m ú s ica , o t r a n s e d o s co r p o s , o u t i li t a r is m o d e ce r t o s "p r o d u t o s " i lí ci to s, t u d o c o n t r i b u i p a r a a fo r m a ç ã o d e u m co r p o c o le t iv o , o d e u m S i g l o ba l , i n t e g r a nd o o s a s p e ct o s q u e a c i v i l i d ad e c o m u m t e n t a m a s ca r a r. Par a r e t om a r u m a e xp r e ss ão c o n h e  cid a , t o d o m u n d o " s e e n t r e g a ", e é n a s fa l h a s g e r a d a s p o r es ta e n t r e ga q u e p o d e m e xp r i m i r -s e o s m a u s h u m o r e s q u e t a m b é m n o s co n s t it u e m . Se m e lh a n t e c a t a r se t e m t a n t o v a l or q u a n t o m u i t a s o u  t ra s. Ela r e a fi rm a o b s t i n a d a m e n t e q u e a fo r ça c r ia d o r a n ã o p o de , a l o n g o p r az o , s e r r ed u z i da à s i m p l e s u t i l i da d e . N a p e r d a d e s i n o o u t r o , n a e n t r e g a d o si i n d i v i d u a l n u m Si m a is g lo b a l , ex is t e u m a cr i a ti v id a d e re al q u e p o d e c h o c a r n o s s o s e sp í r it o s, fo r m a d o s e o b c e c a d o s p o r u m a v i sã o e c o  n ô m ic a d o m u n d o e d o in d iv íd u o , m a s q u e n e m p o r isso é menos real. Precisamente na medida em que lembra o m e c a n i s m o d e t r o c a g e n e r a l i z a d o , e s s a W cchselw irk ung (G. Si m m e l ), e ssa in t e r a t i v i d a d e c o m o o u t r o e a n a t u r e z a , e s sa r e ve r s i b i l i da d e qu e u n e o s c on t r ár i o s no s e i o d e ca d a p essoa. Elã vital cu jas características e con seq ü ên cias sociais p r e cis a m s er s op e sa d a s, e q u e le m b r a, a o i nt e g ra r o m a l , q u e a s si t u a çõ e s -l i m i t e , e s se s " c on f i ns n i s t e r i o so s " da m í s t i c a , s ã o, n o m a i s a l t o gr a u , g er a d or e s d e se n t i do . 0 5 e xce s so s d a s cr i a n ç a s b r i n c a l h o n a s e cr u é is , e m s eu s

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l a i n e q u a l i fi ca v a R im b a u d d e "Sa t ã a d o l e s c e n t e " . P o d e m o s ( perguntar-nosse a criatividade demoníaca do poeta, um t a n t o m a r g in a l n o m u n d o b u r g u ê s d o s écu l o XI X, n ã o se disseminou pelo conjunto do corpo social. As "tempora d a s n o i n f e r n o " b a n a l iz a m -s e e d e ix a m cl ar o q u e o d e s ejo d o r is co , o g o z o d o g a s t o, o p r a z er d e v ib r a r e m c o n ju n t o nã(D p o d e m ser s u f o c a d o s p o r m u i t o t e m p o . Muitos pensadores e poetas malditos foram canoniza dos. Desmancha-prazeres que, de forma premonitória, mostraram a fragilidade da fortaleza individual e a inanidade das certezas dogmáticas. Nietzsche, Baudelaire, De Q u in ce yi' A r t au d o u M i ch a u x , q u e , a r e s p e it o d a t u r b u l ê n - , cia p r o v o c a d a p e l o u s o d a m e s c a li n a , fa l a m d e u m a e x p l o  ração do "estelar interior". Eles tornaram-se referências .c u ja s . p r o v o c a ç õ e s e e x a g e r o s é d e b o m - t o m ci ta r n o s d e b a  tes^ aca d êm icos e n os salões d a intelligentsia. Aliás, com razão. Pois eles prefiguram esses exploradores pós-modern o s q u e f a z e m d o ê x t a s e, d a l o u cu r a e d o t r a n s e e r ó t i co s eu p ã o s e m a n a l. A "b u s ca d o G r a a l " é u m a c o n s t a n t e a n t r o p o l ó g ic a . Va  ria a p e n a s a fo r m a q u e p o d e a ssu m i r , d e a co r d o c o m a é p o ca. Em todos os casos, ela mostra que ao lado ou sob o h om em qu e pensa existe o qu e é movid o pelas paixões, existe u m co r p o q u e se m e x e , u m co r p o q u e se m a n ip u l a. U m co r  p o q u e exprime seus son h os m ais loucos e lhes dá forma. A figura d o dragão, de antiga m em ória, a dos con tos infantis, readqu ire força e vigor, e n os d ivertimos brin can d o com ele. O monstro é a metáfora do completamente outro que existe à espreita em cad a u m . É o ind ício, a "sed e de infin i-

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to" ou aquilo que Michaux, mais uma vez, denominava "fervilhar do possível”. É a busca utópica por excelência. Mas utopia que n ão se p rojeta m ais na d istância, u topia qu e foge ao controle do político, utopia vivida aqui e agora. Jm i t a r o m o n s t r o d esp e rt a o a n i m a l n o h u m a n o ; é, a lé m e aqu ém da História, retorn ar ao m ito, in illud t em pus, l e m  b r an ça e n c a n t a t ó r ia d o " n a q u e le t e m p o " . P r es en t e e t er n o q u e d e t é m o t e m p o . A m ú s ic a techno, p o r su a p r ó p r ia v el ocid a d e , p r o p o r c io n a u m a s e n s a ç ã o d e parada. Dá uma impressão de estabilidade dentro do mo v i m e n t o . E n ã o é u m d a d o s em i m p o r t â n c ia , a es te r es p e i to, que um dos prazeres consista em remexer na lama. Sím bo lo dos m ais claros do d esejo d e se estab elecer n a ter ra. Deter o tem p o qu e passa, p ortad or d e nossas angústias, ao mesmo tempo encenando as figuras monstruosas dos s o n h o s i n fin i t o s , é e fe t iv a m e n t e u m p a r a d o x o s i g n i fi ca t i  v o, o d e u m e n r a i z a m e n t o d i n â m i co . É e st e p a r a d o x o q u e se encontra na base da obra criadora dos poetas mal ditos já m e n c io n a d o s . É i g u a l m e n t e e st e p a r a d o x o q u e p e r m i t e e n t e n d e r a cr ia t iv i d a d e d o s "r a v e r s" e m t r a n s e q u e e n c o n t r a m n o d e s co n t r o l e a n i m a l u m a c r é s ci m o d e en e r g ia p a r a suas vidas cotidian as. C o n v o c a r o m o n s t r o ch t o n i a n o , e x p r e s sa r o m a l , e xa l  tar o excesso são, com efeito maneiras de encontrar ener gia. Energia terre na . Tam bé m aqui há o p arad oxo do gasto: q u e m p e r d e g a n h a . E n er g ia d e g r u p o . D o m i t o d i o n i sí a co às festas "corrobori" analisadas por Durkheim, todos os historiadores das religiões ou a nt rop ólogos m ostrara m em que medida a efervescência festiva, anômica por essência,

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p e r m i t ia a q u a l q u e r g r u p o s o cia l "r e c a r r e g a r a s b a t e r i a s ". A v i v ê n c ia c o le t iv a d o v á cu o , a i n t e g r a ç ã o d a m o r t e a si p r ó  p r i o — p o is é is t o a fe st a — p r o p o r c i o n a v a m a sobrevivên cia d o g r u p o , r a t ifica v a m o s e n t i m e n t o d e v in c u la ç ã o comunitária. Assim, o orgiasmo musical e as drogas que lhe servem d e co a d ju v a n t e s s ão u m "m é t o d o " t r á g ic o d e g r it a r e v iv e r a e te r n id a d e . U m a e te r n id a d e i m a n e n t e , e n ra iz a d a n o h ú m u s . N u m a p a la vr a, u m a e t er n id a d e h u m a n a . É u m m é t o  do de criação como outro qualquer, por exemplo, o do t r a b a l h o m o d e r n o . N e st e s e n t id o , o ê x t a s e d i o n is ía c o , q u e segundo Nietzsche "destrói os limites e as fronteiras da existê n cia7", exacerba o corp o ind ivid ua l, exibe-o em espe táculo, para corroborar o corpo coletivo, o corpo da tribo. É d e u m a p r o fu n d a i n v er s ão d e p o l a r id a d e q u e e s ta m o s faland o: a m obiliza ção da energia social p ara exaltar e d es frutar o presente. E isto a partir da matriz onde nos ani n h a m o s t o d o s ju n t o s , e st e m u n d o , e s ta t e r ra e s eu s fr u t o s, este "dado" social no qual vivemos e ao qual devemos de algum a forma nos ajustar. À ima gem da m ú sica techno, q u e n a d a t e m d e m e ló d i ca , q u e n ã o r e p o u s a n u m continuum g a r a n t id o , c o n s t r u i n d o - se a p a r t ir d o sample, d e fr a g m e n  t os o r g a n i ca m e n t e l ig a d o s, é o i n s t a n t e q u e p a s s a a p r e v a  lecer. Na filosofia an tiga, este in sta n te é o kairos, a o p o r t u n i-; d a d e, a q u i lo q u e d e v e m o s ap r o v eit a r ag or a . A o m e s m o t e m - . p o , é in t e r e s s a n t e n o t a r q u e es se kairos é u m m o m e n t o de ruptura, de abertura na temporalidade linear. Ela se abre a partir do vazio, ela abre para o vazio. O que é impossível

