LOSURDO, Domênico. as Lutas Contra-hegemônicas Do Século XX Ou Século XXI.

April 6, 2019 | Author: Guilherme Milkevicz | Category: Imperialism, The United States, Colonialism, State (Polity), Política internacional
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As lutas contra-hegemônicas do século XX ao século XXI* (Domenico Losurdo**)

1.

O jogo das analogias e das suas consequências nefastas

Em 1938, Trotsky fundava a IV Internacional a partir deste pressuposto: assim como tinha acontecido no decurso do primeiro conflito mundial, também no decurso do segundo conflito mundial, que já se preparava, ter-se-ia verificado a transformação transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária revolucionária e daí teria derivado uma onda revolucionária ainda mais gigantesca do que aquela que tinha marcado o nascimento da Rússia soviética. De fato, uma onda revolucionária sacudia o planeta inteiro, mas desenvolvia- se segundo modalidades diversas e opostas, a partir de guerras de resistência e libertação nacional contra o imperialismo: isso não era válido só para a União Soviética, empenhada na Grande Guerra patriótica, ou para a China, ou para a Checoslováquia, a Iugoslávia, a Albânia; mas também para países capitalistas mais ou menos avançados como a Grécia, a Itália, a França, a revolução desenvolvia- se como guerra de libertação nacional dirigida pelo partido comunista. Na realidade, contrariamente às previsões de Trotsky, o nascimento da Rússia soviética e o impulso dado por ela ao movimento anticolonialista e, na vertente oposta, o surgir do Terceiro Reich, empenhado em retomar e radicalizar a tradição colonial, tornando-a válida na própria Europa Oriental, em síntese, exatamente as novidades surgidas a partir de Outubro de 1917 tornavam impossível a repetição do cenário da primeira guerra mundial.

Em 1952, um ano antes da sua morte, Stalin fazia ele também uma previsão: derrotados em 1945, a Alemanha e o Japão não suportariam para sempre a hegemonia dos Estados Unidos; rebentariam novas e violentas contradições inter-imperialistas e esta teria sido a oportunidade para um novo e talvez decisivo alargamento do campo socialista. Isto é, verificar-se- ia um cenário semelhante ao da Primeira e, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial; esta última, antes de envolver a União Soviética, tinha visto confrontarem- se só países capitalistas. Como é sabido, as coisas encaminharam- se numa direção exatamente oposta: a força do campo socialista e o medo da sua amplitude contribuíram para o compactuamento do imperialismo, ao passo que foi o próprio campo socialista que, não conseguindo resolver seu problema das relações entre países socialistas, conheceu contradições ásperas e até violentas no seu interior e acabou indo ao encontro da sua dissolução. Enfim. Em 1965, Lin Piao fazia de Pequim uma terceira previsão: a dialética que tinha promovido a vitória da revolução na China, isto é, o cerco da cidade a partir do campo, manisfestar- se-ia também a nível planetário. A

vitória na Ásia, na África, na América Latina das revoluções anticoloniais dirigidas por partidos comunistas cercariam a metrópole capitalista e imperialista, até que esta acabasse por desabar. Na realidade, em 1928, Mao tinha esclarecido que o que tinha tornado possível a construção do “poder vermelho” nos campos chineses tinham sido “as contradições e a luta entre os estados imperialistas” . A própria vitória da revolução chinesa e de outras revoluções anticoloniais levava os países capitalista a pôr de parte em certa medida as usas rivalidades e a juntarem-se sob a égide dos Estados Unidos. Na realidade, entre 1989 e 1991 não era o campo socialista que cercava a metrópole capitalista e imperialista, era pelo contrário a metrópole capitalista e imperialista a cercar países como Cuba, o Vietnã e a China.

Em conclusão, de todas as vezes que se abandonou ao jogo das analogias, o movimento revolucionário sofreu amargas decepções ou verdadeiras catástrofes. É necessário, pelo contrário, citando Lenin, proceder a uma “análise concreta da situação concreta”. É preciso inspirarmo -nos nesta lição quando nos interrogamos acerca das perspectivas da revolução no século XXI.

