M Rodrigues Lapa - Estilistica Da Lingua Portuguesa

May 5, 2017 | Author: Pepe legal | Category: N/A
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ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

POR EXPRESSO DESEJO DOS EDITORES, ESTA OBRA É NUMERADA E RUBRICADA PELO AUTOR

M. RODRIGUES Lapa

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 11.a

EDIÇÃO

REVISTA PELO AUTOR Composição e impressão COIMBRA EDITORA, LDA

1984 .

1. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

1. Palavras reais e instrumentos gramaticais. - Consideremos este pequeno trecho literário de Trindade Coelho, em Os Meus Amores: «A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o horizonte começava de carminar-se ao de leve.»

Se observarmos o papel que as diferentes palavras desempenham no discurso, logo verificamos que umas são mais importantes do que as outras. São as principais portadoras da ideia ou do sentimento, traduzem a realidade com mais viveza, despertam enfim imagens mais fortes. Claro que isso dependerá um pouco do observador; mas qualquer de nós, por diferente que seja, verá naquele período literário as seguintes palavras ou expressões principais, que vão agora impressas a itálico: A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o Horizonte começava de carminar-se ao de leve. Se quiséssemos levar mais longe a exploração, verificávamos que entre estes termos principais se poderia fazer ainda uma redução, omitindo os menos importantes e deixando ficar apenas aqueles em que recai plenamente o sentido do trecho: Céu... estrela... fenecera... horizonte... carminar-se.

Com um pouco de boa-vontade, conseguimos ainda apreender o significado da frase, reduzida agora à sua expressão mais simples. Vejamos as fases dessa operação simplificadora. Primeiramente despojámos o trecho de artigos, preposições, conjumções, verbo auxiliar (começava), locuções adverbiais, excepto uma (A esse tempo), que nos pareceu de algum valor expressivo e lógico. Por fim, querendo levar a selecção ao maior apuro, só deixámos ficar substantivos e verbos. Que se deve concluir de tudo isto? Que as palavras se encontram subordinadas a uma escala de valores expressivos. Que há palavras reais, fumdamentais, que levam em si toda a responsabilidade do sentido da frase, e que há instrumentos gramaticais, encarregados de estabelecer a ligação entre as ideias. As palavras reais (também chamadas lexemas) são o substantivo, o adjectivo, o verbo e, por vezes, o advérbio, o numeral e o pronome, conforme o papel que desempenham no discurso. Os instrumentos gramaticais (também chamados morfemas) são constituídos por todos os outros elementos de relação e precisão:

artigos, preposições, conjumções e, por vezes, advérbios, numerais e pronomes. com absoluto rigor, poder-se-ia dizer, como vimos, que lexemas são apenas os substantivos e os verbos: o substantivo designando o agente da acção, o verbo exprimindo a própria acção. com efeito, a ligação do agente com o acto realizado ou a realizar constitui a forma mais simples, mais primitiva do pensamento. Exemplo: Rei ordena, Deus pumirá, etc. Na vida prática, esta divisão em lexemas e morfemas tem várias aplicações. O carácter vertiginoso da nossa 7

civilização impõe-nos a economia das palavras para se não perder tempo... e dinheiro. Na vida dos negócios há por vezes necessidade de fazer condensações enérgicas, limitando as palavras ao máximo, sem quebra de clareza do pensamento. O homem de acção, o político, o chefe civil ou militar não arredondam a frase para dar ordens. As palavras reais têm neles um carácter incisivo, quase dispensam os instrumentos gramaticais. Um dia, o escritor português D. Francisco Manuel de Melo, antigo soldado, escreveu a um jovem parente, que partia para a guerra. O seu estilo adquiriu então o laconismo, a concisão disciplinada duma ordem militar: «Ide com Nosso Senhor. Lembrai-vos sempre dele e de quem sois. Falai verdade. Pergumtai pouco. Jogai menos. Segui os bons; obedecei aos maiores. Não vos esqueçais de mim. E sede embora Plínio Júnior; que, se tudo isto fizerdes, ainda sereis mais. Deus vos leve, defenda e traga. Torre, sábado.» Há porém na vida social uma esfera de actividade, em que a destrinça entre lexemas e morfemas adquire particular importância: referimo-nos à técnica do telegrama. O telegrama terá de encerrar o maior laconismo - as palavras custam dinheiro! - dentro da maior força expressiva : faz pois avultar a palavra real à custa do instrumento gramatical. Um exemplo tirado de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queiroz: «Capítulos romance recebidos. Leitura feita amigos. Entusiasmo! Verdadeira obra-prima! Abraço!»

Este telegrama contém tudo quanto é fumdamental, e só tem substantivos, um adjectivo (verdadeira) e duas formas verbais com fumção de adjectivos (recebidos, feita). Se o

quiséssemos sobrecarregar com instrumentos gramaticais, teríamos: «Recebi os capítulos do teu romance. Fez-se uma leitura aos nossos amigos. Foi enorme o entusiasmo, e todos o classificaram de verdadeira obra-prima. Envio-te um grande abraço». Ficaria talvez mais completo, porventura mais elegante; mas nada adiantava ao sentido fumdamental, e o autor deste desenvolvimento pagaria quase o triplo da taxa que pagaria, se o mandasse sob forma abreviada, verdadeiramente telegráfica. Sendo o Português, por natureza, descomedido em palavras, como todos os povos do sul, a Direcção dos Correios, no seu interesse, pôs um travão ao chorrilho de frases que enchiam os simples cartões de visita, preceituando um máximo de cinco palavras (morfemas e lexemas) para essas fórmulas de cortesia, como sejam agradecimentos e felicitações. Não há dúvida que a ordem embaraçou muita gente; mas teve pelo menos a vantagem de chamar a atenção para o valor das palavras. Agora, quando quisermos responder a um cartão de boas-festas, teremos de nos cingir a uma frase destas, em que há apenas um morfema: FULANO... retribui, agradecido, os amáveis cumprimentos.

Isto não quer dizer, evidentemente, que preconizemos o estilo telegráfico para as redacções dos nossos leitores. De modo nenhum; mas faz-lhes sentir a importância dos vocábulos e adverte-os de um perigo: a multiplicação inútil das palavras que nada acrescentam ao sentido. No bom estilo não se diz nem de mais nem de menos; diz-se o que é preciso, na medida exacta do que se pensa e sente, com vigor e com clareza. E, pecar por pecar, antes pecar por sobriedade do que por inútil sobrecarga de palavras. 2. A fantasia das palavras. - As palavras reais distinguem-se, como vimos, pela sua força expressiva. Despertam a imagem das coisas mais energicamente; e essa imagem viva ilumina o pensamento, dispensando outros acessórios de que se serve a frase logicamente constituída. As palavras suscitam em nós as imagens das coisas a que se referem; mas como essas coisas podem revestir vários aspectos, cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto pessoal, aquele que particularmente lhe interessa. Por exemplo, a palavra sino pode evocar diferentes imagens, conforme as pessoas que a ouvirem: o campónio terá uma representação sonora; outro, o filho do sineiro, sentirá na palavra o movimento do puxar da corda e do voltear do sino (imagem motriz); enfim, o serralheiro terá a representação visual do objecto. A estes três tipos de imagens, sonora, motriz, visual, outras se poderiam talvez ainda acrescentar. Já se tem afirmado que numa simples palavra se pode resumir todo o universo. Quer isto dizer que um vocábulo pode suscitar uma infinidade de imagens e ideias que abranjam todos os domínios do pensamento e da vida. Vejamos, por exemplo, a pequenina palavra

lar. Poderá apresentar-nos a imagem concreta da casa, do seu conforto ou desconforto material, ou ainda a noção espiritual, sentimental, do lugar onde vive a família. A primeira representação pode repartir-se em várias imagens subsidiárias: a construção da casa, a sua situação, a paisagem em redor, a luz ou sombra de que é banhada, etc. A segunda representação levar-nos-á a considerar: o nosso nascimento, os afectos ou desafectos da nossa infância, a nossa educação, a harmonia ou desarmonia entre os membros da família, etc. E estas representações familiares poderão ainda suscitar, por associação, sentimentos de carácter social: o desabrigo das pessoas que vivem em barracas, a miséria dos que não têm eira nem beira, etc.

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É neste sentido que se diz que numa palavra se podem conter todos os fenómenos da vida. O seu poder evocador não conhece limites. Vemos pois que, em volta de cada palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente, palavras mais evocadoras do que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja conhecer a fumdo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objecto a que se referem com a maior frescura e vivacidade possível. Vamos dar o resultado de uma série de experiências feitas por outros e feitas por nós em pessoas da nossa família. Mais uma vez se insiste no carácter puramente pessoal de tais provas. O resultado poderá variar conforme as pessoas. Designamos por A, B, C, D os indivíduos que se submeteram às experiências. Ao ouvir as palavras que se seguem, produziram-se nesses indivíduos as seguintes imagens, simples ou complexas. A primeira é a imagem mais forte, espontânea. a) Chave: A: imagem visual (uma chave grande de metal amarelo). B: » auditiva (o ruído do abrir da porta). C : » visual (vê sobretudo a parte superior, redonda). D: » » + imagem, táctil (sente a chave nos dedos). b) Chuva: A: imagem visual (poeira escura levantada) + imagem olfactiva (cheiro da terra). B: imagem térmica (arrepio de frio). C: » visual (cordas de água) + imagem auditiva (ruído abafado de chuva no chão). D: o mesmo complexo de imagens que em C. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 11

c) Avião: A: imagem visual (vê um avião no écran dum cinema). B:

»»

(vê um selo de correio aéreo: é um filatelista).

C:

»»

+ imagem auditiva (ruído do motor).

d) Gás: A: imagem visual (vê um fumo acinzentado). B:

»»

e motriz (bombardeamento, gente a correr) -f-

imagem olfactiva (cheiro a gás). C : imagem auditiva (escapar ruidoso do gás). D: azulada) + imagem olfactiva (cheiro do gás).

»

visual (chama

e) Veludo: A: imagem visual (cor preta). B:

»»

»

»

+ imagem táctil (sente-o nas pontas

dos dedos). C: imagem visual (cor preta) + imagem táctil (sente-o nas mãos). f) Serpente: A: imagem visual (vê só a cabeça e língua, com malhas redondas de cores várias, sobretudo amarelo e verde). B: imagem visual (corpo inteiro) + imagem motriz (o rastejar). C: ruído) + imagem visual.

»

motriz e auditiva (movimento e

g) Limão: A: imagem visual (forma e cor amarela). B:

»

gustativa (sente o gosto ácido do limão) + imagem visual

(vê a árvore com o fruto). C: imagem visual + imagem gustativa + imagem táctil.

Escolhemos de preferência substantivos, como despertadores da fantasia por aludirem com mais viveza ao objecto; mas é bom de ver que os verbos (por ex. bater, abrir, picar, etc.) e adjectivos (por ex. áspero, doce, fino, etc.),

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pelo seu carácter mais ou menos concreto, também podem sugerir imagens. 3. A para fantasia. - Se observarmos o resultado das experiências acima exposto, vemos que predominam largamente as imagens visuais, como é próprio de objectos materiais; e que estas, como é natural em coisas tangíveis, andam não raro ligadas a imagens tácteis. Vemos ainda mais: a imagem alude geralmente ao objecto, representa-o directamente, em um ou outro dos seus aspectos. Há porém excepções, e essas oferecem grande interesse. Por vezes, a fantasia transcende para além do objecto e dá representações que pouca ou nenhuma relação têm já com ele. Vimos acima um curioso exemplo deste fenómeno, a que se chama parafantasia: ao ouvir a palavra avião, a B representou-se-Ihe um selo de correio aéreo; ao ouvir chave, não viu logo o objecto, imaginou ouvir abrir uma porta. Mais algums casos de parafantasia: E, quando ouve a Fulano proferir a palavra maçã vê a macieira com folhas, sem maçãs; em vento vê terra; em sino vê o adro duma capela; em seda, vê o bicho e fios em baba. F, quando ouve o vocábulo vento, tem logo a imagem ora de um barco, ora de um moinho. G, à palavra música, tem a imagem de um baile; em leite, vê a tijela do leite; em ponte, ouve um comboio atravessando a ponte; à palavra maçã, vê um livro de aritmética, onde havia algums pequenos problemas sobre maçãs. Repare-se nesta particularidade: umas vezes vê-se a árvore em vez do fruto, a terra em vez do vento que a agita, a causa (bicho-da-seda) em vez do efeito, o continente (tigela) em vez do conteúdo (leite). É a explicação dum fenómeno que tem aplicação literária e é conhecido pelo nome de linguagem figurada. As palavras abstractas, como é natural, não sugerem tantas representações. Todavia, a sua forma sonora, jumta ao ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 13

seu sentido, gera por vezes uma imagem de cor. Para Ramalho Ortigão, saudade era uma palavra azul, rancor uma palavra vermelha. É aquilo a que se chama audição colorida: a correspondência imaginada entre o som e a cor. A estas correspondências, a estas inter penetrações dos vários sentidos, que assumem aspectos extraordinariamente interessantes, dá-se o nome geral e científico de sinestesias. Desempenham papel importante na literatura e são conhecidas desde o século xvm, pelo menos. Foi Filinto Elísio quem, nesse tempo, chamou a atenção para a cor dos vocábulos. Um dia, um senhor impertinente, dado à ironia, encontrou numa ode do poeta uma dessas sinestesias e disse-lhe, com um risinho: - Pois a alegria é loura? Tão alva e loura como a morte é pálida. Ao que o escritor retorquiu imediatamente:

- V. Ex.a é que me parece loura no caso... Para se entender o trocadilho, é necessário dizer que loura tinha, na época, o sentido de «parvo», «palerma». Claro que nem todos produzirão com igual frescura e presteza as imagens que andam ligadas às palavras. Quando os anos aumentam e a inteligência se desenvolve, as imagens das coisas vão enfraquecendo, tomam-se por assim dizer desbotadas. As palavras dificilmente despertam já a fantasia. Nessa altura, para avivar o poder da imaginação, o homem tem ainda o recurso da obra de arte, cujo segredo consiste na sábia escolha dos meios de expressão, com que se chamam novamente à luz essas imagens meio apagadas. 4. Valery Larbaud e o vocabulário português. - O notável escritor francês Valery Larbaud, espírito cosmopolita, meteu-se a aprender português, da primeira vez que esteve entre nós. Encheu-se de simpatia pela nossa terra, pela doçura da nossa gente, e quis aprender a língua para melhor

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surpreender a nossa alma. Aprendeu-a, como ele dizia, com o esforço apaixonado com que se obtém o amor duma mulher. E contou-nos, de modo encantador, a sua experiência do vocabulário português. É sem dúvida interessante observar as reacções dum estrangeiro superiormente culto, como Larbaud, perante as palavras mais correntes da nossa língua. Vamos dar o resultado das suas impressões, publicadas no Divertimento filológico. O escritor francês, no primeiro contacto com a língua escrita e falada, sentiu logo a doçura e a graça de certos vocábulos: 1. Só. A palavra exprime, na sua concisão desesperada, o extremo da solidão e do abandono. Quando se lhe acrescenta o diminutivo -zinho, Larbaud nota que o sufixo não é apenas lógico, exprime ainda admiravelmente a atitude do espírito dobrado sobre si próprio, na solidão. 2. RAPARIGA. O escritor compara o vocábulo português aos correspondentes espanhóis e italiano: rapaza, muchacha, ragazza; todos sugerem o ruído alegre de estudantas, saindo da escola, na rua, às gargalhadas: mas rapariga faz mais ruído que qualquer dessas palavras. No português do Brasil, já desde o século xvni, ao que parece, o vocábulo foi tomando coloração pejorativa. Houve contudo resistência literária a essa deturpação. Num romance de Aluízio Azevedo, O Cortiço, ainda é usado no puro sentido português. Em Lima Barreto (Clara dos Anjos, l.a ed., pág. 179) dá-se o mesmo. Érico Veríssimo, representando a última defesa da formosa palavra, em consonância certamente com seu falar regional, emprega-a no bom sentido (Olhai os lírios do campo, 18.a ed.: «Chamou a secretária, uma rapariga magra, de ar cansado», pág. 136). 3. GAROTA. Também é bonita a palavra e própria para as raparigas do povo duma grande cidade. Diz Larbaud ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 15

com graça que, se casasse com uma portuguesa, lhe chamaria garota, num impulso de terna familiaridade, de amorosa falta de respeito. 4. RAINHA. A palavra tem na sua forma sonora e gráfica o quer que seja de exótico: traz no vestido um perfume da Ásia. 5. MENINA. O termo é encantador, com um ar antigo, afidalgado. Já um outro estrangeiro, o alemão Link, que visitou Portugal nos fins do século xvm, dizia que a expressão minha menina era a mais doce que se encontrava em qualquer língua. 6. BONECA. O escritor deu-se ao cuidado de evocar os termos que significam boneca em outras línguas europeias e encontrou mais beleza: em primeiro lugar no vocábulo italiano

bámbola, logo a seguir nas palavras portuguesa e espanhola- boneca e mumeca, que competiam em formosura expressiva. 7. MEDONHO. A palavra impressionou vivamente Larbaud. Há qualquer coisa de repugnante, infame e horroroso nesta palavra, que nos comunica o seu estremecimento, a sua náusea. 8. BEIRA-MAR. Para o escritor francês era uma das palavras mais poéticas do seu conhecimento: vasta, sonora, grandiosa, oceânica. 9. SAUDADE. Larbaud define a impressão que lhe dá a famosíssima palavra: um céu nublado entre distantes zonas luminosas.

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Outras palavras que o impressionaram agradavelmente: namorar, namoro; doente, doença; voo, dor, cor, carvalho, orvalho, cotovia, imenso, devagar, janota, ficar, poupar, meigo, brinco, brincadeira, Todos aqueles que aprendem uma língua nova recebem impressões desta natureza: o sentido conhecido ou entrevisto da palavra conspira com a imagem sonora e dá-nos uma espécie de ilusão. Os escritores que lidam muito com os vocábulos estão particularmente sujeitos a estas ilusões. Têm a tendência para considerarem a palavra em si própria, bela por si mesma, liberta das prisões da frase, que lhe fixam um sentido e lhe diminuem o poder de fantasia. Os que se dedicam à arte de escrever trazem na memória um armazém de termos expressivos. Para esses a palavra existe em estado puro, cheia de ressonâncias e mistérios. E é sempre útil, como dissemos, pensar e sentir de novo as palavras, isoladamente, na curiosa contemplação das imagens que despertam. 5. A palavra-frase. - Porém, logo a seguir, deverá fazer-se, como correctivo, o exercício contrário. Verdadeiramente, o vocábulo isolado não existe senão para os artistas. A palavra existe como parte de um todo, incorporada no contexto, e aí adquire o seu significado especial. Entregue a si própria, já o vimos, assume os mais diversos aspectos, carrega-se de tons variados, segumdo o indivíduo que a ouve ou profere. Aprisionada na escrita, limitada e esclarecida pelos outros elementos do discurso, a palavra recebe de cada vez e momentaneamente a sua verdadeira significação. Um exemplo: Quando dizemos ou ouvimos: Que RAPARIGA! - o vocábulo final, por assim dizer isolado, desperta vivamente a imaginação, como se o pronunciássemos ou ouvíssemos sozinho. Por isso vemos nesse termo as mais variadas representações : podemos considerar as qualidades morais da moça, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 17

a sua honestidade, a sua coragem, etc., ou as qualidades físicas, a formosura, a graça do andar, etc. Também nesta frase: A RAPARIGA que vês trabalha na fábrica o vocábulo nos parece mais desbotado de colorido, menos capaz de dar imagens, mas certamente mais preciso no seu significado, devido aos elementos em que está inserido. 6. A significação das palavras. - Consideremos esta palavra corrente - cabeça. O primeiro sentido que acode, estando a palavra isolada, é o seu sentido mais geral, a sua significação física e primitiva: a cabeça é a parte superior do corpo humano. Um linguista não deixará de registar com satisfação o facto: há certa lógica em que o sentido actual do vocábulo não divirja do que tinha há mais de mil anos. Mas, se a palavra mantém um significado preciso,

que lhe dá o mais frequente emprego, adquiriu também, com o uso, uma série de sentidos subsidiários, que diferem mais ou menos do sentido etimológico: etimologia é o estudo da origem das palavras, a fixação da forma e do sentido primitivos. Vejamos essas diversas significações, registando apenas as que são mais usuais: 1. A cabeça é a parte superior do corpo. 2. Toda a gente o louva: é uma grande cabeça. 3. Sabia de cabeça todos os versos do poema. Ele vinha à cabeça de todos os concorrentes. Essa vila é a cabeça da comarca. 6. Pagaram dez tostões por cabeça. 7. Feriu-se na cabeça do dedo. 8. O cabeça da conspiração foi aprisionado. 9. Isso não tem pés nem cabeça. 10. Deu-lhe agora na cabeça fazer versos. 11. Cada cabeça, cada sentença. 12. Então, perdeu por completo a cabeça. 2 - Estilística

3. 4. 5.

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Se quiséssemos averiguar o significado da palavra nos vários contextos em que está metida, teríamos este resultado: 1. 2. 3.

4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. Sentido principal: parte superior do corpo. talento, inteligência. _____ de memória, de cor. à frente, na parte superior. capital. indivíduo, pessoa. extremidade, ponta. chefe, pessoa principal. sentido claro. capricho, fantasia.

homem, personalidade. razão, serenidade.

Como se originaram as várias significações da palavra ? Partiu-se do sentido original e viuse na cabeça a parte superior, a extremidade, o ponto principal dum corpo; ou então encarou-se o facto pelo seu lado intelectual e viu-se na cabeça a sede do pensamento e da imaginação. Daqui se originou toda essa vegetação de significações diversas, a que se dá o nome de polissemia, e que é estudada numa disciplina filológica chamada Semântica. Como vemos, e aqui melhor do que em outro lado, a palavra só adquiriu o seu verdadeiro sentido quando engastada na frase. Só há verdadeiramente no discurso a palavra-frase. Por isso os bons dicionários trazem os vários matizes de significação dos vocábulos inseridos no seu devido contexto, isto é, têm um exemplo para cada variedade semântica. Sem isso, não prestarão bons serviços. Em muitos dos nossos dicionários não aparecerá o quadro que damos acima, a propósito de cabeça. E algums nem sequer trazem a locução, tão corrente, perder a cabeça, por ser considerada, aliás sem razão, um galicismo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 19

Em conclusão: poderemos afirmar que há tantas palavras quantas as significações. Em gramática, chamam-se homónimas as palavras que têm forma igual, mas se distanciam pelo sentido. Exemplo: pena tem pelo menos, quatro significados: a) A pena admirável daquele escritor; b) O pássaro deixou cair uma pena; c) Foi condenado a pena maior; d) É pena que não vás! O sentido diverso é dado, já pela natural evolução das palavras, já porque nos dois primeiros casos o vocábulo tem uma origem (do latim pinna) e nos dois últimos tem outra (do latim poena). Em cabeça todos os exemplos têm a mesma origem; mas o resultado vem a ser o mesmo: aqueles doze casos citados são tidos por quem fala ou escreve como palavras de sentido diferente. 7. O instinto etimológico. - A exploração do sentido originário das palavras faz parte, como dissemos, duma disciplina chamada etimologia. Essa operação é de indiscutível importância para a ciência da linguagem e até para a história das civilizações, porque à origem das palavras podem prender-se factos históricos e sociais de grande interesse. Mas uma coisa é ciência, outra coisa estilo. Quando escrevemos ou falamos, pouco ou nada nos importa o sentido passado dos vocábulos, a sua história; só apreendemos da palavra aquilo que é actual. E demais, esse sentido etimológico, se fosse aproveitado, lançaria uma extraordinária confusão sobre os fenómenos da linguagem. Algums exemplos vão elucidar o leitor. Suponhamos que alguém, conhecedor do grego, escrevia: «O povo italiano é um povo hipócrita.i> Queria ele dizer com a sua, fumdado na etimologia ( = actor), que os italianos são naturalmente actores, gostam da exibição

espectacular. Como porém a palavra tem hoje um sentido muito diferente, o mal-fadado helenista arriscava-se a não ser compreendido e a coisa ainda

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pior l a ser incomodado pelas autoridades consulares ou diplomáticas italianas, por ofensas a um país estrangeiro. Outro exemplo: Quando apelidamos alguém de marechal, ligamos à palavra uma altíssima significação honorífica: o ponto mais alto da hierarquia militar. O etimologista, enfronhado em seus estudos, vê as coisas de outro modo: sem perder de vista o significado actual, sobe à origem e observa com um sorriso que a palavra, em seus começos, queria apenas dizer isto, bem modesto por certo: encarregado da cavalariça! Finalmente, consideremos a palavra coitado, tão portuguesa, tão representativa do nosso brando modo de ser. Quando a proferimos, aludimos a alguém que é pobre, ou infeliz, a quem a vida não corre bem. Pois a palavra, na sua origem, no tempo dos trovadores, aplicava-se especialmente ao namorado que curtia dores por sua dama. Vão lá pensar hoje nisso, quando se avista um mendigo andrajoso, a quem se diz, dando esmola: Coitado, tome lá! Vemos pois que as palavras têm um curioso romance histórico. É instrutivo conhecê-lo, sem dúvida; mas numca devemos esquecer a obrigação em que estamos de empregar a palavra no seu sentido actual. O motivo por que os filólogos, os gramáticos, os homens muito eruditos escrevem mal é geralmente este: não têm presente e fresco o sentimento da língua de hoje. As palavras evocam-lhes representações passadas, conformes à sua etimologia. De modo que, quando escrevem, é um passeio constante pelos domínios da antiguidade. A sua maneira de escrever traz por isso mesmo um cheiro a bafio. É um estilo pretensioso e avelhentado, muito em voga nas academias. Contudo, para uma coisa é útil o conhecimento da etimologia e da história das palavras: para a leitura inteligente dos autores antigos. Quando Fr. Luís de Sousa escreve: «Da imbecilidade de sua natureza não desconfiava, porque conhecia suas forças» - notamos que imbecilidade está ali no sentido etimológico, latino: «fraqueza». Seria erróneo atribuir à expressão o significado actual: «parvoíce». Quando um outro grande clássico, D. Francisco Manuel de Melo, escreve a respeito das suas Cartas familiares: «por todas cintila o queixume, apesar da modéstia, que procura embaraçá-lo e desmenti-lo» - teremos de atribuir a modéstia o significado antigo de «medida», «temperança no sofrimento», «resignação». Os bons dicionários deveriam trazer todas estas significações, mas por vezes falham. E as edições dos Clássicos deveriam ser cuidadosamente anotadas e apontar estas variações semânticas. Se assim fosse, o leitor poderia efectivamente compreender os nossos autores antigos, apreciá-los e aproveitá-los no que têm de aproveitável, sem perigo de assimilar um

estilo que já não é de nossos dias.

2. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

No capítulo anterior vimos como uma palavra muda de significação, conforme os diferentes contextos em que anda agrupada. Vamos ver agora como um conceito, uma ideia, admite várias palavras para se exprimir conforme os seus variados aspectos. 1. Pluralidade dos meios de expressão. -Perguntemos, por exemplo, a um amigo o que significa a palavra inteligente. Logo nos responderá, sem hesitar, procurando explicar o termo por outros vocábulos ou locuções de sentido semelhante : •-• É o mesmo que esportes, hábil, entendedor das coisas, que as compreende bem, que lhes penetra o sentido, que tem olho, etc. Claro que cada uma destas expressões tem o seu valor, mas todas se agrupam no espírito em volta da ideia geral, que as compreende a todas: inteligência. Portanto, quem escreve e quem fala tem à sua disposição, para traduzir exactamente o pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que acodem ao espírito, para as necessidades de expressão. Quando se evoca uma delas, sucede geralmente como quando se colhem cerejas: vêm as outras atrás. A estas palavras ou modos de dizer, ligados entre si por uma noção comum, dá-se o nome de sinónimos. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 23

Estamos vendo a extraordinária importância do seu estudo e da sua prática para a técnica da redacção. com efeito, a arte de escrever repousa essencialmente na escolha do termo justo para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos. Por outras palavras: só escreveremos bem, quando, na série sinonímica, escolhermos a palavra ou o grupo de palavras que melhor se ajustam àquilo que queremos exprimir. É nessa escolha que reside, em grande parte, o segredo do estilo. 2. Há ou não sinónimos ? - Se entendermos por sinónimos as palavras que têm sentido semelhante, parecido, é evidente que existem sinónimos. Agora, se considerarmos, como fazia supor a gramática antiga,, que sinónimos são as palavras que têm o mesmo sentido, em breve nos convenceremos de que isso é impossível. Podem uma mesma ideia, um mesmo acto, um mesmo objecto ter nomes diferentes; esses nomes não são, não podem ser exactamente equivalentes, como não são nem podem ser equivalentes as folhas da mesma árvore. Poder-se-á objectar com isto: há nomes de plantas, utensílios, produtos vários, que adquirem diferente nomenclatura, conforme as terras do País. Por exemplo, para designar as agulhas do pinheiro em Portugal: caruma, sarna, branza, bicos, picos, etc. É certo; mas por isso mesmo que se repartem por terras diferentes, cada sítio ou região adopta um só vocábulo em prejuízo dos outros, geralmente desconhecidos. A mesma coisa designa-se geralmente por uma só palavra, em certa região e em certo meio. Pode, ao princípio, dar-se o caso de duas ou mais palavras designarem o mesmo objecto. E um momento fugaz; logo o espírito reage para destruir o perigoso equilíbrio, introduzindo

cambiantes de sentido, promovendo a diversificação. As formas divergentes. -A este respeito, é omito elucidativo o tratamento dado pela língua às formas chamadas

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divergentes. Chamam-se formas divergentes as palavras oriundas de um mesmo termo (latim, árabe, grego, etc.), que se diferençaram depois, por motivo da evolução fonética. Estão neste caso, entre outras: aveia - avena; areia - arena; bola - bula; cadeira - cátedra; caldo - cálido; cheio-pleno; chorão - florão; catar - captar; crosta - crusta; delgado - delicado; ensosso - insulso; inteiro - íntegro; lagoa - lacuma; meigo - mágico; ração - razão; solteiro - solitário; traição - tradição, etc. Admitindo que estas palavras tivessem sido algum tempo sinónimas - não o seriam, porque uma reinava nos meios cultos, outra nos meios populares - logo se diferençaram de diversa maneira, como se está vendo. Em algums casos, o termo literário adoptou um sentido especializado, ex.: arena, cátedra, crusta, íntegro. Noutros casos foi o termo popular que se desviou do sentido originário, ex.: bola, chorão, catar, meigo, ração, solteiro. Pelo que diz respeito à intensidade das diferenças entre os dois sentidos, observamos que a divergência vai do mínimo ao máximo. Em cheio-pleno, a diferença é insignificante, podendo até dizer-se que as duas palavras acusam o mesmo sentido. Simplesmente, uma é usada na linguagem corrente (cheio), outra na linguagem literária - e não sempre (pleno). Esta última tem um ar falso, pretensioso, que, por isso mesmo, é do agrado dos principiantes. Enfim, são termos usados em circumstâncias diferentes e basta esse facto para os tomar desiguais. Através de variantes intermediárias, as formas divergentes alcançaram o máximo de desvio semântico (isto é, de sentido) em traição - tradição. É quase incrível que uma mesma palavra pudesse ter gerado acepções tão diversas; mas o caso deu-se, como vamos ver. Tradição foi um velho termo de carácter jurídico, cujo significado era: «entrega, transmissão de qualquer coisa a outrem.» Na passagem do latim para o português, o vocábulo perdeu aquele d entre ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

vogais e começou de significar outra coisa: «a entrega, a transmissão dum segredo íntimo, militar, político, ou duma fortaleza, vila, etc.». Vê-se pois como da simples ideia fumdamental de «entrega», «transmissão», se engendrou o significado moral de «traição», «infidelidade», «deslealdade». Traição poderia definir-se como «entrega desleal». Tradição também seguiu o seu rumo, também tomou um sentido moral. Passou a significar «a transmissão de factos históricos, sistemas, lendas, etc., de idade em idade, sem prova autêntica ou escrita, provindo da transmissão oral ou de hábitos inveterados». Copiamos a definição dada por Cândido de Figueiredo no Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Como vemos, e não obstante uma complicada evolução semântica, lá está bem visível ainda a ideia originária de «transmissão».