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í  d e c i d i r o u p r e v e r . A e s t e r e s p e i t o , A n t o n i o N e g r i o b s e r v a N' qu e a valorização d o in sta n te é um a esp écie d e eq u ilíbrio no fio da navalha8. Metáfora que frisa a importância da experiência, o teste d o tem p o arriscado. Lon ge das garantias de todos os tipos, médicas, legislativas, da salubridade pú blica, é dada ênfase aos perigos típicos da experiência. É talvez o que confere intensidade ao momento vivido, e t a m b é m s eu a r p r o f é t i co . C o m o o bs e rv a a ca b a l a ju d a i ca , o M es sia s p o d e ch e g a r d e u m m o m e n t o p a r a o u t r o . A v a cu i dade do espírito, o vazio provocado pelo transe permite acolhê-lo. Tr a ta -se d e u m a m o d a lid a d e d a exis t ên c ia , u m a m a n e i  ra de ser que seria fácil demais taxar de irracional. Ela tem sua raciona lid ad e p róp ria. A "h ipe r-ra cion alid ad e" a qu e se r e fe r ia m C h a r l e s Fo u r i e r e, p o s t e r i o r m e n t e , A n d r é Br e t o n , integrando o lúdico imaginário e a razão. O foco no pre sente vivenciado, por meio de ritos e ritmos específicos, proporciona uma espécie de iluminação. É causa e efeito d e u m a a u t ê n t i ca f or ça s a gr a d a . U m d i v in o n ã o m a i s t r a n s  c e n d e n t e , m a s q u e e m a n a d o gr u p o e m f u sã o . Esses m o  m e n t o s d e e fe r v e s cê n c ia s e r ia m p a r ê n t e se s n a v id a n o r m a l ? N ã o s e p o d e a fi r m a r . O p r o c e ss o fe s t iv o in s e r e -s e , e s t r u t u r a l m e n t e , n o c o n ju n t o o r g â n i co d a v id a . N ã o p o d e , a ss im , s er e n t e n d i d o c o m o u m m o m e n t o s ep a r ad o . Ele su s cit a u m a e n e r g ia p síq u ica ,, p r o p r i a m e n t e co le t iv a , q u e p o s t e r i o r m e n t e se d i lu i o u ir r ig a o c o t i d i a n o . A e x a l t a çã o p r o p o r c i o n a d a peio transe induz a experiência do Si, ou seja, enquadra a p e sso a n u m c o n ju n t o m a is v a st c, o d a i n t e r a çã o n a t u r a l e social.

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Esta ener gia p síqu ica, qu e só p od e ser coletiva , assemel h a - s e a o q u e o s a l q u i m i s t a s d e n o m i n a v a m ignis nostcr, algo que podemos entender como fonte de dinamismo, participação mágica no elã vital. Uma vida que não se re duz mais à simples consciência individual, mas repousa num saber mais global no qual o corpo tem seu lugar9. A in c a n d e s c ê n c i a fe st iv a é u m a m e t á fo r a r e v el a d o r a . D e f a t o , ^ o fogo já n ão é sim p lesm en te o qu e foi rou bad o dos deuses por Prometeu com uma finalidade utilitária, aquele que co n d u z à d o m i n a ç ã o d a na t u r ez a n o p r o d u t iv is m o m o d e r  no, p or exem p lo. Éu m fogo lúd ico, o da algazarra, dos spots elétricos e outros equipamentos do gênero. Fogo que se basta, ao red or d o qu al as pessoas se reú nem e qu e serve de c im e n t o à s tr i b os d e s en f r ea d a s . Exploremos a metáfora, que, numa perspectiva abran g e n t e , n ã o d e ix a d e s er es cla r e ce d o r a . A c o m u n h ã o a o r e  dor do fogo n ão d eixa d e lem brar a atração arqu etíp ica pela cham a lançad a p elo dragão, a dos estrondos chto n iano s, o fascínio pelas erupções vulcânicas. Em todos estes casos, a ê n f a s e e st á n u m a e s p é c ie d e respiração cósm ica, a d a n a t u reza, da an im alida d e pura. Sonoridad e profund a da vida em sua experiência imediata. Estamos cercados pelo ruí do do m u n d o , a o m e s m o t e m p o q u e d ele p a r t i cip a m o s . Tr a ta -s e d e u m s i m b o l is m o p r i m o r d i a l, o d a prim a m at éria q u e n ã o qu er saber da com u n icaçã o verbal, razão ú ltim a da cultura ocidental. Ao s u s ci ta r u m a c o m u n h ã o c o m as fo r ça s d a n a t u r e z a , o s e s t r o n d o s d a m ú s i c a techno fa v o r e c e m u m a e s p é cie d e en vo lvim en to p rimord ial. Retorno à ma triz terrestre. Com o

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os mantra b u d i s t a s , o s e n c a n t a m e n t o s s u f i s o u m e s m o a melopéia gregoriana, o ritmo techno m a r c a d o p r o p o r c i o  na um transe que envolve o corpo em sua integridade. O vazio das letras é impressionante. Em compensação, as onomatopéias são significativas. Reiterações, falta de sen tido, repetições à maneira de ladainhas não precisa m ser e xp l ica d a s , p o is r e m e t e m a u m s e n t i d o d is t a n t e . Lim it a m se a participar d e u m a exper iência qu e p erm ite "sair d e si". Reencontr am os aqui a próp ria essência d o êxtase: o ind iví du o que sai de si m esm o para participar d o "com p letam en te diferente10". As rep etições en cant atór ias religiosas st ricto sensu, sufis, bu d istas, salmod ias cristãs, recitações de rosários, recob ra m interesse e são considerad as com ben ev olên cia. Por qu e ha veriam de ofu scar nas efervescências techno! Em todos es tes casos, a vacuidade do sentido é anjimnese do vazio. Ela evoca a finitud e da natureza h u m an a, o vazio de qu e saiu. Mas, ao mesmo tempo, como a pequena morte do orgasmo, isto ratifica uma espécie de erotismo de grupo. Existe u m a p r o x im id a d e e v id e n t e e n t r e o o r g a sm o e n c a n t a t ó r i o e o orgiasmo social. À imagem das "lições" propostas pelos monstros dos con tos e lend as ou das mon stru osid ad es míticas, a lição dos fenô m enos contem p orân eos de efervescência, esp ecialm en te a d a m ú sica techno, consiste em lem brar qu e som os ped a ços de natur eza e qu e nossas obscu ridad es assem elha m -se, e s t r a n h a m e n t e , às su a s. Le m b r e t e, t a m b é m , d e q u e n ã o p o  d e m o s liv r a r -n o s d o m a l r e c o r r e n d o s i m p l e sm e n t e à r a z ão e aos con ceitos qu e com esta fina lid ad e ela elabor ou . É pre-

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cis o e n c o n t r a r u m m e io , u m "m é t o d o " p ar a c o m p o r  co m ele, integrá-lo, domesticá-lo. A encantação rítmica é um deles. N in g u é m se m a n t é m d is t an t e d o n e g r u m e , ob se rv a v a' Ju n g 11. E é u m a ilusão p ensar qu e o espírito esclarecid o p elai r a z ã o p o d e liv ra r -se d e le fa c il m e n t e . A m o d e r n i d a d e p a g o u ’ u m p e s a d o t r i b u t o a s e m e l h a n t e i lu s ã o . O s g e n o c íd i os , a s j carnificinas, as guerras de todos os tipos e o terrorismo es-^ tão aí para demonstrá-lo. A pilhagem da natureza, que é a t u a l m e n t e o p r i n ci p a l d e s a fio a ser e n f r e n t a d o , v e m a ser o r e s u l t a d o l ó g ico d e sse r a c io n a l i sm o m ó r b i d o . Em c o m p e n s a ç ã o , p o d e m o s p e n s a r q u e o fa t o d e le v ar em conta esse negrume, sua apresentação em espetáculo, p o n t u a l e r it u al, é u m a b o a m a n e i r a d e v iv ê-lo c o m m e n o s desgaste. A sombr a ind ividu al e a som br a coletiva m erecem mais que a denegação. A compreensão das efervescências fe st iv a s t a m b é m é u m a fo r m a d e s a b ed o r ia p e r t i n e n t e , n a m e d i d a e m q u e e n s in a a se a d a p t a r , n o s e n t i d o m a i s for t e, a es se in s t i n t o t u r b u l en t o q u e f az d o i n d i v íd u o u m a r e a li  d a d e e n r a iz a d a n a vid a s ocia l, m a s t a m b é m n a n a t u r e z a q u e a enquadra.

A CRIPTA SOCIAL Existe nas efusões coletivas e na epifanização dos corpos qu e é seu corolár io u m a esp écie de celebra ção religiosa, na qual se exprime o fato de estar juntos, aqui e agora, nesse "v a z i o " q u e é o m u n d o . Is to é o f u n d a m e n t o d e u m n o v o

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v í n c u l o s o c ia l . Is t o s u s ci t a p r o ce s so s o r i g i n a i s d e i n t e r a ç ã o e fo r m a s e s p e cí fic a s d e a ju d a m ú t u a . Esta matriz mundana, aceita pelo que é, constitui um crisol no qual se fundem os afetos, os sentimentos, as e m o ç õ e s . É n e s t e l a b o r a t ó r i o q u e s e fo r m a u m c o r p o s ocia l in d i fe r e n t e à s g r a n d e s m a q u in a r i a s i n s t i tu ci o n a is c o m p l e  tamente voltadas para o futuro, mas atento ao "interesse d o p r e s e n t e " e m t o d a s as s u as m o d u l a çõ e s . Existe uma ligação estreita, na qual é preciso insistir, entre a aceitação do mundo tal como 6 e o presenteísmo desenfreado de que as jovens gerações, em particular, são as representantes mais reveladoras. De fato, e como que .fazendo eco à temática heideggeriana do "ser jogado aí" ( Gew orfenheit ) , é o s e n t i m e n t o trágico i n e r e n t e a e s t e "situacionismo" que gera uma co-responsabilidade, uma co m p a i xã o m ú t u a , e m s u m a , u m a fr a t er n id a d e h o r i zo n t a l ligada à importância do momento presente. O q u e i m p o r t a n ã o é m a i s o p r o gr e ss o n e m o d e s e n v o l v i m e n t o , n o q u e t e m d e lin e a r, g a r a n t id o e o r ie n t a d o , m a s u m crescimento a p a r t i r d o q u e é , e n r a i z a d o n o q u e é . O s e n t i m e n t o t r á g i co d a v id a p r e se n t eís t a n a d a t e m d e e st á  t i co . T a m p o u c o s e t r a t a, c o m o q u e r i a m cr e r ce r t o s es p ír i t o s ap r e ssa d o s, d e u m a c a n o n i z a çã o d o statu quo, m a s d e u m p r o ce s so a s c e n d e n t e a p a r t ir d o v á cu o . Es te s e n d o e n tendido como a metáfora da vacuidade, da inteireza, do húmus, em suma, do mal que também nos constitui. A i r r p e r fe i çã o , v i v e n d o n o p r e s e n t e t od a s as p o t e n c ia l id a d e s hvmanas, ainda que fossem as mais arriscadas, as menos m c r a is, s er ia u m a g a r a n ja d e , m a i s -s e r ".

