LYOTARD, Jean-François - O inumano considerações sobre o tempo

November 14, 2018 | Author: Humberto Sueyoshi | Category: Thought, Death, Homo Sapiens, Physics, Physics & Mathematics
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o INUMANO

ecolha de «considerações» na sua maior parte destinadas a um público vasto. Alguns prolongamento s à ideia de pós-moderno. Os humanos arrastados num desenvolvimento inumano a que já não ousamo s chamar progre sso. O desaparecimento de uma alternativa humana, política e filosófica, neste processo . Ainda possível apenas uma resistência, apoiada sobre o outro inumano: a despo ssessão de si que dormita em cada um, a sua indomável infância. Banalidade esmagadora, mediática, do s neo-human ismos que hoje em dia se erguem. Questões deci sivas: o tempo , a memória , a matéria. Como a «vida administrada» (Adorno) as anula ao program á-las. Como as artes visuais, do som e do pensamento lhes preservam a verdade paradoxal.

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ISBN 972 -33- 1264-6

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FICHA TÉCNICA Título origin al: L 'Inhumain . Causeries sur le temps Tradução: Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre Capa: José Antunes Impre ssão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda . I " edição: Editorial Estampa, 1990 2,· edição: Editorial Estampa, 1997 Depó sito legal n." 112125/97 ISBN 972-33-1264-6 Copyright: © Éditions Galilée, 1988 © Editorial Estampa, Lda , Lisboa, 1989 para a língua portuguesa

ÍNDICE

Prefácio: do humano

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Se pudermos pensar sem corpo

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Reescrever a modernidade

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Matéria e tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

45

Logos e tekhnê, ou a telegrafia

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O tempo, hoje

65

O instante, Newman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

85

O sublime e a vanguarda

95

Algo como: «comunicação

sem comunicação»

113

Representação, apresentação, não apresentável

123

A palavra, o instantâneo

133

Após o sublime, estado da estética

139

Conservação e cor

147

Deus e a marioneta

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A obediência

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Scapeland . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

183

Domus e a megalópole . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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PREFÁCIO DO HUMANO

O humanismo administra-«nos»(?) lições. De mil maneiras, frequentemente incompativeis entre si. Bem fundadas (Apel) e não fundadas (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas (Searle), psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas franceses) . Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos um valor seguro que não necessita ser interrogado. Que tem inclusivamente autoridade para suspender, interditar a interrogação, a suspeição, o pensamento que tudo corrói. O que é valor, o que é certo, o que é homem, são questões muito perigosas e damo-las por encerradas o mais rapidamente possível. Elas abrem, dizemos, a via ao «tudo é permitido», ao «tudo é possível», ao «nada tem valor», Vejam, acrescentamos, o que acontece aos que ultrapassam este limite: Nietzsche tornado como refém pela mitologia fascista, Heidegger nazi, enfim, passo ... Mesmo o que, a este respeito, pode existir de inquietante em Kant, o que não é antropológico mas propriamente transcendental e o que na tensão crítica chega até a destruir a unidade mais ou menos pressuposta num sujeito (humano) como é o caso que me parece exemplar da análise do sublime ou de escritos histórico-políticos, até esses os expurgamos. Sob pretexto de voltar a Kant, mais não fazemos que resguardar o preconceito humanista sob a sua autoridade. Um mesmo movimento de restauração declara-se também contra a escrita como contra a leitura de textos, as artes visuais, a arquitectura. Em nome de uma recepção pública bem regulamentada, Jauss recusa o texto adorniano: a escrita da Teoria Estética, enodada, incerta, quase selvagem é julgada ilegível. Sejam comunicáveis, está prescrito. O vanguardismo é um velho jogo, falem dos seres humanos humanamente, 9

dirijam-se aos humanos, tenham eles prazer em vos receber e receber-vos-ão, Não é que o humanismo seja simplesmente uma operação de marketing, Os que «nos»(?) admoestam não são todos industriais da cultura. Apelidam-se a si mesmos de filósofos. Mas aquilo que é a filosofia, também não deve ser interrogado sob pena de cair na vulgaridade. Eu não sonho: o que é apontado nas «vanguardas» (o nome é maldoso, reconheço) é algo que já foi declarado aos quatro ventos. Em 1913, Apollinaire escrevia ingenuamente: «Os artistas são, antes de mais, homens que pretendem tornar-se inumanos.» E em 1969, se bem que com um pouco mais de prudência, Adorno escrevia ainda: «A arte mantém-se fiel aos homens unicamente pela sua inumanidade para com eles.» As «considerações» aqui reunidas - são todas palestras encomendadas, destinadas na sua maior parte a um público não profissional, e o resto à confidência - não têm nem função nem valor de manifesto ou de tratado. A suspeita que traem (nas duas acepções da palavra) é simples, ainda que dupla: e se, por um lado, os humanos, no sentido do humanismo, estão em vias de, constrangidos, se tornarem inumanos? E se, por outro lado, for «próprio» do homem ser habitado pelo inumano? Existiriam assim dois tipos de inumano. É indispensável mantê-los dissociados. A inumanidade do sistema em curso de consolidação; sob o nome de desenvolvimento (entre outros), não deve ser confundida com aquela, infinitamente secreta, de que a alma é refém. Acreditar, como aconteceu comigo, que a primeira possa substituir a última, dar-lhe expressão, é cair no engano. A consequência maior do sistema é a de fazer esquecer tudo o que lhe escapa. Mas a angústia, o estado de um espírito assombrado por um hóspede familiar e desconhecido que o agita, fá-lo delirar mas também pensar - se pretendemos excluí-lo, se não lhe damos uma saída, agravamo-lo. O mal-estar aumenta com esta civilização, a exclusão com a informação. Muitas destas palestras debruçam-se sobre a problemática do tempo. Ela é decisiva para a separação em questão. O desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a «leitura rápida», Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida «no interior». Perde-se o tempo em 10

busca do tempo perdido. A anamnese é o antipoda - nem isso, nem sequer existe um eixo 'comum - o outro, da aceleração e da abreviação. Ilustremos isto numa palavra com um «exemplo» que é efectivamente exemplar e acessível aos humanistas: a educação. Se os humanos nascessem humanos tal como os gatos nascem gatos (com poucas horas de diferença), não seria possível - e nem sequer digo desejável, o que torna a questão diferente - educá-los. Que devamos educar as crianças é uma circunstância resultante apenas do facto de elas não serem todas pura e simplesmente conduzidas pela natureza, de não estarem programadas. As instituições que constituem a cultura preenchem esta falta natural. Que poderemos chamar de humano no homem? A miséria inicial da sua infância ou a sua capacidade de adquirir uma «segunda» natureza que, graças à língua, o torna apto a partilhar da vida comum, da consciência e da razão adultas? Num ponto estamos todos de acordo: esta última assenta e suporta a primeira. A questão é apenas de saber se esta dialéctica, seja qual for o nome com que a enfeitemos, não deixa vestígios. Se fosse esse o caso, seria inexplicável, para o próprio adulto, não apenas que ele tenha de lutar continuamente para assegurar a sua conformidade com as instituições, e até para as ordenar face a um melhor viver comum, mas que o poder de as criticar, a dor de as suportar e a tentação de se lhes escapar persistam em algumas das suas actividades. E não me refiro apenas aos sintomas isolados, aos desvios singulares mas ao que, pelo menos na nossa civilização, passa igualmente por institucional: a literatura, as artes, a filosofia. Trata-se, também aqui, do rasto de uma indeterminação, de uma infância, que persiste mesmo na idade adulta. Resulta destas observações banais que podemos tirar partido do título de humanidade por motivos exactamente inversos. Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis. O seu atraso inicial sobre a humanidade, que a torna refém da comunidade adulta, é igualmente o que manifesta a esta última a falta de humanidade de que sofre e o que a chama a tornar-se mais humana. 11

Mas, dotado dos meios de saber e de fazer saber, de agir e de fazer agir, tendo interiorizado os interesses e os valores da civilização, o adulto pode pelo seu lado aspirar à plena humanidade, à realização efectiva do espírito como consciência, conhecimento e vontade. Que lhe reste sempre a possibilidade de se libertar da selvajaria obscura da sua infância cumprindo essa promessa, é precisamente a condição do homem. Consequentemente, não existiria entre as duas versões do humanismo mais que uma diferença de acento. Uma dialéctica ou uma hermenêutica bem ordenadas resultariam na sua conciliação. Afinal, basta que os nossos contemporâneos recordem que é próprio do homem a sua falta de próprio, o seu nada, ou a sua transcendência, para poder afixar o letreiro de «completo». Não me agrada esta pressa. O que apressa, o que esmaga, é o que acabo sempre por constatar ter tentado sob os mais diversos nomes, trabalho, figurabilidade, heterogeneidade, dissentimento , acontecimento , coisa, preservar: o inconciliável. (E não sou o único, razão pela qual escrevo «nósn.) Que a diferença insensível seja votada a ter sentido, enquanto oposição, num sistema dito estruturalista, é uma coisa; outra é que ela seja prometida ao devir-se sistema. Como se a razão não tivesse que duvidar da sua vocação para extrair o indeterminado , dando-lhe depois forma , e que desta acção não pode deixar de sair triunfante. É contudo apenas ao preço desta dúvida que a razão é raciocinante. Eis um motivo de princípio, digamos, para manter à distância toda a especulação reconciliadora. A apreciação da situação contemporânea fornece a esta reserva um outro alimento. É preciso antes de mais recordar que se o título de humano pode e deve caminhar entre a indeterminação nativa e a razão instituída ou a instituir-se, também o pode e deve o inumano. Toda a educação é inumana visto que não funciona sem contrariedades e terror, e refiro-me à menos controlada, menos pedagógica, aquela que Freud chama de castradora e que o faz dizer, a propósito da «boa maneira» de educar as crianças, que de qualquer forma será má (nisto próximo da melancolia kantiana). E inversamente, tudo o que no instituído pode, por vezes, deixar transparecer o infortúnio e a indeterminação é de tal maneira ameaçador que o espírito razoável não pode deixar de temer, justificadamente, uma força inumana de desregulação. 12

Mas o acento, posto desta maneira sobre o conflito, legitima-se hoje, mais do que nunca, devido a uma alteração, que creio ser profunda, da natureza do sistema. É preciso tentar compreender esta alteração, sem a tornar patética mas igualmente sem a negligenciar. Deve tomar-se por inconsistente um pensamento que não faz caso disto e que «cobre» descrições, sejam elas contrafactuais, isto é, ideais ou utópicas (e sobretudo essas), como se nada se opusesse mais hoje que há dois séculos à sua verdade ou à sua concretização. O termo pós-moderno serviu , mas não muito bem a julgar pelos resultados, para designar algo desta alteração. Veremos nas páginas seguintes como nos é possível procurar descrevê-la seguindo a hipótese geral, positivista, de um processo de complexização, de entropia negativa, ou para ser mais simples, de desenvolvimento. Esta hipótese não é apenas sugerida pela convergência das tendências que animam todos os subconjuntos da actividade contemporânea, ela é o próprio argumento do discurso que cientistas, tecnólogos e seus filósofos acreditados mantêm a propósito das suas pesqui sas, de forma a legitimar científica e tecnologicamente a possibilidade do seu desenvolvimento. É inevitavelmente um discurso de física geral , com a sua dinâmica, a sua economia, a sua cibernética. Todo o discurso de física geral é um discurso de metafísica, isto desde os tempos de Aristóteles e de Leibniz. Este discurso é igualmente aquele que serve a quem decide em política, socioeconomia para legitimar as suas opções: competitividade, melhor repartição de cargos, democracia na sociedade, na empresa, na escola e na família. Não inclui , no entanto, os direitos do homem, originários de um horizonte completamente diferente, e que não podem ser chamados a reforçar a autoridade do sistema, da mesma forma que este não pode fazer desses mesmos direitos, por construção, mais do que um caso episódico. Não faço minha esta hipótese do desenvolvimento porque ela é uma maneira, mais precisamente ela é a maneira de a metafísica, interdita para sempre ao pensamento, restabelecer sobre ele o seu direito . De o restabelecer não no pensamento (se se excluir aquele que ainda se afirma filosófico ou seja metafisico) mas fora dele. A metafisica, sendo impossível como tal, torna-se realidade e adquire assim o direito do facto. Esta situação define bastante bem aquilo a que ainda recentemente chamávamos de ideologia, não sendo esta tão notável como sis-

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tema de ideias quanto o é como poder de realização. O «desenvolvimento» é a ideologia do tempo presente, ele realiza o essencial da metafisica, que tem sido muito mais um pensamento de forças que um pensamento do sujeito. Se prosseguirmos com o argumento, tal como é aqui colocado, acabamos por concluir que o sistema pelo qual a indeterminação nativa é obrigada, «forçada» a existir, mesmo que o seja sob o disfarce da permissividade, não advém da razão do humano, ou seja das Luzes; resulta de um processo de desenvolvimento, no qual o que está em jogo não é o homem mas a diferenciação. Esta obedece a um princípio simples: entre dois elementos, sejam eles quais forem, cuja interligação seja estabelecida logo à partida, é sempre possível introduzir um terceiro termo que assegurará uma melhor regulação. Melhor significa de maior confiança mas igualmente de maior capacidade. A ligação inicial aparece, assim mediatizada, como um caso particular numa série de regulações possíveis. A mediação não implica apenas a alienação dos seus elementos face ao seu enquadramento; permite modulá-lo. E quanto mais «rico» for o termo mediato ou seja, ele próprio mediatizado, mais numerosas são as modificações possíveis, mais flexível o seu enquadramento, mais flutuante o nível de trocas entre os seus elementos, mais permissivo o seu relacionamento. A descrição é abstracta. Seria mais fácil ilustrá -la se recorrêssemos a elementos, tão diversos na sua aparência como são os parceiros económicos ou sociais, as células de um órgão ou de um organismo, os constituintes da molécula ou do núcleo, as divisas monetárias, os poderes militares adversos. As novas tecnologias e os media são aspectos dessa mesma diferenciação. O que impressiona nesta metafisica do desenvolvimento é que ela não precisa de nenhuma finalidade. O desenvolvimento não está magnetizado por uma Ideia como seja a da emancipação da razão e da liberdade humanas. Reproduz-se acelerando-se e estendendo-se segundo a sua própria dinâmica interna. Assimila os acasos, memoriza o seu valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento. Não necessita senão de um acaso cosmológico. O desenvolvimento não tem um fim, mas tem um limite, o da esperança de vida do Sol. A explosão prevista desta estrela é o único desafio que se coloca de forma objectiva ao desenvolvimento. A selecção natural dos sistemas não é de ordem biológica mas cósmica. É com o 14

intuito de realçar este desafio que se preparam desde já todas as pesquisas, seja qual for o sector de aplicação, que estão em curso nos países dítos desenvolvidos. O interesse dos seres humanos encontra-se agora subordinado ao da sobrevivência da complexidade. E como o desenvolvimento acaba por ser exactamente aquilo que subtrai à análise e à prática a esperança de uma alternativa decisiva ao sistema, como a política que «nós» herdámos dos pensamentos e das acções revolucionárias se encontra para sempre sem emprego (independentemente de nos regozijarmos com isso ou de o lastimarmos) a questão que aqui coloco é a seguinte: que mais resta de «político» que não seja a resistência a este inumano? E que mais resta, para opor resistência, que a dívida que toda a alma contraiu com a indeterminação miserável da sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o outro inumano? Esta a divida que temos para com a infância e que não é saldada. Mas basta não a esquecer para resistir e, talvez, para não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, do pensamento, da literatura, das artes, aventurar-se a prestar testemunho.

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SE PUDERMOS PENSAR SEM CORPO

ELE Vocês, os filósofos, colocam questões sem resposta, que assim devem permanecer para que mereçam o nome de filosóficas. Uma questão equacionada só pode ser, segundo vocês, uma questão técnica. Era técnica. Foi tomada por sendo filosófica. Desviam então a vossa atenção para uma outra que aparenta ser impossível de resolver e que deve resistir a toda e qualquer conquista do entendimento. Ou então, o que acaba por ser o mesmo, declaram que o facto de a primeira questão ter sido resolvida se deve à mesma ter sido mal colocada. E atribuem a vocês mesmos o privilégio de manter irresolúvel, ou seja bem colocada, a questão que a técnica, ao acreditar tê-la solucionado, mais não fez que a maltratar. Uma solução tem para vocês o valor de uma ilusão, é uma verdadeira falta para com a integridade devida ao ser, e por aí fora. Vida longa à vossa paciência. Poderão sempre resistir à custa desta incredulidade. Não se espantem no entanto se por causa desta irresolução, o leitor caia no aborrecimento. Mas não é essa a questão. Na espera, envelhece o Sol. Explodirá dentro de 4,5 mil milhões de anos. Já ultrapassou um pouco a metade da sua vida. É como um homem de quarenta e poucos anos dotado de uma esperança de vida de oitenta. Com o seu fim, terminarão igualmente as vossas questões insolúveis. Talvez se mantenham sem resposta, impecavelmente bem colocadas, mas não haverá mais onde as colocar, nem lugar para existirem. Explicais: não podemos pensar no fim Texto escrito a partir da gravação de uma sessão do Seminário realizado no Graduiertenkolleg da Universidade de Siegen (RFA) em Novembro de 1986, por iniciativa do seu director, Hans Ulrich Gumbrecht.

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puro e simples do que quer que seja pois fim é limite e é ne~~sárioes- ·· _tar dos jlois lados do limite para o conceber. Da mesma forma, o fim deve ser perpetuado em pensamento para que se reconheça como fim. Ora isto é verdadeiro para os limites do pensamento. Mas após a morte do Sol, não haverá pensamento para reconhecer que era da morte que se tratava. Acredito que esta é a única questão séria que se coloca aos humanos de hoje. Diante dela tudo parece fútil. Guerras, conflitos, tensões políticas, movimentos de opinião, debates filosóficos, até paixões , tudo está desde logo morto se essa reserva de infinito da qual retiram actualmente a energia para diferenciar as respostas se, em suma, o pensamento como busca deve afinal morrer com o Sol. Talvez a palavra adequada não seja morte. Mas essa explosão que há-de vir, inevitá vel, é como se aquilo que fica esquecido diariamente nos vossos jogos de pensamento chegasse desde já e tornasse esses jogos póstumos, fúteis . Falo do que é proscrito das vossas escritas , a matéria. A matéria enquanto o de ener ia se desfaz e se -;efaz sem ces:saro À escala corpuscular e/ou cósmica, digo. Não me re Iro ao bravo -rmmdo terrestre, da boa imanência transcendente do pensamento para com os seus objectos análoga à do olho para com o visível ou do habitus para com o situs. Dentro de 4,5 mil milhões de anos, falecida a vossa fenomenologia, as vossas políticas utópicas, ninguém restará para tocar o dobre nem para o ouvir. Será demasiado tarde para compreender que o vosso uma «vida espiritual» que, feitas as contas, subrepticiamente, mais não era que uma forma de vida terrena. Espiritual porque humana, humana porque terrena, da terra dos mais vivos entre os vivos. O horizonte do pensamento, a sua orientação , o limite ilimitado e o fim sem fim que ele supõe, é à experiência corpórea, sensível, sentimental e cognitiva de um ser vivo muito sofisticado mas terreno , que o pensamento os vai buscar . A terra desaparecerá, o pensamento cessará, deixando esse desaparecimento absolutamente impensado. É o horizonte mesmo que se aniquila e nesta imanência a vossa transcendência. A morte, se bem quel': limite , é por excelência aquilo que se oculta e se adia e que por isso ocupa tantas vezes o pensamento, esta morte que afinal é a vida do espírito. Mas a morte do Sol implica a morte do espírito pois é a morte da morte como vida do espírito. Nada há a substituir nem a diferen18

ciar se nada sobreviver. Este aniquilamento é totalmente diferente daqueles sobre os quais vocês criticam a propósito da «nossa» morte, daquela que faz parte do lote dos seres vivos pensantes. E falar em aniquilamento é ainda demasiado patético. Trata-se de uma mudança do estado da matéria, ou seja das formas de energia. Esta mudança basta para tornar nula qualquer antecipação do estado da pós-explosão. Os romances de ficção política imaginam o desértico frio de um mundo humano após uma guerra atómica. A explosão solar não ficará a dever-se a uma guerra humana. Não deixará atrás de si um mundo humano devastado, desumanizado, não deixará sequer um último sobrevivente para prestar testemunho do que se passou e escrevê-lo. Desumanizado é apesar de tudo ainda do domínio do humano, do humano morto mas pensável porque morto no sentido humano, mas reerguido em pensamento. O que ficar após a explosão solar, não permitirá a existência de vivalma, nem um só ser humano, terreno, inteligente, sensível e sentimental para testemunhar o acontecimento pois ele dissipar-se-á no fogo juntamente com o horizonte da terra. Digamos: o Sol, a Ur-Erde de Husserl, dissipa-se em calor e em nuvens de matéria. Considerada como matéria, a terra não é, de modo algum, originária, pois está submetida a alterações do seu estado, vindas de mais ou menos longe, da matéria, da energia e das leis da sua transformação. A Erde é um arranjo de matéria-energia. Este arranjo é transitório, alguns milhares de milhões de anos, discute-se. Anos lunares. Muito pouco, se comparado ao cômputo cósmico. O Sol, a nossa terra e o vosso pensamento não terão sido mais que um estado espasmódico de energia, um instante de ordem estabelecida, um sorriso esboçado pela matéria a um canto do cosmos. Vocês, os incrédulos, acreditam, demasiado até, neste sorriso, na conivência das coisas com o pensamento, na finalidade do todo. Vocês terão sido, como o resto do mundo, vítimas das relações de ordem estabelecidas neste canto, seduzidos por aquilo a que chamam de natureza, uma congruência do espírito e das coisas; Claudel falava de um conhecimento, Merleau-Ponty de um quiasma do horizonte e do olho, o banho onde se banha o espírito. A explosão solar, a simples ideia dessa explosão, deveria despertar-vos da vossa euforia. Vejam: vocês tentam colocar o acontecimento no seu quod, no advindo do «Só chegará» antes de qualquer «quididade» não é? Pois bem, permitam-me então posicionar a explosão do Sol como o quod em si mesmo, após o que nada será possível. 19

Apenas desta morte, Epicuro teria confirmado o que diz da morte: -Pl:t.---da tenho a ver com ela pois quando ela cá estiver não estarei eu e en~anto cá estou ~estã efu:A morte humana está incluída na vida do espírito humano. A morte solar implica uma disjunção irreparavelmente excluente entre a morte e o pensamento: se há morte, então não ~. Negação pura e simples. Neniiüffiã conjugação põssível entre os dois. Ocorrência incontestável, desastre. Qualquer acontecimento, qualquer catástrofe que conhecemos e sobre os quais reflectimos não terão sido mais que ténues simulacros. Ora este acontecimento 'é fatal. E, sendo assim, vocês não se ocupam dele, permanecendo ocupados com a vida do espírito e a fenomenalidade terrena . Como Epicuro dizem: enquanto ela cá não estiver, estou cá eu e continuo a filosofar no tépido ambiente da conivência homem-natureza . Mas apesar de tudo com o triste pensamento reservado: depois de mim o cataclismo. O cataclismo da matéria. Concordem que esta é uma grande divergência entre o nosso pensamento e o pensamento clássico e moderno do Ocidente: a evidência da não existência @JlatJlTez~ mas apenas do monstro materiiij"doRêve de d'Alembert, a chôra do~ Timeu. A natureza foi o nosso inte utor nas coisas. 4 matéria não nos pergunta nada nem espera nenhuma resposta ssa. - acaso Ignora-nos . Criou-nos da mesma maneira que fez os corpos, ao e segundo as suas leis. Ou então procuram antecipar o desastre, evitá-lo com os meios do seu ordenamento que são os das leis da transformação da energia. Decidem enfrentar o desafio da mais que provável extinção da ordem solar e do vosso pensamento. E a tarefa então, a única, é bem perceptível e foi iniciada há muito tempo: simular as condições da vida e do pensamento de tal forma que uma ideia permaneça materialmente possível após a modificação do estado da matéria provocada pelo desastre. Esse é o grande objectivo de todas as pesquisas técnico-científicas de hoje, seja qual for o seu âmbito de investigação, desde a dietética à neurofisiologia, à genética e ao tecido de síntese até à física dos corpúsculos, à astrofísica, à electrónica, à informática e ao nuclear. E pareçam o que parecerem ser os objectivos próximos: saúde, guerra, produção, comunicação, em benefício do ser humano, dizem eles. Sabem, a técnica não é uma invenção dos homens. Talvez o contrário. Tanto antropólogos como biólogos admitem que o organismo vivo, mesmo o mais simples como sejam os infusórios, pequenas algas

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existentes na beira das poças, sintetizadas pela luz há já milhões de anos, são um dispositivo técnico. É técnico qualquer sistema material que filtre informação útil à sobrevivência, que a memorize e a trate, e que induza, a partir de uma instância reguladora, determinadas condutas, ou seja, a intervir sobre o meio ambiente assegurando pelo menos a sua perpetuidade. O ser humano não é por natureza diferente de um tal objecto. O seu sistema de captura de dados não é excepcional se comparado ao de outros seres vivos. É apenas omnívoro em matéria de informação, sendo o seu sistema regulador (códigos e regras de tratamento) mais diferenciado e a sua capacidade de armazenamento mais elevada. Encontra-se sobretudo dotado de um sistema simbólico, que o torna ao mesmo tempo arbitrário na sua semântica e na sua sintaxe, o que lhe garante uma maior independência face ao que o cerca no mais imediato, e recursivo (Hofstadter) o que lhe permite tomar como referência, para além das informações em si, a maneira de as tratar, isto é, ele mesmo. Ou seja, de lidar com as suas próprias regras de uma forma organizada como se se tratassem de informações e de induzir outras maneiras de as tratar. É em suma uma organização viva, não apenas complexa, eu direi antes replexa. Pode curar-se a si própria na qualidade de meio como em medicina, de órgão como numa actividade finalizada, de objecto como na reflexão (e refiro-me tanto à estética como à especulativa). Pode inclusivamente abstrair-se de si mesma e ter apenas em conta as suas regras de tratamento como em lógica e matemática. O limite que se opõe a esta recursividade simbólica reside nas necessidades resultantes do local onde está, seja qual for o nível méta- do seu funcionamento, ou seja, manter simultaneamente as regulações que asseguram a sua sobrevivência no meio em que se encontra. Não é exactamente isto o que funde a vossa transcendência na imanência? Ora até aos nossos dias, este meio é o terrestre. A sobrevivência da organização pensante exige modificações para com este meio para que aquilo a que chamamos corpo humano se possa perpetuar. Isto é igualmente verdade para o funcionamento méta- por excelência que é o pensamento filosófico. Para pensar é preciso pelo menos respirar, comer, etc. Será sempre necessário «ganhar a vida». O corpo pode ser considerado como o hardware do complexo dispositivo técnico que é o pensamento. Sem o seu bom funcionamento as vossas operações extremamente complexas, as meta-regulações de potência três ou quatro, as desregulações controladas que vocês tanto

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apreciam, são impossíveis. A vossa filosofia do fim sem fim, da morte imortal, da diferença incessante, do incidível, é uma expressão, e pode ser a expressão por excelência, da meta-regulação. Como se esta por sua vez se tomasse como referência enquanto méta-, Pois muito bem, mas não esqueçam que esta faculdade de mudar de nível referencial não advém de outro sítio que não seja o do poderio simbólico e recursivo da linguagem. Ora este último é nem mais nem menos que a forma mais complexa das «memórias» (vivas e mortas) que regulam todos os seres vivos e que criam objectos técnicos melhor adaptados ao meio ambiente que os conjuntos mecânicos. Dito de outra forma, a vossa filosofia não é possível uma vez que o conjunto denominado «homem» está dotado de um sistema lógico muito sofisticado. Mas também este software, a linguagem humana, está dependente do estado do hardware. Este, por sua vez, será consumido pela explosão solar que arrastará na sua combustão o pensamento filosófico da mesma forma que arrastará qualquer outro. O problema das tecno-ciências enuncia-se então: garantir a este software um hardware que seja independente das condições da vida terrestre. Seja: tornar possível um pensamento sem corpo, que persiste após a morte do corpo humano. Só a este preço a explosão será pensável e a morte do Sol será uma morte como as outras que conhecemos . Pensar sem corpo é a condição para poder pensar na morte dos corpos , solares e terrestres, e em pensamentos dissociáveis dos corpos. Mas sem corpo num sentido preciso: sem o comp'jxo organismo vivo terrestre conhecido como o corpo humano. Não sem hardware, como é evidente. Em princípio a solução é muito simples: conceber um hardware capaz de «alimentar» um software que seja igualmente complexo, e digo: replexo, como o é o cérebro humano actual, só que em condições não terrestres. Isto significa apenas: encontrar, para o «corpo» em questão, um «alimento» que nada deva aos componentes bioquímicos sintetizados à superfície da Terra pela acção da energia solar. Ou então ser capaz de realizar tais sínteses em qualquer lugar que não seja a Terra. Numa conclusão que serve os dois casos, conceber um hard capaz de suster o nosso soft ou o seu equivalente, mas que este se conserve a partir de fontes de energia disponíveis no cosmos. É óbvio, mesmo para o ignorante que sou, que o nuclear, a elec-

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• trónica, a fotónica e a informática conjugadas, abrem as portas à construção de objectos técnicos, de capacidade não apenas física mas cognitiva e que «extraem» (ou seja seleccionam, tratam e consomem) as energias de que necessitam para funcionar sob formas amplamente propagadas pelo cosmos. Isto quanto ao hard. Em relação ao soft com o qual estas máquinas têm de estar equipadas, ele é objecto de pesquisas sobre inteligência artificial e das polémicas que as rodeiam. Vocês, filósofos, escritores, artistas, desprezaram desde muito cedo o reles desempenho dos programas que os logiciais actuais produzem. É certo que estas «máquinas de representar», como diz Monique Linard, de pensar, são fracas se comparadas com o cérebro humano comum, mesmo pouco exercitado. Poderemos sempre argumentar que os programas que «entram» nesses computadores são elementares e que será necessário aguardar o progresso da informática, nas linguagens artificiais, na transmissão de mensagens. É verosímil, mas a objecção maior reside exactamente no princípio destas inteligências. Foi resumida em algumas teses por Hubert L. Dreyfus. A decepção causada por estes órgãos de «pensamento sem corpo» provém do facto de as operações serem efectuadas em lógica binária, aquela que se impôs com a lógica matemática de Russell e Whitehead, a máquina de Turing, o modelo neuronal de McCulloc e Pitts, a cibernética de Wiener e von Neumann, a álgebra de Boole, a informática de Shannon. Ora, objecta Dreyfus, o pensamento humano não raciocina em termos binários. Não trabalha por unidades de informação (os bits), mas por configurações intuitivas e hipotéticas. Aceita dados imprecisos, ambíguos, que não se apresentam seleccionados segundo um código ou uma capacidade de leitura pré-estabelecidos. Não negligencia os apartes, as margens de uma situação. Não é apenas focalizado mas também lateral. Pode discriminar o que é importante e o que não é sem fazer uma recolha e uma selecção exaustiva dos dados e sem testar a sua importância face ao fim pretendido, através de uma série de ensaios e de erros. Como Husserl mostrou, o pensamento ausculta um «horizonte», visa um «noema», um tipo de objecto, uma espécie de monograma não conceptual que lhe fornece configurações intuitivas e que abre «à sua frente» um campo de orientação e de espera que é mais do que um frame (Minsky). E neste «desenquadrado» que seria 23

mais como um esquema. ele avança na direcção do que procura «escolhendo». ou seja. separando e reunindo os dados de que precisa mas sem dispor no entanto de critérios pré-estabelecidos que determinam à partida o caminho da escolha. Não deixaremos de associar a este quadro a descrição que Kant fazia do processo de pensamento que denominou julgamento reflexivo: uma maneira de pensar não dirigida por regras de determinação dos dados, mas que demonstra eventualmente ser capaz de elaborar estas regras a partir de resultados objectivos depois da reflexão. Esta descrição do pensamento reflexivo oposta ao pensamento determinante não esconde. nem em Husserl nem em Dreyfus, o que fica a dever à experiência perceptiva . Existe um campo de pensamento da mesma forma que existe um campo de visão (ou de audição); o espírito orienta-se aí tal como o olho no entendimento sensível. Esta analogia dominava já os trabalhos de Wallon em França. por exemplo. e os de Merleau-Ponty. É «bem conhecida». Importa no entanto salientar que não é extrínseca mas intrínseca. Não descreve apenas um pensamento analógico. no seu processo. com uma experiência perceptiva. Descreve um pensamento que se processa analogicamente, e não logi. camente, nada mais. Onde os processos do tipo: «assim como .... do mesmo modo ... »; ou: «como se...• então». ou ainda: «como o p está para o q. o r está para o s» são privilegiados relativamente aos processos digitais do tipo «se.... então ... » e «p não é não -P». Estas são as operações paradoxais que constituem a experiência do corpo. do corpo dito «próprio», fenomenológico. no seu espaço-tempo de sensibilidade e percepção. Eis porque seria conveniente tomá-lo como exemplo na produção e programação das inteligências artificiais. se entendermos que as mesmas não se limitam à faculdade de raciocinar logicamente. Podemos ver. por esta objecção, que o que torna inseparáveis o pensamento e o corpo. é muito simplesmente o facto deste último ser o indispensável hardware do primeiro, a sua condição material de existência é que cada um deles é análogo ao outro no seu relacionamento com o respectivo ambiente (sensível. simbólico). sendo o próprio relacionamento em si do tipo analógico nos dois casos. Encontramos nesta descrição uma forte razão para não apoiar a hipótese recentemente introduzida por Putnam da «separabilidade» de princípio da inteligência, através da qual era sua intenção legitimar o empreendimento da inteligência artificial. 24

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ELA Haveria aqui com que nos satisfazermos, nós filósofos. Pelo menos com que apaziguar uma parte das nossas inquietações. Um campo perceptivo tem limites mas são limites que se encontram fora de alcance . Um objecto visual, se bem que ofereça ao olhar uma das suas faces, esconde sempre outras. Uma visão correcta e focalizada rodeia-se sempre de uma zona curva ondc;o. xj§íveI se dissimula sem no entanto estar ausente. Disjunção inclusiva. E n~ me refiro à memória que só por si põe em causa o olhar mais simples. ~_yisão actual conserva consigo a imagem percepcionada no instante anterior sob outro ãngulá. Antecipa a de há pouco. Destas síntese resultam identificações de õbjectos, que nunca chegam a ser completas e que um olhar u tenor pC;derá sêmpre solicitar, anular. E o olho, nesta experiência, encontra-se constantemente em busca do reconhecimento, da mesma forma que o espírito o pode estar de uma descrição completa do objecto que ele procura pensar, sem que no entanto o observador possa, a qualquer momento, afirmar que reconhece perfeitamente o objecto, uma vez que o seu campo de apresentação é absolutamente individual em cada caso e que um olhar verdadeiramente observador não pode esquecer que há sempre mais ainda para ver, a partir do momento em que o objecto visto tenha sido «identificado». . ~( reconhecim ento » perceptivo não satisfaz nunca a exigência lógica da descrição completa. - :§sta li a expenêncla, a subtilidade. a incerteza. a fê no mesgotável sensível, que conotamos ao falarmos com seriedade de analógico, e não ai)eiiãSã um modo de transporte dos dados sobre uma superficie de inscrição que não é originariamente a sua. Da mesma forma , também a escrita é mergulhada no campo das frases , por onde avança à custa de tentativas, de ensaios, ao encontro do que «quer dizer» e não ignorando nunca, quando pára, que o que fez foi suspender por um instante (que pode ser toda uma vida) a sua exploração e que, para além desta escrita parada, estão uma infinidade de palavras, de frases e de sentidos latentes, sofredores talvez, e tantas coisas «para dizer» como no principio. A verdadeira «analogia» requer que a máquina pensante ou representadora se insira no meio dos seus «dados» como os olhos se inserem no visual ou a escrita na língua (no sentido mais amplo). Não basta que estas máquinas simulem pouco mais ou menos os resultados da visão ou da escrita. Trata-se de (o francês tem esta expressão

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· bonita e adequada) «dar corpo» ao pensamento artificial de que elas são capazes. E é este o corpo, ao mesmo tempo «natural» e artificial, que será necessário transportar para longe da terra antes da sua destruição, se o que se pretende é que o pensamento sobrevivente à explosão solar seja algo diferente do miserável esqueleto binarizado de que se constituía anteriormente. Com efeito, se assim fosse teríamos alguma razão para não desesperar com a tecnociência, Se um tal «programa» é ou não realizável , nada sei. E terá fundamento pretender pôr num programa uma experiência que desafia, senão a programação, pelo menos o programa, como é o caso da visão do pintor ou da escrita? Esta é uma experiência ao vosso dispor. Afinal, isto é para vocês um problema urgente, o da compreensão da linguagem comum pelas vossas máquinas. Problema com o qual se deparam, em particular, na situação de interactividade entre o terminal e o operador. É nesta interacção que reside o contacto entre a vossa inteligência artificial e a inteligência ingénua transportada nas línguas ditas «naturais», imergida nelas. Mas há uma outra questão que me inquieta. Será outra? Existe uma imbricação do pensar e do sofrer. Disseram vocês que estas palavras, estas frases em instância de escrita, estas nuances e estes timbres em latência ao redor da pintura e da música a criar, não se deixam encerrar. E mesmo quando inscritos sobre a folha ou a tela, continuam a «dizer» outra coisa diferente do que «queriam ter dito» , pois são mais velhos que a intenção actual, sobrecarregados de utilizações, ou seja ligados a outras palavras, frases, nuances, timbres . Exactamente por isto constituem um campo, um «mundo», o «bravo » mundo humano de que vocês falam mas que na verdade é mais uma opacidade de além-horizontes a serem desbravados. Quando pensamos em descrever o pensamento sob a forma de uma selecção de dados e da sua articulação, calamos a verdade: os dados não são dados mas dáveis e a selecção não é uma escolha. Pensar, assim como escrever ou pintar, é quase s6 receber o que nos chega a partir dos dados. Na discussão tida sobre estes assuntos no ano passado em Siegen, a ênfase foi exactamente colocada sobre o tipo de vazio que o artista-guerreiro japonês ao caligrafar, o comediante ao actuar, devem obter do seu corpo e do seu espírito, um certo tipo de suspensão dos motivos habituais do espírito que se encontram associadas aos habitus, às disposições do corpo. É a este preço, disseram-nos Glen e Andreas - e vocês a pensar que eu

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concordaria, com as ajudas de Dôgen, Diderot e Kleist - que o pincel acabará por encontrar as formas «certas», que a voz e o gesto cénicos se verão dotados dos tons e alturas «certos». Este lançamento no vazio, esta evacuação, contrariando uma actividade identificatória, selectiva , conquistadora, não são conseguidos sem sofrimento. Não quero com isto dizer que a graça de que falava Kleist, a graça do traço, do timbre , do volume, seja conquistada, isso seria presunçoso , mas ela chama-se. É necessário desobstruir o corpo e o espírito para que ela possa tocá-los. Isto não se consegue sem sofrimento. É o prazer do adquirido que se perde. Também aqui, teriam por certo reparado, é preciso passar pela experiência do corpo, recorrer a casos exemplares de ascese corporal para poder compreender e fazer compreender esta espécie de limpeza do espírito, tão necessária para que ele possa pensar. O que nada tem a ver com a «tabula rasa», com o que se pretendia (em vão) em Descartes, que o pensamento conhecedor começasse do zero, o que, paradoxalmente, só pode ser um recomeçar do zero. Mas naquilo a que chamamos pensar, o espírito não é por nós «dirigido» mas suspenso. Não lhe fornecemos regras mas ensinamo-lo a acolher. Não desbastamos o terreno para construir com mais luz, entreabrimos uma clareira onde a penumbra do quase dado poderá entrar e modificar o seu contorno. Um exemplo deste trabalho pode ser encontrado , mutatis mutandis, na Durcharbeitung freudiana. Onde se vê com clareza, sem querer insistir nisto, com que dor o pensamento a trabalhar é pago. Este pensamento não tem qualquer ligação especial com a combinação estabelecida de símbolos. Mas a combinação quando procura e aguarda a sua regra pode estar intimamente ligada ao pensamento. A dor de pensar não é um sintoma que, vindo de qualquer parte, se instala no espírito em vez de ocupar o seu verdadeiro lugar. É o próprio pensamento em si que, convertido à irresolução, decide tornar-se paciente e querer não querer, querer, exactamente, não querer dizer em vez do que deve ser significado . Reverência feita a este dever, que ainda não tem nome . Este dever talvez não seja uma dívida, mas apenas o meio pelo qual o que ainda não é, a palavra, a frase, a cor, há-de chegar. De maneira que o sofrimento de pensar é um sofrimento do tempo, do acontecimento. Resumindo: será que as vossas máquinas de pensar, de representar, sofrem? Que futuro poderão ter se não passam de memórias? Dir-me-ão que pouco importa, desde que possam