Em conclusão: poderemos formular esta regra, de acordo com os mais recentes investigadores da linguagem e do estilo: «Dois fenómenos de expressão numca são exactamente iguais». O leitor está vendo as consequências deste princípio. Não se pode ir ao dicionário escolher mais ou menos à toa os significados, como fazem geralmente os principiantes. O facto dá origem a verdadeiros contra-sensos. Cada palavra, em dado momento, é portadora de um sentido, que adquire especial relevo no contexto. Não pode pois baralhar-se com as outras. A arte do estilo consiste em escolher, nesses grandes armazéns de palavras que são os dicionários, os termos justos, que hão de dar forma e cor aos nossos pensamentos. 3.

Como nascem os sinónimos. - É bom de ver que

nem todos os conceitos se prestam de igual modo à produção de sinónimos. De um modo geral, as palavras concretas prestam-se menos às variações sinonímicas. Se procurarmos no dicionário os equivalentes de tinteiro, água, chave, calças, porta, veremos que estes termos não têm propriamente sinónimos. Os dicionaristas contentam-se com a sua definição

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por meio de perífrases e acrescentam algumas locuções em que a palavra tem cabimento, com um sentido mais ou menos diferente. Por exemplo, para tinteiro, o Pequeno Dicionário apresenta apenas isto: «Pequeno vaso para conter tinta de escrever. Utensílio de escritório com um ou mais vasos para tinta de escrever.» Realmente o vocábulo não se presta a mais; identifica-se por si próprio, conhece-se pela própria representação que sugere, sempre a mesma: um recipiente para tinta. Outras palavras há, concretas embora, que implicam variadas formas, que vão do termo técnico, científico, até às expressões mais baixas da gíria popular: apêndice nasal - nariz - penca - ventas; - abdómen - ventre - barriga -pança, etc. Vemos pois que há noções pobres e noções ricas, na linguagem; umas contentam-se com uma só palavra, outras, sugerindo novas representações em tomo do objecto ou da ideia primitiva, geram uma família numerosa de sinónimos. Compreende-se que um dos principais geradores de sinónimos seja a variedade do emprego da mesma coisa, segundo os diferentes meios sociais. Para prova disso, dá-se geralmente este exemplo: o dinheiro recebido em troca da prestação de serviços tem variadíssimas designações, conforme a escala social da pessoa que o recebe: honorários, ordenado, mensalidade, soldo, pré, salário, féria, etc. Seria extremamente reparável e incorrecto dizer-se: 1. O major recebeu o pré. 2. O salário do ministro é grande. É que as palavras evocam os meios sociais em que são geralmente empregadas, e não se pode confundir o seu uso, sem nos expormos a graves mal-entendidos. O termo pré lembra logo o ambiente militar dos soldados e sargentos, salário sugere uma classe especial: a dos pequenos serviçais. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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Isto é, as palavras e os sinónimos, são um espelho da sociedade: também se dividem em classes. No campo diz-se: comer uma tigela de CALDO ; na cidade: comer um prato de SOPA. Vem. a dar na mesma; mas o caldo sugere o campónio, a sopa é própria do homem da cidade. 4. O eufemismo. - Este mesmo sentimento das conveniências sociais leva-nos muitas vezes a atenuar a dureza e a franqueza de certas expressões, que evocam imagens grosseiras ou desagradáveis. Certos termos que exprimem a morte, o furto, a embriaguez, a idiotia, a mentira, etc., requerem eufemismos, isto é, meios expressivos que adoçam a brutalidade ou a inconveniência social desses termos. Para o homem, nada mais terrível do que a morte. Pois bem, na vida social, o vocábulo que define a ideia pura - morrer, é suavizado pelos seguintes eufemismos: falecer, expirar, decidir, acabar, perecer, ir para o céu, finar-se, fechar os olhos, entregar a alma a Deus, passar-se, etc. Tudo expressões que procuram atenuar a fealdade do horrível transe. E quando se anuncia no jornal a morte de alguém, pessoa católica e de bom-tom, a sua família não escreve, seca e trivialmente, morreu, mas sim um longo circunlóquio eufemístico: Foi Deus servido chamar à sua

divina presença Fulano de tal. O emprego do eufemismo também caracteriza certas camadas sociais. A um homem da plebe que comete um fui to, as gazetas não hesitam em exprobrar ao ladrão, ao gatumo, o roubo que praticou; mas se um homem da alta sociedade cometeu o mesmo crime, então os redactores adoçam servilmente a frase e escrevem: desvio de fumdos, fraude, alcance, etc. O povo observou perfeitamente esta injustiça e fez sobre ela um provérbio admirável: «Quem rouba um pão, é ladrão; quem rouba um milhão, é barão». Um homem do povo não se embriaga; isso é próprio da gente fina; o plebeu embebeda-se, e, empregando termos de gíria popular, toma a carraspana, o pifão, o pileque, fica

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grosso, colhe a trompa (gíria galega), etc. Se num salão aristocrático se ouvissem estes nomes, as senhoras corariam de indignação; se numa viela de Alfama, em Lisboa, alguém pronunciasse o vocábulo embriagar, era apupado e escarnecido- caso verdadeiramente o entendessem. O conselheiro Acácio, a famosa caricatura de Eça de Queiroz, conhecia bem o valor do eufemismo e empregava-o constantemente. Diz dele o escritor: «Numca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir». Até os ladrões entre si usam o eufemismo, como aquele ratoneiro duma novela de Castelao, que suavizou o termo roubar em apanhar: «Certa noite de caminho propuxo Barrote que fossen apanhar uas galinhas». - Os dous de sempre, l.a ed., pág. 60. Pode portanto dizer-se que há na linguagem uma dissimulação, uma espécie de hipocrisia o reflexo de todas as atenuações, transigências e desigualdades que a vida social, como está constituída, nos impõe. 5. As séries sinonímicas. - Vejamos agora praticamente o problema da significação dos sinónimos, os seus matizes diferenciais. Para estudar os sinónimos temos os dicionários vulgares, que trazem, após a definição, os vocábulos ou expressões equivalentes; mas como as palavras adquirem no contexto as significações mais diversas, segue-se que a consulta dos dicionários correntes não serve para o estudo dos sinónimos. O facto de esses dicionários não trazerem o vocábulo inserido na frase ainda agrava a questão, tomando a consulta perigosa para o principiante. Um exemplo: Procuremos no Pequeno Dicionário, de Cândido de Figueiredo, a rubrica deixar. Vemos que a palavra tem as seguintes significações: separar-se de; lançar de si; largar, pôr de lado; abandonar; permitir; cessar; resistir; adiar; ceder; omitir. Note-se, de passagem, que resistir é erro tipográfico, em vez de desistir. Assim vem na l.a ediESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 29

cão do Novo Dicionário do mesmo autor. Os modernos revisores dos dois dicionários não deram pelo erro, que assim se foi radicando e passando a outros, estando contudo já corrigido na 10.a edição. Reparando para o sentido daqueles diferentes termos, verifica-se que existem várias séries de significações, digamos, várias séries sinonímicas, isto é, grupos de palavras subordinadas a um sentido comum: 1. Deixar, separar-se de, largar;

4.

Deixar, adiar;

2. Deixar, permitir; 5. Deixar, ceder; 3. Deixar, cessar, desistir; 6.

Deixar, omitir.

Isto é, verdadeiramente a palavra deixar, tal como a encontramos nos pequenos dicionários, admite em si seis séries sinonímicas pelo menos. Se procurarmos num dicionário grande, admitirá muitas mais. Note-se que se há séries nitidamente diferenciadas como a l.a e a 6.a, a 6.a e a 2.a, a 3.a e a 2.a, já não sucede o mesmo com a l.a e a 5.a Entre ceder e largar pode haver uma relação de significado, e entre desistir (3.a), adiar (4.a) e largar (l.a) também não será muito difícil achar uma ideia comum, se nos aplicarmos a isso. Por consequência, os dicionários correntes não são um instrumento cómodo para a pesquisa dos sinónimos, porque baralham as séries e não enquadram o termo no seu contexto, onde alcança a verdadeira significação. Para remediar esse mal fizeram-se os dicionários de sinónimos. Aí aparece efectivamente a série, e dentro da série o sinonimista engenha-se em descobrir as diferenças de sentido. O dicionário de sinónimos mais celebrizado que temos é o velho Dicionário dos sinónimos, poético e de epítetos da língua portuguesa de Roquete e Fonseca. Tem tido muitas edições em Portugal e Brasil. É um instrumento antiquado, incompleto, que padece dos defeitos de toda essa

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espécie de tratados: a preocupação da etimologia e do uso clássico da língua, sem ter em conta o seu uso corrente, popular. É uma construção artificial, de reduzido valor, e que não é útil meter nas mãos de principiantes. Mal por mal, antes os dicionários comums. Muito melhor do que ele temos agora o Dicionário de Sinónimos de Antenor Nascentes, que pode prestar bons serviços ao estudioso, quando manuseado com discernimento e sem espírito de rigor sistemático. 6. Valor sentimental e intelectual das palavras. - Em

presença das coisas, o nosso espírito reage da seguinte maneira: ou as percebe ou as sente. Quase sempre estas duas operações, a percepção e o sentimento andam ligadas, mas, por via de regra, em proporções diferentes. Praticamente há objectos que despertam mais a nossa inteligência, outros que chocam mais a nossa sensibilidade. Assim também as palavras: umas têm uma dominante afectiva, outras uma dominante intelectual. Vejamos um exemplo: 1. O lavrador deixou a casa e encaminhou-se para o trabalho. 2. Os filhos, cheios de fome, abandonaram a casa paterna. Ligados por um conceito comum, «a separação», aqueles dois verbos deixar e abandonar não têm o mesmo valor. No primeiro caso, a separação fez-se normalmente, sem sobressalto afectivo; tarefa de todos os dias, feita a frio, mal iria ao lavrador se, de cada vez que deixava a casa, se pusesse a chorar de saudade ou de mágoa. No segumdo caso, o verbo abandonar está já penetrado de sentimento, tem uma sobrecarga afectiva que não tinha o outro: os filhos deixaram a casa paterna com desespero, com dor e raiva. Há ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 31

pessoas - os puristas da língua - que se erguem ainda hoje contra o emprego do verbo abandonar, por ser um galicismo. É certo que o vocábulo nos veio do francês, mas há séculos que é usado na língua, e corresponde, como acabámos de ver, a uma necessidade de expressão. Deixar não significa o mesmo que abandonar. É isto que os puristas não vêem. Logo, numa série de sinónimos há palavras que exprimem sobretudo uma ideia, outras que exprimem sobretudo um sentimento. É tarefa delicada, por vezes, a discriminação destes dois elementos; não raro, é até impossível fazer essa distinção; mas esse esforço é indispensável a quem queira escrever bem. Vamos dar normas e exemplos, que auxiliarão o interessado nesse trabalho. 7. O termo identificador. - Vejamos estas frases:

a) O lutador ergueu-se, belo como uma estátua.

b) Eram duas raparigas, qual delas a mais formosa. c) Simples e linda, a noiva saía da igreja. a

Laura trazia um bonito vestido de seda azul.

Temos aqui uma série sinonímica, que poderíamos aumentar consideravelmente. Belo, formosa, linda, bonito são palavras realmente umidas por um idêntico sentido. Aquela que reumir o conceito comum a todas as outras, que puder substituir-se a todas elas sem grande prejuízo de significação, é chamada em Estilística o termo identificador. A esse termo fumdamental, que traduz a ideia pura, condensada, se referem todos os outros. É pois da maior conveniência saber fixar sempre numa série o termo identificador, trabalho aliás não muito difícil, porque o termo identificador é, por via de regra, o termo geral, o mais abstracto.

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Não é, efectivamente, muito custoso determinar nesta série uma noção fumdamental: - o conceito de beleza, que abrange todos os outros: formosura, lindeza e boniteza. Se quiséssemos, poderíamos substituir os adjectivos das alíneas b), c), d) pelo termo identificador: o sentido não sofria prejuízo de maior, embora ficasse mais desbotado, menos expressivo: b) Eram duas raparigas, qual delas a mais bela. c) Simples e bela, a noiva saía da igreja. d) Trazia um belo vestido de seda azul. Se quisermos fazer o mesmo com os outros exemplos, vemos que o sentido já não fica tão bem; e teríamos até um efeito cómico, se disséssemos: «O lutador ergueu-se, bonito como uma estátua». Por consequência, é defeito empregar umiformemente, em todos os casos, o termo mais geral; e maior defeito é ainda baralhar o emprego das palavras dentro da série sinonímica. Os principiantes são naturalmente inclinados a isso. Procuremos agora definir o diferente significado dos elementos da série. Nem precisamos de recorrer aos dicionários para não lançarmos confusão no nosso espírito. No primeiro exemplo, belo sugere-nos a ideia de perfeição e de harmonia de formas, e também uma certa confiança serena na própria força. No segundo exemplo, formosa evoca apenas a perfeição da forma física. No terceiro exemplo, linda já se carrega dum forte matiz sentimental; não é só beleza física, é também mimo, ternura, delicadeza da alma. Enfim, bonito representa a ideia de beleza, diminuída, descida ao plano das coisas familiares. É também um termo afectivo, mas mais de andar-por-casa. Quanto ao uso dos vocábulos, notamos que belo é vagamente literário, embora represente ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 33

a ideia geral; formosa é vocábulo que só se emprega em literatura; lindo pertence à língua corrente, e bonito propriamente à linguagem familiar, onde adquire, a par da ideia de beleza, um certo matiz de bondade. Exemplo: «Os meninos bonitos não fazem coisas dessas». 8. Diferenças quantitativas e qualitativas. - Consideremos esta frase: «O companheiro tomou-se enfadonho, aborrecido, odioso». Aquela série de adjectivos está colocada segundo uma ordem lógica, a própria lógica dos sentimentos: a aversão foi-se desenvolvendo numa ordem crescente: primeiro, uma vaga antipatia, depois, um pronumciado desafecto, por fim um ódio declarado. Claro que não poderíamos inverter a ordem dos adjectivos, que têm valores quantitativos diferentes.

Vejamos agora esta de Fr. Luís de Sousa: «Não havia em todo aquele grande povo senão medo, desordem, terror e confusão». Há nela duas séries sinonímicas, artisticamente entrelaçadas: a) medo - terror; b) desordem -confusão. Se observarmos o efeito produzido pelos termos de uma e doutra, notaremos que a impressão vai crescendo de intensidade. Na verdade, terror é um vocábulo mais intensivo que medo, Confusão mais intensivo que desordem. Logo, quem sabe escrever não mistura arbitrariamente os sinónimos. Suponhamos que inverteríamos naquela frase a ordem dos termos sinonímicos: «Não havia em todo aquele grande povo senão terror, confusão, medo e desordem». Incorreríamos na censura de não saber escrever, pondo o termo intensivo antes do outro. O efeito estilístico perder-se-ia totalmente. Há casos ainda mais complicados, em que a disposição das palavras obedece a certas exigências expressivas do discurso

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seguinte. Veja-se este passo de D. Francisco Manuel de Melo: «Estar um cidadão em sua casa dormindo, regalado, seguro e quieto, em noite tempestuosa de dezembro, e, a troco de uma pequena migalha de prata e ouro, estar o miserável pescador lutando com a morte duas marés inteiras, para lhe trazer de madrugada o guloso besugo ou o pintado salmonete!» A ordem decrescente dos adjectivos justifica-se aqui pela antítese que se segue: l.a - noite tempestuosa, miséria, desconforto; 2.a - luta contra a morte; 3.a-a azáfama, a canseira de pescar duas marés inteiras e de lhe trazer o peixe a casa. Vemos pois que a ordem dos vocábulos foi determinada apropriadamente pela ordem dos elementos seguintes que lhe são opostos. Enfim, repare-se nesta frase de Ferreira de Castro: «A vida só existia através do seu desespero, do silêncio e dos remorsos; dos remorsos, do silêncio e do desespero». A repetição dos mesmos elementos na ordem inversa procura dar, e dá realmente, um efeito expressivo; um círculo vicioso, uma repetição constante de coisas, em que a alma se sentia abafar. A linguagem popular conhece o processo, como se vê daquele dito chistoso: «ao almoço me dão pêras, ao jantar pêras me dão, à merenda pão com pêras, à ceia pêras com pão». O escritor não fez mais do que transpor para termos de arte um modo expressivo empregado pelo povo. Nem sempre, contudo, numa série de palavras de igual categoria, se trata de uma ordem ascendente ou descendente. Exemplo disso, o seguinte verso das Cartas Chilenas (ix, 352), a famosa sátira luso-brasileira do século xvm, da autoria de Tomás António Gonzaga: Resistem, gritam, ferem, matam, prendem. Alude-se a soldados que não obedeciam às ordens dos juizes, desrespeitando e agredindo os oficiais de justiça que ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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os iam prender. O primeiro editor, Luís Francisco da Veiga, entendeu alterar assim a ordem dos termos: «resistem, gritam, ferem, prendem, matam». Estaria assim regularizada, efectivamente, a ordem ascendente da série; mas o autor o que quis dizer foi isto, «matam ou prendem», não se tratando pois, em toda a extensão, de uma ordem ascendente. É de notar que as diferenças quantitativas podem ter um carácter meramente intelectual, como uso - abuso, mar - oceano, ribeiro - rio. Não intervém nestas séries o sentimento. Mas já em surpreendido -

espantado, dócil-humilde, pensar - cismar, etc., facilmente vemos que o segumdo vocábulo, o termo intensivo, tem uma dose maior de sentimento. No geral, o que predomina nas séries é a intensidade afectiva; e é isso que verdadeiramente importa para a Estilística. Isto, pelo que diz respeito aos caracteres quantitativos da expressão. Há porém uma noção qualitativa que não tem menor importância. É sabido que, quando nos referimos às coisas, actos, ideias, lhes damos um valor que eles em si podem não ter, mas que referimos quase sempre a nós próprios. Por exemplo, vão três amigos ao teatro ver uma - É escapatória. Acode o terceiro: - Acho uma coisa insípida. peça. Ao sair, exclama um:É admirável! Diz o outro: O primeiro referiu-se à peça de um modo «melhorativo», o terceiro de um modo «pejorativo». O segumdo colocou-se em um meio-termo, sofrivelmente neutral. É assim o nosso poder de apreciação: tendemos para achar boas ou más as coisas, segumdo nos causam prazer ou desgosto. E este facto necessariamente se há-de reflectir na linguagem. Suponhamos que Fulano vê o seu figadal inimigo, vestido a primor e montado num soberbo cavalo. Diz logo em tom de mofa para o vizinho: - Ali vai aquele pedante, escarranchado na sua pileca! Deu um sentido pejorativo às suas representações (pedante em vez de bem vestido, escarranchado por montado, pileca em lugar de cavalo), levado pelo seu sentimento pessoal.

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A língua está cheia destas expressões, que encerram numa série sinonímica valores melhorativos ou pejorativos: leito - catre; lábio - beiço; religioso - beato; fino - manhoso; económico - avarento, etc. É claro que as séries podem conter mais palavras, e várias delas podem ter um sentido mais ou menos pejorativo. Exemplo: palácio - solar •-vivendacasa -pardieiro - casebre-choupana-tugúrio-barraca. A propósito justamente de casa escreveu Eça uma página cheia de graça, por ocasião da visita que o Imperador do Brasil fez a Herculano em 1872. Os jornais noticiaram o caso e, para acentuarem a honra prestada pelo soberano ao austero historiador, diminuíram a habitação deste a proporções ínfimas, empregando pejorativos literários, que têm aqui um efeito desnaturai e cómico: «Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila. No que porém as opiniões radicalmente divergem é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português. O Diário de Notícias diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano. O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que... O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao tugúrio de Herculano (ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na íebaida do ilustre historiador que...). Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc. Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao abrigo desse que... Algums jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade foi ao albergue daquele que... Outros contudo sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que... E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que... Ora, no meio disto, uma cousa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente à casa do Sr. Herculano!»- (Uma campanha alegre, n, 87-88).

9. Os efeitos evocativos. - Pelos exemplos apresentados até aqui, já temos visto que as palavras sinónimas podem ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 37

evocar certas formas de vida e actividade, certos meios sociais. Por exemplo, alguém diz para um doente: - Então, vai melhor dos seus achaques? Aquela palavra não é a usual, em casos semelhantes. Costumamos dizer padecimentos, doenças, sofrimentos. A expressão, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontrámos em livros antigos. Trata-se pois de um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprego choca-nos, evocando logo em nós um ambiente conservador e certa afectação literária. É a isto que se chama o «efeito por evocação» das palavras. Esse efeito pode ser de natureza variada, como é de calcular. Vejamos estas quatro frases:

a) O pobre homem morreu cheio de sofrimento. b) Às dez horas, o mariola esticava o pernil. c) O estadista expirou com o pensamento no seu país. d) Faleceu ontem o Sr. José dos Santos Abreu. No primeiro exemplo, morreu é o termo usual e também o termo identificador, aquele que traduz a ideia geral, menos expressiva, por assim dizer. No segundo exemplo, pasmamos do atrevimento da expressão; sentimos imediatamente que esticar o pernil é um termo de gíria popular, que evoca esferas inferiores da população. No terceiro exemplo, expirar aparecenos como um vocábulo literário, só usado nos livros. Enfim, no último exemplo, faleceu dá-nos a impressão de um meio burocrático, jornalístico. A palavra, que tem carácter eufemístico, é empregada em estilo correcto, cerimonioso e levemente afectado. Uma das coisas que melhor denumciam o aprendiz de estilo é o desconhecimento desta lei importante, que consiste em empregar as palavras que condigam com o ambiente

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psicológico ou social. Suponhamos esta frase: «Eurico, nas solidões do Calpe, não esquecia a mulher de quem gostara um dia». Aquele gostar introduz no discurso uma nota quase cómica, porque, sendo um termo familiar, de andar-por-casa, não se pode aplicar à paixão devoradora dum romântico tal como Eurico. Se as palavras evocam o meio social, claro está que não poderemos pôr na boca dum campónio que conta um acidente, uma expressão como esta: «Quando o pedregulho caiu, fiquei um momento perturbado-». O que ele certamente diria era azoinado, aparvalhado, etc., palavras que correspondem aos seus hábitos linguísticos. Note-se ainda que há também tendência de quem fala para se aproximar do entendimento daquele que ouve. Um cavador foi agradecer a um doutor um acto de generosidade. O doutor não lhe diz, se souber falar: - Penhorou-me a sua amabilidade; repito, porém, nada tem que me agradecer. Isso diria a um seu igual, em estilo epistolar, literário. Ao pobre homem, para que ele compreendesse bem, diria mais ou menos isto: - Ó homem, muito obrigado pela sua atenção, mas nada tem que me agradecer, valha-o Deus! 10. Os dicionários analógicos. - Acabámos de ver palavras que apresentam vários aspectos duma mesma noção; mas é natural que cada um dos elementos duma série sinonímica sugira por seu turno outras palavras, com que tem ou pode ter certas afinidades. Entra em jogo a chamada associação de ideias, que desempenha um papel importante no mecanismo do nosso espírito e portanto na técnica da expressão. Os vocábulos belo, amor, frio, morrer, são conceitos abstractos, que se identificam e esclarecem no nosso espírito por meio da noção contrária :feio, ódio, calor, viver. Estas palavras, que designam o contrário ou a face oposta das coisas ou ideias, chamam-se antónimas. Estão implícitas nos termos abstractos, como que fazem parte da sua definição. O povo diz com graça e com uma certa verdade: - Que vem a ser bonito? - É aquilo que não é feio. Fugindo da complicação das definições, sempre delicadas, define um termo pelo seu contrário. E procede com certa razão: a maneira mais prática de definirmos o belo e o feio é pô-los a par um do outro. De modo que o princípio da analogia leva a considerar numa palavra em primeiro lugar o seu contrário; depois, todos os termos que se lhe ligam por associação de ideias. Para não sairmos da noção de belo, fixemos desde já o antónimo feio e vejamos os vocábulos e locuções mais correntes que se ligam aos dois termos: BELO Expressões substantivas: beleza, formosura, graça, encanto, atractivo, lindeza, boniteza, amabilidade, elegância, boa aparência, boa parecença, perfeição, majestade, Adónis, Narciso, narcisismo, Vénus, Helena, garridice, louçania, querubim, gentileza, donaire, etc.

Expressões verbais: ser belo, brilhar, luzir, resplandecer, aformosear, florescer, embelezar, alindar, enfeitar, adornar, ornar, parecer bem, transformar se de feia lagarta em linda borboleta, estar que nem um palmito, estar mesmo um amor, - um primor etc_ Expressões adjectivas: belo lindo, bonito, gentil, garrido, esPecioso, loução, vistoso, bem proFEIO Expressões substantivas: fealdade, monstruosidade, enormidade, deformidade, desproporção, má aparência, má catadura, suj idade, imumdície, Polifemo, Vulcano, Sileno, Quasímodo, diabo, bruxa chimpanzé, bode, sapo, osga, mostrengo, bicho, urso, macaco, estafermo, aleijão, etc. Expressões vetbais: ser feio, ter má aparência,-má catadura, fazer caretas, ter a pele engelhada, ser um aleijão, ser estropiado; deformar, aleijar, estropiar, sujar, lambuzar, borrar, besumtar, deturpar, sarapintar, enfarruscar, ser feio como um bode,-como o diabo, etc. Expressões adjectivas: feio, sem beleza, desengraçado, hediondo, feio de meter medo, caricatural,

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amores, etc. rado, etc.

Se fizermos isto para todas as representações fumdamentais que possam arrastar outras ideias e por consequência outras formas de expressão, teremos feito um «dicionário analógico», ou «ideológico». São de grande benefício para o escritor, que por vezes procura a expressão mais adequada. Tê-la-á à sua disposição nesses repertórios, quando bem elaborados. Só em 1936, apareceu um dicionário desses para a nossa língua, com certo desenvolvimento. É o Dicionário analógico Aã língua portuguesa, do P.e Carlos Spítzer (Porto Alegre, Livraria do Globo). Adopta uma sistematização muito discutível e embaraçosa para o estudioso e inclui, sem discriminação, os idiotismos portugueses e brasileiros, o que pode levar a algumas confusões. Mais claro, embora menos completo, é o Vocabulário analógico saído um pouco antes, da autoria do lexicólogo brasileiro Firmino Costa, o qual dá por vezes a abonação literária das expressões. Ultimamente, em 1950, foi publicado também no Brasil, o Dicionário analógico, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Padece dos mesmos defeitos, mas é talvez mais prudente e criterioso na escolha de termos de idêntico significado. As duas colunas sobre belo e feio foram em grande parte aproveitadas de Spitzer; mas não incluímos algums termos nele contidos, por abusarem um pouco do conceito da analogia: careca, calvo, bexigoso, vermelhaço, cabelo de fogo, desaire, etc. É evidente que, a propósito de feio, se podem ESTILÍSTICA DA UMGUA PORTUGUESA 41

menos naturais, íomfa nos bons diários anatogicos.

3.

O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS in 1.