 A situação mudou radicalmente em comparação com o passado. Na esteira do fracasso do projeto hitleriano de retomar e radicalizar a tradição colonial, identificando na Europa Oriental o “Far West” a colonizar e germanizar; na esteira de Stalingrado e da derrota inflingida ao nazifascismo, imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial desenvolvia- se uma revolução anticolonialista de dimensões planetárias. Não eram só as colônias propriamente ditas que eram sacudidas. Em países como os Estados Unidos e a África do Sul, os povos de origem colonial revoltavam-se contra o estado racial e o regime de White supremacy. Ainda antes de encontrar uma expressão consciente nos partidos e nas forças de esquerda, o internacionalismo existia nos fatos: ele abrangia os povos coloniais e de origem colonial, os países socialistas que apoiavam a revolução anticolonialista e antirracista, as massas populares do Ocidente que se tinham libertado do jugo do fascismo e que por vezes, por exemplo na Itália, tinham conseguido introduzir na própria Constituição a recusa da guerra e da política da guerra e da hegemonia.

2. A revolução anticolonial ontem e hoje Pois bem, a primeira pergunta que temos que nos fazer é esta: que é feito hoje da gigantesca revolução anticolonial estimulada pela revolução de Outubro e acelerada por Stalingrado? Não, essa revolução não desapareceu. Numa realidade como a palestina, o colonialismo continua a existir na sua

forma clássica, como demonstram a ininterrupta expansão das colônias israelitas nos territórios ocupados, a consequente expropriação, deportação e marginalização do povo palestino e a difusão de um regime de apartheid. E, contudo, apesar da hiperpotência e do uso bárbaro da máquina de guerra israelita, apoiada, aliás, pelos Estados Unidos e pela própria União Européia, apesar de tudo isto, o povo palestino resiste heroicamente.

Noutras partes do mundo, a luta entre colonialismo e anticolonialismo manifesta-se de modo diferente.No cotiete americano, o século XX começava com uma declaração significativa de Theodore Roosevelt: à “sociedade civilizada” no seu todo  –  ele afirmava  – pertencia um “poder de polícia internacional” , e esse poder os Estados Unidos iriam exercê -lo na América Latina. A partir desta retomada e radicalização da doutrina Monroe, não se contam as intervenções militares levadas a cabo pela república norteamericana em prejuízo dos seus vizinhos, considerados estranhos ao mundo civil e comparados a bárbaros necessitados de tutela imperial.Contudo, a doutrina Monroe caiu radicalmente em crise a partir de uma revolução da qual há alguns meses se celebrou o 50º aniversário. Durante o meio século decorrido, entretanto, recorreu-se a todo e qualquer meio para isolar, difamar, sufocar, liquidar a Revolução Cubana, mas hoje a sua força e o seu significado internacional são confirmados pelas mudanças em curso em países como a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o Brasil, a Nicarágua, o Paraguai. Com modalidades sempre muito diferentes, a revolução anticolonialista e antiimperialista está em marcha na América Latina.

No decorrer do século XX, a revolução anticolonialista espalhou-se também pela Ásia e na África. E hoje? Para no situarmos na questão, é preciso partir de uma observação de Frantz Fanon, o grande teórico da revolução argelina. Quando se sentem forçadas a capitular  – escreve Fanon em 1961  – as potências coloniais parecem dizer aos revolucionários: “Já que querem a independência, aqui têm e morram”; desta forma “a apoteose da independência transforma-se na maldição da independência” . É a este novo desafio, de caráter já não militar, que é preciso responder: “São precisos capitais, técnicos, engenheiros, mecânicos, etc.” Do outro lado, já em 1949, ainda antes da conquista do poder, Mao tinha insistidos na importância da edificação econômica: Washington deseja que a China se “reduza a viver da farinh a americana”, acabando assim por “tornar -se uma colônia americana”. E, portanto, sem a vitória na luta pela produção, agrícola e industrial, a vitória militar estava destinada a revelar-se frágil e inconclusiva. Noutra palavras, Mao e Fanon tinham previsto de qualquer modo, por um lado, o entrave de muitos países africanos que não conseguiram passar da fase militar à fase econômica da revolução; por outro, a reviravolta verificada em revoluções anticoloniais como a chinesa e a vietnamita.