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A s si m v e m a s er r o m p i d a a o n t o l o g i a d o ser , o s u b s t a n c ia l is m o q u e c o n t i n u a s e n d o a o ss a tu r a e s s en c ia l d a m a i o ria das análises sociais contemporâneas. Em seu lugar e s t a b e le c e- se u m a ontogcnese: u m d e v i r p l u r a l a p a r t i r d o aqui e agora. O que pode ser aproximado da imaginação criadora observad a por H. Corb in n o sufismo: "Tod o ser está em ascensão com 'o instante'!2". Podemos acrescentar: o i n s t a n t e n o q u e e le t e m d e ou s a d o , d e a r ris ca d o . O i n s t a n te naquilo que é efêmero e intenso. O bafo do presente. Q u e m q u e r q u e se in t e r e ss e c o m lu cid e z p e lo c o t id i a n o n ã o p o d e ig n o r a r o a s p e c to en r a i z a d o d o s en s o co m u m . O q u e , por sinal, permite entender melhor o desprezo cada vez m a i o r c o m q u e é e n c a r a d a a a b s t ra çã o , e m s eu s e n t i d o m a i s estrito, das diversas teorias filosófico-políticas próprias à m o d e r n id a d e . O p r e s en t e c o m o f u n d a m e n t o d a v id a c o n s is t e e m p ô r o e s p í r it o e m c o n t a t o c o m a ter r a es cu r a . N o t e m o s q u e , se es t e "i n s t a n t e e t e r n o " é v iv id o p a r o xi st ic a m e n t e p e l as g er a ç õe s jo v e n s , n ã o d e v e m o s n o s e n g a n a r q u a n t o à p a l a v r a " jo v e m " . Já é, n a v e r d a d e , u m lu g a r - co m u m d i ze r q u e a id a d e d o c o r p o n a d a t e m a v er co m a d a alma. Existem jovens velhos e vice-versa. O mesmo se dá n o qu e diz resp eito à alm a social. Em seu  Desobrietate, Fílon le m b r a q u e M ois és c h a m a d e "a n t ig o s ” h o m e n s q u e a in d a n ã o e n v e lh e c e r a m . E xis t e u m a m a t u r id a d e d o es p ír it o q u e ultrapassa a simples cronologia. O m it o d a "c r i a n ç a e t e r n a ” , q u e a t u a l m e n t e r e co b r a fo r ça e v i go r , c o n t a m i n a o co n ju n t o d a s fa i xa s et á r ia s . E a m a t u r i d a d e p o d e fa z er p a r c o m u m a p r im a v e r a i n t e r io r . Neste sentido, só importa a maturidade juvenil que dá

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ênfase à intensidade do vivenciado, ao qualitativo da e x is t ê n c ia . C o is a s q u e v ã o a o s p o u c o s se d is s e m i n a n d o no conjunto do corpo social. Desse modo, serão crian ças eternas os "antigos", no sentido conferido mais aci m a , q u e se m a n t ê m a t e n t o s às fo r ç a s o b s c u r a s e a r c a ica s d o co r p o , d a t er r a, d a n a t u r e z a em p e r p é t u o d e vir . O s q u e v a l o r i z a m o s e n t i d o e o se n s ív e l, o s q u e s e d e d i ca m c o m ce r t a a s s id u i d a d e , a a p r o v e i ta r , n o i n s t a n t e , o s fr u t o s d a  d o s p o r es t e m u n d o . Ain d a q u e s e ja m fr u t o s cr u é is e d e sabor amargo. A este respeito, é interessante n ota r tod as as ocorrên cias c o n t e m p o r â n e a s , n o s m a i s d i v er s os t er r e n o s , q u e r e m e t e m à   prima màteria. Publicidade, coreografia, pintura e até m esm o a alta costura são fenô m en os sociais que valorizam, desordenadamente e de forma não limitativa, o cabelo, a lama, a pele, a peliça, o sombrio e a crueldade. O incons ci en t e co le t iv o — e é a ssim q u e p o d e m o s e n t e n d e r u m a s e n sibilidade ecológica difusa — é perseguido pelo arcaísmo. T a m b é m a q u i d e s e jo d o "b u r a c o ", p r e o c u p a ç ã o co m a fo s  sa qu e é, n ão d evem os esquecer, o significad o d o m u n d u s d o s a n t i g o s r o m a n o s .  Mundus n o q u a l e r a m d e p o s i t a d o s tufos de terra provenientes do país de origem. . Trata-se de um simbolismo forte, o da terra escura de q u e o h o m e m está im p r e g n a d o e/ ou d a q u a l p r o v é m . C a b e n o t a r a d u r a ç ã o d essa m e m ó r i a i m e m o r i a l e su a s m a n i fe s  t a çõ e s c o n t e m p o r â n e a s q u e o co n f o r m i s m o i n t e le ct u a l n ã o in t e g r a o u s im p l es m e n t e n ã o vê . À e x ce ç ã o , n a t u r a l m e n t e , da psicologia abissal jungiana, ou ainda de certas corren tes ps ican alíticas qu e, n a esteira d e Maria Torok ou N icolas

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Abraham, interessam-se pelas "criptas" e, portanto, pelos fa n t a s m a s q u e a s p o v o a m . P ar a le v a r e m c o n t a e st a t e m á t i ca , q u e se e xp r i m e m u i  to bem na metáfora da "casca e do núcleo", é necessário, n a v er d a d e , u m a a u t ê n t ica c on v e r s ã o m e n t a l . P r e cis a m e n  t e n a m e d i d a e m q u e , d e a co r d o co m N . A b r a h a m , "n o s s o corpo funciona antes de tudo como linguagem®'. O que le va a r e c o n h e c e r a im p o r t â n c ia d a i n s c r i çã o s i m b ó l ic a n ã o verbal. In scrição qu e devem os enten d er em seu sentid o mais fo r t e: as m a r c a s co r p o r a i s, p o r e x e m p l o , c o m o a t a t u a g e m o u o u t r a s fo r m a s d e m a q u i a g e m , q u e le m b r a m a d im e n s ã o a n im a l d o h u m a n o . In s cr içõ es q u e v a m o s e n c o n t r a r t a m b é m n a s p r o fu n d a s s o n o r i d a d e s techno, n a s v i s c o s i d a d e s d a s r e u n i õ e s d e t o  dos os tipos, em sum a, na busca d e sensa ções terren as sig n i fic a n d o q u e o en r a i z a m e n t o p o d e ser d i n â m i co . Q u e p o d e h a v er u m a dunamis, u m a força específica d erivad a da ori gem, da com u n id ad e e d o território qu e lhe serve de alicerce. É em função desta memória antropológica que pode m o s e n t e n d e r a a p e t ê n cia p e lo s p r o d u t o s n a t u r a is , a m o d a "b i o " , a p r e o c u p a ç ã o co m o u s o d e r o u p a s d e fib r a s n a t u rais e outras buscas de energias alternativas. Não é mera especulação inútil identificar nessa preocupação com a " c r i p t a " u m a c o n c e p ç ã o a m p l i a d a d a libido q u e j á n ã o é s im p l e s m e n t e g en i t a l, m a s ge r al. A lg o q u e eu ch a m a r i a d e u m a e r ó t i c a societal fu n c i o n a n d o n a b a se d e u m a r ev er sib i lid a d e u n i v er s a l, e n t r e o s a s ce n d e n t e s e os d e s c en d e n t e s , e n t r e o s e l e m e n t o s n a t u r a is e s oc ia i s, o b e m e o m a l , a s o m b r a e a l u z . O h o l i s m o d a s t é c n i c a s d o N ew A ge o u a s