História e fisionomia do vocabulário português. -

A grande maioria, poderemos dizer a quase totalidade das palavras usuais portuguesas, provém do latim; não daquele latim polido, empregado pelos escritores da Roma imperial, mas da língua plebeia das tabernas e alfurjas, falada por soldados, por colonos e pequenos mercadores. Foram estes elementos da população romana que introduziram a sua língua na Península Hispânica, nos momentos da invasão e da conquista. Era a língua dos vencedores: ficou sendo pouco a pouco a língua dos vencidos, porque trazia consigo o prestígio duma grande civilização. A língua portuguesa, como afinal as outras línguas aparentadas, tem portanto, como se vê, uma origem bem humilde, caracteristicamente popular. Não nasceu em berço doirado. Esse latim popular, que, mais tarde, por transformações de vária ordem, deu o português, era, como toda a linguagem plebeia, um instrumento de comunicação social, tosco, abreviado e sobretudo concreto. Usava um vocabulário em muitos pontos distinto do latim literário. Por exemplo, para designar «boca», dizia bucca e não ore; para «cavalo» dizia cábállu e não équu; para «casa» dizia casa e não dómu; para «grande» dizia grande e não mágnu. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 43

Estamos vendo a importância deste facto: a escolha feita pelo latim vulgar ainda hoje vale para a língua comum. Efectivamente, em linguagem despretensiosa dizemos boca, cavalo, casa, grande; mas para os seus derivados já usamos ou podemos usar os termos literários: oral, equestre, doméstico, magnitude. Durante algum tempo foi essa língua a usual na Península; mas o conquistador, por meio de escolas, foi derramando logo na terra conquistada o conhecimento da cultura latina, dos seus grandes escritores: de modo que, em breve, se deu um facto corrente em todos os idiomas: o lusitano começou a empregar duas línguas-uma, quando falava, outra, quando escrevia. Sempre que um povo se adianta na cultura, essa distinção é inevitável. Veio depois a grande arremetida dos bárbaros germânicos. A Península é outra vez invadida e assolada. Mas os germanos possuíam uma civilização inferior; dominando pelas armas, deixaram intacta a velha cultura, imprimindo-lhe leves modificações, sobretudo no campo do direito. A língua continua a mesma; porém o vocabulário foi acrescido de um certo número de palavras, que denumciavam as preocupações guerreiras dos conquistadores. Termos de guerra, sobretudo, ou coisas aparentadas com a guerra, foi quanto a língua adquiriu com a invasão dos germanos: agasalhar, albergar, arreio, baluarte, banir, barriga, bradar, brandir, dardo, elmo, escaramuça, esgrimir, franco, galope, garbo, gastar, guerra, grinalda, luva, marchar, orgulho, raça, roubar, sala, tirar, trepar, etc. Como vemos, a maioria destes vocábulos tem uma fisionomia acentuadamente militar. A acumulação dos rr parece dar-lhes a sonoridade dum tinir de armas; a natureza violenta e selvática

dos germanos espelhou-se nas predilecções do seu vocabulário. Três séculos depois, a Península sofre nova invasão: a dos árabes. A civilização dos árabes era talvez superior à

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cristã; não puderam porém conquistar toda a Ibéria. Ao norte, no Cantábrico, ficou um reduto cristão, de onde partiu, com implacável tenacidade, a guerra da reconquista. Tem-se hoje como certo que a maioria dos árabes sofreu logo de início e cada vez mais a influência da cultura e até da língua românica; mas não é menos verdadeiro que alguma coisa devia ficar da longa dominação islâmica. O vocabulário português de origem árabe denumcia bem em que medida se exerceu entre nós a influência dos sarracenos, que introduziram na Península novidades referentes à agricultura, indústria, ciências e artes, jogos, comércio, administração, etc. Eis algums dos vocábulos mais usuais de origem árabe: açorda, alambique, álcool, alecrim, alfaiate, algarismo, alqueire, armazém, arroba, arrobe, azul, fatia, garrafa, mesquinho, oxalá, xadrez, xarope, etc. Pelo sentido destas palavras verificamos que o domínio da civilização árabe foi grande, pelo que respeita aos aspectos materiais da vida; mas dificilmente se encontrará na lista uma palavra abstracta, exceptuando a interjeição oxalá, que exprima ideias ou sentimentos da alma. Até mesmo aquele mesquinho parece ter sido ao princípio uma palavra concreta e significar «mendigo», «pedinte». Logo, a requintada cultura árabe não tocou na estrutura da língua; limitou-se a enriquecer o vocabulário de palavras que traduzem geralmente as aquisições da técnica e os gozos terrestres da vida. Outras influências vieram depois enriquecer o nosso vocabulário. Acima de todas coloca-se a da língua francesa, que, por ser a expressão duma apurada cultura, logo de início, nos primeiros tempos da fumdação de Portugal, se fez sentir entre nós. Numca devemos esquecer que o primeiro chefe de Portugal foi um nobre francês, o conde D. Henrique de Borgonha, e que franceses ou gente afrancesada combateram por Portugal logo nos primeiros tempos da nossa existência de nação livre. Esses soldados franceses, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 45

depois da guerra, estabeleciam-se no reino e nele constituíam família. Muitas das povoações da Estremadura e Ribatejo foram colonizadas por eles, então designados sob o nome geral de Francos. 2. O estrangeirismo; os galicismos. - Quando quisermos estudar o problema dos galicismos, assim se chamam os termos ou locuções afrancesadas que abumdam na nossa língua, devemos ter sempre presente o que acabamos de dizer: a verdade é que a nossa própria liberdade tem uma raiz francesa. Não é pois de estranhar que, acompanhando nós através dos séculos, com maior ou menor intensidade, o prestígio da cultura francesa, tenhamos recebido na nossa a marca da sua língua. O problema é sobretudo um problema de ordem moral, que deve ser posto desta maneira: a influência duma cultura como a francesa, onde predominam a razão e a claridade, só pode ser benéfica para nós, com uma condição: que, em vez de nos escravizar ao estilo francês, estimule e clarifique as energias do nosso portuguesismo. E, na verdade, é assim que ela tem operado entre nós. Dois exemplos: no século xui tivemos uma escola magnífica de poesia lírica. Foi a França que lhe deu o impulso inicial; a língua dos nossos trovadores acusa naturalmente um ou outro galicismo; mas essa influência estrangeira fez rebentar as fontes do nosso lirismo nacional, que se desentranhou em obras admiráveis. Outro exemplo: no

primeiro quartel do século xix dá-se entre nós o movimento literário do Romantismo, sob o impulso de ideias que vieram de França, da Inglaterra e da Alemanha. Pois esse empurrão estrangeiro nada mais fez do que dar à nossa literatura uma orientação profumdamente nacionalista e humana. São disso prova as grandes figuras literárias de Garrett e Herculano. Contudo, a nossa facilidade de imitação e aceitação de

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modas estrangeiras pode conduzir-nos a excessos. E, de facto, sempre que surge uma vaga de francesísmo, há um período de imitação desordenada, efervescente. Logo depois se estabelece o equilíbrio, e na língua só ficam, por via de regra, os vocábulos que oferecem qualquer novidade. É inútil e até grotesco berrar contra isso. A adopção dos estrangeirismos é uma lei humana e particularmente portuguesa: constitui como que uma fatalidade, devida aos intercâmbios das civilizações. A língua, especialmente o vocabulário, só tem a lucrar com isso. O ponto está em que essa imitação não exceda os limites do razoável e não afecte a própria essência do idioma nacional. Já atrás, no capítulo 2, nos referimos ao galicismo abandonar, que hoje está integrado definitivamente na língua e não é positivamente nela um «verbo-de-encher», como demonstrámos; corresponde a uma necessidade de expressão sentimental, que nenhum dos sinónimos preenche tão bem. Bastava isso para justificar o seu emprego. É essa, com efeito, a grande lei que rege ou deve reger a adopção de estrangeirismos: deverão ter acolhimento, quando correspondam efectivamente a necessidades de expressão. Vejamos algums exemplos. A palavra bibeloí (leia-se bibelô) designa aqueles objectozinhos de arte, jarras, estatuetas, figuras, caixas, etc., com que embelezamos os aposentos da nossa casa. O termo sugere três ideias fumdamentais: o pequenino, o gracioso, o artístico. A moda dos bibelôs veio-nos de França, e é um produto com que a arte francesa adornava os salões fúteis e delicados do século xvm. Introduzida a moda e portanto o objecto em Portugal, veio com ele o nome, pois era coisa desconhecida entre nós. Assim se originam os estrangeirismos. Pretendem os puristas, gente no geral pouco compreensiva e virada sempre para o passado, substituir esta palavra por outras, com sentido mais ou menos semelhante. No ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 47

fumdo, é a velha e errónea concepção do sinónimo. Já vimos que não há nem pode haver palavras com valor absolutamente igual. Procuram pois esses legisladores da república linguística substituir com vantagem o francesismo por palavras como: galantarias, bugigangas, brincos, brinquedos, objectos, artefactos, /utilidades. Um até, o professor brasileiro Carlos Gois, no seu Dicionário de galicismos, pretendeu substituí-lo pelo termo tetéia, que em luso-brasileiro significa mimo, brinquedo. Um pouco de inteligência e de bom senso mostra-nos logo o ridículo e malfumdado de tais substituições. Nenhuma daquelas palavras é capaz de exprimir o conjumto de sugestões contido no vocábulo bibelô. O termo bugiganga é talvez o que mais se aproxima; mas contém uma ideia um pouco pejorativa de «coisa insignificante e não artística», que o distancia infinitamente de bibelô. A. diferença entre os dois termos resulta claramente de um trecho de Fernando Namora, que nos representa o escultor Vasco Rocha, esperando sua

amante Jacinta num quarto mobilado, cedido a esta por sua amiga Bárbara. Enquanto aguardava a amante, estava ele «revendo e fixando as particularidades de cada bibelô, como se estivesse a desafiar e a exercitar a memória, propondo-se reconstituir de olhos fechados os pormenores mais ínfimos (um dos bibelôs, o campino, partira-se pela faixa vermelha que lhe cingia a cintura, num daqueles gestos desastrados de Jacinta, e fora colado com a perícia de um falsário - «vê se ela não dá por isso, senão tem para aí uma solipanta» -, para que Bárbara, ciosa da sua feira de bugigangas, não reparasse no estrago»). - Os clandestinos, 2.a ed., pág. 81. O sentido pejorativo de bugigangas é ainda reforçado por aquele nome, feira, que o antecede: era um objecto de quinquilharia, sem valor. Uma outra palavra, que a moda francesa impôs ao nosso vocabulário: coquete, para designar a mulher que

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veste bem e gosta de agradar. Tinha a língua, no seu velho fumdo, uma bonita palavra que designava quase a mesma coisa: garrida (garridice). Esse vocábulo foi caindo em desuso e passou umicamente a empregar-se como qualificativo de cor. Exemplo: «um vestido de cores garridas», isto é, berrantes, vistosas. Já o grande escritor português Almeida Garrett, que era um janota, dizia a respeito deste termo: «A palavra coquete não é portuguesa; mas não há remédio senão aceitá-la e dar-lhe carta de naturalização, desde que a cousa se aforou tanto entre nós.» Pode portanto quem quiser empregar a palavra garrida para qualificar a mulher janota e galante. Simplesmente, o vocábulo produz em nós certo efeito evocativo: conduz-nos a um mumdo antigo, de que estamos já desabituados. Soa como um arcaísmo, e perde nisso parte da sua força expressiva. É pena, talvez; mas é assim. Um terceiro caso, o anglicismo lanche. Se disséssemos na cidade merenda em vez de lanche, como pretendem os puristas, cometeríamos uma falta de gosto, que nos tomaria ridículos. É que merenda evoca um ambiente rural, é quase uma expressão técnica das fainas do campo. Não serve portanto para a gente da cidade. Há porém casos em que o estrangeirismo representa uma inovação escandalosa e indesejável, por absolutamente desnecessária. Está, por exemplo, muito em voga a forma estrangeira feminina massiva, do francês massive: «O partido socialista tem uma representação massiva no Parlamento». É um decalque disparatado, por desconhecer a forma correcta portuguesa, maciça, ou talvez melhor, na antiga ortografia, massiça, por se referir a massa = multidão. Note-se que os nossos maiores estilistas, que se nutrem principalmente de literatura e ideias francesas, estão cheios de pecados contra o purismo do vocabulário. O próprio Camilo Castelo Branco, que é um formidável vernaculista, ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 49

e que tanto bramava contra o emprego dos estrangeirismos, abumda neles. Dois exemplos apenas: 1. «O destro jardineiro tira prodigiosas flores, redobrando e rajando as pétalas, que abrolhavam, anos antes, singelas, bem que formosas, na mesma tige» (Dispersos, m, 485). 2. «O que no ano passado corria despercebido escutou-se agora atentivamente (Dispersos, m, 325). A palavra tige é um despropositado galicismo, por «haste», «caule», «pé»; e atentivamente está por «atentamente». Sem dúvida, para Camilo, num momento dado, tige não exprimia a mesma coisa que «haste», «caule».

No Brasil, Machado de Assis também não evitou os galicismos reprochar e reproche: «Ambos tinham que reprochar ( = censurar) um ao outro. O casamento absolvia-os» (laia Garcia, pág. 142). E teve até a coragem de justificá-los em nota do seu livro Papéis Avulsos, pág. 265. Abonando-se com Morais e Silva, não os considerava galicismos, e deunos as razões pessoais do seu emprego: «Resta a questão de eufonia. Reproche não parece mal soante. Tem contra si o desuso. Em todo o caso, o vocábulo que lhe está mais próximo no sentido, exprobração, acho que é insuportável. Daí a minha insistência em preferir o outro, devendo-se notar que não o you buscar para dar ao estilo um verniz de estranheza, mas quando a ideia o traz consigo». Em Eça de Queiroz e Fialho de Almeida, os pecados de francesia são frequentíssimos e por vezes até censuráveisVejam-se estes dois exemplos em Eça: 1. «Saíram enfim do hotel a fazer esse passeio a Sitiais» (Os Maias, i, 295). 2. «Estendeu a mão; mas o primeiro aperto foi gôche e mole» (Os M aias, i, 225). 4 - Estilística

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No primeiro, fazer um passeio substitui desvantajosamente «dar um passeio», português de lei. Eça de Queiroz sentia mais força expressiva no verbo «fazer» e adoptou o modelo francês. No segundo, deu ao termo francês gaúche forma portuguesa; não se lembrou de um adjectivo português que traduzisse a ideia. Os puristas dão, como sinónimo de gaúche: canhestro, desajeitado, acanhado, azambrado, esquerdo, zambro, lorpa, bisonho, etc. Seria de mau gosto e ridículo substituir goche por «canhestro», forma já desusada; precisamente os repertórios de galicismos insistem nesse velho termo; mas poder-se-ia evitar o francesismo, usando palavras bem portuguesas, como: atrapalhado, desajeitado, desastrado, ou o afrancesado, mas já unanimemente admitido, embaraçado. Em Fialho de Almeida: 1. «levando em pós de si o olhar fetichizadoi> (O País das Uvas, 214). 2. «as mãos - uma maravilha de finura e esquisitice» (O País das Uvas, 140). No primeiro exemplo dá-se o caso engraçado de se imitar a forma francesa, quando o francês já tinha imitado a forma portuguesa. Efectivamente, os franceses tomaram o vocábulo fetiche do português feitiço; e é na verdade estranho que se adopte esse galicismo, tendo na nossa língua a bela palavra enfeitiçado. No segundo exemplo, aquele esquisitice está por encanto, delicadeza, e, nessa acepção, é também um galicismo. A palavra existiu e existe em português corn o sentido de «coisa invulgar, estranha». Há portanto no estrangeirismo, e muito particularmente no galicismo, dois casos a considerar: a adopção de vocábulos, e o emprego de construções ou de grupos fraseológicos que contrariam a natureza da língua. Os primeiros são geralmente menos graves: porque, ou ficam no idioma, por representarem uma necessidade, e passam, nesse caso, a vestir a rtuguesa: af)ím(lonar> atitude, sofá, boné, desporto, túnel, turismo, embaraçar, etc., ou são repudiados pela língua, corno coisa que não serve e só teve moda passageira no falar corrente ou no livro de um ou outro escritor (ex. goche, Os segundos, que constituem propriamente um decalque da construção estrangeira, são mais perigosos, porque podem envolver uma desnaturação mais grave da forma de pensar portuguêsmente. Pertencem a este grupo certas locuções como: fazer a honra, fazer o conhecimento com alguém, fazer um passeio, ter lugar (por «efectuar-se, realizar-se»), de maneira a, enquanto que, o emprego abusivo da preposição em (vestido em seda), o uso irregular do gerúndio, etc. A seu tempo trataremos alguns destes casos, nos seus devidos lugares.

Não vá o leitor concluir de tudo isto que nem Camilo, nem Machado, nem Eça, nem Fialho conheciam bem o português, pois que o desfeavam com máculas de estrangeirismos. O emprego do estrangeirismo limita-se, por via de regra, nesses escritores, a casos de vocabulário, o qual eles procuram colorir com auxílio do termo estrangeirado. A expressão portuguesa tinha para eles, no momento da composição, qualquer coisa de desbotado e corriqueiro, que não correspondia já às necessidades do estilo. Ou bem ou mal, é o próprio sentimento da arte e a curiosa procura do termo exacto que os leva a empregar os estrangeirismos. No mais, a sua língua é portuguesíssima de lei; e as suas audácias expressivas, se tiveram inconvenientes, também tiveram as suas vantagens. Em estilo, como no jogo, é preciso arriscar alguma coisa para se ganhar. Concluamos pois. O estrangeirismo é um fenómeno natural, que revela a existência de uma certa mentalidade comum. Os povos que dependem económica e intelectualmente de outros não podem deixar de adoptar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem

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que lhes não são próprias. O ponto está em não permitir abusos e limitar essa importação linguística ao razoável e necessário. Contido nestes limites, o estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tomando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comumicação das ideias gerais. Uma coisa é necessária, quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional: vesti-lo à portuguesa. Os estrangeirismos mais em voga (blusa, chalé, interesse, clube, túnel, coquete, abandono, lanche, etc.) estão já incorporados no idioma, havidos e sentidos como portugueses. Aquelas palavras são empregadas por nós como se fossem nossas. Já outras, como vagom = vagão, furgom, etc., não estão ainda bem nacionalizadas. Lá chegaremos. Note-se que há um grande escritor português, Teixeira-Gomes, em cujas obras se nacionalizam deliberadamente os estrangeirismos: bulevar, bibelô, sofá, pompadur, abajur, etc. O estudioso terá talvez empenho em consultar algum repertório de estrangeirismos. Temo-los, numerosos, entre nós. Aqui lhe damos a lista dos principais: Cândido de Figueiredo, Estrangeirismos; Carlos Gois. Dicionário de galicismos; Silva Bastos, Estrangeirismos; Vasco Botelho de Amaral, Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (o mais recente e completo). A consulta de tais livros pode ter seus perigos para o principiante. Feitos com a preocupação exagerada do purismo clássico, com duvidoso discernimento e, por vezes, acentuado mau gosto, dão, para traduzir ideias modernas, termos antiquados, aproximações e perífrases, como se a preocupação de quem deseja escrever bem não fosse a busca do termo justo, lapidar, breve. Para o aprendiz de redacção o melhor ainda é a prática de escrever com liberdade e os conselhos e correcções dum mestre experimentado. 3. O neologismo. -- Apesar da abnndância do vocabulário, a língua necessita constantemente da criação de novas ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 53

formas expressivas. Esses novos meios de expressão, inventados por quem fala e escreve um idioma, são chamados neologismos. O estrangeirismo, já o vimos, provém deste desejo, absolutamente legítimo e altamente fecumdo, de novas criações. Por necessidade, preguiça, comodidade ou gosto artístico, o escritor, não tendo em casa expressão idónea, vai buscá-la às línguas estrangeiras. Logo, os estrangeirismos não são mais do que uma das formas do neologismo. Todavia, o termo usa-se mais para designar as palavras novamente criadas na língua: seria melhor dizermos «afeiçoadas», porque a criação absoluta, total, é raríssima. Já o vamos ver da seguinte lista, que compreende algums dos neologismos mais em voga actualmente: aclimar, aclimatar, actuação, adentro de, amarar (= pousar na água), aperceber-se de (- notar), a quando de (= por ocasião de), ascenso, aterragem, avião, chefia, chefiar, eclodir, enfrentar, extremista, focalizar (uma questão, um ponto literário), homenageado, ideológico, imiscuir-se, metragem, senfilismo, solucionar, vincar, zigue-zaguear, ensimesmar-se, silenciar, mentalizar, contactar, impacto, conscientizar, desfasamento, etc. Verificamos que o neologismo compreende palavras novas, mas formadas dentro dos processos

usuais na língua, ex.: amarar, enfrentar, metragem, etc., ou palavras já existentes, mas às quais se dá novo sentido: aperceber-se de, focalizar, vincar, etc. Nenhuma delas, porém, é palavra no vinha em folha; prova de que a língua não cria, mas propriamente transforma, com material de que já dispõe. Não discutimos agora se todos estes neologismos têm direito a incorporar-se no idioma. A história das palavras é muito caprichosa, também está sujeita a modas passageiras; mas quase se pode garantir que a maioria delas subsistirá. Há, é claro, além destes neologismos de uso geral, as criações individuais de cada escritor. Fialho de Almeida, sobretudo, foi um grande rebuscador de neologismos, que

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por vezes tirava do fumdo provincial e da linguagem técnica: nuvezinhado, nevrostizar, chafra-nafra, transfazer-se, independeníizar, voriilhões, emotival, etc.; mas destes, pouquíssimos ficaram. Note-se que a linguagem científica e as necessidades da propaganda comercial são hoje os maiores propulsores da criação de neologismos. Basta ler um prospecto farmacêutico para se ver a enorme vegetação de termos científicos modernos: cefalàlgia, otite, hidroterapia, dermatose, edema, etc. No mumdo comercial, a importância do neologismo é ainda maior, porque do nome do produto depende em parte o êxito da sua venda. Forja-se pois um nome vistoso e sonoro. Dizia o grande linguista Brumot, com graça: «A melhor maneira de compreender o que é a criação verbal é reparar num muro coberto de anúncios ou na última página dum jornal de informações». Os literatos têm ainda um último recurso para forjar neologismos: recorrem ao latim e até mesmo ao grego. Dão assim nobreza a certas expressões mais gastas e triviais. Algums exemplos: 1. «Em toda essa magna série de trabalhos domina a composição» (Teixeira-Gomes). 2. «Os gemidos do filho eram mais dolentes e crebros» (Trindade Coelho). 3. «Intermináveis teorias de mulheres gentis» (Venceslau de Morais). 4. «Quando a procissão acedeu à capela, apartaram-se os anjinhos» (Aquilino Ribeiro). Nestas quatro frases, magna está por «grande», crebros por «frequentes», teorias por «filas», «séries», acedeu por «chegou». Nestes casos, o emprego da palavra nobre confere certa majestade à frase; mas o seu poder expressivo dimiESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

nui para o leitor médio, pouco familiarizado com o termo clássico, latino. Curioso é o emprego da palavra fugace neste passo de Lima Barreto: «Sentou-se e quis começar uma modinha sobre a glória, essa coisa fugace, que se tem e se pensa que não se tem» (Policarpo Quaresma, 128). A forma fugace, por fugaz, não se deve apenas a um propósito de latinização do vocábulo; é também evidente nela uma intenção rítmica, um arredondamento fónico mais ajeitado à prommcia brasileira. 4. O arcaísmo. - Como temos visto, a criação linguística consiste principalmente em utilizar para novos fins o material existente. E como esse material anda arquivado nos dicionários, quem escreve tem à sua disposição uma quantidade grande de vocábulos com idêntico significado. Muitos desses vocábulos já morreram. Têm porém aos olhos de muitas pessoas certo encanto, o suave aroma das coisas velhas. Evocam um mumdo distante, e a imaginação ama por vezes refugiar-se nessa atmosfera do passado. Para o escritor que procura fazer ressurgir a vida de antigos tempos, essas

ressurreições do vocabulário são necessárias, porque, pelo seu poder fortemente evocativo, ajudam a dar a chamada «cor local». Estas restaurações, obrigadas ou volumtárias, pouco importa, da linguagem antiga, são chamadas arcaísmos. O seu estudo e a sua história são na verdade muito interessantes e altamente elucidativos para o aprendiz de redacção, ao qual importa distinguir, na linguagem, entre o que é vivo e o que está morto. Há na história de todas as línguas um período, naturalmente curto, em que, a par do vocábulo usual, ainda se

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não perdeu totalmente a consciência do termo velho, que vai desaparecendo. Efectivamente, as palavras não morrem de um golpe. Vão sendo pouco a pouco abandonadas, em benefício de termos novos, até que perecem e ficam sepultadas no seu cemitério próprio, que são os dicionários. Mas sucede também que o arcaísmo pode iludir o seu destino e permanecer na língua com um sentido especial. Três exemplos desta especialização de sentido são os termos nojo, britar, escudeiro. Nojo significava na linguagem antiga «pesar»; britar designava «partir», «quebrar»; escudeiro era o pajem que levava o escudo do fidalgo. As três palavras subsistem ainda hoje na língua, nas seguintes locuções: «andar de nojo», isto é, «de luto»; «britar pedra»; enfim, escudeiro é ou foi o criado de mesa de certas casas fidalgas da província; substituiu o escudo pela bandeja e travessas, com que servia pacificamente os seus patrões. Pode dizer-se que nojo e escudeiro estão a desaparecer, se é que já não desapareceram, definitivamente do uso vivo da língua; a primeira já cedeu de há muito o lugar ao sinónimo luto, tinha a desvantagem de poder estabelecer confusão com nojo = «repugnância»; a segumda, usada por Eça de Queiroz no seu romance A Cidade e as Serras (16.a ed., págs. 38, 45, 47, 57), limitada a certas casas nobres provincianas, não resistirá muito tempo à onda de modernismo, que tudo avassala, até mesmo os costumes da aristocracia; britar, a terceira, continuará possivelmente a dizer-se, enquanto houver britadores de pedra - o que não será por muito tempo, dado o emprego geral dos maquinismos a substituírem a mão do homem. São pois três palavras condenadas, mais ou menos moribumdas. Apesar disto, os escritores têm arte de as fazer ressurgir nos livros, como dissemos. Se alguém pronumciasse, ao pé de nós: «O meu lápis 6riío«-se-me»; ou: «Sinto muito nojo pelo mal que lhe sucedeu», possivelmente riríamos às gargalhadas com a impertinência do arcaísmo. Já não rimos, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 57

porém, se acharmos os termos escritos, em lugar próprio, para darem a atmosfera do tempo antigo: «O nobre escudeiro, cheio de sanha e nojo, britou as portas do paço do rico-homem». Nesta curta frase temos nada menos de seis arcaísmos, que a literatura alberga ainda, mas que a língua corrente repudiou já quase por completo. No turbilhão lexical que é a língua de Aquilino Ribeiro, forjada de todos os elementos possíveis e tirada muitas vezes do velho fumdo popular, lá aparece o arcaísmo britar: «Uma martelada imprudente cortou a corda, e três homens vieram britar-se nos abismos rochosos da torrente» (Volfrâmio, 166). Já o primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, observava, em 1536, que o arcaísmo dava vontade de rir. Por isso, os autores o empregam não raro com fins vaga ou declaradamente jocosos. É, quando bem utilizado, um elemento de humorismo. Veja-se esta frase de

Fialho de Almeida: «Um, d’olhares mortiços, cujo gastrálgíco aspeito dizia um poeta desempregado». Aquele aspeito, por «aspecto», dá-nos uma impressão de cómico, acentua o contraste entre a literatura e a vida, o sonho e a realidade. Também Teixeira-Gomes pretende o mesmo efeito, ao empregar o arcaísmo terribil na seguinte frase: «Terribil foi, e perigosíssima, a luta em que se envolveram aqueles três animais». É possível ainda que, na mente do escritor, o adjectivo terribil equivalesse a um superlativo, andando

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por isso nele aliadas as noções de intensidade e de humorismo. É isto mesmo que se verifica nestes versos de Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta brasileiro: «Senhor! Senhor! / quem vos salvará / de vossa própria, de vossa terrlbil ’f estremendona / inkomumikhassão ?» (Impurezas do branco, 2.» ed., pág. 7). Érico Veríssimo, no seu romance Música ao longe (3.a ed., pág. 83) representa-nos Leocádio, um velho misterioso e ridículo, dizendo isto: «- As meninas andam loucas por mim; eu é que não lhes dou fiúza. - Clarissa arregalou os olhos. Fiúza! Mais uma palavra misteriosa. Seu Leocádio é uma delícia!» Aquele fiúza (= confiança) é uma velha palavra do português medieval, ainda usada em algums falares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. O escritor gaúcho soube tirar dela, pelo contraste das gerações, um belo efeito de mistério e de humorismo. Que o vocábulo também se usa no falar caipira de São Paulo parece provar-se por este passo do romance Briguela, do escritor David Antumes; mas aqui é usado sem matiz irónico: «pegou a mexer com as ideias, na fiúza de que uma delas servisse de candieiro para a sua dúvida» (págs. 67, 145). Já que falamos de arcaísmos paulistanos, convém averbar a forma imos, em lugar de vamos, no romance regionalista de João de Sousa Ferraz, Aguapés flutuam na ribeira, 3.a ed., 1977, pág. 127. E, finalmente, Carlos Drummond de Andrade, ao tratar a figura de D. Quixote, usa intencional e humoristicamente outro arcaísmo, giolhos = joelhos, definindo deste modo o cavaleiro da triste figura, que pretendia ressuscitar os ideais da cavalaria andante: «De giolhos e olhos visionários / me sagro cavaleiro andante» (Impurezas do branco, 2.a ed., pág. 63). O emprego do arcaísmo passou dos bons autores para os plumitivos de baixa categoria. «Como sói (= costuma) dizer o vulgo» é ainda hoje um cliché arcaizante, que se vê não raro na pena de jornalistas provincianos ou aprendizes ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 59

de redacção. Adrede, quiçá com o sentido respectivamente de «propositadamente» e «talvez», também são usados em estilo pretensioso. Quando não empregados com sentido humorístico, revelam geralmente incultura e mau gosto por parte de quem os escreve. Um caso curioso, não propriamente de incultura mas de muito mau gosto, foi o que se passou com dois escritores políticos do Liberalismo português, Manuel da Silva Passos e João Bernardo da Rocha. O primeiro escrevia o arcaísmo pêra em vez de para, o segumdo usava a forma poêr, ainda mais arcaica, em lugar de pôr. Por isso, foram postos a ridículo pelos seus adversários miguelistas, que lhes chamavam respectivamente «Pêra de ignorância presumçosa» e «João Poêr». - Apud Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, 6.» ed., i, 228. É portanto conveniente ter especial cuidado com o emprego dos arcaísmos. Evocando um mumdo antigo, tendem a tomar ridículo o que se escreve e a pessoa que os utiliza. E isso é de algum modo justo, porque em estilo, como em tudo, somos obrigados a ser homens do nosso tempo. A prática e o bom gosto evitarão esses despropósitos.

4. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

IV 1. O jogo das palavras. - O homem com tudo brinca, nas suas horas de desenfado; até com as palavras, que dão forma ao seu pensamento. Conta-se uma anedota curiosa, que vai pôr o leitor em frente de um equívoco involumtário de expressões: «Viera para a aldeia um médico, já idoso. O seu primeiro doente foi um lavrador que se queixava de fortíssimas dores nas costas. O doutor receitou-lhe uma pomada, para friccionar as cadeiras com força, à noite e de manhã. Passados oito dias, encontrando o doente, diz-lhe o médico: - Então, como tem passado ? Já não tem dores ? - Ai, Sr. doutor, as cadeiras estão muito lustrosas, mas eu estou na mesma! - Ora essa!

Como aplicou você o remédio que lhe receitei ?

- Olhe, Sr. doutor, - respondeu o lavrador - todas as noites e todas as manhãs esfrego com quanta força tenho as cadeiras da minha sala. Estão lindas, estão: mas as dores ainda me não passaram. O médico soltou uma gargalhada e disse-lhe: - Oh! homem, não são as cadeiras da sua sala, mas as ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 61

cadeiras do seu corpo, os quadris, que você deve mandar esfregar! O aldeão compreendeu, assim fez e daí a pouco estava curado». É por essas e por outras que no português popular do Brasil já se usa, neste caso não cadeiras mas escudeiras (= quadris), para evitar confusões. Vemos por aqui em que consiste o jogo de palavras, também chamado trocadilho: deu-se um equívoco entre os dois sentidos diferentes do mesmo vocábulo, de que ia resultando mal para o pobre lavrador, sem culpa de ninguém. É o tipo mais frequente -• o trocadilho entre homónimos. Aqui porém, o jogo de palavras foi inconsciente. O campónio ignorava que «cadeiras» pudessem ter aquela significação que lhes atribuía o médico. Pode contudo jogar-se com as palavras de modo propositado e até para fins malévolos. No tempo das guerras liberais, por ocasião do cerco do Porto, os pregadores miguelistas diziam ao povo ignorante das aldeias que o liberal D. Pedro comia crianças assadas. E para prova desse crime abominável liam do alio do púlpito um número da Crónica Constitucional, onde se referia que Sua Magestade comia a cada jantar um pequeno assado. Faziam por sua conta e com fins de propaganda política o trocadilho, alterando a natureza gramatical e o sentido dos dois elementos: pequeno, de adjectivo passava a substantivo com significação de «criança»; assado, de substantivo passava a adjectivo-particípio.