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«concretizam a relação paradoxal dos ditos «dados», que são apenas quase-dados, dáveis, tal como acabo de descrever. Não acredito em nada disto. Este sofrimento, se é que com efeito ele define o verdadeiro pensamento, deve-se ao facto de pensarmos o que já antes foi pensado, o que já está inscrito, e na enorme dificuldade em mantê-lo afastado ou em retomá-lo sob outra forma, para que o que ainda não foi pensado possa chegar e inscrever-se aquilo que o deva ser. Não me refiro apenas às palavras que faltam na superabundância das palavras disponíveis, mas à maneira de as interligar, a despeito de articulações que nos inspiram a lógica, a sintaxe das nossas línguas, os trejeitos adquiridos pela nossa leitura. (A Sepp, espantando-se que todo o pensamento, segundo eu, exija e arraste inscrição, eu digo: nós pensamos, e fazemo-lo a partir deste mundo de inscrições já feitas, chamemos-lhe cultura, se quiserem. E se pensamos, é porque no entanto existem lapsos nesta plenitude e é preciso encontrar lugar para estas faltas através da limpeza do espírito que permite que outra coisa sobrevenha, outra coisa que ainda falta pensar. Mas esta não pode «vir» se não estiver inscrita na sua vez). O ainda não pensado faz-nos mal pois sentimo-nos bem entre o já pensado. E pensar que afinal aceitar este mal, é também, para o dizer sumariamente, encontrar maneira de acabar com ele. Esta a esperança que carrega toda a escrita (pintura, etc.); que no fim, será melhor. Como não existe fim, a esperança é ilusória. Pois bem seria necessário que o não pensado fizesse mal às vossas máquinas, que faça mal à sua memória, o não inscrito que falta inscrever, percebem? Senão, porque se meteriam elas a pensar? São precisas máquinas que sofram com o encobrimento da sua memória. (Mas o sofrimento não tem boa reputação na megalópole tecnologista. Sobretudo o sofrimento de pensar. Já nem faz rir, não temos ideia dele. O espírito está no «ludismo», quando não está em performance. Enfim, o corpo humano é sexuado. Sabemos bem que esta diferença, a dos sexos, é o paradigma do incompleto não apenas dos corpos mas dos espíritos. É mais que certo que existe algo de masculino na mulher e algo de feminino no homem. Senão, como poderia existir num dos sexos a ideia do outro e a emoção por aquilo que lhe falta? Falta-lhe porque existe nele, no mais íntimo do corpo e da mente, assim como um velador, na reserva, de lado, indirectamente, no horizonte. Inapreensível. Ainda a transcendência na imanência. A ideia de

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sexo que reina na sociedade contemporânea impõe que se esconda esta falha, que se desfaça esta transcendência, que se ultrapasse o «impoder». Supostos parceiros passam contrato em face de um comum «go: zo», disposição-prazer, da própria diferença sexual. Em contrato fica assente que nem um nem outro sofrerão com esta associação e que ao primeiro sinal de falta, por falta ou não, de desfocalização, de descontrolo e de transcendência, dá-se a ruptura, a palavra é demasiado forte, será um abandono puro e simples. E se a moda desejar que de tempos a tempos o «amor» seja restabelecido, no seu lugar, em todas as montras de objectos a expor, é a título de relação sexual, «topo da gama», reservado às sumidades do star system e difundido como excepção invejável. Vejo nesta disposição o indício de que a tecnociência acostuma o pensamento a negligenciar o diferendo que transporta consigo mesma. Não sei se a diferença sexual é uma diferença ontológica. Como sabê-lo? A minha pequena descrição fenomenológica é ainda demasiado branda. A diferença sexual não está apenas ligada ao corpo que experimenta a sua condição de incompleto mas ao corpo inconsciente, ou ao inconsciente como corpo. Ou seja, separado do pensamento, inclusive do pensamento analógico . Esta diferença está por hipótese fora de controlo. É ela, talvez, porque inscreve os seus efeitos , como Freud demonstrou ao descrever o que acontece em seguida, sem que a inscrição seja memorizada no sentido da lembrança, é ela que, talvez, pelo inverso dispõe inicialmente o campo de percepção e o campo do pensamento segundo a condição da espera, da fuga de que falei. E parece muito provável que seja ela que define o sofrimento, no entender e no conceber, o sofrimento ocasionado pela impossibilidade de unificar e de determinar completamente o objecto em vista. Aquilo que seria, sem a diferença dos sexos, uma experiência neutra do espaço-tempo das percepções e dos pensamentos, uma experiência onde este sentimento de incompleto não existiria como infelicidade e que daria lugar a uma simples estética cognitiva pura, ela junta-lhe o sofrimento de um abandono porque ela lhe traz o que nenhum campo de visão ou de pensamento comporta em si, a procura. A faculdade de transcender o dado de que falavam, alojado na sua imanência, encontra sem dúvida os seus meios na recursividade da linguagem humana, mas faculdade não é apenas possibilidade , é força e esta força é o desejo. Será pois necessário que a inteligência que vocês preparam para so-

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breviver à explosão solar possua em si mesma, na sua navegação interestelar, esta força. Que as vossas máquinas não se alimentem apenas de radiações, mas do diferendo irremediável dos sexos. E é aqui que é necessário retomar a questão da complexidade. Concordo com o pensamento físico de que o desenvolvimento tecno-científico é o aspecto que toma presentemente à superfície da terra um processo de nég-entropia ou de complexificação em curso desde os primórdios da existência da terra. Concordo que o humano não é, nunca foi, o motor mas sim o efeito, e o portador, o continuador. Concordo que a inteligência sem corpo, que tudo e todos se esforçam por criar, permitirá reanimar o desafio oposto ao processo de complexificação através do marmoto entrópico que constitui, sob esse ponto de vista, a futura explosão solar. E que com o exílio cósmico desta inteligência, um lugar de enorme complexidade, um centro de nêg-entropia, terá escapado ao mais provável, ao destino prometido a todo o sistema isolado pelo segundo princípio de Carnot. Exactamente porque esta inteligência não se deixará isolar na sua condição terrestre-solar. Juntando tudo isto, admito que não é o desejo humano de conhecer e transformar a realidade que move a tecno-ciência, mas uma circunstância cósmica. Vejam apenas isto: a complexidade desta inteligência excede a dos sistemas lógicos mais sofisticados , é de outra natureza. O corpo humano como um todo material, obstrui a separabilidade desta inteligência, o seu exílio, e portanto a sua sobrevivência. Mas o corpo, fenomenológico, mortal, receptor, é ao mesmo tempo o único analogon disponível para pensar uma certa complexidade da mente. O pensamento utiliza analogias com profusão. Também na descoberta científica, naturalmente, «antes» de estabelecer a sua operacionalidade sobre os paradigmas. Esta potência analogisante pode, por outro lado , voltar a exercer-se sobre a analogia espontânea do corpo perceptor para educar o olhar de Cézanne, o ouvido de Debussy a ouvir e a ver dados, nuances, timbres «inúteis» à sobrevivência, mesmo cultural. Mas, mais uma vez, esta faculdade analogisante de que o corpo e a mente dispõem analogicamente um ao outro e que trocam na arte de inventar, é mínima se comparada com a transcendência irreparável inscrita no corpo pela diferença dos sexos. Nem o cálculo nem a analogia conseguem decifrar o que sobra desta diferença. Ela faz pensar sem fim, ela não se deixa pensar. A mente não pode ser separada do corpo 30

fenomenológico. Mas o corpo sexuado está separado da mente e dirige-a. Sentimo-nos tentados a ver nesta diferença uma explosão primordial, um desafio que se opõe à mente , comparável à catástrofe solar. Mas não é esse o caso uma vez que ela, reservada no íntimo dos corpos e das mentes, provoca infinitamente o pensamento. Ela apenas aniquila o Um. É para esta complexidade, esta separação sem fim, que deve ser preparado o pensamento pós-solar. Senão, será ainda a entropia o piloto do Exodus espacial. .

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REESCREVER A MODERNIDADE

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Este título, reescrever a modernidade, foi-me sugerido por Kathy Woodward e Carol Teneson, do Center of XXth Century Studies de Milwaukee. Agradeço-lhes. Parece-me bastante preferí"'e1 às rubricas habituais como «pós-moder'ííIdãae», «pós-modermsmo», «pós-moderno», s~uals é geralmente colocado este hpo de renexão~~ A tagem consiste em duas deslocações, a transformação do prefixo «pós-» em «re-», do ponto de vista léxical e a aplicação sintáxica do prefixo assim modificado no verbo «escrever» em vez do substantivo «modernidade» . Esta deslocação dupla indica duas direcções principais . Primeiramente faz realçar a futilidade de qualquer periodização da história cultural em termos de «pr ê-» e de «p ós-», de antes e de depois pelo simples facto de não resolver a posição do «agora», do presente a partir do qual é suposto podermos adoptar uma perspectiva legítima sobre um decurso cronológico. Para mim, velho filósofo «continental», tal efeito não deixa de recordar a análise que Aristóteles faz sobre o tempo no livro IV da Física. É impossível, e o sentido é em suma este, determinar a diferença existente entre o que aconteceu (o proteron, o anterior) e o que está para acontecer (o husteron, e o ulterior) sem situar o fluxo dos acontecimentos face a um «agora». a um now . Mas também não é menos impossível apoderarmo-nos desse «agora» que é constantemente arrastado por aquilo a que chamamos o fluxo da consciência, o curso da vida. das coisas, dos acontecimentos, como quisermos - ele não cessa de se dissipar . De maneira que ele nunca chega a ser demasiado cedo nem demasiado tarde ao mesmo tempo para que

van:

Texto de uma exposição traduzido (e modificado) e apresentado na Universidade do Wisconsin, Milwaukee e Madison , em Abril de 1986. Publicado em inglês in Substance, Outono de 1987; em francês in Cahiers de Philosophie, 5, 1988.

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qualquer coisa como um «agora» possa ser apreendido de uma maneira identificável. O «demasiado tarde» assinala um excesso no «partir», no desaparecer, o «demasiado cedo» um excesso no advir . Excesso sobre o quê? Sobre a intenção de identificar, sobre o projecto de apreender e reconhecer um «sendo» que seja «aqui e agora» , a própria coisa em si. Quando este argumento é aplicado à modernidade, tem como resultado que nem a modernidade nem a dita pós-modernidade podem ser identificadas e definidas como entidades históricas claramente circunscritas, onde a segunda chegaria sempre «depois» da primeira. Falta precisar, pelo contrário, que o pós-moderno está já compreendido no moderno pelo facto de que a modernidade, a temporalidade moderna comporta em si o impulso para se exceder num estado que não é o seu. E não apenas a exceder-se nele mas a converter-se nele como uma espécie de estabilidade última como seja a que visa por exemplo o projecto utópico, mas também o simples projecto político presente nos grandes elogios da emancipação. Devido à sua constituição, e sem descanso, a modernidade está grávida do seu pós-modernismo. Mas, mais que o pós-moderno, o que realmente se oporia à modernidade seria a idade clássica. Esta comporta com efeito um estado do tempo, digamos: um estatuto da temporalidade onde o «advir» e o «partir», o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, englobassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido. Essa seria, por exemplo, a maneira pela qual o mito organiza e distribui o tempo: ritmando, até os fazer rimar, o princípio e o fim da história por ele contada. Sob o mesmo ponto de vista, observa-se que a periodização da história está de certa forma ligada a uma obsessão que é característica da modernidade. A periodização é uma maneira de colocar os acontecimentos numa diacronia, e esta é comandada pelo princípio de revolução. Da mesma forma que a modernidade contém a promessa da sua ultrapassagem, está da mesma forma indigitada a marcar, a datar o fim de um período e o início do seguinte. Logo que uma nova era é inaugurada e reputada como inteiramente nova, é conveniente ajustar o relógio à nova hora, de a fazer começar do zero. No cristianismo, no cartesianismo ou no jacobinismo este mesmo,gesto designa um Ano Um, o da revelação e da redenção no primeiro caso, da renascença ou 34

da renovação no segundo, ou ainda da revolução e da reapropriação das liberdades no terceiro. Estas três figuras do «re-» revelam um aspecto determinante da questão da rescrita. E é a segunda direcção indicada pela deslocação que denotei logo no princípio. É a própria ambiguidade do termo «reescrever» que assombra a ligação da modernidade com o tempo. Reescrever pode consistir nesse gesto que acabo de descrever, que faz. com que o relógio volte ao zero, que anula o passado, o gesto que a dada altura inaugura o início da nova era e da nova periodização. Esta utilização do «re-» no sentido de um retorno ao ponto de partida, a um começo supostamente isento de quaisquer pressupostos pois sempre imaginamos que os pressupostos resultem unicamente do armazenamento e da tradição das suposições que anteriormente acreditámos serem verdadeiras sem as termos no entanto re-considerado. O jogo que é desta forma jogado entre o «pre-» e o «re-» (aqui com o sentido de retorno) tem por objectivo apagar o «pre-» implicado em pelo menos algumas destas antigas suposições. É assim que é necessário entender, por exemplo, o nome «pré-história» que Marx dá a toda a história humana que tenha precedido a revolução socialista aguardada e preparada por ele. É possível agora clarificar uma segunda acepção, diferente, deste «re-». Ligado de maneira fundamental à escrita, ele não significa de maneira nenhuma um retorno ao começo mas, de preferência aquilo que Freud designou por «perlaboração», a Durcharbeitung», ou seja um trabalho dedicado a pensar no que, do acontecimento e do sentido de acontecimento, nos é escondido de forma constitutiva, não apenas pelo pressuposto anterior, mas também por estas dimensões do futuro que são o pro-jecto, o pro-grama, a pro-spectiva, e mesmo a pro-posição e o propósito de psicanalisar. Num texto curto, mas memorável, referente à técnica psicanalítica, Freud distingue repetição, rememorização e perlaboração, A repetição, originária da neurose ou da psicose, resulta de um «dispositivo» que permite que o desejo insconsciente se realize, organizando toda a existência do sujeito como um drama. Um destino, uma sina, esta a forma que tomaria a vida de um doente submetido à lei do desejo assim «disposta». A história de Édipo foi o modelo de Freud. No destino, o início e o fim da história rimam no que dessa história ressalta da organização «clássica» de que falei, do tempo, aquela em que os deuses, o 35

deus, como escreve Hõlderlin, não param de intervir. O dispositivo do desejo formulado pelo oráculo de Apolo estabelece desde logo os acontecimentos maiores com que Édipo irá deparar no decurso da sua história. A vida do rei está como que carimbada, o seu futuro inscrito no passado já revelado, o fatum que ignora e que portanto repete. As coisas não são pois tão simples como as relato. Tanto na tragédia de Sófocles como na análise freudiana , Édipo, ou o doente, procura tomar consciência, descobrir a «razão» ou a «causa» do mal que o atormenta e que o atormentou durante toda a sua vida. Quer relembrar-se. Quer condensar a temporalidade insubmissa, desmembrada. Este tempo perdido denomina-se infância . O rei Édipo resolve então descobrir a causa do mal, um pecado que estaria na origem da peste que assola a cidade. Deitado sobre o divã o doente parece estar empenhado numa busca semelhante. O caso é instruído, convocadas as testemunhas, recolhidas informações, como em qualquer romance policial. É assim que se trama a intriga que eu chamaria de segunda categoria, que desdobra a sua própria história sobre aquela em que se cumpre o seu destino e que tem por fim encontrar remédio para ela. É frequente que se entenda «reescrever a modernidade» neste sentido, o da relembrança, como se se tratasse de reparar e identificar os crimes, os pecados, as calamidades engendradas pelo dispositivo moderno - e por fim de revelar o destino que um oráculo, no princípio da modernidade, teria preparado e completado na nossa história . É sabido como, sob este ângulo, a reescrita pode ser enganadora. O logro reside no facto de as buscas sobre a origem do destino fazerem elas mesmas parte desse destino. E que a questão do principiar da intriga é posta no fim da intriga porque ela só constitui o fim. E à medida que o detective o desmascara, o herói vai-se tornando no culpado. É afinal a razão porque não existe o «crime perfeito» , o crime do qual nunca vem a ter-se conhecimento. Um segredo nunca seria um «verdadeiro» segredo se ninguém soubesse que é um segredo. Para que o crime seja perfeito, é preciso que seja conhecido perfeito, e por isso mesmo ele deixa de o ser. Ilustrando de outra maneira, mas permanecendo na mesma disposição de memória, ao estilo de John Cage, não existe silêncio que se faça escutar como tal e não faça pois qualquer ruído. Entre silêncio e som, entre criminoso e polícia, entre inconsciente e consciente, a mesma intriga, no fundo, trama uma intimidade. Se compreendermos «reescrever a modernidade » desta maneira, as36

sim como buscamos, designamos e nomeamos os factos ocultos que imaginamos estarem na origem dos males de que sofremos, ou seja: através de um simples processo de relembrar, não podemos deixar de perpetuar o crime, e de o perpetuar de novo em vez de lhe darmos um fim. Em vez de a rescrevermos de verdade, se é que tal é possível, o que fazemos é escrever mais e realizar a modernidade. É que o escrever é sempre a re-escrita. A modernidade escreve-se, inscreve-se sobre si mesma, numa re-escrita perpétua. Este logro pode ser ilustrado com dois exemplos. Marx detecta o funcionamento escondido do capitalismo. No centro do processo de emancipação e de tomada de consciência ele coloca a desalienação da força de trabalho. Assim acredita ter podido identificar e denunciar o crime original de onde nasce o infortúnio da modernidade: a exploração dos trabalhadores. E como um detective, imagina que ao revelar a realidade, ou seja a sociedade e a economia liberais, como uma mentira, permite à humanidade escapar desta grande peste. Sabemos hoje que o que a Revolução de Outubro fez, sob a égide do marxismo, é o que qualquer revolução faz e fará, reabrir a cicatriz. O local e o diagnóstico podem mudar mas é a mesma doença que ressurge nestas rescritas. Os marxistas acreditaram ter trabalhado para desalienar a humanidade e a alienação do homem repetiu-se, apenas se deslocou minimamente. Do lado filosófico, até hoje. Nietzsche esforçou-se por emancipar o pensamento, a maneira de pensar, daquilo a que chamou metafísica, ou seja deste princípio que prevalece de Platão a Schopenhauer, segundo o qual o único propósito dos seres humanos é o de descobrir o fundamento que lhes permita falar de acordo com a verdade e agir de acordo com o bem ou o justo. O pensamento nietzshiano tem por tema central o não existir nada «de acordo com», porque nada existe que seja princípio primeiro ou original, um «Grund», como o foi a ideia do Bem em Platão ou, em Leibniz, o princípio da razão suficiente. Qualquer discurso, inclusive o científico ou o filosófico, é apenas uma perspectiva, uma We/tanschauung. Mas Nietzsche por sua vez, não resiste à tentação de designar aquilo que funde as perspectivas e a que ele chama vontade de poder. A sua filosofia reitera assim o processo metafisico, realiza-lhe mesmo obstinadamente e repetitivamente a essência, pois a metafisica da vontade pela qual ele dá por concluído o processo é exactamente a mesma

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que encerram todos os sistemas filosóficos do Ocidente moderno. O que Heidegger mostra. Que a despeito de si mesma a reescrita nietzschiana repita e volte a cometer o mesmo erro e falha, faz-nos reflectir sobre o que seria uma rescrita que escapasse, se é que se pode escapar, à repetição do que é reescrito. O dinamismo do processo de rememorização poderia ser o próprio querer. É o que Freud prevê quando dissocia a Durcharbeitung, a perlaboração da relembrança, da Erinnerung. Ao relembrarmos, queremos mais ainda. Queremos agarrar o passado, apreender o que se torna passado, dominar, exibir o crime inicial, o crime original, perdido, manifestá-lo como tal, como se ele pudesse desembaraçar-se do seu contexto afectivo, das conotações do erro, da vergonha, do orgulho, da angústia, as quais ainda hoje se fazem sentir e que justamente motivam a ideia de uma origem . No esforço para encontrar uma causa objectivamente primeira, assim como Édipo, esquecemos que a vontade de identificar a origem do mal advém de uma necessidade do desejo. Porque é da essência do desejo desejar igualmente libertar-se de si próprio, uma vez que o desejo não é suportável. Pensamos assim pôr fim ao desejo e concretizamos o seu fim (tal é a ambiguidade da palavra fin em francês, objectivo e fim: a mesma do desejo). Tentar recordar é provavelmente uma outra maneira de esquecer . Se é verídico que o conhecimento histórico exige que o seu objecto seja isolado e subtraído a qualquer investida libidinal vinda do historiador, então é certo que desta maneira de «redigir» a história, mais não resultará que uma maneira de a «reduzir». Refiro-me a dois sentidos do conjunto das expressões latina redigere e inglesa putting down: deitar por escrito e reprimir . Da mesma forma que writing down sugere ao mesmo tempo a inscrição ou o registo e também o descrédito. Encontramos esta espécie de rescrita em muitos textos históricos. É a mesma que Nietzsche visa nas Considerações Intempestivas quando questiona a armadilha da pesquisa histórica. É sem dúvida a consciência dessa armadilha, ainda, que leva Freud a renunciar à sua hipótese sobre a origem das neuroses. Atribuiu-a ini- . cialmente ao que denomia «cena primitiva» , cena de sedução da criança pelo adulto. Ao abandonar o realismo inicial, Freud abre uma via, do outro lado da psicanálise, do lado do seu fim , à ideia de que o processo da cura poderia, deveria ser interminável. Contrariamente à

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rememorização, a perlaboração definir-se-ia como um trabalho sem fim e, portanto, sem vontade: sem fim, no sentido de não ser guiado pelo conceito de um objectivo, mas não sem finalidade. É pois neste gesto duplo, em direcção ao anterior e ao posterior, que reside a concepção mais pertinente que se possa ter sobre a reescrita. Sabe-se que Freud salienta particularmente a dita regra da «atenção igualmente flutuante», regra que o analista deve observar em relação ao paciente. Consiste em dar a mesma atenção a todos os elementos das fases proferidas pelo paciente, por mais insignificantes e fúteis que possam parecer. A regra diz em suma: não ter preconceitos, suspender o julgamento, receber, dar a mesma atenção a tudo o que acontece e à forma como acontece. Por seu lado, o paciente deve respeitar a simetria: libertar as palavras, dar livre curso a todas as «ideias», figuras, cenas, nomes, frases da forma como surgem na sua boca e no seu corpo, em «desordem», sem selecção nem repressão. Esta regra dá um novo significado à obrigação de ser «paciente»: não suportar de modo passivo e repetitivo a mesma paixão antiga e actual, mas aplicar a sua própria passibilidade, uma mesma resposta ou "répons" para tudo o que surge no espírito, entregar-se aos acontecimentos que lhe advêm de «qualquer coisa» que desconhece. Freud denomina esta atitude de «associação livre». É apenas uma maneira de ligar uma frase a outra sem se preocupar com o valor lógico, ético, estético da ligação. Perguntar-me-ão qual a relação desta prática com a rescrita da modernidade. Lembro que o único fio condutor de que dispomos na perlaboração é o do sentimento ou antes, da escuta do sentimento. Um fragmento de frase, um pedaço de informação, uma palavra que ocorra, ligando-se de imediato a uma outra «unidade». Não há raciocínio, argumento ou mediação. Ao proceder deste modo, aproximamo-nos pouco a pouco de uma cena, a cena de algo. Descrevêmo-la. Ignoramos o que é. Temos apenas a certeza de estar relacionada com o passado, o mais longinquo e o mais próximo; simultaneamente o nosso próprio passado e o dos outros. O tempo perdido não é representado como num quadro, nem sequer é representado. É o que representa os elementos do quadro, de um quadro impossivel. Reescrever é registá-los. É óbvio que esta reescrita não fornece nenhum conhecimento do

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passado. É também o que pensa Freud. A análise não está sujeita ao conhecimento mas à «técnica» e à arte. Não resulta na definição de um elemento passado mas pressupõe que o próprio passado seja o protagonista ou o agente que dá ao espírito os elementos com os quais a cena se irá constituir. Mas a cena não pretende reproduzir fielmente a pretensa «cena primitiva». Ela é «nova» porque é sentida como tal. Pode dizer-se que o já acontecido ainda está presente, vivaço, vivo. Não presente como um objecto, se é que um objecto pode estar presente , mas como uma aura, como uma brisa que sopre ligeira, como uma alusão. Em Busca do Tempo Perdido de Proust, o Sens Unique ou o Enfance Berlinoise de Benjamin operam de acordo com essa mesma techne (obviamente sem se cingir a ela). E correndo o risco de parecer estranho, acrescentarei que o processo de atenção livre e igualmente flutuante é objecto dos Ensaios de Montaigne. Em jeito de conclusão impossível, três observações. Em primeiro lugar, mesmo que Freud tenha encarado esta «técnica» como uma arte, como demonstra a palavra grega technê, não deixou de a pensar inscrita como um elemento constitutivo num processo de emancipação . Trata-se de, graças a ela, desmontar a retórica do inconsciente, os conjuntos pré-organizados de significados que constituem o dispositivo nevrótico' ou psicótico e que organizam a vida do sujeito na forma de um destino. Não me parece que esta hipótese seja ajustada. Ao descrever de forma sucinta o que entendo por rescrever, tinha em mente uma ideia que não poderei desenvolver aqui. Contento-me em assinalar o quanto a dita descrição da reescrita está relacionada com a análise de Kant sobre o trabalho da imaginação inerente ao gosto e ao prazer do belo. Tanto uma como outra atribuem a mesma importância à liberdade segundo a qual são tratados os elementos fornecidos pela sensibilidade e ambas insistem no facto de as formas em jogo no prazer estético puro ou na associação e escuta livres serem tão independentes quanto qualquer interesse empírico ou cognitivo o possa ser. A beleza do fenómeno é proporcional à sua fluidez, mobilidade e condição de efémero. O que é ilustrado por Kant em duas metáforas, a da chama inapreensível na fogueira e a do desenho evanescente formado pelas águas vivas de um ribeiro. Por fim, Kant conclui que a imaginação dá «muito a pensar» ao espírito, muito mais do que o trabalho conceituaI do entendimento o possa fazer. Esta tese está ligada à questão do tem40

po introduzida por mim no início. A apreensão estética das formas só é possível se se renunciar a toda a pretensão de dominar o tempo com uma síntese conceituaI. Porque o que está aqui em jogo não é a «recognição» do dado, como diz Kant, mas a aptidão para deixar aparecer as coisas da forma como se apresentam. Numa tal atitude cada momento, cada agora, é como que um «abrir-se a». Baseando-me nesta tese, citaria Theodor Adorno ou Ernst Bloch, e particularmente os Spuren deste último. No fim de Dia/ética Negativa e também na Teoria Estética, obra inacabada, Adorno dá a perceber que é de facto necessário reescrever a modernidade, que a modernidade é, afinal, a sua própria rescrita, mas que só pode ser rescrita sob a forma daquilo a que chama de «rnicrologias» e que não deixa de estar relacionado com as «passagens» de W. Benjamim. Acabo de salientar os traços comuns do livre jogo da imaginação estética e da associação ou atenção livres que estão em jogo na relação analítica. É também necessário marcar a sua heterogeneidade. Para ser breve vou inumerar as suas diferenças essenciais. Em primeiro lugar, o prazer inerente ao belo não é objecto de uma pesquisa. Surge ou não, apesar do artista procurar o seu efeito através do trabalho que executa. O artista nunca domina esse efeito de gosto. O prazer estético «abate-se» sobre o espírito como uma graça, uma «inspiração». Pelo contrário, o discurso do paciente ou a escuta do analista representam um trabalho, a perlaboração, «livre» nos seus meios mas chamada a um objectivo. Este não é decerto um conhecimento, é sim a aproximação a uma «verdade» ou «realidade» inapreensiveis . Se assim for, e em segundo lugar, é porque o trabalho analítico encontra a sua motivação no sofrimento insuportável que divide o sujeito dentro de si ao mesmo tempo que conserva esse sofrimento de forma repetitiva. Errado seria imaginar que a cura pudesse originar a reconciliação da consciência e do inconsciente. A cura não tem fim porque o desapossar do sujeito, a sua sujeição a uma heteronomia, é-lhe constitutiva. O que nele existe de infans, de inaptidão para proferir, é irredutível. Pelo contrário, o prazer do belo, como Stendhal e Adorno o escrevem, é uma «promessa de felicidade», ou, como Kant, a promessa de uma comunidade sentimental, sensus communis do sujeito para consigo e para com os outros. E por fim, do mesmo modo que existe uma estética do sublime que

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tem origem na distensão das formas belas até ao «disforme» (Kant) e que por isso mesmo conduz ao transtorno, à destruição da estética do belo, existe também a necessidade, segundo a tese freudiana , de dissociar do recalcamento secundário que origina «formações» do sonho, do sintoma, do acto falhado, etc - todas representações do inconsciente nos confins da cena consciente -, é necessário dissociar o que Lacan chamava «a Coisa» e Freud «a afectação inconsciente», os quais nunca se deixam representar. O recalcamento original , estreitamente ligado a essa Coisa, teria o mesmo valor para o recalcamento secundário que o sublime face ao belo. Reescrever, como o entendo aqui, diz respeito à anamnese da Coisa. Não só a Coisa que representa o ponto de partida para uma singularidade dita «individual» mas a Coisa que assombra «a linguagem» , a tradição , o material com o qual, contra o qual e no qual se escreve. Assim, a reescrita depende tanto de uma problemática do sublime, e hoje ainda mais e mais obviamente, do que do belo. Isto abre a grande porta para a questão das relações entre a estética e a ética. A minha segunda observação final é das mais simples. O que é aqui denominado reescrita não está relacionado de forma evidente com a pós-modernidade e o pós-modernismo no mercado das ideologias contemporâneas. Não tem nada a ver com a utilização de imitações e de citações de obras modernas ou modernistas como podem ser observadas na arquitectura, pintura ou teatro. E menos ainda com esse movimento da literatura que regressa às formas mas tradicionais da narrativa . Às formas e aos conteúdos. Eu próprio me servi do termo pós-moderno. Era uma forma algo provocatória de colocar ou de deslocar o debate sobre o conhecimento à luz do dia. A pós-modernidade não é uma era nova. É a reescrita de alguns traços reivindicados pela modernidade , e antes de mais da sua pretensão em fundar a sua legitimidade no projecto de emancipação de toda a humanidade com a ciência e com a técnica. Mas esta reescrita já o disse, está desde há muito em curso na própria modernidade. A última observação debruça-se sobre as questões originadas pela introdução espectacular das novas tecnologias na produção, difusão, distribuição e consumo dos bens culturais. Porquê fazer-lhes menção? Porque estão a transformar numa indústria aquilo que chamamos de cultura. Esta observação é banal. É também possível encarar esta mudança como uma reescrita. É uma palavra admitida pela gíria jornalís42

tica, «re-writing» e que se refere a uma já velha profissão. Este termo consiste precisamente em apagar todas as marcas deixadas num texto por associações inesperadas e «fantasistas». As novas tecnologias deram grande impulso a esse trabalho já que submetem a cálculo exacto qualquer inscrição sobre qualquer suporte, imagens visuais, sonoras, palavra, linhas musicais e por fim a própria escrita. A meu ver, o resultado notável deste processo não consiste, como Baudrillard o julga, na constituição de uma imensa rede de simulacros. Parece-me que o que é realmente perturbante é, muito mais, a importância do conceito de unidade de informação do bit. Com os bits já não se trata de formas livres dadas aqui e agora à sensibilidade e à imaginação. Pelo contrário, são unidades de informação concebidas pelo engenho do computador e que podem ser definidas em todos os níveis de linguagem: léxica, sintáctica, retórica, etc. São agrupados em sistemas segundo um conjunto de possibilidades (um «rnenu») sob controlo de um programador. Se bem que a questão posta pelas novas tecnologias face à ideia de reescrita como expressa aqui, pudesse ser formulada da seguinte forma: admitindo que a perlaboração é antes de mais assunto da livre imaginação e que exige o desdobrar do tempo entre «ainda não», «já não» e «agora», o que é que poderá ser preservado e conservado após a utilização das novas tecnologias? De que modo poderá a perlaboração esquivar-se à lei do conceito, da recognição e da predi ção? Por agora contentar-me-ei com a seguinte resposta: reescrever a modernidade é resistir à escrita dessa suposta pós-modernidade.

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MATÉRIA E TEMPO

Uma das questões levantadas é: a utilização do ..k.onceito de matéria na filosofia contemporânea. O que significa a questão? O que é «a util~ção de um Conceito»!:;erá este último uma ferramenta? E qual será o objectivo dessa utilização? Na questão, vejo a predominância de um pensamento tecnologista do pensamento, ou seja o pensamento como trabalho . Uma energia mecânica, potencial e/ou cinética, é aplicada a um objecto para transformá-lo (deslocação no espaço; modificação quantitativa: aloiôis): utilização «produtiva». Ora , em dinâmica, tal objecto é chamado de ponto ou sistema material. Com a matéria vêm a força, os diferentes géneros de energia e o trabalho. Tratar-se-á de metáforas? Ou então será assim que opera o que continuamos a chamar de pensamento? Uma energia que seria aplicada a um ponto material para o transformar? O «conceito» desempenhando então o papel de transformador? Existem várias famílias de transformadores porque existem várias formas revestidas pela energia: mecânica, calorífica, eléctrica, química, irradiante, nuclear. Será necessário acrescentar: pensante ou espiritual, como dizia Bergson? Os «pontos materiais» aos quais se aplica cada um desses géneros de energia são todos diferentes. A mecânica cartesiana estuda «corTexto extraído do seminário «La rnatiêre et les immatériau x» organ izado em Abril de 1985 pelo Espaço de seminário do Centre Georges-Pompidou, por iniciativa do seu director, Christian Descamps. Neste seminário participaram: Francis Bailly, Fernando Gil, Vittorio Gregotti, Dominique Lecourt, Fernando Montes, Jean Petitot, Paolo Portoghesi, Gianni Vattino.

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pos» perceptíveis à observação humana e transformações analógicas à experiência humana. As transformações de elementos, como a do urânio 238 em neptúnio, bombardeando os núcleos por meio de neutrões, não só não estão à nossa escala, como também requerem uma ideia da matéria a partir da qual o filósofo, ignorante e tímido, aprende pelo menos que esta última parece já não estar à altura do modelo substancial.

1.

A mecânica de Descartes e a metafísica precisam apenas de uma substância nua. «A natureza da matéria ou do corpo visto como um todo não consiste no facto de ser uma coisa dura, pesada, colorida ou que toque os nossos sentidos de qualquer outra forma, mas apenas no facto de ter uma substância longa, larga e profunda» (Princípios da Filosofia, II, 4). Assim é o corpo «substância das coisas materiais». A extensão é infinitamente divisível (§20) e não é portanto constituída por elementos simples (átomos), não contém nenhum vazio (§16-18), é homogénea e contínua; é indefinida (§21). Num sentido particular, o corpo é uma parte extensa. O movimento é a deslocação desse corpo, de uma vizinhança entre dois corpos. O movimento é apenas relativo a um observador julgado imóvel. Se bem que não haja diferença substancial entre repouso e movimento. O movimento não exige nenhuma forma especial, é uma propriedade do móvel, o repouso é uma propriedade diferente. A mecânica é uma parte da geometria: o estudo e a produção de figuras em movimento. Os únicos transformadores pertinentes são os axiomas da geometria clássica. A matéria cartesiana é um conceito, a extensão perfeitamente transparente para o pensamento geométrico-algébrico. Tudo o que dela vem pelos sentidos é retirado como aparência. Sendo o meu corpo uma parte de extensão não me pode informar sobre a extensão em geral e sobre a sua lógica matemática. A fisiologia, pelo contrário, tenta explicar as aparências (dureza, peso, cor, etc.) pelo único mecanismo de figuras e movimentos. É necessário encontrar a máquina sob a sensibilidade que apenas é um efeito de teatro. Hoje diríamos que não há matéria no pensamento cartesiano . A expiração do «outro material» inspira a decisão de recusar os «sabe-

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res» do próprio corpo. A união da alma e do corpo permanece um enigma inexplicável. A alma só se une a si própria, por meio dos seus transformadores próprios, as ideias originais, as categorias. Dispõe da linguagem única. O corpo é um locutor confuso: diz «mole», «morno», «azul», «pesado» , em vez de falar de linhas, curvas, choques e relações. A matéria assim recusada, expirada, permanece nesse pensamento violentamente moderno: é a confusão enigmática do outrora, a confusão da vila mal construída, da criança ignorante, cega, do olhar estranho da pequena rapariga amada por René Descartes quando criança. De tudo o que nos vem por trás, «da frente» . A confusão, o preconceito são matéria do pensamento, a desordem do passado que ocorre antes de ter sido desejado e concebido, que não sabe o que diz, que se deve traduzir e corrigir sem parar, actual e activo em intuições distintas. A infância, o inconsciente, o tempo (porque «então» é «agora»), o antigo, são a matéria que o entendimento pretende resolver no acto e na actualidade da intuição instantânea. Toda a energia pertence ao pensamento que diz o que diz, que quer o que quer. A matéria é o fracasso do pensamento, a sua massa inerte, a estupidez. Que impaciência, que angústia no modernismo cartesiano, dizemos!

2. As transformações nucleares como as que afectam certos elementos materiais ditos radioactivos ou que ocorrem nesses crisóis de transmutações que são as estrelas ou como as que provocamos com os bombardeamentos e a fissão do núcleo de plutónio ou de urânio 235, essas transformações não só exigiram a longa história das pesquisas físicas, de Descartes a Heisenberg, mas pressupõem um transtorno completo da imagem da matéria. É com esta imagem invertida, por mais confusa que seja para um espírito tão mal formado quanto o meu , que se mede inevitavelmente, de perto ou de longe, o pensamento contemporâneo. lJJlw:ixo essencial dessa inversão da image~consiste ~a proeminência do tempo, na análise da relação entre o corpõe o espíri-

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fJ to.