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efervescências festivas são as expressões paroxísticas, o co r p o r e is m o e o h e d o n i s m o d i fu s o d a s fo r m a s m a is b a n a is . Em cada um desses casos verifica-se, de maneira mai s o u m e n o s co n s c ie n t e , a n a m n e s e d a "fo s s a " t e r r e n a , d e s ejo d e g o z o, m o d e r a d o o u d e se n fr e a d o , d o q u e se d á a v e r e d o que se dá a viver num presente um tanto ousado. E cabe p e r g u n t a r se n ã o e s ta m o s d ia n t e d e u m a e s p é cie d e r em a nência, e mesmo da revivescência de um sentimento pa g ã o m a is fo r t e m e n t e e n r a iz a d o n a m e n t a lid a d e p o p u la r d o q u e e m g er a l s e a c r ed i ta . P a g a n i s m o a r ca i co q u e s e m a n i  fe st a n o a p e g o a e sse s p r i m o r d ia i s "e l e m e n t o s " n a t u r a i s d e q u e t r a t a m o s , e q u e n o s lig a à p lu r a l id a d e d o s m u n d o s s e n síveis. Disse-se a respeito do mitriacismo, concorrente derro tad o do cristian ism o, qu e era u m a "religião da crip ta". Seu c u l t o e r a c e l e b r a d o n o q u e T e r t u l i a n o c h a m a v a d e castra

tencbrarum, o p o s t a s , n a t u r a l m e n t e , às castra Iucis d os cris t ã os . R e e n c o n t r a m o s a q u i o s ím b o l o d a fo ssa m a t r i z e m q u e se baseiam os sólidos vínculos da comunidade. O mitria cismo era também uma religião da amizade14. Fidelid ade a o c o s m o e m s u a in t é g r a l id a d e . A t é e m s eu s a s p e c t o s t e n e  brosos. Fidelidade à terra que gera e ratifica a ho rizontal fr a te r n id a d e h u m a n a . É p o s sív el q u e o t r ib a l is m o p ó s - m o d e r n o , e m s u a s m ú l  tiplas manifestações, seja uma maneira profana de viver u m a e s p é cie d e fr a n c o -m a ç o n a r i a p a gã b a se a d a n a é t ica d a solidariedade, que devemos entender em seu sentido ple n o ; a q u e la q u e u n e , st rict o sensi :: às pessoas e às coisas.  Hu-

r~. -n ism o int egia i q u e lev a e m

:n t a o h ú m u s d a co n d içã o

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h u m a n a , e m v e z d e n e g á -lo . Da la m a d a s r e u n i õ es techno às "a d e g a s ú m i d a s " e o u t r o s " a m b i e n t e s f e ch a d o s " d a t r a  dição maçônica, sem esquecer o sentido que a expressão

"boites dc n uit” n ã o d e ix a d e t er n o im a g in á r i o d e ca d a u m , defrontamo-nos efetivamente com o retorno do "regime n o t u r n o " d a cu l t u r a . R e g im e d o fe r v ilh a r , d o f o r m i g a m e n t o q u e r e e n c o n t r a m o s s e m p r e q u e se m a n i fe s t a u m a r es su r gência do v italism o social e natural. O q u e p r e v a le ce n e ss e "e n c a i xe " é o a r q u é t ip o d o c o n tin en te 15. Retor n o d o trágico, o d o "estar aí" ou d o "ser jo gado aí" que, pela força das çoisas, gera uma necessária solidariedad e. Com os ou tros neste "vazio" que é o mu nd o, é preciso "cerrar fileiras”, sabér concretamente, de forma incorporada, no dia-a-dia, enfrentar o mal, a imperman ên cia e a m or te. Talvez seja esta a principal característica do p aga nism o tribal: fortalecer os víncu los de solid arieda d e e fid e l id a d e , e m s u m a , co r r o b o r a r u m a c o m u n i d a d e d e destino. O qu e a tem ática da "cripta " no s ensina é qu e os fan t a sm a s e s t ã o s e m p r e p r e s en t e s . T u d o p a ssa , e n o e n t a n t o a vida perdura. Nada desaparece da memória coletiva. Veri fica-se um enterramento profundo. É uma das interpreta çõ es d o c o n c e i t o d e " r e s íd u o " e m P a r et o. É t a m b é m o q u e designa a sombria expressão de Hegel quando fa la de sse "ossário das rea lid ad es" qu e é o m u n d o. Em su m a, é preci-* so semp re um su bstrato d e pod ridão para que a vida cresça. É este su bstra to, a lgo cruel, qu e ap óia as exaltações fes tivas dos diversos carn avais e outras rem em ora ções folcló ricas. E também aquelas, cada vez mais pregnantes, que

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celebram o cu lto das relíqu ias. Seu p ret exto p od e ser religio so, histórico e até mesmo mitológico. Em cada um desses '-‘casos, trat a-se de com u n icar-se com a orige m , o arcaico, as raízes fundadoras. Esteias, monumentos, placas comemo rativas, p on tos tu rísticos p od em ser consid erad os "estações" d a p e r e g ri n a çã o h u m a n a . P o n t o s d e r e fe r ê n ci a n u m ca m i j n h o c o le t iv o q u e n ã o t e m p r e cis a m e n t e u m a m e t a , m a s só p od e ser o qu e é a partir dessas inscrições, d essas sed im en tações qu e vão send o d eixadas, através d as eras, pelas gera ções an teriores. É isto qu e gera u m a vibração esp ecífica. É a par tir disto q u e p o d e m o s e n t e n d e r q u e o lugar cria vínculos. A este r e sp e it o , d e v e m o s r e p o r t a r -n o s a o q u e o a r tis t a co n t e m p o  rân eo M ich elan gelo Pistoletto ch am a d e p edra "m iliar .16" U m m a r c o d e li m i t a n d o u m e sp a ç o. U m a e s p é c ie d e cu r t o circuito entre o tempo e o espaço. Pontuação da tempor a lid a d e q u e p r iv ile gia u m p r e se n t e e t e r n o . T a m b é m a q u i enraizamento dinâmico: o objeto banal, testemunha de uma longa experiência, dá um sinal. Ele é o marcado r da v id a , s in a l, so br e tu d o , d e u m a h a r m o n i z a çã o c o m o m u n d o. O interesse da arte pov era, da qual Pistoletto é um dos iniciadores, consiste em lembrar, justamente, que a textu ra da vida é feita da sólida organicidade de todos os seus e le m e n t o s , m e s m o o s m a i s h u m ild e s . A h a r m o n i z a ç ã o co m o m u n d o , o f a to d e a c ei t á -l o p e lo q u e é, r ep o u s a e s s e n c ia l m e n t e n a s u p e r a çã o d e ss e g r a n d e c o n c ei to m o d e r n o q u e é a separação. É esta su p eração qu e tend e a p rivilegiar a reversibilidad e com o su bstrato arquetípico da trad ição. O m esm o n o qu e diz respeito à d icotom ia

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e n t r e o s u je i to e o o b je t o , s e n d o o p r i m e i r o m e s tr e e p o s  s u i d o r d o s eg u n d o — e s e n d o o " o b je t o ”, n o ca s o , o s ím bolo do mundo inerte, manipulável e explorável ao bel-prazer. O objeto, que classificamos na categoria "ter", t a m b é m é s e m p r e p o t e n c ia l m e n t e p e r ig o s o. É ele , p o r e s sência, diabólico, tenebroso, ligando à terra. Tem o peso d o corp o. Bem d iferente é o sujeito, cu ja figura é o espírito e que será classificado, de sua parte, e pelo menos em ter mos ideais, na categoria do ''ser''. Em suma, o objeto acor renta, o espírito liberta. Na verdad e, é esta classificação qu e p arece saturad a. Não e x is t e m a is o p o s iç ã o e n t r e o b je t i v i d a d e e s u b je t iv i d a d e , e s im — p a r a r e t o m a r u m a e xp r e s s ã o c a ra a G il b e rt D u r a n d — u m "tra jeto ant rop ológico". Esta "trajetivid ad e” é en con trada, profeticamente, na sensibilidade poética — "Obje tos inanimados, tendes então uma alma” (Lamartine) — q u e p r es se n te u m a p a r t icip a ç ão co m u m n o "d a d o ” m u n d a n o . S e n t i m e n t o q u e já e n t ã o d e ix a d e h i e r a r q u i z a r os ele  mentos desse dado. Assim, mais uma vez, E. Pessoa:  \ 

As coisas são, eu o afirmo, M ais q u e o t e m p o n o q u a l p a r e ce m m u d a r Mais que o espaço que parece contê-las. P a n t e ís m o o b je t a i q u e ch a m a a a t e n ç ã o p a r a a q u il o qu e i d e n t i fi q u e i c o m o a fu n ç ã o " c o m u n i a l " d e s se s a r t ifício s q u e s ã o o s o b je t o s . Estes não são apenas o sinal da alienação. Concepção cu ja o r i g e m v a m o s e n c o n t r a r n o objeto-maçã d o ju d eu-cris-

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t ia n i s m o , e q u e c u l m i n a n a s t eo r ia s d a e m a n c ip a ç ã o m o derna. Entretanto, como no fetichismo pré-moderno, so1m os possuídos exata m en te por aqu ilo que ju lgam os p ossu ir17. E, por sinal, a tendência acelerou-se consideravelmente. M i cr o c o m p u t a d o r p e ss oa l, t e le fo n e ce lu l a r , a g e n d a e l e tr ô  n i c a — é g r a n d e a li st a d e sse s o b je t o s m á g i c o s q u e — a i n d a q u e d e m a n e i r a s u p e r fici al, n ã o é e st a a q u e s t ã o — t r a t a m jjd e li g a r -n o s a o s o u t r o s e a o m u n d o . O trajetivo e st á n a o r  d e m d o d ia . A t é m e s m o e sses t e m p l o s d o o b je t o q u e sã o o s i m e n s o s