3. O nascimento do Terceiro Mundo Este é um ponto crucial sobre o qual temos que nos debruçar. Perguntemo-nos de que modo se formou o Terceiro Mundo, o espaço tradicionalmente oprimido e saqueado pelo Ocidente colonialista e imperialista. Com uma longa história às costas, que a tinha visto durante séculos e milênios em posição eminente no desenvolvimento da civilização humana, ainda em 1820 a China exibia um PIB que constituía 32,4% do Produto Interno Bruto mundial; em 1949, no momento da sua fundação, a República Popular da China tinha-se tornado o país mais pobre, ou entre os mais pobres do globo. Não muito diferente é a história da Índia que em 1820 contribuía com 15,7% do PIB mundial, antes de cair também ela numa assustadora miséria. Isto é, não podemos compreender o processo de formação do Terceiro Mundo abstraindonos da política de saque e de desindustrializaçã o conduzida pelas potências colonialistas e imperialistas.

Mas ao processo de formação do Terceiro Mundo contribuiu também uma outra circunstância. Para compreendê-la temos de referir uma revolução que no final do século XVIII surgiu num país que hoje se chama Haiti, mas que então tinha o nome de santo Domingo. É uma revolução dos escravos negros que partia ao mesmo tempo as correntes do domínio colonial e da instituição da escravidão: nascia assim no continente americano o primeiro país liberto do flagelo da escravidão. A dirigir este processo de emancipação estava um  jacobino negro, Toussaint Louvertura, uma grande personalidade histórica geralmente ignorada nos nossos livros de história, mas que numa sociedade democrática deveria figurar obrigatoriamente até nos livros de educação cívica. Pois bem, depois da vitória militar, Toussaint Louvertura colocava o problema da edificação econômica: com essa finalidade queria recorrer também aos técnicos e aos especialistas brancos provenientes das filas do inimigo derrotado; por este motivo foi acusado de querer restaurar o domínio branco e de trair assim a revolução. Surgia daí uma tragédia que ainda hoje nos deve fazer refletir. Santo Domingo era uma ilha muito rica, graças ao açúcar produzido em plantações de grandes dimensões e de notável eficiência e largamente exportado. Claro, a riqueza produzida pelos escravos era metida ao bolso pelos seus patrões. Era possível para os antigos escravos fazer funcionar a seu proveito a economia desenvolvida por eles e herdada graças à revolução? Desgraçadamente, a seguir à derrota da linha de Toussaint Louvertura, em Santo Domingo/Haiti manteve-se uma retrógrada agricultura de subsistência. A ilha conhecia assim a miséria generalizada e é ainda agora um dos países mais pobres do globo. Concluindo, a formar o Terceiro Mundo estão também os países que não conseguem passar da fase militar à econômica da revolução, os países nos quais por uma razão ou por outra a revolução anticolonial conhece a derrota e o fracasso.

4. O imperialismo e a condenação à inanição dos povos rebeldes Não se compreenderia nada da luta entre colonialismo e anticolonialismo, entre imperialismo e anti-imperialismo, se não se tivesse em consideração que esta é travada também no plano econômico. Logo depois da revolução conduzida por Toussaint Louvertura, Thomas Jefferson declarava querer reduzir à “inanição” o país que tinha tido o descaramento de abolir a escravatura. Esta mesma situação aconteceu no século XX. Já logo a seguir a Outubro de 1917, Hebert Hoover, naquela altura alto expoente da administração Wilson e mais tarde presidente dos USA, propagava de forma explícita a ameaça da “fome absoluta” e da “morte por inanição” não só contra a Rússia soviética, mas também contra todos os povos inclinados a deixar-se contagiar pela revolução bolchevique. É uma política que continua ainda hoje: como é sabido, o imperialismo procura asfixiar economicamente Cuba, reduzindo-a possivelmente à condição de Gaza, onde opressores podem exercitar o seu poder de vida e de morte, mais do que com os bombardeamentos terroristas, com o controle dos recursos vitais. No que diz respeito à República popular da China, no princípio da década de 1960, um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, gabava-se do fato de os Estados Unidos terem conseguido adiar por “dezenas de anos” o desenvolvimento econômico do grande país asiático! E contra este, ainda hoje Washington conduz uma política de embargo tecnológico, política essa que até o último momento foi posta em ação em prejuízo da União Soviética.