«As questões relativas ao sujeito e ao objecto, a sua distinção e / união, devem ser postas, escreve Bergson, em função do tempo e não "l do espaço.» (Matéria e Memória, §4.) O autor da Energia Espiritual recorda a seguinte frase da autoria de Leibniz: «Podemos considerar qualquer corpo como um espírito instantâneo se bem que privado de memória.» (Carta para Arnaud, Novembro de 1671.) .instante que~~.~:a.(). .as.L(:u~~p.i!:!!':laLna2-~~em­ po intemporal do entendimento, oscila para o lado da actualidade materlãLA-móna e esquecida de um"mstante para o outro. O verdadeiro espírito é memória e anamnese, tempo contínuo. No entanto, esta memória permanece local, limitada a um «ponto de vista». Apenas Deus tem ou é a memória do todo e o seu programa respectivo. Apenas Ele dispõe de todas as «noções» das mónades, de todas as propriedades que desenvolvem, desenvolveram e irão desenvolver. Memória absoluta, que é, ao mesmo tempo, um acto intemporal. A localização das rnónades criadas é a versão espacial da sua temporalidade. Têm um «ponto de vista» imanente ao espaço porque são imanentes ao tempo , porque não têm memória suficiente, não se recolhem o suficiente. Ao considerá-la espacialmente, qualquer mónade é um ponto material que se encontra em interacção (directa, no caso de Bergson, mediatizada pela sabedoria divina que assegura a harmonia de todas as interacções, no caso de Leibniz) com todos os outros pontos materiais. Eis porque Bergson pode dar o nome «imagem» a esse ponto material (in Matéria e Memória), e Leibniz o dota de uma «percepção». Poderíamos dizer que o mundo inteiro se reflecte em cada ponto material, mas o que dele estiver mais afastado e o que levar mais tempo para se tornar distinto (como calculamos as distâncias em tempos nos passeios de montanha ou nas expedições interestelares), só poderá inscrever-se no «espelho», se o ponto material tiver a capacidade de reunir e conservar muitas informações de uma só vez. Se assim não for, o registo pode ocorrer mas continua desconhecido. É portanto necessário imaginar que entre matéria e espírito existe apenas uma diferença de grau que consiste na capacidade de recolher e conservar . O espírito é maté- . ria que se lembra das suas interacções, da sua imanência. Mas o desdobramento é contínuo entre o espírito instantâneo das coisas e a matéria muito recolhida dos espíritos. Se existir tal continuidade entre os estados da matéria, significa que

..o.

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todas as unidades materiais, mesmo as mais «nuas», como é dito na Monadologia, só podem consistir na sua forma, tal como Aristóteles o entendera. Isto porque a matéria considerada como «massa» se divide infinitamente e porque a unidade que pode produzir é apenas fenomenal. Acontece o mesmo com cada corpo humano, o qual não pára de mudar de massa e só tem unidade real e exacta devido à sua diferença, ao seu «ponto de vista», ele próprio determinado pela sua «forma», ou seja: a sua capacidade para recolher as acções que se exercem sobre ele (o que chamamos de interacções). Se existem «átomos de substâncias» eles são, portanto, «pontos metafísicos»; «são algo vital e uma espécie de percepção, e os pontos matemáticos são o seu ponto de vista, para exprimir o universo», escreve-se no Systême Nouveau de La Nature. Esta quase-percepção, que me faz pensar no «cogito pré-reflexivo» que Merleau-Ponty tentava isolar, ou na «percepção pura», co-extensão perfeita do percepto e do perceptivo a propósito do qual Bergson elabora a hipótese do início de Matéria e Memória (voltarei a falar sobre isso mais tarde), essa quase-percepção não é nada mais do que a «expressão num ser único indivisível dos fenómenos divisíveis ou de vários seres». Leibniz acrescenta que não é necessário «ligar permanentemente o pensamento ou a reflexão a essa representação»: a percepção pode permanecer imperceptível. Além do mais, e ainda segundo Leibniz, é necessário mostrar que existem «expressões imateriais que não têm pensamento», não só no caso dos animais, como também no caso de seres vivos como os vegetais e mesmo nas «substâncias corporais». Imagino portanto este átomo como o ponto onde se projectam todas as imagens que a m6nade tem do universo. Nenhuma possui o universo por inteiro no seu espelho (Monadologia, §56); de outro modo não a poderíamos distinguir de outra m6nade. Ora, um ser é um ser. Na matéria, não é a «massa» que obedece ao princípio dos indiscerníveis, (pelo contrário ela é multidão), mas é a forma que é a projecção num ponto matemático de uma textura de relações. E, se as imagens mudam no espelho de cada átomo formal, é necessário que todos os outros espelhos reflictam, cada um segundo o seu ponto de vista, as mudanças complementares do primeiro. Esta harmonia é assegurada pela sabedoria divina, a única que representa tudo, enquanto que a diferenciação dos «pontos de vista», a multiplicação das m6nades que

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representam a diversidade do mundo e a complexidade dos corpos, resultam do principio segundo o qual a potência total deve desdobrar todas as suas possibilidades. A nossa ciência laica dá o nome de energia à potência dita total e atribui a responsabilidade da concordância entre os pontos da matéria, à sua compossibilidade, não a uma sabedoria, mas sim ao acaso e à selecção que fixam (para «durações de vida» muito desiguais), organizações materiais, «átomos formais» que são, de qualquer forma, precários.

3. Volto um instante à «percepção pura» imaginada por Bergson em Matéria e Memória, para fazer sentir o quanto a sua problemática da relação entre matéria e espírito é leibniziana no seu fundo. É certo que a hipótese de trabalho é muito diferente, é pragmática, se assim o quisermos: o corpo vivo é um agente de transformações das coisas, qual quer percepção conduz a uma acção. Mas o que não é pragmático é que a percepção seja aplicada por Bergson a qualquer ponto material : «Quanto mais imediata for à reacção, mais será necessário que a percepção se pareça com um simples contacto e o processo completo de percepção e de reacção distingue-se apenas aquando da impulsão mecânica seguida de um movimento necessário.» (Matéria e Memória.) À medida que se sobe a escala dos seres organizados, observamos que a reacção imediata é atrasada, «impedida» e que essa inibição explica a indeterminação, o imprevisível, a liberdade crescente das acções que esses seres podem levar a cabo. Bergson vê o motivo para a existência desta inibição na extensão e na complexidade dos dispositivos nervosos que se interpõem entre as fibras aferentes, ou sensitivas , e as fibras eferentes, ou motrizes. O «espelho» complexifica-se, o influxo produzido pode ser filtrado por muitas vias. Passará apenas por uma via, e esta será a acção real. Mas muitas outras acções eram possíveis e ficarão inscritas no seu estado virtual. É assim que a percepção deixa de ser «pura» ou seja , instantânea, e que a consciência representativa pode nascer dessa reflexão (no sentido óptico), desse «eco», do influxo sobre o conjunto das outras vias pos50

síveis, e ignoradas actualmente, que formam a memória. (Trata-se apenas da memória imediata, ou hábito, A lembrança será a memória dessa memória.) É assim que o que se dá um por um, um após outro ou, como o diz Bergson, «abalo» após abalo, no ponto material amnésico, é «identificado», condensado, como numa só vibração de alta frequência, na percepção auxiliada pela memória. A diferença pertinente entre o espírito e a matéria é o ritmo. Num «instante» de percepção consciente que é na realidade um bloco indivisível de duração feito de vibração, «a memória condensa uma multiplicidade enorme de abalos que aparecem todos juntos, apesar de sucessivos» (Matéria e Memória, p. 73). Para encontrar a matéria a partir de uma consciência, bastar-nas-ia «dividir de modo ideal esta espessura individida de tempo e distinguir nela a multiplicidade desejada dos momentos» (ibid.) .

Podemos exemplificar com uma dessas «qualidades segundas» abandonadas pela explicação mecanicista, por exemplo a cor vermelha. A ciência vê neste exemplo uma autêntica matéria, reconhece na luz vermelha uma vibração do campo electromagnético cuja frequência é, diz Bergson, de 400 triliões de vibrações por segundo . O olho humano precisa de dois milésimos de segundo para dissociar duas informações no tempo. Se tivesse que dissociar vibrações condensadas na percepção do vermelho, seriam necessários vinte e cinco mil anos . Mas ao sincronizar-se a esse ritmo, deixaria de notar a cor vermelha, registaria apenas, diz Bergson, «abalos puros» já qu é lhe seriam co-extensivos, O indivíduo passaria a ser cada um dos abalos, instante após instante. Seria um ponto material «puro» ou «nu».

4. A continuidade entre espírito e matéria depende assim de um caso particular da transformação de frequência noutras frequências, em que consiste a transformação da energia. A ciência contemporânea ensina-nos, creio, que a energia se propaga, em todas as suas formas, de forma ondulatória e que «qualquer matéria (cito Jean Perrin) é no fundo uma forma particular muito condensada da energia». A realidade que devemos atribuir a tal forma de energia, e portanto de matê~l

ria, é evidentemente pendente dos transformadores de que dispomos. - Apesar de muito sofisticado, na escala do vivo, o transformador constituído pelo nosso sistema nervoso central s6 pode transcrever e inscrever de acordo com o seu próprio ritmo, as excitações que lhe chegam do meio onde vive. Se dispomos de interfaces capazes de memorizar, de uma forma que nos .seja acessível, vibrações que estejam naturalmente fora da nossa consciência, ou seja, que nos determinem apenas como «pontos materiais» (é o caso de quantidades de radiações), então alargamos a nossa potência de diferenciação e a nossa memória, atrasamos reacções ainda não controladas, aumentamos a nossa liberdade material. Este complexo de transformadores, sempre encarado do ponto de vista pragmático, merece certamente o seu nome: tecno-ciência, As novas tecnologias, baseadas na electrónica e na informática devem ser, sempre sob um mesmo aspecto, consideradas como extensões materiais da nossa capacidade de memorizar, no sentido de Leibniz mais do que de Bergson, tendo em conta o papel de «condensador» supremo de toda a informação, desempenhado aqui, pela linguagem simbólica. Atestam, à sua maneira, que não existe ruptura entre matéria e espírito, pelo menos nas suas funções reactivas, a que chamamos performantes. São um córtex ou, pelo menos, um elemento do córtex que apresenta a propriedade de ser colectivo, justamente por ser físico e não biológico. O que não deixa de levantar questões sobre as quais não me debruçarei aqui. Para acabar, irei tentar responder à nossa questão inicial: qual a incidência que a ideia da matéria, tal como acabo de lembrá-la de forma geral, pode ter sobre a filosofia? Podemos dar a uma filosofia da matéria, como o faz Bergson em Matéria e Memória, um revestimento pragmático que se encadeia facilmente com o tecnologismo ou o tecno-cientismo ambiente, isto apesar do que o próprio Bergson pensou acerca disso. O encadeamento de uma filosofia com outra exige no entanto uma correcção, a qual, se pensarmos bem, não é mínima e de que Bergson tinha consciência. O pragmatismo, como o seu nome indica, é uma das numerosas versões do humanismo. O sujeito humano que pressupõe é certamente material, empenhado num meio e virado para a acção. Resulta que esta última é finalizada por um interesse que se representa como um género de ajustamento óptimo do sujeito em relação ao meio ambiente. 52

Se observarmos a história das ciências e das técnicas (e das artes de que não falei, apesar da questão da matéria, do material em particular, ser aqui decisiva), notamos que tal não foi e tal não é, sobretudo hoje em dia, a sua finalidade. A complexificação dos transformadores teóricos e práticos teve sempre o efeito de desestabilizar o ajustamento do sujeito humano em relação ao seu meio ambiente. E, modifica-o sempre no mesmo sentido: atrasa a reacção, multiplica as respostas possíveis, aumenta a liberdade material e, neste sentido, só poderá decepcionar o pedido de segurança que está inscrito no humano como no mundo vivo. Por outras palavras, não vemos que o desejo, podemos chamá-lo assim, de complexificar a memória possa depender do pedido para equilibrar a relação entre o homem e o seu meio ambiente. De forma pragmática, este desejo opera num sentido contrário, pelo menos no início, e sabemos que as descobertas ou as invenções científicas (ou artísticas) são raramente motivadas por um pedido de segurança ou de equilíbrio. Esta deseja o repouso, a segurança, a identidade; o desejo ignora estes aspectos, nenhum êxito o faz parar ou o satisfaz. Para reduzir esta objecção, Bergson introduz a noção de um ímpeto vital, de uma invenção criadora. É aqui que ele deixa o pragmatismo e troca uma metafísica do bem-estar por uma teleologia da vida. Esta não é nova, é romântica ou pré-romântica, ofereceu a sua plena dimensão na dialéctica especulativa. Mas, no estado actual das ciências e das técnicas, o recurso à entidade «Vida» para cobrir o que chamo, à falta de melhor, desejo (conatus, appetitlo noutros casos), ou seja, a complexificação que nega, desautoriza por assim dizer, um a um os objectos de procura, - esta apelação aparece demasiado tributária da experiência humana, demasiado antropomórfica. Que sistemas se formem como o átomo ou a estrela ou a célula ou o córtex humano ou o córtex colectivo constituído pelas memórias-máquinas e dizer que uma Vida é responsável por isso, é contrário, como qualquer teleologia, ao espírito materialista, no sentido nobre, no sentido de Diderot, sentido esse que é o do conhecimento. Só pode invocar o acaso ou a necessidade, como Demócrito e Lucrécio. A matéria não faz uma dialéctica. Não penso evidentemente resolver o problema. Mas, ao invocar Demócrito e Lucrécio, penso que a microfísica e a cosmologia inspiram mais um materialismo do que uma teleologia, ao filósofo de hoje.

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Um materialismo imaterialista, se for verdade que a matéria é energia e que o espírito é vibração retida. Uma das implicações dessa corrente de pensamento, é que deveria trazer um novo impacto àquilo a que chamaria narcisismo humano. Freud já tinha detectado três impactos: o homem não está no centro do cosmos (Copérnico), não é o primeiro dos seres vivos (Darwin), não é dono do significado (o próprio Freud) . Com a tecno-ciência contemporânea, aprende que não tem o monopólio do espírito, ou seja de complexificação, mas que esta não é inscrita como um destino na matéria, mas que é possível e que tem lugar, ao acaso, mas de forma inteligível, muito antes dele próprio. Aprende que a sua própria ciência é por sua vez, uma complexificação da matéria onde, por assim dizer , a própria energia se reflecte, sem que daí retire algum benefício. E, deste modo, não se deve considerar como uma origem nem como um resultado, mas como um transformador que assegura, pela sua tecno-ciência, as suas artes, o seu desenvolvimento económico, as suas culturas e a nova memorização respectiva, um suplemento de complexidade no universo . Este ponto de vista pode levar à alegria ou ao desespero. Gostaria de ter tempo para mostrar no Le rêve de d'Alembert, por exemplo, mas também em muitos outros textos, que esse ponto de vista é o mesmo de Diderot. Foi o de Marcel Duchamp e de Stéphane Mallarmé. Talvez seja suficiente, em toda a sua sobriedade, para nos dar uma razão para pensar e escrever e ter um amor da matéria. A matéria faz a sua anamnese no nosso esforço.

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LOGOS E TEKHNE OU A TELEGRAFIA

O título logos e tekhnê é bastante pretensioso. Na argumentação do presente colóquio, os organizadores salientam a incidência das ditas novas tecnologias sobre as sínteses constitutivas do espaço e do tempo. Numa nota preparatória ao mesmo colóquio, Bernard Stiegler salientou três pontos: 1 - a técnica não é, e provavelmente nunca o foi, um meio para alcançar um objectivo que seria a ciência; 2 - pelo contrário, a «tecno-ciência» (de Habermas) é a realização actual de um tekhnologos em relação à obra de modo constitutivo no logos ocidental (mesmo se as tekhnai gregas foram sobretudo, em primeiro lugar, matérias de linguagem logotécnicas); 3 - e, por fim, as novas tecnologias invadem agora o espaço público e o tempo comum (invadindo-os sob a forma de objectos industriais de produção e de consumo inclusivamente «culturais»), a nível planetário; é, deste modo, o espaço-tempo mais «intimo», digamos assim, nas suas sínteses mais «elementares» que é «assaltado», perseguido e, sem dúvida, modificado pelo estado actual da tecnologia. Partirei da hipótese-mãe dos trabalhos de Stiegler, segundo a qual qualquer técnica é uma «objectivação» ou seja, uma espacialização do significado, cujo modelo é dado pela própria escrita no sentido corrente da palavra. E, que a inscrição , o traçado, por um lado porque é «legível» (descodificável , se se quiser), abre um espaço público de significado e gera uma comunidade de utilizadores produtores e, por outro lado (?) porque é dotada de persistência pela sua marca sobre um suporte espacial, ela conserva o sinal do acontecimento passado, ou de Comunicação no Colóquio «Nouvelles technologies et mutation des savoirs », organizado em Outubro de 1986 pelo College internacional de philosophie e o IRCAM, por iniciativa de Bernard Stiegler.

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preferência, do produto enquanto memória disponível, apresentável e reactualizáveI. A partir daquí, a minha intenção é dissociar, com algum formalismo, vários aspectos deste efeito-memória assim engendrado pela técnica enquanto inscrição, referindo-o mais particularmente ao estado actual da tecnologos . Fá-lo-ei numa terminologia que poderíamos qualificar de materialista e portanto, metafísica. Digo-me que é por comodidade, para não tornar a exposição demasiado severa. Será talvez também porque a dificuldade do tema me impede de fazer melhor . Distingo portanto, sem pretender ser exaustivo, três géneros de efeitos-memória da inscrição tecnológica em geral: de acesso, de varredura e de passagem, os quais coincidem, grosso modo e respectivamente, com os seguintes géneros de síntese do tempo ligado à inscrição: o hábito, a remernoriação e a anamnese.

1.

o hábito é um dispositivo estável, por vezes complexo, de plasticidade variável, que estrutura um tipo de comportamento num tipo de situação contextuaI. A estabilidade do dispositivo permite a repetição do comportamento tipo, com um ganho notável de energia. O psicólogo e o fisiologista dizem que o hábito se adquire, ao contrário de outros dispositivos estáveis, tais como o instinto. No entanto, é do seu conhecimento que a delimitação entre os dois géneros de dispostivos não é nítida. Por exemplo, o desencadear de certos instintos pode exigir a aprendizagem óu, pelo menos, ser facilitada por ela. Mas, a minha questão não é essa . O hábito baseia-se num acesso (comandado geneticamente ou não), como se dizia há um século atrás, isto é, numa colocação em série de elementos, por exemplo: de neurónios, de zonas ou de condutores nervosos, quando se trata de invertebrados. Vista de cima, esta colocação em série parece um caso particular do que a astronomia e a cosmologia arcaicas chamam de atracção. Elementos (astros, partículas, células, indivíduos de uma espécie viva) que podem ser concebidos isoladamente formam um conjunto notável pela sua dupla transcendência interna: as propriedades do todo excedem as da soma das partes e, cada elemento, por si próprio, não se esgota na sua definição de parte de tal totalidade. A atracção, no senti56

do clássico, é ela própria, um caso particular do que a teoria física geral chama, hoje, de interacção (no núcleo, no átomo, na molécula, na célula, no sistema planetário, na nebulosa, na galáxia, no cosmos). Chamada também de acção recíproca, na filosofia clássica. Sabem de que modo a teoria da informação e da comunicação (a cibernética) desde Newman e Wiener, permitia afinar este conceito de interacção, por exemplo, no que diz respeito à regulação genética do organismo vivo, e também qual é o seu impacto sobre a concepção e a prática correntes hoje em dia, dos conjuntos sociais. As «culturas» , no sentido do culturalismo, podem ser consideradas como nebulosas de hábitos cuja acção persistente sobre os indivíduos, os quais são seus elementos, é assegurada por esses dispositivos energéticos estáveis que a antropologia contemporânea chama estruturas. As leis de estrutura que asseguram a circulação (o acesso), para as palavras, os bens e as mulheres (retomo a trilogia de Lévi-Strauss) de forma singular, digamos idiomática, enquanto que outras maneiras são em princípio possíveis, estas leis são normas de acesso. Nas culturas tradicionais, os hábitos assim comandados incluem também elementos geográficos e cronológicos, seria melhor falar de lugares e momentos, lugares-ditos e momentos-ditos, já que, por construção, estas culturas são nebulosas de hábitos inseridas num espaço-tempo familiar. Familiar como a terra natal. Uma das questões que a nota de Stiegler e da argumentação do colóquio, mas também o estudo de Jean Chesneaux, colocam com insistência, é a da «deslocalização» e da «destemporalização» dos acessos após as novas tecnologias. Este desancorar começou com a «primeira revolução tecnológica» que permitiu à indústria (car vão, vapor e/ou electricidade) a possibilidade de espalhar sobre todas as culturas (mais ou menos rapidamente, mais ou menos profundamente) objectos que exigiam modos (hábitos) de produção, de intercâmbio e de consumo possíveis e válidos fora do território e fora do momento. As máquinas contemporâneas podem levar a cabo operações que qualificávamos de mentais: apreensão de dados em termos de informação e o seu armazenamento (memorização), regulação dos acessos à informação (o que chamávamos de «recordação»), cálculo dos efeitos possíveis de acordo com os programas, tendo em conta as variáveis e as opções (estratégia). Qualquer dado torna-se útil (explorável, operacional) a partir do momento em que pode ser traduzido em informa-

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ção , É também o caso dos dados ditos sensiveis: cores, na medida exacta em que as suas propriedades físicas constitutivas são identificadas . Após a digitalização , estes dados podem ser sintetizados em qualquer sítio e a qualquer momento, para obter produtos cromáticos ou acústicos similares (simulacros). Tornam-se assim independentes em relação ao lugar e ao momento da sua recepção «inicial», realizáveis à distância espacial e temporal, digamos: telegrafáveis . A própria ideia de que existe uma recepção «inicial», à qual se dá o nome de «estética» desde Kant, um modo empírico ou transcendental de afecção do espírito por uma «matéria» que não controla facilmente o que lhe acontece aqui e agora, esta ideia afigura-se de um arcaísmo ultrapassado. Não sigo aqui esta pista de uma crise profunda da estética e portanto das artes contemporâneas. Quanto à memória-acesso, basta salientar dois factos notáveis : a) A tecnologia actual, este modo específico de tele-grafia, escrita de longe, afasta os contextos próximos onde culturas enraizadas são elaboradas. Assim, pela sua forma própria de inscrição, é de facto produtora de um género de memorização liberta das condições ditas imediatas do tempo e do espaço. A questão a seguir aqui seria: o que é um corpo (corpo próprio, corpo social) na cultura tele-gráfica? Refere-se a uma produção espontânea do passado nos hábitos, a uma tradição ou transmissão das formas de pensar , de querer e de sentir e, por consequência, a um tipo de acesso que vem complicar , contrariar, neutralizar e extenuar os acessos comunitários anteriores. E que , pelo menos, as traduz para as fazer transitar por sua vez e torná-Ias transmissíveis. Os acessos anteriores, apesar de permanecerem ali e de resistirem um pouco, tornam-se subculturas . A questão de uma telecultura hegemónica à escala planetária já se coloca. b) Para a maior parte dos humanos, os acessos correspondentes a esta cultura continuam largamente por efectuar. Eis a razão pela qual essa cultura cria dúvidas. Stiegler está certo quando insiste sobre a necessidade de tornar os modos de inscrição (portanto de memorização) que lhe são próprios , disponíveis para os indivíduos . A escola ensinava a escrita aos futuros cidadãos . Qual a instituição que se encarrega de ensinar a tele-grafia? Poderá o ideal perseguido por tal instituição ser ainda o cidadão? Não estará a ideia de instituição ligada ao Estado e à escrita-leitura? Ou seja , ao ideal de um corpo político? De qualquer modo , é demasiado nítido que os Estados não são as instâncias de 58

controlo do processo geral do novo acesso telegráfico. Representam um elemento e apenas um elemento de regulação deste processo, o qual os ultrapassa largamente no seu princípio. Seria aqui necessário retomar a análise, diria metafísica e ontológica, do capitalismo. Mas estas questões da aprendizagem e do seu controlo dependem já de um outro efeito-memória que não é o acesso, mas sim a varredura.

2.

o que aqui chamo varredura corresponde a essa síntese do tempo que na filosofia e na psicologia clássicas tinha o nome de rememoriação, Ao contrário do acesso-hábito, a síntese da remernoriação não implica somente a retenção do passado no presente enquanto presente, mas a síntese do passado como tal e a sua reactualização enquanto passado, no presente (de consciência). A remernoriação implica a identificação do rememoriado, a sua classificação num calendário e uma cartografia. Kant dizia: não só as sínteses apreensiva e reprodutiva, como também a síntese recognitiva. Bergson dizia: não só o atraso na reacção ao estímulo, a suspensão e o armazenamento dessa reacção enquanto potencial , o qual é o hábito, como também a apreensão dessa reacção inibida no momento em que não é solicitada pela situação presente. O que implica, numa e noutra descrição, ·a intervenção de uma mêta-instância que inscreve sobre ela própria, conserva e torna impossível o conjunto acção-reacção independentemente do lugar e do momento presente . Portanto já uma tele-grafia. No caso de Kant é o conceito e para Bergson é a consciência-córtex. Hoje em dia, dizemos que é a linguagem stricto sensu, a linguagem humana caracterizada pela articulação dupla, semântica e fonética. De acordo com este raciocínio , a linguagem é imediatamente apreendida, ela própria, enquanto técnica e técnica de um grau superior, metatécnico. Ao contrário dos acessos simples, a memória linguagem implica propriedades desconhecidas pelo hábito: a denotação do que é retido por ela (graças à sua transcrição simbólica), a recursividade (a combinação do s sinais é inumerável, a partir de regras generativas simples , da sua «gramática»), e a referência a si (os sinais de linguagem podem ser denotados por sinais de linguagem: a metalinguagem). Muito mais do que a linguística funcio59

nalista, a linguística generativa e transformacional tem vindo a aproximar-se da técnica da linguagem. Isto porque tekhnê é o abstracto extraído de tiktô, o qual significa engendrar, gerar (os tekontês, os genitores; o teknon, o rebento). Podemos dizer que a célula viva, o organismo com os seus órgãos são já tekhnai, que a «vida» (como se costuma dizer) já é a técnica resta que a sua «linguagem» (o c6digo genético, digamos assim) não s6 limita a operatividade desta técnica, como também (e é a mesma coisa) não permite a sua objectivação, o seu conhecimento e a sua complexificação controlada. A hist6ria da vida sobre o nosso planeta não é assimilável à hist6ria da técnica, no sentido corrente, porque não agiu por rememoriação mas sim por acesso. A linguagem, em virtude das ditas propriedades, enquanto auto-tekhn é indefinida, e porque possui nela pr6pria uma capacidade infinita de combinações, revela ao mesmo tempo o que existe de acabado em qualquer inscrição, incluindo a sua . Esta última exige, com efeito, a selecção do que é inscrito. As pr6prias estruturas da linguagem são operadores de exclusão, a qualquer nível, fonético, semântico, mítico, narrativo, etc... Com a logikê tekhnê, a rhétorikê tekhnê e a poétik ê tekhnê, os Gregos, Arist6teles, não determinam apenas grupos de regras que se devem seguir nas artes da argumentação, da persuasão ou do charme; desvendam, ao mesmo tempo, a finitude dessas utilizações e descobrem, assim , o horizonte infinito do por-dizer, a tarefa infinita de gerar novas frases e regras. Tarefa a que dávamos então o nome de filosofia, essa palavra engraçada. A filosofia tornou-se então a instância meta- ou tele-gráfica que disse ser pr6pria à mem6ria «activa», mas esta instância que aparece quase como uma instituição no espaço público e que apreende denotativamente e põe em questão a cultura de hábitos onde surge. O tekhnologos é portanto também rememoriação; não é apenas hábito. A sua capacidade auto-referencial, reflexão no sentido habitual, crítica, se assim o quiserem, exerce-se ao rememoriar os seus pr6prios pressupostos e subentendidos, como se fossem as suas pr6prias limitações. E, do mesmo modo, o tekhnologos abre o mundo constituído pelo que foi excluído pela sua própria constituição, pelas suas estruturas de funcionamento, a todos os níveis. É assim que se inventam novos géneros de linguagem denotativos, aritmética, geometria, análise. É assim que se gera a ciência, as ciências, como processo de conquista

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do desconhecido, de experimentação, para além da experiência cultural tradicional, de complexificação do logos, para além do tekhnologos recebido do acesso. É este processo ao qual dou o nome de varredura. É ele, enquanto denotativo, que acaba por aparecer como instituição, naquilo a que chamamos pesquisa e desenvolvimento. A tecno-ciência contemporânea é a sua emanação directa, após séculos de formação hesitante. Mas agora sabemos que «funcionou» de forma irreversivel. Que esta rememoriação está activa e cada vez mais activa, exponencialmente activa, é o que os filósofos conhecem da modernidade quando nela detectam o sintoma de uma hipertrofia da vontade. O aspecto de reactividade, tão notável quanto o acesso, desaparece diante da varredura. Deus, a natureza, o destino, também eles são «varridos». E, com eles, o principio de uma finalidade do processo de pesquisa e desenvolvimento. A analogia deste processo com o processo de uma adaptação biológica, não resiste à reflexão, porque esta última está apenas assente sobre o acesso. É claro que com a tecno-ciência no seu estado contemporâneo, é uma potência para «pôr em série» , como dizia no inicio, uma capacidade de sintese que está em curso no planeta Terra e de que a espécie humana é mais seu veiculo do que o seu beneficiário. Terá mesmo que «desumanizar-se», no sentido em que ainda não é uma espécie biocultural, para chegar à altura da nova complexidade, para vir a ser tele-gráfica. Os problemas de ética postos pela tecno-ciência estão aqui para testemunhar que a questão já foi posta. Quando se pode simular in vitro a explosão solar ou a fecundação e a gestação de um ser vivo, é necessário saber o que se quer. Ora, não temos nenhuma ideia acerca disso . No principio da varredura, existe esta exclusão dos fins. Ela revestiu-se de todos os disfarces: destino do homem, progresso, luzes, emancipação, felicidade. Hoje, esta exclusão aparece completamente nua. Saber e poder mais sim, mas porquê, não . Poderá uma t élékoinônia, uma comunidade telegráfica sem té/os, constituir-se (à volta) dessa exclusão?

3. Por fim, algumas palavras sobre a «passagem». É uma outra rememoriação ligada a uma escrita que é diferente da inscrição por acesso 61

ou por experimentação, da repetição habitual e da rememoriação voluntária. Utilizo o termo «passagem», para fazer alusão a essa terceira técnica de memória que Freud opõe às duas primeiras, no seu escrito sobre a «técnica psicanalítica»: o «passar» (infinitivo) em questão é o durch alemão da Durcharbeitung ou o through do working through inglês, o passar através da trans- ou da per- laboração. Esta palavra de trabalho, utilizada após Freud, é bastante enganadora. Existe também trabalho em qualquer técnica: não acedemos, não varremos sem gasto de energia. Se a passagem não consome, sem dúvida, mais força do que qualquer outra técnica, é porque é uma técnica sem regra ou com uma regra negativa, desregulada, uma generatividade sem outro dispositivo do que a ausência do dispositivo, se possível. O próprio logos, nessa tecnologia, não deverá fechar-se sobre si mesmo, como na varredura, com os objectivos de apropriação e de expansão, mas virar-se contra ele mesmo, isto porque está «ligado», como dizia Freud, e sintetizado, a todos os níveis, desde o fonético até ao argumentativo e retórico. Trata-se, em geral e precisamente, de passar ao lado da síntese. Ou, se assim o quisermos, de passar ao lado da lembrança daquilo que foi esquecido. Tratar-se-ia de se lembrar do que não pôde ser esquecido porque não foi inscrito. Será possível lembrar-se, se não houve inscrição? Será sensato? Será uma tarefa tecnológica para o tekhnologos? De qualquer forma, estaremos de acordo quanto ao facto de ser uma bela tele-grafia, uma inscrição de longe, de muito longe e para muito longe, no tempo e no espaço. E, essa longitude, sabemo-lo, não se situa a anos luz, pode estar, e deve estar, muito próxima. Na própria questão deixada pela varredura experimental. No secretismo da exclusão em que se baseia. Falo aqui do que a psicanálise chama de anamnese, do que o dito «pensamento francês» chama de escrita, desde há muitos anos. Não vejo esta «passagem» como uma transgressão e é por isso que me afastei (talvez demasiado rapidamente) de Bataille e de Klossowski. Eis como gostaria de ternatizá-la, na minha actual aproximação «materialista)) das tecnologias. É sensato tentar recordar alguma coisa (digamos: alguma coisa) que não foi inscrita, isto se a inscrição dessa alguma coisa tiver quebrado o suporte inscritível ou memorável. Irei utilizar a seguinte metá-

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fora de Dôgen, pertencendo a um tratado do Shobôgenzô, o Zenki, esta metáfora do espelho : pode haver uma presença que o espelho não pode reflectir, mas que o quebra em migalhas. Um estrangeiro, um chinês podem aparecer diante do espelho e a sua imagem reflectir-se nesse espelho. Mas, se o que Dôgen chama de «espelho claro» faz face ao espelho, então «tudo se quebrará em migalhas» . E Dôgen salienta: «Não imaginem que ocorra primeiro o tempo em que o que não existe quebra, nem que haja em seguida o tempo em que tudo se quebra. Trata-se simplesmente da "quebra"» (Shobôgenzâ, pp. 106-107). Há portanto uma presença que quebra e que nunca é inscrita ou memorável. Não aparece. Não é uma inscrição esquecida, não tem lugar nem momento, no suporte das inscrições, no espelho reflector, permanece ignorada pelos acessos e pela varredura. Não estou certo de que o Ocidente tenha conseguido pensar isto , devido à sua vocação tecno-lógica - o Ocidente filosófico - Platão talvez, quando tenta pensar o agathon para além da essência ou talvez Freud, quando tenta pensar o recalcamento originário. Mas, tanto um como outro sentem a ameaça de uma recaída no tekhnologos. Isto porque tentam encontrar «a palavra que liberta», como escreve Dôgen. E, no último trabalho de Heidegger, talvez falte também a violência da quebra, talvez exista uma facilidade demasiadamente ampla em chamar «clareira» ao efeito do espelho claro do ser sobre o espelho do sendo. O esgotante trabalho de Édipo para com a presença que estilhaçou a sua memória, a palavra do deus, não estou certo de que mereça o nome de perlaboração, de anamnese . Tudo depende do modo como se «situa» a palavra de Apolo no desdobramento da vida de Édipo. É toda a questão da posterioridade freudiana: será que o primeiro acto que, como sabeis, não foi registado e que não volta senão como um segundo acto , disfarçado, será que este primeiro acto foi levado a cabo na mesma superficie de inscrição onde o segundo e os seguintes irão inscrever-se, diferente apenas porque indecifrável? Estes termos de «primeiro» e de «segundo » são temíveis: colocam em paridade o espelho claro e o espelho. A anamnese seria esse aviso, esse alerta ou essa suspensão (mnao mai, mnômai, latim monere, monimentum) em relação ao acto de se erguer (ana-) diante do espelho claro, através da quebra. Podemos ter, e de certa forma confesso que tenho reservas quanto 63

à concepção freudiana da anamnese. Resta que, como que por acaso, os escritos sobre a técnica psicanalítica, a partir dos quais estabeleci, entre outras coisas, como reconhecesteis, a trilogia que me guia: repetição, rememoração, perlaboração - estes escritos de técnica ensinam o que deve ser a tecnologia quando se trata de assegurar a passagem ou anamnese. Para o psicanalísta trata-se de abrir o terceiro ouvido e de retirar todo o pré-inscrito dos dois outros ouvidos (tapando-os), de abandonar as sínteses já estabelecidas, independentemente do seu nível, seja ele lógico, retórico ou até linguístico e de deixar trabalhar de forma flutuante o que passa, ou seja o significante, por mais insensato que pareça. Apenas vejo a escrita, sendo ela própria anamnese do que não foi inscrito, para suportar a comparação com esta regra a-técnica ou a-tecnológica. Isto porque oferece à inscrição o branco do papel, branco como a neutralidade do ouvido analítico. Apesar do facto de ainda tentar ilibar-se das associações qualificadas, elas próprias, de livres. Não vou desenvolver este problema extraordinariamente complexo e intrigante. Esta escrita, vista como passagem ou anamnese, encaramo-la no caso dos escritores ou dos artistas (é evidentemente a perlaboração de Cézanne), como uma resistência (num sentido não psicanalítico, penso mais no sentido do Wilson de 1984, de Orwell) às sínteses de acesso e de varredura. Nos programas espertos e nos longos telegramas. Toda a questão é: será a passagem possível com ou permitida pelo novo modo de inscrição e de memoriação que caracteriza as novas tecnologias? Não irão estas impor as sínteses e as sínteses concebidas, de uma maneira ainda mais íntima nas almas do que qualquer tecnologia anterior? Mas por isso mesmo, não irão elas ajudar também a afinação da nossa resistência anamnésica? Vou terminar nesta vaga esperança, demasiado dialéctica para ser levada a sério. Tudo isto está por pensar e experimentar.

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o TEMPO, HOJE

1. O título «O tempo, hoje» não está isento de paradoxo. «Hoje» designa o tempo, é um deíctico que indexa o tempo do mesmo modo que «agora», «ontem», etc . Como todos os deícticos temporais, opera ao referir o que designa apenas no presente da própria frase ou na frase, apenas pelo facto de esta estar presente. Temporaliza o referente da frase corrente ao situá-lo exclusivamente em relação ao tempo em que essa frase está a acontecer, sendo esse tempo o tempo presente. Isto sem recorrer de modo algum ao tempo no qual a frase poderia ser por sua vez localizada, utilizando por exemplo, um relógio ou um calendário. Neste último caso, a frase 1 poderia ser utilizada como referência para uma frase 2 que, por exemplo, diria o seguinte: «A frase 1 ocorreu no dia 24 de Junho.» O calendário e o relógio constituem redes de tempo «objectivo» que permitem localizar o momento da frase 2, sem referência ao tempo «de» frase 1. Supondo mesmo que uma nova frase (chamemos-lhe 3) não utilize datas e horas para se referir à frase I, por exemplo (frase 3): «a frase I ocorreu ontem», em que o acontecimento da frase 1 está de facto localizado em referência ao único presente da frase 3, resulta que a frase I está aqui colocada em posição de ser designada pelo deíctico «ontem». A frase 1 já não é aqui o presente que apresenta, torna-se esse presente «que então apresentava e que é agora apresentado», ou seja, o passado. Enquanto ocorrência, cada frase é um «agora». Apresenta agora um sentido, um referente, um destinador e um destinatário. Em relaTexto reescrito a part ir de uma exposição feita em inglês em Julho de 1987 na Carl Friedrich von Siemens Stiftung em Munique, por iniciativa do seu director administrativo, Heinrich Meier, no âmbito de um programa intitulado «Zur Diagnose der Moderne». Publicado in Critique, 493-494, Junho-Julho de 1988.

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ção à apresentação, devemos imaginar o tempo de uma ocorrência como, e apenas como , presente. Este presente não se pode apreender enquanto tal, é absoluto. Não pode ser sintetizado directamente com outros presentes. Os outros presentes com os quais pode ser relacionado são necessária e imediatamente alterados para presentes apresentados, isto é, passados . Quando se glosa o tempo da apresentação ao concluir que «cada» frase aparece em cada tempo, omite-se a inevitável transformação do presente em passado, coloca-se ao mesmo nível todos os momentos numa mesma e única linha diacrónica. Deixamo-nos assim deslizar do tempo que apresenta, implicado em «cada» ocorrência, para o tempo apresentado em que se tornou, ou melhor, para o tempo como «agora» (nun, now), ao tempo considerado como «desta vez» (dieses Mal, this time), expressão que pressupõe que «uma vez» (einmal, one time) é equivalente à «outra vez» (das andere Mal, that time). O que se esquece nesta sintese objectivante, é que ela própria tem lugar agora, na ocorrência apresentadora que efectua a síntese, e que esse «agora» ainda não é ainda uma das «vezes» que apresenta na linha diacrónica. Pelo facto de ser absoluto, o presente que apresenta não é apreensível: ainda não é ou já não é presente . Para apreender a própria apresentação e apresentá-la, é sempre cedo demais ou tarde demais. Tal é a constituição especifica e paradoxal do acontecimento. Que alguma coisa aconteça, a ocorrência, significa que o espírito é desapropriado. A expressão «Acontece ... » é a própria fórmula da não dominação do ser pelo ser. O acontecimento torna o ser incapaz de tomar posse e controlo do que é. Testemunha de que o ser é essencialmente, passível de uma alteridade purificadora. Com o titulo «o tempo, hoje», o meu discurso coloca-se obviamente sob a égide desta passibilidade. Não tem, de modo algum, o objectivo de exercer um controlo total, mesmo teórico, sobre o referente que designa, o tempo. Quero simplesmente tentar isolar certas modalidades segundo as quais o modernismo trata a condição temporal.