É claro que o modo de dizer, a entoação, desempenhavam papel preponderante na formação do equívoco. Só o jeito especial de pronumciar, carregando no termo pequeno, podia iludir os ouvintes. A semelhança morfológica dos homógrafos também serve naturalmente para o fabrico dos trocadilhos. Há no acto m do Frei Luís de Sousa de Garrett um belo exemplo desse jogo

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verbal. O romeiro pressente que o seu velho aio já não é 0 mesmo para ele: como que lhe pesa da sua vida, um tropeço na felicidade daquela casa. E põe-se a jogar amargamente com as duas formas de pesa e pesa, hoje fumdidas numa só, mas diferenciadas ainda no tempo de Garrett. Ouçamo-los: TELMO - Há de me pesar da vossa vida? (A parte) Meu Deus, parece-me que menti... ROMEIRO - E por que não, se já me pesa a mím dela, se tanto me pesa ela a mim? Umiformizar, como se tem feito, a grafia da palavra é destruir a ironia pumgente desse trocadilho, tão de propósito imaginado por Garrett. Além destes, os escritores usam ainda outros processos para fazerem o jogo verbal. Um deles é a utilização do arcaísmo para efeitos de trocadilho. O sentido arcaico de uma palavra, por ser coisa velha e pouco usada, tem certa graça cómica. Por isso os escritores o empregam. Um exemplo: «Não sou de parecer que V. M. deixe agora o seu convento para ir às Caldas, que, ainda que haja achaque que o peça, não é esse o achaque em que eu aconselhara a jornada». Nesta frase, o seu autor, Fr. António das Chagas, joga com os dois sentidos do vocábulo: o significado corrente de «doença, moléstia» e o sentido antiquado de «pretexto, ocasião». O mesmo fez o venerável Fr. Luís de Sousa, sem fins humorísticos, mas para simples brilho da frase: «Quis o Senhor mostrar quanto se paga de uma determinada e verdadeira conversão, e quão bem a pagai). Aqui jogou com o sentido usual «recompensar, retribuir» e com a significação antiquada do verbo reflexo pagar-se de = agradar-se de. Nos dicionários populares correntes não vem esta última, acepção do vocábulo, por ser já inteiramente desusada ;^ mas só compreenderá o trocadilho quem tiver presente o significado do arcaísmo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Uma outra fonte de trocadilhos é a exploração do signifcado etimológico da palavra. Por exemplo, o vocábulo Melancolia, de origem grega, significa propriamente «bílis ara» Tanto bastou para que D. Francisco Manuel de ”leio o grande escritor já nosso conhecido, imaginasse este ’oeo’verbal: «A melancolia, ainda que negra, não dá boa tinta ao que se escreve». E o P.6 António Vieira, um mestre em trocadilhos, estoutro, no qual se joga com o sentido etimológico da palavra douto: «Quem não é dócil não pode ser douto, antes a mesma docilidade é um sinónimo de ciência». Ainda serve para fabricar trocadilhos a diferença de sentido que existe entre a palavra simples e a palavra composta. Sobre os dois termos sentir e consentir engenhou Fr. António das Chagas um curioso jogo vocabular: «Anime-se e dê muitas graças a Deus por sentir as suas tentações; porque o senti-las é bom, c só o consenti-las é mau». E na última guerra civil de Espanha, o escritor Umamumo, referindo-se a um dos partidos em luta, dizia, jogando com as palavras: «Vencereis, mas não convencereis». Por vezes trata-se de uma falsa composição, como neste exemplo dum escritor gongórico: «Não queira estar sempre como menina no leite dos espirituais deleites». De facto, o termo deleite não é um composto de leite, como parece à primeira vista.

Se tal sucede com os compostos, é natural que o mesmo se dê com os derivados ou falsos derivados, como se vê neste trecho duma carta de Latino Coelho a um seu amigo: «Já adivinhas que fumdei uma Trappa na Rua dos Poiais de • Bento, onde, se não há trapos, há pelo menos trapeiras, e nesta cidade onde não há trapos religiosas mas há trapalhões e rapeiros políticos e trapalhadas de tal ordem, como tu as deves imaginar». si .Jlnalmente, como o vocábulo perde às vezes a sua § de esperar que surja

cação PróPria inserido na frase, é

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o trocadilho, pelo confronto dos dois sentidos. Por exemplo: «Não se me dá já que me não dêem bom pago do que faço». O grupo fraseológico dar-se de, equivalente a importar-se com, é aproximado do verbo dar no seu significado puro; daí resulta um engraçado equívoco. Deste teor é o trocadilho de Aquilino Ribeiro: «Convencer o mestre-de-obras é, de facto, um bico-ãe-obra». Isto, pelo que respeita propriamente ao sentido, à significação interior do vocábulo; mas o trocadilho pode nascer de um simples equívoco de pronúncia, ter carácter, por assim dizer, exterior, meramente fonético. Um exemplo, neste diálogo: -- «Minha senhora, eu queria a mala (= amá-la). - Que diz ?! - exclama a senhora, cheia de indignação. O senhor é muito atrevido! - Não sei porquê: desejo a mala, de que me ia esquecendo. -- Ah! a mala... Está bem: tem-na ali ao canto. Leve-a». Estes trocadilhos fumdados em equivalências fonéticas têm carácter mais grosseiro, mais artificial. Ouvimo-los - pois são feitos sobretudo para o ouvido - nas representações populares de comédia e revista, com sentido por vezes bem picante. Dos exemplos apresentados vemos que o trocadilho constitui um jogo verbal, que pode, em certas circumstâncias, dar vivo realce ao pensamento. Os maiores escritores empregam-no, e houve épocas em que ele foi particularmente estimado. Camões, o maior de todos, cultivou-o em todas as suas modalidades. Mas não se segue daqui que aconselhemos o trocadilho para enfeitar a redacção dos nossos leitores. Em bom estilo deverá partir-se do pensamento para as palavras e não das palavras para o pensamento. Se lhe demos cabimento, é porque o consideramos um dos fenómenos mais curiosos da língua escrita, um forte espertador do sentimento ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 65

verbal, que atinge por vezes nas mãos do escritor uma graça diabólica, como se pode ver neste passo de Camilo: «Vieira de Castro criou inimigos; mas o jovem escritor voeja tão alto que não pode por ora enxergá-los cá em baixo. Notem que enxergá-los não deriva de enxerga, nem sequer é sinónimo de albardá-los». 2. A língua falada e a língua escrita. - De quanto temos dito sobre as palavras, com certeza ficou esta importante noção: que o homem emprega ou pode empregar diferentes vocabulários, segumdo a situação em que se encontra. O operário não fala como o intelectual, nem este como o campónio, embora todos se entendam, porque assim tem de ser, para bem da vida em comum. Mas até mesmo o homem culto tem à sua disposição línguas diferentes, conforme a diversidade das situações em que se vê empenhado. Se encontra um amigo íntimo, um camarada de escola, emprega uma linguagem livre, salpicada aqui e ali de termos populares de forte expressividade. Se lida com

pessoas de cerimónia, emprega um vocabulário e uma construção de frases já mais cuidados. Enfim, se é escritor e se se senta à mesa de trabalho, já a frase e as palavras são mais rebuscadas, menos correntes, menos naturais. Vejamos um exemplo destas três situações num mesmo indivíduo: 1. «Meu rico, não fosses trouxa! Muitas vezes te disse que tivesses cuidado com aquele tipo. Não fizeste caso, e agora ferrou-te o cão. Toda a gente dizia que ele era um caloteiro de marca!». 2. «Meu caro senhor, foi demasiado confiado. Avisei-o muitas vezes de que deveria desconfiar desse homem. Não me quis crer e agora vê o seu dinheiro perdido. Era voz corrente que ele numca pagava as suas dívidas».

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3. «Fulano exprobrou ao amigo a sua imperdoável confiança. Dissera-lhe muitas vezes que se arreceasse daquele indivíduo. Mas o amigo não lhe dera ouvidos e agora sofria os resultados da sua imprudência. Na verdade, toda a gente proclamava a insolvência daquele homem». No primeiro exemplo, a linguagem é viva, trepidante, afectiva como a conversação. Empregam-se termos de gíria popular, locuções da linguagem corrente: meu rico, trouxa, tipo, ferrar o cão, caloteiro de marca. No segumdo exemplo, esses vocábulos desaparecem por completo, porque a atmosfera agora é outra. A linguagem toma-se fria e correcta como a conversação entre pessoas de cerimónia, que evitam naturalmente os termos considerados baixos e os sobressaltos do sentimento. Enfim, no terceiro exemplo estamos já em outro clima. Põe-se em linguagem literária o caso, e o vocabulário ressente-se disso. Aparecem agora termos e locuções que não são de uso corrente, ou são menos usuais: exprobrar, arrecear-se, dar ouvidos, na verdade, proclamar, insolvência. Por conseguinte, a língua culta é, por natureza, distinta da língua falada. O escritor empenha-se a traduzir para «mais belo» (pelo menos assim o julga) as expressões vulgares e um pouco gastas, de tanto uso, da linguagem de todos os dias. Esse trabalho de transposição é muito delicado e nele reside a marca do verdadeiro escritor. Como quer que seja, a missão da língua literária é depurar, enriquecer com a experiência individual, e disciplinar a língua do povo; e, ao mesmo tempo, adaptála às múltiplas necessidades do homem civilizado. Sem isso, não pode haver cultura e muito menos literatura. Compreende-se bem que, quanto mais culto se é, mais a língua escrita tende a diferençar-se da língua falada. O homem do povo, que mal sabe escrever, quase redige como fala. Eis aqui, para amostra, um certificado de pobreza ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 67

passado por um regedor minhoto em favor de Miquelína Rosa. Vem nos Serões da Província de Júlio Dinis e pertence à novela O espólio do senhor Cipriano: «Eu Bento maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im como, maquilina, rosa, martins, solteira, de esta Cidade, não tem, aberes para fazer as despesas do íntero do seu irmom cepreano cujo consta ter dinheiro. Mas o quê certo é que por morte se não incontrou i se é berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesta e mo diserom pessoas diganas para mim de todo o creto, pacei esta que juro. «Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de... Bento maria do portal.» O regedor, taberneiro de profissão, fez como soube, coitado. O documento acusa o formulário habitual das certidões administrativas: atesto em como, e por ser verdade o que supra atesto, etc. A pontuação é incrivelmente desordenada; a fala do Minho distingue-se no modo de proferir as desinências -ao, -am: irmon, diserom, e ainda na alteração do v em b: aberes, berdadeiro, bulgo, debe, berdade. Enfim, a construção da frase revela, pela sua irregularidade, a

incultura do autor. Quanto ao vocabulário, note-se o termo administrativo e literário vulgo, que o taberneiro escreveu para conferir importância ao documento. Não era palavra do seu uso; vocábulo corrente e regional era enxergar, a que o regedor deu uma grafia bárbara. Em suma: a certidão traduz a desordem da linguagem falada, mas revela o esforço do homem do povo para dar certo lustre ao estilo. É o que faz habitualmente quem escreve. Quem está diante duma folha de papel sente semte Uma dificuldade, uma responsabilidade. A consciência

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diz-nos que se não deve escrever inteiramente como se fala; mas também nos previne dos perigos que há em nos afastarmos demasiado dessa linguagem natural, que traz em si todas as energias da alma. 3. A gíria. - Chama-se gíria, como vimos, ao conjumto de expressões de tipo popular, usuais na linguagem corrente e despretensiosa, e sobretudo frequentes nas esferas menos cultas da população. É reparável, nas pessoas de bom-tom, empregarem termos de gíria; mas, como há diferentes graus de gíria, admite-se geralmente o uso da mais inocente no trato quotidiano e familiar. É, como se vê do primeiro exemplo que apresentamos no capítulo anterior, um meio expressivo, cheio de vivacidade, bem adequado à linguagem falada, saltitante e dinâmica. A gíria pode oferecer contudo outras modalidades e abranger a linguagem de certos meios especiais: colégios, prisões, oficinas, casernas, ambientes fadistas, etc. Quando assim é, chama-se propriamente calão. O calão é pois, de certo modo, a gíria com carácter mais reservado, mais secreto; ao passo que a gíria propriamente dita não passa de uma forma exagerada da linguagem familiar. Nem sempre é fácil distinguir a gíria do calão. Veja-se o trecho seguinte tirado de A Ronda da Noite do escritor Bourbon e Meneses, em que abumdam essas duas formas de linguagem: «José Francisco pôs na orelha a ponta do último brejeiro, inclinou para a nuca o chapéu já sem forma, e, tomando um dos copos, em frente do Plácido, que empumhava o outro, fez o brinde sacramental : - Lá vai à sua, sor Plácido! O Plácido parecia outro: até já tinha as mãos finas, que nem um fidalgo. De vez em quando aparecia ali pelo carvoeiro, que, pelos modos, também era da corda, e, como ele, tinha muita aceitação nos democráticos. Mas na «Brasileira» é que era vê-lo, a discutir ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA

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política. E tinha importância! Então não o toscara lá, uma vez, com um militar graúdo, desses que trazem peles no casabeque, galões largos na manga, coronel ou major, com toda a certeza ? Pois então! Lembrandose disto, baixou um pouco a voz, por mor de dois tipos que estavam jogando o liques, e interrogou: - Ó sor Plácido, é verdade que arrebenta hoje uma fita? Então, o Plácido, depois de indicar com um trejeito os jogadores - «rapazes fixes, cá dos nossos»! - explicou, muito ufano: Os íalassas tinham tudo preparado para sair. Mas a rapaziada dos grupos sabia tudo. Era em casa duma condessa que reumia o «comité» dos monárquicos. Um cabo da marinha, o Daniel - isso é que era um cara direita! -fizera-se c’os traidores, até pusera bentinhos no pescoço e cantara tudo à rapaziada dos grupos. Eles tinham a coisa bem preparada, isso tinham! No quartel do 16 até já estava uma bandeira azul e branca, toda de seda, para ser «alvorada» logo que a fita arrebentasse... Ah! mas os grupos não estavam a dormir! Eles até sabiam quem é que tinha bordado a bandeira! Uma tipa, toda beatona, amiga dum papa-hóstias da Sé...

De trás do balcão, o Constantino, cofiando o bigode e o rancor, observou: - Sempre quero ver se desta vez se faz a limpeza! Ponham-se com paliativos... O Plácido protestou com veemência. Não, desta vez, acabava-se-Ihe com a raça! Quem viesse com águas mornas, truca! arreava-se-lhe logo! Tudo quanto fosse jesuíta havia de ser corrido dos empregos. E esta era uma grande medida, porque havia para aí muito republicano à brocha. E citava: Olha o Vicente marceneiro, um «sacraficado»! O Clemente, - coitado! - que levou um tiro em Monsanto e anda prai aos paus... E outros».

O trecho está todo salpicado de gíria e calão lisboeta, que são geralmente as palavras e locuções impressas em itálico. Entre aspas colocámos o galicismo «comité» e os termos «alvorada» e «sacraficado», que são propriamente adulterações fonéticas, em uso na linguagem popular. Os restantes casos pertencem à gíria; e é indispensável conhecê-la, se quisermos penetrar o significado perfeito do trecho. Para uso dos nossos leitores que habitam em lugares onde não chegou o conhecimento da gíria lisboeta, que vai

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alastrando por todo o País, aqui damos um pequeno vocabulário referente ao trecho: 1. brejeiro: cigarro forte. Outros termos sinónimos de gíria: paivante, pandilha. 2. sor: senhor. É contracção popular de «senhor». 3. ser da corda: pertencer ao mesmo grupo, compartilhar das mesmas ideias. 4. toscar: ver, avistar. 5. graúdo: de alta posição. 6. por mor de: por causa de. 7. tipo: indivíduo, sujeito. 8. fita: perturbação da ordem, motim, revolução. 9. fixe: seguro, de confiança. 10. talassa: homem de convicções monárquicas. 11. sair: romper as hostilidades, sair para a revolução. 12. cara direita: rapaz bom, firme. Sinónimo de gíria: cara-umhaca. 13. fazer-se com: meter-se com, insinuar-se como agente provocador. Em gíria ainda tem outro significado - fazer a corte, ter relações amorosas: «O magala andava feito com a sopeira». cantar: contar, denumciar. papa-hóstias: beato, muito frequentador da igreja. fazer a limpeza: pôr no são, fazer a depuração. acabar-se-lhe com a raça: destruir, aniquilar para sempre. vir com águas mornas: aconselhar a clemência, a brandura. arrear: dar pancada.

corrido: expulso. à brocha: em dificuldades.

Sinónimo de gíria:

14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. à rasca. 22.

andar aos paus: andar desempregado, em miserável situação.

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Se considerarmos com atenção este vocabulário, logo vemos que não há fronteiras perfeitamente definidas entre a língua corrente, a gíria e o calão. Todas elas se compenetram, mais ou menos. Como termos correntes poderíamos separar: graúdo, tipo, sair, cara direita, fazer a limpeza, acabar-se com a raça, vir com águas mornas. As expressões sor e por mor de são propriamente resultantes duma contracção fonética: senhor = sor; por amor de == por mor de. A segumda, pelo menos, deve ser originária da província. Como gíria poderíamos talvez separar: brejeiro, toscar, fita, fixe, talassa, fazer-se com, papa-hóstias, arrear, corrido, à brocha. No calão propriamente dito, como linguagem mais especializada, poderíamos incluir: ser da corda, cantar, andar aos paus, que parece pertencerem à língua dos vadios, fadistas e ladrões. Mas, como dissemos, não se podem traçar limites absolutamente seguros. A língua giriática está ainda por recolher e estudar com profumdidade. Alberto Bessa publicou em 1901 um vocabulário, a que deu o título de A gíria portuguesa. Presta serviços, embora esteja esgotado; mas é curioso ver o quanto a gíria tem variado de então para cá. Fenómeno de linguagem, e de linguagem vivíssima, está em transformação constante. Um exemplo: o termo trouxa é usado em gíria actual com o significado de «parvo, simplório». Está muito espalhado por todo o Portugal: os soldados que estão ums meses na capital se encarregam de levar essa linguagem para as suas remotas aldeias. Pois Alberto Bessa regista a palavra como calão de gatumo, com o significado exclusivo de «cabeça». De então para cá o vocábulo adquiriu valor diferente, como se está vendo. Foi possivelmente a imagem do pobre provinciano, que chega a Lisboa de trouxa às costas e com ar aparvalhado, que criou a nova significação da palavra. Ela já está devidamente arquivada, com o seu sentido actual, no mais completo repositório de gíria portuguesa moderna, que é o Dicionário de calão (1959), da autoria de Albino Lapa.

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Por conseguinte, o conhecimento da gíria é indispensável para quem escreve e para quem lê. Quem escreve não pode representar um carroceiro ou um simples homem do povo falando como um marquês. Os homens têm a linguagem do seu meio, da sua profissão. Dize-me como falas, dir-te-ei o lugar que ocupas na sociedade. Por outro lado, o leitor que desconheça o vocabulário giriático pode encontrar sérias dificuldades na interpretação de livros que conduzam aos meios sociais em que se fala essa linguagem. O romance moderno realista procura justamente dar ao vivo o falar das suas personagens, reforçando com isso a evocação do ambiente. 4. O provincianismo. - Quando falamos em «povo», não podemos razoavelmente circunscrever este termo à população que habita nas cidades, onde se desenvolvem, por via de regra, a gíria e o calão. O povo das aldeias também fala a sua língua, que, na escolha do vocabulário, na alteração fonética da palavra e na construção da frase, se afasta não pouco do idioma da cidade. Os dicionários correntes não trazem todos esses termos e locuções; mas os escritores mais impregnados de vida regional colhem às mãos-cheias nessa abundante e pitoresca seara de modismos provincianos. No vocabulário de Camilo nota-se a influência do falar minhoto, o de Fialho está cheio de alente] anismos, e no de Aquilino Ribeiro transparece o falar da Beira. Vejamos um pequeno trecho deste último escritor, tirado da novela O burro do senhor seu dono: «Ouça, senhor juiz, eu vinha do Castelo com... os potes do leite vazios, quando arriba da Corujeira, ao atravessar a sombra dos soutos, o safado do corpo me pediu sesta. Caía uma caloraça, que o chão deitava lume. E vai, tirei o aparelho ao animal, que parecia tão agravado como eu e assim espontaria mais a seu gosto ervas e estevas, que para ali crescem à desmedida. Estendi-me ao comprido - o burro era um borrego, a mansidão em pessoa, tanto mais que ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 73

lhe haviam cortado os vícios de novinho - e pus-me a olhar para o fumdo do chapéu, que era de palha e havia prantado decima da cara, por via das moscas. Ora, mal comecei a dar voltas aos negalhos, em menos de avemaria dormia como um santo. Acordei com o sol a queimar-me a testa que nem brasa viva. Lanço olhos em redor, burro que é dele? Iria para a loja o alma de Barzabum?»

Como se vê, os termos regionais dão colorido especial à fala do homenzinho. Os vocábulos e locuções em itálico evocam certo meio popular e provinciano. Um homem da cidade não falaria assim. Logo, quem escreve é levado naturalmente a pôr na boca das personagens a língua que lhes é própria. E muitas vezes até os escritores não se desprezam de empregar no seu estilo pessoal muitos desses modos de dizer provincianos, tão cheios de força expressiva. A linguagem popular, quer citadina, quer regional, é sempre uma preciosa mina para quem souber cavar nela com acerto. Essa escolha deverá ser feita sempre com bom senso e bom gosto, de modo que os provincianismos não sejam tantos nem tão cerrados de sentido que possam dificultar gravemente a compreensão do texto. 5. O vocabulário usual. - Vamos fazer um exercício que mostrará ao leitor a extensão do vocabulário corrente, maior ou menor segumdo as pessoas, mas muito reduzido, se o compararmos à totalidade das palavras portuguesas registadas nos dicionários mais completos. Escolhemos a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e limitamo-nos aos vocábulos que vão de atento a aterrado. São ao todo 40 nomes comums. Dessas palavras só uma meia dúzia, ou pouco mais,

pertencem à linguagem de todos os dias. São elas: atento, atenuado, atenuante, atenuar, aterradamente, aterrado. E, se ainda considerarmos que atenuado, atenuante e aterrada mente são propriamente derivações de atenuar e aterrado, verificamos com surpresa que a meia dúzia se reduz a três: atento, atenuar, aterrado. Três palavras de uso comum,

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não há dúvida, mas com valor desigual: sentimos perfeitamente que atenuar é palavra mais literária que as outras duas. Os restantes vocábulos podem dividir-se nos seguintes grupos: 1. Palavras conhecidas, mas de emprego menos frequente: atenuação, atenuadamente, atenuador, atenuar-se, atenuafivo, atenuável, aiequi (até aqui, - expressão apenas oral); 2. Palavras pouco conhecidas ou antiquadas: atericiado, atericiar, atericiar-se, atermado, atermar, atermar-se;

3. Palavras desconhecidas com carácter regional: atequipêra, aterlondrar; 4. Palavras técnicas, geralmente desconhecidas: aterandra, aterantera, ateríceros, atereba, aterina, aterinídeos, atérix, atermal, atermancia, atermaneidade, atérmano, atérmico, aterolépsis, ateroma, ateromasia, ateromatoso, aíeropogão, aterosperma, aterospérmeas.

Feito este exame de consciência lexical, reconhecemos a nossa ignorância em matéria de vocabulário; mas em breve nos consolamos, se repararmos nisto: os termos cujo sentido nos escapa são os que têm carácter técnico muito especial (terminologia da botânica, da zoologia e da medicina), os de natureza regional, e enfim os vocábulos antiquados, de circulação restrita. Ao leitor sucederá o mesmo que sucedeu a nós. Não se desespere com a sua ignorância das «palavras difíceis». Por via de regra, são absolutamente inúteis para o estilo, que deve evitar sempre o palavrão técnico, arrevesado e inexpressivo. O manejo acertado do vocabulário usual é que verdadeiramente importa. A esse, sim, deverá dedicar a mais escrupulosa atenção. 5. FRASEOLOGIA. O CLICHÉ

1. Os grupos fraseológicos. - No capítulo i, a propósito do significado das palavras, vimos os vários sentidos em que se emprega o termo cabeça. Contudo, em certos casos, nota-se claramente que esse vocábulo só adquire o seu verdadeiro significado quando em ligação com outros elementos do contexto. Por exemplo, nesta frase - O homem perdeu por completo a cabeça - é impossível separar o elemento cabeça do artigo e do verbo: perder a cabeça forma um todo, uma estrutura, que não se pode decompor nas suas partes. Se nos déssemos a esse trabalho de análise minuciosa, chegaríamos a um absurdo: com efeito, nós podemos perder um lenço, um documento, mas não podemos perder, com vida, a cabeça, a parte superior do corpo. Só em sentido figurado o poderemos admitir. No outro exemplo, referido no mesmo capítulo, temos: «Deu-lhe agora na cabeça fazer

versos». O sentido não está só concentrado em cabeça. O vocábulo, por si só, pouco ou nada representa. O que vale verdadeiramente é o conjumto, a locução dar na cabeça a alguém, para designar um capricho súbito, momentâneo. Sem sairmos desta palavra, vejamos ainda outro exemplo: «o Francisco é um cabeça no ar». O espírito apreende logo o grupo cabeça no ar como formando uma umidade de pensamento, equivalente a «estouvado», «tonto», «leviano». Quando pronumciamos ou ouvimos essa locução, não tomamos à letra esse modo de dizer, vendo uma cabeça andando pelos ares. Todos os elementos do grupo

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concorrem para nos darem uma ideia única; as partes componentes sacrificam o seu significado individual em benefício do conjumto. Tanto assim é, que a própria locução é considerada um nome masculino: a palavra cabeça até perde, ou pode perder, a favor do grupo, o seu género feminino. Temos pois, nos exemplos referidos, a confirmação dum facto já várias vezes apontado: as palavras não levam vida isolada, dependem mais ou menos umas das outras. E assim como nas nações os indivíduos perdem um tanto da sua personalidade em prol do bem comum, também na linguagem os vocábulos perdem a sua fisionomia, quando aparecem integrados numa locução. O nosso pensamento não se faz tanto por palavras como por frases; e como o homem tende a economizar o seu esforço, acha vantagem em que as palavras lhe ocorram por grupos, para as suas necessidades de expressão. E mais vantagem ainda, quando esses grupos já vêm formados desde o passado da língua, em. frases feitas. Chamamos portanto grupos fraseológicos, idiotismos, frases feitas ou locuções estereotipadas a esses conjumtos de palavras, em que os elementos andam mais ou menos intimamente ligados, para exprimirem determinada ideia. A designação de grupo fraseológico é mais geral, a que melhor convém; as duas últimas já presumem certo grau de cristalização, que nem todos os grupos possuem, como veremos. 2. Séries e umidades fraseológicas. - A ligação entre os elementos do grupo pode ser mais ou menos íntima. Há grupos que se formam de momento, e logo após não deixam vestígios; outros que resistem um pouco mais; outros, enfim, que formam um todo compacto, inalterável. Vamos ver exemplos que demonstram os vários graus de coesão entre as partes do grupo: 1. O José tem um cavalo. 2. O João tem automóvel. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 77

3. Esse homem tem fortuna.

4. Tem cuidado, não vás lá! 5. Ninguém tem nada com isso. 6. Foi ter com ele à festa. No primeiro exemplo, o verbo ter, com o sentido normal de «possuir», conserva independência em relação a cavalo. No segumdo exemplo, essa autonomia já foi afectada um pouco. A falta de artigo contribui sem dúvida para ligar mais o verbo ao substantivo; ter automóvel tende em nosso espírito para formar certa umidade de pensamento, porque ao facto simples da posse anda ligada uma ideia acessória de suficiência, de abastança. No terceiro exemplo, o verbo ter fortuna já não nos causa embaraço: é evidentemente uma locução fraseológica, imposta pelo uso vivo da língua, que corresponde no nosso espírito a «ser rico». Contudo, reparando bem, ainda os dois elementos, ter e fortuna, não perderam por completo a sua independência. Ter ainda conserva o significado próprio de «possuir».

No quarto exemplo já se não dá o mesmo: os dois vocábulos estão mais estreitamente soldados; e se cuidado guarda ainda um pouco da sua significação, o verbo ter já variou de sentido. Tanto assim, que por vezes se substitui por «tomar»: toma cuidado. No quinto exemplo, a locução - não tem nada com isso - é extremamente confusa, se nos dermos à pachorra de analisar um por um os seus elementos. Parece faltar ali qualquer coisa. Efectivamente, o grupo deverá ser uma condensação dum outro mais explícito: não tem nada que ver com isso. Agora está mais claro; mas, ainda assim, o idiotismo só atinge a perfeita significação, considerado no seu conjunto; os elementos de que se compõe por si só pouco nos dizem. Enfim, no sexto exemplo alcança-se o cúmulo da extravagância

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e do absurdo: ir ter com significa «dirigir-se a um lugar, com tenção de se reumir a outra pessoa». O milagre da língua consegue exprimir sinteticamente, por três palavrinhas, esta ideia complicada. E o mais extraordinário é que o realiza perfeitamente, através de uma ligação quase inacreditável, como é a daqueles três vocábulos. Os grupos em que a coesão dos termos é apenas relativa chamam-se, em Estilística, séries fraseológicas. Estão neste caso os n.os 2 e 3 dos exemplos acima referidos. Aqueles em que essa coesão é absoluta são conhecidos por umidades fraseológicas. Entram nessa categoria os n.os 4, 5 e 6. Convém todavia observar que os limites entre uma e outra categoria nem sempre se definem com perfeita nitidez. O exame das locuções estereotipadas conduz-nos portanto a esta conclusão, que não deixa de ser curiosa: não há dúvida que o homem diz, quando fala e quando escreve, coisas perfeitamente absurdas. O que lhe vale é não atender às palavras isoladas, mas à estrutura, à locução fraseológica. E a sua desculpa está em que não foi ele quem inventou esses modos de dizer: encontrou-os feitos, para designar coisas certas e comums, e utiliza-os, porque lhe poupam muito trabalho. A vida é assim constituída: pela herança passiva e cómoda do passado e pela criação activa e por vezes revolta do presente. Estas duas forças presidem a todo o trabalho da linguagem, como temos visto e veremos ainda neste capítulo. 3. Vestígios arcaicos nos grupos fraseológicos. - Se as locuções estereotipadas são uma herança do passado, necessariamente haverão de conter arcaísmos, quer de vocabulário, quer de construção. Suponhamos este grupo -- estar de viseira caída. Percebemos muito bem o sentido geral da frase: «estar com ar carrancudo, zangado». Esse termo transporta-nos à Idade Média, à época em que os cavaleiros se vestiam de ferro e cobriam o rosto com a viseira. Quando ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 79

a viseira estava caída, era sinal de que o guerreiro, não decerto sorridente, se aprontava para a luta. Aqui está, em miúdos, explicado o sentido da locução. Mas quem fala ou escreve não precisa de ir à história para apreender-lhe o significado. Esse significado, afectando todos os elementos do grupo, apresenta-se ainda ao espírito de um modo bem preciso. É possível porém que o idiotismo, pelo seu carácter arcaico, não dure muito tempo. Hoje já ums lhe preferem «estar de carranca», «estar trombudo», que são mais populares e menos literários. Outro exemplo: fazer alarde de alguma coisa. Todos sabemos que a frase significa «exibir, ostentar com afectação e vaidade». Mas aquele vocábulo alarde é-nos um pouco estranho, embora o encontremos no verbo derivado alardear. O dicionário diz-nos que alardo (é esta a forma primitiva da palavra) era a revista anual que se fazia às tropas, para verificar do seu número, do estado dos homens e das armas que traziam. Nessa parada, que conduz também à Idade Média, o peão e o cavaleiro exibiam com orgulho as suas armas e as suas pessoas. Se o leitor, curioso de se instruir, quiser formar ideia de um alardo medieval, não tem mais que ler a soberba página literária, escrita por Fernão Lopes sobre o alardo da Valariça, em tempo de D. João I (x). Nos dois exemplos, que apresentamos, ainda com boa vontade se poderia considerar o vocábulo arcaico como susceptível de se libertar do contexto. Na verdade, o historiador ou o romancista histórico podem

perfeitamente escrever: «O cavaleiro, pondo a viseira, preparava-se para a refrega». Já um pouco mais difícil será alguém escrever: «O excessivo alarde de imaginárias prendas desagradou ao pai do noivo». É que o vocábulo alarde, irresistivelmente, (1) Nos Quadros da Crónica de D. João I. Colecção de «Clássicos do Estudante» de Sá da Costa Editora.