Por isso, a solidariedade internacionalista deve dirigir-se também aos países que conseguiram passar da fase militar à fase mais propriamente econômica da revolução anticolonialista e anti-imperialista. Os líderes latinoamericanos estão ao par da importância desta passagem de ordem muito significativa: “Industrializaçã o ou morte!”. Trata-se, aos olhos de Álvaro Garcia Linera, de concretizar “o desmoronamento progressivo da dependência econômica colonial”. Nesta perspectiva torna -se importante a crescente troca comercial e tecnológica com um país como a China: isto torna menos grave a ameaça de asfixia econômica alardeada pelo imperialismo, tornando assim mais ágil a luta conta a doutrina Monroe também no plano econômico.

Já se verifica, portanto, uma substancial convergência entre os países e os povos protagonistas da revolução anticolonialista e anti-imperialista. É uma frente intercolonialista que tende a crescer. Depois da vitória conseguida na Guerra Fria, servindo-se também da cumplicidade da União Européia, os Estados Unidos transformaram em semicolônias países como a Albânia e territórios como o Kossovo. É a configuração de tese por mim enunciada, segundo a qual a formar o Terceiro Mundo e o espaço colonial ou semicolonial de que o capitalismo necessita, estão por um lado a iniciativa direta do imperialismo e por outro o fracasso ou a derrota de determinadas revoluções,

seja por causas internas, seja mais uma vez por uma intervenção do imperialismo. Não se deve esquecer que a própria Rússia, depois da restauração do capitalismo, estava a tronar-se ou corria o risco de se tornar uma semicolônia. Um colossal brain drain, uma colossal fuga de cérebros e um processo de desindustrializaçã o em larga escala atingiam o grande país, cujas matérias-primas e recursos energéticos estavam a cair sob o controle de potências estrangeiras. Então se compreende que a Rússia mostra uma resistência ao louco projeto de Washington de impor o seu domínio a nível mundial.

Infelizmente, a esta frente anticolonialista e anti-imperialista, que se podia constituir, falta ainda um componente essencial: não conta ainda com a plena solidariedade dos movimentos de oposição que, contudo, se manifestam no âmbito dos países capitalistas avançados. Como se explica isso? Não se trata de um problema novo. Na Segunda Internacional, não faltavam certamente na Europa vozes que justificavam o expansionismo colonial em nome da exportação da civilização. Hoje a ideologia dominante prefere falar de direitos humanos e de luta contra o autoritarismo, o totalitarismo, o fundamentalismo, mas a essência colonialista ou neocolonialista deste comportamento não muda.

5. O imperialismo como principal inimigo dos direitos humanos Para percebermos isso, não é preciso invocar Marx ou Lenin. Quero aqui partir do discurso proferido em 6 de janeiro de 1941 por Franklin Roosevelt. Ao convidar a nunca perder de vista a “supremacia dos direitos humanos”, junto com as tradicionais liberdades da tradição liberal (liberdade de palavra e de expressão, bem como religiosa) o presidente estadunidense teoriza também a “libertação da necessidade” (freedom from want) e a “libertação do medo” (freedom from  fear). Concentremo- nos inicialmente nestas duas últimas. Pois bem, não só uma parte consistente da população dos Estados Unidos é privada até de assistência sanitária, como as administrações que foram sucedendo nos últimos tempos em Washington se emprenharam numa espécie de cruzada planetária para anular o estado social também naqueles países em que em maior ou menos medida está ainda presente. No momento em que teoriza a “libertação do medo”, Rooselvelt tem como alvo a  Alemanha nazista, que ameaçava invadir países fronteiriços e vizinhos. Hoje os Estados Unidos estão em primeiro lugar a fazer pesar em cada canto do Mundo o medo e a angústia dos bombardeamentos, das destruições em larga escala e até da aniquilação nuclear. Com a finalidade de começar a concretizar a “libertação do medo”, em polêmica indireta com o Terceiro Reich, Roosevelt invocava a “redução do armamento”. Hoje, os Estados Unidos sozinhos gastam em armamentos tanto quanto o resto do Mundo inteiro. Isto é, ao menos no que diz respeito a estes fundamentais “direitos humanos” que são a “libertação da

necessidade” e a “libertação do medo”, o inimigo principal é o próprio país que se ergue como juiz inquestionável da causa dos direitos humanos.