2. O facto de recordar brevemente a questão do tempo, vista sob o ângulo da apresentação, é marcado conceptualmente pelo privilégio que é

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atribuído à descontinuidade, ao «discreto» e à diferença. É claro que esta descrição pressupõe, tal como o seu oposto e o seu complemento, a capacidade de juntar e de reter numa só «presença», um certo número de momentos distintos, pelo menos potencialmente. Como a palavra o sugere, consciência implica memória, no sentido husserliano de uma «Retenção» elementar. Ao opor a síntese à descontinuidade, a consciência parece lançar um desafio à alteridade. Neste conflito, o objectivo é determinar os limites dentro dos quais a consciência é capaz de receber uma diversidade de momentos (de «informações», como se diz hoje em dia) e de os actualizar «cada vez» que for necessário. Temos alguma razão ao imaginar dois limites extremos à capacidade de sintetizar uma multiplicidade de informações, uma sendo mínima e a outra, máxima. Tal é a intuição maior que guia a obra de Leibniz, em particular a Monadologia. Deus é a mó nade absoluta desde que conserve a totalidade das informações que constituem o mundo numa completa reunião. E se a retenção divina deve ser completa, é porque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estão presentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossos espíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro. Nesta perspectiva, o «ainda não» só é devido ao limite que rodeia a faculdade de síntese que está à disposição das mónades intermediárias. Para a memória absoluta de Deus, o futuro é, ao contrário, sempre dado. Podemos assim conceber, para a condição temporal, um limite superior determinado por uma capacidade perfeita de registar ou de arquivar. Arquivador consumado, Deus está fora do tempo. Eis um fundamento da metafísica ocidental moderna. A física ocidental moderna, no que lhe diz respeito, encontra o seu fundamento do lado do outro limite. Podemos imaginar um ser incapaz de registar e de utilizar informações transmitidas quando inseridas entre o acontecimento e o seu efeito: um ser que poderia portanto unicamente veicular ou transmitir as unidades de informações (bits) do mesmo modo que as recebe. Nestas condições, na ausência de qualquer filtro servindo de interface entre o input e o output, esse ser situar-se-ia no grau zero da consciência ou da memória. É esse ser que Leibniz chama de «ponto material». Representa a mais simples unidade requerida pela ciência do movimento, a mecânica. Na física e na astrofísica contemporâneas, a família das partículas elementares é constituída por entidades quase tão «nuas» (a palavra é de Leibniz) quanto o ponto material.

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Resulta que cada subconjunto de partículas incluído na dita família apresenta propriedades que permitem que esses elementos entrem em relação com os outros de acordo com regularidades próprias. Esta especificidade significa que uma partícula dispõe , apesar de tudo, de um género de memória elementar e, por consequência, de um filtro temporal. É assim que os fisicos contemporâneos têm tendência a pensar que o tempo emana da própria matéria e que não existe uma entidade exterior ou interior ao universo que teria por função juntar os diversos tempos numa história universal. Tais sínteses (apesar de parciais) poderiam apenas ser detectadas dentro de certas regiões. Existiriam áreas de determinismo onde a complexidade estaria em crescimento. De acordo com esta aproximação, o cérebro humano e a linguagem são sinal de que a humanidade é um complexo desse género, temporário e muito improvável. Será então tentador pensar que o que chamamos pesquisa e desenvolvimento na sociedade contemporânea e cujos resultados não cessam de desestabilizar o nosso meio , é muito mais o efeito do tal processo de complexificação «cosmolocal» do que a obra do génio humano empenhado em descobrir a verdade e em fazer o bem.

3. Gostaria de desenvolver um pouco este aspecto da hipótese mais particularmente relacionada com o nosso tema, «o tempo, hoje ». Penso que a angústia que prevalece hoje no domínio filosófico e político acerca da «comunicação», do kommunikative Handeln, da «pragmática», da transparência, na expressão das opiniões, etc.. ., não tem praticamente nada a ver com os problemas filosóficos e politológicos «clássicos» relacionados com o fundamento da Gemeinschajt (comunidade), do Mitsein (estar junto), da communitas e mesmo do espaço público (Õjjentlichkeit), tal como foram pensados pelas Luzes. Esta compulsão em comunicar e em assegurar a comunicabilidade de qualquer coisa: objectos, serviços, valores, ideias, linguagens, gostos, que se exprimem particularmente no contexto das novas tecnolo gias - é necessário, para interrogá-la correctamente, renunciar, creio, à filosofia da emancipação da humanidade implicada na metafisica moderna «clássica», Qualquer tecnologia, a começar pela escrita consi-

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derada como uma technê , é um artefacto que permite aos seus utilizadores armazenar mais informações, reforçar a sua competência e optimizar as suas performances. Quanto às novas tecnologias construídas a partir da electrónica e do tratamento informático, a sua importância reside no facto de se emanciparem cada vez mais das condições de vida na terra (a programação e controlo da memorização, ou seja, a síntese de tempos diferentes num só tempo). É muito provável que por entre os materiais complexos que conhecemos, o cérebro humano seja o mais capaz de produzir, por sua vez, complexidade, como as novas tecnologias provam. Como tal, resta também a instância suprema apta para controlar essas tecnologias. Todavia, a sua própria sobrevivência requer que seja alimentado por um corpo, o qual, por sua vez, só pode subsistir nas condições de vida na terra ou num simulacro dessas condições. Penso que é, hoje em dia, um dos objectivos essenciais da pesquisa, tentar quebrar o obstáculo que o corpo opõe ao desenvolvimento das tecnologias comunicacionais, ou seja, à memória em expansão. Poderia particularmente acontecer que tal fosse o objectivo real das pesquisas incidindo sobre a fecundação, a gestação, o nascimento, a doença, a morte, o sexo, o desporto , etc. Todas parecem convergir para o mesmo objectivo: tornar o corpo adaptável a condições de sobrevivência não terrestres ou substituí-lo por um outro «corpo». Dito isto, ao considerar a mudança considerável à qual é submetida a nossa cultura, observaremos o quanto, analogicamente, as novas tecnologias estão a libertar o bloqueio constituído pela vida dos humanos na terra. As etnoculturas foram durante muito tempo esses dispositivos de memorização da informação graças aos quais os povos tinham a possibilidade de organizar o seu espaço e o seu tempo. Eram nomeadamente a forma pela qual multiplicidades de tempos (de «vezes») diferentes podiam ser reunidas e conservadas numa memória única (B. Stiegler). Elas próprias consideradas como technai, permitiam a colecções de indivíduos e de gerações a possibilidade de dispor de verdadeiros stocks de informações, através da duração e da extensão. Produziram nomeadamente essa organização específica da temporalidade que nomeamos narrativas históricas. Existem várias maneiras de contar uma história, mas a narrativa enquanto tal, pode ser considerada como um dispositivo técnico, o qual dá a um povo os meios para armazenar, ordenar e relembrar as unidades de informações, ou seja,

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os acontecimentos. Mais precisamente, as narrativas são como filtros temporais cuja função é transformar a carga emocional ligada ao acontecimento, em sequências de unidades de informações susceptíveis de engendrar enfim algo parecido com o sentido. Voltarei a falar sobre isto. Ora, é claro que estes dispositivos culturais, os quais constituem formas de memória relativamente vastas, permanecem estreitamente ligados ao contexto histórico e geográfico no qual operam. É esse contexto que fornece à dita memória a maior parte dos acontecimentos que deve apreender, armazenar, neutralizar e tornar disponíveis. A cultura tradicional permanece assim profundamente marcada pela localização à superficie da terra, de modo que não se deixa facilmente transplantar, nem comunicar. Como o sabemos, esta inércia constitui um aspecto maior dos problemas ligados, hoje em dia, ao fenómeno geral da imigração e da emigração. Pelo contrário, com as novas tecnologias, que fornecem modelos culturais que não são inicialmente enraizados no contexto local, mas que se formam tendo imediatamente em vista a maior difusão na superficie do globo, surge um meio notável para ultrapassar o obstáculo criado pela cultura tradicional à apreensão, ao trânsito e à comunicação das informações. Esta acessibilidade generalizada e oferecida pelos bens culturais novos, não me parece que seja propriamente um progresso. A penetração do aparelho tecno-científico no campo cultural, não significa, de modo algum, que o conhecimento, a tolerância e a liberdade se tornem maiores nos espíritos. Ao reforçar este aparelho não se emancipa o espírito, tal como o Aufklãrung o pôde esperar. Fazemos talvez mais a experiência inversa: barbarismo novo, neo-alfabetismo e empobrecimento da linguagem, nova pobreza, impiedosa remodelagem da opinião pelos media, um espírito vocacionado à miséria, uma alma ao desuso, o que Walter Benjamin e Theodor Adorno não pararam de salientar. Isto não significa no entanto que podemos contentar-nos, como a dita Escola de Frankfurt, com a crítica à subordinação do espírito às regras e aos valores da indústria cultural. Positivo ou negativo, este diagnóstico depende ainda de um ponto de vista humanista. Ora os factos são ambíguos. A cultura «pós-moderna» está de facto a estender-se a toda a humanidade. Nesta medida, tem tendência a abolir a experiência local e singular, a martelar o espírito com grandes estereótipos, não deixando lugar, ao que parece, à reflexão e à educação.

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Se a nova cultura pode produzir efeitos tão divergentes, de generalização e de destruição, é porque não parece depender do domínio humano, nem pelos seus objectivos, nem pelas suas origens. Como o desenvolvimento do sistema tecno-científico o mostra, a tecnologia e a cultura que lhe estão associadas, são necessárias para continuar o seu esforço e essa necessidade deve estar relacionada com o processo de complexificação (de nég-entropia) que ocorre na área cósmica habitada pela humanidade. A espécie humana é por assim dizer puxada «para a frente» por esse processo, sem ter a menor capacidade de o dominar. É necessário que se adapte às novas condições. É mesmo possível que tenha sido este o caso, no decorrer da história da humanidade. Além do mais, se podemos tomar consciência disso hoje em dia, é por causa do crescimento exponencial que afecta correntemente as ciências e as técnicas. A rede electrónica e informática que se estende sobre a terra dá origem a uma capacidade global de memorização que devemos estimar à escala cósmica, com uma medida muito diferente da escala das culturas tradicionais. O paradoxo implícito nesta memória está no facto de não ser, ao fim e ao cabo, a memória de ninguém. Mas «ninguém», neste caso, não significa que o corpo que sustém essa memória já não seja um corpo terrestre. Os computadores não param de sintetizar cada vez mais o tempo (as «vezes»), de tal modo que Leibniz poderia ter dito que esse progresso está a engendrar uma mónade ainda mais «completa» do que a própria humanidade alguma vez o foi. A espécie humana está já constrangida pela necessidade de ter que evacuar o sistema solar daqui a quatro biliões e meio de anos. Terá sido o veículo transitório de um processo muito improvável de complexificação. O êxodo já está a ser programado. A única hipótese que há de o conseguir, é que a espécie se adapte à complexidade que a desafia. E se o êxodo se cumprir, o que se terá preservado não será a própria espécie, mas a «rnónade mais completa» que a espécie era em potência.

4. Teremos vontade de sorrir ao ver o quanto o quadro que acabo de esboçar depende da ficção. Gostaria de retirar dele algumas implica71

ções «realistas», ao regressar à questão inicial: de que modo se sintetiza o tempo no nosso pensamento e na nossa prática correntes? Volto à hipótese «Ieibniziana». Quanto mais completa for uma mónade, mais numerosos serão os dados que memoriza, tornando-se assim capaz de mediatizar o que ocorre antes de reagir e de se subtrair deste modo à sua dependência directa em relação ao acontecimento. Assim, quanto mais completa for a mónade , maior será a neutralização do elemento aferente. Para uma mónade supostamente perfeita, como Deus, já não há, em último caso, qualquer unidade de informação. Deus não tem nada a aprender. No espirito divino, o universo é instantâneo. Poderá ser atraido por este ideal de Mathesis Universalis ou, para utilizar a metáfora borgesiana, de Biblioteca de Babel. Saturar a informação consiste em neutralizar um maior número de acontecimentos. O que já é conhecido não pode ser, em principio, encarado como um acontecimento. Por consequência, se quisermos controlar um processo, o melhor meio é subordinar o presente ao que (ainda) chamamos de «futuro», já que nestas condições, o «futuro» será completamente predeterminado e o próprio presente deixará de se abrir sobre um «após» incerto e contingente. O que acontece «depois» do «agora» deverá vir «antes» dele. Por mais que uma mónade esteja a saturar a sua reserva do futuro, o presente perde o seu privilégio de ponto inapreensivel, a partir do qual o tempo deveria todavia distribuir-se entre o «ainda não» do futuro e o «já não» do passado . Ora, existe um modelo de uma situação temporal semelhante. Esse modelo é-nos oferecido pela prática quotidiana de intercâmbio . Alguém (X) dá a alguém (Y) um objecto a, no tempo t. Esta doação tem a condição seguinte: Y dará a X um objecto b, no tempo t', Deixo de lado a questão clássica que consiste em determinar como a e b podem tornar-se equivalentes. O que é todavia pertinente para nós, é o facto de que a primeira fase do intercâmbio aconteça se, e apenas se a segunda estiver perfeitamente garantida, num ponto em que a possamos considerar como já realizada. Existe uma quantidade de «jogos de linguagem», prefiro dizer: «géneros de discursos», nos quais uma ocorrência ulterior e definida é esperada, prometida, etc., no momento em que a primeira ocorre. Mas, no caso do intercâmbio, a «segunda» ocorrência, o pagamento, 72

não é esperada aquando da primeira, ela é pressuposta como a condição da «primeira». Desta forma, o futuro condiciona o presente. O intercâmbio requer que o que é futuro seja como se fosse presente. Garantias, confiança, segurança, são meios para neutralizar o caso como se fosse ocasional, para prever, digamos assim, o ad-vir. De acordo com esta maneira de tratar o tempo, o su-cesso depende do pro-cesso informacional, o qual consiste em assegurar que nada mais pode acontecer, no tempo t', a não ser a ocorrência programada no tempo t. Quanto à duração que separa t' de t, podemos dizer que não é pertinente em relação ao principio essencial do intercâmbio que acabamos de recordar. É no entanto interessante, podemos dizê-lo, pelo facto de condicionar o lucro. Quanto maior é o intervalo temporal, maior é a possibilidade de acontecer alguma coisa que não estava prevista e, em suma, maior será o risco. O crescimento do risco pode ser calculado em termos de probabilidade e traduzido, por sua vez, em quantidade de dinheiro. O dinheiro aparece aqui como o que realmente é: tempo armazenado para prever o que advém. Não vou desenvolver mais esta ideia. Digamos apenas que o que chamamos de capital baseia-se no principio de que o dinheiro não é mais do que tempo posto em reserva e à disposição. Pouco importa que seja depois ou antes daquilo a que chamamos o «tempo real». O «tempo real» é apenas o momento em que o tempo, conservado sob a forma de dinheiro, é realizado. O importante, para o capital, não é o tempo já investido em bens ou serviços, mas sim o tempo que ainda está armazenado em reservas de dinheiro «livre» ou «fresco», atendendo que este último representa o único tempo que possa ser utilizado para organizar o futuro e neutralizar o acontecimento. Podemos assim dizer que existe uma correlação estreita e pertinente entre o que chamei de mónade em expansão, a qual produz o dispositivo tecno-científico do capitalismo nas sociedades mais «desenvolvidas» e o seu modo de utilizar o dinheiro. É necessário ver o capital como o efeito, observável na terra, de um processo cósmico de complexificação e não como uma figura maior da história humana. O que está em jogo com o capitalismo é sem dúvida tornar o intercâmbio e a comunicação mais leves entre os humanos, como vimos pelo abandono do padrão-ouro na avaliação das divisas e na adopção dos meios de contabilidade electrónicos, na instituição das multinacionais, etc. Estão 73

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aqui numerosos sinais da necessidade de complexificaç ão das relações humanas. De onde poderá vir essa necessidade, se for verdade que os seus resultados nem sempre são vantajosos para a humanidade em geral, nem mesmo para a fracção dessa humanidade que deveria beneficiar dela directamente? Porque seremos obrigados a poupar dinheiro e tempo até ao ponto em que esse imperativo se torne a lei da nossa vida? É porque a poupança (à escala do sistema, é claro) permite ao sistema aumentar a quantidade de dinheiro consagrado a antecipar o futuro. É o caso do capital que será investido na pesquisa e no desenvolvimento. O prazer da humanidade deve ser sacrificado, é claro , ao interesse da mónade em expansão. De entre os numerosos efeitos engendrados por essa indiscutível hegemonia, irei mencionar apenas um. Desde as suas origens, a humanidade criou um meio específico e próprio para controlar o tempo, a narração mítica. O mito permite, de facto, colocar uma sequência de acontecimentos num quadro constante onde o início e o fim de uma história formam uma espécie de ritmo ou de rima, como o escrevia Hõlderlin, A ideia de destino que prevaleceu durante muito tempo nas comunidades humanas - e mesmo hoje no inconsciente, se acreditarmos em Freud - pressupõe a existência de uma instância intemporal que «conhece» na sua totalidade a sucessão dos momentos que constituem uma vida, individual ou colectiva. O que acontece é pré-determinado no oráculo divino e os seres humanos deverão apenas desenvolver identidades anteriormente constituídas, na sincronia ou na acronia. Proferido na época do nascimento de Édipo, o oráculo de Apolo não determina, antecipadamente, menos do que o destino do herói até à sua morte. Esta tentativa inicial, sumária, de neutralizar a ocorrência inesperada foi abandonada, à medida em que o espírito tecno-científico e a figura do capitalismo chegavam à maturação, ambos sendo muito mais eficazes, em matéria de controlo do tempo. Muito diferente, e no entanto muito próxima, é a maneira pela qual a modernidade, por seu lado, encara o problema. A modernidade não é, penso eu, um período histórico, é uma forma de dar forma a uma sequência de momentos, de modo a que esta última aceite uma taxa elevada de contingência. Não é insignificante que esta formulação possa verificar-se em obras tão diversas quanto as de S. Agostinho , Kant ou Husserl. A descrição da síntese temporal que esbocei no início pertence também à modernidade assim encarada.

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Mas, o que merece a nossa atenção, é que a metafisica moderna deu no entanto luz à reconstituição de grandes narrativas - Cristianismo, Luzes, romantismo, o idealismo especulativo alemão, o marxismo - as quais não são totalmente estranhas às narrativas míticas. Implicam seguramente que o futuro permaneça aberto enquanto objectivo último da história humana, sob o nome de emancipação. Conservam, no entanto, o princípio do mito segundo o qual o desenvolvimento geral da história pode ser concebido. A narrativa moderna induz sem dúvida uma atitude mais política do que ritual. Resta que o ideal situado no termo da narrativa de emancipação é suposto ser concebível, mesmo se possui, sob o nome de liberdade, uma espécie de vazio ou de «branco», uma indefinição, que deve ser salvaguardada. Noutros termos, a destinação (a Bestimmung) não é o destino. Mas, ambos designam uma série diacrónica de acontecimentos cuja «razão» é pelo menos explicável, como destino, pela tradição, como tarefa, pela filosofia política. Ao contrário do mito, o projecto moderno não baseia de modo algum a sua legitimidade sobre o passado, mas sim, sobre o futuro. E é assim que oferece uma melhor apreensão ao processo de complexificação. No entanto, uma coisa é projectar a emancipação humana e outra é programar o futuro como tal. A liberdade não é a segurança. O que alguns chamaram de pós-modernismo só designa talvez uma ruptura, ou pelo menos uma brecha, entre um «pró» e o outro, quero dizer: entre o projecto e o programa. Este último parece poder, hoje em dia, fazer melhor do que o projecto, aceitar o desafio lançado à espécie humana pelo processo de complexificação, Mas, por entre os acontecimentos que o programa se esforça para neutralizar tanto quanto pode, é necessário, infelizmente, contar também com os efeitos imprevisíveis que engendram a contingência e a liberdade próprias do projecto humano.

5. Como é de esperar, faltar-me-á o tempo para «concluir» o argumento. Apenas quero dizer o quanto a hipótese quase leibniziana que acabo de apresentar é estranha ao meu pensamento. Algumas «teses» o mostrarão brevemente, para acabar. 75

1. O dispositivo tecno-científico a que Heidegger dá o nome de Gestell «cumpre» de facto a metafísica, como ele o escreve. O princípio de razão, der Satz vom Grund, localiza a razão no campo da «física», em virtude do postulado, metafisico, que qualquer acontecimento no mundo deve ser explicado como o efeito de uma causa e que a razão consiste em determinar essa causa (ou essa «razão»), ou seja, racionalizar o que é dado e neutralizar o futuro. O que chamamos de ciências humanas, por exemplo, tornou-se, em grande parte, numa sucursal da física. O espírito, a própria alma, estudam-se como se fossem interfaces em processos fisicos. É assim que os computadores começam a poder fornecer simulacros de certas operações mentais. 2. O capital não é um fenómeno económico e social. É a sombra que o princípio de razão projecta sobre as relações humanas. Prescrições tais como: comunicar, poupar tempo e dinheiro, controlar e prever o acontecimento, aumentar os intercâmbios, são todas próprias para estender e reforçar a «grande mónade». Que o discurso «cognitivo» tenha conquistado a hegemonia sobre os outros géneros, que na linguagem habitual o aspecto pragmático e inter-relacional passe ao primeiro plano, enquanto que o «poético» parece merecer cada vez menos a atenção - todos estes aspectos da condição da linguagem contemporânea não podem ser encarados como os efeitos de uma simples modalidade do intercâmbio, a que a ciência económica e histórica chama «capitalismo». São sinais de que uma nova utilização da linguagem aparece, cujo objectivo é conhecer os objectos tão exactamente quanto possível e realizar acerca deles, entre os locutores normais, um consenso tão vasto que seja suposto reinar na comunidade científica. Quanto ao conhecimento, qualquer objecto é bom para ele, mas como uma dupla condição: em primeiro lugar, que nos possamos referir a esse objecto num léxico e numa sintaxe lógica e matematicamente consistente, cujas regras e termos podem ser comunicados com uma ambiguidade mínima; e em seguida, que uma prova qualquer da realidade dos objectos aos quais se referem as proposições assim formuladas, possa ser administrada, exibindo dados sensoriais julgados pertinentes em relação a esses objectos. A primeira condição não engendrou apenas o notável crescimento do formalismo lógico e matemático que observamos desde a segunda metade do século passado. Permitiu também trazer novos objectos ou

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novas idealidades (digamos: novas frases), na cultura matemática e lógica e salientar assim novos problemas. Que se consiga, entre outras coisas, formular numerosos paradoxos que, anteriormente, deixavam a tradição perplexa, é o sinal indubitável de que a complexificação das linguagens simbólicas progride e que as ciências utilizam hoje em dia os objectos que lhe eram indiferentes até então. Notar-se-á que muitos paradoxos pertencem, de perto ou de longe, à problemática do tempo. Basta mencionar questões como a recorrência (a utilização da enigmática expressão «e assim em seguida... »), em particular na argumentação do paradoxo do Mentiroso (que Russell elimina com o seu princípio dos tipos), o desenvolvimento das lógicas e das linguísticas do tempo que permite resolver ou melhor colocar os problemas difíceis da modalidade, a matemática das catástrofes (René Thom), a teoria da relatividade... Quanto à segunda condição necessária para a linguagem «cognitiva», a qual é a necessidade de administrar a prova da asserção, implica que as tecnologias sejam desenvolvidas de forma contínua. Isto porque se as proposições que se devem verificar (ou falsificar) têm de ser cada vez mais sofisticadas, então os dispositivos encarregados de fornecer os dados sensoriais pertinentes devem ser melhorados e complexificados indefinidamente. A física das partículas, a electrónica e a informática servem hoje em dia, e de forma indispensável, para conceber (e realizar) a maior parte das «máquinas de provar». Noto que o capitalismo se encontra fortemente interessado por esta questão da prova. Isto porque as tecnologias necessárias ao processo científico abrem caminho para a produção e distribuição de novas mercadorias, quer directamente destinadas à pesquisa científica, quer modificadas para utilizações mais profanas. Pelo menos nesta medida, os meios de conhecimento tornam-se meios de produção e o capital aparece como o dispositivo mais potente, se não for o único, para realizar a complexidade atingida no campo das linguagens cognitivas. O capital não governa o conhecimento da realidade, mas dá realidade ao conhecimento. Pensa-se frequentemente que se o sistema económico é levado a portar-se dessa maneira, é porque é guiado pela sede do lucro. E, de facto, a utilização das tecnologias científicas na produção industrial permite aumentar as quantidades de mais-valias, ao poupar tempo e trabalho. Parece, no entanto, que o «último» motor deste movimento

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não será essencialmente da ordem do desejo humano: consiste de preferência no processo de nég-entropia que parece «trabalhar» na área cósmica habitada pelo género humano. Poderíamos até dizer que o desejo do lucro e da riqueza não é, sem dúvida, nada, a não ser esse próprio processo pelo qual opera nos centros nervosos do cérebro humano, e que o corpo humano experimenta esse facto directamente. 3. Hoje, o pensamento parece ser obrigado a tomar parte do processo de racionalização. Qualquer outro modo de pensar está condenado, isolado e rejeitado pelo facto de ser irracional. Desde o Renascimento e da idade clássica, digamos, Galileu e Descartes, um conflito latente opõe o racionalismo às outras formas de pensar e de escrever, nomeadamente à metafisica e à literatura. Com o Círculo de Viena, a guerra é declarada abertamente. Em nome do mesmo motivo «ultrapassar a metafisica», Carnap por um lado , Heidegger por outro, cortam a filosofia ocidental em dois, o positivismo lógico e «a ontologia» poética. Esta ruptura afecta essencialmente a natureza da linguagem. Será a linguagem um instrumento destinado , por excelência, a dotar o espírito do conhecimento o mais exacto possível da realidade e a controlar, o melhor possível, a sua transformação? A verdadeira tarefa do filósofo consiste então em ajudar a ciência a subtrair-se à inconsistência das linguagens naturais, construindo para isso uma linguagem simbólica pura e unívoca. Deverá a linguagem ser, pelo contrário, pensada como um campo de percepção, capaz de «fazer sentido» por si próprio , independentemente de qualquer intenção de significar? A partir daqui, as frases, longe de serem colocadas sob a responsabilidade dos locutores, devem de preferência ser concebidas como concreções discontínuas, espasmódicas de um «meio falante» contínuo, tal como o é a Sage heideggeriana, esse mesmo meio ao qual Malraux e Merleau-Ponty dão o nome de «voz do silêncio» e que o francês chamaria de «linguageiro» em vez de linguístico. Podemos dizer que a primeira opção concorda, em certa medida, com o tipo de «racionalidade» exigido pela mónade em expansão. O que, no entanto, limita a sua concordância perfeita com a complexidade, é esse resto de filosofia humanista, o qual está escrito, paradoxalmente, no princípio de que a linguagem é um instrumento utilizado pelo espírito humano. É de facto possível, e foi real, que numerosas proposições, fossem elas bem formadas e estabelecidas segundo os cri-

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térios das novas ciências, não tivessem, à primeira vista, nenhuma utilidade ou evidência para o espírito humano. Ora, esta mesma dificuldade pode ser considerada precisamente como o sinal de que o «utilizador» verdadeiro da linguagem não é o espírito humano enquanto humano , mas a complexidade em movimento, cujo espírito é somente um suporte transitório. Comunicar em geral e tornar comunicável qualquer asserção, não significa que seja favorecida uma maior transparência da comunidade humana para com ela própria, significa apenas que um maior número de informações pode ser combinado com outras, de modo a que a sua totalidade venha a formar um sistema operatório leve e eficaz, isto é, a mónade. Quanto à segunda opção, a que qualifiquei de ontológica, está, por natureza, virada para esses modos de linguagem cujo léxico e sintaxe têm por único objectivo descrever de forma exaustiva os objectos aos quais se refere. Por entre esses modos de linguagem, podemos mencionar, a diversos títulos, a conversação livre, o julgamento reflexivo e a meditação, a associação livre (no sentido psicanalítico), a poética e a literatura, a música, as artes visuais, a linguagem quotidiana. O que importa nestes modos é sem dúvida que cada um deles gere ocorrências antes de conhecer as regras dessa geratividade e que alguns de entre eles não tenham preocupações em determinar essas regras . É este facto que Kant e os românticos tematizaram notavelmente sob a rubrica do génio, de uma natureza que actuaria no próprio espírito . Podemos também relacionar os géneros de discursos mencionados por mim, com o princípio de uma imaginação produtiva. Notar-se-á, no entanto, que tal imaginação não desempenha um papel menor na própria ciência, aquele do momento heurístico de que necessita para progredir. O que estas formas diversas, ou mesmo heterogéneas, têm em comum, é a liberdade e a não-preparação com que a linguagem mostra ser capaz de receber o que pode acontecer no «meio falante» e de ser acessível ao acontecimento. De modo que podemos perguntar se a verdadeira complexidade não consistirá nessa passibilidade em vez de se situar na actividade de «reduzir e construir» a linguagem, como Carnap o propunha. Em definitivo, uma racionalidade não merece o seu nome se recusar a sua responsabilidade no que existe de passibilidade aberta e de criatividade incontrolada, na maior parte das linguagens, incluindo a linguagem cognitiva. Por mais que recuse essa responsabilidade, a ra-

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cionalidade técnica, científica e económica mereceria de preferência o nome de «ideologia», se o termo não tivesse, por sua vez, demasiadas pressuposições metafísicas. Apesar de tudo, é certo que o modelo de consenso que declaramos retirar da comunidade argumentativa das ciências e que propomos em ideal às sociedades humanas, atesta o quanto esta «racionalidade» exerce a sua hegemonia sobre a diversidade dos géneros de discursos possuídos pela linguagem. Para qualificar essa racionalidade de racional, foi necessário aceitar como valor único, a performance que comanda a lógica da grande mónade, perante o desafio cosmológico. 4. Não ficaremos su: preendidos que a minha hipótese seja aqui a segunda. Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é o que devemos chamar pensar. Esta atitude, já o disse, encontra-se tanto na linguagem reputada racional quanto na poética, na arte e na linguagem habitual, se, pelo menos, for necessário que o discurso cognitivo progrida. Não saberíamos admitir, em consequência, a grosseira separação das ciências e das artes prescritas pela cultura ocidental moderna. Desempenha a tarefa, sabe-se, de relegar as artes e a literatura para a função miserável de distrair os seres humanos do que os preocupa e persegue em permanência, a obsessão de controlar o tempo. Sei que a resistência que podemos opor ao processo de formação e de expansão da grande mónade não alterará nada a esse facto. É no entanto necessário nunca esquecer que, se pensar consiste mesmo em receber o acontecimento, segue-se que não se poderia pretender o pensamento sem se encontrar ipso facto em posição de resistência diante dos processos de controlo do tempo. Pensar é questionar tudo, inclusivamente o pensamento, a questão e o processo. Ora, questionar requer que algo aconteça cuja razão não seja ainda conhecida. Quando pensamos, aceitamos a ocorrência pelo que é: «ainda não» determinada. Não a pré-julgamos, nem nos asseguramos dela. É uma peregrinação no deserto. Não podemos escrever sem testemunhar este abismo que é o tempo, quando chega. A este propósito, duas formas de assumir a questão devem ser distinguidas, consoante o peso é posto ou não sobre a urgência da resposta. O princípio de razão é esta maneira de questionar que se precipita para o seu fim, a resposta. Possui um género de impaciência no único 80

pressuposto de que podemos sempre encontrar uma «razão» ou uma causa para qualquer questão. As tradições de pensamento não ocidentais oferecem uma atitude muito diferente. O que conta, na matéria que questionam, não é, de modo algum, determinar a resposta o mais rapidamente possível, apreender e exibir algum objecto que seja válido enquanto causa do fenómeno em questão. É ser e continuar a ser questionado por ele, de se suster pela meditação «em resposta» com ele, sem neutralizar pela explicação o seu poder de inquietação. No próprio seio da cultura ocidental , tal atitude tem e/ou teve o seu análogo na maneira de ser e de pensar originada pela cultura judaica. O que, segundo esta, se chama «estudo» e «leitura» requer que qualquer realidade seja tratada como uma mensagem obscura enviada por uma instância desconhecida, ver mesmo inomínável. Como para o versículo da Tora, é necessário dar ouvido ao fenómeno, decifrá-lo e interpretá-lo, evidentemente, mas com humor, sem ignorar que a interpretação, por sua vez, será interpretada como uma mensagem enigmática, Lévinas diria: não menos maravilhosa do que a mensagem inicial. A problemática derridiana da destruição e da diferença, o princípio deleuziano de nomadização dependem, apesar de diferentes, desta aproximação do tempo. O tempo permanece aqui incontrolável, não dá origem ao trabalho, pelo menos no sentido que damos habitualmente à palavra «trabalhar». Uma última observação sobre o que chamamos de passibilidade . Seria pretensioso, mesmo criminoso, por parte de um pensador ou de um escritor, pretender ser testemunha de um acontecimento ou garanti-lo. É necessário perceber que o que testemunha não é, de modo algum, a entidade, seja qual for, que se afirma como estando encarregada dessa passibilidade ao acontecimento, mas sim o próprio acontecimento. O que memoriza ou retém, não é uma capacidade do espírito, nem mesmo a acessibilidade ao que acontece. Mas, no acontecimento, a «presença» inapreensível e indubitável de algo que é diferente do espírito e que acontece, «de vez em quando... » 5. Heidegger tentou fundar a resistência de que falo, em relação ao modelo clássico da arte encarrado como tekhn ê. No entanto, desde Platão, a arte ou a Dichtung concebe-se como uma remodelagern, um plattein e foi o modo principal pelo qual a política tentou moldar a comunidade de acordo com talou tal ideal metafísico . Seguindo aqui 81

Lacoue-Labarthe, penso que existe uma correlação estreita e essencial entre a arte política e as belas artes. Um caso eminente desta combinação encontra-se na República de Platão: o problema político consiste apenas em observar o bom modelo, o qual é o modelo do Bem, com vista a moldar a comunidade humana. Mutatis mutandis, encontraremos o mesmo princípio nas filosofias políticas da Idade Média, do Renascimento ou da modernidade. O nazismo inverteu de algum modo a relação : é a «arte», de forma explícita que desempenha aqui a função de política. Os nazis, sabe-mo-lo, utilizam frequente e sistematicamente o mito, os media, a cultura de massas e as novas tecnologias, para alcançar a mobilização total da energia, em todas as suas formas. Deste modo, inscrevem nos factos o sonho wagneriano da «obra de arte total». Syberberg mostrou que o Gesamtkunstwerk encontra-se muito mais no cinema, na té/étechné em geral, do que na 6pera. Hoje, a política, utilizando outras justificações, por vezes com argumentos contrários, tem a mesma natureza . No que chamamos de democracia moderna, a hegemonia persiste no princípio segundo o qual a opinião das massas deve ser seduzida e conduzida pelo que chamaria de processos «telegráficos» , por diversos géneros de «inscrição à distância» que permitem descrever e prescrever. E, deste modo, um nazismo ganhou: como mobilização total. 6. O pensamento e a escrita, mesmo que não se deixem subordinar à «telegrafia», estão isoladas e postas num ghetto, no sentido em que a obra de Kafka desenvolve este tema. Mas, este nome de ghetto não é apenas aqui uma metáfora. Os judeus de Vars6via não s6 foram prometidos à morte, como também tiveram de pagar pelas «medidas de protecção» decididas contra eles, a começar pelo muro que os nazis decidiram construir, contra a suposta ameaça de uma epidemia de tif6ide. Acontece o mesmo com os escritores e os pensadores: se resistirem à utilização predominante do tempo hoje, não s6 estão predestinados a desaparecer, como devem também contribuir para a fabricação de um «cordão sanitário» que os isole. Ao abrigo desse cordão, a sua destruição é suposta poder ser diferida. Mas eles «compram» esse prazo de sobrevivência, breve e vão, ao modificar a sua maneira de pensar e de escrever, de modo a que as obras se tornam mais ou menos comunicáveis, trocadas, numa palavra: comercializáveis. Ora, a troca, 82

a venda e a compra das ideias e das palavras não deixam de contribuir, de forma contraditória, para a «solução final» do problema: como escrever, como pensar? Quero dizer que contribuem para tornar ainda mais hegemónica a grande regra do tempo controlado . Segue-se que o espaço público, a Õffentlichkeit deixa, nestas condições , de ser o espaço onde se sente, se experimenta e se afirma o estado de um espírito oferecido ao acontecimento e onde o espírito tenta elaborar uma ideia desse próprio espírito, em particular sob o sinal do «novo». Hoje, o espaço público transforma-se num mercado de bens culturais onde o «novo» se tornou uma fonte adicional de mais-valia. 7. Quando se trata de aumentar as capacidades da rnónade, parece razoável abandonar, mesmo destruir activamente, essas partes da espécie humana que parecem supérfluas, sem utilidade para este fim. Por exemplo, as populações do Terceiro Mundo. Um significado mais particular liga-se ao facto do nazismo ter escolhido o povo judeu para ser exterminado. Disse que esta parte da herança antiga europeia formada pelo pensamento judaico representa uma forma de pensar inteiramente virada para a escuta e a interpretação contínuas e sem fim, de uma voz. É isto, e é disto que, fascinado pelo modelo grego, o pensamento de Heidegger falhou completamente. 8. Quanto à voz que aconselha: «deves resistir (apesar de teres que pensar ou escrever)», ela implica obviamente que o problema do tempo presente não é de modo algum a comunicação. O que retém a atenção e se torna questão, é, de preferência, o que esta prescrição pressupõe: o quê ou quem é o autor (que envia) essa ordem? Qual a sua legitimidade? Isto leva-nos a pensar que esta ordem implica que a questão seja deixada em aberto, se for verdade que esse «tu deves» preserva e reserva a vinda do futuro segundo o seu aspecto inesperado .

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o INSTANTE,

NEWM~N

o ANJO Seria necessário distinguir o tempo de que precisa o pintor para pintar um quadro (o tempo de «produção»), o tempo necessário para olhar e perceber essa obra (o tempo de «consumo»), o tempo ao qual a obra se refere (um momento, uma cena, uma situação, uma sequência de acontecimentos: o tempo do referente diegético, da história contada pelo quadro), o tempo que demorou para chegar até ao observador, desde a sua «criação» (o seu tempo de circulação) e, por fim também, talvez, o tempo que ela própria é. Este princípio, na sua ambição infantil, permitiria isolar «lugares de tempo» diferentes. O que distingue a obra de Newman, no corpus das «vanguardas» e, nomeadamente, no do «expressionismo abstracto» americano, não é o facto de estar obcecada pela questão do tempo, esta obsessão é partilhada por muitos pintores, mas sim o facto de dar uma resposta inesperada: que o tempo é o próprio quadro. Para destacar e desenvolver este paradoxo, o meio conveniente é confrontar o «lugar do tempo» newmaniano com o que rege as duas grandes obras de Duchamp. Le grand Verre e Étant donnés fazem referência a esses acontecimentos, à «nudez» da Noiva, à descoberta do corpo obsceno. Estes acontecimentos são apenas um: o acontecimento da feminilidade, o escândalo representado pelo «outro sexo». No «atraso em vidro», ainda não chegou; nos arbustos, por detrás do óculo da porta, já chegou. As duas obras são duas maneiras de repreTexto extraido do catálogo da exposição «Le ternps: regards sur la quatriême dimensíon» organizada em Setembro de 1984 por Michel Baudson, director-adjunto de la Société des expositions au Palais des Beaux-Arts de Bruxelles. Publicado novamente em Poésie, 34, 1985.