sh op pin g centers c o r r o b o r a m s u a u t i l i d a d e c o m u m a p e r  m a n e n t e a n i m a ç ã o : m ú s i ca , im a g e n s , a t r a çõ e s, v í d e o .  Ani mação q u e d e v e m o s e n t e n d e r a q u i stricto scnsu, o q u e c o n f er e u m a a lm a , u m "s u p l e m e n t o d e a l m a " às m a s s as e m movimento ao redor dos objetos expostos. Esses centros c o m e r c ia i s r e s u m e m b e m a r e v er s ib i li d a d e (o t r a je t o ) e n t r e o microcosmo, o indivíduo, o macrocosmo, simbolizado p e l o s o b je t o s , e o m e s o c o s m o , a s i m a g e n s q u e s er v e m d e m e d i a çã o a t u d o is t o. A r q u é t ip o d o continente, "e n c a i x e ", c o m o o a n a l i sa :G . D u r a n d , e x is t e n e ss e s lu g a r es e m q u e o o b j e t o é rei a lg o q u e favorece a "re ligação ", a lgo qu e ilustra a religiosid ad e pósm o d e m a : a r e li gio sid a d e d e u m á co m u n h ã o c o m a s co is as e as pessoas, da sinergia en tre o am bien te social e o am bie n t e n a t u r a l . A n a t u r e z a e o "a r t if í :i o " r e sp o n d e n d o - se n u m a comunicação sem fim. É v e r d a d e q u e e s ta p o d e p a r e ce r b e m p o b r e p e lo s p a d r õ e s d o i n t e le ct o , o u p e l o m e n o s d e u m a r a z ão p o d e r o sa e s ob e  r a n a . A fin a l d e o n t a s , e st a c

i ca ç ã o /

n h ã o s il e

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cio sa c o m a s "c o is a s " d o m u n d o p o d e ser co n s id e r a d a u m a tática específica: liber tam o-no s da n ecessid ad e aceitan d o-a. A ênfase no "continente", em sua dimensão "vazia", é na v er d a d e u m a t á t ic a q u e v a m o s e n co n t r a r , p o r e xe m p lo , n a s diversas formas do pensamento oriental. Este, em geral, é menos ofensivo, ou pelo menos menos frontal, na medida em que vai seguir a "propensão" de vida com que somos c on f r o n t a d o s . I n s is t in d o m e n o s n o co n t r o l e o u n a d o m i n a  ção da natureza do que na soberania que cada um pode al can çar com e através desta. Podem os dizer que a deidade n ão é transcendente, pairando implacável, e está, isto sim, en terrada n o m ais p rofu n d o das coisas e das pessoas. D e p a r a m o -n o s a q u i, co m o n u m e co, co m u m t e m a ca r o à m ís t ic a , o d a v a c u i d a d e . O n a d a g e r a n d o o tu d o . H á n e s  t a p e r s p e ct iv a u m a f o r m a d e co m u n i c a ç ã o . N ã o é a p l e n i  t u d e d o logos a g i n d o q u e i m p o r t a , m a s a a s p i r a ç ã o , silenciosa, ao vazio da "palavra perdida". Basicame nte, o z e n r ep o u s a s u a p r á t i ca n u m a t e n s ã o c o m o e st a. Comentando a respeito dos jardins de Tokaian no M y o s c h i n - ji d e K i o t o e s eu s t r ês g ra u s d e e x p r e s s ã o — u m p á t i o d e a r eia , u m a c o m p o s i çã o d e r o c h a s e u m a fl or a l — , Augustin Berque vê neles a expressão do que provém da "va cância" (Mu). "Vacâ n cia" que p erm ite qu e o ser se con sti tu a, ap areça, a ja 18. Existe u m "v ín cu lo p rév io", pr im or d ial, t a lv e z m í t ic o , n o q u a l t u d o se e n r a íz a . Gr a u z e r o n a e x p r e s  s ão h u m a n a , m a s q u e n e m p o r is t o d e ixa d e s er a c o n d i çã o d e p o s s ib i li d a d e d e t o d a s a s m a n e i r a s d e e xi s tir . Em sua descrição de Tóquio, Roland Barthes propõe t a m b é m u m e s cl a r e ci m e n t o in s t ru t i v o d e sse ce n t r o v a z i o

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q u e é o p a l á cio im p e r ia l, d a n d o s i m b o l i ca m e n t e s e n t id o à cid a d e . Va m o s e n co n t r a r a i m p o r t â n c ia d e u m p i v ô c o m o este em m u itas cidades do Extrem o Or iente: Pequ im, Seul, por exemplo, onde a vida social se articula a parti r de um lugar vazio e proibido ou não dito. Aliás, é interessante observar qu e a língu a falada n esses lugares, com o ain d a h oje a d a ci d a d e im p e r ia l e m Tó q u i o , é i n c o m p r e e n s í v e l p a r a o c o m u m d o s m o r ta is . In c o m p r e e n s ív e l m a s n ã o m e n o s n e  cessária à estru tu ração social. A p len itu d e d o logos, d o v e r bo agente, dá lugar ao vazio do loco, o l u g a r q u e p e r m i t e ser e favorece o seu crescim en to. Existir a partir do "vácuo" é uma temática que vamo s e n c o n t r a r , d e fo r m a m a is ou m e n o s m a r g i n a l , em cu l t u r a s bem diferentes. Localizar o centro espiritual supremo no mundo subterrâneo é — sem ironia — um lugar-comum. Disto dá fé a busca da interioridade poética. O mesmo q u a n t o à démarche iniciática resu m ida na célebre fórm u la maçônica: "VITRIOL", visita interiora terrae, rectifícando

inv enics occuit um lapidem. Cheg ou -se até a fazer u m a a p ro ximação etimológica entre o céu, coelum, e o vácuo, a ca verna, em grego koilon 19. Sem elh an te ap ro xim ação entre o mundo celeste e o mundo subterrâneo é instrutiva na medida em que une aquilo que, de maneira por demais simp lista, teria sid o separad o. A bu sca d o "cen tr o da u n ião " pod e ser considerad a u m d ad o arq u etíp ico (C. G. Ju n g) ou um a estrutura antrop ológica (G. Duran d ), um arcaísmo que, sob m u itos aspectos, nã o d eixa d e ser atual. A r e l a ç ã o e n t r e a in t e r i o r i d a d e e a i n t e i r e z a é ta l v e z o que se constata na multiplicação desses "jardins secre-

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t o s " , c o m o os hobbies artísti cos, as buscas espirituais, as m ú l t ip l a s t e or ia s a lt e r n a t i v a s , o d e s e n v o l v i m e n t o d e d i v e r s a s a s s o c ia ç õ e s q u e e n f a t i z a m a a u t o -r e a l iz a ç ã o , s e m esquecer o ressurgimento do diário íntimo. Porém não m e n o s im p r e s sio n a n t e é ob s er v a r q u e e st a in f er io r id a d e se exibe. Ela se m ostra n a "n et ". Mu ltiplicam -se as w eb cam d o m é s t i c a s , h o m e p a g e s e o u t r o s sites p e s so a is o u fó r u n s de discussão. Eles se ligam em rede e ilustram bem a in tuição de G. Simmel, que previa que, em determinadas é p o c a s , a "p r o f u n d i d a d e se e s c o n d i a n a s u p e r fí ci e d a s coi-^ * sas". Que quer dizer isto, senão que nada deve ser ocul tado, ou negado, naquilo que constitui o ser individual e social? Nesta perspectiva, o que poderí amos considerar "obs  cen o" d e u m p on to de vista mo ra l (re)passa à boca de cena social. Os reality show s n ã o s ão a p e n a s u m a "t e le lix e ir a ", u m a l ixe ir a p a r a e n c h e r o u e sv a z ia r . Sã o t a m b é m u m e le  m en to da realidad e que, com certa insolência, e talvez com d e s e n v o lt u r a e m r e la çã o ao s c o n f o r m i sm o s d o p e n s a m e n  to, oferece-se cru am en te em esp etácu lo. Ao se exprim ir, esta p a r t e o b scu r a r e la t iv iz a n o s sa p r e t e n s ã o d e d o m i n a r a n a  tu reza. Mas, an tes, incita a se ad ap tar a ela. A sep ar ação ent re o privado e o públ ico perde força. Aquilo que no bu rguesism o m od ern o p oderia ser vivido p or t rás d o "m u ro da vida privada" torna-se assim um elemento do vínculo social. Constit ui as múltiplas tribos que, virtualmente e à s vezes concretamente, se encontram por meio da "rede". É claro qu e este p roced im en to é às vezes "p erv erso", qu ase semp re

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u m a ce rt a h u m il d a d e : s a b er l e v a r e m co n t a a "c r ip t a " q u a n 1 d o s e p r e t e n d e p e n s a r a v id a s o c ia l.

Sa b e d o r ia

d a

n o it e

N ã o p o d e m o s p e n s a r t o d a s as co is a s a p a r t ir d a via recta d a ksim p les razão, n aq u ilo qu e ela tem d e claro e d iscriminad or. O "labirinto do vivido", para usar uma bela expressão do saudoso Abraham Moles, exige o estabelecimento de um c o n h e c i m e n t o p l u r a l , do qual participem o seiisível e a in c e r t ez a . E t a m b é m a i n t u i çã o e a i m a g i n a ç ã o , q u e p e r m i  tem apreender a importância dos afetos e paixões. Coisas cu ja i m p o r t â n cia v e m s e n d o ca d a v e z m a i s r e c o n h e c id a n a s o cia l id a d e p ó s - m o d e r n a . A s sim , c er t a s ca t e g o r ia s , c o m o a metáfora ou a analogia, são ferramentas pertinentes e no m í n i m o o p e r a cio n a i s, d e sd e q u e n o s e s fo r ce m o s p a r a e n t e n d e r c o n c r e t a m e n t e o c o m u m d a v id a s o ci a l20. Ela s c h a  m a m a a t e n ç ã o p a r a o fa t o d e q u e e xi st e u m "c la r o - e s cu r o " fu n d a d o r , o p r ó p r io fu n d a m e n t o d e t od o v ín c u l o s im b ó li co. Enr iqu ecer o esp írito n ão é abd icar d ele. "Abrir a raz ão" continua sendo um terreno epistemológico que merece atenção. Es te e n r i q u e c i m e n t o p e lo s e n s ív e l d e v e ser r e l a ci o n a d o a u m a f or m a d e "fe m i n i z a ç ã o " d o m u n d o . Q u e r o d iz er co m is t o o r e t o r n o d e c a r a c t e r ís t ic a s c o m u n s q u e e n co n t r a m o s a o m e s m o t em p o n o h o m e m e n a m u l h er , ca r a ct er ís tica s que o patriarcado dominante da tradição judaico-cristã c o r ;e g u i u m a r g i n a liz a r p o r m u i to t e m p o . N a v er d a d e , p a ra