Se nos concentrarmos também nos direitos clássicos da tradição liberal, o resultado não é muito diferente. Quem, na Primavera de 1999, assassinou, bombardeando- os do alto, os jornalistas televisivos jugoslavos culpados de não terem a opinião dos vértices e dos ideólogos da NATO e de teimar em condenar a agressão ao país? E quantos são os jornalistas “acidentalmente” mortos pelo fogo das forças de ocupação no Iraque ou na Palestina? Gozam dos “direitos universais de palavra e de associação” os habitantes de Gaza que, depois de terem votado no Hamas no decurso de eleições livres, se viram condenados primeiro à asfixia econômica e ao bloqueio e sucessivamente a bombardeamentos selvagens e à invasão? E gozaram de todos estes direitos os detidos de Abu Ghraib e Guantánamo? O que é feito da rule of Law, do governo da lei, para as pessoas mortas pelas “execuções extrajudiciais” (com amplos “danos colaterais”) soberanamente decidida pelo governo de Washington na região paquistanesa fronteiriça com o  Afeganistão, ou pelo governo de Tel Aviv (apoiado pelo de Washington) na Palestina? Por fim: os árabes e os islâmicos que nos USA ousam contribuir para uma subscrição a favor da população de Gaza e de Hamas correm o risco de ser perseguidos e condenados enquanto “terroristas”. Para citar Marx, “a profunda hipocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa estão à nossa frente, logo que viramos os olhos das grandes metrópoles, onde tomam formas respeitáveis, para as colônias” ou para os povos de origem colonial colocados nessa mesma metrópole. Neste caso, a “hipocrisia” e a “barbárie” burguesa “andam por aí a descoberto”. Como nos confirmou a sorte reservada a Gaza.

Isto não significa negar que existem problemas acerca do respeito dos direitos humanos nos países e povos empenhados na revolução anticolonialista e anti-imperialista e nos próprios países que se identificam com o socialismo. Todavia, basta ler autores como Madison ou Hamilton, para saber que o governo da lei, a rule of Law, não pode florescer onde está presente ma ameaça à segurança nacional. Gritar escandalizado pela ausência de democracia nos países submetidos a um cerco mais ou menos premente no plano diplomático, econômico e militar é expressão de loucura ou de cinismo político. Por outras palavras, não existe verdadeira democracia sem democracia nas relações internacionais e o principal inimi go da democracia nas relações internacionais é o constituído por um país que, pela boca de Clinton ou de Bush sênior e júnior e de tantos outros presidentes, pretende ser a nação eleita por Deus com a missão de guiar e de dominar o mundo pela eternidade. É isto que procurei explicar no meu livro A linguagem do Inpério. Léxico da ideologia americana.

Também no atual “imperialismo dos direitos humanos”, como  justamente foi definido, não é algo totalmente novo. No momento em que, depois de uma heróica revolução, nos princípios do século XX, Cuba conquista a independência da Espanha, Washington obriga o país formalmente a introduzir na sua constituição a chamada Emenda Platt, em que reconhece aos Estados Unidos o direito de intervir militarmente na ilha, de cada vez que nela considerassem ameaçado o pleno gozo da propriedade e da liberdade. É como se hoje os aspirantes a donos do mundo pretendessem fazer valer a Emenda Platt a nível planetário! É o “imperialismo dos direitos humanos” a enfraquecer a esquerda nos países capitalistas avançados.

6. Um novo bloco histórico a nível internacional Outros fatores também contribuem para enfraquecer a esquerda. Na Europa e nos Estados Unidos vivem núcleos importantes de imigrantes provenientes do Médio Oriente e do mundo árabe e islâmico. Estes, que muitas vezes deixaram a sua família para trás, sofrem com uma intensidade particular a tragédia que continua a pesar mais do que nunca no povo palestino. Estes estão na linha da frente a manifestar-se contra o colonialismo e imperialismo, contra Israel e os Estados Unidos, e é também por isto, mais do que pela lógica interna do capitalismo, que estes imigrantes são explorados de forma peculiar, marginalizados e frequentemente  –  de qualquer forma nos anos da administração Bush – presos arbitrariamente para serem torturados nas prisões secretas da CIA. Empenha-se suficientemente a esquerda ocidental para procurar estabelecer um laço forte e permanente com estas comunidades? Querer negligenciá-las seria como se, nos Estados Unidos de supremacia branca, o partido comunista tivesse conduzido a sua agitação abstraindo-se dos negros. Não foi assim. Mesmo tendo sido gravemente enfraquecidos antes pelo terror do macartista e depois pela crise do campo socialista, durante muito tempo os comunistas americanos souberam lutar, arriscando a liberdade e também a vida, contra as discriminações, as humilhações, a opressão, os linchamentos provocados pelo regime da White supremacy.