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sentar o anacronismo do olhar em relação ao acontecimento, o trovão que cega o olho, uma epifania. Mas, segundo Duchamp, esta ocorrência, a «feminilidade», não pode ser tida em conta no tempo do olhar da «virilidade». Resulta que o tempo necessário para «consumir» (sentir, comentar) estas obras é, por assim dizer, infinito: é ocupado na pesquisa da própria aparição (termo duchampiano), cuja «nudez» é o analogon sacrilégio e sagrado. A aparição é algo que acontece e que é diferente. De que modo podemos nós dar figura a essa diferença? Seria necessário que fosse identificada, o que é contraditório. Duchamp organiza o espaço da Mariée de acordo com o «ainda não», o de Étant donnés, de acordo com o «já não». O observador do Vidro espera Godot; por detrás da Porta de Étant donnés, o que olha persegue a Albertine desaparecida. As duas obras de Duchamp formam uma charneira entre a anamnese proustiana perdida e a paródia beckettiana prospectiva. Um quadro de Newman não tem como objectivo fazer ver que a duração excede a consciência, mas de ser ele próprio a ocorrência, o momento que chega. Duas diferenças com Duchamp, uma de «poética» por assim dizer, a outra temática. Nem que seja de longe, o tema duchampiano depende de um género , as Vaidades; o de Newman pertence às Anunciações, às Epifanias. Mas o afastamento entre as duas poéticas plásticas ainda é mais vasto. Um quadro de Newman, é um anjo. Não anuncia nada, é o próprio anúncio. A aposta plástica das grandes peças de Duchamp é frustrar o olhar (e o espírito) porque tenta representar de forma analógica a forma pela qual o tempo frusta a consciência. Mas Newman não apresenta um anúncio inapresentável, deixa-o apresentar-se. O tempo gasto a «consumir» uma pintura de Newman é muito diferente do tempo exigido pelas grandes obras de Duchamp. Nunca acabamos de contar Le grand Verre e Étant donnés. A narrativa, as narrativas envolvem a Noiva, induzidas pelos nomes estranhos esboçados nos pedaços de papel das Bottes, figurados sobre o vidro, representados pelos comentadores. A narratividade reserva-se, quase desaparece, nas instruções de montagem de Étant donnés, mas rege o próprio espaço do berçário obsceno . Conta uma natividade. E o barroquismo dos materiais reclama também narrativas. Uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica. Está tudo ali, dimensões, cores, traços, sem alusão. Ao ponto de ser um

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problema para o comentador. O que dizer que não seja dado? A descrição é fácil, mas monótona como uma paráfrase. A melhor glosa consiste na interrogação: o que dizer?, na exclamação: hal, na surpresa: e esta! Todas expressões de um sentimento que tem um nome na tradição estética moderna (e na obra de Newman): o sublime. É o sentimento: aqui está. Não há assim quase nada para «consumir», ou não sei o quê. Não se consome a ocorrência, mas apenas o seu sentido. Sentir o instante é instantâneo.

A OBRIGAÇÃO

A ruptura tentada por Newman com o espaço dos vedute afecta o fundamento «pragmático» deste último. Já não é um príncipe-pintor, um eu, que oferece a sua glória (na obra de Duchamp, a miséria) para que seja vista por um terceiro (incluindo ele próprio, obviamente), de acordo com Iii «estrutura comunicacional» que fundou o modernismo clássico. Duchamp trabalha esta disposição tanto quanto pode, nomeadamente através das suas pesquisas acerca de um espaço multidimensional e todos os géneros de «charneiras». Na sua globalidade, a obra inscreve-se na grande charneira temporal cedo demais/tarde demais. Trata-se sempre do demasiado, o qual é o índice da miséria, enquanto que a glória e «generosidade» cartesiana querem o como deve ser. No entanto, este trabalho de Duchamp exerce-se sobre uma mensagem pictórica, plástica, que se transmite de um destinador, o pintor, a um destinatário, o público, acerca de um referente, de uma diégese que o público tem dificuldade em ver, mas que é levado a tentar ver, com mil astúcias e paradoxos previstos pelo pintor. O olho explora sob o regime do: Adivinha. O espaço newmaniano já não é triádico, no sentido em que seria instado sobre um destinador, um destinatário e um referente. A mensagem não «fala» de nada, não emana de ninguém. Não é Newman quem «fala», quem faz ver, pelo meio da pintura. A mensagem (o quadro) é o mensageiro, «diz»: aqui estou, ou seja: pertenço-te, ou sê minha. Duas instâncias: eu, tu, insubstituíveis e que só ocorrem na urgência do aqui-agora. O referente (aquilo de que «fala» o quadro), o destinador (o seu «autor») não têm pertinência, mesmo negativa, mesmo como uma alusão a uma presença possível. A mensagem é a apre-

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sentação, a apresentação de nada, ou seja: da presença. Esta organiza-

ção «pragmática» tem um parentesco muito maior com a ética do que com a estética ou a poética. Trata-se, para Newman, de dar à cor, a linha, ao ritmo, a força da obrigação, uma relação de face a face, na segunda pessoa, cujo modelo não pode ser: Vê isto (além), mas: vê-me, ou melhor: escuta-me. Isto porque a obrigação é mais um modo do tempo do que de espaço e o seu órgão é mais o ouvido do que o olho. Newman esgota assim a refutação do «distingue» introduzido pelo Laocoon de Lessing, refutação em que constitui sem dúvida a aposta principal das pesquisas das vanguardas desde, digamos, Delaunay ou Malévitch.

o «TEMA» o tema da pintura não é propriamente eliminado. Num dos seus «monólogos» intitulado The Plasmic Image (1943-1945), Newman salienta «a importância do tema para a pintura». Sem tema esta torna-se, escreve Newman, «ornamental». É necessário conceder ao surrealismo, mesmo moribundo, a justiça de que mantendo a exigência do tema impediu a nova geração americana (Rothko, Gottlieb, Gorky, Pollock, Baziotes) de se deixar seduzir pela abstracção vazia à qual as escolas europeias sucumbiram, no fim dos anos 1910. Depois de Thomas B. Hess, o «tema» da obra de Newman era, em suma, a própria «criação artística», símbolo da Criação pura e simples, a criação relatada no Génesis. Podemos admiti-la como se admite um mistério ou, pelo menos, um enigma. Newman escreve no mesmo Monólogo: «O tema da criação é o caos.» Muitos dos seus títulos orientam a interpretação para a ideia (paradoxal) de começo. O Verbo, como um raio nas trevas ou uma linha numa superfície deserta, separa, divide, institui uma diferença, provoca o sentimento com essa diferença por mais mínima que seja e, portanto, inaugura um mundo sensível. Este início é uma antinomia. Tem lugar no mundo como a sua diferença inicial, o início da sua história. Não pertence a esse mundo porque pode engendrá-lo, surge de uma pré-história ou de uma an-história. Este paradoxo é o da performance ou da ocorrência. A ocorrência é o instante que «cai» ou «chega» de forma imprevisível, mas que, a partir do ,momento em que está aqui, toma o seu lugar na 88

rede do que aconteceu. Qualquer instante, desde que seja apreendido segundo o seu quod em vez do seu quid, é o início. Sem esse clarão, não haveria nada ou o caos . O clarão está «sempre» ali (como o instante), e nunca está lá. O mundo nunca pára de começar. Para Newman, a criação não é o acto de alguém, é o acontecer (isto) no meio do indeterminado. Se houver portanto um «tema», este será o tema «actual». Chega agora e aqui. O que acontece (quid) chega logo depois. O início é que há.. . (quod); o mundo, o que existe. Duchamp tinha por tema a impossibilidade de apreender o instante, tema que tentava representar com artifícios especiais. A obra newmaniana, a partir de Onement I (1948) deixa de fazer referência, através de um ecrã , a uma história situada do outro lado, sendo esta história tão purificada e extraordinariamente simbólica como é, na obra de Duchamp, a descoberta ou a «invenção» ou a «visão» do outro (sexo). Se examinarmos os quadros do «início» (onde Newman se transforma em Newman), que seguem Onement I: Galaxy, Abraham, The Name I, Onement II, em 1949, Joshua, The Name II, Vir Heroicus Sublimis, em 1950-1951, ou a série dos cinco Untitled de 1950 terminados com The Wild e dos quais cada peça tem de um a dois metros de altura sobre quatro a quinze centímetros de largura: veremos que estas obras não «contam» obviamente, um acontecimento, que não fazem referência de forma figurativa, a cenas extraídas de narrativas conhecidas pelo observador ou reconstituíveis por ele. Simbolizam, sem dúvida, acontecimentos, como é sugerido pelos seus títulos. Estes últimos autorizam , em certa medida, o comentário hebraizante de Hess , como o permite também o que sabemos do interesse de Newman para com a leitura da Tora e do Talmude. No entanto, o próprio Hess concorda que «Newman nunca se serviu da sua pintura para transmitir uma mensagem ao espectador» e que «também nunca ilustrou uma ideia ou pintou uma alegoria». A não-figuratividade das obras, mesmo simbólicas, deve servir de princípio regulador ao comentário. Se portanto interrogamos a única apresentação plástica, o que se oferece ao olhar, sem o auxílio das conotações sugeridas pelos títulos, não só nos sentimos afastados de qualquer interpretação, como também a própria decifração do quadro: a sua identificação pelas linhas, as cores, o ritmo, o formato, a escala, o material (médium e pigmento), o suporte, parecem fáceis, quase imediatas. É obvio que não pos-

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sui nenhum segredo de fabricação, nenhuma habilidade capaz de atrasar a inteligência do olhar e, portanto, de excitar a curiosidade. Não é sedutor, nem equívoco, é claro, «directo», franco e «pobre». É preciso admitir que cada tela, mesmo quando faz parte de uma série (e será ainda e mais o caso das catorze Stations pintadas entre 1958 e 1966), não tem outro objectivo senão ser por si própria, um acontecimento visual. O tempo do que é narrado (o raio do punhal levantado sobre Isaac), o tempo de narrar esse tempo (os versículos correspondentes do Génesis) deixam de ser dissociados. São condensados no instante plástico (linear, cromático, rítmico) representado pelo quadro. Este último ergue-se, Hess diria: como o apelo do Senhor que suspende a mão de Abraão e, podemos dizer, mais sobriamente: erguer-se como se ergue a ocorrência. O quadro representa a presença, o ser oferece-se aqui e agora. Ninguém, e muito menos Newman, me faz vê-lo no sentido de: o narrar, o interpretar. Eu (o observador) sou apenas um ouvido aberto ao som que chega do silêncio, o quadro é esse som, um acorde. Erguer-se, tema constante na obra de Newman, deve entender-se como: erguer o ouvido, escutar.

o SUBLIME A obra de Newman pertence à estética do sublime que Boileau introduziu com a sua tradução de Longino, a qual se elaborou lentamente na Europa, desde o fim do século XVII, e da qual Kant e Burke foram os analistas mais escrupulosos e que o idealismo alemão, o de Fichte e de Hegel nomeadamente, incluiu (e por isso mesmo não o percebeu realmente) no princípio de que o todo do pensamento e da realidade cria um sistema. Newman tinha lido Burke. Julgava-o demasiado «surrealista» (num «Monólogo» intitulado: The Sublime is Now). No entanto Burke, à sua maneira, põe o dedo sobre o ponto essencial para o projecto newmaniano. O delight, esse prazer negativo que caracteriza de modo contraditório, quase neur6tico , o sentimento sublime, vem da suspensão de uma dor ameaçadora. Esta ameaça, cujos «objectos» e situações são volumosos, que pesa sobre a conservação do ser, Burke dá-lhe o nome de terror: as trevas, a solidão, o silêncio, a aproximação da morte podem ser «terríveis» ao anunciarem que o olhar, outra pessoa, a linguagem,

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a vida podem vir a falhar. Sentimos que pode já não acontecer nada. O que é sublime é que, no meio dessa iminência do nada, aconteça alguma coisa apesar de tudo, tenha «lugar» e anuncie que não está tudo acabado . Um simples eis, a minima ocorrência, é esse «lugar». Ora, Burke atribui à poetry, a que chamariamos escrita, essa finalidade dupla e contrariada de espalhar o terror (diriamos: de ameaçar o fim da linguagem) e de aceitar o desafio dessa falha do verbo , ao suscitar ou ao receber o acontecimento de uma frase «incrível». Quanto à pintura, julga-a incapaz de levar a cabo, por ordem, essa tarefa sublime. A literatura é livre para combinar palavras e para experimentar frases, tem em si própria um poder ilimitado, o qual é o da linguagem na sua suficiência, mas a arte de pintar permanece, aos olhos de Burke, julgada pelos constrangimentos da representação figurativa. Com uma simples expressão como «o Anjo do Senhor», escreve Burke, o poeta abre ao pensamento um infinito de associações; nenhuma imagem pode igualar esse tesouro, ela nunca pode exceder o que o olho pode reconhecer. Sabemos como a pintura surrealista tentou ultrapassar essa insuficiência. Coloca o infinito na composição. Elementos figurativos , sempre reconheciveis ou pelo menos definidos, são reunidos de modo paradoxal (sobre o modelo do trabalho do sonho) . Esta «solução» fica no entanto passivel da objecção formulada por Burke contra a potência da pintura em sublimidade: apenas se juntam de forma diferente «restos» vindos da «realidade perceptiva» . E se Newman julga Burke «demasiado surrealista», é porque, como pintor, vê bem que esta condenação só pode ter razão numa arte que se obstina a representar e a dar a conhecer. Na Critlca da faculdade de julgar, Kant esboça, num rasgo de inspiração quase involuntário, uma outra solução para o problema da pintura sublime. Não se pode, escreve Kant, apresentar no espaço e no tempo o infinito da potência ou o absoluto da grandeza, os quais são Ideias puras. Mas, podemos, pelo menos, «evocá-los», por meio daquilo a que dá o nome de «apresentação negativa». Deste paradoxo de uma apresentação que não apresentaria nada, Kant dá , por exemplo, a interdição das imagens pela lei mosaica. É apenas uma indicação , mas anuncia as saidas abstraccionistas e minimalistas pelas quais a pintura tentará escapar à prisão figurativa. No caso de Newman, esta evasão não consiste em ultrapassar os li91

mites fixados ao espaço figurativo, pelo Renascimento e o Barroco, mas sim trazer o tempo do acontecimento em que ocorria a «cena» lendária ou histórica, sobre a apresentação do {»'óprio objecto pictórico. A matéria cromática, a sua relação com o material (a tela, por vezes deixada por preparar) e a sua disposição (escala, formato, proporção), eis o que deve suscitar a surpresa admirável, a maravilha, que alguma coisa existe, em vez do nada. O caos ameaça, mas o clarão do tzimtsum, o zip, tem lugar: divide as trevas e decompõe, como um prisma, a luz em cores e coloca-as sobre a superfície, como num universo. Newman dizia que era antes de tudo um desenhador. Existe uma santidade do traço em si próprio. «Os meus quadros não se prestam nem à manipulação do espaço, nem da imagem, mas a uma sensação de tempo», escreve Newman num «Monólogo» inacabado de 1949 e que tem por nome: Prologue for a New Esthetlc. Salienta que essa sensação não é o «sentido do tempo que foi o tema subjacente da pintura e que lhe juntou sentimentos de nostalgia e de grande drama, sempre feito de associações e de histórias... » O manuscrito do Prologue interrompe-se aqui. Mas, as linhas que precedem esta interrupção permitem elaborar um pouco mais o tempo de que se trata. Newman conta que no mês de Agosto de 1949, visita os túmulos (os «mounds») dos Índios Miami, no sudoeste do Ohio e a fortificação indiana de Newark, Ohio. «De pé diante do tumulus de Miamisburg [...), fiquei confundido, escreve ele, pelo carácter absoluto da sensação, por essa simplicidade natural.» Numa conversa ulterior narrada por Hess, glosa este acontecimento do lugar sagrado. Olha-se o sítio e pensa-se: «Eis-me, aqui. .. e além, lá longe (para além dos limites do sítio), é o caos, a natureza, as ribeiras, as paisagens... Mas, aqui, adquirimos o sentido da nossa própria presença... Veio-me a ideia de tornar o espectador presente, a ideia de que «o homem está presente ... » Hess aproxima esta declaração do texto que Newman escreveu em 1963 para apresentar a maquete de uma sinagoga que concebeu e construiu com Robert Murray, para a exposição «Recent American Synagogue Architecture». A sinagoga é um «tema» ideal para o arquitecto, não fica constrangido a nenhuma organização do espaço a não ser àquela que ele julga restituir melhor o mandamento: «Sabe diante de quem estás.» «É um lugar, Makom, onde qualquer homem pode ser 92

levado a levantar-se e a ler o seu texto diante da Tora [... ]. O meu propósito é criar um lugar, não um meio ambiente; recusar a contemplação dos objectos rituais [.. .]. Aqui, nesta sinagoga, cada homem está sentado, isolado no seu «dugout», esperando que seja chamado, não para subir para um estrado, mas para escalar a colina onde, sob a tensão do Tzimtzum que cria a luz e o universo, ele pode tomar consciência do sentido total da sua própria personalidade diante da Tora e do seu Nome.» A «colina» central onde se lê a Tora, está inscrita sob o nome de «mound», sobre os esboços e o plano. Esta condensação do espaço índio e do espaço judaico tem a sua origem e o seu fim, na tentativa de captar «a presença». A presença é o instante que interrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que «há» antes de qualquer significado daquilo que há. É uma ideia que podemos qualificar de mística, já que se trata do mistério do ser. Mas o ser não é o significado. Se acreditarmos em Newman, o ser, ao revelar-se no instante, forneceria à «personalidade», o seu «significado total». A expressão é três vezes infeliz. Na ocorrência, nem o significado, nem a totalidade, nem a pessoa estão em jogo . Estas instâncias vêm «depois» de alguma coisa acontecer, para que se habituem a ela. Makom significa lugar mas, esse «lugar» é também o nome bíblico do Senhor. É necessário entendê-lo como a expressão francesa «avoir lieu», ou seja: advir .

A PAIXÃO

Em 1966, Newman expõe no Guggenheim as catorze Stations of the Cross, o Caminho da Cruz. Dá-lhes por subtítulo: Lamma Sabachtani, o grito de desespero que Jesus crucificado lança a Deus: porque me abandonaste? «Esta pergunta sem resposta, escreve Newman na Nota que acompanhou essa exposição, acompanha-nos há muito tempo - desde Jesus - desde Abraão - desde Adão - é a pergunta original.» Versão hebraica da Paixão: a reconciliação da existência (e, portanto, da morte) com o significado não acontece. O Messias, portador do significado, continua a ser esperado. A única «resposta» jamais ouvida para a pergunta do abandono não é: Sabe porquê, mas: Sê. Newman deu o título Be a um outro quadro, retomado em 1970, o ano da sua morte, com o título Be I (Second Version). Uma outra te93

la, a que o marchand que a expôs em Nova Iorque, em 1962, deu o nome de Resurrection, foi apresentada no Guggenheim em 1966 com as Stations, com o título Be II (tinha sido começada em 1961). No livro de Hess, a reprodução desta obra tem por legenda: First Station. B II. Percebe-se que não se trata de modo algum, com este Sê, da ressurreição do significado do mistério cristão, mas da purificação de uma prescrição emanando do silêncio ou do vazio e que perpetua a paixão ao reiterá -la pelo seu início. Convém que à peça a convicção representada pelo quadro não ofereça nada para decifrar, e menos ainda para interpretar. Daí, a utilização dos «aplats», das cores não moduladas e, mais tarde, das cores ditas «elementares», como nos Who 's Afraid of Red, Yel/ow and B/ue? (1966-1967). Neste último título, o ponto de interrogação é o de: ocorrerá? e o afraid deve, penso eu, ser percebido como uma alusão ao terror burkeano que envolve a «delícia» do acontecimento, o alívio de acontecer. a ser anuncia-se no imperativo . A arte não é um género definido por um fim (o prazer do destinatário), menos ainda um jogo, cujas regras deveriam ser descobertas; leva a cabo uma tarefa ontológica, ou seja: «cronológica». Cumpre-a sem a acabar. É necessário recomeçar sem fim o testemunho da ocorrência, deixando de ser a ocorrência. Nas primeiras esculturas de 1963-1966 intituladas Here I, Here II, Here III como na Broken Obelisk acabada em 1961, reconhecemos versões tridimensionais do zip que vêm marcar, sem parar, e nunca no mesmo sítio, todos os quadros com o seu risco rectilíneo. A verticalidade, no caso de Newman, não conota unicamente a ilação, o arrancar ao solo do abandono e do não-senso. Não se ergue somente, desce e fulmina. A ponta virada do obelisco toca o cimo da pirâmide «comm), no tecto da Sistina, o dedo de Deus toca o de Adão. A obra ergue-se no instante, mas o raio do instante descarrega sobre ela como um comando minimal: Sê.

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o SUBLIME E A VANGUARDA

1. Em 1950-51, Barnett Baruch Newman pinta uma tela de 2,42 m por 5,42 m, a que dá o nome de Vir Heroicus Sublimis. No início dos anos 1960, as suas três primeiras esculturas intitulam-se Here I, Here II e Here III. Um dos seus quadros chama-se Now, dois outros têm por título Be. Em Dezembro de 1948, Newman escreve um ensaio com o título: The Sublime is Now. Como entender que o sublime, digamos provisoriamente o objecto do sublime, exista aqui e agora? Não será necessário, quando se fala deste sentimento, fazer alusão a algo que não pode ser mostrado ou, como dizia Kant apresentado (dargestellt)? Num curto texto inacabado e datado do fim de 1949, Prologue for a New Esthetic, Newman escreve que, nos seus quadros, não se dedica «à manipulação do espaço, nem à imagem, mas sim a uma sensação de tempo». Não se trata, acrescenta, do tempo repleto de sentimentos de nostalgia, de grandes dramas, de associações e de história, o qual foi o objecto constante da pintura. O texto é interrompido nesta denegação. De que tempo se trataria? Qual seria o now que Newman tinha em vista? O seu amigo e comentador, Thomas B. Hess, pensa poder escrever que esse tempo era o Makom ou o Hamakom da tradição hebraica, o ali, o sítio, o lugar que representa um dos nomes dados pela Tora, ao Senhor o Inominável. Não sei o suficiente sobre o Makom para afirmar que era nele que Newman pensava. Mas quem saberá o sufiTexto de uma conferência apresentado em francês na Kunsthochschule de Berlim em Janeiro de 1983. Heike Rutke leu primeiro a tradução alemã que tinha feito com Clemens Carl Hãrle e que foi publicada in Merkur (38 (2), Março de 1984). Texto francês in Poesie, 34, 1985.

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ciente acerca do now? Newman não podia certamente estar a pensar no «instante presente» que tenta permanecer entre o futuro e o passado e que é, por eles, devorado. O agora é um dos «êxtases» da temporalidade, analisados desde Agostinho e Husserl, por um pensamento que tentou constituir o tempo a partir da consciência. O now de Newman, now puro e simples, é desconhecido pela consciência, esta não o pode constituir. O now desampara e destitui a consciência, representa o que ela não consegue pensar, talvez mesmo o que esquece para ela própria se constituir. O que não conseguimos pensar, é que algo ocorre. Ou, melhor dito e de forma mais simples: que ocorre... Não um grande acontecimento, no sentido dos media. Nem mesmo um pequeno acontecimento. Mas sim uma ocorrência. Não se trata de uma questão de sentido, nem de realidade, incidindo sobre o que ocorre, sobre o que isso significa. Antes de se-perguntar o que isso significa, antes do quid, é necessário que, por assim dizer, «ocorra» quod. Que ocorra «antecede» sempre, de algum modo, a questão que incide sobre o que ocorre. Ou seja, a questão antecede-se a ela própria. «Que ocorra» é a questão enquanto acontecimento, «em seguida», a questão passa a tratar do acontecimento que acaba de ocorrer. O acontecimento ocorre como um ponto de interrogação antes de «ocorrer» como interrogação. Ocorre é, de preferência, ocorrerá. existirá. será possfvel? Só «em seguida» será determinado o ponto pela interrogação: ocorrerá isto ou aquilo, será isto ou aquilo, isto ou aquilo será possível? Um acontecimento, uma ocorrência, o que Martin Heidegger chamava de ein Ereignis, é infinitamente simples; contudo, esta simplicidade só se pode tornar próxima na privação. O que chamamos pensamento deve ser desarmado. Existe uma tradição e uma instituição da filosofia, da pintura, da política, da literatura. Estas «disciplinas» também possuem um futuro, sob a forma de Escolas, de programas, de projectos de pesquisa, de «tendências». Aqui, o pensamento exercita-se sobre o que é adquirido, tenta reflectir sobre ele e ultrapassá-lo. Tenta determinar o que já foi pensado, escrito, pintado, socializado, para determinar o que ainda o não foi. Estamos conscientes disso, é o pão de cada dia. É pão de guerra, biscoito de soldado. Contudo, esta agitação, no seu sentido mais nobre (Agitação é a palavra pela qual Kant designa a actividade do espírito que possui discernimento e que o utiliza), esta agitação só é possível quando ainda existe algo por deter-

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minar. Podemos tentar determiná-lo ao construir um sistema, uma teoria, um programa, um projecto, e é necessário fazê-lo. Antecipando-o. Podemos igualmente interrogar-nos sobre esse «resto», deixar chegar o indeterminado enquanto ponto de interrogação. O que é pressuposto pelas disciplinas e as instituições do pensamento, é que não foi tudo dito, escrito, registado. As palavras ouvidas ou pronunciadas não são as últimas palavras. «Depois» de uma frase , «depois» de uma cor, vem mais uma frase, uma cor. Não sabemos qual, pensamos sabê-lo ao confiar nas regras que permitem encadear frase após frase, cor após cor, as quais são conservadas, precisamente, nas instituições do passado e do futuro, por mim mencionadas. A Escola, o programa, o projecto declaram que , depois de uma frase determinada, tal frase ou tal género de frase é obrigatória, permitida ou interdita. O que é verdade para a pintura, também o é para as outras actividades do pensamento. Depois de uma obra pictórica, outra obra é necessária, permitida ou interdita. Depois desta cor, aquela cor; depois deste traço, aquele traço. Não existe grande diferença entre um manifesto vanguardista e um programa de estudos na Escola das Belas Artes, se os examinarmos sob esta relação com o tempo. São ambas opções relacionadas com o que será bom que aconteça ulteriormente. É porém verdade, que um e outro esquecem esta possibilidade: que nada aconteça, que a frase seja a última, que o pão não seja o de cada dia. Esta miséria é a miséria com a qual o pintor é confrontado, diante da superfície plástica, o músico diante da superfície sonora, o pensador diante da página branca, etc. Não só diante da tela ou da página branca, no início da obra, mas cada vez que algo demora em acontecer, que cria portanto uma questão, a cada ponto de interrogação, a cada «e agora». Associamos frequentemente ao sentimento de angústia a eventualidade de nada ocorrer. Confere um valor principalmente negativo à espera de que se trata, se se tratar realmente de uma espera. Contudo, o suspenso pode também ser acompanhado de prazer, o prazer de acolher o desconhecido, por exemplo, e até de felicidade, para falar como Baruch Spinoza, a felicidade provocada pelo crescimento do sentimento de existir, trazido pelo acontecimento. Será mais provavelmente, um sentimento contraditório. Existe, pelo menos, um sinal, o próprio ponto de interrogação, a forma pela qual Ocorre permanece e se anuncia: Ocorrerá? A pergunta pode ser feita sob todos os tons, como diria

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, Derrida. Contudo, o ponto de interrogação é «agora», now , como o sentimento de que pode não ocorrer nada: o nada, agora. Este sentimento contradit6rio, prazer e dor, felicidade e angústia, exaltação e depressão, foi baptizado ou rebaptizado, entre o século XVII e o século XVIII europeus, com o nome de sublime . Foi nesta palavra que se decidiu e perdeu a sorte da poética clássica, foi com este nome que a estética fez valer os seus direitos críticos sobre a arte, e que o romantismo, ou seja o modernismo, triunfou. Compete ao historiador de arte explicar como o substantivo sublime regressa sob a pena de um pintor judeu e nova-iorquíno dos anos 1940. A palavra sublime é hoje frequentemente utilizada pelo francês popular para designar o que provoca espanto (pouco mais ou menos como o great Americano) e admiração. Contudo, a ideia por ela conotada, também pertence à mais rigorosa reflexão sobre a arte desde há pelo menos dois séculos. Newman não ignora a aposta estética e filos6fica ligada à palavra sublime. Leu o Inquiry de Edmund Burke. Critica a descrição demasiado «realista» de Burke, segundo ele, da obra sublime. Basta dizer que, ao contrário, Newman julga o surrealismo como demasiado tributário de uma aproximação pré-romântica ou romântica do indeterminado. Assim, quando procura a sublimidade no aqui e agora, Newman rompe com a eloquência da arte romântica, mas não rejeita a sua tarefa fundamental, isto é, qU7 a expressão piet6rica, ou outra, seja a testemunha do inexprimível. O inexprimível não reside num além, num outro mundo , num outro tempo, mas nisto: que ocorra (alguma coisa). Na determinação da arte pictural, o indeterminado, o que Ocorre, é a cor, o quadro. A cor, o quadro, enquanto ocorrência, acontecimento, não é exprimível, e é isto que terá de testemunhar. Para ser fiel a esta deslocação em que consiste talvez, toda a diferença entre o romantismo e o vanguardismo «moderno», seria necessário traduzir The Sublime is Now, não por: o sublime existe agora, mas por: Agora, tal é o sublime. Não existe noutro lugar, nem para cima, nem além, nem mais cedo, nem mais tarde, nem outrora. Aqui, agora, acontece que... , e eis o quadro. O que é sublime é que exista esse qua dro, em vez do nada. O desapossar da inteligência que comove; o seu desarmamento, a confissão de que isso, essa ocorrência de pintura, não era necessária, nem mesmo previsível a privação diante do Ocorrerá?, a espera da ocorrência «antes» de qualquer defesa, ilustração ou

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comentário, a espera «antes» de se ter cuidado, e de se olhar, sob a égide do now, eis o rigor da vanguarda. Na determinação da arte literária, esta exigência para com o Ocorrerá? encontraria uma das suas mais rigorosas encenações em How to write, de Gertrude Stein. Continua a ser o sublime de Burke e de Kant e, ao mesmo tempo, deixa de o ser.

2. Disse que o sentimento contraditório pelo qual se anuncia e se perde o indeterminado foi a aposta da reflexão sobre a arte, entre o fim do século XVII e o fim do século XVIII. O sublime será talvez o modo da sensibilidade artistica que caracteriza o modernismo. Existe, todavia, um paradoxo no facto de ter sido apresentado durante a discussão dos letrados e defendido com energia pelo escritor francês que a história literária coloca entre os defensores mais empenhados do classicismo dos Antigos. Em 1674, Boileau publica a sua Art poétique, assim como a sua tradução, ou a sua transcrição do Péri tou hupsou, Du sublime. É um tratado, ou melhor, um ensaio, atribuido a um certo Longino cuja identidade permaneceu confusa durante muito tempo e que, hoje em dia, situamos pouco mais ou menos no fim do século I da nossa era. O autor é um retórico. Ensina, em principio, os meios postos à disposição do orador para persuadir ou comover (consoante o género) o seu auditório. Deste modo, a didáctica da arte oratória tornou-se tradicional desde Aristóteles, Cicero e Quintiliano. Esteve ligada à instituição republicana: é necessário saber falar perante as assembleias e os tribunais. Poderiamos esperar que o texto de Longino retomasse as máximas e os conselhos transmitidos por esta tradição, perpetuando, deste modo, a forma didáctica da tekhnê rhétorikê, Todavia, a economia do texto é afectada por uma incerteza, como se o seu tema, o sublime, o indeterminado, desestabilizasse o seu projecto didáctico. Não posso aqui analisar a flutuação. Boileau, tal como vários comentadores debruçaram-se sobre ela e concluiram que só se pode tratar o sublime com um estilo sublime. Longino bem tenta definir a sublimidade do discurso; é, diz ele, inesquecivel, irresistivel, e, sobretudo, dá muito em que pensar; surgem «a partir dela, muitas reflexões», (hou pollê 99

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anathéorêsis). Tenta ainda determinar as origens do sublime no éthos e no pathos do orador, nos processos do discurso: figuras, escolha das palavras e do registo de enunciação, de composição. Tenta, deste modo, submeter-se aos cânones do género tratado (retórica, poética, política). O próprio género destina-se a fornecer um modelo aos práticos. No entanto, quando se trata do sublime, grandes obstáculos se opõem à exposição regular de uma retórica ou de uma poética. Por exemplo, escreve Longino, existe um sublime de pensamento que se nota, por vezes, no discurso, pela extrema simplicidade da apresentação ou pelo silêncio puro e simples do orador, no preciso momento em que o seu carácter instruído deixava entrever maior solenidade. Aceito, mais uma vez, encarar este silêncio como uma figura. Não será, todavia, um erro dizer que esta figura é a mais indeterminada de entre todas. Mas, o que resta da retórica (e também da poética), quando, na tradução de Boileau, o retórico declara que «não existe melhor figura do que a que está perfeitamente escondida e que não se reconhece enquanto figura», para atingir o efeito sublime? Ou então, haverá processos para esconder as figuras, figuras para apagar as figuras? Como distinguir uma figura escondida de uma não-figura? E o que será uma não-figura? Mais uma vez, este factor parece ser um rude golpe para a função didáctica: quando sublime, o discurso fica repleto de falhas, de erros de gosto, de imperfeições formais. O estilo de Platão, por exemplo, está cheio de floreados e rococós, de comparações forçadas; em suma, Platão, é um maneirista ou um barroco comparado a um Lísias, ou Sófocles comparado a um Ion, ou ainda Píndaro comparado a um Basilides, sendo necessário não esquecer que os primeiros nomeados são sublimes e os outros apenas perfeitos. Uma falha no ofício é, deste modo, venial, se for o preço de uma «verdadeira grandeza». A grandeza do discurso é verdadeira, quando testemunha da incomensurabilidade do pensamento com o mundo real. Será a transcrição dada por Boileau que leva a esta analogia, ou será a influência do jovem cristianismo sobre Longino? Que a grandeza de espírito não pertença a este mundo, é um facto que não deixa de lembrar a distinção pascaliana das ordens. A perfeição exigível da technê não é, necessariamente, uma qualidade de sentimento sublime. Longino chega mesmo a dar, como exemplo de efeito sublime, perturbações na sintaxe considerada natural e razoável. No que diz respeito a Boileau, no prefácio que escreve para o texto de Longino em 1674, e 100

mais ainda, nas alterações acrescidas a esse mesmo texto em 1683 e 1701, assim como na X Reflexão publicada, após a sua morte em 1710, consuma a ruptura indicada com a instituição clássica da techné: o sublime não se ensina, a didáctica é impotente diante dele; ele não está ligado a regras determináveis por uma poética; pede apenas que o leitor ou o auditor tenha alguma concepção, gosto, e que, «sinta o que toda a gente sente primeiro». Boileau toma assim o mesmo partido que o Pêre Bouhours em 1671, quando este declarava que o respeito pelas regras é insuficiente para obter uma bela obra, que é necessário um «não sei quê», também chamado génio, «incompreensível e inexplicável», uma «dádiva do céu», essencialmente «escondida» e reconhecível pelos seus próprios «efeitos» sobre o destinatário. E, na polémica que o opõe a Huet, no que respeita a saber se o Fiat lux e lux fuit da Bíblia é sublime como o pensava Longino, Boileau pede a opinião dos Senhores de Port-Royal e particularmente de Lemaistre de Saci: os jansenistas são mestres em matéria de significados escondidos, de silêncios que falam, de sentimentos transcendentes de qualquer ra zão e, finalmente, da receptividade para com o Ocorrerá? O que está em jogo nestas lutas teológico-poéticas, é o estatuto das obras de arte. Serão elas as cópias de um modelo ideal? Poderá uma reflexão sobre as mais perfeitas de entre elas, dar origem a regras de formação que as assegurem de atingir o seu objectivo, a persuasão, o prazer? Com esta reflexão, poderá o entendimento ser suficiente? Concentrando-se sobre este tema da sublimidade e da indeterminação, a meditação sobre as obras provoca uma grande mutação na technê e nas instituições a ela ligadas, Academias, Escolas, professores e discípulos, gosto, público esclarecido formado pelos príncipes e cortesãos. É a própria destinação ou o destino das obras que está em causa. A predominância da ideia de technê colocava as obras sob uma regulamentação múltipla, a do modelo ensinado nos estúdios de artistas, nas Escolas, nas Academias, a do gosto partilhado pelos públicos aristocráticos e, por fim, a regulamentação de uma finalidade da arte que consistia em ilustrar a glória de um nome, divino ou humano, ao qual estava ligada a perfeição de tal virtude cardeal. A noção de sublime desregra esta harmonia. Ampliemos agora os traços desse desregramento. A technê torna-se, com Diderot, «a pequena técnica». O artista deixa de ser guiado por uma cultura que fazia dele o destinatário e o mestre de uma inspi-

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"ração que o invadia e que vinha de um «não sei quê». O público já não julga a partir de um gosto subordinado à tradição de um prazer partilhado: indivíduos desconhecidos pelo artista (o «povo») lêem livros, percorrem as salas dos Salões, acorrem aos teatros e aos concertos públicos, são invadidos por sentimentos imprevisíveis, ficam chocados, admirados, desdenhosos, indiferentes. A questão não está em agradar-lhes, ao fazer com que se identifiquem com um nome e participem à glorificação da sua virtude, mas sim, de os surpreender. «O sublime, escreve Boileau, não é propriamente algo que se prova e se demonstra, mas é uma maravilha que comove, que choca e provoca sentimentos». As próprias imperfeições, as alterações violentas do gosto, a fealdade, têm a sua parte no efeito de choque. A arte não imita a natureza, cria um mundo ao lado, eine Zwischenwelt, disse Paul Klee, poderíamos dizer eine Nebenwelt, onde o monstruoso e o disforme têm os seus direitos, já que podem ser sublimes. Perdoar-me-ão por simplificar de tal modo a transformação que ocorre com o desenvolvimento moderno da noção de sublime. Encontraríamos o seu rasto antes dos tempos modernos, na estética medieval, a dos Victorins, por exemplo. Ela explica, pelo menos, que a reflexão sobre a arte já não incide essencialmente sobre o destinador das obras, os quais abandonamos à solidão do génio, mas sim sobre o seu destinatário. Doravante, convém analisar as maneiras de afectá-lo, as formas pelas quais recebe e sente as obras e como as julga. Deste modo, a estética, a análise dos sentimentos do amador, ultrapassam a poética e a retórica, as quais são didácticas destinadas ao artista. A questão já não é: como fazer arte, mas sim: o que é sentir a arte? Porém, a indeterminação continua presente, até na análise desta última questão.