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chama a si o v>o fazer, com que está intimamente soldado. Dificilme; poderá andar à solta. Essa imposalidade de libertação aparece, por exemplo, no grupo Teológico, nitidamente arcaizante, à guisa de, já nosso conhEcido, ou na locução desta guisa, ainda usada, por exenplo, em Euclides da Cumha. Aqui, todos os elementos sãde tal forma solidários, que não podem separar-se. No tipo de D. João I ainda se podia escrever: «de muitas guisc&e diz esta sentença». Guisa é um velho substantivo por;uês, de origem germânica, que significava «maneira, ido». Se fôssemos a dizer ou a escrever hoje qualquer ca como isto - «Não gosto das guisas de Fulano» - era ia gargalhada geral, e o pobre que tal dissesse ou esciesse arriscava-se a ser internado numa casa de saúde, mvém aliás frisar que a locução à guisa de = «à maneiras», já é de uso muito restrito, puramente literário e muito conectado. Por isso, se usa muitas vezes com fins humorístico! Em outros os essa impossibilidade de separação ainda é mais evidentoorque a palavra que forma o núcleo do grupo é de origemcerta e significado obscuro. Tomemos por exemplo esta loção, ainda hoje muito popular: andar numa fona. Tem, conse sabe, a significação de «andar numa roda-viva, sem ccansar, à lufa-lufa». Que significa aquele elemento fona? egumdo os dicionários, fona é a faúlha que se desprendlo lume e volita no ar, já apagada e em forma de cinza.0 termo parece ter origem germânica; teria vindo do tico fon = lume. O certo é que, salvo nalgum recanto rovinciano, ninguém hoje o emprega, a não ser inserido iruele grupo fraseológico. Aquilino Ribeiro porém chamou-ce novo à vida, desenterrando-o do léxico beirão: «Optarapela caçoila, resguardada das fonas pelo testo» (Volfrâmt 197). Outras locuçõess sinónimas de andar numa fona também conservam arcaísmos: andar num virote e andar num badanalESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA gl

Virote era a pequena seta que despediam os besteiros na Idade Média. Se supuséssemos que uma pessoa pudesse andar às cavalitas num desses instrumentos de atirar, facilmente imaginamos que andasse bem ligeira. Assim se explicará talvez a locução. O termo badanal, existente na outra, não tem significado claro; hoje ninguém o emprega isoladamente. Supõe-se que seja termo hebraico, usado nos Salmos bíblicos. Como também badana designa uma tira pendente da roupa sacudida pelo vento, dessa imagem de confusão movimentada poderia ter resultado a expressão. É uma hipótese; ao certo ninguém sabe bem o que seja. O mesmo fenómeno de arcaísmo, impenetrável ou quase, se dá com outras locuções: de cor, a toda a brida, a trouxe-mouxe, nem chus nem bus, de bom grado, à toa, de lês a lês, à puridade, dar azo a, ter o mau sestro de, ao léu, etc. Não compreendemos o vocábulo isolado, nem é preciso: basta que compreendamos o sentido global da locução. Só esse tem importância. A demasiada insistência etimológica, como vimos, pode levar-nos a despropósitos. O passado da língua só tem valor, quando vivo ainda e aplicado ao presente. Na verdade, de que serviria ao aprendiz de redacção vir alguém dizer-lhe que o vocábulo cor é um velho galicismo e significa coração, conhecimento, consciência? Poderia ser para ele até um motivo de embaraço, porque a locução não tem hoje valor

sentimental e refere-se simplesmente a uma operação de memória. A não ser que lhe apontássemos para o verbo recordar, que ainda está ligado, pela forma e por um dos significados, a esse arcaísmo venerável. 4. Séries verbais. - Dos exemplos citados temos visto que o verbo desempenha papel importante na formação das locuções. A maior parte das vezes um verbo simples pode substituir-se por um grupo fraseológico, portador do mesmo significado: «decidir» = tomar a decisão de; «vencer» - alcançar vitória sobre; «acreditar» = dar crédito a; «combater» = dar 6 - Estilística

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combate a, etc. O verbo dar presta-se sobretudo a isso, como já notou com finura Caldas Aulete no seu Dicionário, o mais completo para o estudo fraseológico da língua. Nestas perífrases ainda aparece a palavra derivada ou primitiva, isto é, ainda se joga, no fumdo, com a mesma família vocabular : decidir - decisão; vencer - vitória; acreditar - crédito; combater - combate; mas o verbo dar emprega-se ainda com outros nomes, formando uma série perifrástica: dar pontos = coser; dar esperanças = prometer; dar indícios = revelar; dar às pernas = correr, etc. Como vemos, esta constituição de formas perifrásticas tem um duplo valor: permite variar o estilo, evitando repetições, e adoça ainda a crueza de certos verbos simples. A perífrase vale como uma espécie de eufemismo: não há dúvida de que tomar a resolução é menos brusco, menos violento do que resolver; dar crédito atenua um pouco a ideia de acreditar. A pessoa fina, de boa sociedade, não diz com rudeza: O senhor mente! - mas emprega uma série verbal eufemística: O senhor falta à verdade! A delicadeza leva muitos a dizerem deitar fora a comida, em vez do mais franco e brutal vomitar. As séries verbais são ainda curiosas por outro aspecto: basta uma ligeira alteração na série, a presença ou ausência duma preposição, dum artigo, a troca de um dos elementos, para o sentido mudar às vezes por completo. Vejamos estas séries: deitar à terra e deitar por terra, metidas numa frase: 1. O lavrador deitou à terra a semente. 2. O lutador deitou por terra o adversário. O sentido, como se vê, é totalmente diferente, e bastou para isso a simples troca da preposição. Suponhamos agora estas duas séries: dar motivo e dar por motivo. O acrescentamento da preposição dá à série ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 83

um significado bem diverso, como se vê destes dois exemplos: 1. Isso deu motivo a que ele o pusesse fora de casa. 2. Faltou, dando por motivo a sua pouca saúde. No primeiro exemplo há uma relação de consequência («dar motivo» = ter como consequência), no segumdo uma relação de causa («dar motivo» = dar como causa). Ainda um terceiro exemplo, que mostra como a presença do artigo dá menos coesão à série: 1. 2. Vê se dás o lugar a teu irmão.

O caso deu lugar a que desconfiassem dele. No primeiro exemplo, a relação entre os três elementos da série é bastante frouxa, quase conservam a sua independência. No segumdo, o desaparecimento do artigo trouxe como resultado uma perfeita coesão do grupo. É uma verdadeira umidade fraseológica. 5. Os dicionários e a fraseologia. - É precisamente neste capítulo da fraseologia, muito importante, que os dicionários correntes deixam mais a desejar. O mais celebrado de entre eles e o mais moderno dos grandes dicionários, o de Cândido de Figueiredo, é muito pobre em grupos fraseológicos, o que constitui grave defeito, porque é nessas locuções que se imprime o chamado génio da língua. Como repositório de fraseologia, interpretada com acerto e inteligência, nada há que possa substituir entre nós o Dicionário Contemporâneo de Caldas Aulete. Há também, do lado brasileiro, o Tesouro da fraseologia brasileira de Antenor Nascentes, que pode prestar serviços, embora não seja completo. Compreende-se, até certo ponto, a razão por que os

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dícionaristas evitam os grupos fraseológicos: é devido à extrema dificuldade da sua arrumação e até às vezes da sua determinação. Em que rubrica, por exemplo, se deve meter a locução vir a talho de foice? Em teoria, poderíamos pô-la em qualquer das três - vir, talho, foice, pois o sentido por todas se espalha, atingindo até as pequeninas preposições. Nas locuções arcaizantes a dificuldade ainda é maior. Assim, Cândido de Figueiredo, no Pequeno Dicionário regista cor e, sem mais explicações, manda ver de-cor. Ora, seria talvez mais rigoroso interpretar â locução na rubrica cor; por outro lado, isso não deixava de ser estranho, porque o termo cor há muitos séculos que desapareceu do uso da língua e só se conservou naquele idiotismo. É portanto nos dicionários analógicos onde os grupos encontram melhor guarida. Aí não se olha à forma, mas sim ao sentido. Nos «Dicionários analógicos» já citados por nós há grande abumdância deles; mas a mistura indiscriminada de idiotismos portugueses e brasileiros pode tomar difícil, como já dissemos, esse instrumento de consulta. 6. Séries usuais de intensidade. - Há uma outra categoria de grupos f raseológicos, que tem muita importância para o estilo: são os grupos usuais ou séries usuais de intensidade. Suponhamos que alguém está muito doente. A nossa tendência é para dizermos invariavelmente: «Fulano tem uma grave doença», ou então: «Fulano está gravemente doente». Os dois elementos doença-grave mantêm a sua autonomia, mas, por força do hábito, andam aqui ligados, para nos darem determinada representação. Alguém chora desesperadamente, diante de nós. Queremos qualificar a intensidade desse choro. Vem-nos logo à ideia um casal de palavras: choro convulsivo. Esses dois termos andavam associados no nosso espírito e acudiram prontamente à chamada. Para o caso contrário, dá-se o mesmo: «Fulano ria às gargalhadas-». A locução está prontinha ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 85

desde o tempo dos nossos avós, é expressiva, é cómoda, não temos mais que aplicá-la. Suponhamos agora que, numa roda de tagarelas, surge inopinadamente um facto que obriga a calar toda a gente. Não se ouve o zumbido de uma mosca, como é costume dizer. Se quisermos qualificar aquele silêncio, em linguagem fortemente literária, podemos escrever isto: «Fez-se na sala subitamente um silêncio sepulcral». Também poderíamos dizer silêncio profundo; mas aquele sepulcral dá uma nota mais intensiva, porque evoca o silêncio medonho dos cemitérios. O que se dá com o substantivo e o adjectivo, dá-se naturalmente com o adjectivo, com o verbo e o advérbio. Vejamos, por exemplo, esta série usual, que serve para as três categorias: 1. Sentiu com a notícia um abalo profundo. 2. Ficou profundamente abalado com essa notícia. 3. A triste notícia abalou-o profundamente. Repare-se bem agora para estes grupos usuais: ums são mais naturais do que outros. Quem tiver um

pouco de experiência e de gosto, logo distinguirá entre estas duas locuções: grave doença e silêncio sepulcral. A primeira série é corrente, impõe-se invariavelmente ao nosso uso; a segumda tem carácter literário, cheira a romantismo fúnebre, é exagerada, pretensiosa. Poderíamos substituí-la por outras locuções, menos pomposas e triviais. Por exemplo: a) Fez-se na sala subitamente um grande silêncio. b) »

»

» » » silêncio religioso.

c) »

»

»»»

»

constrangido.

d) De repente, tudo na sala ficou no mais absoluto silêncio.

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A frase é susceptível de muitas outras variações, se quisermos evitar o emprego dessas séries, pretensiosamente literárias, safadas pelo muito uso, a que se dá o nome de clichés, chapas, chavões. Para fugir precisamente à trivialidade do cliché, já Eça tinha escrito: «Houve um silêncio côncavo, hostil» (A Capital, 215); Rodrigues Migueis descobriu o adjectivo cavernoso (Fez-se na sala um silêncio cavernoso), Aquilino Ribeiro usa «silêncio de chumbo», «silêncio atrido», «silêncio absoluto e infesto»; e um grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, consegue belo efeito com um adjectivo banal, grande, posposto ao substantivo: «E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande» (Vidas secas, 2.a ed., pág. 9). Também usou, no mesmo romance, o adjectivo comprido, mas com menor poder de sugestão: «No silêncio comprido só se ouvia um rumor de asas». José Lins do Rego, num trecho de paisagem natal, experimenta o adjectivo bom, produto afectivo da saudade: «As cabreiras amarelas, e o bom silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alguma pedra escondida no roçado» (Doidinho, 6.a ed., pág. 156). Enfim, o escritor galego Méndez Ferrin descobre os adjectivos sólido e duro para a qualificação intensiva do substantivo: «Um silêncio sólido e duro ergueu-se como ua muralha» (O crepúsculo e as formigas, pág. 67). 7.

O «Dicionário poético» de Cândido Lusitano. - No

tempo da renovação arcádica, em 1765, foi publicada em Lisboa uma obra em dois volumes, com o seguinte título: Dicionário poético para uso dos que principiam a exercitar-se na poesia portuguesa. Obra igualmente útil ao orador principiante. Seu autor era Francisco José Freire, alcumhado poeticamente de Cândido Lusitano. Foi homem de sólidos conhecimentos linguísticos, e deixou-nos umas RefleESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

xões sobre a língua portuguesa, que ainda hoje se lêem com algum proveito. Por esse tempo, em que os poetas mendigavam com sonetos as migalhas que caíam das mesas dos fidalgos e dos conventos abastados, julgava-se que a língua era uma construção mais ou menos fixada pelo bom uso. Para se escrever bem, nada mais era necessário que seguir à risca o exemplo dos antigos, escolhendo no espólio das formas herdadas o que mais conviesse a cada um. Logo, um repositório que coleccionasse esse dizeres clássicos seria bem-vindo e faria, se não poetas de génio, ao menos escritores correctos. O Dicionário de Cândido Lusitano pretendeu alcançar esse fim. É um vocabulário de sinónimos e de séries usuais. São estas as que mais interessam ao nosso caso. Vejamos um exemplo. Sob o nome silêncio, o autor dá os seguintes adjectivos, que andam ou podem andar ligados a esse substantivo : Alto, profumdo, longo, secreto, fiel, fido, amigo, mudo, tácito, taciturno, nocturno, soporífero, plácido,

tranquilo, sábio, judicioso, cauto, acautelado, prudente, honesto, modesto, reverente, respeitoso, oportumo, discreto, ignorante, ignaro, estulto, estólido, fátuo, néscio, insano, intempestivo, indiscreto, obediente, paciente. _,

Vê-se logo o carácter convencional da série. Tirante alto, profundo, longo, nocturno, plácido e mais um ou outro, aqueles adjectivos estão ali um pouco forçados. Não constituem, em ligação com o substantivo, grupos usuais propriamente ditos. O autor propumha-os, para aliviar em tudo a tarefa do aprendiz das musas. O que mais nos impressiona hoje, ao lermos esse Dicionário, é a alteração que se fez, de então para cá, na escolha das séries usuais. As palavras também seguem a moda e também passam com ela. Na lista de Cândido Lusitano não vem o adjectivo sepulcral. Ainda não estava em uso, só veio depois com o Romantismo, que teve certa inclinação

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para o macabro. Também achamos de menos nela certos adjectivos empregados pelos escritores modernos, como augusto, religioso, absoluto, fino. Em compensação, Eça de Queiroz aproveitou o adjectivo alto, registado ao começo da lista, tirando dele belo efeito, por já não estar em uso: «A noite fazia um silêncio alto, duma melancolia plácida» (O Primo Basílio). Em batalha não vem encarniçada, em base não vem essencial, fundamental, em entusiasmo não se mencionam os adjectivos que formam hoje a série: delirante, indescritível. Enfim, os vocábulos dúvida, dor, noite, odor, sede desconhecem ainda os qualificativos que hoje costumam acompanhá-los: cruel; cruciante, pumgente; luarenta, enluarada; capitoso, inebriante; inextinguível. É assim: a linguagem está sempre em constante movimento, como a própria vida. 8. Camilo e as séries usuais. - Camilo, com o seu grande conhecimento da língua, não podia deixar de ver o que o grupo usual e o cliché têm de estafado e trivial. Numa crónica de 1858, observa o grande escritor com muita graça o problema das chapas consagradas: «Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos, quando vierem usados para os seguintes substantivos : Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; calumiador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso; o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recêmnascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 89

Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico, e a fortuma dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abumdante, ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todas as firmas da praça comercial serão sempre respeitáveis. O voto de qualquer parvoinho será sempre ilustrado; e mais depressa morrerá o cronista do que deixará de ser eloquente o discurso de qualquer Cícero fanhoso. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido, e terá tudo de bom». (CAMILO CASTELO BRANCO, Dispersos, m, 202-204.)

É natural que falte na lista o adjectivo ilustre, dado que o escritor nela mencionado era novato. A série está hoje tão aviltada, que se nomeia um homem de letras do nosso tempo, o qual, desgostoso do cliché, exigiu que os jornais o tratassem não por ilustre, mas por eminente ou egrégio escritor. Também do lado brasileiro temos a observação excelente dum grande criador de estilo, Monteiro Lobato, referida aos chavões de Bernardo Guimarães: «No Concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça •-• mas uma roça adjectivada por menina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas

viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas, invariáveis amenidades» (Cidades Aortas, 7.a ed., pág. 11).

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E um outro escritor brasileiro, Mário de Andrade, viu ainda melhor o caso: «Quando o romancista repete sem temor as mesmas palavras, mar verde, canto triste, e ajumta a palavra doce a dezenas de substantivos, as palavras tendem a perder o valor qualificativo e plástico, formam legítimas entidades sonoras e rítmicas sem sentido consciente específico, da mesma forma que os nomes de cidades e pessoas» (Empalhador de passarinho, pág. 127). 9. O cliché. - O emprego abusivo do cliché caracteriza quase todos os principiantes em trabalhos de estilo. Essas séries vocabulares ficaram-lhes no ouvido, através de más leituras, de carácter romântico, muitas vezes. Por preguiça mental enxertam esses grupos na redacção, que adquire um jeito pretensioso e falso, e diminui, é claro, de força expressiva. O estilo é uma permanente criação pessoal. Não aconselhamos o estudioso a evitar por completo as séries usuais, o que seria aliás difícil; e também é verdade que, em certos contextos, um escritor de marca pode dar-Ihes vida nova; mas prevenimo-lo contra o emprego assíduo do cliché, muleta ridícula de preguiçosos, duma trivialidade insuportável. Ver com os seus próprios olhos, sentir com os seus próprios sentidos deverá ser a divisa de todo o aprendiz de redacção. Suponhamos que esse aprendiz queria escrever uma fantasia árabe, descrever uma noite no deserto. O pobre rapaz numca saiu da sua pátria. A apagada imagem do deserto veio-lhe de algumas leituras de terceira ordem e talvez de alguma fita de cinema. com este material de segumda mão, desprovido de experiência, sem ninguém que o oriente, escreve talvez uma coisa parecida com isto: branda e suave da Lua. As estrelas, como milhões de pirilampos, estão disseminadas pela quietude misteriosa do firmamento. E no silêncio sepulcral do deserto, apenas cortado pela brisa rumorejante e dolente dos oásis, tudo parece contemplar o céu, meditando no enigma do infinito. Algumas poucas árvores frondosas erguem as copas altaneiras, como que orando a Deus pela solidão atroz que as envolve. Naquela noite alguém lhes faz companhia. É uma caravana. As tendas espalham-se pelo oásis, sob a abóbada das ramagens. Tudo parece dormir. Somente a Lua é cada vez mais brilhante e mais bela, fazendo da areia do deserto um manto branco de virgem a perder de vista nos horizontes longínquos».

Tudo neste trecho soa a falso - a falsidade das coisas que não são vistas nem sentidas directamente por nós. Os clichés são em número infinito, como as areias daquele deserto postiço: noite encantadora - o luar banha - raios argentinos - areal imenso - claridade branda da Lua - silêncio sepulcral - brisa rumorejante - contemplar o céu - meditar no enigma do infinito - árvores frondosas a erguer as copas - solidão atroz que as envolve - manto branco de virgem - horizontes longínquos. Uma série de locuções estafadas, de imagens corriqueiras, que, por isso mesmo, nos não produzem a menor impressão artística. A gente sorri-se do inexperiente autor, que procurou fazer estilo, seguindo precisamente o caminho contrário: não nos pôde dar os resultados da sua própria experiência, por não tê-la, e reproduziu apenas o que anda na boca ou nos bicos da pena de toda a gente. O efeito foi desastroso. «Noite encantadora! O luar banha com os seus raios argentinos o areal desértico e imenso. Tudo brilha e refulge sob a claridade

6. A FORMAÇÃO DAS PALAVRAS Já vimos, a propósito do neologismo, que só dificilmente se consegue criar palavras novas. A criação, na língua, se criação se pode chamar, faz-se sobretudo por transformação do material já existente ou sua utilização para outros fins expressivos. É essa transformação e os seus vários processos que vamos estudar em seguida. 1. A composição. - Repare-se nestes termos de uso comum: couve-flor, mão-cheia, verde-negro, porta-voz, recém-nascião, alçapão, louva-a-deus. Não é difícil de observar o processo de composição destas palavras: Em couve-flor, o segumdo substantivo determina o primeiro; é como se disséssemos: «couve com forma de flor», «couve florida». Efectivamente, nada mais próprio do que chamar couve-flor a esse legume apreciado. Os olhos do povo viram bem: entre todas as couves do couval só aquela se parecia com uma flor. E ficou assim designada. Há outra, repolhuda e oblonga. O povo chama-lhe pitorescamente coração-de-boi. Também é um nome composto. Em mão-cheia, temos intimamente ligados um substantivo e um adjectivo. Estamos vendo a origem da composição. Ao princípio, dir-se-ia: «Tinha as mãos cheias de flores». Depois, pela frequência do emprego e um pouco de imaginação, os dois termos fizeram corpo um com o outro e começou a dizer-se: «Atirou-lhe mãos cheias de flores». Os dois nomes andam hoje inteiramente soldados; a tal ponto que já mão-cheia se diz e escreve simplesmente mancheia. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 93

1 Em verde-negro jumtaram-se dois adjectivos para qualificar um dado colorido. As cores têm matizes complicados; por isso se compreende que, para a sua determinação, se haja de empregar uma mistura de adjectivos. Aquele verde-negro, como expressão de certa tonalidade, já hoje corre sob a forma de verdinegro. O vocábulo porta-voz dá-nos o exemplo da combinação, frequentíssima, do verbo com o substantivo. Note-se que o primeiro elemento-poria - não é português. Veio-nos da língua francesa e significa traz, leva. Porta-voz, à letra, quer dizer «traz a voz» e, em seguida, «o que exprime a opinião». Exemplo: «Esse jornal é o porta-voz do partido republicano». Em recém-nascido dá-se a ligação dum advérbio com um particípio passado. Recémnascido quer dizer «nascido recentemente». Paia a sua combinação com o particípio, o advérbio teve de sofrer uma forte redução, ficou mais curto. Este processo de composição, do advérbio ou preposições (ex. sobremesa) com os nomes, também é muitíssimo

empregado na nossa língua. A palavra alçapão compõe-se, embora não pareça, de dois elementos verbais: alça, do verbo alçar, isto é, «levantar» ; e pão, forma actualizada dum antigo pom, que significa «põe, abaixa». A forma arcaica era pois alça-pom, que se transformou em alçapão, como os demais nomes assim terminados : coraçom - coração. Deu-se isto, aproximadamente, no tempo do rei D. Duarte de Portugal. Enfim, o último exemplo, louva-a-deus, que designa, como se sabe, o interessante bichinho dos campos que parece postar-se em oração, com as hastes erguidas, já é, por assim dizer, um grupo fraseológico. Aliás, a evolução destas palavras compostas faz lembrar a das locuções fraseológicas: as partes de que se compõem perdem o seu próprio valor em benefício do conjumto.

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2. Compostos perfeitos e imperfeitos.-Reparemos agora para esses vocábulos que enumerámos e comentámos. A coesão entre os elementos formativos varia de ums para outros. Em couve-flor, os dois termos quase conservam a sua autonomia, em proporções iguais, o que é natural, tratando-se de dois substantivos. Em porta-voz, é o último elemento, voz, que chama mais a atenção e tem, por assim dizer, a responsabilidade da imagem. Em alçapão os dois elementos aglutinaram-se de tal modo, que a palavra é indivisível, sugere uma única representação e se comporta para todos os efeitos, como uma palavra simples. A esta espécie de composição costuma chamar-se composição perfeita, à outra imperfeita.

Todos os compostos tendem, mais ou menos, para a composição perfeita, e a língua costuma consagrar o facto, soldando os dois elementos numa palavra só. É o que está sucedendo ou já sucedeu commão-cheia~mancheia;verde-negro -- verdinegro; águaardente - aguardente; passa-poríe - passaporte, etc. Note-se que essa aglutinação traz, por via de regra, no falar português, uma ligeira alteração na pronúncia do vocábulo. Efectivamente, o termo passaporte nem sempre se pronumcia como passa-porte. O primeiro elemento, menos autónomo, tende a perder a sonoridade das suas vogais. É a sorte de todas as palavras proclíticas: mais um sacrifício das partes a favor do conjumto. Compreende-se agora porque poderá haver hesitações na grafia de algumas palavras compostas, como Alentejo, bendito, benfazejo, Benfica, benvindo, Bonfim, enquanto, etc. Os reformadores da ortografia portuguesa, em 1911, pronumciaram-se de um modo geral sobre a necessidade de não fazer excepções e escrever sistematicamente n antes de consoante que não fosse 6, p ou m. Mas o certo é que o Vocabulário Ortográfico de Gonçalves Viana, que, como se sabe, foi o relator da Comissão Ortográfica e seu vulto preponderante, regista ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 95

a maior parte daquelas palavras com as seguintes grafias: alemtejano, bemdito, bemfazejo, bemvindo, emfim, emquanto. É que o caso da vogal e era diferente, porque formava, ou podia formar, no falar lisboeta, em contacto com a consoante nasal, um dítongo nasal êi (= ai), que seria sinalado pela consoante m (em). Que significa isto? Que as realidades estão acima das teorias, e que meia dúzia de sábios, sentados a uma mesa, não podem contrariar as forças vivas da linguagem. Nesse tempo, aqueles compostos ainda não constituíam uma só umidade de pensamento. Ainda hoje não estão perfeitamente aglutinados, não são compostos perfeitos. Quando se diz bemvindo, o espírito ainda apreende na palavra duas ideias justapostas: a de bem + vindo, facto que a própria pronúncia traduz pelo ditongo nasal bãi no falar lisboeta, e se acentua com o

emprego do hífen, como sucede nos cartazes de propaganda de algumas firmas comerciais na estrada de São Paulo ao Rio de Janeiro: «Seja bem-vindo ao Rio». Nem todas estão porém no mesmo caso: em alentejano, enfim, o processo de aglutinação está mais adiantado; mas já em outros termos, como Benfica, benfazejo, há ainda quem os escreva, e com alguma razão, com m. Só quando se perder a consciência da sua composição, o que não estará talvez longe, será obrigatório escrever com n. Até lá, neste período de vacilações, as duas formas são aceitáveis e correspondem a certas preferências ou disposições individuais. É isso que os gramáticos nem sempre compreendem, porque o seu ideal é o espectáculo de uma língua imutável, sem excepções. Um deles, Costa Leão, autor dum útil Prontuário Ortográfico, defende as grafias com n e dá para Bonfim a seguinte razão: «Nos compostos Bonfim e Bonjardim, a vogal nasal on = om do primeiro elemento, bom, lê-se como em bondade, não havendo, portanto, motivo para se não seguir a regra, mudando o m em w». A realidade lin-

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guística, como se vê, não foi bem interpretada, porque a duplicidade da grafia provém da duplicidade semântica, duma «visão» mais ou menos nítida dos elementos da composição. Por isso talvez se justifiquem ainda as formas Bomfim e Bomjardim, a par de Bonfim e Bonjardim. 3. Os compostos literários e científicos. - Afora estes compostos orgânicos, que se formam com a prata-da-casa, a língua possui ainda meios extraordinários de composição de palavras, que lhe fornecem o latim e o grego. A esses antigos idiomas vai buscar um sem-número de elementos, com que fabrica novas palavras, por justaposição. Vejamos algums casos, tirados ou imitados do latim: agridoce, altissonante, alvinitente, artimanha, aurifulgente, barbirruivo, boquiaberto, cabisbaixo, carnívoro, curvilíneo, florilégio, floricultura, fratricídio, grandíloquo, herbívoro, lanifício, noctívago, petrificar, rarefazer, silvicultura, velocípede, ventríloquo, vermífugo, etc. A maior parte destes vocábulos são bem conhecidos e de fácil compreensão. O processo de justaposição é quase sempre o mesmo: os dois nomes são ligados um ao outro pela vogal i. Contudo, não são palavras da linguagem corrente, exceptuada uma ou outra, mais em voga: artimanha, cabisbaixo, carnívoro, lanifício. Não há dúvida, portanto, que estes compostos alatinados são sentidos por nós como palavras de uso especial e não corrente. Os compostos formados por via do grego têm carácter ainda mais restrito, técnico e científico, como vamos ver: aristocracia, autómato, braquicéfalo, cacofonia, cromografia, democracia, estenografia, filosofia, iconoclasta, megalomania, neurastenia, paquiderme, pirilampo, pirotécnico, plutocracia, taquigrafia. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 97