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r e t o m a r u m a t e m á t i ca ca r a a G il be r t D u r a n d , o "r e g i m e ^ diurno” do imaginário ocidental repousa essencialmente n u m a f u n ç ã o "d i a r é t i c a ", d i s cr i m i n a d o r a , a n a l ít i ca . O glá d io que corta ou o falo qu e pen etra são suas figur ações ma is expr essivas. O espírito da época estará ent ão na e xp licação das coisas, no esforço para "zerá-las”. É b e m d ife r e n t e a a t it u d e d o "r e g im e n o t u r n o ", c u jo 1 s í m b o l o é a taça, e qu e trata d e congregar, est abelecer rela ções, favorecer a inter ação. A pa lavra-chav e é en tã o im p li cação. Levar a sério as "p rega s" da natu reza h u m an a. Daí a " c o m p r e e n s ã o " d e tudo que constitui este conceito. É as-.y s im q u e d e v e m o s e n c a r a r a "f e m i n i z a ç ã o " d e q u e t r a t a m o s . A "taça" recebe e favorece, sem d istinção, u m ser con ju n to f u n d a m e n t a l . T o d o s o s e l e m e n t o s d a n a t u r e z a e d a cu l t u r a n e l e e n c o n t r a m lu g a r e f ec u n d a m -s e r eci p r o c a m e n t e . Pa ra u s a r u m a e x p r e s s ã o u m t a n t o s u g es t iv a d e u m t e x  to licen cioso d o sécu lo XVII, devem os recon hecer a "infin ita capacidad e da bo ceta". Nesse texto, a palavra tem con ot açã o p ejora tiva .21 Mas sem qu erer ela frisa bem o asp ecto m a te r ia l d o a b i s m o s e m fu n d o , e in d i ca a d i m e n s ã o l a b i r í n t i ca da vida individual e social. Tam bém aqui, m etáfora q u e abre para o vazio e suas diversas modulações, sua dimensão es sencial, a de ressaltar a "capacidade". Expressão de uma

 força básica d e qu e o  poder patriarcal é apenas, n o fim das co n t a s , u m a s i m p l es r e d u çã o . Em r e l a çã o a u m p a g a n i s m o d i fu s o, o d o lo c a l is m o , d a valorização da terra e d e seus prod utos, da ep ifan ização d o corpo e do hedonismo que é seu corolário, podemos falar d e u m r e t o r n o d o c u l t o à m agm a m ater. Est a G r a n d e M ã e

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representada pela terra e pela vida. É a pr oem inên cia da d eu sa mãe cujos cultos tribais precederam e foram afastados p e l o u n iv e r s a lis m o d o cu lt o d e u m D e u s ú n i c o e s u a m a n i  festação p rofana : o intelecto. O típico dos cultos à Deusa mã e, aq u ilo con tra o qual o Ocidente vem lutando desde os profetas do Antigo Testa mento, é esta "hierogamia", o casamento sagrado entre o céu e a terra, o orgiasmo, em sum a, as celebrações fusionais. As "o n d u l a çõ e s l a s civ a s " p r ó p r i as d a v i d a e x u b e r a n t e r o m p e r a m o "p e d e s t a l fá l ic o " p r o d u t iv o e r ep r o d u t iv o , o " p e  destal" da genitalidade, da agricultura e da violação da n a t u r ez a , d e q u e o p r o d u t i v is m o c o n t e m p o r â n e o é o r e su l  tad o lóg ico.22 E t e n d o i st o e m m e n t e q u e , e n c er r a n d o - se u m ciclo , p o  demos compreender como as fusões e confusões contem porâneas rcinstauram o arcaísmo terreno da Grande Mãe. O que n os forçaria a ad m itir qu e existe nas d iversas efervesc ên c i as c o m q u e n o s d e fr o n t a m o s u m a i n e g á v e l s a b ed o r i a , uma verdadeira "ecologia do espírito" que reinstaura a fem inid ad e da Sh ekh ina de Zohar, d a Sofia grega, da Miriam ou Maria cristã. Todas figuras da sabedoria, mas de uma sabedoria que, longe da abstração unívoca, a da ver tica lid a d e t r a n s ce n d e n t e , q u e r es ta r e n c a r n a d a n a p lu r a l id a d e d as capacidades h u m a n a s , a d a h o r i z o n t a l id a d e im a n e n t e . Existe de fato na feminida d e da sabedoria encarna d a u m forte "relativism o", o relativismo d o estab elecim en to d e re lações entre coisas disparatadas. Relativismo próprio da imaginação, ou ainda, o que fica muito perto, relativismo da experiência. Do senso comum. "Noção comum" em

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Sp i n o z a , "v e r d a d e d e f a t o " p a r a Le ib n iz . P o d e r ía m o s m u l  tip licar à vo n tad e as expr essões, fam iliares ou erud itas, qu e d ã o co n t a d e st a r e a lid a d e q u e in t e g r a o h í p e r o u a s u r r ea lid a d e . Co is a s q u e t r a d u z e m a m e m ó r i a d o a n t ig o . Aliá s é e st a m e m ó r ia q u e se e xp r im e co n t e m p o r a n e a m e n t e d e d i fe r e n t e s m a n e i r a s . P ar a cr i a r im a g e n s , m e m ó r i a d o cé r e b r o réptil contra a hegemonia do neocórtex. Memória da era d e o u r o d o p a g a n is m o , s e m p r e p r e s e n t e, a d o d e s t in o , d o ventre, do m atriarcado, contra o m essian ismo do jud eu-cristianismo voltado para o futuro, o do patriarcado. Es te r e la t iv i sm o , u m a o u t r a f o r m a d e d a r ê n f a s e à e x p e  riência concreta, e nisto opondo-se ao universalismo, é encontrado como estrutura antropológica no Oriente. Co m o sim ples am ad or, registro esta observ ação do esp ecia lista zen Suzuki, afirmando que "assim como encontrá vamos o pai na base da maneira de pensar e sentir do o c id e n t a l , n o O r i e n t e er a a m ã e " q u e co n s t it u í a a b a se d a natureza do oriental. A mãe, diz ele, "envolve tudo num a m o r i n c o n d i ci o n a l . Pa ra ela) a q u e s t ã o d o b e m o u d o m a P n ã o s e i m p õ e ". O envolvimento, a sombra, o vácuo, o ventre, a nãodistinção entre bem e mal, todos estes elementos estão r e u n id o s n o q u e os ja p o n e s es ch a m a m d e   A m a e: calor m a tricial, proteção não-racional, instintiva, compreensão não-judicativa, coisas que favorecem a fusão, a confusão p r é -in d i vid u a l, e q u e e n c o n t r a m o s n o f u n d a m e n t o d o ideal comunitário. P o r s i n a l , é i n t e r e s s a n t e n o t a r q u e q u a n d o D o i Ta k e o p r o p õ e su a a n á lis e d e  Amae, recorre a u m títu lo alu sivo: "jo g o da in d u lgên cia".23 É o qu e evid en-

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cia o t e x t o . Tr a t a -s e , é v e r d a d e , d a i n d u l g ê n c i a d a m ã e c o m o filh o , m a s i st o s er v e d e fu n d a m e n t o a u m a indulgência

generalizada. Em r e l a çã o a o o u t r o , or ig e m d a co m u n i d a  de, em relação à natureza, à sensibilidade ecológica, em s u m a , à c o m p a i x ã o , a s a b e r , e st a ca p a c id a d e d e v i b r a r co m a alt er id a d e , d e v iv e r ju n t o a s p a i xõ e s c o m u n s . D os cu lt o s à G r a n d e M ã e d a p a r t e o r ie n t a l d o M e d i t e r  r â n e o à in d u lg ê n c ia d o   A m a e ja p o n ê s , s ã o m u i t a s as a t i t u d e s, t á tic as o u m é t o d o s e s p e cí fic o s q u e t ê m c o m a n a t u r e z a íuma relação menos brutal, menos econômica, menos normativa. Para usar uma expressão de Gilbert Durand,j' trata-se de uma sensibilidade que remete a "orientes mí t ico s ", q u e d e v em o s e n t e n d e r c o m o t u d o q u e é a lt e r n a t iv a à hegemonia do patriarcado ocidental. Sensibilidade que j r e m e t e à n o i t e o r ig i n á r i a , a u m ca o s fu n d a d o r , a o q u e se r  v e d e c o n d i ç ã o d e p o s s i b i l i d a d e p a r a t o d a s a s  formas p e s  soais ou sociais. De fato, por mais paradoxal que pareça, e xis t e u m a f u n c io n a l i d a d e d o fe rv ilh a r , n a m e d i d a e m q u e fu n d a e in a u g u r a a v id a . A Grande Mãe e a orgia. Mãe e amante. Iniciadora na vida e devoradora. Conhecemos bem a ladainha dessas d ico t o m i a s , o u m e lh o r , d e ssa s c o m p le m e n t a r i d a d e s a n t r o p o ló g ica s . U m a e x c e le n t e s ín t e se , a d a   Alma Venus, t r a d u z b e m est a a m b i v a lê n c ia e m o s t r a q u e à u n i d i m e n s io n a l i d a d e de um bem transformado em mcdelo abstrato opõe-se, a r q u e t íp i ca e e m p i r i ca m e n t e (o q u e é u m a ú n i ca co i sa ), o p a r a d i gm a d a c o m p l e xi d a d e 24. A q u e le n o q u a l o c o r p o e a a lm a s e v iv e m n u m a h a r m o n i a ce r t a m e n t e co n flit u o s a , m a s n ã o m e n o s só lid a . O se n so co m u m n ã o se e n g a n a a o e n