3. Em 1750, Baumgarten publica a Aesthetica, a primeira estética. Desta obra Kant dirá, brevemente, que se baseia num erro. Baumgarten confunde o julgamento, na sua utilização determinante, quando o entendimento organiza os fenómenos de acordo com as suas categorias e o julgamento na sua utilização reflexiva onde, sob a forma de senti102

menta, incide sobre a relação indeterminada entre as faculdades do sujeito. A estética de Baumgarten fica tributária de uma relação determinada de modo conceptual, com a obra de arte. O sentimento do belo é, para Kant, um prazer provocado por uma harmonia livre entre a função das imagens e a dos conceitos, diante de uma obra de arte ou da natureza. O sentimento do sublime ainda é mais indeterminado: um prazer misturado com tristeza, um prazer originado pela tristeza. Diante de um grande objecto, o deserto, uma montanha, uma pirâmide, ou um objecto muito poderoso, uma tempestade no oceano, uma erupção vulcânica, aparece a ideia de um absoluto que s6 pode ser pensada e deve permanecer sem intuição sensível, como uma ideia da razão. A faculdade de apresentação, a imaginação, falha em fornecer uma representação adequada desta ideia. Este insucesso na expressão suscita uma tristeza, um género de fosso sentido pelo sujeito, entre o que ele pode conceber e o que pode imaginar. Mas, esta tristeza, por sua vez, dá origem a um prazer, um duplo prazer: a impotência da imaginação atesta a contrario que tenta fazer ver o que não pode ser mostrado, e que, deste modo, tem por objectivo harmonizar o seu objecto com o da razão; e, por outro lado, a insuficiência das imagens é um sinal negativo da imensidão do poder das ideias. Este desregramento das faculdades entre elas dá origem à extrema tensão (a agitação, diz Kant) que caracteriza o pathos do sublime, sendo diferente do sentimento calmo do belo. No limite da ruptura, o infinito ou o absoluto da Ideia, pode ser reconhecido no que Kant chama apresentação negativa, ou mesmo, uma não-apresentação. Cita a lei judaica da interdição das imagens como um exemplo eminente de apresentação negativa: o prazer dos olhos reduzido a quase nada faz pensar infinitamente o infinito. Antes mesmo que seja extraída a arte romântica da figura clássica e barroca, abre-se assim a porta sobre uma pesquisa em direcção da arte abstracta e minimal. O vanguardismo germina, deste modo, na estética kantiana do sublime. No entanto, a arte, cujos efeitos são analisados por esta estética, consiste, no essencial, em representar sujeitos sublimes. A questão do tempo, do Ocorrerá, não faz parte, pelo menos de forma explícita, da problemática de Kant. Quanto a mim, a questão do tempo está no centro do Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful escrito por Edmund Burke e publicado em 1757. Kant tenta, sem êxito, rejeitar a tese de Burke, atribuindo-lhe empirismo e fisiologismo e,

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apesar de utilizar a sua análise da contradição caraeteristica do sentimento sublime, Kant despoja a estética de Burke do que penso ser o seu maior desafio: mostrar que o sublime é provocado pela ameaça de nada ocorrer. O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipo de prazer, ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação , que é a dor e a aproximação da morte. No entanto, a alma pode também afectar o corpo, como se este sentisse uma dor de origem externa, pelo único meio de representações associadas inconscientemente a situações dolorosas. No léxico de Burke, esta paixão extremamente espiritual chama-se terror. Ora, os terrores estão ligados a privações: privação da luz, terror das trevas; privação do outro, terror da solidão ; privação da linguagem, terror do silêncio; privação dos objectos , terror do vazio; privação da vida, terror da morte. O que é assustador, é que o Ocorrerá não ocorra, cesse de ocorrer. Para que este terror se misture com o prazer e componha com ele o sentimento sublime, é ainda necessário, escreve Burke, que a ameaça que o engendra seja suspendida, mantida a uma certa distância, retida. Esta incerteza, esta diminuição de uma ameaça ou de um perigo, provoca uma espécie de prazer que não é, por certo, o de uma satisfação positiva, mas sim, de um alívio. Continua a ser uma privação, mas do segundo grau: a alma é privada da ameaça de ser privada de luz, de linguagem, de vida. Burke faz uma distinção entre este prazer de privação de segundo grau, e o prazer positivo: dá-lhe o nome de deligh, delícia. Eis, deste modo, a maneira de analisar o sentimento sublime: um objecto muito grande, muito poderoso, que ameaça privar a alma de toda e qualquer Ocorrência e que a «espanta» (em graus de intensidade menores, a alma sente admiração, veneração, respeito). Fica estúpida, imobilizada, como se estivesse morta. Ao afastar esta ameaça , a arte proporciona um prazer de alívio, de delícia. Graças a ele, a alma é devolvida à agitação entre a vida e a morte e esta agitação é a sua saúde e a sua vida. Para Burke, o sublime já não depende da elevação (a qual representa a categoria pela qual Aristóteles distinguia a tragédia), depende sim da intensificação. Outra observação de Burke merece a nossa atenção porque anuncia uma possível libertação das obras em relação à regra clássica da imitação . No longo debate sobre as vantagens respectivas da pintura e da poesia, Burke toma o partido dessa libertação. A pintura está' conde104

nada à imitação dos modelos e à sua representação figurativa. Mas, se o objectivo da arte for provocar sentimentos intensos ao destinatário das obras, a figuração , por meio de imagens, é um constrangimento que limita as possibilidades da expressão emocional. Nas artes da linguagem, nomeadamente na poesia, e na poesia considerada por Burke como o domínio de certas pesquisas sobre a linguagem e não como um género possuindo as suas próprias regras, o poder de comover está liberto das verosimilhanças figurativas. «Que fazemos, quando queremos reproduzir um anjo num quadro? Pintamos um homem, jovem e belo, com asas: mas, fornecerá a pintura algo maior do que a simples adição destas palavras: O Anjo do Senhorl» E, de que forma pintar, com o mesmo poder de sentimento, o «A universe of death», com o qual acaba a viagem dos anjos depostos do Paraiso Perdido, de Milton? As palavras desfrutam de vários privilégios, na expressão dos sentimentos: elas próprias estão repletas de associações passionais; podem evocar o que pertence à alma, sem consideração do que é visível; por fim, Burke acrescenta que: «está em nosso poder, fazer combinações com as palavras, impossíveis de outra maneira» . Impelidos pela estética do sublime, em busca de efeitos intensos, as artes, qualquer que seja o seu material, podem, e devem, desprezar a imitação dos modelos apenas belos, e experimentar combinações surpreendentes, insólitas, chocantes. O choque supremo, é que Ocorra (algo) em vez do nada, a privação suspensa. Estas análises de Burke podem, sem dúvida, ser facilmente retomadas e comentadas numa problemática lacan-freudiana (o que foi feito por Pierre Kaufman e Baldine Saint-Girons). Lembro estas análises com um outro sentido: o sentido que comanda o meu tema; a Vanguarda. Desejei sugerir que, no despertar do romantismo, a elaboração da estética do sublime por Burke e, num menor grau, por Kant, aponta para um mundo de possibilidades de experimentações artísticas, no qual os Vanguardistas vão traçar o seu rumo. Não se trata, em geral, de influências directas, observáveis do ponto de vista empírico. Manet, Cézanne, Braque e Picasso, não leram, por certo , nem Kant nem Burke. Trata-se, de preferência, de um destino irreversível na destinação das obras, o qual afecta todas as valências da condição artística. O artista experimenta combinações que permitem o acontecimento. O amador não sente um prazer simples, não retira benefícios éticos, 105

do seu contacto com as obras, espera delas uma intensificação das suas capacidades de emoção e de concepção, um prazer ambivalente. A obra não depende de modelos, tenta apresentar o que não é apresentável; não imita a natureza, é um artefacto, um simulacro . A comunidade social não se reconhece nas obras, ignora-as, rejeita-as como algo que não percebe, e, em seguida, aceita que a vanguarda intelectual as conserve nos museus, como vestígios de tentativas que testemunham do poder do espírito e da sua miséria.

4. Com a estética do sublime, a aposta das artes durante os séculos XIX e XX, é testemunhar do indeterminado existente. Para a pintura, o paradoxo assinalado por Burke, nas suas observações sobre o poder das palavras, é que este testemunho só pode ser feito de modo determinado. O suporte, o quadro, as linhas, as cores, o espaço, as figuras permanecem, no seu essencial e na arte Romântica, sob o poder escravizante do constrangimento representativo. Mas, as condições entre o fim e os meios têm como resultado, já com Manet e Cézanne, pôr de novo em questão certas regras que determinam, desde o Quattrocento, a representação das figuras no espaço e a disposição das cores e dos valores. Ao ler a correspondência de Cézanne, percebemos que a sua obra não é a de um pintor de talento que teria descoberto o seu «estilo», mas sim uma tentativa de resposta para a pergunta: o que é um quadro? O seu trabalho tem por objectivo inscrever no suporte, apenas as «sensações coloridas» , «as pequenas sensações», as quais constituem, por si só, na hipótese de Cézanne, toda a existência pictural de um objecto, frutas , montanha, rosto, flor, sem consideração pela história, pelo «tema», pela linha, pelo espaço ou pela luz. Estas sensações elementares são escondidas pela percepção vulgar, a qual permanece sob a hegemonia da maneira, habitual ou clássica, de olhar. Elas só são acessíveis ao pintor e restituíveis por ele, em troca de uma ascese interior que liberta o campo perceptivo e mental dos preconceitos inscritos na própria visão. Se o observador, por sua vez, não se submeter a uma ascese complementar, o quadro permanecerá, para ele, um contra-senso impenetrável. O pintor não deve hesitar em correr o risco de passar por um borrador. «Pintamos por muito pouco.» 106

o reconhecimento das instituições reguladoras da pintura; Academia, Salões, crítica, gosto, não tem muita importância para o julgamento do pintor, e afins, sobre o sucesso obtido pela obra, em relação ao objectivo verdadeiro: fazer mostrar o que faz mostrar e não o que é visível. Maurice Merleau-Ponty comentou o que chamou justamente de «dúvida de Cézanne», como se o objectivo do pintor fosse, de facto, agarrar e restituir a percepção no seu início, a percepção «antes» da percepção, poderia dizer: a cor, na sua ocorrência, a maravilha sentida pelo facto de «ocorrer» (algo: a cor) , pelo menos a olho nu. Existe pouca credulidade por parte do fenomenologista nesta confiança atribuída ao valor «originário» das pequenas sensações de Cézanne. O próprio pintor, que se queixa frequentemente da sua insuficiência, escreve sobre elas, dizendo que são «abstracções», que «não lhe permitem cobrir a sua tela» . Mas porque será necess ário cobrir a tela? Não será permitido ser-se abstracto? A dúvida que atormenta as vanguardas não pára com as «sensações coloridas» de Cézanne, como se elas fossem indubitáveis, e, aliás, tão pouco com as abstracções criadas por ela. A tarefa de ter que testemunhar do indeterminado, arrasta, um a seguir ao outro, os estorvos opostos à vaga das interrogações dos escritos dos teóricos e dos manifestos dos próprios pintores . Uma definição formalista do objecto pictórico, igual à que foi proposta por Clement Greenberg, em 1961, quando confrontado à abstracção «pós-plástica» americana, é rapidamente controlada pela corrente minimalista. Será pelo menos necessárío haver um suporte (para que a tela seja esticada)? Não. Cores? O quadrado preto sobre fundo branco de Malévitch já tinha respondido a esta pergunta, em 1915. Será necessário haver um objecto? A body art e o happening querem provar o contrário, Um lugar, pelo menos, para expor, como podia ser sugerido pela « fo nte» de Duchamp? A obra de Daniel Buren é testemunha de que se pode duvidar desta necessidade. Que pertençam, ou não , à corrente que a história da arte contemporânea chama de minimalismo ou Arte Povera, as pesquisas das vanguardas solicitam, uma após outra, os constituintes que poderíamos julgar «elementares» ou «originários» da arte de píntar. Elas operam ex minimis. Seria necessário confrontar a exigência de rigor que as anima com o princípio esboçado por Adorno, no fim da Dialéctica Negati107

va e que preside à escrita da Teoria Estética: o pensamento que «acompanha a metafísica na sua queda» s6 pode processar-se por meio de «micrologias». A micrologia não é a metafísica em migalhas, assim como o quadro de Newman não é um Delacroix em pedaços. A micrologia inscreve a ocorrência de um pensamento como o que permanece impensado, no declinio do grande pensamento filos6fico. O ensaio vanguardista inscreve a ocorrência de um now sensivel, como o que não pode ser apresentado e que permanece por apresentar, no declinio da grande pintura representativa. Tal como a micrologia, a vanguarda não trata do que acontece ao «sujeito», mas sim ao: Ocorrerá", à privação. É desta maneira que a micrologia pertence à estética do sublime. Ao interrogar o Ocorrerá que representa a obra, a arte da vanguarda abandona o papel de identificação desempenhado anteriormente pela obra em relação à comunidade dos destinatários. Mesmo concebido como o era por Kant, enquanto horizonte ou presunção de jure e não realidade de facto, um sensus communis (do qual Kant não fala em relação ao sublime, mas s6 acerca de belo) não consegue estabilizar-se diante das obras interrogativas. Forma-se apenas, e tarde demais, quando, expostas nos museus, estas obras são supostas pertencer à herança da comunidade e estarem disponiveis para sua cultura e seu prazer. Ainda seria necessário que fossem objectos ou que aguentassem a objectivização, pela fotografia, por exemplo. Nesta situação de isolamento e de falta de compreensão, a arte de vanguarda é vulnerável e sujeita à repressão. Parece apenas piorar a crise de identidade atravessada pelas comunidades, aquando da longa «depressão» que começa nos anos 1930 e se prolonga até à «reconstrução», a meio dos anos 1950. É mesmo impossivel sugerir, aqui, a forma pela qual os Estados Unidos, nascidos do medo diante do: quem somos n6s e da angústia do nada, tentarem reconverter estes sentimentos em 6dio contra as vanguardas. O estudo de Hildegard Brenner sobre a politica artistica do Nazismo ou os filmes de Hans Jürgen Syberberg, não analisam somente as manobras repressivas. Explicam também a maneira pela qual as formas neo-rornânticas e simb6licas impostas pelos comissários da cultura e os artistas colaboradores, na pintura e na música, deviam bloquear a dialéctica negativa movida pelo: Ocorrerá? I ao traduzir a questão da espera de um «tema» fabuloso: o povo puro chegará? O Führer chegará? Siegfried chegará? A estética

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do sublime assim neutralizada e convertida em politica do mito, pôde edificar, sobre o Zeppelim Feld de Nuremberg, as suas arquitecturas de «formações» humanas. Actuando em favor da «crise» da sobre-capitalização atravessada hoje pelas sociedades ditas mais desenvolvidas, aparece um outro ataque contra as vanguardas. A ameaça que pesa sobre a pesquisa vanguardista da obra-acontecimento e sobre o acolhimento que ela tenta dar ao now, não necessita de Estados-partidos. Ela depende «directamente» da economia de mercado. A correlação entre esta última e a crítica do sublime é ambígua, mesmo perversa. A segunda foi, sem dúvida, e continua a ser, uma reacção contra o positivismo matter of fac! e o cálculo realista, os quais governam a primeira, como o salientam escritores comentadores de arte (Stendhal, Baudelaire, Mallarmé, Apollinaire e Breton). No entanto, existe uma conivência entre o capital e a vanguarda. A força do cepticismo ou até da destruição, levada a cabo pelo capitalismo, a qual Marx não parou de analisar e de reconhecer, alenta, de certo modo, nos escritores, a recusa de confiar nas regras estabelecidas e a vontade de experimentar meios de expressão, estilos, materiais sempre novos. Existe algo de sublime na economia capitalista. Ela não é académica, nem fisiocrática; não admite nenhuma natureza. É , num certo sentido, uma economia regulamentada a partir de uma ideia, a riqueza ou a potência infinita. Não consegue apresentar nenhum exemplo na realidade que verifica essa Ideia. Ao subordinar-se à ciência, por meio de tecnologias, sobretudo da linguagem, a economia capitalista torna, ao contrário, a realidade cada vez mais inapreensível, sujeita a questão, a enfraquecimento. Mais uma vez é necessário não confundir a Ideia com o conceito. A experiência do sujeito humano, individual e colectivo, e a aura que o envolve, dissipam-se nos cálculos de rentabilidade, de satisfação das necessidades, de auto-afirmação pelo sucesso. Mesmo se a profundidade quase teológica da condição operária e do trabalho que marcou o movimento socialista e sindical durante mais de um século, se desvaloriza, à medida que o trabalho se transforma no controlo e na manipulação de informações. Estas observações são banais, mas, o que merece a nossa atenção, é o desaparecimento do contínuo temporal, pelo qual era transmitida a experiência das gerações. A disposição da informação torna-se o único critério da importância social. Ora, a informa109

.. ção é, por definição, um elemento de curta duração. A partir do momento em que ela é transmitida ou partilhada, deixa de ser uma informação, transforma-se num dado do meio ambiente, e «tudo está dito»: «sabe-se». É colocada numa memória máquina. A duração por ela ocupada é, por assim dizer, instantânea, Entre duas informações não aconrece nada, isto por definição. A confusão torna-se assim possível, entre o que interessa à informação e ao dirigente, por um lado, e, por Outro, o que representa a questão das vanguardas: entre o que ocorre, o novo, e o Ocorrerât , o now. Concebemos que o mercado da arte, submetido, como qualquer mercado, à regra da novidade, possa exercer sobre os artistas uma espécie de sedução. Esta atracção não é apenas devida à corrupção. Exerce-se graças à confusão entre a ino vação e o Ereignis mantida pela temporalidade própria ao capitalismo contemporâneo. Uma informação «forte», se assim a podemos chamar, tem uma causa inversa ao do significado que se lhe pode atribuir , no código ao dispor do receptor. Parece-se com «barulho». Para o público e os artistas aconselhados pelos intermediários, os difusores de mercadorias culturais, é fácil retirar desta observação o princípio de que uma obra é de vanguarda quanto maior for a sua privação de significado. Não será ela então igual a um acontecimento? É ainda necessário que o seu absurdo não dissuada os compradores e que, do mesmo modo, a inovação introduzida na mercadoria se deixe aproximar, apreciar e adquirir pelos consumidores. O segredo para um sucesso artístico, assim como para um sucesso comercial, está no doseamento entre o que surpreende e «o que é bem conhecido», entre a informação e o código. Tal é a inovação no que diz respeito às artes: retomam-se fórmulas confirmadas por sucessos prévios, desequilibramo -las por meio de combinações com outras fórmulas, em principio incompatíveis, por meio de amálgamas de citações, de ornamentações e de imitações . Podemos também ir até ao kitch e ao barroco. Lisonjeamos o «gosto» e o ecletismo de uma sensibilidade enfraquecida pela multiplicação das formas e dos objectos disponíveis. Pensamos assim exprimir o espírito do tempo e apenas reflectimos o do mercado. A sublimidade já não está na arte, está sim na especulação sobre a arte. O enigma do Ocorrerá, não desaparece, tão pouco fica ultrapassada a tarefa de pintar algo que não é determinável: o próprio Existe. A ocorrência, o Ereignis, não tem nada a ver com o pequeno arrepio, 110

com o pathos rentável que acompanha uma inovação. No cinismo da inovação, esconde-se, seguramente, o desespero de que já nada ocorre. Mas, inovar consiste em fazer como se ocorressem muitas coisas e em provocar o seu acontecimento. A vontade afirma, com ela, a sua hegemonia sobre o tempo . Conforma-se deste modo à metafísica do capital, a qual é uma tecnologia do tempo. A inovação «avança» . O ponto de interrogação do Ocorrerá? pára. Com a ocorrência, a vontade é desfeita. A tarefa vanguardista continua a ser a de desfazer a presunção do espírito em relação ao tempo. O sentimento sublime é o nome dessa privação.

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ALGO COMO: «COMUNICAÇÃO... SEM COMUNICAÇÃO»

Para dramatizar o tema em causa: «Arte e comunicação», queria lembrar o regime de comunicação que é próprio, ou que pensámos ser próprio, pelo menos desde Kant, à recepção estética. Para situar esse regime, citarei apenas duas frases à guisa de aforismos, as quais se contradizem perfeitamente, à primeira vista: «Nenhuma obra de arte deve ser descrita nem explicada sob as categorias da comunicação.» «Poderíamos mesmo definir o gosto pela faculdade de julgar o que torna o nosso sentimento, vindo de uma determinada representação, universalmente comunicável, sem a mediação de um conceito.» A primeira frase é de Theodor Adorno (Teoria Estética), a segunda, de Emmanuel Kant (Critica da Faculdade de Julgar, § 40). Estes dois aforismos parecem antinómicos, um dizendo que a arte não tem nada a ver com a comunicação, e o outro, que a recepção da arte pressupõe e exige uma comunicabilidade universal sem conceito. O filósofo tem o hábito das teses contrárias. O trecho citado, pertencente a Adorno, inscreve-se nas objecções que ele opõe à redução hegeliana da obra à dialéctica do conceito. Adorno, não sem premonição, vislumbra, no pensamento hegeliano, algo parecido com uma cobertura filosófica para uma ideologia comunicacionalista, e isto provavelmente - aproximamo-nos então da fórmula de Kant -, devido ao facto de que, nessa filosofia especulativa de Hegel, existe uma hegemonia absoluta do conceito. Ora, está implícita, dentro daquilo que Adorno chama comunicação, a ideia de que, se existir uma comunicação na arte e pela arte, ela deve ser sem conceitos. Assim, apesar da Texto de uma exposição feita no primeiro Colóquio «Art et cornmunication», realizado na Sorbonne em Outubro de 1985 por iniciativa de Robert AlIezaud. Publicado no compêndio Art et Communication, edições Osiris, Paris, 1986.

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contradição aparente, Adorno inscreve-se aqui na tradição do pensamento da arte criada por Kant. Existe um pensamento da arte que não é um pensamento da não comunicação, mas da comunicação não-conceptual. O tema que eu quero dramatizar é: o que acontece com uma comunicação sem conceito no preciso momento em que os «produtos» das tecnologias aplicadas à arte não podem ser feitos sem a intervenção massiva e hegemónica do conceito? No conflito existente à volta da palavra com unicação , entende-se que a obra, ou pelo menos tudo o que é visto como obra, induz um sentimento - antes de induzir uma inteligência - sentimento este que é comunicável universalmente e, por princípio, de forma constitutiva e portanto imediata. Tal sentimento diferencia-se, por isso, de uma simples preferência subjectiva. Esta comunicabilidade, enquanto exigência e não enquanto facto, justamente porque é suposta ser originária, ontológica, escapa à actividade comunicacional, a qual não é uma receptibilidade, mas sim, algo que se manuseia, que se faz. Eis, a meu ver, o que orienta a nossa problemática: «novas tecnologias e arte» ou, dito de outra maneira, «arte e pós-modernidade». Esta comunicabilidade, tal como é desenvolvida na análise kantiana do belo, é muito anterior à comunicação no sentido das teorias da comunicação, as quais incluem a pragmática comunicacional '(pragma é a mesma coisa que Handeln). Esta comunicabilidade de princípio, que actua imediatamente no sentimento do belo, é sempre pressuposta em qualquer comunicação conceptual. Ao mostrar que o sentimento do belo difere dos outros afectos ou afeições com os quais somos tentados a confundi-lo, incluindo o sentimento do sublime, Kant quer dizer que ele deve ser transitivado im-mediatamente; se não o for, não será um sentimento do belo. A exigência de tal assentimento, em princípio universal, é constitutivo do julgamento estético. Se, deste modo, nos atermos à uma descrição psicológica , social ou pragmática, geralmente antropológica, renunciamos à possibilidade de dar à arte, quando se trata da sua recepção, um estatuto específico e concluimos, no fundo , que a arte não existe. Se abandonarmos esta transitividade potencial, imediata, exigível para o julgamento do gosto e, ao mesmo tempo, exigida para que haja arte, abandonamos também a noção de uma comunidade dependente daquilo que Kant chama de sensus communis, ou seja, de uma sentimentalidade comunicável imediatamente. 114

Não podemos, de facto, dizer de um sentimento que este deva receber o assentimento de todos sem mediação, im-mediatamente, sem pressupor a existência de um género de comunidade de sentimento, a qual tem o objectivo de fazer com que cada um dos outros indivíduos, colocados diante da mesma situação, a mesma obra, possa, pelo menos, dispor do mesmo julgamento, sem o elaborar conceptualmente. Na análise do sentimento estético está assim em jogo a análise sobre o que acontece, em geral, numa comunidade. O que está em jogo, na recepção das obras, é o estatuto de uma comunidade sentimental, estética, muito «anterior» a qualquer comunidade e a qualquer pragmática. A divisão da relação inter-subjectiva ainda não está realizada, e existiria um assentimento, uma possível unanimidade, numa ordem que «ainda» não pode ser a da argumentação entre subjectividades racionais e falantes. A hipótese de um outro tipo de comunidade surge então, irredutível diante das teorias da comunicação. Se admitirmos que a comunicabilidade de princípio está incluída no sentimento estético singular, e que este último é o modo imediato, ou seja, sem dúvida o mais pobre e mais puro, passivo em relação ao espaço e ao tempo, os quais representam as formas necessárias da aisthésis, poderá essa comunicabilidade persistir, quando as formas que deveriam ter um papel determinante no seu acontecimento são determinadas de maneira conceptual, quer seja na sua própria geração, quer na sua transmissão. O que advém do sentimento estético, quando situações calculadas são propostas como estéticas? A oposição entre o sistema linear e o sistema figurativo indicado na argumentação do colóquio, sem falar da esperança investida na produção calculada de figuras, não me parece pertinente em relação à oposição, que tento enunciar, entre passibilidade e actividade. A passibilidade enquanto possibilidade de sentir (pathos), supõe uma doação. Se somos passíveis, é que algo nos acontece, e, quando esta passibilidade possui um estatuto fundamental, a própria doação é algo de fundamental, de originário. O que nos acontece não é, de modo algum, algo que controlámos ou programámos anteriormente, algo apreendido através de um conceito (Begrifj). Ou então, se o fenómeno ao qual estamos sujeitos tiver sido elaborado por conceitos, como poderá ele apreender-nos? Como poderá ele comover-nos se já sabemos, ou se podemos saber, de quê, para quê, com quê e porquê foi feito? Ou então, se tal sentimento ocorrer, no sentido muito radical atribuído a es115

se termo por Kant, é necessário admitir que o que nos acontece é, para nós, desconcertante. Quando Kant fala da matéria da sensação que ele opõe à sua forma, à sua formação, trata-se precisamente daquilo que não podemos calcular. Não temos nada a dizer a propósito do que nos administra, nos dá matéria. Não podemos conceptualizar este género de Outro com O maiúsculo, ao qual Kant dá o nome de X. É necessário concordar que a doação é originada por um X, ao qual Heidegger dá o nome de ser. Esta doação que se sente antes (ou melhor dentro) de qualquer apreensão ou conceptualização dá matéria à reflexão, ao conceito, e é sobre, para ela, que vamos construir a nossa filosofia da estética e as nossas teorias comunicacionais. É necessário que algo seja dado previamente. O sentimento é o acolhimento imediato ao que é dado. As obras produzidas pela nova tekhné possuem, necessariamente, em graus diversos e em vários locais de si próprias, as marcas reveladoras de que foram determinadas por um (ou vários) cálculo(s), quer seja na sua constituição e/ou na sua restituição , quer somente na sua difusão. E, por «cálculo», não entendo apenas o que ocupa o tempo dos engenheiros de informática, mas todos os cálculos até à contabilidade inevitável dos espaços e dos tempos, de todos os tempos, inclusivamente os tempos ditos «de trabalho», ocupados na produção dessas obras e na sua difusão. Qualquer reprodução industrial mostra-se fiel a esta problemática profunda e fundamental da re-presentação e o sentimento estético pressupõe algo que é necessariamente implicado .e esquecido na representação: a apresentação, o facto que algo exista aqui e agora. Todas as representações pressupõem o espaço e o tempo como o «porquê» e o «dentro de quê», algo que nos acontece e que está sempre aqui e agora: o lugar e o momento. Não se trata de conceitos, mas simplesmente das formas da apresentação. A partir do momento em que nos situamos nas artes da representação, a questão do aqui-agora é ocultada. Como poderá existir um sentimento estético resultante da única re-presentação calculada? Como poderiam as marcas da determinação por conceitos das formas propostas pela nova tekhné, libertar o jogo do julgamento reflexivo constituído pelo prazer estético? De que modo não seria excluída a comunicabilidade constitutiva desse prazer que permanece potencial, prometida e não efectuada pela determinação conceptual, argumentativa e tecno-científica, «realista», do que é comunicado no produto dessas novas tecnologias? 116

Ao alegar esta estranha problemática, do sentimento estético de Kant, na sua im-mediatação e exigência de comunicabilidade universal, sem as quais não se pode falar de arte, quero apenas sugerir a seguinte hipótese: o que é surpreendido em primeiro lugar e que dá sinal de si, é talvez o espaço e o tempo. O que é atingido, é o espaço e o tempo, enquanto formas da doação daquilo que acontece. A verdadeira «crise dos fundamentos» não era, sem dúvida, a dos fundamentos da razão, mas sim, de qualquer empreendimento científico incidindo sobre objectos ditos reais, ou seja, dados no espaço e tempo sensíveis. Existem já, na obra de Kant, duas estéticas, dois significados da palavra estética. Na primeira Estética (Crítica da Razão Pura), o tema em questão está limitado à elaboração do sensível (sua «síntese»), graças à qual este último é reconhecível por conceito. Como pode acontecer que conceitos possam encontrar aplicação na realidade? É necessário existirem previamente no sensível, tal como ele nos é dado, espécies de sínteses de elementos, unidades sensíveis, que o preparem para a sua apreensão inteligível sob o domínio dos conceitos. Existe uma afinidade entre o que se dá no sensível e o que o conceito vai fazer com essa dádiva. Por exemplo, na série temporal dos sons existe o suficiente para permitir a série numérica. É esta primeira síntese que Kant chama esquemas e que, no sensível, prepara a aplicação conceptual. Podemos reconhecer o sensível porque está em afinidade com a inteligência. Na terceira Crítica, a estética elabora a questão das formas. Então, o objectivo já não é o de perceber como é possível existir a ciência, mas compreender como pode acontecer que, no aqui e agora da doação, se produza tal sentimento, o qual é apenas a transcrição afectiva das formas que flutuam livremente no espaço e no tempo. Kant atribui este sentimento à inscrição sobre o tema das formas devidas à imaginação produtora. As sínteses que ocorrem no sensível já não são concebidas aqui, por Kant, como se preparassem a ciência, mas como se permitissem o sentimento, ele próprio preparatório para qualquer conhecimento. É o modo pelo qual estas formas são recebidas por um tema que interessa Kant; chama-lhes também monogramas. Em primeiro lugar, existe portanto este problema esquemalforma, mas há também a divisão da apreensão das formas em dois sentimentos estéticos: o sentimento do belo e o sentimento do sublime. Ora, este último, cuja analítica Kant introduz sem qualquer justificação, o

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que não é hábito, possui a propriedade interessante de não ter uma comunicabilidade imediata. O sentimento do sublime manifesta-se quando falta a apresentação de formas livres. É compatível com O in-forme. É exactamente quando falta a imaginação que apresenta formas, que tal sentimento aparece. E este último deve passar pela mediação de uma ideia da razão, a qual é a Ideia de liberdade. Achamos sublimes espectáculos que excedem qualquer apresentação verdadeira de uma forma, ou seja, onde se significa a superioridade do nosso poder de liberdade em relação ao manifestado no próprio espectáculo. Ao isolar o sublime, Kant salienta algo que está em relação directa com o problema da falência do espaço e do tempo. As formas livremente flutuantes que suscitavam o sentimento do belo passam a faltar. De certo modo, a questão do sublime está intimamente ligada ao que Heidegger chama de retirada do ser, retirada da doação. O acolhimento feito ao sensível, ou seja, ao significado encarnado no aqui-agora, antes de qualquer conceito, já não teria lugar, nem momento. Esta retirada significaria a nossa situação actual. Em O Princípio da Razão e A Época das Concepções do Mundo, a oposição está no seu máximo entre a poética, a receptividade inerente a esta sentimentalidade kantiana, e o Gestell (intraduzível: o a-raciocínio), o qual deve ser atribuído à tecno-ciência. Para Heidegger , a tecno-ciência, no seu apogeu, era a ciência nuclear; hoje em dia avançámos muito mais no Gestell. É evidente que a in-stalação (craiz» igual à de ste/len) do conceito, até ao espaço-tempo, é infinitamente mais fina nas novas tecnologias do o que era no que Heidegger conhecia. A oposição entre duas formas de acolhimento: por um lado , a forma poética que atribui aos Gregos e, por outro lado, o acolhimento tecno-cien tífico (ainda é um acolhimento ontológico), o qual acontece sob o regime geral do princípio da razão e cuja nascença explícita Heidegger vê no pensamento leibniziano. É claro que a ideia da combinação , e portanto tudo o que comanda a informática e a comunicação, nasce aqui, como tantas outras, entre as quais a ideia do infinitesimal. Esta problemática deve ser retomada, revista e corrigida; parece-me central, na questão «arte e comunicação». Nas Observações de H õlderlin sobre Édipo, sobre as quais deveríamos meditar, o poeta nota que a verdadeira tragédia de Édipo é que o deus afastou-se categoricamente do homem. A verdadeira tragédia não é Édipo Rei (a intriga, o 118

assassínio, a incompreensão), é sim Édipo em Colónia, ou seja, quando cumprido o destino, já não acontece nada ao her6i e este deixa de ter destino. A perda de destino marca o essencial do drama e, no facto de «nada acontecer», está também o essencial da nossa problemática. É evidente que o que chamamos comunicação é, em todos os casos e sempre, que não aconteça nada, ou seja que n6s não estamos destinados. Hôlderlin acrescenta, a este prop6sito, esta frase deveras notável: «No limite extremo do dilaceramento s6 permanecem, de facto, as condições do tempo e do espaço .» No horizonte do que chamamos «fim da arte», descoberto pelo pensamento hegeliano, no início do século XIX, deparamos com a melancolia do «só permanecem as condições do tempo e do espaço », a qual cura e cicatriza, no pensamento dialéctico hegeliano, nessa imensa tarefa de luto e imensa remissão. Não s6 vai ser necessário reabsorver o «só permanecem o espaço e o tempo» enquanto condições puras (o que foi feito desde o início da primeira grande obra, a Fenomenologia do Espirito, onde se demonstra que o espaço e o tempo não possuem a sua verdade em si pr6prios, mas sim no conceito; que não existe o aqui-agora, nem a percepção, que o sensível é sempre mediatizado pelo entendimento), como também o tema do fim da arte revela , noutro plano, a persistência do tema da retirada da doação e da crise estética. Se não houver tempo, se o tempo for o conceito, a arte s6 existe por erro ou, melhor, o momento do fim da arte coincide com o da hegemonia do conceito. Seria necessário ligar esta problemática à problemática em que vivemos hoje em dia, o logocentrismo generalizado, e mostrar que a indústria da arte pertence, indirectamente, a esta forma de acabar a arte. A indústria da arte seria um acabamento da metafísica especulativa, uma forma de Hegel estar presente, de ter êxito em Hollywood. A esclarecer com as observações de Paul Virilio sobre o problema do espaço e do tempo a que chama de críticas num sentido estratégico, o do Pentágono. Seria também necessário elaborar a posição de Husserl face à crise das ciências europeias. Impõe-se fazer um estudo sobre as vanguardas. O seu movimento não é devido apenas ao fim da arte. Se se situarem numa problemática análoga àquela segundo a qual Hegel tematiza o fim da arte, elas terão «explorado», de um modo exemplar, esse «não resta mais ... », Se restam apenas as condições do espaço e do tempo, ou seja , no fundo , se 119

a representação, a encenação das intrigas não são interessantes e se o que interessa é Édipo sem destino, elaboremos então uma pintura sem-destino. As vanguardas põem-se a trabalhar sobre estas condições do espaço e do tempo. Estas tentativas já vêm a ser feitas desde há um século sem por isso chegarem a alguma conclusão. Esta problemática permite restituir a verdadeira aposta das vanguardas, ao substituí-las no seu próprio terreno. Foram testemunhas incontestáveis da crise destes fundamentos cujas teorias da comunicação ou novas tecnologias, representam outros aspectos, diferentes, menos lúcidos do que as vanguardas. Estas últimas tinham pelo menos o sentido da dramática e, nesse aspecto, são perfeitamente análogas, no seu campo, ao que acontece nas ciências. Sob o título da crise das ciências, a partir do fim do século XIX, uma grande discussão incide sobre a ciência do número, ou seja a ciência do tempo, sobre a geometria, a ciência do espaço e sobre a mecânica, ciência do movimento, ou seja, ciência do espaço e do tempo. É muito difícil acreditar que o que se discutiu entre sábios e filósofos durante um século não deve interessar à pequena ideologia comunicacional. Os problemas que deram origem às geometrias não euclidianas, às aritméticas axiomáticas e às físicas não newtonianas, foram também os que geraram a teoria da comunicação e da informação. Nesta crise que incide sobre as condições do espaço e do tempo (com as suas duas expressões: moderna - só permanecem o espaço e o tempo; e pós-modernas - já não permanece nem mesmo o espaço e o tempo), neste trabalho, que abordámos sob o aspecto da comunicação, haverá simplesmente a perda de algo (a doação ou a apresentação) sem que haja algum benefício? Perdemos a terra (Husserl), ou seja, o aqui-agora, mas teremos ganho algo? Se sim, de que modo o ganhámos? Poderá o desenraizamento, ligado à nova tecnologia, prometer-nos uma emancipação? Como foi indicado no programa do colóquio, a questão do corpo põe-se aqui, mas não devemos confiar muito nessa palavra, já que, sendo o espaço e o tempo atacados pelas novas tecnologias, o corpo também o é, e deve sê-lo. Talvez seja igualmente necessário vestir o luto do corpo. A propósito da confusão entre passível e passivo. Estes dois problemas são distintos: a passividade opõe-se à actividade, a passibilida120

de não . Mais ainda, esta oposição activo-passivo pressupõe a passibilidade, e não é, de modo algum, o que está em causa na recepção das obras de arte. O requisito de uma actividade ou «inter-actividade» prova, ao contrário, que seria necessário uma maior intervenção, e que acabámos, portanto, com o sentimento estético. Não pediamos «intervenções» ao observador quando pintávamos, queríamos alegar uma comunidade. O que visamos hoje não é esse sentimentalismo que ainda encontramos no mais pequeno esboço de um Cézanne ou Degas, é, pelo contrário, que o sujeito que recebe não receba, que ele não se deixe perturbar, é a sua auto-constituição enquanto sujeito activo, em relação ao que lhe é dado: que se reconstitua imediatamente e se identifique como alguém que intervém. Aquilo pelo qual vivemos e julgamos é justamente essa vontade de acção. Se um computador nos convida ao jogo ou nos deixa jogar, a aposta generalizada é que aquele que recebe manifeste a sua capacidade de iniciativa, de actividade, etc.. . Ainda somos tributários do modelo cartesiano do «tornar-se dominador e possuidor. .. » Implica aretirada da passibilidade, após a qual somente ficamos aptos a receber e, por consequência, a modificar e a agir e talvez mesmo a sentir prazer. Esta passibilidade, enquanto prazer e pertença inerente a uma comunidade imediata , é contrariada na problemática geral da comunicação de hoje, e passa mesmo por vergonhosa. Mas agir no sentido desta actividade tão procurada é apenas, na verdade, reagir , repetir, conformar-se o mais febrilmente possível a um jogo já distribuído ou instalado (gestellt?)>>. Pelo contrário, a passibilidade tem por desafio uma comunidade sentimental imediata, exigida através do sentimento estético singular , e o que é perdido é maior do que a simples capacidade, é a propriedade. A ideologia interacional é, sem dúvida, oposta a uma passividade, mas fica confinada a uma oposição totalmente secundária. O que na verdade está em jogo é saber se se mantêm ou não a actualidade e a imediatidade de um sentimento que apela à co-pertença a um «solo», que o conceito e o cálculo, iludindo, supõem. Desde logo a obra não é recebida se não for desta comunidade imediata, mesmo se, em seguida, for apresentada numa galeria, isoladamente. Trata-se de um problema de modalidade de presença, e não de conteúdo ou de simples forma. A questão da unanimidade sentimental não incide sobre o apresentado ou sobre as formas da apresentação, mas sobre a 121

modalidade da recepção, enquanto exigência de unanimidade. Não se trata de situar a passibilidade como um momento, mesmo breve, num processo de apropriação da obra; trata-se de dizer que, (e é isto que significa critica transcendental na obra de Kant) sem essa dimensão, somos incapazes de reconhecer uma obra de arte. É uma condição a priori, mesmo se ela jamais se evidencia, de forma perceptível, no processo psico-social. O que é absolutamente específico da arte? O que acontece com o espaço e o tempo? Qual o beneficio com a tecno-ciência? O que acontecerá com o nosso corpo? Não poderemos abordar estes problemas no discurso da tecno-ciência, que ocorre de facto e de jure, fora desta situação, no campo bem diferente da vontade de identificação. Passibilidade: o contrário de «impassibilidade»? Algo não vos é destinado, não se pode sentir. Sois tocados, e só em seguida o sabereis. (E, pensando sabê-lo, enganar-vos-eis acerca desse «toques.) Supõe-se que os espíritos estão angustiados por não intervirem na produção do produto. É porque pensamos a presença segundo a exclusiva modalidade da intervenção dominadora. Não ser contemplativo é uma espécie de ordem implícita, a contemplação é vista como uma passividade desvalorizada. Na obra de Kant a passibilidade não desaparece com o sublime mas torna-se uma passibilidade à falta. São justamente as belas formas com a sua destinação, o nosso próprio destino, que faltam, e o sublime possui essa espécie de pena devida à finitude da «carne», essa melancolia ontológica. A questão que nos é posta pelas novas tecnologias quanto à sua relação com a arte é a questão do aqui e agora. O que designa «aqui», quando se está ao telefone , diante da televisão, do receptor de um telescópio electrónico? E o «agora»? A componente «tele-» não perturbará a presença, o «aqui-agora» das formas e a sua recepção «carnal»? O que é um lugar, um momento, que não estejam ancorados no «padecer» imediato do que sucede? Estará um computador, de alguma forma, aqui e agora? Poderá chegar algo através dele? Poderá acontecer-lhe alguma coisa? 122

REPRESENTAÇÃO, APRESENTAÇÃO, NÃO APRESENTÁVEL

PINTURA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Não foi só a fotografia que tornou «impossível» a profissão de pintar. Dir-se-ia o mesmo dizendo que a obra de Mallarmé ou a de Joyce ripostam aos progressos do jornalismo. A «impossibilidade» vem do mundo tecno-científico do capitalismo industrial e pós-industrial. Este mundo necessita da fotografia e quase nada da pintura, do mesmo modo que precisa mais do jornalismo do que da literatura. Mas sobretudo ele não é possível senão com a supressão das profissões «nobres» que pertencem a outro mundo, e com a supressão desse mesmo mundo. A pintura conquistou a sua nobreza, foi arrumada dentro das Belas-Artes, viu reconhecer os seus direitos, quase principescos, durante o Quattrocento. Desde então, e durante séculos, contribuiu por sua parte no cumprimento do programa metafisico e político da organização do visual e do social. A geometria óptica, a ordenação dos valores e das cores de acordo com uma hierarquia de inspiração neo-platónica, as regras de fixação dos tempos fortes da lenda religiosa ou histórica, serviram para favorecer a identificação das novas comunidades políticas, a cidade, o Estado, a nação, atribuindo-lhes o destino de tudo ver e de tornar o mundo transparente (claro e distinto) à apreensão monocular. Colocados na cena perspectivista, os componentes dessas comunidades, narrativos, urbanísticos, arquitecturais, religiosos, éticos, foram ordenados sob o olhar do pintor, graças à costruzione legittima. Por sua vez, o olhar do monarca recebe, no lugar indicado pelo ponto Publicado em inglês in Artforun, 20 (8), Abril de 1982, numa tradução de Lisa Liebman , a pedido de Ingrid Sischy. Texto aqui modificado.