Os niggers, dos quais falavam com desprezo os racistas estadunidenses, são hoje representados no Ocidente pelos imigrantes árabes e islâmicos; e estes não se limitam a reivindicar a “libertação da necessidade”; não querem por serem pobres apelar a uma compaixão paternalista. Em primeiro lugar, eles reivindicam – para usar a linguagem filosófica (hegeliana)  – o reconhecimento; eles exigem ser reconhecidos na sua dignidade humana, na sua cultura, nas suas reivindicações nacionais, começando pela reivindicação nacional do povo palestino, o povo mártir por excelência dos nossos dias!

Só abolindo completamente a influência do “imperialismo dos direitos humanos” e da islamofobia (que nos nossos dias tomou lugar do tradicional flagelo racista), é só agindo desta forma que o movimento de oposição presente nos países capitalistas avançados poderá dar uma contribuição real à luta contra a reação. Encontramo-nos hoje numa situação que, por um lado, tem perspectivas positivas e encorajadoras: 1. Na luta anti-imperialista reaparecem povos e civilizações que tinham sido aniquiladas pelo colonialismo: pensemos no papel crescente dos índios na América Latina. 2. O prodigioso desenvolvimento de um país como a China quebra o monopólio tecnológico pertencente ao imperialismo. Aquela que os historiadores chama de a “grande abertura”, pela qual num dado momento se abriu um abismo entre países capitalistas avançados e Terceiro Mundo, esta “great divergence” tende a reduzir-se. 3. A tomada de consciência da crise do capitalismo volta a dar balanço à perspectiva do socialismo para além do Terceiro Mundo, também nos países capitalistas avançados. Por outro lado, vemos o país modelo do capitalismo submerso numa profunda crise econômica e cada vez mais desacreditado a nível internacional. Mas ao mesmo tempo ele continua a agarrar-se à pretensão de ser o povo escolhido por Deus e a aumentar freneticamente o seu monstruoso aparato de guerra e a espalhar a sua rede de bases militares em cada canto do mundo. Isto tudo não promete nada de bom.

Para compreender a gravidade do perigo e dar um novo impulso à luta contra o militarismo e a corrida armamentista é preciso pôr fim de uma vez para sempre ao jogo das analogias. Apesar disso tudo, ele não desapareceu. Num autor importante como é Antonio Negri podemos ler a tese segundo a qual, no mundo de hoje, com uma burguesia substancialmente unificada em nível planetário, se opõe uma “multidão”, ela mesma unificada pelo desaparecimento das barreiras estatais e nacionais. Pois bem, quando lemos isso, não podemos deixar de pensar no esquema ao qual, nos primeiros anos da sua existência, se ateve a Terceira Internacional: quem lutava contra o sistema mundial de exploração e da opressão era o “partido bolchevique mundial”. Se substituirmos o “partido bolchevique mundial” pela “multidão” unificada no plano planetário de que fala Negri, permanecemos para sempre no âmbito da visão cuja base o conflito político-social vê, de um lado, a frente unida dos opressores, do outro, a frente unida dos oprimidos: os Estados e as nações não desempenhariam mais nenhuma papel, e o alinhamento das forças em luta ter-se-ia simplificado de tal maneira que não haveria necessidade da cansativa análise dos diversos tipos de contradição e da identificação da contradição principal. Este esquema foi refutado e ridicularizado pelo desenvolvimento histórico do século XX, que viu o sistema imperialista e colonialista sofrer duros golpes por ação dos movimentos de libertação nacional. Na variante dos negros, este esquema é ainda mais estéril e enganoso: (a) ele não está em condições de explicar a persistência, no mundo atual, dos movimentos de libertação acional e sua passagem, em muitos casos, da fase militar para a fase econômica da luta; (b)