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x er g a r a v id a c o t i d i a n a c o m o e t e r n a c e n a t e a t r a l d e s sa a n t i  n o m ia fu n d a d o r a . Sa b e d o r ia d e s t e s e n s o c o m u m q u e s a be , c o m o u m s a be r i n co r p o r a d o , ju n t a r o q u e es tá d is p e r so . E t im o l o g i ca m e n t e , o co m u m ,  Xunos, é a c o n c a t e n a ç ã o . "R el ig a ç ã o " f u n d a m e n t a l d o c o r p o e d o e sp í r i t o . C o r p o r e í s m o m í s t ic o q u e o b s e r vamos facilmente em muitas práticas juvenis, como, por e x e m p l o , a s e f e r v e s c ên c i a s m u s ica i s, m a s t a m b é m o s e n r e d o s d o s video gam es nos quais a integridade do ser se ex p r i m e n u m a e sp é cie d e ilu m in a ç ã o e m q u e o d e m o n i s m o c a m in h a a p a r c o m u m a i n g en u i d a d e a d e q u a d a m e n t e angelical. O anjo negro dos jogos de papéis, assim como aquele q u e o c in e m a o u a ca n ç ã o e xa lt a m s em v e r g o n h a n e m c u l  p a b i li d a d e , é c e r t a m e n t e a fi gu r a e m b l e m á t i ca m a is e x p r e s  siva da pós-modernidade. E não é à toa que — para citar a p e n a s a lg u n s e x e m p l o s — M a d o n n a , Djõ rk , E m i n e m , n o rastro dos Sex Pistols, são consid erad os toten s em v olta d os quais ocorre regularmente a agregação. Por sinal, o nome d e ss es t o t e n s p o u c o im p o r t a . Ele s p a s s a r ã o e m u d a r ã o . M a s o que ficará, a longo prazo, será a tendência a val orizar a "s o m b r a ". T r a t a- se d e u m e fe i to es tr u t u r a l q u e, d e u m m o d o in c o n s ci en t e , u n e o r g a n i ca m e n t e , a q u il o qu e o p e n s a m e n t o o cid e n t a l e m o d e r n o m e c a n i ca m e n t e s ep a r ar a. A este respeito, é interessante lembrar a estranha con ju n ç ã o q u e e n c o n t r a m o s n u m a e xp r e s sã o d e st a so m b r a , a ; d e M e fi st ó fe le s . N e la e n c o n t r a m o s a o m e s m o t e m p o o l a  t im mephistis, s i g n i fi ca n d o e x a l a çã o i n f e ct a ( n o  Larousse, p o r e xe m p l o , o a d je t i v o m e fí ti co : "q u e t e m u m o d o r r e p u g -

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n a n t e o u t ó x i c o " ) , e o g r e g o ophelos, q u e r e m e t e a f e d o r ú t il, o q u e n ã o d e i x a d e l a n ça r n o v a s l u z e s so b r e a s d iv e r  sas m a n i fe st a çõ e s d o d e m o n is m o c o n t e m p o r â n e o . Is t o p e r m it e , e m t o d o ca s o, c o lo c á - l a s e m p e r s p e c tiv a . E t a m b é m co n s id e r á -l a s co m o f o r m a s p a r o x ís t ica s , p o r t a n to um pouco à parte, caricaturais, do sentimento de "in dulgência" que o senso comum experimenta diante da a n o m i a . E is t o n ã o p e lo s im p l es p r a z e r e s t é t i co d o m a l , m a s p o r q u e , d e fo r m a q u a s e co n s c ie n t e , s a b e - se q u e é n e c e s s á  rio adaptar-se a ele. "Agüentar". Talvez fosse necessário, a lé m d o m o r a l is m o b e m p e n s a n t e e a lg o a b s t r a t o, e s ta b e  lecer um paralelo entre a sabedoria popular e a sabedoria demoníaca. Senso trágico da vida. Sentimento iniciático da vida, que, como os alquimistas medievais, vê na volta ao caos "u m a p a r t e d o g r a n d e t o d o ” . Es t ág io d a nigredo, co m o m o  m e n t o n e ce s s á r io d a co m p l et u d e h u m a n a . 25 M i s té r io d a conjunção, e isto em seu sentido estrito: o mistério é exa t a m e n t e q u e u n e aq u e le s q u e o c o m p a r t i lh a m . O s m it o s e xp r i m e m p e r m a n e n t e m e n t e e st e m i st ér io . As t r ib o s p ó s - m o d e r n a s , a s eu m o d o , t a m b é m o v i v e m . C o m isto, por meio de fenômenos reprovados pela moral, dos excessos e efervescências, exprime-se uma eterna busca, a d a co n ju n ç ã o d a fo r ça d o co r p o co m a d o e s p ír i t o. O co r p o t a t u a d o , c o m  piercings, e n f e i t a d o d e m a n e i r a c h a m a t i v a , e m s u m a , o c o r p o e xa ce r ba d o s er ia a p e n a s u m m o m e n t o na busca de um espírito comum: o que me liga ao outro. Neste sen tido , os frêm itos da m od a, as histerias esportivas e musicais poderiam ser considerados provas iniciáticas

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próprias a todos os caminhos para um "mais-ser". Eco da v i s ã o d a n t e s ca :

"Poi s'ascose n el f o co ch e li affina. ” Retornar ao fogo q u e afin a26. H á n e s t e "a f í n a m e n t o " u m a t á t ica , i n d iv i d u a l o u s o cia l, totalmente alternativa à que prevaleceu no mito progres sista, seja no do messianismo judaico-cristão ou no das t e or ia s m o d e r n a s d a e m a n c ip a ç ã o . M i t o p a r a o q u a l a "s u p e  r a ç ã o " d i a lé t ic a d o m a l er a a c o n d i çã o d e p o s s ib i li d a d e d a r e a li z a çã o i n d i v i d u a l ou , o q u e e r a a s u a c o n s e q ü ê n c ia l ó  gica, da construção de uma sociedade perfeita. Esboça-se então uma nova postura, pessoal e "tribal", a da aceitação d e s t e m a l p e l o q u e e l e é : u m e l e m e n t o e s t r u t u r a l d o dado m u n d a n o e m s ua s d ife re n te s m o d u la ç õ es . Postura qu e exige um outr o "discurso d o m étod o". N ovo em relação aos modernos conformismos de pensamento, mas também "arcaico", na medida em que se baseia num saber tradicional, num conhecimento simbólico que leva a s ér io a a n a m n e s e a r q u e t ip o ló g ic a . T u d o i st o , e m r e f e r ê n  cia às contribuições da etologia contemporânea, mostra a i m p o r t â n c ia d o in s t i n t o e d e su a s im a g e n s p r i m o r d i a is p a ra a co m p r e e n s ã o d o a n im a l h u m a n o . Nesta perspectiva, as efervescências, as histerias, os cli mas emocionais, os mimetismos corporais ou intelectuais p r ó p r i os d a s so cie d a d e s p ó s - m o d e r n a s g a n h a m p a r t icu l a r relevo. De fato, o observad or social n ão p od e m ais limitarse a negar o que Gabriel Tardeschamava, muito justifica-

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damente, de "leis da imitação". Também não basta mais a v a liá -la s à lu z d e u m in d i v id u a l is m o t e ó r ic o t o t a l m e n t e s u p e ra d o o u d e u m m o r a l is m o — m a i s o u m e n o s c o n s c ie n t e — u m p o u co a ca n h a d o . N a v e r d a d e , s e ja a n ô m i c a e m r e la ç ã o a os v a lo r e s e st a  b e le ci d o s o u r u id o s a , o u a i n d a , o q u e é p io r, e s t r a n h a m e n t e silenciosa, a  força societária afirm a-se e se exibe co m vigor. Pode ser uma rebelião latente, revoltas pontuais, os atos terroristas, uma abstenção social e política ou ainda um i n d i fe r e n t i s m o g a l o p a n t e o u u m a i r o n ia cq rr osr ya ., p o u c o importa a forma que assume, mas nada pode deter a ex p r e s s ã o d e ssa fo r ça q u e a ge e ss e n c ia l m e n t e p o r c o n t a m i n a  ç ã o . P or ir o n i a d o d e s t in o , a c o n t e c e q u e o d e s e n v o l v i m e n t o t e c n o l ó g i c o — e s p e c ia l m e n t e as r ed e s d a I n t e r n e t — f a v o  r e c e e ss as im i t a ç õ e s a r c a ic a s e a s r e v i v e s cê n c ia s d a m e m ó r ia i m e m o r i a l d o i n s t i n t o q u e s ã o seu s co r o lá r i o s. Para o m elh or ou pa ra o pior, essas leis da im itaçã o re in v e s t e m a p a r t e d e s o m b r a q u e ca d a u m le va e m si, e, p o r tanto, o lado bárbaro que age na vida social. Mas agindo assim, numa perspectiva holística, semelhante selvageria fa z se n t id o . T e m a r e c o r r e n t e d o p e n s a m e n t o g n ó s t ic o , p a r a o q u a l "t o d o m a l é p o r t a d o r d e u m a fl or ", ou a i n d a a fi gu  r a d e Sa tã p o d e n d o e n g e n d r a r o b e m o u a lib e r d a d e . T e m a q u e v a m o s en c o n t r a r n u m ce r t o e so te r is m o m a ç ô n i co q u e co n s i d e r a q u e , s i m b o l ic a m e n t e , a m o r t e é a p r ó p r ia co n d i  ç ã o d a v i d a : perit ut vivat. E m s e u s Entretlens, J o s e p h d e M aistre insiste n esta idéia. É p ossível qu e Hegel, ao teorizar a ' força do negativo", também seja influenciado por esta m £ ;m a co r r e n t e d e p e n s a m e n t o . Em r e su m o , a a t it u d e