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de fuga, este universo assim ordenado. Expostas nas salas dos palácios dos senhores ou do povo e nas igrejas, estas representações oferecem a todos os membros da comunidade igual possibilidade de identificar a sua pertença a esse universo, como se fossem o monarca ou o pintor. A noção moderna de cultura nasce neste acesso público, caracterizado pelos seus sinais da identidade histórico-política e pela sua decifração colectiva. A República anuncia-se neste «como-se-príncipe», os museus perpetuam estas funções, mas, de modo recíproco, uma vista de olhos sobre as salas da House ou do Senate em Washington, da Chambre de Paris, atesta que esta organização do espaço não está confinada aos quadros do museu, estrutura a representação do próprio corpo político. Vemos aqui até que ponto a disposição grega e romana dos lugares públicos serve de paradigma do espaço sociopolítico, mesmo fantasmático, do mesmo modo que na pintura clássica. A fotografia conduz ao cumprimento deste programa da ordenação metapolítica do visual e do social. Cumpre-o nos dois sentidos da palavra: cumpre-o e põe-lhe fim. A habilidade e o saber elaborados, levados a cabo e transmitidos pelo canal das oficinas e das escolas, são objectivados na máquina fotográfica. Com um pequeno «clic», o cidadão mais modesto, na sua qualidade de amador e de turista, executa o seu quadro, organiza o seu espaço de identificação, enriquece a sua memória cultural, dá a partilhar as suas prospecções. O aperfeiçoamento das máquinas contemporâneas liberta-o das preocupações dos tempos de exposição, da focagem, da abertura do diafragma, da revelação. As tarefas cuja aquisição pelo pintor aprendiz, na oficina ou na escola, exige uma larga experiência (destruir os maus hábitos, instruir o olhar, a mão, o corpo, o espírito e erguê-los até à nova ordem), são programadas na máquina fotográfica, graças às suas finas capacidades ópticas, químicas, mecânicas, electrónicas. Resta ao amador a escolha da regulação e do tema. Ainda aqui ele é guiado por hábitos e conotações, mas pode libertar-se delas e procurar o inesperado. O que faz. Mais do que um reconhecimento fastidioso, a fotografia de amador transforma-se, ao longo dos séculos, num instrumento de prospecção, de descoberta, quase de inquérito etnológico. A antiga função política desmultiplica-se, o etnólogo é um pintor de pequenas etnias, a comunidade tem menor necessidade de se identificar com o seu príncipe, com o seu centro, do que explorar os seus confins. Os fotógrafos amadores fazem experiências ligeiras, produzem documentos. 124

Os pintores já tinham empreendido o trabalho de documentação (Courbet e Manet por exemplo), mas depressa foram derrotados. Os seus processos não eram competit ivos: lentidão da formação profissional, custo dos materiais, extensão do tempo de fabricação, objectos de manutenção dificil, ou seja, um grande custo global em relação ao custo global bastante mínimo de uma fotografia. Com esta última, o ready made industrial leva a melhor . Duchamp conclui que já ultrapassámos a época de pintar. Os que persistem vêem-se confrontados com o desafio da fotografia. Alinham na dialéctica das vanguardas. Esta dialéctica negativa tem por objecto a questão: o que é a pintura? e por competência a refutação do que foi feito ou acaba de ser feito: não , isto também não era indispensável para a pintura. Esta última transforma-se numa actividade filosófica: as regras da formação das imagens pictóricas não estão já enunciadas e prontas para serem aplicadas. A pintura tem sobretudo por regra procurar essas regras de formação das imagens pictóricas, do mesmo modo que a filosofia procura as regras das frases filosóficas . Deste modo as vanguardas separam-se do público. Este último manuseia aparelhos fotográficos bem regulados e folheia ilustrações «adequadas» (inclusivamente no cinema). Está convencido de que é necessário acabar o programa da perspectiva artificial e não percebe que seja preciso um ano para desenhar um quadrado branco, ou seja, não representar nada (se é que existe algo não representável).

FOTOGRAFIA E TECNO-CI~NCIA INDUSTRIAL

A fotografia ocupou deste modo o campo aberto pela estética clássica das imagens, a estética do belo. Ela recorre a ele como a pintura clássica recorre a um gosto: uma espécie de sentido comum deve, em princípio encontrar um acordo quanto ao prazer desinteressado produzido por uma imagem diante da qual a sensibilidade para com as formas e as cores por um lado, e a faculdade da organização racional (o entendimento) por outro, se encontram em livre harmonia. Todavia, a natureza deste acordo é modificada profundamente na fotografia, como em qualquer campo dos objectos estéticos do mundo tecno-científico capitalista. Kant insistia sobre o facto do acordo ter que permanecer livre, ou seja que não seja, a priori, regulamentado por leis. A in125

trodução massiva das tecno-ciências industriais e pós-industriais, da

qual a fotografia é apenas um aspecto, significa obviamente a programação minuciosa, por meio de processos ópticos, químicos, fotoelectrónicos, da fabricação de belas imagens. O indeterminado, porque não permite a previsão , deverá ser o eliminado ou, pelo menos, confinado às capacidades do aparelho e com ele, o sentimento. O artista, obviamente e como sempre, joga com estes constrangimentos. No entanto, o destinatário comum das belas fotografias nem sempre é um sujeito sensível que inventa uma futura comunidade de gostos , é o destinatário de produtos acabados, nos quais deve reconhecer a perfeição dos processos que os determinam. A fotografia não recorre ao belo do sentimento, mas ao belo de entendimento e de conotação . Possui a infalibilidade do que é perfeitamente programado, a sua beleza é a do Voyager II. A perda de aura é o aspecto negativo desta rigidez, do hardware implicado na fabricação do aparelho que produz a fotografia . Resta ao amador a escolha do tema e das regulações, mas a maneira é a do fabricante, ou seja, um estado na tecno-ciência industrial. A experiência é constituída por esta massa de afecto, de projectos e de recordações que devem morrer e nascer para que um tema obtenha a expressão do que deveras é. A fotografia, enquanto obra, não tem quase nada a ver com esta experiência . Deve praticamente tudo à experiência dos laboratórios de pesquisa industrial. Enquanto resultado, não é bela, mas demasiado bela. No entanto, algo nos é indicado com este demasiado , um infinito, o qual não é o indeterminado de um sentimento mas a realização infinita das ciências, das técnicas e do capitalismo. A definição das realidades é adiada indefinidamente, pelo constante atraso das análises e pela invenção das axiomáticas; a performatividade dos instrumentos é, por princípio, sujeita à obsolência, devido aos efeitos incessantes das pesquisas fundamentais sobre as tecnologias; a realização das mais-valias capitalistas exige a reformulação perpétua das mercadorias e a abertura de novos mercados. A rigidez do belo industrial possui, nela própria, o infinito das razões tecno-científicas e económicas. A destruição da experiência de que ela é sinal não é devida simplesmente à entrada do «bem concebido» no campo estético. Parar aqui seria dar crédito a uma epistemologia e sociologia positivistas. A ciência, a técnica e o capital, mesmo no seu estilo matter of fact, todos 126

são modos de actualização do infinito dos conceitos. Saber tudo, poder tudo, são horizontes, e os horizontes estendem-se ao infinito. É este infinito que se apresenta, paradoxalmente, ready made nos saberes estabelecidos, nos aparelhos e nas armas em uso, nos capitais investidos e nas mercadorias, e nas fotografias . Apresenta-se como aquilo que nesses objectos os determina, ou seja o que lhes dá a sua perfeição e anuncia a sua destruição. É assim que a fotografia de amador, a qual à primeira vista não é muito mais que a consumação das capacidades de imagens contidas no aparelho, é também, na dialéctica infinita dos conceitos em curso de realização, a consumação de um estado dos objectos e dos acontecimentos; e que recorre já a um novo estado . O amador está, deste modo, ao serviço das experimentações feitas pelos laboratórios e comandadas pelos bancos . O fim da experiência é, sem dúvida, o fim do infinito subjectivo, mas, enquanto momento negativo de dialéctica da pesquisa, ela é a concretização de um infinito anónimo que organiza e desorganiza o mundo sem parar, e cujo sujeito individual, independentemente do seu nível na hierarquia social, é o servo voluntário ou involuntário. Segue-se que a a definição da boa imagem fotográfica , inicialmente ligada às regras da perspectiva artificial, está sujeita a revisão. A fotografia também entra no campo aberto pelas pesquisa infinitas. A sua função inicial, herdada da tarefa de identificação atribuída à pintura pelo Quattrocento, cai em desuso, tal como a preocupação principal da identificação da comunidade por ela própria. No estado actual das tecno-ciências e do capital acumulado nos países desenvolvidos, a identificação da comunidade por ela própria não necessita da adesão dos espíritos, não depende de grandes ideologias partilhadas, acontece pela mediação do conjunto dos bens e dos serviços trocados a um ritmo prodigioso, do equivalente geral destas trocas representado pelo dinheiro e do pressuposto absoluto deste equivalente que é a linguagem. No alvor do século XXI a pesquisa de conhecimentos, de tecnologias e de investimentos, debruça-se também sobre as linguagens. A função tradicional da instituição política sofre um deslocamento. Tem menos o objectivo de encarnar a Ideia da comunidade, está mais virada para a gestão das pesquisas infinitas de conhecimento, de habilidade e de riqueza. Neste movimento geral, a fotografia liberta-se das responsabilidades de identificação ideológica que tinha herdado da tradição pict ó127

rica e passa ela também a dar lugar a pesquisas. A arte fotográfica aparece e é exercida conjuntamente por investigadores e artistas, como as outras artes industriais. Já deixamos de lamentar a «reproductabilidade técnica» das obras, sabemos que a indústria não significa o fim das artes, mas sim a sua mutação. A questão: «o que é a fotografia? » conduz estes ensaios para uma dialéctica comparável com aquela das vanguardas pictóricas, que eu entendo negativa.

A APOSTA DAS VANGUARDAS PICTÓRICAS Estas últimas, confrontadas com a inanidade (epomposa», «arte oficial») da profissão de pintor numa comunidade sem príncipe nem povo, viram-se para uma questão: «o que é a pintura?». Uma após outra, as pressuposições implicadas pelo exercício da profissão são submetidas a ensaio e a contestação: o tom local, a perspectiva linear, o que é devolvido dos valores, o quadro, os formatos, a ocultação do suporte pela cobertura completa da superfície, o médium, o instrumento, o lugar de exposição e muitos outros pressupostos ainda, são interrogados plasticamente pelas diversas vanguardas. Os «pintores modernos» descobrem que devem formar imagens que a fotografia não pode apresentar, pelo facto desses mesmos pressupostos interrogados e descobertos pela sua pesquisa serem os que regem a fabricação dos aparelhos fotográficos e que, na indústria fotográfica, servem para definir o resultado ideal, a «boa fotografia». Descobrem que devem apresentar algo que não é apresentável, de acordo com a «construção legítima». Começam a subverter os pretensos «dados» visuais, de modo a tornar visível o facto de o que o campo visual esconde e exige invisíveis, que não depende apenas do olhar (do príncipe), mas do espírito (vagabundo). Fazem deste modo entrar a pintura no campo aberto pela estética do sublime . Esta não é regulada pelo gosto. Este gosto é um prazer desinteressado, partilhável em princípio, procedente do livre acordo entre a faculdade de conceber um «objecto» e a de apresentar, no sensível, um exemplo desse objecto. A pintura de vanguarda escapa, por hipótese, à estética do belo, não recorre através das suas obras ao «senso comum» de um prazer partilhado. Estas obras parecem, ao público com gosto, como «monstros», objectos «disformes», entidades

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puramente «negativas» (utilizo conscientemente os termos de Kant quando este caracteriza as ocasiões que suscitam o sentimento sublime). Quando procuramos apresentar que existe algo que não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação. Isto significa que os pintores e o público, entre outros, não dispõem de símbolos estabelecidos, de figuras ou de formas plásticas, os quais permitiriam significar e perceber que se trata, na obra, de Ideias da razão ou da imaginação, como foi o caso na pintura cristã romana. Não pode haver, no mundo tecno-científico e industrial, símbolos estáveis do bem, do justo, do verdadeiro, do infinito, etc. São estes «realismos», - os quais são, na realidade, academismos burgueses no fim do século XIX , socialistas e nacional-socialistas durante o século XX - que tentam reconstituir simbólicas, oferecer ao público obras que este poderá saborear e dian te das quais se poderá identificar com Imagens (raça, socialismo, nação, etc.), Sabemos que este esforço sempre exigiu a eliminação das vanguardas. Estas levam a cabo um trabalho secreto de interrogação dos pressupostos «técnicos» da pintura, os quais as levam a desprezar completamente a função «cultural» de estabilização do gosto e de identificação de uma comunidade, por meio de símbolos visíveis. Um pintor de vanguarda sente-se, em primeiro lugar, responsável diante da pergunta vinda da sua própria actividade: o que é a pintura? E o seu trabalho tem por objectivo essencial mostrar que existe o invisível no visual. A tarefa de «cultivar» o público vem depois. O não apresentável é objecto de Ideia , não se pode mostrar (apresentar) um exemplo, um caso, nem mesmo um símbolo. O univer so não é apresentável, a humanidade também não, tal como o fim da história, o instante, o espaço, o bem, etc. Kant fala do absoluto em geral. Porque apresentar, é relati vizar, colocar em contextos e em condições de apresentação plástica, neste caso. Assim, não se pode apre sentar o absoluto. Mas podemos apresentar que existe absoluto . É uma «apresentação negativa», Kant diria também «abstracta». É nesta exigência de alusão indirecta, quase inapreensível, ao invisível no visível, que nasce, em 1912 a corrente da pintura «abstracta». O sublime é o sentimento que é convocado por estas obras, e não o belo. O sublime não é um prazer, é um prazer de dor: não conseguimos apresentar o absoluto, o que é um desprazer, sabemos no entanto que devemos apresentá-lo, que a faculdade de sentir ou de imaginar deve provocar o sensível (a imagem). Provocar o que a razão pode conce129

ber, e mesmo se ela não o consegue e se por isso sofremos, sentimos um prazer puro aquando dessa tensão. Não ficamos surpreendidos por encontrar o termo sublime nos estudos de Apollinaire sobre os «pintores artistas», nos títulos de quadros e na obra de B. Newman, nos textos publicados por várias correntes vanguardistas dos anos 1960-1970. É, obviamente, uma palavra do vocabulário romântico. As vanguardas pictóricas cumprem o romantismo, ou seja, o modernismo, o qual representa, num sentido forte e purificador (o sentido que se antevê na obra de Petrónio e Santo Agostinho), a falha da regulação entre o sensível e o inteligível. Mas, ao mesmo tempo, representam uma saída para a nostalgia romântica porque não procuram o não apresentável no mais longínquo, como uma origem ou um fim perdidos, a apresentar no tema do quadro, mas perto, na própria matéria do trabalho artístico. Baudelaire continua a ser romântico, mas Joyce é-o pouco, e Gertrude Stein ainda menos. F üssli ou Caspar Friedrich são românticos, Delacroix também, Cézanne é-o menos, Delaunay ou Mondrian, quase não. Os últimos citados obedecem à vocação experimentadora (por aquilo que fazem ou, pelo menos, sempre pelo que escrevem), mas obedecem sobretudo à evocação do não apresentável. O seu sublime é um sublime pouco nostálgico, virado de preferência para o infinito dos ensaios plásticos por fazer, e não para a sua representação de um absoluto que estaria perdido . A sua obra está, neste aspecto, em acordo com o mundo contemporâneo das tecno-ciências e, ao mesmo tempo, nega-o. Quanto ao «trans-vanguardismo» de um Bonito Oliva e às correntes similares observadas nos Estados Unidos e na Alemanha (inclusivamente o «pós-modernismo» de Jencks, no campo da arquitectura, que o leitor me fará o favor de não confundir com o que chamei de «condição pós-moderna»), é óbvio que, com o pretexto de recolher a herança das vanguardas, representa um meio para destruí-la. Esta herança só pode ser transmitida na dialéctica negativa das refutações e dos suplementos de interrogação. Querer retirar daqui algum resultado, sobretudo por adição, é parar esta dialéctica, limitar o espírito das obras vanguardistas ao museu, encorajar o eclectismo do consumo. Misturar, numa mesma superfície, os motivos neo- ou supra-realistas e os motivos abstractos, líricos ou conceptuais, significa que tudo tem o mesmo valor porque tudo é bom para consumir. É tentar estabelecer e legitimar um novo «gosto» . Este gosto não é um gosto. O que é solici130

tado pelo eclectismo são os hábitos do leitor de revistas, as necessidades do consumidor das imagens industriais normalizadas, é o espírito do cliente de supermercados. Este pós-modernismo, na medida em que exerce uma forte pressão sobre os artistas, por meio das críticas, dos conservadores, dos directores de galerias e dos coleccionadores, consiste em alinhar a pesquisa pictórica com o estado de facto da «cultura» e em desresponsabilizar os artistas em relação à questão do não apresentável. Ora, esta última é, a meu ver, a única que será digna dos objectivos da vida e do pensamento do século que virá. Fazer esquecer esta questão é uma ameaça que não devemos desprezar porque promete um relaxamento da tensão entre o acto de pintar e a essência da pintura, sendo que esta tensão não cessou de motivar um dos séculos mais admiráveis da pintura ocidental. Arrasta com ela a corrupção da honra de pintar, permanecendo intacta, apesar das piores solicitações dos Estados (produzir cultura!) e do mercado (produzir dinheiro!). O mundo tecno-científico pós-industrial não tem por principio geral ser necessário apresentar algo que não é apresentável e portanto representá-lo. Obedece ao princípio contrário, ou seja, que o infinito é um jogo na própria dialéctica das pesquisas. Afastar-se deste princípio seria absurdo, impraticável e reaccionário. É necessário introduzir nele a evocação do absoluto. O papel dos artistas não é o de restaurar uma pretensa «realidade» que a pesquisa dos conhecimentos das técnicas e das riquezas não pára de destruir, com o objectivo de construir outra versão, a qual será vista como mais credível, durante um certo tempo e que será, por sua vez abandonada. O espírito do tempo não é, de modo algum , agradável, a tarefa da arte permanece a do sublime imanente, a de fazer alusão a algo não apresentável, o que não tem nada de edificante mas que se inscreve no infinito da transformação das «realidades». Que isto não é feito sem angústia, sabemo-lo bem. No entanto os pintores não são responsáveis perante a questão: como podemos nós escapar à angústia? São sim responsáveis diante da questão: o que é pintar? Por outro lado, e apesar de serem responsáveis, enquanto membros da «classe intelectual», diante da questão: como fazer com que a nossa pintura seja percebida pelos que não são artistas, não devemos confundir as duas responsabilidades. É como se o filósofo confundisse a sua responsabilidade para com o pensamento com a sua responsabilidade para com o público. A questão: como fazer com que os outros percebam o que significa 131

pensar? pertence ao intelectual. O filósofo pergunta-se «apenas»: o que é pensar? O público não é necessariamente o seu interlocutor, em relação a esta questão. De facto, esta questão coloca-o, hoje em dia, ele também, em posição de vanguarda ignorada. Ousa, por isso, falar dos pintores, seus irmãos na escrita.

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A PALAVRA, O INSTANTÂNEO

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aJ~CA ~

- Terão elas alma? Que quererão? - Perguntem-lhes. - Mas fazer uma pergunta a alguém é pressupor que esse alguém a ouve e deseja responder, que deseja ajudá-lo a saber, que deseja saber consigo, cooperar num diálogo e que, portanto, possui uma alma e deseja o bem. Se elas ouvissem a nossa pergunta não teriamos que nos perguntar se possuem uma alma e o que querem, elas diriam-no, pelo simples facto de nos poder ouvir. Será que fazemos esta pergunta a nosso respeito? A pergunta, incidindo sobre o facto de terem ou não uma alma, não pode ser-lhe feita sem aporia: será que você pode ser o destinatário de uma pergunta que incide sobre a sua capacidade em ser o destinatário de uma pergunta? Ora, o que representa a alma e a vontade senão essa possibilidade de ser interrogado? - No entanto, o meio mais simples de sabê-lo é perguntar-lhes. Se obtiver uma resposta, ficará provado que, apesar do tipo de resposta, podem, de facto, ser questionadas, que desejam o bem e que possuem uma alma. Se não responderem, a pergunta será problema seu, e terá que analisá-la sem elas. - Elas não responderam, é um facto. Fazem caretas, torcem-se, tetanizam-se, extasiam-se, alucinam-se, catatonizam-se, sufocam-se, oferecem-se e furtam-se, numa luta corporal com algo ou alguém que não conhecemos e que, asseguro-lhe, não somos nós. Daí o embaraço e o facto de não podermos seguir-vos, na alternativa que sugere. Já que não nos ouvem, é pelo menos necessário que isto tudo tenha um Extraldo do catálogo da exposição «Photographies de la Salpêtriêre» organizada por iniciativa de Franco Cagnetta na Primavera de 1980 em Veneza. Texto publicado in Furor, 4 de Outubro de 1981 em Genêve,

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sentido e que, de certo modo, elas «respondam». Resta-nos descobrir em que linguagem e a quem respondem. Ora isto não pode ser feito inteiramente sem elas. Argumentamos a seu prop6sito, será ainda necessário que cedam, mesmo involuntariamente, os documentos e testemunhos que servirão de provas para as nossas argumentações. Que falemos delas, em vez de falar com elas, assim seja, aceitámo-lo, já que é necessário falar e, se possível, dizer tudo; elas contribuirão, todavia, mal ou bem, para o avanço da nossa pesquisa, arrancar-lhes-emos as nossas provas. Precisamos de pistas. - Imagine você, portanto, o seguinte: talvez tenham alma, talvez ouçam a pergunta: mas não é a sua pergunta e não ouve a resposta; em princípio, admite que os gritos, as contracções, os delírios, as alucinações observadas durante os ataques são, de certo modo, respostas; decide então construir três coisas: a linguagem falada pelo seu corpo, a pergunta à qual respondem os seus «ataques», a natureza do que as questiona. - É isso, é um problema de comunicação, ou seja, de tradução. Possuem, sem dúvida, uma alma, mas de um género diferente da nossa, falam uma língua, mas corporal (até as suas palavras são como objectos), ouvem alguém mas não somos esse alguém. Temos que estabelecer o que querem. Registamo-las de todas as maneiras, como se fossem extraterrestres. Fixamos os seus gestos. Verá que decifraremos também o seu idioma e, por fim, falar-nos-ão. Quererão saber, tal como nós, Entrarão na nossa comunidade. Deixará de haver histéricas. - Você quer dizer que esse idioma estranho, estrangeiro, será reabsorvido, e que uma língua universal permitirá a circulação e o intercâmbio de todos os significados e que será o fim da obscenidade? - Não deve atabalhoar assim o nosso processo. Deixar-lhes-emos a singularidade do seu dialéctico. Ainda é necessário mostrar que o estertor, as atrofias, as catatonias, toda essa demência vital, dizem alguma coisa, respondem a uma pergunta qualquer. É necessário mostrar que elas ouvem. O que faremos hipnotizando-as, obrigando-as a fazer o que lhes sugerimos. Isto será a prova da sua receptividade para com a linguagem. - É uma linguagem de prescrições, não de perguntas ... Dá-lhes ordens como a aut6matos, mas estes últimos são heteromatas, já que a sua alma está fora deles. Executar uma ordem, não é responder a uma pergunta. 134

- Estamos de acordo. A via está, no entanto, traçada. Terá apenas que imaginar o seguinte: o encadeamento das posturas que constituem a mímica do ataque obedece a um guião. Este último é-lhes ditado, elas seguem-no. Percebem assim as ordens, e executam-nas, sobre o seu corpo. - O que acaba de dizer continua a caracterizar um autómato, não se aproxima da sua alma. Ou então, ouse reconhecer que esta execução é uma interpretação, tal como acontece no teatro ou no cinema, e que supõe não só o entendimento das ordens, mas também a escuta subtil do que é exigido pelo guião. Ouse dizer que a alma delas habita o seu corpo e que isto s6 é possível se o corpo tiver uma alma. Que possuem o que chamamos de talento de expressão. Que tanto o senhor quanto eu não temos esse talento e que afastamos este tipo de ensaios expressivos para a cena efémera, confusa e inobservável dos sonhos, onde depressa os esquecemos. Enquanto que elas, trazem-nos, faustosamente, na cena da sua pele visível (o que vos dá a possibilidade de fotografá-las), indiferentes, como se fossem os artistas destinatários desses instantâneos extáticos, representando para um vasto público, o qual não é constituído pelos seus assistentes, caro Doutor, nem pelos seus estudantes, nem pelo pessoal de serviço, nem sequer pelo senhor ou pelos seus fotógrafos, ignorando como se fossem erros o interesse suspeito do empregado e a curiosidade meticulosa do patrão, tentando inventar um género mais cómico do que trágico, entre o comum do primeiro e distinto do segundo. Nós, observadores, isentos dos trabalhos da sala de hospital, do anfiteatro e do gabinete, examinamos a colecção destas provas numa revista, um século depois. As mulheres cujas fotografias observamos, não são doentes que estão a trair ou exibir os seus sintomas. Não são selvagens sujeitas aos transes do divino ou do exorcismo. Não são sequer comediantes surpreendidas no momento exacto, no auge da sua prestação. Ensinam-nos um género de teatro dos elementos corporais: a pupila pela dilatação, a ruga naso-labial pela contracção, o punho pela blocagem em posição ortogonal no antebraço, a rede muscular da face posterior pela cãibra em arco de círculo, na nuca e nos calcanhares. Pode ser abatimento, nas letargias, ou através de tónus optimal, nos êxtases.

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Fotografamo-las para constituir o dossier da histeria, com o objectivo de decifrar qual o significado destas posturas. Isto implicava o seguinte: que esses estados de corpo eram elementos semânticos e que podíamos encadeá-los, uns com os outros, com uma sintaxe. Teríamos então frases, sequências reguladas, e com elas teríamos um significado. Ora, a fotografia que deveria fazê-las falar, produz, em nós, um efeito contrário. Fixa os estados, na sua instabilidade suspendida, isola-os uns dos outros, não restitui a sintaxe que os une. Mostra-nos êxtases tensoriais. A importância destes êxtases tensoriais para com as sintaxes corporais (do teatro tradicional ou da dança) é igual à de pequenos elementos sonoros em relação à música de composição. John Cage diz que deseja deixar ser os sons. Estas fotografias mostram o que significa deixar ser os tónus. Ilustram, de modo quase perfeito, o que Richard Foreman exige do teatro histérico-ontológico : «Make everything dumb enough to allow what is really happening to happen 1.» E quando Foreman declara: «Most art is created by people trying to make their idea, emotion, thingimagined, be-there more. They reinforce. I want my imagined to be an occasion wherein the not-imagined-by-me can be there 2.» É como se hoje em dia percebêssemos o que desejam as pacientes de Charcot. I Richard Foreman, Ontological-hysteric: Manifesto I, Plays and Manifestos (Kate Davy, ed.), New York University Press , New York, 1976, p. 77: «Tornar tudo suficientemente mudo, para permitir que o que está realmente a acontecer. aconteça. » 2 Ibid., p. 76: «A arte é frequentemente criada por pessoas que tentam fazer com que a sua ideia , emoção, coisaimaginada, esteja mais aqui. Insistem. Desejaria que o meu imaginado fosse uma ocasião para o não-imaginado-por-mim, poder estar presente.»

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Elas são essas «personagens» (as aspas são de Foreman: «My "characters"», cuja tarefa é identificar-se com uma consciência. «Which (... ) doesn't SUSTAIN objects in the mind (... ) but presents and represents in every tiny quanta of time the content 3.» Estas fotografias são representações de apresentações quânticas de conteúdo tónico. - Acredita que salva esses doentes, ao criar obras de arte ou artistas? (Em troca de tão grande tortura infligida à arte!). - Eles insistem. Querem que elas digam qualquer coisa, uma cena primitiva, uma hipnose, um fantasma, a castração dos que as observam, o amor impossível, fazer o homem. Se todavia tiverem alma, não será ao fazer um discurso (mesmo desajeitado) sujeito a discussão, será ao murmurar-gritar com Rhoda: «Oh I'm as clear as a muscle. Oh Eleanor PAINT me 4.» A fotografia deixa de apoiar a argumentação dos sábios, suspende a dialéctica (um instante), quadro rapidamente liberto. Apreende-me, se puderes. Mas será, ou foi, demasiado cedo ou tarde. Será possível apreender um sotaque (um sotaque do tónus), fora da sucessão? A histeria não seria. apenas uma doença, seria, antes do mais, um ensaio ontológico sobre o tempo. Ou melhor: aquilo por causa disto. A fotografia revela-o, porque é tanto uma histeria do olhar como um meio de controlo.

3 R. Foreman, Ontological-hysteric: Manifesto II, ibid., p. 138: «que não mantém o objecto no espirito, mas apresenta e representa a matéria em cada quantum minúsculo de tempo.» 4 R. Foreman, Pain(t) (1974), ibid., p, 205.

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APÓS O SUBLIME, ESTADO DA ESTÉTICA

Gostaria de fazer incidir o exame deste «estado», sobre a questão da matéria. Darei apenas um rápido esboço do argumento. 1. Parece -me indispensável voltar à Analítica do sublime da Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, se quisermos ter uma ideia do que está em jogo no modernismo, na vanguarda, na pintura ou na música. Cheguei aos princípios seguintes: Desde há um século que as artes não encaram o belo como seu objecto principal mas sim como algo que diz respeito ao sublime. Não me refiro às correntes actuais, as quais levam a pintura, a arquitectura ou a música para os valores tradicionais do gosto: ou seja, o transvanguardismo, o neo-impressionismo, o nova subjectividade, o pós-modernismo, etc.: os neo- e os pós-o Tenho-os como resultados de uma sobreposição entre duas ordens que devem permanecer afastadas, a ordem das actividades culturais e a do trabalho artístico. Cada uma delas obedece a leis específicas. Pintores ou escritores (ou músicos, etc.) têm de responder à seguinte pergunta: o que é escrever, o que é pintar? Podem, por outro lado, deparar com a procura que emana do público, real ou virtual, e que se manifesta, hoje, no mercado e na indústria culturais. Ter de pensar não é, por exemplo, a mesma coisa do que ter de ensinar. Ensinar é (ou tornou-se) uma actividade cultural se estiver, pelo menos, subordinada a uma procura vinda de uma comunidade . Não sinto nenhum desprezo em relação às actividades culturais. Podem e devem também ser cumpridas correctamente. São soTexto reescrito em francês a partir de uma intervenção no Colóquio «The States of Theory» realizado na Universidade de Califórnia, Irvine, em Abril de 1987, por iniciativa do Focused Research Program in Contemporary Criticai Theory, dirigido por Murray Krieger.

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mente todas diferentes daquilo a que chamo aqui o trabalho artístico (o pensamento inclusivamente). 2. Um dos traços essenciais salientados pela análise kantiana do Sublime baseia-se no desastre sofrido pela imaginação no sentimento sublime. A imaginação é, na arquitectónica kantiana das faculdades, o poder, a faculdade da apresentação. De apresentar não só sensoria, mas também, quando a imaginação trabalha em liberdade (sem seguir as condições requeridas pelo entendimento, pela faculdade dos conceitos), com o intuito de estabelecer um conhecimento da experiência. A imaginação é, na sua própria liberdade, a faculdade de apresentar dados em geral, incluindo os dados «imaginativos», digamos mesmo «criados», como o escreve Kant. Já que qualquer apresentação consiste no «acto de dar forma» à matéria dos dados, o desastre sofrido pela imaginação pode ser visto como signo de que as formas não são pertinentes para o sentimento sublime. Mas o que será feito da matéria, daí em diante, se as formas já não estiverem presentes para a tornar apresentável? O que é feito da presença? 3. Com o intuito de resolver este paradoxo de uma estética sem formas sensíveis ou imaginativas, o pensamento kantiano orienta-se para o princípio de que uma Ideia da razão se revela ao mesmo tempo que a imaginação se mostra impotente para formar os dados. Na «situação» sublime, algo parecido com um Absoluto, um absoluto de grandeza ou de potência, se torna quase perceptível (a palavra é de Kant), graças à própria falência da faculdade de apresentação. Este absoluto é, de acordo com a nomenclatura de Kant, o objecto de uma Ideia da razão. 4. Podemos perguntar se este deslize ou esta reviravolta da imaginação para a razão pura (teórica ou prática), dá lugar a uma estética. O principal interesse que Kant vê no sentimento sublime, é que este constitui o signo «estético» (negativo) de uma transcendência própria à ética, a da lei moral e da liberdade. De qualquer maneira, o sublime não pode ser o facto de uma arte humana, nem mesmo de uma natureza que estaria «em inteligência» (pela sua «escrita cifrada» -, as belas formas que propõe ao espírito), com o nosso sentimento. Pelo con140

trário, no sublime, a natureza deixa de se dirigir a nós nessa linguagem de formas, nessas «paisagens» visuais ou sonoras provocadas pelo prazer puro do belo e que inspiram o comentário enquanto tentativa de decifração. A natureza já não é o destinador de mensagens secretas e sensíveis, cuja imaginação é o destinatário. A natureza é «utilizada», «explorada» pelo espírito de acordo com uma finalidade que não é a sua (a da natureza) e que nem sequer é a finalidade sem fim implicada no prazer do belo. Kant escreve que o sublime é um Geistesgefühl, um sentimento do espírito, enquanto que o belo é um sentimento originado por uma «concordância» entre a natureza e o espírito, ou seja, transcrito na economia kantiana das faculdades, entre a imaginação e o entendimento. Este casamento ou, pelo menos, este noivado próprio do belo, é quebrado pelo sublime. A Ideia, nomeadamente a Ideia da razão pura e prática, a Lei e liberdade, assinala-se numa quase percepção no próprio interior do quebrar da imaginação, e, portanto em favor de uma falta ou até de um desaparecimento da natureza assim entendida. O Getstesgefühl, o sentimento do espírito, significa que o espírito tem falta de natureza, que a natureza lhe faz falta. Apenas se sente a si próprio. Assim, o sublime não é mais do que o anúncio sacrificial da ética no campo estético. Sacrifício porque a natureza imaginativa (no espírito e fora dele) deve ser sacrificada no interesse da razão prática (o que não acontece sem problemas específicos, no que diz respeito à avaliação ética do sentimento sublime). Anuncia-se, deste modo, o fim da estética, o fim do belo, em nome da destinação final do espírito, ou seja a liberdade. 5. A partir destas breves considerações, coloca-se a seguinte questão: o que advém de uma arte, pintura ou música, de uma arte e não de uma prática moral, no meio de tal desastre? O que poderá ser de uma arte que deve operar não só sem conceito determinante (como o mostrou a Analítica do belo), mas também sem forma espontânea, sem forma livre, como acontece no caso do gosto? O que se joga, para o espírito, quando este é confrontado à apresentação (o que é o caso de todas as artes), parecendo a própria apresentação impossível? 6. Temos, creio eu, uma vantagem sobre Kant (é apenas uma questão cronológica), ao dispormos das experiências e dos ensaios feitos 141

pelos pintores e músicos ocidentais desde há dois séculos. Seria arrogante e estúpido pretender atribuir um só sentido ao desdobramento superabundante das tentativas realizadas durante esse espaço de tempo, no campo visual e sonoro. Desejo isolar, no entanto, um ponto que me parece grandemente pertinente e esclarecedor, na hipótese herdada da análise kantiana, a do sem-forma. Este ponto diz precisamente respeito à matéria, quero dizer: a matéria das artes, ou seja, também, a presença. 7. É uma pressuposição, mesmo um preconceito, uma atitude ready made, pelo menos no pensamento ocidental, há já dois milénios, pensar que o processo de arte deva ser cumprido segundo a realização de um relacionamento entre uma matéria e uma forma . Este preconceito permanece activo na própria análise de Kant. Assim, o que é garante da pureza do gosto, o que subtrai o prazer estético à acção de interesses empíricos , de preferências «patológicas», e à satisfação de motivações particulares é, segundo Kant, a consideração da forma única, a indiferença em relação à qualidade ou ao poder exclusivamente material dos dados sensíveis ou mesmo imaginativos. Goste-se de uma flor por causa da sua cor ou de uma sonoridade pelo seu timbre, encontramo-nos numa situação similar à de escolher uma refeição em vez de outra: é uma questão de idiossincrasia. Este tipo de prazer empírico não pode vir a ser partilhado universalmente. Que, pelo contrário, tal gosto deva ser o de qualquer um, como o exige o prazer provocado pela beleza, é uma promessa que só pode basear-se na forma única do objecto que dá origem a esse prazer . A forma representa um caso, o caso mais simples e, talvez, o mais fundamental entre aquilo que constitui, segundo Kant, a propriedade comum a qualquer espírito: a sua capacidade (o seu poder, a sua faculdade) para sintetizar dados, para juntar o diverso, a Mannigfaltigkeit, em geral. Ora, a matéria dos dados é representada como o que é, por excelência, diverso, instável e que se desvanece constantemente. Tal é a base de uma estética do belo. Aquilo a que chamamos formalismo é, sem dúvida , a última tentativa levada a cabo no âmbito desta estética e que todavia elabora as próprias condições de apresentação.