não tem presente que, uma realidade como a latinoamericana, exatamente a exigência de defender e reforçar a independência nacional e de subtrair-se ao controle do imperialismo leva certos países a promover um desenvolvimento que, às vezes, coloca em discussão as próprias relações capitalistas de produção; (c) passa em silêncio os perigos de guerra, também em larga escala, que as ambições de domínio planetário do imperialismo estadunidense fazem pesar sobre o mundo inteiro. Se as analogias analisadas no início desta minha intervenção cometeram o erro de querer reproduzir esquematicamente, numa situação histórica diferente, experiências revolucionárias reais e vitoriosas, a analogia reproduzidas pelo esquema dos negros pretende duplicar um projeto que já em seu tempo se revelou fracassado.

É a presença simultânea hoje de perspectivas prometedoras e de ameaças terríveis a tornar urgente a construção a nível internacional de um novo bloco histórico, para ultilizar a linguagem de Gramsci. Não é uma tarefa fácil porque se trata de soldar entre si forças colocadas em contextos históricos-culturais e situações políticas e geopolíticas muito diferentes. E este novo bloco histórico, o único que pode dar um novo balanço ao internacionalismo, só poderá ser constituído se os partidos comunistas, também os dos países capitalistas avançados, por um lado recuperarem o orgulho da sua própria história, por outro reforçarem a sua capacidade de análise concreta da situação concreta.

Tradução: Joana Longobardi e Jaime Classen

Ref erênc ias b ib li og ráfi c as 

Frantz Fanon,  Les damnés de La terre (1961), TR. It., di Carlo Cignetti, I

dannati della terra, pref. Di Jean-Paul Sartre, Einaudi, Torino, 2ª Ed., 1967, p. 55-8.

C.L.R. James, The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the san

Domingo Revolution. Nova Iorque, Random House, 1989. [ed. Bras.: Os  jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos (trad.  Afosno Teixeira Filho, São Paulo, Boitempo, 200).]

Alvaro Garcia Linera, entrevista a Pablo Stefanoni, em “il manifesto” de 22 de

 julho de 2006, p.3.

Mao Tsetung, Perché può esistere in Cina Il potere rosso? (5 de outubro de

1928), em Opere scelte, Edições em línguas estranegiras, Pequim, 1969-75, vol. 1, p. 61.

Mao Tsetung, Il fallimento della concezione idealística dlla storia (16 de

setembro de 1949) em Opere scelte, Edições em línguas estrangeiras, Pequim, 1969-75, vol. 4, p.467.

Karl Marx  – Friedrich Engels, Werke, Dietz, Berlin 1955-89, vol. 9, p. 225 (Die

künftigen Ergebnisse der britischen Herrschaft in Indien).

Para Jefferson, Hoover e Rostow cf. Domenico Losurdo. Stalin. Storia e critica

di uma leggenda nera, Carocci, Roma, 2008, p. 196 e 288 [trad. Brás. Revan, no prelo].

Franklin Delano Roosevelt, Four Freedoms Speech (6 de janeiro de 1941),

em Richard Hofstadter-Beatrice Hofstadter, Great Issues in American History, Vintage books, New York, 1982, p. 386-91.

*Palestra proferida na atividade “Tópicos Utópicos” em Fortaleza/CE no dia 12 de maio de 2010. ** Professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino, na Itália, Domenico Losurdo nasceu em 1941 e doutorou-se com uma tese sobre Karl Rosenkranz. Tem publicadas, em português, as seguintes obras: * Hegel, Marx e a tradição Liberal. Liberdade, Igualdade e Estado *. Editora Unesp, 1998; *Democracia e Bonapartismo *. Editora UNESP, 2004; * Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa Vistas de Hoje *. Editora Revan, 2004; *Contra-História do Liberalismo *. Idéias & Letras, 2006. Tem ainda oito livros não traduzidos para português, que versam sobre autores como Kant, Nietszche, Hegel, Heidegger e seu compatriota Antonio Gramsci e temas como o “comunismo crítico” e o “revisionismo histórico”.

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