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criadora baseia-se n a in tegração con stan te d o bem e do m al, da vida e da m or te, d a felicidad e e da infelicidad e. P er s p e ct iv a o x i m o r ô n i ca q u e a r e d u çã o r a ci o n a li s ta j u l  g o u - se ca p a z d e d e s c a r t a r se m d i fi cu l d a d e e q u e h o j e r e s  s u r ge c o m fo r ç a r e d o b r a d a . A i m a g e m r o m â n t i ca d a n o i t e, dos sonh os e da im agin ação, inv ad e mu itos terrenos da vida d i u r n a . O ra , a n o i t e é e x a t a m e n t e a q u ilo q u e p e r m it e u m a "tr an sm u ta ção be n éfica das trev as".27 O claro-escuro dos sonhos despertos coletivos, o desenvolvimento do lúdico e d o fe s tiv o q u e d e l e d e co r r e, t u d o i st o m a n t é m a a n t í te s e n o p r ó p r io s eio d e u m a r e a l id a d e q u e a p a r t ir d a í n ã o p o d e ma is ser sintética. A no ite n ão é m ais errad icad a, 0 1 1 t o t a l  m e n t e s ep a r a d a d o d i a, a flo r se r e c o n h e c e n o m a l d e q u e saiu. Na constante valsa dos deuses, Prometeu está dando lugar ao efervescen te Dioniso! Tran sm u tação das trevas. É este o esoterism o d ifuso qu e se exprime no inconsciente coletivo pós-moderno. É o qu e serve d e su bstrato aos vários excessos da sociedade de consumo, a seus aju n ta m en tos , a suas histerias. É tam bém o q u e p e r m i te e n t e n d e r os jo g o s ao m e s m o t e m p o cr u é is e i n o c en t e s a q u e se e n t r e g a m , n a I n t e r n e t o u e m p r o g r a m a s de televisão, essas "crianças eternas" que são noss os con t em p o r â n e o s. É is to t a m b é m o q u e e n c o n t r a m o s n a e n c e  nação da "matéria-prima" característica dos espetáculos 1

teatrais e coreográficos, nos qu ais a natur eza e seus "h u m o res" ocupam lugar privilegiado. O mesmo acontece com tod as as "ins ta lações " artísticas ou expo sições fotográficas q u e v a lo r iz a m a b a n a l id a d e d o o b je t o c o t id i a n o , s í m b o l o d o h ú m u s c o n s tit u t i v o d o d a d o mundano. Em to d os estes

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ca so s, o a t o cr i at i v o p a r ece r es p o n d e r a o c h a m a d o d o p o e  ta: "Vem , ó N oite m u ito an tiga e id ên tica" (F. Pessoa). Eis a í o s u r p r e e n d e n t e o u d e s t o a n t e p a r a d o x o . Ao ce l e brar e reabilitar o Mal, a criação, qu e n ão é m ais excep cio n al ou reservada a alguns, é expressão d e vitalid ad e, form a b a n a l d o v it a l is m o , a f ir m a ç ã o d a v id a . É v e r d a d e q u e e st a estética, vivida n o d ia-a-dia, con tin u a inv isível para os qu e se sentem investidos do direito de gerir ou pensar as insti tu ições sociais. Mas ne m por isso deixa d e con stitu ir a ver dad eira centralid ad e sub terrânea, aqu ela sobre a qu al reina, para usar a expressão simmeliana, o "rei clandestino" da época. Ela gera intranqüilidade, e até mesmo "espanto". 'Mas quase sempre o trovão é necessário para arrancar o/  t o r p o r d e g r a d a n t e d e u n i a v id a s em s a b o r . Le s C h a l p s  P a r i s  G r a i s s e s s a c ,

1999-2001

Notas do Capítulo V

1 . C f . N i e t z s c h e ( F . ) ,   Naissance de Ja tragédie, P a r i s , G a l l i m a r d ( O . C . ), T . 1, p . 5 3 . C f . t a m b é m M a f f e s o l i ( M . ), L'O m bre deDiony -

sos, contribution à une sociologia de 1'orgie, op. cit. S o b r e o " r e l a t i v i s m o " , c f . M o s c o v i c i (S.), La M a chi n e à fai re les dieux, P a r i s , F a y a r d , 1 9 8 8 , e M o r i n ( E . ) , L'Hum anit é de 1'hum anité, Le Senil, 2001. 2 . C f . B r é c h o n (R ), Etrange, ét rahger, u n e bio grap hi e de F. Pessoa, Paris, Christian Bourgois, 1996, p. 193. 3 . C f. p o r e x e m p l o V a n e i g e n (R.),  La Résistance au christianisme,

les h érésics des o rigines au XVII1Csiècle, P a r i s , F a y a r d , 1 9 9 3 , o u Beyer de Ryke (B.), M a í t re E ck h a r t , u n e m y s t i q u e d u détachement, Ousia, Bruxelas, 2000. 4 . C f . P u n i k k a r (R .), Éloge du sim ple, le m oi ne com m e archéty pe universel, P a r i s , A l b i n M i c h e l , 1 9 9 5 . 5 . D u p r o n t (A .), Du sacré, croisad es et p élerin a ges, im ages et  langage, P a ri s , G a l l i m a r d , 1 9 8 7 , p . 3 3 9 . S o b r e D o v Ba e r d e L o u b a v i t c h , cf . S c h o l e m (G .), Les Grands Courant s de la m y st ique  juive, P a r i s , P a y o t , 1 9 6 0 , p . 1 7 . 6. C f. a s p e s q u i s a s e m a n d a m e n t o d e H a m p a r t z o u m i a n (S.), P et ia u (A .), P o u r t a u (L .) , n o C E A Q (w w w . u n i v  p a r i s 5 . f r / c e a q ) e Sociétés,

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D e B o e c k , n e 2 , 2 0 0 1 . C f . t a m b é m M . G a i l l o t ,   La Techno, un

laborat oire est hét iqu e et polit ique du prêsent , e d . D i s  v o i r , P a ris, 1998. 7 . N i e t z s c h e (F. ),   Naissance de la tragédie, op. cit., p . 6 9 . 8 . N e g r i ( A.) , Kairos, A lm aV enu s, Mult itude, P ari s, C a l m a n n  Lé v y , 2000, p. 1920. Sobre o messias, cf. Benjamin (W.), "Thèse sur l a p h i l o s o p h i e d e l ' h i s t o i r e " , i n Poésie et Révolution, Paris, Denoél, 1971. 9. C f . as r e f e rê n c i a s d e A r is t ó t e le s e A v i c e n a f o r n e c i d a s p o r F r a n z (M . L. v o n ) , C o n s u r g e n s ( A.), La Fon t ain e d epi erre, P a r i s , 1 9 8 2 , p . 1 7 0  1 76 . C f. t a m b é m J u n g ( C. G .), A l c b i m i e e t p s y ch o l o g i e, Paris, 1970, p. 336. 1 0. C f . a e s t e r e s p e i t o N e h e r ( A.),   L'Essence du prophétisrne, Paris, CalmannLévy, 1983, p. 78. 1 1 . J u n g ( C . G . ) , Présent et avenir, P a r i s , B u c h e t  C h a s t e l , 1 9 9 6 , p . 1 3 5 e s e g u i n t e s . C f. t a m b é m Fr a n z (M . L. v o n ) , C. G.Jung, P a ris, BuchetChastel, 1994, p. 190. 1 2. C o r b i n (H . ), L'Ima ginat ion créat riceda ns lesou fism e d'Ibn Arabi, P ar is , F l a m m a r i o n , 1 9 9 4 , p . 1 5 9. S o b r e o p r e s e n t e , cf . m e u l i v r o

La C o n q u ê t e d u p r és e n t   ( 1 9 7 9 ) , P ar i s , D e s c l é e d e B r o u w e r , 1 9 9 9 , e L'ínst an t ét ernel, P a r i s , D e n o é l , 2 0 0 0 . 13 . A b r a h a m (N . ),   L'Écorce et le Noyau, P a r i s , F l a m m a r i o n , 1 9 8 7 , p . 2 0 . C f . t a m b é m R o u c h y Q .  C . ) , La Psy chanaly se av ec N icolas A braha m et Maria Torok, Ér es , 2 0 0 1 . S o b r e a " v i s c o s i d a d e " m u s i c a l , c f . C a t h u s ( O . ) , L ' Á m e s o eu r, l e f u n k et l es m u s i q u e s   populaires du XX'siècle, D. D. B., 1999. 1 4. C f . G é r a r d (C . ), Pa rcourspaien, 1'âge d 'ho m m e, L a u s a n n e , 2 0 0 0 , p . 1 1 8  1 1 9 . C f. t a m b é m a r e v is t a  Antaios, B r u x e l a s , X V I , 2 0 0 1 . S o b r e o t r i b a l i s m o , cf . M . M a f f e s o l i. Le T em ps des t ribus ( 1 9 8 8 ) , c a r ti s , La T a b l e R o n d e , 2 0 0 0 . 1 5. D u r a n d (G .), Les St ructures a nt hropo logiques d e rim agina ire, Paris, Dunod (1960), 1969, p. 243 e seguintes. 1 6. P i s t o l e t t o (M .) , R . M . N . L y o n , 2 0 0 1 . 1 7 . M a f f e s o l i ( M . ), La Co n t em p l a t i on d u m o n d e ( 1 9 9 3 ) , L e Li v r e d e

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