8. Mutatis mutandis, encontraríamos esta mesma oposição e esta mesma hierarquia no tema aristotélico da natureza enquanto arte e da 142

arte enquanto natureza. A matéria é posta do lado do poder, mas de um poder concebido enquanto potencial, enquanto estado indeterminado da realidade , ao mesmo tempo que a forma, segundo o seu próprio modo de causalidade, é pensada como o acto que figura o poder material. Existe aqui um género de «concordância» que é necessário ver como uma correspondência entre um empurrão obscuro e vago (um empurrão, um crescimento, a phusis como o poder de crescer do phuein), o empurrão que é o facto da matéria, por um lado e, por outro, um apelo específico, determinante, o qual surge da forma final cujo poder material está à espera. Este vasto dispositivo metafisico é colocado sob o regime do princípio de finalidade . 9. Já que a ideia de uma concordância natural entre a matéria e a forma está em declínio, declínio este já implícito na análise kantiana do sublime (e que foi alternadamente escondido e revelado pela estética durante um século), a aposta das artes, sobretudo da pintura e da música, só pode ser a de aproximar a matéria: isto é, aproximar-se da presença sem recorrer aos meios da apresentação. Podemos chegar à determinação de uma cor ou de um som, em termos de vibrações, consoante a altura, a duração ou a frequência . No entanto , o timbre e a matiz (e os dois termos aplicam-se, como sabemos, à qualidade das cores e das sonoridades), são precisamente o que se subtrai a esse género de determinação . Acontece o mesmo com as formas . Em geral, consideramos que o valor de uma cor depende do espaço que ocupa entre as outras na superfície de um quadro. E que, deste modo, é independente da forma revestida por este último. É o problema dito da composição, trata-se portanto de um caso de comparação. Podemos dificilmente apreender um matiz em si mesmo. Todavia, se suspendermos a actividade de comparação e de apreensão da agressividade, a mainmise (o maneipium) e a negociação, as quais são o regime do espírito , então, ao preço desta ascese (Adorno), talvez não seja impossível tornar-se disponível à invasão de matizes e passível ao timbre. Matiz e timbre são diferenças pouco perceptíveis entre sons e cores, os quais são aliás idênticos, pela determinação dos seus parâmetros físicos. Esta diferença pode ser devida, por exemplo, ao modo pelo qual são obtidas a mesma nota a partir de um violino, de um piano ou de uma flauta e a mesma cor, conforme for obtida com pastel, óleo ou 143

aguarela. O matiz e o timbre são o que difere, nos dois sentidos do termo, o que faz a diferença entre a nota do piano e a mesma nota tocada por uma flauta, o que portanto diferencia também a identificação dessa nota. No interior do espaço muito reduzido ocupado por uma nota ou uma cor no contínuum sonoro ou cromático e que corresponde à ficha de identificação da nota ou da cor, o timbre e o matiz introduzem um género de infinidade, a indeterminação das harmónicas, no seio do âmbito determinado por essa identidade. Matiz ou timbre são o que desanima e desespera o recorte exacto e, por acréscimo, a composição clara dos sons e das cores, de acordo com as escalas graduadas e os temperamentos harmónicos. Segundo este aspecto da matéria, é necessário dizer que ela deve ser imaterial. Imaterial, se a encararmos sob o regime da receptividade ou da inteligência. Porque as formas e os conceitos são constituídos por objectos que pro-duzem dados apreensíveis pela sensibilidade e inteligíveis pelo entendimento, encontros concordantes com as faculdades, as capacidades do espírito. A matéria de que estou a falar é «imaterial», an-objectável, já que só pode «acontecer» ou ocorrer pelo preço da suspensão desses poderes activos do espírito. Diria que os suspende, pelo menos durante um «instante». No entanto, esse instante, por sua vez, não pode ser contado, já que para contar esse tempo, mesmo sendo tempo de um instante, o espírito deve estar activo. É portanto necessário sugerir que poderia existir um estado de espírito sujeito à «presença» (uma presença que não está, de modo algum, presente no sentido do aqui e agora, ou seja o que é designado pelas deícticas da apresentação), num estado de espírito sem espírito, o qual é requisitado pelo espírito, não para que a matéria seja notada, concebida, dada ou apreendida, mas para que haja qualquer coisa. E, digo matéria para designar o que há, esse quod, porque essa presença, na ausência do espírito activo é e não é timbre, tom, matiz, numa ou noutra disposição da sensibilidade, num ou noutro dos sensoria, numa ou noutra passibilidade, pela qual o espírito é acessível ao acontecimento material e se sente «tocado»: qualidade singular, incomparável - inesquecível e imediatamente esquecida - da textura de uma pele ou de uma madeira, da fragrância de um aroma, do sabor de uma secreção ou de uma carne e, obviamente, de um timbre ou de um matiz. Todos estes termos actuam em intercâmbio. Designam todos os acontecimentos de 144

uma paixão, de um sofrimento para o qual o espírito não estava preparado, que o desampara e do qual apenas conserva o sentimento, a angústia e o júbilo de uma dívida obscura. 10. Numa das suas cartas, Cézanne escreve: «A forma é acabada quando a cor chega à perfeição .» O que está assim em jogo, na tarefa de pintar não é, de modo algum, cobrir (color tem a mesma raiz que ce/are, ocultar, esconder) o suporte, ao preencher uma forma anteriormente desenhada com um material cromático. A aposta é, pelo contrário, começar ou tentar começar, aplicando um «primeiro» toque de cor, deixar chegar outro e outro matiz, deixando-os associar-se segundo uma,exigência que é a sua e que deve ser sentida, não ser dominada . Encontramos uma apreciação análoga numa nota de Matisse acerca de uma grande peça de papel feita com aguarelas e colagens, chamada Mémoire d'Océanie, a qual se encontra no Museu de Arte Moderna, de Nova Iorque. É igualmente óbvio que, de Debussy a Boulez, Cage ou Nono, passando por Webern ou Varese, a atenção dos músicos modernos está virada para essa passibilidade secreta em relação ao timbre sonoro. É ela também que dá a sua importância ao jazz e à música electrónica. Os músicos têm acesso a um contínuum infinito de matizes sonoros, com os gongs e, em geral, com todas as percussões e os sintetizadores . Além do mais, penso que seria necessário reconsiderar, sob este aspecto, o da matéria imaterial, algumas obras minimalistas ou «pobres» e certas obras ditas expressionistas, abstractas ou não (penso nalgumas peças do grupo Cobra). 11. Este interesse em relação à matéria comporta um paradoxo. A matéria, assim alegada, é algo não finalizado, sem destino. Não é, de modo algum, um material cuja função seria preencher uma forma e actualizá-la, Seria necessário dizer que, encarada deste modo, a matéria seria essencialmente o que não é dirigido, o que não se dirige ao espírito (o qual não entra, de modo algum, na pragmática da destinação comunicacional e teleológica). O paradoxo da arte «após o sublime», é que esta se vira para uma coisa que não se vira para o espírito, que deseja uma coisa ou que está contra algo que não lhe quer nada. Após o sublime, encontramo-nos após o querer. Sob o nome de matéria eu entendo a Coisa. A Coisa não espera ser destinada a algo, não espera nada, não recorre ao espí145

rito. De que modo pode o espírito situar-se e estabelecer urna relação com algo que se subtrai a qualquer ligação? É o destino ou a destinação do espírito questionar (corno acabo de fazer). E questionar, é tentar estabelecer a relação entre alguma coisa e outra coisa. A matéria não questiona o espírito, não precisa dele, existe, ou melhor, insiste, existe «antes» da questão e da resposta, «fora» delas. Ela é a presença enquanto algo não apresentável ao espírito, sempre liberta da sua influência. Não se presta ao diálogo, nem à dialéctica. 12. Podemos encontrar algo análogo à matéria na própria ordem de pensamento? Haverá um matéria de pensamento, um matiz, urna complexão, um timbre que actua sobre o pensamento corno um acontecimento e que o desampara, analogicamente ao que descrevi na ordem sensorial? Talvez seja aqui necessário alegar as palavras. Talvez as próprias palavras sejam, no canto mais secreto do pensamento, o seu matéria, o seu timbre, o seu matiz, ou seja, o que ela não consegue pensar. As palavras «dizem», soam, tocam sempre antes do pensamento. As palavras «dizem» sempre algo diferente do que é significado pelo pensamento, do que este quer significar, dando-lhes forma . As palavras não querem nada. São o «não querer», o «não-senso» do pensamento, a sua massa. São inumeráveis tal corno os matizes de um contínuo colorido ou sonoro. São sempre mais velhas do que ele. Podemos serniologizá-las, filologizá-las do mesmo modo que se cromatizam os matizes e que se gradualizam os timbres. Mas, tal corno os timbres e os matizes, estão sempre a nascer. O pensamento tenta arrumá-las, acomodá-las, controlá-las e manipulá-las. Mas, corno são ao mesmo tempo idosas e crianças, as palavras não são obedientes. Escrever, corno pensava Gertrude Stein, é respeitar a sua candura e a sua velhice, corno Cézanne ou Karel Appel respeitam as cores. 13. Deste ponto de vista, a teoria, a teoria estética, parece ou pareceu ser a tentativa pela qual o espírito tenta livrar-se das palavras, da matéria que representam e, por fim, da matéria pura e simples. Felizmente, esta tentativa não pode ter êxito. Da Coisa não nos desembaraçamos. Sempre esquecida, é inesquecível. 146

CONSERVAÇÃO E COR

Falarei apenas do museu de pintura, do que chamamos pintura. Isto é, dos pigmenta enquanto pieta . Da cor, posta , disposta, proposta, exposta . E, no museu, re-posta, ou colocada de uma vez por todas, já e ainda colocada e por colocar, diz-se: conservada. Com esta conotação do servare latino, de conservar, manter, permanecer e fazer permanecer . A conservação enquanto manutenção infinita. Manter e conservar a cor representa uma estranha obstinação ou destinação. Isto tem a ver com o tempo. A cor posta não «passará», pertencerá sempre ao agora. Eis o princípio. Podemos pensar que esta condição, mais exigência do que situação, é comum a qualquer empreendimento de conservação é a presunção, não de qualquer memória (a qual transborda largamente e insidiosamente, sabemo-lo, quero dizer por fora, mas também por dentro, a intensão de recordar) - mas podemos acreditar que esta exigência é pelo menos comum a qualquer memorização, voluntária ou intencional. Esta não existindo sem a inscrição da coisa a manter fora do esquecimento. «Inscrição» significa que a coisa pode passar, não pode não passar, permanecendo ali todavia os sinais que mostram que existiu . E, quando dizemos que «permanecem ali», pressupomos com este «ali» a salvação que qualquer memorização espera do espaço. Eis o argumento em que se baseia a pretensa «Refutação» que Kant opõe ao idealismo, na primeira Critica. Pressupomos esse servare, esse salvare da inscrição ou subentendê-mo-lo. A grafia, a gravura, quaisquer que sejam, são provas de que a coisa existiu. O quadro no museu já não é por Texto de uma intervenção no Colóquio «Musêe/ M êmorial» organizado pela Bibliothêque publique d'information e pelo College international de philosophie, por iniciativa de Jean-Louis Déotte em Outubro de 1986 no Centro Georges-Pompidou,

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certo o «mesmo quadro», como dizemos, a «mesma coisa» , assim pensamos nós, nós todos, inimigos e amigos do museu. É a marca da sua presença passada, é signo, signo mnésico no sentido do seu estado supostamente inicial, digamos, o seu estado de aparição. Todo o espaço de exposição se torna o resto de um tempo; todos os lugares, aqui, dos indíces de outras vezes para o outrora; o olhar, agora, do observador, do visitante, sobre a cor, transforma esta última no sinal da cor que j á foi, na sua posição ou na sua colocação no início da obra, aquando da operação do opus. E parece-nos que isto se pode dizer de qualquer obra, uma casa, uma vila, uma paisagem ou um livro . A exposição, diz J .-L. Déotte, submerge qualquer posição. O espaço trabalhado é um memorando, inclusivamente o espaço colorido . É neste pressuposto ou subentendido, segundo o qual o espaço conserva (conservação que apenas se faz ao converter a coisa em sinal ou substituindo pelo seu arquivo), que se apoia, devem recordá-lo, a condenação pronunciada por Platão contra a escrita, na Fedra. A grafia é uma mnemotécnica. Transcreve-nos o que então foi dito e pensado. Mantém e conserva o diálogo consigo própria, diálogo este que é o pensamento, fá-lo chegar à posteridade e, no entanto, desarma-o, enfraquece a sua vivacidade . A escrita entrega aos leitores, aos seus espíritos, um pensamento privado da faculdade, ou melhor, da sua actualidade de retornar, de re-começar, de interrogar de novo, de acolher a questão nua e crua, de deixar lugar ao vazio que ainda não foi pensado. A tradição, pela inscrição, trai o que conserva. O tempo da transmissão é um tempo morto, o de uma repetição do mesmo, através dos momentos, que não distingue o acontecimento . Na obra de Bergson, é ainda esta pressuposição, apenas deslocada, que regula a oposição do tempo espacializado com a duração viva. Muitas outras acusações feitas contra o museu encontram a sua origem nesta pressuposição. Diz-se que é apenas um aparelho mnemotécnico. As obras ali expostas mudam, estão desafectadas, exangues . Já não valem por si próprias, na sua presença, valem enquanto sinais de uma vida perdida e, ainda, talvez sobretudo, enquanto testemunhos do poder de conservar, o qual está muito actual e presente . Do poder dos conservadores. No fim, e de acordo com esta lógica, o museu expõe-se a si próprio como uma obra de conservação. Obra de conservação das obras. A «cor» do museu de arte, o seu timbre, o seu tom, 148

o seu clima, exercem a sua hegemonia sobre as cores postas e compostas nas obras pintadas. A primeira obtém-se pela composição das segundas. Os artistas passam a estar ao serviço dos conservadores. Precisamente aqui, na nossa reunião de trabalho, a ausência dos artistas, como Buren mo assinalou após ter lido o nosso programa, testemunha a favor desta necrose. A morte agarra o vivo. Poderíamos pensar que se trata «simplesmente», por assim dizer, de uma mudança de enquadramento ou de escala, o que Buren também criticou desde há quinze anos (penso num dos seus primeiros textos, Limites Critiques, datado de 1970). O museu de pintura é, ele próprio, uma obra plástica. Não é, no entanto, um simples aumento do enquadramento ou da escala, é também uma transformação decisiva da destinação da obra, pelo menos aos olhos de Buren. Isto porque a obra do museu tem por finalidade a conservação, a manutenção e o aspecto, a mnemotécnica portanto. Se seguirmos a hipótese inicial de Buren, da obra pintada, isso não se verifica . A obra é viva, pontual, isto é, momentânea e situada. De acordo com esta aproximação, diria que ela é essencialmente gasto em vez de reserva, que se ela se expõe é mais à incerteza do seu futuro que à sua concessão perpétua no património cultural. Há ou houve, na polémica de Buren em relação à conservação, a depuração do motivo propriamente platónico da vida das obras . O termo de conservação, que se encara no sentido de manutenção, mnemotécnica, significa também o seu contrário, uma atitude do sentido exposto sem fim ao acontecimento, à questão, à repetição, à recomposição da manutenção do tema, como no Entretien Infini, de Blanchot. E, se avançarmos um pouco mais nesta direcção, não poderemos contentar-nos com o princípio da obra dita «aberta», é a própria noção de obra, enquanto colecção e atitude, do quadro pintado enquanto posição e composição acabada de cores, por exemplo, que devemos questionar. Dentro de tal problemática, baseada, digo, repito e insisto, na pressuposição de que o primeiro gesto, o live ou a «presença», só pode gastar-se e «passar», como uma cor «passa», quando é retido, reservado e conservado - e, por causa dessa mesma reserva - nesta problemática, a instituição do museu parece ter de ser condenada sem apelo. Simplesmente porque é, por excelência, a obra inacabada, a obra na qual as obras se consomem. 149

Para nos assegurarmos de que esta problemática platónica e completamente metafísica está sempre activa e viva, basta-nos ler a refiexão suscitada pela arte fotográfica (guarda a coisa viva, mas mata-a) ou observar a preferência dada pelos media à difusão «em directo» e à gravação Iive (os nomes falam), em relação aos records, ou seja ao diferido. Nós, filósofos, adquirimos o hábito, há vários anos, de esquecer esse preconceito. De fazer a crítica do «primeiro rebento», da origem, da vida, a qual é também a crítica do acto, da actualidade e do agora ... Ao mostrar que estamos sempre e em todo o lado, diante de algo diferido. Esta crítica chama-se «gramatologia», quando salienta que nada existe a não ser o que está inscrito, «escrito», no sentido dado por Derrida à escrita. Por outro lado e utilizando a teoria de Deleuze, não existe diferença que não pressuponha a repetição. Uma ontologia do diferido possui, necessariamente, a confissão da inscrição sempre existente da pré-inscrição revelada em seguida e do luto da presença. Qualquer voz, VOX, é, desde a Bíblia, o nome dado à actualidade pura do acontecimento, chega até nós gravada, fenomenalizada, formada e informada, nem que seja apenas no tecido das instâncias espacio-temporais, nas «formas da sensibilidade», aqui e além, ainda não e já não, etc. Sem falar dos significados pré-inscritos na «língua» falada pela voz. Platão escreveu os seus diálogos no sentido trivial da escrita. Mas, se uma obra de linguagem tivesse permanecido por escrever, teria sido, pelo menos, inscrita na própria tradição oral dos jograis, dos contadores, tradição que não possui menos técnica do que a grafia, apesar de diferente. A universalização da ideia de escrita proíbe a separação entre o acto e a sua passagem à reserva, o vivo e o morto, a obra e a sua conservação, o génio e a técnica. Nas suas pesquisas, no Colégio Internacional de Filosofia, sobre o que chamamos de novas tecnologias e as suas relações com o que chamamos de cultura, Bernard Stiegler revê de trás para a frente a crítica do preconceito hostil à arquivologia. A cultura (mesmo arcaica) não existe se não for apoiada por uma técnica, sendo a cultura sempre transmissão (quer opere pela tradição, pela escola ou pelos media), a transmissão que exige sempre a inscrição. Uma coisa é cultural porque é exposta, ou seja, inscrita ou «escrita». Stiegler quer mostrar que, pelo contrário, qualquer técnica, enquanto inscrição, representa uma memorização ou uma conservação e 150

que está bem longe de ser um meio acrescentado para assegurar a transmissão e a conservação de obras espontâneas. E, obviamente, não pensa deste modo confundir todos os géneros de tecnologias. Mas exige, pelo menos, que os novos géneros ou «novas tecnologias», deixem de ser consideradas, como o são frequentemente, como novos meios aplicados a obras inalteradas na sua essência. Creio poder dizer em seu nome que, pelo contrário, é a própria relação do espírito com o tempo e o espaço que fica deslocada e isto desde a operação, desde o opus. Para seguir esta orientação devemos aceitar, sem repugnância, instituição museu, já que a conservação no sentido de manutenção já não deve ser atribuída unicamente à memorização voluntária. Não devemos temer que tenha lugar (e momento) o arquivo das obras, das obras pintadas em particular, isto se for verdade que qualquer obra já é necessariamente um arquivo, uma organização espaço-temporal, de algum modo «bloqueada», para permitir a repetição e a transmissão. Deleuze diz «territorializada». Sabe, no entanto, que a territorialidade pode «provocar um movimento de desterritorialização absoluta» e «deixar de ser terrestre para se tornar cósmica» (Mille Plateaux, pp. 341-433). O que podemos temer é que o museu despreze os modos de inscrição e de organização do espaço e do tempo representados pelas novas tecnologias, no preciso momento em que estas estão a substituir a «velha» tecnologia de escrita-gráfica, na humanidade de hoje . E o que podemos também temer é que, seja qual for o modo técnico que satisfaz o museu, o aspecto de arquivo e de blocagem, aquilo que eu chamava «dispositivo», na exposição das obras, ultrapasse, na sua recepção ou percepção, o aspecto do diferido, de repetição, de «retorno», como diz Buren. Falaria de recepção feita ao acontecimento e, no nosso caso, deste acontecimento ontológico que a cor pode ser. Que haja necessariamente inscrição espacial, um vestígio e uma conservação, não significa que o espírito esteja destinado à repetição e que já não haja nada para escrever que ainda não o tenha sido. Um desespero que reveste frequentemente, hoje em dia, o título de «novo» ou de «nêo», Não vou desenvolver mais este medo e a exigência que lhe é inerente, na concepção da função de um museu. Não se trata de depreciá-los, através do preconceito já citado, do subentendido que veicula a supremacia do tive ou, como dizem os poderes públicos, a «criação». Para acabar, quero dizer duas palavras acerca do ponto que, a meu 151

ver, é o mais importante. Parecerá talvez contradizer o que acabo de dizer. Não creio, no entanto, que isso aconteça. Recordam-se de que, ao tentar mostrar ao leitor do Salon, de 1767 as paisagens pintadas por Vernet, Diderot simula, pela sua escrita, que passeia nessas paisagens com o seu amigo «Abade» . Abre, por escrito, as superfícies dos quadros como se fossem as portas de uma exposição. Tal como no museu, já não são apenas os olhos, mas também os corpos inteiros que se movem e isto já não acontece diante da disposição das cores, mas no meio delas. Cada paisagem, assim percorrida (de modo fictício), é a exposição da natureza e da cultura (a natureza é um museu de cores), da realidade e da imagem, do volume e da superfície. Ainda teríamos muito para dizer sobre o processo. Quero apenas utilizá-lo como testemunho do que creio ser a aposta da pintura e, talvez mais hoje em dia do que antes e outrora. Ao dizer que as paisagens são exposições, Diderot sugere também o inverso: que as exposições são paisagens. Será talvez necessário encarar a situação museológica das obras em si mesma e para si mesma, sem a trazer de volta à situação, supostamente inicial, das obras nas oficinas dos artistas, aquando do «primeiro esboço» ou até da «primeira» imaginação sentida pelo artista. Apenas devemos convencer-nos de que não existe uma frescura originária, mas sim tantos estados de frescura quantos olhares desarmados. Tanta presença quanto alma (Kant utiliza a palavra na terceira Crítica). Foi para apoiar esta ideia assaz trivial, demasiado trivial, que comecei pela cor. Ao contrário das formas , e mais ainda das figuras, a cor parece subtrair-se às circunstâncias do contexto, à conjuntura e, em geral, a qualquer intriga, isto pelo seu «efeito» , pelo seu poder de afectar o sentimento. Por isso, classificamo-la habitualmente na teoria estética, ao lado da matéria ou do material. A forma (ou a figura) pode sempre, de perto ou de longe, ser apresentada numa disposição inteligível e ser, deste modo, dominada em princípio pelo espírito . A cor, no entanto, pelo facto de estar ali, parece desafiar qualquer dedução . Tal como o timbre da música, parece desafiar o espírito, desfazendo-o. É a esta defecção da capacidade de intriga que gostaria de dar o nome de alma. Longe de ser mística, é, de preferência, material. Dá lugar a uma estética de «antes » das formas. Uma estética da presença material, que é imponderável. 152

Bem sei que a cor muda de acordo com a luz, as iluminações, o estado do tempo e o tempo que passa. Isto acontece porque lhe demos um nome, um lugar na matização e que este designador cria o princípio de que a cor é e deve permanecer sempre a mesma . Ora, é a sua própria mutabilidade que a torna propicia ao desarmamento do olhar. Mudamos completamente o seu timbre, para utilizar a metáfora musical, ou a sua fragrância (como diz o inglês), em termos olfactivos, se abrimos os reposteiros do coro de San Francesco d'Arezzo, cujas paredes suportam os frescos de Piero, ou se, pelo contrário, apontamos sunlights sobre estes. Não é todavia demonstrável que isto seja menos «belo», digamos menos «presente» do que a primeira hipótese. Vi, em Montreal, pequenas paisagens de Vernet iluminadas com néons e colocadas por detrás de vitrinas, cuja lividez assim obtida tinha imediatamente uma força de interrupção ou de interdição do espírito. O pintor sente-se preso ou liberto por uma tonalidade. Cézanne diante da sua montanha. Tenta transpô-la para o seu suporte. Fiel, sabe que não o será. Mas, o que tenta ele afinal? Tenta fazer com que esta libertação seja também sentida pelo observador (dizemos sentida à falta de melhor), diante da cor posta e composta no quadro. Não se trata de autenticidade, a qual representa um valor mercantil. Parece-me que a aposta de pintura, para além e no meio de todas as intrigas, as quais são as suas armas, entre as quais encontramos o museu, é devolver a presença e exigir o desarmamento do espirito . E isto não tem nada a ver com a representação. A representação, a pintura, multiplicam as intrigas, as técnicas, as teorias para frustrá-la ou utilizá-la. Pertence à memória voluntária, à inteligência, ao espirito, ao que questiona e conclui. Acontece, no entanto, que um amarelo, o do Delft de Vermeer, suspenda a vontade e a int riga de um amarelo de Marcel. É a esta suspensão que gostaria de dar o nome de alma: quando o espirito é quebrado em mil pedaços (libertação) sob o «efeito» de uma cor (será verdadeiramente um efeito?) . Escreve-se, em seguida, trinta ou cem páginas, para recolher os pedaços e recomeçar assim a intriga. Ora não vejo porque esta aposta, a única aposta da pintura, uma presença material, deveria necessariamente falhar, pelo facto do amarelo da parede estar pendurado num museu em vez de estar noutro lugar, se for verdade que a matéria cromática não deve nada ao lugar 153

que pode ter (e, num certo sentid o, nunca tem) no intricado das posições sensíveis e dos significados inteligíveis. Eis a razão pela qual o caso do museu é diferente dos outros, de muitos outros; ' pelo facto de expor a matéria cromática, a qual recorre à presença, para além da representação. Tudo o que dele esperamos é que não impeça o estado de libertação fazendo-se demasiado importante. Por fim, para evitar a confusão, quero salientar que, quando digo cor, falo de qualquer matéria pictórica, a começar pela linha. Nas velhas caligrafias japonesas, o traço feito com o pincel não produz uma linha, no sentido do desenho acabado . E, que diríamos nós das marcas de Yves Klein?

.,

154

DEUS E A MARIONETA

Eis a história que gostaria de ter contado: que a repetição se liberta da repe!~ç.ã.º,..P.ar.a".I.e1le1iI::.§.~,~...QJ!~_ª.Q.J.entar..J.azer:...se...,esauecer IJ!~ seu é.i9it~Ç.!!!J&!.1.!.?, repetindo a_s.~i~,~_~~~~ºçi!l......, A repetição é um problema de tempo A mÚsica também é um problema de ~ãmbém é um problema de matéria sonora. ôrZ-se que"'temQo music a organizacão ou o conjunto das form~ «im rimidas» (que téria sonora, no som. Ora,..e... q'!.e.~~~~~~lz~ç~~.9.u._~.19?:rform~,. espaci~ ou temporal. tem a sua rePsticão• ...a.çtu,aI o.!:1,l?~~Isto porque é a fixação de um estado de matéria, através da duração e que essa fixação exige a depuraçao dá organização dos elementõs-iiiãfeiiáIs:" Diz:Sê··fâiil.õ'ém que o SOIIi.-a própria matérià, são iii1àliSãvêis'Iióif');;eus parâmetros, na sua amplitud;, frequência, duração e ressonância. Além do mais, e tratando-se do movimento vibratório de um gás (o ar), a natureza deste movimento, e

pã.

:r::'

da sua pr?pagaçãõ-impJkmnJIDDbW uI1Ja .a da oscilação ~.a peça (o bisel de uma flauta, por exemplo), [)~m a esse mQImento por acréscjmo...A rigidez do dispositivo de reSSlJDância..Aqui a.orgaaízeçãc farma1,._mes.mo --........ conceptual, «desce» ao coração dama...."_.,.téria sonora. Far-se-ão duas observações acerca deste ponto. Em primeiro lugar, as propriedades características de um som são, em princípio, mensuráveis, sendo tarefa da acústica e da física das vibrações determiná-las quantitativamente. A identificação cognitiva do som exige, no entanto, que a oscilação da peça móvel que determina a amplitude, o período e a frequência do som permaneçam inalteradas durante a observação.

,e;

--_

Texto de uma comunicação no Colóquio «Musique et répêtition» organizado em Lyon, em Janeiro de 1987 pelo College international de philosophie, por iniciativa de Marie-Louise Mallet.

155

o mesmo

deverá acontecer com os dispositivos de ressonância, quaisquer que sejam, os quais asseguram a propagação do som . Qualquer modificação do dispositivo transforma as interferências que contribuem para a definição do som fundamental e das harmonias. A determinação das propriedades de um som exige assim uma depuração igual à das condições da sua produção. Pelo contrário, a organização dos conjuntos de sons (assim determinados pela sua identidade), ou seja, a sua composição em formas musicais, não obedece ao único princípio da identidade quantitativa e, portanto, da repetição idêntica. Admite e provavelmente exige a variação ou a transposição dessas formas, por intermédio de mudanças aplicadas aos elementos sonoros. Exige-o porque o prazer musical 12arece estar SlISpenso no momento da percepç~o G@ssas diferenças' o ~s­ pírito desfruta do mesmo através do outro e deleita-se com a diversidade que aceita a identidade. A acústica é finalizada com o conhecimento, a mÚSica com uma certa forma de prazer. São dois «géneros» de discursos ou duas «faculdades» diferentes. Em termos kantianos, diria que a identificação exacta do som pertence ao entendimento da sua finalidade"c:og-nitiv~ que a variação da sua criação depende, -no entanto, da lmagmação, obedecendo à hnahdade, ~conceito inerente ao prarefdesinteressado que, segundo Kant, caracteriza o sentimento estético do belo. Será portanto sempre necessário distinguir a repetição determinada e determinante, que fixa a matéria sonora em propriedades distintivas para o conhecimento acústico e a repetição, digamos «livre» (o termo é kantiano) das formas de composição musical dos sons, uns com os outros. É óbvio que ~primeira repetição é guiada por uma ideia (no sentido platónico) de um som, de aconlQ.~a suaidentídade exclusiva, en uanto nda, ao aceitar a variação e "a transposlç o, é feita «apenas» de analogias. O que origem, entre-·outras coisas, à indeterminação, neste segundo caso, d~ identida~ que é repetido, e ao facto des1à ser apenas indicada como o objecto de uma alusão feita pelas diversas ocorrências do acorde ou da frase, e ao facto dessas ocorrências acrescentarem às outras Jluénero ~uplemento d$vido à sua própria diferença, não sendo esse suplemento outra coisa a não ser a arte ou a techné (e isto é mais Aristóteles que Platão), pressupõe sempre a ausência ou a retirada da mes.J!1a coisa, isto é, do acorde ou da frase aos quais as ocorrências ~. alu-são- O que quero dizer é que nenhuma destas ocorrências tem valor, 156

e~tQ ~igmas,

em relação às outras. ~se «àá>Ul tema de um movimento smfómco do mesmo modo que se «dá» o lá de um concer o uan o se trata e a mar os instrumentos . A primeira repetição, que é cognitiva, in uz uma metafísica das ideias, a segunda ,que é estética, induz uma ontologia do ser enquanto não-ser. A segunda observação é de outra ordem. ~ distinção que acabo de fazer apoia-se, ao que parece, na oposicão entre a matéria musical (o s~ submetida a condições temporais Ce espaciais) e a sua composição em formas, a qual também nece . to, diferente todavia, ,do tempo. Ora, esta o osi ão entre a matéria e a fo m ponde a oposição entre um tempo mensurável e uma duração flexivel, é posta em causa, de acordo com o que creio saber, pela cõilSiaeraçãe. do timbre ou, melhor, do matiz de um som ou de um conjunto de sons. Esta matéria parece escapar à determina ão . , isto porque filgorosamente e n o exactamente) singular: a sua qualidade depende talvez de uma constelação de parâmetros concebiveis, mas esta constelação, a que acontece agora, não é antecipável ou previsivel. É por exemplo esta singularidade que distingue, pelo menos em parte, as diversas execuções de uma mesma obra. E, deste modo, sentimos a tentação de pensar que escapa a qualquer repetição, não s6 a da constituição da identidade sonora, mas também a da possibilidade da variação formal exigida pela música. Mesmo aquilo a que chamamos (justamente) «repetição» de uma obra por um executante ou um conjunto de executantes, não consegue controlar o timbre ou a matiz que «ocorrerá», singularmente, na noite do concerto. Com o matiz. parece-.!!os que o ouvido está destinado ao incomparállel (ao que, portanto, não é repetivel) inerente ao que chamamos performance, ou seja, ao aqui e agora do som, na sua singularidade, na sua pontualidade e no facto de !Ião se submeter, por posição, a3ualquer transferência espacio-temporal. Esta transferência s6 pode cÕnsistir Da manutenção do «mesmo» som, pela mem6ria, no---CU;;o da dura ão, mesmo que seja . ~ n o impe e que transforme Imediatamente o aqui em além, o agora em então . ~ssim, o matiz actual transforma-se num matiz acrescentado, retido, diferido, de tal modo que se transforma noutro matiz. Sei que ~tas ideias de uma presenca pura, pontual, que faria ... em suma, oJ?jecção à repetição tanto quantitativa (eidética) quanto alusiva {estética} - esta idei~~esença conbnua altamente problemática;

~

157

acrescentaria, no entanto, que não é concebível, nem experimentável, impossível de se sentir, p$lo menos de acordo com as form~ s~e. Por outras palavr~não eXIste sUjeIto para acrescentar a si próprio, porque o si próprio, o E , não pára de reiterar o seu poder em sintetizar os dados sensíveis aqui~ os sons), atraves do cUíSO do tempo. De que modo poderIa o que se repete de modQ c~ apreender o que não é repetíyel, ~ng!:1ant.QJalLO matiz de uma execução niusícãl:por exemplo, pode ser sem dúvida acrescentado e, de certo modo, circunscrito pela sua comparação com outras execuções. No entanto, esta comparação faz-se em seguida, num género de amostragem de matizes, bem conhecida pelo cromatologista: é a matização . O engenheiro de som conhece-a como sendo a série de registos. A tribuna das críticas de discos, habituou-nos, durante decénios, a estas comparações. Todas exigem (a matização, a colecção dos registos numa fita magnética, os discos), a inscrição do matiz num suporte espacial e a sua arquivação, Mas, o que a comparação não pode estabelecer é que tal matiz, na sua actualidade e no seu «aqui e agora» de então, possa exercer sobre tal espírito (e não sobre qualquer outro), não só o efeito de prazer formal, o qual é uma coisa muito diferente, mas também o império de uma perda. Porque, se a matéria do som, o seu matiz, consegue chegar ao sujeito, é ao preço de ultrapassar ou de «sub-passar» a sua capacidade de actividade sintética. Seria uma defin~b'yiamente neiativa) da matéria: o que quebra ões~ ro dizer que esta matéria tão ténue que é como se fosse imaterial, se não é repetível, é porque está submetida à sua a pria e, destemo o, o espírito fica despojado. privado da sua faculdade, tão estética quanto inteligente, de ligá-la, associá-la, gostaria de dize0ntrigar acerca dela e, portanto, de repeti-la de uma maneira ou de o.!!tra (metafísica ou ontológica). Q matiz, enquanto matéria não formalizada, escapa às sínteses, tanto às da a reensão como às da reprod o almente a possi .. -- » Ji mat~ria sensível para fins de prazer, por meio das formas, ou de conhecimento. por meio de esquemas ou de concenos. Se fiao existem S!!- _ jeitos que possam acrescentar a si próprios, isto é, aos seus poderes de_ síntese, as formas sensíveis e os operadores conceptuaIS, - para lhes acrescentar este matiz, é porque a matéria sonora que esse matiz é s6 está ali porQue o sujeito D!lO está ali e entao. Recordam-se que este é ; modo pelo qual Epjcuro circunscreve a morte: se ela estiver ali, eu não 158

esto lá; en uanto eu estiver ali, ela não está lá. Podemos perceber esta alternativa como a eterminação de um limite. Não seria todavia suficiente. O facto é que não representa um limite para o espírito, seria necessário que ali estivesse quando já não estivesse e que permanecesse, diferente sem dúvida, mas repetido além desse limite, para que pudesse ser um limite do espírito. O limite é ultrapassável ou franqueável. Mas, para mim, a palavra matiz significa uma transposição. Ao relembrar o texto de Epicuro, não quero dramatizar as coisas, as quais não precisam disso. Quero, pelo menos, dar a entender que, por entre as «coisas»,' apenas uma é capaz de suportar a repetição, a qual é a morte, é a matéria. A extinção do sujeito, do espelho do sujeito, da sua reflexibilidade, no sentido habitual, da sua capacidade sintéticª, mais elementar, não ocorr como um intervalo no seio da sua tempor m ue esteja destinado à sua erda. O intervalo e ejS!l temporalidade são aqui eles mesmos suspensos. Digo suspensos para significar que não existe marca dessa perda, no curso activamente reflexjyo do sujeito. Se não exist;repetição possível desse matiz, é porque não foi inscrit;;:-Aôossa decepçào ao escutar a gravação liga-se à smgulandade não encontrável. O espírito, através das suas sínteses, não tem acesso a ela. Q\@ndo digo: se ela ali estjyer O sujeito não está. quero dizer que. _ , P~ falta do sujeito, º"ª,o devemos tentar pensar a «percepção» (que palavra!) desse matiz , como uma inscrição sobre um su or u, se encararmos este conceito e trás para a frente, que é necessário tentar peUiar uma marca que, em vez de marcar, de «tipar» (Lacoue-Labarthe) uma superfície passível, a anulana. Nem mesmo marcaria a sua ausência, como um branco; uma página branca pode assinalar um tempo morto, uma pausa, um silêncio num caderno de escritas, isto independentemente do tipo das escritas. Dir-se-á que, nestas condições, a própria lembrança desse «traço» não inscrito deve ser impossível e que nem existe um meio para falar dele. Tal não é a minha opinião. Tal não era a de Ernst Bloch, qüãndo contava, em pequenos escritos, os Spuren, Os traços através dos quais o que não pode ser inscrito, a presença, abandona o espírito. Na su~ tradição, todavia. não é a matéria Que cria esse abandono. m~o Inominável. De modo ue osta do ensamento da presença não é, p ra Bloch, estética, mas ética ou «espmtua Não é no entanto por acaso, que esta aposta repugna utilizar o género argumentativo pa159

ra expor - se o extrai da mais fina pena de Bloch, a escrita lacónica daquilo que o latim popular chamava narratiunculae. A escrita , e a música também, procuram o que não se inscreve. Quanto à es~ gõ'Siã'na de Pcnseal o valor do e para lhe dar um significado parecido com o de «garatuja» - é o velho significado da raiz scri-, -fora de, ~ra de qualquer suporte, qualquer dispositivo de ressonância e de reiteração, de qualquer conceito e forma pré-inscrita, mas principalmente de qualquer suporte. A matéria de gue falo, o matiz (cor-timbre), s,eria necessário imaginá-la - mas agora seria demais, seria demasiado pesado - como se fosse, ao mesmo tempo o acontecimento e aquilo ao qual acontece algo. Em primeiro Iug~haveria uma su- netncie (tedll ã tl8:ài~ãg, o pàtr1mónio, a mem6ria) ............ e, em segui
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