Tivemos o cuidado de escolher, entre todos os compostos gregos, os mais usuais. Ainda assim, é manifesto que se trata de formação literária, não popular. Se palavras como autómato, democracia, filosofia, pirilampo, já são do domínio corrente, isso deve-se ao seu frequente emprego na vida actual; mas sempre estas palavras são tidas como não familiares. Dirá o leitor: - Mas, então, é necessário saber grego e latim para conhecer o português? Não é, felizmente. Os dicionários usuais trazem a etimologia das palavras; de modo que os compostos literários são divididos e explicados nos seus elementos de formação. Por exemplo, em democracia são ainda perfeitamente sensíveis os dois termos: demos, povo, e kratia, poder, governo - isto é, «governo exercido pelo povo». O primeiro elemento entra em outras palavras de carácter científico, como demografia, demopsicologia; o segumdo em aristocracia, plutocracia. As boas gramáticas darão ao estudioso a significação dos elementos formativos das palavras compostas e derivadas, de origem latina e grega. O Dicionário de afixos e desinências do professor brasileiro Carlos Gois traz tudo isso por ordem alfabética; mas nada vale como a prática e o uso consciencioso do dicionário. A experiência habilitará a compreender esses elementos greco-latinos, sem precisão de saber as respectivas línguas. Aliás, esses termos gregos e latinos, quando são raros e de emprego especial, têm pouca ou

nenhuma importância para o estilo. Tirado da sua esfera, que é geralmente a erudição e a ciência, o palavrão técnico dificilmente convém numa página de literatura. É uma construção mais ou menos artificial; não desperta nem o sentimento nem a fantasia, que são, como temos dito, os principais domínios da Estilística. Contudo, um escritor do século xvm, Filinto Elísio, julgou dar relevo ao seu estilo, forjando compostos à custa 7 - Estilística

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do grego e do latim. Como era homem de mau gosto, saíram-lhe coisas arrevesadas como estas, que a língua justamente repudiou: «septí-cole Roma», «flamívomo alento», «regos frugíferos», «ebrifestante sumo», «ali-poiente cisne», etc. 4. A composição abstracta. - Os compostos correntes, formados pelo povo, ou adoptados francamente por ele, têm, por via de regra, carácter concreto. O povo não sabe lidar com abstracções e tende sempre a dar forma concreta às suas ideias. Já os literatos tendem mais para o abstracto, perdendo de vista muitas vezes as realidades concretas. Sobre o modelo popular de couve-flor imaginaram poder criar compostos abstractos, como amor-orgulho, beleza-novidade, beleza-espanto, parada-orgulho, vida-espírito, viãa-beleza, elegância-fio-de-prumo, etc. Estes exemplos são tirados do escritor Antero de Figueiredo, em cujo estilo se nota particular tendência para o composto abstracto. Sob o aspecto formal, a composição não levanta reparos; mas é discutível o efeito que produzem semelhantes criações; o que diz bem com palavras concretas, já não tem a mesma virtude com palavras abstractas. Vejamos dois exemplos: 1. Amamos com amor-orgulho o que é propriamente nosso. 2. Sou admiração ante a beleza-espanto dos formidáveis desfiladeiros. A maneira usual de escrever não é esta. Diríamos normalmente: Amamos com orgulhoso amor... -Fico admirado ante a beleza espantosa. E não é difícil notar que o emprego do adjectivo dá mais viveza e mais cor à imagem. O artista pretendeu dar maior intensidade à expressão; mas a justaposição dos dois abstractos não o ajudou. Essa aliança diminui, ao contrário, a força expressiva do composto. Em ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 99

couve-flor os olhos da imaginação pousam no objecto, vêem a couve e a flor. Em amor-orgulho a umião dos abstractos, longe de fortalecer, empalidece a imagem, gerando uma confusão entre os dois termos. Dois substantivos abstractos são dificilmente conciliáveis: prejudicam-se um ao outro, deixando inerte a fantasia. Há ainda, e esse recentíssímo, um outro tipo de composição, criado para explicar o sentido de certos termos mais ou menos misteriosos; desenvolve-se, pois, numa perífrase mais ou menos longa. Essa composição está representada no escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Veja-se este exemplo, em que a palavra destino, anteriormente referida, é depois desenrolada numa longa explicação que lhe determina exactamente os contomos: «Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida - detodas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer». (Sagarana, 5.a ed., pág. 123). Note-se que há uma tendência, criada pela técnica e pelo jornalismo, para a formação de compostos, em que um dos elementos é mais ou menos abstracto: escola-modelo, navio-chefe, camionetafantasma, parada-monstro. Esses nomes, contudo, já têm um ponto de apoio na palavra concreta:

ainda assim, os dois últimos são de gosto duvidoso e parecem mais uma criação de momento, arriscada a não vingar. Há na língua, ocultamente, um sentimento de proporção e beleza, nem sempre infalível, mas que condena todas as inovações que vão de encontro ao seu génio. Curioso, a esse respeito, é o caso do composto - navio-mãe para designar o navio portador dos mantimentos. A composição, aparentemente absurda, explica-se por uma imagem, que nos representa a mãe a dar de comer aos filhos. É por isso que se não diz navio-pai. Esta justaposição do masculino e feminino vem de longe, pois já nos princípios do século xvii se chamava galeão-capitânia ao navio principal duma frota.

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5. Os prefixos. - Outra maneira de formar palavras: coloca-se-lhes antes certos morfemas, a que se dá o nome de prefixos, destinados a modificar mais ou menos a significação primitiva. Antigamente, as palavras formadas por meio de prefixos entravam na categoria de palavras compostas, porque se via nessas partículas, com, contra, ante, etc., verdadeiros vocábulos, justapostos a outros. Logo, compadecer, contradita, alentejano, antepassado, eram de direito considerados como termos compostos. Como porém há prefixos com autonomia mais discutível - dês, ais, in, ré, etc., já hoje algums gramáticos consideram estas palavras, assim formadas, como derivadas por prefixação. As outras, formadas com auxílio de sufixos, partículas que se colocam depois, são derivadas por sufixação. O caso não tem a menor importância para o fim que pretendemos. O que importa é verificar a alteração semântica introduzida pelo prefixo, e ver se o vocábulo tem uma ou mais umidades. Assim, tomemos, por exemplo, a palavra desgraça. O termo comporta uma umidade de pensamento, sugere uma única imagem. O prefixo dês- passa despercebido, é como se pertencesse à primitiva palavra. Um erudito, é claro, vê as coisas de outro modo: decompõe a expressão dês + graça e explica, subindo às origens: «é a situação miserável de alguém que se encontra sem a graça de Deus». Vê pois duas umidades de pensamento no vocábulo: a ideia sugerida por graça (sentido mais ou menos religioso) e outra, negativa, suscitada pelo prefixo dês. Este instinto de decomposição, ou instinto etimológico, é já nosso conhecido e existe forçosamente em todo aquele que se entrega ao estudo e observação das palavras O trocadilho entre o simples e o composto, de que já falámos (sentir - consentir, vencer - convencer), não é mais que um dos aspectos dessa mesma tendência. Até onde chega esse instinto, num escritor de génio, poderá ver-se deste pequeno ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 101

trecho de Camilo, alusivo a ums retratos de pouca naturalidade: «Os retratos, que o poeta legendário denominou transumptos, são verdadeiramente sumptos «tomados», trans - «além do verossímil humano. São más caras aquelas!» (Dispersos, in, 215). Camilo decompôs a palavra nos seus dois elementos latinos, transumptos, e com eles fez o jogo do seu espírito. Outro exemplo deste mesmo instinto de decomposição é-nos dado nesta frase de Teixeira-Gomes: «Ah! eu compadeço a dor das sereias!...» O verbo compadecer é reflexo. De modo que deveríamos dizer: «Ah! eu compadeço-me da dor das sereias...» Mas o escritor sentiu a composição do verbo, desdobrou-o em duas umidades semânticas e criou um novo modo de expressão, traduzindo de forma abreviada esta noção complicada: «eu padeço jumtamente com as sereias a sua dor». Outro exemplo ainda: Ferreira de Castro escreveu feitos impares (= extraordinários). Em vez do usual impares, esdrúxulo, que evoca uma operação aritmética, usou a palavra como grave, o que dá

realce ao prefixo negativo in- e à palavra pares. Isso só foi possível pelo desdobramento dos elementos constitutivos da expressão. O mesmo se deu com o adjectivo ímpio, que muitos escritores preferiram ler ímpio. O processo lembra o de Filinto Elísio, no século xvm, o qual, para acentuar mais a ideia de negação, escrevia: in-consolado, separando por hífen o prefixo da palavra, a fim de lhe dar maior relevo. Aos escritores de talento ou génio são permitidas estas liberdades de criação; o aprendiz de estilo terá de se limitar a um papel mais modesto e desenvolver as suas aptidões

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dentro das realidades do idioma, sem alterar o valor das palavras, consagrado pelo uso. Mesmo dentro desta esfera terá inúmeras possibilidades de realizar a sua personalidade, sem atrevimentos excessivos, que o poderiam prejudicar. 6. Particularidades fonéticas da prefixação. - Algumas observações de natureza prática sobre prefixos: 1. A. Existem na língua algumas palavras começadas por a, uma espécie de prefixo a que se chama a prostétíco. A partícula foi principalmente usada na língua antiga: alagoa, arroído, alimpar, arrecear, alevantar, etc. De um modo geral, a língua moderna repudiou, como arcaizante, o a prostético, aliás em voga no linguajar plebeu de Portugal, Galiza e Brasil. Contudo, escritores actuais empregam-no, por vezes num tom vagamente humorístico, como neste passo de Teixeira-Gomes: «Pus-me a caminho, e logo o espírito se alimpou dos requentados azedumes». 2. ANTE, AN TI. Os dois prefixos têm significação diferente e origem diversa: ante vem do latim e designa anterioridade, precedência: anti vem do grego e exprime negação, antagonismo: antemuro, antepassado; antipático, anti-revolucionário. Quem não tem presente o valor destas duas partículas, é levado em algums casos a confumdi-las. Assim, há quem escreva erroneamente, seguindo por vezes um uso antigo: anticipar, antidatar, antidiluviano, etc. Corrija-se para antecipar, antedatar, antediluviano. 3. com. Antes de vogal e de /, m, n, e r, perde o elemento nasal (m): coevo, colaborar, comigo, conexão, correspondência. Ainda hoje há quem na leitura e até na escrita procure reconstituir a forma antiga: comigo, conrespondência. É o instinto etimológico em acção. Trabalho inútil: perdeu-se ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 103

ia a consciência do prefixo, e as palavras são tidas como simples, de uma só umidade. Hoie, a forma com só se usa antes de b ou p: combatente, compaixão. Há para isso uma razão fonética: os fonemas b e b labiais, procuram ter ao pé de si um fonema da mesma natureza; por isso se conserva o m também labial. Já quando com tem a seguir outro fonema, adopta a forma con: confiança conterrâneo, convivência. 4. DÊS, DIS. Deu-se uma confusão entre os dois prefixos, cuja origem e evolução, aliás, ainda não estão suficientemente esclarecidas. No tempo dos Clássicos e ainda não há muito, escrevia-se indiferentemente disvelo ou desvelo, dispender ou despender, disculpar ou desculpar, dissemelhante ou dessemelhante, dispertar ou despertar, etc, O dicionarista Morais condenava as grafias disparar, disfavor, disvelo, dissaborido, dispertador, etc., que denumciavam, dizia ele, «uma afectação mulheril, por tentar amolecer a pronúncia do es em is». Hoje o prefixo ais está em recuo, vencido pelo seu concorrente. Deve porém dizer-se que nos primeiros livros de Oliveira Martins se nota predilecção acentuada por ele, como se vê pelas

formas desacompanhado, disenvolvimento, etc. Esse morfema, além do seu significado de «dispersar», «separar», é usado com preferência na linguagem técnica, com sentido piorativo: dispepsia = má digestão, dispneia = respiração difícil, etc. Tem, nestes casos, origem grega. 5. IN, EN (EM). Também com estes dois prefixos se dão certas confusões; mas, evitadas já pela escrita, afectam sobretudo a língua falada. O prefixo in, que, para efeitos fonéticos, segue as normas do prefixo com, tinha no latim as significações que conserva em português - ideia negativa: inútil, infeliz, impróprio, etc., e sentido de direcção, movimento para dentro: irromper, ingerir, implantar.

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com este segumdo sentido, a linguagem corrente e popular converteu normalmente o in no prefixo en, em. Assim: embarcar, encovar, enterrar. De modo que o prefixo in é hoje empregado normalmente para formar antónimos e, com a segumda significação, palavras mais ou menos literárias: incorporar, imbricar, invólucro, incinerar, ingurgitar, intumescer. Não é pois de estranhar que, a pai destes termos, escrevamos ou possamos escrever as formas menos cultas: encorpar ar, embricar, envólucro, encinerar, engorgitar, entumescer. 6. PRÉ e PER. Houve também confusão entre estes dois prefixos, porque tanto pré como per podiam ter em latim significado superlativo. Assim, os Clássicos escreviam pertender, per ciar o. Ainda hoje é frequente esta confusão, como se pode ver nas duas formas, pergumtar e pregumtar, ambas toleradas não há muito tempo na ortografia oficial. 7. PRÉ e RE. Antes da reforma ortográfica de 1911, escreviam-se assim estes compostos: presentir, resaltar, resentir, etc. Contudo, pronumciavam-se com ss: é que se decompumha mentalmente o prefixo e a palavra simples, de muito conhecida que era. Já em preságio, a pronúncia oscila entre z e ss, porque, sendo o elemento ságio geralmente desconhecido, há tendência para ver na palavra uma só umidade de pensamento. No geral, o prefixo ré só aparece em palavras do fumdo antigo da língua. Escritores como Eça tentaram com ele novas criações, mas foram mal sucedidos: repenetrar, remergulhar, reenfiar, r eper correr, etc., são neologismos queirozianos, formados para evitar a perífrase «de novo», «outra vez», mas que a língua afinal veio a repudiar. 7. Os sufixos. - O estudo dos sufixos é mais importante ainda, em Estilística, que o dos prefixos. Estes acresESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 105

centam quase sempre à palavra simples uma ideia puramente intelectual: de lugar (antecâmara), de tempo (previsão), de companhia (concorrer), de negação (desfeito, impuro), de repetição (relembrar), etc. Pode, num ou noutro, haver um matiz ligeiramente afectivo, pois que os conceitos de negação, intensidade, etc., se acompanham não raro de movimentos da sensibilidade; mas, por via de regra, são instrumentos intelectuais e não propriamente afectivos. É nos sufixos que a descarga das paixões se dá com maior energia. Os sentimentos que vulgarmente agitam a nossa alma e que se resumem, afinal, no amor e na aversão que manifestamos de ordinário pelas coisas e pelas pessoas, reflectem-se perfeitamente em algums dos sufixos. É a esses que dedicaremos maior atenção. Suponhamos esta palavra - livro. Vejamos como algums sufixos a podem modificar sentimentalmente: 1. Lê este livrinho: contém preciosas lições. 2. Deu-lhe um livrito para ler nas suas horas vagas.

3. O pai repreendeu o filho por ler aquele livreco. 4. Na mesa, estava um livrório que ninguém lia. 5. Havia por toda a sala livralhada sem fim. 6. O seu saber para nada servia, era todo livresco. É curioso que, de todos os derivados de livro, mencionados pelos dicionários usuais, só dois não têm significado afectivo. São eles: livrete = livro pequeno, caderneta, e livreiro - o que trata com livros. Todos os outros têm, mais ou menos, valor sentimental. Daqui se vê a grande importância dos sufixos na nossa língua. Fomos sempre, em todos os tempos, homens sentimentais e escarnecedores. Os sufixos retraíam essa feição dupla e contraditória do nosso temperamento: delicadeza lírica e observação galhofeira e motejadora. No primeiro exemplo, o sufixo -inho deu à palavra não tanto um significado de pequenez, como mais ainda de

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ternura. Livrinho pode não ser um livro pequeno, pode ser um livro com as dimensões vulgares; mas é certamente coisa querida e apreciada. É verdade que o sufixo -inho serve para formar diminutivos; mas a noção de pequenez anda ligada geralmente em nosso espírito à de ternura, simpatia, graciosidade. É com esse sentido que empregamos ordinariamente o morfema. Paizinho, mãezinha, não querem dizer «pai pequeno», «mãe pequena», mas pai e mãe muito queridos. Jaime Cortesão captou perfeitamente este alcance poético do sufixo, como representante das misteriosas delicadezas do nosso sentimento: «Língua lírica, franciscana, repassada de ternura e de piedade, nenhuma outra é mais rica de diminutivos carinhosos. Duma criança diz-se quase sempre criancinha; duma mulher idosa, uma velhinha; e aos pobres dá-se-lhes logo esmola chamando-lhes pobrezinhos. Já na «Crónica dos frades menores», do século xiv, se chama assim aos pobres. Língua crepuscular, de confidência, apta em sumo grau às meias tintas, criou essa palavra, cheia de fragilidade e mimo, para a mulher adolescente - menina; do crepúsculo matinal dirá a manhãzinha; e quando a tarde cai ou a noite se ensombra, a tardinha ou a noitinha». (O humanismo umiversalista dos portugueses, pág. 75).

Como somos, porém, gente apaixonada, e facilmente vamos de um extremo ao outro, não é de surpreender que o mesmo sufixo evoque em nós sentimentos depreciativos. A pequenez física pode traduzir insuficiência moral. Por isso o povo diz: «Homem pequenino, ou velhaco ou bailarino». Veja-se a seguinte frase: «O homenzinho não está bom de cabeça». O sufixo -inho (aquele z é uma espécie de consoante de ligação, um infixo) dá um tom pejorativo à representação, alude depreciativamente à pequenez moral. Enfim, essa partícula, nos seus diferentes empregos afectivos, é uma das mais características da língua portuguesa e que melhor exprime a susceptibilidade algo feminina do nosso temperamento. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 107

No segumdo exemplo, limito significa «livro pequeno», sem mais complicações sentimentais, como pedrita e jardinziío significam «pedra e jardim pequenos». Mas reparamos bem que o sufixo acusa certa tendência para nos introduzir em sentimentos de brandura ou depreciação. Em todo o caso, não tem o valor afectivo do seu parceiro -inho. Note-se que, para fugir ao matiz sentimental deste sufixo (-inho), actualmente usam-se outros processos de diminutivação, recorrendo até ao estrangeirismo: mini-jornal, mini-saia, kitchenete (= pequena cozinha). Deste último há uma variante metafórica muito graciosa, cozinha de boneca, que só tem o inconveniente da sua longuidão. O sufixo -eco do terceiro exemplo não ilude ninguém; livreco é um mau livro, pelo qual se nutre desprezo ou antipatia. O mesmo sentido pejorativo experimentamos em jornaleco, padreco (ou padreca), malandreco, revisteca, etc. Em livrório já temos um sentido aumentativo. Como tudo quanto é grande tende para o disforme, não é de estranhar que ande ligada aos sufixos aumentativos uma certa representação de fealdade, de grotesco. Livrório significará um «livro grande, mas de pouco valor». Para exprimir a ideia de grandeza pura, não temos sufixo, neste caso. Não podemos criar livrão; se formarmos o derivado livralhaz, lá metemos, por via dos morfemas -alho e -az, um sentimento pejorativo. Positivamente, os livros grandes não nos merecem grande respeito; efectivamente, a nossa literatura abumda em calhamaços que não são das suas coisas mais interessantes.

No quinto exemplo, livralhada suscita em nós uma ideia colectiva, sugerida pelo sufixo -ada, e outra, depreciativa, representada pelo morfema -alho. Logo, em princípio, o vocábulo livralhada contém três umidades semânticas: conceito de livro -f- de mau livro -f- de muitos livros. Praticamente sucede que o segumdo conceito, inserido entre os dois, está mais apagado. Valem sobretudo o primeiro e o terceiro.

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Enfim, no sexto e último exemplo, introduzimos também um sentido desvalorativo, por meio do sufixo -esco. Evidentemente, «saber livresco» é sabedoria de pouco valor, extraída apenas dos livros e não da experiência da vida. Em palavras como grotesco, soldadesca, fradesco, pedantesco, etc., também se surpreende o mesmo intuito depreciativo. Já em principesco, cavalheiresco, dantesco, etc., se não dá o mesmo. Esta irregularidade de emprego provém talvez de que o morfema não é de origem nacional: veio-nos do italiano através do francês. Isto é uma leve amostra da extraordinária riqueza da nossa língua em sufixos expressivos. Há outros que dão à palavra cambiantes afectivos: -acho, -aço, -az, -ejo, -elho, -engo, -iço, -oco, -orro, -oia, -ote, -uco, -udo. São, para aqueles que conhecem os recursos da língua, um filão expressivo de primeira ordem. 8. O diminutivo na literatura. - De quanto fica exposto, vê-se o largo predomínio do sufixo diminutivo afectivo na nossa língua. Seria interessante acompanhar o emprego desse morfema expressivo através da literatura. Damos aqui apenas algums exemplos. Nos fins do século xv, princípios do século xvi, já Garcia de Resende empregava o sufixo -inho em tom de mofa, aludindo às escandalosas novidades do seu tempo em matéria de vestuário: Agora vemos capinhas, muito curtos pelotinhos, pois que tudo são cousinhas.

Não é a pequenez dimensional que exprime propriamente o sufixo; é o desdém do autor por essa moda estrangeirada, tão contrária aos velhos costumes portugueses. No século xvn foi falado o caso de certo frade que i ! í

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pregou por diminutivos num mosteiro de freiras. Quis lisonjear o sentimento das damas, e nada mais natural, na verdade, do que falar-lhes numa linguagem afectiva, lardeada de diminutivos de ternura, próprios das mulheres. No século xvni, Bocage ataca um poeta menor, Belohior Curvo Semedo, conhecido poeticamente por Belmiro, usando à larga o diminutivo da chacota e pequenez artística: Jumto ao Tejo, entre os tenros Amorinhos, as belmíricas musas pequeninas para agradar a estúpidas meninas haviam fabricado ums bonequinhos. com eles os travessos rapazinhos, que são mui folgazões e mui traquinas,

armaram mil subtis alicantinas ’ ’ e os lançaram depois nums bispotinhos. Eis tágide louçã, de ebúrneo colo, a quem não vencerá, por mais que lute, o nosso Belmirinho, anão de Apoio, Surge d’água e lhe diz: - Filhinho, escute, olhe com que notícia hoje o consolo: é poeta do rei de Lilipute!

Passando para o século xix, vemos Garrett descrever assim as moças pretensiosas: «Há umas certas boquinhas, gravezinhas e esprimidinhas pela doutorice, que são a mais aborrecidinha coisa e a mais pequinha que Deus permite fazer às suas criaturas fêmeas» (Viagens na minha terra, ed. 1963, pág. 86). E António Nobre compor o seu curioso soneto diminutivo, dirigido a um seu condiscípulo, por alcumha o Misco: Fazes-me pena, ao ver-te. Andas rotinho, como que envolto em transparente véu: pouco me falta para te ver nuzinho, pouco te falta para andar ao léu!

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Tens a batina, pálido Misquinho, cor da esperança... e tem a cor do breu... No entanto assim foi Cristo, em rapazinho, e hoje é o duque de Morny no céu! Por isso, ó flor ideal dos rapazitos, pacienciazinha, cose os farrapitos dessa batina. Toma a agulha e as linhas. Dar-te-ia, crê, meu lindo pequerrucho, uma das penas orientais - um luxo! se eu fosse Deus, o pai das andorinhas.

Aqui a terna amizade anda associada a um sorriso de doce ironia, que os diminutivos exprimem admiravelmente. É bem um produto do temperamento de António Nobre. Em Eça de Queiroz também encontramos o diminutivo utilizado em vários tons de significado. No trecho a seguir exprime a velhacaria, uma falsa, umtuosa doçura do negociante que quer impingir o seu produto. Trata-se do velho Abraão, judeu com loja de antiguidades, que pretende vender a Carlos da Maia um retrato de espanhola, a que ele chamou uma «maravilhazinha». Carlos ofereceu dez tostões. O judeu, «num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca dum só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores». Dez tostõezinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortumy, valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse uomezinho bemdito... Ainda assim valia dez notazinhas de vinte mil réis... - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! - exclamou Carlos. E saíram, deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...». - Os Maias, ed. de 1945, i, 199.

O beato Libaninho, do Crime do Padre Amaro, fala por diminutivos, que dão aos seus dizeres um tom de efeminada ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

hipocrisia: - Ai, sossega, leãozinho! Não te percas, filhinho! Por isso se diz, num romance de Érico Veríssimo: «Há coisinhas, palavrinhas, sorrisinhos, que ferem, que irritam, que fazem mal». (Clarissa, 3.a ed., pág. 48). No estranho e belo soneto de Camilo Pessanha, Singra o navio, também os diminutivos formam a atmosfera da poesia e lhe dão um tom de ironia profumda e macabra: Seixinhos da mais alva porcelana, conchinhas tenuemente cor-de-rosa, na fria transparência luminosa repousam, fumdos, sob a água plana. E a vista sonda, reconstrui, compara: tantos naufrágios, perdições, destroços! Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas conchinhas que a maré partira... dentinhos que o vaivém desengastara... conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

O sorriso doloroso e cruel do poeta perante a ruína fatal de quanto é belo no mumdo traduz-se maravilhosamente no uso daqueles diminutivos de ternura desdenhosa. Enfim, no século xx, encontramos o sufixo arvorado em adjectivo, com o significado de «afectuoso», como se vê deste passo de Alves Redol, não se sabendo propriamente se é criação sua, ou se é transplante do falar ribatejano do autor: «Os tempos, porém, iam duros. Onde andava agora a doçura tradicional da nossa gente, tão brandinha, tão -inhazinha?» (Barranco de cegos, 3.a ed., pág. 407). Mas as manifestações de ternura caracterizam-se por sua intensidade e natural exagero. Era pois inevitável que também se apegasse ao sufixo um efeito superlativante. Os advérbios foram largamente afectados, na linguagem popular, por tal superlativação. Assim, o povo diz: «Ela mora per-

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linho de minha casa». Como quem dissesse: muito perto de minha casa. E o mesmo processo se estendeu a outros advérbios, como agorinha, jàzinho, etc. Os escritores souberam aproveitar esses modos de dizer, como se vê neste passo de Machado de Assis: «Um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca». (Várias Histórias, ed. de 1955, pág. 69). E um escritor galego, Xavier Alcalá, numa crónica de jornal (El Ideal Gallego, 25/7/78), não duvidou colar o sufixo ao gerúndio para traduzir a marcha do tempo, que deslisa suave e incessantemente: «A vila vai morrendo, morrendinho». 9. A história de «carrilhanor». - É necessário que o estudioso possua o sentimento da língua e respeite, dentro dos limites do razoável, o seu génio. Evitará com isso incidir em erros e em disparates, como aquele de que lhe vamos dar conta. Há anos foram restaurados os célebres carrilhões de Mafra. Contrataram na Bélgica um artista, especialista em carrilhões, que os pôs a tocar boa música. Os jornalistas, perante a novidade da coisa, tiveram um momento de dificuldade. Como chamar ao homem? A palavra sineiro era simples de mais para designar aquela arte complicada, que exigia um músico profissional. Os nossos gazeteiros não hesitciram grandemente. Tinham a palavra francesa carrillonneur. Foram-se a ela e formaram esta lindeza, que chegou a ter certa voga nos jornais: carrilhanor. Este erro não tem perdão, porque denota preguiça mental e a mais grosseira ignorância do génio da língua. Um homem do povo numca seria capaz de formar semelhante desconchavo. Se lhe pergumtassem: - Olhe cá, como se chama o homem que trata e toca os carrilhões ? - responderia, sem hesitar: - Ora essa, chama-se o carrilhoeiro ! Teria mostrado com isso conhecer melhor o português que o pobre jornalista alfacinha, ignorante do idioma. Efectivamente, se ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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a uma planta que dá feijões se chama feijoeiro, um homem que dá pregões se diz pregoeiro, aquele que trata de carrilhões deverá sem dúvida nenhuma chamar-se carrilhoeiro. Quer-se afidalgar um pouco mais o termo ? Chame-se-Ihe carrilhoneiro; assim pode ser, pois que ao que governa o leme ou o timão também se dá o nome de timoneiro. Enfim, tudo, menos aquele monstrozinho derivado à pressa do francês. 8 - Estilística

7.

O ARTIGO E OS NOMES 1. Valor estilístico do artigo. - É o artigo uma palavra pequenina, de aparência insignificante. Em realidade, tem grande valor expressivo, como veremos. Até poderíamos fazer dele um só capítulo, dada a abumdância do material. Preferimos contudo jumtá-lo aos nomes (adjectivos e substantivos), dos quais é praticamente inseparável. Vejamos estas duas f i ases: 1. Camões, grande poeta português, morreu pobre. 2. Camões, o grande poeta português, morreu pobre. As duas frases não têm igual valoi. Na segumda, aquele artigo teve como efeito lançar sobre a representação mais visualidade e mais familiaridade. Como quem diz: «Camões, o grande poeta que nós todos conhecemos e estimamos, morreu pobre». Se repararmos bem na frase, veremos que é essa a sua significação. Tudo isso se conseguiu por meio desse pequenino morfema. Outro caso interessante, embora já diferente: 1. F. ensina modeinos processos de leitura. 2. F. ensina os modernos processos de leitura. No primeiro exemplo, queremos significar que F. ensina algums processos modernos de leitura. No segumdo, que ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 115

ensina todos esses processos. No primeiro caso, a ausência do artigo conferiu à frase um sentido partitivo; já no outro, o emprego do morfema deu à representação um sentido totalitário. Vemos, portanto, só destes exemplos, que o artigo tem um valor estilístico que não é para desprezar de modo nenhum. 2. Noção geral do artigo definido. - Nos exemplos citados, o artigo tinha uma posição especial, pois estava imediatamente seguido do adjectivo e não propriamente do substantivo. Além disso, no primeiro grupo de frases encontrava-se em aposição, isto é, determinando um substantivo (poeta), qualificativo de outro (Camões). Vejamos agora três casos fumdamentais e simples do emprego ou omissão do artigo definido com um mesmo substantivo: 1. O homem é acanhado. 2. O homem é mortal. 3. Homem não é o mesmo que dizer herói nem santo.

No primeiro exemplo, referimo-nos a determinado indivíduo, dentro duma categoria superior que é o género humano. Contudo, estamos vendo esse indivíduo, concretamente, sem nos preocuparmos com o género a que pertence. É o homem «que ali está», «aquele homem». No segumdo exemplo, dá-se o fenómeno contrário: aludimos ao género, à soma dos indivíduos que compõem a humanidade, sem vermos corporeamente o indivíduo. Temos uma impressão de quantidade, de coisa colectiva, como se disséssemos: «Todos os homens são mortais». No terceiro exemplo, referimo-nos ainda ao género, à classe; mas a noção quantitativa do segumdo dá agora lugar a uma noção qualitativa. Efectivamente, aludimos mais à qualidade do que ao próprio ser, como se disséssemos: «As

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fraquezas do homem nem sempre fazem dele um herói ou um santo». Logo, podemos de um modo geral dizer que o substantivo precedido do artigo definido se refere à coisa, ao objecto em si, considerado individualmente ou genericamente, como concreto ou como abstracto. Sem artigo, alude antes à ideia que formamos do objecto, à qualidade que lhe atribuímos. A diferença é sobretudo clara no 1.° e 3.° exemplos. No primeiro, o artigo conserva um valor de indicação, que lhe vem de ter sido antigamente pronome demonstrativo (Aquele homem é acanhado). No terceiro, como as qualidades em rigor se não apontam a dedo, omitiu-se o artigo. 3. A omissão do artigo definido. - Compreende-se que esta acentuação das qualidades dos objectos vá em geral acompanhada de um rebate de sentimento. Quase numca podemos realçar com serenidade as boas ou más qualidades de uma coisa; sempre lhe pomos um pouco do nosso afecto, da nossa paixão. Vejamos este exemplo: «Deixarás pai c mãe - diz a religião ao sacerdote». Poderíamos dizer de outras maneiras: o pai e a mãe, o teu pai e a tua mãe, um pai e uma mãe. Nenhuma delas possui a concisão enérgica, dramática, daquele modo de dizer, que acentua expressivamente, pela omissão do artigo, o valor daquilo que se deixa. Se invertermos a ordem dos elementos, a impressão será a mesma: ((Pai, mãe, esposa, filhos, - tudo deixou o pobre emigrante». O valor sentimental da omissão do artigo era reconhecido já dos antigos escritores. Eis como João de Barros se refere à morte do irmão de Vasco da Gama: «A morte do qual deu muita dor a Vasco da Gama, porque, além de perder irmão, tinha Paulo da Gama calidades pêra sentir sua morte quem dele tivesse conhecimento». É notável ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 117

aqui o carácter intensivo, afectuoso, do nome irmão desprovido de artigo. Como os nomes se referem sobretudo à essência, à qualidade dos seres nomeados, a série de substantivos sem artigo produz em nós certo choque afectivo. É pois natural que nestas séries a própria pontuação acompanhe o carácter sentimental do discurso. É o que se vê neste passo de Eça de Queiroz: «E sentia nele realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram no século xn, de sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para a manter, bens, contentamento e vida !» Repare-se nisto: se o substantivo sem artigo faz menção mais da qualidade que do objecto, tem dentro dele uma fumção de adjectivo, pois que compete sobretudo ao adjectivo a determinação do estado e da qualidade. É o que se dá neste caso: «Nessa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de montar, polainas de couro polido, luvas

de camurça branca, parou a égua ao portão da Feitosa». Vê-se perfeitamente o carácter adjectival daquelas duas frases não precedidas de artigo. com elas se qualifica a elegância do cavaleiro. E precisamente a ausência do morfema comumica à expressão certo tom entusiástico e admirativo, dá-lhe um timbre levemente sentimental. Em verdade, aqueles dois qualificativos parecem ser empregados até pelo próprio Fidalgo, contente de si próprio, remirando-se no seu donaire. O processo, como se vê, exige da parte do autor certo poder de simpatia, certa capacidade para entrar na pele das personagens que descreve. Efectivamente, se

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puséssemos a preposição antes da frase, já se perderia o efeito: «com polainas de couro polido e luvas de camurça branca». A frase adquiria um sentido mais serenamente descritivo e pertencia agora exclusivamente ao autor. 4. Abusos no emprego dos artigos. - A utilização do artigo constitui uma das delicadezas da língua, e nem sempre se verifica acertadamente nos melhores autores. Veja-se este passo de Eça, escritor grande entre os grandes, o maior estilista português, presente sempre no nosso trabalho: «Dizia o diplomata, no seu português fluente, mas o acento bárbaro». O escritor português foi atrás da construção francesa e atraiçoou, desta vez, o génio da língua. Mais portuguêsmente, empregaríamos neste caso a preposição: «ãe acento bárbaro», ou «com o acento bárbaro», sendo, em todo o caso, melhor a primeira forma que a segumda. Vejamos estoutra frase: «Contou, as lágrimas nos olhos, o seu imenso infortúnio». Aqui também o emprego do artigo definido parece ter carácter afrancesado. Melhor diríamos em bom português: - ((.com lágrimas nos olhos»; todavia essa construção, com valor de adjectivo ou de advérbio, já criou raízes, abonada como anda pelos melhores autores, que ora empregam a preposição, ora simplesmente o artigo. É de António Vieira o seguinte passo, que legitima esse modo de escrever: «Vinha descorado, macilento, as faces sumidas, os olhos encovados, a cabeça derrubada para a terra». E já antes dele, Francisco de Morais, que andou por França, escrevera no seu Palmeirim de Inglaterra: «dizendo em voz alta, o rosto alegre e risonho». ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 119

É talvez mais expressiva ainda a inversão dos elementos que põe o adjectivo em primeiro lugar, como neste passo de Ferreira de Castro: «um melro preto, trémula a cauda, olhava com desconfiança para todos os lados». Em vez do artigo definido, usa-se, mais raramente, nas descrições, o artigo indefinido. É também uma construção afrancesada, como se pode ver deste trecho de Guilherme Gama: «Entro na estalagem dando o braço à pequena Natália, essa rapariga boémia, pálida, de olheiras pintadas a bistre, um modo canalha no andar e no rir, e um génio em saber tirar-me do bolso todo o dinheiro das mesadas». O escritor brasileiro Jorge Amado jumta os dois processos, e pelo seguinte trecho logo se vê que o artigo indefinido é usado na descrição de costumes e estados morais: «E quando, por acaso, um navio largava, a terceira classe atestada de imigrantes, eles se

debruçavam todos no balaústre, uma inveja dos que, mais felizes, já partiam naquele navio, as mãos acenando tímidos adeuses, os olhos espichados na esteira do vapor». (Seara vermelha, 123). É bem visível no estilo moderno, sobretudo na descrição, certa repugnância pelas preposições, que marcam no geral relações lógicas, de inteligência e não de sentimento, entre as diferentes partes do discurso. A preposição com tem especial dureza, que desagrada a muitos escritores: por isso procuram afastá-la. O conhecimento científico da língua, a experiência e um pouco de bom gosto ajudarão o estudioso a escolher as melhores maneiras de exprimir-se, dentro das normas e feitio do idioma. Tresandam também a francês certos modos de escrever, nos quais se põe artigo nas exclamações. Exemplos: «O belo

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espectáculo!» «A deliciosa tarde!» Será talvez melhor omitir o artigo, ou substituí-lo por que: «Que belo espectáculo!» «Que deliciosa tarde!» Já com as expressões de tempo, o uso do artigo sem preposição é perfeitamente legítimo e de boa tradição portuguesa. Veja-se este passo de Fr. Luís de Sousa: «Era mancebo; partia por fim de outubro, o tempo doentio». E ainda este, de Tomás António Gonzaga, o conhecido poeta do século xvm: «As frias tardes, irei contigo ao prado florescente». Hoje diríamos de preferência, nestes dois casos: «com o tempo doentio», ou «em tempo doentio», «Nas frias tardes». Mas ainda hoje são correntes estes modos de dizer e escrever: «Esteve cá o Verão passado»; «dormiu bem a outra noite». 5.

O artigo e os nomes próprios.

exemplos: Notemos estes dois 1. Maria não se esquece numca dos seus deveres. 2. A Maria estuda aplicadamente as lições. A diferença salta aos olhos: no primeiro caso, a pessoa nomeada, referida embora com amizade, envolve-se de certa distinção, toma-se mais distante; no segumdo caso, a pessoa, apontada mentalmente pelo artigo, toma-se mais familiar. De aí, certa atmosfera afectiva, que banha sobretudo os nomes próprios precedidos do artigo definido. Os estrangeiros notam esta tendência do português para sensibilizar os nomes das pessoas, dando-lhes um ar caseiro: o Gama, o Eça, o Camilo, etc. E não só os estrangeiros, também os portugueses a acentuam, naturalmente, como se prova destes dizeres de Miguel Torga: «Quando se diz «o Augusto», ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 121

envolve-se logo o dono do nome num halo de intimidade, de estima, de respeito». (Pedras lavradas, l.a ed., 99). Contudo, a demasiada familiaridade com um homem pode trazer como resultado um aviltamento das suas qualidades. Por isso se diz hoje, não apenas com intimidade, mas com certo sentido displicente: o Camões, o Bocage, etc. No seu célebre soneto político a Eurico, personagem do romance de Herculano, Guerra Junqueiro escreveu: «Beija a Hermengarda, a tímida donzela». O verso ficaria talvez melhor sem aquele primeiro artigo; mas o autor quis dar à figura da irmã de Pelágio um aspecto familiar e cidadão. Aquele artigo definido é pois intencional e até irónico.

Suponha-se um repórter a fazer o relato de um julgamento. Se quiser verter um desprezo, tantas vezes injusto, sobre os desgraçados que respondem pelos seus erros, dirá assim: «O libelo termina dizendo que o José Fernandes e o Manuel Vicente são verdadeiramente culpados do furto dos cereais, pelo que pede a condenação dos réus». Estamos vendo qual o efeito deste modo de escrever. Os nomes sem artigo teriam uma distinção, imprópria de pobres réus de delito comum. Adornando-os de artigo, o jornalista carregou-os de intenção pejorativa, deu à expressão um cunho pessoal, de marcada malevolência. 6. O artigo nas enumerações. - Também nas enumerações o artigo desempenha importante papel expressivo. O desconhecimento do seu emprego pode mesmo dar motivo a equívocos. Veja-se esta frase: «Conferenciaram os chefes do exército alemão e italiano». Tal modo de dizer, «o exército alemão e italiano», poderia indicar um só exército, de alemães e italianos, reumidos sob uma bandeira. Para evitar equívocos, a língua dispõe do adjec-

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tivo composto: «o exército germano-italiano» ou «o exército ítalo-alemão». Se quisermos fazer a devida discriminação, diremos, com o artigo no plural: «os exércitos alemão e italiano», ou, repetindo o artigo: «o exército alemão e o italiano». Como se vê, a repetição do artigo nas enumerações acentua o valor de cada elemento da série, dá-lhe vida própria e distinta; se temos um só artigo para toda a enumeração, as diferenças de cada elemento são menos acusadas e só vale o todo. Nesta frase - «Os murros, bofetadas e pontapés choviam sobre o pobre homem» - temos uma representação global, um pouco confusa, das brutalidades a que foi submetido o homem. O nome, precedido do artigo (Os murros), posto à frente da série, assume grande importância, como chefe de fila. Portanto, o vocábulo portador da ideia fundamental ganhará em ser posto à frente da enumeração. Se quiséssemos avultar expressivamente, como que por ordem cronológica, salientando o seu valor, aquelas diferentes manifestações de brutalidade, diríamos: «Choveram então sobre o pobre homem os murros, as bofetadas e os pontapés». Esta repetição expressiva do artigo definido serve ainda para as séries de adjectivos, e produz belo efeito estilístico. Assim nesta frase: «O céu estava límpido: nem uma nuvem lhe desmanchava o vasto, o imaculado azul». A valorização dos adjectivos, um por um, por meio do artigo, toma mais luminosas e mais determinadas as duas representações. Teremos a prova disso, se não repetirmos o artigo e dissermos: «o vasto e imaculado azul». Perdeu-se o efeito, e as duas imagens apagaram-se e como se fundiram num todo. Resultou uma espécie de adjectivo composto, abstracto: vasfo-imaculado. Já vimos o fraco valor expressivo da composição abstracta. 7. O artigo indefinido.-A capacidade estilística do artigo indefinido está na imprecisão que dá às representações. Serve pois para traduzir a indeterminação e o mistério, como se vê por este trecho de Eça, em que se descrevem as hesitações dum arrendatário de aldeia: «O José Casco voltou ainda com a mulher; depois, num domingo, com a mulher e um compadre, - e era um coçar lento do queixo rapado, umas voltas desconfiadas em tomo da eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da tulha, que tomavam aquela manhã de junho intoleravelmente longa ao Fidalgo». Ora a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimentos da sensibilidade. É por isso que o artigo indefinido traduz muitas vezes os sobressaltos da alma, a intensidade obscura dos afectos. É um instrumento precioso para exprimir a complicação da alma moderna, o seu carácter impressionável. Os Clássicos empregavam-no com parcimónia; nós usamos e abusamos dele.

Suponhamos esta frase: «Para aproveitar a solidão favorável, apressou com um esforço a confidência que o comovia». Se disséssemos apenas «com esforço», não alcançaríamos o mesmo efeito. Aquele artigo dramatiza o caso, reforçando ao mesmo tempo a intensidade da representação. Eis porque esse morfema se emprega muitas vezes como uma espécie de superlativo. Exemplo: «Foi uma alegria, quando viu os pais». Entre o artigo e o nome subentende-se qualquer coisa como «grande», «enorme». A entoação com que se diz a frase contribui, é claro, para esse efeito superlativo; mas é bem visível que o morfema valoriza intensamente o nome a que se refere. Este emprego variado e subtil do artigo indefinido tem-se estendido irregularmente a outros casos, não autorizados

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pelos puristas, que, sempre com os olhos nos Clássicos, desejariam ver a língua no estado em que a deixaram um António Vieira ou um Manuel Bernardes. Um Clássico escreveria assim: «Pareceu-me aquilo sinal de pesar». Nós introduzimos hoje mais energia na frase, dizendo, com o artigo: «Pareceu-me aquilo um sinal de pesar». Mas ainda há hoje escritores que, levados por um exagerado conceito do purismo, mantêm o uso clássico da língua, tomados de verdadeira fobia pelo artigo indefinido. Um deles é Ferreira de Castro, do qual há frases como estas: «O navio rumou de Humaitá para a margem direita, dobrando ponta onde outrora existira terra limpa». «Jucá Tristão dirigindo-se a homem cuja existência Alberto não havia notado, ordenou-lhe: - Ó Caetano, leve-os para o barracão velho!» A omissão do indefinido tem nestes casos o carácter de autêntica «doença do estilo», que o autodidactismo do escritor, aliás um dos nossos mais elegantes prosadores, talvez explique suficientemente. Acompanham-rio neste injustificado horror da partícula indefinida algums dos mais recentes escritores, entre eles Soeiro Pereira Gomes, autor de Esteiros, a quem pertence esta frase: «Depois de enganarem as bocas com naco de pão mais duro do que a tarimba, meteram-se ao esteiro». Já em outras circumstâncias, quando o substantivo está precedido de um adjectivo, se pode observar ainda o uso dos antigos escritores da língua, que geralmente dispensavam o artigo. Exemplo: «O estudioso tirará grande proveito da Estilística». Será este o modo clássico de escrever, o mais corrente ainda hoje. Há porém quem diga «um grande proveito», e esta construção parece destinada a vingar, por ter talvez mais poder expressivo. 8. O substantivo. - Já temos visto que o substantivo pouco difere do adjectivo; no fumdo, são dois aspectos duma mesma realidade linguística. A própria origem do nome tem ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 125

mais de adjectivo do que de substantivo. com efeito, ao princípio, todos os seres foram designados por uma qualidade fumdamental que os caracterizava. Esse processo, usado na formação dos substantivos, vê-se ainda hoje nas alcumhas pessoais: o (José) Manco, o (Manuel) Canhoto, etc. Para designar um curso de água podem considerar-se duas noções fumdamentais: o próprio derivar da água, e nesse caso o objecto chamar-se-á corrente, torrente, cachoeira, etc., ou, visto de mais longe, o aspecto sinuoso das margens, das ribas, e nesse caso dar-lhe-emos o nome de rio, regato, ribeiro, etc. Isto seria na origem: hoje, a palavra rio suscita não apenas uma qualidade, mas a imagem total do objecto: o correr da água e o aspecto das margens. Primitivamente, aludindo a uma qualidade do objecto, era uma espécie de adjectivo; por fim, sugerindo-o integralmente, tomou-se verdadeiramente substantivo. Hoje, como que voltámos à primitiva concepção. A língua actual, de cumho impressionista, avulta a qualidade acima do objecto, faz da qualidade o próprio objecto. É assim que dizemos «o rubro das papoilas», «o idiota do rapaz», substantivando os adjectivos. E é ainda por esta tendência que dizemos «uma beleza de criança», «uma maravilha de seara», pondo o substantivo qualificante à frente do qualificado. Eis um trecho de Fialho de Almeida, como abonação literária do processo, aliás muito em voga na língua corrente: «Paço era vivo, com uma dessas caras picantes de Sevilha,

de narizito no ar, tinta cigana, profumdos olhos, e um apetite de dentes, que lhe tomavam o riso numa sinfonia de notas peroladas». Claro que os poetas modernistas não fazem caso da velha distinção entre substantivo e adjectivo. Um dos maiores, certamente o maior, Fernando Pessoa, escreveu: E dei meu gesto lasso às algas mágoas que há para além de sermos outonais...

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Não se sabe aqui qual o nome que fumciona como adjectivo, e esta imprecisão acrescenta o mistério da sugestão poética. Já noutros versos do mesmo autor se emprega claramente o substantivo em lugar do adjectivo: «com que ânsia tão raiva / quero aquele outrora!» 9. Abstractos e concretos. - São abstractos os nomes que aludem às acções, aos estados, às propriedades: levantamento, silêncio, rapidez, etc. Dizem-se concretos aqueles que se referem à substância: papel, pedra, montanha, etc. Os primeiros escapam à experiência dos nossos sentidos; os segumdos são seres materiais, sobre que se podem exercer esses mesmos sentidos. Isto, em teoria; na realidade as coisas são mais complicadas. É que certos conceitos abstractos podem ter uma face concreta e, ao contrário, muitos nomes concretos se podem empregar em sentido abstracto. O nome beleza é, não há dúvida, uma palavra abstracta; mas se, ao pronumciá-lo ou ao escrevê-lo, eu tenho nos olhos a imagem de um retrato, ou de um mármore como o da Vénus de Milo, o substantivo adquire para mim um valor concreto. Era aliás o que faziam os antigos gregos e romanos: as ideias abstractas, tais como a beleza, o destino, a morte, etc., eram para eles de certo modo concretas, porque, ao pensá-las, tinham nos olhos as figuras da sua mitologia. Assim, para um romano, a noção de beleza andava ligada à visão duma estátua de Vénus, a morte sugeria-lhe um sem-número de imagens concretas: as Parcas tecendo o fio da vida, os reinos infernais de Plutão, etc. As ideias abstractas são susceptíveis, além disso, de manifestações concretas. Um indivíduo que tem sono, escabeceia, faz trejeitos, deita-se, ressona. Tanto basta para que o substantivo nos apareça menos abstracto, porque lhe andam ligadas estas manifestações corporais. O termo silêncio, sendo, como é, abstracto, se evoca em nós a noção contrária de ruído, o sossego das ramagens quietas, etc., toma-se por isso menos ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 127

abstracto. Isto é, a abstracção dos nomes é coisa relativa, porque depende em parte do poder de fantasia dos indivíduos. Pelo contrário, muitas vezes os nomes concretos podem ser tomados não no sentido material e objectivo que lhes é próprio, mas em sentido espiritual, tomando-se por isso abstractos. Os substantivos sol, braço, sangue, são concretos; mas podem ser empregados em sentido figurado, equivalendo a ideias abstractas. É o que se dá nos seguintes exemplos: 1. A filha única era para ele o sol da sua vida. 2. António era o braço direito do seu pai. 3. Sentiam-se umidos pelos laços poderosos do sangue. É bem evidente aqui a transformação do termo concreto em abstracto: sol significa propriamente o «conforto espiritual», o «encanto»; braço o «apoio», o «sustentáculo»; sangue o «parentesco», a «estirpe familiar». É um processo da linguagem figurada, bem conhecido de todos. A estas transposições do concreto para o abstracto e vice-versa chamamos metonlmias.

O próprio uso do artigo pode ter importância para a discriminação entre abstracto e concreto: 1. Filho és, pai serás... 2. Chamou o filho e repreendeu-o. No primeiro exemplo, como vimos já, o nome sem artigo alude mais à qualidade, à essência, do que ao próprio objecto. Logo, o substantivo tem valor abstracto. No segumdo exemplo, em virtude do artigo, estamos vendo corporalmente a pessoa; logo, filho é um nome concreto. Os substantivos colectivos também podem ter uma face concreta, como vamos ver. Suponhamos, por exemplo, este nome: pinheiral. O vocábulo suscita em nós duas representações: a da quantidade global, - face abstracta; e a dos pinheiros, considerados mentalmente um por um, - face

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concreta. Por outros termos: o colectivo possuí duas umidades semânticas, mais ou menos sensíveis, conforme os indivíduos: a ideia abstracta do todo e a visão concreta das partes. Os adjectivos também podem ser mais ou menos concretos ou abstractos. Quando dizemos - «O tempo está/mco» temos uma sensação física de frescura; mas quando dizemos - «uma lembrança fresca» - já o adjectivo, empregado em sentido figurado, de concreto passou a abstracto. É como se disséssemos «recente», «de pouco tempo». A linguagem literária moderna faz largo uso do substantivo abstracto, em sentido mais ou menos concreto. É uma criação de estilo. Vejamos este período: «E apenas Gonçalo empurrou timidamente a porta quase acuou no espanto e medo daquela aflição estridente, que se arremessava para ele e para a sua misericórdia». Trata-se de uma pobre mulher que foi pedir pelo seu marido, a ferros na prisão. Não vemos o objecto, a mulher; só sentimos concretamente a sua dor, que parece ter braços para suplicar e pernas para andar. O termo misericórdia também está tomado em sentido menos abstracto; mas aflição é já qualquer coisa que se vê, porque se «arremessa», e se ouve, porque é «estridente». O estilo moderno tem marcada predilecção por este processo, que consiste em pôr à frente o abstracto, o qual indica sem determinar e avulta a qualidade acima do próprio objecto. Veja-se este passo de Fialho de Almeida: «relvas picadas da vivacidade das corolas». Se escrevêssemos ao modo clássico «relvas picadas de corolas vivazes», poderíamos ser mais lógicos, mas éramos certamente menos expressivos. O abstracto, no esforço para se tomar concreto, adquire uma espécie de personalidade activa (a vivacidade das corolas picando as relvas). ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 129

10. O género e o número. - Pouco interesse tem para o nosso caso a determinação do género e do número das palavras. Mas é necessário acentuar, tratando-se do género, uma das características do português: a constante preocupação sexual que se verifica no vocabulário. É natural que os animais se dividam quanto ao sexo: cão - cadela, leão - leoa, etc. A própria configuração do macho e da fêmea toma necessária a distinção morfológica. Mas o que é mais curioso é que essa mesma tendência se verifique nos objectos, nos seres insexuados. A par do masculino, a língua criou formas femininas num sem-número de substantivos: saco - saca, poço - poça, barco - barca, melão meloa, chouriço - chouriça, gancho - gancha, barraco - barraca, cesto - cesta, etc. Se examinarmos estas parelhas de substantivos, notaremos que, de um modo geral, o masculino representa maior grandeza no sentido do comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura. O português viu nos objectos a imagem do homem e da mulher: o homem, mais forte, mais alto e esbelto; a mulher, mais baixa, mais larga, de curvas mais arredondadas. Ainda se pode ver nesta competição do macho e da fêmea, reflectindo-se nas próprias coisas, um dos caracteres fumdamentais da civilização portuguesa, que presume sempre, nas lides caseiras e no trabalho da terra, o esforço conjugado do homem e da mulher.

Quanto ao número, convém frisar que o artigo reforça a pluralidade. A falta de artigo desvanece a diferença entre os vários elementos do plural e tende para representar uma ideia colectiva. Vejam-se estes dois exemplos: 1. As flores do campo cheiram bem. 2. Flores do campo, que bem que cheiram! No primeiro caso, o olhar está a vê-las e portanto a determiná-las na sua variedade. No segumdo, a falta de artigo 9 - Estilística

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obliterou a visualidade, e o plural, desacompanhado, perdeu-se um pouco no vago, ganhando certo matiz sentimental. É esta mesma tendência afectiva, a qual favorece os juízos apaixonados sobre os seres, que se verifica no tom depreciativo conferido muitas vezes ao plural sem artigo. Alguém, pessoa experimentada na vida, assiste a algums desmandos de gente moça. Vem-lhe aos lábios um sorriso meio irónico, meio indulgente, e diz: - Rapazes... A entoação desempenha na ironia papel importante, mas o plural tem nisso o seu quinhão. A mesma leve ironia transparece naquele conhecido verso de Cesário Verde: «Naquele piquenique de burguesas». Mas a demonstração mais convincente do caso está na lindíssima redondilha de Camões: Numa casada fui pôr os olhos de si senhores: cuidei que fossem amores, cies fizeram-se amor.

No fumdo, o que o plural sem artigo aqui exprime é a acentuação da qualidade em sentido pejorativo. É ainda curioso assinalar o efeito do plural em algums substantivos. Vejamos esta frase: «Lá em casa a família passava fomes».

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O plural dá ao substantivo dois valores expressivos: um de intensidade, outro de variedade. A impressão geral é de que a palavra fome, pluralizando-se, se tomou mais concreta. É esse, por via de regra, o resultado do plural nos nomes abstractos. A linguagem corrente conhece o processo: belezas, miudezas, festas, atenções, etc., tomam-se concretos, ou pouco menos, porque usados no plural. O exemplo mais expressivo desta concretização está no vocábulo galego alegrias, para a designação das entranhas do porco.

O gramático e dicíonarista brasileiro Morais e Silva ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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entreviu o fenómeno, dando-nos esta regra no Epitome de gramática portuguesa, cap. iv: «Não admitem plural os nomes de qualidades habituais, senão usados pelos atos delas: as caridades que me fez; essas tuas paciências, etc.». Os escritores não fizeram mais que copiar o método da língua falada. Exemplo : «Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades tranquilas». Aqui arranjos alude não apenas ao acto, mas aos objectos arrumados; felicidades desperta-nos sensações físicas e sentimentos de conforto; o termo anda fortemente apegado aos objectos que constituem o bem-estar. São, em suma, nomes abstractos tomados em sentido mais ou menos concreto. O escritor clássico conhecia já este processo, como se vê destes dois exemplos de Francisco de Morais e Fr. Luís de Sousa: «com piedades de vencido começou a pedir ao vencedor que o matasse». - «Se Deus não acudia com suas misericórdias, parecia impossível valerem-se contra tamanho poder». Os dois termos no plural sugerem imagens auditivas e visuais que o simples singular não comporta, por via de regra. Logo, são havidos como

substantivos concretos. Mais demonstrativo é ainda este passo do P.e António Vieira: «Perde-se o Brasil, Senhor, porque algums ministros de S. Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm buscar os nossos bens». O escritor jesuíta soube jogar com o diferente sentido do singular e do plural, com o abstracto e com o concreto, e produziu um trocadilho admirável, de forte e saborosa ironia.

r 8.

O ARTIGO E OS NOMES II 1. O adjectivo e a caracterização. - O adjectivo tem extraordinária importância na arte de escrever; sobretudo hoje, que há uma tendência para dar cor a tudo, às coisas e aos pensamentos. O bom escritor revela-se num grande número de qualidades; mas entre elas sobressai a de aplicar com precisão e pitoresco os seus adjectivos. Dizia um grande escritor francês, mestre na arte do estilo, que em tudo quanto se queira dizer não há senão um substantivo para o exprimir, um verbo para o animar e um adjectivo para o qualificar. É porventura demasiado radical esta sentença; mas tem um fumdo de verdade e deve estar presente ao espírito de quem queira escrever bem. O adjectivo é portanto o elemento fumdamental da caracterização dos seres; mas a Estilística tem uma noção muito mais larga do adjectivo do que a Gramática: para ela tudo quanto sirva para caracterizar, jeito de entoação, palavra ou frase, vale como adjectivo. Vejamos os casos principais de palavras ou locuções que podem assumir f umção adjectival:

1. Isto é que é um RAPAZ! A entoação aqui é o elemento caracterizador. Conforme a maneira de entoar, assim a frase significa bom ou mau rapaz. Aquele artigo indefinido, pelo seu carácter intensificador, auxilia essa fumção adjectivante. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 133

2. A í te mando esse LIVRECO. Na palavra livreco há duas representações: a de substantivo e a de adjectivo, a do objecto e a da qualidade: «livro mau». Portanto, certos substantivos expressivos trazem em si o elemento caracterizador; e os sufixos, como vemos, desempenham nisso importante papel: r óbito, cabeçona, casacório, etc. ,i

3. Manuela trazia um vestido LILÁS. O substantivo lilás qualifica outro substantivo (vestido). O caso é frequente com os nomes das cores. É uma construção afrancesada que vingou na nossa língua. O próprio substantivo composto pode servir de adjectivo, como se vê deste exemplo: «Essa rapariga tem a história mais planta-de-

estufa que eu conheço». Aquele composto significa «caseira», «modesta».

4. Avistámos ao longe um barco À VELA. A locução à vela, formada de substantivo precedido de preposição, é equivalente a um adjectivo: «barco veleiro». Esse qualificativo até se emprega já como substantivo, pois podemos dizer simplesmente «um veleiro». A qualidade deu nome à própria substância. Como vimos já, no capítulo anterior, o substantivo não carece de preposição para ter a capacidade de um adjectivo. Neste trecho, os substantivos e mais os qualificativos que os acompanham valem por autênticos adjectivos: «Surgiu então um rapaz alto, cabelo negro, rosto magro e olhos amortecidos, denumciando vida indolente». Por vezes, o substantivo encontra-se precedido do artigo, como nesta frase: «Nas árvores pousavam lindas pernaltas, o bico semi-oculto no

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colo». Tudo processos de caracterização com o emprego do substantivo. 5. Deves ler livros QUE INTERESSEM.

Aqui, a oração de pronome relativo (que interessem) vale por um adjectivo: interessantes. É por isso que em gramática essas orações são designadas pelo nome de «adjectivas», e é por isso mesmo que se não justifica o uso da vírgula. 6. Os pequenos, CANTANDO, saíam da escola. Neste exemplo, o gerúndio cantando caracteriza ao mesmo tempo o sujeito (os pequenos), e nesse caso é um adjectivo, e o verbo (saíam cantando), e nesse caso equivale a um advérbio. As duas fumções compenetram-se aqui intimamente. Mas um escritor modernista como Fernando Pessoa tem artes de fazer do gerúndio um puro adjectivo, qualificador do substantivo, numa frase como esta: «Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências». Já antes dele, o brasileiro Raul Pompéia tentara o recurso no seu livro O Ateneu: «Bem pouco, um resto desfeito de saudades para aquela inércia intensa, avassalando». São estas as maneiras principais de que a língua se serve para a caracterização; poderemos dizer que a noção de adjectivo recobre todos estes aspectos. Vamos agora assistir a esse trabalho de caracterização, realizado por um grande escritor. Suponhamos o seguinte trecho: «Numa sala encontrámos uma senhora; um lenço caía-lhe em bioco sobre a testa; e no fumdo dessa sombra negrejavam dois óculos». O passo é quase totalmente desprovido de termos caracterizadores, tirante aquele bioco e sobretudo aquele negrejar, donde ressalta já nitidamente a ideia de «negro». É assim ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 135

que Eça de Queiroz completa o trecho, aviventando-o com adjectivos ou equivalentes locuções caracterizantes: «Numa sala forrada de papel escuro encontrámos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fumdo dessa sombra negrejavam dois óculos defumados». Aqui está como um grande escritor, pelo sábio emprego dos instrumentos de caracterização, descreve uma senhora beata. É de notar a cor sombria dada por esses elementos, com que se acentua a natureza arrevesada da personagem: escuro, preto, roxo, lúgubre, defumados. 2. Cautela com o emprego do adjectivo! - Toda a cautela é pouca no emprego do adjectivo. Dizia um grande escritor francês, Voltaire, que o substantivo e o adjectivo são dois inimigos figadais.

Queria ele significar que nada há mais censurável no estilo do que a acumulação supérflua dos adjectivos. Por isso o bom escritor deve insistir no emprego do substantivo expressivo, que contém já em si um elemento de caracterização. Evita sobretudo carregar a frase de adjectivos, como quem carrega um fardo. Foi nestes termos, mais ou menos, que Camilo Castelo Branco louvou um escritor do seu tempo: «O poeta esmera-se na escolha do substantivo, adopta o que lhe frisa mais espontaneamente a ideia, e dispensa-se de o arreatar em caravana de epítetos dissimulados em estéril pompa de retórica: sonoridades vazias». Para exemplo do que diz Camilo, veja-se este trecho duma escritora moderna, onde superabumdam os adjectivos que nada ou quase nada dizem: «Alumiado pela estrela rutilante da bondade excelsa, o reformador desceu aos antros tenebrosos e infectos onde a

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humanidade se encharca em crime hediondo. Desse ambiente impiedoso de miséria repelente arrancou as almazinhas inocentes das crianças pobres, convertendo-as em elementos fecumdos e úteis à sociedade». Se quiséssemos mondar este trecho dos adjectivos que o atravancam, escreveríamos mais simplesmente assim, banidos os clichés e algums elementos supérfluos de caracterização: «Alumiado por excelsa bondade, o reformador desceu aos antros onde a humanidade se encharca no crime. Desse ambiente de miséria arrancou as pobres crianças, convertendo-as em elementos úteis à sociedade». Aquela vegetação de adjectivos qualificadores de antros, crime, miséria, parece-nos perfeitamente dispensável, porque essas palavras, eminentemente expressivas, caracterizam-se já por si próprias. O adjectivo trivial, espécie de cliché, nada acrescenta ao sentido. O trecho saiu simplificado, sem perder a significação. com certeza, ficou mais bem escrito. Outras vezes somos levados a empregar o adjectivo por um instinto artístico, uma tendência para o arredondamento e para a calafetação da frase. Parece-nos que ao substantivo falta um qualificativo; e, como a natureza é preguiçosa, em vez de escolhermos o bom adjectivo, o único que a circumstância requer, adoptamos um caracterizador banal, que serve para tudo: lindo, admirável, soberbo, enorme, etc. Sobretudo os aprendizes de estilo estão sujeitos a estes deslizes. Por preguiça, que é o pior inimigo do estilo, usam e abusam destas calafetações que nada exprimem. Um dos nossos discípulos, ao referir-se a um campanário de aldeia, escreveu: «No lindo campanário ouvem-se as badaladas que anumciam a missa...» Fizemos-lhe compreender que aquele adjectivo lindo nada significava ali, era um simples verbo-de-encher que não nos dava nenhuma das ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 137

qualidades do campanário. com efeito, um campanário só por muito favor se pode qualificar por meio do adjectivo lindo. O alumo pensou melhor e corrigiu para vetusto. Aceitámos a emenda, que já definia um dos aspectos do campanário. Observámos-lhe porém que o termo, alatinado, nos parecia um pouco pretensioso, literário demais. Preferiríamos o termo corrente velho. Objectou-nos que vetusto lhe parecia melhor para designar uma igreja, que poderia vir a ser um dia monumento nacional. Aceitámos a razão como boa, por se fumdar numa preferência pessoal, digna de respeito. Mas não ficámos convencido, por acharmos um pouco forçada aquela transposição de velho para o latinismo vetusto. Infelizmente a série de sinónimos que se possa empregar aqui não é grande, nem fácil a escolha. Há contudo um termo que poderia servir e tem boa raiz popular - velhusco, se não admitisse uma coloração mais ou menos pejorativa, como se nota no uso que dele fez Machado de Assis para caracterizar uma casa velha e arruinada: «Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada, em contraste com as borboletas tão vivas de há pouco» (Quincas Borba, pág. 271). Monteiro Lobato, grande criador verbal e grande humorista, tem gosto por essa forma, que emprega pelo menos duas vezes ern Negrinha. Convém advertir que o nosso alumo, católico praticante, desejava naturalmente dar certa dignidade à igreja da sua terra. De aí talvez a preferência por vetusto.

3. Substantivo vulgar e adjectivo literário. - As palavras vivem em famílias; e o que se dá na família dos humanos, dá-se também na família das palavras: nem sempre os componentes ligam bem entre si, porque há elementos que são ou se julgam mais do que os outros. Aquele adjectivo vetusto pertence à categoria desses pretensiosos. Destoa, entre os companheiros - velho, idoso, ancião, etc. pelo seu ar alatinado. Mas sempre teremos o recurso de o substituir, querendo, por outros menos pedantescos.

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Há casos porém mais complicados: muitos substantivos não têm adjectivo que lhes corresponda (ex.: cimento, pau, Jaca, pano, etc.), sendo nós obrigados a um circumlóquio para arranjar o qualificativo. Outros vão buscar o adjectivo às línguas cultas, como são o latim e o grego. Fica assim existindo um adjectivo literário para um substantivo vulgar, um termo especial e um pouco arrevesado para um termo de uso corrente. Assim, «brinquedos de criança1» chamar-se-ão, em linguagem culta, «brinquedos pueris ou infantis»; um recado que é dito por boca chama-se «recado orah; uma picada que causa dor diz-se «picada dolorosa»; um remédio cujos efeitos vão até à raiz é dito «remédio radicah, à navegação que se faz no rio chama-se «navegação fluvial», e a um escritor que produz muitas obras «escritor operoso». Todo o homem culto ou que presume de tal é obrigado a conhecer estas famílias de palavras, com os seus elementos nobres. Para isso, como já declarámos, não é necessário saber latim nem grego. Basta possuir uma louvável diligência e uma certa experiência dos radicais. O bom uso do dicionário dará ao estudioso esta ciência fácil. Acha, por exemplo, a palavra piscoso, no grupo a piscosa Sesimbra. Logo reconhece na palavra um radical pise, que significa «peixe», e se encontra em outros vocábulos: piscatório, piscicultura, pisciforme, piscina. A falta do sentimento da língua conduziu, a propósito desta mesma expressão, a um erro curioso. Um editor de Os Lusíadas, em 1584, ao encontrar aquele grupo no texto (canto m, est. 65) deu a seguinte explicação, que se tomou ridiculamente célebre: «chama-se piscosa, porque em certo tempo se ajumta ali grande quantidade de piscos, para se passarem à África». Desde esse momento ficou essa edição conhecida pelo nome de «edição dos piscos». Logo, é útil ao aprendiz de escritor o estudo da formação das palavras; não para deslumbrar os outros com o ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUma/i

emprego do termo literário e técnico - esses vocábulos são precisamente os menos expressivos -, mas para enriquecer o seu pecúlio lexical e dar variedade ao estilo. 4. Valor intelectual e afectivo dos adjectivos. -Designando um atributo, uma qualidade, é natural que o adjectivo tenda sobretudo para a expressão intelectual, abstracta. Quando dizemos «história umiversal», temos a representação de uma «história que abrange os sucessos fumdamentais de todas as nações». O nosso sentimento não intervém no caso. A representação é puramente intelectual. Mas se dissermos: «Esse remédio tem fama umiversah, já introduzimos na ideia marcada pelo adjectivo um pouco de exaltação. A que devemos isso? Ao contexto, mas sobretudo ao substantivo que acompanha o adjectivo e que derrama sobre ele um pouco da sua alma. As palavras não vivem isoladas, temos nós repetido; aqui mais uma vez se comprova o facto. Não há dúvida que o substantivo fama comumica ao adjectivo umiversal um pouco do seu alvoroço e do seu entusiasmo. As duas palavras conspiram para nos darem uma sensação de intensidade, e esta vai sempre acompanhada de rebates de sentimento. Outro exemplo:

«O frade observou sempre o jejum

religioso). Aqui o adjectivo tem carácter puramente intelectual; «jejum religioso» significa apenas o jejum preceituado pela religião. O qualificativo é de natureza técnica. Digamos porém: «Fezse na sala um silêncio religioso». Agora, o adjectivo parece-nos impregnado de sentimento, e o termo adquiriu um sentido figurado e superlativo. Como vemos, trata-se de uma série usual de intensidade, cuja formação e significado já foram estudados num capítulo anterior. Por via de regra, quando o adjectivo assume coloração sentimental, resulta daí uma série usual intensiva. O reflexo do substantivo sobre o adjectivo nota-se ainda em certas locuções correntes. Quando dizemos «uma casa

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azul», sabemos bem que a casa não é toda azul, mas apenas exteriormente pintada de azul. Em Lisboa, há um «Bairro Azul»: as casas não são pintadas de azul, como poderia parecer, mas apenas as portas, aros das janelas e persianas. Enfim, um «lápis azul» só tem de azul a parte com que se escreve. Parece-nos que estes exemplos são o bastante para convencer o leitor da íntima solidariedade que existe entre o substantivo e o adjectivo e da impossibilidade de separarmos estas duas categorias. 5. A posição do adjectivo. - Um facto importante de estilo, sobretudo em português, é a posição do adjectivo qualificativo. Muitas línguas, como o inglês e o alemão, têm umiformemente o adjectivo antes do substantivo; outras, como o francês, têm regras mais ou menos fixas para a sua colocação. Só o português e o espanhol admitem liberdades que dão a quem fala e escreve riquíssimas possibilidades de expressão. Vejam-se estas duas frases: 1. O rapaz pobre necessita de fazer economias. 2. O pobre rapaz ficou reprovado no exame. Ninguém, por menos experiente que seja da língua, hesita sobre o significado daquele adjectivo. No primeiro caso, o adjectivo pobre está empregado no seu verdadeiro sentido, define com precisão a qualidade do rapaz: «moço sem recursos». No segumdo caso, entramos já em outra esfera: o adjectivo está empregado com significação diferente; na verdade, aquele «pobre rapaz» pode ser agora um rapaz imensamente rico. E o adjectivo e toda a frase aparecem-nos impregnados de sentimento, de compaixão. Tudo isto se obteve com a colocação do adjectivo antes do substantivo. Podemos pois desde já enumciar esta regra de estilo português: quando o adjectivo está logo depois do substantivo, tende a conservar o valor próprio, objectivo, intelectual; ESTILÍSTICA

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quando está antes, tende a embrandecer-se, adquirindo matização afectiva. Assim, «uma rapariga bela» pode não ser «uma bela rapariga», porque a primeira se distingue pela beleza física, a segumda pela beleza moral. Machado de Assis aproveitou esta duplicidade de sentido, jogando finamente com a posição do adjectivo: «a primeira é que eu não sou propriamente um autor defumto, mas um defumto autor, para quem a campa foi outro berço» (Memórias póstumas de Brás Cubas, ed. de 1955, pág. 11). No primeiro exemplo, defumto significa «efectivamente morto»; no segumdo, o adjectivo significará «esquecido», dando-se à frase este sentido: «mas um autor esquecido para o qual a celebridade só veio depois da morte». Esta variabilidade na colocação do adjectivo é própria de pessoas sentimentais e sonhadoras. O poeta, que vive mais na esfera do sentimento, tem tendência para pôr o adjectivo antes do substantivo. É um processo lírico. O poeta dirá de preferência «o verde prado», porque alude não à verdura em si própria, mas às emoções, ao prazer que lhe suscita a verdura do prado. Para ele, verde é um adjectivo mais ou menos abstracto. Um homem de prosa, observador exacto e

impassível, dirá antes «o prado verde», porque estabelece uma relação intelectual, não contaminada de sentimento, entre o prado e a verdura que em dado momento o caracteriza. Para ele, verde é um adjectivo mais ou menos concreto. O primeiro vê sobretudo com os olhos do coração - por isso vê mais turvo; o segumdo vê sobretudo com os olhos da cabeça - por isso vê mais claro. A visão do primeiro pode dizer-se mais moral, a do segumdo mais física e mais pitoresca. Por aqui se vê o extraordinário partido que podemos tirar da colocação do adjectivo em português. Tomemos agora mais estas duas frases: 1. A pátria, ingrata, não recebeu os ossos do herói. 2. Ingrata pátria, não possuirás meus ossos!

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No primeiro caso, o substantivo (pátria) foi caracterizado a frio, com pouco ou nenhum alvoroço do sentimento. É a frase de um historiador, que narra impassivelmente, como é próprio do seu ofício, as ingratidões com que a pátria recompensa muitas vezes os serviços dos seus filhos. Experimentemos pôr o caso na boca de um desses heróis. É o nosso segumdo exemplo, que reproduz o dito célebre de Cipião Africano. A frase já vem túmida de sentimento e de amargura; é uma exclamação de dor que lhe sai da alma. O adjectivo foi para o lugar que lhe é devido nestes casos. Aqui temos o motivo por que nas exclamações, nas crises da afectividade, em que se exprime a admiração, o êxtase, a mágoa, etc., o adjectivo se coloca, por via de regra, antes do substantivo. Exemplos: Linda flor! Bela mulher! Soberbo espectáculo! Triste vida! Como vemos, o adjectivo anteposto ao substantivo forma com ele uma espécie de grupo fraseológico, em que ambos os elementos perdem um pouco do seu valor, em proveito do conjunto. Quando dizemos «o verde prado», «o loiro trigo», enunciamos uma noção geral, sem grande precisão, porque nem sempre o prado está verde e nem sempre o trigo é loiro. Estas posições sentimentais não são favoráveis geralmente à nitidez das ideias. Por isso, o grupo do adjectivo antes do substantivo tende a construir séries usuais de intensidade e clichés. Exemplos: grave acidente, prudente reserva, suave melodia, sábio professor, inspirado poeta, consumado artista. Donde se pode tirar esta conclusão: o adjectivo anteposto serve de exprimir as qualidades primitivas ou geralmente consagradas. Admitiu-se um dia que o prado deveria ser verde, que o professor deveria ser sábio, que o poeta deveria ser inspirado. Olhou-se ao permanente, ao absoluto e não ao relativo. E para esta invenção engenhosa da preguiça, de natureza pouco observadora e inclinada para o sentimental, escolheu-se um bom instrumento: a colocação do adjectivo antes do substantivo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 143

6. O adjectivo empregado como substantivo. - Assim como o substantivo vai muitas vezes empregado como adjectivo, também este serve não raro de substantivo, tanto na linguagem corrente como na literária. É sabido que muitos substantivos foram ao princípio adjectivos (a corrente, a palhoça, o ouvinte, a festa, o Inverno, etc.) e que ainda hoje é vulgar dizermos: o sábio, o justo, um tímido, um preguiçoso, etc. Estes adjectivos são condensações de frases como esta: «um (homem ou rapaz) preguiçoso». Tomaram-se, ou podem tomar se independentes e substantivados, pela capacidade que temos em conceber a qualidade para além do próprio objecto. Este princípio tem curiosas aplicações em Estilística. Quando dizemos «o infeliz rapaz», consideramos, numa atmosfera sentimental, a infelicidade do moço. Não se ousou dizer, como locução equivalente, «a infelicidade do rapaz», mas adoptou-se uma construção, já citada por nós, que é um termo médio e um belo achado estilístico, muito frequente em linguagem familiar: «o infeliz do rapaz». Agora, aparece o adjectivo substantivado e menos dependente do substantivo, porque está separado dele pela preposição. Isto é, conserva a vantagem sentimental da posição, anteposto ao substantivo, e adquire maior relevo de significado. A linguagem literária a dotou o processo, frequente já nos Clássicos, como se vê desta frase de Fr. António das Chagas : «A mesma pena que na frieza nos espanta, no ardente do amor grande alegria nos dera». O escritor poderia ter escrito ardência; mas entendeu, e muito bem, que o emprego do adjectivo substantivo era mais expressivo.

Vejamos agora esta frase: «Fez-lhe sentir o tortuoso do seu procedimento». Poderíamos escrever «a tortuosidade»; mas o adjectivo precedido do artigo é mais expressivo, dá maior realce à qualidade. A acumulação dos sufixos naquele substantivo (-oso, -dade) desvanece a ideia central, rouba

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energia à imagem. Aviso útil para aqueles que usam e abusam de termos extensos e não de boa escolha: tempestuosidade, engenhosidaãe, grandiosidade, sumpiuosidade, etc. Embora estas formações possam encontrar-se em algums bons autores (veja-se, por exemplo, odiosidade em Raul Pompéia, incisividade em Mário de Andrade, engenhosidade em Aquilino Ribeiro), o vocábulo muito extenso é sempre de evitar em bom português. Contudo, casos há em que a substantivação do adjectivo não pode passar sem reparo, por contrariar os hábitos do idioma. Veja-se este passo dum escritor moderno: «E ante os agradecimentos do comovido por aquela solicitude imprevista, Firmino entrou». A condensação é excessiva, quase brutal. Para uma boa compreensão, teríamos de dizer «do companheiro, comovidot>. Outra frase do mesmo escritor, que tem predilecção pelo processo: «Não contente com o laconismo, o loquaz insistiu». O adjectivo, alatinado, causa-nos impressão estranha, precedido do artigo. Se disséssemos popularmente «o tagarela», já o termo familiar, com fumção de substantivo, convinha perfeitamente ao discurso. A razão está bem de ver: loquaz é um adjectivo desbotado, de carácter literário; e ali o que convinha era um termo popular, fortemente pejorativo; logo, tagarela. 7. A gradação dos nomes. - É sempre possível conferir maior ou menor intensidade aos conceitos expressos pela maioria das palavras. A linguagem tem processos para traduzir esse fenómeno, e os escritores, por sua vez, também os vão inventando. A gradação dos substantivos é determinada geralmente por meio do adjectivo (processo analítico) ou por meio de sufixos aumentativos e diminutivos (processo sintético). Quando dizemos «casa grande», «casa pequena», definimos o grau de dimensão do objecto. O mesmo faremos se, em vez do adjectivo, empregarmos os sufixos: casarão, casita. Neste último caso, como vimos no capítulo 6, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 145

anda apegado à palavra certo valor sentimental, mais ou menos vivo, conforme o sufixo empregado. Também a repetição do nome produz um efeito de intensidade, que a linguagem familiar conhece perfeitamente e a literatura aproveita. Veja-se este passo: «No barranco iam-se acumulando caixotes, sacos e barris, barris, barris, a cachaça era morfina para a vida triste do seringueiro». A repetição do nome é um processo estilístico que serve para exprimir, com alvoroço do sentimento, a quantidade ilimitada. O redobro da palavra é sinal de energia psíquica e encontra-se sobretudo nas línguas primitivas. Se quisermos reforçar a impressão que em nós causam ums olhos negros, não temos mais que repetir o adjectivo: «Depois, fitaram-se em mim ums olhos negros, negros». Como vemos, a repetição do nome não só dá intensidade à representação, mas ainda a envolve de certo mistério e perturbação afectiva. Vejamos agora outro caso. Suponhamos este enumciado: «A rosa é a flor das flores». Queremos dizer que «a rosa é a mais bela de todas as flores». Tivemos arte de exprimir isso de forma muito condensada, repetindo o substantivo e pondo-lhe ao meio uma preposição. Este processo também é antigo. Encontra-se muito na Bíblia; e como a Bíblia é uma produção do génio hebraico, na parte que se chama o Velho Testamento, ficou a chamar-se a essa construção, poética e simplificadora, «superlativo hebraico». Podem tirar-se curiosos efeitos de estilo desse processo, como neste passo de Aquilino Ribeiro: «A vista repousava, bêbeda de luz, na confiança das confianças».

Machado de Assis mostrava já predilecção pelo superlativo hebraico: «pintou-lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações», a ponto de o empregar até com os advérbios: «Numca dos numcas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos... Nada dos nadas veio ter comigo.» (Dom Casmurro, ed. de 1952, pág. 214). 10 - Estilística

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Passemos propriamente ao adjectivo, que admite um grau comparativo e outro superlativo. No emprego do comparativo, salta aos olhos a diferença estabelecida no uso do comparativo de superioridade para pequeno em Portugal e no Brasil. Em Portugal diz-se correntemente mais pequeno. O brasileiro adoptou a forma menor, porque os gramáticos lhe incutiram o princípio da lógica no discurso: quem diz mais pequeno devia também dizer mais grande; assim, deverá dizer-se maior e menor. A introdução dessa forma literária e incolor, que fede a pedantismo de escola, foi uma vitória lamentável da abstracção sobre o pitoresco. Aliás, o povo, em Portugal e no Brasil, vai dizendo mais pequeno; e na Galiza até se diz e escreve mais grande. Assim, por exemplo, em R. Otero Pedrayo: «Espanha fíxose mais grande e f onda.» (Arredar de si, pág. 14). O galego, porém, soube criar uma forma concentrada, com que evitou decididamente as reclamações dos gramáticos: transformou mais grande em meirande: «Dum dos meirandes tolos poidéronse aduvinhar alguas cousas.» (R, Otero Pedrayo, O senhorita da Reboraina, pág. 158). Vejamos agora o valor estilístico do segumdo termo da comparação (que ou do que). Repáre-se nesta frase de um autor clássico: «Não há maior glória da que se alcança servindo a Deus.» A construção é elegante e sóbria. Apesar disso, a língua actual tende a substituí-la por estoutra: «Não há maior glória do que a que se alcança servindo a Deus». Ou ainda por esta: «Não há maior glória que aquela que se alcança servindo a Deus». A construção ganhou em clareza, mas perdeu muito em elegância e eufonia. Aquela repetição do que é extremamente dura e desagradável. A língua sacrificou desta vez a música à clareza. Antes de numerais parece mais elegante o emprego da preposição. «A quinta não vale mais de vinte contos» é, na verdade, mais bem-soante que «A quinta não vale mais que vinte contos». Contudo, a outros parecerá que o termo ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 147

que dá mais energia e clareza à representação. A sua própria aspereza é um sinal de vigor: uma questão de gosto pessoal. Sobre o superlativo convém notar o seguinte. Os dois processos mais frequentes para exprimir a intensidade dos atributos e qualidades consistem em fazer preceder o adjectivo de um advérbio de quantidade (muito, extraordinariamente, extremamente, etc.) ou acrescentar o sufixo -íssimo ao adjectivo. Temos pois dois tipos de superlativos: muito rico e riquíssimo. De um modo geral, tem-se a impressão de que o emprego do sufixo imprime maior força intensiva à ideia. Assim, «um homem riquíssimo» parece-nos mais opulento que «um homem muito rico». Mas, é claro, a intensidade depende mais ou menos do emprego do advérbio: dizer «um homem prodigiosamente rico» equivale mais ou menos a dizer «um homem riquíssimos. É bem conhecida aquela curiosa personagem do romance Dom Casmurro, o José Dias, que empregava o superlativo absoluto simples a torto e a direito, a pontos de morrer com um superlativo na boca, lindíssimo, referido ao azul do céu. Segumdo o autor, Machado de Assis, «era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases». O certo é que esta mania da superlativação originou aquele pitoresco incidente narrado espirituosamente pelo autor a pág. 229 da ed. de 1952: «- Mamãe... ?

-• Não! não! Que ideia é essa ? O estado dela é gravíssimo, mas não é mal de morte, e Deus pode tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho da sua idade andar chorando na rua. Não há-de ser nada, uma febre... As febres, assim como dão com força assim também se vão embora... com os dedos, não; onde está o lenço? Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias, uma só me ficasse no coração: foi aquele gravíssimo. Vi depois que ele só queria dizer grave, mas o uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do período, José Dias fez crescer a minha tristeza».

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A linguagem popular, em busca de maior expressividade, desconhecendo os advérbios cultos (consideravelmente, prodigiosamente, excessivamente, etc.) e achando desbotado e froixo o advérbio muito, inventou curiosos processos superlativantes, que a literatura imita com vantagem. Assim: «um homem podre de rico», «um homem rico a valer», «um homem rico até mais não», «um homem rico à beça», «mulher gorda que nem», etc. Um dos mais curiosos está no uso do diminutivo para efeitos de intensidade, como se mostra neste passo de Aquilino Ribeiro: «A alcatifa da terra, que se antemostrara verde-verdinha, revestia-se a todo o longo do vale de mil tons furta-cores.» (A Casa Grande de Romarigães, 267). Os escritores místicos também tiveram de inventar formas superlativantes, porque a língua usual era débil demais para exprimir os paroxismos do seu amor de Deus. Veja-se este trecho de um deles: «Bendita e louvada seja eternamente aquela muito mais que além de infinita e entranhavelmente amável bondade». Acumulando advérbios e adjectivos numa sucessão quase delirante, conseguiram o efeito almejado. A par dos superlativos em -issimo, que a língua tolera, embora avessa, em princípio, a palavras esdrúxulas, aparecem também formas alatinadas em -imo e -érrimo; facílimo, humílimo, stibtílimo, paupérrimo, acérrimo, etc. Essas são puramente literárias e, mesmo dentro da literatura, de uso pouco frequente. São construções mais ou menos artificiais, sem grande fumção expressiva, enfim, quase valores mortos para a arte do estilo. Por isso mesmo não é de estranhar que as formas cm -érrimo, pelo que têm de invulgares e malsoantes, sirvam para fins humorísticos. «O baile esteve chatérrimo», dirão dois rapazes em estilo de gíria. Monteiro Lobato usou o sufixo em casos como estes: a) «vestidos de soleníssimas sobrecasacas e com solenérrimos tubos de chaminé reluzentes nas cabeças». (O Presidente negro, 2.a ed., 288); ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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b) «escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má morte». (Cidades mortas, 7.a ed., 105). Mário de Andrade também o empregou ironicamente: «todo cheio de manchas e galos duma tremendérrima sova de pau». (Macumaima, 2.a ed., 81). Não podia deixar de lhe aproveitar o chiste um outro escritor brasileiro de grandes recursos expressivos, Guimarães Rosa: «Mas agora, maior mais real, directo - no lugar amplo e sem outras formas um homem sozinho, bébedérrimo, Badu.» (Sagarana, 5.a ed., pág. 52). E, enfim, um escritor português Brás Buriti, serviu-se dele com abumdância e espírito jocoso: «E quem mo houvera de dizer a mim, neste tristérrimo fim de vida, avô de quinze netos». O inadequado do seu emprego, em adjectivos que só comportam o sufixo -issimo, já diz o bastante sobre o carácter humorístico da expressão. Note-se porém que o próprio superlativo em -issimo implica por vezes um sentido mais ou menos jocoso, como se deixa ver deste gracioso trecho de Camilo, em que o grande escritor rnete a ridículo o efeito pedantesco da palavra comprida, tão repugnante ao génio da nossa língua: «V. tomou-se um pouco suspeito ao meu José Mendes com o estilo libérrimo das suas cartas inconvenientíssimas. Desculpe-me os superlativos. Hoje dá-me para aqui a mania. Todas as vezes que a minha imaginação se ocupa de alguma cousa grande, o meu estilo é sempre de doze sílabas por palavra. Neste

momento, é a reminiscência gravissimamente pejada de atrocíssimas leituras que me dispara estas grandes palavras, que são o refúgio dos articulistas de fumdo, quando as ideias escassíssimas não lhe nutrem a columa e meia da política por empreitada». (Dispersos, n, 351).

Aborrecendo essa desinência esdrúxula, contrária ao génio da língua, o galego rural teve artes de a encurtar,

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convertendo o -issimo em ismo, como em moitismo, santismo, longuismo, tremenáismo, etc.: «Quê engado o daquela capela gorecida no seo de sombra dum teixo grandismo!» (Anxel Fole, À lus do candil, 77). «Nestas foi cando se ouviu, ò lonxe, um berro tremendis.mo.-i> (E. Blanco-Amor, A esmorga, 118). «co’as espigas por riba da cabeça / no carreiro longuismo dos adeuses». (Díaz Castro, Nimbas, 60). Aliás, esta tendência equilibradora do galego já se praticava no francês e provençal arcaicos, onde essas terminações esdrúxulas também foram reduzidas a graves: grandisme, fortisme, saníisme, altisme. 9. OS PRONOMES

l. O pronome pessoal. - Um dos caracteres que distinguem a nossa língua, se a compararmos, por exemplo, com o francês, é o pouco uso do pronome pessoal, nas formas chamadas de sujeito: eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. É que as terminações verbais são suficientemente claras para dispensarem a menção da pessoa. Vejamos este pequeno trecho: «Não conheço pessoalmente esse indivíduo de quem falas. Não sabemos quem é, donde vem. Mas podeis estar certos de que será recebido condignamente: os hóspedes foram sempre bem acolhidos nesta casa; sentados à mesa comum, fazem parte da família». Neste período não há um único pronome pessoal, nem é preciso. Experimentemos contudo pôr os respectivos pronomes : «.Eu não conheço pessoalmente esse indivíduo de quem tu falas. Nós não sabemos quem ele é, donde ele vem. Mas vós podeis estar certos de que ele será recebido condignamente: os hóspedes foram sempre bem acolhidos nesta casa: sentados à mesa comum, eles fazem parte da família». Se compararmos os dois trechos, logo vemos que o segumdo está por demais sobrecarregado de pronomes. E logo sentimos que o emprego do pronome chama mais vivamente a atenção para a respectiva pessoa. É um processo enfático.

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Um indivíduo muito cheio de si empregará com mais frequência o pronome eu. Desse facto se derivaram até os termos egoísmo, egocentrismo, etc., todos formados do vocábulo latino ego, que quer dizer «m». A fala dum conselheiro Acácio, homem que a si mesmo concedia grande importância, tende para um abusivo emprego do eu, como se vê destes passos, em que outros, que não ele, omitiriam talvez o pionome: ’ *” Uma noite de ame*. zir mais Precisament^ ^ ^ * Poderia ra exprimir a delícia d ’ com a P^ssao das w«os...

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